colóquio - a justiça em portugal
Transcrição
colóquio - a justiça em portugal
CONSELHO ECONÓMICO E SOCIAL COLÓQUIO “A JUSTIÇA EM PORTUGAL” (Organizado pelo Conselho Económico e Social, no Grande Auditório da Caixa Geral de Depósitos a 24 de Maio de 1999) LISBOA, 1999 1 Índice Sessão de Abertura Intervenção do Presidente do Conselho Económico e Social Dr. José da Silva Lopes Esboço de uma Perspectiva da Justiça em Portugal na Óptica de um Conselho Económico e Social Dr. Joaquim Magalhães Mota Intervenção do Senhor Ministro da Justiça Dr. Vera Jardim 5 7 16 Algumas Questões com Relevância Económica As Falências e a Administração da Justiça: Algumas Reflexões Dr. Almeida Serra 27 A Crise de Confiança nos Contratos Dr. Miguel Veiga 41 O Crédito mal parado nas Empresas não Financeiras Dr. Luís Faria 55 Aspectos Sociais A Concentração e a Selectividade da Litigância Dr. Armindo Ribeiro Mendes 62 Os Problemas do Consumo e do Ambiente e as Novas Vertentes da Cidadania nos Tribunais Conselheiro Mário José de Araújo Torres 78 A Justiça como Tarefa Comum A Justiça como Tarefa Comum: o Presente e o Futuro Judiciário Dr. João Correia 90 White-Collar Crime e Justiça Penal (Uma Abordagem Criminológica) Professor Doutor Manuel Costa Andrade 97 A intervenção dos advogados prevenindo o litígio Dr.António Pires de Lima 117 O Poder Judicial Hoje A expressão das competências do poder judicial Juiz Conselheiro José Nunes da Cruz 123 A crise (interna ou externa) dos tribunais? Professor Doutor Boaventura Sousa Santos 130 Legitimidade do poder judicial Professor Doutor J.J. Gomes Canotilho 140 2 Síntese Conclusiva do Colóquio Dr. José Luís da Cruz Vilaça 148 Anexos 159 Programa 175 3 Sessão de Abertura 4 Intervenção do Senhor Presidente do Conselho Económico e Social Dr. José da Silva Lopes Como sempre acontece quando o Conselho Económico e Social promove a discussão pública de um assunto, a escolha de A Justiça em Portugal como tema para o presente Colóquio assentou em critérios de relevância para a vida social e económica do País na actualidade. O Conselho Económico e Social tem presente a importância do sistema judicial, enquanto pilar decisivo do Estado de Direito e avalia bem em que medida este é um sector de grande melindre e complexidade. Mas observa que as manifestações públicas de insatisfação pelo funcionamento da justiça têm estado, nos últimos tempos, a ser provavelmente mais generalizadas e mais intensas do que em qualquer outro momento do último meio século, exceptuando os casos de julgamentos políticos do tempo da ditadura. As características da vida social e da actividade económica com que a Justiça tem de lidar têm estado a transformar-se a um ritmo sem precedentes, em consequência do desenvolvimento de novas formas de delinquência e conflitualidade, da liberalização económica, da globalização, e das novas tecnologias. A legislação e o sistema judicial português não se têm transformado com rapidez suficiente para responder a essas modificações. Daí resultam, além de graves problemas na defesa dos direitos dos cidadãos, consequências sérias para as actividades económicas e para a vida social: distorções na concorrência; custos impostos a uma parte dos cidadãos e agentes económicos para compensar os danos provocados por outros; obstáculos ao crescimento dos investimentos; limitações à competitividade internacional das empresas, etc. O desenvolvimento económico e a coesão social não poderão deixar de ser negativamente afectados se as falências fraudulentas continuarem a não ser penalizadas, se persistirem atrasos excessivos na solução de disputas relativas ao cumprimento dos contratos, se não houver sanções efectivas e dissuasoras para as fraudes fiscais, se a legislação sobre a defesa da concorrência continuar na prática a ser inoperante, e se não houver meios para combater as novas formas de criminalidade económica. O Conselho Económico e Social está bem consciente de que a Justiça é um sector onde, frequentemente, valores inquestionáveis, quando isoladamente ponderados, são delimitados por outros igualmente atendíveis. Trata-se, em regra, de equilíbrios difíceis, como são, a título de exemplo, o equilíbrio entre as garantias dos réus e arguidos e a celeridade e tutela dos direitos e interesses dos lesados; o equilíbrio entre o direito ao recurso e a rapidez na conclusão dos processos; ou o equilíbrio entre o princípio da indispensável independência dos juizes e o controlo da actividade judiciária. Não será de esperar, por isso, que as dificuldades do sistema judicial possam vir a ser eliminadas de um momento para o outro. A magnitude e a complexidade dos desafios a enfrentar continuarão, certamente, a alargar-se. As transformações económicas e sociais já atrás assinaladas, o surgimento de novas e mais elaboradas áreas e formas de 5 criminalidade, e a generalização do acesso ao direito, entre outros factores, não deixam antever uma diminuição da litigância judicial. Antes pelo contrário, a previsão mais consistente é a de que esta continuará a subir. Daí que seja tão importante discutir, em iniciativas como esta, as respostas possíveis para a actual situação. Não conseguiremos eliminar rapidamente todas as disfunções existentes, porque isso seria certamente utópico, mas pelo menos deveremos empenharnos em reduzir substancialmente os seus efeitos negativos e em evitar os riscos que uma insatisfação generalizada como o Sistema de Justiça não deixariam de trazer para o País. Em face da multidisciplinaridade das questões que nesta área se colocam, o Conselho Económico e Social, no propósito de dar a conhecer diferentes enquadramentos do problema, convidou para participar no presente Colóquio entidades de reconhecido mérito, que, tendo em comum o estudo dos problemas da Justiça, possuem diferentes formações académicas e diversas experiências profissionais. Assim, podemos contar com as comunicações de ilustres magistrados, professores de direito, advogados, sociólogos e economistas. Terei que exprimir ao Senhor Ministro da Justiça o agradecimento por ter aceitado presidir à presente sessão de abertura do Colóquio e apresentar nela uma intervenção que virá a enriquecer substancialmente os nossos trabalhos. O Conselho Económico e Social está também muito grato às diversas personalidades do sistema judicial que nos honraram com a sua presença nesta sessão. O CES está ainda agradecido a todos os que aceitaram o convite para intervir nos trabalhos de hoje, sobretudo os autores das comunicações sobre as quais se vão basear os nossos debates. São as suas contribuições que fundamentalmente determinarão os resultados do presente Colóquio. Um reconhecimento especial é devido ao Sr. Dr. Magalhães Mota que, como membro do Conselho Económico e Social, onde é uma das três personalidades de reconhecido mérito designadas em Plenário, estruturou o programa das diferentes sessões de hoje, sugerindo os temas a discutir e os nomes das personalidades convidadas para a apresentação desses temas. Por último, devo transmitir ao Presidente da Caixa Geral de Depósitos, Senhor Dr. João Salgueiro, que é também Vice-Presidente do Conselho Económico e Social, a nossa gratidão pela sua generosidade em nos ceder gratuitamente a utilização das instalações onde vai decorrer o Colóquio, à semelhança do que já fez em relação a outras iniciativas do mesmo tipo, promovidas nos últimos anos pelo Conselho. 6 Esboço duma Perspectiva da Justiça em Portugal na Óptica de um Conselho Económico e Social Dr. Joaquim Magalhães Mota* Falamos, naturalmente, não de JUSTIÇA, mas da administração da Justiça. E ao falar desta, creio valer a pena principiar por recordar o texto constitucional. Diz o n.º 2 do art. 202.º que “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”. Naturalmente, a lembrança do texto da Constituição equivale a lembrar, ao mesmo tempo, a definição da função jurisdicional a que são chamados os tribunais na administração da justiça. E corresponde também a evidenciar que, normalmente, é apenas a função de “dirimir conflitos” a que está no centro das atenções. De facto, e em rigor, é através do conflito decidido que a defesa dos direitos ou a repressão da violação da legalidade se efectiva. É no concreto decidir dos litígios que, verdadeiramente, se define a função jurisdicional. Por isso, e talvez não seja inútil lembrá-lo, é a não decisão ou o atraso na decisão, que perturbam e chocam os cidadãos. Ainda antes me parece dever sublinhar que, sob três perspectivas, como as que resultam do texto constitucional, está em causa a realização da normatividade jurídica. Na defesa dos direitos legalmente protegidos, quando violada a legalidade, e face a um concreto conflito de interesses. Só que, perante o conflito, a função do juiz não é só aplicar a Lei. Mas a de regular o conflito, “qualquer que seja o estado do direito escrito”, 1 sob pena de denegar justiça. Creio estar aqui uma concreta exigência que vai para além da exigência duma decisão. Mas exigência a uma função jurisdicional entendida, não como mera função de tutela de lei e da sua formal aplicação, mas como pronuncia dum juízo sobre a relação material controvertida, isto é, como a outra face do direito de acesso à justiça que é direito fundamental dos cidadãos. Não tenho a certeza de que o Centro de Estudos Judiciários e as inspecções judiciais, tenham exactamente esta noção da função jurisdicional e do papel dos juizes. Por isso, importa assinalar que a predominância do processo, a sobrevalorização da forma, é muitas vezes, sempre demasiadas vezes, inimiga da pronuncia de juízo que se pretende e legitimamente se exige. * 1 Advogado. Conselheiro do CES. S. BELAID, Essai sur le pouvoir créateur et normatif du juge”, pág. 38. 7 Acrescentarei que só nesta linha se poderão entender os tribunais como órgãos de soberania que se assumem independentes na função de administrar justiça. Porque a administram “em nome do povo”. Isto é, concorrendo “para a realização da intenção político-jurídica unitária que a comunidade historicamente assume” 2, para a vontade dum povo que, tributário dum passado que o formou, não só vive em conjunto como, em conjunto pretende enfrentar a aventura do futuro. Correspondendo à vocação de “auto-realização em liberdade de um povo de homens reconhecidos iguais e invioláveis na sua dignidade”. Ou seja: na formulação clássica segundo a qual a justiça é atribuir a cada um o que lhe é devido, pressupõe-se saber o que a cada um é devido numa concreta comunidade, no tempo e no espaço situada. É esta decisão, a que aos Tribunais se exige. Não será demasiado repetir que tal impõe que aos valores de raiz formal acresçam valores essenciais, deles se destacando o conceito real da justiça. O que se trata não é dum diálogo formal entre o homem abstracto e a lei, abstracta e geral. Mediado por um técnico “quimicamente puro”. Trata-se, antes, duma relação, enraizada na vida quotidiana, entre homens concretos, a lei em processo de concretização e um magistrado responsável face a essa situação pela prossecução, de acordo com o direito, da justiça a definir. Em concreto, também. Porquanto definição da lei, dizer o direito, no concreto caso presente no Tribunal, é o que do Tribunal espera o Sr. Silva, ou o Sr. Qualquer Coisa que todos somos. Por isso, a justiça não é a ordem. Mas a promessa e o penhor duma ordem melhor. Todo o alargamento da ideia de direito é, consequentemente, solidário das condições, materiais e morais, do meio social. A antecipação só será reconhecida na medida em que os erros sejam, de imediato, sancionados. Não é o Homem quem, arbitrariamente, estende o domínio do direito porque cada vez exige mais da Sociedade. Pelo contrário, é uma concreta sociedade que, por intermédio do direito, firma a sua vitalidade. Sabemos todos, como esta crescente intervenção, se traduz não apenas num maior número de leis mas, conjugada com as dificuldades próprias dos parlamentos, no fim da noção clássica do “poder legislativo” com o reconhecimento de competências legislativas aos Governos e o surgir de administrações poderosas e presentes em quase todos os aspectos da vida social. Direi que não se dúvida, hoje, serem insustentáveis quer um conceito de lei, como norma universal, geral e abstracta, quer o seu monopólio parlamentar. Mas o que importa evidenciar é que tal implica, e necessariamente, a automática e fatal expansão das competências próprias dos tribunais como órgãos de controlo da lei (e também da “legislação”)3. 2 CASTANHEIRA NEVES “O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos supremos tribunais”, Coimbra, 1983. 3 No sentido anglo-saxónico de “intransitive internal legislation”. 8 Acrescentarei que um poder político permanentemente pressionado por uma tentação de eficácia e popularidade, se defronta, permanentemente também, com a ineficácia da produção legislativa que produz sem conseguir (nem dar tempo de) implementar e em que, pela ambiguidade, se procura mascarar a ausência de verdadeiros consensos. Com o peso próprio dos interesses económicos e corporativos e dos seus múltiplos e variados “lobbings” que tornam crescentemente complexa a gestão da “coisa pública”. É assim como uma forma de compensação, e também de “acalmação”, que crescentemente o Poder se abre à sindicância judicial. Convergem assim as linhas de força que procurámos evidenciar. Por um lado, destaca-se a importância decisiva da concreta decisão como criação e poder normativo, tornando-se o legislador, apenas, “o pólo geral de imputação da criação normativa do direito”.4 Por outro lado, pede-se aos tribunais que intervenham em áreas cada vez mais extensas e diversificadas. Por isso, não há que estranhar que aumente a litigiosidade. Nem é, necessariamente, mau que ela aumente. Afinal, a justiça não é desígnio nem tarefa exclusiva dos tribunais. A administração da justiça – “em nome do Povo” – significa isso mesmo. Que ela é tarefa e responsabilidade de todos. Não apenas dos tribunais. Nem dos juizes. Também dos titulares de magistratura do ministério público. Como da Assembleia da República e do Governo. Da administração central e do poder local. Dos cidadãos. Por isso, a justiça não pode ser o lugar de confronto de novos corporativismos. São os cidadãos a sua razão de ser. E é em nome do Povo que a justiça é administrada. É nesta especial perspectiva – a da justiça como problema que a todos diz respeito e, por isso, desafia e compromete – que o Conselho Económico e Social naturalmente se situa. Um Conselho Económico e Social, estará particularmente atento àquele núcleo – que, obviamente, não é restrito – de inter-relação com a economia, as relações sociolaborais e a exigência de regras unanimemente aceites de relacionamento negocial. Não se estranhará, por isso, que também o Conselho Económico e Social se faça eco daquilo a que, um tanto ou quanto alarmistica ou sensacionalista, vem sendo designado por “crise de justiça” e também sobre a justiça procure reflectir. Parece-me importante, perdoe-se-me a imodéstia, começar por dizer que aquilo a que se vem chamando crise da justiça é proclamado em termos de eficácia. Diz-se a justiça em crise porquanto alguns tribunais não conseguem dar resposta atempada às questões que lhe são postas para decidir. 4 CASTANHEIRA NEVES “Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, 1993, pág. 285. 9 Não negamos uma exigência de prontidão que a não cumprir-se põe em causa a própria justeza das decisões. Não há justiça quando a justiça tarda – todos o sabemos, mais ou menos, dolorosamente. Nem se duvida que a acumulação de questões a resolver pelos tribunais, aliada a carências de meios humanos e técnicos, criam, em diversas áreas, uma situação de difícil, e naturalmente morosa, recuperação. Mas, acima de tudo, importará que a crise, consistindo no atraso das decisões, não resvale para uma verdadeira crise da justiça. Quero dizer que não bastará, embora importe, a dotação da instituição judiciária com vista a resolver o que, mais rigorosamente talvez, se deveria chamar por “crise de pendência”. 5 Vivemos, em Portugal e, de algum modo, a nível global, uma nova realidade. Económica, social, cultural. A ela é necessário afeiçoar o direito substantivo. Direi que, muito em especial, no âmbito do relacionamento entre os cidadãos e a Administração, estabelecendo uma cultura de responsabilidade desta e adoptando modelos normativos diferentes dos do direito administrativo em que ainda nos movemos. É que há uma mal disfarçada relutância do legislador ordinário – e dos tribunais – na concretização do programa constitucional em que se garante, não apenas o mero recurso contencioso de anulação por ilegalidade de actos administrativos, e tão somente os definitivos e executórios, para a tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos. Direi mesmo que a situação actual, pelo menos neste âmbito, é de manifesto desrespeito pela Lei Fundamental, onde a crise é autêntica e profunda e em que as garantias dos cidadãos são, quotidianamente, cerceadas. Dessa crise, infelizmente, pouco se fala. Quanto à outra, permito-me ainda introduzir na ideia, instalada e generalizada da crise, o relativismo que um mínimo de perspectiva histórica possibilita, recordando outras e profundas crises. Num texto do século XVIII “Reflexões sobre a Vaidade” escrevia então MATIAS AIRES:6 “Nos contratos tem pouca parte a boa-fé; as obrigações não bastam e as cláusulas por mais que sejam fortes, todas se controvertem e pervertem: as condições, por mais que sejam claras, obscurecem-se; nunca faltam pretextos para duvidar, nem meios para se fazer questão daquilo em que a não pode haver. Da falta da boa-fé nasce a dúvida, da dúvida nasce o argumento, do argumento a desunião, e desta a dissolução no contrário, ou acção para o desfazer. No princípio das nossas convenções ninguém adverte por onde possa nelas entrar a controvérsia; depois de celebradas em cada ponto se acham mil motivos de disputa; uma vírgula de menos, ou de mais, é bastante fundamento para 5 6 Da qual, por reveladores, entendemos dever “mostrar” alguns mapas. (Anexos). Col. “Clássica de Bolso”, Ed. estampa, Lisboa 1971. 10 uma larga discussão. Quando se não pode negar o ajuste, nega-se-lhe o sentido; e este quando se não pode mudar, interpreta-se, e vem a ser o mesmo: o que não tem interesse em cumprir o ajuste é o que descobre nele as implicâncias, e defeitos, que os outros lhe não vêem.” E o choque das autonomias jurídico-administrativos locais, com magistraturas eleitas, com a inexorável centralização e intervenção régia mediante a nomeação de corregedores e juizes-de-fora até ao século XVIII? Ou os debates sobre a reestruturação dos serviços judiciais e em redor do Supremo Tribunal de Justiça, atravessando muita da história do liberalismo Português do século XIX? Ou, recentemente, a explosão de litigiosidade nos anos de 1974/1978 com um aumento cifrado entre os 100 e os 120 por cento7, e, na caracterização do Prof. Magalhães Godinho, sem “uma ordem jurídica realmente respeitada”? Mau grado o relativismo que a perspectiva histórica permite introduzir, há, no entanto, problemas que importa não ocultar. Alguns trabalhos permitem-nos um olhar sereno – e refiro-me designadamente aos estudos respectivamente coordenados pelo Prof. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS “Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: o Caso Português” e pelo Prof. ANTÓNIO BARRETO “A Situação Social em Portugal 1960/1995”. Grosso modo – mas os números redondos são mais impressivos – entre 1974 e 1994 o total de processos pendentes nos tribunais quadruplicou. Triplicou o número de advogados. Multiplicou-se, por cinco o número total de arguidos em processo-crime. O aumento de número de magistrados do ministério público não ficou longe da quadruplicação verificada em relação aos processos. Distante ficou o aumento de magistrados judiciais, que pouco mais do que duplicou. Mas o que mais importante se afigura, ao menos na perspectiva própria dum Conselho Económico e Social, a eficácia do sistema não piorou nem melhorou, ou terá piorado ligeiramente. Manteve-se a relação entre processos iniciados e processos findos. Nem existe uma tendência clara para a redução da morosidade, mau grado os resultados aparentemente bons, com as melhorias da injunção, que poderão ser bem maiores corrigido o problema das dificuldades de citação. Constante se mantém a relação entre as condenações em processo penal e o total dos arguidos. E parecendo contrariar os arautos da acção repressiva e da dureza das penas, somos, no espaço da União Europeia, o país com maior percentagem de detidos, e com mais elevada taxa de presos a aguardar julgamento e com o mais elevado índice de sobre-ocupação das prisões ... Uma análise mais fina parece impor-se. 7 São os números indicados pelo então Ministro da Justiça ao semanário “O Jornal” – 9NOV79 – ou pelo Cons. Mário Torres (le Monde Diplomatique, Junho de 1981). 11 Facilmente se verificará que num País em que a urbanização se acelerou enormemente, o mapa da organização judiciária se desactualizou e está obviamente desajustado. Conhecem-se as dificuldades políticas de acabar com comarcas quando ter um tribunal – mesmo sem movimento – equivale a ter um brasão (e não direi, dado o estado de algumas instalações, a ter um monumento...) A verdade é que as médias, e toda a análise estatística, são enviesadas por esta distorção. Não apenas por exigência de rigor e transparência mas também da própria acção política, são necessários outros números. Que evidenciem, nomeadamente, as diferenças de desempenho. O estudo do Prof. Boaventura Sousa Santos revelou-nos que as instituições financeiras e as seguradoras são os principais “mobilizadores” do sistema judicial. Mas são também estes “clientes” quem obtém decisões mais rápidas ... Quando, pelo menos nalguns sectores da sociedade portuguesa, se manifesta preocupação com o nível de endividamento das famílias, restará por saber se existe alguma relação entre a facilidade de acesso aos tribunais e as facilidades de crédito concedidas bem como os custos para o conjunto da economia, duma e outra facilidades. Mas sabe-se que, para o conjunto da economia, é “crédito mal parado” o correspondente a acções intentadas e ainda não julgadas e que os juros de mora em que o devedor venha a ser finalmente condenado, são penalizadores também para o credor, na ausência de soluções como a possível generalização da sanção pecuniária compulsória. Também o processo de recuperação de empresas, se afigura carecer de profunda revisão, tal como o processo de falências. A rápida realização do “activo” é essencial e relativamente ao processo de falência a despersonalização parece impor-se quando à falência da empresa, ao prejuízo dos credores e ao desemprego dos trabalhadores, se acrescenta o enriquecimento dos proprietários. Não sabemos que tipo de processos mais se arrasta e qual a fase processual em que a pendência se acentua. Melhor se sabe o lugar que cada tipo de crime ocupa no âmbito da criminalidade judicializada e assim sabemos o lugar modestíssimo ocupado pelos crimes contra a economia, a saúde pública ou o ambiente. A vários títulos importante a “Crónica de jurisprudência Administrativa de 1996” que o Conselheiro Mário Torres publicou em Separata do n.º 1 dos “Cadernos de Justiça Administrativa” revela um pouco da situação de fundo do contencioso administrativo cuja reforma continua a adiar-se. Do total de acórdãos proferidos ao longo de 1996, apenas 1/5 se ocupou de problemas substanciais exteriores à própria máquina administrativa. Desses, os terceiros e quarto lugar por ordem de importância quantitativa, atrás, por exemplo, das questões 12 relativas aos objectores de consciência, dizem respeito à responsabilidade civil da administração e ao urbanismo e ordenamento do território. O estrangulamento do Tribunal Central Administrativo é, provavelmente, o exemplo mais chocante. É, neste quadro, que a ideia de crise criou foros de cidadania. Por isso, não vale a pena negá-la ou desdramatizá-la mas enfrentá-la e derrotá-la antes que em crise autêntica degenere. A falta de coragem dum tempo paga-se, e paga-se com juros, tempo depois. Em termos de opinião pública, creio que poderá acrescentar-se ao cenário descrito a falta de andamento de processos conhecidos – a Caixa Económica Faialense, Partex, etc. –, o arquivamento de outros, a prescrição de alguns mais. Como também a recente absolvição, pelo Supremo Tribunal de Justiça, dos envolvidos num caso de facturas falsas. Parece, antes de mais, importante acentuar três aspectos demasiadas vezes esquecidos. Em primeiro lugar, se essencialmente o Tribunal aplica a lei, quem tem competência para as fazer e alterar são a Assembleia da República e o Governo. Depois, os tribunais só podem apreciar os casos que lhe são submetidos e depois de lhe serem submetidos. Os arquivamentos e as prescrições verificaram-se porque, em tempo útil, o Ministério Público não conseguiu colocar os processos em Tribunal e, possivelmente, porquanto a justiça formal prevaleceu sobre a justiça material. Quero tão somente acentuar que a volatilização dos responsáveis, tão portuguesa – a culpa ficou solteira, canta o povo ... – não pode ter lugar pela diluição no sistema. Valerá, no entanto, a pena sublinhar que o arquivamento e a prescrição têm dois gumes; também os inocentes ficam, ou poderão ficar, inibidos de varrer a suspeição que sobre eles algum dia recaiu. Provavelmente outro será o foro para tal análise. Mas a questão da mediatização da justiça não poderá aqui deixar de colocar-se ainda que sumariamente. É talvez de sempre o interesse dos “media” pela justiça. O aparecimento da televisão introduziu, no entanto, uma importantíssima modificação nos dados do problema. Não foi apenas o modo de transmitir conhecimento que mudou passando dos poucos ouvintes duma comunicação oral para os muitos com acesso à comunicação escrita. Mas aquilo que foi sentido como o dispensar dum intermediário. Antes, dava-se crédito (ou não) ao narrador e esse crédito contava para a apreciação do que era transmitido. Com a televisão, o espectador sente-se a assistir aos acontecimentos. É ele que vê. As coisas passam a ser verdade, porque ele viu. É uma ilusão, sabemo-lo. 13 Mas aí se fundou uma cultura que é também do imediatismo. E que obriga a dar a noticia primeiro que os outros, porque aquilo que o espectador vai ver é, por definição, igual em todas. A cultura contemporânea tem matriz televisiva. Escreve-o um discípulo e continuador de MacLuhan – Derrick de Kerckhove:8 “A TV prefere a repetição à análise e o mito ao facto, estampa os seus ícones na nossa psique tão bem como nas paredes das nossas cidades. A homogeneidade espalhase como um fogo florestal através da TV, já que ninguém quer ser apanhado fora de moda. Qualquer centro comercial é TV “de passagem”. Sons, cores e formas de TV que são as expressões sensoriais da nossa sensibilidade colectiva. Mas a arregimentação televisiva da nossa sensibilidade assume outras formas, como os risos e aplausos enlatados ou, num nível mais subtil, as votações electrónicas. A maior parte do que aparece nos noticiários ou documentários é pré-digerido e apresentado num formato estereotipado para uma dentada rápida, como fast food. Não terá a TV criado uma cultura de massas, fazendo desaparecer o espaço da reflexão privada e autonomia de escolha? O sucesso súbito de Trivial Pursuit parece indicar que a maior parte de nós partilha aproximadamente o mesmo corpus de conhecimentos triviais. Em tudo isto, a TV pode muito bem-estar a pensar por nós – pelo menos a parte que nos exige sermos rápidos e completos”. A rádio e os jornais tentam competir com esta “rapidez e totalidade”. Por isso também o julgamento dos media é imediato. Ainda não chegou ao Tribunal e já se realizou na opinião pública. Mais ainda: o acusado pelos media é condenado. Há certamente toda uma adequação a fazer, relativamente a esta realidade. E também uma educação. Mas, no entanto, algumas coisas simples parecem impor-se. Em primeiro lugar, a instituição judiciária não deve, colaborar, quanto mais promover, “fugas de informação”. Contrariamente ao que, recentemente, foi dito não há fugas de informação boas ou virtuosas. “Não pode haver justiça quando esta se exercita por algum fim que não seja por ela só” escrevia o mesmo Matias Aires que atrás citei. As “fugas” ofendem, necessariamente, o princípio da igualdade das armas quando não a garantia de presunção de inocência. Depois, é preciso que os tribunais não sejam ingénuos ... E saibam por exemplo que o chamado “dever de informar” quase nunca é imparcial ou neutro mas quase sempre uma arma de arremesso. Nem deixaria de ser “interessante” verificar se o “dever de informar” invocado foi “cumprido” em situações similares. 8 In “A pele da cultura” pág. 49 da edição portuguesa de “Relógio d’Água” 1997. 14 As indemnizações pelos danos morais que correspondem à gravíssima lesão de direitos de personalidade deverão, por isso, reflectir por forma muito mais expressiva a função sancionatória ou punitiva que, embora acessoriamente, também é exercida pela responsabilidade civil. A “modéstia” de indemnizações fixadas em 3.000.000$00 e menos, não pode nem deve continuar. E isto, muito embora um padrão de “modéstia” também ele inadmissível, que enquadra muitas decisões. O valor da vida, é fixado pela lei e pelos tribunais, duma forma quase obscena e insultuosa, tal como as indemnizações por incapacidade no caso de acidentes de trabalho que são quase um convite para a negligência criminosa. Que mutila e mata na certeza duma quase impunidade. Ao longo do dia, teremos ocasião de reflectir e avançar propostas. Contrariamente à ideia instalada, em termos de opinião pública, e sem absolver o poder judicial das responsabilidades que lhe são próprias, pensamos que a grande maioria dos instrumentos para as mudanças necessárias não estão nas mãos do poder judicial. Mas, provavelmente, não se contentarão com pequenas reformas que, se para alguma coisa servem, é para que tudo fique na mesma. Talvez a justiça seja, apenas, uma luta, incessante e esgotante, contra as injustiças triunfantes. Na perspectiva dum Conselho Económico e Social, se me é permitido e lícito arvorar-me em intérprete de tal perspectiva, o que importa assinalar é que, quando o encarcelamento aparece como resposta à ansiedade e ao temor pela segurança da sociedade, quando a morosidade processual é uma realidade indesmentível e a justiça é “apropriada”, por pessoas colectivas públicas e privadas, há uma questão de fundo que a todos estes sintomas subjaz e ultrapassa.9 A duma justiça alheia aos territórios de conflitualidade que são os factores de mudança, de modernidade e de progresso, de adaptação duma sociedade aos novos problemas e desafios com que se defronta e com que a confronta a aventura do futuro. E que passam, essencialmente, da sensibilização para o exercício dos direitos à responsabilização da Administração pelos efeitos dos seus actos. Teremos nós a imaginação e vontade suficientes para encontrar respostas? Possa o Colóquio que iniciamos ser um contributo. Na amarga ironia do verso dum poeta de Moçambique “não pensar nada é que cansa tudo”. 9 A síntese é de PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS “A crise da Justiça em Portugal” pág. 16 – Cadernos Democráticos n.º 3. 15 Intervenção de Sua Excelência o Ministro da Justiça Dr. Vera Jardim Muito Obrigado Senhor Presidente, Senhor Dr. Magalhães Mota meu querido amigo, Foi com muito prazer que aceitei o convite do Conselho Económico e Social para estar aqui. A minha intervenção não foi preparada propositadamente. Não se trata de uma intervenção escrita, mas sim de alguma coisa que pretende ser coloquial e até, se possível, provocatória. Falar da justiça em geral é uma tarefa extremamente difícil, visto que há muitas “justiças” e cada uma apresenta, entre nós, como na generalidade dos países, os seus problemas específicos, naturalmente com elementos comuns a todas elas mas com diferenças substanciais. Como é do conhecimento geral, os problemas da justiça cível não são os mesmos da justiça penal como também não são os da justiça administrativa, nem os da justiça fiscal ou do trabalho. E, falar em geral sobre a justiça pode deixar na penumbra um conjunto de questões muito importantes que relevam de cada um destes tipos de administração da justiça. O paradigma do cidadão sobre a justiça está cada vez mais longínquo daquilo que na prática se passa. Para mim o paradigma do cidadão é o que apresenta de uma forma directa, simples e fácil o seu problema. O juiz chama a parte contrária e mediante uma peça escrita ou oral dessa parte em sua defesa, julga, e julga rapidamente. É este o paradigma do credor, do ofendido, dos cônjuges desavindos e este paradigma não tem correspondência praticamente nenhuma com o que se passa na realidade. A que é que isto se deve? A um conjunto de razões de desenvolvimento histórico que convém ter em linha de conta. Ao longo dos anos, para não dizer de um ou dois séculos, foi-se desenvolvendo, cada vez mais, um conjunto de elementos de uma justiça “procedural”, para usar o termo um pouco anglo-saxónico. O que domina a justiça é o processo e são as leis do processo. O direito e a lei são um mundo na administração da justiça onde domina, cada vez mais, a lei de processo. A verdade da justiça é a verdade que resulta do debate judiciário a que são aplicadas as leis do processo. Estas leis do processo foram ganhando, ao longo dos anos, uma crescente importância, sobrepondo-se, em muitos casos, a esse paradigma e transformando-o por completo. É por isso que a verdade do tribunal é a verdade que resulta do processo e é por isso que muitas vezes as partes se rebelam, por vezes com alguma razão não jurídica mas ética, quanto ao que lhes sucedeu no tribunal. Embora tendo razão, foram vencidos pela aplicação, pela manipulação das “teias da lei”, na feliz expressão de uma série televisiva. As “teias da lei” dominam o debate judiciário e ganha, muitas vezes, quem melhor manipula as leis do processo. É essa a função que se tem vindo a sobrepor cada vez mais à função de argumentação substantiva podendo, muitas vezes, torpedeá-la. Um prazo que não é aplicado e cumprido. Um pequeno truque processual resolve, muitas 16 vezes, uma questão a favor de quem não tem razão e os casos mediáticos portugueses e estrangeiros, aí estão, muitas vezes, para mostrar isto. Esta situação está muito longe do paradigma antigo da justiça, das partes comparecerem perante o juiz, as duas exporem as suas posições e o julgamento ser feito quase de imediato. Mas é evidente que a imposição de leis processuais é uma garantia fundamental de quem se dirige ao tribunal. O que aconteceu, a meu ver, é que ao longo dos anos o processo cresceu e complexizouse demasiado e hoje defrontamo-nos, muitas vezes, com uma antinomia processo verdade substancial, que é um dos problemas porventura mais graves da justiça. O Senhor Presidente do Conselho Económico e Social falou sobre a distorção da concorrência que provoca muitas vezes, a acção tardia da justiça. Permito-me discordar em boa parte porque há uma coisa que tenho afirmado, a qual é do conhecimento público, e que é serem os problemas de atraso da justiça não de um único país, mas sim generalizados. Há dias lia num jornal diário francês que os recursos na Court de Cassation que corresponde ao nosso Supremo Tribunal de Justiça estão a demorar em França em média dois anos a resolver. Isso significa praticamente três vezes o que estão a demorar, apesar de tudo, em Portugal, e os exemplos poder-se-iam multiplicar. Um pouco por toda a parte há um problema da justiça que é o problema central. Isto sem perder de vista que há naturalmente um conjunto de outros problemas também importantes. E o problema central é o problema do atraso da justiça. Isto tem importância não para nos contentarmos e deixarmo-nos estar, mas para que a análise dos fundamentos desta situação deva ser feita num conjunto mais alargado, numa visão mais alargada do problema do que a simples visão portuguesa. Um exemplo típico desta questão era o que se estava a passar nos anos recentes com a Comissão e o Tribunal dos Direitos do Homem de Estrasburgo, onde eram julgados e decididos os problemas de atraso da justiça nos países europeus e que já estava com atrasos muitas vezes superiores aos dos processos que lá eram decididos. O Tribunal Europeu, que julgava os Estados pelos atrasos na justiça, já estava a atingir prazos de resolução dos litígios superiores àqueles processos que lá apareciam com queixas de atrasos da justiça. Isto justifica uma reflexão mais ampla! O que é que sucedeu na generalidade dos países, e falo só da Europa, para justificar uma tal situação? Não vou fazer longuíssimas considerações sobre a crescente conflitualidade e o crescente papel do juiz como instância de mediação de conflitos face às crises de outras instituições mediadoras informais ou formais de conflitos, como a família, a comunidade, enfim, instituições que até há cinquenta anos, e até mais recentemente, assumiam, na prática, esse papel de mediadores informais de conflitos. A verdade é que essa crise das instâncias de mediação assumiu tais proporções que se poderá dizer que, por exemplo, a família é hoje mais geradora de conflitos que vão para tribunais do que ela própria uma instituição mediadora. Os aumentos de processos relativos a problemas familiares, sobretudo nas áreas suburbanas é disso um exemplo muito claro, tanto no que diz respeito à crise no casamento, como no que diz respeito a todos os problemas que daí derivam, com especial incidência nos problemas dos filhos. 17 Em Portugal o atraso tem, apesar de tudo, circunstâncias, modos e causas específicas e penso que deve ser essa a preocupação fundamental de quem olha para a crise da justiça praticamente igual a atrasos da justiça. Não quer dizer que não haja outros problemas, que naturalmente há, mas o atraso é fundamentalmente, o prisma sobre o qual, sempre que se fala em crise da justiça, as pessoas prioritariamente se preocupam. O Dr. Magalhães Mota forneceu alguns números mas referiu-se apenas ao longo prazo. Eu diria que esses números são importantíssimos na medida em que mostram um aumento exponencial da litigiosidade em Portugal, mas queria aproximar-me mais num zoom no tempo da situação actual. Ultrapassámos em 98 um número significativo de mais de um milhão de processos pendentes nos tribunais portugueses pela primeira vez. Isto resultou de um aumento de entradas, já não referido ao longo prazo entre 74 e os tempos actuais, mas referido a 5 anos entre 92 e 97. Aumentou, só na justiça cível, mais de 85% o número dos processos em 5 anos, na justiça penal, apesar de tudo, menos, mas na justiça cível, que é aquela que acusa situações porventura mais graves em matéria de atrasos, este foi o aumento das entradas. A pendência aumentou de 252 mil processos em 92, para 730 mil em 98 na justiça cível. Mais do que os números importa ver que processos são estes e de que tipo são. Quando na Europa se fala em aumento da litigiosidade trata-se de litígios que eu chamaria nobres, litígios familiares – já referidos – litígios de responsabilidade civil não contratual e litígios de propriedade. São esses, digamos, os litígios mais complexos regra geral, mas também mais nobres que dizem respeito aos valores fundamentais das pessoas e aos seus direitos fundamentais (falando na justiça cível, já iremos à justiça penal). Relativamente a Portugal o que se passou e ainda se passa é que a autêntica “enxurrada” de processos nos tribunais é constituída fundamentalmente por litígios que eu não chamaria, naturalmente por oposição aos outros, não nobres, mas sim litígios que em primeiro lugar são óbvios na maior parte dos casos quanto a quem tem razão. São de fácil resolução na maior parte dos casos. E na sua grande maioria não se trata sequer de litígio porque a parte contrária não tem resposta à acção que lhe é posta. Trata-se, no fundo, desse mundo enormíssimo que está na generalidade dos tribunais a criar situações de ruptura que são as chamadas cobranças de dívidas. Só em Lisboa, 80% dos processos são de cobrança de dívidas. Naturalmente os tribunais de Lisboa são aqueles que mais recebem esse tipo de processos por razões óbvias, que se prendem com a enorme concentração de vida económica sobretudo traduzida no sentido das sedes das grandes sociedades em Lisboa. Há todavia um conjunto muito importante de Comarcas à roda de Lisboa e Porto e nalguns centros como é por exemplo Vale do Ave, Braga, etc., que acusam situações deste tipo. Trata-se de litígios que, em muitos casos, de litígios, só têm o nome. O cliente é a empresa, a pessoa singular é o réu, embora naturalmente este retrato sofra depois adaptações. O cliente é também muitas vezes empresa e o réu é outra empresa, só que normalmente do lado do autor está a grande empresa, do lado do réu está a pequena empresa. 18 Este movimento de evolução dos problemas do tal crédito mal parado, direccionado para os tribunais, tem criado situações de autêntica ruptura. A mais evidente de entre elas é a dos chamados tribunais de pequena instância cível de Lisboa e não só, nos tribunais cíveis de Lisboa como grande aparelho da justiça cível, o maior do país. Só nos tribunais de pequena instância cível que julgam as “bagatelas civis” em Lisboa estão acumulados, neste momento, cerca de 200 mil processos, ou até talvez um pouco mais no momento actual. O mesmo se passa no Porto e noutras comarcas. Este é um dado visível e há que identificar os problemas. Em primeiro lugar fazer o diagnóstico da situação para depois podermos encontrar, ou tentar encontrar, as soluções para o problema. Deste conjunto de processos cíveis, cerca de 40% em todo o país, são processos de execução ou seja processos que em princípio deveriam ser ainda mais simples do que a acção em que se pretende ver reconhecido um crédito não pago. No processo de execução como sabem já se avançou mais na relação jurídica e o que se trata é de executar os bens do devedor com um título executivo (sentença, letra, cheque, etc.). De entre os processos cíveis pendentes, cerca de 40%, são acções executivas e são estas precisamente as acções que mais demoram a resolver em Portugal. Esta é uma situação porventura, ou quase certamente única na Europa em que um processo de execução demora cerca do dobro a resolver do que demora aquele que justificaria ou pressuporia um litígio no processo de execução. Em princípio tudo leva a crer que não há litígio mas que se trata de conseguir a colaboração do tribunal para atingir o património de um devedor que deve manifestamente. Esta é a situação de princípio não significa que não haja casos em que isto não seja assim. De todas estas acções cíveis, sobretudo daquelas que poderão ser consideradas as bagatelas civis, ou seja valores até 500 contos, são contestadas nos tribunais menos de 2% das acções, ou seja mais um argumento para aquilo que eu disse – não há propriamente litígio, há uma fuga ao pagamento de uma dívida e há a procura por parte do credor da colaboração do tribunal para conseguir a recuperação desse crédito. A continuarmos assim naturalmente que a situação tenderia a agravar-se, embora, pela primeira vez, em 1998 tenha havido menos entradas na justiça cível em Portugal do que nos anos precedentes. Pela primeira vez, em vários anos, houve uma ligeira descida das entradas de acções em tribunal. Qual a estratégia que seguimos e estamos a seguir para resolver este problema? Há muitos destes processos que devem ser retirados à jurisdição normal à forma normal de resolver processos e muito se tem falado na procura de soluções para esta questão a qual é, a meu ver, uma das questões centrais do sistema judicial português. Muita gente tem falado em formas alternativas de resolução de conflitos, designadamente nas arbitragens. Penso que é uma estratégia totalmente errada. Não se trata de arbitrar coisíssima nenhuma, pois não há litígio. O que há é alguém que foge ao cumprimento das suas obrigações. Prova adicional é que de todas estas pessoas na tentativa de serem citadas/notificadas, mais de 40% fogem à citação/notificação. Não há 19 lugar a arbitragem nenhuma, portanto essa é uma ideia que para mim não cola. Arbitragem usa-se quando há um litígio entre duas entidades e esta se mostra naturalmente o processo mais maleável, porventura mais expedito de resolver este litígio. Nestes casos não há litígio nenhum e a prova é que menos de 2% destas acções são contestadas e que cerca de 40% das pessoas fogem a comparecer no tribunal ou melhor fogem à própria notificação. Tendo em conta que estes processos ocupam uma média nacional certamente não inferior a 60%-70%, a pergunta que me tenho feito a mim próprio é se se justifica um aparelho, um sistema judicial que custa ao Estado o que custa em formação, em meios dos mais variados para resolver este tipo de questões. Justifica-se? Esta é uma grande opção que temos e que já tivemos que começar a tomar. Justifica-se que perdamos juízes, funcionários, o esforço de todos, de uma máquina muito pesada para – não direi cobrar dívidas, porque muitas vezes elas não se cobram – declarar que existe uma dívida porque depois segue-se outra coisa que na prática também colhe um conjunto de impossibilidades – a execução. Justifica-se isto? Justifica-se que “assassinemos” juízes em tribunais de pequena instância cível para despachos de, cite-se, notifique-se, condene-se... Penso que não. Penso que o sistema judicial não pode estar refém destas situações. Então o que é necessário? Em primeiro lugar é necessário continuar a fazer aquilo que temos feito. Falar, discutir e sobretudo mobilizar os grandes clientes deste sistema para uma mudança de atitude. Esta é a primeira grande tarefa. Não vale a pena fazer leis que são leis álibi, ou seja muitas vezes diz-se eu já fiz a lei, a lei está feita só que não funciona. Chama-se a isto a lei álibi. Sabe-se que não funciona mas está feita e o poder político dá a justificação de que a lei está feita mas depois não funciona, atirando com as culpas para outros intervenientes no processo. O que se justifica é outro tipo de actuação e por isso muitas vezes não temos legislado nesta matéria senão o mínimo que é necessário para criar as condições para uma motivação dos grandes clientes dos tribunais. Se eu disser a V.Exas que de um ano para o outro – foi há dois anos – entraram nos tribunais de Lisboa mais de cerca de 80 mil – o Senhor Secretário de Estado Adjunto tem estes números mais presentes que eu – acções referentes às chamadas companhias de telemóveis está tudo dito. Estão aí identificados neste momento três grandes clientes. Se eu disser a V.Exas que há milhares de prémios de seguro que não são pagos neste país e que vão para os tribunais, estão aí identificados outros grandes clientes. Se eu disser a V.Exas, que há centenas de milhar de acções em quase todos os tribunais dos chamados cartões de crédito, estão aí identificados outros grandes clientes. Se eu disser a V.Exas que de repente nos surgiu como um grande cliente de um tribunal – isto já foi dito, é do conhecimento geral, mas vale a pena repeti-lo – uma sapataria e que nos interrogámos sobre o que é que faria uma sapataria no meio dos grandes clientes dos tribunais portugueses, tendo vindo a descobrir rapidamente que tinha emitido um cartão 20 de crédito e, portanto, aí estavam um conjunto de centenas para não dizer de milhares de devedores. Esta é a panorâmica dos tribunais portugueses. O que é necessário fazer é actuar a montante. É isso que tenho dito sistematicamente aos grandes clientes. Por um lado, naturalmente que me dizem que o crédito mal parado é uma pequena percentagem do crédito concedido e é verdade, mas essa pequena percentagem chega para motivar um estrangulamento de muitos tribunais. Mas, por outro lado, é preciso que as empresas no seu próprio interesse construam sistemas de defesa contra o crédito mal parado. Por outro lado é preciso também que o Estado altere alguma legislação para conseguir que milhares de acções que vão para o tribunal deixem de constituir créditos mal parados. É o que estamos a fazer em relação a uma série de subsistemas, contratos de seguro, dívidas hospitalares, e por aí fora, construindo sistemas mais seguros e eficazes que evitem que esses grandes clientes continuem a dirigir-se aos tribunais portugueses. Apostámos finalmente naquilo que a Europa já apostou, nalguns casos há 50 anos noutros mais recentemente, em processos expeditos de cobrança de dívidas que praticamente não vão ao juiz e que são resolvidos na secretaria. Já foi aqui referido pelo Dr. Magalhães Mota – o chamado processo de injunção. Só para vos dar alguns números estão a ser resolvidos na primeira secretaria específica para as injunções – que é um processo expedito de declaração judicial de uma dívida – em Lisboa mais de 7 mil processos por mês o que significa que dezenas de milhar de processos que abafavam completamente os tribunais cíveis deixaram de para lá ir. Alguns ainda vão porque não se encontram os devedores, fogem às notificações e citações. Há aqui muito rapidamente que tomar também iniciativas legislativas que estão em preparação. Nas reformas da justiça existe um aspecto que convinha acentuar, como já aqui foi referido. Trata-se da reforma legislativa da justiça que está praticamente toda dependente do Parlamento, da Assembleia da República, e que dificilmente pode ser feita sem um consenso na Assembleia da República, e o que acontece é que esse consenso para reformas mais profundas tem sido extremamente difícil. Para além de haver interesses muitas vezes contraditórios, ou melhor como tal afirmados entre vários interventores no processo, desde logo aquela figura, enfim, muito invocada de que no processo há sempre alguém que quer que o processo ande rapidamente e alguém que quer que o processo demore e essas posições são assumidas como posições de cada uma das partes, a verdade é que as reformas no sector da justiça em Portugal são muitas vezes tomadas como reformas a favor de A ou contra B. Essa perspectiva não facilita as intervenções que temos que fazer. As reformas processuais que têm sido feitas são as possíveis, devo dizer que por mim quereria ir bastante mais longe, mas não existe por enquanto o necessário consenso para avançar com elas. Exemplo típico são as reformas do processo civil e do processo penal. Degladiam-se “interesses” contrapostos entre magistraturas, entre as magistraturas e os 21 advogados e essas posições são assumidas politicamente prejudicando altamente o consenso que se deveria atingir nestas matérias. No que diz respeito à justiça cível penso que o caminho é, e a estratégia é esta, simplificar o que pode e deve ser simplicado, manter mas apurando todas as normas procedimentais que dizem respeito a acções que têm que ver com quantias fundamentais das pessoas, porque no processo civil também os há e de que maneira. No processo penal dir-se-à que a problemática é ainda a mesma ou semelhante. O problema do processo penal tem também algo que ver com o problema do civil, as bagatelas penais e aquilo que é verdadeiramente importante na luta contra a criminalidade. Efectivamente se tivermos em conta que ainda há pouco tempo mais de 20%, cerca de 25%, do número de processos na jurisdição penal em Portugal se referia a cheques sem cobertura e que a estes, adicionados os crimes de desobediência, de ofensas corporais e de pequeno furto, avançaríamos para mais de 50%, temos um panorama claro do que era a justiça penal e também aqui há que perguntar se vale a pena ter um aparelho judiciário para isto. Naturalmente que há questões na justiça penal como na justiça cível de natureza constitucional que valeria a pena discutir. Nós somos hoje porventura na Europa o único país que mantém intacto um princípio de legalidade estrita no processo penal, usando a generalidade dos países o chamado princípio da oportunidade. Em França apenas 20% das participações que chegam ao aparelho judicial são objecto de tratamento no sentido da investigação. Em Portugal tudo se investiga e mais do que isso tudo se investiga da mesma maneira, com as mesmas regras, com a abertura de um inquérito, com uma instrução que muitas vezes repete o que se passou no inquérito e assim vamos caminhando no sentido de tempos demasiados para tudo o que diz respeito à investigação a que se soma depois o julgamento. Qual é a nossa estratégia? Exactamente a mesma que no cível. Há que simplificar o que pode e deve ser simplificado, sem que os direitos, liberdades e garantias das pessoas sejam atingidos e há que aperfeiçoar mantendo os direitos liberdades e garantias em tudo aquilo que vale a pena efectivamente aperfeiçoar. Foi por isso que criámos, pela primeira vez, um conjunto de processos à semelhança do que existe na generalidade dos países europeus. Processos que permitirão uma atmosfera de consenso no próprio processo. O consenso era alguma coisa que até agora no processo penal português era completamente desconhecido. O processo penal era rigidificado em formas de inquérito, acusação, instrução, julgamento com regras praticamente idênticas com ligeiras adaptações às várias formas de processo. Não havia nada de consenso, e continua a não haver nada de oportunidade, ou muito pouco de oportunidade, algumas coisas existem de oportunidade mas muito pouco e que na maior parte das vezes não são usadas. O que nós fizemos foi, para além de outras reformas que dizem respeito ao julgamento de ausentes etc., tentar introduzir elementos de consensualidade no processo penal. Não há outra forma de resolver o contencioso de massa, a criminalidade de massa sem uma introdução de mínimo de consensualidade no processo penal. É este o aspecto 22 fundamental da reforma do processo penal e naturalmente acompanhado da reforma da lei do cheque e de uma série de reformas feitas em relação àquilo – que também aqui já foi referido – que é a luta contra a criminalidade moderna ou melhor as formas modernas de criminalidade. Isso encontrava-se por fazer entre nós e o aparelho de investigação ao serviço da investigação sobre a criminalidade económico-financeira, a alta criminalidade organizada, a corrupção, o branqueamento, encontrava-se praticamente como se encontrava há 30 ou 40 anos quando este tipo de criminalidade não tinha a importância que tem hoje, sendo então praticamente inexistente no panorama da criminalidade em Portugal. Apesar das críticas resultantes da ausência de consensualidade existente entre profissões jurídicas e entre os vários intervenientes no processo, avançámos e não estamos arrependidos. Pelo contrário, se não tivéssemos criado, ao serviço da investigação criminal, um conjunto de instrumentos e instituições que hoje já estão, ou estarão brevemente no terreno, penso que a luta contra esse tipo de criminalidade estava completamente perdida e mais do que isso, o nosso atraso em relação à generalidade dos países europeus ir-se-ia acentuando. A criação do NAT, como Núcleo de Peritos em Criminalidade Económico-Financeira ao serviço da investigação, a criação recente e entrada em vigor para dentro em breve do DCIAP, como organismo coordenador das grandes investigações criminais em especial neste tipo de criminalidade e na criminalidade organizada, são elementos fundamentais juntamente com os reforços na polícia judiciária, nesta matéria e neste sector, para que possamos começar a ter, efectivamente, eficácia mínima neste tipo de investigações. Naturalmente que o tempo vai longo e poderíamos falar sobretudo ainda de alguma coisa que é generalizado na Europa, a impreparação do aparelho judiciário no seu conjunto para arrostar e resolver todo este conjunto de litígios que são encaminhados para os tribunais portugueses. Desde logo as instalações de muitos dos nossos tribunais, dezenas dos nossos edifícios – isso tem enorme importância, embora possa não parecer – não tinham o mínimo de condições para aí se exercer a administração da justiça. Basta pensar que ainda existem dezenas de tribunais, onde se acumulam 5 e 6 juízos, com tudo o que isso implica de magistrados, funcionários, salas e gabinetes, tendo esses edifícios sido projectados e construídos há 30 e 40 anos para um juízo apenas. O programa de informatização judiciária, no princípio deste mandato, era algo de praticamente inexistente, resumindo-se a um conjunto de actividades avulsas em que cada um ia fazendo o possível e o melhor que podia mas sem nenhuma estratégia, sem nenhum plano conjunto para informatizar. Ainda há poucos meses não havia um único tribunal português com uma rede de computadores, estou aqui a ver o Senhor Conselheiro Nunes de Almeida, naturalmente com excepção do Tribunal Constitucional, que é um tribunal à parte. Estas dificuldades naturalmente que se acentuaram com a explosão judiciária porque para contencioso de massa há que ter naturalmente meios para lhe fazer face e não é com os meios usados há 30 anos que se faz face a este aumento do contencioso em todas as frentes. Ainda se cosem processos 23 em muitos tribunais, e aqui temos um exemplo que eu costumo dar e já tenho sido criticado por isso porque parece que esta é uma grande reforma, não é uma grande reforma, mas é um exemplo típico de como penso que se deve trabalhar nas reformas. Há cerca de 15 anos houve um Ministro da Justiça que fez uma Portaria terminando com a “cosedura” de processos. Durante estes 15 anos nenhum processo deixou de ser cosido. Eu poderia ter publicado uma outra Portaria, porventura subir a parada e publicar um Decreto-Lei e porque não uma Lei, a dizer que era proibido coser processos. Penso porém que não é esse o caminho a seguir. O caminho a seguir é motivar as pessoas para as reformas porque os problemas da justiça têm muito que ver com a cultura que envolve a justiça, porque a mesma pessoa que diz hoje que a justiça não anda, que a justiça se atrasa e que está a ser muito prejudicada com o atraso da justiça é exactamente a mesma que amanhã falta a um julgamento, como testemunha, como arguido, como autor, seja como for. E também nos tribunais, naturalmente que é um aparelho com grandes tradições e grande peso, é preciso ganhar as pessoas para as reformas e não impor-lhes as reformas. Foi isso que tentámos fazer em relação à cosedura de processos, tentar convencer as pessoas que não é por um processo ser cosido que tem mais garantias de não se perder a folha 27 que lá está e que é fundamental, porque toda a gente sabe que os advogados nos seus escritórios não têm outra maneira senão descoser os processos e tornar a cosê-los para tirar sequer uma fotocópia útil do dito processo. É preciso, portanto, ir convencendo as pessoas ganhando-as para este tipo de reformas. Sem um grande consenso nacional à volta destas questões não haverá reformas da justiça que colem na realidade. É por isso que penso que colóquios como este em que, aberta e frontalmente, possamos discutir os problemas e construir um consenso, são extremamente úteis e devem ser alargados. Tenho o maior prazer em aqui colaborar, mas numa perspectiva de interesse comum fora de interesses de cada parte, fora dos interesses dos advogados, dos interesses dos juízes, dos interesses do Ministério Público. Enquanto continuarmos a discutir as coisas como uma reforma de processo que foi a favor dos advogados, e uma reforma de um outro processo que foi a favor de B e outra que foi contra C, não conseguiremos avançar um palmo que seja, mau grado todas as tentativas de novas formas de processo, de novos meios, de mais funcionários, de melhores edifícios, não conseguiremos avançar para as verdadeiras reformas que aí estão à nossa espera, que aí estão já no terreno. Uma grande reforma que tem passado quase totalmente despercebida e que entrará em vigor no próximo dia 15 de Setembro é a grande reforma judiciária dos últimos anos. Aguardemos pelos seus resultados e, pelo meu lado, com esperança de que a nova estrutura judiciária possa dar um contributo útil e importante, fundamental mesmo a este problema da chamada “crise da justiça”. As reformas vão-se fazendo mas é preciso que se façam num ambiente de discussão de frontalidade democrática, mas também fora dos interesses e das posições de que são portadores, muitas vezes, os vários agentes do sistema judicial. 