Relações assimétricas de poder: O corpo feminino na ótica

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Relações assimétricas de poder: O corpo feminino na ótica
RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS DE PODER: O CORPO FEMININO
CONSTITUÍDO PELA VISÃO EM LOLITA, DE NABOKOV
Ms. Denize Helena Lazarin (UNICENTRO)
Resumo. Esta investigação tem como foco a construção da personagem título do livro
Lolita (1955), de Vladimir Nabokov. Sabe-se que Nabokov criou uma grande polêmica
junto ao público leitor com a publicação desta obra com uma temática altamente
subversiva: a pedofilia. Contudo, seu narrador se propõe a transmutar a temática da
pedofilia para a relação de amor entre um homem de meia idade e uma adolescente,
algo aceitável para a sociedade da época. Tanto na obra, quanto na sociedade patriarcal,
na qual está inserida nossa cultura, o ser masculino sempre foi o responsável pela
representação; desta forma, a ideologia patriarcal é que determina o ponto de vista das
relações. Os estudos de Beauvoir (1980), Friedman (2002) e Bourdieu (1999) se
constituem a bases de nossa análise.
Palavras-Chave: Lolita; Nabokov; Dominação; Feminino.
Abstract. This research focuses on the construction of the character Lolita, of the book
Lolita (1955), by Vladimir Nabokov. The author creates a controversy with the public
through the publication of this novel with a deep subversive theme: pedophilia.
However, its narrator intends to convert this theme into a love relationship between a
middle aged man and a teenager, because it would sound more acceptable for the
society of that period. As in this book, as in the whole patriarchal society, in what is
inserted our culture, the male being is the responsible for the representation; on this
way, the patriarchal ideology determines the point of view of the relationships. The
studies of Beauvoir (1980), Friedman (2002) and Bourdieu (1999) are the bases of our
analysis.
Keywords: Lolita; Nabokov; domination; gender.
Wanted, wanted: Dolores Haze.
Her dream-gray gaze never flinches.
Ninety pounds is all she weighs
With a height of sixty inches.
(Vladimir Nabokov)
20
O estereótipo da ninfeta é amplamente difundido na cultura de massa. Exemplos
não faltam: desde títulos de filmes eróticos, passando por referências encontradas em
outros livros como, por exemplo, Confissões de Ralfo (1975), de Sergio Sant’Anna,
onde podemos ler: “Estou observando Alice a brincar de casinha de bonecas e nada
revela lá dentro a caldeira explosiva da tentadora Lolita” (SANT’ANNA, 1975, p. 170);
até programas de televisão, como, por exemplo, a minissérie Presença de Anita1, que
faz uma clara referência à ninfeta capaz de levar um homem à desgraça. É também
postulado pela cultura de massa que a ninfeta foi criada a partir da personagem
homônima do romance Lolita (1955), de Vladimir Nabokov. Contudo, estudos como o
de Vickers, 2008 evidenciam que a Lolita ninfeta, não foi criada pela narrativa, e sim a
partir dos textos fílmicos de Stanley Kubrick (1962) e Adrian Line (1997).
Nesta obra se entrelaçam a pedofilia, o suposto amor não correspondido entre
pessoas de idades diferentes, e a dominação entre gêneros. Não queremos afirmar que o
interesse de Nabokov repousa unicamente na pedofilia, e discordamos da leitura
ingênua favorável ao tema da relação amorosa, ao contrário, acreditamos que, sobretudo
a obra foi criada com a intenção de permanecer aberta. Encontrando-se aberta,
apresentamos uma terceira temática: a relação de dominação entre gêneros.
Começando pela epígrafe, verificamos o ser feminino reduzido a corpo, ou seja,
pela visão patriarcal do narrador-protagonista o feminino é definido enquanto
alteridade. Nesta relação assimétrica entre gêneros, ele pretende dominar este corpo e,
valendo-se da ideologia patriarcal, ele cria um discurso de dominação, o qual nos
propomos tratar aqui. Por este viés, desconstruiremos o estereótipo da ninfeta que
seduz, evidenciando a criança transmutada em mulher, para o estabelecimento aceitável
da relação de dominação entre os gêneros.
