colóquio - a justiça em portugal

Transcrição

colóquio - a justiça em portugal
CONSELHO ECONÓMICO E SOCIAL
COLÓQUIO “A JUSTIÇA EM PORTUGAL”
(Organizado pelo Conselho Económico e Social, no Grande Auditório da Caixa Geral
de Depósitos a 24 de Maio de 1999)
LISBOA, 1999
1
Índice
Sessão de Abertura
Intervenção do Presidente do Conselho Económico e Social
Dr. José da Silva Lopes
Esboço de uma Perspectiva da Justiça em Portugal na Óptica
de um Conselho Económico e Social
Dr. Joaquim Magalhães Mota
Intervenção do Senhor Ministro da Justiça
Dr. Vera Jardim
5
7
16
Algumas Questões com Relevância Económica
As Falências e a Administração da Justiça: Algumas Reflexões
Dr. Almeida Serra
27
A Crise de Confiança nos Contratos
Dr. Miguel Veiga
41
O Crédito mal parado nas Empresas não Financeiras
Dr. Luís Faria
55
Aspectos Sociais
A Concentração e a Selectividade da Litigância
Dr. Armindo Ribeiro Mendes
62
Os Problemas do Consumo e do Ambiente e as Novas Vertentes
da Cidadania nos Tribunais
Conselheiro Mário José de Araújo Torres
78
A Justiça como Tarefa Comum
A Justiça como Tarefa Comum: o Presente e o Futuro Judiciário
Dr. João Correia
90
White-Collar Crime e Justiça Penal (Uma Abordagem Criminológica)
Professor Doutor Manuel Costa Andrade
97
A intervenção dos advogados prevenindo o litígio
Dr.António Pires de Lima
117
O Poder Judicial Hoje
A expressão das competências do poder judicial
Juiz Conselheiro José Nunes da Cruz
123
A crise (interna ou externa) dos tribunais?
Professor Doutor Boaventura Sousa Santos
130
Legitimidade do poder judicial
Professor Doutor J.J. Gomes Canotilho
140
2
Síntese Conclusiva do Colóquio
Dr. José Luís da Cruz Vilaça
148
Anexos
159
Programa
175
3
Sessão de Abertura
4
Intervenção do Senhor Presidente do Conselho Económico e Social
Dr. José da Silva Lopes
Como sempre acontece quando o Conselho Económico e Social promove a discussão
pública de um assunto, a escolha de A Justiça em Portugal como tema para o presente
Colóquio assentou em critérios de relevância para a vida social e económica do País na
actualidade.
O Conselho Económico e Social tem presente a importância do sistema judicial,
enquanto pilar decisivo do Estado de Direito e avalia bem em que medida este é um
sector de grande melindre e complexidade. Mas observa que as manifestações públicas
de insatisfação pelo funcionamento da justiça têm estado, nos últimos tempos, a ser
provavelmente mais generalizadas e mais intensas do que em qualquer outro momento
do último meio século, exceptuando os casos de julgamentos políticos do tempo da
ditadura.
As características da vida social e da actividade económica com que a Justiça tem de
lidar têm estado a transformar-se a um ritmo sem precedentes, em consequência do
desenvolvimento de novas formas de delinquência e conflitualidade, da liberalização
económica, da globalização, e das novas tecnologias. A legislação e o sistema judicial
português não se têm transformado com rapidez suficiente para responder a essas
modificações. Daí resultam, além de graves problemas na defesa dos direitos dos
cidadãos, consequências sérias para as actividades económicas e para a vida social:
distorções na concorrência; custos impostos a uma parte dos cidadãos e agentes
económicos para compensar os danos provocados por outros; obstáculos ao crescimento
dos investimentos; limitações à competitividade internacional das empresas, etc. O
desenvolvimento económico e a coesão social não poderão deixar de ser negativamente
afectados se as falências fraudulentas continuarem a não ser penalizadas, se persistirem
atrasos excessivos na solução de disputas relativas ao cumprimento dos contratos, se
não houver sanções efectivas e dissuasoras para as fraudes fiscais, se a legislação sobre
a defesa da concorrência continuar na prática a ser inoperante, e se não houver meios
para combater as novas formas de criminalidade económica.
O Conselho Económico e Social está bem consciente de que a Justiça é um sector
onde, frequentemente, valores inquestionáveis, quando isoladamente ponderados, são
delimitados por outros igualmente atendíveis. Trata-se, em regra, de equilíbrios difíceis,
como são, a título de exemplo, o equilíbrio entre as garantias dos réus e arguidos e a
celeridade e tutela dos direitos e interesses dos lesados; o equilíbrio entre o direito ao
recurso e a rapidez na conclusão dos processos; ou o equilíbrio entre o princípio da
indispensável independência dos juizes e o controlo da actividade judiciária.
Não será de esperar, por isso, que as dificuldades do sistema judicial possam vir a ser
eliminadas de um momento para o outro. A magnitude e a complexidade dos desafios a
enfrentar continuarão, certamente, a alargar-se. As transformações económicas e sociais
já atrás assinaladas, o surgimento de novas e mais elaboradas áreas e formas de
5
criminalidade, e a generalização do acesso ao direito, entre outros factores, não deixam
antever uma diminuição da litigância judicial. Antes pelo contrário, a previsão mais
consistente é a de que esta continuará a subir.
Daí que seja tão importante discutir, em iniciativas como esta, as respostas possíveis
para a actual situação. Não conseguiremos eliminar rapidamente todas as disfunções
existentes, porque isso seria certamente utópico, mas pelo menos deveremos empenharnos em reduzir substancialmente os seus efeitos negativos e em evitar os riscos que uma
insatisfação generalizada como o Sistema de Justiça não deixariam de trazer para o País.
Em face da multidisciplinaridade das questões que nesta área se colocam, o Conselho
Económico e Social, no propósito de dar a conhecer diferentes enquadramentos do
problema, convidou para participar no presente Colóquio entidades de reconhecido
mérito, que, tendo em comum o estudo dos problemas da Justiça, possuem diferentes
formações académicas e diversas experiências profissionais.
Assim, podemos contar com as comunicações de ilustres magistrados, professores de
direito, advogados, sociólogos e economistas.
Terei que exprimir ao Senhor Ministro da Justiça o agradecimento por ter aceitado
presidir à presente sessão de abertura do Colóquio e apresentar nela uma intervenção
que virá a enriquecer substancialmente os nossos trabalhos. O Conselho Económico e
Social está também muito grato às diversas personalidades do sistema judicial que nos
honraram com a sua presença nesta sessão.
O CES está ainda agradecido a todos os que aceitaram o convite para intervir nos
trabalhos de hoje, sobretudo os autores das comunicações sobre as quais se vão basear
os nossos debates. São as suas contribuições que fundamentalmente determinarão os
resultados do presente Colóquio.
Um reconhecimento especial é devido ao Sr. Dr. Magalhães Mota que, como
membro do Conselho Económico e Social, onde é uma das três personalidades de
reconhecido mérito designadas em Plenário, estruturou o programa das diferentes
sessões de hoje, sugerindo os temas a discutir e os nomes das personalidades
convidadas para a apresentação desses temas.
Por último, devo transmitir ao Presidente da Caixa Geral de Depósitos, Senhor Dr.
João Salgueiro, que é também Vice-Presidente do Conselho Económico e Social, a
nossa gratidão pela sua generosidade em nos ceder gratuitamente a utilização das
instalações onde vai decorrer o Colóquio, à semelhança do que já fez em relação a
outras iniciativas do mesmo tipo, promovidas nos últimos anos pelo Conselho.
6
Esboço duma Perspectiva da Justiça em Portugal na Óptica de um Conselho
Económico e Social
Dr. Joaquim Magalhães Mota*
Falamos, naturalmente, não de JUSTIÇA, mas da administração da Justiça.
E ao falar desta, creio valer a pena principiar por recordar o texto constitucional.
Diz o n.º 2 do art. 202.º que “na administração da justiça incumbe aos tribunais
assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos,
reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses
públicos e privados”.
Naturalmente, a lembrança do texto da Constituição equivale a lembrar, ao mesmo
tempo, a definição da função jurisdicional a que são chamados os tribunais na
administração da justiça.
E corresponde também a evidenciar que, normalmente, é apenas a função de “dirimir
conflitos” a que está no centro das atenções.
De facto, e em rigor, é através do conflito decidido que a defesa dos direitos ou a
repressão da violação da legalidade se efectiva. É no concreto decidir dos litígios que,
verdadeiramente, se define a função jurisdicional.
Por isso, e talvez não seja inútil lembrá-lo, é a não decisão ou o atraso na decisão,
que perturbam e chocam os cidadãos.
Ainda antes me parece dever sublinhar que, sob três perspectivas, como as que
resultam do texto constitucional, está em causa a realização da normatividade jurídica.
Na defesa dos direitos legalmente protegidos, quando violada a legalidade, e face a
um concreto conflito de interesses.
Só que, perante o conflito, a função do juiz não é só aplicar a Lei. Mas a de regular o
conflito, “qualquer que seja o estado do direito escrito”, 1 sob pena de denegar justiça.
Creio estar aqui uma concreta exigência que vai para além da exigência duma
decisão.
Mas exigência a uma função jurisdicional entendida, não como mera função de tutela
de lei e da sua formal aplicação, mas como pronuncia dum juízo sobre a relação
material controvertida, isto é, como a outra face do direito de acesso à justiça que é
direito fundamental dos cidadãos.
Não tenho a certeza de que o Centro de Estudos Judiciários e as inspecções judiciais,
tenham exactamente esta noção da função jurisdicional e do papel dos juizes.
Por isso, importa assinalar que a predominância do processo, a sobrevalorização da
forma, é muitas vezes, sempre demasiadas vezes, inimiga da pronuncia de juízo que se
pretende e legitimamente se exige.
*
1
Advogado. Conselheiro do CES.
S. BELAID, Essai sur le pouvoir créateur et normatif du juge”, pág. 38.
7
Acrescentarei que só nesta linha se poderão entender os tribunais como órgãos de
soberania que se assumem independentes na função de administrar justiça.
Porque a administram “em nome do povo”.
Isto é, concorrendo “para a realização da intenção político-jurídica unitária que a
comunidade historicamente assume” 2, para a vontade dum povo que, tributário dum
passado que o formou, não só vive em conjunto como, em conjunto pretende enfrentar a
aventura do futuro. Correspondendo à vocação de “auto-realização em liberdade de um
povo de homens reconhecidos iguais e invioláveis na sua dignidade”.
Ou seja: na formulação clássica segundo a qual a justiça é atribuir a cada um o que
lhe é devido, pressupõe-se saber o que a cada um é devido numa concreta comunidade,
no tempo e no espaço situada.
É esta decisão, a que aos Tribunais se exige.
Não será demasiado repetir que tal impõe que aos valores de raiz formal acresçam
valores essenciais, deles se destacando o conceito real da justiça.
O que se trata não é dum diálogo formal entre o homem abstracto e a lei, abstracta e
geral. Mediado por um técnico “quimicamente puro”. Trata-se, antes, duma relação,
enraizada na vida quotidiana, entre homens concretos, a lei em processo de
concretização e um magistrado responsável face a essa situação pela prossecução, de
acordo com o direito, da justiça a definir. Em concreto, também. Porquanto definição da
lei, dizer o direito, no concreto caso presente no Tribunal, é o que do Tribunal espera o
Sr. Silva, ou o Sr. Qualquer Coisa que todos somos.
Por isso, a justiça não é a ordem. Mas a promessa e o penhor duma ordem melhor.
Todo o alargamento da ideia de direito é, consequentemente, solidário das condições,
materiais e morais, do meio social. A antecipação só será reconhecida na medida em
que os erros sejam, de imediato, sancionados.
Não é o Homem quem, arbitrariamente, estende o domínio do direito porque cada
vez exige mais da Sociedade. Pelo contrário, é uma concreta sociedade que, por
intermédio do direito, firma a sua vitalidade.
Sabemos todos, como esta crescente intervenção, se traduz não apenas num maior
número de leis mas, conjugada com as dificuldades próprias dos parlamentos, no fim da
noção clássica do “poder legislativo” com o reconhecimento de competências
legislativas aos Governos e o surgir de administrações poderosas e presentes em quase
todos os aspectos da vida social.
Direi que não se dúvida, hoje, serem insustentáveis quer um conceito de lei, como
norma universal, geral e abstracta, quer o seu monopólio parlamentar.
Mas o que importa evidenciar é que tal implica, e necessariamente, a automática e
fatal expansão das competências próprias dos tribunais como órgãos de controlo da lei
(e também da “legislação”)3.
2
CASTANHEIRA NEVES “O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos supremos tribunais”,
Coimbra, 1983.
3
No sentido anglo-saxónico de “intransitive internal legislation”.
8
Acrescentarei que um poder político permanentemente pressionado por uma tentação
de eficácia e popularidade, se defronta, permanentemente também, com a ineficácia da
produção legislativa que produz sem conseguir (nem dar tempo de) implementar e em
que, pela ambiguidade, se procura mascarar a ausência de verdadeiros consensos.
Com o peso próprio dos interesses económicos e corporativos e dos seus múltiplos e
variados “lobbings” que tornam crescentemente complexa a gestão da “coisa pública”.
É assim como uma forma de compensação, e também de “acalmação”, que
crescentemente o Poder se abre à sindicância judicial.
Convergem assim as linhas de força que procurámos evidenciar.
Por um lado, destaca-se a importância decisiva da concreta decisão como criação e
poder normativo, tornando-se o legislador, apenas, “o pólo geral de imputação da
criação normativa do direito”.4
Por outro lado, pede-se aos tribunais que intervenham em áreas cada vez mais
extensas e diversificadas.
Por isso, não há que estranhar que aumente a litigiosidade. Nem é, necessariamente,
mau que ela aumente.
Afinal, a justiça não é desígnio nem tarefa exclusiva dos tribunais. A administração
da justiça – “em nome do Povo” – significa isso mesmo. Que ela é tarefa e
responsabilidade de todos.
Não apenas dos tribunais. Nem dos juizes.
Também dos titulares de magistratura do ministério público. Como da Assembleia da
República e do Governo. Da administração central e do poder local. Dos cidadãos.
Por isso, a justiça não pode ser o lugar de confronto de novos corporativismos. São
os cidadãos a sua razão de ser. E é em nome do Povo que a justiça é administrada.
É nesta especial perspectiva – a da justiça como problema que a todos diz respeito e,
por isso, desafia e compromete – que o Conselho Económico e Social naturalmente se
situa.
Um Conselho Económico e Social, estará particularmente atento àquele núcleo –
que, obviamente, não é restrito – de inter-relação com a economia, as relações
sociolaborais e a exigência de regras unanimemente aceites de relacionamento negocial.
Não se estranhará, por isso, que também o Conselho Económico e Social se faça eco
daquilo a que, um tanto ou quanto alarmistica ou sensacionalista, vem sendo designado
por “crise de justiça” e também sobre a justiça procure reflectir.
Parece-me importante, perdoe-se-me a imodéstia, começar por dizer que aquilo a que
se vem chamando crise da justiça é proclamado em termos de eficácia.
Diz-se a justiça em crise porquanto alguns tribunais não conseguem dar resposta
atempada às questões que lhe são postas para decidir.
4
CASTANHEIRA NEVES “Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, 1993,
pág. 285.
9
Não negamos uma exigência de prontidão que a não cumprir-se põe em causa a
própria justeza das decisões. Não há justiça quando a justiça tarda – todos o sabemos,
mais ou menos, dolorosamente.
Nem se duvida que a acumulação de questões a resolver pelos tribunais, aliada a
carências de meios humanos e técnicos, criam, em diversas áreas, uma situação de
difícil, e naturalmente morosa, recuperação.
Mas, acima de tudo, importará que a crise, consistindo no atraso das decisões, não
resvale para uma verdadeira crise da justiça.
Quero dizer que não bastará, embora importe, a dotação da instituição judiciária com
vista a resolver o que, mais rigorosamente talvez, se deveria chamar por “crise de
pendência”. 5
Vivemos, em Portugal e, de algum modo, a nível global, uma nova realidade.
Económica, social, cultural. A ela é necessário afeiçoar o direito substantivo.
Direi que, muito em especial, no âmbito do relacionamento entre os cidadãos e a
Administração, estabelecendo uma cultura de responsabilidade desta e adoptando
modelos normativos diferentes dos do direito administrativo em que ainda nos
movemos.
É que há uma mal disfarçada relutância do legislador ordinário – e dos tribunais – na
concretização do programa constitucional em que se garante, não apenas o mero recurso
contencioso de anulação por ilegalidade de actos administrativos, e tão somente os
definitivos e executórios, para a tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses
legalmente protegidos.
Direi mesmo que a situação actual, pelo menos neste âmbito, é de manifesto
desrespeito pela Lei Fundamental, onde a crise é autêntica e profunda e em que as
garantias dos cidadãos são, quotidianamente, cerceadas.
Dessa crise, infelizmente, pouco se fala.
Quanto à outra, permito-me ainda introduzir na ideia, instalada e generalizada da
crise, o relativismo que um mínimo de perspectiva histórica possibilita, recordando
outras e profundas crises.
Num texto do século XVIII “Reflexões sobre a Vaidade” escrevia então MATIAS
AIRES:6
“Nos contratos tem pouca parte a boa-fé; as obrigações não bastam e as cláusulas por
mais que sejam fortes, todas se controvertem e pervertem: as condições, por mais que
sejam claras, obscurecem-se; nunca faltam pretextos para duvidar, nem meios para se
fazer questão daquilo em que a não pode haver. Da falta da boa-fé nasce a dúvida, da
dúvida nasce o argumento, do argumento a desunião, e desta a dissolução no contrário,
ou acção para o desfazer. No princípio das nossas convenções ninguém adverte por
onde possa nelas entrar a controvérsia; depois de celebradas em cada ponto se acham
mil motivos de disputa; uma vírgula de menos, ou de mais, é bastante fundamento para
5
6
Da qual, por reveladores, entendemos dever “mostrar” alguns mapas. (Anexos).
Col. “Clássica de Bolso”, Ed. estampa, Lisboa 1971.
10
uma larga discussão. Quando se não pode negar o ajuste, nega-se-lhe o sentido; e este
quando se não pode mudar, interpreta-se, e vem a ser o mesmo: o que não tem interesse
em cumprir o ajuste é o que descobre nele as implicâncias, e defeitos, que os outros lhe
não vêem.”
E o choque das autonomias jurídico-administrativos locais, com magistraturas
eleitas, com a inexorável centralização e intervenção régia mediante a nomeação de
corregedores e juizes-de-fora até ao século XVIII? Ou os debates sobre a reestruturação
dos serviços judiciais e em redor do Supremo Tribunal de Justiça, atravessando muita
da história do liberalismo Português do século XIX? Ou, recentemente, a explosão de
litigiosidade nos anos de 1974/1978 com um aumento cifrado entre os 100 e os 120 por
cento7, e, na caracterização do Prof. Magalhães Godinho, sem “uma ordem jurídica
realmente respeitada”?
Mau grado o relativismo que a perspectiva histórica permite introduzir, há, no
entanto, problemas que importa não ocultar.
Alguns trabalhos permitem-nos um olhar sereno – e refiro-me designadamente aos
estudos respectivamente coordenados pelo Prof. BOAVENTURA DE SOUSA
SANTOS “Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: o Caso Português” e pelo
Prof. ANTÓNIO BARRETO “A Situação Social em Portugal 1960/1995”.
Grosso modo – mas os números redondos são mais impressivos – entre 1974 e 1994
o total de processos pendentes nos tribunais quadruplicou.
Triplicou o número de advogados.
Multiplicou-se, por cinco o número total de arguidos em processo-crime.
O aumento de número de magistrados do ministério público não ficou longe da
quadruplicação verificada em relação aos processos.
Distante ficou o aumento de magistrados judiciais, que pouco mais do que duplicou.
Mas o que mais importante se afigura, ao menos na perspectiva própria dum
Conselho Económico e Social, a eficácia do sistema não piorou nem melhorou, ou terá
piorado ligeiramente.
Manteve-se a relação entre processos iniciados e processos findos.
Nem existe uma tendência clara para a redução da morosidade, mau grado os
resultados aparentemente bons, com as melhorias da injunção, que poderão ser bem
maiores corrigido o problema das dificuldades de citação.
Constante se mantém a relação entre as condenações em processo penal e o total dos
arguidos. E parecendo contrariar os arautos da acção repressiva e da dureza das penas,
somos, no espaço da União Europeia, o país com maior percentagem de detidos, e com
mais elevada taxa de presos a aguardar julgamento e com o mais elevado índice de
sobre-ocupação das prisões ...
Uma análise mais fina parece impor-se.
7
São os números indicados pelo então Ministro da Justiça ao semanário “O Jornal” – 9NOV79 – ou pelo
Cons. Mário Torres (le Monde Diplomatique, Junho de 1981).
11
Facilmente se verificará que num País em que a urbanização se acelerou
enormemente, o mapa da organização judiciária se desactualizou e está obviamente
desajustado.
Conhecem-se as dificuldades políticas de acabar com comarcas quando ter um
tribunal – mesmo sem movimento – equivale a ter um brasão (e não direi, dado o estado
de algumas instalações, a ter um monumento...)
A verdade é que as médias, e toda a análise estatística, são enviesadas por esta
distorção.
Não apenas por exigência de rigor e transparência mas também da própria acção
política, são necessários outros números.
Que evidenciem, nomeadamente, as diferenças de desempenho.
O estudo do Prof. Boaventura Sousa Santos revelou-nos que as instituições
financeiras e as seguradoras são os principais “mobilizadores” do sistema judicial. Mas
são também estes “clientes” quem obtém decisões mais rápidas ...
Quando, pelo menos nalguns sectores da sociedade portuguesa, se manifesta
preocupação com o nível de endividamento das famílias, restará por saber se existe
alguma relação entre a facilidade de acesso aos tribunais e as facilidades de crédito
concedidas bem como os custos para o conjunto da economia, duma e outra facilidades.
Mas sabe-se que, para o conjunto da economia, é “crédito mal parado” o
correspondente a acções intentadas e ainda não julgadas e que os juros de mora em que
o devedor venha a ser finalmente condenado, são penalizadores também para o credor,
na ausência de soluções como a possível generalização da sanção pecuniária
compulsória.
Também o processo de recuperação de empresas, se afigura carecer de profunda
revisão, tal como o processo de falências.
A rápida realização do “activo” é essencial e relativamente ao processo de falência a
despersonalização parece impor-se quando à falência da empresa, ao prejuízo dos
credores e ao desemprego dos trabalhadores, se acrescenta o enriquecimento dos
proprietários.
Não sabemos que tipo de processos mais se arrasta e qual a fase processual em que a
pendência se acentua.
Melhor se sabe o lugar que cada tipo de crime ocupa no âmbito da criminalidade
judicializada e assim sabemos o lugar modestíssimo ocupado pelos crimes contra a
economia, a saúde pública ou o ambiente.
A vários títulos importante a “Crónica de jurisprudência Administrativa de 1996”
que o Conselheiro Mário Torres publicou em Separata do n.º 1 dos “Cadernos de Justiça
Administrativa” revela um pouco da situação de fundo do contencioso administrativo
cuja reforma continua a adiar-se.
Do total de acórdãos proferidos ao longo de 1996, apenas 1/5 se ocupou de
problemas substanciais exteriores à própria máquina administrativa. Desses, os terceiros
e quarto lugar por ordem de importância quantitativa, atrás, por exemplo, das questões
12
relativas aos objectores de consciência, dizem respeito à responsabilidade civil da
administração e ao urbanismo e ordenamento do território.
O estrangulamento do Tribunal Central Administrativo é, provavelmente, o exemplo
mais chocante.
É, neste quadro, que a ideia de crise criou foros de cidadania.
Por isso, não vale a pena negá-la ou desdramatizá-la mas enfrentá-la e derrotá-la
antes que em crise autêntica degenere.
A falta de coragem dum tempo paga-se, e paga-se com juros, tempo depois.
Em termos de opinião pública, creio que poderá acrescentar-se ao cenário descrito a
falta de andamento de processos conhecidos – a Caixa Económica Faialense, Partex,
etc. –, o arquivamento de outros, a prescrição de alguns mais.
Como também a recente absolvição, pelo Supremo Tribunal de Justiça, dos
envolvidos num caso de facturas falsas.
Parece, antes de mais, importante acentuar três aspectos demasiadas vezes
esquecidos.
Em primeiro lugar, se essencialmente o Tribunal aplica a lei, quem tem competência
para as fazer e alterar são a Assembleia da República e o Governo.
Depois, os tribunais só podem apreciar os casos que lhe são submetidos e depois de
lhe serem submetidos.
Os arquivamentos e as prescrições verificaram-se porque, em tempo útil, o
Ministério Público não conseguiu colocar os processos em Tribunal e, possivelmente,
porquanto a justiça formal prevaleceu sobre a justiça material.
Quero tão somente acentuar que a volatilização dos responsáveis, tão portuguesa – a
culpa ficou solteira, canta o povo ... – não pode ter lugar pela diluição no sistema.
Valerá, no entanto, a pena sublinhar que o arquivamento e a prescrição têm dois
gumes; também os inocentes ficam, ou poderão ficar, inibidos de varrer a suspeição que
sobre eles algum dia recaiu.
Provavelmente outro será o foro para tal análise.
Mas a questão da mediatização da justiça não poderá aqui deixar de colocar-se ainda
que sumariamente.
É talvez de sempre o interesse dos “media” pela justiça.
O aparecimento da televisão introduziu, no entanto, uma importantíssima
modificação nos dados do problema.
Não foi apenas o modo de transmitir conhecimento que mudou passando dos poucos
ouvintes duma comunicação oral para os muitos com acesso à comunicação escrita.
Mas aquilo que foi sentido como o dispensar dum intermediário. Antes, dava-se
crédito (ou não) ao narrador e esse crédito contava para a apreciação do que era
transmitido.
Com a televisão, o espectador sente-se a assistir aos acontecimentos. É ele que vê.
As coisas passam a ser verdade, porque ele viu.
É uma ilusão, sabemo-lo.
13
Mas aí se fundou uma cultura que é também do imediatismo. E que obriga a dar a
noticia primeiro que os outros, porque aquilo que o espectador vai ver é, por definição,
igual em todas.
A cultura contemporânea tem matriz televisiva.
Escreve-o um discípulo e continuador de MacLuhan – Derrick de Kerckhove:8
“A TV prefere a repetição à análise e o mito ao facto, estampa os seus ícones na
nossa psique tão bem como nas paredes das nossas cidades. A homogeneidade espalhase como um fogo florestal através da TV, já que ninguém quer ser apanhado fora de
moda. Qualquer centro comercial é TV “de passagem”. Sons, cores e formas de TV que
são as expressões sensoriais da nossa sensibilidade colectiva. Mas a arregimentação
televisiva da nossa sensibilidade assume outras formas, como os risos e aplausos
enlatados ou, num nível mais subtil, as votações electrónicas. A maior parte do que
aparece nos noticiários ou documentários é pré-digerido e apresentado num formato
estereotipado para uma dentada rápida, como fast food. Não terá a TV criado uma
cultura de massas, fazendo desaparecer o espaço da reflexão privada e autonomia de
escolha? O sucesso súbito de Trivial Pursuit parece indicar que a maior parte de nós
partilha aproximadamente o mesmo corpus de conhecimentos triviais. Em tudo isto, a
TV pode muito bem-estar a pensar por nós – pelo menos a parte que nos exige sermos
rápidos e completos”.
A rádio e os jornais tentam competir com esta “rapidez e totalidade”.
Por isso também o julgamento dos media é imediato.
Ainda não chegou ao Tribunal e já se realizou na opinião pública.
Mais ainda: o acusado pelos media é condenado.
Há certamente toda uma adequação a fazer, relativamente a esta realidade.
E também uma educação.
Mas, no entanto, algumas coisas simples parecem impor-se.
Em primeiro lugar, a instituição judiciária não deve, colaborar, quanto mais
promover, “fugas de informação”.
Contrariamente ao que, recentemente, foi dito não há fugas de informação boas ou
virtuosas.
“Não pode haver justiça quando esta se exercita por algum fim que não seja por ela
só” escrevia o mesmo Matias Aires que atrás citei.
As “fugas” ofendem, necessariamente, o princípio da igualdade das armas quando
não a garantia de presunção de inocência.
Depois, é preciso que os tribunais não sejam ingénuos ... E saibam por exemplo que
o chamado “dever de informar” quase nunca é imparcial ou neutro mas quase sempre
uma arma de arremesso.
Nem deixaria de ser “interessante” verificar se o “dever de informar” invocado foi
“cumprido” em situações similares.
8
In “A pele da cultura” pág. 49 da edição portuguesa de “Relógio d’Água” 1997.
14
As indemnizações pelos danos morais que correspondem à gravíssima lesão de
direitos de personalidade deverão, por isso, reflectir por forma muito mais expressiva a
função sancionatória ou punitiva que, embora acessoriamente, também é exercida pela
responsabilidade civil.
A “modéstia” de indemnizações fixadas em 3.000.000$00 e menos, não pode nem
deve continuar.
E isto, muito embora um padrão de “modéstia” também ele inadmissível, que
enquadra muitas decisões.
O valor da vida, é fixado pela lei e pelos tribunais, duma forma quase obscena e
insultuosa, tal como as indemnizações por incapacidade no caso de acidentes de
trabalho que são quase um convite para a negligência criminosa. Que mutila e mata na
certeza duma quase impunidade.
Ao longo do dia, teremos ocasião de reflectir e avançar propostas.
Contrariamente à ideia instalada, em termos de opinião pública, e sem absolver o
poder judicial das responsabilidades que lhe são próprias, pensamos que a grande
maioria dos instrumentos para as mudanças necessárias não estão nas mãos do poder
judicial.
Mas, provavelmente, não se contentarão com pequenas reformas que, se para alguma
coisa servem, é para que tudo fique na mesma.
Talvez a justiça seja, apenas, uma luta, incessante e esgotante, contra as injustiças
triunfantes.
Na perspectiva dum Conselho Económico e Social, se me é permitido e lícito
arvorar-me em intérprete de tal perspectiva, o que importa assinalar é que, quando o
encarcelamento aparece como resposta à ansiedade e ao temor pela segurança da
sociedade, quando a morosidade processual é uma realidade indesmentível e a justiça é
“apropriada”, por pessoas colectivas públicas e privadas, há uma questão de fundo que a
todos estes sintomas subjaz e ultrapassa.9
A duma justiça alheia aos territórios de conflitualidade que são os factores de
mudança, de modernidade e de progresso, de adaptação duma sociedade aos novos
problemas e desafios com que se defronta e com que a confronta a aventura do futuro.
E que passam, essencialmente, da sensibilização para o exercício dos direitos à
responsabilização da Administração pelos efeitos dos seus actos.
Teremos nós a imaginação e vontade suficientes para encontrar respostas?
Possa o Colóquio que iniciamos ser um contributo.
Na amarga ironia do verso dum poeta de Moçambique “não pensar nada é que
cansa tudo”.
9
A síntese é de PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS “A crise da Justiça em Portugal” pág. 16 –
Cadernos Democráticos n.º 3.
15
Intervenção de Sua Excelência o Ministro da Justiça
Dr. Vera Jardim
Muito Obrigado Senhor Presidente,
Senhor Dr. Magalhães Mota meu querido amigo,
Foi com muito prazer que aceitei o convite do Conselho Económico e Social para
estar aqui. A minha intervenção não foi preparada propositadamente. Não se trata de
uma intervenção escrita, mas sim de alguma coisa que pretende ser coloquial e até, se
possível, provocatória.
Falar da justiça em geral é uma tarefa extremamente difícil, visto que há muitas
“justiças” e cada uma apresenta, entre nós, como na generalidade dos países, os seus
problemas específicos, naturalmente com elementos comuns a todas elas mas com
diferenças substanciais. Como é do conhecimento geral, os problemas da justiça cível
não são os mesmos da justiça penal como também não são os da justiça administrativa,
nem os da justiça fiscal ou do trabalho. E, falar em geral sobre a justiça pode deixar na
penumbra um conjunto de questões muito importantes que relevam de cada um destes
tipos de administração da justiça.
O paradigma do cidadão sobre a justiça está cada vez mais longínquo daquilo que na
prática se passa. Para mim o paradigma do cidadão é o que apresenta de uma forma
directa, simples e fácil o seu problema. O juiz chama a parte contrária e mediante uma
peça escrita ou oral dessa parte em sua defesa, julga, e julga rapidamente. É este o
paradigma do credor, do ofendido, dos cônjuges desavindos e este paradigma não tem
correspondência praticamente nenhuma com o que se passa na realidade. A que é que
isto se deve? A um conjunto de razões de desenvolvimento histórico que convém ter em
linha de conta. Ao longo dos anos, para não dizer de um ou dois séculos, foi-se
desenvolvendo, cada vez mais, um conjunto de elementos de uma justiça “procedural”,
para usar o termo um pouco anglo-saxónico. O que domina a justiça é o processo e são
as leis do processo. O direito e a lei são um mundo na administração da justiça onde
domina, cada vez mais, a lei de processo. A verdade da justiça é a verdade que resulta
do debate judiciário a que são aplicadas as leis do processo. Estas leis do processo
foram ganhando, ao longo dos anos, uma crescente importância, sobrepondo-se, em
muitos casos, a esse paradigma e transformando-o por completo. É por isso que a
verdade do tribunal é a verdade que resulta do processo e é por isso que muitas vezes as
partes se rebelam, por vezes com alguma razão não jurídica mas ética, quanto ao que
lhes sucedeu no tribunal. Embora tendo razão, foram vencidos pela aplicação, pela
manipulação das “teias da lei”, na feliz expressão de uma série televisiva.
As “teias da lei” dominam o debate judiciário e ganha, muitas vezes, quem melhor
manipula as leis do processo. É essa a função que se tem vindo a sobrepor cada vez
mais à função de argumentação substantiva podendo, muitas vezes, torpedeá-la. Um
prazo que não é aplicado e cumprido. Um pequeno truque processual resolve, muitas
16
vezes, uma questão a favor de quem não tem razão e os casos mediáticos portugueses e
estrangeiros, aí estão, muitas vezes, para mostrar isto. Esta situação está muito longe do
paradigma antigo da justiça, das partes comparecerem perante o juiz, as duas exporem
as suas posições e o julgamento ser feito quase de imediato. Mas é evidente que a
imposição de leis processuais é uma garantia fundamental de quem se dirige ao tribunal.
O que aconteceu, a meu ver, é que ao longo dos anos o processo cresceu e complexizouse demasiado e hoje defrontamo-nos, muitas vezes, com uma antinomia processo
verdade substancial, que é um dos problemas porventura mais graves da justiça.
O Senhor Presidente do Conselho Económico e Social falou sobre a distorção da
concorrência que provoca muitas vezes, a acção tardia da justiça. Permito-me discordar
em boa parte porque há uma coisa que tenho afirmado, a qual é do conhecimento
público, e que é serem os problemas de atraso da justiça não de um único país, mas sim
generalizados. Há dias lia num jornal diário francês que os recursos na Court de
Cassation que corresponde ao nosso Supremo Tribunal de Justiça estão a demorar em
França em média dois anos a resolver. Isso significa praticamente três vezes o que estão
a demorar, apesar de tudo, em Portugal, e os exemplos poder-se-iam multiplicar.
Um pouco por toda a parte há um problema da justiça que é o problema central. Isto
sem perder de vista que há naturalmente um conjunto de outros problemas também
importantes. E o problema central é o problema do atraso da justiça. Isto tem
importância não para nos contentarmos e deixarmo-nos estar, mas para que a análise
dos fundamentos desta situação deva ser feita num conjunto mais alargado, numa visão
mais alargada do problema do que a simples visão portuguesa. Um exemplo típico desta
questão era o que se estava a passar nos anos recentes com a Comissão e o Tribunal dos
Direitos do Homem de Estrasburgo, onde eram julgados e decididos os problemas de
atraso da justiça nos países europeus e que já estava com atrasos muitas vezes
superiores aos dos processos que lá eram decididos. O Tribunal Europeu, que julgava os
Estados pelos atrasos na justiça, já estava a atingir prazos de resolução dos litígios
superiores àqueles processos que lá apareciam com queixas de atrasos da justiça. Isto
justifica uma reflexão mais ampla! O que é que sucedeu na generalidade dos países, e
falo só da Europa, para justificar uma tal situação? Não vou fazer longuíssimas
considerações sobre a crescente conflitualidade e o crescente papel do juiz como
instância de mediação de conflitos face às crises de outras instituições mediadoras
informais ou formais de conflitos, como a família, a comunidade, enfim, instituições
que até há cinquenta anos, e até mais recentemente, assumiam, na prática, esse papel de
mediadores informais de conflitos. A verdade é que essa crise das instâncias de
mediação assumiu tais proporções que se poderá dizer que, por exemplo, a família é
hoje mais geradora de conflitos que vão para tribunais do que ela própria uma
instituição mediadora. Os aumentos de processos relativos a problemas familiares,
sobretudo nas áreas suburbanas é disso um exemplo muito claro, tanto no que diz
respeito à crise no casamento, como no que diz respeito a todos os problemas que daí
derivam, com especial incidência nos problemas dos filhos.
17
Em Portugal o atraso tem, apesar de tudo, circunstâncias, modos e causas específicas
e penso que deve ser essa a preocupação fundamental de quem olha para a crise da
justiça praticamente igual a atrasos da justiça. Não quer dizer que não haja outros
problemas, que naturalmente há, mas o atraso é fundamentalmente, o prisma sobre o
qual, sempre que se fala em crise da justiça, as pessoas prioritariamente se preocupam.
O Dr. Magalhães Mota forneceu alguns números mas referiu-se apenas ao longo
prazo. Eu diria que esses números são importantíssimos na medida em que mostram um
aumento exponencial da litigiosidade em Portugal, mas queria aproximar-me mais num
zoom no tempo da situação actual. Ultrapassámos em 98 um número significativo de
mais de um milhão de processos pendentes nos tribunais portugueses pela primeira vez.
Isto resultou de um aumento de entradas, já não referido ao longo prazo entre 74 e os
tempos actuais, mas referido a 5 anos entre 92 e 97. Aumentou, só na justiça cível, mais
de 85% o número dos processos em 5 anos, na justiça penal, apesar de tudo, menos, mas
na justiça cível, que é aquela que acusa situações porventura mais graves em matéria de
atrasos, este foi o aumento das entradas. A pendência aumentou de 252 mil processos
em 92, para 730 mil em 98 na justiça cível.
Mais do que os números importa ver que processos são estes e de que tipo são.
Quando na Europa se fala em aumento da litigiosidade trata-se de litígios que eu
chamaria nobres, litígios familiares – já referidos – litígios de responsabilidade civil não
contratual e litígios de propriedade. São esses, digamos, os litígios mais complexos
regra geral, mas também mais nobres que dizem respeito aos valores fundamentais das
pessoas e aos seus direitos fundamentais (falando na justiça cível, já iremos à justiça
penal).
Relativamente a Portugal o que se passou e ainda se passa é que a autêntica
“enxurrada” de processos nos tribunais é constituída fundamentalmente por litígios que
eu não chamaria, naturalmente por oposição aos outros, não nobres, mas sim litígios que
em primeiro lugar são óbvios na maior parte dos casos quanto a quem tem razão.
São de fácil resolução na maior parte dos casos. E na sua grande maioria não se trata
sequer de litígio porque a parte contrária não tem resposta à acção que lhe é posta.
Trata-se, no fundo, desse mundo enormíssimo que está na generalidade dos tribunais a
criar situações de ruptura que são as chamadas cobranças de dívidas. Só em Lisboa,
80% dos processos são de cobrança de dívidas. Naturalmente os tribunais de Lisboa são
aqueles que mais recebem esse tipo de processos por razões óbvias, que se prendem
com a enorme concentração de vida económica sobretudo traduzida no sentido das
sedes das grandes sociedades em Lisboa. Há todavia um conjunto muito importante de
Comarcas à roda de Lisboa e Porto e nalguns centros como é por exemplo Vale do Ave,
Braga, etc., que acusam situações deste tipo. Trata-se de litígios que, em muitos casos,
de litígios, só têm o nome. O cliente é a empresa, a pessoa singular é o réu, embora
naturalmente este retrato sofra depois adaptações. O cliente é também muitas vezes
empresa e o réu é outra empresa, só que normalmente do lado do autor está a grande
empresa, do lado do réu está a pequena empresa.
18
Este movimento de evolução dos problemas do tal crédito mal parado, direccionado
para os tribunais, tem criado situações de autêntica ruptura.
A mais evidente de entre elas é a dos chamados tribunais de pequena instância cível
de Lisboa e não só, nos tribunais cíveis de Lisboa como grande aparelho da justiça
cível, o maior do país. Só nos tribunais de pequena instância cível que julgam as
“bagatelas civis” em Lisboa estão acumulados, neste momento, cerca de 200 mil
processos, ou até talvez um pouco mais no momento actual. O mesmo se passa no Porto
e noutras comarcas. Este é um dado visível e há que identificar os problemas. Em
primeiro lugar fazer o diagnóstico da situação para depois podermos encontrar, ou
tentar encontrar, as soluções para o problema. Deste conjunto de processos cíveis, cerca
de 40% em todo o país, são processos de execução ou seja processos que em princípio
deveriam ser ainda mais simples do que a acção em que se pretende ver reconhecido um
crédito não pago. No processo de execução como sabem já se avançou mais na relação
jurídica e o que se trata é de executar os bens do devedor com um título executivo
(sentença, letra, cheque, etc.).
De entre os processos cíveis pendentes, cerca de 40%, são acções executivas e são
estas precisamente as acções que mais demoram a resolver em Portugal. Esta é uma
situação porventura, ou quase certamente única na Europa em que um processo de
execução demora cerca do dobro a resolver do que demora aquele que justificaria ou
pressuporia um litígio no processo de execução.
Em princípio tudo leva a crer que não há litígio mas que se trata de conseguir a
colaboração do tribunal para atingir o património de um devedor que deve
manifestamente. Esta é a situação de princípio não significa que não haja casos em que
isto não seja assim. De todas estas acções cíveis, sobretudo daquelas que poderão ser
consideradas as bagatelas civis, ou seja valores até 500 contos, são contestadas nos
tribunais menos de 2% das acções, ou seja mais um argumento para aquilo que eu disse
– não há propriamente litígio, há uma fuga ao pagamento de uma dívida e há a procura
por parte do credor da colaboração do tribunal para conseguir a recuperação desse
crédito. A continuarmos assim naturalmente que a situação tenderia a agravar-se,
embora, pela primeira vez, em 1998 tenha havido menos entradas na justiça cível em
Portugal do que nos anos precedentes. Pela primeira vez, em vários anos, houve uma
ligeira descida das entradas de acções em tribunal.
Qual a estratégia que seguimos e estamos a seguir para resolver este problema?
Há muitos destes processos que devem ser retirados à jurisdição normal à forma
normal de resolver processos e muito se tem falado na procura de soluções para esta
questão a qual é, a meu ver, uma das questões centrais do sistema judicial português.
Muita gente tem falado em formas alternativas de resolução de conflitos,
designadamente nas arbitragens. Penso que é uma estratégia totalmente errada. Não se
trata de arbitrar coisíssima nenhuma, pois não há litígio. O que há é alguém que foge ao
cumprimento das suas obrigações. Prova adicional é que de todas estas pessoas na
tentativa de serem citadas/notificadas, mais de 40% fogem à citação/notificação. Não há
19
lugar a arbitragem nenhuma, portanto essa é uma ideia que para mim não cola.
Arbitragem usa-se quando há um litígio entre duas entidades e esta se mostra
naturalmente o processo mais maleável, porventura mais expedito de resolver este
litígio. Nestes casos não há litígio nenhum e a prova é que menos de 2% destas acções
são contestadas e que cerca de 40% das pessoas fogem a comparecer no tribunal ou
melhor fogem à própria notificação.
Tendo em conta que estes processos ocupam uma média nacional certamente não
inferior a 60%-70%, a pergunta que me tenho feito a mim próprio é se se justifica um
aparelho, um sistema judicial que custa ao Estado o que custa em formação, em meios
dos mais variados para resolver este tipo de questões. Justifica-se? Esta é uma grande
opção que temos e que já tivemos que começar a tomar. Justifica-se que perdamos
juízes, funcionários, o esforço de todos, de uma máquina muito pesada para – não direi
cobrar dívidas, porque muitas vezes elas não se cobram – declarar que existe uma
dívida porque depois segue-se outra coisa que na prática também colhe um conjunto de
impossibilidades – a execução. Justifica-se isto? Justifica-se que “assassinemos” juízes
em tribunais de pequena instância cível para despachos de, cite-se, notifique-se,
condene-se... Penso que não. Penso que o sistema judicial não pode estar refém destas
situações.
Então o que é necessário? Em primeiro lugar é necessário continuar a fazer aquilo
que temos feito. Falar, discutir e sobretudo mobilizar os grandes clientes deste sistema
para uma mudança de atitude. Esta é a primeira grande tarefa. Não vale a pena fazer leis
que são leis álibi, ou seja muitas vezes diz-se eu já fiz a lei, a lei está feita só que não
funciona. Chama-se a isto a lei álibi. Sabe-se que não funciona mas está feita e o poder
político dá a justificação de que a lei está feita mas depois não funciona, atirando com
as culpas para outros intervenientes no processo. O que se justifica é outro tipo de
actuação e por isso muitas vezes não temos legislado nesta matéria senão o mínimo que
é necessário para criar as condições para uma motivação dos grandes clientes dos
tribunais.
Se eu disser a V.Exas que de um ano para o outro – foi há dois anos – entraram nos
tribunais de Lisboa mais de cerca de 80 mil – o Senhor Secretário de Estado Adjunto
tem estes números mais presentes que eu – acções referentes às chamadas companhias
de telemóveis está tudo dito. Estão aí identificados neste momento três grandes clientes.
Se eu disser a V.Exas que há milhares de prémios de seguro que não são pagos neste
país e que vão para os tribunais, estão aí identificados outros grandes clientes. Se eu
disser a V.Exas, que há centenas de milhar de acções em quase todos os tribunais dos
chamados cartões de crédito, estão aí identificados outros grandes clientes. Se eu disser
a V.Exas que de repente nos surgiu como um grande cliente de um tribunal – isto já foi
dito, é do conhecimento geral, mas vale a pena repeti-lo – uma sapataria e que nos
interrogámos sobre o que é que faria uma sapataria no meio dos grandes clientes dos
tribunais portugueses, tendo vindo a descobrir rapidamente que tinha emitido um cartão
20
de crédito e, portanto, aí estavam um conjunto de centenas para não dizer de milhares
de devedores. Esta é a panorâmica dos tribunais portugueses.
O que é necessário fazer é actuar a montante. É isso que tenho dito sistematicamente
aos grandes clientes. Por um lado, naturalmente que me dizem que o crédito mal parado
é uma pequena percentagem do crédito concedido e é verdade, mas essa pequena
percentagem chega para motivar um estrangulamento de muitos tribunais. Mas, por
outro lado, é preciso que as empresas no seu próprio interesse construam sistemas de
defesa contra o crédito mal parado.
Por outro lado é preciso também que o Estado altere alguma legislação para
conseguir que milhares de acções que vão para o tribunal deixem de constituir créditos
mal parados. É o que estamos a fazer em relação a uma série de subsistemas, contratos
de seguro, dívidas hospitalares, e por aí fora, construindo sistemas mais seguros e
eficazes que evitem que esses grandes clientes continuem a dirigir-se aos tribunais
portugueses.
Apostámos finalmente naquilo que a Europa já apostou, nalguns casos há 50 anos
noutros mais recentemente, em processos expeditos de cobrança de dívidas que
praticamente não vão ao juiz e que são resolvidos na secretaria. Já foi aqui referido pelo Dr. Magalhães Mota – o chamado processo de injunção. Só para vos dar alguns
números estão a ser resolvidos na primeira secretaria específica para as injunções – que
é um processo expedito de declaração judicial de uma dívida – em Lisboa mais de 7 mil
processos por mês o que significa que dezenas de milhar de processos que abafavam
completamente os tribunais cíveis deixaram de para lá ir. Alguns ainda vão porque não
se encontram os devedores, fogem às notificações e citações. Há aqui muito
rapidamente que tomar também iniciativas legislativas que estão em preparação.
Nas reformas da justiça existe um aspecto que convinha acentuar, como já aqui foi
referido. Trata-se da reforma legislativa da justiça que está praticamente toda
dependente do Parlamento, da Assembleia da República, e que dificilmente pode ser
feita sem um consenso na Assembleia da República, e o que acontece é que esse
consenso para reformas mais profundas tem sido extremamente difícil. Para além de
haver interesses muitas vezes contraditórios, ou melhor como tal afirmados entre vários
interventores no processo, desde logo aquela figura, enfim, muito invocada de que no
processo há sempre alguém que quer que o processo ande rapidamente e alguém que
quer que o processo demore e essas posições são assumidas como posições de cada uma
das partes, a verdade é que as reformas no sector da justiça em Portugal são muitas
vezes tomadas como reformas a favor de A ou contra B.
Essa perspectiva não facilita as intervenções que temos que fazer. As reformas
processuais que têm sido feitas são as possíveis, devo dizer que por mim quereria ir
bastante mais longe, mas não existe por enquanto o necessário consenso para avançar
com elas. Exemplo típico são as reformas do processo civil e do processo penal.
Degladiam-se “interesses” contrapostos entre magistraturas, entre as magistraturas e os
21
advogados e essas posições são assumidas politicamente prejudicando altamente o
consenso que se deveria atingir nestas matérias.
No que diz respeito à justiça cível penso que o caminho é, e a estratégia é esta,
simplificar o que pode e deve ser simplicado, manter mas apurando todas as normas
procedimentais que dizem respeito a acções que têm que ver com quantias fundamentais
das pessoas, porque no processo civil também os há e de que maneira.
No processo penal dir-se-à que a problemática é ainda a mesma ou semelhante. O
problema do processo penal tem também algo que ver com o problema do civil, as
bagatelas penais e aquilo que é verdadeiramente importante na luta contra a
criminalidade. Efectivamente se tivermos em conta que ainda há pouco tempo mais de
20%, cerca de 25%, do número de processos na jurisdição penal em Portugal se referia
a cheques sem cobertura e que a estes, adicionados os crimes de desobediência, de
ofensas corporais e de pequeno furto, avançaríamos para mais de 50%, temos um
panorama claro do que era a justiça penal e também aqui há que perguntar se vale a
pena ter um aparelho judiciário para isto.
Naturalmente que há questões na justiça penal como na justiça cível de natureza
constitucional que valeria a pena discutir. Nós somos hoje porventura na Europa o único
país que mantém intacto um princípio de legalidade estrita no processo penal, usando a
generalidade dos países o chamado princípio da oportunidade. Em França apenas 20%
das participações que chegam ao aparelho judicial são objecto de tratamento no sentido
da investigação. Em Portugal tudo se investiga e mais do que isso tudo se investiga da
mesma maneira, com as mesmas regras, com a abertura de um inquérito, com uma
instrução que muitas vezes repete o que se passou no inquérito e assim vamos
caminhando no sentido de tempos demasiados para tudo o que diz respeito à
investigação a que se soma depois o julgamento.
Qual é a nossa estratégia? Exactamente a mesma que no cível. Há que simplificar o
que pode e deve ser simplificado, sem que os direitos, liberdades e garantias das pessoas
sejam atingidos e há que aperfeiçoar mantendo os direitos liberdades e garantias em
tudo aquilo que vale a pena efectivamente aperfeiçoar. Foi por isso que criámos, pela
primeira vez, um conjunto de processos à semelhança do que existe na generalidade dos
países europeus. Processos que permitirão uma atmosfera de consenso no próprio
processo. O consenso era alguma coisa que até agora no processo penal português era
completamente desconhecido. O processo penal era rigidificado em formas de inquérito,
acusação, instrução, julgamento com regras praticamente idênticas com ligeiras
adaptações às várias formas de processo. Não havia nada de consenso, e continua a não
haver nada de oportunidade, ou muito pouco de oportunidade, algumas coisas existem
de oportunidade mas muito pouco e que na maior parte das vezes não são usadas.
O que nós fizemos foi, para além de outras reformas que dizem respeito ao
julgamento de ausentes etc., tentar introduzir elementos de consensualidade no processo
penal. Não há outra forma de resolver o contencioso de massa, a criminalidade de massa
sem uma introdução de mínimo de consensualidade no processo penal. É este o aspecto
22
fundamental da reforma do processo penal e naturalmente acompanhado da reforma da
lei do cheque e de uma série de reformas feitas em relação àquilo – que também aqui já
foi referido – que é a luta contra a criminalidade moderna ou melhor as formas
modernas de criminalidade. Isso encontrava-se por fazer entre nós e o aparelho de
investigação ao serviço da investigação sobre a criminalidade económico-financeira, a
alta criminalidade organizada, a corrupção, o branqueamento, encontrava-se
praticamente como se encontrava há 30 ou 40 anos quando este tipo de criminalidade
não tinha a importância que tem hoje, sendo então praticamente inexistente no
panorama da criminalidade em Portugal.