24 Já falei muito, agradeço a vossa atenção e mais uma vez agradeço também o convite que me foi feito pelo Conselho Económico e Social. Muito Obrigado! 25 Algumas questões com relevância económica 26 As falências e a Administração da Justiça: algumas reflexões Dr. José de Almeida Serra* Orador 1. O autor do texto tem, desde logo, de fazer uma advertência: é que não é jurista, não tem qualquer prática especial do Mundo do Direito, e designadamente nunca interveio em processos concretos de falência, nem entrou em qualquer tribunal no âmbito da discussão desse tipo de processos. Assim, o que poderá dizer tem que ver com a experiência adquirida ao longo de cerca de três décadas na perspectiva do acompanhamento de interesses creditícios constituídos sobre patrimónios de empresas que, tendo deixado de ser solventes, acabaram por cair em processos de falência ou similares. Refere-se desde já que a problemática em causa não se reconduz a questões meramente legais ou processuais, mas tem a ver com práticas estabelecidas e com intervenções de agentes externos ao sistema judicial, de que se destacam particularmente as conservatórias e os notários. Nas observações que se seguem não houve a preocupação de respeitar a lei tal qual existe hoje e várias das sugestões apresentadas pressupõem naturalmente a alteração do quadro legal vigente. 2. Tal como tem existido em Portugal, o instituto falimentar tem-se revelado ruinoso e tem-se traduzido, muitas vezes ou quase sempre, em prática delapidação de bens, destruição de capacidades de produção (que em muitos casos ainda estavam presentes) e desemprego total ou quase total. 3. Como se sabe, uma empresa pressupõe uma actividade em permanência. É necessário, com carácter de continuidade, conhecer os interesses/desejos/necessidades da clientela, canalizá-los para a empresa em causa evitando desvios a favor da concorrência, e satisfazer os clientes em quantidade e qualidade, bem como em tempo. Tem, pois, de ocorrer uma interacção múltipla nos planos externo e interno da empresa. Qualquer unidade produtiva que deixe de satisfazer a procura corre sérios riscos de vir a deparar-se com problemas graves, dos quais não possa, porventura, recuperar. 4. O que antecede imporia, nos casos – e são muitos – em que persiste uma capacidade produtiva, estão presentes os meios requeridos – humanos, técnicos, de conhecimentos –, e existe uma procura, a permanência em funcionamento eficaz da empresa, independentemente das relações jurídicas que se possam estabelecer com os proprietários e/ou credores da mesma as quais, em muitos casos, terão de ser reequacionadas. Sucede não existir em Portugal qualquer prática ou tradição de manter em funcionamento empresas enquanto se processa a discussão/adaptação/decisão das * Economista. Conselheiro do CES. 27 novas relações a estabelecer sobre o património, tanto no que se refere aos detentores do capital como a credores1. 5. Reconhecida a incapacidade de a empresa solver compromissos, entra-se em um longo e difícil processo, durante o qual os bens não são geridos na perspectiva da produção, os meios humanos não são pagos, a traduzir-se no facto de serem os trabalhadores mais qualificados os primeiros a abandonar o empreendimento, não há condições para responder a eventuais solicitações do mercado e a clientela desaparece2. E não obstante se encontrarem os bens à guarda do tribunal e serem designados responsáveis pela sua manutenção/conservação, quase sempre ocorrem situações de desaparecimento e vandalismo3. No fim, o valor de tais bens diminuiu significativamente, sendo virtualmente nulo no que se refere a bens de equipamento e similares. 6. Em largas dezenas de casos que se pôde acompanhar de perto, em nenhum se demorou menos de três anos a obter a conclusão do processo de falência, em alguns casos foi ultrapassada a barreira da dezena de anos e, normalmente, ultrapassaram-se os cinco anos. Em todas as situações o valor final resultante da venda dos bens (transaccionados sob forma global, ou parcelarmente) ficou por certo muito aquém do que teria sido o caso se tivessem sido seguidos processos expeditos e rápidos e se tivessem mantido os empreendimentos em funcionamento normal. 7. Não pode pôr-se em causa o formalismo da Lei, que, em cada intervenção processual, visa critérios de equidade, transparência e equilíbrio, procurando dar garantias de salvaguarda aos diferentes interesses em causa. Mas, no seu conjunto, o resultado tem de ter-se por insatisfatório e, porque os processos são longos e os resultados maus, acaba por tornar-se lesivo dos vários interesses que pretendia 1 O D.L. n.º 316/98 prevê procedimentos e mecanismos extra-judiciais de conciliação para viabilização de empresas em situação de insolvência ou em situação económica difícil, que poderá eventualmente, e mediante desenvolvimentos futuros, contribuir para a introdução de melhorias no presente estado de coisas. Sugere-se que sejam dados ao IAPMEI, entidade responsável pela gestão dos processos, os meios necessários à garantia de sucesso dos mecanismos previstos. 2 A Lei prevê a nomeação de gestores judiciais para as situações de empresas em dificuldade antecedendo a falência. Contudo, constata-se nem sempre terem os nomeados as qualificações necessárias para fazer face às dificuldades que naqueles casos se verificam. Mas, sobretudo, o “enquadramento geral” não tem sido propício a qualquer recuperação. 3 É conhecido o fenómeno de se desinteressarem geralmente do processo de falência aqueles a quem, de uma maneira ou de outra, o referido processo poderia interessar, dada a convicção generalizada de que, no fim, nada de importante sobrará para os credores. E não pode excluir-se que, além de problemas de gestão do processo, não se possam desenvolver marginalmente fenómenos de outro tipo. Não se tem a sociedade portuguesa e as instituições portuguesas por diferentes das europeias e ainda, bem recentemente, ocorreu um enorme escândalo em França. Transcreve-se do editorial do “Le Monde” de 9 de Abril de 1999: “Ninguém deveria ficar surpreendido pela amplidão do escândalo. O relatório (…) de uma das maiores empresas de auditora parisienses sobre as práticas da administração judiciária demonstra sustentadamente como menos de quinhentas pessoas lucram abusivamente dos cerca de 50.000 “depósitos de balanço” anuais. Estes disfuncionamentos da justiça são conhecidos desde há muito tempo, demasiado longo tempo”. “O seu sistema de remuneração (dos auxiliares da justiça, administradores e liquidadores judiciais), além disso, incita-os a atrasar o andamento dos processos e a preferir o fecho 28 acautelar. Não pode, assim, deixar de referir-se também o tempo anormalmente longo incorrido em várias fases ou actos parcelares constitutivos do processo. 8. Permita-se fazer apêlo a dois exemplos concretos. 8.1. Primeiro: nos princípios dos anos sessenta, e tendo-se constatado que nada poderia ser feito para salvar a empresa Minas de Vila Cova, desencadeou-se o processo de falência, que só ficaria resolvido cerca de uma dezena e meia de anos depois, em finais dos anos setenta. O extinto Banco de Fomento Nacional, como credor privilegiado (1.as hipotecas e 1.os penhores sobre os diferentes bens) havia aplicado na empresa o equivalente a cerca de metade dos seus capitais próprios, o que o colocava em situação particularmente delicada e provocava alguma perturbação e preocupação em alguns dos seus empregados. Após cerca de década e meia foi recebida no banco carta do tribunal dando conta do encerramento do processo e informando sobre a distribuição do resultado obtido com a venda dos bens. O banco era informado, com relativa exaustão, que o produto dos bens se elevara a certo montante; mas que tendo sido satisfeitas as despesas do tribunal, pagas determinadas importâncias ao fisco e ao Estado, etc., para ele, banco, credor privilegiado graduado em 1.º grau, restava nada4. Felizmente, neste caso, a inflação de finais dos anos sessenta e dos anos setenta havia-se encarregado de desvalorizar o valor relativo da dívida que, finalmente, se apresentava, no final, com pouco significado... 8.2. Segundo: em finais dos anos setenta realizou-se um estágio no Banco Nacional de Desenvolvimento do Canadá. De entre várias questões suscitou-se a seguinte: como procedia o BNDC em casos de incapacidade das empresas em solver os seus compromissos? A reacção do interlocutor foi um pouco a de não perceber a questão, que teve que ser reformulada, obtendo-se então como resposta que, quando as empresas entravam em dificuldade, se enviava uma equipa do banco que analisava este e aquele aspecto e que, em articulação com os proprietários/donos/gestores se tomavam as medidas necessárias, traduzindo-se muitas vezes na disponibilização de recursos financeiros adicionais e/ou capacidade de gestão, com vista à recuperação. Mas, insistiu-se, se mesmo assim não fosse possível chegar a uma solução e tivesse que se proceder a uma alteração das relações de propriedade da empresa, quanto tempo seria necessário? Resposta: nunca mais de três semanas e, em qualquer caso, após o requerimento inicial – e, evidentemente, após uma primeira análise – o tribunal definitivo das empresas em alternativa à sua recuperação. A estes disfuncionamentos legais juntam-se demasiados negócios de corrupção pura e simples”. 4 O D.L. n.º 132/93 acabou com a situação descrita, em que o Estado, no âmbito do processo de falência, passava à frente de outros credores, mesmo privilegiados. A situação mantém-se, contudo, em outros casos que envolvem a execução/liquidação de patrimónios. Acresce que, no âmbito do processo de falência, previu a Lei 17/86 um tratamento especial para os salários em atraso, que passam à frente de outros créditos. A Jurisprudência “alargou” interpretativamente o dispositivo, passando a considerar também as indemnizações por cessação dos contratos de trabalho, que envolvem verbas por vezes muito vultuosas relativamente ao produto da massa. 29 nomeava de imediato uma administração provisória que assegurava a permanência em funcionamento da empresa em questão! 9. Não terá sido alheia às dificuldades conhecidas a acção do legislador que, ao longo das últimas décadas, procurou configurar toda uma série de soluções atípicas para fazer face às dificuldades das empresas em crise, desde os contratos de viabilização ao Plano Mateus. Em muitos casos, infelizmente, apenas se adiaram problemas, não se tendo ido até às causas impeditivas do bom funcionamento das unidades produtivas. Também, com alguma frequência, se contribuiu para manter à frente das empresas pessoas que, manifestamente, não tinham condições e capacidades para as gerir, menos ainda para as recuperar. 10. Não parece que seja impossível fazer melhor do que tradicionalmente é feito em Portugal em matéria de liquidação de empresas com adequada ressalva de patrimónios e manutenção daqueles em condições minimamente operacionais. Dá-se como exemplo o que se fez, em meados da década de oitenta, com a extinção da CTM e da CNN. Estava em causa a manutenção em operação de uma frota composta por meia centena de navios (com a agravante de poder ser arrestada, por dívidas, em qualquer parte do mundo) e a salvaguarda de outros importantes patrimónios, entre os quais vários imóveis. Dada a degradação a que se chegara concluiu-se que não restava alternativa à liquidação daquelas duas empresas, para a qual teve de proceder-se à elaboração de critérios específicos – Decretos-Leis nos. 137/85 e 138/85 – dado o que se estabelecia em matéria de extinção de empresas públicas (n.º 2 do art. 37.º do D.L. 260/76): “As formas de extinção de empresas públicas são unicamente as previstas neste capítulo, não lhes sendo aplicáveis as regras sobre dissolução e liquidação de sociedades nem os institutos da falência e insolvência”. 10.1. Basicamente, o processo seguiu os procedimentos usuais da falência, devidamente adaptados, mas salvaguardando-se a possibilidade de recurso para os tribunais competentes em caso de necessidade, e traduziu-se na nomeação de uma comissão liquidatária com competências para: • representar as empresas em juízo ou fora dele; • praticar quaisquer actos de administração geral do património em liquidação; • contratar, na medida do que fosse estritamente necessário à execução das tarefas que lhes competiam, a prestação de serviços de qualquer natureza ou contratar pessoal a prazo; • promover as publicações necessárias e apreciar as reclamações de créditos deduzidas pelos credores das empresas; • elaborar o mapa dos créditos reclamados e graduá-los de acordo com a lei; • submeter o relatório e contas dos exercícios de 1983, 1984 e 1985, até à extinção das empresas, bem como o inventário de todos os bens e direitos das 30 mesmas, à aprovação dos Secretários de Estado das Finanças e da Marinha Mercante no prazo de 3 meses; • liquidar o activo, cobrando créditos e alienando bens e direitos; • pagar aos credores, de acordo com a graduação estabelecida; • praticar todos os demais actos necessários ao cumprimento das suas atribuições. 10.2. Previa-se que a comissão liquidatária pudesse fazer preceder a alienação definitiva de bens pertencentes ao património em liquidação da celebração de contratos pelos quais poderiam ser cedidos a terceiros o uso ou a exploração desses bens por período não superior a um ano, prorrogável por iguais períodos, desde que tais operações se mostrassem vantajosas do ponto de vista de uma liquidação prudente e da defesa do interesse nacional, o que seria prática seguida e garantiu a permanência em actividade dos bens das empresas em liquidação e a ocupação do pessoal necessário à adequada exploração daqueles. 10.3. Por forma a facilitar o início do processo de liquidação e para a constituição de um fundo de maneio destinado a acorrer aos encargos de liquidação, previu-se poderem ser obtidos pela comissão liquidatária das empresas empréstimos, nomeadamente do Estado, que seriam reembolsados logo que a liquidação do respectivo património o permitisse, com prioridade absoluta sobre quaisquer outros créditos, independentemente da sua natureza ou das garantias de que gozassem. 10.4. Previu-se o recurso para o tribunal dos credores cujos créditos não houvessem sido reconhecidos pela comissão liquidatária e incluídos no mapa respectivo ou que não tivessem sido graduados em conformidade com a lei. 10.5. Elaborado o mapa final dos créditos, a comissão liquidatária deveria iniciar a venda dos bens e direitos do património em liquidação, com observância de determinadas normas: • a venda de navios e de bens imóveis seria realizada mediante concurso público; • a comissão liquidatária tinha a faculdade de não aceitar qualquer proposta, quando estas fossem manifestamente inferiores ao valor dos bens ou não se conformassem com o caderno de encargos; • quanto aos navios e ao património imobiliário objecto de concurso e não adjudicados, podia a comissão liquidatária encetar negociações directas com eventuais interessados com vista à sua alienação, devendo os respectivos contratos ser objecto de aviso público quanto aos seus termos essenciais e à inexistência de oferta em condições mais vantajosas no prazo de um mês a partir da data da publicação do mesmo aviso; • os demais bens imóveis seriam vendidos por negociações particular ou em estabelecimento de leilão, conforme fosse determinado por despacho conjunto das tutelas governamentais. 31 Terminada a verificação do passivo, seriam os credores pagos à medida da realização do activo e de acordo com a graduação estabelecida. 10.6. Para melhor aferição dos resultados obtidos cumpre salientar que os diplomas reguladores da matéria foram aprovados em Conselho de Ministros de 27 de Dezembro de 1984, mas apenas promulgados em 12 de Março de 1985 (tendo o Presidente da República utilizado todas as possibilidades de fazer intervir o Tribunal Constitucional), referendados em 20 de Março seguinte e publicados do D.R. I Série de 3 de Maio de 1985, tendo entrado em vigor de acordo com o princípio geral estabelecido para a vacatio legis, após o que se procedeu à nomeação da Comissão Liquidatária. Foi possível vender a quase totalidade dos bens das empresas até final do ano de 1985. Concretamente, de 50 navios encontravam-se vendidos ou já negociados 48 no final desse ano de 1985 e nunca cessaram a exploração os que estavam em condições de navegar e dispunham de mercado de transporte. Ou seja: procedeu-se em cerca de oito meses à negociação da quase totalidade dos bens de acordo com as condições prevalecentes no mercado internacional e sem que os mesmos houvessem cessado a exploração5. Acresce não ter havido qualquer reclamação para as tutelas governamentais ou sido movido processo em tribunal de contestação ao trabalho efectuado ou a decisões tomadas no relativo à liquidação/venda dos patrimónios. 11. As questões relativas às falências não são específicas, antes têm que ver com os procedimentos gerais da administração da justiça e o funcionamento dos tribunais e, até mais geralmente, com toda uma série de procedimentos burocrático-administrativos que podem tornar mais eficazes e céleres ou mais ineficazes e lentos toda uma série de actos e intervenções. 11.1. Neste âmbito, parece que deveriam ser introduzidas adaptações visando eliminar toda uma série de manobras meramente dilatórias que, ao invés de contribuírem para uma mais eficaz administração da justiça se traduzem, afinal, na criação de injustiças relativamente a outros cidadãos (os prejudicados com os atrasos decorrentes de tais manobras) e/ou se traduzem em situações discriminatórias: é que a generalidade dos cidadãos não se pode dar ao luxo de recorrer a certos advogados quer porque não tem estatuto social ou conhecimentos para o fazer, quer porque não dispõe dos meios financeiros necessários. Não pode confundir-se garantia de direitos de defesa com mecanismos que acabam por traduzir-se em injustiças lesivas de direitos de outrem. 11.2. A independência dos tribunais e da administração da Justiça é princípio basilar das sociedades modernas, e deve ser totalmente respeitada, a começar pelos juízes que devem ser céleres no julgamento e claros e precisos na fundamentação das decisões. 5 Aos concursos para venda de navios – como, aliás, para os restantes bens – podia apresentar-se quem quisesse, nacionais ou estrangeiros e as novas empresas, embora de capitais públicos, tinham inteira liberdade em candidatar-se ou não (como tinham ainda liberdade para comprar o que quisessem e onde quisessem). Como resultado venderam-se 3 navios para o estrangeiro e distribuíram-se os restantes 47 tanto pelos novos armadores públicos, como por cinco armadores inteiramente privados. 32 Mas uma coisa são as decisões produzidas, outra a quantidade de trabalho e as demoras. Ora, como em todos os grupos profissionais, há juízes excelentes e juízes que o são menos; há juízes trabalhadores e dedicados e outros que não o são tanto. E uma avaliação da quantidade de trabalho produzido e dos tempos gastos é matéria que interessa também a toda a sociedade e aos contribuintes – que deveriam ter uma palavra institucional neste aspecto da matéria. 11.3. Não pode aceitar-se a marcação de audiências sucessivas, sistematicamente adiadas sem uma justificação plausível. Que dizer de um caso, em que a cerca de uma dúzia de testemunhas arroladas comparece mais de uma dezena de vezes – sempre no mesmo Tribunal, no mesmo Juízo e com o mesmo juiz – para ouvir, na última vez, a leitura do despacho do juiz que manda arquivar o processo por nulidade insuprível na fase de investigação? Independência e irresponsabilidade judicial, não pode traduzir-se em arbitrariedade e irresponsabilidade social. 11.4. Há quem tenha dúvidas sobre a vantagem da existência do Tribunal Constitucional. Tanto porque em vários casos foi possível antecipar as decisões que viriam a ser produzidas em função da coloração política atribuída aos juízes, como porque se transformou em mais um elemento na longa cadeia de recursos – no fundo, mais uma instância de recurso –, como, ainda, por nem sempre ter contribuído para a uniformidade desejável na interpretação da Lei. Deixa-se uma interrogação: porque não uniformizar o sistema judicial, atribuindo ao Supremo Tribunal de Justiça as funções presentemente cometidas ao Tribunal Constitucional? Mas, a manter-se o referido Tribunal, e dado que manifestamente não pode responder em tempo útil a uma multiplicidade de solicitações, a traduzir-se em mais atrasos contribuindo para prescrições, porque não estabelecer um “crivo” à semelhança do existente na Supreme Court dos Estados Unidos: o tribunal decide os casos que aceita julgar e reenvia os outros? 11.5. No sistema judicial português todos os casos são julgados, independentemente da sua importância e valor mediante um mecanismo que se pode caracterizar como de “first in – first out”. Tudo estaria bem se: (i) fosse possível julgar todos os casos; (ii) os julgamentos pudessem fazer-se em tempo útil; e (iii) não ocorressem, por conseguinte, prescrições, por vezes de casos muito importantes ou graves. A anómala situação a que se chegou parece recomendar a criação de várias “fileiras”, mediante procedimentos/critérios objectivos e transparentes. A cada vez maior especialização da vida económica e social recomenda a criação de tribunais especializados – sobretudo para apreciação das questões do âmbito da economia – e a disponibilização de peritos em vários ramos do saber. 11.6. As frequentes amnistias – aparentemente muitas vezes impostas pela incapacidade dos tribunais em julgar e das prisões em acolher todos os presos – introduzem também injustiças relativas que importa ter presentes (os cidadãos com 33 capacidade social e financeira para “empatar” o funcionamento da justiça são, afinal, os principais beneficiados com aquelas decisões). 12. Apresentam-se algumas sugestões de um leigo em matéria de processo. 12.1. A citação demora muitas vezes vários meses ou mesmo anos, tanto para pessoa singular como colectiva. Já aconteceu não serem encontrados durante anos cidadãos bem conhecidos e cujo paradeiro é notoriamente do conhecimento público. Admite-se que as pessoas, singulares ou colectivas, pudessem ter, para efeitos judiciais, um domicílio, que no caso das pessoas singulares seria, por exemplo, o constante no Ministério da Justiça (por via do B.I.) e as pessoas colectivas considerarse-iam domiciliadas na sede constante na respectiva Conservatória do Registo Comercial6. 12.2. Como é sabido, e para o confirmar basta consultar as estatísticas oficiais relativas à Justiça, em cada ano que passa aumenta o volume de processos pendentes nos tribunais, na medida em que o número de processos resolvidos é substancialmente inferior ao número das novas acções instauradas. O número de processos tem aumentado por diversas razões, nomeadamente de natureza fiscal. De facto, qualquer empresa, para poder contabilizar uma dívida como custo, tem de instaurar uma acção judicial, por vezes contra empresas que já não têm actividade para, ao fim de um longo processo (ou processos – acção declarativa e acção executiva), obter uma certidão judicial onde conste que no âmbito daquele processo nada recebeu. Com esta certidão, é possível recuperar o IVA e contabilizar o valor da dívida como custo, com os inevitáveis benefícios ao nível de IRC. Ora, parece que tem urgentemente de se acabar com este estado de coisas, para o que se apresentam algumas sugestões7. 6 Na medida em que, actualmente, o regime regra da citação é através de correio registado, quando o mesmo viesse devolvido, ao prazo legal para contestar (ou praticar outro acto), acrescia automaticamente um prazo adicional, de por exemplo 30 dias, para a hipótese de o citando ter entrado de férias ou para prevenir ausências determinadas por qualquer outro motivo legítimo. Adicionalmente, para uma maior garantia processual, após o decurso referido anteriormente, os tribunais oficiariam a PSP ou a GNR do local da área de residência do citando, para que estas entidades, no prazo máximo de, por exemplo 15 ou 20 dias, informassem o tribunal de toda e qualquer informação relativa ao paradeiro do citando. No caso de pessoas colectivas, decorrido que fosse o prazo adicional de 30 dias, o tribunal, oficiosamente, requeria uma certidão à respectiva Conservatória do Registo Comercial para verificar se houve mudança de sede social, e promovia a citação na nova sede (e, em caso negativo, considerava a citação como efectuada). Esta solução implicaria uma alteração ao Código do Registo Notarial, na medida em que as pessoas colectivas dispõem de um prazo de 90 dias para promoveram os registos. 7 Desde logo tem de haver uma relação de confiança entre a Administração Fiscal e o contribuinte, criando-se fortes penalizações, a nível económico e penal, para as situações em que o contribuinte, através do recurso a documentos falsos contabilize dívidas inexistentes. Por outro lado, para, em grande medida, impossibilitar a fraude fiscal, o credor teria de fazer a notificação judicial avulsa do devedor, notificação essa onde constariam todos os elementos relativos à dívida. No final do ano, as empresas, juntamente com o Mod.22 do IRC (onde teriam sido considerados os prejuízos emergentes da falta de pagamento de créditos não pagos devido a incapacidade ou ausência de 34 12.3. O desenvolvimento da vida económica criou problemas novos a traduzir-se num recurso anormal aos tribunais por parte de determinadas empresas ou entidades, de que são exemplo os bancos, as companhias de seguros, as empresas de telecomunicações, as empresas emissoras de cartões de crédito e a própria Previdência. Em alguns casos a larga maioria de processos entrados em determinados tribunais ou juízos provêm destas empresas, sendo os juízes “desviados”, por este facto, da sua função tradicional de actuação em benefício de toda a sociedade. A canalização da atenção e tempo dos juízes e outros funcionários judiciais para estas situações “atípicas” tem por consequência: • deixar por resolver – por mais difíceis, delicadas ou morosos – os casos de conflitualidade “típica”, em particular os susceptíveis de levantar mais “problemas” no plano social; • “construir” uma boa folha de serviços à custa de intervenções irrelevantes em termos substantivos (julgar-se para a estatística e não para a resolução dos reais conflitos8); • desviar recursos – que tendo sido facultados por toda a sociedade deveriam reaplicar-se em benefício de toda a sociedade – para proveito de certas e determinadas empresas9. Aliás a situação está amplamente reconhecida pelo próprio legislador ao afirmar que “a instauração de acções de baixa densidade que tem crescentemente ocupado os tribunais, erigidos em órgãos para reconhecimento e cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores” conduz a que sejam os tribunais “colocados, na prática, ao serviço de empresas que negoceiam com milhares de consumidores” com “o risco de se converter(em), sobretudo nos grandes meios urbanos, em órgãos que são meras extensões dessas empresas (…)”10. Para uma situação perfeitamente atípica e anormal, que reconhecidamente está contribuindo poderosamente para o pior funcionamento (no limite, não funcionamento) da Justiça, haverá que encontrar soluções novas, atípicas, eficazes e salvaguardando adequadamente critérios e princípios tanto legais como morais. vontade de pagar do devedor), entregariam, em anexo ao Mod. 22, um modelo, a criar, onde constaria a relação dos créditos não cobrados, com a identificação dos contribuintes faltosos. A Administração Fiscal procuraria (até porque dispõe de meios mais eficazes para o efeito) cobrar dos devedores o valor dos impostos deduzidos ao/pelo credor. 8 Considere-se o caso de dois juízes com exactamente o mesmo número e tipo de processos: 70 “especiais” provenientes de bancos, seguros, etc. e 30 “normais”. Um decide 60 – os 30 “normais” e 30 “especiais”; o outro decide exactamente os 70 “especiais”. Em termos de estatística o segundo juiz é “melhor” que o primeiro, mas, tanto em termos de trabalho produzido como de “utilidade” para a sociedade o primeiro deverá ter tido um muito melhor desempenho. 9 Como toda a Administração Pública também o funcionamento dos tribunais recai, por via do imposto, sobre toda a Sociedade. Porque haverá a Sociedade como um todo suportar custos que visam, sobretudo, o funcionamento societário normal de determinadas empresas ou entidades? Não deveriam ser criados e implementados esquemas que assegurassem/garantissem que, nestes casos, seriam tais entidades a suportar os inerentes custos? 10 Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro. 35 Tal terá de acontecer, por imperativos constitucionais actuais, dentro dos tribunais como tradicionalmente, mediante criação de secções especializadas11 e adaptando adequadamente as normas e regras de funcionamento. Se fossem adaptados determinados princípios estabelecidos na Constituição – o que será uma fatalidade se não forem em tempo razoável encontradas soluções para os actuais problemas e, em particular, se estes continuarem a agravar-se – acabaria por ter de recorrer-se a soluções perfeitamente inovadoras e fora dos tribunais, mas devendo garantir-se, sempre, um certo número de condições, designadamente: • definição muito concreta e precisa de quem poderia socorrer-se dos novos mecanismos (bancos, seguradoras, etc.) e para que tipo de situações; nos casos tipificados não poderiam tais entidades recorrer aos tribunais, mas poderiam os devedores optar pela via judicial; • os “decisores” em tais processos seriam juízes ou técnicos com profundos conhecimentos de direito, podendo ainda recorrer-se a técnicos/profissionais devidamente habilitados e com boa formação comercial, económica e empresarial. A título indicativo, apresentam-se algumas sugestões concretas12 realçando-se que vários dos aspectos mencionados poderiam ser adoptados sem que se confrontassem no imediato com dificuldades constitucionais. 11 Mesmo que se admita que a sua eficácia poderá ser remota. Seriam criadas “Comissões de Execução de Dívidas” (uma única, pluri-sectorial, ou especializadas – sector bancário, segurador, segurança social, etc.; a Comissão do sistema bancário funcionaria junto do Banco de Portugal, a dos seguros junto do Instituto de Seguros, etc.). A comissão seria constituída por: • Presidente • Dois vogais O presidente deveria ser licenciado em Direito, com 10 anos de exercício, como Juiz, Advogado, ou Delegado do Ministério Público. Os vogais poderiam ser licenciados em Direito e ter exercido aquelas profissões, ou ser licenciados com licenciaturas adequadas nas áreas da economia e da gestão, necessitando de 5 anos de exercício de funções. Nos processos não haveria créditos privilegiados, excepto os que tivessem garantia real. Havendo vários processos sobre os mesmos bens, funcionaria o princípio da prioridade da data da entrada da acção. O credor (Banco. etc.) apresentaria requerimento fundamentando o seu crédito documentalmente. Juntaria desde logo as provas que considerasse necessárias e indicaria os bens a penhorar, com certidão actualizada, nos bens sujeitos a registo. A notificação deveria ser facilitada e os prazos encurtados; todo o processo de contestação, produção de prova e decisão deveria tornar-se mais expedito. Feita a contestação, ou esgotado o prazo para a sua apresentação, a Comissão solicitaria às partes os esclarecimentos julgados necessários e seguidamente lavraria despacho, com base nos documentos e esclarecimentos que lhe tivessem sido presentes. Este despacho teria força de título executivo, para todos os efeitos legais, e seria título suficiente para registo da penhora, sobre os bens previamente indicados. Feita prova da penhora, os bens seriam entregues a um Liquidatário Judicial, para liquidação. O liquidatário seria fiscalizado e acompanhado por uma Comissão de Acompanhamento, constituída por um representante do credor e outro do(s) devedor(es). Ao liquidatário e à Comissão seriam aplicáveis os princípios consignados no código das falências, com as devidas adaptações, sendo as referências ao Tribunal entendidas como dirigidas à Comissão de Execução de Dívidas, e as referências à Comissão de Credores, como destinadas à Comissão de Acompanhamento. 12 36 12.4. Muito do trabalho dos juízes não tem dignidade para ocupar um magistrado, podendo e devendo ser entregue a funcionários com uma formação menor, sempre evidentemente sob responsabilidade e controlo do juiz13. Como é obvio, em função dos assuntos, haveria vários escalões, podendo o topo ser ocupado por licenciados em Direito. Na verdade, parte substancial do tempo dos magistrados é gasto no exercício de funções de meros escriturários, de onde resultam elevados prejuízos para o andamento dos processos. Também aqui se impõem modificações14. 12.5. Os liquidatários judiciais recebem em função do tempo e não dos resultados obtidos ou da celeridade com que realizam o seu trabalho e a sua compensação – de base mensal – é fixada pelo juiz normalmente vários meses após a sua designação para um processo. 12.6. O trabalho nas secretarias continua, como há séculos, a ser feito da maneira tradicional. Simples exemplo: como nos tempos medievais continuam a coser-se os processos, com as perdas de tempo associadas a um trabalho arcaico desta natureza, Feita a liquidação, a Comissão de Execução de Dívidas procederia à graduação dos créditos e emitiria as respectivas ordens de pagamento. As custas do processo seriam suportadas proporcionalmente pelas partes. As do credor na proporção do crédito efectivamente recuperado; as do devedor na proporção do crédito verificado (o custo para o credor é largamente compensado pela celeridade processual e traduzir-se-ia numa vantagem para o devedor já que o estimularia a não recorrer à via judicial). Deveria ser criado um Cofre Geral de Cobrança de Dívidas (bancárias etc.) para onde reverteriam os preparos e custas. Em qualquer altura do processo poderia o devedor impugnar judicialmente o crédito pedido. Se ganhasse, ou na proporção em que ganhasse, seriam as custas imputadas ao credor. Mas se perdesse, ou na proporção em que perdesse, pagaria as custas do processo extra-judicial, mais as custas do processo judicial, agravadas em 100%. Produzido o despacho de encerramento do processo pela Comissão sem que tivesse havido impugnação judicial até, por exemplo, 5 dias após a data da notificação do despacho, às partes, a decisão tornar-se-ia definitiva e sem possibilidade de qualquer recurso, impugnação, ou reclamação. 13 O princípio geral, hoje, é que tudo tem de passar pelo juiz e ser objecto de despacho seu. 14 Exemplo: feita a penhora de um imóvel (ou fracção) o credor, através de requerimento, junta aos autos certidão do Registo Predial onde consta o registo da penhora. O requerimento vai ao juiz que verifica: se a penhora está registada, se há credores hipotecários com registos anteriores (tendo em vista a sua notificação pessoal para reclamar créditos no processo), se existem penhoras anteriores, caso em que o processo é sustado para o credor ir reclamar o seu crédito no processo que deu causa ao primeiro registo de penhora e, após isso, o juiz exara um despacho a notificar o credor para publicar um anúncio no jornal, destinado a notificar credores desconhecidos. A secretaria demora um certo tempo a enviar a notificação, o credor, depois de a receber, publica os anúncios, recorta a publicação e junta aos autos, através de requerimento, os respectivos recortes, bem assim como o recibo justificativo de que pagou a publicação dos anúncios. A secretaria, ao fim de mais um certo tempo, envia o requerimento ao juiz para verificar da regularidade dos procedimentos e, em função disso, avança para a marcação da venda. Chegados aqui, a saga repete-se: ordem de publicação de anúncios a anunciar a venda, notificação ao credor para os publicar, publicação, junção aos autos dos recortes, etc., etc. Ora, porque não é este trabalho de verificação administrativa feito por um funcionário? Não poderá ser o tribunal a publicar os anúncios, debitando na conta de custas (até porque as partes vão fazendo entrega de fundos à medida que lhes são solicitados)? O mesmo se diga, “mutatis mutandi” para toda e qualquer situação em que é preciso publicar anúncios, desde logo para a citação edital. 37 com o único benefício de dar emprego a largas centenas de funcionários. Na generalidade dos tribunais a informática está ainda por descobrir15. 12.7. O número de funcionários não tem acompanhado o aumento de processos, pelo que estes – como aliás a TV tem mostrado relativamente a alguns tribunais – se empilham nas secretárias, nos armários, no chão, quando não no vão das janelas. Por vezes, entre a data do despacho do juiz e a data em que a secretaria notifica a parte do referido despacho, demoram meses. De igual modo, a parte responde e, entre a data da entrada em juízo da resposta e a data em que a mesma é levada ao gabinete do juiz podem demorar meses. 12.8. Quando o processo é findo e o credor tem algo a receber (o que raramente acontece), é necessário (para a emissão do precatório-cheque) que: • o contador (funcionário que faz a conta) tenha tempo para pegar no processo – e às vezes, aliás frequentemente, só tem tempo muitos meses depois; • a conta seja notificada às partes para efeitos de eventual reclamação; • o credor obtenha uma certidão em como nada deve ao fisco. Finalmente, e após mais uma série de pequenas ou grandes burocracias, é emitido o precatório-cheque. 12.9. Parece absolutamente necessário: • que haja correspondência entre o número de funcionários adstritos a um juízo e o volume de trabalho existente (porque não estabelecer “unidades de medida” e fixar parâmetros objectivos, passando a proceder, depois, à comparação do trabalho efectivo com os parâmetros estabelecidos?); • que seja fixado um número de dias máximo para fazer as notificações, bem assim como para levar ao juiz os requerimentos das partes. 12.10. É de todo em todo não razoável que os particulares, sejam pessoas singulares ou colectivas, instaurem acções, paguem aos seus advogados, adiantem dinheiro para custear despesas judiciais e, quando o credor consegue penhorar algo que lhe permitiria receber senão a totalidade, pelo menos parte da dívida, apareça a Fazenda Nacional a reclamar créditos a favor do Estado, o que faz enquanto credor privilegiado. Quer dizer, uns trabalham e suportam os custos e os outros recebem à conta do trabalho (e do investimento) alheio. À semelhança do que já sucede no campo falimentar, o Estado deve perder a qualidade de credor privilegiado, salvo se, à semelhança de qualquer outro credor, for detentor de qualquer garantia específica, v.g. hipoteca. 15 A Lei prevê já diversos procedimentos e mecanismos “agilizadores” do funcionamento administrativo e burocrático dos tribunais. Contudo, não têm estes tido a capacidade suficiente para a introdução de melhorias. Julga-se que o Ministério da Justiça deveria desenvolver um plano específico de ataque a este problema e seleccionar uns tantos tribunais para o arranque, com garantia de sucesso, de esquemas mais modernos. 38 12.11. A dificuldade em localizar bens para penhorar é conhecida, pelo que se sugere a criação de um registo central onde seja possível verificar se determinado cidadão ou empresa tem bens registados em seu nome e, em caso afirmativo, qual a conservatória ou conservatórias onde os mesmos se encontram. Nesta matéria, o fenómeno que se vem desenvolvendo de passar bens para sociedades “off shore” é deveras preocupante. Para além de evidentes consequências em matéria fiscal, como proceder relativamente a pessoas ou empresas que passaram, às vezes por apenas algumas dezenas de milhares de contos, bens avaliados em vários milhões de contos e nada têm quando chegam à falência. Sendo que os antigos vendedores continuam a ser, em exclusivo, os utilizadores/beneficiários de tais bens. Não poderá ser devidamente regulada a questão das empresas “off shore” (e não se diga, nesta matéria, que a lei comunitária introduz constrangimentos)? Não será de, pura e simplesmente, se estabelecerem presunções legais cobrindo determinados aspectos (admitindo-se, obviamente, que as mesmas possam ser contestadas)? 12.12. Não parece recomendável que os juízes saiam, na sua grande maioria, da faculdade para o Centro de Estudos Judiciários e daqui para os tribunais, sem que alguma vez tenham tido a menor experiência de vida, o que os leva, por vezes, especialmente no início de carreira, a cometer erros importantes que, na maioria dos casos, quando a alçada o permite, acabam por ser corrigidas pelos tribunais superiores (mas ao fim de alguns anos, tendo causado prejuízos vários e contribuído para o avolumar de processos em julgamento). À semelhança do que se defende para as secretarias judiciais, deveria ser aumentado o número de juízes, por forma a que não fiquem “afogados” em processos e, após isso, deveriam, à semelhança do que acontece com os advogados, ser obrigados a cumprir os prazos que a lei lhes impõe, mas que hoje não são cumpridos em muitos casos. É lamentável que hoje, especialmente em determinadas sedes muito sensíveis, após o adiamento de uma audiência, se faça a nova marcação para mais de um ano depois!… Os juízes deveriam estar sujeitos a inspecção judiciais (que já existem), mas a equipa de inspecção deveria ser constituída não só por juízes, mas também por advogados de elevado mérito ético e profissional, indicados pela Ordem dos Advogados. 13. Em outras áreas poderiam ser introduzidas melhorias importantes, objectivas e controláveis. Dão-se dois exemplos. 13.1. Notários: há anos teve-se a experiência clássica, em um país comunitário, de comprar habitação numa situação que envolvia diferentes intervenientes, comprador/adquirente, vendedor do terreno, empreiteiro/construtor e banco/emprestador, com a agravante de a esposa não residir, ao tempo, no país em questão. A operação desenvolveu-se em dois tempos: • primeiro, obter a procuração da esposa, o que foi feito dentro de 24 horas e para a qual foi apenas requerida uma qualquer “pièce d’identité” (tempo de permanência no notário, 15 minutos, sendo 5 para obter o documento e 10 de 39 “cavaqueira”; no final o interessado nada pagou de imediato, porque o notário preferiu abrir uma conta-corrente que só seria liquidada no fim da operação principal concluída); • segundo, realização dos diferentes contratos, com o vendedor do terreno, o empreiteiro e o banco. Permaneceu-se cerca de 30 minutos no cartório, com respeito exacto pela hora marcada. O notário procedeu aos registos de hipoteca, pagamento ao fisco do equivalente da nossa sisa, assegurou o pagamento do dono do terreno, do empreiteiro, das despesas bancárias e de si próprio. Para tanto recebeu directamente do banco um cheque do montante da importância bruta do empréstimo, controlou com o interessado as diferentes situações de custo, prestou contas e pagou, tendo o interessado recebido a diferença para o montante bruto do empréstimo. Ainda hoje, revendido o bem em questão no regresso a Portugal, se ignora onde fica a repartição fiscal e a conservatória de registo. Tempo total dispendido com o conjunto de todos os actos relativos à compra do bem, hipoteca, registos, satisfação de encargos fiscais e empréstimo bancário: cerca de ¾ de hora (teria sido meia hora se não tivesse havido necessidade de procuração). Número de interlocutores e locais frequentados (à parte o banco prestamista): um. 13.2. Registos: são extraordinariamente demorados em certas conservatórias, com a agravante de serem mais ou menos rápidos consoante os interesses e os interessados. Questões: não será possível calcular o número médio de registos/funcionário/dia para as diferentes conservatórias do país (pensa-se evidentemente naquelas que têm trabalho para o dia todo)? Não será possível assegurar que seja respeitado efectivamente o princípio de “first in – first out” (sem prejuízo de se criarem várias fileiras em termos de urgência)? 14. As questões tratadas, por serem questões de sociedade, aconselhariam uma intervenção social mais alargada e a criação de órgãos efectivamente representativos dos vários interesses em causa. Desde logo deveriam ser feitos inquéritos objectivos no que se refere ao funcionamento das diferentes entidades, procedimentos e tempos. As estatísticas existentes deveriam ser enriquecidas com informações que nos mostrassem a qualidade da justiça que temos (qualidade medida em função dos resultados e dos tempos). Seria de procurar conhecer-se o que são as efectivas necessidades da Comunidade e solicitar-se sugestões ou propostas dos principais interessados visando o objectivo de bom funcionamento dos tribunais e outras entidades ou agentes. Poderia ser interessante proceder-se à identificação das soluções encontradas em diferentes países e sua eventual importação (com as adaptações que se revelassem necessárias). 40 A Crise de Confiança nos Contratos Dr. Miguel Veiga* Orador I) DOS SINAIS DOS TEMPOS: A questão que me foi proposta será, por (des)ventura, um dos signos do nosso tempo que o historiador Krzystof Pomian recentemente anunciou como da crise do futuro. Crise dos valores, da confiança, crise do dever, da responsabilidade, cidadão, contratação e administração da Justiça em crise. Crise, definida ironicamente por Jacques Attali 1 como sendo, desde sempre, um período de transição entre duas fases de transição. A interrogação provoca logo um aviso à navegação. É preciso que nos libertemos de uma dupla ilusão que dominou a intelligentzia desde há décadas: a nostalgia de um passado findo assim como a esperança de um futuro radioso2. Já não cantam os amanhãs embora felizmente ainda há luar, neste ou noutro lugar... E se ontem tínhamos o direito de ser fatalistas por optimismo, doravante devemos ser audiciosos por pessimismo. Nesta consciência crítica perpassa um optimismo pessimista, corrijo, um pessimismo optimista (enganei-me de propósito), uma visão desoladora com um mínimo de esperança. Mas é neste desfasamento entre a idealidade e a realidade que radica o nó-górdio da condição humana. Viver o tempo como uma enriquecedora tensão entre a memória do passado e a pulsão das saudades do futuro, contrapondo à crise do historicismo a lucidez de quem está avisado de que a mesma luz que ilumina é também a luz que cega e sabe, como única certeza, que os conceitos de verdade, de realidade e de sentido têm de ser constantemente interrogados. Tomar a verdade e o amor a ela apenas como direcção do seu agir e nunca como realidade possuída, tentando esclarecer a opacidade do mundo e compreender a diversidade dos homens, fiel à única medida da verdade que a vida nos concede: a nossa razão humana. Suficientemente forte e suficientemente frágil, para poder duvidar sempre das suas conquistas e das suas evidências. Onde é branco dirá branco, onde preto, preto, livre para amanhã dizer coisa diversa se o objecto mudar ou a luz perder as suas propriedades. O intervalo que separa a sombra da luz permite ver. O intervalo irredutível que separa o mal do bem permite que haja valores no mundo. E isso é excelente. A heterodoxia é a humildade do espírito, o respeito simples em face da divindade inesgotável do verdadeiro. Resistamos à ilusão de supor que tudo pode ser inundado de luz. Deixaríamos de ver. No plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma * Advogado. - Dictionnaire du XXIe siècle. 2 - Cornelius Castoriadis. 