1. O narrador em Lolita
Nesta polêmica obra de Nabokov, tudo o que sabemos sobre a personagem
Lolita é por meio do contato com as sutilezas da enunciação de seu narrador parcial.
1
A minissérie Presença de Anita, exibida pela Rede Globo de televisão em 2001, é baseada no
romance homônimo de Mario Donato, de 1948. Tanto nas adaptações de Lolita para o cinema, quanto na
de Presença de Anita para a televisão, evidencia-se a ênfase à mulher capaz de levar o homem à perdição.
Evidencia-se ainda em ambas as obras a construção polêmica da figura feminina por seus narradores, bem
a presença da ideologia patriarcal de dominação do feminino.
21
Desta forma, é necessário oferecermos uma breve definição de narrador, o que faremos
recorrendo à conceituação de Friedman (2002).
Ao se apropriar das palavras de Beach, Friedman (2002, p. 167) afirma que o
recurso técnico mais eminente desde a época de Henry James é a trama se desenvolver
por meio das impressões de suas personagens. Ainda na mesma página, valendo-se das
palavras de Schorer, ele acrescenta que isso é o que diferencia o texto ficcional do texto
histórico, filosófico e científico, e defende que, na construção do texto ficcional deve ser
dada maior atenção à forma da obra.
Sendo assim, ele assinala o ponto de vista como um dos elementos a ser
destacado no estudo da técnica ficcional. Dentre suas conceituações a respeito de ponto
de vista, destacamos o narrador-protagonista por esta categoria ser a que melhor explica
o fenômeno narrativo em Lolita. A respeito deste tipo de narrador Friedman afirma que:
“O narrador-protagonista, portanto, encontra-se quase que inteiramente limitado a seus
próprios pensamentos, sentimentos e percepções. De maneira semelhante, o ângulo de
visão é aquele do centro fixo”. (FRIEDMAN, 2002, p. 177)
O que percebemos em Lolita é exatamente esta limitação na visão. Humbert
narra os acontecimentos ocorridos anos antes, sobretudo no que se refere à relação entre
ele e sua enteada, somente sob seu ponto de vista, constituindo-se assim a visão fixa a
que se refere Friedman. Assim, tudo o que sabemos a respeito da trama e, sobretudo,
sobre a natureza da ninfeta é baseado na transmissão das percepções de Humbert desde
a primeira vez que a vê:
I was still walking behind Mrs. Haze through the dining room, when,
beyond it, there came a sudden burst of greenery – “the piazza,” sang
out my leader, and then, without the least warning, a blue sea-wave
swelled under my heart and, from a mat in a pool of sun, half-naked,
kneeling, turning about on her knees, there was my Riviera love
peering at me over dark glasses. (NABOKOV, 2000, p. 39)2
O leitor toma conhecimento da primeira vez que Humbert vê Lolita por meio da
descrição que o narrador oferece para sua chegada à casa de Charlotte Haze. O que
evidencia a construção do discurso por meio das percepções e sentimentos do narrador2
Tradução de Jorio Dauster: “Estava ainda seguindo os passos da Sra. Haze através da sala de
visitas quando, de repente, diante de nós se abriu um clarão verdejante – “a piazza”, cantarolou minha
guia, e então, sem qualquer aviso prévio, uma onda azul ergueu bem alto meu coração: ajoelhada sobre
uma esteira, seminua em meio a uma poça de sol, virando-se para me olhar por cima de seus óculos
escuros, lá estava o meu amor da Riviera” (NABOKOV, 2003, p.153).
22
protagonista é a situação idealizada com que ele descreve seu encontro com Lolita. Ou
seja, ele reconheceu na adolescente sua antiga paixão, devido à onda azul do mar que
ergueu seu coração no momento que a viu. E mais: o que garante que ela o observava
cuidadosamente, conforme indica do verbo peering, além da impressão dele?
Não somente a paixão pela adolescente se inicia a partir de seu olhar erotizador,
como também a narrativa inicia a partir de visão que Humbert tem dela:
Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-lee-ta:
the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap,
at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta.
She was Lo, plain Lo in the morning, standing four feet ten in one
sock. She was Lola in slacks. She was Dolly at school. She was
Dollores on the dotted line. But in my arms she was always Lolita.