Apesar das críticas resultantes da ausência de consensualidade existente entre
profissões jurídicas e entre os vários intervenientes no processo, avançámos e não
estamos arrependidos. Pelo contrário, se não tivéssemos criado, ao serviço da
investigação criminal, um conjunto de instrumentos e instituições que hoje já estão, ou
estarão brevemente no terreno, penso que a luta contra esse tipo de criminalidade estava
completamente perdida e mais do que isso, o nosso atraso em relação à generalidade dos
países europeus ir-se-ia acentuando. A criação do NAT, como Núcleo de Peritos em
Criminalidade Económico-Financeira ao serviço da investigação, a criação recente e
entrada em vigor para dentro em breve do DCIAP, como organismo coordenador das
grandes investigações criminais em especial neste tipo de criminalidade e na
criminalidade organizada, são elementos fundamentais juntamente com os reforços na
polícia judiciária, nesta matéria e neste sector, para que possamos começar a ter,
efectivamente, eficácia mínima neste tipo de investigações.
Naturalmente que o tempo vai longo e poderíamos falar sobretudo ainda de alguma
coisa que é generalizado na Europa, a impreparação do aparelho judiciário no seu
conjunto para arrostar e resolver todo este conjunto de litígios que são encaminhados
para os tribunais portugueses. Desde logo as instalações de muitos dos nossos tribunais,
dezenas dos nossos edifícios – isso tem enorme importância, embora possa não parecer
– não tinham o mínimo de condições para aí se exercer a administração da justiça. Basta
pensar que ainda existem dezenas de tribunais, onde se acumulam 5 e 6 juízos, com
tudo o que isso implica de magistrados, funcionários, salas e gabinetes, tendo esses
edifícios sido projectados e construídos há 30 e 40 anos para um juízo apenas.
O programa de informatização judiciária, no princípio deste mandato, era algo de
praticamente inexistente, resumindo-se a um conjunto de actividades avulsas em que
cada um ia fazendo o possível e o melhor que podia mas sem nenhuma estratégia, sem
nenhum plano conjunto para informatizar. Ainda há poucos meses não havia um único
tribunal português com uma rede de computadores, estou aqui a ver o Senhor
Conselheiro Nunes de Almeida, naturalmente com excepção do Tribunal
Constitucional, que é um tribunal à parte. Estas dificuldades naturalmente que se
acentuaram com a explosão judiciária porque para contencioso de massa há que ter
naturalmente meios para lhe fazer face e não é com os meios usados há 30 anos que se
faz face a este aumento do contencioso em todas as frentes. Ainda se cosem processos
23
em muitos tribunais, e aqui temos um exemplo que eu costumo dar e já tenho sido
criticado por isso porque parece que esta é uma grande reforma, não é uma grande
reforma, mas é um exemplo típico de como penso que se deve trabalhar nas reformas.
Há cerca de 15 anos houve um Ministro da Justiça que fez uma Portaria terminando
com a “cosedura” de processos. Durante estes 15 anos nenhum processo deixou de ser
cosido. Eu poderia ter publicado uma outra Portaria, porventura subir a parada e
publicar um Decreto-Lei e porque não uma Lei, a dizer que era proibido coser
processos. Penso porém que não é esse o caminho a seguir.
O caminho a seguir é motivar as pessoas para as reformas porque os problemas da
justiça têm muito que ver com a cultura que envolve a justiça, porque a mesma pessoa
que diz hoje que a justiça não anda, que a justiça se atrasa e que está a ser muito
prejudicada com o atraso da justiça é exactamente a mesma que amanhã falta a um
julgamento, como testemunha, como arguido, como autor, seja como for. E também nos
tribunais, naturalmente que é um aparelho com grandes tradições e grande peso, é
preciso ganhar as pessoas para as reformas e não impor-lhes as reformas. Foi isso que
tentámos fazer em relação à cosedura de processos, tentar convencer as pessoas que não
é por um processo ser cosido que tem mais garantias de não se perder a folha 27 que lá
está e que é fundamental, porque toda a gente sabe que os advogados nos seus
escritórios não têm outra maneira senão descoser os processos e tornar a cosê-los para
tirar sequer uma fotocópia útil do dito processo. É preciso, portanto, ir convencendo as
pessoas ganhando-as para este tipo de reformas.
Sem um grande consenso nacional à volta destas questões não haverá reformas da
justiça que colem na realidade. É por isso que penso que colóquios como este em que,
aberta e frontalmente, possamos discutir os problemas e construir um consenso, são
extremamente úteis e devem ser alargados. Tenho o maior prazer em aqui colaborar,
mas numa perspectiva de interesse comum fora de interesses de cada parte, fora dos
interesses dos advogados, dos interesses dos juízes, dos interesses do Ministério
Público. Enquanto continuarmos a discutir as coisas como uma reforma de processo que
foi a favor dos advogados, e uma reforma de um outro processo que foi a favor de B e
outra que foi contra C, não conseguiremos avançar um palmo que seja, mau grado todas
as tentativas de novas formas de processo, de novos meios, de mais funcionários, de
melhores edifícios, não conseguiremos avançar para as verdadeiras reformas que aí
estão à nossa espera, que aí estão já no terreno.
Uma grande reforma que tem passado quase totalmente despercebida e que entrará
em vigor no próximo dia 15 de Setembro é a grande reforma judiciária dos últimos
anos. Aguardemos pelos seus resultados e, pelo meu lado, com esperança de que a nova
estrutura judiciária possa dar um contributo útil e importante, fundamental mesmo a
este problema da chamada “crise da justiça”. As reformas vão-se fazendo mas é preciso
que se façam num ambiente de discussão de frontalidade democrática, mas também fora
dos interesses e das posições de que são portadores, muitas vezes, os vários agentes do
sistema judicial.
24
Já falei muito, agradeço a vossa atenção e mais uma vez agradeço também o convite
que me foi feito pelo Conselho Económico e Social.
Muito Obrigado!
25
Algumas questões com
relevância económica
26
As falências e a Administração da Justiça: algumas reflexões
Dr. José de Almeida Serra*
Orador
1. O autor do texto tem, desde logo, de fazer uma advertência: é que não é jurista,
não tem qualquer prática especial do Mundo do Direito, e designadamente nunca
interveio em processos concretos de falência, nem entrou em qualquer tribunal no
âmbito da discussão desse tipo de processos.
Assim, o que poderá dizer tem que ver com a experiência adquirida ao longo de
cerca de três décadas na perspectiva do acompanhamento de interesses creditícios
constituídos sobre patrimónios de empresas que, tendo deixado de ser solventes,
acabaram por cair em processos de falência ou similares.
Refere-se desde já que a problemática em causa não se reconduz a questões
meramente legais ou processuais, mas tem a ver com práticas estabelecidas e com
intervenções de agentes externos ao sistema judicial, de que se destacam
particularmente as conservatórias e os notários. Nas observações que se seguem não
houve a preocupação de respeitar a lei tal qual existe hoje e várias das sugestões
apresentadas pressupõem naturalmente a alteração do quadro legal vigente.
2. Tal como tem existido em Portugal, o instituto falimentar tem-se revelado ruinoso
e tem-se traduzido, muitas vezes ou quase sempre, em prática delapidação de bens,
destruição de capacidades de produção (que em muitos casos ainda estavam presentes) e
desemprego total ou quase total.
3. Como se sabe, uma empresa pressupõe uma actividade em permanência. É
necessário, com carácter de continuidade, conhecer os interesses/desejos/necessidades
da clientela, canalizá-los para a empresa em causa evitando desvios a favor da
concorrência, e satisfazer os clientes em quantidade e qualidade, bem como em tempo.
Tem, pois, de ocorrer uma interacção múltipla nos planos externo e interno da empresa.
Qualquer unidade produtiva que deixe de satisfazer a procura corre sérios riscos de vir a
deparar-se com problemas graves, dos quais não possa, porventura, recuperar.
4. O que antecede imporia, nos casos – e são muitos – em que persiste uma
capacidade produtiva, estão presentes os meios requeridos – humanos, técnicos, de
conhecimentos –, e existe uma procura, a permanência em funcionamento eficaz da
empresa, independentemente das relações jurídicas que se possam estabelecer com os
proprietários e/ou credores da mesma as quais, em muitos casos, terão de ser reequacionadas. Sucede não existir em Portugal qualquer prática ou tradição de manter
em funcionamento empresas enquanto se processa a discussão/adaptação/decisão das
*
Economista. Conselheiro do CES.
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novas relações a estabelecer sobre o património, tanto no que se refere aos detentores do
capital como a credores1.
5. Reconhecida a incapacidade de a empresa solver compromissos, entra-se em um
longo e difícil processo, durante o qual os bens não são geridos na perspectiva da
produção, os meios humanos não são pagos, a traduzir-se no facto de serem os
trabalhadores mais qualificados os primeiros a abandonar o empreendimento, não há
condições para responder a eventuais solicitações do mercado e a clientela desaparece2.
E não obstante se encontrarem os bens à guarda do tribunal e serem designados
responsáveis pela sua manutenção/conservação, quase sempre ocorrem situações de
desaparecimento e vandalismo3. No fim, o valor de tais bens diminuiu
significativamente, sendo virtualmente nulo no que se refere a bens de equipamento e
similares.
6. Em largas dezenas de casos que se pôde acompanhar de perto, em nenhum se
demorou menos de três anos a obter a conclusão do processo de falência, em alguns
casos foi ultrapassada a barreira da dezena de anos e, normalmente, ultrapassaram-se os
cinco anos. Em todas as situações o valor final resultante da venda dos bens
(transaccionados sob forma global, ou parcelarmente) ficou por certo muito aquém do
que teria sido o caso se tivessem sido seguidos processos expeditos e rápidos e se
tivessem mantido os empreendimentos em funcionamento normal.
7. Não pode pôr-se em causa o formalismo da Lei, que, em cada intervenção
processual, visa critérios de equidade, transparência e equilíbrio, procurando dar
garantias de salvaguarda aos diferentes interesses em causa. Mas, no seu conjunto, o
resultado tem de ter-se por insatisfatório e, porque os processos são longos e os
resultados maus, acaba por tornar-se lesivo dos vários interesses que pretendia
1
O D.L. n.º 316/98 prevê procedimentos e mecanismos extra-judiciais de conciliação para viabilização
de empresas em situação de insolvência ou em situação económica difícil, que poderá eventualmente, e
mediante desenvolvimentos futuros, contribuir para a introdução de melhorias no presente estado de
coisas. Sugere-se que sejam dados ao IAPMEI, entidade responsável pela gestão dos processos, os meios
necessários à garantia de sucesso dos mecanismos previstos.
2
A Lei prevê a nomeação de gestores judiciais para as situações de empresas em dificuldade antecedendo
a falência. Contudo, constata-se nem sempre terem os nomeados as qualificações necessárias para fazer
face às dificuldades que naqueles casos se verificam. Mas, sobretudo, o “enquadramento geral” não tem
sido propício a qualquer recuperação.
3
É conhecido o fenómeno de se desinteressarem geralmente do processo de falência aqueles a quem, de
uma maneira ou de outra, o referido processo poderia interessar, dada a convicção generalizada de que,
no fim, nada de importante sobrará para os credores. E não pode excluir-se que, além de problemas de
gestão do processo, não se possam desenvolver marginalmente fenómenos de outro tipo. Não se tem a
sociedade portuguesa e as instituições portuguesas por diferentes das europeias e ainda, bem
recentemente, ocorreu um enorme escândalo em França. Transcreve-se do editorial do “Le Monde” de 9
de Abril de 1999: “Ninguém deveria ficar surpreendido pela amplidão do escândalo. O relatório (…) de
uma das maiores empresas de auditora parisienses sobre as práticas da administração judiciária demonstra
sustentadamente como menos de quinhentas pessoas lucram abusivamente dos cerca de 50.000
“depósitos de balanço” anuais. Estes disfuncionamentos da justiça são conhecidos desde há muito tempo,
demasiado longo tempo”. “O seu sistema de remuneração (dos auxiliares da justiça, administradores e
liquidadores judiciais), além disso, incita-os a atrasar o andamento dos processos e a preferir o fecho
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acautelar. Não pode, assim, deixar de referir-se também o tempo anormalmente longo
incorrido em várias fases ou actos parcelares constitutivos do processo.
8. Permita-se fazer apêlo a dois exemplos concretos.
8.1. Primeiro: nos princípios dos anos sessenta, e tendo-se constatado que nada
poderia ser feito para salvar a empresa Minas de Vila Cova, desencadeou-se o processo
de falência, que só ficaria resolvido cerca de uma dezena e meia de anos depois, em
finais dos anos setenta. O extinto Banco de Fomento Nacional, como credor
privilegiado (1.as hipotecas e 1.os penhores sobre os diferentes bens) havia aplicado na
empresa o equivalente a cerca de metade dos seus capitais próprios, o que o colocava
em situação particularmente delicada e provocava alguma perturbação e preocupação
em alguns dos seus empregados.
Após cerca de década e meia foi recebida no banco carta do tribunal dando conta do
encerramento do processo e informando sobre a distribuição do resultado obtido com a
venda dos bens. O banco era informado, com relativa exaustão, que o produto dos bens
se elevara a certo montante; mas que tendo sido satisfeitas as despesas do tribunal,
pagas determinadas importâncias ao fisco e ao Estado, etc., para ele, banco, credor
privilegiado graduado em 1.º grau, restava nada4. Felizmente, neste caso, a inflação de
finais dos anos sessenta e dos anos setenta havia-se encarregado de desvalorizar o valor
relativo da dívida que, finalmente, se apresentava, no final, com pouco significado...
8.2. Segundo: em finais dos anos setenta realizou-se um estágio no Banco Nacional
de Desenvolvimento do Canadá. De entre várias questões suscitou-se a seguinte: como
procedia o BNDC em casos de incapacidade das empresas em solver os seus
compromissos? A reacção do interlocutor foi um pouco a de não perceber a questão,
que teve que ser reformulada, obtendo-se então como resposta que, quando as empresas
entravam em dificuldade, se enviava uma equipa do banco que analisava este e aquele
aspecto e que, em articulação com os proprietários/donos/gestores se tomavam as
medidas necessárias, traduzindo-se muitas vezes na disponibilização de recursos
financeiros adicionais e/ou capacidade de gestão, com vista à recuperação.
Mas, insistiu-se, se mesmo assim não fosse possível chegar a uma solução e tivesse
que se proceder a uma alteração das relações de propriedade da empresa, quanto tempo
seria necessário? Resposta: nunca mais de três semanas e, em qualquer caso, após o
requerimento inicial – e, evidentemente, após uma primeira análise – o tribunal
definitivo das empresas em alternativa à sua recuperação. A estes disfuncionamentos legais juntam-se
demasiados negócios de corrupção pura e simples”.
4
O D.L. n.º 132/93 acabou com a situação descrita, em que o Estado, no âmbito do processo de falência,
passava à frente de outros credores, mesmo privilegiados. A situação mantém-se, contudo, em outros
casos que envolvem a execução/liquidação de patrimónios. Acresce que, no âmbito do processo de
falência, previu a Lei 17/86 um tratamento especial para os salários em atraso, que passam à frente de
outros créditos. A Jurisprudência “alargou” interpretativamente o dispositivo, passando a considerar
também as indemnizações por cessação dos contratos de trabalho, que envolvem verbas por vezes muito
vultuosas relativamente ao produto da massa.
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nomeava de imediato uma administração provisória que assegurava a permanência em
funcionamento da empresa em questão!
9. Não terá sido alheia às dificuldades conhecidas a acção do legislador que, ao
longo das últimas décadas, procurou configurar toda uma série de soluções atípicas para
fazer face às dificuldades das empresas em crise, desde os contratos de viabilização ao
Plano Mateus. Em muitos casos, infelizmente, apenas se adiaram problemas, não se
tendo ido até às causas impeditivas do bom funcionamento das unidades produtivas.
Também, com alguma frequência, se contribuiu para manter à frente das empresas
pessoas que, manifestamente, não tinham condições e capacidades para as gerir, menos
ainda para as recuperar.
10. Não parece que seja impossível fazer melhor do que tradicionalmente é feito em
Portugal em matéria de liquidação de empresas com adequada ressalva de patrimónios e
manutenção daqueles em condições minimamente operacionais. Dá-se como exemplo o
que se fez, em meados da década de oitenta, com a extinção da CTM e da CNN. Estava
em causa a manutenção em operação de uma frota composta por meia centena de navios
(com a agravante de poder ser arrestada, por dívidas, em qualquer parte do mundo) e a
salvaguarda de outros importantes patrimónios, entre os quais vários imóveis.
Dada a degradação a que se chegara concluiu-se que não restava alternativa à
liquidação daquelas duas empresas, para a qual teve de proceder-se à elaboração de
critérios específicos – Decretos-Leis nos. 137/85 e 138/85 – dado o que se estabelecia
em matéria de extinção de empresas públicas (n.º 2 do art. 37.º do D.L. 260/76):
“As formas de extinção de empresas públicas são unicamente as previstas neste
capítulo, não lhes sendo aplicáveis as regras sobre dissolução e liquidação de
sociedades nem os institutos da falência e insolvência”.
10.1. Basicamente, o processo seguiu os procedimentos usuais da falência,
devidamente adaptados, mas salvaguardando-se a possibilidade de recurso para os
tribunais competentes em caso de necessidade, e traduziu-se na nomeação de uma
comissão liquidatária com competências para:
• representar as empresas em juízo ou fora dele;
• praticar quaisquer actos de administração geral do património em liquidação;
• contratar, na medida do que fosse estritamente necessário à execução das tarefas
que lhes competiam, a prestação de serviços de qualquer natureza ou contratar
pessoal a prazo;
• promover as publicações necessárias e apreciar as reclamações de créditos
deduzidas pelos credores das empresas;
• elaborar o mapa dos créditos reclamados e graduá-los de acordo com a lei;
• submeter o relatório e contas dos exercícios de 1983, 1984 e 1985, até à
extinção das empresas, bem como o inventário de todos os bens e direitos das
30
mesmas, à aprovação dos Secretários de Estado das Finanças e da Marinha
Mercante no prazo de 3 meses;
• liquidar o activo, cobrando créditos e alienando bens e direitos;
• pagar aos credores, de acordo com a graduação estabelecida;
• praticar todos os demais actos necessários ao cumprimento das suas
atribuições.
10.2. Previa-se que a comissão liquidatária pudesse fazer preceder a alienação
definitiva de bens pertencentes ao património em liquidação da celebração de contratos
pelos quais poderiam ser cedidos a terceiros o uso ou a exploração desses bens por
período não superior a um ano, prorrogável por iguais períodos, desde que tais
operações se mostrassem vantajosas do ponto de vista de uma liquidação prudente e da
defesa do interesse nacional, o que seria prática seguida e garantiu a permanência em
actividade dos bens das empresas em liquidação e a ocupação do pessoal necessário à
adequada exploração daqueles.
10.3. Por forma a facilitar o início do processo de liquidação e para a constituição de
um fundo de maneio destinado a acorrer aos encargos de liquidação, previu-se poderem
ser obtidos pela comissão liquidatária das empresas empréstimos, nomeadamente do
Estado, que seriam reembolsados logo que a liquidação do respectivo património o
permitisse, com prioridade absoluta sobre quaisquer outros créditos, independentemente
da sua natureza ou das garantias de que gozassem.
10.4. Previu-se o recurso para o tribunal dos credores cujos créditos não houvessem
sido reconhecidos pela comissão liquidatária e incluídos no mapa respectivo ou que não
tivessem sido graduados em conformidade com a lei.
10.5. Elaborado o mapa final dos créditos, a comissão liquidatária deveria iniciar a
venda dos bens e direitos do património em liquidação, com observância de
determinadas normas:
• a venda de navios e de bens imóveis seria realizada mediante concurso público;
• a comissão liquidatária tinha a faculdade de não aceitar qualquer proposta,
quando estas fossem manifestamente inferiores ao valor dos bens ou não se
conformassem com o caderno de encargos;
• quanto aos navios e ao património imobiliário objecto de concurso e não
adjudicados, podia a comissão liquidatária encetar negociações directas com
eventuais interessados com vista à sua alienação, devendo os respectivos
contratos ser objecto de aviso público quanto aos seus termos essenciais e à
inexistência de oferta em condições mais vantajosas no prazo de um mês a
partir da data da publicação do mesmo aviso;
• os demais bens imóveis seriam vendidos por negociações particular ou em
estabelecimento de leilão, conforme fosse determinado por despacho conjunto
das tutelas governamentais.
31
Terminada a verificação do passivo, seriam os credores pagos à medida da realização
do activo e de acordo com a graduação estabelecida.
10.6. Para melhor aferição dos resultados obtidos cumpre salientar que os diplomas
reguladores da matéria foram aprovados em Conselho de Ministros de 27 de Dezembro
de 1984, mas apenas promulgados em 12 de Março de 1985 (tendo o Presidente da
República utilizado todas as possibilidades de fazer intervir o Tribunal Constitucional),
referendados em 20 de Março seguinte e publicados do D.R. I Série de 3 de Maio de
1985, tendo entrado em vigor de acordo com o princípio geral estabelecido para a
vacatio legis, após o que se procedeu à nomeação da Comissão Liquidatária.
Foi possível vender a quase totalidade dos bens das empresas até final do ano de
1985. Concretamente, de 50 navios encontravam-se vendidos ou já negociados 48 no
final desse ano de 1985 e nunca cessaram a exploração os que estavam em condições de
navegar e dispunham de mercado de transporte. Ou seja: procedeu-se em cerca de oito
meses à negociação da quase totalidade dos bens de acordo com as condições
prevalecentes no mercado internacional e sem que os mesmos houvessem cessado a
exploração5. Acresce não ter havido qualquer reclamação para as tutelas
governamentais ou sido movido processo em tribunal de contestação ao trabalho
efectuado ou a decisões tomadas no relativo à liquidação/venda dos patrimónios.
11. As questões relativas às falências não são específicas, antes têm que ver com os
procedimentos gerais da administração da justiça e o funcionamento dos tribunais e, até
mais geralmente, com toda uma série de procedimentos burocrático-administrativos que
podem tornar mais eficazes e céleres ou mais ineficazes e lentos toda uma série de actos
e intervenções.
11.1. Neste âmbito, parece que deveriam ser introduzidas adaptações visando
eliminar toda uma série de manobras meramente dilatórias que, ao invés de
contribuírem para uma mais eficaz administração da justiça se traduzem, afinal, na
criação de injustiças relativamente a outros cidadãos (os prejudicados com os atrasos
decorrentes de tais manobras) e/ou se traduzem em situações discriminatórias: é que a
generalidade dos cidadãos não se pode dar ao luxo de recorrer a certos advogados quer
porque não tem estatuto social ou conhecimentos para o fazer, quer porque não dispõe
dos meios financeiros necessários. Não pode confundir-se garantia de direitos de defesa
com mecanismos que acabam por traduzir-se em injustiças lesivas de direitos de
outrem.
11.2. A independência dos tribunais e da administração da Justiça é princípio basilar
das sociedades modernas, e deve ser totalmente respeitada, a começar pelos juízes que
devem ser céleres no julgamento e claros e precisos na fundamentação das decisões.
5
Aos concursos para venda de navios – como, aliás, para os restantes bens – podia apresentar-se quem
quisesse, nacionais ou estrangeiros e as novas empresas, embora de capitais públicos, tinham inteira
liberdade em candidatar-se ou não (como tinham ainda liberdade para comprar o que quisessem e onde
quisessem). Como resultado venderam-se 3 navios para o estrangeiro e distribuíram-se os restantes 47
tanto pelos novos armadores públicos, como por cinco armadores inteiramente privados.
32
Mas uma coisa são as decisões produzidas, outra a quantidade de trabalho e as demoras.
Ora, como em todos os grupos profissionais, há juízes excelentes e juízes que o são
menos; há juízes trabalhadores e dedicados e outros que não o são tanto. E uma
avaliação da quantidade de trabalho produzido e dos tempos gastos é matéria que
interessa também a toda a sociedade e aos contribuintes – que deveriam ter uma palavra
institucional neste aspecto da matéria.
11.3. Não pode aceitar-se a marcação de audiências sucessivas, sistematicamente
adiadas sem uma justificação plausível. Que dizer de um caso, em que a cerca de uma
dúzia de testemunhas arroladas comparece mais de uma dezena de vezes – sempre no
mesmo Tribunal, no mesmo Juízo e com o mesmo juiz – para ouvir, na última vez, a
leitura do despacho do juiz que manda arquivar o processo por nulidade insuprível na
fase de investigação? Independência e irresponsabilidade judicial, não pode traduzir-se
em arbitrariedade e irresponsabilidade social.
11.4. Há quem tenha dúvidas sobre a vantagem da existência do Tribunal
Constitucional. Tanto porque em vários casos foi possível antecipar as decisões que
viriam a ser produzidas em função da coloração política atribuída aos juízes, como
porque se transformou em mais um elemento na longa cadeia de recursos – no fundo,
mais uma instância de recurso –, como, ainda, por nem sempre ter contribuído para a
uniformidade desejável na interpretação da Lei. Deixa-se uma interrogação: porque não
uniformizar o sistema judicial, atribuindo ao Supremo Tribunal de Justiça as funções
presentemente cometidas ao Tribunal Constitucional? Mas, a manter-se o referido
Tribunal, e dado que manifestamente não pode responder em tempo útil a uma
multiplicidade de solicitações, a traduzir-se em mais atrasos contribuindo para
prescrições, porque não estabelecer um “crivo” à semelhança do existente na Supreme
Court dos Estados Unidos: o tribunal decide os casos que aceita julgar e reenvia os
outros?
11.5. No sistema judicial português todos os casos são julgados, independentemente
da sua importância e valor mediante um mecanismo que se pode caracterizar como de
“first in – first out”. Tudo estaria bem se: (i) fosse possível julgar todos os casos; (ii) os
julgamentos pudessem fazer-se em tempo útil; e (iii) não ocorressem, por conseguinte,
prescrições, por vezes de casos muito importantes ou graves. A anómala situação a que
se chegou parece recomendar a criação de várias “fileiras”, mediante
procedimentos/critérios objectivos e transparentes.
A cada vez maior especialização da vida económica e social recomenda a criação de
tribunais especializados – sobretudo para apreciação das questões do âmbito da
economia – e a disponibilização de peritos em vários ramos do saber.
11.6. As frequentes amnistias – aparentemente muitas vezes impostas pela
incapacidade dos tribunais em julgar e das prisões em acolher todos os presos –
introduzem também injustiças relativas que importa ter presentes (os cidadãos com
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capacidade social e financeira para “empatar” o funcionamento da justiça são, afinal, os
principais beneficiados com aquelas decisões).
12. Apresentam-se algumas sugestões de um leigo em matéria de processo.
12.1. A citação demora muitas vezes vários meses ou mesmo anos, tanto para pessoa
singular como colectiva. Já aconteceu não serem encontrados durante anos cidadãos
bem conhecidos e cujo paradeiro é notoriamente do conhecimento público.
Admite-se que as pessoas, singulares ou colectivas, pudessem ter, para efeitos
judiciais, um domicílio, que no caso das pessoas singulares seria, por exemplo, o
constante no Ministério da Justiça (por via do B.I.) e as pessoas colectivas considerarse-iam domiciliadas na sede constante na respectiva Conservatória do Registo
Comercial6.
12.2. Como é sabido, e para o confirmar basta consultar as estatísticas oficiais
relativas à Justiça, em cada ano que passa aumenta o volume de processos pendentes
nos tribunais, na medida em que o número de processos resolvidos é substancialmente
inferior ao número das novas acções instauradas.
O número de processos tem aumentado por diversas razões, nomeadamente de
natureza fiscal. De facto, qualquer empresa, para poder contabilizar uma dívida como
custo, tem de instaurar uma acção judicial, por vezes contra empresas que já não têm
actividade para, ao fim de um longo processo (ou processos – acção declarativa e acção
executiva), obter uma certidão judicial onde conste que no âmbito daquele processo
nada recebeu. Com esta certidão, é possível recuperar o IVA e contabilizar o valor da
dívida como custo, com os inevitáveis benefícios ao nível de IRC. Ora, parece que tem
urgentemente de se acabar com este estado de coisas, para o que se apresentam algumas
sugestões7.
6
Na medida em que, actualmente, o regime regra da citação é através de correio registado, quando o
mesmo viesse devolvido, ao prazo legal para contestar (ou praticar outro acto), acrescia automaticamente
um prazo adicional, de por exemplo 30 dias, para a hipótese de o citando ter entrado de férias ou para
prevenir ausências determinadas por qualquer outro motivo legítimo.
Adicionalmente, para uma maior garantia processual, após o decurso referido anteriormente, os tribunais
oficiariam a PSP ou a GNR do local da área de residência do citando, para que estas entidades, no prazo
máximo de, por exemplo 15 ou 20 dias, informassem o tribunal de toda e qualquer informação relativa ao
paradeiro do citando.
No caso de pessoas colectivas, decorrido que fosse o prazo adicional de 30 dias, o tribunal,
oficiosamente, requeria uma certidão à respectiva Conservatória do Registo Comercial para verificar se
houve mudança de sede social, e promovia a citação na nova sede (e, em caso negativo, considerava a
citação como efectuada).
Esta solução implicaria uma alteração ao Código do Registo Notarial, na medida em que as pessoas
colectivas dispõem de um prazo de 90 dias para promoveram os registos.
7
Desde logo tem de haver uma relação de confiança entre a Administração Fiscal e o contribuinte,
criando-se fortes penalizações, a nível económico e penal, para as situações em que o contribuinte,
através do recurso a documentos falsos contabilize dívidas inexistentes.
Por outro lado, para, em grande medida, impossibilitar a fraude fiscal, o credor teria de fazer a
notificação judicial avulsa do devedor, notificação essa onde constariam todos os elementos relativos à
dívida.
No final do ano, as empresas, juntamente com o Mod.22 do IRC (onde teriam sido considerados os
prejuízos emergentes da falta de pagamento de créditos não pagos devido a incapacidade ou ausência de
34
12.3. O desenvolvimento da vida económica criou problemas novos a traduzir-se
num recurso anormal aos tribunais por parte de determinadas empresas ou entidades, de
que são exemplo os bancos, as companhias de seguros, as empresas de
telecomunicações, as empresas emissoras de cartões de crédito e a própria Previdência.
Em alguns casos a larga maioria de processos entrados em determinados tribunais ou
juízos provêm destas empresas, sendo os juízes “desviados”, por este facto, da sua
função tradicional de actuação em benefício de toda a sociedade. A canalização da
atenção e tempo dos juízes e outros funcionários judiciais para estas situações “atípicas”
tem por consequência:
• deixar por resolver – por mais difíceis, delicadas ou morosos – os casos de
conflitualidade “típica”, em particular os susceptíveis de levantar mais
“problemas” no plano social;
• “construir” uma boa folha de serviços à custa de intervenções irrelevantes em
termos substantivos (julgar-se para a estatística e não para a resolução dos
reais conflitos8);
• desviar recursos – que tendo sido facultados por toda a sociedade deveriam reaplicar-se em benefício de toda a sociedade – para proveito de certas e
determinadas empresas9.
Aliás a situação está amplamente reconhecida pelo próprio legislador ao afirmar que
“a instauração de acções de baixa densidade que tem crescentemente ocupado os
tribunais, erigidos em órgãos para reconhecimento e cobrança de dívidas por parte dos
grandes utilizadores” conduz a que sejam os tribunais “colocados, na prática, ao serviço
de empresas que negoceiam com milhares de consumidores” com “o risco de se
converter(em), sobretudo nos grandes meios urbanos, em órgãos que são meras
extensões dessas empresas (…)”10.
Para uma situação perfeitamente atípica e anormal, que reconhecidamente está
contribuindo poderosamente para o pior funcionamento (no limite, não funcionamento)
da Justiça, haverá que encontrar soluções novas, atípicas, eficazes e salvaguardando
adequadamente critérios e princípios tanto legais como morais.
vontade de pagar do devedor), entregariam, em anexo ao Mod. 22, um modelo, a criar, onde constaria a
relação dos créditos não cobrados, com a identificação dos contribuintes faltosos.
A Administração Fiscal procuraria (até porque dispõe de meios mais eficazes para o efeito) cobrar dos
devedores o valor dos impostos deduzidos ao/pelo credor.
8
Considere-se o caso de dois juízes com exactamente o mesmo número e tipo de processos: 70
“especiais” provenientes de bancos, seguros, etc. e 30 “normais”. Um decide 60 – os 30 “normais” e 30
“especiais”; o outro decide exactamente os 70 “especiais”. Em termos de estatística o segundo juiz é
“melhor” que o primeiro, mas, tanto em termos de trabalho produzido como de “utilidade” para a
sociedade o primeiro deverá ter tido um muito melhor desempenho.
9
Como toda a Administração Pública também o funcionamento dos tribunais recai, por via do imposto,
sobre toda a Sociedade. Porque haverá a Sociedade como um todo suportar custos que visam, sobretudo,
o funcionamento societário normal de determinadas empresas ou entidades? Não deveriam ser criados e
implementados esquemas que assegurassem/garantissem que, nestes casos, seriam tais entidades a
suportar os inerentes custos?
10
Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.
35
Tal terá de acontecer, por imperativos constitucionais actuais, dentro dos tribunais
como tradicionalmente, mediante criação de secções especializadas11 e adaptando
adequadamente as normas e regras de funcionamento. Se fossem adaptados
determinados princípios estabelecidos na Constituição – o que será uma fatalidade se
não forem em tempo razoável encontradas soluções para os actuais problemas e, em
particular, se estes continuarem a agravar-se – acabaria por ter de recorrer-se a soluções
perfeitamente inovadoras e fora dos tribunais, mas devendo garantir-se, sempre, um
certo número de condições, designadamente:
• definição muito concreta e precisa de quem poderia socorrer-se dos novos
mecanismos (bancos, seguradoras, etc.) e para que tipo de situações; nos casos
tipificados não poderiam tais entidades recorrer aos tribunais, mas poderiam os
devedores optar pela via judicial;
• os “decisores” em tais processos seriam juízes ou técnicos com profundos
conhecimentos de direito, podendo ainda recorrer-se a técnicos/profissionais
devidamente habilitados e com boa formação comercial, económica e
empresarial.
A título indicativo, apresentam-se algumas sugestões concretas12 realçando-se que
vários dos aspectos mencionados poderiam ser adoptados sem que se confrontassem no
imediato com dificuldades constitucionais.
11
Mesmo que se admita que a sua eficácia poderá ser remota.
Seriam criadas “Comissões de Execução de Dívidas” (uma única, pluri-sectorial, ou especializadas –
sector bancário, segurador, segurança social, etc.; a Comissão do sistema bancário funcionaria junto do
Banco de Portugal, a dos seguros junto do Instituto de Seguros, etc.).
A comissão seria constituída por:
• Presidente
• Dois vogais
O presidente deveria ser licenciado em Direito, com 10 anos de exercício, como Juiz, Advogado, ou
Delegado do Ministério Público. Os vogais poderiam ser licenciados em Direito e ter exercido aquelas
profissões, ou ser licenciados com licenciaturas adequadas nas áreas da economia e da gestão,
necessitando de 5 anos de exercício de funções.
Nos processos não haveria créditos privilegiados, excepto os que tivessem garantia real.
Havendo vários processos sobre os mesmos bens, funcionaria o princípio da prioridade da data da entrada
da acção.
O credor (Banco. etc.) apresentaria requerimento fundamentando o seu crédito documentalmente.
Juntaria desde logo as provas que considerasse necessárias e indicaria os bens a penhorar, com certidão
actualizada, nos bens sujeitos a registo.
A notificação deveria ser facilitada e os prazos encurtados; todo o processo de contestação, produção de
prova e decisão deveria tornar-se mais expedito.
Feita a contestação, ou esgotado o prazo para a sua apresentação, a Comissão solicitaria às partes os
esclarecimentos julgados necessários e seguidamente lavraria despacho, com base nos documentos e
esclarecimentos que lhe tivessem sido presentes. Este despacho teria força de título executivo, para todos
os efeitos legais, e seria título suficiente para registo da penhora, sobre os bens previamente indicados.
Feita prova da penhora, os bens seriam entregues a um Liquidatário Judicial, para liquidação.
O liquidatário seria fiscalizado e acompanhado por uma Comissão de Acompanhamento, constituída por
um representante do credor e outro do(s) devedor(es).
Ao liquidatário e à Comissão seriam aplicáveis os princípios consignados no código das falências, com as
devidas adaptações, sendo as referências ao Tribunal entendidas como dirigidas à Comissão de Execução
de Dívidas, e as referências à Comissão de Credores, como destinadas à Comissão de Acompanhamento.
12
36
12.4. Muito do trabalho dos juízes não tem dignidade para ocupar um magistrado,
podendo e devendo ser entregue a funcionários com uma formação menor, sempre
evidentemente sob responsabilidade e controlo do juiz13. Como é obvio, em função dos
assuntos, haveria vários escalões, podendo o topo ser ocupado por licenciados em
Direito.
Na verdade, parte substancial do tempo dos magistrados é gasto no exercício de
funções de meros escriturários, de onde resultam elevados prejuízos para o andamento
dos processos. Também aqui se impõem modificações14.
12.5. Os liquidatários judiciais recebem em função do tempo e não dos resultados
obtidos ou da celeridade com que realizam o seu trabalho e a sua compensação – de
base mensal – é fixada pelo juiz normalmente vários meses após a sua designação para
um processo.
12.6. O trabalho nas secretarias continua, como há séculos, a ser feito da maneira
tradicional. Simples exemplo: como nos tempos medievais continuam a coser-se os
processos, com as perdas de tempo associadas a um trabalho arcaico desta natureza,
Feita a liquidação, a Comissão de Execução de Dívidas procederia à graduação dos créditos e emitiria as
respectivas ordens de pagamento.
As custas do processo seriam suportadas proporcionalmente pelas partes. As do credor na proporção do
crédito efectivamente recuperado; as do devedor na proporção do crédito verificado (o custo para o
credor é largamente compensado pela celeridade processual e traduzir-se-ia numa vantagem para o
devedor já que o estimularia a não recorrer à via judicial). Deveria ser criado um Cofre Geral de
Cobrança de Dívidas (bancárias etc.) para onde reverteriam os preparos e custas.
Em qualquer altura do processo poderia o devedor impugnar judicialmente o crédito pedido. Se ganhasse,
ou na proporção em que ganhasse, seriam as custas imputadas ao credor. Mas se perdesse, ou na
proporção em que perdesse, pagaria as custas do processo extra-judicial, mais as custas do processo
judicial, agravadas em 100%.
Produzido o despacho de encerramento do processo pela Comissão sem que tivesse havido impugnação
judicial até, por exemplo, 5 dias após a data da notificação do despacho, às partes, a decisão tornar-se-ia
definitiva e sem possibilidade de qualquer recurso, impugnação, ou reclamação.
13
O princípio geral, hoje, é que tudo tem de passar pelo juiz e ser objecto de despacho seu.
14
Exemplo: feita a penhora de um imóvel (ou fracção) o credor, através de requerimento, junta aos autos
certidão do Registo Predial onde consta o registo da penhora. O requerimento vai ao juiz que verifica: se
a penhora está registada, se há credores hipotecários com registos anteriores (tendo em vista a sua
notificação pessoal para reclamar créditos no processo), se existem penhoras anteriores, caso em que o
processo é sustado para o credor ir reclamar o seu crédito no processo que deu causa ao primeiro registo
de penhora e, após isso, o juiz exara um despacho a notificar o credor para publicar um anúncio no jornal,
destinado a notificar credores desconhecidos. A secretaria demora um certo tempo a enviar a notificação,
o credor, depois de a receber, publica os anúncios, recorta a publicação e junta aos autos, através de
requerimento, os respectivos recortes, bem assim como o recibo justificativo de que pagou a publicação
dos anúncios. A secretaria, ao fim de mais um certo tempo, envia o requerimento ao juiz para verificar da
regularidade dos procedimentos e, em função disso, avança para a marcação da venda. Chegados aqui, a
saga repete-se: ordem de publicação de anúncios a anunciar a venda, notificação ao credor para os
publicar, publicação, junção aos autos dos recortes, etc., etc. Ora, porque não é este trabalho de
verificação administrativa feito por um funcionário? Não poderá ser o tribunal a publicar os anúncios,
debitando na conta de custas (até porque as partes vão fazendo entrega de fundos à medida que lhes são
solicitados)?
O mesmo se diga, “mutatis mutandi” para toda e qualquer situação em que é preciso publicar anúncios,
desde logo para a citação edital.
37
com o único benefício de dar emprego a largas centenas de funcionários. Na
generalidade dos tribunais a informática está ainda por descobrir15.
12.7. O número de funcionários não tem acompanhado o aumento de processos, pelo
que estes – como aliás a TV tem mostrado relativamente a alguns tribunais – se
empilham nas secretárias, nos armários, no chão, quando não no vão das janelas. Por
vezes, entre a data do despacho do juiz e a data em que a secretaria notifica a parte do
referido despacho, demoram meses. De igual modo, a parte responde e, entre a data da
entrada em juízo da resposta e a data em que a mesma é levada ao gabinete do juiz
podem demorar meses.
12.8. Quando o processo é findo e o credor tem algo a receber (o que raramente
acontece), é necessário (para a emissão do precatório-cheque) que:
• o contador (funcionário que faz a conta) tenha tempo para pegar no processo –
e às vezes, aliás frequentemente, só tem tempo muitos meses depois;
• a conta seja notificada às partes para efeitos de eventual reclamação;
• o credor obtenha uma certidão em como nada deve ao fisco.
Finalmente, e após mais uma série de pequenas ou grandes burocracias, é emitido o
precatório-cheque.
12.9. Parece absolutamente necessário:
• que haja correspondência entre o número de funcionários adstritos a um juízo e
o volume de trabalho existente (porque não estabelecer “unidades de medida” e
fixar parâmetros objectivos, passando a proceder, depois, à comparação do
trabalho efectivo com os parâmetros estabelecidos?);
• que seja fixado um número de dias máximo para fazer as notificações, bem
assim como para levar ao juiz os requerimentos das partes.
12.10. É de todo em todo não razoável que os particulares, sejam pessoas singulares
ou colectivas, instaurem acções, paguem aos seus advogados, adiantem dinheiro para
custear despesas judiciais e, quando o credor consegue penhorar algo que lhe permitiria
receber senão a totalidade, pelo menos parte da dívida, apareça a Fazenda Nacional a
reclamar créditos a favor do Estado, o que faz enquanto credor privilegiado. Quer dizer,
uns trabalham e suportam os custos e os outros recebem à conta do trabalho (e do
investimento) alheio.
À semelhança do que já sucede no campo falimentar, o Estado deve perder a
qualidade de credor privilegiado, salvo se, à semelhança de qualquer outro credor, for
detentor de qualquer garantia específica, v.g. hipoteca.
15
A Lei prevê já diversos procedimentos e mecanismos “agilizadores” do funcionamento administrativo
e burocrático dos tribunais. Contudo, não têm estes tido a capacidade suficiente para a introdução de
melhorias. Julga-se que o Ministério da Justiça deveria desenvolver um plano específico de ataque a este
problema e seleccionar uns tantos tribunais para o arranque, com garantia de sucesso, de esquemas mais
modernos.
38
12.11. A dificuldade em localizar bens para penhorar é conhecida, pelo que se sugere
a criação de um registo central onde seja possível verificar se determinado cidadão ou
empresa tem bens registados em seu nome e, em caso afirmativo, qual a conservatória
ou conservatórias onde os mesmos se encontram.
Nesta matéria, o fenómeno que se vem desenvolvendo de passar bens para
sociedades “off shore” é deveras preocupante. Para além de evidentes consequências em
matéria fiscal, como proceder relativamente a pessoas ou empresas que passaram, às
vezes por apenas algumas dezenas de milhares de contos, bens avaliados em vários
milhões de contos e nada têm quando chegam à falência. Sendo que os antigos
vendedores continuam a ser, em exclusivo, os utilizadores/beneficiários de tais bens.
Não poderá ser devidamente regulada a questão das empresas “off shore” (e não se diga,
nesta matéria, que a lei comunitária introduz constrangimentos)? Não será de, pura e
simplesmente, se estabelecerem presunções legais cobrindo determinados aspectos
(admitindo-se, obviamente, que as mesmas possam ser contestadas)?
12.12. Não parece recomendável que os juízes saiam, na sua grande maioria, da
faculdade para o Centro de Estudos Judiciários e daqui para os tribunais, sem que
alguma vez tenham tido a menor experiência de vida, o que os leva, por vezes,
especialmente no início de carreira, a cometer erros importantes que, na maioria dos
casos, quando a alçada o permite, acabam por ser corrigidas pelos tribunais superiores
(mas ao fim de alguns anos, tendo causado prejuízos vários e contribuído para o
avolumar de processos em julgamento).
À semelhança do que se defende para as secretarias judiciais, deveria ser aumentado
o número de juízes, por forma a que não fiquem “afogados” em processos e, após isso,
deveriam, à semelhança do que acontece com os advogados, ser obrigados a cumprir os
prazos que a lei lhes impõe, mas que hoje não são cumpridos em muitos casos. É
lamentável que hoje, especialmente em determinadas sedes muito sensíveis, após o
adiamento de uma audiência, se faça a nova marcação para mais de um ano depois!…
Os juízes deveriam estar sujeitos a inspecção judiciais (que já existem), mas a equipa de
inspecção deveria ser constituída não só por juízes, mas também por advogados de
elevado mérito ético e profissional, indicados pela Ordem dos Advogados.
13. Em outras áreas poderiam ser introduzidas melhorias importantes, objectivas e
controláveis. Dão-se dois exemplos.
13.1. Notários: há anos teve-se a experiência clássica, em um país comunitário, de
comprar habitação numa situação que envolvia diferentes intervenientes,
comprador/adquirente,
vendedor
do
terreno,
empreiteiro/construtor
e
banco/emprestador, com a agravante de a esposa não residir, ao tempo, no país em
questão. A operação desenvolveu-se em dois tempos:
• primeiro, obter a procuração da esposa, o que foi feito dentro de 24 horas e
para a qual foi apenas requerida uma qualquer “pièce d’identité” (tempo de
permanência no notário, 15 minutos, sendo 5 para obter o documento e 10 de
39
“cavaqueira”; no final o interessado nada pagou de imediato, porque o notário
preferiu abrir uma conta-corrente que só seria liquidada no fim da operação
principal concluída);
• segundo, realização dos diferentes contratos, com o vendedor do terreno, o
empreiteiro e o banco. Permaneceu-se cerca de 30 minutos no cartório, com
respeito exacto pela hora marcada. O notário procedeu aos registos de
hipoteca, pagamento ao fisco do equivalente da nossa sisa, assegurou o
pagamento do dono do terreno, do empreiteiro, das despesas bancárias e de si
próprio. Para tanto recebeu directamente do banco um cheque do montante da
importância bruta do empréstimo, controlou com o interessado as diferentes
situações de custo, prestou contas e pagou, tendo o interessado recebido a
diferença para o montante bruto do empréstimo.
Ainda hoje, revendido o bem em questão no regresso a Portugal, se ignora onde fica
a repartição fiscal e a conservatória de registo. Tempo total dispendido com o conjunto
de todos os actos relativos à compra do bem, hipoteca, registos, satisfação de encargos
fiscais e empréstimo bancário: cerca de ¾ de hora (teria sido meia hora se não tivesse
havido necessidade de procuração). Número de interlocutores e locais frequentados (à
parte o banco prestamista): um.
13.2. Registos: são extraordinariamente demorados em certas conservatórias, com a
agravante de serem mais ou menos rápidos consoante os interesses e os interessados.
Questões: não será possível calcular o número médio de registos/funcionário/dia para as
diferentes conservatórias do país (pensa-se evidentemente naquelas que têm trabalho
para o dia todo)? Não será possível assegurar que seja respeitado efectivamente o
princípio de “first in – first out” (sem prejuízo de se criarem várias fileiras em termos de
urgência)?
14. As questões tratadas, por serem questões de sociedade, aconselhariam uma
intervenção social mais alargada e a criação de órgãos efectivamente representativos
dos vários interesses em causa. Desde logo deveriam ser feitos inquéritos objectivos no
que se refere ao funcionamento das diferentes entidades, procedimentos e tempos. As
estatísticas existentes deveriam ser enriquecidas com informações que nos mostrassem a
qualidade da justiça que temos (qualidade medida em função dos resultados e dos
tempos). Seria de procurar conhecer-se o que são as efectivas necessidades da
Comunidade e solicitar-se sugestões ou propostas dos principais interessados visando o
objectivo de bom funcionamento dos tribunais e outras entidades ou agentes. Poderia
ser interessante proceder-se à identificação das soluções encontradas em diferentes
países e sua eventual importação (com as adaptações que se revelassem necessárias).
40
A Crise de Confiança nos Contratos
Dr. Miguel Veiga*
Orador
I)
DOS SINAIS DOS TEMPOS:
A questão que me foi proposta será, por (des)ventura, um dos signos do nosso tempo
que o historiador Krzystof Pomian recentemente anunciou como da crise do futuro. Crise
dos valores, da confiança, crise do dever, da responsabilidade, cidadão, contratação e
administração da Justiça em crise. Crise, definida ironicamente por Jacques Attali 1 como
sendo, desde sempre, um período de transição entre duas fases de transição.
A interrogação provoca logo um aviso à navegação. É preciso que nos libertemos de
uma dupla ilusão que dominou a intelligentzia desde há décadas: a nostalgia de um passado
findo assim como a esperança de um futuro radioso2. Já não cantam os amanhãs embora
felizmente ainda há luar, neste ou noutro lugar...
E se ontem tínhamos o direito de ser fatalistas por optimismo, doravante devemos ser
audiciosos por pessimismo. Nesta consciência crítica perpassa um optimismo pessimista,
corrijo, um pessimismo optimista (enganei-me de propósito), uma visão desoladora com
um mínimo de esperança. Mas é neste desfasamento entre a idealidade e a realidade que
radica o nó-górdio da condição humana. Viver o tempo como uma enriquecedora tensão
entre a memória do passado e a pulsão das saudades do futuro, contrapondo à crise do
historicismo a lucidez de quem está avisado de que a mesma luz que ilumina é também a
luz que cega e sabe, como única certeza, que os conceitos de verdade, de realidade e de
sentido têm de ser constantemente interrogados.
Tomar a verdade e o amor a ela apenas como direcção do seu agir e nunca como
realidade possuída, tentando esclarecer a opacidade do mundo e compreender a diversidade
dos homens, fiel à única medida da verdade que a vida nos concede: a nossa razão humana.
Suficientemente forte e suficientemente frágil, para poder duvidar sempre das suas
conquistas e das suas evidências. Onde é branco dirá branco, onde preto, preto, livre para
amanhã dizer coisa diversa se o objecto mudar ou a luz perder as suas propriedades. O
intervalo que separa a sombra da luz permite ver. O intervalo irredutível que separa o mal
do bem permite que haja valores no mundo. E isso é excelente. A heterodoxia é a
humildade do espírito, o respeito simples em face da divindade inesgotável do verdadeiro.
Resistamos à ilusão de supor que tudo pode ser inundado de luz. Deixaríamos de ver. No
plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma
*
Advogado.
- Dictionnaire du XXIe siècle.
2
- Cornelius Castoriadis.
1
41
realidade dividida. O respeito pela sua divisão é Heterodoxia. Que fui aprendendo, pela
vida fora e pela vida dentro, sob a mestria de Eduardo Lourenço3.
Questionar, outrossim, como um movimento de conceitos que cria o seu próprio campo
operatório. Problematizar a sociedade, os valores, a justiça e procurar respostas, ainda que
parciais e fragmentárias, atendendo unicamente ao seu interesse informativo, documental e
polémico. Quero dizer: uma abordagem que se caracteriza, antes de mais, pelo seu próprio
movimento, pela mobilidade do pensamento, do pensar em contrabando, desse modo,
talvez filosofante, de perpétuo contrabandista, como transfuga que passa dum território a
outro porque sabe que há sempre uma comunicação possível já que, em certa medida,
somos muito mais livres de circular do que há 30 anos4. Fazer a transversalidade supõe,
porém, que não haja uma disciplina dominante que sobrecarregue todas as outras5, mas não
devemos ser derrotistas nessa tentativa de compreensão do mundo e de pensar neste nosso
tempo real. Mais do que nunca esta nossa desencantada sociedade encontra-se em busca do
sentido, num estado de carência que nem a ciência, tornada inquietante, nem as ideologias
políticas, em falha de esperança, têm preenchido. A crise mais (pre)ocupante é a económica
e social mas há quem descubra uma outra crise, ainda mais profunda, a crise dos espíritos e
dos corações, uma crise de identidade e da comunidade, uma crise moral e talvez espiritual
nas nossas sociedades modernas, anónimas e indiferentes, onde reinam como donos e
senhores, impiedosamente, a técnica, os “media” e o dinheiro mas em que ainda há quem
se bata por um renascimento do humanismo, pelo direito ao sentido, a uma esperança
partilhada como um direito fundamental do homem para o séc. XXI6.