1 41 realidade dividida. O respeito pela sua divisão é Heterodoxia. Que fui aprendendo, pela vida fora e pela vida dentro, sob a mestria de Eduardo Lourenço3. Questionar, outrossim, como um movimento de conceitos que cria o seu próprio campo operatório. Problematizar a sociedade, os valores, a justiça e procurar respostas, ainda que parciais e fragmentárias, atendendo unicamente ao seu interesse informativo, documental e polémico. Quero dizer: uma abordagem que se caracteriza, antes de mais, pelo seu próprio movimento, pela mobilidade do pensamento, do pensar em contrabando, desse modo, talvez filosofante, de perpétuo contrabandista, como transfuga que passa dum território a outro porque sabe que há sempre uma comunicação possível já que, em certa medida, somos muito mais livres de circular do que há 30 anos4. Fazer a transversalidade supõe, porém, que não haja uma disciplina dominante que sobrecarregue todas as outras5, mas não devemos ser derrotistas nessa tentativa de compreensão do mundo e de pensar neste nosso tempo real. Mais do que nunca esta nossa desencantada sociedade encontra-se em busca do sentido, num estado de carência que nem a ciência, tornada inquietante, nem as ideologias políticas, em falha de esperança, têm preenchido. A crise mais (pre)ocupante é a económica e social mas há quem descubra uma outra crise, ainda mais profunda, a crise dos espíritos e dos corações, uma crise de identidade e da comunidade, uma crise moral e talvez espiritual nas nossas sociedades modernas, anónimas e indiferentes, onde reinam como donos e senhores, impiedosamente, a técnica, os “media” e o dinheiro mas em que ainda há quem se bata por um renascimento do humanismo, pelo direito ao sentido, a uma esperança partilhada como um direito fundamental do homem para o séc. XXI6. Actualmente, a vida, a política é, cada vez mais, da ordem do estar, o que significa que, enquanto jogo, tem a sua dimensão própria que, contudo, só pode ser entendida se for inscrita na pergunta mais radical sobre a pessoa, ou melhor, sobre o tempo. Tempo este que, modernamente, é cada vez mais gozado e vivido como efémero, caótico, desconfiado e sem sentido, dir-se-ia que a ideia moderna da historicidade está a morrer às mãos dos seus excessos, definhando com ela uma experiência em que o presente era vivido, simultaneamente, como futuro do passado e como passado do futuro, como se o tempo passasse a ser um mero somatório de momentos e o efémero a prova da eternidade. Vivemos em sociedades cinzentas sob o astro de uma ideologia de reconciliação, tão gasosa como difusa, estribada num pensamento mole em que as identidades são fluídas, as solidariedades evanescentes e as convicções vão cedendo o seu lugar às opiniões de ocasião e a desgarrados pontos de vista de certos plumitivos de profissão, o que levou alguém a comentar que d'antes os animais falavam, agora eles escrevem... Os decantados “maîtres-penseurs”, que foram os intermediários intelectuais, fecundos e inventivos, entre a casta sábia e o grande público, desapareceram praticamente de cena. Infelizmente para os investigadores do sentido a paciência do conceito rima mal com a urgência contemporânea e os pensadores, dignos desse nome, têm horror às injunções 3 - Heterodoxia - Prólogo sobre o Espírito de - Jean Maurel, N. Obs. (19.5.99). 5 - Elisabeth de Fontenay, N. Obs. (19.5.99). 6 - François Bayrou, Le droit au sens. 4 42 interpelatórias. A “insustentável leveza do ser é hoje, na realidade, uma amarga constatação do inelutável peso de viver. É o quiproquo de uma época que pretende apaixonadamente filosofar mas, simultaneamente, evitar todo o esforço filosófico. Que quer conhecer e saber mais, pensando menos. Vivemos numa sociedade de mercado, de lucro, de consumismo e despesismo, de sucesso fácil e endinheirado, custe o que custar, na era do falso, na era do vazio, sob o império do efémero e do mero pragmatismo que conduzem ao crepúsculo do dever, agudamente analisados por Gilles Lipovestsky nos seus vários livros. Muitos outros e recentes títulos, colho, à mão cheia e de passagem, das minhas estantes, significativamente denunciadores das barbas e da baba desta crise. Enunciando e exemplificando: Vivemos numa “sociedade do espectáculo” (Guy Debord), na “cultura do contentamento” (John Kenneth Galbraith), na “utopia do tempo livre” (Daniel Mothé), numa “sociedade incivil” (Sebastian Roche), na “era da irracionalidade e do paradoxo” (Charles Handy), no “lugar da desordem” (Raymond Boudon); vivemos na “era dos direitos” e do “futuro da democracia” (Norberto Bobbio) mas da “embriaguez democrática” (Alain Minc), do “regain democrático” (Jean-François Revel), da “regressão democrática” (Alain-Gérard Salma), do “Direito sem Estado” (Cohen-Tanugi) e do “Estado fóra da lei” (Jean Marie Pontaut e Francis Szpiner), num “Estado de opinião” (Olivier Duhamel), numa “República de clones” (Philippe Guilhaume), numa “República dos funcionários” (Thierry Pfister); vivemos numa “humanidade perdida” (Alain Finkielkraut), num “fim de século obscuro” (Max Gallo), num “tempo do mundo acabado” (Albert Jacquard), numa “ilusão económica” (Emmanuel Todd), do “horror económico” (Viviane Forrester), do “desafio de dinheiro” (George Soros), num “mundo de ladrões” (Claire Streling), do “grande desperdício” (Ives Messarovitch), da “mundialização além dos mitos” (Robert Boyer e outros); vivemos num tempo da “Justiça ou o caos” (Denis Robert), dos “Abogados de oro” (Ramón Tïjeras), do “Direito dos mais fortes” (Thierry Jean-Pierre), da “Lei dos Juízes” (François Rigaux), do “Golpe de Estado dos Juízes” (Eric Zemmour) e ... ... “tutti quanti”. Esta simples referência listada poderá ilustrar, expressiva e impressivamente, a retórica dos conflitos actuais e até das suas figuras de estilo. E a arte de argumentar, que é inconfundível com uma sofística manipuladora, é, digam lá o que disserem, a melhor escola da democracia. E a arte de viver é também a arte de ler. Uma das questões contemporâneas mais difundidas é a da necessidade da ética, da reinstauração do dever, da confiança como pilar de toda a relação social, de toda a contratação, de toda a civilização. A bio-ética, a caridade mediática, as acções humanitárias, a defesa do ambiente, a moralização dos negócios, da política e dos “media”, os debates sobre o aborto, o assédio sexual e a homossexualidade, as cruzadas contra a droga e o tabaco: por todo o lado a revitalização dos “valores” e o espírito de responsabilidade são agitados como o primeiro imperativo da nossa época. E se, ainda há pouco tempo, as sociedades se electrizavam com 43 a ideia da libertação individual e colectiva, hoje elas proclamam que já não é possível outra utopia que não seja a da ética. Só que, apesar disso, não há nenhum “retorno da moral”. A idade do dever rigorista e categórico eclipsou-se em benefício de uma cultura inédita que difunde mais as normas do bem estar do que as obrigações supremas do ideal, que metamorfoseia a acção moral em show recreativo e em comunicação de empresa, que promove os direitos subjectivos mas faz cair em perda o dever da obrigação pagante e custosa. Assim, enquanto a etiqueta moral passou a estar em toda a parte, a exigência do dever passou a estar... em parte nenhuma. E eis-nos, aqui e agora, comprometidos e engajados no ciclo pós modernista das democracias, repudiando a retórica do antigo dever austero e integral e coroando os direitos individuais à autonomia, ao desejo, à felicidade. Perante as ameaças do neomoralismo bem como do cinismo de vista curta, convém reabilitar a inteligência numa ética que se mostre menos preocupada de intenções puras que de resultados benéficos para o homem, que não exija o heroísmo do desinteresse mas, sim, o espírito de responsabilidade e a procura de compromissos razoáveis. Liberalismo pragmático e dialogado ou novo dogmatismo ético? O rosto do amanhã será, porventura, a imagem desta luta travada entre as duas lógicas antagonistas do chamado “après devoir”, ou seja, do depois do dever. O futuro di-lo-á. Aqui, permito-me fazer minhas as palavras de Karl Popper: “Não sei nada sobre o futuro. Ninguém sabe nada sobre o futuro. Só podemos ser optimistas sobre o presente, não sobre o futuro. Como será o futuro, depende de mim e de si, depende das pessoas. Apenas no sentido de que podemos tentar ser pessoas responsáveis, pensando e agindo pelas nossas próprias cabeças. Podemos fazer alguma coisa para influenciar o futuro. Mas o futuro nunca será seguro. Nem certo”. II) DA CONFIANÇA AO CONTRATO NESTA SOCIEDADE: Não haverá democracia sem a confiança dos cidadãos mercado sem a confiança dos produtores, mediadores e consumidores, família sem a confiança dos cônjuges, igreja sem a confiança dos fiéis. Ora, a precariedade crescente das relações humanas, a reversibilidade das escolhas, tanto no mercado como na democracia e na esfera privada, como que tornam menos necessário, relaxando, o respeito duradouro de um contrato e menos indispensável, afrouxando, a confiança mútua das partes. Pelo que há quem afirme que a cultura do mercado desvalorizou e fez declinar a ética da confiança, que seria progressivamente substituída pelo direito e pelo aparelho da justiça7. O extremo dessa crise poderia ser figurado por S. Goldwin ao declarar “para mim um contrato verbal não vale sequer o papel em que está redigido”. O contrato é uma daquelas figuras que convoca ao debate e espelha, na sua regulamentação jurídica, as tendências económicas, o modelo social, os postulados filosóficos, culturais e políticos de cada época. De “invenção admirável” a “frasco de perfume vazio”; de mecanismo privilegiado do relacionamento económico a instrumento 44 de domínio; de expressão da personalidade humana a meio de opressão; de paradigma da justiça a veículo de abusos e iniquidades – eis alguns dos juízes antagónicos que o contrato suscita. Porventura, residirá aí algo do seu fascínio. A sua análise convoca uma perspectiva multidisciplinar e interdisciplinar: jurídica, seguramente, mas também económica, filosófica, política e social. Vontade ou confiança; indivíduo ou autoridade; mercado ou plano; concorrência ou colaboração; liberdade ou dirigismo – outras das dimensões conflituantes em opção. Do “laissez faire” à “publicização” do contrato; do individualismo à “politização integral”; do absentismo de um “Estado-guarda-nocturno” ao intervencionismo reducionista e providencial de um “Estado-Tutor” – eis, ainda que extremadas, algumas das linhas de evolução a assinalar. Há “troppo Stato”, acusa-se, e perante a “agonia do indivíduo”, houve que “redescobrir o privado”. Diagnosticou-se a “crise” do contrato, apregoou-se o seu “declínio”, anunciou-se a sua “morte” – mas é a sua vitalidade jurisgénica que ressalta. Talvez por o contrato constituir a oportunidade (não a única, decerto) de o homem ser sujeito do direito, de se auto-determinar livremente, de traçar o seu próprio destino8. O contrato ganhou por um lado o que perdeu por outro. A autonomia da vontade aumentou em extensão mas diminuiu de intensidade, porque hoje é mais débil, mais frouxa do que outrora. O contrato moderno não constitui, em muitas hipóteses, o resultado de um livre debate e de uma estipulação; o seu carácter individualista, o seu cunho personalista e de caracter vinculístico-pessoal e personalizado esbateu-se, nele tomando cor e vulto o aspecto social9. Visivelmente – diz Josserand 10 – o contrato escapa cada vez mais à acção comum e concertada das partes; deixa de ser uma “entente” realizada sob a égide da liberdade, pelo jogo de vontades iguais e autónomas, para se tornar uma operação dirigida, quer pelos poderes públicos, quer por um só dos contraentes que impõe a sua fórmula e as suas condições ao outro. Eis aí dois fenómenos jurídicos, económicos e sociais que tiram ao contrato, pelo menos em larga medida, o carácter tradicional de mutuus consensus, que o tornam, se assim se pode dizer, menos contratual e que dele fazem, em graus variáveis segundo as espécies, um contrato-regulamento, um contrato dirigido, um contrato-tipo e estereotipado, um contrato de adesão, com restrita autonomia do aderente, que só tem liberdade de contratar ou não contratar, e se contrata deve sujeitar-se à lei do mais forte, aceitando as condições por ele oferecidas. Mas, em contraponto, também se assiste à introdução pelas partes nos seus acordos de cláusulas de garantia, de protecção, regras técnicas, deveres específicos de diligência, numa “inflação do conteúdo obrigatório do contrato”, na expressão feliz de Josserand, inflação ou enriquecimento que se legitima com o importante princípio (e bom era vê-lo mais fundamente gravado nas consciências) de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, de boa fé (artt. 406 e 762 CC) e conforme à clássica regra do “pacta sunt servanda”. 7 - Jacques Attali, Dictionnaire du XXIe siècle. - A. Pinto Monteiro - intróito aos “Contratos: actualidade e evolução”. 9 - I. Galvão Telles - Manual dos Contratos em Geral. 10 - Aperçu géneral des tendances actuelles de la théorie des contrats. 8 45 Rompendo com uma análise jurídica fechada sobre si própria, passa a salientar-se “a interdependência entre a alma de uma ordem jurídica e a estrutura da sua sociedade”. A interligação entre contrato, mercado e empresa, vem marcar o processo de objectivação do contrato caracterizada pela progressiva perda de relevância do seu elemento volitivo, da intenção real e efectiva do declarante, da confiança pessoal e da fidúcia personalizada entre as partes contratantes, ganhando peso crescente o seu comportamento declarativo, tal como exteriormente observado. A aceleração do processo produtivo e o incremento geral das trocas com o acesso de sectores cada vez mais alargados da população às relações de consumo, a mobilização e a desmaterialização da riqueza, a universalização do mercado com a sua extensão a todas as zonas da vida social, incluindo as da cultura e do lazer, a empresarialização da actividade económica com a empresa de dimensões cada vez maiores são factores que fazem multiplicar o uso e a importância dos contratos e determinam a mudança da sua fisionomia e do seu paradigma, o qual se abre, neste contexto, à realização de interesses dirigidos à obtenção de lucros através da colocação no mercado do maior número de produtos11. O contrato torna-se objectivo e impessoal (Roppo). Numa sociedade de massas, da grande empresa, que produz em série e vende em massa para um mercado anónimo através de um número indefinido de actos, repetitiva e mecanicamente celebrados, ao instrumento contratual colocam-se exigências de uniformidade e tipicidade que não podem ser satisfeitas nem entravadas por pressupostos individuais do foro interno do declarante incidentes sobre a base volitiva do negócio. O processo de objectivação, de despersonalização da figura do contrato vem alterar a sua ordenação e estrutura, o que é potenciado pelas técnicas de promoção de vendas através de acções comunicativas dirigidas não a um destinatário determinado (ainda por identificar) mas ao público como colectivo, à generalidade indeterminada das pessoas o que, por sua vez, determina a intensificação e generalização dos consumos12. A multiplicação das vendas e das consequentes concessões contratuais de crédito às compras e aos consumos excessivos ou insustentáveis origina a proliferação dos incumprimentos, tanto mais quanto as empresas, sôfregas e gulosas dos seus “chiffres d'affaires”, minorizam e descuram, quando não dão mesmo de barato, as possibilidades e garantias de pagamento e de solvência da sua clientela e contra-parte e esta, por seu lado, determinada, pela sua apetência ao consumo, sempre insatisfeita e renovada, não se sente íntima e proximamente vinculada nem “pessoalmente” obrigada ao dever de cumprir perante quem ela só distante e nominalmente conhece através de uma denominação social, marca emblemática ou anúncio publicitário. E, mais, sabendo de antemão que as justiças são morosas, formalistas, funcionando mal e a deshoras e que “enquanto o pau, ou a vara da justiça, vai e vem, folgam as costas”. Crise social de confiança, crise contratual no dever de honrar o cumprimento, crise na administração da Justiça. Tudo isto se conjuga, articula, condiciona, potencia e agrava reciprocamente. 11 - J. de Sousa Ribeiro - Cláusulas Contratuais Gerais e o paradigma do contrato. 46 III) DA CRISE DA JUSTIÇA A ALGUMAS CAUSAS DA SUA ASFIXIA: Falar hoje da justiça leva necessariamente a falar da política, da economia, da sociedade e do contrato. E qual é o nosso pano de fundo? Se dermos uma volta pelo pessoal político português, apercebemo-nos claramente de um facto: a justiça até agora não lhe tem interessado. Pouco ou mesmo nada. De facto, marimbavam-se para ela. Ou exorcisavam os engulhos com os proverbiais e gastos clichés da “separação dos poderes”, da “independência”, do “respeito pelos Juízes”. Sobre a questão da justiça, o parlamentar de base é geralmente analfabeto involuntário ou deliberado. Os programas são evocadores desta falta de interesse. O mais fácil é não fazer nada, olhar o mundo, em pose de Estado e em estado de pose, fechar-se nos gabinetes, barafustar, fazer “zapping”, pescar à linha com mosca, ou seja, fabricar legislação avulsa de remendo pontual, (Portugal é, de há anos, um país em constante delírio legislativo temperado pelo não cumprimento da lei...) mas sobretudo não empreender nada. Se o olhar dos outros é tão pesado e se a matéria é tão polémica! No entanto, o conceito de Estado de Direito, de que todos se reclamam, é um dos pilares da democracia moderna nos programas políticos. No entanto, o conceito é solitário e aflora somente no vocabulário sem nenhuma espécie de definição concreta, sobretudo no domínio da justiça, do exercício da justiça. É manifesto que muitos políticos em Portugal alimentam quanto à justiça um certo menosprezo, um quase desdém, quando não, uma certa indiferença, aliás explicável por razões de fundo e de circunstância. O corpo judiciário não é intelectualmente considerado pela classe política. Fugir da justiça e evitar os tribunais, já não é um sussurro é um clamor da vox populi. A imagem da função do juiz e da justiça está estragada e degrada-se dia a dia. O sistema judiciário funciona mal e a más horas. E porque é que não se faz quase nada para mudá-lo? E porque é que se continua, como em França (Denis Robert – “La Justice ou le chaos”), a acreditar na mentira do Estado que consiste em repetir até ao embrutecimento que a justiça é capaz, serena, credível? Só que o papel do político é o de escutar a necessidade da justiça e de o satisfazer. Só que a questão situa-se no coração do pacto social, ou seja, situa-se no coração da política no sentido da vida da cidade. Se os cidadãos estão descontentes com a administração da justiça, é todo o funcionamento social que está em riscos de ser afectado. A perda de autoridade da justiça num Estado acarreta de uma maneira difusa a perda de autoridade de todo o aparelho do Estado. Uma sociedade de direito e contratual, aliás, hiperjurisdicizada, necessita de uma justiça mais forte, mais eficaz e mais prestigiada. A justiça não é uma instituição como as outras. É um serviço essencial, é o recurso da liberdade contra o poder, é a suprema instância de regulação dos conflitos. E nunca esqueçamos, recusando qualquer deriva para uma certa 12 J. de Sousa Ribeiro - loc. cit. 47 ideia de ordem, que a sociedade democrática é essencial e estruturalmente conflitual e que só nela se exprimem livremente as dissonâncias do mundo e das pessoas. E nós, advogados, somos os representantes qualificados nesses conflitos de direitos e de interesses. (Observo que hoje temos, neste nosso ditoso jardim junto ao mar plantado, 26 escolas que ensinam direito e que produzem 3.000 licenciados por ano, ou não fosse a licenciatura em direito a mais inflacionada e barata...) Mas para que a sociedade civil, de que tanto todos falam, possa progredir é preciso que a justiça funcione. (O orçamento da Justiça comparado com o deficit de algumas certas empresas públicas é elucidativo embora, agora e só agora, se anuncie para o próximo orçamento um aumento de 43% a mais de investimento do que na anterior legislatura). A justiça é a instituição mais simbólica do Estado e, sendo-o, a sua perda de credibilidade não afecta e humilha apenas os juízes, mas também todo o Estado e todos nós cidadãos e o respeito que os cidadãos se devem uns aos outros. E, quando os indivíduos não respeitam uma autoridade superior que se chama justiça, os grupos sociais também deixam de respeitá-la. Ora, para que uma sociedade funcione é necessário uma autoridade diferente que represente a justiça e a quem os cidadãos reconheçam o mínimo de prestígio e capacidade. O poder simbólico da justiça permite a uma sociedade funcionar com simplesmente os sinais da autoridade. Se o sinal é fraco, decadente, a autoridade já não pode exercer-se senão com o recurso à força. Se o sinal e o símbolo da balança já não evocam nada para ninguém, então é necessário empunhar a espada. E quaisquer que sejam as, quantas vezes, execráveis, razões da força não pertencem elas ao mundo das estimáveis e desejáveis forças da razão. Recentemente foi dado à estampa o grito de alarme, denominado o “Apelo de Genève”, subscrito por sete qualificados magistrados de vários países da Europa que decidiram dizer não ao estado em que vivemos, ao estado da nossa Administração da Justiça pela Europa fóra e dentro. Dirigiram-no aos políticos em particular e à opinião pública em geral. Para que todos possam compreender que a Justiça e o seu exercício são hoje a sorte, o jogo e o futuro das democracias europeias. Por isso, escreveu-se nesse “Appel de Genève”, que à sombra de uma Europa em construção visível, oficial e respeitável, esconde-se uma outra Europa mais discreta, menos confessável, uma Europa de sombra mas que as autoridades políticas se revelam incapazes de atacar por forma clara e eficaz. Ora “desse exercício novo de justiça depende o futuro da democracia na Europa e a verdadeira garantia dos direitos do cidadão tem esse preço”. Só que a Justiça é um bem escasso, não tem a elasticidade dos mercados na adaptação da oferta à procura e vice-versa, não tem a resposta dos sistemas económicos. Só que a Administração da Justiça esteve afastada, lamentavelmente, não direi já da paixão mas até da previsibilidade que cabe à arte e ciência da governação (governar é 48 saber e saber é prever), alheada, ignorada ou desleixada das, aliás previsíveis, mudanças do cidadão e da sociedade com os seus reflexos e impactos devastadores na velha e hoje caótica máquina do aparelho de justiça que continua a gerir os processos como há quarenta anos. O Estado de Justiça neste decantado Estado de Direito é um estado de privação, de provação. De explosivo e sufocante estrangulamento. Para administradores e administrados da Justiça. Tudo estaria dito se as palavras não tivessem mudado de sentido e os sentidos de palavras. Veremos, mais à frente, esta mudança e esta crise nos números, os quais, por vezes, valem por milhares de palavras e nos aguçam os sentidos e iluminam as ideias. Vejamos como a massificação do consumo com o sequente aumento do volume da sua conflitualidade provocou a massificação da justiça de consumo e, vai daí e em larga medida, a saturação dos tribunais e o estrangulamento na administração da justiça. A sociedade de abundância, com as suas culturas de consumo, de espírito liberalizante, desenvolvimentista e hedonista, vai de par com uma sociedade de consumidores em massa, incitados a pedir emprestado, a comprar impulsiva e até compulsivamente a crédito (compre agora e pague depois), pagando bens com expectativas. A força da publicidade, do marketing e das novas tecnologias de informação ampliou o volume das necessidades e potenciou os riscos de insatisfação. As vendas a crédito, os saldos, as grandes superfícies, as compras à distância, os telemóveis, os cartões de plástico passaram a ser “o pão nosso de cada dia”. 13 O direito de consumo instala-se, prolifera e ganha “foros de cidade”, pluriforme, elástico, fragmentário, e o aumento da sua litigiosidade com acesso à justiça passa a enxundear os tribunais. Isto por um lado. Ora, agora noutra sede, na do acesso à justiça (na dupla vertente do consumo de acesso à justiça e na do acesso à justiça do consumo) esta explosão de direitos e obrigações consumistas e do disparo da sua conflitualidade nos tribunais fê-los “rebentar pelas costuras”. Só que, como acima já se referiu, a justiça é um bem escasso na medida em que as leis da oferta e da procura não têm nela o grau de adequação que revelam nas regras do mercado e os custos marginais são praticamente indetermináveis. A administração da justiça, como sistema de produção intelectual que é, agravada a sua morosidade e, até, amiúde, a sua inércia pelo seu formalismo burocrático e tecnicista, não tem a mesma elasticidade dos sistemas de produção económica e a sua capacidade de expansão não é ilimitada. 14 Ali, a explosão, aqui a implosão. 13 14 - Cunha Rodrigues - As novas fronteiras dos problemas de consumo. - Cunha Rodrigues - cit. estudo. 49 O que potencia, reforça e agrava o incumprimento do (sobre) endividamento porquanto o conhecimento, notório e público, da lentidão, quando não da paralização, da justiça conduz ao laxismo, à indiferença, à insensibilidade para os deveres contratuais do cumprimento pontual e à sua dilação para os melhores dias das Kalendas ou de São nunca. Isto posto: Se, por um lado, é certo que cresceu a chamada conflitualidade normal, resultante também de uma democratização traduzida numa maior tutela e consciencialização dos direitos de cada um, não só dos economicamente capazes para tanto como também dos carenciados através do apoio judiciário, por outro lado, aumentou em avalanche o número de acções ligadas ao crédito e ao consumo. Começou por se fazer sentir um acréscimo vultuoso de acções propostas pelas seguradoras e pelos bancos para tudo se ampliar enormemente com as acções propostas pelas empresas de leasing, de telecomunicações e em geral pelas empresas ligadas à concessão de crédito ao consumo de tal modo que elas passaram a colonizar os tribunais, passando estes a funcionar, essencialmente, ao seu serviço como meros agentes cobradores dos seus créditos e causando, do mesmo passo, estrangulamentos do sistema. 15 Exemplo capital, aqui em Lisboa, onde hoje vim: No Tribunal Cível de Lisboa, em que exercem funções 74 juízes (51 efectivos e 23 auxiliares), a média de processos distribuídos por cada secção, não incluindo as acções sumaríssimas, subiu de 392 em 1990 para 1151 em 1997. Entre 1990 e meados de 1992, em termos de pendência real, a média de processos por juiz rondava os 900, sendo actualmente superior a 2.500 e havendo casos de 3.500 e 4000. A causa do litígio decorre, na maioria dos casos, do incumprimento da obrigação pelo devedor, que a contraíu num ambiente de concessão indiscriminada de crédito, sem averiguação da solvabilidade daqueles a quem é concedido. As regras processuais de competência, privilegiando o domicílio do credor, que neste casos são invariavelmente poderosas sociedades comerciais, conduzem à concentração destas acções nos juízos cíveis e no tribunal de pequena instância cível, convertendo os tribunais em “órgãos que são meras extensões dessas empresas” (vd., preâmbulo do DL n.º 269/98, de 1 de Set.). A título de exemplo, apenas no tribunal de pequena instância cível, quase sempre para cumprimento de obrigações pecuniárias até 250 contos, deram entrada nos anos de 1995, 1996 e 1997, respectivamente 46.760, 56.667 e 88.523 acções, podendo adiantar-se que o ritmo continua a crescer no ano em curso. 16 Continuando. Das publicações “Estatísticas da Justiça”, 1995 e 1997, do Ministério da Justiça, extraíram-se alguns números para ajudar a caracterizar a situação dos tribunais em Portugal. 15 16 - Moreira Alves - considerações sobre os factores da lentidão da justiça, de 22.4.99. - Ilídio Sacarrão Martins - estudo-parecer ao CSM em 12.10.98. 50 Para não sobrecarregar este enunciado restringe-se a indicação aos tribunais judiciais de primeira instância, dado corresponderem a 89,86 por cento dos tribunais. Em 1 de Janeiro de 1997 nestes tribunais judiciais de primeira instância estavam pendentes 587.326 processos, tendo nesse ano entrado 185.210 e sido findos 348.450. Assim, só nesse ano de 1997, verificou-se um atraso de 136.760 processos, com agravamento para 724.086 do número de processos pendentes de 1997 para 1998. Desde 1991 o número de processos pendentes em 1 de Janeiro do respectivo ano sofreu a seguinte evolução: 1991 - 260.461; 1992 - 252.727; 1993 - 279.634; 1994 - 330.788; 1995 - 402.465; 1996 - 483.134; 1997 - 587.326. E em 31 de Dezembro de 1997, como se refere acima, estavam pendentes 724.086 processos. Assim, em 8 anos, o número de processos pendentes sofreu um agravamento de 260.461 para 724.086, o que corresponde a uma acumulação média anual de 66.232 processos. Neste período o número de processos pendentes quase que triplicou, passando de 260.461 em 1.1.91 para 724.086 em 31.12.97. A acumulação seria maior se as amnistias de 1991 (Lei 23/91 de 4.7) de 1995 (Lei 15/94 de 11.5) não tivessem feito findar prematuramente muitos processos penais. No mesmo período, o número de juízes de direito de primeira instância passou de 923 no ano de 1991 para cerca de 1210 em 1997, havendo que considerar que destes um número estimável em 70 não estava em funções judiciais. Assim, enquanto de 1991 para o fim de 1997 o número de processos pendentes quase triplicou, o número de juízes aumentou apenas de 28,5 por cento. Só que esta não será, só por si, uma das razões principais do intolerável atraso dos processos em muitos dos tribunais. A resposta não pode evidentemente passar apenas pelo aumento de quadros sob pena de se desvirtuar completamente a administração da justiça e transformar os tribunais em simples repartições cada vez mais burocratizadas. Em 1991 cada juiz de primeira instância tinha pendentes em 1 de Janeiro em média 282 processos. Em 31.12.97 cada juiz de primeira instância tinha pendentes em média 608 processos. Se em 1991 os juízes não foram capazes de dar andamento normal aos 282 processos que em média cada um então tinha pendentes, como era possível que em 1998 pudessem dar normal andamento aos 608 processos que em média cada um tinha pendentes? Há pois que esperar que o número de acções a entrar em juízo aumente em cada ano e não que estabilize ou diminua. O excelente, monumental, laborioso e rigoroso trabalho de investigação concluído em 1996 pelo Prof. Boaventura de Sousa Santos com a sua equipa e dado à estampa sob o título “Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – O Caso português” é, nos aspectos focados, concludente e conclusivo. Como segue e se extrata. “Verifica-se uma grande concentração da actividade judicial num número relativamente restrito de tipos de acções findas: são acções de dívidas. Este peso tem-se vindo a acentuar: 51 em 1942 as acções de dívidas representavam 38,5 das acções declarativas cíveis e em 1993 representavam 65,3%. A explosão da litigação, que ocorre entre nós uma década mais tarde que nos países centrais – ou seja, na década de oitenta, com forte acentuação no final da década, deve-se quase exclusivamente a um único tipo de acções, as acções de dívidas e os seus autores são basicamente litigantes frequentes.” “Correspondem à quebra de compromissos contratuais decorrentes de interacções económicas.” “Nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, onde se concentram 64,6% das acções declarativas findas, as acções cujo autor foi uma pessoa colectiva representavam respectivamente 68 e 66% do total. Isto significa que, no sistema judicial português, os indivíduos apenas dominam como réus. Como autores, dominam as pessoas colectivas, basicamente sociedades comerciais: bancos, companhias de seguros e empresas de crédito ao consumo.” “Acresce que um grupo restrito de empresas, e quase sempre as mesmas, são responsáveis pela grande maioria das acções. O sistema judicial cível, sobretudo em Lisboa e Porto, está “colonizado” pela cobrança de dívidas e, de facto, ao serviço de apenas algumas empresas, designadamente as grandes empresas do sector financeiro. A irrelevância social deste tipo de micro-litigação é sublinhada pelo valor diminuto das acções: acções de valor igual ou inferior a 250 contos são, em 1993, 51,3% do total das acções declarativas findas e 68,2% do total das acções de dívidas. O baixo valor das acções, combinado com o facto de estas corresponderem basicamente a um só tipo de litígio (cobrança de dívidas), é um poderoso facto de rotinização e de trivialização da justiça portuguesa, colocando-a ao serviço da conflitualidade económica de pequena dimensão. Deve, contudo, notar-se que têm aumentado ultimamente as acções cíveis (incluindo acções de dívidas) superiores a 5.000 contos, o que pode indicar uma crescente judicialização da média e grande conflitualidade económica. Por outro lado, as acções de dívida que dominam em absoluto a litigação cível são acções, em geral, sem qualquer complexidade, de prova fácil, raramente contestadas pelo réu, e resolvem-se, por isso, antes do julgamento, com a condenação do réu no pedido. O facto de os nossos tribunais estarem dominados por litígios de baixa intensidade reforça a sua vulnerabilidade à rotinização, à trivialização, à burocratização e, em última instância, à irrelevância social. É o caso das empresas que usam as acções de dívidas não necessariamente para recuperar os seus créditos (objectivo declarado) mas antes para obter deduções no rendimento colectável (objectivo real). Neste caso, a actividade judicial é posta ao serviço de uma estratégia fiscal. Acções de dívidas, dado o modo como está organizada institucionalmente a procura da tutela judicial (os serviços de contencioso, os advogados avençados), a relação custo/benefício no accionamento do tribunal é muito favorável ao mobilizador. Ou seja, a eficiência neste domínio traduz-se numa enorme acessibilidade do sistema judicial e, de tal 52 modo, que na litigiosidade a que diz respeito a discrepância entre procura potencial e procura efectiva é muito pequena. Fora das zonas altamente funcionais, a acessibilidade dos tribunais é, em geral, bastante baixa. As experiências com os tribunais deixam em geral um gosto amargo de insatisfação e, como também detectámos no inquérito, predominam as visões negativas da justiça. O outro indicador da eficiência é a morosidade. Em 1993, isto sucedeu com: 60% das acções relativas a acidentes de viação; 54,9% das acções de despejo rústico; 58,6% das acções de responsabilidade por outros factos ilícitos; 57,6% das acções de propriedade e posse; 61,3% das acções de filiação; 53,2% das acções de sucessões; 48,3% dos despejos urbanos. Estes tipos de acções são também aqueles em que percentualmente maior número de acções duraram mais de 5 anos. Como a grande maioria destes tipos de acções são aquelas em que os cidadãos mais mobilizam os tribunais, não surpreende que seja a partir da experiência social que estas percentagens reflectem que se constrói a percepção e a avaliação da morosidade dos tribunais. Em termos gerais, a justiça portuguesa parece ser uma das mais morosas da Europa. Através da análise minuciosa de processos e de secções judiciais identificámos um vasto elenco de causas da morosidade: más condições e ambiente de trabalho, irracionalidade na distribuição de magistrados e de funcionários judiciais, impreparação ou negligência de magistrados e de funcionários, volume de trabalho, recursos a peritos e outros técnicos cujo trabalho não é controlado pelos tribunais, cumprimento das cartas precatórias e rogatórias. Verificámos ainda que estas causas actuam sistematicamente, em feedback, e de tal maneira que uma intervenção sobre uma ou algumas delas pode ter um impacto negativo nas restantes, produzindo efeitos de transferência, potenciação, acumulação e desculpabilização susceptíveis de agravar ainda mais a morosidade.” “Quanto aos cidadãos, a procura da tutela judicial é mais dispersa mas é mesmo assim selectiva e de nível baixo. Concentra-se nas acções de divórcio e demais acções referentes ao espaço doméstico, nas acções de despejo, nas acções de responsabilidade civil por acidentes de viação e nas acções de direitos de propriedade. Estão ausentes acções que pudessem indiciar uma procura intensiva da garantia judicial dos direitos, mesmo dos direitos da primeira geração – o direito à privacidade, ao direito de associação e ao direito à informação – para não falar dos direitos da segunda e da terceira geração, do direito à educação, à saúde e à segurança social, aos direitos de protecção do consumo, do meio ambiente e da qualidade de vida. O juízo de adequação está intimamente relacionado com o juízo de acessibilidade, ou seja, com uma análise custo/benefício.” Desempenhos muito desiguais por partes dos magistrados, por vezes em funções no mesmo tribunal. As desigualdades não têm outro motivo senão a diferente diligência ou competência dos magistrados ou dos funcionários em causa. Mediatizados, os magistrados emergem da sombra apagada e discreta dos seu silêncio antigo e passam, alguns, a tomar-se por “estrelas” (“stars”) num protagonismo espectacular 53 do seu “ego” agora inflacionado face aos olhos das câmaras. E, ainda mais perturbante é que, a mais das vezes, são projectados pelos “media” como caçadores de cabeças... ... A sua porventura excessiva juventude, com a decorrente impreparação, inexperiência e carência de traquejo e “senso comum”, dito “bom senso”, leva-os, alguns deles, perante o ritmo galopante e enxundioso dos processos, a uma “fuga pr'a frente”, a uma lógica determinante de pôr fim às acções, de pôr o serviço em dia, de “matar os processos”, custe o que custar. Vai daí que se debrucem mais nos processos de solução mais simples e expedita, como os das ditas cobranças, aliviando a secretária, e remetendo para melhores dias a solução das questões mais complexas embora de maior relevo na vida dos cidadãos e da própria sociedade. Vai daí, também, que a humildade, paciente e reflexiva, da sabedoria de quem tem de decidir (trancher) sobre dúvidas, máscaras e perplexidades venha dar, quantas vezes, assento à sobranceria, ao olimpismo, à auto-suficiência, quando não à arrogância como modo e expediente de tratar e despachar. (Digo-o com as reservas de quem não tem a prática da experiência como um atributo decisório primeiro pois, parafraseando Brito Camacho, se assim fosse, o burro que anda toda a vida à volta da nora teria inventado a geometria... ...) Ao fim e ao cabo, muito, depressa e bem não há quem. “Mea culpa”. Perdoem-me, por quem são, não ter tido tempo nem talento para fazer mais curto e melhor. 54 Evolução do Crédito Mal Parado nas Empresas Não Financeiras Dr. Luís Faria* Orador As expectativas que o tema naturalmente suscita, poderão não ser aqui plenamente correspondidas. É que são muito escassos os dados estatísticos disponíveis e relevantes que permitam fundamentar uma análise mais rigorosa do assunto.1 Aqui identificaremos o crédito mal-parado como o crédito concedido pelo sistema bancário que, tendo entrado em mora, passou à categoria de crédito de cobrança duvidosa. Seria interessante relacionar o crédito de cobrança duvidosa concedido pelo sistema bancário com as dívidas de clientes às empresas, o que poderia abrir pistas quanto à responsabilidade do primeiro sobre o segundo. Num contexto em que o sistema judicial ou funciona mal ou não funciona, constatação que, tendo-se tornado recorrente, nem por isso inspirou quaisquer melhorias, talvez porque o próprio Estado dispõe de meios poderosos para garantir as suas receitas, as empresas ficam colocadas perante gravíssimos problemas financeiros, resultantes de créditos não resolvidos num mercado em que se generalizou a impunidade do incumprimento. Passemos aos dados disponíveis. Da sua leitura resulta uma primeira constatação: nos três últimos anos o crédito concedido às empresas não financeiras registou um crescimento deveras significativo (cerca de 50 por cento), passando de 5.230 milhões de contos em Dezembro de 1996 para 7.833 milhões no final do mesmo mês de 1998. Já em Fevereiro deste ano atingiu praticamente os oito mil milhões de contos. Ao longo daquele período, o crédito de cobrança duvidosa diminuiu em percentagem do crédito total concedido. Representava 6,4 por cento da totalidade do crédito no final de 1997 (tomando como referência os saldos em final de período), enquanto já só correspondia a 4,7 por cento daquele crédito em Dezembro de 1998, sofrendo uma nova redução de 0,2 pontos percentuais nos dois primeiros meses do corrente ano. Aparentemente, esta evolução positiva decorre da baixa sustentada das taxas de juro e, em consequência, da maior capacidade que as empresas têm para poder fazer face aos compromissos financeiros. Coincide também com a fase ascendente do ciclo económico, expressa nas boas taxas de crescimento da economia ao longo do período em análise. O produto interno que registara, em 1995, uma taxa de crescimento de 2,4 por cento, atingiu em 1996 um crescimento de 3,6 por cento, em 1997 de quatro por cento e em * Secretário Geral da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal – CCP. Não posso deixar de expressar publicamente o meu agradecimento à Central de Balanços do BPA e, em particular, ao Sr. Dr. António Almeida, sem cujo auxílio este trabalho seria de todo inviável. 1 55 1998 acima deste último valor. Também a procura interna registou uma evolução extremamente positiva ao longo do período. Numa análise por sectores deve referir-se que o comércio (englobando o comércio por grosso e a retalho e a reparação de veículos e outros bens) é o principal cliente do sistema bancário. O crédito concedido ao sector no final de Dezembro atingiu os 2.028 milhões de contos. Seguem-se a indústria transformadora com 1.858 milhões de contos de crédito concedido naquela data, a construção, com 1.321 milhões de contos e o sector dos serviços e imobiliário com 1.314 milhões de contos. Estas áreas de negócios absorvem assim mais de 80 por cento do crédito total concedido às empresas não financeiras, e será nelas que centraremos a nossa atenção. É a indústria transformadora o sector que apresenta maior volume de crédito de cobrança duvidosa, tendo superado, no final de 1998, os 147 milhões de contos, valor que corresponde a oito por cento do crédito concedido e se situa muito acima do peso do mal-parado sobre o crédito total concedido, que se fixa em 4,7 por cento. Mesmo assim é de referir que o peso do crédito de cobrança duvidosa sobre o crédito total diminuiu no sector, atendendo a que em 1997 atingia praticamente os 10 por cento. Particularmente significativa é a redução do crédito mal-parado na construção. O seu peso sobre o crédito concedido diminuiu de 7,8 por cento em 1997 para 4,1 por cento em 1998, o que estará relacionado com o período de crescimento que o sector atravessou, em linha com o crescimento da economia. O sector dos serviços é o que apresenta menor mora. Em 1997, dos cerca de mil milhões de contos de crédito atribuído apenas pouco mais de 30 milhões, ou seja, 2,9 por cento, era considerado de cobrança duvidosa. Em 1998 apenas dois por cento poderia ser considerado mal-parado. Quanto ao comércio, o sector que apresenta maior endividamento, do saldo de 1.670 milhões de contos de crédito concedido registado no final de 1998, cerca de 5,6 por cento era considerado de cobrança duvidosa. A capacidade das empresas do sector para corresponderem aos compromissos nos prazos de vencimento melhorou no último ano, passando o mal-parado a corresponder a apenas 4,4 por cento do crédito concedido. A leitura destes valores apenas nos permite concluir que o crescimento da economia a bom ritmo, acompanhado por uma baixa sustentada das taxas de juro, levaram as empresas a recorrer mais ao crédito e a mostrar maior facilidade para honrar os seus compromissos. Mais importante, no entanto, é examinar as finalidades do crédito concedido e as suas maturidades, bem como conhecer a sua partição pelo tecido empresarial em função da dimensão dos activos e de outros indicadores sobre os quais assenta a análise de risco. Escasseiam, como indicámos, elementos que permitam uma análise mais fina da matéria. Procuraremos apesar de tudo, formular algumas hipóteses de explicação. 56 Apenas uma pequena parcela do crédito concedido às empresas é orientado para o investimento, finalidade que usualmente coincide com maturidades mais longas e com taxas de juro mais baixas. No período em análise (1996-1999) o crédito ao investimento representou entre 24 e 25 por cento do crédito total concedido pelo sistema bancário às empresas. A esmagadora maioria desse crédito destinou-se a «outros fins» não especificados. É no sector dos serviços e do imobiliário que o peso do crédito afecto ao investimento é maior: mais de 35 por cento em 1997 e mais de 34 por cento em 1998. Segue-se a construção. Dos cerca de 1.300 milhões de contos de crédito concedido no último ano, 342 milhões de contos, ou seja, 26 por cento, foi afecto ao investimento. Os sectores da indústria transformadora e do comércio apresentam praticamente a mesma situação no que respeita ao peso do investimento no conjunto do crédito (cerca de 21 por cento). Verifica-se mesmo uma tendência para uma ligeira perda de importância do investimento no conjunto do crédito contratado. Apesar da fraca presença do investimento na orientação do crédito, acentua-se ligeiramente a tendência para as empresas recorrerem mais ao financiamento a médio e longo prazo. Com efeito, ainda que mais de 60 por cento das empresas apresentem rácios de cobertura do investimento superiores à unidade, o seu número vem decrescendo sensivelmente, com excepção do sector do comércio, com mais de 70 por cento das empresas a sustentarem o investimento com recursos próprios. Interessará pois associar a esta tendência uma outra que tem a ver com o facto de serem as empresas que apresentam maior crescimento de produção as que mais progridem em perfil de risco. As taxas de crescimento mais elevadas são registadas por um número reduzido de empresas e são também poucas as empresas que concentram o volume total de investimento. As dívidas às instituições de crédito, tendo aumentado nos três últimos anos o seu peso no passivo das empresas, como o comprova o aumento do crédito concedido em termos reais, registaram taxas de crescimento desiguais consoante as maturidades. Isto significa que o recurso ao crédito a médio e longo prazo, tendo embora aumentado, cresceu abaixo do recurso ao crédito a curto prazo. É na industria transformadora que o peso das dívidas de curto prazo sobre o total do balanço tem uma expressão mais significativa (6%, em média, em 1998). Foi também neste sector, logo seguido pelo do comércio, que se registou um maior crescimento dos empréstimos de curto prazo. Paralelamente é sintomático verificar que em qualquer destes sectores o peso do passivo a curto prazo sobre o total do balanço evoluiu naquele período de forma consistente. 57 O que quer dizer que aumentou a dependência ao sistema bancário e emagreceu o recurso a outras fontes de financiamento tradicionalmente importantes como os fornecedores. Assim, frisamos, se o peso do passivo de curto prazo sobre o total do balanço se reduziu em todos os sectores, o peso do endividamento bancário de curto prazo aumentou muito acima do ritmo de crescimento do quociente entre o endividamento de médio e longo prazo e o total do valor patrimonial das empresas. Na indústria transformadora o peso do endividamento de curto prazo sobre o total do balanço passou de 3,3% em 1996 para 6% em 1998, ou seja, praticamente duplicou. Já o rácio que confronta o endividamento a médio e longo prazo como o total do balanço passou de 12,4 para 15,2% um crescimento quase 4 vezes inferior. Também no comércio, construção e serviços o peso do endividamento a curto prazo sobre o total do balanço aumentou em mais de 50%, também muito acima da expressão sobre o total do passivo dos empréstimos contratados a prazos mais longos. Vão desculpar-me a aridez destes dados, mas parece-me indispensável tê-los presentes para daí retirar algumas ilações: – desde logo, as empresas, de acordo com os critérios de avaliação dos bancos, que tomam em conta um conjunto de indicadores, com relevo para a autonomia financeira, encontram-se mais expostas ao risco e, em consequência, a taxas de juro mais elevadas, em resultado do aumento do peso de endividamento de curto prazo sobre o total do balanço. – Em segundo lugar, encontrando-se mais dependentes do financiamento bancário, ficam mais vulneráveis à subida das taxas de juro, até porque tudo leva a crer que os seus resultados estão cada vez mais apoiados na evolução dos encargos financeiros. – Estes dois factores conjugados, exposição ao risco e dependência de recursos alheios, poderão conduzir, por um lado, à orientação para investimentos cujas rentabilidade compensem o prémio de risco e, por conseguinte, também eles investimentos implicando maior risco. Por outra parte, os encargos suportados pelo financiamento de curto prazo são naturalmente superiores aos resultantes de empréstimos com prazos mais longos, o que também acaba por piorar a situação de risco. Tudo indica pois que, numa fase menos favorável do ciclo económico e face a um cenário, já presente, de intensificação da concorrência decorrente do processo de integração na União Económica e Monetária, muitas empresas poderão sentir sérias dificuldades em cumprir os seus compromissos. Aqui chegados, não podemos deixar de chamar a atenção para a necessidade de remover alguns constrangimentos de natureza estrutural que afectam o financiamento das empresas. 58 Estes têm a ver, em larga medida, com a pressão fiscal e sobretudo com a pressão fiscal sobre a gestão financeira de tesouraria, o que, quanto a nós, explica em boa parte o crescente recurso ao endividamento de curto prazo. Um dos problemas que se colocam às empresas está relacionado com o desfasamento entre os prazos médios de pagamento/recebimento (PMP) e os prazos de liquidação das obrigações fiscais e para-fiscais. É extremamente difícil conciliar a liquidação do IVA a 45 dias com prazos de recebimento de clientes que excedem os 60 dias. Não se pode devolver o que ainda se não recebeu! A solução passará por disciplinar os prazos médios de pagamento e para tanto contribuirá uma Directiva comunitária em vias de transposição para o nosso normativo jurídico. Mesmo assim subsistirão duas questões por resolver: uma prende-se com a celeridade e o funcionamento do sistema judicial; a outra com a própria natureza da relação comercial. Já hoje a aplicação das taxas de juro de mora legais podem quebrar uma relação comercial e prejudicar deste modo o volume de produção. Uma das formas de libertar as empresas do sufoco quotidiano de tesouraria passaria por fazer coincidir a liquidação do IVA com a efectiva cobrança da factura que o origina, pelo menos para as empresas de menor dimensão, que apresentam uma estrutura financeira mais vulnerável e se encontram mais expostas ao risco. Também os custos para-fiscais sobre a mão-de-obra (34,75 por cento do custo básico do factor trabalho) dificultam muito a gestão financeira das empresas. Por isso mesmo o Conselho Europeu propôs uma Directiva que abre a possibilidade de aplicação, por um período experimental, de uma taxa reduzida de IVA aos serviços com grande intensidade do factor trabalho. Estamos convencidos que o incumprimento das obrigações fiscais geradas pela pressão sobre as tesourarias agrava ainda mais a saúde financeira das empresas e coloca-as num círculo infernal de endividamento. A taxa de juro de mora encontra-se, pelo menos, tomando como boa uma taxa de juro de oito por cento para operações de curto prazo, quatro pontos percentuais acima do mercado bancário. Ao que acresce uma taxa de juros compensatórios de sete por cento e coimas por atraso de entrega de declarações fiscais, sem dolo, que podem passar dos 850 contos. O reforço dos recursos próprios ou do investimento através de suprimentos dos sócios não escapa à tributação, o que condiciona o autofinanciamento. Assim, a descida das taxas de juro por atraso no cumprimento das obrigações fiscais parece também constituir uma condição para melhorar quer a estrutura financeira quer o perfil de risco das empresas, os dois factores que decidem afinal as suas possibilidades de pagar nos respectivos vencimentos o endividamento contraído. 59 Em resumo, alguns sinais positivos relacionados com o maior recurso das empresas ao crédito bancário, particularmente importante nos prazos mais longos e decorrentes da descida das taxas de juro, da maior competitividade do sistema bancário e do ciclo económico, bem como com a sua maior capacidade para cumprir os compromissos assumidos não afasta algumas preocupações. Estas virão ao de cima quando a fase do ciclo económico for outra e quando também forem mais evidentes as debilidades e constrangimentos que afectam a sua estrutura financeira. 60 Aspectos Sociais 61 A Concentração e a Selectividade da Litigância Dr. Armindo Ribeiro Mendes* Orador I. Introdução ao Tema 1. O Conselho Económico e Social, “órgão de consulta e concertação no domínio das políticas económica e social” – tal como é definido pelo artigo 92.º, n.º 1, de Constituição da República – tomou o encargo de convocar o tema da Justiça para debate no presente Colóquio. Coube-me a mim abordar o tema da concentração e da selectividade da litigância. Por opção própria, circunscreverei o tema ao processo civil, atendendo a que muitos outros oradores terão ocasião de abordar aspectos ligados à justiça laboral, à justiça criminal, à organização judiciária e ao comportamento das profissões forenses. Naturalmente que não se espera neste contexto uma descrição de instituições processuais, uma análise dogmática do processo civil, uma inventariação exaustiva de soluções e correntes jurisprudenciais na aplicação forense dos institutos de direito civil ou de direito comercial. No domínio das políticas económica e social, a Justiça em Portugal há-de ser encarada no mundo do “ser” e não no mundo do “dever ser”, para recorrer às velhas categorias Kantianas que a Escola Sudocidental Alemã da Filosofia do Direito trouxe no início do século para a formação universitária dos juristas. Este mundo do “ser” é bem conhecido dos sociólogos e dos economistas que se debruçam sobre a actividade judiciária, mas é também familiar aos chefes de empresas que se confrontam diariamente com os aspectos idiossincráticos do mundo judiciário e, necessariamente, aos profissionais do foro que convivem intimamente com o arrastar dos processos judiciais, com as particularidades dos articulados, requerimentos, decisões e recursos, e com as dificuldades dos processos de execução, de recuperação de empresas ou falimentares. 