(NABOKOV, 2000, p. 09)3
Apesar de ao final do excerto Humbert declarar que sempre houve (em seus
braços) uma única Lolita, diferentes Lolitas são mencionadas por ele, ou melhor,
diversas formas de perceber uma única garota. Estas diversas visões surgem em função
de características distintas, sendo que cada uma designa-lhe um nome: a Lolita pura da
manhã era Lô enquanto a que assinava o nome formal era Dollores. O que comprova
nossa hipótese que a criatura (ninfeta) só existe em função do olhar do seu criador: o
narrador Humbert.
2.1 Dominação do feminino em Lolita
A conquista de espaço pela mulher no mercado de trabalho, na cultura de modo
geral e nas humanidades em particular é um feito que, segundo Bonnicci, “salta aos
olhos”. Todavia, ele destaca que este evento social é um fenômeno, pois:
(...) a formação acadêmica da maioria dos que atuam nas
universidades foi baseada num cânone literário predominantemente
masculino, com respingos de algumas autoras, as quais só Deus sabe
como chegaram ali. Esse fato paradoxal se verificava em qualquer
literatura ocidental e, o mais surpreendente, não causava estranheza.
3
Tradução de Jorio Dauster: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma,
minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no
terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.
Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando
uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os Jeans desbotados. Era Dolly na escola . Era Dolores sobre
a linha pontilhada. “Mas em meus braços, sempre foi Lolita.” (NABOKOV, 2003, p.153).
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Realmente, uma tremenda mudança ocorreu, quando politicamente as
mulheres conquistaram poderes diversos na cultura em geral e nas
humanidades em particular. (BONICCI, 2007, p.13)
Por meio desta citação de Bonnicci, é possível constatar que houve conquistas
femininas em diversos âmbitos, contudo, a supremacia masculina é algo que também
“salta aos olhos”. Uma parcela das mulheres ainda é confinada ao lar, à vida doméstica,
à procriação; tem acesso a pouca – ou nenhuma – realização profissional e ainda é
vitima de diversos tipos de violência.
Mas o que historicamente deu início a essa hegemonia masculina? Nas
sociedades mais primitivas encontram-se no cerne do pensamento humano dualidades
como Sol-Lua, Urano-Zeus, Dia-Noite, Bem-Mal. A estas dualidades primordiais são
acrescentadas posteriormente as categorias de Um e Outro. Sobre esta segunda,
Beauvoir postula que é uma categoria tão original do pensamento humano como a
própria consciência, e fundamental, pois, segundo ela, “nenhuma coletividade se define
nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si” (BEAUVOIR,
1980a, p. 11). Mas como se concebe este Outro? Todorov complementa o
posicionamento de Beauvoir:
Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou
só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso
conceber os outros como uma abstração, como uma instância da
configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou
outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao
qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua vez, pode estar contido
numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres,
os loucos para os “normais”. Ou pode ser exterior a ele, uma outra
sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua
(TODOROV, 2003, p. 3, grifos do autor).
O Outro é uma ideia que às vezes nem é muito concreta. É uma entidade que
está fora do Um e existe apenas a partir deste. Na leitura de Marques,
(...) é o Outro admitido porque necessário, a alteridade não é excluída
porque imprescindível para a manutenção do próprio sistema. Destes,
o mais obviamente interior à espécie humana é a mulher. Enquanto se
pode extinguir uma sociedade alienígena – é o objetivo de toda
atividade bélica –, não se pode fazer o mesmo com a mulher, pois se
trata de um de dois sexos numa espécie biológica. Para a cultura
patriarcal, a mulher é o Outro que precisa ser mantido e constitui,
24
portanto, a negação sempre presente, a ameaça ubíqua à identidade
masculina hegemônica. (MARQUES, 2007, p. 22).
Mas o que tornou o homem o Um e a mulher o Outro? Segundo Beauvoir:
Não há, nos tempos primitivos, revolução ideológica mais importante
do que a que substitui pela agnação a filiação uterina; a partir de então
a mãe é relegada à função de ama, de serva, e a soberania do pai é
exaltada: ele é que detém os direitos e os transmite. Apolo, na
Eumênides de Ésquilo, proclama essas novas verdades: “Não é a mãe
que engendra o que se chama filho, ela é apenas a nutriente do germe
deitado em seu seio: quem engendra é o pai. A mulher, como um
depositário alheio, recebe o germe e, aprazendo aos deuses, o
conserva” (BEAUVOIR, 1980a, p. 99).