Actualmente, a vida, a política é, cada vez mais, da ordem do estar, o que significa que,
enquanto jogo, tem a sua dimensão própria que, contudo, só pode ser entendida se for
inscrita na pergunta mais radical sobre a pessoa, ou melhor, sobre o tempo. Tempo este
que, modernamente, é cada vez mais gozado e vivido como efémero, caótico, desconfiado
e sem sentido, dir-se-ia que a ideia moderna da historicidade está a morrer às mãos dos seus
excessos, definhando com ela uma experiência em que o presente era vivido,
simultaneamente, como futuro do passado e como passado do futuro, como se o tempo
passasse a ser um mero somatório de momentos e o efémero a prova da eternidade.
Vivemos em sociedades cinzentas sob o astro de uma ideologia de reconciliação, tão
gasosa como difusa, estribada num pensamento mole em que as identidades são fluídas, as
solidariedades evanescentes e as convicções vão cedendo o seu lugar às opiniões de
ocasião e a desgarrados pontos de vista de certos plumitivos de profissão, o que levou
alguém a comentar que d'antes os animais falavam, agora eles escrevem...
Os decantados “maîtres-penseurs”, que foram os intermediários intelectuais, fecundos e
inventivos, entre a casta sábia e o grande público, desapareceram praticamente de cena.
Infelizmente para os investigadores do sentido a paciência do conceito rima mal com a
urgência contemporânea e os pensadores, dignos desse nome, têm horror às injunções
3
- Heterodoxia - Prólogo sobre o Espírito de
- Jean Maurel, N. Obs. (19.5.99).
5
- Elisabeth de Fontenay, N. Obs. (19.5.99).
6
- François Bayrou, Le droit au sens.
4
42
interpelatórias. A “insustentável leveza do ser é hoje, na realidade, uma amarga constatação
do inelutável peso de viver. É o quiproquo de uma época que pretende apaixonadamente
filosofar mas, simultaneamente, evitar todo o esforço filosófico. Que quer conhecer e saber
mais, pensando menos.
Vivemos numa sociedade de mercado, de lucro, de consumismo e despesismo, de
sucesso fácil e endinheirado, custe o que custar, na era do falso, na era do vazio, sob o
império do efémero e do mero pragmatismo que conduzem ao crepúsculo do dever,
agudamente analisados por Gilles Lipovestsky nos seus vários livros.
Muitos outros e recentes títulos, colho, à mão cheia e de passagem, das minhas estantes,
significativamente denunciadores das barbas e da baba desta crise. Enunciando e
exemplificando:
Vivemos numa “sociedade do espectáculo” (Guy Debord), na “cultura do
contentamento” (John Kenneth Galbraith), na “utopia do tempo livre” (Daniel Mothé),
numa “sociedade incivil” (Sebastian Roche), na “era da irracionalidade e do paradoxo”
(Charles Handy), no “lugar da desordem” (Raymond Boudon); vivemos na “era dos
direitos” e do “futuro da democracia” (Norberto Bobbio) mas da “embriaguez
democrática” (Alain Minc), do “regain democrático” (Jean-François Revel), da “regressão
democrática” (Alain-Gérard Salma), do “Direito sem Estado” (Cohen-Tanugi) e do
“Estado fóra da lei” (Jean Marie Pontaut e Francis Szpiner), num “Estado de opinião”
(Olivier Duhamel), numa “República de clones” (Philippe Guilhaume), numa “República
dos funcionários” (Thierry Pfister); vivemos numa “humanidade perdida” (Alain
Finkielkraut), num “fim de século obscuro” (Max Gallo), num “tempo do mundo acabado”
(Albert Jacquard), numa “ilusão económica” (Emmanuel Todd), do “horror económico”
(Viviane Forrester), do “desafio de dinheiro” (George Soros), num “mundo de ladrões”
(Claire Streling), do “grande desperdício” (Ives Messarovitch), da “mundialização além
dos mitos” (Robert Boyer e outros); vivemos num tempo da “Justiça ou o caos” (Denis
Robert), dos “Abogados de oro” (Ramón Tïjeras), do “Direito dos mais fortes” (Thierry
Jean-Pierre), da “Lei dos Juízes” (François Rigaux), do “Golpe de Estado dos Juízes” (Eric
Zemmour) e ... ... “tutti quanti”.
Esta simples referência listada poderá ilustrar, expressiva e impressivamente, a retórica
dos conflitos actuais e até das suas figuras de estilo. E a arte de argumentar, que é
inconfundível com uma sofística manipuladora, é, digam lá o que disserem, a melhor
escola da democracia. E a arte de viver é também a arte de ler.
Uma das questões contemporâneas mais difundidas é a da necessidade da ética, da
reinstauração do dever, da confiança como pilar de toda a relação social, de toda a
contratação, de toda a civilização.
A bio-ética, a caridade mediática, as acções humanitárias, a defesa do ambiente, a
moralização dos negócios, da política e dos “media”, os debates sobre o aborto, o assédio
sexual e a homossexualidade, as cruzadas contra a droga e o tabaco: por todo o lado a
revitalização dos “valores” e o espírito de responsabilidade são agitados como o primeiro
imperativo da nossa época. E se, ainda há pouco tempo, as sociedades se electrizavam com
43
a ideia da libertação individual e colectiva, hoje elas proclamam que já não é possível outra
utopia que não seja a da ética. Só que, apesar disso, não há nenhum “retorno da moral”. A
idade do dever rigorista e categórico eclipsou-se em benefício de uma cultura inédita que
difunde mais as normas do bem estar do que as obrigações supremas do ideal, que
metamorfoseia a acção moral em show recreativo e em comunicação de empresa, que
promove os direitos subjectivos mas faz cair em perda o dever da obrigação pagante e
custosa. Assim, enquanto a etiqueta moral passou a estar em toda a parte, a exigência do
dever passou a estar... em parte nenhuma. E eis-nos, aqui e agora, comprometidos e
engajados no ciclo pós modernista das democracias, repudiando a retórica do antigo dever
austero e integral e coroando os direitos individuais à autonomia, ao desejo, à felicidade.
Perante as ameaças do neomoralismo bem como do cinismo de vista curta, convém
reabilitar a inteligência numa ética que se mostre menos preocupada de intenções puras
que de resultados benéficos para o homem, que não exija o heroísmo do desinteresse mas,
sim, o espírito de responsabilidade e a procura de compromissos razoáveis. Liberalismo
pragmático e dialogado ou novo dogmatismo ético? O rosto do amanhã será, porventura, a
imagem desta luta travada entre as duas lógicas antagonistas do chamado “après devoir”,
ou seja, do depois do dever. O futuro di-lo-á.
Aqui, permito-me fazer minhas as palavras de Karl Popper: “Não sei nada sobre o
futuro. Ninguém sabe nada sobre o futuro. Só podemos ser optimistas sobre o presente, não
sobre o futuro. Como será o futuro, depende de mim e de si, depende das pessoas. Apenas
no sentido de que podemos tentar ser pessoas responsáveis, pensando e agindo pelas nossas
próprias cabeças. Podemos fazer alguma coisa para influenciar o futuro. Mas o futuro
nunca será seguro. Nem certo”.
II)
DA CONFIANÇA AO CONTRATO NESTA SOCIEDADE:
Não haverá democracia sem a confiança dos cidadãos mercado sem a confiança dos
produtores, mediadores e consumidores, família sem a confiança dos cônjuges, igreja sem
a confiança dos fiéis. Ora, a precariedade crescente das relações humanas, a reversibilidade
das escolhas, tanto no mercado como na democracia e na esfera privada, como que tornam
menos necessário, relaxando, o respeito duradouro de um contrato e menos indispensável,
afrouxando, a confiança mútua das partes. Pelo que há quem afirme que a cultura do
mercado desvalorizou e fez declinar a ética da confiança, que seria progressivamente
substituída pelo direito e pelo aparelho da justiça7. O extremo dessa crise poderia ser
figurado por S. Goldwin ao declarar “para mim um contrato verbal não vale sequer o papel
em que está redigido”.
O contrato é uma daquelas figuras que convoca ao debate e espelha, na sua
regulamentação jurídica, as tendências económicas, o modelo social, os postulados
filosóficos, culturais e políticos de cada época. De “invenção admirável” a “frasco de
perfume vazio”; de mecanismo privilegiado do relacionamento económico a instrumento
44
de domínio; de expressão da personalidade humana a meio de opressão; de paradigma da
justiça a veículo de abusos e iniquidades – eis alguns dos juízes antagónicos que o contrato
suscita. Porventura, residirá aí algo do seu fascínio. A sua análise convoca uma perspectiva
multidisciplinar e interdisciplinar: jurídica, seguramente, mas também económica,
filosófica, política e social. Vontade ou confiança; indivíduo ou autoridade; mercado ou
plano; concorrência ou colaboração; liberdade ou dirigismo – outras das dimensões
conflituantes em opção. Do “laissez faire” à “publicização” do contrato; do individualismo
à “politização integral”; do absentismo de um “Estado-guarda-nocturno” ao
intervencionismo reducionista e providencial de um “Estado-Tutor” – eis, ainda que
extremadas, algumas das linhas de evolução a assinalar. Há “troppo Stato”, acusa-se, e
perante a “agonia do indivíduo”, houve que “redescobrir o privado”. Diagnosticou-se a
“crise” do contrato, apregoou-se o seu “declínio”, anunciou-se a sua “morte” – mas é a sua
vitalidade jurisgénica que ressalta. Talvez por o contrato constituir a oportunidade (não a
única, decerto) de o homem ser sujeito do direito, de se auto-determinar livremente, de
traçar o seu próprio destino8.
O contrato ganhou por um lado o que perdeu por outro. A autonomia da vontade
aumentou em extensão mas diminuiu de intensidade, porque hoje é mais débil, mais frouxa
do que outrora. O contrato moderno não constitui, em muitas hipóteses, o resultado de um
livre debate e de uma estipulação; o seu carácter individualista, o seu cunho personalista e
de caracter vinculístico-pessoal e personalizado esbateu-se, nele tomando cor e vulto o
aspecto social9. Visivelmente – diz Josserand 10 – o contrato escapa cada vez mais à acção
comum e concertada das partes; deixa de ser uma “entente” realizada sob a égide da
liberdade, pelo jogo de vontades iguais e autónomas, para se tornar uma operação dirigida,
quer pelos poderes públicos, quer por um só dos contraentes que impõe a sua fórmula e as
suas condições ao outro. Eis aí dois fenómenos jurídicos, económicos e sociais que tiram
ao contrato, pelo menos em larga medida, o carácter tradicional de mutuus consensus, que o
tornam, se assim se pode dizer, menos contratual e que dele fazem, em graus variáveis
segundo as espécies, um contrato-regulamento, um contrato dirigido, um contrato-tipo e
estereotipado, um contrato de adesão, com restrita autonomia do aderente, que só tem
liberdade de contratar ou não contratar, e se contrata deve sujeitar-se à lei do mais forte,
aceitando as condições por ele oferecidas.
Mas, em contraponto, também se assiste à introdução pelas partes nos seus acordos de
cláusulas de garantia, de protecção, regras técnicas, deveres específicos de diligência, numa
“inflação do conteúdo obrigatório do contrato”, na expressão feliz de Josserand, inflação
ou enriquecimento que se legitima com o importante princípio (e bom era vê-lo mais
fundamente gravado nas consciências) de que os contratos devem ser pontualmente
cumpridos, de boa fé (artt. 406 e 762 CC) e conforme à clássica regra do “pacta sunt
servanda”.
7
- Jacques Attali, Dictionnaire du XXIe siècle.
- A. Pinto Monteiro - intróito aos “Contratos: actualidade e evolução”.
9
- I. Galvão Telles - Manual dos Contratos em Geral.
10
- Aperçu géneral des tendances actuelles de la théorie des contrats.
8
45
Rompendo com uma análise jurídica fechada sobre si própria, passa a salientar-se “a
interdependência entre a alma de uma ordem jurídica e a estrutura da sua sociedade”. A
interligação entre contrato, mercado e empresa, vem marcar o processo de objectivação do
contrato caracterizada pela progressiva perda de relevância do seu elemento volitivo, da
intenção real e efectiva do declarante, da confiança pessoal e da fidúcia personalizada entre
as partes contratantes, ganhando peso crescente o seu comportamento declarativo, tal como
exteriormente observado. A aceleração do processo produtivo e o incremento geral das
trocas com o acesso de sectores cada vez mais alargados da população às relações de
consumo, a mobilização e a desmaterialização da riqueza, a universalização do mercado
com a sua extensão a todas as zonas da vida social, incluindo as da cultura e do lazer, a
empresarialização da actividade económica com a empresa de dimensões cada vez maiores
são factores que fazem multiplicar o uso e a importância dos contratos e determinam a
mudança da sua fisionomia e do seu paradigma, o qual se abre, neste contexto, à realização
de interesses dirigidos à obtenção de lucros através da colocação no mercado do maior
número de produtos11. O contrato torna-se objectivo e impessoal (Roppo). Numa sociedade
de massas, da grande empresa, que produz em série e vende em massa para um mercado
anónimo através de um número indefinido de actos, repetitiva e mecanicamente celebrados,
ao instrumento contratual colocam-se exigências de uniformidade e tipicidade que não
podem ser satisfeitas nem entravadas por pressupostos individuais do foro interno do
declarante incidentes sobre a base volitiva do negócio. O processo de objectivação, de
despersonalização da figura do contrato vem alterar a sua ordenação e estrutura, o que é
potenciado pelas técnicas de promoção de vendas através de acções comunicativas
dirigidas não a um destinatário determinado (ainda por identificar) mas ao público como
colectivo, à generalidade indeterminada das pessoas o que, por sua vez, determina a
intensificação e generalização dos consumos12.
A multiplicação das vendas e das consequentes concessões contratuais de crédito às
compras e aos consumos excessivos ou insustentáveis origina a proliferação dos
incumprimentos, tanto mais quanto as empresas, sôfregas e gulosas dos seus “chiffres
d'affaires”, minorizam e descuram, quando não dão mesmo de barato, as possibilidades e
garantias de pagamento e de solvência da sua clientela e contra-parte e esta, por seu lado,
determinada, pela sua apetência ao consumo, sempre insatisfeita e renovada, não se sente
íntima e proximamente vinculada nem “pessoalmente” obrigada ao dever de cumprir
perante quem ela só distante e nominalmente conhece através de uma denominação social,
marca emblemática ou anúncio publicitário. E, mais, sabendo de antemão que as justiças
são morosas, formalistas, funcionando mal e a deshoras e que “enquanto o pau, ou a vara
da justiça, vai e vem, folgam as costas”. Crise social de confiança, crise contratual no dever
de honrar o cumprimento, crise na administração da Justiça. Tudo isto se conjuga, articula,
condiciona, potencia e agrava reciprocamente.
11
- J. de Sousa Ribeiro - Cláusulas Contratuais Gerais e o paradigma do contrato.
46
III)
DA CRISE DA JUSTIÇA A ALGUMAS CAUSAS DA SUA ASFIXIA:
Falar hoje da justiça leva necessariamente a falar da política, da economia, da sociedade
e do contrato.
E qual é o nosso pano de fundo?
Se dermos uma volta pelo pessoal político português, apercebemo-nos claramente de um
facto: a justiça até agora não lhe tem interessado. Pouco ou mesmo nada. De facto,
marimbavam-se para ela. Ou exorcisavam os engulhos com os proverbiais e gastos clichés
da “separação dos poderes”, da “independência”, do “respeito pelos Juízes”. Sobre a
questão da justiça, o parlamentar de base é geralmente analfabeto involuntário ou
deliberado. Os programas são evocadores desta falta de interesse. O mais fácil é não fazer
nada, olhar o mundo, em pose de Estado e em estado de pose, fechar-se nos gabinetes,
barafustar, fazer “zapping”, pescar à linha com mosca, ou seja, fabricar legislação avulsa de
remendo pontual, (Portugal é, de há anos, um país em constante delírio legislativo
temperado pelo não cumprimento da lei...) mas sobretudo não empreender nada. Se o olhar
dos outros é tão pesado e se a matéria é tão polémica! No entanto, o conceito de Estado de
Direito, de que todos se reclamam, é um dos pilares da democracia moderna nos programas
políticos. No entanto, o conceito é solitário e aflora somente no vocabulário sem nenhuma
espécie de definição concreta, sobretudo no domínio da justiça, do exercício da justiça.
É manifesto que muitos políticos em Portugal alimentam quanto à justiça um certo
menosprezo, um quase desdém, quando não, uma certa indiferença, aliás explicável por
razões de fundo e de circunstância. O corpo judiciário não é intelectualmente considerado
pela classe política.
Fugir da justiça e evitar os tribunais, já não é um sussurro é um clamor da vox populi. A
imagem da função do juiz e da justiça está estragada e degrada-se dia a dia. O sistema
judiciário funciona mal e a más horas. E porque é que não se faz quase nada para mudá-lo?
E porque é que se continua, como em França (Denis Robert – “La Justice ou le chaos”), a
acreditar na mentira do Estado que consiste em repetir até ao embrutecimento que a justiça
é capaz, serena, credível?
Só que o papel do político é o de escutar a necessidade da justiça e de o satisfazer. Só
que a questão situa-se no coração do pacto social, ou seja, situa-se no coração da política no
sentido da vida da cidade. Se os cidadãos estão descontentes com a administração da
justiça, é todo o funcionamento social que está em riscos de ser afectado. A perda de
autoridade da justiça num Estado acarreta de uma maneira difusa a perda de autoridade de
todo o aparelho do Estado.
Uma sociedade de direito e contratual, aliás, hiperjurisdicizada, necessita de uma justiça
mais forte, mais eficaz e mais prestigiada. A justiça não é uma instituição como as outras. É
um serviço essencial, é o recurso da liberdade contra o poder, é a suprema instância de
regulação dos conflitos. E nunca esqueçamos, recusando qualquer deriva para uma certa
12
J. de Sousa Ribeiro - loc. cit.
47
ideia de ordem, que a sociedade democrática é essencial e estruturalmente conflitual e que
só nela se exprimem livremente as dissonâncias do mundo e das pessoas. E nós,
advogados, somos os representantes qualificados nesses conflitos de direitos e de
interesses. (Observo que hoje temos, neste nosso ditoso jardim junto ao mar plantado, 26
escolas que ensinam direito e que produzem 3.000 licenciados por ano, ou não fosse a
licenciatura em direito a mais inflacionada e barata...)
Mas para que a sociedade civil, de que tanto todos falam, possa progredir é preciso que
a justiça funcione.
(O orçamento da Justiça comparado com o deficit de algumas certas empresas
públicas é elucidativo embora, agora e só agora, se anuncie para o próximo
orçamento um aumento de 43% a mais de investimento do que na anterior
legislatura).
A justiça é a instituição mais simbólica do Estado e, sendo-o, a sua perda de
credibilidade não afecta e humilha apenas os juízes, mas também todo o Estado e todos nós
cidadãos e o respeito que os cidadãos se devem uns aos outros. E, quando os indivíduos
não respeitam uma autoridade superior que se chama justiça, os grupos sociais também
deixam de respeitá-la. Ora, para que uma sociedade funcione é necessário uma autoridade
diferente que represente a justiça e a quem os cidadãos reconheçam o mínimo de prestígio e
capacidade. O poder simbólico da justiça permite a uma sociedade funcionar com
simplesmente os sinais da autoridade. Se o sinal é fraco, decadente, a autoridade já não
pode exercer-se senão com o recurso à força.
Se o sinal e o símbolo da balança já não evocam nada para ninguém, então é necessário
empunhar a espada. E quaisquer que sejam as, quantas vezes, execráveis, razões da força
não pertencem elas ao mundo das estimáveis e desejáveis forças da razão.
Recentemente foi dado à estampa o grito de alarme, denominado o “Apelo de Genève”,
subscrito por sete qualificados magistrados de vários países da Europa que decidiram dizer
não ao estado em que vivemos, ao estado da nossa Administração da Justiça pela Europa
fóra e dentro.
Dirigiram-no aos políticos em particular e à opinião pública em geral. Para que todos
possam compreender que a Justiça e o seu exercício são hoje a sorte, o jogo e o futuro das
democracias europeias.
Por isso, escreveu-se nesse “Appel de Genève”, que à sombra de uma Europa em
construção visível, oficial e respeitável, esconde-se uma outra Europa mais discreta, menos
confessável, uma Europa de sombra mas que as autoridades políticas se revelam incapazes
de atacar por forma clara e eficaz. Ora “desse exercício novo de justiça depende o futuro da
democracia na Europa e a verdadeira garantia dos direitos do cidadão tem esse preço”.
Só que a Justiça é um bem escasso, não tem a elasticidade dos mercados na adaptação
da oferta à procura e vice-versa, não tem a resposta dos sistemas económicos.
Só que a Administração da Justiça esteve afastada, lamentavelmente, não direi já da
paixão mas até da previsibilidade que cabe à arte e ciência da governação (governar é
48
saber e saber é prever), alheada, ignorada ou desleixada das, aliás previsíveis, mudanças
do cidadão e da sociedade com os seus reflexos e impactos devastadores na velha e hoje
caótica máquina do aparelho de justiça que continua a gerir os processos como há quarenta
anos.
O Estado de Justiça neste decantado Estado de Direito é um estado de privação, de
provação. De explosivo e sufocante estrangulamento. Para administradores e
administrados da Justiça.
Tudo estaria dito se as palavras não tivessem mudado de sentido e os sentidos de
palavras.
Veremos, mais à frente, esta mudança e esta crise nos números, os quais, por vezes,
valem por milhares de palavras e nos aguçam os sentidos e iluminam as ideias.
Vejamos como a massificação do consumo com o sequente aumento do volume da sua
conflitualidade provocou a massificação da justiça de consumo e, vai daí e em larga
medida, a saturação dos tribunais e o estrangulamento na administração da justiça.
A sociedade de abundância, com as suas culturas de consumo, de espírito liberalizante,
desenvolvimentista e hedonista, vai de par com uma sociedade de consumidores em massa,
incitados a pedir emprestado, a comprar impulsiva e até compulsivamente a crédito
(compre agora e pague depois), pagando bens com expectativas. A força da publicidade,
do marketing e das novas tecnologias de informação ampliou o volume das necessidades e
potenciou os riscos de insatisfação. As vendas a crédito, os saldos, as grandes superfícies,
as compras à distância, os telemóveis, os cartões de plástico passaram a ser “o pão nosso de
cada dia”. 13
O direito de consumo instala-se, prolifera e ganha “foros de cidade”, pluriforme,
elástico, fragmentário, e o aumento da sua litigiosidade com acesso à justiça passa a
enxundear os tribunais.
Isto por um lado.
Ora, agora noutra sede, na do acesso à justiça (na dupla vertente do consumo de acesso à
justiça e na do acesso à justiça do consumo) esta explosão de direitos e obrigações
consumistas e do disparo da sua conflitualidade nos tribunais fê-los “rebentar pelas
costuras”.
Só que, como acima já se referiu, a justiça é um bem escasso na medida em que as leis
da oferta e da procura não têm nela o grau de adequação que revelam nas regras do
mercado e os custos marginais são praticamente indetermináveis. A administração da
justiça, como sistema de produção intelectual que é, agravada a sua morosidade e, até,
amiúde, a sua inércia pelo seu formalismo burocrático e tecnicista, não tem a mesma
elasticidade dos sistemas de produção económica e a sua capacidade de expansão não é
ilimitada. 14
Ali, a explosão, aqui a implosão.
13
14
- Cunha Rodrigues - As novas fronteiras dos problemas de consumo.
- Cunha Rodrigues - cit. estudo.
49
O que potencia, reforça e agrava o incumprimento do (sobre) endividamento porquanto
o conhecimento, notório e público, da lentidão, quando não da paralização, da justiça
conduz ao laxismo, à indiferença, à insensibilidade para os deveres contratuais do
cumprimento pontual e à sua dilação para os melhores dias das Kalendas ou de São nunca.
Isto posto:
Se, por um lado, é certo que cresceu a chamada conflitualidade normal, resultante
também de uma democratização traduzida numa maior tutela e consciencialização dos
direitos de cada um, não só dos economicamente capazes para tanto como também dos
carenciados através do apoio judiciário, por outro lado, aumentou em avalanche o número
de acções ligadas ao crédito e ao consumo.
Começou por se fazer sentir um acréscimo vultuoso de acções propostas pelas
seguradoras e pelos bancos para tudo se ampliar enormemente com as acções propostas
pelas empresas de leasing, de telecomunicações e em geral pelas empresas ligadas à
concessão de crédito ao consumo de tal modo que elas passaram a colonizar os tribunais,
passando estes a funcionar, essencialmente, ao seu serviço como meros agentes cobradores
dos seus créditos e causando, do mesmo passo, estrangulamentos do sistema. 15
Exemplo capital, aqui em Lisboa, onde hoje vim:
No Tribunal Cível de Lisboa, em que exercem funções 74 juízes (51 efectivos e 23
auxiliares), a média de processos distribuídos por cada secção, não incluindo as acções
sumaríssimas, subiu de 392 em 1990 para 1151 em 1997. Entre 1990 e meados de 1992,
em termos de pendência real, a média de processos por juiz rondava os 900, sendo
actualmente superior a 2.500 e havendo casos de 3.500 e 4000. A causa do litígio decorre,
na maioria dos casos, do incumprimento da obrigação pelo devedor, que a contraíu num
ambiente de concessão indiscriminada de crédito, sem averiguação da solvabilidade
daqueles a quem é concedido. As regras processuais de competência, privilegiando o
domicílio do credor, que neste casos são invariavelmente poderosas sociedades comerciais,
conduzem à concentração destas acções nos juízos cíveis e no tribunal de pequena instância
cível, convertendo os tribunais em “órgãos que são meras extensões dessas empresas”
(vd., preâmbulo do DL n.º 269/98, de 1 de Set.). A título de exemplo, apenas no tribunal de
pequena instância cível, quase sempre para cumprimento de obrigações pecuniárias até 250
contos, deram entrada nos anos de 1995, 1996 e 1997, respectivamente 46.760, 56.667 e
88.523 acções, podendo adiantar-se que o ritmo continua a crescer no ano em curso. 16
Continuando.
Das publicações “Estatísticas da Justiça”, 1995 e 1997, do Ministério da Justiça,
extraíram-se alguns números para ajudar a caracterizar a situação dos tribunais em
Portugal.
15
16
- Moreira Alves - considerações sobre os factores da lentidão da justiça, de 22.4.99.
- Ilídio Sacarrão Martins - estudo-parecer ao CSM em 12.10.98.
50
Para não sobrecarregar este enunciado restringe-se a indicação aos tribunais judiciais de
primeira instância, dado corresponderem a 89,86 por cento dos tribunais.
Em 1 de Janeiro de 1997 nestes tribunais judiciais de primeira instância estavam
pendentes 587.326 processos, tendo nesse ano entrado 185.210 e sido findos 348.450.
Assim, só nesse ano de 1997, verificou-se um atraso de 136.760 processos, com
agravamento para 724.086 do número de processos pendentes de 1997 para 1998.
Desde 1991 o número de processos pendentes em 1 de Janeiro do respectivo ano sofreu
a seguinte evolução:
1991 - 260.461; 1992 - 252.727; 1993 - 279.634; 1994 - 330.788; 1995 - 402.465; 1996
- 483.134; 1997 - 587.326. E em 31 de Dezembro de 1997, como se refere acima, estavam
pendentes 724.086 processos. Assim, em 8 anos, o número de processos pendentes sofreu
um agravamento de 260.461 para 724.086, o que corresponde a uma acumulação média
anual de 66.232 processos. Neste período o número de processos pendentes quase que
triplicou, passando de 260.461 em 1.1.91 para 724.086 em 31.12.97.
A acumulação seria maior se as amnistias de 1991 (Lei 23/91 de 4.7) de 1995 (Lei 15/94
de 11.5) não tivessem feito findar prematuramente muitos processos penais.
No mesmo período, o número de juízes de direito de primeira instância passou de 923
no ano de 1991 para cerca de 1210 em 1997, havendo que considerar que destes um
número estimável em 70 não estava em funções judiciais.
Assim, enquanto de 1991 para o fim de 1997 o número de processos pendentes quase
triplicou, o número de juízes aumentou apenas de 28,5 por cento. Só que esta não será, só
por si, uma das razões principais do intolerável atraso dos processos em muitos dos
tribunais. A resposta não pode evidentemente passar apenas pelo aumento de quadros sob
pena de se desvirtuar completamente a administração da justiça e transformar os tribunais
em simples repartições cada vez mais burocratizadas.
Em 1991 cada juiz de primeira instância tinha pendentes em 1 de Janeiro em média 282
processos. Em 31.12.97 cada juiz de primeira instância tinha pendentes em média 608
processos. Se em 1991 os juízes não foram capazes de dar andamento normal aos 282
processos que em média cada um então tinha pendentes, como era possível que em 1998
pudessem dar normal andamento aos 608 processos que em média cada um tinha
pendentes?
Há pois que esperar que o número de acções a entrar em juízo aumente em cada ano e
não que estabilize ou diminua.
O excelente, monumental, laborioso e rigoroso trabalho de investigação concluído em
1996 pelo Prof. Boaventura de Sousa Santos com a sua equipa e dado à estampa sob o
título “Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – O Caso português” é, nos aspectos
focados, concludente e conclusivo.
Como segue e se extrata.
“Verifica-se uma grande concentração da actividade judicial num número relativamente
restrito de tipos de acções findas: são acções de dívidas. Este peso tem-se vindo a acentuar:
51
em 1942 as acções de dívidas representavam 38,5 das acções declarativas cíveis e em 1993
representavam 65,3%.
A explosão da litigação, que ocorre entre nós uma década mais tarde que nos países
centrais – ou seja, na década de oitenta, com forte acentuação no final da década, deve-se
quase exclusivamente a um único tipo de acções, as acções de dívidas e os seus autores são
basicamente litigantes frequentes.”
“Correspondem à quebra de compromissos contratuais decorrentes de interacções
económicas.”
“Nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, onde se concentram 64,6% das acções
declarativas findas, as acções cujo autor foi uma pessoa colectiva representavam
respectivamente 68 e 66% do total. Isto significa que, no sistema judicial português, os
indivíduos apenas dominam como réus. Como autores, dominam as pessoas colectivas,
basicamente sociedades comerciais: bancos, companhias de seguros e empresas de crédito
ao consumo.”
“Acresce que um grupo restrito de empresas, e quase sempre as mesmas, são
responsáveis pela grande maioria das acções. O sistema judicial cível, sobretudo em Lisboa
e Porto, está “colonizado” pela cobrança de dívidas e, de facto, ao serviço de apenas
algumas empresas, designadamente as grandes empresas do sector financeiro.
A irrelevância social deste tipo de micro-litigação é sublinhada pelo valor diminuto das
acções: acções de valor igual ou inferior a 250 contos são, em 1993, 51,3% do total das
acções declarativas findas e 68,2% do total das acções de dívidas. O baixo valor das
acções, combinado com o facto de estas corresponderem basicamente a um só tipo de
litígio (cobrança de dívidas), é um poderoso facto de rotinização e de trivialização da
justiça portuguesa, colocando-a ao serviço da conflitualidade económica de pequena
dimensão. Deve, contudo, notar-se que têm aumentado ultimamente as acções cíveis
(incluindo acções de dívidas) superiores a 5.000 contos, o que pode indicar uma crescente
judicialização da média e grande conflitualidade económica.
Por outro lado, as acções de dívida que dominam em absoluto a litigação cível são
acções, em geral, sem qualquer complexidade, de prova fácil, raramente contestadas pelo
réu, e resolvem-se, por isso, antes do julgamento, com a condenação do réu no pedido.
O facto de os nossos tribunais estarem dominados por litígios de baixa intensidade
reforça a sua vulnerabilidade à rotinização, à trivialização, à burocratização e, em última
instância, à irrelevância social.
É o caso das empresas que usam as acções de dívidas não necessariamente para
recuperar os seus créditos (objectivo declarado) mas antes para obter deduções no
rendimento colectável (objectivo real). Neste caso, a actividade judicial é posta ao serviço
de uma estratégia fiscal.
Acções de dívidas, dado o modo como está organizada institucionalmente a procura da
tutela judicial (os serviços de contencioso, os advogados avençados), a relação
custo/benefício no accionamento do tribunal é muito favorável ao mobilizador. Ou seja, a
eficiência neste domínio traduz-se numa enorme acessibilidade do sistema judicial e, de tal
52
modo, que na litigiosidade a que diz respeito a discrepância entre procura potencial e
procura efectiva é muito pequena.
Fora das zonas altamente funcionais, a acessibilidade dos tribunais é, em geral, bastante
baixa.
As experiências com os tribunais deixam em geral um gosto amargo de insatisfação e,
como também detectámos no inquérito, predominam as visões negativas da justiça.
O outro indicador da eficiência é a morosidade. Em 1993, isto sucedeu com: 60% das
acções relativas a acidentes de viação; 54,9% das acções de despejo rústico; 58,6% das
acções de responsabilidade por outros factos ilícitos; 57,6% das acções de propriedade e
posse; 61,3% das acções de filiação; 53,2% das acções de sucessões; 48,3% dos despejos
urbanos. Estes tipos de acções são também aqueles em que percentualmente maior número
de acções duraram mais de 5 anos. Como a grande maioria destes tipos de acções são
aquelas em que os cidadãos mais mobilizam os tribunais, não surpreende que seja a partir
da experiência social que estas percentagens reflectem que se constrói a percepção e a
avaliação da morosidade dos tribunais.
Em termos gerais, a justiça portuguesa parece ser uma das mais morosas da Europa.
Através da análise minuciosa de processos e de secções judiciais identificámos um vasto
elenco de causas da morosidade: más condições e ambiente de trabalho, irracionalidade na
distribuição de magistrados e de funcionários judiciais, impreparação ou negligência de
magistrados e de funcionários, volume de trabalho, recursos a peritos e outros técnicos cujo
trabalho não é controlado pelos tribunais, cumprimento das cartas precatórias e rogatórias.
Verificámos ainda que estas causas actuam sistematicamente, em feedback, e de tal maneira
que uma intervenção sobre uma ou algumas delas pode ter um impacto negativo nas
restantes, produzindo efeitos de transferência, potenciação, acumulação e desculpabilização
susceptíveis de agravar ainda mais a morosidade.”
“Quanto aos cidadãos, a procura da tutela judicial é mais dispersa mas é mesmo assim
selectiva e de nível baixo. Concentra-se nas acções de divórcio e demais acções referentes
ao espaço doméstico, nas acções de despejo, nas acções de responsabilidade civil por
acidentes de viação e nas acções de direitos de propriedade. Estão ausentes acções que
pudessem indiciar uma procura intensiva da garantia judicial dos direitos, mesmo dos
direitos da primeira geração – o direito à privacidade, ao direito de associação e ao direito à
informação – para não falar dos direitos da segunda e da terceira geração, do direito à
educação, à saúde e à segurança social, aos direitos de protecção do consumo, do meio
ambiente e da qualidade de vida.
O juízo de adequação está intimamente relacionado com o juízo de acessibilidade, ou
seja, com uma análise custo/benefício.”
Desempenhos muito desiguais por partes dos magistrados, por vezes em funções no
mesmo tribunal. As desigualdades não têm outro motivo senão a diferente diligência ou
competência dos magistrados ou dos funcionários em causa.
Mediatizados, os magistrados emergem da sombra apagada e discreta dos seu silêncio
antigo e passam, alguns, a tomar-se por “estrelas” (“stars”) num protagonismo espectacular
53
do seu “ego” agora inflacionado face aos olhos das câmaras. E, ainda mais perturbante é
que, a mais das vezes, são projectados pelos “media” como caçadores de cabeças... ...
A sua porventura excessiva juventude, com a decorrente impreparação, inexperiência e
carência de traquejo e “senso comum”, dito “bom senso”, leva-os, alguns deles, perante o
ritmo galopante e enxundioso dos processos, a uma “fuga pr'a frente”, a uma lógica
determinante de pôr fim às acções, de pôr o serviço em dia, de “matar os processos”, custe
o que custar. Vai daí que se debrucem mais nos processos de solução mais simples e
expedita, como os das ditas cobranças, aliviando a secretária, e remetendo para melhores
dias a solução das questões mais complexas embora de maior relevo na vida dos cidadãos e
da própria sociedade. Vai daí, também, que a humildade, paciente e reflexiva, da sabedoria
de quem tem de decidir (trancher) sobre dúvidas, máscaras e perplexidades venha dar,
quantas vezes, assento à sobranceria, ao olimpismo, à auto-suficiência, quando não à
arrogância como modo e expediente de tratar e despachar.
(Digo-o com as reservas de quem não tem a prática da experiência como um atributo
decisório primeiro pois, parafraseando Brito Camacho, se assim fosse, o burro que anda
toda a vida à volta da nora teria inventado a geometria... ...)
Ao fim e ao cabo, muito, depressa e bem não há quem. “Mea culpa”. Perdoem-me, por
quem são, não ter tido tempo nem talento para fazer mais curto e melhor.
54
Evolução do Crédito Mal Parado nas Empresas Não Financeiras
Dr. Luís Faria*
Orador
As expectativas que o tema naturalmente suscita, poderão não ser aqui plenamente
correspondidas.
É que são muito escassos os dados estatísticos disponíveis e relevantes que permitam
fundamentar uma análise mais rigorosa do assunto.1
Aqui identificaremos o crédito mal-parado como o crédito concedido pelo sistema
bancário que, tendo entrado em mora, passou à categoria de crédito de cobrança
duvidosa.
Seria interessante relacionar o crédito de cobrança duvidosa concedido pelo sistema
bancário com as dívidas de clientes às empresas, o que poderia abrir pistas quanto à
responsabilidade do primeiro sobre o segundo.
Num contexto em que o sistema judicial ou funciona mal ou não funciona,
constatação que, tendo-se tornado recorrente, nem por isso inspirou quaisquer
melhorias, talvez porque o próprio Estado dispõe de meios poderosos para garantir as
suas receitas, as empresas ficam colocadas perante gravíssimos problemas financeiros,
resultantes de créditos não resolvidos num mercado em que se generalizou a
impunidade do incumprimento.
Passemos aos dados disponíveis. Da sua leitura resulta uma primeira constatação:
nos três últimos anos o crédito concedido às empresas não financeiras registou um
crescimento deveras significativo (cerca de 50 por cento), passando de 5.230 milhões de
contos em Dezembro de 1996 para 7.833 milhões no final do mesmo mês de 1998. Já
em Fevereiro deste ano atingiu praticamente os oito mil milhões de contos.
Ao longo daquele período, o crédito de cobrança duvidosa diminuiu em percentagem
do crédito total concedido. Representava 6,4 por cento da totalidade do crédito no final
de 1997 (tomando como referência os saldos em final de período), enquanto já só
correspondia a 4,7 por cento daquele crédito em Dezembro de 1998, sofrendo uma nova
redução de 0,2 pontos percentuais nos dois primeiros meses do corrente ano.
Aparentemente, esta evolução positiva decorre da baixa sustentada das taxas de juro
e, em consequência, da maior capacidade que as empresas têm para poder fazer face aos
compromissos financeiros. Coincide também com a fase ascendente do ciclo
económico, expressa nas boas taxas de crescimento da economia ao longo do período
em análise.
O produto interno que registara, em 1995, uma taxa de crescimento de 2,4 por cento,
atingiu em 1996 um crescimento de 3,6 por cento, em 1997 de quatro por cento e em
*
Secretário Geral da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal – CCP.
Não posso deixar de expressar publicamente o meu agradecimento à Central de Balanços do BPA e, em
particular, ao Sr. Dr. António Almeida, sem cujo auxílio este trabalho seria de todo inviável.
1
55
1998 acima deste último valor. Também a procura interna registou uma evolução
extremamente positiva ao longo do período.
Numa análise por sectores deve referir-se que o comércio (englobando o comércio
por grosso e a retalho e a reparação de veículos e outros bens) é o principal cliente
do sistema bancário. O crédito concedido ao sector no final de Dezembro atingiu os
2.028 milhões de contos.
Seguem-se a indústria transformadora com 1.858 milhões de contos de crédito
concedido naquela data, a construção, com 1.321 milhões de contos e o sector dos
serviços e imobiliário com 1.314 milhões de contos.
Estas áreas de negócios absorvem assim mais de 80 por cento do crédito total
concedido às empresas não financeiras, e será nelas que centraremos a nossa atenção.
É a indústria transformadora o sector que apresenta maior volume de crédito de
cobrança duvidosa, tendo superado, no final de 1998, os 147 milhões de contos, valor
que corresponde a oito por cento do crédito concedido e se situa muito acima do peso
do mal-parado sobre o crédito total concedido, que se fixa em 4,7 por cento. Mesmo
assim é de referir que o peso do crédito de cobrança duvidosa sobre o crédito total
diminuiu no sector, atendendo a que em 1997 atingia praticamente os 10 por cento.
Particularmente significativa é a redução do crédito mal-parado na construção. O seu
peso sobre o crédito concedido diminuiu de 7,8 por cento em 1997 para 4,1 por cento
em 1998, o que estará relacionado com o período de crescimento que o sector
atravessou, em linha com o crescimento da economia.
O sector dos serviços é o que apresenta menor mora. Em 1997, dos cerca de mil
milhões de contos de crédito atribuído apenas pouco mais de 30 milhões, ou seja, 2,9
por cento, era considerado de cobrança duvidosa. Em 1998 apenas dois por cento
poderia ser considerado mal-parado.
Quanto ao comércio, o sector que apresenta maior endividamento, do saldo de 1.670
milhões de contos de crédito concedido registado no final de 1998, cerca de 5,6 por
cento era considerado de cobrança duvidosa. A capacidade das empresas do sector para
corresponderem aos compromissos nos prazos de vencimento melhorou no último ano,
passando o mal-parado a corresponder a apenas 4,4 por cento do crédito concedido.
A leitura destes valores apenas nos permite concluir que o crescimento da economia
a bom ritmo, acompanhado por uma baixa sustentada das taxas de juro, levaram as
empresas a recorrer mais ao crédito e a mostrar maior facilidade para honrar os seus
compromissos.
Mais importante, no entanto, é examinar as finalidades do crédito concedido e as
suas maturidades, bem como conhecer a sua partição pelo tecido empresarial em função
da dimensão dos activos e de outros indicadores sobre os quais assenta a análise de
risco.
Escasseiam, como indicámos, elementos que permitam uma análise mais fina da
matéria. Procuraremos apesar de tudo, formular algumas hipóteses de explicação.
56
Apenas uma pequena parcela do crédito concedido às empresas é orientado para o
investimento, finalidade que usualmente coincide com maturidades mais longas e com
taxas de juro mais baixas.
No período em análise (1996-1999) o crédito ao investimento representou entre 24 e
25 por cento do crédito total concedido pelo sistema bancário às empresas. A
esmagadora maioria desse crédito destinou-se a «outros fins» não especificados.
É no sector dos serviços e do imobiliário que o peso do crédito afecto ao
investimento é maior: mais de 35 por cento em 1997 e mais de 34 por cento em 1998.
Segue-se a construção. Dos cerca de 1.300 milhões de contos de crédito concedido no
último ano, 342 milhões de contos, ou seja, 26 por cento, foi afecto ao investimento.
Os sectores da indústria transformadora e do comércio apresentam praticamente a
mesma situação no que respeita ao peso do investimento no conjunto do crédito (cerca
de 21 por cento).
Verifica-se mesmo uma tendência para uma ligeira perda de importância do
investimento no conjunto do crédito contratado.
Apesar da fraca presença do investimento na orientação do crédito, acentua-se
ligeiramente a tendência para as empresas recorrerem mais ao financiamento a médio e
longo prazo.
Com efeito, ainda que mais de 60 por cento das empresas apresentem rácios de
cobertura do investimento superiores à unidade, o seu número vem decrescendo
sensivelmente, com excepção do sector do comércio, com mais de 70 por cento das
empresas a sustentarem o investimento com recursos próprios.
Interessará pois associar a esta tendência uma outra que tem a ver com o facto de
serem as empresas que apresentam maior crescimento de produção as que mais
progridem em perfil de risco. As taxas de crescimento mais elevadas são registadas por
um número reduzido de empresas e são também poucas as empresas que concentram o
volume total de investimento.
As dívidas às instituições de crédito, tendo aumentado nos três últimos anos o seu
peso no passivo das empresas, como o comprova o aumento do crédito concedido em
termos reais, registaram taxas de crescimento desiguais consoante as maturidades.
Isto significa que o recurso ao crédito a médio e longo prazo, tendo embora
aumentado, cresceu abaixo do recurso ao crédito a curto prazo.
É na industria transformadora que o peso das dívidas de curto prazo sobre o total do
balanço tem uma expressão mais significativa (6%, em média, em 1998).
Foi também neste sector, logo seguido pelo do comércio, que se registou um maior
crescimento dos empréstimos de curto prazo.
Paralelamente é sintomático verificar que em qualquer destes sectores o peso do
passivo a curto prazo sobre o total do balanço evoluiu naquele período de forma
consistente.
57
O que quer dizer que aumentou a dependência ao sistema bancário e emagreceu o
recurso a outras fontes de financiamento tradicionalmente importantes como os
fornecedores.
Assim, frisamos, se o peso do passivo de curto prazo sobre o total do balanço se
reduziu em todos os sectores, o peso do endividamento bancário de curto prazo
aumentou muito acima do ritmo de crescimento do quociente entre o endividamento de
médio e longo prazo e o total do valor patrimonial das empresas.
Na indústria transformadora o peso do endividamento de curto prazo sobre o total do
balanço passou de 3,3% em 1996 para 6% em 1998, ou seja, praticamente duplicou. Já o
rácio que confronta o endividamento a médio e longo prazo como o total do balanço
passou de 12,4 para 15,2% um crescimento quase 4 vezes inferior.
Também no comércio, construção e serviços o peso do endividamento a curto prazo
sobre o total do balanço aumentou em mais de 50%, também muito acima da expressão
sobre o total do passivo dos empréstimos contratados a prazos mais longos.
Vão desculpar-me a aridez destes dados, mas parece-me indispensável tê-los
presentes para daí retirar algumas ilações:
– desde logo, as empresas, de acordo com os critérios de avaliação dos bancos,
que tomam em conta um conjunto de indicadores, com relevo para a autonomia
financeira, encontram-se mais expostas ao risco e, em consequência, a taxas de
juro mais elevadas, em resultado do aumento do peso de endividamento de
curto prazo sobre o total do balanço.
– Em segundo lugar, encontrando-se mais dependentes do financiamento
bancário, ficam mais vulneráveis à subida das taxas de juro, até porque tudo
leva a crer que os seus resultados estão cada vez mais apoiados na evolução
dos encargos financeiros.
– Estes dois factores conjugados, exposição ao risco e dependência de recursos
alheios, poderão conduzir, por um lado, à orientação para investimentos cujas
rentabilidade compensem o prémio de risco e, por conseguinte, também eles
investimentos implicando maior risco.
Por outra parte, os encargos suportados pelo financiamento de curto prazo são
naturalmente superiores aos resultantes de empréstimos com prazos mais longos, o que
também acaba por piorar a situação de risco.
Tudo indica pois que, numa fase menos favorável do ciclo económico e face a um
cenário, já presente, de intensificação da concorrência decorrente do processo de
integração na União Económica e Monetária, muitas empresas poderão sentir sérias
dificuldades em cumprir os seus compromissos.
Aqui chegados, não podemos deixar de chamar a atenção para a necessidade de
remover alguns constrangimentos de natureza estrutural que afectam o financiamento
das empresas.
58
Estes têm a ver, em larga medida, com a pressão fiscal e sobretudo com a pressão
fiscal sobre a gestão financeira de tesouraria, o que, quanto a nós, explica em boa parte
o crescente recurso ao endividamento de curto prazo.
Um dos problemas que se colocam às empresas está relacionado com o desfasamento
entre os prazos médios de pagamento/recebimento (PMP) e os prazos de liquidação das
obrigações fiscais e para-fiscais.
É extremamente difícil conciliar a liquidação do IVA a 45 dias com prazos de
recebimento de clientes que excedem os 60 dias. Não se pode devolver o que ainda se
não recebeu!
A solução passará por disciplinar os prazos médios de pagamento e para tanto
contribuirá uma Directiva comunitária em vias de transposição para o nosso normativo
jurídico. Mesmo assim subsistirão duas questões por resolver: uma prende-se com a
celeridade e o funcionamento do sistema judicial; a outra com a própria natureza da
relação comercial. Já hoje a aplicação das taxas de juro de mora legais podem quebrar
uma relação comercial e prejudicar deste modo o volume de produção.
Uma das formas de libertar as empresas do sufoco quotidiano de tesouraria
passaria por fazer coincidir a liquidação do IVA com a efectiva cobrança da
factura que o origina, pelo menos para as empresas de menor dimensão, que
apresentam uma estrutura financeira mais vulnerável e se encontram mais
expostas ao risco.
Também os custos para-fiscais sobre a mão-de-obra (34,75 por cento do custo básico
do factor trabalho) dificultam muito a gestão financeira das empresas. Por isso mesmo o
Conselho Europeu propôs uma Directiva que abre a possibilidade de aplicação, por um
período experimental, de uma taxa reduzida de IVA aos serviços com grande
intensidade do factor trabalho.
Estamos convencidos que o incumprimento das obrigações fiscais geradas pela
pressão sobre as tesourarias agrava ainda mais a saúde financeira das empresas e
coloca-as num círculo infernal de endividamento.
A taxa de juro de mora encontra-se, pelo menos, tomando como boa uma taxa de juro
de oito por cento para operações de curto prazo, quatro pontos percentuais acima do
mercado bancário. Ao que acresce uma taxa de juros compensatórios de sete por cento e
coimas por atraso de entrega de declarações fiscais, sem dolo, que podem passar dos
850 contos.
O reforço dos recursos próprios ou do investimento através de suprimentos dos
sócios não escapa à tributação, o que condiciona o autofinanciamento.
Assim, a descida das taxas de juro por atraso no cumprimento das obrigações
fiscais parece também constituir uma condição para melhorar quer a estrutura
financeira quer o perfil de risco das empresas, os dois factores que decidem afinal
as suas possibilidades de pagar nos respectivos vencimentos o endividamento
contraído.
59
Em resumo, alguns sinais positivos relacionados com o maior recurso das empresas
ao crédito bancário, particularmente importante nos prazos mais longos e decorrentes da
descida das taxas de juro, da maior competitividade do sistema bancário e do ciclo
económico, bem como com a sua maior capacidade para cumprir os compromissos
assumidos não afasta algumas preocupações. Estas virão ao de cima quando a fase do
ciclo económico for outra e quando também forem mais evidentes as debilidades e
constrangimentos que afectam a sua estrutura financeira.
60
Aspectos Sociais
61
A Concentração e a Selectividade da Litigância
Dr. Armindo Ribeiro Mendes*
Orador
I. Introdução ao Tema
1. O Conselho Económico e Social, “órgão de consulta e concertação no domínio das
políticas económica e social” – tal como é definido pelo artigo 92.º, n.º 1, de
Constituição da República – tomou o encargo de convocar o tema da Justiça para debate
no presente Colóquio.
Coube-me a mim abordar o tema da concentração e da selectividade da litigância.
Por opção própria, circunscreverei o tema ao processo civil, atendendo a que muitos
outros oradores terão ocasião de abordar aspectos ligados à justiça laboral, à justiça
criminal, à organização judiciária e ao comportamento das profissões forenses.
Naturalmente que não se espera neste contexto uma descrição de instituições
processuais, uma análise dogmática do processo civil, uma inventariação exaustiva de
soluções e correntes jurisprudenciais na aplicação forense dos institutos de direito civil
ou de direito comercial.
No domínio das políticas económica e social, a Justiça em Portugal há-de ser
encarada no mundo do “ser” e não no mundo do “dever ser”, para recorrer às velhas
categorias Kantianas que a Escola Sudocidental Alemã da Filosofia do Direito trouxe no
início do século para a formação universitária dos juristas. Este mundo do “ser” é bem
conhecido dos sociólogos e dos economistas que se debruçam sobre a actividade
judiciária, mas é também familiar aos chefes de empresas que se confrontam
diariamente com os aspectos idiossincráticos do mundo judiciário e, necessariamente,
aos profissionais do foro que convivem intimamente com o arrastar dos processos
judiciais, com as particularidades dos articulados, requerimentos, decisões e recursos, e
com as dificuldades dos processos de execução, de recuperação de empresas ou
falimentares.
