Conceito e origem da Filologia românica

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Conceito e origem da Filologia românica
Conceito e origem da Filologia românica
Conceito de Filologia e Linguística
Muitas universidades de línguas neolatinas têm professores de Filologia românica e as de outras nações as de suas línguas: Filologia germânica
ou Filologia eslava, por exemplo. Entretanto, é mais comum haver professores de Linguística.
Em que diferem Filologia e Linguística? Primeiro permita-me o leitor
apresentar a opinião abalizada de Serafim da Silva Neto (1917-1960) em
seu livro sobre a Filologia portuguesa (SILVA NETO, 1957):
A Linguística é uma ciência de princípios gerais, aplicáveis a quaisquer línguas. Nessa
conformidade, não julgamos aconselhável falar, por exemplo, em Linguística francesa,
ou inglesa, com o fito de referirmos estudos acerca dessas línguas. A Linguística parece-nos sempre geral. A Filologia, sim, encerra todos os estudos possíveis acerca de uma
língua ou grupo de línguas: Filologia portuguesa, Filologia indo-europeia. [...]
Enquanto a Linguística estuda precisamente a língua ao longo da sua
história, Linguística diacrônica, ou num dos seus momentos dados, Linguística sincrônica, encarando sempre a fala, a Filologia depende majoritariamente de documentos escritos: assim existe uma Linguística das línguas
indígenas. Coutinho (1976, p. 17) nos traz uma definição simples e completa, que permite uma boa distância entre ela e a Linguística: “Filologia é a
ciência que estuda a literatura de um povo ou de uma época e a língua que
lhe serviu de instrumento”. Essa definição já explica que estudar a língua
de Os Lusíadas cabe bem mais à Filologia que à Linguística. Nesse sentido
mais restrito, a Filologia era praticada pelos antigos gregos e romanos, mas
agora a língua escrita é muito mais frequente que naqueles tempos.
É claro que entre a Filologia e a Linguística existe um elo comum, que
está no final da definição de Lima Coutinho: “[...] a língua que lhe serviu de
instrumento” (1969, p. 17). Por tudo isso, creio também que os aspectos
ortográficos antes pertençam à Filologia, e sejam em princípio indiferentes para a Linguística.
Além disso, o campo da Filologia é mais amplo, porque há assuntos
de que a Linguística ordinariamente não cuida, sem se falar dos aspectos
literários que também não são abordados por ela:
Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa
edições diplomáticas;
edições críticas;
comparação de edições diferentes para se chegar ao texto original;
estudo das divergências entre línguas da mesma origem.
As edições diplomáticas e críticas apresentam as obras sob diferentes critérios de elaboração, ainda que os objetivos sejam os mesmos: apresentação modelar de um original.
A edição diplomática procurava dar a imagem verdadeira de um texto, mas
a técnica de hoje tem as cópias fotográficas ou eletrônicas, que são muito mais
fiéis por reproduzirem todos os detalhes da página. Houve, entretanto, valiosas
edições diplomáticas das cantigas trovadorescas que se perderam no tempo.
A edição crítica quer apresentar a melhor forma de um texto por eliminar
os erros involuntários, existindo excelentes edições críticas dos Evangelhos. O
ruim dessas edições críticas é que comumente aparecem em cada página mais
linhas de notas que as do texto original, sendo assim interessantes somente para
poucos especialistas e para bibliotecas especializadas.
A comparação de edições diferentes para se chegar ao texto original tem o
exemplo das duas edições antigas de Os Lusíadas, que se distinguem pela capa. Em
cada uma delas aparece um pelicano voltado para um lado diferente. É trabalho da
Filologia estudar as edições para descobrir qual forma foi a escolha inicial do autor.
Um caso mais simples está em um dos versos do Hino Nacional brasileiro, que
é cantado de duas formas, cabendo à Filologia provar como é o verso original do
texto de 1909, escrito por Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927) e música
de Francisco Manuel da Silva (1795-1865), tocada pela primeira vez em 1831,
sem nunca ter um texto definitivo, todos ruins de letra ou de conteúdo. A sua
oficialização veio em 1922, pouco antes dos festejos do primeiro centenário da
nossa independência política.