2. Os estudos da litigância como fenómeno social têm sido cultivados nos últimos dois séculos pelos Historiadores, em especial os Historiadores do Direito Como refere ANTÓNIO HESPANHA, esses estudos históricos são, por regra, conduzidos a nível local, em certas comunidades menores (senhorios, cidades, etc.), sendo possível, através da análise dos documentos forenses guardados em arquivos históricos, “responder a questões genéricas de sociologia jurídica e judiciária, nível de litigância, sua distribuição por temas, repartição dos litigantes por estratos sociais ou por proveniência regional, duração e custo do processo, grau de participação de * Advogado. 62 letrados, etc. Pela consideração de todos estes elementos, podem avançar os estudos relativos à génese da litigância e seus factores”1. 3. A perspectiva micro-histórica contribui seguramente para substanciar as intuições dos sociólogos do Direito e dos observadores sociais. Recorrendo ainda ao testemunho de ANTÓNIO HESPANHA, bem pode invocar-se o conhecimento “do mundo aldeão e camponês dos anos sessenta deste século” para a consciencialização de que a vida política e jurídica oficial tinha – e, porventura, ainda tem – um indesmentível “carácter urbano e letrado”: por isso, este Historiador recorda a sua experiência de vida numa zona rural do litoral centro de Portugal, nos anos cinquenta e sessenta, para concluir que “a presença, aí, do direito estadual era mínima: os contratos (mesmo sobre imóveis) eram geralmente verbais, as relações familiares e laborais repousavam em usos locais e os conflitos aí surgidos eram resolvidos dentro da comunidade, a pequena criminalidade era reprimida pelos próprios ofendidos ou pelo “regedor”, a grande criminalidade não existia. As intervenções extra-comunitárias reduziam-se a uns quantos actos fiscais e de polícia (pagamento de impostos, “sortes” militares, manifesto dos vinhos, licença da bicicleta e, às vezes, o licenciamento das obras)”2. Não se estava, por isso, tão longe, no Portugal salazarista, das sociedades dualistas legadas pelo Ancien Régime, em que só uma parte, francamente minoritária, vivia “à sombra do direito escrito oficial, que a lei começa a hegemonizar a partir da luta iluminista contra o direito doutrinal-judiciário, hegemonia ainda reforçada com a codificação dos finais do século XVIII, e inícios do XIX”3, ao passo que a grande maioria estava imune a esse direito legal e oficial. 4. Parece-me evidente que nos últimos vinte e cinco anos da nossa História Contemporânea, o País tem sido atraído crescentemente pelo modelo capitalista avançado que é adoptado não só pelos Estados Unidos da América e pelo Japão, como pelos países mais desenvolvidos da Europa Comunitária. AUGUSTINA BESSA LUÍS, com o seu olhar penetrante sobre as comunidades rurais do Norte litoral, mostra em alguns dos seus romances como as experiências da emigração e da guerra colonial, aliadas à popularização da televisão, contribuíram para diminuir os particularismos dessas comunidades e para aproximá-las das modas uniformizadoras que já se haviam instalado nas grandes cidades. Ora, naturalmente, no final do século XX, a litigância dos portuguesas acompanha a evolução económica e social, o crescimento económico, a expansão do crédito e do consumo, criando oportunidades de emprego para juristas que procuram o acesso à Magistratura, ou que iniciam a profissão liberal por excelência que é a advocacia. Mas também as empresas de grande ou média dimensão recrutam juristas para os seus contenciosos, aparecendo-nos os advogados de empresa, empregados que asseguram a representação judiciária da entidade patronal. 1 Justiça e Litigiosidade, História e Prospectiva, Lisboa, sem data, pág. 44. Justiça, cit., pág. 17. 3 Justiça, cit. Pág. 17. 2 63 Assim, como a boa moeda expulsa a má moeda, também o “bom” direito legislado expulsa os antigos usos e as normas consuetudinárias, o “mau” direito dos tempos antigos, pré-capitalistas e rurais. Não há mais lugar à intervenção de autoridades mais ou menos fácticas, locais, como o velho regedor, o cabo da GNR ou o contemporâneo presidente da junta de freguesia, não obstante periodicamente os textos constitucionais e legais reafirmarem a possibilidade de constituição de julgados de paz. Os tribunais estaduais, empanturrados de processos, aguardam a mirífica reforma que os faça emagrecer e voltar às dimensões anteriores a 25 de Abril de 1974. A dura realidade, porém, impede que os tempos voltem para trás. II. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português 5. Há apenas três anos, foi publicado em livro o primeiro grande estudo de conjunto sobre os tribunais portugueses. Sob a égide de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, com o patrocínio do Ministério da Justiça, foi levada a cabo uma investigação detalhada sobre a evolução dos tribunais portugueses, os paradigmas organizacionais, a evolução quantitativa da litigância, a análise comportamental dos cidadãos face à justiça cível e criminal, as representações sociais sobre o estatuto e as tarefas cometidas às profissões forenses. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, JOÃO PEDROSA e PEDRO LOPES FERREIRA analisam com rigor a evolução dos padrões de litigação nos países semi-periféricos e nos países evoluídos de capitalismo avançado, pondo em destaque que não só “a luta pela independência do sistema e do poder judicial é sempre, apesar das variações infinitas, uma luta precária na medida em que ocorre no contexto de algumas dependências robustas do sistema judicial em relação ao Executivo e ao Legislativo”, como também a luta pela independência do poder judicial depende sempre do desempenho efectivo dos tribunais, o qual “permite uma enorme variação interna e só quando ele se traduz em exercícios susceptíveis de ampliar a visibilidade social ou o protagonismo político para além dos limites convencionados e convencionais é que a independência judicial se transforma numa luta política de primeira grandeza”4 6. Como atrás se deixou dito, a Justiça cível constitui, de forma restrita, o objecto do nosso tema, pelo que não nos situaremos no plano dos “macro-factores” que caracterizam o nosso sistema judiciário, como um todo, face a outros sistemas judiciários de países próximos. É antes no plano dos “micro-factores”, de natureza económica e sociológica, que importa ancorar as nossas observações. A procura efectiva do sistema judicial cível é, como põem em destaque os investigadores que levaram a cabo o estudo referido, determinado pelo número de 4 Boaventura de Sousa Santos e outros, Os Tribunais Nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português, Lisboa, 1996, pág. 42. 64 processos entrados num certo período temporal, ao passo que a oferta do sistema judiciário, enquanto indicador da capacidade de resposta do sistema, se afere pelo número de processos findos em certo período temporal (um ano; uma década, etc.). A pendência processual constitui o índice da ineficiência do sistema, isto é, da procura da justiça ainda não satisfeita. E neste domínio analítico que poderemos contrapor, na litigação das empresas – que são, em regra, litigantes repetitivos (repeat players) – os fenómenos de selectividade e de concentração. No que toca à litigação dos particulares, em regra, não se põem problemas de concentração de litigância, visto estarmos na presença de litigantes esporádicos ou ocasionais (one shot players). 7. No estudo levado a cabo pela equipa de investigação liderada por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, no que toca à litigação cível, analisa-se um período de cinquenta anos (1942-1993) relativamente a quatro tipos de processos: as acções declarativas, as acções executivas, os processos de liquidação de patrimónios e inventários. Destes quatro tipos de processo, importam-nos, no essencial, os dois primeiros. Nas acções declarativas, em 1942 haviam terminado 15041 processos, representando 36,9% do total das acções cíveis. Em 1993, o número de acções declarativas findas quase que decuplicara (139.212, representando 56,6% do total). Em contrapartida, no que toca as acções executivas findas, a variação percentual não foi tão acentuada (em 1942, as acções executivas representavam 27,9% do total; em 1993, 34,7%). A análise desta longa série de valores estatísticos mostra que é a partir de 1981 que tem lugar o crescimento mais acentuado de litigação cível no nosso País. Todavia, como acentuam os investigadores no estudo citado, verifica-se que, “apesar das variações quantitativas acentuadas de algumas acções, a composição básica da litigação cível é sensivelmente a mesma ao longo dos últimos 50 anos” 5. Em 1993, as acções de responsabilidade civil contratual por dívidas, de natureza declarativa, “são de longe a principal acção declarativa, representando 65,2% do total das acções declarativas findas”6. Aí se encontram as dívidas civis e comerciais, os preços das prestações de serviços, os prémios de seguros e os débitos a hospitais públicos. 8. Pode dizer-se que a evolução subsequente – tanto quanto se pode retirar das Estatísticas de Justiça entretanto publicadas e que abrangem já o ano de 1997 – continua a preencher o mesmo padrão. As acções declarativas findas que têm por objecto as dívidas civis e comerciais são de longe o conjunto mais numeroso e em ascensão acentuada: em 1992, atingiam 80.125, em 1993 cresciam 15% (90744), em 1994 passavam para 95880, em 1995 ultrapassavam a “barreira psicológica” de 100.000 (103.794), subindo no ano subsequente para 117.647, para passarem a 121.380 em 1997 (último número 5 Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas, cit., pág. 127. 65 disponível). Comparando esta evolução com o número de processos de divórcio e de separação de bens, logo ressalta que estes últimos se situam na faixa dos 15.000, tendo o número de 1997 ficado abaixo do de 1994 (14.003 contra 16.420). A mesma evolução, praticamente a estagnação com ligeira tendência decrescente, se verifica nas acções de despejo de arrendamentos urbanos (7411 em 1992; 7188 de acções de despejo findas em 1997). No domínio das acções executivas, avultam dois grupos: o das dívidas civis e comerciais, por um lado, o das execuções por custas do outro. Simplesmente, quanto ao primeiro grupo assiste-se a um acentuado crescimento (30473 acções executivas findas em 1992: 53.551 em 1997), ao passo que, no segundo, a evolução é inversa (30.586 em 1992; 46.754 em 1994; 22.740, em 1995, 23.622 em 1996 e 24.792 em 1997. As execuções por prémios de seguro mantêm-se estáveis nos últimos 6 anos, à volta das 6000/6500 acções findas (com um pico em 1996, 8.149). A alteração legislativa sobrevinda em 1992, explica o súbito crescimento das execuções por dívidas hospitalares a partir de 1993, quadriplicando o seu número em 1994. Em 1997, as execuções por dívidas hospitalares findas representam cerca de 4 vezes mais do que o número de 1993 (5071 contra 1380)7. 9. Procurando olhar mais de perto a distribuição das acções consoante o tipo de autor e o tipo de réu, verifica-se que os autores das acções declarativas cíveis são maioritariamente pessoas colectivas, potenciais repeat players. Em contrapartida, os demandados pessoas singulares atingem uma percentagem mais elevada no total, cerca de 75%. É o que resulta da investigação da equipa de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, não havendo razões para supor que, de 1993 para cá, esses dados se hajam alterado 8. Em Portugal, parece razoável afirmar que não existe propriamente uma “sociedade litigiosa” – como se tem sustentado que existe, por exemplo, nos Estados Unidos da América, embora com vozes discrepantes, num debate que tem percorrido as duas últimas décadas – ocorrendo diversamente um generalizado recurso aos tribunais para cobrança de dívidas civis e comerciais, embora esse recurso se possa explicar por uma multiplicidade de factores, a grande maioria dos quais tem a ver com razões de natureza institucional, como é o caso das exigências da lei fiscal para utilização de provisões para créditos incobráveis. Por isso, a concentração da litigância das pessoas colectivas opera-se nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e no Porto, onde se acham os dois centros económicos mais importantes do País e onde têm sede ou estabelecimento principal as principais sociedades comerciais e entes públicos da Administração Económica do Estado. Quando está em causa a competência dos tribunais determinada pelo domicílio dos réus, 6 Ob cit., pág. 132. Estatísticas da Justiça – ano de 1997, publicação compilada pelo GEP do Ministério da Justiça, Lisboa, 1998, págs. 39 e segs. 8 Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas cit., pág. 138. 7 66 a litigância concentra-se nas comarcas do litoral industrializado, com especial relevância para as comarcas de Braga, Aveiro, Coimbra, Viseu e Faro, ou para as comarcas das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. Nos últimos cinquenta anos (1942-1993), o crescimento ponderado de acções cíveis pela população é mais acentuado nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, em especial nesta última, e no Algarve, sendo certo que o aumento no volume de acções cíveis na Região do Minho e Douro Litoral foi parcialmente absorvido pela variação positiva da população 9. 10. Importará, em seguida, concentrar a nossa atenção na litigância com origem nas empresas, em que são pessoas colectivas – normalmente, sociedades comerciais – as demandantes, que procuram os tribunais para realização de certos objectos empresariais, antes de tudo a recuperação dos seus créditos. Será neste segmento dos litigantes que poderemos observar os fenómenos de concentração e de selectividade da litigância. III. Concentração e Selectividade da Litigância em Portugal 11. Os sociólogos do Direito e outros analistas sociais põem em relevo que a chamada pirâmide de litigiosidade em qualquer comunidade politicamente organizada parte de uma base constituída por todas as situações litigiosas que ocorrem na vida social e que se reconduzem a relações sociais de carácter conflitual, em que ocorrem potencialmente lesões de bens ou interesses jurídicos de uma das partes da relação. O recurso aos tribunais aparece-nos no topo da pirâmide, embora nem todos os casos de recurso aos tribunais terminem num julgamento com emissão de uma sentença susceptível de ser executada (bastará pensar nas frequentes desistências negociadas). Numa investigação a partir de uma análise empírica de dados estatísticos e de casos concretos, é possível detectar fenómenos de concentração de litigância e da selectividade desta. 12. Antes de mais, a concentração da litigância quando esta última atinge os tribunais. Já atrás se aludiu a fenómenos de concentração geográfica da litigância, sabendo-se que as acções cíveis de dívida e as execuções cíveis de dívida (na terminologia do processo civil, execuções para pagamento de quantia certa) são intentadas em proporção esmagadora nos tribunais das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. Como se refere na obra Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: o Caso Português, “verifica-se que os grupos de acções mais importantes a nível nacional se mantêm basicamente nas diferentes regiões, mas varia de forma significativa em algumas regiões, o peso de cada um deles. Não só é diferente o seu peso relativo dentro da região, mas sobretudo o número de acções por 10 mil habitantes. As acções de dívidas (com excepção das hospitalares), os divórcios e as separações por mútuo 9 ) Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas cit., pág. 127. Deve notar-se que, nesta aprofundada pesquisa, os autores consideram 8 regiões “judiciárias” no continente português: Trás-os-Montes, Minho e Douro Litoral, Área Metropolitana do Porto, Beira Interior, Beira Litoral e Estremadura, Área Metropolitana de Lisboa, Alentejo e Algarve. 67 consentimento e litigiosas, as acções de família e os despejos urbanos concentram-se no litoral urbano, enquanto as acções de sucessões, filiação, despejo rústico e propriedade têm maior peso relativo no interior rural. Estabelece-se, assim, uma fronteira clara entre o país rural e o país urbano”. Em termos de concentração geográfica é extremamente curioso verificar como a litigância em matéria de acções de responsabilidade civil por danos ocorridos em acidentes de viação (ou em pedidos cíveis formulados nos correspondentes processos crimes) se distribui nos tribunais do litoral, nas comarcas territorialmente competentes em função do lugar de ocorrência do acidente, ao longo dos eixos viários mais importantes e com maior volume de tráfego. É, assim, que as comarcas de Grândola, Ferreira do Alentejo e de Ourique destoam no conjunto das comarcas do Alentejo, visto abrangerem troços perigosos da via rápida que conduz ao Algarve, não obstante o Alentejo ser a região do País em que a sinistralidade em matéria de acidentes de viação é mais baixa. Um outro fenómeno curioso é o da concentração das acções de dívida em Lisboa e Porto. Continua a ser válida, pela consulta das Estatísticas de Justiça referentes a 1997, a regra de que a maior parte dos litígios que chega a tribunal é de valor económico, real ou aparente, reduzido, como se demonstrava na pesquisa da equipa de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS. Em 1993, cerca de metade das acções de dívida tinha valor igual ou inferior a 250 contos (na altura, metade da alçada dos tribunais de primeira instância). Como estes investigadores notam, nas acções de dívida uma percentagem significativa é intentada por um grupo restrito de empresas (bancos; seguradoras; outras sociedades financeiras, exploradoras de redes telefónicas, etc.), razão por que essas acções, embora de valor reduzido consideradas atomisticamente, se integram num conjunto vasto, em que “o valor da litigação e a decisão de litigar é considerado globalmente para um conjunto de litígios e não separadamente para cada um deles”. O exemplo das injunções é especialmente significativo. No final de 1993, foi criado um novo procedimento de cobrança que visava a obtenção, “de forma célere e simplificada” de um título executivo, na linha de soluções idênticas adoptadas na Alemanha e em outros Estados do norte da Europa (Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro). A inovação, porém, nasceu sob um mau signo, tendo sido recebida com hostilidade pelos juízes, muitos dos quais viam na intervenção do secretário judicial, prevista no diploma, para aposição da fórmula executória uma usurpação de funções judiciais. Um número significativo de Juízes levou o seu preconceito corporativo até ao ponto de desaplicação do diploma com fundamento em inconstitucionalidade (jurisprudência unânime das Secções do Tribunal Constitucional viria a concluir, no entanto, no sentido da plena constitucionalidade da inovação). Não admira, por isso, que, durante os cerca de quatro anos em que vigorou o Decreto-Lei n.º 404/93, a adesão em todo o País ao procedimento fosse “inexpressiva” (cerca de 2.500 providências por ano). 68 Em 1998, o regime da injunção foi alterado, prevendo-se a utilização de meios informáticos para acelerar o procedimento adequado aos litígios de baixa densidade (Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro). A adesão ao novo regime na comarca de Lisboa – única em que se permitiu até agora a utilização de meios informáticos para formulação das injunções – pelos litigantes repetitivos (“grandes utilizadores”), em especial bancos e empresas seguradoras, constituiu um enorme êxito. Se, em Março de 1998 (antes do novo diploma), haviam sido distribuídos 1.026 injunções (três vezes mais do que no mês anterior), em Novembro de 1998 passava-se para 2.849, em Dezembro atingiam-se as 4.639, elevando-se o número em Março de 1999 até 8.763. De Novembro de 1998 a Abril de 1999 foram distribuídas 33.309 injunções na Comarca de Lisboa, sendo cerca de metade apresentada em suporte informático. Em Abril de 1999, 52% dos processos terminaram pela aposição da fórmula executória, ao passo que a notificação dos devedores se frustou em 35,9% dos casos. A oposição do devedor quedou-se pelos 1,9%, tendo havido 10,2% de desistências (processos pendentes em 1 de Abril de 1999 – 8.649; processos entrados no mês – 7.152, findos 7.296). Num universo de 33.309 injunções apresentadas entre 1 de Novembro de 1998 e 30 de Abril de 1999, cerca de 73% referiam-se a pedidos até 100 contos, 17,3% a pedidos entre 100 e 200 contos, reduzindo-se a 2,6% o número de injunções com pedidos superiores a 400 contos. O alargamento do tratamento informático das injunções ao Porto implicará seguramente um crescimento exponencial deste tipo de procedimento. 13. Através da expressão selectividade da litigância querem os sociólogos do Direito referir que os litigantes, em especial as empresas, tendem a diversificar o recurso aos tribunais na gestão dos seus negócios, empurrados por uma pluralidade de factores que “desarticularam os mecanismos de regulação anteriormente dominantes” – o aumento da concorrência, a internacionalização dos negócios, a especialização produtiva, o aumento de papel aos serviços de financiamento em certas economias, como a americana. O recurso a mediadores ou à arbitragem podem ser revelações dessa selectividade. A propositura de novos tipos de acções pode ser outra dessas revelações. Por outro lado, a selectividade pode resultar de medidas de política judiciária, como forma de influenciar o status quo. As medidas de intervenção jurídica são formas de engenharia social, visando certos resultados e procurando desincentivar formas de utilização dos tribunais tidas por socialmente inadequadas. A selectividade da litigância pode resultar de um bom desempenho do sistema judiciário, sentido pelos operadores judiciários, que leve a um recurso mais frequente aos tribunais. Parece ser o que sucede na Alemanha com o funcionamento dos tribunais, tido por relativamente célere, eficaz e economicamente comportável. Já em matéria falimentar, na Alemanha, ouviam-se frequentes queixas sobre a complexidade e morosidade das liquidações de empresas, o que motivou uma alteração da legislação 69 falimentar em 1998 com adopção de um modelo inspirado no Direito norte-americano da insolvency law 10. No caso português, voltamos de novo ao grande estudo da equipa de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: “ A selectividade e concentração do desempenho judicial verifica-se, não só no tipo de litígios judicializados, mas também no tipo de litigantes. Em geral, há um certo equilíbrio entre mobilizadores individuais (actores) e institucionais (pessoas colectivas), ainda que com uma ligeira vantagem para estes últimos. No entanto, em 1993, as acções que envolvem apenas indivíduos não são mais que 35,4% do total das acções declarativas findas. Nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, onde se concentram 64,6% das acções declarativas findas, as acções cujo autor foi uma pessoa colectiva representavam respectivamente 68 e 66% do total. Isto significa que, no sistema judicial português, os indivíduos apenas dominam como réus. Como autores, dominam as pessoas colectivas, basicamente as sociedades comerciais.”11 14. As conclusões deste estudo mantêm plena actualidade, bem podendo afirmar-se que o sistema judiciário cível, em Lisboa e no Porto, está “colonizado” pela cobrança de dívidas e, de facto, ao serviço de apenas algumas empresas, em especial as empresas do sector financeiro. Pode, por isso, falar-se de litigação de baixa intensidade social, ou litígios de contencioso reduzido. A experiência mostra, por isso, que a oposição deduzida pelos devedores nas acções e execuções de dívidas é estatisticamente baixa e, na esmagadora maioria dos casos, claramente improcedente, atingindo níveis de insucesso próximos dos 95%. Os devedores, quando deduzem oposição (contestação na acção declarativa; embargos de executado, nas acções executivas), fazem-no com meros intuitos dilatórios, procurando um acordo vantajoso ou que o pagamento se faça o mais tarde possível, com esperança de uma melhor conjuntura. IV. AS Reformas da Orgânica Judiciária, das Leis do Processo e de Outra Legislação no Sentido do Aumento de Eficácia do Sistema 10 Cfr. Gerhard Walter, Cinquanti Anni di Studi Sul Processo Civile in Germania: dal Costruttivismo all’Apertura Internazionale, in Revista di Diritto Processuale, ano 41 (1998), 1, pág. 51. Sobre a eficácia do processo civil alemão através de medidas de aceleração dos processos introduzidos em 1976, bastará referir que em 1980 iniciaram-se na antiga RFA 1,3 milhões de processos civis em 1.ª instância, ao passo que em 1993 esse número quase duplicou. A duração média desses processos no Amtsgericht é de 3 a 6 meses. 11 Os Tribunais cit., pág. 611. Cfr. ainda Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, págs. 25-26. 70 15. No final da década de oitenta, a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (de 1987) pretendeu importar para Portugal o modelo francês (acolhido na Alemanha e na Itália) de distinção entre tribunais colectivos da circunscrição e tribunais de comarca, tendencialmente singulares. A reforma da criação dos tribunais de círculo foi mal recebida pelos advogados e por parte da magistratura, teve uma execução relativamente lenta e acabou, porventura, por ir ao arrepio do debate europeu de eliminação dos tribunais colectivos em processo civil, do qual resultou a adopção de tribunais singulares ou monocráticos em Itália. O Governo do Partido Socialista pôs termo, na Lei de Organização dos Tribunais de 1999, aos tribunais de círculo, instituindo a dupla corregedoria (dois juízes de círculo, correspondentes aos antigos corregedores, para formarem o tribunal colectivo com o juiz da comarca). Todavia, a reforma ainda não entrada em vigor parece que só abrangerá, na prática, os tribunais colectivos criminais, sendo propósito do Governo reduzir drasticamente a intervenção dos tribunais colectivos, atendendo à possibilidade de registo da prova por gravação, tornando a intervenção dos colectivos dependente de requerimento de uma das partes em processo ordinário. 16. Nas conclusões dos Encontros de Bicesse, a propósito do tema “Economia Direito e Competitividade”, SÉRVULO CORREIA e DIOGO DE LUCENA sustentam a seguinte tese, relativamente ao sistema judiciário: “A justiça, como mecanismo de aplicação da lei, deve também ser encarada como um bem escasso, ou seja, um bem económico. Basta constatar que tem um custo, para esta afirmação ser auto-evidente. A recusa em tomar as devidas conclusões traz como consequência um desperdício dos recursos aplicados no sistema judicial, pois essa recusa impede de resolver, de forma racional, o problema inescapável do racionamento desse bem, usando-o onde é mais essencial. Isso significa não só a criação de mecanismos alternativos aos tribunais, que sejam mais baratos e expeditos, retirando a carga crescente que impende sobre estes, como pensar cuidadosamente o preço do acesso à justiça (…)”12. Esta recusa de banalização do acesso aos tribunais dirige-se, em primeira linha, ao conjunto das empresas financeiras que “colonizam” os tribunais com as suas acções e execuções de dívidas. Apesar de tudo, convém recordar que essas empresas financeiras pagam as taxas de justiça devidas, contribuindo para o equilíbrio financeiro do sistema judiciário, atendendo à elevada percentagem de actores que litiga com apoio judiciário ou que 12 Conclusões policopiadas, datadas de 15 de Maio de 1995. 71 deixa custas em dívida. Por outro lado, a garantia constitucional do acesso à justiça funciona como constrangimento a solução de aumento de custas relativamente aos litigantes repetitivos. 17. É curioso notar que o actual Governo tem procurado rentabilizar os serviços da Justiça, normalmente através de modificações de índole processual. Assim, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, faz-se alusão a uma reforma pontual do processo de execução para simplificar e abreviar “significativa parcela de execuções, as que têm por fim o pagamento de quantia certa até determinado valor”. E acrescenta-se: “não pode aceitar-se que a duração média das acções executivas continue a oscilar entre 18 meses em 1990 e 17 meses em 1996”. Por outro lado, o Governo vem denunciando a banalização e a degradação do sistema judiciário, o qual acaba por transformar-se quase num departamento de contencioso de certas instituições financeiras. No preâmbulo do último diploma que remodelou o regime das injunções, podem ler-se estas afirmações: “A instauração de acções de baixa densidade que tem crescentemente ocupado os tribunais, erigidos em órgãos para reconhecimento e cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores, está a causar efeitos perversos, que é inadiável contrariar. Na verdade, colocados, na prática, ao serviço de empresas que negoceiam com milhares de consumidores, os tribunais correm o risco de se converter, sobretudo nos grandes meios urbanos, em órgãos que são meras extensões dessas empresas, com o que se postergam decisões, em tempo útil, que interessam aos cidadãos, fonte legitimadora do poder soberano. Acresce, como já alguém observou, que, a par de um aumento explosivo da litigiosidade, esta se torna repetitiva, rotineira, indutora da “funcionalização” dos magistrados, que gastam o seu tempo e as suas aptidões técnicas na prolação mecânica de despachos e sentenças.” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro). Se o diagnóstico se pode ter como consensual, o remédio apontado pelo legislador parece algo “moralista”, se não mesmo um voto piedoso, e desenraizado de uma realidade que é comum, pelo menos, a todos os Estados-membros da União Europeia: “É impossível uma melhoria do sistema sem se atacarem a montante as causas que o asfixiam, de que se destaca a concessão indiscriminada de crédito, sem averiguação da solvabilidade daqueles a quem é concedido.” No mesmo preâmbulo, apontam-se soluções que passem por “vias de desjudicialização consensual de certos tipos de litígio”, mostrando-se que o aumento de 72 distribuição verificado nos tribunais de pequena instância cível de Lisboa subiu de 46.760 processos em 1995 para 88.523 em 1997, isto é, quase duplicou em dois anos. A descompressão do sistema judiciário, aliviando-o das acções de cobrança, tem passado por reformas no plano do Direito Fiscal (o Decreto-Lei n.º 114/98, de 4 de Maio, corrigindo um anterior diploma publicado em Fevereiro, permitiu que deixasse de ser exigida a intervenção dos tribunais para certificar a incobrabilidade das dívidas, a fim de os credores poderem conseguir a dedução do IVA) e por outras que estão apenas encaradas para a próxima legislatura, como seja a criação de comissões arbitrais (ao que se crê, verdadeiros tribunais arbitrais necessários) para julgar os pedidos de responsabilidade civil decorrentes de acidentes de viação, em que se reclamem apenas danos de natureza material. Também se aguarda um novo diploma sobre o regime de cobrança de prémios de seguro, procurando diminuir para 30 dias o prazo de mora sobre o vencimento do prémio, em vez de se esperar os actuais 60 dias para a resolução automática, ex lege, dos contratos, sendo certo que a exigência dos prémios referentes ao período complementar de dois meses de vigência dos seguros, em especial de responsabilidade civil obrigatória de veículos automóveis provoca grande procura de serviços judiciais. 18. Apesar de tudo o que se tem escrito, no nosso ordenamento aparecem medidas de “descompressão” do sistema judiciário que deveriam conduzir a uma melhoria de eficácia do sistema. De facto, nos últimos vinte e cinco anos, as sucessivas reformas do direito processual civil foram sempre alargando a exequibilidade dos documentos que titulam dívidas, ainda que se trate apenas de documentos particulares. Hoje, é preciso apenas que estejam assinados pelo devedor. Começou por alargar-se a exequibilidade dos títulos cambiários, dispensando-se o reconhecimento notarial de assinaturas dos obrigados cambiários até certo valor (Decretos-Leis nos. 201/76, de 19 de Março, e 533/77, de 30 de Dezembro). Eliminou-se em 1985 a exigência de qualquer reconhecimento notarial quanto aos títulos cambiários (Reforma Intercalar de 1985, Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho). Na Reforma de 1995-1996 do Código de Processo Civil dispensou-se qualquer legalização notarial de assinatura em todos os documentos particulares. No que toca à inexistência de documentos confessórios de dívida assinados pelo devedor, possibilita-se, desde 1993, a obtenção de exequibilidade através de injunção, desde que o valor dos créditos emergentes de contrato não seja superior a 750.000$00 (valor da alçada dos tribunais de primeira instância desde 1999). Em alternativa, permite-se a obtenção desse título através de uma acção declarativa especial, semelhante à acção sumarissíma do Código de Processo Civil. Por último, desde 1997, existe um procedimento executivo especial para as execuções que, hoje, não tenham valor superior a 750.000$00 (Decreto-lei n.º 274/97, de 8 de Outubro), em que se começa pela penhora, antes da audição do executado, desde que a penhora recaia apenas sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido 73 dados em penhor, com excepção do estabelecimento comercial. Nestas execuções não existe reclamação de créditos de terceiros credores, no intuito de tornar mais céleres as execuções. É preciso dizer que tem havido decisões de desaplicação por inconstitucionalidade de normas deste diploma, sendo certo que a sua aplicação em múltiplos casos acaba por cair no ridículo, como sucede nas execuções de dívidas hospitalares contra as seguradoras, em que se penhoram bens móveis destas, nomeadamente fotocopiadores, computadores ou saldos bancários, apesar de o risco de insolvência ser praticamente nulo. 19. A experiência de aplicação nos últimos seis meses do diploma sobre injunções mostra que o “engarrafamento” se transferiu da fase judicial inicial para a fase executiva. De facto, formando-se título executivo em mais de metade dos procedimentos e sendo baixa a percentagem de pagamento voluntário (os 10% em que há desistência do procedimento deverão, em regra, corresponder a esse pagamento), é intuitivo que os tribunais de comarca ou de pequena instância vão ficar sobrecarregados com acções executivas, que seguem ou a forma sumária ou, na esmagadora maioria dos casos, o procedimento especial do Decreto-Lei n.º 274/97. Afigura-se que só uma alteração do modelo judicial de execução poderá tornar mais expedita a cobrança efectiva de créditos, em especial os de pequeno montante. Não se justifica a excessiva intervenção do juiz nestes processos, devendo privilegiar-se um modelo administrativo do tipo do que vigora nas execuções fiscais, em que a intervenção do juiz só ocorre para conhecimento de meios de defesa e de outros requerimentos sobre questões de natureza jurídica. Há, porém, quem sustente que se deveriam ensaiar modelos extrajudiciais de cobrança, do tipo do modelo francês de intervenção dos huissiers de justice e dos notários, ou de certos modelos norteamericanos de privatização das execuções. Se vier a ocorrer tal alteração, creio que terá todo o sentido pensar num regime especial de insolvência para os não comerciantes. De facto, tornando-se eventualmente mais rápidas e eficazes as execuções de pequenas dívidas, vai-se pôr com mais acuidade a questão de sobre-endividamento das famílias. É natural que iniciativas tão criticadas, como o anunciado diploma do Ministro JOSÉ SÓCRATES, venham a ser exigidas pelos próprios credores, para conseguir estabelecer planos de pagamento futuro, em vez de, como sucede hoje, as execuções irem à conta por falta de conhecimento de bens penhoráveis. 20. Na questão da selectividade da litigância, é usual fazer-se alusão à necessidade de remodelação da própria lei do processo civil. No caso português, parece-me desnecessário fazer um Código de Processo Civil novo, sabendo-se como soçobrou a tarefa da Comissão presidida pelo Prof. ANTUNES VARELA. Esta situação não é inédita na Europa. Apesar de haver Códigos de Processo Civil recentes que substituíram códigos oitocentistas de influência napoleónica (casos da França, da Bélgica e da Holanda), tem-se mostrado praticamente impossível a obtenção 74 de um consenso entre universitários e profissionais do foro sobre um modelo de Código de Processo Civil. São paradigmáticos os casos da Itália e da Espanha em que se têm arrastado os trabalhos preparatórios de novos diplomas13. Por isso, acabam por aprovarse reformas mais ou menos extensas dos textos vigentes dos Códigos de Processo que, quando possível, entram em vigor, no meio de uma contestação generalizada dos destinatários. A par disso, são publicados os inevitáveis diplomas avulsos sobre matérias específicas, ao sabor das necessidades da conjuntura. O que aconteceu em Portugal com a reforma do Código de Processo Civil em 1995 e em 1996 (Decretos-Leis nos. 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro), ilustra o estado de espírito referido. Apesar do consenso entre dois Governos de alternância e da manutenção pelo Ministro VERA JARDIM da comissão de reforma nomeada por anterior Ministro da Justiça LABORINHO LÚCIO, a reforma do Código de 1961 suscitou alguma controvérsia sobretudo entre os juízes, hoje menos nítida apesar de um reconhecimento generalizado de que o modelo é ainda demasiado pesado e insusceptível de abreviar a duração dos processos. Apesar de tudo, algumas soluções inovadoras têm permitido um aligeiramento burocrático, seja no plano do suprimento de pressupostos processuais, seja no plano dos poderes conferidos ao juiz de adequar a tramitação à complexidade do caso, soluções que permitem alguma selectividade na litigância. A reforma, porém, não foi tão longe quanto seria desejável, podendo dizer-se que os intentos dilatórios dos réus ainda conseguem uma expressão eficaz através da utilização dos múltiplos recursos e reclamações que o sistema consagra, acontecendo que a citação dos réus é relativamente difícil, nomeadamente por desconhecimento da residência do citando, razão por que se sustenta que é necessário a lei consagrar um domicílio contratual, à semelhança do que acontece com o domícilio fiscal. Importa, por isso, prosseguir na senda da simplificação, permitindo que os juízes se dediquem plenamente às causas complexas, com matéria de facto verdadeiramente controvertida. 21. Não obstante as dificuldades expostas, considero globalmente positiva a evolução operada desde 1985 no sentido da modernização de um processo civil. Em 1997, Portugal tinha 1515 juízes, estando colocados nos tribunais 1267. Temos, assim, 13 juízes por cada 100.000 habitantes, metade do número da Alemanha (26 por 100.000 habitantes), abaixo do número italiano (16), mas francamente acima dos números da França e dos Estados Unidos da América (10 e 5 respectivamente)14. A meu ver, o número de magistrados é relativamente satisfatório, embora os hábitos profissionais de elaboração de longas decisões, recheadas de doutrina e de jurisprudência – hábitos propiciados pelos critérios dominantes nas Inspecções Judiciais 13 L’Avanprogetto di una Nuova Legge del Processo Civile Spagnolo, artigo de J. L. Vázques Sotelo in Rivista di Diritto Processuale, ano LIII, 1988, 2, págs. 818 e segs., sobre as atribulações de substituição da velha Ley de Enjuiciamento Civil. 14 Gerhard Warter, estudo cit., revista cit., pág. 47. 75 – contribua para alguma morosidade, nomeadamente quando se trata de comarcas com excesso de processos, como são as das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. A organização judiciária reformada no corrente ano – reforma aliás ainda não completa – é susceptível de fazer melhorar as coisas pela criação de novos juízos nos tribunais mais atrasados e com maior movimento, apesar de tal solução acarretar a diminuição dos juízes auxiliares nos tribunais de 1.ª instância. Com as simplificações já introduzidas nos processos de pequeno valor e com a indispensável reformulação do processo executivo que caberá ao próximo Executivo, é possível ter esperanças de que a nossa máquina judiciária se venha a tornar mais eficaz. 22. O mundo empresarial desconfia dos tribunais e tem razões de sobra para este sentimento. As empresas que, de uma forma ou outra, concedem crédito têm de calcular os seus preços em função também do tempo necessário para recuperar judicialmente as quantias que os seus devedores não pagam pontualmente. No plano do investimento estrangeiro, um sistema judiciário ineficaz é um factor negativo que não é despiciendo. A declaração de falência de uma empresa em que existam bens no activo é verdadeiramente um pesadelo para os credores que têm créditos graduados e a expectativa de recuperar parte deles é diminuta, dado o tempo anormal que dura a fase de pagamento, não obstante as sucessivas reformas da Lei Falimentar. A inexperiência de alguns juízes no que toca às exigências da vida empresarial e de racionalidade económica chega a ser confrangedora, o que aponta para uma necessidade de especialização dos tribunais em matéria comercial, como agora foi finalmente reconhecido na Lei de Organização Judiciária de 1999. É preciso, por isso, que se trabalhe sem desânimo no sentido da melhoria da eficácia da máquina judiciária. As reformas que o Ministério de Justiça vem fazendo desde 1995 partem de um conhecimento dos factores de estrangulamento dos tribunais, propiciado pelo estudo fundamental da equipa do Prof. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS. Esperemos que, estando os diagnósticos feitos há vários anos, não tarde a medicação indispensável. O presente Colóquio sobre a Justiça levado a cabo pelo Conselho Económico e Social constitui mais esforço no sentido de despertar e agilizar a Máquina Judiciária, ainda muito influenciadas pelos modos de funcionamento da primeira metade do século que agora finda. Muito obrigado pela atenção de V. Exªs. 76 Os Problemas do Consumo e do Ambiente e as Novas Vertentes da Cidadania nos Tribunais Conselheiro Mário José de Araújo Torres* Orador Introdução O debate público sobre a situação actual da justiça em Portugal tem estado dominado por questões que, sendo embora mediaticamente atraentes, se revestem de alguma superficialidade e sectorialidade: são basicamente questões internas das diversas profissões forenses e do seu recíproco relacionamento, com o seu cortejo de conflitos de ordem estritamente e estreitamente corporativa, onde a preocupação pelo protagonismo e pelas prerrogativas dos grupos digladiantes faz esquecer que a justiça é um serviço público, cuja legitimação se ganha no reconhecimento quotidiano da sua utilidade e eficiência por parte dos respectivos utentes, isto é, por parte dos cidadãos que sentem necessidade de recorrer aos serviços da justiça. As críticas mais comuns, desde a morosidade ao excesso de garantismo, assentam em opiniões “impressionistas” meramente subjectivas, que não se fundam em estudos minimamente científicos e credíveis, que ignoram a realidade dos restantes países da nossa área civilizacional e que são, as mais das vezes, formuladas de modo vago e genérico, sem a mínima concretização. Fazem falta, neste debate, momentos de reflexão serena e cientificamente fundada (como se espera que seja o presente colóquio), que, finalmente, chamem a atenção para a necessidade de uma análise sociológica e económica do funcionamento da justiça. É que a realidade é esta: não é possível resolver nos tribunais, em tempo útil, todos os litígios. Os meios financeiros são escassos e os critérios de rigor orçamental, desde logo impostos por condicionantes externas, não permitem ampliá-los significativamente. Os meios humanos são escassos e não é possível (atraver-me-ia a dizer nem desejável) multiplicá-los, Os meios materiais são escassos e não é crível que possam ser incrementados substancialmente nem a curto nem a médio prazo. Temos, por fim, um quadro constitucional de organização judiciária − com pluralidade de jurisdições, separação de carreiras dos magistrados, garantias processuais − que não é realista pensar que possa ser alterado nos tempos mais próximos. Perante este quadro, uma política de justiça digna desse nome não pode deixar de atribuir especial relevância à economia da justiça, isto é, à racionalização da distribuição dos recursos disponíveis (sempre escassos) na satisfação de necessidades (sempre elásticas) dos consumidores desse serviço público. Sem cinismo, mas com realismo, há que reconhecer que haverá sempre crimes que não serão perseguidos nem punidos, haverá sempre créditos que não serão cobrados, haverá sempre danos que não * Juiz do Supremo Tribunal Administrativo. 77 serão reparados, em suma, haverá sempre direitos que não serão garantidos. O que se pede aos responsáveis pela política de justiça é, pois, e apenas, que não abandonem à força do acaso (que, normalmente, será a força dos que têm mais poder) a selecção dos casos que merecerão a atenção da justiça, mas que, face à inevitabilidade da existência de zonas de protecção judiciária e de zonas de desprotecção judiciária, definam prioridades, de acordo com critérios que atendam a valores constitucionalmente relevantes. Com a justa ressalva para o mérito dos trabalhos de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS e seus colaboradores 1 e, especificamente na área da protecção judiciária do ambiente, de JOSÉ MANUEL PUREZA 2 − trabalhos esses que, aliás, os seus próprios autores salientam tratar-se de primeiros esforços exploratórios, em áreas limitadas −, é ainda muito escasso o conhecimento, cientificamente fundado, não apenas das representações sociais da justiça, mas dos mais elementares dados económicos sobre o seu custo. Por exemplo: quanto custa o julgamento de um processo no Supremo Tribunal de Justiça? E no Supremo Tribunal Administrativo? E no Supremo Tribunal Militar? E nas restantes ordens e nos restantes níveis hierárquicos dos tribunais? Que poupanças e que custos representa a transferência da competência para o julgamento de certos litígios de determinados tribunais para outros? Quanto se poupou, em termos de custos financeiros suportados pelo Estado, com a última elevação de alçadas dos tribunais cíveis? E quanto se poderia poupar com a introdução de alçadas nos tribunais administrativos? Penso não cometer nenhuma injustiça ao presumir que, neste momento, a generalidade destas perguntas ficará sem resposta. Mas já é possível estabelecer, por exemplo, a relação entre o número de juízes existentes em determinado tribunal e os processos aí findos por ano. Limitando-nos aos Supremos Tribunais e aos anos de 1995 a 1997, dispomos dos seguintes dados: 1 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, MARIA MANUEL LEITÃO MARQUES, JOÃO PEDROSO e PEDRO LOPES FERREIRA, Os Tribunais na Sociedade Portuguesa, Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1995, 5 volumes (policopiado); Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português, Edições Afrontamento, Porto, 1996. O estudo do desempenho dos tribunais circunscreveu-se aos tribunais judiciais de 1.ª instância, nas áreas cível e penal. 2 JOSÉ MANUEL PUREZA, Tribunais, Natureza e Sociedade: O Direito do Ambiente em Portugal, Cadernos do CEJ, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1997. 78 N.º de juízes e processos findos nos Supremos Tribunais: 1995 Juízes 1996 Procs. Juízes 1997 Procs. Juízes Procs. Supremo Tribunal de Justiça 53 3459 59 3519 56 4154 Supremo Tribunal Administrativo 40 3312 44 3728 52 3658 Supremo Tribunal Militar 10 49 10 44 10 43 Fonte: Estatísticas da Justiça, 1995, pp. 121, 123, 197 e 205; 1996, pp. 127, 128, 200 e 207; 1997, pp. 69, 77, 127, 129 e 209. Lançado este repto aos economistas, e encerrando este parêntesis, é tempo de retornar ao tema central desta comunicação. Os direitos da terceira geração É frequente a afirmação 3 de que, no domínio dos direitos fundamentais, após uma primeira geração, ligada ao liberalismo, em que os direitos fundamentais eram vistos como direitos de liberdade, direitos do cidadão individualmente considerado, direitos negativos, e uma segunda geração, na sequência das Constituições mexicana, soviética e de Weimar, em que emergiram os direitos económicos, sociais e culturais vistos como direitos a prestações, direitos do homem socialmente situado, direitos positivos, surgiu uma terceira geração de direitos fundamentais, em que se incluem o direito ao ambiente e os direitos do consumidor, e relativamente aos quais aparecem como notas dominantes a do carácter difuso dos interesses protegidos e a tónica da participação activa dos interessados. Apesar da crítica que a esta concepção é feita por JORGE MIRANDA4, afigura-se-nos, no entanto, que, desde que se torne claro que quando se fala em gerações de direitos do homem ou de direitos fundamentais não se quer significar que cada nova geração se sobreponha ou se substitua às anteriores, antes se quer salientar que se trata de uma nova fase de alargamento e aprofundamento desses direitos, que traduz um enriquecimento da herança anteriormente consolidada, a ideia de terceira geração de direitos fundamentais terá interesse para sublinhar que se trata de direitos colectivos ou difusos, cuja exacta compreensão ultrapassa a dos direitos reconhecidos aos homens enquanto cidadãos, ou enquanto trabalhadores, ou enquanto socialmente situados. Com efeito, o carácter colectivo ou difuso desses novos direitos − sem chegar ao ponto de os qualificar como direitos dos povos, isto é, direitos de colectividades, numa perspectiva transpersonalista, pois aqueles direitos mantêm uma raiz antropocêntrica − coloca específicos problemas, designadamente ao nível da sua tutela jurídica. É justamente esta problemática que nos ocupará agora. 3 Cfr. MÁRIO TORRES, “Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente e de Consumo – Legitimidade Processual”, em Textos, n.º especial – Ambiente e Consumo, vol. I, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996, pp. 165-185. 4 A Constituição e o Direito do Ambiente”, in DIOGO FREITAS DO AMARAL e MARTA TAVARES DE ALMEIDA (coord.), Direito do Ambiente, Instituto Nacional de Administração, 1994, p. 356. 79 Interesses difusos, interesses colectivos e interesses individuais homogéneos Para clarificar conceitos, importa desde já distinguir estas três figuras: interesses difusos são aqueles que apresentam, no plano da sua titularidade, uma pluralidade de sujeitos, tendencialmente indeterminada − e, nessa medida, se distinguindo dos chamados interesses colectivos, posicionados na titularidade de uma categoria de pessoas (normalmente) ligadas por um vínculo jurídico –; e que se caracterizam, no plano da sua natureza, pela insusceptibilidade de apropriação individual (exclusiva) do bem em causa − distinguindo-se, neste pormenor, dos chamados interesses individuais homogéneos, interesses que, apresentando uma origem comum, têm, no entanto, uma tradução concreta individual, dada a divisibilidade do bem, com a correspondente titularidade determinada (apropriação individual). Como salienta MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA 5, “interesses difusos não são interesses públicos, porque a sua titularidade não pertence a nenhuma entidade ou órgão público, também não se identificam com interesses colectivos, porque não pertencem a uma comunidade ou grupo mas a cada um dos seus membros, e também não são interesses individuais, porque, como o bem jurídico a que se referem é inapropriável individualmente, esses interesses são insusceptíveis de serem atribuídos em exclusivo a um sujeito, antes pertencem, sem qualquer exclusividade, a qualquer um dos membros de uma comunidade ou de um grupo. Como afirma CAPPELLETTI, trata-se de “interesses (...) à procura de autor”. Os interesses difusos são simultaneamente interesses não públicos, não colectivos e não individuais”. Cada uma destas categorias, como é óbvio, suscita específicos problemas de tutela judiciária, especificidades essas a que, no entanto, nem sempre o legislador português esteve atento, e que têm óbvias repercussões, designadamente, a nível da legitimidade e da representação processual e da eficácia do caso julgado. A acção popular ambiental No domínio ambiental (e também no de defesa do consumidor e do de defesa do patrimonial cultural, natural ou construído), suscitaram-se grandes expectativas com a concretização pelo legislador ordinário − concretização que demorou longos seis anos − da nova “acção popular” consagrada pela revisão constitucional de 1989, claramente distinta das antigas formas de acção popular (correctiva e supletiva) do Código Administrativo. Finalmente regulada pela Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, importará sublinhar os traços fundamentais do novo regime6: 5 “Legitimidade Processual e Acção Popular no Direito do Ambiente”, na obra citada na nota anterior, p. 412. 6 Cfr. MÁRIO TORRES, “A Acção Popular no Direito Português”, em Textos, n.