2. Os estudos da litigância como fenómeno social têm sido cultivados nos últimos
dois séculos pelos Historiadores, em especial os Historiadores do Direito
Como refere ANTÓNIO HESPANHA, esses estudos históricos são, por regra,
conduzidos a nível local, em certas comunidades menores (senhorios, cidades, etc.),
sendo possível, através da análise dos documentos forenses guardados em arquivos
históricos, “responder a questões genéricas de sociologia jurídica e judiciária, nível de
litigância, sua distribuição por temas, repartição dos litigantes por estratos sociais ou
por proveniência regional, duração e custo do processo, grau de participação de
*
Advogado.
62
letrados, etc. Pela consideração de todos estes elementos, podem avançar os estudos
relativos à génese da litigância e seus factores”1.
3. A perspectiva micro-histórica contribui seguramente para substanciar as intuições
dos sociólogos do Direito e dos observadores sociais. Recorrendo ainda ao testemunho
de ANTÓNIO HESPANHA, bem pode invocar-se o conhecimento “do mundo aldeão e
camponês dos anos sessenta deste século” para a consciencialização de que a vida
política e jurídica oficial tinha – e, porventura, ainda tem – um indesmentível “carácter
urbano e letrado”: por isso, este Historiador recorda a sua experiência de vida numa
zona rural do litoral centro de Portugal, nos anos cinquenta e sessenta, para concluir que
“a presença, aí, do direito estadual era mínima: os contratos (mesmo sobre imóveis)
eram geralmente verbais, as relações familiares e laborais repousavam em usos locais e
os conflitos aí surgidos eram resolvidos dentro da comunidade, a pequena criminalidade
era reprimida pelos próprios ofendidos ou pelo “regedor”, a grande criminalidade não
existia. As intervenções extra-comunitárias reduziam-se a uns quantos actos fiscais e de
polícia (pagamento de impostos, “sortes” militares, manifesto dos vinhos, licença da
bicicleta e, às vezes, o licenciamento das obras)”2. Não se estava, por isso, tão longe, no
Portugal salazarista, das sociedades dualistas legadas pelo Ancien Régime, em que só
uma parte, francamente minoritária, vivia “à sombra do direito escrito oficial, que a lei
começa a hegemonizar a partir da luta iluminista contra o direito doutrinal-judiciário,
hegemonia ainda reforçada com a codificação dos finais do século XVIII, e inícios do
XIX”3, ao passo que a grande maioria estava imune a esse direito legal e oficial.
4. Parece-me evidente que nos últimos vinte e cinco anos da nossa História
Contemporânea, o País tem sido atraído crescentemente pelo modelo capitalista
avançado que é adoptado não só pelos Estados Unidos da América e pelo Japão, como
pelos países mais desenvolvidos da Europa Comunitária.
AUGUSTINA BESSA LUÍS, com o seu olhar penetrante sobre as comunidades
rurais do Norte litoral, mostra em alguns dos seus romances como as experiências da
emigração e da guerra colonial, aliadas à popularização da televisão, contribuíram para
diminuir os particularismos dessas comunidades e para aproximá-las das modas
uniformizadoras que já se haviam instalado nas grandes cidades.
Ora, naturalmente, no final do século XX, a litigância dos portuguesas acompanha a
evolução económica e social, o crescimento económico, a expansão do crédito e do
consumo, criando oportunidades de emprego para juristas que procuram o acesso à
Magistratura, ou que iniciam a profissão liberal por excelência que é a advocacia. Mas
também as empresas de grande ou média dimensão recrutam juristas para os seus
contenciosos, aparecendo-nos os advogados de empresa, empregados que asseguram a
representação judiciária da entidade patronal.
1
Justiça e Litigiosidade, História e Prospectiva, Lisboa, sem data, pág. 44.
Justiça, cit., pág. 17.
3
Justiça, cit. Pág. 17.
2
63
Assim, como a boa moeda expulsa a má moeda, também o “bom” direito legislado
expulsa os antigos usos e as normas consuetudinárias, o “mau” direito dos tempos
antigos, pré-capitalistas e rurais. Não há mais lugar à intervenção de autoridades mais
ou menos fácticas, locais, como o velho regedor, o cabo da GNR ou o contemporâneo
presidente da junta de freguesia, não obstante periodicamente os textos constitucionais e
legais reafirmarem a possibilidade de constituição de julgados de paz.
Os tribunais estaduais, empanturrados de processos, aguardam a mirífica reforma que
os faça emagrecer e voltar às dimensões anteriores a 25 de Abril de 1974.
A dura realidade, porém, impede que os tempos voltem para trás.
II. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português
5. Há apenas três anos, foi publicado em livro o primeiro grande estudo de conjunto
sobre os tribunais portugueses. Sob a égide de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS,
com o patrocínio do Ministério da Justiça, foi levada a cabo uma investigação detalhada
sobre a evolução dos tribunais portugueses, os paradigmas organizacionais, a evolução
quantitativa da litigância, a análise comportamental dos cidadãos face à justiça cível e
criminal, as representações sociais sobre o estatuto e as tarefas cometidas às profissões
forenses.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES,
JOÃO PEDROSA e PEDRO LOPES FERREIRA analisam com rigor a evolução dos
padrões de litigação nos países semi-periféricos e nos países evoluídos de capitalismo
avançado, pondo em destaque que não só “a luta pela independência do sistema e do
poder judicial é sempre, apesar das variações infinitas, uma luta precária na medida em
que ocorre no contexto de algumas dependências robustas do sistema judicial em
relação ao Executivo e ao Legislativo”, como também a luta pela independência do
poder judicial depende sempre do desempenho efectivo dos tribunais, o qual “permite
uma enorme variação interna e só quando ele se traduz em exercícios susceptíveis de
ampliar a visibilidade social ou o protagonismo político para além dos limites
convencionados e convencionais é que a independência judicial se transforma numa luta
política de primeira grandeza”4
6. Como atrás se deixou dito, a Justiça cível constitui, de forma restrita, o objecto do
nosso tema, pelo que não nos situaremos no plano dos “macro-factores” que
caracterizam o nosso sistema judiciário, como um todo, face a outros sistemas
judiciários de países próximos.
É antes no plano dos “micro-factores”, de natureza económica e sociológica, que
importa ancorar as nossas observações.
A procura efectiva do sistema judicial cível é, como põem em destaque os
investigadores que levaram a cabo o estudo referido, determinado pelo número de
4
Boaventura de Sousa Santos e outros, Os Tribunais Nas Sociedades Contemporâneas: O Caso
Português, Lisboa, 1996, pág. 42.
64
processos entrados num certo período temporal, ao passo que a oferta do sistema
judiciário, enquanto indicador da capacidade de resposta do sistema, se afere pelo
número de processos findos em certo período temporal (um ano; uma década, etc.). A
pendência processual constitui o índice da ineficiência do sistema, isto é, da procura da
justiça ainda não satisfeita.
E neste domínio analítico que poderemos contrapor, na litigação das empresas – que
são, em regra, litigantes repetitivos (repeat players) – os fenómenos de selectividade e
de concentração. No que toca à litigação dos particulares, em regra, não se põem
problemas de concentração de litigância, visto estarmos na presença de litigantes
esporádicos ou ocasionais (one shot players).
7. No estudo levado a cabo pela equipa de investigação liderada por
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, no que toca à litigação cível, analisa-se um
período de cinquenta anos (1942-1993) relativamente a quatro tipos de processos: as
acções declarativas, as acções executivas, os processos de liquidação de patrimónios e
inventários.
Destes quatro tipos de processo, importam-nos, no essencial, os dois primeiros. Nas
acções declarativas, em 1942 haviam terminado 15041 processos, representando 36,9%
do total das acções cíveis. Em 1993, o número de acções declarativas findas quase que
decuplicara (139.212, representando 56,6% do total). Em contrapartida, no que toca as
acções executivas findas, a variação percentual não foi tão acentuada (em 1942, as
acções executivas representavam 27,9% do total; em 1993, 34,7%).
A análise desta longa série de valores estatísticos mostra que é a partir de 1981 que
tem lugar o crescimento mais acentuado de litigação cível no nosso País. Todavia, como
acentuam os investigadores no estudo citado, verifica-se que, “apesar das variações
quantitativas acentuadas de algumas acções, a composição básica da litigação cível é
sensivelmente a mesma ao longo dos últimos 50 anos” 5.
Em 1993, as acções de responsabilidade civil contratual por dívidas, de natureza
declarativa, “são de longe a principal acção declarativa, representando 65,2% do total
das acções declarativas findas”6. Aí se encontram as dívidas civis e comerciais, os
preços das prestações de serviços, os prémios de seguros e os débitos a hospitais
públicos.
8. Pode dizer-se que a evolução subsequente – tanto quanto se pode retirar das
Estatísticas de Justiça entretanto publicadas e que abrangem já o ano de 1997 – continua
a preencher o mesmo padrão.
As acções declarativas findas que têm por objecto as dívidas civis e comerciais são
de longe o conjunto mais numeroso e em ascensão acentuada: em 1992, atingiam
80.125, em 1993 cresciam 15% (90744), em 1994 passavam para 95880, em 1995
ultrapassavam a “barreira psicológica” de 100.000 (103.794), subindo no ano
subsequente para 117.647, para passarem a 121.380 em 1997 (último número
5
Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas, cit., pág. 127.
65
disponível). Comparando esta evolução com o número de processos de divórcio e de
separação de bens, logo ressalta que estes últimos se situam na faixa dos 15.000, tendo
o número de 1997 ficado abaixo do de 1994 (14.003 contra 16.420). A mesma
evolução, praticamente a estagnação com ligeira tendência decrescente, se verifica nas
acções de despejo de arrendamentos urbanos (7411 em 1992; 7188 de acções de despejo
findas em 1997).
No domínio das acções executivas, avultam dois grupos: o das dívidas civis e
comerciais, por um lado, o das execuções por custas do outro. Simplesmente, quanto ao
primeiro grupo assiste-se a um acentuado crescimento (30473 acções executivas findas
em 1992: 53.551 em 1997), ao passo que, no segundo, a evolução é inversa (30.586 em
1992; 46.754 em 1994; 22.740, em 1995, 23.622 em 1996 e 24.792 em 1997.
As execuções por prémios de seguro mantêm-se estáveis nos últimos 6 anos, à volta
das 6000/6500 acções findas (com um pico em 1996, 8.149).
A alteração legislativa sobrevinda em 1992, explica o súbito crescimento das
execuções por dívidas hospitalares a partir de 1993, quadriplicando o seu número em
1994. Em 1997, as execuções por dívidas hospitalares findas representam cerca de 4
vezes mais do que o número de 1993 (5071 contra 1380)7.
9. Procurando olhar mais de perto a distribuição das acções consoante o tipo de autor
e o tipo de réu, verifica-se que os autores das acções declarativas cíveis são
maioritariamente pessoas colectivas, potenciais repeat players. Em contrapartida, os
demandados pessoas singulares atingem uma percentagem mais elevada no total, cerca
de 75%. É o que resulta da investigação da equipa de BOAVENTURA DE SOUSA
SANTOS, não havendo razões para supor que, de 1993 para cá, esses dados se hajam
alterado 8.
Em Portugal, parece razoável afirmar que não existe propriamente uma “sociedade
litigiosa” – como se tem sustentado que existe, por exemplo, nos Estados Unidos da
América, embora com vozes discrepantes, num debate que tem percorrido as duas
últimas décadas – ocorrendo diversamente um generalizado recurso aos tribunais para
cobrança de dívidas civis e comerciais, embora esse recurso se possa explicar por uma
multiplicidade de factores, a grande maioria dos quais tem a ver com razões de natureza
institucional, como é o caso das exigências da lei fiscal para utilização de provisões
para créditos incobráveis.
Por isso, a concentração da litigância das pessoas colectivas opera-se nas Áreas
Metropolitanas de Lisboa e no Porto, onde se acham os dois centros económicos mais
importantes do País e onde têm sede ou estabelecimento principal as principais
sociedades comerciais e entes públicos da Administração Económica do Estado.
Quando está em causa a competência dos tribunais determinada pelo domicílio dos réus,
6
Ob cit., pág. 132.
Estatísticas da Justiça – ano de 1997, publicação compilada pelo GEP do Ministério da Justiça, Lisboa,
1998, págs. 39 e segs.
8
Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas cit., pág. 138.
7
66
a litigância concentra-se nas comarcas do litoral industrializado, com especial
relevância para as comarcas de Braga, Aveiro, Coimbra, Viseu e Faro, ou para as
comarcas das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. Nos últimos cinquenta anos
(1942-1993), o crescimento ponderado de acções cíveis pela população é mais
acentuado nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, em especial nesta última, e no
Algarve, sendo certo que o aumento no volume de acções cíveis na Região do Minho e
Douro Litoral foi parcialmente absorvido pela variação positiva da população 9.
10. Importará, em seguida, concentrar a nossa atenção na litigância com origem nas
empresas, em que são pessoas colectivas – normalmente, sociedades comerciais – as
demandantes, que procuram os tribunais para realização de certos objectos empresariais,
antes de tudo a recuperação dos seus créditos.
Será neste segmento dos litigantes que poderemos observar os fenómenos de
concentração e de selectividade da litigância.
III. Concentração e Selectividade da Litigância em Portugal
11. Os sociólogos do Direito e outros analistas sociais põem em relevo que a
chamada pirâmide de litigiosidade em qualquer comunidade politicamente organizada
parte de uma base constituída por todas as situações litigiosas que ocorrem na vida
social e que se reconduzem a relações sociais de carácter conflitual, em que ocorrem
potencialmente lesões de bens ou interesses jurídicos de uma das partes da relação. O
recurso aos tribunais aparece-nos no topo da pirâmide, embora nem todos os casos de
recurso aos tribunais terminem num julgamento com emissão de uma sentença
susceptível de ser executada (bastará pensar nas frequentes desistências negociadas).
Numa investigação a partir de uma análise empírica de dados estatísticos e de casos
concretos, é possível detectar fenómenos de concentração de litigância e da
selectividade desta.
12. Antes de mais, a concentração da litigância quando esta última atinge os
tribunais. Já atrás se aludiu a fenómenos de concentração geográfica da litigância,
sabendo-se que as acções cíveis de dívida e as execuções cíveis de dívida (na
terminologia do processo civil, execuções para pagamento de quantia certa) são
intentadas em proporção esmagadora nos tribunais das Áreas Metropolitanas de Lisboa
e Porto. Como se refere na obra Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: o Caso
Português, “verifica-se que os grupos de acções mais importantes a nível nacional se
mantêm basicamente nas diferentes regiões, mas varia de forma significativa em
algumas regiões, o peso de cada um deles. Não só é diferente o seu peso relativo dentro
da região, mas sobretudo o número de acções por 10 mil habitantes. As acções de
dívidas (com excepção das hospitalares), os divórcios e as separações por mútuo
9 )
Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas cit., pág. 127. Deve notar-se que, nesta aprofundada
pesquisa, os autores consideram 8 regiões “judiciárias” no continente português: Trás-os-Montes, Minho
e Douro Litoral, Área Metropolitana do Porto, Beira Interior, Beira Litoral e Estremadura, Área
Metropolitana de Lisboa, Alentejo e Algarve.
67
consentimento e litigiosas, as acções de família e os despejos urbanos concentram-se no
litoral urbano, enquanto as acções de sucessões, filiação, despejo rústico e propriedade
têm maior peso relativo no interior rural. Estabelece-se, assim, uma fronteira clara entre
o país rural e o país urbano”.
Em termos de concentração geográfica é extremamente curioso verificar como a
litigância em matéria de acções de responsabilidade civil por danos ocorridos em
acidentes de viação (ou em pedidos cíveis formulados nos correspondentes processos
crimes) se distribui nos tribunais do litoral, nas comarcas territorialmente competentes
em função do lugar de ocorrência do acidente, ao longo dos eixos viários mais
importantes e com maior volume de tráfego. É, assim, que as comarcas de Grândola,
Ferreira do Alentejo e de Ourique destoam no conjunto das comarcas do Alentejo, visto
abrangerem troços perigosos da via rápida que conduz ao Algarve, não obstante o
Alentejo ser a região do País em que a sinistralidade em matéria de acidentes de viação
é mais baixa.
Um outro fenómeno curioso é o da concentração das acções de dívida em Lisboa e
Porto. Continua a ser válida, pela consulta das Estatísticas de Justiça referentes a 1997,
a regra de que a maior parte dos litígios que chega a tribunal é de valor económico, real
ou aparente, reduzido, como se demonstrava na pesquisa da equipa de BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS. Em 1993, cerca de metade das acções de dívida tinha valor igual
ou inferior a 250 contos (na altura, metade da alçada dos tribunais de primeira
instância). Como estes investigadores notam, nas acções de dívida uma percentagem
significativa é intentada por um grupo restrito de empresas (bancos; seguradoras; outras
sociedades financeiras, exploradoras de redes telefónicas, etc.), razão por que essas
acções, embora de valor reduzido consideradas atomisticamente, se integram num
conjunto vasto, em que “o valor da litigação e a decisão de litigar é considerado
globalmente para um conjunto de litígios e não separadamente para cada um deles”.
O exemplo das injunções é especialmente significativo. No final de 1993, foi criado
um novo procedimento de cobrança que visava a obtenção, “de forma célere e
simplificada” de um título executivo, na linha de soluções idênticas adoptadas na
Alemanha e em outros Estados do norte da Europa (Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de
Dezembro). A inovação, porém, nasceu sob um mau signo, tendo sido recebida com
hostilidade pelos juízes, muitos dos quais viam na intervenção do secretário judicial,
prevista no diploma, para aposição da fórmula executória uma usurpação de funções
judiciais. Um número significativo de Juízes levou o seu preconceito corporativo até ao
ponto de desaplicação do diploma com fundamento em inconstitucionalidade
(jurisprudência unânime das Secções do Tribunal Constitucional viria a concluir, no
entanto, no sentido da plena constitucionalidade da inovação).
Não admira, por isso, que, durante os cerca de quatro anos em que vigorou o
Decreto-Lei n.º 404/93, a adesão em todo o País ao procedimento fosse “inexpressiva”
(cerca de 2.500 providências por ano).
68
Em 1998, o regime da injunção foi alterado, prevendo-se a utilização de meios
informáticos para acelerar o procedimento adequado aos litígios de baixa densidade
(Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro). A adesão ao novo regime na comarca de
Lisboa – única em que se permitiu até agora a utilização de meios informáticos para
formulação das injunções – pelos litigantes repetitivos (“grandes utilizadores”), em
especial bancos e empresas seguradoras, constituiu um enorme êxito. Se, em Março de
1998 (antes do novo diploma), haviam sido distribuídos 1.026 injunções (três vezes
mais do que no mês anterior), em Novembro de 1998 passava-se para 2.849, em
Dezembro atingiam-se as 4.639, elevando-se o número em Março de 1999 até 8.763. De
Novembro de 1998 a Abril de 1999 foram distribuídas 33.309 injunções na Comarca de
Lisboa, sendo cerca de metade apresentada em suporte informático. Em Abril de 1999,
52% dos processos terminaram pela aposição da fórmula executória, ao passo que a
notificação dos devedores se frustou em 35,9% dos casos. A oposição do devedor
quedou-se pelos 1,9%, tendo havido 10,2% de desistências (processos pendentes em 1
de Abril de 1999 – 8.649; processos entrados no mês – 7.152, findos 7.296). Num
universo de 33.309 injunções apresentadas entre 1 de Novembro de 1998 e 30 de Abril
de 1999, cerca de 73% referiam-se a pedidos até 100 contos, 17,3% a pedidos entre 100
e 200 contos, reduzindo-se a 2,6% o número de injunções com pedidos superiores a 400
contos.
O alargamento do tratamento informático das injunções ao Porto implicará
seguramente um crescimento exponencial deste tipo de procedimento.
13. Através da expressão selectividade da litigância querem os sociólogos do Direito
referir que os litigantes, em especial as empresas, tendem a diversificar o recurso aos
tribunais na gestão dos seus negócios, empurrados por uma pluralidade de factores que
“desarticularam os mecanismos de regulação anteriormente dominantes” – o aumento
da concorrência, a internacionalização dos negócios, a especialização produtiva, o
aumento de papel aos serviços de financiamento em certas economias, como a
americana.
O recurso a mediadores ou à arbitragem podem ser revelações dessa selectividade. A
propositura de novos tipos de acções pode ser outra dessas revelações.
Por outro lado, a selectividade pode resultar de medidas de política judiciária, como
forma de influenciar o status quo. As medidas de intervenção jurídica são formas de
engenharia social, visando certos resultados e procurando desincentivar formas de
utilização dos tribunais tidas por socialmente inadequadas.
A selectividade da litigância pode resultar de um bom desempenho do sistema
judiciário, sentido pelos operadores judiciários, que leve a um recurso mais frequente
aos tribunais. Parece ser o que sucede na Alemanha com o funcionamento dos tribunais,
tido por relativamente célere, eficaz e economicamente comportável. Já em matéria
falimentar, na Alemanha, ouviam-se frequentes queixas sobre a complexidade e
morosidade das liquidações de empresas, o que motivou uma alteração da legislação
69
falimentar em 1998 com adopção de um modelo inspirado no Direito norte-americano
da insolvency law 10.
No caso português, voltamos de novo ao grande estudo da equipa de
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS:
“ A selectividade e concentração do desempenho judicial
verifica-se, não só no tipo de litígios judicializados, mas
também no tipo de litigantes. Em geral, há um certo equilíbrio
entre mobilizadores individuais (actores) e institucionais
(pessoas colectivas), ainda que com uma ligeira vantagem para
estes últimos. No entanto, em 1993, as acções que envolvem
apenas indivíduos não são mais que 35,4% do total das acções
declarativas findas. Nas áreas metropolitanas do Porto e de
Lisboa, onde se concentram 64,6% das acções declarativas
findas, as acções cujo autor foi uma pessoa colectiva
representavam respectivamente 68 e 66% do total. Isto significa
que, no sistema judicial português, os indivíduos apenas
dominam como réus. Como autores, dominam as pessoas
colectivas, basicamente as sociedades comerciais.”11
14. As conclusões deste estudo mantêm plena actualidade, bem podendo afirmar-se que
o sistema judiciário cível, em Lisboa e no Porto, está “colonizado” pela cobrança de
dívidas e, de facto, ao serviço de apenas algumas empresas, em especial as empresas do
sector financeiro. Pode, por isso, falar-se de litigação de baixa intensidade social, ou
litígios de contencioso reduzido.
A experiência mostra, por isso, que a oposição deduzida pelos devedores nas acções
e execuções de dívidas é estatisticamente baixa e, na esmagadora maioria dos casos,
claramente improcedente, atingindo níveis de insucesso próximos dos 95%. Os
devedores, quando deduzem oposição (contestação na acção declarativa; embargos de
executado, nas acções executivas), fazem-no com meros intuitos dilatórios, procurando
um acordo vantajoso ou que o pagamento se faça o mais tarde possível, com esperança
de uma melhor conjuntura.
IV. AS Reformas da Orgânica Judiciária, das Leis do Processo e de Outra
Legislação no Sentido do Aumento de Eficácia do Sistema
10
Cfr. Gerhard Walter, Cinquanti Anni di Studi Sul Processo Civile in Germania: dal Costruttivismo
all’Apertura Internazionale, in Revista di Diritto Processuale, ano 41 (1998), 1, pág. 51. Sobre a eficácia
do processo civil alemão através de medidas de aceleração dos processos introduzidos em 1976, bastará
referir que em 1980 iniciaram-se na antiga RFA 1,3 milhões de processos civis em 1.ª instância, ao passo
que em 1993 esse número quase duplicou. A duração média desses processos no Amtsgericht é de 3 a 6
meses.
11
Os Tribunais cit., pág. 611. Cfr. ainda Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil,
Lisboa, 1997, págs. 25-26.
70
15. No final da década de oitenta, a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (de 1987)
pretendeu importar para Portugal o modelo francês (acolhido na Alemanha e na Itália)
de distinção entre tribunais colectivos da circunscrição e tribunais de comarca,
tendencialmente singulares. A reforma da criação dos tribunais de círculo foi mal
recebida pelos advogados e por parte da magistratura, teve uma execução relativamente
lenta e acabou, porventura, por ir ao arrepio do debate europeu de eliminação dos
tribunais colectivos em processo civil, do qual resultou a adopção de tribunais
singulares ou monocráticos em Itália.
O Governo do Partido Socialista pôs termo, na Lei de Organização dos Tribunais de
1999, aos tribunais de círculo, instituindo a dupla corregedoria (dois juízes de círculo,
correspondentes aos antigos corregedores, para formarem o tribunal colectivo com o
juiz da comarca).
Todavia, a reforma ainda não entrada em vigor parece que só abrangerá, na prática,
os tribunais colectivos criminais, sendo propósito do Governo reduzir drasticamente a
intervenção dos tribunais colectivos, atendendo à possibilidade de registo da prova por
gravação, tornando a intervenção dos colectivos dependente de requerimento de uma
das partes em processo ordinário.
16. Nas conclusões dos Encontros de Bicesse, a propósito do tema “Economia
Direito e Competitividade”, SÉRVULO CORREIA e DIOGO DE LUCENA sustentam
a seguinte tese, relativamente ao sistema judiciário:
“A justiça, como mecanismo de aplicação da lei, deve também
ser encarada como um bem escasso, ou seja, um bem
económico. Basta constatar que tem um custo, para esta
afirmação ser auto-evidente. A recusa em tomar as devidas
conclusões traz como consequência um desperdício dos recursos
aplicados no sistema judicial, pois essa recusa impede de
resolver, de forma racional, o problema inescapável do
racionamento desse bem, usando-o onde é mais essencial. Isso
significa não só a criação de mecanismos alternativos aos
tribunais, que sejam mais baratos e expeditos, retirando a carga
crescente que impende sobre estes, como pensar
cuidadosamente o preço do acesso à justiça (…)”12.
Esta recusa de banalização do acesso aos tribunais dirige-se, em primeira linha, ao
conjunto das empresas financeiras que “colonizam” os tribunais com as suas acções e
execuções de dívidas.
Apesar de tudo, convém recordar que essas empresas financeiras pagam as taxas de
justiça devidas, contribuindo para o equilíbrio financeiro do sistema judiciário,
atendendo à elevada percentagem de actores que litiga com apoio judiciário ou que
12
Conclusões policopiadas, datadas de 15 de Maio de 1995.
71
deixa custas em dívida. Por outro lado, a garantia constitucional do acesso à justiça
funciona como constrangimento a solução de aumento de custas relativamente aos
litigantes repetitivos.
17. É curioso notar que o actual Governo tem procurado rentabilizar os serviços da
Justiça, normalmente através de modificações de índole processual. Assim, no
preâmbulo do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, faz-se alusão a uma reforma
pontual do processo de execução para simplificar e abreviar “significativa parcela de
execuções, as que têm por fim o pagamento de quantia certa até determinado valor”. E
acrescenta-se: “não pode aceitar-se que a duração média das acções executivas continue
a oscilar entre 18 meses em 1990 e 17 meses em 1996”.
Por outro lado, o Governo vem denunciando a banalização e a degradação do sistema
judiciário, o qual acaba por transformar-se quase num departamento de contencioso de
certas instituições financeiras. No preâmbulo do último diploma que remodelou o
regime das injunções, podem ler-se estas afirmações:
“A instauração de acções de baixa densidade que tem crescentemente
ocupado os tribunais, erigidos em órgãos para reconhecimento e
cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores, está a causar
efeitos perversos, que é inadiável contrariar.
Na verdade, colocados, na prática, ao serviço de empresas que
negoceiam com milhares de consumidores, os tribunais correm o risco
de se converter, sobretudo nos grandes meios urbanos, em órgãos que
são meras extensões dessas empresas, com o que se postergam
decisões, em tempo útil, que interessam aos cidadãos, fonte
legitimadora do poder soberano. Acresce, como já alguém observou,
que, a par de um aumento explosivo da litigiosidade, esta se torna
repetitiva, rotineira, indutora da “funcionalização” dos magistrados,
que gastam o seu tempo e as suas aptidões técnicas na prolação
mecânica de despachos e sentenças.” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º
269/98, de 1 de Setembro).
Se o diagnóstico se pode ter como consensual, o remédio apontado pelo legislador
parece algo “moralista”, se não mesmo um voto piedoso, e desenraizado de uma
realidade que é comum, pelo menos, a todos os Estados-membros da União Europeia:
“É impossível uma melhoria do sistema sem se atacarem a montante
as causas que o asfixiam, de que se destaca a concessão
indiscriminada de crédito, sem averiguação da solvabilidade daqueles
a quem é concedido.”
No mesmo preâmbulo, apontam-se soluções que passem por “vias de
desjudicialização consensual de certos tipos de litígio”, mostrando-se que o aumento de
72
distribuição verificado nos tribunais de pequena instância cível de Lisboa subiu de
46.760 processos em 1995 para 88.523 em 1997, isto é, quase duplicou em dois anos.
A descompressão do sistema judiciário, aliviando-o das acções de cobrança, tem
passado por reformas no plano do Direito Fiscal (o Decreto-Lei n.º 114/98, de 4 de
Maio, corrigindo um anterior diploma publicado em Fevereiro, permitiu que deixasse de
ser exigida a intervenção dos tribunais para certificar a incobrabilidade das dívidas, a
fim de os credores poderem conseguir a dedução do IVA) e por outras que estão apenas
encaradas para a próxima legislatura, como seja a criação de comissões arbitrais (ao que
se crê, verdadeiros tribunais arbitrais necessários) para julgar os pedidos de
responsabilidade civil decorrentes de acidentes de viação, em que se reclamem apenas
danos de natureza material. Também se aguarda um novo diploma sobre o regime de
cobrança de prémios de seguro, procurando diminuir para 30 dias o prazo de mora sobre
o vencimento do prémio, em vez de se esperar os actuais 60 dias para a resolução
automática, ex lege, dos contratos, sendo certo que a exigência dos prémios referentes
ao período complementar de dois meses de vigência dos seguros, em especial de
responsabilidade civil obrigatória de veículos automóveis provoca grande procura de
serviços judiciais.
18. Apesar de tudo o que se tem escrito, no nosso ordenamento aparecem medidas de
“descompressão” do sistema judiciário que deveriam conduzir a uma melhoria de
eficácia do sistema.
De facto, nos últimos vinte e cinco anos, as sucessivas reformas do direito processual
civil foram sempre alargando a exequibilidade dos documentos que titulam dívidas,
ainda que se trate apenas de documentos particulares. Hoje, é preciso apenas que
estejam assinados pelo devedor.
Começou por alargar-se a exequibilidade dos títulos cambiários, dispensando-se o
reconhecimento notarial de assinaturas dos obrigados cambiários até certo valor
(Decretos-Leis nos. 201/76, de 19 de Março, e 533/77, de 30 de Dezembro). Eliminou-se
em 1985 a exigência de qualquer reconhecimento notarial quanto aos títulos cambiários
(Reforma Intercalar de 1985, Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho). Na Reforma de
1995-1996 do Código de Processo Civil dispensou-se qualquer legalização notarial de
assinatura em todos os documentos particulares.
No que toca à inexistência de documentos confessórios de dívida assinados pelo
devedor, possibilita-se, desde 1993, a obtenção de exequibilidade através de injunção,
desde que o valor dos créditos emergentes de contrato não seja superior a 750.000$00
(valor da alçada dos tribunais de primeira instância desde 1999). Em alternativa,
permite-se a obtenção desse título através de uma acção declarativa especial,
semelhante à acção sumarissíma do Código de Processo Civil.
Por último, desde 1997, existe um procedimento executivo especial para as
execuções que, hoje, não tenham valor superior a 750.000$00 (Decreto-lei n.º 274/97,
de 8 de Outubro), em que se começa pela penhora, antes da audição do executado,
desde que a penhora recaia apenas sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido
73
dados em penhor, com excepção do estabelecimento comercial. Nestas execuções não
existe reclamação de créditos de terceiros credores, no intuito de tornar mais céleres as
execuções. É preciso dizer que tem havido decisões de desaplicação por
inconstitucionalidade de normas deste diploma, sendo certo que a sua aplicação em
múltiplos casos acaba por cair no ridículo, como sucede nas execuções de dívidas
hospitalares contra as seguradoras, em que se penhoram bens móveis destas,
nomeadamente fotocopiadores, computadores ou saldos bancários, apesar de o risco de
insolvência ser praticamente nulo.
19. A experiência de aplicação nos últimos seis meses do diploma sobre injunções
mostra que o “engarrafamento” se transferiu da fase judicial inicial para a fase
executiva. De facto, formando-se título executivo em mais de metade dos
procedimentos e sendo baixa a percentagem de pagamento voluntário (os 10% em que
há desistência do procedimento deverão, em regra, corresponder a esse pagamento), é
intuitivo que os tribunais de comarca ou de pequena instância vão ficar sobrecarregados
com acções executivas, que seguem ou a forma sumária ou, na esmagadora maioria dos
casos, o procedimento especial do Decreto-Lei n.º 274/97.
Afigura-se que só uma alteração do modelo judicial de execução poderá tornar mais
expedita a cobrança efectiva de créditos, em especial os de pequeno montante. Não se
justifica a excessiva intervenção do juiz nestes processos, devendo privilegiar-se um
modelo administrativo do tipo do que vigora nas execuções fiscais, em que a
intervenção do juiz só ocorre para conhecimento de meios de defesa e de outros
requerimentos sobre questões de natureza jurídica. Há, porém, quem sustente que se
deveriam ensaiar modelos extrajudiciais de cobrança, do tipo do modelo francês de
intervenção dos huissiers de justice e dos notários, ou de certos modelos norteamericanos de privatização das execuções.
Se vier a ocorrer tal alteração, creio que terá todo o sentido pensar num regime
especial de insolvência para os não comerciantes. De facto, tornando-se eventualmente
mais rápidas e eficazes as execuções de pequenas dívidas, vai-se pôr com mais acuidade
a questão de sobre-endividamento das famílias. É natural que iniciativas tão criticadas,
como o anunciado diploma do Ministro JOSÉ SÓCRATES, venham a ser exigidas pelos
próprios credores, para conseguir estabelecer planos de pagamento futuro, em vez de,
como sucede hoje, as execuções irem à conta por falta de conhecimento de bens
penhoráveis.
20. Na questão da selectividade da litigância, é usual fazer-se alusão à necessidade
de remodelação da própria lei do processo civil.
No caso português, parece-me desnecessário fazer um Código de Processo Civil
novo, sabendo-se como soçobrou a tarefa da Comissão presidida pelo Prof. ANTUNES
VARELA.
Esta situação não é inédita na Europa. Apesar de haver Códigos de Processo Civil
recentes que substituíram códigos oitocentistas de influência napoleónica (casos da
França, da Bélgica e da Holanda), tem-se mostrado praticamente impossível a obtenção
74
de um consenso entre universitários e profissionais do foro sobre um modelo de Código
de Processo Civil. São paradigmáticos os casos da Itália e da Espanha em que se têm
arrastado os trabalhos preparatórios de novos diplomas13. Por isso, acabam por aprovarse reformas mais ou menos extensas dos textos vigentes dos Códigos de Processo que,
quando possível, entram em vigor, no meio de uma contestação generalizada dos
destinatários. A par disso, são publicados os inevitáveis diplomas avulsos sobre
matérias específicas, ao sabor das necessidades da conjuntura.
O que aconteceu em Portugal com a reforma do Código de Processo Civil em 1995 e
em 1996 (Decretos-Leis nos. 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de
Setembro), ilustra o estado de espírito referido. Apesar do consenso entre dois Governos
de alternância e da manutenção pelo Ministro VERA JARDIM da comissão de reforma
nomeada por anterior Ministro da Justiça LABORINHO LÚCIO, a reforma do Código
de 1961 suscitou alguma controvérsia sobretudo entre os juízes, hoje menos nítida
apesar de um reconhecimento generalizado de que o modelo é ainda demasiado pesado
e insusceptível de abreviar a duração dos processos.
Apesar de tudo, algumas soluções inovadoras têm permitido um aligeiramento
burocrático, seja no plano do suprimento de pressupostos processuais, seja no plano dos
poderes conferidos ao juiz de adequar a tramitação à complexidade do caso, soluções
que permitem alguma selectividade na litigância. A reforma, porém, não foi tão longe
quanto seria desejável, podendo dizer-se que os intentos dilatórios dos réus ainda
conseguem uma expressão eficaz através da utilização dos múltiplos recursos e
reclamações que o sistema consagra, acontecendo que a citação dos réus é relativamente
difícil, nomeadamente por desconhecimento da residência do citando, razão por que se
sustenta que é necessário a lei consagrar um domicílio contratual, à semelhança do que
acontece com o domícilio fiscal.
Importa, por isso, prosseguir na senda da simplificação, permitindo que os juízes se
dediquem plenamente às causas complexas, com matéria de facto verdadeiramente
controvertida.
21. Não obstante as dificuldades expostas, considero globalmente positiva a
evolução operada desde 1985 no sentido da modernização de um processo civil.
Em 1997, Portugal tinha 1515 juízes, estando colocados nos tribunais 1267. Temos,
assim, 13 juízes por cada 100.000 habitantes, metade do número da Alemanha (26 por
100.000 habitantes), abaixo do número italiano (16), mas francamente acima dos
números da França e dos Estados Unidos da América (10 e 5 respectivamente)14.
A meu ver, o número de magistrados é relativamente satisfatório, embora os hábitos
profissionais de elaboração de longas decisões, recheadas de doutrina e de
jurisprudência – hábitos propiciados pelos critérios dominantes nas Inspecções Judiciais
13
L’Avanprogetto di una Nuova Legge del Processo Civile Spagnolo, artigo de J. L. Vázques Sotelo in
Rivista di Diritto Processuale, ano LIII, 1988, 2, págs. 818 e segs., sobre as atribulações de substituição
da velha Ley de Enjuiciamento Civil.
14
Gerhard Warter, estudo cit., revista cit., pág. 47.
75
– contribua para alguma morosidade, nomeadamente quando se trata de comarcas com
excesso de processos, como são as das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto.
A organização judiciária reformada no corrente ano – reforma aliás ainda não
completa – é susceptível de fazer melhorar as coisas pela criação de novos juízos nos
tribunais mais atrasados e com maior movimento, apesar de tal solução acarretar a
diminuição dos juízes auxiliares nos tribunais de 1.ª instância.
Com as simplificações já introduzidas nos processos de pequeno valor e com a
indispensável reformulação do processo executivo que caberá ao próximo Executivo, é
possível ter esperanças de que a nossa máquina judiciária se venha a tornar mais eficaz.
22. O mundo empresarial desconfia dos tribunais e tem razões de sobra para este
sentimento.
As empresas que, de uma forma ou outra, concedem crédito têm de calcular os seus
preços em função também do tempo necessário para recuperar judicialmente as quantias
que os seus devedores não pagam pontualmente. No plano do investimento estrangeiro,
um sistema judiciário ineficaz é um factor negativo que não é despiciendo.
A declaração de falência de uma empresa em que existam bens no activo é
verdadeiramente um pesadelo para os credores que têm créditos graduados e a
expectativa de recuperar parte deles é diminuta, dado o tempo anormal que dura a fase
de pagamento, não obstante as sucessivas reformas da Lei Falimentar.
A inexperiência de alguns juízes no que toca às exigências da vida empresarial e de
racionalidade económica chega a ser confrangedora, o que aponta para uma necessidade
de especialização dos tribunais em matéria comercial, como agora foi finalmente
reconhecido na Lei de Organização Judiciária de 1999.
É preciso, por isso, que se trabalhe sem desânimo no sentido da melhoria da eficácia
da máquina judiciária.
As reformas que o Ministério de Justiça vem fazendo desde 1995 partem de um
conhecimento dos factores de estrangulamento dos tribunais, propiciado pelo estudo
fundamental da equipa do Prof. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS.
Esperemos que, estando os diagnósticos feitos há vários anos, não tarde a medicação
indispensável.
O presente Colóquio sobre a Justiça levado a cabo pelo Conselho Económico e
Social constitui mais esforço no sentido de despertar e agilizar a Máquina Judiciária,
ainda muito influenciadas pelos modos de funcionamento da primeira metade do século
que agora finda.
Muito obrigado pela atenção de V. Exªs.
76
Os Problemas do Consumo e do Ambiente e as Novas Vertentes da Cidadania nos
Tribunais
Conselheiro Mário José de Araújo Torres*
Orador
Introdução
O debate público sobre a situação actual da justiça em Portugal tem estado dominado
por questões que, sendo embora mediaticamente atraentes, se revestem de alguma
superficialidade e sectorialidade: são basicamente questões internas das diversas
profissões forenses e do seu recíproco relacionamento, com o seu cortejo de conflitos de
ordem estritamente e estreitamente corporativa, onde a preocupação pelo protagonismo
e pelas prerrogativas dos grupos digladiantes faz esquecer que a justiça é um serviço
público, cuja legitimação se ganha no reconhecimento quotidiano da sua utilidade e
eficiência por parte dos respectivos utentes, isto é, por parte dos cidadãos que sentem
necessidade de recorrer aos serviços da justiça. As críticas mais comuns, desde a
morosidade ao excesso de garantismo, assentam em opiniões “impressionistas”
meramente subjectivas, que não se fundam em estudos minimamente científicos e
credíveis, que ignoram a realidade dos restantes países da nossa área civilizacional e
que são, as mais das vezes, formuladas de modo vago e genérico, sem a mínima
concretização.
Fazem falta, neste debate, momentos de reflexão serena e cientificamente fundada
(como se espera que seja o presente colóquio), que, finalmente, chamem a atenção para
a necessidade de uma análise sociológica e económica do funcionamento da justiça.
É que a realidade é esta: não é possível resolver nos tribunais, em tempo útil, todos
os litígios. Os meios financeiros são escassos e os critérios de rigor orçamental, desde
logo impostos por condicionantes externas, não permitem ampliá-los
significativamente. Os meios humanos são escassos e não é possível (atraver-me-ia a
dizer nem desejável) multiplicá-los, Os meios materiais são escassos e não é crível que
possam ser incrementados substancialmente nem a curto nem a médio prazo. Temos,
por fim, um quadro constitucional de organização judiciária − com pluralidade de
jurisdições, separação de carreiras dos magistrados, garantias processuais − que não é
realista pensar que possa ser alterado nos tempos mais próximos.
Perante este quadro, uma política de justiça digna desse nome não pode deixar de
atribuir especial relevância à economia da justiça, isto é, à racionalização da
distribuição dos recursos disponíveis (sempre escassos) na satisfação de necessidades
(sempre elásticas) dos consumidores desse serviço público. Sem cinismo, mas com
realismo, há que reconhecer que haverá sempre crimes que não serão perseguidos nem
punidos, haverá sempre créditos que não serão cobrados, haverá sempre danos que não
*
Juiz do Supremo Tribunal Administrativo.
77
serão reparados, em suma, haverá sempre direitos que não serão garantidos. O que se
pede aos responsáveis pela política de justiça é, pois, e apenas, que não abandonem à
força do acaso (que, normalmente, será a força dos que têm mais poder) a selecção dos
casos que merecerão a atenção da justiça, mas que, face à inevitabilidade da existência
de zonas de protecção judiciária e de zonas de desprotecção judiciária, definam
prioridades, de acordo com critérios que atendam a valores constitucionalmente
relevantes.
Com a justa ressalva para o mérito dos trabalhos de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
e seus colaboradores 1 e, especificamente na área da protecção judiciária do ambiente,
de JOSÉ MANUEL PUREZA 2 − trabalhos esses que, aliás, os seus próprios autores
salientam tratar-se de primeiros esforços exploratórios, em áreas limitadas −, é ainda
muito escasso o conhecimento, cientificamente fundado, não apenas das representações
sociais da justiça, mas dos mais elementares dados económicos sobre o seu custo.
Por exemplo: quanto custa o julgamento de um processo no Supremo Tribunal de
Justiça? E no Supremo Tribunal Administrativo? E no Supremo Tribunal Militar? E nas
restantes ordens e nos restantes níveis hierárquicos dos tribunais? Que poupanças e que
custos representa a transferência da competência para o julgamento de certos litígios de
determinados tribunais para outros? Quanto se poupou, em termos de custos financeiros
suportados pelo Estado, com a última elevação de alçadas dos tribunais cíveis? E quanto
se poderia poupar com a introdução de alçadas nos tribunais administrativos? Penso não
cometer nenhuma injustiça ao presumir que, neste momento, a generalidade destas
perguntas ficará sem resposta.
Mas já é possível estabelecer, por exemplo, a relação entre o número de juízes
existentes em determinado tribunal e os processos aí findos por ano. Limitando-nos aos
Supremos Tribunais e aos anos de 1995 a 1997, dispomos dos seguintes dados:
1
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, JOÃO PEDROSO e PEDRO LOPES
FERREIRA, Os Tribunais na Sociedade Portuguesa, Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1995, 5 volumes (policopiado); Os Tribunais nas Sociedades
Contemporâneas: O Caso Português, Edições Afrontamento, Porto, 1996. O estudo do desempenho dos
tribunais circunscreveu-se aos tribunais judiciais de 1.ª instância, nas áreas cível e penal.
2
JOSÉ MANUEL PUREZA, Tribunais, Natureza e Sociedade: O Direito do Ambiente em Portugal,
Cadernos do CEJ, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1997.
78
N.º de juízes e processos findos nos Supremos Tribunais:
1995
Juízes
1996
Procs.
Juízes
1997
Procs.
Juízes
Procs.
Supremo Tribunal de Justiça
53
3459
59
3519
56
4154
Supremo Tribunal Administrativo
40
3312
44
3728
52
3658
Supremo Tribunal Militar
10
49
10
44
10
43
Fonte: Estatísticas da Justiça, 1995, pp. 121, 123, 197 e 205; 1996, pp. 127, 128, 200 e 207; 1997, pp.
69, 77, 127, 129 e 209.
Lançado este repto aos economistas, e encerrando este parêntesis, é tempo de
retornar ao tema central desta comunicação.
Os direitos da terceira geração
É frequente a afirmação 3 de que, no domínio dos direitos fundamentais, após uma
primeira geração, ligada ao liberalismo, em que os direitos fundamentais eram vistos
como direitos de liberdade, direitos do cidadão individualmente considerado, direitos
negativos, e uma segunda geração, na sequência das Constituições mexicana, soviética e
de Weimar, em que emergiram os direitos económicos, sociais e culturais vistos como
direitos a prestações, direitos do homem socialmente situado, direitos positivos, surgiu
uma terceira geração de direitos fundamentais, em que se incluem o direito ao
ambiente e os direitos do consumidor, e relativamente aos quais aparecem como notas
dominantes a do carácter difuso dos interesses protegidos e a tónica da participação
activa dos interessados. Apesar da crítica que a esta concepção é feita por JORGE
MIRANDA4, afigura-se-nos, no entanto, que, desde que se torne claro que quando se fala
em gerações de direitos do homem ou de direitos fundamentais não se quer significar
que cada nova geração se sobreponha ou se substitua às anteriores, antes se quer
salientar que se trata de uma nova fase de alargamento e aprofundamento desses
direitos, que traduz um enriquecimento da herança anteriormente consolidada, a ideia
de terceira geração de direitos fundamentais terá interesse para sublinhar que se trata de
direitos colectivos ou difusos, cuja exacta compreensão ultrapassa a dos direitos
reconhecidos aos homens enquanto cidadãos, ou enquanto trabalhadores, ou enquanto
socialmente situados. Com efeito, o carácter colectivo ou difuso desses novos direitos −
sem chegar ao ponto de os qualificar como direitos dos povos, isto é, direitos de
colectividades, numa perspectiva transpersonalista, pois aqueles direitos mantêm uma
raiz antropocêntrica − coloca específicos problemas, designadamente ao nível da sua
tutela jurídica. É justamente esta problemática que nos ocupará agora.
3
Cfr. MÁRIO TORRES, “Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente e de Consumo – Legitimidade
Processual”, em Textos, n.º especial – Ambiente e Consumo, vol. I, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa,
1996, pp. 165-185.
4
A Constituição e o Direito do Ambiente”, in DIOGO FREITAS DO AMARAL e MARTA TAVARES DE
ALMEIDA (coord.), Direito do Ambiente, Instituto Nacional de Administração, 1994, p. 356.
79
Interesses difusos, interesses colectivos e interesses individuais homogéneos
Para clarificar conceitos, importa desde já distinguir estas três figuras: interesses
difusos são aqueles que apresentam, no plano da sua titularidade, uma pluralidade de
sujeitos, tendencialmente indeterminada − e, nessa medida, se distinguindo dos
chamados interesses colectivos, posicionados na titularidade de uma categoria de
pessoas (normalmente) ligadas por um vínculo jurídico –; e que se caracterizam, no
plano da sua natureza, pela insusceptibilidade de apropriação individual (exclusiva) do
bem em causa − distinguindo-se, neste pormenor, dos chamados interesses individuais
homogéneos, interesses que, apresentando uma origem comum, têm, no entanto, uma
tradução concreta individual, dada a divisibilidade do bem, com a correspondente
titularidade determinada (apropriação individual).
Como salienta MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA 5, “interesses difusos não são interesses
públicos, porque a sua titularidade não pertence a nenhuma entidade ou órgão público,
também não se identificam com interesses colectivos, porque não pertencem a uma
comunidade ou grupo mas a cada um dos seus membros, e também não são interesses
individuais, porque, como o bem jurídico a que se referem é inapropriável
individualmente, esses interesses são insusceptíveis de serem atribuídos em exclusivo a
um sujeito, antes pertencem, sem qualquer exclusividade, a qualquer um dos membros
de uma comunidade ou de um grupo. Como afirma CAPPELLETTI, trata-se de “interesses
(...) à procura de autor”. Os interesses difusos são simultaneamente interesses não
públicos, não colectivos e não individuais”.
Cada uma destas categorias, como é óbvio, suscita específicos problemas de tutela
judiciária, especificidades essas a que, no entanto, nem sempre o legislador português
esteve atento, e que têm óbvias repercussões, designadamente, a nível da legitimidade e
da representação processual e da eficácia do caso julgado.
A acção popular ambiental
No domínio ambiental (e também no de defesa do consumidor e do de defesa do
patrimonial cultural, natural ou construído), suscitaram-se grandes expectativas com a
concretização pelo legislador ordinário − concretização que demorou longos seis anos −
da nova “acção popular” consagrada pela revisão constitucional de 1989, claramente
distinta das antigas formas de acção popular (correctiva e supletiva) do Código
Administrativo.
Finalmente regulada pela Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, importará sublinhar os
traços fundamentais do novo regime6:
5
“Legitimidade Processual e Acção Popular no Direito do Ambiente”, na obra citada na nota anterior, p.
412.
6
Cfr. MÁRIO TORRES, “A Acção Popular no Direito Português”, em Textos, n.º especial – Ambiente e
Consumo, vol. III, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa.
80
A acção popular não é uma forma especial de processo, como por vezes erradamente
se pensa, traduzindo-se antes num alargamento da legitimidade processual activa, seja
qual for a natureza do processo a que se aplique (civil, penal, administrativo).
Nos termos da Lei n.º 83/95, são interesses por ela protegidos a saúde pública, o
ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património
cultural e o domínio público (artigo 1.º, n.º 2).
São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção
popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e
fundações defensoras dos interesses acabados de referir, independentemente de terem
ou não interesse directo na demanda (artigo 2.º, n.º 1) e ainda as autarquias locais em
relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva
circunscrição (artigo 2.º, n.º 2). Como se vê, não se atribuiu legitimidade ao Ministério
Público. Porém, essa opção veio a ser alterada pelo artigo 26.º-A do Código de Processo
Civil, resultante da reforma de 1995/1996, que atribui “legitimidade para propor e
intervir nas acções e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da
saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio
público, bem como à protecção do consumo de bens e serviços” a “qualquer cidadão no
gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos
interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na
lei”.
Quanto à representação processual, a Lei atribui ao autor da acção popular, com
dispensa de mandato ou autorização expressa, a representação de todos os demais
titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão (artigo 14.º). Com efeito, o subsequente artigo 15.º prevê formas de citação
dos titulares dos interesses em causa na acção de que se trate para, no prazo fixado pelo
juiz: (i) passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase
em que se encontrar e para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados
pelo autor; ou (ii) se excluírem dessa representação, nomeadamente para o efeito de não
lhe serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como
aceitação.
Quanto ao efeitos do caso julgado, dispõe o artigo 19.º, n.º 1, que as sentenças
transitadas em julgado, salvo quando julgadas improcedentes por insuficiência de
provas, ou quando o julgador deva decidir por forma diversa fundado em motivações
próprias do caso concreto, têm eficácia geral, não abrangendo, contudo, os titulares dos
direitos ou interesses que tiverem exercido o direito de se auto-excluírem da
representação.