Entre os nossos hinos patrióticos, o mais heroico e ao mesmo tempo lírico é
a Canção do Expedicionário, criada em 1944 com texto de Guilherme de Almeida
(1890-1969) e melodia de Spartaco Rossi (1910-1993), que falam ao coração:
Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
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Das selvas, dos cafezais,
Da boa terra do coco,
Da choupana onde um é pouco,
Dois é bom, três é demais [...]
(ALMEIDA, 1982, p. 91)
Deixem-me os meus leitores acrescentar que Duque Estrada pretendeu
honrar a figura emérita de Antônio Gonçalves Dias (1823-1865) tomando a segunda estrofe da “Canção do exílio” nos seus três versos finais para a segunda
estrofe da segunda parte do nosso Hino: é pena que poucos percebam essa honraria. Esses versos pertencem com certeza a uma das poesias mais emotivas do
nosso cancioneiro, em que o poeta externa a sua dor de estar longe do Brasil,
enquanto estudava em Portugal.
A “Canção do exílio”, publicada por Gonçalves Dias em 1847 no livro Primeiros
Cantos, tem versos de sete sílabas e aparece como segunda estrofe desse desabafo de saudade os três versos que o autor do Hino Nacional aproveitou para a
sua gentil homenagem ao nosso maior romântico. A estrofe de Gonçalves Dias
é a seguinte, de que o primeiro verso foi desprezado numa troca infeliz do céu
pela terra
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores[...]
(GOLÇALVES DIAS, 1997, p. 27)
Este foi o aproveitamento que dessa estrofe fez Duque Estrada, substituindo
o céu do primeiro verso pela terra:
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos lindos campos têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida, [...]
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A estrofe original aparece deste modo em todas as suas edições, faltando as
aspas na segunda metade do segundo verso, certamente por um esquecimento
de Duque Estrada:
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos lindos campos têm mais flores;
“Nossos bosques têm mais vida”,
“Nossa vida” no teu seio “mais amores”.
Lembro aos meus amáveis leitores que as linhas acima são um exercício de Filologia. Acrescento ainda que a recusa da palavra várzeas se deveu ao verso que
teria uma sílaba a mais com o feminino do possessivo tuas e o enxerto no quarto
verso foi motivado exclusivamente pela melodia do nosso Hino, que é 78 anos
mais velha que a sua letra. Enquanto a estrofe do poema de Gonçalves Dias tem
quatro versos de sete sílabas métricas, a do Hino Nacional tem versos ímpares
de sete sílabas e versos pares de onze sílabas. Assim, portanto, faltavam quatro
sílabas, que o autor teve de inventar: no teu seio. Do ponto de vista puramente
informativo, o resultado me parece medíocre, se considerarmos a oração desse
quarto verso com o verbo que fica subentendido:
Nossa vida [tem] no teu seio mais amores.
Devo, todavia, concordar que o enxerto produz uma metáfora congruente
com outras dentro do mesmo poema, o que o desculpa do pouco sentido acrescido pelas três palavras: no teu seio. Essas outras metáforas aparecem no terceto
que finaliza as duas estrofes do Hino Nacional:
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria Amada,
Brasil!
A citação dos versos do nosso maior poeta romântico foi, entretanto, uma delicada mostra de carinho e admiração que Duque Estrada tinha pelo bardo maranhense. Para finalizar, uma visão filológica me leva a ver na falta dos adjetivos do
poema de Gonçalves uma nítida hesitação entre a dor portuguesa e a saudade
brasileira: iria o poeta escolher adjetivos para as paisagens brasileiras, acerbando
a sua saudade, ou para as portuguesas, avolumando a sua dor? A melhor solução
foi eliminá-los – por ser menos penosa.
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Observe-se ainda que o nosso Hino Nacional apresenta no seu final também
uma diferença no canto do primeiro dos seus versos: a primeira sílaba da palavra
plácidas pode se ouvir cantar com uma de duas notas, sendo correta apenas a
mais baixa na escala musical.