º especial – Ambiente e Consumo, vol. III, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa. 80 A acção popular não é uma forma especial de processo, como por vezes erradamente se pensa, traduzindo-se antes num alargamento da legitimidade processual activa, seja qual for a natureza do processo a que se aplique (civil, penal, administrativo). Nos termos da Lei n.º 83/95, são interesses por ela protegidos a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público (artigo 1.º, n.º 2). São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses acabados de referir, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda (artigo 2.º, n.º 1) e ainda as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição (artigo 2.º, n.º 2). Como se vê, não se atribuiu legitimidade ao Ministério Público. Porém, essa opção veio a ser alterada pelo artigo 26.º-A do Código de Processo Civil, resultante da reforma de 1995/1996, que atribui “legitimidade para propor e intervir nas acções e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à protecção do consumo de bens e serviços” a “qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei”. Quanto à representação processual, a Lei atribui ao autor da acção popular, com dispensa de mandato ou autorização expressa, a representação de todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão (artigo 14.º). Com efeito, o subsequente artigo 15.º prevê formas de citação dos titulares dos interesses em causa na acção de que se trate para, no prazo fixado pelo juiz: (i) passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase em que se encontrar e para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados pelo autor; ou (ii) se excluírem dessa representação, nomeadamente para o efeito de não lhe serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como aceitação. Quanto ao efeitos do caso julgado, dispõe o artigo 19.º, n.º 1, que as sentenças transitadas em julgado, salvo quando julgadas improcedentes por insuficiência de provas, ou quando o julgador deva decidir por forma diversa fundado em motivações próprias do caso concreto, têm eficácia geral, não abrangendo, contudo, os titulares dos direitos ou interesses que tiverem exercido o direito de se auto-excluírem da representação. Não é esta a ocasião para escalpelizar este regime legal e apontar-lhe as debilidades de que padece, até por não radicar em eventual deficiência legislativa o pouco uso que tem sido feito desta figura. 81 As causas dessa indiferença são mais profundas e mais graves e reconduzem-se, basicamente, ao diagnóstico da situação da litigância ambiental em Portugal feita na já citada investigação de JOSÉ MANUEL PUREZA7. Com este autor, há que reconhecer: – “O direito judicial do ambiente é, em Portugal, um direito quantitativamente muito escasso e predominantemente reactivo, dependente e tradicional. Nos poucos casos em que o ambiente é objecto de atenção do trabalho judicial, é-o quase sempre a título incidental, como dimensão lateral (ou mesmo puramente implícita) de direitos subjectivos individuais de tipo liberal clássico como o direito de propriedade e os direitos de personalidade. Os litígios ambientais surgem, na maior parte das vezes, no contexto de relações inter-individuais de vizinhança (tomada esta num sentido sócio-espacial muito restrito), actuando o sistema judicial como força sancionatória e punitiva e não como instância de prevenção”; –“Regista-se uma deficiente mobilização social para a tutela judicial do ambiente. Quer o número de processos existentes, quer a análise das motivações concretas para a litigação, quer ainda a transferência das iniciativas associativas e colectivas para o Ministério Público demonstram que, em Portugal, o direito judicial do ambiente só debilmente concretiza valor guia da solidariedade que a doutrina associa aos direitos da terceira geração e que a legislação ambiental acolhe. Ao invés, o nosso direito judicial do ambiente ou permanece num registo predominantemente inter-individual ou reproduz hábitos de relação paternal do Estado para com a sociedade”; –“De entre as principais motivações para esta escassez de mobilização social para a tutela judicial do ambiente destaca-se a valoração superior dos direitos económicos e sociais pela população activa, por comparação com a valoração dos interesses pós-materiais associados ao ambiente. Este fenómeno, inerente ao facto de Portugal ser um país de desenvolvimento intermédio, ajuda a compreender que a litigação ambiental seja, entre nós, quase só composta por pequenos conflitos e que a litigação de média e grande dimensão seja, por isso, de uma notoriedade pública proporcional ao seu carácter excepcional”; –“O baixo volume de acções judiciais em matéria ambiental decorre igualmente do tipo de actuação dominante quer dos cidadãos quer das instâncias oficiais de tutela. Os cidadãos preferem claramente formas auto-compositivas de tratamento dos seus litígios; os poderes públicos (Administração e Tribunais) têm um elevado índice de eficácia na abordagem informal dos conflitos, quer pela simples persuasão dos intervenientes, quer pela flexibilização do regime legal apropriado”. 7 A situação é similar no domínio da defesa do património cultural: cfr. MANUELA REIS, “Cidadania e património: notas de uma pesquisa sociológica”, em Sociologia − Problemas e Práticas, n.º 29, 1999, pp. 77-94. 82 Regista-se assim um “afastamento entre a law in action e a law in the books”, “entre um direito legislado generoso no acolhimento da legitimidade comunitária e associativa para a tutela judicial e um direito efectivo com uma incipiente concretização jurisprudencial; afastamento entre um direito legislado que testemunha uma forte inovação substantiva e processual e um direito efectivo esvaziado pelo apego a uma dogmática sedimentada na resposta a desafios sociais totalmente distintos; afastamento entre um direito legislado valorizador da participação e da informação e um direito efectivo que esbarra no secretismo e opacidade de uma máquina administrativa labiríntica e distante e na fragilidade orgânica e reivindicativa do movimento ambientalista”; enfim, “afastamento entre um direito legislado dotado duma projecção normativa crescente e um direito efectivo com escassa capacidade sancionatória”. Esse estudo da litigação ambiental portuguesa permitiu concluir pela aplicabilidade a este domínio específico da imagem metafórica da pirâmide de conflitos ambientais utilizada no estudo realizado pela equipa do Centro de Estudos Sociais coordenada por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS sobre a administração da justiça em Portugal. “Essa pirâmide dos conflitos ambientais, em que se estratificam os vários níveis (...), da conflitualidade potencial até ao julgamento, apresenta uma particularidade importante: o estreitamento da pirâmide é muito acentuado na passagem dos conflitos potenciais para os conflitos judiciais, mas a zona de maior triagem é inquestionavelmente a transformação da conflitualidade potencial em conflitualidade real. Ou seja, é a diminuta conversão dos atentados ao ambiente, comprovadamente existentes, em conflitos públicos assumidos que constitui a principal fonte de desconformidade entre a abertura do direito legislado e a prática efectiva dos actores sociais e das instituições de tutela oficial”. Para ultrapassar esta situação, o autor citado preconiza que se dote “o nosso sistema de novos instrumentos de aplicação que subtraiam a concretização do direito ambiental substantivo à inevitabilidade de moldagem, necessariamente redutora, aos cânones processuais tradicionais”, já que “à solenidade, apego à segurança jurídica e generalidade, característicos dos tradicionais mecanismos processuais, a tutela eficaz do ambiente contrapõe a exigência de informalidade, instantaneidade e proximidade”, o que é alcançável por duas vias processuais principais: “a primeira dessas vias é a da adopção de mecanismos alternativos de solução de litígios para os conflitos ambientais, sobretudo os de pequena dimensão”, designadamente através de “comissões de conciliação ou de mediação ou ainda de centros de arbitragem – repetindo, neste domínio, uma fórmula já consagrada para os conflitos de consumo”; a segunda “é o da incorporação de novos instrumentos preventivos”, pois “a instantaneidade do tempo ambiental exige (...) o acolhimento pela lei processual de instrumentos inibitórios com carácter autónomo expedito e definitivo”. Os litígios de consumo 83 Neste domínio, em que a diversa natureza dos interesses em jogo não permite uma automática transposição das medidas preconizadas em sede de tutela ambiental, há que reconhecer, no entanto, que, provavelmente pela mais directa relevância económica individual desses interesses, são mais significativos os resultados das tentativas de composição extrajudicial dos conflitos, como o demonstram os mapas que seguem. Processos nos Centros de Arbitragem: 1996: Pendentes Entrados Total Total geral Associação Comercial Ordem dos Advogados Conflitos de Consumo de Coimbra e Figueira da Foz Conflitos de Consumo de Lisboa Litígios de Reparação Automóvel Litígios Laborais Desportivos Loulé Centro de Informação, de Consumo e Arbitragem do Porto Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem do Trabalho 494 4 5 3766 8 3 106 3914 8 102 261 677 799 - 4 434 2 337 22 70 145 144 6 24 33 15 10 56 21 86 70 3 1933 62 1996 310 6 49 255 8 16 48 20 1346 47 821 803 - 79 - 356 - 368 Fonte: Estatísticas da Justiça, 1996. 84 Desist ência 171 4 5 Findos Media Conci ção liação 803 404 81 7 Incompetência 321 5 Arbitr agem 423 4 4 Outros motivos 1792 - Processos nos Centros de Arbitragem: 1997: Pendentes Entrados Total Total geral Arbitral - Soc. de Arbitragem Associação Comercial de Braga Associação Comercial de Lisboa Ordem dos Advogados Conflitos de Consumo de Coimbra Conflitos de Consumo de Lisboa Conflitos de Consumo do Vale do Ave Litígios de Reparação Automóvel Litígios Laborais Desportivos Loulé Centro de Informação, de Consumo e Arbitragem do Porto Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem do Trabalho Voluntária da ADJUVA Universidade Autónoma de Lisboa Desist ência 136 3 Findos Media Conci ção liação 845 320 29 - 400 - 4842 1 68 4823 47 Incompetência 422 4 Arbitr agem 432 - Outros motivos 2668 11 4 7 5 1 - - - 4 - 2 9 3 119 98 7 9 32 7 7 36 198 782 862 110 4 465 1 244 38 - 41 26 3 - 22 - 1 - 69 135 118 2 10 34 22 13 37 28 2 23 69 3 2920 77 2898 295 9 39 263 1 49 67 34 2218 65 619 628 - 60 - 240 - 328 - 70 1 62 - - 2 - - - 60 - - Fonte: Estatísticas da Justiça, 1997. A leitura destes números exige algumas cautelas, pois não existe indicação dos critérios classificativos adoptados em cada um dos centros de arbitragem. Particularmente anómalos surgem os valores dos processos entrados no Centro de Informação, de Consumo e Arbitragem do Porto, sendo também anómalo o número de processos findos por “outros motivos”; uma explicação possível será a de se terem contabilizado os pedidos de informação. De qualquer forma, embora superiores aos existentes no domínio do ambiente, os casos de resolução extra-judicial de litígios de consumo representam claramente uma percentagem ínfima da conflitualidade − em especial, da conflitualidade potencial − neste domínio. E, como também é óbvio, trata-se de um domínio onde são particularmente evidentes as relações entre o direito e a economia, provocando qualquer efectiva melhoria do funcionamento do sistema da justiça (“justiça judicial” ou “justiça extra-judicial”) do consumo directas repercussões nos comportamentos e na actividade dos agentes económicos dos sectores envolvidos. Outros direitos de cidadania: o acesso aos documentos administrativos Apesar da escassez do tempo disponível, seja-nos permitida uma última e muito breve nota sobre uma área onde, à primeira vista, pareceriam ser escassas as relações entre direito e economia: o acesso dos cidadãos aos documentos administrativos. 85 Mas bastará pensar nos casos em que, por exemplo, uma empresa, com o objectivo (real ou pretextado) de interpor recurso contencioso de determinado acto da Administração, requer o acesso a documentos, em poder da Administração, originários de empresas concorrentes em que se revelem, por exemplo, estratégias de desenvolvimento e dados da sua situação financeira 8 ou processos de fabricação de produtos seus9, que podem incorporar investimentos vultuosos, para nos darmos conta de como um mecanismo aparentemente de alcance limitado, pode afectar importantes interesses económicos. Apesar de a Constituição expressamente só referir como matérias susceptíveis de imposição legal de restrições ao direito de acesso aos arquivos e registos administrativos as “matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas” (artigo 268.º, n.º 2) − o que levou o Ac. do STA de 14/9/1994, citado na nota 8, a proclamar que “o direito de acesso dos cidadãos à informação não sofre restrição pelo facto de tais documentos estarem sob segredo comercial ou industrial ou a coberto de normas de protecção do mercado concorrencial” −, a Lei n.º 8/95, de 29 de Março, veio aditar um novo n.º 1 ao artigo 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, consignando que “a Administração pode recusar o acesso a documentos cuja comunicação ponha em causa segredos comerciais, industriais ou sobre a vida interna das empresas”. Feita esta chamada de atenção, merecedora de mais desenvolvido tratamento, resta registar que, também neste domínio, o recurso a meios extra-judiciais de composição de conflitos constitui caminho a incrementar. 8 Cfr. Ac. do STA de 14/9/1994, P. 35 663 (Apêndice ao Diário da República, de 7/2/1997, p. 6227), sobre pedido, formulado pela “SIC - Sociedade Independente de Comunicações, SA”, de intimação do Secretário de Estado das Finanças para passagem de certidão dos seguintes documentos: plano de actividades e orçamento da RTP relativos à prestação do serviço público de televisão no ano de 1994, pareceres do Conselho Fiscal e do Conselho de Opinião da RTP referentes ao plano de actividades e ao orçamento mencionados, memória justificativa dos custos e parecer do Conselho Fiscal da RTP referente à memória justificativa dos custos. O acesso a estes documentos foi justificado pela requerente com a alegação de pretender desencadear os meios adequados a garantir a fiscalização da legalidade da Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/94, que atribuiu à RTP, para o ano de 1994, uma indemnização compensatória no montante global de 7 145 000 000$00. 9 Têm sido frequentes os pedidos de intimação do INFARMED − Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, feitos por laboratórios farmacêuticos, em que, com a alegação de se pretender interpor recurso contencioso do acto administrativo que autorizou a introdução no mercado de medicamentos de laboratórios concorrentes, se pretende obter a consulta e a extracção de certidões do correspondente processo administrativo, incluindo os documentos relativos à composição qualitativa e quantitativa do medicamento, as suas indicações terapêuticas, os respectivos ensaios farmacológicos, toxicológicos e clínicos, os estudos de biodisponibilidade, etc. Cfr. os Acs. do STA de 6/10/1994, P. 35 682 (Apêndice ao Diário da República, de 18/4/1997, p. 6779, e Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 399, p. 283), de 2/2/1995, P. 36 628 (Ap. DR, de 18/7/1997, p. 1197), de 26/3/1996, P. 39 602 (Ap. DR, de 31/8/1998, p. 2282), de 18/4/1996, P. 39 788 (Ap. DR, de 23/10/1998, p. 2688, e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 456, p. 210), de 13/2/1997, P. 41 495, de 6/5/1997, P. 42 046, de 10/7/1997, P. 42 448, de 23/7/1997, P. 42 546, e de 13/8/1997, P. 42 754, e, por último, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 254/99, P. 456/97, de 4/5/1999 (DR, II Série, n.º 137, de 15/6/1999, p. 8586). 86 A verdade, porém, é que é ainda relativamente reduzido o recurso dos cidadãos à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), como o demonstra o seguinte quadro: Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos: Anos Pedidos recebidos 1995 72 1996 95 1997 142 1998 204 Total 513 Fonte: http://www.cada. pt. Pareceres emitidos 38 87 124 177 426 Resolvidos sem necessidade de parecer 13 5 16 30 Processos pendentes no final do ano 21 24 21 22 Conclusão • Retornando às preocupações inicialmente manifestadas, há que reconhecer que, atenta a escassez de recursos disponíveis, é impossível confiar aos tribunais a resolução, em tempo útil, de todos os conflitos individuais e sociais potencialmente judicializáveis. Na organização racional desses recursos, a política da justiça deve procurar atingir, em termos de conciliação prática, uma protecção média equilibrada das diversas áreas merecedoras de tutela, tendo por critérios orientadores os valores constitucionalmente relevantes, entre os quais não podem de assumir especial relevo os respeitantes à tutela do ambiente, do património e do consumo e os atinentes à consagração dos novos direitos de cidadania, de terceira geração, post-materialistas e de participação. Há que privilegiar formas de composição extra-judicial de conflitos potenciais e reais, fazendo efectiva aplicação do critério das duas palavras, isto é: distinguindo, com rigor, os casos em que os tribunais tem de caber a primeira palavra daqueles casos em que o direito de acesso dos cidadãos à justiça se basta com a atribuição aos tribunais da última palavra 10. Cfr., sobre esta temática, por último, PAULO CASTRO RANGEL, Reserva de Jurisdição − Sentido Dogmático e Sentido Jurisprudencial, ed. Universidade Católica Portuguesa, Porto, 1997. 10 87 A Justiça como Tarefa Comum 88 A especialização dos tribunais: o presente e o futuro judiciário Dr. João Correia* Orador O tratamento, mesmo não muito profundo das questões judiciárias contém diversos paradoxos. Dum lado, a opinião pública e os meios de comunicação social a sua atenção e a pressão que exercem sobre o Poder no âmbito da justiça criminal e, como sabemos, as demais áreas da justiça não são subalternas face àquela. Por outro lado, as reais e concretas causas da degradação do serviço da justiça não merecem, por regra, grande atenção por parte dos organismos responsáveis e das associações representativas dos profissionais da justiça. Tudo se esgota, ou melhor, afunilam-se as atenções nos temas das relações entre cada uma delas e a Advocacia, entre todas e o Ministério da Justiça, entre este e o Conselho Superior de Magistratura e a Ordem dos Advogados. No entanto, um exame profundo e mais preocupado da JUSTIÇA permite alcançar diagnósticos fáceis. Assim por exemplo: O aumento da litigiosidade tem sido acompanhado pelo aumento proporcional dos que servem a justiça, ou seja, o número de magistrados, advogados e oficiais de justiça mantém-se adequado à dimensão de pleitos judiciais. Nos grandes centros urbanos esse aumento do número de processos tem sido acompanhado por uma concentração de esforços e meios (humanos) que à partida não justificaria a exponencial distribuição e pendência de processos por cada juiz. Por outro lado, o direito adjectivo, civil ou penal, sofreram ou beneficiaram de reformas sempre vocacionadas para a celeridade e simplificação, às vezes com sacríficio das garantias processuais dos cidadãos, mas, no essencial, os direitos adjectivos não se mostram como obstáculo à pronta realização da justiça. Finalmente, a preparação técnico-jurídica dos magistrados judiciais e, mais recentemente, dos jovens Advogados é visivelmente superior e, se numa primeira fase, o Centro de Estudos Judiciários formou sacerdotes de um templo pejado de pecadores, de há uns anos para cá, os novos magistrados mostram-se serenamente conhecedores da sua função relativizada face às demais legitimidades judiciais, maxime a da Advocacia. Diga-se a este propódito, em abono da verdade, que o legislador constitucional na Revisão de 1997 criou o antídoto adequado para contrariar as vocações totalitárias ao fazer inscrever a essencialidade da Advocacia e do mandato forense para a Administração da Justiça, sem esquecer que na nova Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei 3/99, de 13 de Janeiro) veio prolongar e concretizar essa essencialidade da Advocacia abandonando a subalternidade provinda * Advogado. 89 do conceito de “servidor da justiça” e substituindo-o pela intervenção no exercício de direitos dos Advogados “como elemento essencial à administração da justiça” para o que gozam das “imunidades necessárias ao desempenho eficaz do mandato forense ... (Art.º 114 da LOFTJ). Como se conclui, os instrumentos operativos da justiça são os suficientes, no plano estritamente humano, para alcançarmos uma justiça célere, dignificada socialmente e tecnicamente apetrechada. Mas assim não é. Nos últimos anos vem-se corroendo a representação social da justiça em geral, como serviço de Estado e como exercício da sua Soberania, as decisões judiciais aparecem, nos grandes centros urbanos, cada vez mais tardias e contestadas, descendo-se patamar sobre patamar, quase permitindo a conclusão que nada há para fazer senão deixer cair os braços, entregando-se a sorte da justiça à divina providência que um dia há-de iluminar os poderes indicando-lhes o caminho da salvação. Mas também assim não é nem será. Há diagnósticos feitos, efectivamente, existem soluções, umas mais prontas e outras de concretização progressiva que implicam uma visão estratégica pré-determinada a adoptada pelos Poderes Públicos e pelos difusos poderes que suportam este serviço público e preenchem a Soberania do Estado. E começarei pela organização judiciária já que foi o tema que me emprestaram para abordar hoje e aqui. Em matéria só na aparência sofre de aridez, pois, bem ao invés, é o mais aliciante e complexo para beneficiar de uma abordagem. Como se sabe, a nossa malha judiciária não sofre alterações de fundo há décadas: as comarcas são ainda, as comarcas, os Distritos Judiciais são os mesmos (o de Évora foi criado pouco antes do 25 de Abril) e a efémera inovação dos Tribunais de Círculo sofreu as resistências que os mataram quando ainda davam os primeiros passos. No essencial pode ousar dizer-se que a nossa estrutura judiciária remonta a 1840. Como se sabe também, a organização judiciária dos pequenos médios centros urbanos ou rurais não difere entre si e nos grandes centros urbanos desligou-se a natureza e a dimensão do conflito da organização judiciária, partindo-se desta para aquele segundo critério quase sempre quantitativo. No entanto, é bom que se diga, que os pequenos e médios centros urbanos e rurais convivem positivamente com a competência genérica dos Tribunais que os servem, sendo óbvio, no entanto, que o desenvolvimento económico dos centros urbanos se acha numa proporção inversa da prontidão judiciária. Dito de outro modo: os Tribunais não acompanham o desenvolvimento e, as mais vezes são, mesmo, factor de desaceleração desse desenvolvimento face à ineficácia progressiva do serviço da justiça, o que provoca a desautorização e o desarmamento do tráfego jurídico, comercial, industrial e, acima de tudo, social e cultural. 90 Tal estádio de ilegitimidade do poder judicial e do serviço da justiça foi, há largos anos, atingido nos grandes centros e, especialmente, na Área Metropolitana de Lisboa mais que na Área Metropolitana do Porto. Para este resultado, contribuem, a meu ver, causas que influem de modo e com intensidades diversas mas que concorrem na mesma direcção. Assim, como factores negativos ou de influência perversa apontaria os seguintes: a) a inadequada malha judiciária na 1.ª Instância nos grandes centros urbanos; b) a ausência total de uma 2.ª Instância sobre a matéria de facto; c) a inexistência de meios racionais, operantes e eficazes de organização administrativa e financeira de apoio à actividade judiciária; d) a insuficiência dos meios materiais, como por exemplo, de pequenos Tribunais disseminados nos grandes centros urbanos com competência para a pequena litigiosidade cível, penal, contravencional e contraordenacional; e) a resistência da direcção política do poder judicial a todas as transformações e reformas; f) a ausência de estímulos e adequados critérios de progressão na carreira dos oficiais de justiça, sem esquecer a ausência de formação permanente e de uma adequada cultura cívica para a dificílima função que desempenham perante magistrados, advogados e cidadãos, em geral. Vou abandonar tudo, à excepção da organização judiciária, em homenagem ao tema que me ofereceram. Começarei por analisar a actual Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (a Lei 3/99, de 13 de Janeiro) lembrando, desde logo, a inconguência da organização judiciária na 1.ª Instância e, acima de tudo, a confusa justificação legal para, na 1.ª Instância, se obter aquele a que a lei chama “desdobramento dos Tribunais”. Vejamos primeiro o que nos diz a lei comentemos depois. A - Art.º 62/2: Quando o volume ou a natureza de serviço o justifiquem, podem existir na mesma Comarca vários Tribunais. B - Art.º 64/1 (sob a epígrafe “outros Tribunais de 1.ª Instância) : Pode haver Tribunais de 1.ª Instância de competência especializada e de competência específica. C - Art.º 64/2: Os Tribunais de competência especializada conhecem matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável; os Tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas em função da forma de processo aplicável... D - Art.º 65.º (sob a epígrafe “desdobramentos dos Tribunais”). Art.º 65/1: Os Tribunais judiciais podem desdobrar-se em juízos. Art.º 65/2: Nos Tribunais de comarca os juízos podem ser de competência genérica, especializada ou específica. 91 Art.º 65/3: Os Tribunais de comarca podem ainda desdobrar-se em varas com competência específica, quando o volume e a competência do serviço o justifiquem. Deste conjunto de normas facilmente se conclui que o legislador nem é claro nem é coerente. Dum lado, não enuncia qualquer critério para a justificação dos Tribunais de competência especializada. Na verdade, no Art.º 62/2 cinge aos Tribunais de comarca o desdobramento em função do volume e da natureza do serviço, quando se sabe que a competência especializada admite a sua conexão ao conceito de 1.ª Instância mas não ao conceito de comarca. Mas, não contente, afirma no Art.º 65/1 que os Tribunais Judiciais se podem desdobrar em juízos querendo obviamente, agora sim, referir-se exclusivamente aos de 1.ª Instância e não a todos os Tribunais Judiciais (independentemente do capítulo onde se insere a norma se dirigir exclusivamente aos Tribunais de 1.ª Instância). E, finalmente, é para o desdobramento em Varas, ou seja, para a competência específica, que se invocaram os critérios do “volume e complexidade do serviço”. Em suma, não nos oferece o legislador qualquer justificação para a especialização dos Tribunais em razão da matéria. Do elenco de Tribunais com competência especializada verifica-se que não são coerentes nem uniformes as causas do destacamento de certas matérias para estes Tribunais. Assim, na área do direito penal elegeram-se a instrução criminal e a execução de penas, um e outro justificados também por causas diferentes: os TIC e os JIC visam assegurar o controlo da legalidade da chamada fases do inquérito, seja quando decidem quanto à pronúncia ou não pronúncia, seja quando directamente se substituem ao Ministério Público, seja quando praticam actos que só o poder judicial pode executar durante o Inquérito. Os Tribunais de Execução de Penas agem a jusante da sentença condenatória penal em prisão efectiva, de pena relativamente indeterminada e no âmbito das medidas de segurança. No essencial, poder-se-à dizer que os Tribunais de Execução de Penas são os instrumentos especializados para a reinserção social e readaptação dos condenados o que lhes confere um relevo que a sociedade civil e mesmo a Administração Pública Central e as Autarquias Locais se mostram incapazes de reconhecer. No âmbito do direito de família também se criaram duas ordens de tribunais com competência especializada e, desta vez, também por duas ordens de razões distintas. Os Tribunais de família e os Tribunais de Menores abarcam todas as questões pessoais, patrimoniais e sociais relativas aos cônjuges e aos menores. Os Tribunais de Família absorvem a competência material para dirimir litígios pessoais e patrimoniais entre cônjuges e entre eles e os seus filhos, mesmo que maiores 92 de idade, ao passo que os Tribunais de Menores pretendem assegurar a protecção dos menores fora da família e perante a sociedade, seja por razões comportamentais, seja por terem sido abandonados ou se acharem desamparados, seja porque não conseguem viver em família, não trabalham, não estudam nem, por qualquer modo, são ou se mostram hábeis para viver em comunidade. Do mesmo passo, os Tribunais de Menores asseguram a sua protecção perante a família e perante as instituições que os recolhem sempre que se mostre excessivo ou abusivo o exercício da sua autoridade. A competência especializada, agora em sentido estrito, acha-se como móbil da criação dos tribunais de Comércio, dos Tribunais Marítimos e dos Tribunais de Trabalho. Na verdade, a Lei Orgânica não nos oferece, como se viu, um critério uniforme para o destacamento da competência material de alguns Tribunais, limitando-se a eleger o volume e a complexidade dos processos para a criação de varas cíveis ou criminais, ou seja, Tribunais com competência específica (Art.º 65/3) ou o volume e a natureza do serviço de vários Tribunais na mesma comarca (Art.º 62/2). Mas, se é verdade que os Tribunais de Família, de Menores, de Execução de Penas, por exemplo devem a sua criação a tais critérios (volume, complexidade natureza do serviço) os Tribunais do Trabalho, do Comércio e os Marítimos acabam por ver a sua criação a imperiosa autonomia do direito substantivo e ao afastamento tendencial do direito civil e dos quadros científicos de referência que permitiam a subsistência da competência material na jurisdição especializada. Se é verdade que os Tribunais do Trabalho provêm da reforma de 1933, também é verdade que a sua subsistência com a autonomia não emerge das mesmas razões que levaram à sua criação. A jurisdição laboral especializada entronca nos Tribunais de Arbitros Avindores criados na década de 80 do Século passado determinados pela industrialização e pela absorção dos ingredientes do liberalismo retardado. A sua composição paritária, ou seja, a designação dos seus membros por um colégio de trabalhadores e por outro colégio de empregadores tinha que soçobrar perante a estadualização inexorável da justiça do trabalho operada pelo corporativismo, obviamente não compaginável com soluções paritárias ou, mesmo, arbitrais. Mas, não confundamos, a justificação para a criação, na época, dos Tribunais de Trabalho não resulta da especialização do direito substantivo, mas, tão só, da menoridade social e política das relações jurídico-laborais e do esmagamento dos conflitos colectivos, tudo concorrendo para a exclusão e o afastamento da jurisdição laboral face à jurisdição comum. Basta atentar que os Juízes dos Tribunais do Trabalho eram os Delegados do Instituto Nacional de Trabalho e Previdência e os representantes ou os que executavam o papel de representantes do Ministério Público eram os Sub-Delegados do mesmo I.N.T.P. 93 Até à Constituição da República de 1976 e até à primeira Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, os Tribunais de Trabalho viviam nos subterrâneos do poder judicial. Efectivamente, foi a Lei 82/77, de 6 de Dezembro, que operou a transformação democrática dos Tribunais de competência especializada, a par, note-se, dos Tribunais Cíveis, de Família, de Menores e de Execução de Penas (Art.º 56.º da Lei 82/77, de 6 de Dezembro). Por outro lado, os Juízes dos Tribunais do Trabalho assumiram, finalmente, a dignidade de Juízes de Direito e passaram a integrar o corpo único de Juízes, sujeitos à mesma disciplina jurídica dos demais Juízes dos outros Tribunais. Estava, pois, alcançado o relevo jurídico e social das questões laborais e, tanto assim é, que a competência material dos Tribunais de Trabalho mereceu uma cuidadosa e extensa identificação das questões que lhe foram atribuídas. Hoje, os Tribunais de Trabalho recebem competência em matéria cível, em matéria contravencional e, como tribunais de recurso, em matéria contraordenacional nos domínios laboral e da segurança social (Art.ºs 85 86 e 87 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro). Se a tudo isto se ajuntar a criação das secções sociais do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações, logo compreendemos que desapareceram as razões da subalternidade da jurisdição laboral face às demais jurisdições. As causas profundas da especialização das questões laborais e da segurança social, ou seja, a autonomia do direito substantivo como disciplina jurídica própria são, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, esforçadas pelo suporte de um direito adjectivo especializado face ao direito processual civil o que, convenhamos, atribui à jurisdição laboral ingredientes qualitativamente distintos dos que levaram à criação dos Tribunais Marítimos e dos Tribunais de Comércio. Dum lado, os Tribunais de Trablho abarcam a quase integralidade do território nacional, mas, como se disse, beneficiam de um direito adjectivo próprio e de secções especializadas nos Tribunais de recurso o que os faz destacar dos demais tribunais com competência especializada. Por outro lado, o relevo político e social das questões laborais e o número de conflitos levados ao contencioso judicial imprimem uma justificação diferente, qualitativa e quantitativamente diversa, para o destaque desta especialização perante a jurisdição comum ou genérica. Por fim, a criação dos Tribunais de Comércio e dos Tribunais Marítimos e a sua efectiva instalação, prenunciam uma nova organização onde o primado da especialização será o timbre e a matriz da malha judiciária. A complexidade crescente das relações humanas, a internacionalização do direito, a interacção das diversas ordens jurídicas, provocam o alargamento vertical e horizontal do campo de análise dos factos e das situações jurídicas. E, a par com este deslumbramento dos horizontes, acha-se outro mais intenso provindo do inesgotável mundo da informação jurídica, das bases de dados, do correio electrónico, da internet. 94 Esta realidade deixou um rasto antagónico de complexidade e de profundidade face à volatibilidade e velocidade dos fenómenos e do tráfego jurídico o que, inelutavelmente nos empurra para a diferenciação e para a especialização. Não sendo possível, porque não é, exigir que as instituições judiciárias acompanhem esta realidade, há que dotá-los de ductilidade e plasticidade, o que, convenhamos, é incompatível com opções rigoristas, formalistas e ritualistas que estão mais preocupadas com a autoridade de quem decide do que com a justeza e adequação da decisão. O que se pode concluir, sem qualquer esforço, é que o futuro coincide com o presente e este é incompatível com o imobilismo judiciário e com uma cultura de autoridade sem responsabilidade. Também facilmente se pode concluir que a organização judiciária que temos se mostra insusceptível de satisfazer a procura do serviço de justiça seja no plano quantitativo (nos grandes centros urbanos) seja sob um ângulo qualitativo. Também ainda se pode concluir que o mundo judiciário não se ache erigido segundo um modelo organizatório com preocupações democráticas. Basta atentar pela inexistência de uma verdadeira (eu sublinho: verdadeira) Segunda Instância sobre a matéria de facto para, sem mais rodeios, se concluir pelo défice de cidadania que as partes padecem em Tribunal. Mas isso são contas de outro rosário... Por agora, deveremos concluir pela inexorável e imparável caminhada para a especialização, mas, paradoxalmente, sem permitir que se perca a visão humanísta do conjunto o que implicará, numa justiça de futuro, que os Juízes e os Advogados sejam, cada vez mais assessorados por técnicos que não têm poder de decidir e que a participação de não magistrados nas decisões se vá generalizando. Mas, para isso, ainda é cedo. Só então a justiça será uma tarefa comum. 95 White-Collar Crime e Justiça Penal (Uma Abordagem Criminológica) Professor Doutor Manuel da Costa Andrade* Orador I. Introdução 1. Foi-me cometida a tarefa de trazer à discussão deste oportuno e enriquecedor Colóquio alguns tópicos relativos ao chamado white-collar crime e, noutra perspectiva, aos crimes contra a economia. Tal como o interpretei e interiorizei, o mandato que me foi dado aponta privilegiadamente para uma reflexão de fundo marcadamente criminológico. De qualquer forma, uma tarefa que só de forma apressada e menos atenta se poderia considerar estranha face às preocupações e ao propósito que puseram de pé o Colóquio. Dizêmo-lo sobretudo à vista da mudança de paradigma sofrida pela reflexão e pela investigação criminológicas a partir dos anos sessenta – a querer-se uma data: 1963, ano da publicação do marcante livro de H. BECKER: Outsiders. Reporto-me fundamentalmente à viragem protagonizada pelos movimentos que ficariam conhecidos como interaccionismo simbólico ou labeling approach e criminologia crítica ou radical. Que, no seu conjunto, acabaram por dar corpo a uma ruptura tão profunda como irreversível com o monismo etiológico-causalista e positivista a que, tanto a nível individual-antropológico como a nível sociológico, obedecia a criminologia tradicional, inaugurada, havia um século, pela escola de LOMBROSO. A partir de então o problema criminológico deixa de se circunscrever à pergunta clássica: porque é que as pessoas cometem crimes? Para além disso e sobretudo, passa também a questionar-se: porque é que determinados comportamentos (e não outros) são considerados crimes? Porque é que determinadas pessoas (e não outras) são tratadas como criminosas? Quais as consequências (em termos de aprendizagem e de interiorização de uma identidade delinquente; de assunção de uma carreira delinquente e, por vias disso, de delinquência secundária) de ser estigmatizado como delinquente? Noutros termos, mais do que os motivos e as causas do comportamento delinquente, do que se trata é de pôr a descoberto os critérios das agências ou instâncias de controlo. Desde a lei criminal – a criminalização primária – até ao longo corredor das instâncias que actualizam a criminalização secundária, reproduzindo e amplificando as cotas da selecção: a polícia, o ministério público, os advogados, os tribunais e, a terminar, a prisão, consabidamente a mais poderosa das “instituições totais”. Ora, como a mais perfunctória consideração fará avultar, o white-collar crime emerge como um topos incontornável dos passos nucleares deste novo discurso criminológico. Numa tão estreita relação de interpenetração e de comunicação recíproca * Professor da Universidade de Coimbra. 96 de complexidade que se torna difícil precisar em que medida é a experiência do whitecollar crime que precipita e potencia a nova teorização criminológica ou, inversamente, em que medida foi aquela teorização que veio pôr em evidência esta específica manifestação de criminalidade. É um contributo para a explicitação da pré-compreensão enunciada que nos propomos levar a cabo. Um propósito a prosseguir de forma necessariamente descontínua, tendo em conta o tempo que nos é dispensado. II. A obra e o Legado de SUTHERLAND 2. Se é conveniente e pertinente referenciar uma data, podemos assinalar 1949 como o início da investigação e da teorização criminológica do crime de colarinhos brancos. Foi nesse ano que apareceu White-Collar Crime, o conhecido livro de E. SUTHERLAND, uma obra que, no juízo de MANNHEIM1, creditaria o seu autor com o direito ao prémio Nobel, se houvesse um prémio Nobel para a criminologia. Como sempre acontece na história das ideias, também aqui é possível referenciar, multiplicados ao longo dos séculos, antecedentes mais ou menos explícitos e conscientes dos argumentos que deram peso à obra de SUTHERLAND. São, com efeito, recorrentes na literatura – maxime entre moralistas, como ERASMUS ou VIEIRA, ou romancistas, como BALZAC – as tomadas de posição a sublinhar tanto a frequência dos crimes dos poderosos como o seu tratamento privilegiado. Expressiva neste contexto a controvérsia entre Sócrates e Trasímaco, levada por PLATÃO às páginas de A República. Temos, em vista a parte do diálogo em que Trasímaco, antecipando os termos do que hoje se designa por criminologia do conflito,2 confronta o idealismo optimista de Sócrates com a cortante asserção: “afirmo que a justiça não é outra coisa senão a vantagem do mais forte”. É, de resto, conhecida a história devida à tradição, que nos recorda a cena de Alexandre a censurar o pirata com que se cruzara nos mares e que acusa pela sua prática de rapina e de espalhar o medo e a insegurança na circulação marítima. Tudo em consonância com a representação colectiva, mais ou menos explícita ou latente mas sempre presente, segundo a qual a malha da justiça apanha o peixe miúdo mas deixa escapar o tubarão. Já no século passado é possível contar com um número significativo de publicações, orientadas para a teorização sociológica e de pendor vocacionadamente crítico, onde a referência aos robber barons se mostra particularmente insistente. Um panorama em que se justificará uma menção particular à obra de EDWIN HILL com o título sugestivo Criminal Capitalists (1872). 3. De todo o modo, para SUTHERLAND sobra sempre o mérito de ter legado o primeiro tratamento sistemático – tanto no plano da investigação empírica como do enquadramento na grande construção teórico-criminológica – do crime de colarinho 1 H. MANNHEIM, Criminologia Comparada, II, Lisboa, 1985, p.722. É assim, pelo menos, na interpretação de R. DAHRENDORF. Cf., do autor, Ensaios de Teoria da Sociedade, Rio de Janeiro, 1974, p. 151 ss. 2 97 branco. E de o ter feito provocando ondas de choque e abalos que condicionaram decisivamente a evolução ulterior do pensamento e da praxis em todos os domínios das ciências criminais (criminologia, política-criminal e direito penal). De resto, e à semelhança do que tantas vezes acontece com os eventos mais marcantes da história da ciência, a obra de SUTHERLAND vale seguramente mais pelos efeitos reflexos e indirectos que desencadeou – muitos claramente fora do alcance da sua previsão e domínio – do que pelo conteúdo directo e explícito, de que o autor expressamente se louvava. Neste último plano, a obra resulta comprometida por muitas e indisfarçáveis debilidades, incongruências e contradições. À luz do estado actual do conhecimento científico e do pensamento metodológicoepistemológico não será arriscado considerar definitivamente ultrapassado o legado criminológico directo de SUTHERLAND. Mesmo atendo-nos à área nuclear da sua elaboração teórica e investigação empírica, pouco sobrará com a indispensável consistência e fecundidade. É o que bem ilustra a inconsistência de dois dos mais celebrados contributos de SUTHERLAND: por um lado, a definição de white-collar crime; e, por outro lado, a tentativa de enquadrar a experiência desta forma de delinquência no contexto da teoria da associação diferencial, avançada pelo autor como uma nova teoria monofactorial capaz de explicar todas as manifestações de delinquência. E de o fazer sem a invencível petição de princípio, comum à generalidade das teorias multifactoriais até então aventadas por criminólogos e sociólogos. 4. Numa primeira aproximação, nada mais linear e consistente do que a definição de white-collar crime proposta por SUTHERLAND. De forma sintética: um crime cometido por uma pessoa de elevado estatuto económico-social no exercício da sua actividade profissional. a) Trata-se, à partida, de um conceito animado de uma intencionalidade reformista e crítica, apostado em alargar as fronteiras do problema criminológico e, por vias disso, fazer entrar no âmbito do criminológicamente relevante “uma extensa área do comportamento delinquente que é, por via de regra, esquecida”3, indo ocupar um lugar privilegiado nas cifras negras da criminalidade oculta. Só que os limites e mesmo as contradições deste programa resultam imediatamente expostos. Na medida em que se propõe ultrapassar o universo de condutas incriminadas pelo direito positivo – e não é seguro que o tenha querido – acaba por apelar para outras manifestações de ilícito. E exigir em conformidade que o white-collar crime configure, ao menos, um ilícito (civil, administrativo, etc.). Como facilmente se intui, uma solução que corta rente as aspirações de uma impostação reformista. Se é certo que o horizonte da reforma sempre será alargado, a verdade é que ele continuará a circunscrever-se ao âmbito do que merece o sancionamento do direito positivo. O que, bem vistas as coisas, resulta sobremaneira benigno para os detentores do poder. Ou, de forma talvez mais rigorosa, para os que ganham com o manto de esquecimento assegurado pelas cifras negras. 98 Assim, para tornar inócua a vis reformista bastará deslocar a trincheira da resistência da definição do ilícito criminal para a prescrição do ilícito civil ou administrativo4. b) Também não resulta unívoco o sentido que o autor reserva à expressão whitecollar. Seguro parece apenas que pretende dar-lhe uma compreensão diferente da que vinha colhendo no campo da teorização sociológica e que encontraria a versão paradigmática no livro de WRIGHT MILLS, White Collars (1951). Só que SUTHERLAND está longe de assumir consequentemente esta opção. Se é certo que por vias de definição ele aponta recorrentemente para as pessoas de elevado estatuto económico-social, sc., para as verdadeiras elites do mundo dos negócios – as pessoas pertinentes à power elite5 – a verdade é que acaba por centrar a sua investigação prevalentemente sobre os quadros médios superiores de grandes corporations, isto é, sobre um universo qualificado de agentes portadores de valores, atitudes e motivações no essencial sobreponíveis às dos white-collars, na terminologia de WRIGHT MILLS. E isto descontada mesmo a frequência com que, nos dados empíricos recolhidos e teoricamente valorados, abunda a referência a manifestações de deviance da responsabilidade de operários de pequenas firmas ou oficinas (de relógios, automóveis, electrodomésticos, etc). O que tende a dissolver o conceito de white-collar crime no conceito mais amplo de occupational crime em que se esbatem as diferenças entre white-collar crime e blue-collar crime, na linha da correcção proposta por QUINEY6 à definição de SUTHERLAND. De um modo ou de outro, os verdadeiros detentores do poder económico e reflexamente os maiores beneficiários do white-collar crime, acabam por ficar à margem da teorização criminológica de SUTHERLAND e imunes às suas propostas de política criminal. 5. As coisas resultam ainda mais óbvias do lado da construção teórica. a) Resumidamente, com a descoberta do white-collar crime pretendeu SUTHERLAND ter encontrado a prova que faltava para dar suporte, deixando-a sem alternativa plausível, à teoria da associação diferencial. Cuja elaboração, sustentação e defesa erigiu em desígnio da sua carreira científica. E face à qual tanto a investigação empírica como a reflexão teórica em matéria de white-collar crime assume um papel meramente subordinado e instrumental. Tal como consta, desde a versão originária (1939) do livro Principles of Criminology, em boa verdade a obra capital de SUTHERLAND, a associação 3 E. SUTHERLAND, “Crime and Business”, The Annals of the American Academy of Political and Social Sciences, 1941, p.112. 4 Sobre esta observação, que faz eco da refexão da criminologia crítica ou radical, cf., por todos, G. GRABINER, “The Limits of Three Perspectives on Crime: 'Values-free Science', Óbjective law' and' State morality'”, Issues in Criminology, 1973, p. 35 ss; SCHWENDINGER(H./J.), “Defenders of Order or Guardians of Human Rights?” in:I. TAYLOR/P. WALTON/J. YOUNG (Edit.), Critical Criminology, London, 1975, p. 474 ss. 5 Power elite é o conceito que dá o título a outra das obras marcantes de W. MILLS, The Power Elite, 1956, aqui citada na versão portuguesa, A Elite do Poder, Rio de Janeiro, 1975. 99 diferencial é uma teoria sociológica, monofactorial, que se reivindica capaz de explicar todas a formas e tipos de deviance. E, nessa linha, vocacionada para desferir o golpe de misericórdia nas velhas representações criminológicas que, em consonância com o estereótipo lombrosiano, encaravam o delinquente como um ser diferente e, hoc sensu, anormal ou patológico7. E que, do lado da criminologia de fundo sociológico, privilegiavam a eficácia etiológica de variáveis associadas às ideias de crise, pobreza, miséria, marginalidade, etc. Apresentada de forma analítica, a teoria integrava um conjunto de nove teses. Entre elas, o primado era claramente reservado à tese n.º6: “uma pessoa torna-se delinquente quando o peso das definições positivas da violação da lei supera o peso das definições negativas”. b) Para levar por diante o seu propósito, SUTHERLAND afasta com indisfarçável ligeireza o relevo explicativo de factores como a pobreza. Sendo certo que a circunstância óbvia de a miséria não explicar o white-collar crime não é razão cientificamente convalidada para, sem mais, denegar toda e qualquer fecundidade heurístico-criminológica à pobreza. Por parecer seguro que a pobreza pode ter um peso acrescido na génese de manchas consideráveis de delinquência. Não suscita menor espanto a facilidade com que o autor afasta a relevância das variáveis psicológicas, psiquiátricas ou psicanalíticas, só possível à custa de flagrante petição de princípio. Por um lado, não se demonstra que o sucesso económico figure, só por si e invariavelmente, como sinal da “normalidade” psicológica. Por outro lado e complementarmente, mesmo admitindo, à custa de arriscado salto lógico, a tese da “normalidade” dos delinquentes de colarinhos brancos, sobrará sempre por confirmar/infirmar a pertinência da afecção psicológica na criminogénese de outros domínios da fenomenologia criminal. Nada, por isso, menos conclusivo do que a conhecida e tantas vezes citada afirmação de SUTHERLAND: “os líderes do mundo dos negócios são pessoas capazes, emotivamente equilibradas e em nenhum sentido patológicas. Não há nenhuma razão para acreditar que a General Motors sofre de um complexo de inferioridade; que a Aluminium Company of America sofre de um complexo de frustração-agressão; a U.S. Steel tem complexo de Édipo; a Armour Company tem o desejo de morte ou que a Du Ponts deseja voltar para o ventre materno. O postulado de que o delinquente tem de sofrer de alguma destas perturbações do foro intelectual ou emotivo parece-me absurdo. E se é absurdo no que toca aos crimes dos homens de negócios, terá igualmente de o ser 6 Cf. R. QUINNEY, “The Study of White-Collar Crime:Toward a Reorientation in Theory and Research”, Journal of Criminal Law, Criminology and Police Science, 1964, p. 208 ss. 7 Sobre o “modelo médico” ou “epidemiológico” de compreensão do crime, cf.,E. SCHUR, Radical NonIntervention, Englewood, 1972, p.81 ss; D. MATZA, Delinquency and Drift, London, 1964, p.17 ss. 100 quanto aos crimes cometidos pelos membros das classes economicamente mais baixas”8. c) Também o discurso tecido por SUTHERLAND para demonstrar, pela positiva, a teoria da associação diferencial se revela sobremaneira inconsistente e metodologicamente incongruente. Tudo, com efeito, parece assentar num invencível desfasamento entre os dados recolhidos e a hipótese teórica a convalidar. É que, a serem pertinentes os dados e os factos recolhidos, eles acabam por infirmar, em vez de confirmar a associação diferencial. Por via de regra, os dados recolhidos por SUTHERLAND apontam para delinquentes de white-collar crime que em termos ideal-típicos se podem sintetizar: jovens e ambiciosos college boys, que chegam ao mundo dos negócios no termo de um processo de socialização (na família, na igreja e na escola) que lhes permitiu interiorizar os valores e os mores da legalidade e da cultura da respeitável sociedade americana. Em termos tais que a interpretação de SUTHERLAND sugere imediatamente a ideia das “técnicas de racionalização ou de neutralização”, pertinentes a uma teoria de grande fecundidade heurística, mas assente no postulado da continuidade entre as convicções do delinquente e os valores da cultura dominante. Ou, na linguagem de SUTHERLAND, na prevalência das definições negativas da deviance. Tudo estará, com efeito, em neutralizar não os valores e a cultura em si – a que continua a jurar-se fidelidade –, mas a sua valência face ao caso concreto9. Elucidativa, a este propósito, a resposta de um dos delinquentes de colarinhos brancos entrevistados por SUTHERLAND:” When I graduated from college I had plenty of ideas of honesty, fair play and cooperation which I had acquired at home, in school and from lectures”. Noutros termos, e ao arrepio do enunciado nuclear da associação diferencial, tudo parece sugerir delinquentes que convivem com definições negativas da delinquência com um peso relativamente superior ao das definições positivas. E, todavia, cometem crimes. Ao arrepio do enunciado nuclear da teoria da associação diferencial. 6. Como ficou sugerido, seriam mais duradoiros e de maior fôlego os efeitos indirectos e reflexos da investigação e da teorização de SUTHERLAND sobre as ciências criminais e, em particular, a criminologia. Nesta linha não será mesmo impertinente acreditar que, tal como hoje se entende e se pratica, a criminologia é grandemente tributária da sucessão de réplicas desencadeadas pela descoberta e teorização do white-collar crime. 8 Cf. The Sutherland Papers (Edit. A. COHEN/A. LINDESMITH/ K. SCHLUESSLER), Bloomington, 1956, p. 96. 