Não é esta a ocasião para escalpelizar este regime legal e apontar-lhe as debilidades
de que padece, até por não radicar em eventual deficiência legislativa o pouco uso que
tem sido feito desta figura.
81
As causas dessa indiferença são mais profundas e mais graves e reconduzem-se,
basicamente, ao diagnóstico da situação da litigância ambiental em Portugal feita na já
citada investigação de JOSÉ MANUEL PUREZA7.
Com este autor, há que reconhecer:
– “O direito judicial do ambiente é, em Portugal, um direito quantitativamente
muito escasso e predominantemente reactivo, dependente e tradicional. Nos
poucos casos em que o ambiente é objecto de atenção do trabalho judicial, é-o
quase sempre a título incidental, como dimensão lateral (ou mesmo puramente
implícita) de direitos subjectivos individuais de tipo liberal clássico como o
direito de propriedade e os direitos de personalidade. Os litígios ambientais
surgem, na maior parte das vezes, no contexto de relações inter-individuais de
vizinhança (tomada esta num sentido sócio-espacial muito restrito), actuando o
sistema judicial como força sancionatória e punitiva e não como instância de
prevenção”;
–“Regista-se uma deficiente mobilização social para a tutela judicial do ambiente.
Quer o número de processos existentes, quer a análise das motivações
concretas para a litigação, quer ainda a transferência das iniciativas
associativas e colectivas para o Ministério Público demonstram que, em
Portugal, o direito judicial do ambiente só debilmente concretiza valor guia da
solidariedade que a doutrina associa aos direitos da terceira geração e que a
legislação ambiental acolhe. Ao invés, o nosso direito judicial do ambiente ou
permanece num registo predominantemente inter-individual ou reproduz
hábitos de relação paternal do Estado para com a sociedade”;
–“De entre as principais motivações para esta escassez de mobilização social para
a tutela judicial do ambiente destaca-se a valoração superior dos direitos
económicos e sociais pela população activa, por comparação com a valoração
dos interesses pós-materiais associados ao ambiente. Este fenómeno, inerente
ao facto de Portugal ser um país de desenvolvimento intermédio, ajuda a
compreender que a litigação ambiental seja, entre nós, quase só composta por
pequenos conflitos e que a litigação de média e grande dimensão seja, por isso,
de uma notoriedade pública proporcional ao seu carácter excepcional”;
–“O baixo volume de acções judiciais em matéria ambiental decorre igualmente
do tipo de actuação dominante quer dos cidadãos quer das instâncias oficiais de
tutela. Os cidadãos preferem claramente formas auto-compositivas de
tratamento dos seus litígios; os poderes públicos (Administração e Tribunais)
têm um elevado índice de eficácia na abordagem informal dos conflitos, quer
pela simples persuasão dos intervenientes, quer pela flexibilização do regime
legal apropriado”.
7
A situação é similar no domínio da defesa do património cultural: cfr. MANUELA REIS, “Cidadania e
património: notas de uma pesquisa sociológica”, em Sociologia − Problemas e Práticas, n.º 29, 1999, pp.
77-94.
82
Regista-se assim um “afastamento entre a law in action e a law in the books”,
“entre um direito legislado generoso no acolhimento da legitimidade
comunitária e associativa para a tutela judicial e um direito efectivo com uma
incipiente concretização jurisprudencial; afastamento entre um direito legislado
que testemunha uma forte inovação substantiva e processual e um direito
efectivo esvaziado pelo apego a uma dogmática sedimentada na resposta a
desafios sociais totalmente distintos; afastamento entre um direito legislado
valorizador da participação e da informação e um direito efectivo que esbarra
no secretismo e opacidade de uma máquina administrativa labiríntica e distante
e na fragilidade orgânica e reivindicativa do movimento ambientalista”; enfim,
“afastamento entre um direito legislado dotado duma projecção normativa
crescente e um direito efectivo com escassa capacidade sancionatória”.
Esse estudo da litigação ambiental portuguesa permitiu concluir pela aplicabilidade a
este domínio específico da imagem metafórica da pirâmide de conflitos ambientais
utilizada no estudo realizado pela equipa do Centro de Estudos Sociais coordenada por
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS sobre a administração da justiça em Portugal. “Essa
pirâmide dos conflitos ambientais, em que se estratificam os vários níveis (...), da
conflitualidade potencial até ao julgamento, apresenta uma particularidade importante: o
estreitamento da pirâmide é muito acentuado na passagem dos conflitos potenciais para
os conflitos judiciais, mas a zona de maior triagem é inquestionavelmente a
transformação da conflitualidade potencial em conflitualidade real. Ou seja, é a
diminuta conversão dos atentados ao ambiente, comprovadamente existentes, em
conflitos públicos assumidos que constitui a principal fonte de desconformidade entre a
abertura do direito legislado e a prática efectiva dos actores sociais e das instituições de
tutela oficial”.
Para ultrapassar esta situação, o autor citado preconiza que se dote “o nosso sistema
de novos instrumentos de aplicação que subtraiam a concretização do direito ambiental
substantivo à inevitabilidade de moldagem, necessariamente redutora, aos cânones
processuais tradicionais”, já que “à solenidade, apego à segurança jurídica e
generalidade, característicos dos tradicionais mecanismos processuais, a tutela eficaz do
ambiente contrapõe a exigência de informalidade, instantaneidade e proximidade”, o
que é alcançável por duas vias processuais principais: “a primeira dessas vias é a da
adopção de mecanismos alternativos de solução de litígios para os conflitos ambientais,
sobretudo os de pequena dimensão”, designadamente através de “comissões de
conciliação ou de mediação ou ainda de centros de arbitragem – repetindo, neste
domínio, uma fórmula já consagrada para os conflitos de consumo”; a segunda “é o da
incorporação de novos instrumentos preventivos”, pois “a instantaneidade do tempo
ambiental exige (...) o acolhimento pela lei processual de instrumentos inibitórios com
carácter autónomo expedito e definitivo”.
Os litígios de consumo
83
Neste domínio, em que a diversa natureza dos interesses em jogo não permite uma
automática transposição das medidas preconizadas em sede de tutela ambiental, há que
reconhecer, no entanto, que, provavelmente pela mais directa relevância económica
individual desses interesses, são mais significativos os resultados das tentativas de
composição extrajudicial dos conflitos, como o demonstram os mapas que seguem.
Processos nos Centros de Arbitragem:
1996:
Pendentes
Entrados
Total
Total geral
Associação Comercial
Ordem dos Advogados
Conflitos de Consumo de
Coimbra e Figueira da Foz
Conflitos de Consumo de
Lisboa
Litígios
de
Reparação
Automóvel
Litígios Laborais Desportivos
Loulé
Centro de Informação, de
Consumo e Arbitragem do
Porto
Serviço
Regional
de
Conciliação e Arbitragem do
Trabalho
494
4
5
3766
8
3
106
3914
8
102
261
677
799
-
4
434
2
337
22
70
145
144
6
24
33
15
10
56
21
86
70
3
1933
62
1996
310
6
49
255
8
16
48
20
1346
47
821
803
-
79
-
356
-
368
Fonte: Estatísticas da Justiça, 1996.
84
Desist
ência
171
4
5
Findos
Media Conci
ção
liação
803
404
81
7
Incompetência
321
5
Arbitr
agem
423
4
4
Outros
motivos
1792
-
Processos nos Centros de Arbitragem:
1997:
Pendentes
Entrados
Total
Total geral
Arbitral - Soc. de Arbitragem
Associação Comercial de
Braga
Associação Comercial de
Lisboa
Ordem dos Advogados
Conflitos de Consumo de
Coimbra
Conflitos de Consumo de
Lisboa
Conflitos de Consumo do Vale
do Ave
Litígios
de
Reparação
Automóvel
Litígios Laborais Desportivos
Loulé
Centro de Informação, de
Consumo e Arbitragem do
Porto
Serviço
Regional
de
Conciliação e Arbitragem do
Trabalho
Voluntária da ADJUVA
Universidade Autónoma de
Lisboa
Desist
ência
136
3
Findos
Media Conci
ção
liação
845
320
29
-
400
-
4842
1
68
4823
47
Incompetência
422
4
Arbitr
agem
432
-
Outros
motivos
2668
11
4
7
5
1
-
-
-
4
-
2
9
3
119
98
7
9
32
7
7
36
198
782
862
110
4
465
1
244
38
-
41
26
3
-
22
-
1
-
69
135
118
2
10
34
22
13
37
28
2
23
69
3
2920
77
2898
295
9
39
263
1
49
67
34
2218
65
619
628
-
60
-
240
-
328
-
70
1
62
-
-
2
-
-
-
60
-
-
Fonte: Estatísticas da Justiça, 1997.
A leitura destes números exige algumas cautelas, pois não existe indicação dos
critérios classificativos adoptados em cada um dos centros de arbitragem.
Particularmente anómalos surgem os valores dos processos entrados no Centro de
Informação, de Consumo e Arbitragem do Porto, sendo também anómalo o número de
processos findos por “outros motivos”; uma explicação possível será a de se terem
contabilizado os pedidos de informação.
De qualquer forma, embora superiores aos existentes no domínio do ambiente, os
casos de resolução extra-judicial de litígios de consumo representam claramente uma
percentagem ínfima da conflitualidade − em especial, da conflitualidade potencial −
neste domínio.
E, como também é óbvio, trata-se de um domínio onde são particularmente evidentes
as relações entre o direito e a economia, provocando qualquer efectiva melhoria do
funcionamento do sistema da justiça (“justiça judicial” ou “justiça extra-judicial”) do
consumo directas repercussões nos comportamentos e na actividade dos agentes
económicos dos sectores envolvidos.
Outros direitos de cidadania: o acesso aos documentos administrativos
Apesar da escassez do tempo disponível, seja-nos permitida uma última e muito
breve nota sobre uma área onde, à primeira vista, pareceriam ser escassas as relações
entre direito e economia: o acesso dos cidadãos aos documentos administrativos.
85
Mas bastará pensar nos casos em que, por exemplo, uma empresa, com o objectivo
(real ou pretextado) de interpor recurso contencioso de determinado acto da
Administração, requer o acesso a documentos, em poder da Administração, originários
de empresas concorrentes em que se revelem, por exemplo, estratégias de
desenvolvimento e dados da sua situação financeira 8 ou processos de fabricação de
produtos seus9, que podem incorporar investimentos vultuosos, para nos darmos conta
de como um mecanismo aparentemente de alcance limitado, pode afectar importantes
interesses económicos.
Apesar de a Constituição expressamente só referir como matérias susceptíveis de
imposição legal de restrições ao direito de acesso aos arquivos e registos
administrativos as “matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação
criminal e à intimidade das pessoas” (artigo 268.º, n.º 2) − o que levou o Ac. do STA de
14/9/1994, citado na nota 8, a proclamar que “o direito de acesso dos cidadãos à
informação não sofre restrição pelo facto de tais documentos estarem sob segredo
comercial ou industrial ou a coberto de normas de protecção do mercado concorrencial”
−, a Lei n.º 8/95, de 29 de Março, veio aditar um novo n.º 1 ao artigo 10.º da Lei n.º
65/93, de 26 de Agosto, consignando que “a Administração pode recusar o acesso a
documentos cuja comunicação ponha em causa segredos comerciais, industriais ou
sobre a vida interna das empresas”.
Feita esta chamada de atenção, merecedora de mais desenvolvido tratamento, resta
registar que, também neste domínio, o recurso a meios extra-judiciais de composição de
conflitos constitui caminho a incrementar.
8
Cfr. Ac. do STA de 14/9/1994, P. 35 663 (Apêndice ao Diário da República, de 7/2/1997, p. 6227),
sobre pedido, formulado pela “SIC - Sociedade Independente de Comunicações, SA”, de intimação do
Secretário de Estado das Finanças para passagem de certidão dos seguintes documentos: plano de
actividades e orçamento da RTP relativos à prestação do serviço público de televisão no ano de 1994,
pareceres do Conselho Fiscal e do Conselho de Opinião da RTP referentes ao plano de actividades e ao
orçamento mencionados, memória justificativa dos custos e parecer do Conselho Fiscal da RTP referente
à memória justificativa dos custos. O acesso a estes documentos foi justificado pela requerente com a
alegação de pretender desencadear os meios adequados a garantir a fiscalização da legalidade da
Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/94, que atribuiu à RTP, para o ano de 1994, uma
indemnização compensatória no montante global de 7 145 000 000$00.
9
Têm sido frequentes os pedidos de intimação do INFARMED − Instituto Nacional da Farmácia e do
Medicamento, feitos por laboratórios farmacêuticos, em que, com a alegação de se pretender interpor
recurso contencioso do acto administrativo que autorizou a introdução no mercado de medicamentos de
laboratórios concorrentes, se pretende obter a consulta e a extracção de certidões do correspondente
processo administrativo, incluindo os documentos relativos à composição qualitativa e quantitativa do
medicamento, as suas indicações terapêuticas, os respectivos ensaios farmacológicos, toxicológicos e
clínicos, os estudos de biodisponibilidade, etc.
Cfr. os Acs. do STA de 6/10/1994, P. 35 682 (Apêndice ao Diário da República, de 18/4/1997, p. 6779, e
Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 399, p. 283), de 2/2/1995, P. 36 628 (Ap.
DR, de 18/7/1997, p. 1197), de 26/3/1996, P. 39 602 (Ap. DR, de 31/8/1998, p. 2282), de 18/4/1996, P.
39 788 (Ap. DR, de 23/10/1998, p. 2688, e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 456, p. 210), de
13/2/1997, P. 41 495, de 6/5/1997, P. 42 046, de 10/7/1997, P. 42 448, de 23/7/1997, P. 42 546, e de
13/8/1997, P. 42 754, e, por último, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 254/99, P. 456/97, de 4/5/1999
(DR, II Série, n.º 137, de 15/6/1999, p. 8586).
86
A verdade, porém, é que é ainda relativamente reduzido o recurso dos cidadãos à
Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), como o demonstra o
seguinte quadro:
Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos:
Anos
Pedidos
recebidos
1995
72
1996
95
1997
142
1998
204
Total
513
Fonte: http://www.cada. pt.
Pareceres
emitidos
38
87
124
177
426
Resolvidos sem
necessidade de
parecer
13
5
16
30
Processos
pendentes no
final do ano
21
24
21
22
Conclusão
•
Retornando às preocupações inicialmente manifestadas, há que reconhecer que,
atenta a escassez de recursos disponíveis, é impossível confiar aos tribunais a
resolução, em tempo útil, de todos os conflitos individuais e sociais
potencialmente judicializáveis.
Na organização racional desses recursos, a política da justiça deve procurar atingir,
em termos de conciliação prática, uma protecção média equilibrada das diversas áreas
merecedoras de tutela, tendo por critérios orientadores os valores constitucionalmente
relevantes, entre os quais não podem de assumir especial relevo os respeitantes à tutela
do ambiente, do património e do consumo e os atinentes à consagração dos novos
direitos de cidadania, de terceira geração, post-materialistas e de participação.
Há que privilegiar formas de composição extra-judicial de conflitos potenciais e
reais, fazendo efectiva aplicação do critério das duas palavras, isto é: distinguindo,
com rigor, os casos em que os tribunais tem de caber a primeira palavra daqueles casos
em que o direito de acesso dos cidadãos à justiça se basta com a atribuição aos tribunais
da última palavra 10.
Cfr., sobre esta temática, por último, PAULO CASTRO RANGEL, Reserva de Jurisdição − Sentido
Dogmático e Sentido Jurisprudencial, ed. Universidade Católica Portuguesa, Porto, 1997.
10
87
A Justiça como Tarefa Comum
88
A especialização dos tribunais: o presente e o futuro judiciário
Dr. João Correia*
Orador
O tratamento, mesmo não muito profundo das questões judiciárias contém diversos
paradoxos.
Dum lado, a opinião pública e os meios de comunicação social a sua atenção e a
pressão que exercem sobre o Poder no âmbito da justiça criminal e, como sabemos, as
demais áreas da justiça não são subalternas face àquela.
Por outro lado, as reais e concretas causas da degradação do serviço da justiça não
merecem, por regra, grande atenção por parte dos organismos responsáveis e das
associações representativas dos profissionais da justiça.
Tudo se esgota, ou melhor, afunilam-se as atenções nos temas das relações entre
cada uma delas e a Advocacia, entre todas e o Ministério da Justiça, entre este e o
Conselho Superior de Magistratura e a Ordem dos Advogados.
No entanto, um exame profundo e mais preocupado da JUSTIÇA permite alcançar
diagnósticos fáceis.
Assim por exemplo:
O aumento da litigiosidade tem sido acompanhado pelo aumento proporcional dos
que servem a justiça, ou seja, o número de magistrados, advogados e oficiais de justiça
mantém-se adequado à dimensão de pleitos judiciais.
Nos grandes centros urbanos esse aumento do número de processos tem sido
acompanhado por uma concentração de esforços e meios (humanos) que à partida não
justificaria a exponencial distribuição e pendência de processos por cada juiz.
Por outro lado, o direito adjectivo, civil ou penal, sofreram ou beneficiaram de
reformas sempre vocacionadas para a celeridade e simplificação, às vezes com
sacríficio das garantias processuais dos cidadãos, mas, no essencial, os direitos
adjectivos não se mostram como obstáculo à pronta realização da justiça.
Finalmente, a preparação técnico-jurídica dos magistrados judiciais e, mais
recentemente, dos jovens Advogados é visivelmente superior e, se numa primeira fase,
o Centro de Estudos Judiciários formou sacerdotes de um templo pejado de pecadores,
de há uns anos para cá, os novos magistrados mostram-se serenamente conhecedores da
sua função relativizada face às demais legitimidades judiciais, maxime a da Advocacia.
Diga-se a este propódito, em abono da verdade, que o legislador constitucional na
Revisão de 1997 criou o antídoto adequado para contrariar as vocações totalitárias ao
fazer inscrever a essencialidade da Advocacia e do mandato forense para a
Administração da Justiça, sem esquecer que na nova Lei da Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei 3/99, de 13 de Janeiro) veio prolongar e
concretizar essa essencialidade da Advocacia abandonando a subalternidade provinda
*
Advogado.
89
do conceito de “servidor da justiça” e substituindo-o pela intervenção no exercício de
direitos dos Advogados “como elemento essencial à administração da justiça” para o
que gozam das “imunidades necessárias ao desempenho eficaz do mandato forense ...
(Art.º 114 da LOFTJ).
Como se conclui, os instrumentos operativos da justiça são os suficientes, no plano
estritamente humano, para alcançarmos uma justiça célere, dignificada socialmente e
tecnicamente apetrechada.
Mas assim não é.
Nos últimos anos vem-se corroendo a representação social da justiça em geral, como
serviço de Estado e como exercício da sua Soberania, as decisões judiciais aparecem,
nos grandes centros urbanos, cada vez mais tardias e contestadas, descendo-se patamar
sobre patamar, quase permitindo a conclusão que nada há para fazer senão deixer cair
os braços, entregando-se a sorte da justiça à divina providência que um dia há-de
iluminar os poderes indicando-lhes o caminho da salvação.
Mas também assim não é nem será.
Há diagnósticos feitos, efectivamente, existem soluções, umas mais prontas e outras
de concretização progressiva que implicam uma visão estratégica pré-determinada a
adoptada pelos Poderes Públicos e pelos difusos poderes que suportam este serviço
público e preenchem a Soberania do Estado.
E começarei pela organização judiciária já que foi o tema que me emprestaram para
abordar hoje e aqui.
Em matéria só na aparência sofre de aridez, pois, bem ao invés, é o mais aliciante e
complexo para beneficiar de uma abordagem.
Como se sabe, a nossa malha judiciária não sofre alterações de fundo há décadas: as
comarcas são ainda, as comarcas, os Distritos Judiciais são os mesmos (o de Évora foi
criado pouco antes do 25 de Abril) e a efémera inovação dos Tribunais de Círculo
sofreu as resistências que os mataram quando ainda davam os primeiros passos.
No essencial pode ousar dizer-se que a nossa estrutura judiciária remonta a 1840.
Como se sabe também, a organização judiciária dos pequenos médios centros
urbanos ou rurais não difere entre si e nos grandes centros urbanos desligou-se a
natureza e a dimensão do conflito da organização judiciária, partindo-se desta para
aquele segundo critério quase sempre quantitativo.
No entanto, é bom que se diga, que os pequenos e médios centros urbanos e rurais
convivem positivamente com a competência genérica dos Tribunais que os servem,
sendo óbvio, no entanto, que o desenvolvimento económico dos centros urbanos se acha
numa proporção inversa da prontidão judiciária.
Dito de outro modo: os Tribunais não acompanham o desenvolvimento e, as mais
vezes são, mesmo, factor de desaceleração desse desenvolvimento face à ineficácia
progressiva do serviço da justiça, o que provoca a desautorização e o desarmamento do
tráfego jurídico, comercial, industrial e, acima de tudo, social e cultural.
90
Tal estádio de ilegitimidade do poder judicial e do serviço da justiça foi, há largos
anos, atingido nos grandes centros e, especialmente, na Área Metropolitana de Lisboa
mais que na Área Metropolitana do Porto.
Para este resultado, contribuem, a meu ver, causas que influem de modo e com
intensidades diversas mas que concorrem na mesma direcção.
Assim, como factores negativos ou de influência perversa apontaria os seguintes:
a) a inadequada malha judiciária na 1.ª Instância nos grandes centros urbanos;
b) a ausência total de uma 2.ª Instância sobre a matéria de facto;
c) a inexistência de meios racionais, operantes e eficazes de organização
administrativa e financeira de apoio à actividade judiciária;
d) a insuficiência dos meios materiais, como por exemplo, de pequenos Tribunais
disseminados nos grandes centros urbanos com competência para a pequena
litigiosidade cível, penal, contravencional e contraordenacional;
e) a resistência da direcção política do poder judicial a todas as transformações e
reformas;
f) a ausência de estímulos e adequados critérios de progressão na carreira dos
oficiais de justiça, sem esquecer a ausência de formação permanente e de uma
adequada cultura cívica para a dificílima função que desempenham perante
magistrados, advogados e cidadãos, em geral.
Vou abandonar tudo, à excepção da organização judiciária, em homenagem ao tema
que me ofereceram.
Começarei por analisar a actual Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais
Judiciais (a Lei 3/99, de 13 de Janeiro) lembrando, desde logo, a inconguência da
organização judiciária na 1.ª Instância e, acima de tudo, a confusa justificação legal
para, na 1.ª Instância, se obter aquele a que a lei chama “desdobramento dos Tribunais”.
Vejamos primeiro o que nos diz a lei comentemos depois.
A - Art.º 62/2: Quando o volume ou a natureza de serviço o justifiquem, podem
existir na mesma Comarca vários Tribunais.
B - Art.º 64/1 (sob a epígrafe “outros Tribunais de 1.ª Instância)
: Pode haver Tribunais de 1.ª Instância de competência especializada e de
competência específica.
C - Art.º 64/2: Os Tribunais de competência especializada conhecem matérias
determinadas, independentemente da forma de processo aplicável; os Tribunais de
competência específica conhecem de matérias determinadas em função da forma
de processo aplicável...
D - Art.º 65.º (sob a epígrafe “desdobramentos dos Tribunais”).
Art.º 65/1: Os Tribunais judiciais podem desdobrar-se em juízos.
Art.º 65/2: Nos Tribunais de comarca os juízos podem ser de competência genérica,
especializada ou específica.
91
Art.º 65/3: Os Tribunais de comarca podem ainda desdobrar-se em varas com
competência específica, quando o volume e a competência do serviço o
justifiquem.
Deste conjunto de normas facilmente se conclui que o legislador nem é claro nem é
coerente.
Dum lado, não enuncia qualquer critério para a justificação dos Tribunais de
competência especializada.
Na verdade, no Art.º 62/2 cinge aos Tribunais de comarca o desdobramento em
função do volume e da natureza do serviço, quando se sabe que a competência
especializada admite a sua conexão ao conceito de 1.ª Instância mas não ao conceito de
comarca.
Mas, não contente, afirma no Art.º 65/1 que os Tribunais Judiciais se podem
desdobrar em juízos querendo obviamente, agora sim, referir-se exclusivamente aos de
1.ª Instância e não a todos os Tribunais Judiciais (independentemente do capítulo onde
se insere a norma se dirigir exclusivamente aos Tribunais de 1.ª Instância).
E, finalmente, é para o desdobramento em Varas, ou seja, para a competência
específica, que se invocaram os critérios do “volume e complexidade do serviço”.
Em suma, não nos oferece o legislador qualquer justificação para a especialização
dos Tribunais em razão da matéria.
Do elenco de Tribunais com competência especializada verifica-se que não são
coerentes nem uniformes as causas do destacamento de certas matérias para estes
Tribunais.
Assim, na área do direito penal elegeram-se a instrução criminal e a execução de
penas, um e outro justificados também por causas diferentes: os TIC e os JIC visam
assegurar o controlo da legalidade da chamada fases do inquérito, seja quando decidem
quanto à pronúncia ou não pronúncia, seja quando directamente se substituem ao
Ministério Público, seja quando praticam actos que só o poder judicial pode executar
durante o Inquérito.
Os Tribunais de Execução de Penas agem a jusante da sentença condenatória penal
em prisão efectiva, de pena relativamente indeterminada e no âmbito das medidas de
segurança.
No essencial, poder-se-à dizer que os Tribunais de Execução de Penas são os
instrumentos especializados para a reinserção social e readaptação dos condenados o
que lhes confere um relevo que a sociedade civil e mesmo a Administração Pública
Central e as Autarquias Locais se mostram incapazes de reconhecer.
No âmbito do direito de família também se criaram duas ordens de tribunais com
competência especializada e, desta vez, também por duas ordens de razões distintas.
Os Tribunais de família e os Tribunais de Menores abarcam todas as questões
pessoais, patrimoniais e sociais relativas aos cônjuges e aos menores.
Os Tribunais de Família absorvem a competência material para dirimir litígios
pessoais e patrimoniais entre cônjuges e entre eles e os seus filhos, mesmo que maiores
92
de idade, ao passo que os Tribunais de Menores pretendem assegurar a protecção dos
menores fora da família e perante a sociedade, seja por razões comportamentais, seja
por terem sido abandonados ou se acharem desamparados, seja porque não conseguem
viver em família, não trabalham, não estudam nem, por qualquer modo, são ou se
mostram hábeis para viver em comunidade.
Do mesmo passo, os Tribunais de Menores asseguram a sua protecção perante a
família e perante as instituições que os recolhem sempre que se mostre excessivo ou
abusivo o exercício da sua autoridade.
A competência especializada, agora em sentido estrito, acha-se como móbil da
criação dos tribunais de Comércio, dos Tribunais Marítimos e dos Tribunais de
Trabalho.
Na verdade, a Lei Orgânica não nos oferece, como se viu, um critério uniforme para
o destacamento da competência material de alguns Tribunais, limitando-se a eleger o
volume e a complexidade dos processos para a criação de varas cíveis ou criminais, ou
seja, Tribunais com competência específica (Art.º 65/3) ou o volume e a natureza do
serviço de vários Tribunais na mesma comarca (Art.º 62/2).
Mas, se é verdade que os Tribunais de Família, de Menores, de Execução de Penas,
por exemplo devem a sua criação a tais critérios (volume, complexidade natureza do
serviço) os Tribunais do Trabalho, do Comércio e os Marítimos acabam por ver a sua
criação a imperiosa autonomia do direito substantivo e ao afastamento tendencial do
direito civil e dos quadros científicos de referência que permitiam a subsistência da
competência material na jurisdição especializada.
Se é verdade que os Tribunais do Trabalho provêm da reforma de 1933, também é
verdade que a sua subsistência com a autonomia não emerge das mesmas razões que
levaram à sua criação.
A jurisdição laboral especializada entronca nos Tribunais de Arbitros Avindores
criados na década de 80 do Século passado determinados pela industrialização e pela
absorção dos ingredientes do liberalismo retardado.
A sua composição paritária, ou seja, a designação dos seus membros por um colégio
de trabalhadores e por outro colégio de empregadores tinha que soçobrar perante a
estadualização inexorável da justiça do trabalho operada pelo corporativismo,
obviamente não compaginável com soluções paritárias ou, mesmo, arbitrais.
Mas, não confundamos, a justificação para a criação, na época, dos Tribunais de
Trabalho não resulta da especialização do direito substantivo, mas, tão só, da
menoridade social e política das relações jurídico-laborais e do esmagamento dos
conflitos colectivos, tudo concorrendo para a exclusão e o afastamento da jurisdição
laboral face à jurisdição comum.
Basta atentar que os Juízes dos Tribunais do Trabalho eram os Delegados do
Instituto Nacional de Trabalho e Previdência e os representantes ou os que executavam
o papel de representantes do Ministério Público eram os Sub-Delegados do mesmo
I.N.T.P.
93
Até à Constituição da República de 1976 e até à primeira Lei Orgânica dos Tribunais
Judiciais, os Tribunais de Trabalho viviam nos subterrâneos do poder judicial.
Efectivamente, foi a Lei 82/77, de 6 de Dezembro, que operou a transformação
democrática dos Tribunais de competência especializada, a par, note-se, dos Tribunais
Cíveis, de Família, de Menores e de Execução de Penas (Art.º 56.º da Lei 82/77, de 6 de
Dezembro).
Por outro lado, os Juízes dos Tribunais do Trabalho assumiram, finalmente, a
dignidade de Juízes de Direito e passaram a integrar o corpo único de Juízes, sujeitos à
mesma disciplina jurídica dos demais Juízes dos outros Tribunais.
Estava, pois, alcançado o relevo jurídico e social das questões laborais e, tanto assim
é, que a competência material dos Tribunais de Trabalho mereceu uma cuidadosa e
extensa identificação das questões que lhe foram atribuídas.
Hoje, os Tribunais de Trabalho recebem competência em matéria cível, em matéria
contravencional e, como tribunais de recurso, em matéria contraordenacional nos
domínios laboral e da segurança social (Art.ºs 85 86 e 87 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro).
Se a tudo isto se ajuntar a criação das secções sociais do Supremo Tribunal de Justiça
e das Relações, logo compreendemos que desapareceram as razões da subalternidade da
jurisdição laboral face às demais jurisdições.
As causas profundas da especialização das questões laborais e da segurança social,
ou seja, a autonomia do direito substantivo como disciplina jurídica própria são, ao
mesmo tempo e no mesmo sentido, esforçadas pelo suporte de um direito adjectivo
especializado face ao direito processual civil o que, convenhamos, atribui à jurisdição
laboral ingredientes qualitativamente distintos dos que levaram à criação dos Tribunais
Marítimos e dos Tribunais de Comércio.
Dum lado, os Tribunais de Trablho abarcam a quase integralidade do território
nacional, mas, como se disse, beneficiam de um direito adjectivo próprio e de secções
especializadas nos Tribunais de recurso o que os faz destacar dos demais tribunais com
competência especializada.
Por outro lado, o relevo político e social das questões laborais e o número de
conflitos levados ao contencioso judicial imprimem uma justificação diferente,
qualitativa e quantitativamente diversa, para o destaque desta especialização perante a
jurisdição comum ou genérica.
Por fim, a criação dos Tribunais de Comércio e dos Tribunais Marítimos e a sua
efectiva instalação, prenunciam uma nova organização onde o primado da
especialização será o timbre e a matriz da malha judiciária.
A complexidade crescente das relações humanas, a internacionalização do direito, a
interacção das diversas ordens jurídicas, provocam o alargamento vertical e horizontal
do campo de análise dos factos e das situações jurídicas.
E, a par com este deslumbramento dos horizontes, acha-se outro mais intenso
provindo do inesgotável mundo da informação jurídica, das bases de dados, do correio
electrónico, da internet.
94
Esta realidade deixou um rasto antagónico de complexidade e de profundidade face à
volatibilidade e velocidade dos fenómenos e do tráfego jurídico o que, inelutavelmente
nos empurra para a diferenciação e para a especialização.
Não sendo possível, porque não é, exigir que as instituições judiciárias acompanhem
esta realidade, há que dotá-los de ductilidade e plasticidade, o que, convenhamos, é
incompatível com opções rigoristas, formalistas e ritualistas que estão mais preocupadas
com a autoridade de quem decide do que com a justeza e adequação da decisão.
O que se pode concluir, sem qualquer esforço, é que o futuro coincide com o
presente e este é incompatível com o imobilismo judiciário e com uma cultura de
autoridade sem responsabilidade.
Também facilmente se pode concluir que a organização judiciária que temos se
mostra insusceptível de satisfazer a procura do serviço de justiça seja no plano
quantitativo (nos grandes centros urbanos) seja sob um ângulo qualitativo.
Também ainda se pode concluir que o mundo judiciário não se ache erigido segundo
um modelo organizatório com preocupações democráticas.
Basta atentar pela inexistência de uma verdadeira (eu sublinho: verdadeira) Segunda
Instância sobre a matéria de facto para, sem mais rodeios, se concluir pelo défice de
cidadania que as partes padecem em Tribunal.
Mas isso são contas de outro rosário...
Por agora, deveremos concluir pela inexorável e imparável caminhada para a
especialização, mas, paradoxalmente, sem permitir que se perca a visão humanísta do
conjunto o que implicará, numa justiça de futuro, que os Juízes e os Advogados sejam,
cada vez mais assessorados por técnicos que não têm poder de decidir e que a
participação de não magistrados nas decisões se vá generalizando.
Mas, para isso, ainda é cedo.
Só então a justiça será uma tarefa comum.
95
White-Collar Crime e Justiça Penal
(Uma Abordagem Criminológica)
Professor Doutor Manuel da Costa Andrade*
Orador
I. Introdução
1. Foi-me cometida a tarefa de trazer à discussão deste oportuno e enriquecedor
Colóquio alguns tópicos relativos ao chamado white-collar crime e, noutra perspectiva,
aos crimes contra a economia. Tal como o interpretei e interiorizei, o mandato que me
foi dado aponta privilegiadamente para uma reflexão de fundo marcadamente
criminológico. De qualquer forma, uma tarefa que só de forma apressada e menos atenta
se poderia considerar estranha face às preocupações e ao propósito que puseram de pé o
Colóquio.
Dizêmo-lo sobretudo à vista da mudança de paradigma sofrida pela reflexão e pela
investigação criminológicas a partir dos anos sessenta – a querer-se uma data: 1963, ano
da publicação do marcante livro de H. BECKER: Outsiders. Reporto-me
fundamentalmente à viragem protagonizada pelos movimentos que ficariam conhecidos
como interaccionismo simbólico ou labeling approach e criminologia crítica ou
radical. Que, no seu conjunto, acabaram por dar corpo a uma ruptura tão profunda
como irreversível com o monismo etiológico-causalista e positivista a que, tanto a nível
individual-antropológico como a nível sociológico, obedecia a criminologia tradicional,
inaugurada, havia um século, pela escola de LOMBROSO.
A partir de então o problema criminológico deixa de se circunscrever à pergunta
clássica: porque é que as pessoas cometem crimes? Para além disso e sobretudo, passa
também a questionar-se: porque é que determinados comportamentos (e não outros) são
considerados crimes? Porque é que determinadas pessoas (e não outras) são tratadas
como criminosas? Quais as consequências (em termos de aprendizagem e de
interiorização de uma identidade delinquente; de assunção de uma carreira delinquente
e, por vias disso, de delinquência secundária) de ser estigmatizado como delinquente?
Noutros termos, mais do que os motivos e as causas do comportamento delinquente, do
que se trata é de pôr a descoberto os critérios das agências ou instâncias de controlo.
Desde a lei criminal – a criminalização primária – até ao longo corredor das instâncias
que actualizam a criminalização secundária, reproduzindo e amplificando as cotas da
selecção: a polícia, o ministério público, os advogados, os tribunais e, a terminar, a
prisão, consabidamente a mais poderosa das “instituições totais”.
Ora, como a mais perfunctória consideração fará avultar, o white-collar crime
emerge como um topos incontornável dos passos nucleares deste novo discurso
criminológico. Numa tão estreita relação de interpenetração e de comunicação recíproca
*
Professor da Universidade de Coimbra.
96
de complexidade que se torna difícil precisar em que medida é a experiência do whitecollar crime que precipita e potencia a nova teorização criminológica ou, inversamente,
em que medida foi aquela teorização que veio pôr em evidência esta específica
manifestação de criminalidade.
É um contributo para a explicitação da pré-compreensão enunciada que nos
propomos levar a cabo. Um propósito a prosseguir de forma necessariamente
descontínua, tendo em conta o tempo que nos é dispensado.
II. A obra e o Legado de SUTHERLAND
2. Se é conveniente e pertinente referenciar uma data, podemos assinalar 1949 como
o início da investigação e da teorização criminológica do crime de colarinhos brancos.
Foi nesse ano que apareceu White-Collar Crime, o conhecido livro de E.
SUTHERLAND, uma obra que, no juízo de MANNHEIM1, creditaria o seu autor com o
direito ao prémio Nobel, se houvesse um prémio Nobel para a criminologia.
Como sempre acontece na história das ideias, também aqui é possível referenciar,
multiplicados ao longo dos séculos, antecedentes mais ou menos explícitos e
conscientes dos argumentos que deram peso à obra de SUTHERLAND. São, com
efeito, recorrentes na literatura – maxime entre moralistas, como ERASMUS ou
VIEIRA, ou romancistas, como BALZAC – as tomadas de posição a sublinhar tanto a
frequência dos crimes dos poderosos como o seu tratamento privilegiado.
Expressiva neste contexto a controvérsia entre Sócrates e Trasímaco, levada por
PLATÃO às páginas de A República. Temos, em vista a parte do diálogo em que
Trasímaco, antecipando os termos do que hoje se designa por criminologia do conflito,2
confronta o idealismo optimista de Sócrates com a cortante asserção: “afirmo que a
justiça não é outra coisa senão a vantagem do mais forte”. É, de resto, conhecida a
história devida à tradição, que nos recorda a cena de Alexandre a censurar o pirata com
que se cruzara nos mares e que acusa pela sua prática de rapina e de espalhar o medo e a
insegurança na circulação marítima. Tudo em consonância com a representação
colectiva, mais ou menos explícita ou latente mas sempre presente, segundo a qual a
malha da justiça apanha o peixe miúdo mas deixa escapar o tubarão.
Já no século passado é possível contar com um número significativo de publicações,
orientadas para a teorização sociológica e de pendor vocacionadamente crítico, onde a
referência aos robber barons se mostra particularmente insistente. Um panorama em
que se justificará uma menção particular à obra de EDWIN HILL com o título sugestivo
Criminal Capitalists (1872).
3. De todo o modo, para SUTHERLAND sobra sempre o mérito de ter legado o
primeiro tratamento sistemático – tanto no plano da investigação empírica como do
enquadramento na grande construção teórico-criminológica – do crime de colarinho
1
H. MANNHEIM, Criminologia Comparada, II, Lisboa, 1985, p.722.
É assim, pelo menos, na interpretação de R. DAHRENDORF. Cf., do autor, Ensaios de Teoria da
Sociedade, Rio de Janeiro, 1974, p. 151 ss.
2
97
branco. E de o ter feito provocando ondas de choque e abalos que condicionaram
decisivamente a evolução ulterior do pensamento e da praxis em todos os domínios das
ciências criminais (criminologia, política-criminal e direito penal). De resto, e à
semelhança do que tantas vezes acontece com os eventos mais marcantes da história da
ciência, a obra de SUTHERLAND vale seguramente mais pelos efeitos reflexos e
indirectos que desencadeou – muitos claramente fora do alcance da sua previsão e
domínio – do que pelo conteúdo directo e explícito, de que o autor expressamente se
louvava. Neste último plano, a obra resulta comprometida por muitas e indisfarçáveis
debilidades, incongruências e contradições.
À luz do estado actual do conhecimento científico e do pensamento metodológicoepistemológico não será arriscado considerar definitivamente ultrapassado o legado
criminológico directo de SUTHERLAND. Mesmo atendo-nos à área nuclear da sua
elaboração teórica e investigação empírica, pouco sobrará com a indispensável
consistência e fecundidade. É o que bem ilustra a inconsistência de dois dos mais
celebrados contributos de SUTHERLAND: por um lado, a definição de white-collar
crime; e, por outro lado, a tentativa de enquadrar a experiência desta forma de
delinquência no contexto da teoria da associação diferencial, avançada pelo autor como
uma nova teoria monofactorial capaz de explicar todas as manifestações de
delinquência. E de o fazer sem a invencível petição de princípio, comum à generalidade
das teorias multifactoriais até então aventadas por criminólogos e sociólogos.
4. Numa primeira aproximação, nada mais linear e consistente do que a definição de
white-collar crime proposta por SUTHERLAND. De forma sintética: um crime
cometido por uma pessoa de elevado estatuto económico-social no exercício da sua
actividade profissional.
a) Trata-se, à partida, de um conceito animado de uma intencionalidade reformista e
crítica, apostado em alargar as fronteiras do problema criminológico e, por vias disso,
fazer entrar no âmbito do criminológicamente relevante “uma extensa área do
comportamento delinquente que é, por via de regra, esquecida”3, indo ocupar um lugar
privilegiado nas cifras negras da criminalidade oculta. Só que os limites e mesmo as
contradições deste programa resultam imediatamente expostos. Na medida em que se
propõe ultrapassar o universo de condutas incriminadas pelo direito positivo – e não é
seguro que o tenha querido – acaba por apelar para outras manifestações de ilícito. E
exigir em conformidade que o white-collar crime configure, ao menos, um ilícito (civil,
administrativo, etc.). Como facilmente se intui, uma solução que corta rente as
aspirações de uma impostação reformista. Se é certo que o horizonte da reforma sempre
será alargado, a verdade é que ele continuará a circunscrever-se ao âmbito do que
merece o sancionamento do direito positivo. O que, bem vistas as coisas, resulta
sobremaneira benigno para os detentores do poder. Ou, de forma talvez mais rigorosa,
para os que ganham com o manto de esquecimento assegurado pelas cifras negras.
98
Assim, para tornar inócua a vis reformista bastará deslocar a trincheira da resistência da
definição do ilícito criminal para a prescrição do ilícito civil ou administrativo4.
b) Também não resulta unívoco o sentido que o autor reserva à expressão whitecollar. Seguro parece apenas que pretende dar-lhe uma compreensão diferente da que
vinha colhendo no campo da teorização sociológica e que encontraria a versão
paradigmática no livro de WRIGHT MILLS, White Collars (1951).
Só que SUTHERLAND está longe de assumir consequentemente esta opção. Se é
certo que por vias de definição ele aponta recorrentemente para as pessoas de elevado
estatuto económico-social, sc., para as verdadeiras elites do mundo dos negócios – as
pessoas pertinentes à power elite5 – a verdade é que acaba por centrar a sua investigação
prevalentemente sobre os quadros médios superiores de grandes corporations, isto é,
sobre um universo qualificado de agentes portadores de valores, atitudes e motivações
no essencial sobreponíveis às dos white-collars, na terminologia de WRIGHT MILLS.
E isto descontada mesmo a frequência com que, nos dados empíricos recolhidos e
teoricamente valorados, abunda a referência a manifestações de deviance da
responsabilidade de operários de pequenas firmas ou oficinas (de relógios, automóveis,
electrodomésticos, etc). O que tende a dissolver o conceito de white-collar crime no
conceito mais amplo de occupational crime em que se esbatem as diferenças entre
white-collar crime e blue-collar crime, na linha da correcção proposta por QUINEY6 à
definição de SUTHERLAND. De um modo ou de outro, os verdadeiros detentores do
poder económico e reflexamente os maiores beneficiários do white-collar crime,
acabam por ficar à margem da teorização criminológica de SUTHERLAND e imunes às
suas propostas de política criminal.
5. As coisas resultam ainda mais óbvias do lado da construção teórica.
a) Resumidamente, com a descoberta do white-collar crime pretendeu
SUTHERLAND ter encontrado a prova que faltava para dar suporte, deixando-a sem
alternativa plausível, à teoria da associação diferencial. Cuja elaboração, sustentação e
defesa erigiu em desígnio da sua carreira científica. E face à qual tanto a investigação
empírica como a reflexão teórica em matéria de white-collar crime assume um papel
meramente subordinado e instrumental.
Tal como consta, desde a versão originária (1939) do livro Principles of
Criminology, em boa verdade a obra capital de SUTHERLAND, a associação
3
E. SUTHERLAND, “Crime and Business”, The Annals of the American Academy of Political and
Social Sciences, 1941, p.112.
4
Sobre esta observação, que faz eco da refexão da criminologia crítica ou radical, cf., por todos, G.
GRABINER, “The Limits of Three Perspectives on Crime: 'Values-free Science', Óbjective law' and'
State morality'”, Issues in Criminology, 1973, p. 35 ss; SCHWENDINGER(H./J.), “Defenders of Order
or Guardians of Human Rights?” in:I. TAYLOR/P. WALTON/J. YOUNG (Edit.), Critical Criminology,
London, 1975, p. 474 ss.
5
Power elite é o conceito que dá o título a outra das obras marcantes de W. MILLS, The Power Elite,
1956, aqui citada na versão portuguesa, A Elite do Poder, Rio de Janeiro, 1975.
99
diferencial é uma teoria sociológica, monofactorial, que se reivindica capaz de explicar
todas a formas e tipos de deviance. E, nessa linha, vocacionada para desferir o golpe de
misericórdia nas velhas representações criminológicas que, em consonância com o
estereótipo lombrosiano, encaravam o delinquente como um ser diferente e, hoc sensu,
anormal ou patológico7. E que, do lado da criminologia de fundo sociológico,
privilegiavam a eficácia etiológica de variáveis associadas às ideias de crise, pobreza,
miséria, marginalidade, etc.
Apresentada de forma analítica, a teoria integrava um conjunto de nove teses. Entre
elas, o primado era claramente reservado à tese n.º6: “uma pessoa torna-se delinquente
quando o peso das definições positivas da violação da lei supera o peso das definições
negativas”.
b) Para levar por diante o seu propósito, SUTHERLAND afasta com indisfarçável
ligeireza o relevo explicativo de factores como a pobreza. Sendo certo que a
circunstância óbvia de a miséria não explicar o white-collar crime não é razão
cientificamente convalidada para, sem mais, denegar toda e qualquer fecundidade
heurístico-criminológica à pobreza. Por parecer seguro que a pobreza pode ter um peso
acrescido na génese de manchas consideráveis de delinquência.
Não suscita menor espanto a facilidade com que o autor afasta a relevância das
variáveis psicológicas, psiquiátricas ou psicanalíticas, só possível à custa de flagrante
petição de princípio.
Por um lado, não se demonstra que o sucesso económico figure, só por si e
invariavelmente, como sinal da “normalidade” psicológica. Por outro lado e
complementarmente, mesmo admitindo, à custa de arriscado salto lógico, a tese da
“normalidade” dos delinquentes de colarinhos brancos, sobrará sempre por
confirmar/infirmar a pertinência da afecção psicológica na criminogénese de outros
domínios da fenomenologia criminal.
Nada, por isso, menos conclusivo do que a conhecida e tantas vezes citada afirmação
de SUTHERLAND: “os líderes do mundo dos negócios são pessoas capazes,
emotivamente equilibradas e em nenhum sentido patológicas. Não há nenhuma razão
para acreditar que a General Motors sofre de um complexo de inferioridade; que a
Aluminium Company of America sofre de um complexo de frustração-agressão; a U.S.
Steel tem complexo de Édipo; a Armour Company tem o desejo de morte ou que a Du
Ponts deseja voltar para o ventre materno. O postulado de que o delinquente tem de
sofrer de alguma destas perturbações do foro intelectual ou emotivo parece-me absurdo.
E se é absurdo no que toca aos crimes dos homens de negócios, terá igualmente de o ser
6
Cf. R. QUINNEY, “The Study of White-Collar Crime:Toward a Reorientation in Theory and
Research”, Journal of Criminal Law, Criminology and Police Science, 1964, p. 208 ss.
7
Sobre o “modelo médico” ou “epidemiológico” de compreensão do crime, cf.,E. SCHUR, Radical NonIntervention, Englewood, 1972, p.81 ss; D. MATZA, Delinquency and Drift, London, 1964, p.17 ss.
100
quanto aos crimes cometidos pelos membros das classes economicamente mais
baixas”8.
c) Também o discurso tecido por SUTHERLAND para demonstrar, pela positiva, a
teoria da associação diferencial se revela sobremaneira inconsistente e
metodologicamente incongruente. Tudo, com efeito, parece assentar num invencível
desfasamento entre os dados recolhidos e a hipótese teórica a convalidar. É que, a serem
pertinentes os dados e os factos recolhidos, eles acabam por infirmar, em vez de
confirmar a associação diferencial.
Por via de regra, os dados recolhidos por SUTHERLAND apontam para delinquentes
de white-collar crime que em termos ideal-típicos se podem sintetizar: jovens e
ambiciosos college boys, que chegam ao mundo dos negócios no termo de um processo
de socialização (na família, na igreja e na escola) que lhes permitiu interiorizar os
valores e os mores da legalidade e da cultura da respeitável sociedade americana. Em
termos tais que a interpretação de SUTHERLAND sugere imediatamente a ideia das
“técnicas de racionalização ou de neutralização”, pertinentes a uma teoria de grande
fecundidade heurística, mas assente no postulado da continuidade entre as convicções
do delinquente e os valores da cultura dominante. Ou, na linguagem de
SUTHERLAND, na prevalência das definições negativas da deviance. Tudo estará, com
efeito, em neutralizar não os valores e a cultura em si – a que continua a jurar-se
fidelidade –, mas a sua valência face ao caso concreto9.
Elucidativa, a este propósito, a resposta de um dos delinquentes de colarinhos
brancos entrevistados por SUTHERLAND:” When I graduated from college I had
plenty of ideas of honesty, fair play and cooperation which I had acquired at home, in
school and from lectures”. Noutros termos, e ao arrepio do enunciado nuclear da
associação diferencial, tudo parece sugerir delinquentes que convivem com definições
negativas da delinquência com um peso relativamente superior ao das definições
positivas. E, todavia, cometem crimes. Ao arrepio do enunciado nuclear da teoria da
associação diferencial.
6. Como ficou sugerido, seriam mais duradoiros e de maior fôlego os efeitos
indirectos e reflexos da investigação e da teorização de SUTHERLAND sobre as
ciências criminais e, em particular, a criminologia. Nesta linha não será mesmo
impertinente acreditar que, tal como hoje se entende e se pratica, a criminologia é
grandemente tributária da sucessão de réplicas desencadeadas pela descoberta e
teorização do white-collar crime.
8
Cf. The Sutherland Papers (Edit. A. COHEN/A. LINDESMITH/ K. SCHLUESSLER), Bloomington,
1956, p. 96.
9
Sobre as técnicas de neutralização, cf. infra. Para uma crítica mais desenvolvida à teoria da associação
diferencial como explicação do white-collar crime, M. CLINARD, The Black Market: A Study of WhiteCollar Crime, N.York, 1952, p. 298 ss;R. LANE, “Why Business Men Violate the Law” Journal of
Criminal Law, Criminology and Police Science, 1953, p. 159; K. OPP, Soziologie der
Wirtschaftskriminalität, München, 1975, p, 68 ss.
101
Na impossibilidade de um levantamento mais aturado, convirá sinalizar algumas das
vias mais expostas de comunicabilidade entre a teoria do white-collar crime e a
criminologia actual.
a) Em primeiro lugar, foi em boa medida a experiência do white-collar crime que
impôs uma (re)definição do problema e do campo criminológico, induzindo ao mesmo
tempo um enriquecimento do arsenal de instrumentos e de técnicas de investigação e
um alargamento do espectro de hipóteses explicativas. Depois da descoberta do whitecollar crime não podia continuar a circunscrever-se o criminológico ao problema
etiológico sob o pressuposto da definição do crime como um dado. Em vez disso,
rectius para além disso, a criminologia foi também chamada a clarificar a génese, o
triunfo, os mecanismos e estratégias de conservação e legitimação da ordem social e da
construção social da realidade que a suporta. E, reflexamente, as margens de tolerância
que está disposta a conceder às construções alternativas.
Nesta linha, a criminologia foi chamada a decifrar (pondo em evidência as variáveis
que o condicionam) o discurso da criminalização primária, às mãos do legislador penal.
E, num segundo momento, recensear e referenciar no seu peso relativo os mecanismos
de selecção que operam ao nível da criminalização secundária. Trata-se aqui de tentar
descobrir as regularidades que explicam: por um lado, o defasamento entre a
criminalidade real e a criminalidade oficial, sc., a criminalidade conhecida pelas
instâncias formais de controlo, ao menos ao nível da polícia, considerada o first-lineenforcer; e, por outro lado, a chamada “mortalidade de casos criminais” ao longo do
corredor da reacção à deviance.
b) Como resulta do exposto, foi em boa medida o white-collar crime que estimulou o
estudo da chamada sociologia da sociedade punitiva – ou, como os criminólogos de
inspiração freudiana preferem, a “psicanálise da sociedade punitiva”. O que em boa
medida explica a emergência de uma nova criminologia do conflito que faz ouvir, no
âmbito da sociologia ocidental, um discurso no essencial sobreponível às representações
da criminologia de inspiração marxista10. Um discurso onde sobressai a denúncia do
direito penal como instrumento de “classe”: longe de configurar a cristalização dos
valores consensuais e básicos da comunidade, o direito penal assegura aos interesses
dos grupos historicamente dominantes o seu triunfo sobre os interesses antagónicos.