Operações filológicas
O estudo das divergências entre línguas da mesma origem é que provocou o
aparecimento da Filologia em 1816 com a obra Sistema de Conjugação do Sânscrito em comparação com o Grego, o Latim, o Persa e o Germânico, escrita pelo
cientista alemão Franz Bopp (1791-1867). Todas essas línguas derivam de uma
protolíngua muito mais antiga e sem nenhum documento escrito: o indo-europeu, língua de um povo que morava no centro do continente asiático no final do
Período Neolítico (7000-2500 a.C.) e que pouco mais de mil anos depois migrou
para as terras europeias e hindus: eram os ários.
Em suas novas terras, esses povos arianos certamente encontraram outros
povos e outras línguas que forçaram a evolução do idioma primitivo. Conservaram-se, entretanto, as palavras essenciais de uma língua, como pronomes e
nomes de parentesco, a conjugação dos verbos e a declinação, que é emprego de terminações para indicar na frase a função que têm as palavras: quem
dá (caso nominativo), a quem dá (caso dativo), o que é dado (caso acusativo),
de quem é o que é dado (caso genitivo), tempo ou modo de dar (caso ablativo), quem é chamado (caso vocativo), onde se dá (caso locativo), meio que se
usa para dar (caso instrumental) e alguns outros. Nenhuma das línguas indo-europeias apresenta todos eles. As palavras fundamentais de qualquer cultura
constituem a prova mais forte, como a palavra madre, que as crianças da nossa
língua reduziram a mãe:
mütter em alemão / méter em grego / mater em latim / matka em polonês
A verdade é que incorporar os dados culturais possibilita e torna mais fácil de
explicar as mudanças semânticas com o aparato filológico, porque as mudanças
fonéticas ou sintáticas deixam rastros, mas as semânticas se apagam e desaparecem caso não sejam registradas nos dicionários da língua.
Essa maior facilidade de concluir à vista de textos escritos talvez tenha sido o
fator que retardou o aparecimento da Linguística moderna: enquanto a Filologia
moderna começa em 1816, a verdadeira Linguística moderna nasce exatamente
cem anos depois com a obra de Ferdinand de Saussure (1857-1913) Cours de Lin17
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guistique Générale (Curso de Linguística Geral), livro póstumo, de 1916, coligido
por seus alunos das aulas ministradas. Nele se define claramente o conceito de
língua e o método estruturalista de estudá-la.
Justamente por isso, Saussure chamou a atenção para o fato de que o processo comunicativo tem duas vertentes: a fala (parole, no original), que é a parte
concreta do ato comunicativo, e a língua (langue, no original), que é a sua parte
abstrata. A importância que ele conferiu à fala passou a distinguir com toda a nitidez o que é Linguística e o que é Filologia: o texto escrito é uma fala artificial.
Fundador do Estruturalismo, tem ainda o merecimento de suas ideias terem
servido também a outras ciências, tendo Claude Lévi-Strauss aplicado seu
método à Etnologia.
Tomo para comprovar as afirmações anteriores o exemplo do particípio do
verbo latino álere, sinônimo de édere, certamente raízes bem mais antigas da
protolíngua indo-europeia. O primeiro desses verbos desapareceu nas línguas
germânicas e bem mais tarde também no surgimento das neolatinas, enquanto
o segundo se conservou nas germânicas (essen, do alemão / eat, do inglês / eten,
do holandês) e reapareceu nas línguas ibéricas por um dos seus compostos (comédere: comer). Por sua evolução semântica, que o desgarrou do verbo primitivo,
o particípio do verbo álere conservou-se nas línguas germânicas e nas neolatinas,
que cito nas formas masculina, feminina e neutra da antiga língua romana:
altus, alta, altum (alimentado, alimentada).
