O Protagonismo do Brasil no Histórico Acordo Global de Proteção à

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O Protagonismo do Brasil no Histórico Acordo Global de Proteção à
Forum
Brazilian Journal of Nature Conservation
Natureza & Conservação 8(2):197-200, December 2010
Copyright© 2010 ABECO
Handling Editor: José Alexandre F. Diniz-Filho
doi: 10.4322/natcon.00802017
O Protagonismo do Brasil no Histórico Acordo Global de
Proteção à Biodiversidade
Brazil’s Leading Role in the Historical Global Agreement for the
Protection of Biodiversity
Russell Mittermeier1, Patrícia Carvalho Baião2,3, Lina Barrera1, Theresa Buppert1,
Jennifer McCullough1, Olivier Langrand1, Frank Wugt Larsen1 & Fabio Rubio Scarano2,4,*
1
Conservation International, 2011 Crystal Drive, Suite 500, 22202, Arlington, VA, Estados Unidos
2
Conservation International, Rua Buenos Aires 68, 26 andar, CEP 20070-022, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3
Programa de Pós-graduação em Biodiversidade, Universidade Federal do Amapá – UNIFAP,
CEP 68908-130, Macapá, AP, Brasil
4
Laboratório de Ecologia Vegetal, Departamento de Ecologia, Centro de Ciências da Saúde, Instituto de Biologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, CP 68020, CEP 21941-970, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Sob a sombra do fracasso de Copenhagen e após duas
semanas de difíceis negociações, poucos acreditavam que
a décima Conferência das Partes (COP10) da Convenção
da Diversidade Biológica (CDB) das Nações Unidas (veja
histórico na Tabela 1) teria um final feliz. Entretanto, nas
primeiras horas do dia 30 de outubro de 2010, na cidade
japonesa de Nagoya, 193 países do mundo encontraram
o tão esperado consenso. O Brasil foi um importante
protagonista das negociações e, com freqüência, auxiliou
na intermediação e busca de acordo entre as nações cujas
posições eram mais extremas. O novo acordo significará
um passo decisivo na redução da atual taxa de extinção
de espécies e garantirá que países em desenvolvimento e
seus povos tradicionais possam se beneficiar das riquezas
geradas por seus ecossistemas terrestres e aquáticos. Nessa
coluna, avaliamos os principais resultados da COP-10 e
discutimos o papel do Brasil no sucesso das negociações.
O Acordo
Áreas protegidas
Uma das 20 metas acordadas no plano estratégico para o
período 2011- 2020 foi a de aumento das áreas protegidas no
âmbito global. Até 2020, 17% da superfície continental do
planeta e 10% da área oceânica deverão estar sob proteção
formal. Considerando que o mundo conta hoje com 12,9%
da sua superfície continental e cerca de 0,7% da área oceânica
*Send correspondence to: Fabio Rubio Scarano
Conservation International, Rua Buenos Aires 68, 26 andar,
CEP 20070-022, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
total nessa categoria, a meta é particularmente ambiciosa no
que diz respeito aos ambientes marinhos, e moderadamente
ambiciosa para ambientes terrestres. Ao longo das duas
semanas de negociações em Nagóia, a discussão dessa
meta esteve polarizada, tendo de um lado países como a
Colômbia, a Costa Rica e o Equador que defendiam 25/15
(% continental e marinha, respectivamente), e de outro,
países como a China que defendiam uma meta menos
ambiciosa de apenas 10/6 (note que 10% seria menos que
o planeta já tem e que a meta vigente era de 10% terrestre
em 2010 e 10% para oceanos em 2012). A posição defendida
pelo Brasil foi de 20/10 e o resultado acordado ao final,
17/10, indicou a flexibilidade de todos e a habilidade dos
negociadores brasileiros em trazer a decisão para bem perto
da proposta inicial do país.
A Conservação Internacional organizou, no segundo dia
da COP10 em Nagóia, um evento que discutiu resultados
recém obtidos por seus cientistas que indicavam que
seriam necessários pelo menos 25% de áreas protegidas
continentais e 15% de áreas protegidas marinhas para
proteger a biodiversidade e garantir a manutenção dos
serviços ambientais. Os 25% da superfície continental,
indicado pela análise da Conservação Internacional,
é a soma de um mínimo de 17% de território global
necessário para preencher as lacunas de áreas não protegidas
classificadas como de alta prioridade, tais quais as KBA (Key
Biodiversity Areas ou Áreas-Chave para a Biodiversidade),
mais uma faixa adicional de 6 a 11% para garantir estocagem
adequada de biomassa de carbono em ecossistemas naturais.