Expressivo neste contexto é o contraste frequentemente citado entre a punição
extremamente rarefeita e benigna do white-collar crime face à densificação da teia de
incriminações votadas à tutela do património.
c) O white-collar crime viria também a converter-se num novo tópico da
criminologia socialista. Apesar da crítica sistematicamente dirigida ao que designa por
10
Nesta linha avultam particularmente os nomes e as obras de G. VOLD, Theoretical Criminology,
N.York,1958; A. TURK, Criminality and Legal Order, Chicago, 1969. Para uma referência mais aturada,
S. REID, Crime and Criminology, N.York, 1979, p, 206 ss; A. BARATTA, “Conflitto sociale e
criminalità. Per la critica della teoria del conflitto in criminologia”, La Questione Criminale, 1977, p.14
ss.
102
“criminologia burguesa”, é com indisfarçável simpatia que SUTHERLAND e a sua
obra são recebidas e citadas pela criminologia socialista. Expressivo o confronto face à
recensão reservada às demais correntes do pensamento criminológico ocidental,
principalmente às de índole individual-antropológica – o apodo de “lombrosiano”
chegou a valer entre os criminólogos da URSS ou RDA como um estigma
marcadamente negativo, por vezes mesmo com efeitos práticos muito gravosos –
psicológica, psicanalítica ou mesmo sociológica.
A explicação desta atitude é, de resto, óbvia. Com a descoberta do white-collar crime
acreditou a criminologia socialista ter encontrado a pedra angular e última do seu
edifício teórico e da sua tese nuclear: o carácter intrínseca e estruturalmente
criminógeno da sociedade capitalista. Uma sociedade marcada pelo egoísmo e antihumanismo, pela busca desesperada do lucro e pela luta de todos contra todos. Estaria,
assim, encontrado o ponto de apoio que permitia ultrapassar os limites dos primeiro
paradigma marxista – e devido sobretudo à obra de ENGELS, A Situação das Classes
Trabalhdoras na Inglaterra (1844/5) – exclusivamente virado para o crime das classes
trabalhadoras, progressivamente massificadas na miséria e condenadas ao crime, a 25.ª
hora da luta pela sobrevivência. A partir de SUTHERLAND tornava-se claro que o
crime continuaria a persistir como a marca irredutível do capitalismo. Mesmo na
hipótese teoricamente absurda de ele lograr erradicar a miséria. Pelo menos subsistiria o
crime dos possidentes, em crescimento exponencial e directamente proporcional ao
ritmo da concentração capitalista e monopolista11.
d) A experiência do white-collar crime está também associada às grandes
transformações do direito penal na segunda metade do século. Ela representa um dos
factores mais determinantes do movimento de neo-criminalização que desembocaria na
emergência e no triunfo do chamado direito penal secundário. Uma extensa área do
direito penal (da economia, da saúde, do ambiente, fiscal, etc.), marcado pela novidade,
pela especificidade dos bens jurídicos (bens jurídicos supra-individuais e, de algum
modo, construídos normativamente) e pela inovação que impôs na compreensão de
conceitos ou princípios clássicos do direito penal. Desde a legalidade (abrindo o campo
à proliferação das “leis penais em branco”), à culpa (obrigando a abrir a porta à
punibilidade das pessoas colectivas e provocando uma nova forma de equacionar e
superar os problemas do erro)12.
Este movimento deve-se fundamentalmente à confluência de duas ordens de razões.
Por um lado, o crescente intervencionismo do Estado na economia, na saúde, na
cultura, na educação, no ambiente. Um Estado que chegou mobilizado pelas tarefas da
11
Para uma primeira síntese sobre o tema, F. BERKHAUER, “Wirtschaftskriminalität in Deutschland.
Ein Systemvergleich zwischen der Deutschen Demokratischen Republik und der Bundesrepublik
Deutschland”, Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, 1975, p. 788 ss; H. HARRLAND,
Imperialismus als Quelle des Verbrechens, Berlim,1972, sobretudo p. 69 ss; OPP, Soziologie der
Wirtschaftscriminalität, p. 118 ss.
12
Sobre o direito penal secundário (conceito e princípios fundamentais), F. DIAS, Para Uma Dogmática
do Direito Penal Secundário, Coimbra, 1984.
103
reconstrução da Europa destruída e pela urgência de assegurar a sobrevivência dos seus
povos. Mas que acabou por ficar como responsável pela Daseinsvorsorge, assumindo
sobre si o dever de assegurar a todos limiares mínimos de subsistência compatíveis com
as exigências irredutíveis da dignidade humana.
Decisiva em segundo lugar e complementarmente a própria experiência da
criminologia do white-collar crime. Que veio pôr a descoberto o universo de condutas
recondutíveis àquele conceito, condutas que, apesar da sua extensão, frequência e
danosidade social particularmente drástica, persistiam sistematicamente impunes. Mas
que o Estado – agora um Estado democrático, mas também social – não podia continuar
a encarar como meros Kavaliersdelikte. E recondutíveis, quando muito, a meras
manifestações de antiadministratividade (na linha de GOLDSCHMIDT e WOLF)13 e,
como tais, imunes ao estigma e à censura do ilícito penal. A tanto se opunha, de resto, o
princípio de igualdade.
III. A Criminologia do white-collar crime
7. Chegados aqui, cabe deixar, a traço necessariamente grosso, um registo do
panorama actual da criminologia do white-collar crime. Com uma correcção à partida:
em vez de uma criminologia do white-collar crime – concebida como um capítulo
autónomo e com uma topografia determinada no universo das ciências criminais – será
talvez mais ajustado falar de uma nova criminologia, influenciada e co-determinada
pela experiência do white-collar crime. Por ser evidente que a experiência do whitecollar crime “colonizou” de forma sistémica todo o espaço da criminologia. Abrindo
uma concessão à linguagem do momento, será mais correcto um paradigma de
“globalização” do que de localização teórica.
8. Conceito de white-collar crime – Para ter a indispensável consitência e
fecundidade heurístico-teórica, há que manter, no essencial e devidamente depurada, a
definição adiantada por SUTHERLAND, não abrindo nomeadamente mão da exigência
de se tratar de crime cometido por pessoa de elevado estatuto económico-social. Nada,
com efeito, parece ganhar-se com a adopção de um conceito de occupational crime
(QUINNEY), um conceito tendencialmente generalizado e susceptível de abarcar tanto
os white-collars como os blue-collars.
De precisar ainda, na linha da actual compreensão do objecto da criminologia, que a
expressão crime não abrange apenas o comportamento declarado punível por lei
positiva. Pode tratar-se tão só de manifestações de danosidade social criminalizáveis ou,
ao menos, susceptíveis de levantar o problema da criminalização.
Por outro lado, resulta clara a distinção entre o conceito criminológico de whitecollar crime e o conceito jurídico-penal de crime económico. Como é próprio das
categorizações normativas ou dogmáticas, o crime económico é definido a partir da
13
Para uma síntese, C. ANDRADE, “Contributo para o Conceito de Contra-Ordenação. A Experiência
Alemã”, Revista de Direito e Economia, 1980/81, p. 93 ss:
104
especificidade dos bens jurídicos atingidos: bens jurídicos supra-individuais,
correspondentes a valores ou interesses atinentes à ordenação económica no seu
conjunto ou a ramos fundamentais daquela ordenação.
Trata-se, seguramente, de conceitos com uma extensão em boa medida comum, mas
que cobrem fenomenologias não inteiramente sobreponíveis. Por ser evidente que nem
todo o crime de colarinho branco será crime contra a economia nacional (pense-se, vg.,
num crime contra a saúde praticado pelo rico e poderoso director de uma clínica);
como, inversamente, nem todo o crime contra a economia tem de ser um crime de
colarinho branco (pense-se, por exemplo, no crime de Especulação praticado por uma
modesta peixeira).
9. Fenomenologia – a) Tal como fica sumariamente definido, o conceito de whitecollar crime projecta-se sobre uma extensa e heterogénea fenomenologia que ultrapassa
as fronteiras do crime económico, a que anda preferencialmente associado. Bem vistas
as coisas, mesmo as infracções pertinentes ao direito penal clássico podem revestir o
carácter de crime de colarinho branco. Será assim sempre que ele seja praticado por
uma pessoa de elevado estatuto económico-social (no exercício das suas funções). Isto
sem se desconhecer que há áreas da delinquência normalmente pertinentes à categoria
de white-collar crime. É o que tende a suceder, para além dos crimes contra a economia
nacional, com os crimes contra a saúde, o ambiente, o património cultural, o fisco, a
concorrência, etc.
Outra nota distintiva desta criminalidade é a associação particularmente estreita às
estruturas económico-sociais. O que se espelha na sua relatividade e variabilidade:
tanto numa perspectiva diacrónica como comparatística. Tal vale, mais uma vez e
paradigmaticamente, para as infracções anti-económicas, que obedecem a um desenho e
a um sentido inteiramente díspares no contexto, respectivamente, de uma economia de
mercado ou de uma economia socialista e dirigida. Elucidativo o confronto das
experiências americana e soviética nos anos sessenta. Enquanto nos Estados Unidos se
julgavam e condenavam por cartelização e práticas monopolistas os agentes dos
célebres Philadelphia electrical equipment cases, no mesmo ano eram condenados à
morte na URSS os agentes que, em violação do monopólio (estadual), tinham ensaiado
formas (privadas e) concorrenciais de organização empresarial.
b) A variabilidade e a relatividade são outrossim confirmadas pela experiência
portuguesa dos últimos 25 anos. É o que, mesmo na ausência de uma comprovação
empírica e estatística definitiva, o mais perfunctório exame da casuística disponível
deixa a descoberto.
Resumidamente, durante os primeiros dez anos desse período os tribunais
portugueses foram sobretudo chamados a decidir casos de Especulação e de
Açambarcamento. Isto no contexto de uma experiência política e económica
privilegiadamente vocacionada para assegurar o regular abastecimento do mercado e a
estabilidade dos preços aos níveis politicamente desejáveis.
105
Na década seguinte a criminalidade económica identificou-se sobretudo com os
crimes de Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de Desvio de subvenção,
subsídio ou crédit bonificado (arts 36.º e 37.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de
Janeiro). Mais uma vez, é patente a vinculação à conjuntura económica: foi o período
imediatamente subsequente à adesão de Portugal às Comunidades Europeias, que fez
afluir ao nosso país grandes correntes de fundos destinados a subsidiar os mais diversos
sectores de actividade. Uma realidade que constituiu o caldo de cultura para as plúrimas
e diversificadas práticas de obtenção abusiva e de desvio.
Também não será arriscado apontar a Fraude fiscal (art. 23.º do Regime jurídico das
infracções fiscais não aduaneiras), maxime na modalidade do que ficou conhecido
como “facturas falsas”, como a manifestação mais significativa de crime económico
dos últimos cinco anos. E, por vias disso, também este um ilícito que – mesmo
descontadas as elevadas cifras negras – acabou por trazer à barra dos tribunais
criminais um número considerável de agentes de colarinho branco.
c) Neste apressado rastreio, também não será difícil representar o impacto
profundamente negativo da criminalidade de white-collar. Apesar de todas as
divergências ao nível da quantificação, é hoje consensual o entendimento de que o
white-collar crime se projecta numa danosidade social particularmente qualificada.
c)1. A danosidade social começa por ter uma dimensão material, traduzida nos
prejuízos impostos à sociedade e susceptíveis de mensuração pecuniária. Por exemplo,
para a Alemanha antes da reunificação, os autores apontam para prejuízos materiais
situados entre os 10 e os 15 biliões de DM14. Neste mesmo país calcula-se que a carga
fiscal no seu conjunto poderia baixar de um terço se todos os contribuintes honrassem
as suas obrigações fiscais. Nos Estados Unidos acredita-se que a descida poderia
atingir, mesmo, os 40%. Neste mesmo país, e segundo a President's Commission on
Law Enforcement and Administration of Justice só a consumer-fraud terá custado em
1966 aos consumidores americanos 1.350 milhões de dólares. Enquanto isto e para o
mesmo período, os prejuízos causados pelo embezzlement e pela fraude fiscal terão
atingido, respectivamente, as somas de 200 e 100 milhões de dólares. Recorda-se ainda
que no âmbito da Electrical conspiracy (Filadélfia, 1961), só a General Electrical terá
arrecadado mais de 50 milhões de dólares de lucros indevidos15.
No capítulo dos danos materiais cabe ainda citar os prejuízos decorrentes da fraude e
desvio de subvenções. E que resultam da frustração dos objectivos ou metas a cuja
prossecução os fundos estavam vinculados: crescimento económico, desenvolvimento
científico, tecnológico, regional, formação profissional, etc. Embora dificilmente
avaliáveis, trata-se, seguramente de prejuízos avultados que, de qualquer forma, acabam
por comprometer drasticamente o desenvolvimento material e cultural dos povos
atingidos.
14
OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 32.
Para uma referência mais desenvolvida, cf. President's Commission on Law Enforcement and
Administration of Justice, Task Force Report: Crime and its Impact, 1967, p. 44 ss.
15
106
c)2. A par dos danos materiais avultam, igualmente óbvios e derimentes, os danos
imateriais ou morais.
A começar pelos danos que atingem directamente os valores da mais eminente
dignidade pessoal, como o caso da Talidomida deixou patente e dramaticamente a
descoberto.
Para além disso, dentre os tópicos mais recorrentemente citados, sobressai a ideia, já
sublinhada por SUTHERLAND, de “destruição da confiança” no sistema económicosocial e nas correspondentes ordenação jurídica e organização política. Como, fazendose eco da ideia, assinalava o tribunal americano que julgou a “conspiração eléctrica” de
Filadélfia: “a conduta das sociedades e indivíduos implicados repercutiu-se
negativamente sobre a imagem do sistema económico da livre empresa que nós
professamos e comprometeu irremediavelmente o modelo que oferecemos, como
alternativa de liberdade, ao controlo estatal e eventualmente a uma ditadura”.
Noutra perspectiva, falam alguns autores – sobretudo alemães – de um “efeito-deespiral”: o crime económico multiplica-se em condutas ilícitas, sobretudo por parte dos
concorrentes do infractor16. Do que não parecem subsistir dúvidas é de que o whitecollar crime, na medida em que reforça o “sentimento de injustiça” difuso na
comunidade, reforça ao mesmo tempo as cotas de cinismo na vida comunitária, um
factor de elevado potencial criminogéneo. Seguro e confirmado parece igualmente que
o white-collar crime – e, nomeadamente a representação da sua frequência e
impunidade – figura como um dos mais insistentes e fortes motivos ou referências das
chamadas técnicas de neutralização ou racionalização por parte dos agentes de outras
manifestações de delinquência.
10. Selecção e mecanismos de selecção – a) A selecção configura outro dos campos
da investigação criminológica em que o white-collar crime assume um peso
privilegiado. Além do mais porque a referência às cifras negras do crime de colarinho
branco figura invariavelmente como topos do discurso da teoria e da investigação da
selecção17. Inversamente, é também do ponto de vista da selecção que a criminologia do
white-collar crime regista os avanços mais significativos e os “adquiridos” mais
estabilizados intersubjectivamente.
Consensual e definitivo, em primeiro lugar, o próprio facto da selecção, isto é, o
facto de o desfasamento entre a criminalidade real e a criminalidade oficial – maxime a
criminalidade tratada como tal em última instância – ser aqui desproporcionadamente
superior. Este dado, correspondente às representações colectivas, é invariavelmente
confirmado pela investigação empírica, a começar pelos trabalhos pioneiros de
16
Sobre este “efeito-de-espiral” (Sog-und Spiralwirkung) – já referenciado por SUTHERLAND como
diffusion of illegal practices – cf. W. ZIRPINS/O. TERSTEGEN, Wirtschaftskriminalität.
Erscheinungsformen und ihre Bekämpfung, Lübeck, 1963, p. 32 ss. Para uma avaliação crítica, OPP,
Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 96 ss.
17
Para uma referência mais aturada ao white-collar crime do ponto de vista da selecção, cf. VOLD,
Theoretical Criminology, p. 243; F. PEARCE, O Marxismo e o Crime, Lisboa, 1977, p. 83 ss; B.
KRISBERG, Crime and Privilege. Toward a New Criminology, Engewood, 1975; R. WASSERMANN,
“Gedanken zur Wirtschaftskriminalität”, Vorgänge. Zeitschrift für Gesellschaftspolitik, 1973, p. 26 ss.
107
SUTHERLAND. Por isso, uma evidência que dispensa quaisquer contributos de
sustentação nesta sede.
Por seu turno, também não será difícil referenciar um consenso de fundo quanto à
explicação desta selecção qualificada, ou seja, quanto à identificação dos principais
mecanismos de selecção. À semelhança do que sucede na teoria criminológica geral18,
também aqui sobrelevam dois importantes mecanismos de selecção: o estereótipo e o
poder relativo do infractor.
b) Os estereótipos são sistemas de representação, mais ou menos conscientes, que
dirigem a acção na interacção quotidiana. São, na caracterização pioneira de W.
LIPPMAN, “pictures in our minds”. Para além de orientarem a acção do homem
comum, os estereótipos condicionam igualmente o quotidiano dos membros das
instâncias de controlo.
Ora, a verdade é que os white-collars não apresentam os sinais que os estereótipos
associam ao crime. Sinais que, no essencial, continuam a identificar o crime e o
criminoso segundo as velhas representações lombrosianas do agente e as teorias
sociológicas tradicionais que associavam o crime à pobreza, à família desfeita, à área
delinquente, à subcultura ou contra-cultura, à carência de oportunidades. Tudo estigmas
que o agente do white-collar crime manifestamente não exibe. Por isso é que a
“criminalidade económica não fala à fantasia e afectividade do povo” (REIWALD).
Não sendo “cliente” normal das instâncias de controlo, os colarinhos brancos não estão
sujeitos aos pertinentes efeitos de self-fullfilling prophecy e de “reprodução” da
delinquência.
Por via de estereótipo, a criminalidade de white-collar é particularmente invisível
para o sistema formal de controlo. Uma invisibilidade que acresce à invisibilidade
decorrente da dispersão (atomização), desorganização e inconsciência das “vítimas”.
Como SUTHERLAND não deixava de reconhecer, “o poder dos criminosos de whitecollar reside na fraqueza das suas vítimas”. Uma asserção que verá a sua plausibilidade
particularmente acrescida nas situações de vitimização do infinitamente pequeno
económico pelo infinitamente grande económico. Isto é, nos “crimes cometidos pelas
monstruosas organizações económicas contra indivíduos demasiado fracos e ignorantes
para serem sequer capazes de se aperceber que foram vitimizados” (CHRISTIE)19. É
por isso que fundadamente se pode sustentar que, do ponto de vista criminológico, isto
é, na perspectiva da autorepresentação e da assunção do papel de vítima, o white-collar
crime configura um victimless crime.
Estreitamente associada, há ainda a invisibilidade devida à ambivalência da
valoração moral do white-collar crime. Pelo menos ao nível das representações
colectivas, nem sempre o white-collar crime aparece como um “autêntico” crime. Como
recorda AUBERT, a lei que incrimina o white-collar crime raramente está em
18
Por todos, F. DIAS/C. ANDRADE, Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade
Criminogénea, Coimbra, 1984, p. 387 ss.
19
N. CHRISTIE, “Conflicts as Property”, The British Journal of Criminology, 1977, p.7.
108
consonância aparente com os mores. O normal será, pelo contrário, um acentuado
desfasamento entre os imperativos criminais e as normas – seguramente informais mas
nem por isso menos determinantes – que presidem à acção e à interacção na vida
quotidiana. “ Nalgumas áreas e em relação a certos grupos – precisa o autor – não se
verifica um desajustamento mas um autêntico conflito entre a lei e os mores ou
ideologias tradicionalmente aceites. Em tais casos, é frequente verificar-se a
ambivalência nas atitudes e respostas ao white-collar crime, a partir de uma lealdade
dividida entre as crenças sociais”20.
A ambivalência será tanto maior quanto mais a sociedade estiver organizada em
torno do sucesso, da obtenção dos goals culturalmente impostos. É o que tende a
acontecer nas sociedades assentes no liberalismo económico e no mercado, onde o
crime económico obedece a valores operativos que são, no fundo, os mesmos que
presidem às normas incriminatórias. E onde, por isso, a fronteira entre o crime
económico e a expressão pura e simples da “inteligência” ou do “génio” tende a esbaterse.
A ambivalência aflorou, particularmente nítida nas reacções da sociedade americana,
abertamente dividida, face ao processo de Filadélfia no caso da cartelização dos preços
dos equipamentos eléctricos. Não tendo faltado as vozes a protestar o seu espanto e
indignação por ver “homens bons” – bons chefes de família, apoiantes activos das boas
causas (religiosas, culturais, assitenciais...) sentados no lugar normalmente ocupado
pelos “verdadeiros” criminosos.
Acresce, por último e já relacionada com o poder relativo do agente, a invisibilidade
resultante da privacidade privilegiada dos agentes do crime económico: ao contrário do
que tende a suceder com o crime comum, o white-collar crime ocorre normalmente em
espaços imunes à devassa. Tudo reforçado pela complexidade técnica e consequente
opacidade das operações que concretizam as infracções: cada vez mais operações sem
tempo nem espaço, sem corpo nem rasto, e por causa disso, fora do alcance dos meios
de investigação normalmente postos ao dispor das instâncias de controlo.
c) O poder relativo do agente do crime de white-collar, que radica na
“interpenetração de papéis”(OPP) ou nos “sistemas de contacto” (LUHMANN)21 entre
a economia e o sistema penal, começa por ganhar relevo ao nível da “criminalização
primária” e prolonga-se pela “criminalização secundária”, ao longo do “corredor” do
processamento da delinquência. Se, por um lado, eles podem influenciar a feitura das
leis penais (de criminalização, descriminalização, diversão, amnistia, etc.), eles podem,
sobretudo, condicionar o resultado final do processo de aplicação. Tanto no plano
adjectivo-processual como no plano material-substantivo. Como, reportando-se aos
membros da power elite assinala MILLS, “são eles que determinam tanto o seu dever
20
V. AUBERT, “White-Collar Crime and Social Structure” in: D. CRESSEY/ D. WARD
Cf. OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 162; N. LUHMANN, Legitimation durch
Verfahren, Frankfurt, 1983, p. 75 ss.
21
109
como os deveres dos que lhes ficam abaixo. Não seguem apenas ordens, dão as ordens.
Não são meros burocratas, comandam burocracias”22.
No que ao plano substantivo concerne, convirá recordar que em nenhum outro
domínio será mais óbvia a conhecida incompletude e plasticidade da lei(penal), sc., a
sua exposição à codeterminação dos second codes 23 dos membros das instâncias
formais de controlo. Ao contrário do que acontece no direito penal clássico ou comum –
vg., Homicídio: “quem matar outra pessoa” (art.131.º do Código Penal) – aqui
escasseiam as referências objectivas e unívocas. Em vez disso, predominam claramente
as referências e os conceitos normativamente modelados e construídos e, como tais,
expostos à codeterminação dialéctica no contexto do universo de sentidos do tipo. Isto
é, conceitos cuja extensão e compreensão são, em boa medida um posterius em relação
ao “círculo hermenêutico”. É assim a começar pelos valores ou interesses erigidos à
categoria de bens jurídicos e convertidos em referentes teleológicos nucleares das
incriminações24. Tudo se conjugando para reforçar o desfasamento entre a law in books
e a law in action.
No plano especificamente processual avulta a privilegiada competência de acção 25 –
e a consequente e maior resistência à devassa – que os white-collars exibem face às
instâncias formais de controlo. E que introduz a mais ostensiva amplitude à diferença
com o delinquente comum. Para o qual tudo no processo – linguagem, ritos, gestos,
arquitectura, vestuário, rostos dos outros significantes – é alheio e alienante. Ao
contrário do que acontece com o agente de white-collar crime, o delinquente comum
está obrigado a jogar no campo do adversário26.
11. Perspectivas teórico-explicativas. À semelhança do que sucede nos demais
domínios da criminologia, também em relação ao white-collar crime têm sido mais
modestos os avanços do lado da perspectiva etiológico-explicativa. Isto é, do lado da
resposta ao problema clássico: porque é que as pessoas cometem crimes? Uma
constatação que não justificaria, em qualquer caso, o abandono ou a renúncia à
investigação e à teorização de índole explicativa.
22
A Elite do Poder, p. 338.
Sobre o conceito e o respectivo alcance criminológico, P. MACNAUGHTON-SMITH “"Der zweite
Code” in: K. LÜDERSSEN/F.SACK (Edit.), Seminar: Abweichendes Verhalten. II Die gesellschaftliche
Reaktion auf Kriminalität, Frankfurt, 1975, p. 197ss.
24
Sobre o carácter normativamente construído dos bens jurídicos do direito penal secundário, SILVA
DIAS,”O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro (Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro).
Considerações Dogmáticas e Político-Criminais”, Fisco, Julho de 1990, p.29; F.DIAS/C. ANDRADE, “O
Crime de Fraude Fiscal No Novo Direito Penal Tributário Português”, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, 1996, p. 80 ss.
25
Sobre o conceito, F. DIAS/C. ANDRADE, Criminologia, p. 377 ss.
26
Convirá reter que esta assimetria se repete do lado da denúncia, onde são igualmente ostensivos os
privilégios de que gozam os white-collars e as power elites. Como a “sociologia da denúncia” demonstra,
as queixas ou participações por eles apresentadas ao sistema formal têm mais possibilidades de sucesso.
Cf., neste sentido, D. BLACK, “Production of Crime Rates”, American Sociological Review, 1970, p.
733 ss.
23
110
a) Pelas razões sumariamente enunciadas, não parece que deva continuar a procurarse na associação diferencial “a” teoria capaz de oferecer uma interpretação causalista
da criminalidade de white-collar. Como nada parece impor que, na esteira de
SUTHERLAND, tenha de se proscrever e vetar a via das explicações de nível
individual. E isto pese, mais uma vez, a escassa fecundidade explicativa das hipóteses
até hoje adiantadas. Dentre as quais merecerão uma menção explícita as tentativas
empreendidas por CORTÉS/GATTI e por MERGEN.
CORTÉS/GATTI procuraram fundamentar uma interpretação psicanalítica do whitecollar crime. Trata-se fundamentalmente de explicar o crime – e o seu carácter
ocasional ou prevalentemente profissional – segundo o modelo psicodinâmico de
inspiração freudiana. Tudo dependeria do jogo e do peso relativo das pulsões do Id em
conflito com a censura do Super-ego27.
No “psicograma” do agente do white-collar crime esboçado por MERGEN sobressai
uma personalidade primitiva, egoística, com dificuldades de contacto e de comunicação
mas, ao mesmo tempo, narcisista, ambiciosa e dependente do sucesso material.
Normalmente procura compensar as dificuldades ao nível da comunicação e da relação
com manifestações de mecenato e generosidade. “É requintado, talvez também
inteligente, mas raramente culto”. É, para além disso, extremamemnte dinâmico, amigo
do movimento e da acção e indiferente ao risco28.
b) Afiguram-se teoricamente mais consistentes e empiricamente mais sustentadas as
vias de investigação psico-sociológica e sociológica. É o que pode ilustrar a citação,
respectivamente, da teoria das “técnicas de racionalização ou de neutralização” e da
teoria da “anomia”.
b)1. A teoria das técnicas de neutralização – devida sobretudo ao estudo de
SYKES/MATZA Techniques of Neutralization: a Theory of Delinquency (1957)29 –
surgiu como contestação e alternativa às teorias da subcultura e da contracultura
delinquentes. Ao contrário do que estas supunham, verifica-se que os delinquentes
interiorizam os valores e as normas da sociedade dominante. O que explica a deviance,
neste contexto de continuidade entre o delinquente e a cultura dominante, é o recurso às
verbalizações ou racionalizações. São elas que “convert infraction to mere action”
(MATZA), permitindo ao delinquente ter o bolo e comê-lo. São elas que permitem
continuar a declinar fidelidade às normas e preservar a imagem de respeitabilidade sem
ter de renunciar às gratificações da deviance nem de suportar os correspondentes
sentimentos de culpa. Trata-se, noutros termos, de técnicas de “justificação” da conduta,
assentes na manipulação e modulação do sentido e alcance das normas, em ordem a
afastar a sua aplicação no caso concreto. Na síntese dos autores, a censura “flowing
27
J. CORTÉS/F. GATTI, Delinquency and Crime. A Biopsychological Approach. N.York, 1972, p. 215
ss.
28
Do autor, cf. sobretudo, Tat und Täter. Der Verbrecher in der Gesellschaft, München, 1971 p. 45 ss.
29
American Sociological Review, 1957 p. 664 ss. Para uma referência mais desenvolvida, C.
ANDRADE, A Vítima e o Problema Criminal, 1980, p.155 ss; F. DIAS/C. ANDRADE, Criminologia,
1984, p. 235 ss.
111
from internalized norms and conforming others in the social environment is neutralized,
turned back, or deflected in advance”30.
A fecundidade teórico-explicativa das técnicas de neutralização face á criminalidade
de white-collar revela-se em duas direcções. Por um lado e como deixámos antecipado,
o white-collar crime figura, não raro, como referente de neutralização da culpa por parte
dos delinquentes comuns. Que não se dispõem a suportar os custos da obediência às
normas quando sabem – ou suspeitam – que as elites da sociedade, os expoentes da vida
económica, política e social, isto é os moral entrepreneurs (BECKER), as violam com
facilidade. Como, nesta linha acentua LANE, é a racionalização que oferece ao
delinquente “ an explanation for his offense satisfactory to himself and to his presumed
or real accusers”31.
Por outro lado e sobretudo, também os delinquentes de white-collar recorrem com
grande frequência à neutralização da culpa. Não será mesmo arriscado acreditar que a
criminalidade de white-collar, e particularmente a criminalidade económica, constitui o
terreno privilegiado da s técnicas de neutralização. Pela natureza das coisas,
dificilmente se encontrará domínio onde seja mais linear – e subjectivamente mais
instante32 – racionalizar no sentido de a conduta ser “sempre ilegal e raramente imoral”
(W. MILLS). Na síntese de AUBERT, “o que distingue o delinquente de white-collar é
o facto de ele ter à sua disposição um bem elaborado e geralmente aceite sistema de
racionalizações ideológicas para a sua delinquência”33.
É o que os estudos votados à análise das motivações destes agentes não deixam de
assinalar. Significativo, de resto, o facto, de já antes da publicação do estudo de
SYKES/MATZA, a ideia de neutralização da culpa ter ocupado um lugar de relevo em
clássicos da criminologia do white-collar crime como The Black Market: A Study of
White-Collar Crime (1952) de M. CLINARD ou Other People's Money: A Study in the
Social Psychology of Embezzlement (1953), de D. CRESSEY. O primeiro põe em relevo
a frequência com que os agentes denunciam a inadequação das normas legais violadas,
obra de políticos desconhecedores, se não mesmo inimigos de uma economia assente na
livre empresa e nas leis do mercado. Segundo o autor, “uma justificação comummente
avançada pelos operadores do mercado negro é a de que o governo não tem qualquer
direito para interferir no curso dos seus negócios”. Como facilmente se representa, uma
“argumentação” no essencial recondutível ao que SYKES/MATZA designariam por
“condenação dos condenadores”. Por seu turno, CRESSEY põe a tónica na ideia de
negação do dano, sistematicamente invocada pelas pessoas de elevado estatuto social
que se aproveitam da sua posição de confiança para se apropriarem do dinheiro que lhes
está confiado(embezzlement).
30
American Sociological Review, 1957 p. 666.
G. GEIS (Edit.), White-Collar Criminal: the Offender in Business and the Professions, London, 1968
p.12. Em sentido convergente, OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 36 ss.
32
Sobre a necessidade subjectiva da racionalização, C. ANDRADE, A Vítima, p.170.
33
V. AUBERT, “White-collar Crime and Social Structure”, p. 88. Sobre as técnicas de neutralização no
campo da criminalidade económica, cf. ainda C. ANDRADE, ob.cit. 158 ss.
31
112
Outra técnica de neutralização comum entre os delinquentes de white-collar é o que
SYKES/MATZA designam por apelo a lealdades superiores: o agente viola a lei
invocando a “verdadeira” interpretação e promoção dos valores que ela se propõe
proteger. É o que ilustram os estudos feitos na América sobre a cartelização dos preços,
que os acusados promoviam em nome da estabilidade do mercado. O mesmo valendo
para a corrupção sindical, “justificada” com o propósito de assegurar a paz laboral34.
As técnicas de neutralização são igualmente frequentes entre os agentes das fraudes
fiscais e dos abusos e desvios em matéria de subvenções ou subsídios. Como
verbalização normal dos ilícitos fiscais aparece a denúncia da “injustiça” do sistema
fiscal ou o argumento (racionalização ideológica) da má utilização do dinheiro
recolhido pelo Fisco. Ou ainda o argumento de que o ilícito não lesa ninguém (negação
da vítima/negação do dano): apenas se lesa o Estado, que não passa de uma
“abstracção” sem rosto35. Os crimes de fraude e de desvio de subvenções são
frequentemente levados a cabo em nome do appeal to higher loyalties, por vezes
lealdades de entono quase patriótico, do género: “ o que interessa é que o dinheiro
venha para o nosso país ou para a nossa região”. Outras vezes – racionalização
frequente nas fraudes e desvios de subsídios destinados à formação profissional e
utilizados para capitalizar as empresas – argumenta-se com a viabilização das unidades
económicas e a salvaguarda do emprego a que costuma acrescer a racionalização de o
infractor não ter usado os fundos para indevido locupletamento pessoal.
b)2. O recurso à teoria da anomia como explicação sociológica do white-collar crime
vem sendo proposto e ensaiado sobretudo pelo criminólogo/sociólogo alemão K. OPP,
autor do já por mais de uma vez citado Soziologie der Wirtschaftskriminalität (1975).
OPP parte da teoria da anomia com o sentido e alcance com que foi cunhada por R.
MERTON, a partir da versão originária de 1938 (Social Structure and Anomie).
Emergindo como o ponto de chegada da sociologia criminal americana, a teoria da
anomia caracteriza-se, desde logo, por definir o sistema social como referente
criminogéneo. O que significa a superação do horizonte e das limitações da ecologia
criminal ou das subculturas delinquentes que, fiéis ao “modelo médico”, continuavam a
encarar o crime como uma manifestação “patológica” ou “anormal” e, por vias disso,
necessariamente imputável a algo de “diferente”: uma “área delinquente” ou uma
subcultura. Para R. MERTON, o crime é um produto “normal” do funcionamento do
sistema social. Na formulação do autor, “uma virtude cardeal americana, a ambição,
promove um vício cardeal americano, o comportamento desviante”.
A anomia é concebida “as a breakdown in the cultural structure, occurring
particularly when there is an acute disjunction between the cultural norms and goals
and the socially structured capacities of members of the group to act in accord with
34
Desenvolvidamente, R. KENNEDY, The Enemy Within, N. York, 1960, p. 215 ss.
Desenvolvidamente, G. HOUCHON, “Psycho-sociologie de la fraude fiscale”, in: Hommage à Victor
Gothot, Liège, 1963, p. 369 ss. Esta é, de resto, uma racionalização muito frequente entre os agentes dos
chamados crimes against bureaucracies. Para uma referência mais aturada, E. SMIGEL/ L. ROSS,
(Edit.), Crimes Against Bureaucracy, N. York, 1970, passim.
35
113
them”36. A anomia aparece, assim, como expressão de uma sociedade assente na
assimetria ou desfasamento entre a estrutura cultural, tendencialmente igualitária e
democrática (impondo a todos os mesmos goals e as mesmas normas ou meios
legítimos para os alcançar) e a estrutura social. que distribui desigualmente as
oportunidades legítimas. O crime resulta como função de três variáveis: a (elevada)
intensidade dos goals; a (baixa) intensidade das normas legítimas; e as (escassas)
oportunidades legítimas.
Ao tentar aplicar a teoria da anomia à explicação sociológica da criminalidade de
white-collar, OPP faz intervir os desenvolvimentos entretanto ocorridos e devidos aos
contributos, entre outros, de CLOWARD/OHLIN. Aos autores de Delinquency and
Opportunity (1960)37 ficou a dever-se a descoberta das oportunidades ilegítimas como
autónoma e determinante variável do modelo da anomia. Uma variável que comporta a
exigência de um ambiente de aprendizagem dos valores e técnicas indispensáveis ao
desempenho do papel de desviante. Como facilmente e intui, uma variável com peso
acrescido no contexto da criminalidade de white-collar crime, já que não é delinquente
de colarinhos brancos quem quer. Para além disso, OPP faz intervir também os
contributos de teorias como a associação diferencial, as técnicas de neutralização e,
mesmo, o labeling approach. Que, para além da selecção, veio pôr em evidência a
vulnerabilidade diferencial do delinquente de white-collar à estigmatização e às
cerimónias degradantes do tratamento formal da delinquência. Com reflexos óbvios ao
nível das oportunidades, tanto legítimas como ilegítimas.
Introduzidas estas correcções e desenvolvimentos, acredita OPP ter encontrado uma
teoria capaz de assegurar avanços decisivos na interpretação sociológica do white-collar
crime. E tanto no âmbito dos países capitalistas como no contexto dos países socialistas.
Também aqui é possível referenciar um sistema assente na forte interiorização de
determinados goals (por exemplo, alcançar as metas consignadas no plano), que tem
como reverso os estrangulamentos ao nível das oportunidades legítimas. Tudo a induzir
o recurso aos meios ilegítimos, segundo a tese central da teoria da anomia38.
36
R. MERTON, Social Theory and Social Structure, Glencoe, 1957 p.162.
Significativo o artigo já anteriormente publicado por CLOWARD, sob o título Illegitimate Means,
Anomie and Deviant Behavior (American Sociological Review, 1959). De OPP cf. ainda Abweichendes
Verhalten und Gesellschaftsstruktur, Darmstadt, 1974, p. 123 ss; “Anomie und Prozesse der
Kriminalitätsentwicklung im sozialen Kontext. Vorschläge für die Weiterentwickung und Formalisierung
der Anomietheorie”, Zeitschrift für Soziologie, 1979, p 330 ss.
38
Cf. OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 77 ss. Em sentido convergente, A. COHEN,
Transgressão e Contrôle, S. Paulo, 1968, p.175 ss.
37
114
A Intervenção dos Advogados Prevenindo o Litígio
Dr. António Pires de Lima*
Orador
Senhor Presidente,
Senhor Presidente do Conselho Económico e Social
1. Muito obrigado pelo convite que me fazem para participar neste Colóquio sobre
Justiça.
Interpreto o convite – e a aceitação será interpretada por V. Exas. – como algo de
diferente do que ocorre com os outros conferencistas. Estes são pessoas que aqui estão
por mérito pessoal. O meu mérito é o de ter ganho umas eleições.
Essas eleições não me deram o benefício de um Pente – costes, nem os meus
conhecimentos são em grau suficiente para transmitir a V. Exas. ideias luminosas.
Não tendo sido convidado anteriormente para quaisquer conferências, ou para
participar em colóquios, interpreto a minha vinda aqui como Bastonário e em
representação da ORDEM DOS ADVOGADOS.
Contrariando o que alguns poderiam desejar não deixarei de aproveitar esta
oportunidade para avivar a polémica que, conforme alguns, e designadamente o EXMO.
SR. PROF. BOAVENTURA SOUSA SANTOS, têm gerado a ideia de que proponho
usar o bastão como um cacete.
Não é essa a minha intenção. Mas as verdades devem ser ditas.
2. Poderia interpretar o tema que me oferecem como verdadeira provocação.
Depois de que altas figuras no nosso País ousaram referir-se aos Advogados como
um grupo com a preocupação de criar carteiras de clientes, funcionar dentro dos
fenónemos de globalização, acusando-os de prolongarem processos com recursos,
designadamente para o Tribunal Constitucional, por forma a poderem ganhar
honorários, falar da intervenção do Advogado como preventor do litígio é, seguramente,
uma enorme contrariedade para os autores de tais acusações.
3. As estatísticas não estão feitas. No dia em que forem elaboradas revelarão que a
intervenção dos Advogados, evitando o litígio – evitando-o em absoluto, ou regulandoo nos seus escritórios – permitiriam concluir que os nossos Tribunais já tinham deixado
de funcionar há muitos anos, invadidos que estariam pela multiplicidade dos litígios que
são eliminados mercê da intervenção dos Advogados na actividade reservada dos
escritórios.
São os Advogados através do seu bom senso e de uma postura de composição que
logram resolver milhares de assuntos que, precisamente por isso, não caem sobre os
Tribunais.
*
Bastonário da Ordem dos Advogados.
115
4. Em termos legais podemos assegurar que a função do Advogado não se limita ao
exercício do mandato forense judicial.
O Decreto-Lei que regula a nossa actividade, o Decreto-Lei 84/84, afirma que
compete ao Advogado exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica. E é
nestas funções de consulta, e não só nelas, que se verifica a maior intervenção do
Advogado na prevenção do litígio.
A questão que deve pôr-se, porém, é a de saber se esta prevenção deve ser
interpretada em termos absolutos. Será que o Advogado na redacção do contrato, no
aconselhamento ao cliente, tem obrigação de prevenir toda a hipótese de litígio que
possa vir a suscitar-se? Será que o Advogado, na sua função social, tem possibilidade de
eliminar situações de litígio ou pré-litígio?
A minha resposta é negativa.
O Advogado pode e deve prevenir o litígio na medida em que, estando empenhado
na redacção dos textos, ou no aconselhamento, possa prever as situações de diferendo
que possam vir a suscitar-se.
Mas não mais do que isso; ele não é responsável pelos diferendos que possam
suscitar-se no quotidiano em função de uma eventual actuação delituosa por parte de
quem intervém no contrato ou de quem ouve o conselho.
5. Deixem-me dizer, porém, que é meu pensamento, que se o legislador português
descobrisse que o Advogado lograva evitar um litígio, ele próprio, na sua ânsia de
legislar, teria a preocupação de acelerar ainda mais o papel que tem tido de multiplicar o
processo legislativo, de o complicar, para que ninguém se entendesse.
Essa é uma crítica pessoal que faço ao papel que o nosso Governo, através das várias
administrações sucessivas, tem vindo a assumir, quanto a mim de uma forma perversa,
porque o que se verifica é a tentativa sintomática de evitar a intervenção do Advogado
em actos essenciais e obrigatórios de determinadas áreas, impondo e provocando uma
maior conflituidade.
Refiro-me, concretamente, às perspectivas de um novo Código do Consumidor que
está a ser congeminado e que cria um regime jurídico de protecção das pessoas
singulares sobreendividadas, onde se cria um gabinete de apoio às pessoas com o papel
de designar quem há-de recolher e analisar os dados referentes à situação patrimonial do
devedor, e preparar um plano de regulação do passivo, como diligenciar no sentido de
se tomarem as providências necessárias à defesa do mesmo património perante
terceiros, tentando obter uma solução conciliatória junto dos credores e enviar o acordo
de pagamento ao Tribunal.
Isto é um papel que deveria estar reservado aos Advogados. o projecto de diploma
legal não o prevê, antes reduz a área do exercício da profissão do Advogado.
E o mesmo se diga do IAPMEI a quem foram atribuídas funções de regulação de
processos de recuperação de empresas.
116
São dois exemplos concretos do trabalho constante, persistente e permanente, de
sucessivos Governos deste País, mais preocupados em “fogos de artifício” em promover
a procuradoria ilícita, ainda que estatal, do que em resolver o problema dos cidadãos.
Nenhum Governo de área Comunista teria conseguido, em tão pouco tempo, lograr
uma socialização da protecção jurídica, como os últimos Governos.
Estou certo de que esta política gerará maior conflituidade e, consequentemente,
maior dificuldade à acção da Justiça.
6. Referi há pouco a ideia de que se não pode exigir do Advogado que tenha a
veleidade de lograr a eliminação total do litígio. A sua intervenção, seja na consulta,
seja no aconselhamento, é a de tudo tentar para que possa propor soluções que evitem o
litígio.
Mas a eliminação total – objectivo a atingir – nem sempre é fácil porque a
imaginação humana permite fugas imprevisíveis.
7. Há, no entretanto, outras formas de solucionar o litígio que podem considerar-se,
também, na área da intervenção do Advogado em ordem a prevenir, não já a existência
mas os efeitos da conflituidade.
Não me refiro à Arbitragem.
Refiro-me a figuras ainda menos conhecidas do que a Arbitragem, ou porque pouco
trabalhadas ou porque não institucionalizadas: aludo à negociação, à mediação, à
transacção, fórmulas e formas muito utilizadas em outros Países, com grandes
resultados, mas que não têm tradição em Portugal.
Não temos um ambiente educacional para implantação destas formas de solução de
litígios, que aliás conduzem ou à sua eliminação ou à resolução dos seus efeitos. Em
Portugal o conceito de litígio, para os seus intervenientes, implica as mais das vezes a
ideia da necessidade de vencer ou, o que é pior, cumpre esmagar o adversário.
De outro lado, e aqui há que felicitar-nos por esse facto, a concessão que o povo tem
da Magistratura é elevada, considerando que o Magistrado Judicial é uma figura à parte,
com uma posição de prestígio e que, por isso mesmo, empresta às suas decisões uma
autoridade acima da discussão que se lhe submete.
Daí que eu entenda que é ainda cedo para obter resultados das tentativas legislativas
que têm sido feitas em ordem a pedir a cooperação das partes na procura de soluções
negociadas.
Refiro-me, concretamente, ao Processo Penal quando se pretende negociação como
forma de fixar as penalidades de carácter social, ou ao Processo Civil quando se pede
que as partes assumam um dever de cooperação.
E também não me parece que a Magistratura, salvo excepções, se conduza no sentido
de promover essa aproximação: um comentário que muitos Advogados fazem à
dificuldade de eliminar as consequências do litígio vai no sentido de que o diálogo não
é possível enquanto os gabinetes se mostrarem fechados, alguns deles com o letreiro
“vedada a passagem”.
117
Onde não há “passagem” também não há diálogo, e não havendo diálogo não há
qualquer possibilidade de que se chegue a acordo no que quer que seja. Começa aqui o
que cumpre mudar nas mentalidades.
8. Nem a Arbitragem – não já como forma de evitar o litígio mas de o derimir fora
dos Tribunais – tem progredido por forma a que só nos reste esperança e que seja um
meio alternativo real mas com fluidade nos Tribunais.
Os seis anos em que presidi ao Centro de Arbitragem da Ordem dos Advogados, os
cinco anos em que representei Câmaras do Comércio no Centro de Arbitragem da
Câmara de Comércio Internacional de Paris, o conhecimento que tenho do
desenvolvimento da Arbitragem em Espanha, designadamente em áreas que, em
Portugal, estão governadas a essa forma de resolução do litígio, dão-me a visão de que
temos muito que trabalhar em ordem a progredir na prática da Arbitragem ou, o mesmo
é dizer, para que a Arbitragem seja aceite como forma alternativa à solução dos litígios.
9. De tudo quanto disse permito-me concluir que considero que o Advogado tem um
papel fundamental na tarefa de evitar o litígio, seja na redacção dos textos seja na
prolação da consulta, também é minha convicção de que o trabalho se prolonga para
além do seu escritório, na fase de aconselhamento e acompanhamento quando já se
desenha a perspectiva de um litígio ou este está concretizado.
Sou francamente favorável à tese de que o Advogado é tido como ocupando um
lugar excelente e privilegiado para orientar o cliente no sentido de evitar o litígio ou
reduzir as suas consequências.
Mas é muito importante, para esse efeito, que entre os Advogados se vá cultivando o
clime de confiança recíproca, hoje muito dificultado pela multiplicidade das áreas
geográficas de formação dos licenciados em Direito.
Neste momento prevê-se que o ano de 1999/2000 represente um crescimento de
número de Advogados em Portugal na ordem dos 20%: crescimento que, em outras
áreas constituíria motivo de inveja para qualquer Governo mas que, transportado para a
área da minha profissão pode representar uma crise.
118
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Termino. Não sem que lhes afirme que ao assumir as funções de Bastonário, com os
elementos que participam nos órgãos da ORDEM e a qualidade dos que me têm
concedido uma enorme colaboração no desempenho dos nossos objectivos, é minha
convicção de que cumpre à ORDEM DOS ADVOGADOS, e aos outros parceiros
sociais produzir um trabalho de fundo no sentido de restituir e retomar uma cultura que
evite o litígio.
Assim o Estado esteja de acordo com as orientações que temos vindo a propor,
esperança que mantenho pese embora a circunstância de encontrar sistematicamente
com a oposição do Governo, recusando a participação dos Advogados na redução das
dificuldades que os Tribunais têm revelado na apreciação de litígios.
Por exemplo: o Governo vem negando sistematicamente a nossa proposta no sentido
de que se transfira para os Advogados, a verificação de incobrabilidade de créditos ou o
conhecimento da inexistência de passivo, ainda que tão só para efeitos fiscais.
Enquanto assim for, enquanto o Estado não efectuar concessões que o beneficiariam,
o nosso trabalho vai ser apenas de persistência e dedicação, na certeza de que, como há
pouco referi ao SR. DR. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é minha convicção de
que o nosso esforço será útil na perspectiva da constituição do Estado de Direito que
pretendemos, também para Portugal.
Muito obrigado.
119
O Poder Judicial Hoje
120
“A expressão das competências do poder judicial”
Dr. José Moura Nunes da Cruz*
Orador
1. Constitui para mim um grato prazer saudar, em nome do Supremo Tribunal de
Justiça e em meu nome pessoal, o Conselho Económico e Social e concretamente o seu
ilustre presidente, e felicitá-lo pela iniciativa, concepção e organização deste Colóquio
sobre a Justiça em Portugal.
Trata-se de um tema de incontornável importância e de indiscutível actualidade por
vários motivos, pelo que este Colóquio merece, a meu ver, o melhor acompanhamento e
a maior atenção e, naturalmente, interessa a este importantíssimo órgão autónomo de
consulta e concertação, constitucionalmente consagrado.
2. Colocado perante o tema que me foi proposto – A expressão das competências
do poder judicial – não deixei de sentir, por um lado, um assomo de perplexidade face
à extensão das questões, que não poderiam caber no âmbito de uma curta intervenção e,
por outro, o peso de um desafio algo irónico ao ter de falar de um “poder judicial” que
hoje, como ontem, de muitos lados é contestado.
Com efeito, e como é sabido, a teoria da divisão de poderes, derivada de
Montesquieu, é modernamente, senão já de há muito, olhada com desconfiança pelos
pensadores políticos, de tal modo que pode hoje perguntar-se se existe ainda um
verdadeiro poder judicial em confronto com os restantes poderes tradicionais.
Mesmo no plano do direito constitucional pátrio, o problema da divisão dos poderes
não é encarado hic et nunc, como divisão do poder soberano, cujo titular é o povo
(encarado como conjunto dos cidadãos), mas – como afirmam Gomes Canotilho e Vital
Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 596 – como
“divisão ou separação das funções do Estado e da sua ordenação e distribuição por
vários órgãos de soberania”.
E, curiosamente, era já esta a concepção que presidia à Constituição de 1933 quando,
no Título V, Dos tribunais, art.º 116º, dizia que “a função judicial é exercida por
tribunais ordinários e especiais”, depois de afirmar no seu art.º 71.º que “a soberania
reside em a Nação e tem por órgãos o Chefe do Estado, a Assembleia Nacional, o
Governo e os Tribunais.
No plano normativo diz-se hoje que a soberania reside no povo; dito isto e sendo os
tribunais órgãos de soberania, é frequente a observação, quando não a crítica (esta para
atacar a independência do poder judicial), de que não há qualquer relação orgânica,
directa ou indirecta, entre o titular da soberania e os titulares desses mesmos órgãos.
Por outro lado, o exercício de uma função que implica um poder soberano
permanentemente confrontado com os titulares dos outros poderes do Estado não deixou
*
Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
121
de abrir árduas querelas, que contribuíram para pôr cada vez mais em crise o chamado
poder judicial.
Basta lembrar as intermináveis discussões travadas em França à volta dos casos
Omar ou Roland Dumas e em Espanha a propósito dos casos Interlhoce e Fílesa,
atinigindo neste país foros de verdadeiro ataque organizado do poder político à
magistratura;
De tal modo, que o Rei teve de fazer uma intervenção inédita na televisão em que
(dizem as crónicas) – de forma corajosa, directa e frontal – falou da justiça. elogiou os
juízes e pediu aos espanhóis o apoio e o respeito de todo o povo àqueles que
protagonizavam um dos três suportes do Estado de Direito: a magistratura em geral e os
juízes em particular.