Curiosamente, dado o capricho na evolução das línguas e a deriva particular
da língua portuguesa, que é a marcha costumeira de suas mudanças, o desaparecimento do verbo se deve ao resultado final de sua forma:
ego alo (eu como) > eo ao > eu au > eu ou
Por esse mesmo motivo de formas homonímicas (ou: 1. forma verbal. 2. conjunção alternativa), o povo lusitano desprezou a primeira pessoa singular do
presente do indicativo do verbo ire, comum no mundo romano:
ego eo > eo eo > eu eu
Com isso, surgiu a necessidade de se achar um substituto para a forma indesejável por sua enorme homonímia com outra mais usada e imprescindível pela
impossibilidade de a própria língua fornecer um equivalente: chama-se supletivismo a esse ato. Essa forma conflitante foi substituída por outra bem diferente
do verbo vádere [caminhar]:
ego vado > eo vao > eu vau > eu vou
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O supletivismo é um caso específico de heteronímia, fato de haver mais de
um vocábulo ou palavra com significados iguais ou semelhantes. O caso acima é
o de um vocábulo que é uma forma irregular da palavra ir: o supletivismo é uma
heteronímia histórica. Mais comum é a heteronímia formada por sinônimos, palavras que têm um significado muito próximo e podem ser usadas no mesmo
contexto com muita facilidade, como estas:
belo / lindo / bonito
Embora seja uma digressão, acrescento que belo se diz da coisa rara e bonito
da coisa encontradiça, ficando lindo entre elas. Todas indicam, porém, alguma
coisa que agrada sob um julgamento pessoal.
Nenhum desses defeitos os nossos ancestrais encontraram no substantivo de
ação desse verbo:
alimentum [coisa de comer] > alimento.
De fato, esse substantivo foi um empréstimo tomado diretamente da língua
latina pelos clássicos do século XVI, enquanto o verbo alimentar é uma forma
vernácula.
Se o verbo ire tomou uma forma supletiva na sua passagem para as línguas
românicas, escapando assim de uma homonímia, ele mesmo produziu outra
homonímia curiosa, porque as suas formas de pretérito perfeito do indicativo
seriam desastrosas:
eu i / tu iste / ele iu
Os lusíadas se valeram do perfeito do verbo fúgere (1. fugir. 2. andar
depressa):
ego fugi > eo fui > eu fui.
E assim as mesmas formas servem ao verbo ir e também ao verbo ser, que
tem ainda radicais variados transmitidos diretamente do latim:
eu vou / eu ia / eu fui
eu sou / eu era / eu fui
Tanto nas línguas germânicas, mais antigas, quanto nas neolatinas, bem mais
recentes, o significado histórico de (bem) alimentado do particípio passado passivo altus, a, um se perdeu junto com o verbo, mas conservou-se um significado
que nascera de uma metonímia, que se produz pela troca do significado anterior
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por um significado posterior, que é consequência do ato anterior e tem o nome
de metonímia no campo da estética das línguas:
Se come bem (significado anterior),
Então cresce bem (significado posterior):
Portanto, fica alto!
Ou seja: o significado de alimentar evolui para a consequência desse ato: alimentar-se faz crescer e crescer implica tornar-se cada vez mais alto, que é o significado atual desse antigo particípio de línguas muito anteriores às de agora.
Principais autores
A Filologia românica começa com uma obra de extrema importância por
abrir um novo método de estudo, a Grammatik der Romanischen Sprachen (Gramática das Línguas Românicas). Foi escrita pelo professor alemão Friedrich Diez
(1794-1876) entre 1836 e 1844. Conhecia a língua portuguesa e chegou a traduzir muitos trechos de Os Lusíadas, certamente para o curso que deu em 1872 na
cidade de Bonn sobre a nossa epopeia. Além dessa obra capital, deixou-nos em
1863 um livro em que estuda a língua e a poesia anteclássica da nossa língua
portuguesa: Über die erste portugiesische Kunst- und Hofpoesie (Sobre a primitiva
poesia artística e palaciana portuguesa).
A Filologia portuguesa teve em Portugal, no seu início, o trabalho de autores
da maior importância, todos na mesma época. Um deles foi Augusto Epiphanio
da Silva Dias (1841-1916). Ele modernizou o ensino da língua portuguesa com
a sua Gramática prática da língua portuguesa (1870), mas tornou-se ainda mais
conhecido com a sua Sintaxe Histórica da Língua Portuguesa (1915).
Aniceto dos Reis Gonçalves Viana (1840-1914), por sua vez, tem uma importância capital para o aprimoramento da ortografia da língua portuguesa, que se
desembaraça dos aspectos da velha escrita dos romanos. O latim usava muitas
consoantes duplas, mas cada uma delas era pronunciada e, portanto, não trazia
dificuldade de escrita para os letrados: accommetter era um desses abusos. A sua
Ortografia Nacional, de 1904, tem sido um roteiro desde a sua publicação e respondeu pelo primeiro decreto do Governo que a oficializava em 1911 em todo o
território português. Dele e dessa obra nos fala Houaiss (1991, p. 12).