9 Sobre as técnicas de neutralização, cf. infra. Para uma crítica mais desenvolvida à teoria da associação diferencial como explicação do white-collar crime, M. CLINARD, The Black Market: A Study of WhiteCollar Crime, N.York, 1952, p. 298 ss;R. LANE, “Why Business Men Violate the Law” Journal of Criminal Law, Criminology and Police Science, 1953, p. 159; K. OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, München, 1975, p, 68 ss. 101 Na impossibilidade de um levantamento mais aturado, convirá sinalizar algumas das vias mais expostas de comunicabilidade entre a teoria do white-collar crime e a criminologia actual. a) Em primeiro lugar, foi em boa medida a experiência do white-collar crime que impôs uma (re)definição do problema e do campo criminológico, induzindo ao mesmo tempo um enriquecimento do arsenal de instrumentos e de técnicas de investigação e um alargamento do espectro de hipóteses explicativas. Depois da descoberta do whitecollar crime não podia continuar a circunscrever-se o criminológico ao problema etiológico sob o pressuposto da definição do crime como um dado. Em vez disso, rectius para além disso, a criminologia foi também chamada a clarificar a génese, o triunfo, os mecanismos e estratégias de conservação e legitimação da ordem social e da construção social da realidade que a suporta. E, reflexamente, as margens de tolerância que está disposta a conceder às construções alternativas. Nesta linha, a criminologia foi chamada a decifrar (pondo em evidência as variáveis que o condicionam) o discurso da criminalização primária, às mãos do legislador penal. E, num segundo momento, recensear e referenciar no seu peso relativo os mecanismos de selecção que operam ao nível da criminalização secundária. Trata-se aqui de tentar descobrir as regularidades que explicam: por um lado, o defasamento entre a criminalidade real e a criminalidade oficial, sc., a criminalidade conhecida pelas instâncias formais de controlo, ao menos ao nível da polícia, considerada o first-lineenforcer; e, por outro lado, a chamada “mortalidade de casos criminais” ao longo do corredor da reacção à deviance. b) Como resulta do exposto, foi em boa medida o white-collar crime que estimulou o estudo da chamada sociologia da sociedade punitiva – ou, como os criminólogos de inspiração freudiana preferem, a “psicanálise da sociedade punitiva”. O que em boa medida explica a emergência de uma nova criminologia do conflito que faz ouvir, no âmbito da sociologia ocidental, um discurso no essencial sobreponível às representações da criminologia de inspiração marxista10. Um discurso onde sobressai a denúncia do direito penal como instrumento de “classe”: longe de configurar a cristalização dos valores consensuais e básicos da comunidade, o direito penal assegura aos interesses dos grupos historicamente dominantes o seu triunfo sobre os interesses antagónicos. Expressivo neste contexto é o contraste frequentemente citado entre a punição extremamente rarefeita e benigna do white-collar crime face à densificação da teia de incriminações votadas à tutela do património. c) O white-collar crime viria também a converter-se num novo tópico da criminologia socialista. Apesar da crítica sistematicamente dirigida ao que designa por 10 Nesta linha avultam particularmente os nomes e as obras de G. VOLD, Theoretical Criminology, N.York,1958; A. TURK, Criminality and Legal Order, Chicago, 1969. Para uma referência mais aturada, S. REID, Crime and Criminology, N.York, 1979, p, 206 ss; A. BARATTA, “Conflitto sociale e criminalità. Per la critica della teoria del conflitto in criminologia”, La Questione Criminale, 1977, p.14 ss. 102 “criminologia burguesa”, é com indisfarçável simpatia que SUTHERLAND e a sua obra são recebidas e citadas pela criminologia socialista. Expressivo o confronto face à recensão reservada às demais correntes do pensamento criminológico ocidental, principalmente às de índole individual-antropológica – o apodo de “lombrosiano” chegou a valer entre os criminólogos da URSS ou RDA como um estigma marcadamente negativo, por vezes mesmo com efeitos práticos muito gravosos – psicológica, psicanalítica ou mesmo sociológica. A explicação desta atitude é, de resto, óbvia. Com a descoberta do white-collar crime acreditou a criminologia socialista ter encontrado a pedra angular e última do seu edifício teórico e da sua tese nuclear: o carácter intrínseca e estruturalmente criminógeno da sociedade capitalista. Uma sociedade marcada pelo egoísmo e antihumanismo, pela busca desesperada do lucro e pela luta de todos contra todos. Estaria, assim, encontrado o ponto de apoio que permitia ultrapassar os limites dos primeiro paradigma marxista – e devido sobretudo à obra de ENGELS, A Situação das Classes Trabalhdoras na Inglaterra (1844/5) – exclusivamente virado para o crime das classes trabalhadoras, progressivamente massificadas na miséria e condenadas ao crime, a 25.ª hora da luta pela sobrevivência. A partir de SUTHERLAND tornava-se claro que o crime continuaria a persistir como a marca irredutível do capitalismo. Mesmo na hipótese teoricamente absurda de ele lograr erradicar a miséria. Pelo menos subsistiria o crime dos possidentes, em crescimento exponencial e directamente proporcional ao ritmo da concentração capitalista e monopolista11. d) A experiência do white-collar crime está também associada às grandes transformações do direito penal na segunda metade do século. Ela representa um dos factores mais determinantes do movimento de neo-criminalização que desembocaria na emergência e no triunfo do chamado direito penal secundário. Uma extensa área do direito penal (da economia, da saúde, do ambiente, fiscal, etc.), marcado pela novidade, pela especificidade dos bens jurídicos (bens jurídicos supra-individuais e, de algum modo, construídos normativamente) e pela inovação que impôs na compreensão de conceitos ou princípios clássicos do direito penal. Desde a legalidade (abrindo o campo à proliferação das “leis penais em branco”), à culpa (obrigando a abrir a porta à punibilidade das pessoas colectivas e provocando uma nova forma de equacionar e superar os problemas do erro)12. Este movimento deve-se fundamentalmente à confluência de duas ordens de razões. Por um lado, o crescente intervencionismo do Estado na economia, na saúde, na cultura, na educação, no ambiente. Um Estado que chegou mobilizado pelas tarefas da 11 Para uma primeira síntese sobre o tema, F. BERKHAUER, “Wirtschaftskriminalität in Deutschland. Ein Systemvergleich zwischen der Deutschen Demokratischen Republik und der Bundesrepublik Deutschland”, Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, 1975, p. 788 ss; H. HARRLAND, Imperialismus als Quelle des Verbrechens, Berlim,1972, sobretudo p. 69 ss; OPP, Soziologie der Wirtschaftscriminalität, p. 118 ss. 12 Sobre o direito penal secundário (conceito e princípios fundamentais), F. DIAS, Para Uma Dogmática do Direito Penal Secundário, Coimbra, 1984. 103 reconstrução da Europa destruída e pela urgência de assegurar a sobrevivência dos seus povos. Mas que acabou por ficar como responsável pela Daseinsvorsorge, assumindo sobre si o dever de assegurar a todos limiares mínimos de subsistência compatíveis com as exigências irredutíveis da dignidade humana. Decisiva em segundo lugar e complementarmente a própria experiência da criminologia do white-collar crime. Que veio pôr a descoberto o universo de condutas recondutíveis àquele conceito, condutas que, apesar da sua extensão, frequência e danosidade social particularmente drástica, persistiam sistematicamente impunes. Mas que o Estado – agora um Estado democrático, mas também social – não podia continuar a encarar como meros Kavaliersdelikte. E recondutíveis, quando muito, a meras manifestações de antiadministratividade (na linha de GOLDSCHMIDT e WOLF)13 e, como tais, imunes ao estigma e à censura do ilícito penal. A tanto se opunha, de resto, o princípio de igualdade. III. A Criminologia do white-collar crime 7. Chegados aqui, cabe deixar, a traço necessariamente grosso, um registo do panorama actual da criminologia do white-collar crime. Com uma correcção à partida: em vez de uma criminologia do white-collar crime – concebida como um capítulo autónomo e com uma topografia determinada no universo das ciências criminais – será talvez mais ajustado falar de uma nova criminologia, influenciada e co-determinada pela experiência do white-collar crime. Por ser evidente que a experiência do whitecollar crime “colonizou” de forma sistémica todo o espaço da criminologia. Abrindo uma concessão à linguagem do momento, será mais correcto um paradigma de “globalização” do que de localização teórica. 8. Conceito de white-collar crime – Para ter a indispensável consitência e fecundidade heurístico-teórica, há que manter, no essencial e devidamente depurada, a definição adiantada por SUTHERLAND, não abrindo nomeadamente mão da exigência de se tratar de crime cometido por pessoa de elevado estatuto económico-social. Nada, com efeito, parece ganhar-se com a adopção de um conceito de occupational crime (QUINNEY), um conceito tendencialmente generalizado e susceptível de abarcar tanto os white-collars como os blue-collars. De precisar ainda, na linha da actual compreensão do objecto da criminologia, que a expressão crime não abrange apenas o comportamento declarado punível por lei positiva. Pode tratar-se tão só de manifestações de danosidade social criminalizáveis ou, ao menos, susceptíveis de levantar o problema da criminalização. Por outro lado, resulta clara a distinção entre o conceito criminológico de whitecollar crime e o conceito jurídico-penal de crime económico. Como é próprio das categorizações normativas ou dogmáticas, o crime económico é definido a partir da 13 Para uma síntese, C. ANDRADE, “Contributo para o Conceito de Contra-Ordenação. A Experiência Alemã”, Revista de Direito e Economia, 1980/81, p. 93 ss: 104 especificidade dos bens jurídicos atingidos: bens jurídicos supra-individuais, correspondentes a valores ou interesses atinentes à ordenação económica no seu conjunto ou a ramos fundamentais daquela ordenação. Trata-se, seguramente, de conceitos com uma extensão em boa medida comum, mas que cobrem fenomenologias não inteiramente sobreponíveis. Por ser evidente que nem todo o crime de colarinho branco será crime contra a economia nacional (pense-se, vg., num crime contra a saúde praticado pelo rico e poderoso director de uma clínica); como, inversamente, nem todo o crime contra a economia tem de ser um crime de colarinho branco (pense-se, por exemplo, no crime de Especulação praticado por uma modesta peixeira). 9. Fenomenologia – a) Tal como fica sumariamente definido, o conceito de whitecollar crime projecta-se sobre uma extensa e heterogénea fenomenologia que ultrapassa as fronteiras do crime económico, a que anda preferencialmente associado. Bem vistas as coisas, mesmo as infracções pertinentes ao direito penal clássico podem revestir o carácter de crime de colarinho branco. Será assim sempre que ele seja praticado por uma pessoa de elevado estatuto económico-social (no exercício das suas funções). Isto sem se desconhecer que há áreas da delinquência normalmente pertinentes à categoria de white-collar crime. É o que tende a suceder, para além dos crimes contra a economia nacional, com os crimes contra a saúde, o ambiente, o património cultural, o fisco, a concorrência, etc. Outra nota distintiva desta criminalidade é a associação particularmente estreita às estruturas económico-sociais. O que se espelha na sua relatividade e variabilidade: tanto numa perspectiva diacrónica como comparatística. Tal vale, mais uma vez e paradigmaticamente, para as infracções anti-económicas, que obedecem a um desenho e a um sentido inteiramente díspares no contexto, respectivamente, de uma economia de mercado ou de uma economia socialista e dirigida. Elucidativo o confronto das experiências americana e soviética nos anos sessenta. Enquanto nos Estados Unidos se julgavam e condenavam por cartelização e práticas monopolistas os agentes dos célebres Philadelphia electrical equipment cases, no mesmo ano eram condenados à morte na URSS os agentes que, em violação do monopólio (estadual), tinham ensaiado formas (privadas e) concorrenciais de organização empresarial. b) A variabilidade e a relatividade são outrossim confirmadas pela experiência portuguesa dos últimos 25 anos. É o que, mesmo na ausência de uma comprovação empírica e estatística definitiva, o mais perfunctório exame da casuística disponível deixa a descoberto. Resumidamente, durante os primeiros dez anos desse período os tribunais portugueses foram sobretudo chamados a decidir casos de Especulação e de Açambarcamento. Isto no contexto de uma experiência política e económica privilegiadamente vocacionada para assegurar o regular abastecimento do mercado e a estabilidade dos preços aos níveis politicamente desejáveis. 105 Na década seguinte a criminalidade económica identificou-se sobretudo com os crimes de Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de Desvio de subvenção, subsídio ou crédit bonificado (arts 36.º e 37.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro). Mais uma vez, é patente a vinculação à conjuntura económica: foi o período imediatamente subsequente à adesão de Portugal às Comunidades Europeias, que fez afluir ao nosso país grandes correntes de fundos destinados a subsidiar os mais diversos sectores de actividade. Uma realidade que constituiu o caldo de cultura para as plúrimas e diversificadas práticas de obtenção abusiva e de desvio. Também não será arriscado apontar a Fraude fiscal (art. 23.º do Regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras), maxime na modalidade do que ficou conhecido como “facturas falsas”, como a manifestação mais significativa de crime económico dos últimos cinco anos. E, por vias disso, também este um ilícito que – mesmo descontadas as elevadas cifras negras – acabou por trazer à barra dos tribunais criminais um número considerável de agentes de colarinho branco. c) Neste apressado rastreio, também não será difícil representar o impacto profundamente negativo da criminalidade de white-collar. Apesar de todas as divergências ao nível da quantificação, é hoje consensual o entendimento de que o white-collar crime se projecta numa danosidade social particularmente qualificada. c)1. A danosidade social começa por ter uma dimensão material, traduzida nos prejuízos impostos à sociedade e susceptíveis de mensuração pecuniária. Por exemplo, para a Alemanha antes da reunificação, os autores apontam para prejuízos materiais situados entre os 10 e os 15 biliões de DM14. Neste mesmo país calcula-se que a carga fiscal no seu conjunto poderia baixar de um terço se todos os contribuintes honrassem as suas obrigações fiscais. Nos Estados Unidos acredita-se que a descida poderia atingir, mesmo, os 40%. Neste mesmo país, e segundo a President's Commission on Law Enforcement and Administration of Justice só a consumer-fraud terá custado em 1966 aos consumidores americanos 1.350 milhões de dólares. Enquanto isto e para o mesmo período, os prejuízos causados pelo embezzlement e pela fraude fiscal terão atingido, respectivamente, as somas de 200 e 100 milhões de dólares. Recorda-se ainda que no âmbito da Electrical conspiracy (Filadélfia, 1961), só a General Electrical terá arrecadado mais de 50 milhões de dólares de lucros indevidos15. No capítulo dos danos materiais cabe ainda citar os prejuízos decorrentes da fraude e desvio de subvenções. E que resultam da frustração dos objectivos ou metas a cuja prossecução os fundos estavam vinculados: crescimento económico, desenvolvimento científico, tecnológico, regional, formação profissional, etc. Embora dificilmente avaliáveis, trata-se, seguramente de prejuízos avultados que, de qualquer forma, acabam por comprometer drasticamente o desenvolvimento material e cultural dos povos atingidos. 14 OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 32. Para uma referência mais desenvolvida, cf. President's Commission on Law Enforcement and Administration of Justice, Task Force Report: Crime and its Impact, 1967, p. 44 ss. 15 106 c)2. A par dos danos materiais avultam, igualmente óbvios e derimentes, os danos imateriais ou morais. A começar pelos danos que atingem directamente os valores da mais eminente dignidade pessoal, como o caso da Talidomida deixou patente e dramaticamente a descoberto. Para além disso, dentre os tópicos mais recorrentemente citados, sobressai a ideia, já sublinhada por SUTHERLAND, de “destruição da confiança” no sistema económicosocial e nas correspondentes ordenação jurídica e organização política. Como, fazendose eco da ideia, assinalava o tribunal americano que julgou a “conspiração eléctrica” de Filadélfia: “a conduta das sociedades e indivíduos implicados repercutiu-se negativamente sobre a imagem do sistema económico da livre empresa que nós professamos e comprometeu irremediavelmente o modelo que oferecemos, como alternativa de liberdade, ao controlo estatal e eventualmente a uma ditadura”. Noutra perspectiva, falam alguns autores – sobretudo alemães – de um “efeito-deespiral”: o crime económico multiplica-se em condutas ilícitas, sobretudo por parte dos concorrentes do infractor16. Do que não parecem subsistir dúvidas é de que o whitecollar crime, na medida em que reforça o “sentimento de injustiça” difuso na comunidade, reforça ao mesmo tempo as cotas de cinismo na vida comunitária, um factor de elevado potencial criminogéneo. Seguro e confirmado parece igualmente que o white-collar crime – e, nomeadamente a representação da sua frequência e impunidade – figura como um dos mais insistentes e fortes motivos ou referências das chamadas técnicas de neutralização ou racionalização por parte dos agentes de outras manifestações de delinquência. 10. Selecção e mecanismos de selecção – a) A selecção configura outro dos campos da investigação criminológica em que o white-collar crime assume um peso privilegiado. Além do mais porque a referência às cifras negras do crime de colarinho branco figura invariavelmente como topos do discurso da teoria e da investigação da selecção17. Inversamente, é também do ponto de vista da selecção que a criminologia do white-collar crime regista os avanços mais significativos e os “adquiridos” mais estabilizados intersubjectivamente. Consensual e definitivo, em primeiro lugar, o próprio facto da selecção, isto é, o facto de o desfasamento entre a criminalidade real e a criminalidade oficial – maxime a criminalidade tratada como tal em última instância – ser aqui desproporcionadamente superior. Este dado, correspondente às representações colectivas, é invariavelmente confirmado pela investigação empírica, a começar pelos trabalhos pioneiros de 16 Sobre este “efeito-de-espiral” (Sog-und Spiralwirkung) – já referenciado por SUTHERLAND como diffusion of illegal practices – cf. W. ZIRPINS/O. TERSTEGEN, Wirtschaftskriminalität. Erscheinungsformen und ihre Bekämpfung, Lübeck, 1963, p. 32 ss. Para uma avaliação crítica, OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 96 ss. 17 Para uma referência mais aturada ao white-collar crime do ponto de vista da selecção, cf. VOLD, Theoretical Criminology, p. 243; F. PEARCE, O Marxismo e o Crime, Lisboa, 1977, p. 83 ss; B. KRISBERG, Crime and Privilege. Toward a New Criminology, Engewood, 1975; R. WASSERMANN, “Gedanken zur Wirtschaftskriminalität”, Vorgänge. Zeitschrift für Gesellschaftspolitik, 1973, p. 26 ss. 107 SUTHERLAND. Por isso, uma evidência que dispensa quaisquer contributos de sustentação nesta sede. Por seu turno, também não será difícil referenciar um consenso de fundo quanto à explicação desta selecção qualificada, ou seja, quanto à identificação dos principais mecanismos de selecção. À semelhança do que sucede na teoria criminológica geral18, também aqui sobrelevam dois importantes mecanismos de selecção: o estereótipo e o poder relativo do infractor. b) Os estereótipos são sistemas de representação, mais ou menos conscientes, que dirigem a acção na interacção quotidiana. São, na caracterização pioneira de W. LIPPMAN, “pictures in our minds”. Para além de orientarem a acção do homem comum, os estereótipos condicionam igualmente o quotidiano dos membros das instâncias de controlo. Ora, a verdade é que os white-collars não apresentam os sinais que os estereótipos associam ao crime. Sinais que, no essencial, continuam a identificar o crime e o criminoso segundo as velhas representações lombrosianas do agente e as teorias sociológicas tradicionais que associavam o crime à pobreza, à família desfeita, à área delinquente, à subcultura ou contra-cultura, à carência de oportunidades. Tudo estigmas que o agente do white-collar crime manifestamente não exibe. Por isso é que a “criminalidade económica não fala à fantasia e afectividade do povo” (REIWALD). Não sendo “cliente” normal das instâncias de controlo, os colarinhos brancos não estão sujeitos aos pertinentes efeitos de self-fullfilling prophecy e de “reprodução” da delinquência. Por via de estereótipo, a criminalidade de white-collar é particularmente invisível para o sistema formal de controlo. Uma invisibilidade que acresce à invisibilidade decorrente da dispersão (atomização), desorganização e inconsciência das “vítimas”. Como SUTHERLAND não deixava de reconhecer, “o poder dos criminosos de whitecollar reside na fraqueza das suas vítimas”. Uma asserção que verá a sua plausibilidade particularmente acrescida nas situações de vitimização do infinitamente pequeno económico pelo infinitamente grande económico. Isto é, nos “crimes cometidos pelas monstruosas organizações económicas contra indivíduos demasiado fracos e ignorantes para serem sequer capazes de se aperceber que foram vitimizados” (CHRISTIE)19. É por isso que fundadamente se pode sustentar que, do ponto de vista criminológico, isto é, na perspectiva da autorepresentação e da assunção do papel de vítima, o white-collar crime configura um victimless crime. Estreitamente associada, há ainda a invisibilidade devida à ambivalência da valoração moral do white-collar crime. Pelo menos ao nível das representações colectivas, nem sempre o white-collar crime aparece como um “autêntico” crime. Como recorda AUBERT, a lei que incrimina o white-collar crime raramente está em 18 Por todos, F. DIAS/C. ANDRADE, Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Criminogénea, Coimbra, 1984, p. 387 ss. 19 N. CHRISTIE, “Conflicts as Property”, The British Journal of Criminology, 1977, p.7. 108 consonância aparente com os mores. O normal será, pelo contrário, um acentuado desfasamento entre os imperativos criminais e as normas – seguramente informais mas nem por isso menos determinantes – que presidem à acção e à interacção na vida quotidiana. “ Nalgumas áreas e em relação a certos grupos – precisa o autor – não se verifica um desajustamento mas um autêntico conflito entre a lei e os mores ou ideologias tradicionalmente aceites. Em tais casos, é frequente verificar-se a ambivalência nas atitudes e respostas ao white-collar crime, a partir de uma lealdade dividida entre as crenças sociais”20. A ambivalência será tanto maior quanto mais a sociedade estiver organizada em torno do sucesso, da obtenção dos goals culturalmente impostos. É o que tende a acontecer nas sociedades assentes no liberalismo económico e no mercado, onde o crime económico obedece a valores operativos que são, no fundo, os mesmos que presidem às normas incriminatórias. E onde, por isso, a fronteira entre o crime económico e a expressão pura e simples da “inteligência” ou do “génio” tende a esbaterse. A ambivalência aflorou, particularmente nítida nas reacções da sociedade americana, abertamente dividida, face ao processo de Filadélfia no caso da cartelização dos preços dos equipamentos eléctricos. Não tendo faltado as vozes a protestar o seu espanto e indignação por ver “homens bons” – bons chefes de família, apoiantes activos das boas causas (religiosas, culturais, assitenciais...) sentados no lugar normalmente ocupado pelos “verdadeiros” criminosos. Acresce, por último e já relacionada com o poder relativo do agente, a invisibilidade resultante da privacidade privilegiada dos agentes do crime económico: ao contrário do que tende a suceder com o crime comum, o white-collar crime ocorre normalmente em espaços imunes à devassa. Tudo reforçado pela complexidade técnica e consequente opacidade das operações que concretizam as infracções: cada vez mais operações sem tempo nem espaço, sem corpo nem rasto, e por causa disso, fora do alcance dos meios de investigação normalmente postos ao dispor das instâncias de controlo. c) O poder relativo do agente do crime de white-collar, que radica na “interpenetração de papéis”(OPP) ou nos “sistemas de contacto” (LUHMANN)21 entre a economia e o sistema penal, começa por ganhar relevo ao nível da “criminalização primária” e prolonga-se pela “criminalização secundária”, ao longo do “corredor” do processamento da delinquência. Se, por um lado, eles podem influenciar a feitura das leis penais (de criminalização, descriminalização, diversão, amnistia, etc.), eles podem, sobretudo, condicionar o resultado final do processo de aplicação. Tanto no plano adjectivo-processual como no plano material-substantivo. Como, reportando-se aos membros da power elite assinala MILLS, “são eles que determinam tanto o seu dever 20 V. AUBERT, “White-Collar Crime and Social Structure” in: D. CRESSEY/ D. WARD Cf. OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 162; N. LUHMANN, Legitimation durch Verfahren, Frankfurt, 1983, p. 75 ss. 21 109 como os deveres dos que lhes ficam abaixo. Não seguem apenas ordens, dão as ordens. Não são meros burocratas, comandam burocracias”22. No que ao plano substantivo concerne, convirá recordar que em nenhum outro domínio será mais óbvia a conhecida incompletude e plasticidade da lei(penal), sc., a sua exposição à codeterminação dos second codes 23 dos membros das instâncias formais de controlo. Ao contrário do que acontece no direito penal clássico ou comum – vg., Homicídio: “quem matar outra pessoa” (art.131.º do Código Penal) – aqui escasseiam as referências objectivas e unívocas. Em vez disso, predominam claramente as referências e os conceitos normativamente modelados e construídos e, como tais, expostos à codeterminação dialéctica no contexto do universo de sentidos do tipo. Isto é, conceitos cuja extensão e compreensão são, em boa medida um posterius em relação ao “círculo hermenêutico”. É assim a começar pelos valores ou interesses erigidos à categoria de bens jurídicos e convertidos em referentes teleológicos nucleares das incriminações24. Tudo se conjugando para reforçar o desfasamento entre a law in books e a law in action. No plano especificamente processual avulta a privilegiada competência de acção 25 – e a consequente e maior resistência à devassa – que os white-collars exibem face às instâncias formais de controlo. E que introduz a mais ostensiva amplitude à diferença com o delinquente comum. Para o qual tudo no processo – linguagem, ritos, gestos, arquitectura, vestuário, rostos dos outros significantes – é alheio e alienante. Ao contrário do que acontece com o agente de white-collar crime, o delinquente comum está obrigado a jogar no campo do adversário26. 11. Perspectivas teórico-explicativas. À semelhança do que sucede nos demais domínios da criminologia, também em relação ao white-collar crime têm sido mais modestos os avanços do lado da perspectiva etiológico-explicativa. Isto é, do lado da resposta ao problema clássico: porque é que as pessoas cometem crimes? Uma constatação que não justificaria, em qualquer caso, o abandono ou a renúncia à investigação e à teorização de índole explicativa. 22 A Elite do Poder, p. 338. Sobre o conceito e o respectivo alcance criminológico, P. MACNAUGHTON-SMITH “"Der zweite Code” in: K. LÜDERSSEN/F.SACK (Edit.), Seminar: Abweichendes Verhalten. II Die gesellschaftliche Reaktion auf Kriminalität, Frankfurt, 1975, p. 197ss. 24 Sobre o carácter normativamente construído dos bens jurídicos do direito penal secundário, SILVA DIAS,”O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro (Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro). Considerações Dogmáticas e Político-Criminais”, Fisco, Julho de 1990, p.29; F.DIAS/C. ANDRADE, “O Crime de Fraude Fiscal No Novo Direito Penal Tributário Português”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1996, p. 80 ss. 25 Sobre o conceito, F. DIAS/C. ANDRADE, Criminologia, p. 377 ss. 26 Convirá reter que esta assimetria se repete do lado da denúncia, onde são igualmente ostensivos os privilégios de que gozam os white-collars e as power elites. Como a “sociologia da denúncia” demonstra, as queixas ou participações por eles apresentadas ao sistema formal têm mais possibilidades de sucesso. Cf., neste sentido, D. BLACK, “Production of Crime Rates”, American Sociological Review, 1970, p. 733 ss. 23 110 a) Pelas razões sumariamente enunciadas, não parece que deva continuar a procurarse na associação diferencial “a” teoria capaz de oferecer uma interpretação causalista da criminalidade de white-collar. Como nada parece impor que, na esteira de SUTHERLAND, tenha de se proscrever e vetar a via das explicações de nível individual. E isto pese, mais uma vez, a escassa fecundidade explicativa das hipóteses até hoje adiantadas. Dentre as quais merecerão uma menção explícita as tentativas empreendidas por CORTÉS/GATTI e por MERGEN. CORTÉS/GATTI procuraram fundamentar uma interpretação psicanalítica do whitecollar crime. Trata-se fundamentalmente de explicar o crime – e o seu carácter ocasional ou prevalentemente profissional – segundo o modelo psicodinâmico de inspiração freudiana. Tudo dependeria do jogo e do peso relativo das pulsões do Id em conflito com a censura do Super-ego27. No “psicograma” do agente do white-collar crime esboçado por MERGEN sobressai uma personalidade primitiva, egoística, com dificuldades de contacto e de comunicação mas, ao mesmo tempo, narcisista, ambiciosa e dependente do sucesso material. Normalmente procura compensar as dificuldades ao nível da comunicação e da relação com manifestações de mecenato e generosidade. “É requintado, talvez também inteligente, mas raramente culto”. É, para além disso, extremamemnte dinâmico, amigo do movimento e da acção e indiferente ao risco28. b) Afiguram-se teoricamente mais consistentes e empiricamente mais sustentadas as vias de investigação psico-sociológica e sociológica. É o que pode ilustrar a citação, respectivamente, da teoria das “técnicas de racionalização ou de neutralização” e da teoria da “anomia”. b)1. A teoria das técnicas de neutralização – devida sobretudo ao estudo de SYKES/MATZA Techniques of Neutralization: a Theory of Delinquency (1957)29 – surgiu como contestação e alternativa às teorias da subcultura e da contracultura delinquentes. Ao contrário do que estas supunham, verifica-se que os delinquentes interiorizam os valores e as normas da sociedade dominante. O que explica a deviance, neste contexto de continuidade entre o delinquente e a cultura dominante, é o recurso às verbalizações ou racionalizações. São elas que “convert infraction to mere action” (MATZA), permitindo ao delinquente ter o bolo e comê-lo. São elas que permitem continuar a declinar fidelidade às normas e preservar a imagem de respeitabilidade sem ter de renunciar às gratificações da deviance nem de suportar os correspondentes sentimentos de culpa. Trata-se, noutros termos, de técnicas de “justificação” da conduta, assentes na manipulação e modulação do sentido e alcance das normas, em ordem a afastar a sua aplicação no caso concreto. Na síntese dos autores, a censura “flowing 27 J. CORTÉS/F. GATTI, Delinquency and Crime. A Biopsychological Approach. N.York, 1972, p. 215 ss. 28 Do autor, cf. sobretudo, Tat und Täter. Der Verbrecher in der Gesellschaft, München, 1971 p. 45 ss. 29 American Sociological Review, 1957 p. 664 ss. Para uma referência mais desenvolvida, C. ANDRADE, A Vítima e o Problema Criminal, 1980, p.155 ss; F. DIAS/C. ANDRADE, Criminologia, 1984, p. 235 ss. 111 from internalized norms and conforming others in the social environment is neutralized, turned back, or deflected in advance”30. A fecundidade teórico-explicativa das técnicas de neutralização face á criminalidade de white-collar revela-se em duas direcções. Por um lado e como deixámos antecipado, o white-collar crime figura, não raro, como referente de neutralização da culpa por parte dos delinquentes comuns. Que não se dispõem a suportar os custos da obediência às normas quando sabem – ou suspeitam – que as elites da sociedade, os expoentes da vida económica, política e social, isto é os moral entrepreneurs (BECKER), as violam com facilidade. Como, nesta linha acentua LANE, é a racionalização que oferece ao delinquente “ an explanation for his offense satisfactory to himself and to his presumed or real accusers”31. Por outro lado e sobretudo, também os delinquentes de white-collar recorrem com grande frequência à neutralização da culpa. Não será mesmo arriscado acreditar que a criminalidade de white-collar, e particularmente a criminalidade económica, constitui o terreno privilegiado da s técnicas de neutralização. Pela natureza das coisas, dificilmente se encontrará domínio onde seja mais linear – e subjectivamente mais instante32 – racionalizar no sentido de a conduta ser “sempre ilegal e raramente imoral” (W. MILLS). Na síntese de AUBERT, “o que distingue o delinquente de white-collar é o facto de ele ter à sua disposição um bem elaborado e geralmente aceite sistema de racionalizações ideológicas para a sua delinquência”33. É o que os estudos votados à análise das motivações destes agentes não deixam de assinalar. Significativo, de resto, o facto, de já antes da publicação do estudo de SYKES/MATZA, a ideia de neutralização da culpa ter ocupado um lugar de relevo em clássicos da criminologia do white-collar crime como The Black Market: A Study of White-Collar Crime (1952) de M. CLINARD ou Other People's Money: A Study in the Social Psychology of Embezzlement (1953), de D. CRESSEY. O primeiro põe em relevo a frequência com que os agentes denunciam a inadequação das normas legais violadas, obra de políticos desconhecedores, se não mesmo inimigos de uma economia assente na livre empresa e nas leis do mercado. Segundo o autor, “uma justificação comummente avançada pelos operadores do mercado negro é a de que o governo não tem qualquer direito para interferir no curso dos seus negócios”. Como facilmente se representa, uma “argumentação” no essencial recondutível ao que SYKES/MATZA designariam por “condenação dos condenadores”. Por seu turno, CRESSEY põe a tónica na ideia de negação do dano, sistematicamente invocada pelas pessoas de elevado estatuto social que se aproveitam da sua posição de confiança para se apropriarem do dinheiro que lhes está confiado(embezzlement). 30 American Sociological Review, 1957 p. 666. G. GEIS (Edit.), White-Collar Criminal: the Offender in Business and the Professions, London, 1968 p.12. Em sentido convergente, OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 36 ss. 32 Sobre a necessidade subjectiva da racionalização, C. ANDRADE, A Vítima, p.170. 33 V. AUBERT, “White-collar Crime and Social Structure”, p. 88. Sobre as técnicas de neutralização no campo da criminalidade económica, cf. ainda C. ANDRADE, ob.cit. 158 ss. 31 112 Outra técnica de neutralização comum entre os delinquentes de white-collar é o que SYKES/MATZA designam por apelo a lealdades superiores: o agente viola a lei invocando a “verdadeira” interpretação e promoção dos valores que ela se propõe proteger. É o que ilustram os estudos feitos na América sobre a cartelização dos preços, que os acusados promoviam em nome da estabilidade do mercado. O mesmo valendo para a corrupção sindical, “justificada” com o propósito de assegurar a paz laboral34. As técnicas de neutralização são igualmente frequentes entre os agentes das fraudes fiscais e dos abusos e desvios em matéria de subvenções ou subsídios. Como verbalização normal dos ilícitos fiscais aparece a denúncia da “injustiça” do sistema fiscal ou o argumento (racionalização ideológica) da má utilização do dinheiro recolhido pelo Fisco. Ou ainda o argumento de que o ilícito não lesa ninguém (negação da vítima/negação do dano): apenas se lesa o Estado, que não passa de uma “abstracção” sem rosto35. Os crimes de fraude e de desvio de subvenções são frequentemente levados a cabo em nome do appeal to higher loyalties, por vezes lealdades de entono quase patriótico, do género: “ o que interessa é que o dinheiro venha para o nosso país ou para a nossa região”. Outras vezes – racionalização frequente nas fraudes e desvios de subsídios destinados à formação profissional e utilizados para capitalizar as empresas – argumenta-se com a viabilização das unidades económicas e a salvaguarda do emprego a que costuma acrescer a racionalização de o infractor não ter usado os fundos para indevido locupletamento pessoal. b)2. O recurso à teoria da anomia como explicação sociológica do white-collar crime vem sendo proposto e ensaiado sobretudo pelo criminólogo/sociólogo alemão K. OPP, autor do já por mais de uma vez citado Soziologie der Wirtschaftskriminalität (1975). OPP parte da teoria da anomia com o sentido e alcance com que foi cunhada por R. MERTON, a partir da versão originária de 1938 (Social Structure and Anomie). Emergindo como o ponto de chegada da sociologia criminal americana, a teoria da anomia caracteriza-se, desde logo, por definir o sistema social como referente criminogéneo. O que significa a superação do horizonte e das limitações da ecologia criminal ou das subculturas delinquentes que, fiéis ao “modelo médico”, continuavam a encarar o crime como uma manifestação “patológica” ou “anormal” e, por vias disso, necessariamente imputável a algo de “diferente”: uma “área delinquente” ou uma subcultura. Para R. MERTON, o crime é um produto “normal” do funcionamento do sistema social. Na formulação do autor, “uma virtude cardeal americana, a ambição, promove um vício cardeal americano, o comportamento desviante”. A anomia é concebida “as a breakdown in the cultural structure, occurring particularly when there is an acute disjunction between the cultural norms and goals and the socially structured capacities of members of the group to act in accord with 34 Desenvolvidamente, R. KENNEDY, The Enemy Within, N. York, 1960, p. 215 ss. Desenvolvidamente, G. HOUCHON, “Psycho-sociologie de la fraude fiscale”, in: Hommage à Victor Gothot, Liège, 1963, p. 369 ss. Esta é, de resto, uma racionalização muito frequente entre os agentes dos chamados crimes against bureaucracies. Para uma referência mais aturada, E. SMIGEL/ L. ROSS, (Edit.), Crimes Against Bureaucracy, N. York, 1970, passim. 35 113 them”36. A anomia aparece, assim, como expressão de uma sociedade assente na assimetria ou desfasamento entre a estrutura cultural, tendencialmente igualitária e democrática (impondo a todos os mesmos goals e as mesmas normas ou meios legítimos para os alcançar) e a estrutura social. que distribui desigualmente as oportunidades legítimas. O crime resulta como função de três variáveis: a (elevada) intensidade dos goals; a (baixa) intensidade das normas legítimas; e as (escassas) oportunidades legítimas. Ao tentar aplicar a teoria da anomia à explicação sociológica da criminalidade de white-collar, OPP faz intervir os desenvolvimentos entretanto ocorridos e devidos aos contributos, entre outros, de CLOWARD/OHLIN. Aos autores de Delinquency and Opportunity (1960)37 ficou a dever-se a descoberta das oportunidades ilegítimas como autónoma e determinante variável do modelo da anomia. Uma variável que comporta a exigência de um ambiente de aprendizagem dos valores e técnicas indispensáveis ao desempenho do papel de desviante. Como facilmente e intui, uma variável com peso acrescido no contexto da criminalidade de white-collar crime, já que não é delinquente de colarinhos brancos quem quer. Para além disso, OPP faz intervir também os contributos de teorias como a associação diferencial, as técnicas de neutralização e, mesmo, o labeling approach. Que, para além da selecção, veio pôr em evidência a vulnerabilidade diferencial do delinquente de white-collar à estigmatização e às cerimónias degradantes do tratamento formal da delinquência. Com reflexos óbvios ao nível das oportunidades, tanto legítimas como ilegítimas. Introduzidas estas correcções e desenvolvimentos, acredita OPP ter encontrado uma teoria capaz de assegurar avanços decisivos na interpretação sociológica do white-collar crime. E tanto no âmbito dos países capitalistas como no contexto dos países socialistas. Também aqui é possível referenciar um sistema assente na forte interiorização de determinados goals (por exemplo, alcançar as metas consignadas no plano), que tem como reverso os estrangulamentos ao nível das oportunidades legítimas. Tudo a induzir o recurso aos meios ilegítimos, segundo a tese central da teoria da anomia38. 36 R. MERTON, Social Theory and Social Structure, Glencoe, 1957 p.162. Significativo o artigo já anteriormente publicado por CLOWARD, sob o título Illegitimate Means, Anomie and Deviant Behavior (American Sociological Review, 1959). De OPP cf. ainda Abweichendes Verhalten und Gesellschaftsstruktur, Darmstadt, 1974, p. 123 ss; “Anomie und Prozesse der Kriminalitätsentwicklung im sozialen Kontext. Vorschläge für die Weiterentwickung und Formalisierung der Anomietheorie”, Zeitschrift für Soziologie, 1979, p 330 ss. 38 Cf. OPP, Soziologie der Wirtschaftskriminalität, p. 77 ss. Em sentido convergente, A. COHEN, Transgressão e Contrôle, S. Paulo, 1968, p.175 ss. 37 114 A Intervenção dos Advogados Prevenindo o Litígio Dr. António Pires de Lima* Orador Senhor Presidente, Senhor Presidente do Conselho Económico e Social 1. Muito obrigado pelo convite que me fazem para participar neste Colóquio sobre Justiça. Interpreto o convite – e a aceitação será interpretada por V. Exas. – como algo de diferente do que ocorre com os outros conferencistas. Estes são pessoas que aqui estão por mérito pessoal. O meu mérito é o de ter ganho umas eleições. Essas eleições não me deram o benefício de um Pente – costes, nem os meus conhecimentos são em grau suficiente para transmitir a V. Exas. ideias luminosas. Não tendo sido convidado anteriormente para quaisquer conferências, ou para participar em colóquios, interpreto a minha vinda aqui como Bastonário e em representação da ORDEM DOS ADVOGADOS. Contrariando o que alguns poderiam desejar não deixarei de aproveitar esta oportunidade para avivar a polémica que, conforme alguns, e designadamente o EXMO. SR. PROF. BOAVENTURA SOUSA SANTOS, têm gerado a ideia de que proponho usar o bastão como um cacete. Não é essa a minha intenção. Mas as verdades devem ser ditas. 2. Poderia interpretar o tema que me oferecem como verdadeira provocação. Depois de que altas figuras no nosso País ousaram referir-se aos Advogados como um grupo com a preocupação de criar carteiras de clientes, funcionar dentro dos fenónemos de globalização, acusando-os de prolongarem processos com recursos, designadamente para o Tribunal Constitucional, por forma a poderem ganhar honorários, falar da intervenção do Advogado como preventor do litígio é, seguramente, uma enorme contrariedade para os autores de tais acusações. 3. As estatísticas não estão feitas. No dia em que forem elaboradas revelarão que a intervenção dos Advogados, evitando o litígio – evitando-o em absoluto, ou regulandoo nos seus escritórios – permitiriam concluir que os nossos Tribunais já tinham deixado de funcionar há muitos anos, invadidos que estariam pela multiplicidade dos litígios que são eliminados mercê da intervenção dos Advogados na actividade reservada dos escritórios. São os Advogados através do seu bom senso e de uma postura de composição que logram resolver milhares de assuntos que, precisamente por isso, não caem sobre os Tribunais. * Bastonário da Ordem dos Advogados. 115 4. Em termos legais podemos assegurar que a função do Advogado não se limita ao exercício do mandato forense judicial. O Decreto-Lei que regula a nossa actividade, o Decreto-Lei 84/84, afirma que compete ao Advogado exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica. E é nestas funções de consulta, e não só nelas, que se verifica a maior intervenção do Advogado na prevenção do litígio. A questão que deve pôr-se, porém, é a de saber se esta prevenção deve ser interpretada em termos absolutos. Será que o Advogado na redacção do contrato, no aconselhamento ao cliente, tem obrigação de prevenir toda a hipótese de litígio que possa vir a suscitar-se? Será que o Advogado, na sua função social, tem possibilidade de eliminar situações de litígio ou pré-litígio? A minha resposta é negativa. O Advogado pode e deve prevenir o litígio na medida em que, estando empenhado na redacção dos textos, ou no aconselhamento, possa prever as situações de diferendo que possam vir a suscitar-se. Mas não mais do que isso; ele não é responsável pelos diferendos que possam suscitar-se no quotidiano em função de uma eventual actuação delituosa por parte de quem intervém no contrato ou de quem ouve o conselho. 5. Deixem-me dizer, porém, que é meu pensamento, que se o legislador português descobrisse que o Advogado lograva evitar um litígio, ele próprio, na sua ânsia de legislar, teria a preocupação de acelerar ainda mais o papel que tem tido de multiplicar o processo legislativo, de o complicar, para que ninguém se entendesse. Essa é uma crítica pessoal que faço ao papel que o nosso Governo, através das várias administrações sucessivas, tem vindo a assumir, quanto a mim de uma forma perversa, porque o que se verifica é a tentativa sintomática de evitar a intervenção do Advogado em actos essenciais e obrigatórios de determinadas áreas, impondo e provocando uma maior conflituidade. Refiro-me, concretamente, às perspectivas de um novo Código do Consumidor que está a ser congeminado e que cria um regime jurídico de protecção das pessoas singulares sobreendividadas, onde se cria um gabinete de apoio às pessoas com o papel de designar quem há-de recolher e analisar os dados referentes à situação patrimonial do devedor, e preparar um plano de regulação do passivo, como diligenciar no sentido de se tomarem as providências necessárias à defesa do mesmo património perante terceiros, tentando obter uma solução conciliatória junto dos credores e enviar o acordo de pagamento ao Tribunal. Isto é um papel que deveria estar reservado aos Advogados. o projecto de diploma legal não o prevê, antes reduz a área do exercício da profissão do Advogado. E o mesmo se diga do IAPMEI a quem foram atribuídas funções de regulação de processos de recuperação de empresas. 116 São dois exemplos concretos do trabalho constante, persistente e permanente, de sucessivos Governos deste País, mais preocupados em “fogos de artifício” em promover a procuradoria ilícita, ainda que estatal, do que em resolver o problema dos cidadãos. Nenhum Governo de área Comunista teria conseguido, em tão pouco tempo, lograr uma socialização da protecção jurídica, como os últimos Governos. Estou certo de que esta política gerará maior conflituidade e, consequentemente, maior dificuldade à acção da Justiça. 6. Referi há pouco a ideia de que se não pode exigir do Advogado que tenha a veleidade de lograr a eliminação total do litígio. A sua intervenção, seja na consulta, seja no aconselhamento, é a de tudo tentar para que possa propor soluções que evitem o litígio. Mas a eliminação total – objectivo a atingir – nem sempre é fácil porque a imaginação humana permite fugas imprevisíveis. 7. Há, no entretanto, outras formas de solucionar o litígio que podem considerar-se, também, na área da intervenção do Advogado em ordem a prevenir, não já a existência mas os efeitos da conflituidade. Não me refiro à Arbitragem. Refiro-me a figuras ainda menos conhecidas do que a Arbitragem, ou porque pouco trabalhadas ou porque não institucionalizadas: aludo à negociação, à mediação, à transacção, fórmulas e formas muito utilizadas em outros Países, com grandes resultados, mas que não têm tradição em Portugal. Não temos um ambiente educacional para implantação destas formas de solução de litígios, que aliás conduzem ou à sua eliminação ou à resolução dos seus efeitos. Em Portugal o conceito de litígio, para os seus intervenientes, implica as mais das vezes a ideia da necessidade de vencer ou, o que é pior, cumpre esmagar o adversário. De outro lado, e aqui há que felicitar-nos por esse facto, a concessão que o povo tem da Magistratura é elevada, considerando que o Magistrado Judicial é uma figura à parte, com uma posição de prestígio e que, por isso mesmo, empresta às suas decisões uma autoridade acima da discussão que se lhe submete. Daí que eu entenda que é ainda cedo para obter resultados das tentativas legislativas que têm sido feitas em ordem a pedir a cooperação das partes na procura de soluções negociadas. Refiro-me, concretamente, ao Processo Penal quando se pretende negociação como forma de fixar as penalidades de carácter social, ou ao Processo Civil quando se pede que as partes assumam um dever de cooperação. E também não me parece que a Magistratura, salvo excepções, se conduza no sentido de promover essa aproximação: um comentário que muitos Advogados fazem à dificuldade de eliminar as consequências do litígio vai no sentido de que o diálogo não é possível enquanto os gabinetes se mostrarem fechados, alguns deles com o letreiro “vedada a passagem”. 117 Onde não há “passagem” também não há diálogo, e não havendo diálogo não há qualquer possibilidade de que se chegue a acordo no que quer que seja. Começa aqui o que cumpre mudar nas mentalidades. 8. Nem a Arbitragem – não já como forma de evitar o litígio mas de o derimir fora dos Tribunais – tem progredido por forma a que só nos reste esperança e que seja um meio alternativo real mas com fluidade nos Tribunais. Os seis anos em que presidi ao Centro de Arbitragem da Ordem dos Advogados, os cinco anos em que representei Câmaras do Comércio no Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional de Paris, o conhecimento que tenho do desenvolvimento da Arbitragem em Espanha, designadamente em áreas que, em Portugal, estão governadas a essa forma de resolução do litígio, dão-me a visão de que temos muito que trabalhar em ordem a progredir na prática da Arbitragem ou, o mesmo é dizer, para que a Arbitragem seja aceite como forma alternativa à solução dos litígios. 9. De tudo quanto disse permito-me concluir que considero que o Advogado tem um papel fundamental na tarefa de evitar o litígio, seja na redacção dos textos seja na prolação da consulta, também é minha convicção de que o trabalho se prolonga para além do seu escritório, na fase de aconselhamento e acompanhamento quando já se desenha a perspectiva de um litígio ou este está concretizado. Sou francamente favorável à tese de que o Advogado é tido como ocupando um lugar excelente e privilegiado para orientar o cliente no sentido de evitar o litígio ou reduzir as suas consequências. Mas é muito importante, para esse efeito, que entre os Advogados se vá cultivando o clime de confiança recíproca, hoje muito dificultado pela multiplicidade das áreas geográficas de formação dos licenciados em Direito. Neste momento prevê-se que o ano de 1999/2000 represente um crescimento de número de Advogados em Portugal na ordem dos 20%: crescimento que, em outras áreas constituíria motivo de inveja para qualquer Governo mas que, transportado para a área da minha profissão pode representar uma crise. 118 Minhas Senhoras e meus Senhores, Termino. Não sem que lhes afirme que ao assumir as funções de Bastonário, com os elementos que participam nos órgãos da ORDEM e a qualidade dos que me têm concedido uma enorme colaboração no desempenho dos nossos objectivos, é minha convicção de que cumpre à ORDEM DOS ADVOGADOS, e aos outros parceiros sociais produzir um trabalho de fundo no sentido de restituir e retomar uma cultura que evite o litígio. Assim o Estado esteja de acordo com as orientações que temos vindo a propor, esperança que mantenho pese embora a circunstância de encontrar sistematicamente com a oposição do Governo, recusando a participação dos Advogados na redução das dificuldades que os Tribunais têm revelado na apreciação de litígios. Por exemplo: o Governo vem negando sistematicamente a nossa proposta no sentido de que se transfira para os Advogados, a verificação de incobrabilidade de créditos ou o conhecimento da inexistência de passivo, ainda que tão só para efeitos fiscais. Enquanto assim for, enquanto o Estado não efectuar concessões que o beneficiariam, o nosso trabalho vai ser apenas de persistência e dedicação, na certeza de que, como há pouco referi ao SR. DR. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é minha convicção de que o nosso esforço será útil na perspectiva da constituição do Estado de Direito que pretendemos, também para Portugal. Muito obrigado. 119 O Poder Judicial Hoje 120 “A expressão das competências do poder judicial” Dr. José Moura Nunes da Cruz* Orador 1. Constitui para mim um grato prazer saudar, em nome do Supremo Tribunal de Justiça e em meu nome pessoal, o Conselho Económico e Social e concretamente o seu ilustre presidente, e felicitá-lo pela iniciativa, concepção e organização deste Colóquio sobre a Justiça em Portugal. Trata-se de um tema de incontornável importância e de indiscutível actualidade por vários motivos, pelo que este Colóquio merece, a meu ver, o melhor acompanhamento e a maior atenção e, naturalmente, interessa a este importantíssimo órgão autónomo de consulta e concertação, constitucionalmente consagrado. 