Isto só mostra como é difícil, em democracia, coabitar num sistema de divisão de
poderes, devido à emulação entre estes e à tentação de um deles se sobrepor ao outro.
Já D. António Ferreira Gomes (escrevendo sobre Democracia, Sindicalismo, Justiça
e Paz in “Direito e Justiça” - 1980), citado por Taipa de Carvalho no Boletim da
Faculdade de Direito, Vol. LVIII, 1982, pág. 1091, afirmava:
“Em absolutismo monárquico o rei era de direito divino, portanto superior à lei e à
nação. Era sobrano, isto é, estava acima e fora do corpo sociopolítico”... “Nas
revoluções liberais do mundo latino toda essa mitologia se transferiu, sem mais para as
novas instituições: ao rei soberano sucede o “Soberano Congresso” e a “Soberana
Constituição”... “Mas as coisas não ficaram no mero terreno da mitologia e da mística,
que aí o ridículo sempre vai matando. Na realidade concreta, o absolutismo do poder
monárquico transferiu-se absolutamente para os Parlamentos ou Congressos”... “É
sempre o obsolutismo do Estado conduzido nas formas ditas radicais, revolucionárias
ou não, mas sempre proclamadas como liberais e como expressão do liberalismo”.
A tentação hegemónica é, portanto, muito grande.
E daí que tivesse inteira razão o Dr. Narciso de Cunha Rodrigues, Procurador Geral
da República, na conferência que proferiu em Madrid, em 5-10-1993, quando disse que
“o recente ressurgimento em alguns países, da questão judicial e certas reformas
realizadas a pretexto da efectivação de objectivos de racionalidade administrativa ou
utilizando argumentos que retomam o mito rousseauniano da unidade do Estado,
evidenciam que o problema da administração da justiça vai permanecer como um dos
mais interessantes nas transformações por que estão a passar as modernas democracias”.
E concluía, citando uma frase atribuída a Poincaré: – “tudo quanto se faça para
separar a política da justiça, confinando cada uma nos seus respectivos domínios, é obra
de saúde pública”.
Mas voltemos à questão inicial.
Existe realmente um verdadeiro poder judicial?
O povo, que é o legítimo juiz dos juízes, tem resposta para isso, admiravelmente
sintetizada na réplica do camponês alemão ao seu imperador Frederico II da Prússia,
122
quando este lhe perguntou se não sabia que podia confiscar-lhe o seu moinho: – Sei,
mas também sei que ainda há juízes em Berlim!
Na verdade, qualquer cidadão tem o direito de exigir e contar com um poder judicial
independente, não só dos poderes económicos e sociais, mas também do poder político,
que lhe assegure a defesa dos seus interesses legítimos, juridicamente tutelados.
Um ilustre advogado do século XVIII, Jerónimo da Silva Araújo, no seu “Perfectus
Advocatus”, escreveu:
“Tudo está nas mãos do juiz e dele depende: a honra, a vida, os bens, o prémio, a
pena, e tudo o que há na terra. Tudo está confiado à fé e consciência dos que
administram a justiça pública. Oxalá que o juiz seja sempre bom e douto! Se assim for,
as coisas não dependem dele, mas das leis, visto que é a estas que o juiz deve obedecer,
repelindo todos os arbítrios contrários.”
Com a natural adaptação aos dias de hoje, a que não é alheia a evolução das
concepções e conjunturas económico-sociais, políticas e jurídicas, o que acima se
transcreve não deixa de encerrar certos princípios que ainda são válidos no actuar do
nosso poder judicial e que têm consagração escrita na lei, desde logo, na Lei
Fundamental.
Por outro lado, começando por definir, os tribunais como órgãos de soberania com
competência para administrar a justiça em nome do povo, consagra depois a
Constituição a independência daqueles e a sua sujeição unicamente à lei, a começar,
naturalmente por essa mesma Constituição.
Por outro lado, estabelece a mesma Lei Fundamental que, na administração da
justiça, incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados.
E estabelece ainda que “As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as
entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras entidades”, o
que significa que nenhuma entidade está imune à autoridade das decisões judiciais, nem
pode superá-las ou anulá-las.
Conforme refere Vieira de Andrade em “Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976” “A independência do Poder Judicial e a sua vinculação exclusiva
ao Direito tornam-no, nas sociedades democráticas, o guardião máximo dos direitos
individuais”.
Esta independência dos tribunais e designadamente dos juízes, face visível daqueles
como seus agentes decisores, é um elemento essencial da sua própria definição e
constitui, não uma prerrogativa ou um privilégio corporativo dos juízes, mas uma
garantia dos direitos dos cidadãos face a todos e quaisquer poderes públicos ou
privados, políticos ou económicos ou grupos (ou meros agentes) de pressão.
A independência dos juízes, quer como realidade institucional, quer como realidade
psicológica ou cultural assumida, é condição de liberdade das suas decisões face aos
123
demais poderes do Estado; e é do interesse dos cidadãos porque só ela pode garantir a
protecção e defesa dos seus direitos fundamentais e das liberdades individuais.
Entre nós, esse princípio estabelece-se normativamente, quer ao nível da
Constituição, quer ao nível da lei ordinária.
E é assegurado pelos princípios da inamovibilidade, da não sujeição a quaisquer
ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de
recurso pelos tribunais superiores, e da não responsabilização das decisões judiciais a
não ser nos casos expressamente consignados na lei.
3. Correspondendo à atitude do legislador ao conceder-lhes, reforçar-lhes, diminuirlhes ou retirar-lhes a tutela jurisdicional, os valores ou bens relativamente aos quais o
poder judicial é chamado a intervir na resolução das questões que suscitam, têm-se
alterado com o decorrer dos tempos, quer em função da relevância social que alguns
passaram a assumir ou deixaram de reflectir, quer pelo surgir de outros em resultado da
evolução sociológica, económica ou do progresso científico nos mais variados campos
como, por exemplo, em matéria de comunicação, de informação, de informática, de
saúde e de bioética.
Sendo claro que o dirimir dos litígios – com o consequente contributo para a
pacificação social – é uma das principais funções dos tribunais, e sem deixar de fazer
referência a outro importante campo onde o poder judicial encontra expressão
socialmente muito relevante – o da protecção dos direitos e interesses dos menores –
afigura-se com algum interesse a concretização, necessariamente esquemática e
exemplificativa, de alguns casos em que actualmente a actividade judicial assume
especial relevo ou maior visibilidade.
– São os casos em que está em causa a honra ou o bom nome quando atingidos
através dos meios de comunicação social, face ao impacto que estes meios
possuem na sociedade actual e, em particular – há quem o sustente –, à posição
que na vida social detêm alguns dos que se apresentam como ofendidos por tais
condutas;
Estes casos podem suscitar melindrosas questões entre a afirmação do direito à
liberdade de informar e de ser informado, e o direito à reserva da vida privada
e da vida intíma dos visados.
– São os casos do grande tráfico de estupefacientes, associado a uma nova
criminalidade organizada, cada vez mais sofisticada, para o combate da qual o
legislador se viu na necessidade de reagir através da elaboração de novos
diplomas de modo a procurar alacançar uma maior eficácia nesse domínio;
– São os casos de corrupção e da chamada criminalidade económica e financeira,
pelos custos que acarretam para a economia nacional, pelos avultados
interesses económicos em jogo, pela notoriedade social dos putativos agentes
ou pela grandeza ou importância das instituições envolvidas;
124
– São os casos de actuação no âmbito dos processos de recuperação de empresas
e falência, quer pela sua relevância no tecido económico e social das
localidades em que se inserem, quer pela importância que algumas daquelas
assumem a nível nacional, quer ainda, em especial quanto a estas últimas, pela
maior e mais profunda participação do Estado no processo tendente à sua
viabilização.
4. Quanto a uma mais concreta expressão das competências do poder judicial,
debruçar-me-ei apenas sobre uma das que considero da máxima importância. – a da
uniformização da jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Como dizia Alfredo Buzaid, Professor da Faculdade de Direito de S. Paulo, em
notável estudo publicado no já citado Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, “a
ideia de uniformizar jurisprudência vem de longe; procurou o legislador português
realizá-la há vários séculos, utilizando a figura do assento, que era um acto do Poder
Judiciário, consistindo em dar à lei interpretação autêntica.”
Comentando o regime do art.º 768.º do Código do Processo Civil de então, o
Professor José Alberto dos Reis escrevia:
“A interpretação formulada em assento vale como interpretação autêntica. Mas
daqui não é lícito concluir que o assento é uma verdadeira lei interpretativa. Não o é,
pelo órgão de que emana; não o é, pelo processo da sua formação; não o é pelo intuito
que surge. Segundo a Constituição Política, o poder de fazer leis, de ditar normas
jurídicas (inovadoras ou interpretativas) pertence exclusivamente à Assembleia
Nacional (estavamos no domínio da Constituição de 1933) e ao Governo; ora o assento
é acto, não do Poder Político, mas do Poder Judicial. O Supremo Tribunal de Justiça
quando emite um assento exerce precisamente a mesma actividade que exerce quando
julga um recurso; o tribunal Pleno formula o assento no mesmo espírito e com o mesmo
desígnio com que decide qualquer litígio submetido à sua apreciação. O assento é, pois,
um acto puramente jurisdicional”.
Não se podia ser mais claro.
E com o instituto dos assentos, que vigorou por tanto tempo sem inconvenientes de
tomo, evitavam-se os “dissídios jurisprudenciais porque estes geram o desânimo dos
contendores, cujos litígios ficam sujeitos às vicissitudes da distribuição, do mesmo
passo que produzem o descrédito do Poder Judiciário, em cujas decisões não confiam os
litigantes... A uniformização da jurisprudência impõe-se, portanto, como uma
necessidade social, a fim de assegurar a estabilidade da ordem jurídica” (Cfr. Prof.
Alfredo Buzaid, loc. cit. pág. 158).
Simplesmente, e logo desde os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1976, aquele
instituto começou a ser atacado de vários quadrantes quando se discutia o texto do art.º
8.º, com vários argumentos de que não é o menos curioso o de que os assentos eram
“um processo indirecto de manipular e subjugar o aparelho judicial ao Poder
Executivo”...
125
Com a 1.ª revisão de 1982 ditou-se o destino dos assentos quando ficou escrito no n.º
5 do art.º 115.º da Constituição que “nenhuma lei pode criar outras categorias de actos
legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa,
interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar quaisquer dos seus preceitos”.
Deste texto derivou, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreirs (loc. cit.) “a
inconstitucionalidade dos assentos em relação a normas legais, porque,
independentemente da sua caracterização dogmática como legislatio ou jurisditio, eles
se arrogam ao direito de interpretação (ou integração) autêntica da lei, de forma
vinculativa para terceiros; de resto, eles sempre estariam por natureza exluídos em
matéria de reserva de lei, pois aí só a lei pode estabelecer normas”.
E, subsequentemente, por acórdão de 7/12/93, o Tribunal Constitucional considerou
inconstitucional o último segmento da norma do art.º 2.º do Código Civil, onde se
prescrevia que “nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de
assento, doutrina com força obrigatória geral”.
Erigiu-se, assim, um sistema amputado de um dos seus aspectos mais importantes – o
carácter normativo; erigiu-se um sistema híbrido que não mata a uniformização da
jurisprudência, mas lhe confere mera “eficácia jurisdicional” e lhe imprime a natureza
de “jurisprudência qualificada”.
Mas como bem se nota no voto de vencido lavrado nesse acórdão, qual é o alcançe
de se afirmar que, afinal, o assento se situa no plano de mera eficácia jurisdicional? Só
pode ser – responde-se aí – o de que o assento possui apenas uma “autorité de fait”, que
é um mero “precedente judicial” a favor do qual joga uma “presunção de
vinculatividade”.
É, esse, de resto, o sistema de uniformização que acabou por vigorar com os art.os
732.º-A e 732.º-B do actual Código de Processo Civil e com o art.º 445.º do Código de
Processo Penal vigente, cujo n.º 3 esvazia quase completamente de sentido a
uniformização de jurisprudência ao dispor que “a decisão que resolve o conflito não
constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem
fundamentar as divergências relativas a jurisprudência fixada naquela decisão”.
E com isto ficou o Supremo Tribunal de Justiça despojado de um dos seus atributos
tradicionalmente mais significativos.
Mas a dialéctica entre o poder político e o poder judicial ainda não terminou.
Aquilo que se criticava nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça, não tardará a
ser objecto do mesmo combate relativamente ao Tribunal Constitucional, pois a
argumentação é reversível.
Também este declara inconstitucionais, com força obrigatória geral, leis da
Assembleia da República ou diplomas do Governo e igualmente inconstitucionais
determinadas interpretações da lei que os tribunais fazem no pleno uso do direito que
lhes é conferido pelo art.º 203.º da Constituição.
E pode perguntar-se se o Tribunal Constitucional não se arroga hoje em dia
substanciais poderes normativos que extravasam da chamada reserva de lei e se não
126
atinge a independência dos demais tribunais, na medida em que esta compreende a
autonomia na interpretação do direito.
O poder judicial parece incomodar muita gente e os grupos de pressão multiplicamse da maneira mais insidiosa e oculta; e como dizia Maurice Garçon (em Lettre ouverte
à la Justice) “esses grupos exercem tentativas mais ou menos discretas de pressão sobre
o Estado e algumas vezes magistrados crêem adivinhar a sua presença por detrás dos
pleiteantes”.
Não terminaria sem uma nota de esperança em que se cumpra a predição de Sócrates,
em resposta a Trasímaco, no Diálogo sobre a Justiça de Platão:
Perguntava Trasímaco:
“Em cada Estado não é o mais forte que governa? Não faz cada um deles as leis
segundo as suas conveniências? O Povo, as leis democráticas; o tirano, as leis tirânicas?
E depois de feitas assim as leis, não declaram eles que a justiça, no que respeita ao
súbdito, consiste na obediência a essas leis?”
E Sócrates respondia que, enganando-se por vezes os governos sobre os seus
verdadeiros interesses, se a justiça consistisse em fazerem os súbditos tudo o que lhes é
prescrito, a justiça também consistia em fazer o que é desvantajoso àqueles que
governam, isto é, aos mais fortes, no caso de ordenarem qualquer coisa contrária aos
seus interesses.
E vou terminar.
Sem pretender diminuir a importância que notoriamente assume nas diversas áreas
onde se expressa – na área criminal, na área dos menores e da família, na área cível e
comercial, etc. – o poder judicial, há que dizê-lo, tem essencialmente a fraqueza ou a
robustez das leis que os tribunais são chamados a aplicar.
Esta constatação, porventura preocupante num outro cenário, é boa num Estado
democrático, estando em consonância, afinal, com o que a princípio se disse – os
tribunais exercem a administração da justiça, dirimindo os conflitos, apenas
subordinados à lei.
Subordinados à lei, mas não agrilhoados à sua letra, nem alheados da sociedade em
que se inserem e que servem, pois há muito que foi ultrapassada a noção de
Montesquieu no sentido de que o juiz não é mais do que “a boca que profere as palavras
da lei”. Há que abandonar um positivismo cego e ter a aguda percepção da necessidade
da harmonização prática da ordem normativa, no seu conjunto, com a realidade social
que a envolve.
A função dos tribunais é, em suma a de servir com imparcialidade. Servir a
colectividade, administrando a justiça em obediência à lei.
É aqui, pensa-se que o poder judicial encontra a sua expressão mais legítima.
127
A crise (interna ou externa) dos tribunais?
Professor Doutor Boaventura Sousa Santos*
Orador
Começo por referir que o título da intervenção não é da minha responsabilidade e
tenho algumas dúvidas sobre ele, quer sobre o conceito de crise, quer sobre a distinção
entre interno e externo. É muito fácil, numa análise superficial, fazermos a distinção
entre factores externos e internos, mas quando começamos a analisar com mais cuidado
o que se passa, o interno é simultaneamente externo e o externo está suficientemente
internalizado para poder ser também considerado como interno.
Vamos começar por alguns factos que nos ajudam a situar a questão. No Centro de
Estudos Sociais realizámos um estudo – que tem vindo aqui a ser referido – que, ao
invés de investigar quais são as opiniões sobre as reformas da justiça, ou o que é que os
magistrados e os políticos pensam sobre o desempenho da justiça, analisa o que é que a
justiça efectivamente faz, quer no domínio cível, quer no domínio penal. O estudo e os
resultados são conhecidos, e por isso não vou naturalmente aqui mencioná-lo1. Apenas
quero mencionar que posteriormente continuámos o nosso trabalho no âmbito de um
Observatório Permanente sobre a Justiça, que está sediado no nosso Centro – financiado
pelo Ministério da Justiça e que resultou efectivamente da publicação desse livro – no
sentido de aferirmos qual é a evolução da justiça até ao final da década. Fizemos na
altura um inquérito aos cidadãos portugueses para que nos indicassem as suas
representações sobre a justiça. Vamos no final da década fazer um outro inquérito para
saber se houve alguma evolução significativa no modo como os cidadãos vêem a
justiça.
No entanto, no que respeita ao desempenho da justiça, fizemos e continuamos a fazer
a nossa investigação, quer no domínio cível, quer no penal alargando depois também à
família e a menores, agora aos tribunais administrativos, sector laboral, e a outras áreas
que até agora não tinham sido devidamente analisadas, para termos uma ideia mais
ampla do sistema judicial.
Produzimos um relatório que foi enviado ao Senhor Ministro da Justiça, em Março
passado, referente à análise feita até à data e vamos no final do ano concluir os nossos
trabalhos. E eventualmente estamos a preparar, com base nesse relatório, um relatório
final do qual será certamente também publicado um livro em que vamos dar conta do
que de novo aconteceu nesta década em relação àquilo que temos vindo a analisar.
Uma conclusão extremamente perturbadora é a de que, de facto, os resultados deste
último relatório – que enviámos ao Senhor Ministro da Justiça e que, aliás, não tem sido
muito falado – apontam no sentido de que o diagnóstico que tínhamos feito, no início
dos anos noventa, dos engarrafamentos, dos bloqueamentos, dos problemas da nossa
*
Director do Centro de Estudos Sociais – CES.
Ver Santos, B.S., Marques, M.M.L., Pedroso, J., Ferreira, P.L., 1996, Os Tribunais nas Sociedades
Contemporâneas: O Caso Português, Porto, Afrontamento.
1
128
justiça continuam a persistir e até se agravaram nos últimos anos e que, de alguma
maneira, a multiplicidade de reformas que têm vindo a ser empreendidas, no sentido de
resolver os problemas, não tem sido eficaz, quiçá nalguns casos podíamos até dizer que
tem sido contraproducente. De todo o modo, não notamos uma mudança significativa.
Se há alguma mudança é para pior.
O que isto pode significar é que provavelmente nem faz sentido falar da crise. O
estado natural do sistema judiciário é estar em crise tal como outros grandes domínios
de acção pública como a saúde e a educação. Porque é que o sistema judiciário haveria
de ser diferente? Por outro lado, a persistência dos problemas pode apenas significar
que a crise é tão profunda que as reformas que até agora foram realmente pensadas não
são suficientes para a superar. Tem-me impressionado um pouco – como sociológo – o
excesso de linguagem com que as questões do judiciário têm vindo a ser tratadas
ultimamente pelos próprios magistrados e por pessoas ligadas ao sistema judiciário.
Choca-me, por exemplo, que o Presidente da Associação Sindical dos Juízes, venha
dizer a propósito de um caso que é do conhecimento geral – da renúncia do Senhor
Director da Polícia Judiciária – que não sabemos se já estamos em Democracia em
Portugal, que talvez não estejamos mesmo em Democracia, e o Senhor Bastonário da
Ordem dos Advogados diga também que não estamos num Estado de Direito. Esta
violência da linguagem choca-me, e isto pode significar duas coisas: a seriedade do
problema, ou a força da resistência a resolvê-lo, embora me incline para a segunda.
Penso que o problema da Justiça portuguesa é um problema resolúvel, só que não há
vontade política, nem dentro nem fora do sistema judiciário para a resolver e é
exactamente esse excesso de linguagem o substituto funcional para a incapacidade e
para a pouca vontade de querer modificar o sistema tal e qual ele existe. E por isso
convém realmente ver porque é que podemos falar de crise. Em primeiro lugar, é
evidente que a crise pode surgir de muitos factores. Pode surgir pura e simplesmente
porque uma determinada instituição deixou de estar adequada aos seus objectivos,
porque entretanto os objectivos alteraram-se e a instituição não se alterou. Pode
acontecer que os objectivos não se alteraram mas foi a instituição que se alterou. Pode
acontecer que simplesmente os cidadãos estão agora mais conscientes da qualidade que
devem exigir no desempenho às instituições e de repente temos uma crise apenas
porque os tribunais ou outra instituição está a fazer o que sempre fez. Só que agora é
mais visível, mais notado, porque os cidadãos estão mais conscientes e activos, a
comunicação social está mais atenta ao judiciário e de repente surge a imagem de uma
crise.
E aqui é muito importante ver como é que se define uma crise porque nós falamos,
por exemplo, da crise dos tribunais, mas é muito restrito dizer que há uma crise dos
tribunais. Para já devíamos alargar a análise ao sistema judicial no sentido mais amplo,
que incluísse também a advocacia, as prisões, as polícias, o sistema médico-forense, o
sistema de perícias e toda uma série de instituições que lhe estão adjacentes e que fazem
parte do sistema nesse conjunto.
129
Por outro lado é evidente que para se falar de uma crise do sistema judicial terá que
ser em articulação, em qualquer caso, com outras crises que eventualmente aconteçam
na sociedade portuguesa e que se pergunte qual é a relação entre a crise do sistema
judiciário e outras crises que estão a suceder na sociedade portuguesa como, por
exemplo, na família, no mercado de trabalho, nas relações de vizinhança, no sistema
político. Será que isso não é de alguma maneira importante para o modo como o sistema
judiciário se comporta na nossa sociedade? Certamente que sim! Por isso eu tentarei
aqui falar um pouco disso e nessa medida dou espaço à questão dos factores externos.
Uma terceira nota que gostava de referir nesta introdução é que quando se fala de
crise – e isto foi hoje notório – fala-se normalmente dos problemas que ocorrem na
procura que chega aos tribunais, isto é, os casos que chegam aos tribunais, os
bloqueamentos que há no satisfazer dessa procura dos cidadãos e das empresas e outras
associações. A crise é exactamente definida à luz daquilo que chega aos tribunais. Eu
penso que neste momento a crise mais importante do sistema judiciário, é o que não
chega aos tribunais, é o que lá não está e, portanto, temos que fazer aqui, aquilo que
costumo designar por uma sociologia das ausências, isto é, aquilo que o sistema
judiciário não trata. Isso tem consequências quer para a qualidade da nossa vida
democrática, quer para a qualidade da nossa cidadania.
Vamos ver então alguns desses factores. Nos factores externos é evidente que a
primeira grande transformação que temos que ver é a que se verificou nos últimos 50
anos. É bom, de vez em quando, termos uma perspectiva de longa duração. No caso do
nosso país houve um certo curto-circuito porque a grande alteração e transformação do
capitalismo nos últimos 50 anos na Europa, por exemplo em Portugal, teve que se
comprimir nos últimos 25 anos, do 25 de Abril para cá. Exactamente porque Portugal
não acompanhou o primeiro período dessas grandes mudanças – o que nos obriga a
fazer esta transformação em curto-circuito, por assim dizer – pode-nos dar alguma
indicação acerca dos problemas, das disfunções que podem surgir no sistema judiciário,
como no sistema da educação, como no sistema da saúde, etc., etc.
Essas transformações foram fundamentalmente as seguintes. Em primeiro lugar
houve realmente a grande incorporação dos trabalhadores – isto foi hoje aqui levantado
pelo Dr. Jorge Leite, como um processo histórico que foi muito importante – como
cidadãos e como consumidores. Claro que sabemos – ainda hoje o Professor Jorge Leite
o demonstrou – que realmente esta incorporação não foi de modo nenhum plena, sendo
pelo contrário algo em progresso e talvez em retrocesso neste momento. Mas isso
permitiu criar duas sociedades que tiveram um impacto fundamental no sistema
judiciário. Por um lado, a sociedade salarial, que foi muito importante para a
emergência desse grande ramo do direito que foi o direito do trabalho, nalguns países
também a justiça trabalhista, inclusivamente uma justiça como já tivemos também de
alguma forma em Portugal. E, por outro lado, uma sociedade de consumo, que tem
como característica, a sua expansão em duas direcções, a dos consumos legítimos e a
dos consumos ilegítimos.
130
Os consumos legítimos deram origem à grande área dos direitos do consumo. Os
consumos ilegítimos deram origem à questão da droga que é uma das questões que
continua a afligir-nos. Esta incorporação teve realmente como resultado a produção, de
alguma maneira, de uma litigação massiva, aquilo a que chamamos a litigação de rotina,
que é aquela litigação que já foi aqui muito mencionada e que o Senhor Ministro disse
que é a “não nobre”.
Essa foi de alguma forma a grande responsável por algumas das transformações que
temos vindo a verificar no nosso judiciário, exactamente todo este engarrafamento dos
cheques, da cobrança de dívidas etc. Mas aqui o problema interessante nestas
importantes transformações, e que estão agora a decorrer, é ver o que é que não está no
nosso sistema judiciário e que eventualmente poderia estar.
Em primeiro, a Europa, em geral, está neste momento num processo muito
interessante, complicado - a guerra dos Balcãs veio complicar seriamente esta questão que é exactamente saber em que medida há uma diferença e uma rivalidade entre o
modelo de capitalismo europeu e o modelo americano. Dois modelos diferentes cujas
diferenças praticamente não se notavam durante a Guerra Fria e que, com o colapso do
muro de Berlim, se começaram a notar quando se tratou da reconstrução da Rússia e dos
países da Europa Central e Ocidental. Por exemplo, no caso da reconstituição do
sistema judicial, na criação dos tribunais constitucionais, etc. Houve uma competição
entre modelo europeu e modelo americano e essa competição é uma competição
recorrente. Podemos notá-la nas queixas recorrentes na Organização Mundial do
Comércio, por exemplo, da União Europeia contra os Estados Unidos e dos Estados
Unidos contra a União Europeia, sobre os produtos alimentares geneticamente
modificados, sobre as hormonas e muitos outros factores. Há rivalidades, há tensões e
há diferenças e essas diferenças, de facto, têm muito a ver com várias questões que nos
são importantes. Em primeiro lugar, com a extensão da regulação da economia e o facto
do modelo económico europeu, diga-se o que se quiser ao nível da União Europeia, não
agora ao nível do Estado Nacional, ter alguma regulação macroeconómica mais
independente e mais autónoma em relação às empresas multinacionais do que é o caso
nos Estados Unidos, e isso tem muita influência naturalmente para a questão dos
direitos e para a questão da litigação que surge aos tribunais, porque se não houver
direitos, também não há litigação.
É necessário ter cuidado quando se afirma que há muita litigação e que isso é um
problema. O facto de haver litigação significa que há direitos, e havendo direitos há por
isso reivindicações legítimas dos cidadãos. Uma sociedade sem conflitos é uma
sociedade morta de alguma maneira. É muito importante termos em conta que esta
rivalidade está neste momento em curso. Isto tem muita importância para a questão do
mercado de trabalho porque obviamente, nos Estados Unidos, esses problemas hoje não
se colocam, dada uma flexibilidade total da relação salarial. E no que respeita às
políticas sociais, verifica-se exactamente o desmantelamento de uma segurança social
pública que veio também a eliminar um tipo de litigação embora esteja a criar, neste
131
momento, outra, que são as acções dos cidadãos em relação aos fundos de pensões.
De qualquer maneira, o que importa realçar é que estes modelos estão em luta e isso
vai-se notar no nosso sistema judicial. Não tenho tanto a noção de que o sistema judicial
ou até o sistema político esteja totalmente consciente destas mudanças mas elas vão ter
um impacto decisivo. Neste momento, por exemplo, tudo leva a crer que o modelo
europeu tenda a aproximar-se do americano, por dois factores principais. Em primeiro
lugar, devido à Inglaterra que sendo um membro de pleno direito da Europa é a guarda
avançada dos Estados Unidos na Europa, como a guerra dos Balcãs o tem demonstrado.
Em segundo lugar, devido à própria guerra dos Balcãs: num momento em que o modelo
europeu necessita de uma tutela militar dentro da própria Europa, dramatiza-se a
incapacidade do modelo europeu para se globalizar e competir com o modelo
americano.
A consequência mais importante da aproximação ao modelo americano é a seguinte:
novas e mais graves desigualdades sociais. Irão suscitar problemas muito importantes
para o sistema judiciário, que nunca são abordados no seu contexto. O primeiro de entre
eles é a reforma fiscal. Se continuarmos com o sistema fiscal – e está aqui quem o
conhece muito melhor que eu – mais inícuo da Europa, que é o nosso, nós não podemos
resolver nem a situação do sistema judiciário nem a situação da segurança social, nem
nenhuma outra situação no nosso país. Há aqui problemas muito importantes que têm
que ser discutidos neste contexto.
A questão das desigualdades sociais vai colocar realmente a questão do acesso ao
direito e à justiça. É preciso encontrar forma de responder à ideia de que vai haver
muito cidadão que vai ficar na situação de cidadão de segunda classe, e ao ficar nessa
situação - muitos já o são - não vai ter possiblidades de ter um acesso ao direito. Já o
tem muito pouco e vai tê-lo ainda menos. Que medidas estão a ser pensadas para
aumentar esse acesso? Como é que elas vão ser pensadas? Sobretudo quando estamos a
assistir – e isto é uma das formas que está a aproximar o modelo europeu do modelo
americano – ao que nós chamamos a balcanização do direito laboral, dos contratos de
trabalho. Não há obviamente hoje uma homogeneidade no mundo do trabalho, e os
contratos de trabalho estão-se a balcanizar completamente, estão-se a fragmentar e essa
fragmentação naturalmente que vai ter muitas consequências. Temos uma pequeníssima
percentagem de trabalhadores que quase se comportam como capitalistas e temos depois
uma enormíssima percentagem de trabalhadores que quase estão numa situação de
servos, e, nalgumas partes do Mundo, quase como escravos.
Podemos encontrar nos estudos que estão agora a ser efectuados sobre os operários
franceses, naquele pequeno sector que está a ser beneficiado pela reestruturação do
capital, que assistem ao despedimento de 5 mil dos seus colegas, enquanto estão a
trabalhar nas suas bancas de trabalho e a olhar para o écran do computador e a ver a
bolsa de valores a mostrar no segundo posterior ao despedimento de 5 mil colegas, que
as suas acções – porque esses trabalhadores normalmente já são também accionistas das
suas empresas – subiram de cotação e, com isso, aumentaram os seus rendimentos. É
132
esta fragmentação do sistema de trabalho que, em meu entender, vai levantar muitas
questões ao direito laboral, e naturalmente também ao sistema judiciário.
A segunda grande consequência é a emigração, que vai continuar e vai levantar dois
tipos de problemas para os quais o judiciário não está equipado. Existem duas questões
que é preciso ter em linha de conta e que vão penetrando a pouco e pouco, mas muito
pouco. A questão dos direitos colectivos. Os direitos dos emigrantes, de grupos étnicos,
por exemplo, não têm sido naturalmente reconhecidos entre nós com a força que devia
sê-lo. A questão do racismo. Nós não vimos ainda a questão do racismo como um
grande problema que está a emergir na sociedade portuguesa e que pode vir a agravar-se
e ainda a questão do multiculturalismo. A sociedade portuguesa é já uma sociedade
multicultural e, no entanto, comportamo-nos como se fossemos o país da Europa
etnicamente mais homogéneo. Quando muito tem-se falado do racismo policial.
Por outro lado, uma outra grande consequência desta transformação que está a passar
ao lado do judiciário – e aqui é que eu vejo também crises – é que actualmente o grande
recurso para o desenvolvimento do capitalismo mundial é o conhecimento, é a ciência e
o conhecimento patenteado. Vejamos o que produzem as 10 maiores empresas do
mundo em 1998. Apresento-as pela ordem decrescente: Microsoft, General Electric,
Shell, Exxon, Coca-Cola, Intel, Merck, Toyota, Novartis e IBM. À excepção da Toyota,
da Exxon, da Shell e da General Electric em parte, todas produzem basicamente
conhecimentos, produzem patentes, produzem conhecimento patenteado, nada mais do
que isso, coisas que não têm nenhum valor, pequenas peças de silicone cujo valor sem o
conhecimento que lhes está incorporado é nulo. Daqui resultarão os grandes conflitos
do futuro, os conflitos de propriedade intelectual.
Não estão a ser estudados nas Faculdades de Direito com a atenção que merecem.
Não porque tenhamos empresas de biotecnologia mas porque estamos também já a fazer
experimentação de produtos que são geneticamente modificados, à revelia das
directivas comunitárias. Penso que há aqui toda uma questão nova que não está a ser
equacionada e que implica alargar um pouco o conceito das coisas que se estão a passar
para vermos em que medida é que a crise do judiciário não é apenas uma crise de
bloqueamento do que cai lá dentro, mas também a crise da irrelevância, o facto de
aquilo que é mais importante lhe passar ao lado.
As transformações políticas foram também muito importantes e aqui queria referir a
grande desregulamentação do Estado máximo para o Estado mínimo, que levantou
naturalmente grandes problemas ao nível da litigação laboral, administrativa, no direito
social e no próprio constitucional. A questão da mudança do Estado nacional para o
Estado europeu, da União Europeia, que criou em Portugal uma grande desarticulação
entre o direito comunitário e o direito nacional em termos de culturas jurídicas. Penso –
e é uma mera hipótese de trabalho, porque não fiz a investigação necessária – que
aquela discrepância entre o que está nos livros e o que está na realidade jurídica, que é
constitutiva dos nossos estudos de sociologia do direito (as leis são muito avançadas, as
práticas são retrógradas), vai tender a aumentar com as directivas que não são recebidas,
133
ou são menos cuidadamente apreciadas.
Por último, a outra grande mudança política destes últimos anos foi o fim das
ideologias, de alguma maneira podemos dizê-lo assim, e a ideia de que não há grandes
clivagens políticas, e, portanto, a ideia de que a governação tem de assumir formas
organizativas de gestão onde as grandes clivagens políticas parecem ter desaparecido,
pelo menos por agora.
O grande problema de todos estes aspectos foi exactamente a emergência da
corrupção, a perda da ideia de serviço público, a perda da ideia dos conceitos de
República, e de valores públicos, uma certa privatização do Estado e essa tem levado,
muitas vezes, àquilo que nós chamamos a judicialização da política: actos cometidos
por gente poderosa, quer no plano político, quer no plano económico que, ao serem
trazidos para os tribunais, lhes dão imediatamente uma grande visibilidade política. Isto
é muito importante porque a visibilidade política dos tribunais tem como consequência,
o facto de no momento em que se judicializa a política politiza-se o judiciário, isto é, os
tribunais passam a estar na primeira página e passam a ser objecto de contestação, de
cobiça, a ser objecto dos tais excessos de linguagem e é esta a situação em que nós nos
encontramos neste momento. Ainda recentemente viram como mais uma vez um
conflito entre dois partidos vai ser resolvido através de uma acção e de uma queixa feita
no Procurador-Geral da República. Isto traduz exactamente o fenómeno da
judicialização da política.
Vou concluir referindo o que é que isto tudo tem a ver com o que se está a passar no
sistema judicial. Vou deixar para a discussão quatro ou cinco ideias que resultam do
nosso trabalho. Em primeiro lugar, os problemas internos e algumas ideias para uma
reforma. Penso que um dos grandes problemas do sistema judiciário são os problemas
causados pelas suas próprias reformas. Há que encarar de uma vez por todas que as
reformas feitas por necessidades políticas, ao abrigo de necessidades do calendário
eleitoral, muitas vezes prisioneiras das pressões corporativas, seja dos Magistrados
Judiciais, do Ministério Público, ou dos Advogados, ou de outros, não vão resolver,
antes pelo contrário, vão agravar a situação do sistema.
Portanto, a primeira coisa que há a fazer é aquilo que nós temos vindo a propor, ou
seja, uma moratória nas reformas. Não se devem fazer mais reformas até que possamos
avaliar cuidadosamente quais as consequências de cada uma delas. Tenho vindo a
propor que podíamos fazer, no domínio do judiciário, algo como foi a Comissão do
Livro Branco da Segurança Social que, em meu entender, é um projecto relativamente
bem logrado de envolver a sociedade civil e aprofundar o conhecimento de um
problema social, na sua resolução, de que são resultado os quatro projectos de leis que
temos neste momento no Parlamento. São todos de boa qualidade apesar de terem
naturalmente diferenças ideológicas significativas. O que é importante é que haja
diferenças ideológicas, não que elas desapareçam ou sejam trivializadas.
A segunda questão é a questão do conhecimento. Já sabemos muito bem como é que
funciona o nosso sistema judiciário, mas ninguém quer - como ainda há pouco falava
134
com um colega nosso - tomar o remédio. Há resistências a isso e mais, o conhecimento
não circula. Estamos neste momento a assistir a uma disjunção que considero ser muito
perigosa. Nós em Coimbra, como muitos outros colegas em Lisboa e noutras partes do
país, estamos a elaborar estudos sobre o sistema judicial. No entanto, quando se trata de
reformas do sistema elas são encomendadas a juristas, que com todo o respeito – eu
também o sou na minha formação de base –, não vão dar-se ao trabalho de ler os nossos
estudos sobre o funcionamento da justiça no nosso país e, em consequência, as reformas
não colam. O conhecimento por nós produzido, e que custou dinheiro aos contribuintes,
não é aproveitado. As reformas são demasiado importantes e complexas para serem
entregues a juristas.
O terceiro ponto é a questão da organização. Considero que muitos problemas se
resolviam no nosso sistema judiciário se alguém, com um pouco de conhecimentos de
gestão e de organização, fosse analisar o que se passa. Seria tão simples eliminar
algumas das irracionalidades do sistema sem para tal ser necessário mudar as leis. A
minha grande campanha neste momento é a de reformar o sistema judiciário até ao
ponto em que o pudermos fazer sem novas leis. Se esse desafio fosse aceite, poderíamos
reformar muita coisa.
Ainda agora dois membros da nossa equipa se deslocaram ao País Basco para
analisar as reformas que estão a ser empreendidas no domínio do acesso dos cidadãos,
da informatização, da relação com o público. As autoridades bascas não podiam
modificar significativamente a lei, mas, precisamente por isso, encontraram medidas
extremamente interessantes de transformar o sistema, torná-lo muito mais eficaz,
exactamente informatizando o sistema e alterando os modelos de gestão e organização
dos tribunais sem precisar de nenhuma outra lei.
Por último, queria referir que não há nenhuma lei que crie uma outra cultura
judiciária no país. O que me preocupa fundamentalmente é que domine entre nós uma
cultura judiciária que é partilhada com grande cumplicidade entre magistrados do
Ministério Público, do Judiciário e dos Advogados. Trata-se de uma cultura corporativa
na qual os seus conflitos estão neste momento exacerbados porque não estão sujeitos a
uma pressão organizada dos cidadãos, no sentido de poderem produzir uma justiça mais
eficaz, mais acessível e só porque estão libertos desta pressão é que se dão ao luxo de
entrar em lutas intestinas, que parecem muito grandes e muito dramáticas, quando são
discutidas entre eles. Vistas do lado dos cidadãos elas são pequenas disputas de família.
Muitos cidadãos nem sequer são capazes de distinguir bem o Ministério Público da
Magistratura Judicial.
Esta nova cultura judiciária é uma cultura mais corporativa e, em nosso entender,
devia ser mais democrática, mais virada para o acesso aos direitos e para os direitos
humanos. Para isso é necessária uma outra formação jurídica e aqui as Faculdades de
Direito e o Centro de Estudos Judiciários têm uma responsabilidade enorme. Em muitos
países hoje é obrigatório, na formação dos magistrados, seguir cursos fora das
Faculdades de Direito, seja na Faculdade de Letras, na Faculdade de Economia ou nas
135
Faculdades de Sociologia, precisamente, para conhecerem melhor a realidade dos seus
países e a partir daí desenvolverem uma nova cultura judiciária.
Penso que a actual cultura judiciária não permite o controlo disciplinar e, com esta
afirmação não pretendo atirar pedras a nenhuma das magistraturas em especial. Em
geral, o controlo disciplinar não está a funcionar, portanto, há laxismo e há
desempenhos muito diversificados. Os nossos trabalhos demonstram-no. Com a mesma
lei, a mesma estrutura, podemos ter desempenhos de alta qualidade ao lado de
desempenhos medíocres, precisamente porque se entrou num sistema de confundir
independência com auto-governo e desresponsabilização. Neste momento domina uma
razão cínica, que faz com que muito magistrado não cumpra os prazos, argumentando
que já que não pode cumprir alguns prazos, não vai cumprir prazos nenhuns. No
entanto, exige ao advogado que os cumpra. E esta ideia de laxismo, que felizmente não
é generalizada, é algo que me preocupa caso não se crie uma medida forte da parte do
poder judiciário e também do poder político no sentido de inverter esta cultura
judiciária.
Existem ainda dois aspectos importantes para os quais considero serem necessárias
reformas. Mais acesso ao direito, sem dúvida. Eu tenho vindo a defender há muito
tempo a ideia de um defensor público, defensores públicos que não seriam obviamente
funcionários públicos. Criar, através da figura do instituto público, pessoas que
pudessem, com a sua carreira bem dignificada, defender aqueles que não têm
capacidade para o fazer actualmente. Porque em nenhum país um sistema como o nosso,
ou um sistema em que a Ordem dos Advogados esteja totalmente interessada, alguma
vez deu resultado. Não deu resultado nem vai dar. Temos uma situação nova neste
momento – ainda há pouco o Senhor Bastonário me dizia que ainda este ano mais 4 mil
licenciados surgem no mercado. Que vão fazer estes advogados? Onde é que está a
certificação? Onde é que está a qualidade? Estas são questões que têm que ser
resolvidas, mas talvez esta ideia dos defensores públicos fosse uma forma de dignificar
e também abrir novos espaços de emprego. Não tenho nada contra que haja mais lugar
para as profissões jurídicas, desde que elas sejam usadas em sentido público e para
resolver alguns dos problemas.
E, finalmente, muito brevemente, diria o seguinte, isto também tem sido polémico –
ainda há pouco ouvi o Senhor Juiz Conselheiro referi-lo – considero que o Tribunal
Constitucional não pode continuar a funcionar como 4ª Instância de recurso do nosso
sistema. Penso que temos excesso de garantismo para aqueles que têm dinheiro e
possibilidades de contratar bons advogados e défice de garantismo para aqueles que não
o têm. Esta desigualdade está a minar o sistema, pois é óbvio que hoje qualquer pessoa
com dinheiro suficiente tem a possibilidade de ver um processo contra si, seja cível, seja
crime, nunca terminar. Vai ter sempre os bons advogados, os bons pareceres, os bons
recursos, as dilacções, etc. E já existem – por isso é que a questão da cultura é
fundamental – mecanismos no nosso sistema que permitiriam a um juiz fazer
indeferimentos liminares, fazer um controlo maior deste uso dilatório, ou litigância de
136
má fé. Porque é que não se faz? Porque não há cultura judiciária para exactamente
pensar: “se me for ocupar com este caso estou a deixar de estar ocupado com aquele
outro que é mais relevante”. Penso que há que haver um pouco mais de selectividade
que era a questão que o Conselheiro Mário Torres há pouco colocava, de esta
selectividade, de este princípio da oportunidade, que já existe informalmente, poder ser
tematizado, levantar problemas políticos extremamente complicados que deveriam ser
discutidos. Penso, no entanto, que efectivamente o grande problema é este.
As soluções existem desde que haja vontade política e desde que para cumprir a
Constituição se diga que a justiça está ao serviço dos cidadãos. No momento em que
esta simples mudança ocorrer tudo estará praticamente resolvido. O que falta é vontade
política e essa não depende só do judiciário. As profissões corporativas nunca se
autoregularam, nunca se modificaram a partir de iniciativas de dentro. É necessária a
participação dos cidadãos, é necessária a nossa participação no sentido de, de maneira
construtiva e com conhecimento de causa, ajudar realmente à melhoria da qualidade
desta instituição que é tão fundamental para a qualidade da nossa democracia.
137
Legitimidade do Poder Judicial
Professor Doutor J. J Gomes Canotilho*
Orador
1. Descodificação de conceitos
O tema que me foi proposto é este: a legitimidade do poder judicial. Na mente dos
organizadores talvez esteja um desafio outro para esta fala – discutir simultaneamente o
problema da legitimação do poder judicial e a questão da legitimidade da justiça. Se
quisessemos adiantar já alguma provocação essa traduzir-se-ia em sugerir um juízo de
desvalor quanto às duas questões o que nos levaria a variações sobre o mote da
deslegitimação e deslegitimidade do poder judicial como reflexos do problema mais
geral da crise da justiça.
Não iremos por aqui. Neste auditório crítico pretende-se ouvir alguma coisa sobre o
título legitimador daqueles que exercem o poder judicial e sobre a bondade intrínseca
das decisões e processos deste mesmo poder. Trata-se, pois, de uma reflexão breve
sobre a legitimatio tituli da justiça enquanto instituição, enquanto tecnologia política
constituída por mulheres, homens, órgãos, instâncias, processos, tribunais.
Compreender-se-á também que não deixemos de fazer algumas reflexões sobre a
legitimidade da justiça como valor.
2. Uma leitura constitucional, tendencialmente normativista
Colocada a questão a um constitucionalista, este poderá ser tentado a responder nos
modelos tradicionais da argumentação jurídica, fazendo o seguinte raciocínio: discutir a
legitimação do poder judicial significa atribuir um sentido ao enunciado linguístico do
artigo 202.º da Constituição:
“Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça
em nome do povo”.
Três leituras 1 – pelo menos – são possíveis quanto ao sentido do enunciado
constitucional.
LEITURA I – O enunciado “em nome do povo” reconduz-se a uma fórmula
programática a um aleluia político-democrático, dotado de valor meramente
simbólico mas esvaziado de qualquer conteúdo prescritivo-normativo. Forte
nas palavras, fraco nas normas de conduta.
LEITURA II – O enunciado “em – nome do povo” é uma fórmula tabeliónica
utilizada pelos juízes para fingirem uma derivação popular do seu poder. Tal
como na Leitura I, é uma fórmula despida de força normativa.
*
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Uma proposta de leitura semelhante e que inspirou este ponto da intervenção, ver-se-á em RICARDO
GUASTINI, Il giudice e la legge, Giapichelli Editore, 1995, p. 93 ss.
1
138
LETURA III – O artigo 202.º da Constituição é uma norma de relevante
significado jurídico-constitucional, pois estabelece claramente a conexão entre
o exercício da função jurisdicional e a soberania popular. Desdobra-se em dois
postulados: (1) a função jurisdicional só é legítima se for expressão da
soberania popular; (2) se for legítima é uma forma de exercício da soberania
popular.
O auditório crítico terá já ditado a sua sentença quanto a estas leituras. A primeira
exprime a opinião corrente sobre o valor das normas constitucionais. Pouco direito e
mera retórica política. A segunda leitura é correcta quanto à dimensão tabeliónica da
fórmula e corresponde ao espírito dos juízes quando, de forma fria e arrogante, dizem
que “lá vai mais uma sentença em nome do povo”. A terceira é estimulante mas parece
dar como demonstrado o que é preciso demonstrar – que os tribunais têm uma
legitimação popular. O problema que aqui se coloca é, pois, o da articulação da função
jurisdicional com a soberania popular. Até hoje, foram recortados três modelos políticolegitimatórios do poder judicial.
MODELO I – Legitimação electiva: o poder de jurisdictio é atribuído a órgãos
eleitos pelo povo.
MODELO II – Legitimação através de controlo político: os órgãos
jurisdicionais estão sujeitos ao controlo político de órgãos políticos
democraticamente eleitos.
MODELO III – Legitimação através da legalidade: a função jurisdicional está
sujeita à lei, ela própria expressão da vontade democrática.
O discurso mais frequente nos quadrantes jurídico-culturais portugueses aproxima-se
do Modelo III. É o discurso da legitimação através da legalidade que vem de
Montesquieu e atinge o máximo de rigor analítico em Max Weber. Os tribunais têm
legitimação porque: (1) são instituídos nos termos da lei; (2) as decisões jurisdicionais
fundam-se na lei e apenas a ela estão sujeitos; (3) os modos de proceder – os processos
– estão legalmente fixados.
Devemos ter serenidade bastante para reconhecer que o excesso de argumentação em
torno desta legitimaçõo legal serve, a maior parte das vezes, para afastar in limine
qualquer ideia de legitimação eleitoral ou qualquer sugestão de responsabilidade
política do poder judicial. Mais adiante teremos oportunidade de manifestar também
algumas reticências relativamente a estas propostas legitimatórias. No entanto, o
problema não é assim tão simples. Vejamos.
3. Quem vos fez rei?
Esta interrogação, feita a propósito da legitimação do poder judicial, pertence a
Alains Minc. Num livro estimulante e provocador (Au nom de la loi, Paris, Gallimard,
1998) anota que os magistrados se esquecem frequentemente da mais natural das
139
interrogações: quem te fez rei? O mesmo autor aproveita para fazer outras observações
que não sei se incomodarão os juristas participantes neste Colóquio: “Os juízes são
formados como os militares; são recrutados após o termo dos estudos e colocados numa
caserna onde são formados por outros juízes como os militares são formados por outros
militares”. Não sei se estas observações serão justas sobretudo quando não resistimos à
tentação de vermos retratado nas palavras anteriores o nosso Centro de Estudos
Judiciários. A escola portuguesa de formação de magistrados (CEJ-Centro de Estudos
Judiciários) tem procurado aberturas para a sociedade civil e outras instituições, o que
nos leva a ser menos críticos quanto à bondade de organização e procedimento na
formação de magistrados. Há, porém, um problema que parece irresolvido:
compreender o passe mágico de transmutação de jovens escolares com estágios em
órgãos de soberania. E se, como é a nossa opinião, está constitucionalmente consagrado
o princípio da polaridade individual do poder judicial, teremos de justificar não como se
faz um rei, mas como fazemos reis espalhados pelo País. Não há exames de estado, não
há nomeações por órgãos democraticamente representativos, não há publicidade nos
procedimentos selectivos. Sendo assim, aqui fica a pergunta: quem faz reis os nossos
juízes?
4. O rei dos reis
Seria a nosso ver redutor limitar o problema da legitimação dos juizes ao esquema
organizatório dos tribunais internos. Pouco a pouco, vão surgindo nos ordenamentos
judiciários outros reis e não parece que a publicidade crítica se incomode muito com a
sua legitimação. É, desde logo, o caso do Tribunal de Justiça das Comunidades ou
“Tribunal do Luxemburgo”. Num estudo recente um jurista alemão (Volker Epping –
“Die Demokratische Legitimation der Dritten Gewalt der Europäischen
Gemeinschaften”, in Der Staat, 3/36, 1997, pág. 349 e segs.) admira-se que a questão
do título legitimatório dos juizes do Luxemburgo surja quase como uma heresia e que
não seja incluída na agenda do déficite democrático da Comunidade. Existe mesmo uma
certa soberba dos juizes europeus quanto à sua auto-legitimação, como se revela nas
palavras de um deles (Femand Schockweiler, “L'independence et la legitimité du juge
dans l'ordre juridique communautaire”, in Rivista di Diritto Europeo, 1993, pág. 678) ao
dizer que não necessita de mais legitimação democrática. Ora, o problema pode e deve
pôr-se. A designação dos “juizes europeus” faz, muitas vezes, parte do pacote de
transacções entre o “governo e a oposição”, não sendo escolhidos pelos órgãos
parlamentares (como acontece com alguns tribunais constitucionais). Tão pouco são
designados pelos órgãos de gestão dos juizes nos respectivos estados. Eis o que se
prescreve no artigo 223º do Tratado da Comunidade Europeia (versão e numeração do
Tratado de Amesterdão)
“Os juizes e os advogados-gerais são escolhidos de entre personalidades que
ofereçam todas as garantias de independência e reúnam as condições exigidas,
nos respectivos países, para o exercício das mais altas funções jurisdicionais,
140
ou que sejam jurisconsultos de reconhecida competência e são nomeados, de
comum acordo, pelos Governos dos Estados-Membros, por um período de seis
anos”.
Uma conclusão nos parece já de extrair: se o Tribunal do Luxemburgo se vai
tornando o “rei dos reis” parece que quanto mais alto é o exercício de funções
jurisdicionais, tanto menores são as angústias legitimatórias de escolha dos juizes. Não
estando em causa, em geral, a legitimação pessoal-funcional dos juizes, já parece menos
óbvia a legitimação funcional-institucional. Quem faz os reis dos reis são afinal de
contas os governos! Se quisermos ser coerentes, a escolha dos juizes para o Tribunal de
Justiça das Comunidades tem de observar os esquemas de selecção para juizes dos
Tribunais Superiores o quadro jurídico dos Estados-Membros (como, de resto, é já
praticado na Grécia e está regulado na Áustria).