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Os princípios de seu trabalho eram:
eliminação dos símbolos de etimologia grega ph, ch (com o som de k), rh, y: pharmacia –
farmácia, estylo – estilo;
eliminação das consoantes duplas, à exceção de rr e ss: chrystallino – cristalino;
eliminação das consoantes “mudas”: sancto – santo; septe – sete;
regularização da acentuação gráfica.
Seguem outros autores importantes que contribuíram para a história da Filologia no mundo:
Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1933)
Nascida alemã, muda-se para Portugal em virtude de seu casamento. Do seu
trabalho nos veio em 1904 a edição crítica do Cancioneiro da Ajuda e Lições de Filologia Portuguesa, em edição póstuma de 1946, entre muitos outros livros e artigos.
Francisco Adolfo Carneiro (1847-1919)
Deixou os portugueses muito horrorizados com as novas ideias que expôs
em sua obra de 1868: A Língua Portuguesa. Com ela divulgou as descobertas filológicas de Friedrich Diez, o filólogo alemão. Foi dos primeiros que estudou a fala
crioula e a língua portuguesa do Brasil. Os assuntos filológicos mais bem desenvolvidos apareceram no seu livro de maior repercussão: Os Ciganos em Portugal,
de 1892. Tipicamente filológico, estuda a cultura e a língua desse povo errante.
José Joaquim Nunes (1859-1932)
Deixou-nos em 1906 a sua Crestomatia Arcaica [crestomatia é o mesmo que
antologia] e em 1919 o seu Compêncio de Gramática Histórica Portuguesa. Há
quem o critique por alguns erros deixados em suas obras.
José Leite de Vasconcelos (1858-1934)
Leite de Vasconcelos é o estudioso da língua portuguesa mais talentoso e
suas obras ainda hoje merecem o apreço que granjeou na sua época. De fato, na
sua primeira obra, escrita em 1882, os estudos filológicos da língua portuguesa
eram todos estrangeiros. Publica entre 1888-1903 as suas Contribuições para a
Dialectologia e doutora-se na Universidade de Paris a sua tese Esquisse d´Une
Dialectologie Portugaise no ano de 1901 e no mesmo ano publica os seus Estu-
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dos de Filologia Mirandesa. Abordou todos os campos da Filologia portuguesa,
além de descobrir e editar textos inéditos até a época. Além de tudo, editou duas
obras póstumas de companheiros: Estudos de Língua Portuguesa, de Júlio Moreira, e Sintaxe História da Língua Portuguesa, de Epiphanio Dias.
Júlio Moreira (1854-1911)
O que Júlio Moreira escreveu vem reunido em seus Estudos da Língua Portuguesa, um volume de 1911 e outro, póstumo, de 1918, editado por Leite de
Vasconcelos: os principais assuntos abordados são diversas questões de sintaxe
histórica e popular
A Filologia brasileira teve no seu início o trabalho de nomes da maior relevância social e intelectual todos no início do século passado:
Antenor de Veras Nascentes (1886-1972)
Foi com certeza o vulto mais admirado na história das letras do século passado com obras relevantes nas áreas da Dialetologia, Etimologia, Filologia e Lexicografia. Nascido e morto carioca, compreende-se com facilidade o motivo de
ele ter escrito uma obra marcante no campo dialetal: O Linguajar Carioca, de
1922. Importa ainda citar a sua obra de 1945: Tesouro da Freseologia Brasileira.
João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (1860-1934)
Foi o primeiro sergipano a entrar na Academia Brasileira de Letras. Poeta e
prosador, tradutor e filólogo, deixou-nos três gramáticas, respectivamente para
os ensinos primário [fundamental], médio e superior. Representou o Brasil em
1997 no Congresso organizado em Londres para organizar o Catálogo Internacional. Como historiador, deu um novo rumo a essa ciência porque, segundo
Joaquim Ribeiro, seu filho, a história brasileira “deixou de ser a história de governadores, vice-reis e imperadores para ser a história natural do povo brasileiro”.