2. Colocado perante o tema que me foi proposto – A expressão das competências do poder judicial – não deixei de sentir, por um lado, um assomo de perplexidade face à extensão das questões, que não poderiam caber no âmbito de uma curta intervenção e, por outro, o peso de um desafio algo irónico ao ter de falar de um “poder judicial” que hoje, como ontem, de muitos lados é contestado. Com efeito, e como é sabido, a teoria da divisão de poderes, derivada de Montesquieu, é modernamente, senão já de há muito, olhada com desconfiança pelos pensadores políticos, de tal modo que pode hoje perguntar-se se existe ainda um verdadeiro poder judicial em confronto com os restantes poderes tradicionais. Mesmo no plano do direito constitucional pátrio, o problema da divisão dos poderes não é encarado hic et nunc, como divisão do poder soberano, cujo titular é o povo (encarado como conjunto dos cidadãos), mas – como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 596 – como “divisão ou separação das funções do Estado e da sua ordenação e distribuição por vários órgãos de soberania”. E, curiosamente, era já esta a concepção que presidia à Constituição de 1933 quando, no Título V, Dos tribunais, art.º 116º, dizia que “a função judicial é exercida por tribunais ordinários e especiais”, depois de afirmar no seu art.º 71.º que “a soberania reside em a Nação e tem por órgãos o Chefe do Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais. No plano normativo diz-se hoje que a soberania reside no povo; dito isto e sendo os tribunais órgãos de soberania, é frequente a observação, quando não a crítica (esta para atacar a independência do poder judicial), de que não há qualquer relação orgânica, directa ou indirecta, entre o titular da soberania e os titulares desses mesmos órgãos. Por outro lado, o exercício de uma função que implica um poder soberano permanentemente confrontado com os titulares dos outros poderes do Estado não deixou * Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. 121 de abrir árduas querelas, que contribuíram para pôr cada vez mais em crise o chamado poder judicial. Basta lembrar as intermináveis discussões travadas em França à volta dos casos Omar ou Roland Dumas e em Espanha a propósito dos casos Interlhoce e Fílesa, atinigindo neste país foros de verdadeiro ataque organizado do poder político à magistratura; De tal modo, que o Rei teve de fazer uma intervenção inédita na televisão em que (dizem as crónicas) – de forma corajosa, directa e frontal – falou da justiça. elogiou os juízes e pediu aos espanhóis o apoio e o respeito de todo o povo àqueles que protagonizavam um dos três suportes do Estado de Direito: a magistratura em geral e os juízes em particular. Isto só mostra como é difícil, em democracia, coabitar num sistema de divisão de poderes, devido à emulação entre estes e à tentação de um deles se sobrepor ao outro. Já D. António Ferreira Gomes (escrevendo sobre Democracia, Sindicalismo, Justiça e Paz in “Direito e Justiça” - 1980), citado por Taipa de Carvalho no Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LVIII, 1982, pág. 1091, afirmava: “Em absolutismo monárquico o rei era de direito divino, portanto superior à lei e à nação. Era sobrano, isto é, estava acima e fora do corpo sociopolítico”... “Nas revoluções liberais do mundo latino toda essa mitologia se transferiu, sem mais para as novas instituições: ao rei soberano sucede o “Soberano Congresso” e a “Soberana Constituição”... “Mas as coisas não ficaram no mero terreno da mitologia e da mística, que aí o ridículo sempre vai matando. Na realidade concreta, o absolutismo do poder monárquico transferiu-se absolutamente para os Parlamentos ou Congressos”... “É sempre o obsolutismo do Estado conduzido nas formas ditas radicais, revolucionárias ou não, mas sempre proclamadas como liberais e como expressão do liberalismo”. A tentação hegemónica é, portanto, muito grande. E daí que tivesse inteira razão o Dr. Narciso de Cunha Rodrigues, Procurador Geral da República, na conferência que proferiu em Madrid, em 5-10-1993, quando disse que “o recente ressurgimento em alguns países, da questão judicial e certas reformas realizadas a pretexto da efectivação de objectivos de racionalidade administrativa ou utilizando argumentos que retomam o mito rousseauniano da unidade do Estado, evidenciam que o problema da administração da justiça vai permanecer como um dos mais interessantes nas transformações por que estão a passar as modernas democracias”. E concluía, citando uma frase atribuída a Poincaré: – “tudo quanto se faça para separar a política da justiça, confinando cada uma nos seus respectivos domínios, é obra de saúde pública”. Mas voltemos à questão inicial. Existe realmente um verdadeiro poder judicial? O povo, que é o legítimo juiz dos juízes, tem resposta para isso, admiravelmente sintetizada na réplica do camponês alemão ao seu imperador Frederico II da Prússia, 122 quando este lhe perguntou se não sabia que podia confiscar-lhe o seu moinho: – Sei, mas também sei que ainda há juízes em Berlim! Na verdade, qualquer cidadão tem o direito de exigir e contar com um poder judicial independente, não só dos poderes económicos e sociais, mas também do poder político, que lhe assegure a defesa dos seus interesses legítimos, juridicamente tutelados. Um ilustre advogado do século XVIII, Jerónimo da Silva Araújo, no seu “Perfectus Advocatus”, escreveu: “Tudo está nas mãos do juiz e dele depende: a honra, a vida, os bens, o prémio, a pena, e tudo o que há na terra. Tudo está confiado à fé e consciência dos que administram a justiça pública. Oxalá que o juiz seja sempre bom e douto! Se assim for, as coisas não dependem dele, mas das leis, visto que é a estas que o juiz deve obedecer, repelindo todos os arbítrios contrários.” Com a natural adaptação aos dias de hoje, a que não é alheia a evolução das concepções e conjunturas económico-sociais, políticas e jurídicas, o que acima se transcreve não deixa de encerrar certos princípios que ainda são válidos no actuar do nosso poder judicial e que têm consagração escrita na lei, desde logo, na Lei Fundamental. Por outro lado, começando por definir, os tribunais como órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, consagra depois a Constituição a independência daqueles e a sua sujeição unicamente à lei, a começar, naturalmente por essa mesma Constituição. Por outro lado, estabelece a mesma Lei Fundamental que, na administração da justiça, incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. E estabelece ainda que “As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras entidades”, o que significa que nenhuma entidade está imune à autoridade das decisões judiciais, nem pode superá-las ou anulá-las. Conforme refere Vieira de Andrade em “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976” “A independência do Poder Judicial e a sua vinculação exclusiva ao Direito tornam-no, nas sociedades democráticas, o guardião máximo dos direitos individuais”. Esta independência dos tribunais e designadamente dos juízes, face visível daqueles como seus agentes decisores, é um elemento essencial da sua própria definição e constitui, não uma prerrogativa ou um privilégio corporativo dos juízes, mas uma garantia dos direitos dos cidadãos face a todos e quaisquer poderes públicos ou privados, políticos ou económicos ou grupos (ou meros agentes) de pressão. A independência dos juízes, quer como realidade institucional, quer como realidade psicológica ou cultural assumida, é condição de liberdade das suas decisões face aos 123 demais poderes do Estado; e é do interesse dos cidadãos porque só ela pode garantir a protecção e defesa dos seus direitos fundamentais e das liberdades individuais. Entre nós, esse princípio estabelece-se normativamente, quer ao nível da Constituição, quer ao nível da lei ordinária. E é assegurado pelos princípios da inamovibilidade, da não sujeição a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores, e da não responsabilização das decisões judiciais a não ser nos casos expressamente consignados na lei. 3. Correspondendo à atitude do legislador ao conceder-lhes, reforçar-lhes, diminuirlhes ou retirar-lhes a tutela jurisdicional, os valores ou bens relativamente aos quais o poder judicial é chamado a intervir na resolução das questões que suscitam, têm-se alterado com o decorrer dos tempos, quer em função da relevância social que alguns passaram a assumir ou deixaram de reflectir, quer pelo surgir de outros em resultado da evolução sociológica, económica ou do progresso científico nos mais variados campos como, por exemplo, em matéria de comunicação, de informação, de informática, de saúde e de bioética. Sendo claro que o dirimir dos litígios – com o consequente contributo para a pacificação social – é uma das principais funções dos tribunais, e sem deixar de fazer referência a outro importante campo onde o poder judicial encontra expressão socialmente muito relevante – o da protecção dos direitos e interesses dos menores – afigura-se com algum interesse a concretização, necessariamente esquemática e exemplificativa, de alguns casos em que actualmente a actividade judicial assume especial relevo ou maior visibilidade. – São os casos em que está em causa a honra ou o bom nome quando atingidos através dos meios de comunicação social, face ao impacto que estes meios possuem na sociedade actual e, em particular – há quem o sustente –, à posição que na vida social detêm alguns dos que se apresentam como ofendidos por tais condutas; Estes casos podem suscitar melindrosas questões entre a afirmação do direito à liberdade de informar e de ser informado, e o direito à reserva da vida privada e da vida intíma dos visados. – São os casos do grande tráfico de estupefacientes, associado a uma nova criminalidade organizada, cada vez mais sofisticada, para o combate da qual o legislador se viu na necessidade de reagir através da elaboração de novos diplomas de modo a procurar alacançar uma maior eficácia nesse domínio; – São os casos de corrupção e da chamada criminalidade económica e financeira, pelos custos que acarretam para a economia nacional, pelos avultados interesses económicos em jogo, pela notoriedade social dos putativos agentes ou pela grandeza ou importância das instituições envolvidas; 124 – São os casos de actuação no âmbito dos processos de recuperação de empresas e falência, quer pela sua relevância no tecido económico e social das localidades em que se inserem, quer pela importância que algumas daquelas assumem a nível nacional, quer ainda, em especial quanto a estas últimas, pela maior e mais profunda participação do Estado no processo tendente à sua viabilização. 4. Quanto a uma mais concreta expressão das competências do poder judicial, debruçar-me-ei apenas sobre uma das que considero da máxima importância. – a da uniformização da jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça. Como dizia Alfredo Buzaid, Professor da Faculdade de Direito de S. Paulo, em notável estudo publicado no já citado Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, “a ideia de uniformizar jurisprudência vem de longe; procurou o legislador português realizá-la há vários séculos, utilizando a figura do assento, que era um acto do Poder Judiciário, consistindo em dar à lei interpretação autêntica.” Comentando o regime do art.º 768.º do Código do Processo Civil de então, o Professor José Alberto dos Reis escrevia: “A interpretação formulada em assento vale como interpretação autêntica. Mas daqui não é lícito concluir que o assento é uma verdadeira lei interpretativa. Não o é, pelo órgão de que emana; não o é, pelo processo da sua formação; não o é pelo intuito que surge. Segundo a Constituição Política, o poder de fazer leis, de ditar normas jurídicas (inovadoras ou interpretativas) pertence exclusivamente à Assembleia Nacional (estavamos no domínio da Constituição de 1933) e ao Governo; ora o assento é acto, não do Poder Político, mas do Poder Judicial. O Supremo Tribunal de Justiça quando emite um assento exerce precisamente a mesma actividade que exerce quando julga um recurso; o tribunal Pleno formula o assento no mesmo espírito e com o mesmo desígnio com que decide qualquer litígio submetido à sua apreciação. O assento é, pois, um acto puramente jurisdicional”. Não se podia ser mais claro. E com o instituto dos assentos, que vigorou por tanto tempo sem inconvenientes de tomo, evitavam-se os “dissídios jurisprudenciais porque estes geram o desânimo dos contendores, cujos litígios ficam sujeitos às vicissitudes da distribuição, do mesmo passo que produzem o descrédito do Poder Judiciário, em cujas decisões não confiam os litigantes... A uniformização da jurisprudência impõe-se, portanto, como uma necessidade social, a fim de assegurar a estabilidade da ordem jurídica” (Cfr. Prof. Alfredo Buzaid, loc. cit. pág. 158). Simplesmente, e logo desde os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1976, aquele instituto começou a ser atacado de vários quadrantes quando se discutia o texto do art.º 8.º, com vários argumentos de que não é o menos curioso o de que os assentos eram “um processo indirecto de manipular e subjugar o aparelho judicial ao Poder Executivo”... 125 Com a 1.ª revisão de 1982 ditou-se o destino dos assentos quando ficou escrito no n.º 5 do art.º 115.º da Constituição que “nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar quaisquer dos seus preceitos”. Deste texto derivou, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreirs (loc. cit.) “a inconstitucionalidade dos assentos em relação a normas legais, porque, independentemente da sua caracterização dogmática como legislatio ou jurisditio, eles se arrogam ao direito de interpretação (ou integração) autêntica da lei, de forma vinculativa para terceiros; de resto, eles sempre estariam por natureza exluídos em matéria de reserva de lei, pois aí só a lei pode estabelecer normas”. E, subsequentemente, por acórdão de 7/12/93, o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional o último segmento da norma do art.º 2.º do Código Civil, onde se prescrevia que “nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assento, doutrina com força obrigatória geral”. Erigiu-se, assim, um sistema amputado de um dos seus aspectos mais importantes – o carácter normativo; erigiu-se um sistema híbrido que não mata a uniformização da jurisprudência, mas lhe confere mera “eficácia jurisdicional” e lhe imprime a natureza de “jurisprudência qualificada”. Mas como bem se nota no voto de vencido lavrado nesse acórdão, qual é o alcançe de se afirmar que, afinal, o assento se situa no plano de mera eficácia jurisdicional? Só pode ser – responde-se aí – o de que o assento possui apenas uma “autorité de fait”, que é um mero “precedente judicial” a favor do qual joga uma “presunção de vinculatividade”. É, esse, de resto, o sistema de uniformização que acabou por vigorar com os art.os 732.º-A e 732.º-B do actual Código de Processo Civil e com o art.º 445.º do Código de Processo Penal vigente, cujo n.º 3 esvazia quase completamente de sentido a uniformização de jurisprudência ao dispor que “a decisão que resolve o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas a jurisprudência fixada naquela decisão”. E com isto ficou o Supremo Tribunal de Justiça despojado de um dos seus atributos tradicionalmente mais significativos. Mas a dialéctica entre o poder político e o poder judicial ainda não terminou. Aquilo que se criticava nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça, não tardará a ser objecto do mesmo combate relativamente ao Tribunal Constitucional, pois a argumentação é reversível. Também este declara inconstitucionais, com força obrigatória geral, leis da Assembleia da República ou diplomas do Governo e igualmente inconstitucionais determinadas interpretações da lei que os tribunais fazem no pleno uso do direito que lhes é conferido pelo art.º 203.º da Constituição. E pode perguntar-se se o Tribunal Constitucional não se arroga hoje em dia substanciais poderes normativos que extravasam da chamada reserva de lei e se não 126 atinge a independência dos demais tribunais, na medida em que esta compreende a autonomia na interpretação do direito. O poder judicial parece incomodar muita gente e os grupos de pressão multiplicamse da maneira mais insidiosa e oculta; e como dizia Maurice Garçon (em Lettre ouverte à la Justice) “esses grupos exercem tentativas mais ou menos discretas de pressão sobre o Estado e algumas vezes magistrados crêem adivinhar a sua presença por detrás dos pleiteantes”. Não terminaria sem uma nota de esperança em que se cumpra a predição de Sócrates, em resposta a Trasímaco, no Diálogo sobre a Justiça de Platão: Perguntava Trasímaco: “Em cada Estado não é o mais forte que governa? Não faz cada um deles as leis segundo as suas conveniências? O Povo, as leis democráticas; o tirano, as leis tirânicas? E depois de feitas assim as leis, não declaram eles que a justiça, no que respeita ao súbdito, consiste na obediência a essas leis?” E Sócrates respondia que, enganando-se por vezes os governos sobre os seus verdadeiros interesses, se a justiça consistisse em fazerem os súbditos tudo o que lhes é prescrito, a justiça também consistia em fazer o que é desvantajoso àqueles que governam, isto é, aos mais fortes, no caso de ordenarem qualquer coisa contrária aos seus interesses. E vou terminar. Sem pretender diminuir a importância que notoriamente assume nas diversas áreas onde se expressa – na área criminal, na área dos menores e da família, na área cível e comercial, etc. – o poder judicial, há que dizê-lo, tem essencialmente a fraqueza ou a robustez das leis que os tribunais são chamados a aplicar. Esta constatação, porventura preocupante num outro cenário, é boa num Estado democrático, estando em consonância, afinal, com o que a princípio se disse – os tribunais exercem a administração da justiça, dirimindo os conflitos, apenas subordinados à lei. Subordinados à lei, mas não agrilhoados à sua letra, nem alheados da sociedade em que se inserem e que servem, pois há muito que foi ultrapassada a noção de Montesquieu no sentido de que o juiz não é mais do que “a boca que profere as palavras da lei”. Há que abandonar um positivismo cego e ter a aguda percepção da necessidade da harmonização prática da ordem normativa, no seu conjunto, com a realidade social que a envolve. A função dos tribunais é, em suma a de servir com imparcialidade. Servir a colectividade, administrando a justiça em obediência à lei. É aqui, pensa-se que o poder judicial encontra a sua expressão mais legítima. 127 A crise (interna ou externa) dos tribunais? Professor Doutor Boaventura Sousa Santos* Orador Começo por referir que o título da intervenção não é da minha responsabilidade e tenho algumas dúvidas sobre ele, quer sobre o conceito de crise, quer sobre a distinção entre interno e externo. É muito fácil, numa análise superficial, fazermos a distinção entre factores externos e internos, mas quando começamos a analisar com mais cuidado o que se passa, o interno é simultaneamente externo e o externo está suficientemente internalizado para poder ser também considerado como interno. Vamos começar por alguns factos que nos ajudam a situar a questão. No Centro de Estudos Sociais realizámos um estudo – que tem vindo aqui a ser referido – que, ao invés de investigar quais são as opiniões sobre as reformas da justiça, ou o que é que os magistrados e os políticos pensam sobre o desempenho da justiça, analisa o que é que a justiça efectivamente faz, quer no domínio cível, quer no domínio penal. O estudo e os resultados são conhecidos, e por isso não vou naturalmente aqui mencioná-lo1. Apenas quero mencionar que posteriormente continuámos o nosso trabalho no âmbito de um Observatório Permanente sobre a Justiça, que está sediado no nosso Centro – financiado pelo Ministério da Justiça e que resultou efectivamente da publicação desse livro – no sentido de aferirmos qual é a evolução da justiça até ao final da década. Fizemos na altura um inquérito aos cidadãos portugueses para que nos indicassem as suas representações sobre a justiça. Vamos no final da década fazer um outro inquérito para saber se houve alguma evolução significativa no modo como os cidadãos vêem a justiça. No entanto, no que respeita ao desempenho da justiça, fizemos e continuamos a fazer a nossa investigação, quer no domínio cível, quer no penal alargando depois também à família e a menores, agora aos tribunais administrativos, sector laboral, e a outras áreas que até agora não tinham sido devidamente analisadas, para termos uma ideia mais ampla do sistema judicial. Produzimos um relatório que foi enviado ao Senhor Ministro da Justiça, em Março passado, referente à análise feita até à data e vamos no final do ano concluir os nossos trabalhos. E eventualmente estamos a preparar, com base nesse relatório, um relatório final do qual será certamente também publicado um livro em que vamos dar conta do que de novo aconteceu nesta década em relação àquilo que temos vindo a analisar. Uma conclusão extremamente perturbadora é a de que, de facto, os resultados deste último relatório – que enviámos ao Senhor Ministro da Justiça e que, aliás, não tem sido muito falado – apontam no sentido de que o diagnóstico que tínhamos feito, no início dos anos noventa, dos engarrafamentos, dos bloqueamentos, dos problemas da nossa * Director do Centro de Estudos Sociais – CES. Ver Santos, B.S., Marques, M.M.L., Pedroso, J., Ferreira, P.L., 1996, Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português, Porto, Afrontamento. 1 128 justiça continuam a persistir e até se agravaram nos últimos anos e que, de alguma maneira, a multiplicidade de reformas que têm vindo a ser empreendidas, no sentido de resolver os problemas, não tem sido eficaz, quiçá nalguns casos podíamos até dizer que tem sido contraproducente. De todo o modo, não notamos uma mudança significativa. Se há alguma mudança é para pior. O que isto pode significar é que provavelmente nem faz sentido falar da crise. O estado natural do sistema judiciário é estar em crise tal como outros grandes domínios de acção pública como a saúde e a educação. Porque é que o sistema judiciário haveria de ser diferente? Por outro lado, a persistência dos problemas pode apenas significar que a crise é tão profunda que as reformas que até agora foram realmente pensadas não são suficientes para a superar. Tem-me impressionado um pouco – como sociológo – o excesso de linguagem com que as questões do judiciário têm vindo a ser tratadas ultimamente pelos próprios magistrados e por pessoas ligadas ao sistema judiciário. Choca-me, por exemplo, que o Presidente da Associação Sindical dos Juízes, venha dizer a propósito de um caso que é do conhecimento geral – da renúncia do Senhor Director da Polícia Judiciária – que não sabemos se já estamos em Democracia em Portugal, que talvez não estejamos mesmo em Democracia, e o Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados diga também que não estamos num Estado de Direito. Esta violência da linguagem choca-me, e isto pode significar duas coisas: a seriedade do problema, ou a força da resistência a resolvê-lo, embora me incline para a segunda. Penso que o problema da Justiça portuguesa é um problema resolúvel, só que não há vontade política, nem dentro nem fora do sistema judiciário para a resolver e é exactamente esse excesso de linguagem o substituto funcional para a incapacidade e para a pouca vontade de querer modificar o sistema tal e qual ele existe. E por isso convém realmente ver porque é que podemos falar de crise. Em primeiro lugar, é evidente que a crise pode surgir de muitos factores. Pode surgir pura e simplesmente porque uma determinada instituição deixou de estar adequada aos seus objectivos, porque entretanto os objectivos alteraram-se e a instituição não se alterou. Pode acontecer que os objectivos não se alteraram mas foi a instituição que se alterou. Pode acontecer que simplesmente os cidadãos estão agora mais conscientes da qualidade que devem exigir no desempenho às instituições e de repente temos uma crise apenas porque os tribunais ou outra instituição está a fazer o que sempre fez. Só que agora é mais visível, mais notado, porque os cidadãos estão mais conscientes e activos, a comunicação social está mais atenta ao judiciário e de repente surge a imagem de uma crise. E aqui é muito importante ver como é que se define uma crise porque nós falamos, por exemplo, da crise dos tribunais, mas é muito restrito dizer que há uma crise dos tribunais. Para já devíamos alargar a análise ao sistema judicial no sentido mais amplo, que incluísse também a advocacia, as prisões, as polícias, o sistema médico-forense, o sistema de perícias e toda uma série de instituições que lhe estão adjacentes e que fazem parte do sistema nesse conjunto. 129 Por outro lado é evidente que para se falar de uma crise do sistema judicial terá que ser em articulação, em qualquer caso, com outras crises que eventualmente aconteçam na sociedade portuguesa e que se pergunte qual é a relação entre a crise do sistema judiciário e outras crises que estão a suceder na sociedade portuguesa como, por exemplo, na família, no mercado de trabalho, nas relações de vizinhança, no sistema político. Será que isso não é de alguma maneira importante para o modo como o sistema judiciário se comporta na nossa sociedade? Certamente que sim! Por isso eu tentarei aqui falar um pouco disso e nessa medida dou espaço à questão dos factores externos. Uma terceira nota que gostava de referir nesta introdução é que quando se fala de crise – e isto foi hoje notório – fala-se normalmente dos problemas que ocorrem na procura que chega aos tribunais, isto é, os casos que chegam aos tribunais, os bloqueamentos que há no satisfazer dessa procura dos cidadãos e das empresas e outras associações. A crise é exactamente definida à luz daquilo que chega aos tribunais. Eu penso que neste momento a crise mais importante do sistema judiciário, é o que não chega aos tribunais, é o que lá não está e, portanto, temos que fazer aqui, aquilo que costumo designar por uma sociologia das ausências, isto é, aquilo que o sistema judiciário não trata. Isso tem consequências quer para a qualidade da nossa vida democrática, quer para a qualidade da nossa cidadania. Vamos ver então alguns desses factores. Nos factores externos é evidente que a primeira grande transformação que temos que ver é a que se verificou nos últimos 50 anos. É bom, de vez em quando, termos uma perspectiva de longa duração. No caso do nosso país houve um certo curto-circuito porque a grande alteração e transformação do capitalismo nos últimos 50 anos na Europa, por exemplo em Portugal, teve que se comprimir nos últimos 25 anos, do 25 de Abril para cá. Exactamente porque Portugal não acompanhou o primeiro período dessas grandes mudanças – o que nos obriga a fazer esta transformação em curto-circuito, por assim dizer – pode-nos dar alguma indicação acerca dos problemas, das disfunções que podem surgir no sistema judiciário, como no sistema da educação, como no sistema da saúde, etc., etc. Essas transformações foram fundamentalmente as seguintes. Em primeiro lugar houve realmente a grande incorporação dos trabalhadores – isto foi hoje aqui levantado pelo Dr. Jorge Leite, como um processo histórico que foi muito importante – como cidadãos e como consumidores. Claro que sabemos – ainda hoje o Professor Jorge Leite o demonstrou – que realmente esta incorporação não foi de modo nenhum plena, sendo pelo contrário algo em progresso e talvez em retrocesso neste momento. Mas isso permitiu criar duas sociedades que tiveram um impacto fundamental no sistema judiciário. Por um lado, a sociedade salarial, que foi muito importante para a emergência desse grande ramo do direito que foi o direito do trabalho, nalguns países também a justiça trabalhista, inclusivamente uma justiça como já tivemos também de alguma forma em Portugal. E, por outro lado, uma sociedade de consumo, que tem como característica, a sua expansão em duas direcções, a dos consumos legítimos e a dos consumos ilegítimos. 130 Os consumos legítimos deram origem à grande área dos direitos do consumo. Os consumos ilegítimos deram origem à questão da droga que é uma das questões que continua a afligir-nos. Esta incorporação teve realmente como resultado a produção, de alguma maneira, de uma litigação massiva, aquilo a que chamamos a litigação de rotina, que é aquela litigação que já foi aqui muito mencionada e que o Senhor Ministro disse que é a “não nobre”. Essa foi de alguma forma a grande responsável por algumas das transformações que temos vindo a verificar no nosso judiciário, exactamente todo este engarrafamento dos cheques, da cobrança de dívidas etc. Mas aqui o problema interessante nestas importantes transformações, e que estão agora a decorrer, é ver o que é que não está no nosso sistema judiciário e que eventualmente poderia estar. Em primeiro, a Europa, em geral, está neste momento num processo muito interessante, complicado - a guerra dos Balcãs veio complicar seriamente esta questão que é exactamente saber em que medida há uma diferença e uma rivalidade entre o modelo de capitalismo europeu e o modelo americano. Dois modelos diferentes cujas diferenças praticamente não se notavam durante a Guerra Fria e que, com o colapso do muro de Berlim, se começaram a notar quando se tratou da reconstrução da Rússia e dos países da Europa Central e Ocidental. Por exemplo, no caso da reconstituição do sistema judicial, na criação dos tribunais constitucionais, etc. Houve uma competição entre modelo europeu e modelo americano e essa competição é uma competição recorrente. Podemos notá-la nas queixas recorrentes na Organização Mundial do Comércio, por exemplo, da União Europeia contra os Estados Unidos e dos Estados Unidos contra a União Europeia, sobre os produtos alimentares geneticamente modificados, sobre as hormonas e muitos outros factores. Há rivalidades, há tensões e há diferenças e essas diferenças, de facto, têm muito a ver com várias questões que nos são importantes. Em primeiro lugar, com a extensão da regulação da economia e o facto do modelo económico europeu, diga-se o que se quiser ao nível da União Europeia, não agora ao nível do Estado Nacional, ter alguma regulação macroeconómica mais independente e mais autónoma em relação às empresas multinacionais do que é o caso nos Estados Unidos, e isso tem muita influência naturalmente para a questão dos direitos e para a questão da litigação que surge aos tribunais, porque se não houver direitos, também não há litigação. É necessário ter cuidado quando se afirma que há muita litigação e que isso é um problema. O facto de haver litigação significa que há direitos, e havendo direitos há por isso reivindicações legítimas dos cidadãos. Uma sociedade sem conflitos é uma sociedade morta de alguma maneira. É muito importante termos em conta que esta rivalidade está neste momento em curso. Isto tem muita importância para a questão do mercado de trabalho porque obviamente, nos Estados Unidos, esses problemas hoje não se colocam, dada uma flexibilidade total da relação salarial. E no que respeita às políticas sociais, verifica-se exactamente o desmantelamento de uma segurança social pública que veio também a eliminar um tipo de litigação embora esteja a criar, neste 131 momento, outra, que são as acções dos cidadãos em relação aos fundos de pensões. De qualquer maneira, o que importa realçar é que estes modelos estão em luta e isso vai-se notar no nosso sistema judicial. Não tenho tanto a noção de que o sistema judicial ou até o sistema político esteja totalmente consciente destas mudanças mas elas vão ter um impacto decisivo. Neste momento, por exemplo, tudo leva a crer que o modelo europeu tenda a aproximar-se do americano, por dois factores principais. Em primeiro lugar, devido à Inglaterra que sendo um membro de pleno direito da Europa é a guarda avançada dos Estados Unidos na Europa, como a guerra dos Balcãs o tem demonstrado. Em segundo lugar, devido à própria guerra dos Balcãs: num momento em que o modelo europeu necessita de uma tutela militar dentro da própria Europa, dramatiza-se a incapacidade do modelo europeu para se globalizar e competir com o modelo americano. A consequência mais importante da aproximação ao modelo americano é a seguinte: novas e mais graves desigualdades sociais. Irão suscitar problemas muito importantes para o sistema judiciário, que nunca são abordados no seu contexto. O primeiro de entre eles é a reforma fiscal. Se continuarmos com o sistema fiscal – e está aqui quem o conhece muito melhor que eu – mais inícuo da Europa, que é o nosso, nós não podemos resolver nem a situação do sistema judiciário nem a situação da segurança social, nem nenhuma outra situação no nosso país. Há aqui problemas muito importantes que têm que ser discutidos neste contexto. A questão das desigualdades sociais vai colocar realmente a questão do acesso ao direito e à justiça. É preciso encontrar forma de responder à ideia de que vai haver muito cidadão que vai ficar na situação de cidadão de segunda classe, e ao ficar nessa situação - muitos já o são - não vai ter possiblidades de ter um acesso ao direito. Já o tem muito pouco e vai tê-lo ainda menos. Que medidas estão a ser pensadas para aumentar esse acesso? Como é que elas vão ser pensadas? Sobretudo quando estamos a assistir – e isto é uma das formas que está a aproximar o modelo europeu do modelo americano – ao que nós chamamos a balcanização do direito laboral, dos contratos de trabalho. Não há obviamente hoje uma homogeneidade no mundo do trabalho, e os contratos de trabalho estão-se a balcanizar completamente, estão-se a fragmentar e essa fragmentação naturalmente que vai ter muitas consequências. Temos uma pequeníssima percentagem de trabalhadores que quase se comportam como capitalistas e temos depois uma enormíssima percentagem de trabalhadores que quase estão numa situação de servos, e, nalgumas partes do Mundo, quase como escravos. Podemos encontrar nos estudos que estão agora a ser efectuados sobre os operários franceses, naquele pequeno sector que está a ser beneficiado pela reestruturação do capital, que assistem ao despedimento de 5 mil dos seus colegas, enquanto estão a trabalhar nas suas bancas de trabalho e a olhar para o écran do computador e a ver a bolsa de valores a mostrar no segundo posterior ao despedimento de 5 mil colegas, que as suas acções – porque esses trabalhadores normalmente já são também accionistas das suas empresas – subiram de cotação e, com isso, aumentaram os seus rendimentos. É 132 esta fragmentação do sistema de trabalho que, em meu entender, vai levantar muitas questões ao direito laboral, e naturalmente também ao sistema judiciário. A segunda grande consequência é a emigração, que vai continuar e vai levantar dois tipos de problemas para os quais o judiciário não está equipado. Existem duas questões que é preciso ter em linha de conta e que vão penetrando a pouco e pouco, mas muito pouco. A questão dos direitos colectivos. Os direitos dos emigrantes, de grupos étnicos, por exemplo, não têm sido naturalmente reconhecidos entre nós com a força que devia sê-lo. A questão do racismo. Nós não vimos ainda a questão do racismo como um grande problema que está a emergir na sociedade portuguesa e que pode vir a agravar-se e ainda a questão do multiculturalismo. A sociedade portuguesa é já uma sociedade multicultural e, no entanto, comportamo-nos como se fossemos o país da Europa etnicamente mais homogéneo. Quando muito tem-se falado do racismo policial. Por outro lado, uma outra grande consequência desta transformação que está a passar ao lado do judiciário – e aqui é que eu vejo também crises – é que actualmente o grande recurso para o desenvolvimento do capitalismo mundial é o conhecimento, é a ciência e o conhecimento patenteado. Vejamos o que produzem as 10 maiores empresas do mundo em 1998. Apresento-as pela ordem decrescente: Microsoft, General Electric, Shell, Exxon, Coca-Cola, Intel, Merck, Toyota, Novartis e IBM. À excepção da Toyota, da Exxon, da Shell e da General Electric em parte, todas produzem basicamente conhecimentos, produzem patentes, produzem conhecimento patenteado, nada mais do que isso, coisas que não têm nenhum valor, pequenas peças de silicone cujo valor sem o conhecimento que lhes está incorporado é nulo. Daqui resultarão os grandes conflitos do futuro, os conflitos de propriedade intelectual. Não estão a ser estudados nas Faculdades de Direito com a atenção que merecem. Não porque tenhamos empresas de biotecnologia mas porque estamos também já a fazer experimentação de produtos que são geneticamente modificados, à revelia das directivas comunitárias. Penso que há aqui toda uma questão nova que não está a ser equacionada e que implica alargar um pouco o conceito das coisas que se estão a passar para vermos em que medida é que a crise do judiciário não é apenas uma crise de bloqueamento do que cai lá dentro, mas também a crise da irrelevância, o facto de aquilo que é mais importante lhe passar ao lado. As transformações políticas foram também muito importantes e aqui queria referir a grande desregulamentação do Estado máximo para o Estado mínimo, que levantou naturalmente grandes problemas ao nível da litigação laboral, administrativa, no direito social e no próprio constitucional. A questão da mudança do Estado nacional para o Estado europeu, da União Europeia, que criou em Portugal uma grande desarticulação entre o direito comunitário e o direito nacional em termos de culturas jurídicas. Penso – e é uma mera hipótese de trabalho, porque não fiz a investigação necessária – que aquela discrepância entre o que está nos livros e o que está na realidade jurídica, que é constitutiva dos nossos estudos de sociologia do direito (as leis são muito avançadas, as práticas são retrógradas), vai tender a aumentar com as directivas que não são recebidas, 133 ou são menos cuidadamente apreciadas. Por último, a outra grande mudança política destes últimos anos foi o fim das ideologias, de alguma maneira podemos dizê-lo assim, e a ideia de que não há grandes clivagens políticas, e, portanto, a ideia de que a governação tem de assumir formas organizativas de gestão onde as grandes clivagens políticas parecem ter desaparecido, pelo menos por agora. O grande problema de todos estes aspectos foi exactamente a emergência da corrupção, a perda da ideia de serviço público, a perda da ideia dos conceitos de República, e de valores públicos, uma certa privatização do Estado e essa tem levado, muitas vezes, àquilo que nós chamamos a judicialização da política: actos cometidos por gente poderosa, quer no plano político, quer no plano económico que, ao serem trazidos para os tribunais, lhes dão imediatamente uma grande visibilidade política. Isto é muito importante porque a visibilidade política dos tribunais tem como consequência, o facto de no momento em que se judicializa a política politiza-se o judiciário, isto é, os tribunais passam a estar na primeira página e passam a ser objecto de contestação, de cobiça, a ser objecto dos tais excessos de linguagem e é esta a situação em que nós nos encontramos neste momento. Ainda recentemente viram como mais uma vez um conflito entre dois partidos vai ser resolvido através de uma acção e de uma queixa feita no Procurador-Geral da República. Isto traduz exactamente o fenómeno da judicialização da política. Vou concluir referindo o que é que isto tudo tem a ver com o que se está a passar no sistema judicial. Vou deixar para a discussão quatro ou cinco ideias que resultam do nosso trabalho. Em primeiro lugar, os problemas internos e algumas ideias para uma reforma. Penso que um dos grandes problemas do sistema judiciário são os problemas causados pelas suas próprias reformas. Há que encarar de uma vez por todas que as reformas feitas por necessidades políticas, ao abrigo de necessidades do calendário eleitoral, muitas vezes prisioneiras das pressões corporativas, seja dos Magistrados Judiciais, do Ministério Público, ou dos Advogados, ou de outros, não vão resolver, antes pelo contrário, vão agravar a situação do sistema. Portanto, a primeira coisa que há a fazer é aquilo que nós temos vindo a propor, ou seja, uma moratória nas reformas. Não se devem fazer mais reformas até que possamos avaliar cuidadosamente quais as consequências de cada uma delas. Tenho vindo a propor que podíamos fazer, no domínio do judiciário, algo como foi a Comissão do Livro Branco da Segurança Social que, em meu entender, é um projecto relativamente bem logrado de envolver a sociedade civil e aprofundar o conhecimento de um problema social, na sua resolução, de que são resultado os quatro projectos de leis que temos neste momento no Parlamento. São todos de boa qualidade apesar de terem naturalmente diferenças ideológicas significativas. O que é importante é que haja diferenças ideológicas, não que elas desapareçam ou sejam trivializadas. A segunda questão é a questão do conhecimento. Já sabemos muito bem como é que funciona o nosso sistema judiciário, mas ninguém quer - como ainda há pouco falava 134 com um colega nosso - tomar o remédio. Há resistências a isso e mais, o conhecimento não circula. Estamos neste momento a assistir a uma disjunção que considero ser muito perigosa. Nós em Coimbra, como muitos outros colegas em Lisboa e noutras partes do país, estamos a elaborar estudos sobre o sistema judicial. No entanto, quando se trata de reformas do sistema elas são encomendadas a juristas, que com todo o respeito – eu também o sou na minha formação de base –, não vão dar-se ao trabalho de ler os nossos estudos sobre o funcionamento da justiça no nosso país e, em consequência, as reformas não colam. O conhecimento por nós produzido, e que custou dinheiro aos contribuintes, não é aproveitado. As reformas são demasiado importantes e complexas para serem entregues a juristas. O terceiro ponto é a questão da organização. Considero que muitos problemas se resolviam no nosso sistema judiciário se alguém, com um pouco de conhecimentos de gestão e de organização, fosse analisar o que se passa. Seria tão simples eliminar algumas das irracionalidades do sistema sem para tal ser necessário mudar as leis. A minha grande campanha neste momento é a de reformar o sistema judiciário até ao ponto em que o pudermos fazer sem novas leis. Se esse desafio fosse aceite, poderíamos reformar muita coisa. Ainda agora dois membros da nossa equipa se deslocaram ao País Basco para analisar as reformas que estão a ser empreendidas no domínio do acesso dos cidadãos, da informatização, da relação com o público. As autoridades bascas não podiam modificar significativamente a lei, mas, precisamente por isso, encontraram medidas extremamente interessantes de transformar o sistema, torná-lo muito mais eficaz, exactamente informatizando o sistema e alterando os modelos de gestão e organização dos tribunais sem precisar de nenhuma outra lei. Por último, queria referir que não há nenhuma lei que crie uma outra cultura judiciária no país. O que me preocupa fundamentalmente é que domine entre nós uma cultura judiciária que é partilhada com grande cumplicidade entre magistrados do Ministério Público, do Judiciário e dos Advogados. Trata-se de uma cultura corporativa na qual os seus conflitos estão neste momento exacerbados porque não estão sujeitos a uma pressão organizada dos cidadãos, no sentido de poderem produzir uma justiça mais eficaz, mais acessível e só porque estão libertos desta pressão é que se dão ao luxo de entrar em lutas intestinas, que parecem muito grandes e muito dramáticas, quando são discutidas entre eles. Vistas do lado dos cidadãos elas são pequenas disputas de família. Muitos cidadãos nem sequer são capazes de distinguir bem o Ministério Público da Magistratura Judicial. Esta nova cultura judiciária é uma cultura mais corporativa e, em nosso entender, devia ser mais democrática, mais virada para o acesso aos direitos e para os direitos humanos. Para isso é necessária uma outra formação jurídica e aqui as Faculdades de Direito e o Centro de Estudos Judiciários têm uma responsabilidade enorme. Em muitos países hoje é obrigatório, na formação dos magistrados, seguir cursos fora das Faculdades de Direito, seja na Faculdade de Letras, na Faculdade de Economia ou nas 135 Faculdades de Sociologia, precisamente, para conhecerem melhor a realidade dos seus países e a partir daí desenvolverem uma nova cultura judiciária. Penso que a actual cultura judiciária não permite o controlo disciplinar e, com esta afirmação não pretendo atirar pedras a nenhuma das magistraturas em especial. Em geral, o controlo disciplinar não está a funcionar, portanto, há laxismo e há desempenhos muito diversificados. Os nossos trabalhos demonstram-no. Com a mesma lei, a mesma estrutura, podemos ter desempenhos de alta qualidade ao lado de desempenhos medíocres, precisamente porque se entrou num sistema de confundir independência com auto-governo e desresponsabilização. Neste momento domina uma razão cínica, que faz com que muito magistrado não cumpra os prazos, argumentando que já que não pode cumprir alguns prazos, não vai cumprir prazos nenhuns. No entanto, exige ao advogado que os cumpra. E esta ideia de laxismo, que felizmente não é generalizada, é algo que me preocupa caso não se crie uma medida forte da parte do poder judiciário e também do poder político no sentido de inverter esta cultura judiciária. Existem ainda dois aspectos importantes para os quais considero serem necessárias reformas. Mais acesso ao direito, sem dúvida. Eu tenho vindo a defender há muito tempo a ideia de um defensor público, defensores públicos que não seriam obviamente funcionários públicos. Criar, através da figura do instituto público, pessoas que pudessem, com a sua carreira bem dignificada, defender aqueles que não têm capacidade para o fazer actualmente. Porque em nenhum país um sistema como o nosso, ou um sistema em que a Ordem dos Advogados esteja totalmente interessada, alguma vez deu resultado. Não deu resultado nem vai dar. Temos uma situação nova neste momento – ainda há pouco o Senhor Bastonário me dizia que ainda este ano mais 4 mil licenciados surgem no mercado. Que vão fazer estes advogados? Onde é que está a certificação? Onde é que está a qualidade? Estas são questões que têm que ser resolvidas, mas talvez esta ideia dos defensores públicos fosse uma forma de dignificar e também abrir novos espaços de emprego. Não tenho nada contra que haja mais lugar para as profissões jurídicas, desde que elas sejam usadas em sentido público e para resolver alguns dos problemas. E, finalmente, muito brevemente, diria o seguinte, isto também tem sido polémico – ainda há pouco ouvi o Senhor Juiz Conselheiro referi-lo – considero que o Tribunal Constitucional não pode continuar a funcionar como 4ª Instância de recurso do nosso sistema. Penso que temos excesso de garantismo para aqueles que têm dinheiro e possibilidades de contratar bons advogados e défice de garantismo para aqueles que não o têm. Esta desigualdade está a minar o sistema, pois é óbvio que hoje qualquer pessoa com dinheiro suficiente tem a possibilidade de ver um processo contra si, seja cível, seja crime, nunca terminar. Vai ter sempre os bons advogados, os bons pareceres, os bons recursos, as dilacções, etc. E já existem – por isso é que a questão da cultura é fundamental – mecanismos no nosso sistema que permitiriam a um juiz fazer indeferimentos liminares, fazer um controlo maior deste uso dilatório, ou litigância de 136 má fé. Porque é que não se faz? Porque não há cultura judiciária para exactamente pensar: “se me for ocupar com este caso estou a deixar de estar ocupado com aquele outro que é mais relevante”. Penso que há que haver um pouco mais de selectividade que era a questão que o Conselheiro Mário Torres há pouco colocava, de esta selectividade, de este princípio da oportunidade, que já existe informalmente, poder ser tematizado, levantar problemas políticos extremamente complicados que deveriam ser discutidos. Penso, no entanto, que efectivamente o grande problema é este. As soluções existem desde que haja vontade política e desde que para cumprir a Constituição se diga que a justiça está ao serviço dos cidadãos. No momento em que esta simples mudança ocorrer tudo estará praticamente resolvido. O que falta é vontade política e essa não depende só do judiciário. As profissões corporativas nunca se autoregularam, nunca se modificaram a partir de iniciativas de dentro. É necessária a participação dos cidadãos, é necessária a nossa participação no sentido de, de maneira construtiva e com conhecimento de causa, ajudar realmente à melhoria da qualidade desta instituição que é tão fundamental para a qualidade da nossa democracia. 137 Legitimidade do Poder Judicial Professor Doutor J. J Gomes Canotilho* Orador 1. Descodificação de conceitos O tema que me foi proposto é este: a legitimidade do poder judicial. Na mente dos organizadores talvez esteja um desafio outro para esta fala – discutir simultaneamente o problema da legitimação do poder judicial e a questão da legitimidade da justiça. Se quisessemos adiantar já alguma provocação essa traduzir-se-ia em sugerir um juízo de desvalor quanto às duas questões o que nos levaria a variações sobre o mote da deslegitimação e deslegitimidade do poder judicial como reflexos do problema mais geral da crise da justiça. Não iremos por aqui. Neste auditório crítico pretende-se ouvir alguma coisa sobre o título legitimador daqueles que exercem o poder judicial e sobre a bondade intrínseca das decisões e processos deste mesmo poder. Trata-se, pois, de uma reflexão breve sobre a legitimatio tituli da justiça enquanto instituição, enquanto tecnologia política constituída por mulheres, homens, órgãos, instâncias, processos, tribunais. Compreender-se-á também que não deixemos de fazer algumas reflexões sobre a legitimidade da justiça como valor. 2. Uma leitura constitucional, tendencialmente normativista Colocada a questão a um constitucionalista, este poderá ser tentado a responder nos modelos tradicionais da argumentação jurídica, fazendo o seguinte raciocínio: discutir a legitimação do poder judicial significa atribuir um sentido ao enunciado linguístico do artigo 202.º da Constituição: “Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”. Três leituras 1 – pelo menos – são possíveis quanto ao sentido do enunciado constitucional. LEITURA I – O enunciado “em nome do povo” reconduz-se a uma fórmula programática a um aleluia político-democrático, dotado de valor meramente simbólico mas esvaziado de qualquer conteúdo prescritivo-normativo. Forte nas palavras, fraco nas normas de conduta. LEITURA II – O enunciado “em – nome do povo” é uma fórmula tabeliónica utilizada pelos juízes para fingirem uma derivação popular do seu poder. Tal como na Leitura I, é uma fórmula despida de força normativa. * Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Uma proposta de leitura semelhante e que inspirou este ponto da intervenção, ver-se-á em RICARDO GUASTINI, Il giudice e la legge, Giapichelli Editore, 1995, p. 93 ss. 1 138 LETURA III – O artigo 202.º da Constituição é uma norma de relevante significado jurídico-constitucional, pois estabelece claramente a conexão entre o exercício da função jurisdicional e a soberania popular. Desdobra-se em dois postulados: (1) a função jurisdicional só é legítima se for expressão da soberania popular; (2) se for legítima é uma forma de exercício da soberania popular. O auditório crítico terá já ditado a sua sentença quanto a estas leituras. A primeira exprime a opinião corrente sobre o valor das normas constitucionais. Pouco direito e mera retórica política. A segunda leitura é correcta quanto à dimensão tabeliónica da fórmula e corresponde ao espírito dos juízes quando, de forma fria e arrogante, dizem que “lá vai mais uma sentença em nome do povo”. A terceira é estimulante mas parece dar como demonstrado o que é preciso demonstrar – que os tribunais têm uma legitimação popular. O problema que aqui se coloca é, pois, o da articulação da função jurisdicional com a soberania popular. Até hoje, foram recortados três modelos políticolegitimatórios do poder judicial. MODELO I – Legitimação electiva: o poder de jurisdictio é atribuído a órgãos eleitos pelo povo. MODELO II – Legitimação através de controlo político: os órgãos jurisdicionais estão sujeitos ao controlo político de órgãos políticos democraticamente eleitos. MODELO III – Legitimação através da legalidade: a função jurisdicional está sujeita à lei, ela própria expressão da vontade democrática. O discurso mais frequente nos quadrantes jurídico-culturais portugueses aproxima-se do Modelo III. É o discurso da legitimação através da legalidade que vem de Montesquieu e atinge o máximo de rigor analítico em Max Weber. Os tribunais têm legitimação porque: (1) são instituídos nos termos da lei; (2) as decisões jurisdicionais fundam-se na lei e apenas a ela estão sujeitos; (3) os modos de proceder – os processos – estão legalmente fixados. Devemos ter serenidade bastante para reconhecer que o excesso de argumentação em torno desta legitimaçõo legal serve, a maior parte das vezes, para afastar in limine qualquer ideia de legitimação eleitoral ou qualquer sugestão de responsabilidade política do poder judicial. Mais adiante teremos oportunidade de manifestar também algumas reticências relativamente a estas propostas legitimatórias. No entanto, o problema não é assim tão simples. Vejamos. 3. Quem vos fez rei? Esta interrogação, feita a propósito da legitimação do poder judicial, pertence a Alains Minc. Num livro estimulante e provocador (Au nom de la loi, Paris, Gallimard, 1998) anota que os magistrados se esquecem frequentemente da mais natural das 139 interrogações: quem te fez rei? O mesmo autor aproveita para fazer outras observações que não sei se incomodarão os juristas participantes neste Colóquio: “Os juízes são formados como os militares; são recrutados após o termo dos estudos e colocados numa caserna onde são formados por outros juízes como os militares são formados por outros militares”. Não sei se estas observações serão justas sobretudo quando não resistimos à tentação de vermos retratado nas palavras anteriores o nosso Centro de Estudos Judiciários. A escola portuguesa de formação de magistrados (CEJ-Centro de Estudos Judiciários) tem procurado aberturas para a sociedade civil e outras instituições, o que nos leva a ser menos críticos quanto à bondade de organização e procedimento na formação de magistrados. Há, porém, um problema que parece irresolvido: compreender o passe mágico de transmutação de jovens escolares com estágios em órgãos de soberania. E se, como é a nossa opinião, está constitucionalmente consagrado o princípio da polaridade individual do poder judicial, teremos de justificar não como se faz um rei, mas como fazemos reis espalhados pelo País. Não há exames de estado, não há nomeações por órgãos democraticamente representativos, não há publicidade nos procedimentos selectivos. Sendo assim, aqui fica a pergunta: quem faz reis os nossos juízes? 