O desafio legitimatório do Tribunal de Justiça da Comunidade é, de resto, mais
amplo. Afivelando a máscara anglo-saxónica dos juizes criadores de direitos, os juizes
fabricam a sua legitimação através da existência do direito que criam. A legitimação
existencial casa-se bem com o título legitimatório governamental.
Um raciocínio semelhante poderia ser feito quanto ao Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem. Falta, também aqui, um esquema transparente de procedimento de selecção,
parecendo, no caso português, haver uma “reserva apócrifa de Procuradoria-Geral da
República”.
5. Os reis da sociedade
É por certo de todos conhecida a velha ideia do Talmud judaico segundo a qual a
criação dos tribunais constituíria a única obrigação positiva que se impunha aos povos.
O ser justo apelava para tribunais terrestres e os tribunais terrestres são se dissociavam,
progressivamente, dos tribunais públicos e estatais. Não é isto o que se passa hoje. As
práticas de “justiças societais” permitem vislumbrar outros tipos de tribunais cuja
legitimação também não está inteiramente estabelecida e clarificada.
Seria redundante lembrar aqui, neste Conselho Económico e Social, as arbitragens e
soluções negociadas de conflitos. Os contratos comerciais fogem cada vez mais da
competência do Estado. Os contratos internacionais não dispensam o julgamento de
litígios através da arbitragem. Os contratos administrativos deslocam-se cada vez mais
para o foro arbitral, tornando-se os redactores dos contratos os legisladores e,
mediatamente, os juizes. Mas não só isto: as chamadas “autoridades administrativas
independentes”, ou, como diz o artigo 267º/3 da Constituição, “entidades
administrativas independentes” ai estão a correr aos apelos de desresponsabilização do
Estado e a desenvolver uma actividade parajudicial ou até judicial. Aqui, logo, na
Constituição, a Alta Autoridade para a Comunicação Social. Ali, a Comissão de Valores
Mobiliários. Mais perto dos nossos corações, a Comissão do Objector de Consciência
ou a Comissão de Protecção de Modos Informáticos. Mais no mercado, a autoridade
141
reguladora das telecomunicações, as autoridades reguladoras da água, gás e
electricidade.
A “independência”, a “publicidade”, “a competência”, a “credibilidade dentro do
sistema” parecem ser agora as palavras-chave para responder à velha angústia da
legitimação. A fonte baptismal da “bolsa”, das “parcerias oligopolistas”, dos “árbitros
profissionais” parece, pois, acomodar-se a várias funções que já pouco ou nada têm a
ver com o clássico problema da legitimação e da legitimidade do poder judicial.
Aproximamo-nos, assim, da última parte da nossa intervenção. Não sem um alerta,
porém. Estas respeitáveis entidades reclamam o estatuto e as benesses das jurisdições
mas já não é tão seguro que assegurem a transparência das regras do direito e os
processos garantidores dos direitos dos indivíduos.
6. A fragmentação das legitimações e das legitimidades
A insinuação passa a asserção: a pluralidade de lugares e formas de justiça, a
coexistência de justiças públicas e de justiças privadas, transporta-nos para a
fragmentação das legitimidades. É fácil de ver que as justificações do “Estado” e dos
“poderes do Estado” não se coadunam com uma só justificação. Na Ciência Política, na
Sociologia, na Psicologia Social, nas teorias do discurso e do procedimento, avançam-se
conceitos de legitimação que, em rigor, reflectem duas importantíssimas mudanças na
captação do problema legitimatório:
(1) a legitimação e a legitimidade referem-se mais a políticas concretas, ou, se
se preferir, à política concreta, ou seja, à actividade das instituições, como, por
exemplo, decisões da administração ou dos tribunais, do que ao “político” e ao
“Estado” abstractamente considerados (ver, precisamente, Thomas
Würtenberger, “Zur Legitimität dês Grundgesetzes in historischer
Perspektive”, in W. Brugger (org), Legitimation des Grundgesetzes aus Sicht
von Rechtsphilosophie und Gesellschaftstheorie, Baden-Baden, 1996, pág. 29).
(2) A exigência de legitimidade tem toda a razão de ser relativamente a
problemas carecidos de decisão política, mas não deve estender-se a sistemas
funcionais cuja “justeza” exige, hoje, outras medidas que não as da
legitimidade política e jurídica.
A legitimidade é, assim, uma forma contingente da política moderna que deve
autosuspender-se em domínios carecedores de outras medidas: como recorrer ao metro
da legitimidade para julgar a política da ciência e como descobrir a “justiça” no sistema
da administração da saúde? Como descortinar a legitimidade na actividade pedagógica
das escolas? A fragmentação e contingência do conceito de legitimação não perturba, a
nosso ver, que as questões clássicas da legitimação dos poderes não possam e não
devam continuar a merecer a atenção dos estudiosos. Como acontece, aqui, e agora, a
propósito da legitimação do poder judiciário. É tempo, pois, de recuperarmos o fio à
meada e de prosseguirmos a rota que nos foi traçada.
142
7. A legitimação e o número de juizes
Perguntemo-nos entre nós: quantos juizes tem o Supremo Tribunal de Justiça?
Quantos juizes tem o Supremo Tribunal Administrativo? Quantos juizes tem o Tribunal
de Contas? Sabemos, porque a Constituição o diz, que o Tribunal Constitucional tem 13
juizes. Sabemos, porque os tratados comunitários assim o fixaram, que o Tribunal de
Justiça das Comunidades é formado por 15 juizes (embora o Conselho possa aumentar
este número). Sabemos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem um
número de juizes igual ao das Partes Contratantes, porque assim o determina a
Convenção Europeia de Direitos do Homem. Sabemos que o Supremo Tribunal dos
Estados Unidos tem 9 magistrados. O que é que significa isto? Em rigor, significa que o
“número de juizes” dos Tribunais Supremos é tendencialmente uma “reserva da
constituição material” ou “reserva de tratado” que não pode ficar na disposição do
legislador. Mas não só isso: se os juizes são órgãos de soberania não deixa de ser
intrigante que, diferentemente do que está estabelecido quanto a outros órgãos de
soberania, não haja aqui uma taxativa fixação constitucional. A resposta talvez se tenha
de encontrar no paradoxo da nossa organização judiciária e na própria constituição
judiciária: os tribunais dão cobertura a uma carreira administrativa semelhante à de
funcionários públicos que, ao mesmo tempo, se reclama do estatuto dos órgãos de
soberania. Eis aqui um problema que merece revisão urgente na revisão da
Constituição: fixar o número de juizes de todos os Supremos Tribunais e fixar
claramente as regras da sua constituição. Mais ainda: se não há qualquer título de
legitimação constitucional para se falar em “carreira judicial” a nível dos tribunais
supremos, talvez seja também tempo de analisar se os títulos de legitimação para os
tribunais supremos devem ser os mesmos que se invocam para os tribunais de instâncias
inferiores. O alicerçamento da legitimação na lei conduz aqui a uma “supralegalidade”
ou até “supraconstitucionalidade encapuçada” das leis orgânicas dos Tribunais ou leis
de organização judiciária que pode não ser um alicerçamento constitucional adequado.
8. Um esquema alternativo?
Ao esquema legitimatório defendido entre nós e que, como vimos, se reconduz ao
paradigma da “legitimidade legal”, poderia contrapor-se um outro reconduzível
fundamentalmente ao seguinte:
(1) eleição (ou designação por órgãos políticos representativos) como fonte de
legitimação;
(2) questionamento da inamovibilidade, estabelecendo “mandatos judiciais”;
(3) “unificação da justiça” através de uma “OPA” de justiça judiciária sobre a
justiça administrativa e justiça constitucional;
(4) desjudiciarização ou “civilização judiciária” a fim de a sociedade se
autoregular nos litígios através de processos contratuais e privados.
143
Sugerir este modelo é já assinalar que não são facilmente arquitectáveis modelos
alternativos. Salvaguardando o ponto (4) – a desjudiciarização – a que já aludimos, não
vemos como se poderia transferir para os quadrantes jurídico-culturais portugueses a
submissão do juiz a eleições, comendo o pó dos caminhos, recebendo o afago e a
cumplicidade dos seus correligionários como um candidato a presidente da Câmara.
Temos dificuldade em aceitar que uma “licença para julgar” se degrade numa
autorização precária e provisória. Quanto à unificação da justiça, os tempos ainda não
estão maduros para a unidade de jurisdição, mas a nosso ver devemos afastar os tabus
quanto à unificação da justiça ordinária e da justiça administrativa, como, de resto, é
visível no Tribunal do Luxemburgo.
Talvez, assim, no cerne da organização judiciária, se conseguisse um título de
legitimação mais transparente. Talvez assim se conseguisse mitigar um
“corporativismo” activista que garante alguma experiência decisória judicativa mas que
está longe de fundar a sabedoria judicativa. De novo, o direito, de novo a justiça, de
novo a legitimidade.
144
Síntese Conclusiva do Colóquio
145
Síntese conclusiva do Colóquio
Dr. José Luís da Cruz Vilaça*
Orador
Senhor Presidente do Conselho Económico e Social, Dr. José da Silva Lopes,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Agradeço muito a gentileza que a organização do Colóquio teve para comigo,
convidando-me para esta “missão (quase) impossível”. Certamente que ao fazê-lo teve
em conta a única circunstância justificativa que poderia qualificar-me para uma tal
tarefa, que é a de ter adquirido uma experiência de institutional building judiciário, nas
Comunidades Europeias. Simplesmente, o que agora me é pedido é algo
substancialmente diferente; vou tentar em todo o caso cumprir a missão tão bem quanto
possível.
Uma missão que, de resto, não foi certamente facilitada pelo facto de só ter podido
dispor com antecedência de duas ou três das comunicações escritas apresentadas, mas
que vai seguramente beneficiar da qualidade e da clareza das exposições orais que
foram feitas, com base nas quais fui tomando as minhas notas. Sejam-me, em todo o
caso, relevadas as insuficiências de que padecerá esta síntese conclusiva, à conta do
necessário improviso do exercício.
Em todo o caso, algo que o simplifica é o facto de, a meu ver, o Professor
Boaventura Sousa Santos ter feito, na sua exposição, aquilo que seria provavelmente a
melhor síntese deste Colóquio. Uma síntese que aliás está de acordo com a natureza da
ciência que cultiva: a tendência naturalmente “globalizante” da Sociologia qualifica-a,
mais do que ao Direito, para proceder às sínteses que melhor correspondem à natureza
de temas como aquele que constitui objecto do Colóquio. No fundo, até me parece que o
problema da justiça portuguesa, mais do que um problema jurídico, é antes de tudo –
em todo o caso, por detrás de tudo – um problema sociológico e político. Mas vamos
por partes.
1. Permitir-me-ei, com licença de V. Ex.as, abordar rapidamente uma questão
prévia. Gostaria, com efeito, de responder, muito sinteticamente, antes que para isso me
faleça o tempo, à saudável provocação contida na exposição do meu amigo e colega
Professor Joaquim Gomes Canotilho, último orador do Colóquio, a propósito da questão
da legitimação dos juizes dos tribunais comunitários. Ainda bem que o fez, porque
trouxe para os trabalhos a dimensão comunitária, que ainda só tinha perpassado
incidentalmente em uma ou outra das exposições anteriores, as quais privilegiaram, em
geral, compreensivelmente, a dimensão nacional dos problemas.
*
Advogado, PLMJ & Associados; Professor e Director do Instituto de Estudos Europeus da Universidade
Lusíada; antigo Advogado-Geral no Tribunal de Justiça e antigo Presidente do Tribunal de Primeira
Instância das Comunidades Europeias.
146
Devo confessar que, sobre o problema da legitimação dos juizes dos tribunais
comunitários, me sinto perfeitamente à vontade para me pronunciar. Aceitei ser membro
dos dois Tribunais comunitários com um mandato limitado no tempo e ao qual pus
termo voluntariamente. No exercício dos meus mandatos, busquei a legitimação
essencialmente na fidelidade a uma missão conferida pelo próprio Tratado. Mas, dito
isso, acho que faz todo o sentido discutir a questão da legitimação dos juizes
comunitários. Assim se discutisse com a mesma abertura a legitimação dos juizes
nacionais.
Sobre a primeira – a dos membros dos Tribunais comunitários – gostaria de dizer o
seguinte.
Em primeiro lugar, cada Juiz e cada Advogado-geral é designado, nos termos do
Tratado, por unanimidade, pelos governos democraticamente legitimados da totalidade
dos Estados-Membros.
Em segundo lugar, nada está dito no Tratado sobre a maneira como cada EstadoMembro deve escolher os juizes ou advogados-gerais que lhe cabe designar, o que
significa que a ordem jurídica interna de cada Estado tem plena autonomia para definir
as modalidades de escolha dos respectivos candidatos a membros dos Tribunais, que
serão depois designados pelos 15. Não faria aliás sentido que essas modalidades
estivessem definidas no Tratado, uma vez que não têm de ser as mesmas em todos os
Estados-Membros. Está, pois, nas mãos de cada um destes adoptar, se quiser, no plano
nacional, mecanismos de legitimação democrática dos candidatos que apresenta à
judicatura comunitária. No fundo, também aqui se exprime a realidade, por muitos
sublinhada, de que os Estados-Membros ainda são – mais até do que alguns gostariam –
os “senhores dos Tratados”.
Em terceiro lugar, considero – já o disse e escrevi em várias ocasiões – que se
justifica acrescentar elementos “comunitários” de legitimação democrática à designação
dos membros dos tribunais europeus. Justifica-se, nomeadamente, a meu ver, que o
Parlamento Europeu seja chamado a ter uma qualquer palavra nesta matéria. Ao fim e
ao cabo, da legitimação dos tribunais comunitários e dos seus membros pode dizer-se
aquilo mesmo que se aponta, em geral, à legitimação das Instituições comunitárias: que
ela se exprime numa tripla dimensão, a dos cidadãos, a da missão conferida pelos
Tratados e a dos Estados que os assinaram.
2. Passando agora ao essencial da missão que hoje me é conferida, não creio ser
possível – nem me parece que isso me seja pedido – apresentar verdadeiras conclusões
do Colóquio. Em todo o caso, para isso não estou “democraticamente legitimado”.
Não julgo sequer que seja possível apresentar uma síntese objectiva. Aquilo que vou
tentar fazer é, antes, uma espécie de pontuação do que foi dito. Ora, como a pontuação
é provavelmente a parte mais subjectiva da gramática, não escaparei à subjectividade,
mas tentarei ser o mais honesto possível. Exprimirei, em todo o caso, a propósito de
vários dos temas tratados, alguns juízos e opiniões pessoais.
147
3. A primeira questão que decorre de algumas das intervenções aqui feitas é saber se
há um problema da justiça em Portugal ou se há problemas da justiça em Portugal. Da
resposta a esta questão, que pode parecer puramente retórica, depende a abordagem a
escolher para tratar o problema: a meu ver, esta abordagem deve ser sistémica do ponto
de vista da análise, mas ao mesmo tempo pragmática do ponto de vista da acção a levar
a cabo para se alcançarem as soluções desejáveis.
E se é certo que todos estão de acordo em falar na existência de uma crise do
sistema, e se Jacques Atalli, aqui citado pelo Dr. Miguel Veiga, tem razão em definir a
crise como “une phase de transition entre deux périodes de crise”, então é correcto
assumir que o sistema judicial está em estado de crise permanente, afectado por doença
crónica.
Sendo assim, o método a seguir deverá ser o próprio da medicina. Há pois que fazer
o diagnóstico, definir a terapêutica e aplicar o tratamento.
Em Portugal, como se sabe, somos mestres no diagnóstico. Este Colóquio exprimiu
aliás uma grande convergência de pontos de vista no diagnóstico dos males do sistema,
sobre cuja natureza parece que sabemos já bastante.
Em geral, somos mais trapalhões na terapêutica, na indicação dos medicamentos a
tomar, e normalmente somos completamente incapazes no tratamento a aplicar ao
doente.
Que linhas seguir, pois, em matéria de Justiça? Das intervenções que se sucederam
ao longo do dia retirei meia dúzia de orientações que gostaria de destacar.
4. Em primeiro lugar, conviria começar por dizer o que não é o problema. É
certamente de volume ou de quantidade de processos; não é necessariamente de
quantidade de juizes ou de funcionários judiciais. Em todo o caso, não se resolve
aumentando simplesmente o número de uns e de outros.
Como reconheceu o Senhor Ministro da Justiça, o que está em causa é a
impreparação do aparelho judiciário no seu conjunto: instalações, informatização,
práticas administrativas, hábitos de prolixidade e erudição na redacção das sentenças,
formação das pessoas, inexistência de assessoria de apoio aos juizes.
Sinteticamente, poderá falar-se em desequilíbrios na distribuição geográfica e na
definição da malha de tribunais, erros na organização judiciária e graves deficiências
no funcionamento dos tribunais.
Sobre a organização judiciária, encontram-se preciosas reflexões na comunicação do
Dr. João Correia.
Do ponto de vista da distribuição geográfica, uma observação superficial torna
evidente a existência de fenómenos de concentração excessiva de problemas e de
recursos em Lisboa e no Porto. E se é certo que as assimetrias de desenvolvimento que
geram deseconomias de escala precedem e provocam os estrangulamentos da Justiça, as
decisões que sobre esta se tomam contribuem, elas também para o centralismo. Nada
obrigaria, por exemplo, a que o Tribunal Constitucional ficasse instalado em Lisboa.
Outros países seguiram uma política bem mais sensata, como a Alemanha, que não
148
escolheu a capital federal nem uma grande cidade, mas Karlsruhe, para sede do Tribunal
Constitucional (o Bundesverfassungsgericht).
O problema da Justiça também não é necessariamente de formação técnico-jurídica
de base dos seus agentes mas antes de adaptação cultural aos desafios e de capacidade
de resposta à mudança. É também, nesse contexto, um problema de formação
permanente, para a qual, de resto, o sistema se tem abstido de criar incentivos. É
curioso e absurdo que o investimento em formação seja totalmente ignorado como
critério de promoção dos magistrados na respectiva carreira.
Como foi lembrado durante os trabalhos, aquilo de que padece a Justiça não é
também de falta de leis – que são abundantes – mas de qualidade da legislação e de
capacidade de a aplicar.
5. Foi ainda sublinhado durante o Colóquio – e a justo título – que é necessário
encarar a Justiça como um serviço público, pago em larga medida pela colectividade,
como tal se exigindo que seja eficaz e cumpra os objectivos que por esta lhe são
definidos. Para isso, é indispensável ultrapassar aquilo que aqui foi considerado como o
principal estigma da crise da Justiça e que faz dela essencialmente uma crise de gestão.
Nesse sentido, há que racionalizar os meios disponíveis e utilizar melhor os dinheiros da
colectividade.
É portanto necessário – como foi dito e me parece fundamental – dar atenção aos
aspectos económicos da administração da Justiça. Necessitamos enfim de uma
economia da Justiça. Porque se é certo que temos praticamente tudo o que precisamos
em matéria de juristas, o facto é que o Direito sem consciência das suas implicações
económicas se transforma em puro juridismo. Temos também o que há de melhor em
matéria de sociólogos, mas a Sociologia sem a consciência dos recursos disponíveis
corre o risco de não passar das boas intenções.
Em especial, há que ter consciência dos custos brutais que para a vida económica e
empresarial têm os atrasos e as ineficiências da máquina judicial. Esse é, sem dúvida,
um dos factores importantes de perda de competitividade internacional da nossa
economia e de dissuasão do investimento em Portugal. Os problemas financeiros das
empresas, resultantes de créditos não resolvidos num mercado em que se generalizou a
impunidade do incumprimento (aos quais se refere a comunicação do Dr. Luís Faria)
são um aspecto do mesmo fenómeno.
Um outro aspecto da questão é que não basta afadigar-se num esforço de reforma
permanente ou de reforma pela reforma, é necessário avaliar criteriosamente a
respectiva relação custo/eficácia. Convém fazê-lo antes da introdução das reformas, na
fase de concepção e de preparação, mas convém fazê-lo também na fase de execução –
o que supõe obviamente que elas sejam executadas... Já aqui foi referido esta manhã que
há uns 15 anos se determinou por portaria que os processos não fossem cosidos: 15 anos
depois, continua-se impávida e serenamente a cosê-los!
Mas há sobretudo que avaliar a relação custo/eficácia da reforma através dos seus
resultados. Ora, a este propósito, é preocupante e perturbadora a conclusão, de que se
149
fez eco o Professor Boaventura Sousa Santos, de que, não obstante as reformas, a
situação continua sem melhorar, continua em muitos aspectos a piorar.
6. Há que evitar, como foi referido pelo Conselheiro Mário Torres, o mito da tutela
judicial efectiva universal, e substituir-lhe uma ideia de selectividade na abordagem
dos problemas da Justiça. Selectividade e concentração da litigância são aliás as
palavras-chave da comunicação do Dr. Armindo Ribeiro Mendes, como ponto de
partida para a formulação de recomendações de reforma. Como também foi sugerido
durante o Colóquio, o que o sistema deve proporcionar, em resultado de uma criteriosa
administração dos meios e remédios disponíveis e da sua concentração naquilo que é
mais importante e mais grave, é uma protecção judicial média equilibrada.
Isto implica, antes de mais, que se corrija a excessiva desigualdade social no acesso
ao direito que caracteriza o nosso sistema.
Implica também, como se insistiu ao longo do Colóquio, por um lado, que se limite a
intervenção do sistema judicial aos “verdadeiros conflitos” e, por outro lado, que se
promova uma conveniente des-jurisdicionalização da solução desses conflitos. A
tarefa inevitável a levar a cabo desdobra-se aqui em duas: é preciso determinar quando
é que os tribunais devem intervir e, uma vez decidida a intervenção, distinguir as
bagatelas, sejam elas cíveis ou penais, do contencioso verdadeiramente importante, em
vez de dar a todos o mesmo tratamento.
Nesse contexto, iniciou-se uma discussão – que será necessário continuar – sobre a
criação de mecanismos alternativos de resolução dos conflitos, sejam eles a arbitragem
ou outros. Mas, como foi reconhecido pelo Senhor Bastonário Dr. António Pires de
Lima, o ambiente social não é propício a essas formas de resolução dos litígios.
Também aqui, a Sociologia a condicionar qualquer reforma do sistema judicial.
O certo é que, por vezes, quando se criam novos mecanismos especializados de
resolução dos conflitos, o próprio Estado não os leva a sério. Exemplo disso é o
contencioso no domínio da economia e, em especial, no domínio da concorrência.
Temos um órgão de investigação e instrução dos processos que é actualmente designado
“Direcção-Geral do Comércio e da Concorrência” (e que anteriormente era conhecido
como “Direcção-Geral da Concorrência e Preços” – a designação flutua ao sabor das
concepções de cada um sobre a importância relativa destas coisas) e temos o “Conselho
da Concorrência”, órgão com competências decisórias e consultivas do Governo,
consoante os casos. Mas a função de membros do Conselho é exercida em part-time e
não se dá atenção suficiente aos problemas de conflitos de interesses. Acresce que os
tribunais encarregados de julgar os recursos nesta área não têm competência
especializada nem estão apetrechados para fazer face a um contencioso por vezes
extremamente complexo e de profundo impacto na vida económica.
7. Apontou-se ainda para a necessidade de simplificação do sistema. O facto é que a
multiplicidade das vias judiciais contribui para multiplicar os conflitos. Perante a
dificuldade de determinar o tribunal competente ou a via de recurso apropriada, os
150
advogados mais avisados utilizarão todas as vias disponíveis para tentar resolver o
problema do seu cliente. No meio de um emaranhado de incertezas, a segurança
jurídica e os direitos dos cidadãos ficam sujeitos a rude prova.
Simplificação vai normalmente a par com eficácia e desburocratização. Trata-se de
exigências que se fazem sentir tanto na gestão dos processos e dos tribunais como nas
cobranças de dívidas, nas execuções ou nos procedimentos falimentares. A experiência
em matéria de falências relatada pelo Dr. Almeida Serra prova que a simplificação é
possível e desejável.
A necessidade da simplificação impõe-se também no plano da redacção das
sentenças, onde há hábitos que ainda não ultrapassámos. Desse ponto de vista, vale a
pena apresentar como exemplo os Tribunais das Comunidades Europeias. A mera
leitura da jurisprudência dos tribunais comunitários permitirá testemunhar uma nítida
evolução no sentido de maior simplificação na redacção dos acórdãos, antes acusados
(sobretudo os do Tribunal de 1.ª Instância) de serem demasiado longos e, por vezes, de
difícil compreensão.
A história dos tribunais comunitários reflecte aliás a tentativa constante de encontrar
mecanismos de simplificação e de eficácia, sem tabus que impeçam, por puras razões de
inércia ou de tradição, as mudanças que se impõem. Por exemplo, se, no início, os
acórdãos do Tribunal de Justiça eram lidos integralmente em audiência pública, o
aumento exponencial do seu número comandou que passasse a ser lida só a parte
dispositiva e, a partir de certa altura, que as próprias conclusões dos Advogados-gerais
deixassem igualmente de ser apresentadas oralmente (em versão integral ou em resumo)
passando apenas a ser depositadas por escrito. Quebraram-se hábitos antigos, mas nunca
ninguém acusou a Justiça comunitária de, por isso, se preocupar menos com os direitos
dos cidadãos.
No fundo, simplificação implica aplicação, neste domínio, do princípio da
proporcionalidade dos meios aos objectivos: não se use a bomba atómica para matar
moscas. De facto, ao longo dos anos temos cometido o pecado da desproporção quando
a resposta deve ser graduada em função da intensidade e da gravidade dos problemas.
Evite-se, por exemplo as criminalizações excessivas.
8. Ligada as estas questões, há que mencionar a questão da prevalência do fundo
sobre a forma e os ritos. O formalismo é inimigo da Justiça: é-me difícil compreender,
por exemplo, que, numa acção contra o Estado, o Juiz declare a ilegitimidade do
demandado porque aquela foi dirigida contra o “Ministério” ou o “Estado”, em vez do
“Ministro”, ou vice-versa. Nunca um recurso para os tribunais comunitários foi
recusado porque o recorrente o dirigiu contra a União ou a Comunidade Europeia, em
vez de mencionar a Instituição autora do acto: não tendo dúvidas sobre a intenção da
parte, o Tribunal corrige oficiosamente a petição.
Por outro lado, a administração da justiça não pode transformar-se na simples gestão
dos despachos de mero expediente, tornando-se necessário desburocratizar a função do
151
Juiz, para que, em nome das exigências da Justiça, este se concentre nas funções que
são as suas.
Neste contexto, o Juiz não pode ser visto como o agente único no sistema judicial,
antes a cada um dos outros deve ser reconhecido o seu papel próprio. Sejam estes os
Advogados, sejam os Secretários Judiciais ou outras entidades (existentes ou a criar,
como por exemplo uma figura do género dos huissiers de justice franceses), a cada um
há que reconhecer o papel que lhe cabe no exercício de funções para as quais esteja
qualificado ou possa ser preparado. A eficácia do sistema judicial depende da forma
como todos se aceitarem no respeito das funções, prerrogativas e ética próprias de cada
um.
9. De privatização no sistema judicial se falou marginalmente durante o Colóquio.
Falou-se em especial de privatização do notariado. E aí, em matéria de eficácia, de
rapidez e de qualidade do serviço em países de notariado privado, a minha experiência é
idêntica à do Dr. Almeida Serra.
Vale certamente a pena reflectir seriamente sobre aquilo que é privatizável com
vantagens, não apenas no notariado mas também em aspectos vários da gestão dos
tribunais ou das prisões em Portugal. Para alguns, tratar-se-á apenas de uma questão de
medida e de oportunidade política. Ponto é que esta não sirva, mais uma vez, de
pretexto a um adiamento indefinido da tomada de decisões em tal matéria.
Neste domínio, será decerto proveitoso aprender com anteriores experiências de
privatização (como as televisões e as Universidades), a fim de evitar repetir os erros que
aquelas evidenciaram. E que esses erros não sirvam também de falsa justificação para a
inacção.
10. A propósito da figura dos assentos, abordada pelo Conselheiro Nunes da Cruz,
trouxe-se à colação as questões da previsibilidade e da uniformidade da jurisprudência,
da segurança jurídica e da democraticidade da norma, o que, naturalmente, haveria de
recolocar a questão da legitimação do Juiz e da função judicial.
De forma mais ampla, as relações dos tribunais “comuns” com o Tribunal
Constitucional (ou ainda com o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias)
levaram a abordar o papel, a missão e a importância dos juizes no sistema judicial, bem
como a questão da sua relação com a política.
Deste ponto de vista, o processo de “fim das ideologias” a que se assistiu na última
década não deixou de ter consequências sobre o sistema judicial: o fenómeno de
jurisdicionalização dos conflitos políticos é um aspecto visível desse processo.
11. Vale a pena terminar com o enunciado de mais algumas condicionantes com que
tem de contar qualquer reforma do sistema de Justiça em Portugal, e sobre as quais, de
uma maneira ou de outra, algo foi dito ao longo do Colóquio.
a) A primeira dessas condicionantes está intimamente ligada à nossa inserção num
mundo em vias de crescente globalização e, antes de mais, à nossa integração na
Comunidade Europeia. Hoje em dia, não é possível isolar os problemas da
152
Justiça do seu contexto internacional e, em especial, do quadro europeu em que
nos inserimos. Neste, avultam duas dimensões. Em primeiro lugar, a aplicação
directa e o primado da ordem jurídica comunitária e o respeito das
competências dos Tribunais do Luxemburgo, na sua articulação com os tribunais
nacionais através do mecanismo de cooperação judiciária previsto no artigo
234.º (ex-artigo 177.º) do Tratado; em segundo lugar, o respeito devido à
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a possibilidade de recurso ao
Tribunal de Estrasburgo. Mas, se quisermos sair do plano estritamente
institucional, as novas práticas e instrumentos do comércio internacional ou os
movimentos de imigração, com os problemas sociais conexos
(multiculturalismo, racismo, xenofobia), constituem outros tantos desafios à
capacidade de resposta do sistema judicial.
b) A segunda condicionante que convém referir é – como outras que se seguem –
de natureza sociológica. É constituída pela resistência à mudança que um
corpo tendencialmente conservador como são, em regra, os sistemas judiciais
não deixará de apresentar. Como foi sublinhado, o peso dos corporativismos é
um aspecto – e um dos factores causais – dessa resistência à mudança, fazendo
com que as magistraturas e, em geral, o sistema judicial deixem de desempenhar
o papel fundamental que deveria ser o seu de se auto-analisarem para se
colocarem em questão de modo a poderem funcionar como instrumento de
evolução e motor da sua própria reforma.
c) Nenhuma reforma da Justiça pode ignorar, além disso, as características próprias
do sistema social que a envolve e ao qual aquela deve responder. O contencioso
perante os tribunais é, ele próprio, um revelador dos fenómenos sociais, num
contexto que pode contribuir para moldar mas que, na sua essência, não
controla. Ora, a sociedade portuguesa, com a qual o sistema judicial tem de
conviver, ostenta virtudes e defeitos com que é necessário contar. Sem procurar
tirar aqui um retrato, e sem qualquer pretensão científica, julgo não me enganar
se disser que, no seu conjunto, os portugueses possuem uma insuficiente
consciência dos seus direitos, uma reduzida propensão para os reclamar por vias
que não sejam as judiciais (embora, paradoxalmente, nestas não acreditem) e
uma tendência (não corrigida pelos media, pelos políticos ou pelo sistema
escolar) para a desresponsabilização do que é verdadeiramente grave.
Por outro lado, somos (por temperamento e educação) tendencialmente
imprevidentes, indisciplinados e avessos a cumprir regras. Se há patrões que
“esquecem” os regulamentos de segurança das construções urbanas, há operários que se
recusam por hábito a pôr o capacete ou a afastar-se quando vem um camião descarregar
brita. O binómio valor da vida – processo laboral, que constitui o objecto da
comunicação do Professor Jorge Leite, vai assim ser equacionado num contexto que lhe
é sociologicamente desfavorável.
153
Daqui uma insuficiente “visão profilática” da infracção e do acidente que multiplica
os litígios pela via judicial. Há certamente que agir a montante através da educação, da
prevenção e da fiscalização.
d) O próprio processo de desenvolvimento da sociedade portuguesa cria novos
desafios ao sistema jurídico e, directa ou indirectamente, à sua aplicação pela
Justiça. Basta pensar na alteração dos eixos da economia moderna e no
correlativo desenvolvimento da importância da investigação, da inovação, das
telecomunicações, da informática e da propriedade intelectual; no surgimento e
no aumento da importância de novas formas de criminalidade,
designadamente económica, às quais se refere a comunicação do Professor
Manuel Costa Andrade; na generalização e na rápida aceleração das políticas de
concorrência, de liberalização e de desregulamentação de actividades até há
pouco fechadas e fortemente controladas.
e) Enfim, o processo de mediatização da Justiça, que em Portugal se exacerbou
nos últimos anos, tem relegado para o campo do patológico as relações dos
tribunais com o público e com a comunicação social e desvirtuado o sentido com
que deve ser cumprido o dever de informação que também impende sobre o
sistema judicial. Recomendo a releitura das reflexões que ao tema consagrou o
Dr. Magalhães Mota.
12. É altura de concluir: a meu ver, para evitar o risco de “latino-americanização”, há
que pôr nos carris o processo de reforma da Justiça portuguesa.
Como sublinhou o Senhor Ministro da Justiça, é para isso indispensável um
consenso entre as forças políticas e os intervenientes no sistema. Reconhece-se que esse
consenso é difícil; mas é possível e há que promovê-lo – com espírito reformista – sob
pena de total irresponsabilidade.
É claro que seria preferível, em matéria de reforma da Justiça, antecipar os
problemas. Infelizmente, em relação a muitos dos que afectam o sistema judicial
português, hoje em dia é já demasiado tarde para agir em antecipação. Há pois que
atacar em força e, utilizando uma expressão inglesa, talvez a solução seja criar uma
task-force para cada problema devidamente identificado, composta por gente com
experiência, capaz de ligar a reflexão à prática, de agir numa perspectiva pragmática e
não ideológica e de exprimir não apenas o ponto de vista do funcionário que está
fechado num gabinete, mas também e sobretudo o ponto de vista dos utentes.
Não que se justifique uma espécie de FMI da Justiça para solucionar a crise da
Justiça em Portugal. Mas, em vez de estar sempre a anunciar a reforma das reformas,
havemos de criar a capacidade para resolver os problemas do sistema entre nós e em
democracia, de maneira a aprofundar o Estado de Direito e responder ao clamor
popular, à indignação do cidadão comum perante a incapacidade da Justiça para
resolver os seus problemas.
154
Muito obrigado pela Vossa atenção!
155
Anexos
156
Quadro 1 – PROCESSOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS 1992-1998*
Anos
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998*
7
8
Tribunais/Processos
1
2
3
4
5
6
MOVIMENTO DE PROCESSOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS DE 1.ª INSTÂNCIA
PROCESSOS CÍVEIS
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
252 727
266 123
237 689
279 634
312 241
253 419
330 788
405 034
333 068
402 465
368 961
288 339
483 134
412 073
316 727
587 326
485 210
340 727
732 866
456 130
342 738
Duração média (em meses) dos processos
findos
Divórcios e separações judiciais
Inventários
Outras acções declarativas
Falências e recuperação de empresas
Execuções
14
24
13
66
16
12
23
11
49
14
11
24
11
39
14
11
24
11
29
17
12
28
12
25
17
12
29
12
25
17
12
28
14
23
19
Procedimentos de injunção terminados
Antes da distribuição
Duração média (em dias)
Após distribuição
Duração média (em meses)
-
-
-
2 753
54
86
7
2 406
74
69
9
2 575
100
76
13
7 521
106
62
12
PROCESSOS PENAIS
Inquéritos
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
176 478
384 663
345 860
216 010
385 130
363 373
237 955
409 422
405 066
241 980
416 506
399 600
259 154
431 185
410 345
280 266
409 734
420 217
272 414
395 799
435 792
Processos crime na fase de julgamento
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
125 874
94 609
92 394
119 067
110 132
79 119
132 260
114 496
101 891
137 482
111 837
89 795
158 080
109 195
90 743
175 620
118 264
97 180
195 313
105 146
122 403
14
11
12
14
15
15
17
Arguidos
Condenados
82 972
30 351
74 274
37 442
95 107
34 484
89 678
36 372
90 360
36 771
90 858
37 735
119 347
40 542
Processos de transgressão
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
106 863
352 666
290 201
180 645
338 733
399 145
171 158
247 874
399 145
18 288
30 949
33 473
15 708
22 236
19 131
18 562
15 632
14 876
18 395
29 368
20 366
Duração média dos processos crime na fase de
julgamento findos
Continua
*Dados provisórios.
Fonte: Gab. Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.
157
Quadro 1 – PROCESSOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS 1992-1998*
Anos
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998*
2
3
4
5
6
7
8
39 913
50 468
47 618
42 885
60 455
54 250
46 757
56 903
62 340
39 966
56 776
40 317
46 350
59 550
54 482
51 344
60 264
57 582
53 683
61 086
59 190
12
15
18
10
13
12
11
11
11
10
10
13
10
10
10
10
11
10
10
12
12
PROCESSOS TUTELARES CÍVEIS
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
16 036
17 743
17 560
15 362
18 264
17 205
15 684
20 967
19 986
16 182
20 685
19 515
17 386
20 454
18 968
19 227
21 237
19 927
20 615
22 153
20 539
PROCESSOS TUTELARES
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
7 342
6 422
6 341
7 263
7 034
5 893
8 075
6 972
6 242
8 760
7 189
5 673
10 178
6 837
5 607
11 296
7 327
5 743
14 030
7 948
6 073
12
12
11
12
11
12
10
13
10
13
10
13
10
13
Tribunais/Processos
1
PROCESSOS DE TRABALHO
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
Duração média (em meses) das acções findas
Acidentes de trabalho
Execuções de trabalho
Duração média (em meses) dos processos
findos
Tutelares cíveis
Tutelares
MOVIMENTO DE PROCESSOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS SUPERIORES
Tribunais da Relação
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
8 942
19 614
14 796
13 760
21 446
19 767
15 437
17 776
19 355
11 651
19 370
16 735
14 111
19 790
17 934
15 222
20 482
22 767
12 767
20 868
21 490
Supremo Tribunal de Justiça
Pendentes em 1 de Janeiro
Entrados
Findos
2 564
3 004
2 977
2 591
4 126
3 920
2 797
3 427
3 937
2 268
3 371
3 459
2 180
3 526
3 519
2 187
3 570
4 154
1 625
4 238
4 444
11
5
11
5
10
6
9
7
9
7
8
7
7
5
Duração média (em meses) dos recursos findos
Cíveis
Em processo crime
*Dados provisórios.
Fonte: Gab. Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.
158
Gráfico 1
PROCESSOS CÍVEIS 1992 - 1998
800 000
700 000
Processos
600 000
500 000
400 000
300 000
200 000
100 000
1992
1993
1994
1995
Pendentes em 1 de Janeiro
1996
1997
1998*
Entrados
Findos
Gráfico 2
DURAÇÃO MÉDIA DOS PROCESSOS CÍVEIS FINDOS
70
60
50
Meses
40
30
20
10
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998*
Divórcios e separações judiciais
Inventários
Outras acções declarativas
Falências e recuperação de empresas
Execuções
159
Gráfico 3
Injunções
INJUNÇÕES FINDAS 1995 - 1998
8
7
6
5
4
3
2
1
000
000
000
000
000
000
000
000
1995
1996
1997
1998*
Gráfico 4
DURAÇÃO MÉDIA DOS PROCESSOS CRIME
18
16
14
17
14
14
Meses
12
10
11
8
15
15
1996
1997
12
6
4
2
1992
1993
1994
1995
Gráfico 5
160
1998*
PROCESSOS DE TRABALHO 1992 - 1998
70 000
60 000
Processos
50 000
40 000
30 000
20 000
10 000
1992
1993
1994
1995
Pendentes em 1 de Janeiro
1996
1997
Entrados
1998*
Findos
Gráfico 6
DURAÇÃO MÉDIA DOS PROCESSOS LABORAIS
20
18
16
Meses
14
12
10
8
6
4
2
1992
1993
1994
1995
Acidentes de trabalho
1996
1997
1998*
Contrato individual de trabalho
Execuções de trabalho
Gráfico 7
161
PROCESSOS TUTELARES CÍVEIS 1992 - 1998
25 000
Processos
20 000
15 000
10 000
5 000
1992
1993
1994
1995
Pendentes em 1 de Janeiro
1996
1997
Entrados
1998*
Findos
Gráfico 8
Processos
PROCESSOS TUTELARES 1992 - 1998
16
14
12
10
8
6
4
2
000
000
000
000
000
000
000
000
1992
1993
1994
1995
Pendentes em 1 de Janeiro
Gráfico 9
162
1996
Entrados
1997
1998*
Findos
DURAÇÃO MÉDIA DOS PROCESSOS TUTELARES
14
12
Meses
10
8
6
4
2
1992
1993
1994
1995
1996
Tutelares cíveis
1997
1998*
Tutelares
Gráfico 10
PROCESSOS NOS TRIBUNAIS DA RELAÇÃO
1992 - 1998
25 000
Processos
20 000
15 000
10 000
5 000
1992
1993
1994
1995
Pendentes em 1 de Janeiro
Gráfico 11
163
1996
Entrados
1997
1998*
Findos
Processos
PROCESSOS NO STJ 1992 - 1998
5
4
4
3
3
2
2
1
1
000
500
000
500
000
500
000
500
000
500
1992
1993
1994
1995
Pendentes em 1 de Janeiro
1996
1997
Entrados
1998*
Findos
Gráfico 12
DURAÇÃO MÉDIA DOS RECURSOS
12
10
Meses
8
6
4
2
1992
1993
1994
Cíveis
1995
1996
1997
1998*
Em processo crime
Quadro 2 – PROCESSOS CRIME NA FASE DE JULGAMENTO FINDOS NOS
TRIBUNAIS JUDICIAIS DE 1.ª INSTÂNCIA
164
1992-1998*
Anos
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998*
2
3
4
5
6
7
8
79 474
82 972
30 351
70 916
74 274
37 442
90 503
95 107
34 484
84 747
89 678
36 372
85 387
90 360
36 771
85 282
90 858
37 771
113 616
119 347
40 542
300
4 472
9 017
7 528
-
419
8 957
12 247
7 129
-
406
8 223
9 697
8 126
-
335
8 420
9 226
9 430
-
353
16 986
4 686
7 510
-
335
20 723
3 042
7 204
5 782
352
25 810
2 576
6 225
5 091
8 817
3
17
36
1
8 446
1
19
32
1
7 750
2
12
39
1
8 703
4
9
47
..
6 965
11
6
25
..
1 422
6 123
3
12
29
2
1 134
5 260
1
7
33
1
11
67
82
25
71
95
14
63
151
7
47
144
11
218
14
248
15
262
Tribunais/Processos
1
Processos crime na fase de julgamento
findos (total)
Arguidos julgados
Condenados
Penas/medidas aplicadas:
Admoestação
Multa
Prisão substituída por multa
Prisão não substituída/pena suspensa
Simples
Com sujeição a deveres/regras de
conduta/regime de prova
Prisão não substituída não suspensa
Prisão relativamente indeterminada
Prisão por dias livres/semidetenção
Medidas de segurança
Medidas especiais para jovens
Prestação de trabalho a favor da
comunidade
Regime de prova
Outras, ignoradas ou não especificadas
*Dados provisórios.
Fonte: Gab. De Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.
165
Gráfico 1
PENAS E MEDIDAS APLICADAS 1992 - 1998
30 000
25 000
Número
20 000
15 000
10 000
5 000
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998*
Multa
Prisão substituída por multa
Prisão não substituída/pena suspensa
Prisão não substituída não suspensa
166
Quadro 3 – SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO (CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO)
Anos
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
Processos/Espécies
1
Pendentes do ano anterior
Entrados durante o ano
Total
Findos durante o ano
Pendentes para o ano seguinte
541
108
649
208
441
441
143
584
183
401
1. MOVIMENTO PROCESSUAL
PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
401
412
358
371
368
159
144
137
180
181
560
556
495
551
549
148
198
124
183
215
412
358
371
368
334
Pendentes do ano anterior
Entrados durante o ano
Total
Findos durante o ano
Pendentes para o ano segunite
3215
1228
4443
1556
2887
2887
1192
4079
1347
2732
SUBSECÇÕES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
2732
2595
2571
2384
2167
1090
1330
1135
1273
1236
3822
3925
3706
3657
3403
1227
1354
1322
1490
1443
2595
2571
2384
2167
1969
Oposição de acórdãos
Outros recursos jurisdicionais
Recursos de actos de CSTAF
Outros
Total
18
89
1
..
108
25
117
..
1
143
2. PROCESSOS ENTRADOS, POR ESPÉCIES
PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
17
27
36
43
39
141
111
99
132
136
..
6
2
4
6
1
..
..
1
..
159
144
137
180
181
9
334
188
522
143
379
379
184
563
133
430
430
206
636
164
472
472
224
696
198
498
498
183
681
375
306
306
235
541
204
337
1960
1739
3699
1127
2572
3768
2691
6459
1994
4465
3768
2691
6459
1994
4465
4465
2268
6733
2052
4681
4681
1734
6415
2079
4336
4336
1048
5384
1701
3683
47
137
2
2
188
52
144
3
7
206
52
144
3
7
206
77
140
..
7
224
38
143
2
..
183
52
178
..
5
235
Continua
Fonte: Gab. De Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.
167
Quadro 3 – SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO (CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO)
Anos
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
Processos/Espécies
1
SUBSECÇÕES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
Recursos jurisdicionais
Recursos contenciosos
Contencioso eleitoral
Ilegalidade de normas
Conflitos
Suspensão de eficácia
Execução de julgados
Outros
270
760
..
11
4
183
..
..
318
687
..
7
1
88
17
3
455
519
..
7
1
88
17
3
634
568
..
6
2
101
12
7
439
614
..
4
..
60
18
..
556
604
3
9
1
62
34
4
641
531
..
4
2
45
13
..
679
757
..
5
..
87
43
168
1247
1180
1
11
2
96
6
631
1345
1092
..
24
1
85
2
142
1285
791
..
4
..
82
9
97
937
650
1
1
1
73
15
56
588
309
1
..
1
54
23
72
10
28
11
22
2
30
..
13
15
8
28
22
10
1
38
..
3
11
9
18
21
22
3
22
4
1
10
13
17
25
12
1
16
8
20
13
13
22
24
21
2
23
9
14
13
16
23
21
27
3
24
8
10
17
..
..
..
..
..
..
..
..
..
DURAÇÃO MÉDIA, EM MESES, POR ESPÉCIES
Recursos jurisdicionais
Recursos contenciosos
Conflito de competência
Ilegalidade de normas
Suspensão de eficácia
Execução de julgados
Apoio judiciário
Outros
Média total
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
17
37
7
..
3
20
..
15
24
9
38
10
24
2
22
..
2
13
14
38
..
23
2
23
..
9
21
Fonte: Gab. De Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.
168
15
38
29
22
2
25
..
8
23
Quadro 4 – TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO (CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO)
Anos
Processos/Espécies
1
Recursos jurisdicionais
Recursos contenciosos
Ilegalidade de normas
Conflitos
Outros processos
Total
Entrados
2
87
493
..
1
21
602
1997
Findos
3
Pendentes
4
19
5
..
..
8
12
68
488
..
1
13
570
Entrados
5
564
1044
13
..
73
1694
1998
Findos
6
365
204
5
1
75
650
*Até 31 de Março de 1999.
Fonte: Gab. de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.
169
Pendentes
7
Entrados
8
267
1328
8
..
11
1614
228
273
2
..
22
525
1999*
Findos
9
150
149
1
..
15
315
Pendentes
10
Entrados
11
TOTAL*
Findos
12
Pendentes
13
345
1452
9
..
18
1824
879
1810
15
1
116
2821
534
358
6
1
98
997
345
1452
9
..
18
1824
Quadro 5 – TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS DE CÍRCULO
Anos
Espécies
1
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
1. MOVIMENTO PROCESSUAL
Pendentes do ano anterior
Entrados durante o ano
Total
Findos durante o ano
Pendentes para o ano seguinte
2041
1154
3195
897
2298
2298
1492
3790
1046
2744
2744
1497
4241
1285
2956
2956
1735
4691
1883
2808
2808
1782
4590
1851
2739
2739
1888
4627
1905
2722
2857
2335
5192
2530
2662
2662
2966
5628
2547
3081
2501
3445
5946
3134
2812
2812
3753
6565
3262
3303
3303
3921
7224
3386
3838
3838
3392
7230
2836
4394
4394
4211
8605
3107
5498
67
208
40
1442
1
28
..
760
2546
101
219
48
1569
2
41
3
1150
3133
112
236
76
1569
5
34
2
1228
3262
64
247
65
1671
5
38
4
1283
3377
59
151
56
1646
2
40
2
879
2835
59
225
79
1630
1
10
7
1096
3107
2. PROCESSPS FINDOS, POR ESPÉCIES
Acções:
Sobre contratos
Da responsabilidade civil
Para conhecimento de direitos
Recursos de actos administrativos
Impuganção de normas
Contencioso da segurança social
Contencioso eleitoral
Outros
Média total
55
77
9
624.
..
7
..
125
897
65
51
19
727
..
18
1
165
1046
82
55
16
860
..
17
1
238
1269
53
132
30
1213
2
22
3
391
1846
71
101
334
1226
1
8
2
406
1848
71
145
34
1149
1
15
1
488
1904
127
166
42
1353
5
38
2
750
2483
Continua
Fonte: Gab. de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça
170
Quadro 5 – TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS DE CÍRCULO
Anos
Espécies
1
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
DURAÇÃO MÉDIA, EM MESES, POR ESPÉCIES
Acções:
Sobre contratos
De responsabilidade civil
Para conhecimento do direitos
Recursos de actos administrativos
Impuganação de normas
Contencioso da segurança social
Contencioso eleitoral
Outros
Média total
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
..
32
39
27
27
..
14
21
11
25
28
48
23
29
26
16
11
8
26
30
37
25
25
5
23
13
9
12
27
41
15
22
3
25
5
6
19
Fonte: Gab. de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.
171
22
32
15
22
10
19
4
4
17
22
23
15
18
3
21
..
3
14
16
20
13
18
17
24
4
4
13
17
16
14
16
9
12
2
3
11
20
16
11
16
6
13
10
3
11
26
23
15
16
15
10
2
4
13
..
..
..
..
..
..
..
..
..
Programa
172
COLÓQUIO A JUSTIÇA EM PORTUGAL
24 de Maio de 1999
Grande Auditório da Caixa Geral de Depósitos
09H15 - 10H00 − Abertura
• Apresentação do Colóquio pelo Presidente do Conselho Económico e Social
•
Intervenção inaugural do Senhor Ministro da Justiça
•
Esboço de uma perspectiva da Justiça em Portugal na óptica de um
Conselho Económico e Social
Dr. Joaquim Magalhães Mota
10H00 - 11H30 − Algumas questões com relevância económica
• As falências
Dr. José de Almeida Serra
• A crise de confiança nos contratos
Dr. Miguel Veiga
• O crédito mal-parado nas empresas não financeiras
Dr. Luís Faria
11H30 - 11H45 − Intervalo para café
11H45 - 13H15 − Aspectos Sociais
• O valor da vida e o processo laboral
Prof. Doutor Jorge Leite
• A concentração e a selectividade da litigância
Dr. Armindo Ribeiro Mendes
• Os problemas do consumo, ambiente e as novas vertentes
da cidadania nos tribunais
Conselheiro Mário Torres
13H15 - 15H00 − Intervalo para almoço
15H00 - 16H30 − A Justiça como tarefa comum
• Tribunais de competência especializada?
Dr. João Correia
• Os crimes contra a economia na criminalidade judicializada.
A criminalidade de colarinho branco
Prof. Doutor Manuel Costa Andrade
• A intervenção dos advogados prevenindo o litígio
Dr. António Pires de Lima
16H30 - 16H45 − Intervalo para café
16H45 - 18H15 − O poder judicial hoje
• A expressão das competências do poder judicial
Juiz Conselheiro José Nunes da Cruz
• A crise (interna ou externa) dos Tribunais?
Prof. Doutor Boaventura Sousa Santos
• Legitimidade do poder judicial
Prof. Doutor J. J. Gomes Canotilho
18H15 - 18H40 −
Síntese conclusiva do Colóquio
Dr. José Luís da Cruz Vilaça
173