Portanto, trata-se de uma estimativa bastante conservativa,
já que não inclui outros aspectos ligados à biodiversidade
ou a proteção de outros serviços ambientais como, por
exemplo, a proteção de mananciais de água. Quanto à área
Mittermeier et al.
Natureza & Conservação 8(2):197-200, December 2010
marinha, o quinto Congresso Mundial de Parques (Durban.
África do Sul, 2003) da UICN (União Internacional para a
Conservação da Natureza) recomendara a meta de 20-30%
para adequadamente preservar a biodiversidade oceânica e
assegurar ambientes marinhos produtivos e saudáveis (http://
cmsdata.iucn.org/downloads/recommendationen.pdf).
A estimativa conservativa da Conservação Internacional de
15% para 2020 decorre do julgamento que esse já seria um
primeiro largo e significativo passo no sentido de alcançar a
meta projetada pelo congresso de parques da UICN. Esses
estudos estão sendo ampliados, contemplando a inclusão
de serviços ambientais adicionais tais como segurança de
qualidade e acesso a água e segurança alimentar. Dados
preliminares indicam que para garantir efetivamente a
manutenção dos serviços ambientais globais, talvez seja
preciso proteger aproximadamente 35-50% da superfície do
planeta. Consideramos, portanto, que o acordo 17/10 para
2020 é ainda abaixo do necessário, mas que já representa
um passo significativo em direção ao ideal.
espécies. A discussão acerca dessas metas também esteve
polarizada na COP10, com alguns países propondo eliminar
completamente a extinção de espécies até 2020, e outros
defendendo texto sem meta numérica, com indicação vaga
de diminuição das taxas atuais dentro das capacidades
nacionais. Com relação à extinção de espécies, o consenso
foi de evitar a extinção de todas as espécies sabidamente
ameaçadas até 2020, posição essa defendida pelo governo
brasileiro. Em relação à perda de habitats naturais, as partes
concordaram com a meta de reduzir a pelo menos à metade
até 2020 e aonde possível chegar à zero.
198
Redução das taxas de extinção e de perda de
habitats
Duas metas do Plano Estratégico para 2011-2020 se
relacionam a esses tópicos. A meta 5 lida com perda de
habitats naturais, enquanto a meta 12 com extinção de
Baseado em estimativas recentes lançadas no relatório
“A Economia dos Ecossistemas e da biodiversidade (TEEB,
do Inglês, The Economics of Ecosystem and Biodiversity), a
Conservação Internacional defendeu a meta de extinção
zero até 2020 e uma meta ambiciosa para a redução da
perda de habitats naturais. De acordo com o TEEB,
as taxas atuais de extinção e de destruição de habitats
implicam em grandes perdas financeiras anuais e que
áreas protegidas proporcionam 100 vezes mais benefícios
que custos à economia global. Assim, ainda que o acordo
represente um grande passo, a redução da taxa de perda
de habitats pela metade até 2020 ainda implicará prejuízo
significativo para o mundo, especialmente para países em
desenvolvimento.
Tabela 1. Breve cronologia da Convenção da Diversidade Biológica (CBD) das Nações Unidas.
Ano
Evento
Principais fatos
1992
Eco-92, Rio de Janeiro, Brasil
São criadas três convenções, no âmbito da ONU, para conter e reverter
a crise ambiental: a CBD, a Convenção de Mudanças Climáticas
(UNFCCC) e a Convenção de Combate à Desertificação (UNCCD).
1993
CBD entra em ação com três objetivos globais: 1) conservar a
diversidade biológica; 2) garantir o uso sustentável dos componentes
da biodiversidade; e 3) garantir a repartição justa e equitativa dos
benefícios que derivam dos recursos genéticos.
2002
COP-6, CBD, Johanesburgo,
África do Sul
Lançamento do primeiro plano estratégico para reduzir a perda de
habitats e extinção de espécies.
2006
COP-8, CBD, Curitiba, Brasil
Demandou ao grupo de trabalho ad hoc sobre acesso e repartição de
benefícios (ABS) que completasse seu trabalho antes da COP-10.
2010
(Maio)
Subsidiary Body on Scientific Technical
and Technological Advice (SBSTTA),
CBD, Nairobi, Quênia
Constatação pelas partes que o planeta fracassou
em alcançar as metas lançadas em 2002.
2010
(Outubro)
COP-10, CBD, Nagóia, Japão
Lançamento de novo plano estratégico com 20 metas para o período
de 2011-2020; acordo em torno do acesso e repartição de benefícios
(ABS) associados à biodiversidade.
2012
COP-11, local por definir, Índia
Modalidades dos compromissos financeiros
para ABS serão discutidas.