O fato de o homem ter descoberto que é tão necessário no processo reprodutivo
quanto à mulher possibilita que este se firme enquanto Sujeito de sua história,
subjugando a mulher. A mulher, como todas as alteridades, é tratada por meio da
dominação para que o soberano se mantenha no controle. Ela assimila esta imposição
resignando-se, logo, não sendo capaz de ações concretas e mais radicais perante a
dominação. Segundo Woolf, o sistema patriarcal fabrica a mulher ideal, chamada “o
anjo do lar”, que é “simpática, altruísta, passiva, subordinada, silenciosa, casta,
obediente e fiel” (WOOLF apud BONNICI, 2007, p. 22).
A Igreja colaborou na manutenção dessa ideologia, pois se fazendo escrava e
dócil ela se torna também uma santa abençoada. Historicamente a mulher ganha apenas
o que o homem concorda em lhe conceder, o que, segundo a própria Beauvoir, não é
muita coisa, “nada tomaram, apenas receberam” (BEAUVOIR, 1980a, p. 13).
Preferiram, ao contrário, desfrutar das “vantagens” da proteção da sociedade patriarcal
enquanto esposas, mães e filhas. Atitude simbólica díspar a outras alteridades que foram
capazes de se articular e lutar efetivamente por seus direitos. Para Beauvoir, nem
biologia, tampouco a sociologia foram capazes de explicar o porquê de a mulher
continuar sendo incapaz de reverter sua condição de Outro submisso.
Ao contrário de Beauvoir, Paglia, em seu livro Personas Sexuais (1990),
apresenta uma visão oposta a da maioria das feministas. Ela postula a permanência da
ordem da mulher enquanto Outro dominado apoiando-se em dados da biologia e,
seguindo sua lógica, por conseguinte, da psicologia: “Minha explicação para o domínio
do homem na arte, ciência e política, um fato indiscutível da história, baseia-se numa
25
analogia entre a fisiologia sexual e a estética” (PAGLIA, 1992, p. 28). Existe na
natureza feminina uma propensão aos instintos ctônicos, ou seja, a obscuridade e
irracionalidade da natureza. A natureza masculina, ao contrário, é regida biologicamente
pela concentração e projeção, exemplificados no ato de urinar e ejacular, em que o
homem se concentra e posteriormente projeta. Estas ações o impelem a ir mais adiante:
“A natureza dá-lhe a concentração para vencer o medo” (PAGLIA, 1992, p. 29). A
partir desta capacidade biológica de impulsionar-se ele desenvolve sua capacidade de
realizações intelectuais.
Na relação dominador-dominado são empregados artifícios para que o segundo
permaneça em sua condição. Normalmente isto se dá pela força das armas, leis severas
e, sobretudo, pela inserção de novos valores. Mas no caso da mulher são utilizados os
mesmos mecanismos que são usados com as outras alteridades?
Quais são os
mecanismos empregados pelo patriarcado que fazem com que a mulher mantenha-se
resignada à dominação masculina? Em outras palavras, como ela é dominada?
Defendemos aqui, por meio de alguns teóricos, que a mulher é dominada tanto
fisicamente (corpo) quanto simbolicamente (cultura e ideologia).
Neste contexto, o casamento é historicamente um veículo para a dominação
masculina por meio do corpo, e até os dias atuais em boa parte das sociedades
patriarcais constitui-se um marco divisor na vida da mulher. A união entre homem e
mulher é durante muito tempo tratada como um acordo entre sogro e genro em que,
segundo Beauvoir, nesta ocasião “o corpo da mulher é um objeto que se compra”
(BEAUVOIR, 1980b, p. 170). Neste processo, ela recebe um senhor com quem irá
desempenhar uma relação de vassalagem, e a geração de filhos será uma de suas muitas
obrigações.