4. O rei dos reis Seria a nosso ver redutor limitar o problema da legitimação dos juizes ao esquema organizatório dos tribunais internos. Pouco a pouco, vão surgindo nos ordenamentos judiciários outros reis e não parece que a publicidade crítica se incomode muito com a sua legitimação. É, desde logo, o caso do Tribunal de Justiça das Comunidades ou “Tribunal do Luxemburgo”. Num estudo recente um jurista alemão (Volker Epping – “Die Demokratische Legitimation der Dritten Gewalt der Europäischen Gemeinschaften”, in Der Staat, 3/36, 1997, pág. 349 e segs.) admira-se que a questão do título legitimatório dos juizes do Luxemburgo surja quase como uma heresia e que não seja incluída na agenda do déficite democrático da Comunidade. Existe mesmo uma certa soberba dos juizes europeus quanto à sua auto-legitimação, como se revela nas palavras de um deles (Femand Schockweiler, “L'independence et la legitimité du juge dans l'ordre juridique communautaire”, in Rivista di Diritto Europeo, 1993, pág. 678) ao dizer que não necessita de mais legitimação democrática. Ora, o problema pode e deve pôr-se. A designação dos “juizes europeus” faz, muitas vezes, parte do pacote de transacções entre o “governo e a oposição”, não sendo escolhidos pelos órgãos parlamentares (como acontece com alguns tribunais constitucionais). Tão pouco são designados pelos órgãos de gestão dos juizes nos respectivos estados. Eis o que se prescreve no artigo 223º do Tratado da Comunidade Europeia (versão e numeração do Tratado de Amesterdão) “Os juizes e os advogados-gerais são escolhidos de entre personalidades que ofereçam todas as garantias de independência e reúnam as condições exigidas, nos respectivos países, para o exercício das mais altas funções jurisdicionais, 140 ou que sejam jurisconsultos de reconhecida competência e são nomeados, de comum acordo, pelos Governos dos Estados-Membros, por um período de seis anos”. Uma conclusão nos parece já de extrair: se o Tribunal do Luxemburgo se vai tornando o “rei dos reis” parece que quanto mais alto é o exercício de funções jurisdicionais, tanto menores são as angústias legitimatórias de escolha dos juizes. Não estando em causa, em geral, a legitimação pessoal-funcional dos juizes, já parece menos óbvia a legitimação funcional-institucional. Quem faz os reis dos reis são afinal de contas os governos! Se quisermos ser coerentes, a escolha dos juizes para o Tribunal de Justiça das Comunidades tem de observar os esquemas de selecção para juizes dos Tribunais Superiores o quadro jurídico dos Estados-Membros (como, de resto, é já praticado na Grécia e está regulado na Áustria). O desafio legitimatório do Tribunal de Justiça da Comunidade é, de resto, mais amplo. Afivelando a máscara anglo-saxónica dos juizes criadores de direitos, os juizes fabricam a sua legitimação através da existência do direito que criam. A legitimação existencial casa-se bem com o título legitimatório governamental. Um raciocínio semelhante poderia ser feito quanto ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Falta, também aqui, um esquema transparente de procedimento de selecção, parecendo, no caso português, haver uma “reserva apócrifa de Procuradoria-Geral da República”. 5. Os reis da sociedade É por certo de todos conhecida a velha ideia do Talmud judaico segundo a qual a criação dos tribunais constituíria a única obrigação positiva que se impunha aos povos. O ser justo apelava para tribunais terrestres e os tribunais terrestres são se dissociavam, progressivamente, dos tribunais públicos e estatais. Não é isto o que se passa hoje. As práticas de “justiças societais” permitem vislumbrar outros tipos de tribunais cuja legitimação também não está inteiramente estabelecida e clarificada. Seria redundante lembrar aqui, neste Conselho Económico e Social, as arbitragens e soluções negociadas de conflitos. Os contratos comerciais fogem cada vez mais da competência do Estado. Os contratos internacionais não dispensam o julgamento de litígios através da arbitragem. Os contratos administrativos deslocam-se cada vez mais para o foro arbitral, tornando-se os redactores dos contratos os legisladores e, mediatamente, os juizes. Mas não só isto: as chamadas “autoridades administrativas independentes”, ou, como diz o artigo 267º/3 da Constituição, “entidades administrativas independentes” ai estão a correr aos apelos de desresponsabilização do Estado e a desenvolver uma actividade parajudicial ou até judicial. Aqui, logo, na Constituição, a Alta Autoridade para a Comunicação Social. Ali, a Comissão de Valores Mobiliários. Mais perto dos nossos corações, a Comissão do Objector de Consciência ou a Comissão de Protecção de Modos Informáticos. Mais no mercado, a autoridade 141 reguladora das telecomunicações, as autoridades reguladoras da água, gás e electricidade. A “independência”, a “publicidade”, “a competência”, a “credibilidade dentro do sistema” parecem ser agora as palavras-chave para responder à velha angústia da legitimação. A fonte baptismal da “bolsa”, das “parcerias oligopolistas”, dos “árbitros profissionais” parece, pois, acomodar-se a várias funções que já pouco ou nada têm a ver com o clássico problema da legitimação e da legitimidade do poder judicial. Aproximamo-nos, assim, da última parte da nossa intervenção. Não sem um alerta, porém. Estas respeitáveis entidades reclamam o estatuto e as benesses das jurisdições mas já não é tão seguro que assegurem a transparência das regras do direito e os processos garantidores dos direitos dos indivíduos. 6. A fragmentação das legitimações e das legitimidades A insinuação passa a asserção: a pluralidade de lugares e formas de justiça, a coexistência de justiças públicas e de justiças privadas, transporta-nos para a fragmentação das legitimidades. É fácil de ver que as justificações do “Estado” e dos “poderes do Estado” não se coadunam com uma só justificação. Na Ciência Política, na Sociologia, na Psicologia Social, nas teorias do discurso e do procedimento, avançam-se conceitos de legitimação que, em rigor, reflectem duas importantíssimas mudanças na captação do problema legitimatório: (1) a legitimação e a legitimidade referem-se mais a políticas concretas, ou, se se preferir, à política concreta, ou seja, à actividade das instituições, como, por exemplo, decisões da administração ou dos tribunais, do que ao “político” e ao “Estado” abstractamente considerados (ver, precisamente, Thomas Würtenberger, “Zur Legitimität dês Grundgesetzes in historischer Perspektive”, in W. Brugger (org), Legitimation des Grundgesetzes aus Sicht von Rechtsphilosophie und Gesellschaftstheorie, Baden-Baden, 1996, pág. 29). (2) A exigência de legitimidade tem toda a razão de ser relativamente a problemas carecidos de decisão política, mas não deve estender-se a sistemas funcionais cuja “justeza” exige, hoje, outras medidas que não as da legitimidade política e jurídica. A legitimidade é, assim, uma forma contingente da política moderna que deve autosuspender-se em domínios carecedores de outras medidas: como recorrer ao metro da legitimidade para julgar a política da ciência e como descobrir a “justiça” no sistema da administração da saúde? Como descortinar a legitimidade na actividade pedagógica das escolas? A fragmentação e contingência do conceito de legitimação não perturba, a nosso ver, que as questões clássicas da legitimação dos poderes não possam e não devam continuar a merecer a atenção dos estudiosos. Como acontece, aqui, e agora, a propósito da legitimação do poder judiciário. É tempo, pois, de recuperarmos o fio à meada e de prosseguirmos a rota que nos foi traçada. 142 7. A legitimação e o número de juizes Perguntemo-nos entre nós: quantos juizes tem o Supremo Tribunal de Justiça? Quantos juizes tem o Supremo Tribunal Administrativo? Quantos juizes tem o Tribunal de Contas? Sabemos, porque a Constituição o diz, que o Tribunal Constitucional tem 13 juizes. Sabemos, porque os tratados comunitários assim o fixaram, que o Tribunal de Justiça das Comunidades é formado por 15 juizes (embora o Conselho possa aumentar este número). Sabemos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem um número de juizes igual ao das Partes Contratantes, porque assim o determina a Convenção Europeia de Direitos do Homem. Sabemos que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos tem 9 magistrados. O que é que significa isto? Em rigor, significa que o “número de juizes” dos Tribunais Supremos é tendencialmente uma “reserva da constituição material” ou “reserva de tratado” que não pode ficar na disposição do legislador. Mas não só isso: se os juizes são órgãos de soberania não deixa de ser intrigante que, diferentemente do que está estabelecido quanto a outros órgãos de soberania, não haja aqui uma taxativa fixação constitucional. A resposta talvez se tenha de encontrar no paradoxo da nossa organização judiciária e na própria constituição judiciária: os tribunais dão cobertura a uma carreira administrativa semelhante à de funcionários públicos que, ao mesmo tempo, se reclama do estatuto dos órgãos de soberania. Eis aqui um problema que merece revisão urgente na revisão da Constituição: fixar o número de juizes de todos os Supremos Tribunais e fixar claramente as regras da sua constituição. Mais ainda: se não há qualquer título de legitimação constitucional para se falar em “carreira judicial” a nível dos tribunais supremos, talvez seja também tempo de analisar se os títulos de legitimação para os tribunais supremos devem ser os mesmos que se invocam para os tribunais de instâncias inferiores. O alicerçamento da legitimação na lei conduz aqui a uma “supralegalidade” ou até “supraconstitucionalidade encapuçada” das leis orgânicas dos Tribunais ou leis de organização judiciária que pode não ser um alicerçamento constitucional adequado. 8. Um esquema alternativo? Ao esquema legitimatório defendido entre nós e que, como vimos, se reconduz ao paradigma da “legitimidade legal”, poderia contrapor-se um outro reconduzível fundamentalmente ao seguinte: (1) eleição (ou designação por órgãos políticos representativos) como fonte de legitimação; (2) questionamento da inamovibilidade, estabelecendo “mandatos judiciais”; (3) “unificação da justiça” através de uma “OPA” de justiça judiciária sobre a justiça administrativa e justiça constitucional; (4) desjudiciarização ou “civilização judiciária” a fim de a sociedade se autoregular nos litígios através de processos contratuais e privados. 143 Sugerir este modelo é já assinalar que não são facilmente arquitectáveis modelos alternativos. Salvaguardando o ponto (4) – a desjudiciarização – a que já aludimos, não vemos como se poderia transferir para os quadrantes jurídico-culturais portugueses a submissão do juiz a eleições, comendo o pó dos caminhos, recebendo o afago e a cumplicidade dos seus correligionários como um candidato a presidente da Câmara. Temos dificuldade em aceitar que uma “licença para julgar” se degrade numa autorização precária e provisória. Quanto à unificação da justiça, os tempos ainda não estão maduros para a unidade de jurisdição, mas a nosso ver devemos afastar os tabus quanto à unificação da justiça ordinária e da justiça administrativa, como, de resto, é visível no Tribunal do Luxemburgo. Talvez, assim, no cerne da organização judiciária, se conseguisse um título de legitimação mais transparente. Talvez assim se conseguisse mitigar um “corporativismo” activista que garante alguma experiência decisória judicativa mas que está longe de fundar a sabedoria judicativa. De novo, o direito, de novo a justiça, de novo a legitimidade. 144 Síntese Conclusiva do Colóquio 145 Síntese conclusiva do Colóquio Dr. José Luís da Cruz Vilaça* Orador Senhor Presidente do Conselho Económico e Social, Dr. José da Silva Lopes, Caros Colegas, Minhas Senhoras e meus Senhores, Agradeço muito a gentileza que a organização do Colóquio teve para comigo, convidando-me para esta “missão (quase) impossível”. Certamente que ao fazê-lo teve em conta a única circunstância justificativa que poderia qualificar-me para uma tal tarefa, que é a de ter adquirido uma experiência de institutional building judiciário, nas Comunidades Europeias. Simplesmente, o que agora me é pedido é algo substancialmente diferente; vou tentar em todo o caso cumprir a missão tão bem quanto possível. Uma missão que, de resto, não foi certamente facilitada pelo facto de só ter podido dispor com antecedência de duas ou três das comunicações escritas apresentadas, mas que vai seguramente beneficiar da qualidade e da clareza das exposições orais que foram feitas, com base nas quais fui tomando as minhas notas. Sejam-me, em todo o caso, relevadas as insuficiências de que padecerá esta síntese conclusiva, à conta do necessário improviso do exercício. Em todo o caso, algo que o simplifica é o facto de, a meu ver, o Professor Boaventura Sousa Santos ter feito, na sua exposição, aquilo que seria provavelmente a melhor síntese deste Colóquio. Uma síntese que aliás está de acordo com a natureza da ciência que cultiva: a tendência naturalmente “globalizante” da Sociologia qualifica-a, mais do que ao Direito, para proceder às sínteses que melhor correspondem à natureza de temas como aquele que constitui objecto do Colóquio. No fundo, até me parece que o problema da justiça portuguesa, mais do que um problema jurídico, é antes de tudo – em todo o caso, por detrás de tudo – um problema sociológico e político. Mas vamos por partes. 1. Permitir-me-ei, com licença de V. Ex.as, abordar rapidamente uma questão prévia. Gostaria, com efeito, de responder, muito sinteticamente, antes que para isso me faleça o tempo, à saudável provocação contida na exposição do meu amigo e colega Professor Joaquim Gomes Canotilho, último orador do Colóquio, a propósito da questão da legitimação dos juizes dos tribunais comunitários. Ainda bem que o fez, porque trouxe para os trabalhos a dimensão comunitária, que ainda só tinha perpassado incidentalmente em uma ou outra das exposições anteriores, as quais privilegiaram, em geral, compreensivelmente, a dimensão nacional dos problemas. * Advogado, PLMJ & Associados; Professor e Director do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Lusíada; antigo Advogado-Geral no Tribunal de Justiça e antigo Presidente do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias. 146 Devo confessar que, sobre o problema da legitimação dos juizes dos tribunais comunitários, me sinto perfeitamente à vontade para me pronunciar. Aceitei ser membro dos dois Tribunais comunitários com um mandato limitado no tempo e ao qual pus termo voluntariamente. No exercício dos meus mandatos, busquei a legitimação essencialmente na fidelidade a uma missão conferida pelo próprio Tratado. Mas, dito isso, acho que faz todo o sentido discutir a questão da legitimação dos juizes comunitários. Assim se discutisse com a mesma abertura a legitimação dos juizes nacionais. Sobre a primeira – a dos membros dos Tribunais comunitários – gostaria de dizer o seguinte. Em primeiro lugar, cada Juiz e cada Advogado-geral é designado, nos termos do Tratado, por unanimidade, pelos governos democraticamente legitimados da totalidade dos Estados-Membros. Em segundo lugar, nada está dito no Tratado sobre a maneira como cada EstadoMembro deve escolher os juizes ou advogados-gerais que lhe cabe designar, o que significa que a ordem jurídica interna de cada Estado tem plena autonomia para definir as modalidades de escolha dos respectivos candidatos a membros dos Tribunais, que serão depois designados pelos 15. Não faria aliás sentido que essas modalidades estivessem definidas no Tratado, uma vez que não têm de ser as mesmas em todos os Estados-Membros. Está, pois, nas mãos de cada um destes adoptar, se quiser, no plano nacional, mecanismos de legitimação democrática dos candidatos que apresenta à judicatura comunitária. No fundo, também aqui se exprime a realidade, por muitos sublinhada, de que os Estados-Membros ainda são – mais até do que alguns gostariam – os “senhores dos Tratados”. Em terceiro lugar, considero – já o disse e escrevi em várias ocasiões – que se justifica acrescentar elementos “comunitários” de legitimação democrática à designação dos membros dos tribunais europeus. Justifica-se, nomeadamente, a meu ver, que o Parlamento Europeu seja chamado a ter uma qualquer palavra nesta matéria. Ao fim e ao cabo, da legitimação dos tribunais comunitários e dos seus membros pode dizer-se aquilo mesmo que se aponta, em geral, à legitimação das Instituições comunitárias: que ela se exprime numa tripla dimensão, a dos cidadãos, a da missão conferida pelos Tratados e a dos Estados que os assinaram. 2. Passando agora ao essencial da missão que hoje me é conferida, não creio ser possível – nem me parece que isso me seja pedido – apresentar verdadeiras conclusões do Colóquio. Em todo o caso, para isso não estou “democraticamente legitimado”. Não julgo sequer que seja possível apresentar uma síntese objectiva. Aquilo que vou tentar fazer é, antes, uma espécie de pontuação do que foi dito. Ora, como a pontuação é provavelmente a parte mais subjectiva da gramática, não escaparei à subjectividade, mas tentarei ser o mais honesto possível. Exprimirei, em todo o caso, a propósito de vários dos temas tratados, alguns juízos e opiniões pessoais. 147 3. A primeira questão que decorre de algumas das intervenções aqui feitas é saber se há um problema da justiça em Portugal ou se há problemas da justiça em Portugal. Da resposta a esta questão, que pode parecer puramente retórica, depende a abordagem a escolher para tratar o problema: a meu ver, esta abordagem deve ser sistémica do ponto de vista da análise, mas ao mesmo tempo pragmática do ponto de vista da acção a levar a cabo para se alcançarem as soluções desejáveis. E se é certo que todos estão de acordo em falar na existência de uma crise do sistema, e se Jacques Atalli, aqui citado pelo Dr. Miguel Veiga, tem razão em definir a crise como “une phase de transition entre deux périodes de crise”, então é correcto assumir que o sistema judicial está em estado de crise permanente, afectado por doença crónica. Sendo assim, o método a seguir deverá ser o próprio da medicina. Há pois que fazer o diagnóstico, definir a terapêutica e aplicar o tratamento. Em Portugal, como se sabe, somos mestres no diagnóstico. Este Colóquio exprimiu aliás uma grande convergência de pontos de vista no diagnóstico dos males do sistema, sobre cuja natureza parece que sabemos já bastante. Em geral, somos mais trapalhões na terapêutica, na indicação dos medicamentos a tomar, e normalmente somos completamente incapazes no tratamento a aplicar ao doente. Que linhas seguir, pois, em matéria de Justiça? Das intervenções que se sucederam ao longo do dia retirei meia dúzia de orientações que gostaria de destacar. 4. Em primeiro lugar, conviria começar por dizer o que não é o problema. É certamente de volume ou de quantidade de processos; não é necessariamente de quantidade de juizes ou de funcionários judiciais. Em todo o caso, não se resolve aumentando simplesmente o número de uns e de outros. Como reconheceu o Senhor Ministro da Justiça, o que está em causa é a impreparação do aparelho judiciário no seu conjunto: instalações, informatização, práticas administrativas, hábitos de prolixidade e erudição na redacção das sentenças, formação das pessoas, inexistência de assessoria de apoio aos juizes. Sinteticamente, poderá falar-se em desequilíbrios na distribuição geográfica e na definição da malha de tribunais, erros na organização judiciária e graves deficiências no funcionamento dos tribunais. Sobre a organização judiciária, encontram-se preciosas reflexões na comunicação do Dr. João Correia. Do ponto de vista da distribuição geográfica, uma observação superficial torna evidente a existência de fenómenos de concentração excessiva de problemas e de recursos em Lisboa e no Porto. E se é certo que as assimetrias de desenvolvimento que geram deseconomias de escala precedem e provocam os estrangulamentos da Justiça, as decisões que sobre esta se tomam contribuem, elas também para o centralismo. Nada obrigaria, por exemplo, a que o Tribunal Constitucional ficasse instalado em Lisboa. Outros países seguiram uma política bem mais sensata, como a Alemanha, que não 148 escolheu a capital federal nem uma grande cidade, mas Karlsruhe, para sede do Tribunal Constitucional (o Bundesverfassungsgericht). O problema da Justiça também não é necessariamente de formação técnico-jurídica de base dos seus agentes mas antes de adaptação cultural aos desafios e de capacidade de resposta à mudança. É também, nesse contexto, um problema de formação permanente, para a qual, de resto, o sistema se tem abstido de criar incentivos. É curioso e absurdo que o investimento em formação seja totalmente ignorado como critério de promoção dos magistrados na respectiva carreira. Como foi lembrado durante os trabalhos, aquilo de que padece a Justiça não é também de falta de leis – que são abundantes – mas de qualidade da legislação e de capacidade de a aplicar. 5. Foi ainda sublinhado durante o Colóquio – e a justo título – que é necessário encarar a Justiça como um serviço público, pago em larga medida pela colectividade, como tal se exigindo que seja eficaz e cumpra os objectivos que por esta lhe são definidos. Para isso, é indispensável ultrapassar aquilo que aqui foi considerado como o principal estigma da crise da Justiça e que faz dela essencialmente uma crise de gestão. Nesse sentido, há que racionalizar os meios disponíveis e utilizar melhor os dinheiros da colectividade. É portanto necessário – como foi dito e me parece fundamental – dar atenção aos aspectos económicos da administração da Justiça. Necessitamos enfim de uma economia da Justiça. Porque se é certo que temos praticamente tudo o que precisamos em matéria de juristas, o facto é que o Direito sem consciência das suas implicações económicas se transforma em puro juridismo. Temos também o que há de melhor em matéria de sociólogos, mas a Sociologia sem a consciência dos recursos disponíveis corre o risco de não passar das boas intenções. Em especial, há que ter consciência dos custos brutais que para a vida económica e empresarial têm os atrasos e as ineficiências da máquina judicial. Esse é, sem dúvida, um dos factores importantes de perda de competitividade internacional da nossa economia e de dissuasão do investimento em Portugal. Os problemas financeiros das empresas, resultantes de créditos não resolvidos num mercado em que se generalizou a impunidade do incumprimento (aos quais se refere a comunicação do Dr. Luís Faria) são um aspecto do mesmo fenómeno. Um outro aspecto da questão é que não basta afadigar-se num esforço de reforma permanente ou de reforma pela reforma, é necessário avaliar criteriosamente a respectiva relação custo/eficácia. Convém fazê-lo antes da introdução das reformas, na fase de concepção e de preparação, mas convém fazê-lo também na fase de execução – o que supõe obviamente que elas sejam executadas... Já aqui foi referido esta manhã que há uns 15 anos se determinou por portaria que os processos não fossem cosidos: 15 anos depois, continua-se impávida e serenamente a cosê-los! Mas há sobretudo que avaliar a relação custo/eficácia da reforma através dos seus resultados. Ora, a este propósito, é preocupante e perturbadora a conclusão, de que se 149 fez eco o Professor Boaventura Sousa Santos, de que, não obstante as reformas, a situação continua sem melhorar, continua em muitos aspectos a piorar. 6. Há que evitar, como foi referido pelo Conselheiro Mário Torres, o mito da tutela judicial efectiva universal, e substituir-lhe uma ideia de selectividade na abordagem dos problemas da Justiça. Selectividade e concentração da litigância são aliás as palavras-chave da comunicação do Dr. Armindo Ribeiro Mendes, como ponto de partida para a formulação de recomendações de reforma. Como também foi sugerido durante o Colóquio, o que o sistema deve proporcionar, em resultado de uma criteriosa administração dos meios e remédios disponíveis e da sua concentração naquilo que é mais importante e mais grave, é uma protecção judicial média equilibrada. Isto implica, antes de mais, que se corrija a excessiva desigualdade social no acesso ao direito que caracteriza o nosso sistema. Implica também, como se insistiu ao longo do Colóquio, por um lado, que se limite a intervenção do sistema judicial aos “verdadeiros conflitos” e, por outro lado, que se promova uma conveniente des-jurisdicionalização da solução desses conflitos. A tarefa inevitável a levar a cabo desdobra-se aqui em duas: é preciso determinar quando é que os tribunais devem intervir e, uma vez decidida a intervenção, distinguir as bagatelas, sejam elas cíveis ou penais, do contencioso verdadeiramente importante, em vez de dar a todos o mesmo tratamento. Nesse contexto, iniciou-se uma discussão – que será necessário continuar – sobre a criação de mecanismos alternativos de resolução dos conflitos, sejam eles a arbitragem ou outros. Mas, como foi reconhecido pelo Senhor Bastonário Dr. António Pires de Lima, o ambiente social não é propício a essas formas de resolução dos litígios. Também aqui, a Sociologia a condicionar qualquer reforma do sistema judicial. O certo é que, por vezes, quando se criam novos mecanismos especializados de resolução dos conflitos, o próprio Estado não os leva a sério. Exemplo disso é o contencioso no domínio da economia e, em especial, no domínio da concorrência. Temos um órgão de investigação e instrução dos processos que é actualmente designado “Direcção-Geral do Comércio e da Concorrência” (e que anteriormente era conhecido como “Direcção-Geral da Concorrência e Preços” – a designação flutua ao sabor das concepções de cada um sobre a importância relativa destas coisas) e temos o “Conselho da Concorrência”, órgão com competências decisórias e consultivas do Governo, consoante os casos. Mas a função de membros do Conselho é exercida em part-time e não se dá atenção suficiente aos problemas de conflitos de interesses. Acresce que os tribunais encarregados de julgar os recursos nesta área não têm competência especializada nem estão apetrechados para fazer face a um contencioso por vezes extremamente complexo e de profundo impacto na vida económica. 7. Apontou-se ainda para a necessidade de simplificação do sistema. O facto é que a multiplicidade das vias judiciais contribui para multiplicar os conflitos. Perante a dificuldade de determinar o tribunal competente ou a via de recurso apropriada, os 150 advogados mais avisados utilizarão todas as vias disponíveis para tentar resolver o problema do seu cliente. No meio de um emaranhado de incertezas, a segurança jurídica e os direitos dos cidadãos ficam sujeitos a rude prova. Simplificação vai normalmente a par com eficácia e desburocratização. Trata-se de exigências que se fazem sentir tanto na gestão dos processos e dos tribunais como nas cobranças de dívidas, nas execuções ou nos procedimentos falimentares. A experiência em matéria de falências relatada pelo Dr. Almeida Serra prova que a simplificação é possível e desejável. A necessidade da simplificação impõe-se também no plano da redacção das sentenças, onde há hábitos que ainda não ultrapassámos. Desse ponto de vista, vale a pena apresentar como exemplo os Tribunais das Comunidades Europeias. A mera leitura da jurisprudência dos tribunais comunitários permitirá testemunhar uma nítida evolução no sentido de maior simplificação na redacção dos acórdãos, antes acusados (sobretudo os do Tribunal de 1.ª Instância) de serem demasiado longos e, por vezes, de difícil compreensão. A história dos tribunais comunitários reflecte aliás a tentativa constante de encontrar mecanismos de simplificação e de eficácia, sem tabus que impeçam, por puras razões de inércia ou de tradição, as mudanças que se impõem. Por exemplo, se, no início, os acórdãos do Tribunal de Justiça eram lidos integralmente em audiência pública, o aumento exponencial do seu número comandou que passasse a ser lida só a parte dispositiva e, a partir de certa altura, que as próprias conclusões dos Advogados-gerais deixassem igualmente de ser apresentadas oralmente (em versão integral ou em resumo) passando apenas a ser depositadas por escrito. Quebraram-se hábitos antigos, mas nunca ninguém acusou a Justiça comunitária de, por isso, se preocupar menos com os direitos dos cidadãos. No fundo, simplificação implica aplicação, neste domínio, do princípio da proporcionalidade dos meios aos objectivos: não se use a bomba atómica para matar moscas. De facto, ao longo dos anos temos cometido o pecado da desproporção quando a resposta deve ser graduada em função da intensidade e da gravidade dos problemas. Evite-se, por exemplo as criminalizações excessivas. 8. Ligada as estas questões, há que mencionar a questão da prevalência do fundo sobre a forma e os ritos. O formalismo é inimigo da Justiça: é-me difícil compreender, por exemplo, que, numa acção contra o Estado, o Juiz declare a ilegitimidade do demandado porque aquela foi dirigida contra o “Ministério” ou o “Estado”, em vez do “Ministro”, ou vice-versa. Nunca um recurso para os tribunais comunitários foi recusado porque o recorrente o dirigiu contra a União ou a Comunidade Europeia, em vez de mencionar a Instituição autora do acto: não tendo dúvidas sobre a intenção da parte, o Tribunal corrige oficiosamente a petição. Por outro lado, a administração da justiça não pode transformar-se na simples gestão dos despachos de mero expediente, tornando-se necessário desburocratizar a função do 151 Juiz, para que, em nome das exigências da Justiça, este se concentre nas funções que são as suas. Neste contexto, o Juiz não pode ser visto como o agente único no sistema judicial, antes a cada um dos outros deve ser reconhecido o seu papel próprio. Sejam estes os Advogados, sejam os Secretários Judiciais ou outras entidades (existentes ou a criar, como por exemplo uma figura do género dos huissiers de justice franceses), a cada um há que reconhecer o papel que lhe cabe no exercício de funções para as quais esteja qualificado ou possa ser preparado. A eficácia do sistema judicial depende da forma como todos se aceitarem no respeito das funções, prerrogativas e ética próprias de cada um. 9. De privatização no sistema judicial se falou marginalmente durante o Colóquio. Falou-se em especial de privatização do notariado. E aí, em matéria de eficácia, de rapidez e de qualidade do serviço em países de notariado privado, a minha experiência é idêntica à do Dr. Almeida Serra. Vale certamente a pena reflectir seriamente sobre aquilo que é privatizável com vantagens, não apenas no notariado mas também em aspectos vários da gestão dos tribunais ou das prisões em Portugal. Para alguns, tratar-se-á apenas de uma questão de medida e de oportunidade política. Ponto é que esta não sirva, mais uma vez, de pretexto a um adiamento indefinido da tomada de decisões em tal matéria. Neste domínio, será decerto proveitoso aprender com anteriores experiências de privatização (como as televisões e as Universidades), a fim de evitar repetir os erros que aquelas evidenciaram. E que esses erros não sirvam também de falsa justificação para a inacção. 10. A propósito da figura dos assentos, abordada pelo Conselheiro Nunes da Cruz, trouxe-se à colação as questões da previsibilidade e da uniformidade da jurisprudência, da segurança jurídica e da democraticidade da norma, o que, naturalmente, haveria de recolocar a questão da legitimação do Juiz e da função judicial. De forma mais ampla, as relações dos tribunais “comuns” com o Tribunal Constitucional (ou ainda com o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias) levaram a abordar o papel, a missão e a importância dos juizes no sistema judicial, bem como a questão da sua relação com a política. Deste ponto de vista, o processo de “fim das ideologias” a que se assistiu na última década não deixou de ter consequências sobre o sistema judicial: o fenómeno de jurisdicionalização dos conflitos políticos é um aspecto visível desse processo. 11. Vale a pena terminar com o enunciado de mais algumas condicionantes com que tem de contar qualquer reforma do sistema de Justiça em Portugal, e sobre as quais, de uma maneira ou de outra, algo foi dito ao longo do Colóquio. a) A primeira dessas condicionantes está intimamente ligada à nossa inserção num mundo em vias de crescente globalização e, antes de mais, à nossa integração na Comunidade Europeia. Hoje em dia, não é possível isolar os problemas da 152 Justiça do seu contexto internacional e, em especial, do quadro europeu em que nos inserimos. Neste, avultam duas dimensões. Em primeiro lugar, a aplicação directa e o primado da ordem jurídica comunitária e o respeito das competências dos Tribunais do Luxemburgo, na sua articulação com os tribunais nacionais através do mecanismo de cooperação judiciária previsto no artigo 234.º (ex-artigo 177.º) do Tratado; em segundo lugar, o respeito devido à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a possibilidade de recurso ao Tribunal de Estrasburgo. Mas, se quisermos sair do plano estritamente institucional, as novas práticas e instrumentos do comércio internacional ou os movimentos de imigração, com os problemas sociais conexos (multiculturalismo, racismo, xenofobia), constituem outros tantos desafios à capacidade de resposta do sistema judicial. b) A segunda condicionante que convém referir é – como outras que se seguem – de natureza sociológica. É constituída pela resistência à mudança que um corpo tendencialmente conservador como são, em regra, os sistemas judiciais não deixará de apresentar. Como foi sublinhado, o peso dos corporativismos é um aspecto – e um dos factores causais – dessa resistência à mudança, fazendo com que as magistraturas e, em geral, o sistema judicial deixem de desempenhar o papel fundamental que deveria ser o seu de se auto-analisarem para se colocarem em questão de modo a poderem funcionar como instrumento de evolução e motor da sua própria reforma. c) Nenhuma reforma da Justiça pode ignorar, além disso, as características próprias do sistema social que a envolve e ao qual aquela deve responder. O contencioso perante os tribunais é, ele próprio, um revelador dos fenómenos sociais, num contexto que pode contribuir para moldar mas que, na sua essência, não controla. Ora, a sociedade portuguesa, com a qual o sistema judicial tem de conviver, ostenta virtudes e defeitos com que é necessário contar. Sem procurar tirar aqui um retrato, e sem qualquer pretensão científica, julgo não me enganar se disser que, no seu conjunto, os portugueses possuem uma insuficiente consciência dos seus direitos, uma reduzida propensão para os reclamar por vias que não sejam as judiciais (embora, paradoxalmente, nestas não acreditem) e uma tendência (não corrigida pelos media, pelos políticos ou pelo sistema escolar) para a desresponsabilização do que é verdadeiramente grave. Por outro lado, somos (por temperamento e educação) tendencialmente imprevidentes, indisciplinados e avessos a cumprir regras. Se há patrões que “esquecem” os regulamentos de segurança das construções urbanas, há operários que se recusam por hábito a pôr o capacete ou a afastar-se quando vem um camião descarregar brita. O binómio valor da vida – processo laboral, que constitui o objecto da comunicação do Professor Jorge Leite, vai assim ser equacionado num contexto que lhe é sociologicamente desfavorável. 153 Daqui uma insuficiente “visão profilática” da infracção e do acidente que multiplica os litígios pela via judicial. Há certamente que agir a montante através da educação, da prevenção e da fiscalização. d) O próprio processo de desenvolvimento da sociedade portuguesa cria novos desafios ao sistema jurídico e, directa ou indirectamente, à sua aplicação pela Justiça. Basta pensar na alteração dos eixos da economia moderna e no correlativo desenvolvimento da importância da investigação, da inovação, das telecomunicações, da informática e da propriedade intelectual; no surgimento e no aumento da importância de novas formas de criminalidade, designadamente económica, às quais se refere a comunicação do Professor Manuel Costa Andrade; na generalização e na rápida aceleração das políticas de concorrência, de liberalização e de desregulamentação de actividades até há pouco fechadas e fortemente controladas. e) Enfim, o processo de mediatização da Justiça, que em Portugal se exacerbou nos últimos anos, tem relegado para o campo do patológico as relações dos tribunais com o público e com a comunicação social e desvirtuado o sentido com que deve ser cumprido o dever de informação que também impende sobre o sistema judicial. Recomendo a releitura das reflexões que ao tema consagrou o Dr. Magalhães Mota. 12. É altura de concluir: a meu ver, para evitar o risco de “latino-americanização”, há que pôr nos carris o processo de reforma da Justiça portuguesa. Como sublinhou o Senhor Ministro da Justiça, é para isso indispensável um consenso entre as forças políticas e os intervenientes no sistema. Reconhece-se que esse consenso é difícil; mas é possível e há que promovê-lo – com espírito reformista – sob pena de total irresponsabilidade. É claro que seria preferível, em matéria de reforma da Justiça, antecipar os problemas. Infelizmente, em relação a muitos dos que afectam o sistema judicial português, hoje em dia é já demasiado tarde para agir em antecipação. Há pois que atacar em força e, utilizando uma expressão inglesa, talvez a solução seja criar uma task-force para cada problema devidamente identificado, composta por gente com experiência, capaz de ligar a reflexão à prática, de agir numa perspectiva pragmática e não ideológica e de exprimir não apenas o ponto de vista do funcionário que está fechado num gabinete, mas também e sobretudo o ponto de vista dos utentes. Não que se justifique uma espécie de FMI da Justiça para solucionar a crise da Justiça em Portugal. Mas, em vez de estar sempre a anunciar a reforma das reformas, havemos de criar a capacidade para resolver os problemas do sistema entre nós e em democracia, de maneira a aprofundar o Estado de Direito e responder ao clamor popular, à indignação do cidadão comum perante a incapacidade da Justiça para resolver os seus problemas. 154 Muito obrigado pela Vossa atenção! 155 Anexos 156 Quadro 1 – PROCESSOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS 1992-1998* Anos 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998* 7 8 Tribunais/Processos 1 2 3 4 5 6 MOVIMENTO DE PROCESSOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS DE 1.ª INSTÂNCIA PROCESSOS CÍVEIS Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos 252 727 266 123 237 689 279 634 312 241 253 419 330 788 405 034 333 068 402 465 368 961 288 339 483 134 412 073 316 727 587 326 485 210 340 727 732 866 456 130 342 738 Duração média (em meses) dos processos findos Divórcios e separações judiciais Inventários Outras acções declarativas Falências e recuperação de empresas Execuções 14 24 13 66 16 12 23 11 49 14 11 24 11 39 14 11 24 11 29 17 12 28 12 25 17 12 29 12 25 17 12 28 14 23 19 Procedimentos de injunção terminados Antes da distribuição Duração média (em dias) Após distribuição Duração média (em meses) - - - 2 753 54 86 7 2 406 74 69 9 2 575 100 76 13 7 521 106 62 12 PROCESSOS PENAIS Inquéritos Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos 176 478 384 663 345 860 216 010 385 130 363 373 237 955 409 422 405 066 241 980 416 506 399 600 259 154 431 185 410 345 280 266 409 734 420 217 272 414 395 799 435 792 Processos crime na fase de julgamento Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos 125 874 94 609 92 394 119 067 110 132 79 119 132 260 114 496 101 891 137 482 111 837 89 795 158 080 109 195 90 743 175 620 118 264 97 180 195 313 105 146 122 403 14 11 12 14 15 15 17 Arguidos Condenados 82 972 30 351 74 274 37 442 95 107 34 484 89 678 36 372 90 360 36 771 90 858 37 735 119 347 40 542 Processos de transgressão Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos 106 863 352 666 290 201 180 645 338 733 399 145 171 158 247 874 399 145 18 288 30 949 33 473 15 708 22 236 19 131 18 562 15 632 14 876 18 395 29 368 20 366 Duração média dos processos crime na fase de julgamento findos Continua *Dados provisórios. Fonte: Gab. Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. 157 Quadro 1 – PROCESSOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS 1992-1998* Anos 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998* 2 3 4 5 6 7 8 39 913 50 468 47 618 42 885 60 455 54 250 46 757 56 903 62 340 39 966 56 776 40 317 46 350 59 550 54 482 51 344 60 264 57 582 53 683 61 086 59 190 12 15 18 10 13 12 11 11 11 10 10 13 10 10 10 10 11 10 10 12 12 PROCESSOS TUTELARES CÍVEIS Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos 16 036 17 743 17 560 15 362 18 264 17 205 15 684 20 967 19 986 16 182 20 685 19 515 17 386 20 454 18 968 19 227 21 237 19 927 20 615 22 153 20 539 PROCESSOS TUTELARES Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos 7 342 6 422 6 341 7 263 7 034 5 893 8 075 6 972 6 242 8 760 7 189 5 673 10 178 6 837 5 607 11 296 7 327 5 743 14 030 7 948 6 073 12 12 11 12 11 12 10 13 10 13 10 13 10 13 Tribunais/Processos 1 PROCESSOS DE TRABALHO Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos Duração média (em meses) das acções findas Acidentes de trabalho Execuções de trabalho Duração média (em meses) dos processos findos Tutelares cíveis Tutelares MOVIMENTO DE PROCESSOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS SUPERIORES Tribunais da Relação Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos 8 942 19 614 14 796 13 760 21 446 19 767 15 437 17 776 19 355 11 651 19 370 16 735 14 111 19 790 17 934 15 222 20 482 22 767 12 767 20 868 21 490 Supremo Tribunal de Justiça Pendentes em 1 de Janeiro Entrados Findos 2 564 3 004 2 977 2 591 4 126 3 920 2 797 3 427 3 937 2 268 3 371 3 459 2 180 3 526 3 519 2 187 3 570 4 154 1 625 4 238 4 444 11 5 11 5 10 6 9 7 9 7 8 7 7 5 Duração média (em meses) dos recursos findos Cíveis Em processo crime *Dados provisórios. Fonte: Gab. Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. 158 Gráfico 1 PROCESSOS CÍVEIS 1992 - 1998 800 000 700 000 Processos 600 000 500 000 400 000 300 000 200 000 100 000 1992 1993 1994 1995 Pendentes em 1 de Janeiro 1996 1997 1998* Entrados Findos Gráfico 2 DURAÇÃO MÉDIA DOS PROCESSOS CÍVEIS FINDOS 70 60 50 Meses 40 30 20 10 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998* Divórcios e separações judiciais Inventários Outras acções declarativas Falências e recuperação de empresas Execuções 159 Gráfico 3 Injunções INJUNÇÕES FINDAS 1995 - 1998 8 7 6 5 4 3 2 1 000 000 000 000 000 000 000 000 1995 1996 1997 1998* Gráfico 4 DURAÇÃO MÉDIA DOS PROCESSOS CRIME 18 16 14 17 14 14 Meses 12 10 11 8 15 15 1996 1997 12 6 4 2 1992 1993 1994 1995 Gráfico 5 160 1998* PROCESSOS DE TRABALHO 1992 - 1998 70 000 60 000 Processos 50 000 40 000 30 000 20 000 10 000 1992 1993 1994 1995 Pendentes em 1 de Janeiro 1996 1997 Entrados 1998* Findos Gráfico 6 DURAÇÃO MÉDIA DOS PROCESSOS LABORAIS 20 18 16 Meses 14 12 10 8 6 4 2 1992 1993 1994 1995 Acidentes de trabalho 1996 1997 1998* Contrato individual de trabalho Execuções de trabalho Gráfico 7 161 PROCESSOS TUTELARES CÍVEIS 1992 - 1998 25 000 Processos 20 000 15 000 10 000 5 000 1992 1993 1994 1995 Pendentes em 1 de Janeiro 1996 1997 Entrados 1998* Findos Gráfico 8 Processos PROCESSOS TUTELARES 1992 - 1998 16 14 12 10 8 6 4 2 000 000 000 000 000 000 000 000 1992 1993 1994 1995 Pendentes em 1 de Janeiro Gráfico 9 162 1996 Entrados 1997 1998* Findos DURAÇÃO MÉDIA DOS PROCESSOS TUTELARES 14 12 Meses 10 8 6 4 2 1992 1993 1994 1995 1996 Tutelares cíveis 1997 1998* Tutelares Gráfico 10 PROCESSOS NOS TRIBUNAIS DA RELAÇÃO 1992 - 1998 25 000 Processos 20 000 15 000 10 000 5 000 1992 1993 1994 1995 Pendentes em 1 de Janeiro Gráfico 11 163 1996 Entrados 1997 1998* Findos Processos PROCESSOS NO STJ 1992 - 1998 5 4 4 3 3 2 2 1 1 000 500 000 500 000 500 000 500 000 500 1992 1993 1994 1995 Pendentes em 1 de Janeiro 1996 1997 Entrados 1998* Findos Gráfico 12 DURAÇÃO MÉDIA DOS RECURSOS 12 10 Meses 8 6 4 2 1992 1993 1994 Cíveis 1995 1996 1997 1998* Em processo crime Quadro 2 – PROCESSOS CRIME NA FASE DE JULGAMENTO FINDOS NOS TRIBUNAIS JUDICIAIS DE 1.ª INSTÂNCIA 164 1992-1998* Anos 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998* 2 3 4 5 6 7 8 79 474 82 972 30 351 70 916 74 274 37 442 90 503 95 107 34 484 84 747 89 678 36 372 85 387 90 360 36 771 85 282 90 858 37 771 113 616 119 347 40 542 300 4 472 9 017 7 528 - 419 8 957 12 247 7 129 - 406 8 223 9 697 8 126 - 335 8 420 9 226 9 430 - 353 16 986 4 686 7 510 - 335 20 723 3 042 7 204 5 782 352 25 810 2 576 6 225 5 091 8 817 3 17 36 1 8 446 1 19 32 1 7 750 2 12 39 1 8 703 4 9 47 .. 6 965 11 6 25 .. 1 422 6 123 3 12 29 2 1 134 5 260 1 7 33 1 11 67 82 25 71 95 14 63 151 7 47 144 11 218 14 248 15 262 Tribunais/Processos 1 Processos crime na fase de julgamento findos (total) Arguidos julgados Condenados Penas/medidas aplicadas: Admoestação Multa Prisão substituída por multa Prisão não substituída/pena suspensa Simples Com sujeição a deveres/regras de conduta/regime de prova Prisão não substituída não suspensa Prisão relativamente indeterminada Prisão por dias livres/semidetenção Medidas de segurança Medidas especiais para jovens Prestação de trabalho a favor da comunidade Regime de prova Outras, ignoradas ou não especificadas *Dados provisórios. Fonte: Gab. De Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. 165 Gráfico 1 PENAS E MEDIDAS APLICADAS 1992 - 1998 30 000 25 000 Número 20 000 15 000 10 000 5 000 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998* Multa Prisão substituída por multa Prisão não substituída/pena suspensa Prisão não substituída não suspensa 166 Quadro 3 – SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO (CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO) Anos 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 Processos/Espécies 1 Pendentes do ano anterior Entrados durante o ano Total Findos durante o ano Pendentes para o ano seguinte 541 108 649 208 441 441 143 584 183 401 1. MOVIMENTO PROCESSUAL PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO 401 412 358 371 368 159 144 137 180 181 560 556 495 551 549 148 198 124 183 215 412 358 371 368 334 Pendentes do ano anterior Entrados durante o ano Total Findos durante o ano Pendentes para o ano segunite 3215 1228 4443 1556 2887 2887 1192 4079 1347 2732 SUBSECÇÕES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO 2732 2595 2571 2384 2167 1090 1330 1135 1273 1236 3822 3925 3706 3657 3403 1227 1354 1322 1490 1443 2595 2571 2384 2167 1969 Oposição de acórdãos Outros recursos jurisdicionais Recursos de actos de CSTAF Outros Total 18 89 1 .. 108 25 117 .. 1 143 2. PROCESSOS ENTRADOS, POR ESPÉCIES PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO 17 27 36 43 39 141 111 99 132 136 .. 6 2 4 6 1 .. .. 1 .. 159 144 137 180 181 9 334 188 522 143 379 379 184 563 133 430 430 206 636 164 472 472 224 696 198 498 498 183 681 375 306 306 235 541 204 337 1960 1739 3699 1127 2572 3768 2691 6459 1994 4465 3768 2691 6459 1994 4465 4465 2268 6733 2052 4681 4681 1734 6415 2079 4336 4336 1048 5384 1701 3683 47 137 2 2 188 52 144 3 7 206 52 144 3 7 206 77 140 .. 7 224 38 143 2 .. 183 52 178 .. 5 235 Continua Fonte: Gab. De Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. 167 Quadro 3 – SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO (CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO) Anos 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 Processos/Espécies 1 SUBSECÇÕES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO Recursos jurisdicionais Recursos contenciosos Contencioso eleitoral Ilegalidade de normas Conflitos Suspensão de eficácia Execução de julgados Outros 270 760 .. 11 4 183 .. .. 318 687 .. 7 1 88 17 3 455 519 .. 7 1 88 17 3 634 568 .. 6 2 101 12 7 439 614 .. 4 .. 60 18 .. 556 604 3 9 1 62 34 4 641 531 .. 4 2 45 13 .. 679 757 .. 5 .. 87 43 168 1247 1180 1 11 2 96 6 631 1345 1092 .. 24 1 85 2 142 1285 791 .. 4 .. 82 9 97 937 650 1 1 1 73 15 56 588 309 1 .. 1 54 23 72 10 28 11 22 2 30 .. 13 15 8 28 22 10 1 38 .. 3 11 9 18 21 22 3 22 4 1 10 13 17 25 12 1 16 8 20 13 13 22 24 21 2 23 9 14 13 16 23 21 27 3 24 8 10 17 .. .. .. .. .. .. .. .. .. DURAÇÃO MÉDIA, EM MESES, POR ESPÉCIES Recursos jurisdicionais Recursos contenciosos Conflito de competência Ilegalidade de normas Suspensão de eficácia Execução de julgados Apoio judiciário Outros Média total .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 17 37 7 .. 3 20 .. 15 24 9 38 10 24 2 22 .. 2 13 14 38 .. 23 2 23 .. 9 21 Fonte: Gab. De Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. 168 15 38 29 22 2 25 .. 8 23 Quadro 4 – TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO (CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO) Anos Processos/Espécies 1 Recursos jurisdicionais Recursos contenciosos Ilegalidade de normas Conflitos Outros processos Total Entrados 2 87 493 .. 1 21 602 1997 Findos 3 Pendentes 4 19 5 .. .. 8 12 68 488 .. 1 13 570 Entrados 5 564 1044 13 .. 73 1694 1998 Findos 6 365 204 5 1 75 650 *Até 31 de Março de 1999. Fonte: Gab. de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. 169 Pendentes 7 Entrados 8 267 1328 8 .. 11 1614 228 273 2 .. 22 525 1999* Findos 9 150 149 1 .. 15 315 Pendentes 10 Entrados 11 TOTAL* Findos 12 Pendentes 13 345 1452 9 .. 18 1824 879 1810 15 1 116 2821 534 358 6 1 98 997 345 1452 9 .. 18 1824 Quadro 5 – TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS DE CÍRCULO Anos Espécies 1 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 1. MOVIMENTO PROCESSUAL Pendentes do ano anterior Entrados durante o ano Total Findos durante o ano Pendentes para o ano seguinte 2041 1154 3195 897 2298 2298 1492 3790 1046 2744 2744 1497 4241 1285 2956 2956 1735 4691 1883 2808 2808 1782 4590 1851 2739 2739 1888 4627 1905 2722 2857 2335 5192 2530 2662 2662 2966 5628 2547 3081 2501 3445 5946 3134 2812 2812 3753 6565 3262 3303 3303 3921 7224 3386 3838 3838 3392 7230 2836 4394 4394 4211 8605 3107 5498 67 208 40 1442 1 28 .. 760 2546 101 219 48 1569 2 41 3 1150 3133 112 236 76 1569 5 34 2 1228 3262 64 247 65 1671 5 38 4 1283 3377 59 151 56 1646 2 40 2 879 2835 59 225 79 1630 1 10 7 1096 3107 2. PROCESSPS FINDOS, POR ESPÉCIES Acções: Sobre contratos Da responsabilidade civil Para conhecimento de direitos Recursos de actos administrativos Impuganção de normas Contencioso da segurança social Contencioso eleitoral Outros Média total 55 77 9 624. .. 7 .. 125 897 65 51 19 727 .. 18 1 165 1046 82 55 16 860 .. 17 1 238 1269 53 132 30 1213 2 22 3 391 1846 71 101 334 1226 1 8 2 406 1848 71 145 34 1149 1 15 1 488 1904 127 166 42 1353 5 38 2 750 2483 Continua Fonte: Gab. de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça 170 Quadro 5 – TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS DE CÍRCULO Anos Espécies 1 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 DURAÇÃO MÉDIA, EM MESES, POR ESPÉCIES Acções: Sobre contratos De responsabilidade civil Para conhecimento do direitos Recursos de actos administrativos Impuganação de normas Contencioso da segurança social Contencioso eleitoral Outros Média total .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 32 39 27 27 .. 14 21 11 25 28 48 23 29 26 16 11 8 26 30 37 25 25 5 23 13 9 12 27 41 15 22 3 25 5 6 19 Fonte: Gab. de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. 171 22 32 15 22 10 19 4 4 17 22 23 15 18 3 21 .. 3 14 16 20 13 18 17 24 4 4 13 17 16 14 16 9 12 2 3 11 20 16 11 16 6 13 10 3 11 26 23 15 16 15 10 2 4 13 .. .. .. .. .. .. .. .. .. Programa 172 COLÓQUIO A JUSTIÇA EM PORTUGAL 24 de Maio de 1999 Grande Auditório da Caixa Geral de Depósitos 09H15 - 10H00 − Abertura • Apresentação do Colóquio pelo Presidente do Conselho Económico e Social • Intervenção inaugural do Senhor Ministro da Justiça • Esboço de uma perspectiva da Justiça em Portugal na óptica de um Conselho Económico e Social Dr. Joaquim Magalhães Mota 10H00 - 11H30 − Algumas questões com relevância económica • As falências Dr. José de Almeida Serra • A crise de confiança nos contratos Dr. Miguel Veiga • O crédito mal-parado nas empresas não financeiras Dr. Luís Faria 11H30 - 11H45 − Intervalo para café 11H45 - 13H15 − Aspectos Sociais • O valor da vida e o processo laboral Prof. Doutor Jorge Leite • A concentração e a selectividade da litigância Dr. Armindo Ribeiro Mendes • Os problemas do consumo, ambiente e as novas vertentes da cidadania nos tribunais Conselheiro Mário Torres 13H15 - 15H00 − Intervalo para almoço 15H00 - 16H30 − A Justiça como tarefa comum • Tribunais de competência especializada? Dr. João Correia • Os crimes contra a economia na criminalidade judicializada. A criminalidade de colarinho branco Prof. Doutor Manuel Costa Andrade • A intervenção dos advogados prevenindo o litígio Dr. António Pires de Lima 16H30 - 16H45 − Intervalo para café 16H45 - 18H15 − O poder judicial hoje • A expressão das competências do poder judicial Juiz Conselheiro José Nunes da Cruz • A crise (interna ou externa) dos Tribunais? Prof. Doutor Boaventura Sousa Santos • Legitimidade do poder judicial Prof. Doutor J. J. Gomes Canotilho 18H15 - 18H40 − Síntese conclusiva do Colóquio Dr. José Luís da Cruz Vilaça 173