2012
Rio+20, Rio de Janeiro, Brasil
Re-encontro das três convenções criadas em 1992,
para avaliação de seu sucesso.
199
Acordo Global de Proteção à Biodiversidade
Acesso e repartição de benefícios
Acesso e repartição de benefícios (ABS, do inglês Access
and Benefit Sharing) é relacionado ao terceiro objetivo da
CBD (ver Tabela 1) e é um dos mais controvertidos aspectos
da convenção desde seu mandato em 1998, tendo sido
objeto de intensas negociações desde 2002. Sem dúvida,
foi também o ponto que mais suscitou divergências entre
os países durante a COP10. Essencialmente, o protocolo
de ABS negociado em Nagóia trata de como ter acesso aos
recursos genéticos da natureza e de como compartilhar os
benefícios derivados do uso dessa biodiversidade, baseado
em termos mutuamente acordados entre as partes. O
protocolo toca em assuntos delicados como direitos sobre
patentes, propriedade intelectual, direitos de comunidades
indígenas e locais ao conhecimento tradicional associado
a recursos genéticos, bem como acerca de que forma
benefícios devem ser compartilhados quando produtos
medicinais, cosméticos e outros bens são criados a partir da
biodiversidade. No mercado atual, muitos desses produtos
têm sua origem biológica no mundo em desenvolvimento,
mas o benefício por vezes fica no mundo desenvolvido que,
historicamente, é onde se encontram os laboratórios que
desenvolvem os produtos comercializáveis.
O Brasil desde o início da COP10 condicionou a aprovação
dos demais acordos ao acordo em ABS, no que foi seguido
por vários outros países do mundo em desenvolvimento.
Esse posicionamento foi essencial para impulsionar os
demais países na direção de um acordo quanto ao ABS.
Agora acordado, o “Protocolo de Nagóia sobre Acesso
aos Recursos Genéticos e o Compartilhamento Justo e
Equitativo dos Benefícios Derivados de Seu Uso” (http://
www.cbd.int/nagoya/outcomes/) marca uma conquista
histórica da CBD em direção ao cumprimento do seu
terceiro objetivo. Graças ao Japão ter submetido um texto,
um dia antes do término da COP10, que constituía um
bom compromisso entre países de norte e sul, consenso
foi alcançado em tópicos que dividiam as partes signatárias
há anos - incluindo o escopo do protocolo e a definição de
utilização e derivados – em geral através do uso de linguagem
aberta e da eliminação de trechos particularmente polêmicos.
O protocolo também inclui considerações acerca de um
mecanismo multilateral global de repartição de recursos
que pode tratar de situações específicas onde ainda não
haja consenso estabelecido. Embora essa abordagem possa
criar algumas ambigüidades e questões acerca de sua efetiva
implementação, o Protocolo de Nagóia emerge como um
importante avanço.
Financiamento
Outro ponto de contenção para o governo brasileiro,
no que também foi seguido por vários outros países em
desenvolvimento, dizia respeito ao financiamento das
várias ações previstas no plano estratégico para o período
2011‑2020. Diante do fracasso no alcance das metas previstas
para 2010, esses países condicionaram o acordo no novo
plano estratégico a um compromisso de financiamento por
parte de países do mundo desenvolvido, reconhecendo
também a necessidade de investimentos nacionais por
parte dos países em desenvolvimento. Novos compromissos
financeiros, além do já anunciado pela Alemanha ao
término da COP9 (sediado em Bonn, 2008), demoraram
a aparecer, mas a três dias do fim das negociações, o Japão
anunciou um compromisso de 2 bilhões de dólares, e foi
seguido pela Grã-Bretanha, ainda que com uma menor
soma bem inferior, e pela França, que se comprometeu
com 200 milhões de dólares por ano ao longo dos próximos
quatro anos e, a partir de 2014, 500 milhões de dólares
por ano. Adicionalmente, os doadores reabasteceram o
Global Environmental Facility (GEF), um fundo fiduciário
multilateral estabelecido para financiar as convenções do
clima e da biodiversidade, na ordem de 4,25 bilhões de
dólares para o período de 2010-2014, que representa um
aumento de 37% sobre os quatro anos anteriores.
A posição apresentada conjuntamente pela Conservação
Internacional e pela Birdlife International era de investimentos
na ordem de 0,3% do PIB dos países do OECD (Organisation
for Economic Co-operation and Development), que representa
um montante de 125 bilhões de dólares. Ainda que os
compromissos já anunciados estejam bastante aquém dessa
proposta, esses foram bem recebidos e permitiram o acordo.