Joaquim Matoso Câmara Júnior (1904-1970)
Coloco aqui o seu nome, ainda que tenha feito menos no campo da Filologia, mas muito mais no da Linguística moderna, que introduziu no Brasil, deixando-nos uma série de livros com suas ideias sobre a língua portuguesa, além
do ensino universitário. Cabe-lhe a honra e glória de ter publicado no Brasil o
primeiro livro da Linguística moderna em 1940: os seus Princípios de Linguística
Geral, que trazem para cá o Estruturalismo. Por sua importância, seus livros têm
edições sucessivas:
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Princípios de Linguística Geral. Rio de Janeiro: Padrão, 1977.
Problemas de Linguística Descritiva. São Paulo: Vozes, 1997.
Dicionário de Linguística e Gramática. São Paulo: Vozes, 2001.
Estrutura da Língua Portuguesa. São Paulo: Vozes, 2001.
As edições de seus livros pela Editora Vozes explica-se talvez por ele ter sido o
tempo todo professor universitário na cidade de Petrópolis, também sede dessa
Editora franciscana. A sua longa permanência fora do centro intelectual do país
sempre me deixou preocupado com o fato de que um autor e professor de méritos incontestáveis não tenha sido chamado a uma das Instituições de Ensino da
cidade do Rio de Janeiro para onde acorriam os melhores, salvo ele.
Júlio César Ribeiro Vaughan (1845-1890)
Polêmico e escandaloso para a sua época, além de abolicionista e lutador por
suas convicções como jornalista e dono de jornais, Júlio Ribeiro é agora mais conhecido por seu romance naturalista que por sua gramática, ainda que a segunda obra tenha trazido para o Brasil o melhor das ideias da Filologia do seu tempo,
apresentando ainda uma lição de língua mais bem acabada que as anteriores.
A sua Gramática Portuguesa, de 1881, segue o método da Filologia proposta
pelos autores alemães e merece ser lida ainda hoje. Tem dois romances importantes: O Padre Belchior de Pontes, em dois volumes de 1876 e 1877, e A Carne
(1888), naturalista, mas nada imoral e desestruturado como diziam dele as críticas da época.
Manuel Ida Said Ali (1861-1953)
Muitos o consideram o maior filólogo brasileiro e a leitura de suas obras me
parece confirmar essa opinião, dada principalmente a utilidade do que escreveu que
importa não apenas para os estudiosos da língua, mas para os leitores comuns.
Entre suas obras notamos:
Vocabulário Ortográfico (1905).
Dificuldades da Língua Portuguesa (1908).
Lexiologia do Português Histórico (1921).
Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico (1923).
Gramática Secundária da Língua Portuguesa (1927).
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Meios de Expressão e Alterações Semânticas (1930).
Versificação Portuguesa (1949).
Acentuação e Versificação Latinas (1957), seu último livro.
A maioria dos seus livros deixa perceber não apenas o empenho com o lado científico de suas pesquisas, mas ainda o desejo de aplicá-las para a melhoria do ensino.
Serafim da Silva Neto (1917-1960)
Dizem que os deuses têm ciúme de algumas criaturas que espalham magnanimamente o seu saber por onde andam e por isso os chamam mais cedo: foi o
que aconteceu a Serafim da Silva Neto, que escreveu a sua primeira obra sobre o
latim vulgar aos 17 anos. Foi diretor da Revista Brasileira de Filologia e deixou-nos
as seguintes obras:
Fontes do Latim Vulgar (escrito aos 17 anos e publicado em 1938).
Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil (1950).
História da Língua Portuguesa (1952).
Ensaios de Filologia Portuguesa (1956).
Introdução ao Estudo da Filologia Portuguesa (1956).
Manual de Filologia Portuguesa (1957).
Guia para Estudos Dialectológicos (1957).
Bíblia Medieval Portuguesa (1958).