Na obra a relação mais evidente de casamento enquanto dominação do feminino
é a relação mantida por Humbert e Lolita. Após saírem de Lepingsville, viajarem por
diversas cidades e estados, até chegarem à Beardsley, onde estabelecem residência. Este
período caracteriza-se, sobretudo, pela rotina de chantagens sexuais:
Her weekly allowance, paid to her under condition she fulfill her basic
obligation, was twenty-one cents at the start of the Beardsley era – and
went up to one dollar five before its end. [...] Knowing the magic and
might of her own soft mouth, she managed – during one school year!
26
– to raise the bonus price of a fancy embrace to three, and even four
bucks. (NABOKOV, 2000, p. 183-184) 4
Apesar da utilização de termos como “weekly allowance” e “school year” que
remetem à relação pai-filha, a relação que mantêm é, na realidade, uma relação de
dominação sexual, que poderia ser relacionada à prostituição. Contudo, o modelo de
relacionamento que mantêm (moram juntos na mesma casa e mantêm relações sexuais)
assemelha-se muito ao casamento conforme descrito anteriormente por Beauvoir. Lolita
encontra-se confinada ao ambiente doméstico e é obrigada a manter relações sexuais. O
dinheiro obtido em troca seria utilizado para a fuga, entretanto, Humbert o encontra e
dele se apodera:
Once I found eight one-dollar notes in one of her books (fittingly –
Treasure Island) and once a hole in the wall behind Whistler’s Mother
yielded as much as twenty-four dollars and some change – say twentyfour sixty – which I quietly removed, upon which, next day, she
accused , to my face, honest Mrs. Holigan of being a filthy thief.
(NABOKOV, 2000, p.184)5
Como o narrador-protagonista conhecia seu descontentamento, pode-se inferir
que permitia que a adolescente projetasse uma fuga, com a finalidade que ela
continuasse se submetendo às chantagens sexuais. Contudo, movido ainda pelo mesmo
desejo de manter a situação estabelecida ele impede-lhe liberdade.
Relacionado ao casamento está a maternidade, sendo que esta é um evento que
acarreta muitas mudanças na vida da mulher; para Beauvoir, “a gestação é um trabalho
cansativo que não traz à mulher nenhum benefício individual e exige, ao contrário,
pesados sacrifícios” (BEAUVOIR, 1980a, p. 50). Em nota de rodapé, Beauvoir
esclarece que está manifestando um ponto de vista exclusivamente fisiológico, “contudo
4
Tradução de Jorio Dauster: “A mesada de Lô, paga sob condições de que cumprisse suas
obrigações básicas, era de vinte e um centavos no inicio da era Beardsley, elevando-se para um dólar e
cinco centavos antes que chegasse ao fim. [...] Conhecendo a magia e o poder de sua boca macia, ela
conseguiu – durante um único ano escolar! – elevar o bônus correspondente a essa carícia especial para
três e até quatro dólares” (NABOKOV, 2003, p. 186).
5
Tradução de Jorio Dauster: “Uma vez achei oito notas de um dólar num de seus livros
(apropriadamente, A ilha do tesouro) e, em outra ocasião, num buraco na parede atrás de uma reprodução
do quadro de Whistler A mãe, encontrei vinte e quatro dólares e alguns trocados – uns sessenta centavos –
, que embolsei discretamente, após o que, no dia seguinte, Lô acusou na minha frente a honesta Sra.
Holigan de ser uma ladra miserável” (NABOKOV, 2003, p.187).
27
a maternidade pode ser muito útil à mulher, como pode também ser um desastre”
(BEAUVOIR, 1980a, p. 50; nota 1).
Tendo sido durante muitos anos a vida da mulher uma série ininterrupta de
partos, com o tempo a mulher perdia sua atração erótica. E como não havia uma política
de controle de natalidade, por meio do uso de métodos anticoncepcionais, a gravidez era
o preço que as mulheres “de maus costumes” pagavam por suas relações amorosas.
É por meio da maternidade que a sociedade burguesa transmite a propriedade
privada às novas gerações. Assim sendo, a mulher dominada é uma extensão desta; é
um bem que o homem fazia uso para produzir sua descendência, o que se constitui uma
forma eficaz de dominação do corpo feminino.