Outros pontos importantes
Merecem destaque ainda os seguintes aspectos:
• Ficou definida a criação, independente da CBD, do
IPBES (Painel Intergovernamental de Biodiversidade
e Serviços Ambientais), que seria o análogo ao IPCC
(Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas),
até Janeiro de 2011. O Brasil é um dos candidatos
para sediar o Painel;
• Alinhamento com a convenção do clima: houve
um reconhecimento da crescente interrelação
entre conservação da biodiversidade, mudanças
climáticas e desenvolvimento. Isso ficou evidente no
enquadramento das metas para 2020 e também na
série de decisões acerca das contribuições da natureza
para adaptação e mitigação às mudanças climáticas,
assim como na erradicação da pobreza.
Brasil: Protagonismo versus Lacunas
Conforme já mencionado, o Brasil teve um papel decisivo
nas negociações em Nagóia, assim como já o fizera em
Copenhagen na 15a Conferência das Partes (COP15) da
Convenção do Clima. O reconhecimento do sucesso da
delegação brasileira na COP10 se deveu a diversos fatores
tais como: boa estratégia de negociação, negociadores
habilidosos e bem treinados; envolvimento e coordenação
Mittermeier et al.
Natureza & Conservação 8(2):197-200, December 2010
entre vários ministérios; a eloqüência e o compromisso
da Ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira; boa
representação do setor empresarial brasileiro; boa e atuante
representação de ONGs atuantes no país; assim como vários
acadêmicos de destaque. Agora é o momento de passarmos
do discurso para a ação e do papel para a prática. Se o
Brasil não quiser ficar devendo para o planeta em termos
de áreas protegidas, precisará pelo menos aumentar em
70% a atual cobertura de áreas protegidas no continente
e aumentar 10 vezes a cobertura protegida marinha,
conciliando isso com geração de energia, produção de
alimentos e combustíveis e construção de infra-estrutura.
Se por um lado a Amazônia brasileira está protegida em
quase 50% (incluindo unidades de conservação e terras
indígenas), biomas como o cerrado, pantanal, caatinga,
mata atlântica e pampa estão bem abaixo dos 17% agora
lançados como meta para o planeta. O quadro marinho
então, com seus 1,5% atuais, é particularmente sério, ainda
mais em tempos de pré-sal.
aqui na “Natureza & Conservação” (e.g., Lewinsohn 2010,
Metzger 2010, Scarano & Martinelli 2010).
200
O país precisará o quanto antes desenhar uma estratégia
robusta para alcançar essas metas em 10 anos e prontamente
pô-la em prática, incluindo criação e consolidação de áreas
protegidas; criação de mecanismos de geração de renda
a partir da biodiversidade e de arcabouço legal em nível
nacional para pagamentos por serviços ambientais; revisão
de listas de espécies ameaçadas de extinção e monitoramento
e recuperação das mesmas; dentre vários outros pontos.
Tudo isso irá requerer desembolso e financiamento em escala
muito superior ao que se tem atualmente, mas também irá
demandar ciência e pessoal qualificado. Se por um lado,
a expansão da rede de pós-graduação em áreas ligadas à
biodiversidade está em franca expansão, assim como o
impacto internacional da ciência produzida nesses temas
pelo país, por outro lado, a ciência e a tomada de decisão
ainda se comunicam muito mal, como vem sendo discutido
O balanço de vinte anos da ECO-92 se aproxima. O evento
que está sendo chamado de Rio+20, em 2012, será hora
do Brasil definitivamente despontar como líder ambiental
global. Para isso será preciso mais que habilidade de
negociação, atributo que o país já possui. Será preciso liderar
pelo exemplo, pondo em prática em território nacional as
idéias que tão habilmente os negociadores brasileiros têm
usado para convencer outros países da importância e valor
da biodiversidade.
Agradecimentos
À delegação brasileira em Nagóia pelo trabalho comprometido
e dedicado sob a liderança da Ministra Izabella Teixeira e do
Ministro Paulino Carvalho e, particularmente, ao grande
conservacionista e habilidoso negociador Secretário Braulio
Dias. Somos gratos também à delegação da Conservação
Internacional pelo apoio e trabalho em equipe.
Referências
Lewinsohn TM, 2010. A ABECO e o Código Florestal Brasileiro.
Natureza & Conservação, 8:100-101.
Metzger JP, 2010. O Código Florestal tem base científica?
Natureza & Conservação, 8:92-99.
Scarano FR & Martinelli G, 2010. Brazilian list of threatened
plant species: reconciling scientific uncertainty and political
decision-making. Natureza & Conservação, 8:13-18.
Recebido: Novembro 2010
Primeira Decisão: Novembro 2010
Aceito: Novembro 2010

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