Texto complementar
Evolução e desagregação
(SILVA NETO, 1957, p. 13-16)
As línguas são resultados de complexa evolução histórica e se caracterizam, no tempo e no espaço, por um feixe de tendências que se vão diversamente efetuando aqui e além. O acúmulo e a integral realização delas depende de condições sociológicas, pois, como é sabido, a estrutura da sociedade
é que determina a rapidez ou a lentidão das mudanças.
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A qualquer momento em que se observe uma língua, cumpre ter em
mente as suas faces anteriores. A história das línguas românicas, por exemplo, se entrosa com a do latim e a deste, através do itálico, vai acabar no
indo-europeu.
O latim falado no tempo de Énio não é o mesmo dos contemporâneos
de Cícero, nem o desse tempo é idêntico ao de São Jerônimo. O francês de
Villon não é o de Anatole France. O português de onde D. Dinis extraía as suas
cantigas de amor e de amigo não é o de Camões, nem o deste é o mesmo de
Herculano.
Nessa sucessão de frases há que distinguir, no entanto, entre evolução e
desagregação. Naquela não há descontinuidade; nesta há uma nítida cesura, a
transição de um estilo social para outro.
Para bem se compreender essa diferença, convém ajustar-lhe as noções
de época e estilo, tão bem formuladas pelo sociólogo alemão Theodor Geiger.
O estilo social é, precisamente, um complexo de caracteres estruturais básicos,
que tornam possível a afinidade dos diversos setores da vida social. É a permanência dele que caracteriza uma época, isto é, uma sequência evolutiva na
qual um estilo constitui o fundamento cultural.
Em caso contrário, ou seja, quando a mudança social (linguística) não se
resume no desenvolvimento de um estilo, estamos em face da desagregação,
da mudança de uma época para outra. É o caso, por exemplo, do latim, que
se desagregou nas dez línguas românicas. A fase do romanço representa
uma cesura, uma transição em que os estratos e linguísticos foram desintegrados e, em seguida, reintegrados de maneira diferente.
As línguas estão, pois, em perpétua mudança, embora só o repouso seja
facilmente perceptível. A evolução explica-se, principalmente, pela descontinuidade da transmissão e pela própria constância do uso.
Ao cabo de seu aprendizado, a criança fixa uma língua que não é exatamente a mesma das pessoas que lhe serviram de modelo. Essa diferença,
imperceptível numa geração, vai-se acumulando aos poucos.
Criação e difusão
O fato mesmo de ser imprescindível instrumento de comunicação acarreta mudança à língua: as palavras mais frequentemente usadas são também
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Fundamentos Históricos da Língua Portuguesa
as que mais transformações sofrem. Grupos de palavras acabam por se aglutinar – e o desgaste vai provocando reações.
Por isso a todo instante surgem inovações, cujo destino vai depender da
estrutura social, ou seja, no caso, da força com que a língua, como instituição,
se impõe aos indivíduos.
A inovação, que parte do indivíduo, pode restringir-se a ele e, portanto,
abortar – ou, pelo contrário, generalizar-se na comunidade.
Em todo fato linguístico, há que distinguir, pois, a criação e a coletivização. Dessarte a mudança depende da sucessão e da combinação da iniciativa individual com a aceitação coletiva.
E não se diga que o partir do indivíduo a inovação lhe confere os poderes
sobrenaturais de um deus ex machina: somente subsistem os esforços individuais realizados no sentido das tendências linguísticas.
O autor anônimo da inovação apenas interpreta a direção geral da língua,
há entre ele e a massa falante profunda e integral intercomunicação. Ele não
age como pessoa, mas como órgão da coletividade: isso explica a unificação
e generalização do fenômeno.
Em todo o caso, a difusão é fenômeno lento e complexo, sujeito a múltiplos e variadíssimos fatores, que a podem retardar ou apressar. Schuchardt
lembrara, há bastantes anos, que a frequência de certos grupos fonéticos
favorece a formação de grupos idênticos: em suma, a frequência de um processo fonético acaba por generalizá-lo.
Atividades
1. Em que se distingue a Filologia e a Linguística?
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Conceito e origem da Filologia românica
2. Que origem tem a Filologia?
3. Como surgiu e de que trata a Filologia românica?
Dicas de estudo
BUENO, Francisco da S. Estudos de Filologia Portuguesa. São Paulo: Saraiva,
1959.
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