Evidencia-se também em Lolita a gravidez enquanto forma de dominação do
corpo feminino. Após casar-se com Charlotte, Humbert planeja ministrar soníferos para
mãe e filha, com o propósito duplo de esquivar-se de manter relações sexuais com a
esposa, ao mesmo tempo em que manteria contatos sexuais com a adolescente. Quando
não consegue colocar este plano em prática, ele pensa em outro mais eficaz: “[...] a nice
Caesarean operation and other complications in a safe maternity ward sometime next
spring, would give me a chance to be alone with my Lolita for weeks(…)”
(NABOKOV, 2000, p. 80)6.
A gravidez configura-se aqui uma forma de controle do feminino devido às
impossibilidades trazidas pelo pós-parto. Por meio desta Humbert pretendia controlar
não apenas Charlotte, deixando-a algumas semanas no hospital se recuperando do parto,
mas também Lolita, que estaria a sós com ele em casa.
Como já mencionamos acima, a relação de dominação da alteridade se dá
através da assimilação dos valores culturais do dominador pelo dominado. No que se
refere ao feminino enquanto outro dominado pela sociedade patriarcal, a submissão se
dá, além de no corpo, também no espaço simbólico.
Ao tratar da dominação masculina, Bourdieu (1999) aproxima-se da definição
de mito oferecida por Barthes7: ele defende a importância de se compreender quais são
6
Tradução de Jorio Dauster: “[...] uma bela cesariana e outras complicações, bem poderia
permitir que, na próxima primavera, eu ficasse a sós com minha Lolita durante várias semanas”
(NABOKOV, 2003, p. 82).
7
Barthes concebe o mito justamente como uma deformação que se explicita, que se naturaliza
(BARTHES, 1980, p. 150). Expliquemos melhor: para ele, o princípio do mito é a transformação da
28
os mecanismos capazes de transformar história em natureza, ou seja, de eternizar o
arbitrário cultural. Para Bourdieu, as partes do corpo, as posturas sexuais, bem como
todo o imaginário que envolve a relação sexual, são historicamente utilizadas para a
criação de um sistema simbólico de dominação masculina. Na constituição da ordem
social androcêntrica a que se chegou hoje, foram utilizadas como bases históricas
determinadas lendas, mitos e autores. Como uma escolha sempre implica numa
exclusão, para Bourdieu as escolhas feitas foram favoráveis na constituição de um
imaginário que embasa a dominação masculina. Num exemplo de uma lenda primordial
dos camponeses das montanhas da Cabília, a mulher encontrava-se numa fonte prestes a
beber água quando o homem chegou e houve uma disputa de poder pela preferência.
Após ser empurrada e exibir seu corpo, a mulher induziu o homem a ter relações sexuais
com ela. Depois de certo tempo, mantendo relações sexuais na fonte – local onde a
mulher tinha o domínio –, o homem levou-a para sua casa, pois lá ele poderia dominála. A partir daí, a casa passou a ser um local de dominação masculina. Por meio da
lenda, percebemos, ainda, que a mudança do seu local de origem é um artifício utilizado
pelo homem para manter sua dominação. Humbert também aplica este artifício para
dominar Lolita: ele a tira de seu local de origem – Lepingsville – e lhe conduz por uma
longa viagem até chegarem à cidade de Beardsley, onde estabelecem residência,
conforme tratamos anteriormente.
Sabemos que a mitificação de Lolita relaciona-se com o narrador, ou seja, a
ninfeta só existe em função do olhar do pedófilo: ao ver Lolita na casa de Charlotte é a
atração física por sua aparência de ninfeta que, à primeira vista, impele Humbert a
aproximar-se da mãe. Humbert reconhece que ela é uma criança e são justamente essas
características infantis que suscitam seu desejo sexual. Dentre as descrições físicas de
Lolita destacamos as referências às medidas de seu corpo (altura, um metro e quarenta e
cinco; peso, trinta e cinco quilos e quatrocentos gramas). Esta quantificação, que é uma
forma de objetificação do corpo feminino, já é descrita por Bonicci:
A vitimização da mulher na literatura abrange uma gama de atitudes,
desde a desculpa de Humbert, o atacante sexual de Lolita, no romance
Lolita (1955), de Vladimir Nabokov (1899-1997), passando pelas
imagens veiculadas pela mídia para satisfazer projeções masculinas e
história em natureza, ou seja, a transmissão de um conceito intencional de um modo que pareça natural ao
leitor (BARTHES, 1980, p. 150).
29
fantasias femininas, até contos românticos (como Cinderela e Branca
de Neve) enaltecendo a passividade, e obras clássicas (Dante e
Milton) que freiam o pleno desenvolvimento da personalidade
feminina. (BONICCI, 2007, p. 194)
Conforme Bonnici, Humbert atribui a Lolita a responsabilidade por seu impulso
sexual. A vitimização de Lolita, ou seja, sua transformação em objeto por meio da
dominação, coloca-a sob opressão que, conforme Bonicci, a deixa restrita a funções
ligadas apenas à sua biologia, neste caso, à capacidade sexual.
Apesar de evidenciarmos que a relação que Humbert desenvolve por Lolita é
estritamente sexual, durante toda a narrativa ele enfatiza que a ama. Para tal, busca
como justificativa seu envolvimento com Annabel, fazendo, uma transferência para sua
relação com Lolita. Em ambos os casos, o que há de concreto é apenas o contato sexual.
Na tentativa de obter a absolvição de suas acusações, Humbert precisa convencer a
sociedade, representada pelo júri, que é movido por um sentimento nobre. Contudo
Humbert se trai em seu discurso: em momento algum explora os sentimentos de Lolita,
o que é próprio de alguém que ama. Até que acaba confessando seu desinteresse pelos
sentimentos dela:
(...) I firmly decided to ignore what I could not help perceiving, the
fact that I was to her not a boyfriend, not a glamour man, not a pal, not
even a person at all, but just two eyes and a foot of engorged brawn –
to mention only mentionable matters (…).
[A]nd it struck me, as my automaton knees went up and down, that I
simply did not know a thing about my darling’s mind (...).
(NABOKOV, 2000, p. 283-284)8
Humbert propositalmente não reconhece em Lolita um ser humano, bem como
não reconhece em si atitudes humanas. A inexistência do relacionamento afetivo entre
ambos é algo também claro em seu discurso. Da parte dela pelo fato de ser submetida à
relação de opressão onde seu corpo é objetificado; e da parte dele porque reconhecer
Lolita como um ser humano implicaria em aceitar seu livre arbítrio e consequentemente
perder seu objeto de prazer.
8
Tradução de Jorio Dauster: “(...) decidi firmemente ignorar o que de outro modo não podia
deixar de perceber: o fato de que eu não era para ela um namorado, nem um homem sedutor, nem um
amigo e nem sequer um ser humano, mas apenas dois olhos e um palmo de músculo intumescido – para
mencionar apenas o que pode ser mencionado (...). / E então compreendi, enquanto meus joelhos de
autômato subiam e baixavam, que eu desconhecia por completo o que se passava na mente de minha
menina (...)” (NABOKOV, 2003, p. 287).
30
As formas de dominação masculina são muito eficientes e compreendem um
sistema já assimilado pelas mulheres: dessa forma, ao pensarmos na dominação
masculina, recorremos a modos de pensamentos que são eles próprios produtos da
dominação (BOURDIEU, 1999, p. 13). Trata-se aí da dominação simbólica e, na
tentativa de manter a dominação masculina neste campo, Humbert faz várias ameaças à
Lolita, preocupado diante da possibilidade dela, em denunciá-lo às autoridades pelo
crime de pedofilia – o que poderia ser considerado a atitude mais racional neste tipo de
circunstância.
Para Bourdieu, “os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista
dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais”
(BOURDIEU, 1999, p. 46). De acordo com seu relato, Humbert não emprega a força
física para coagir Lolita, apenas suas palavras de ameaça conseguem neutralizar uma
possível reação contra a dominação, uma libertação. Isto justifica a não-reação de Lolita
diante da situação. Apesar da eficácia deste sistema simbólico de dominação masculina
assimilado como natural, “há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do
sentido das coisas do mundo e particularmente das realidades sexuais” (BOURDIEU,
1999, p. 22). Esta tomada de consciência por parte dos dominados, que oferece uma
possibilidade de resistência contra o efeito de imposição simbólica, pode ser percebida
na obra através da posterior fuga de Lolita.
Referências
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DIFEL, 1980.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Trad. Sérgio Milliet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980a.
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31
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