Páris Épico, Páris Trágico - PPGHC
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Páris Épico, Páris Trágico - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA PÁRIS ÉPICO, PÁRIS TRÁGICO Um estudo comparado da etnicidade helênica entre Homero e Eurípides (séculos VIII e V a.C.) Renata Cardoso Rio de Janeiro setembro de 2014 0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA Páris Épico, Páris Trágico: Um estudo comparado da etnicidade helênica entre Homero e Eurípides (séculos VIII e V a.C.) Renata Cardoso de Sousa Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre. Orientador: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa Rio de Janeiro setembro de 2014 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA Páris Épico, Páris Trágico: Um estudo comparado da etnicidade helênica entre Homero e Eurípides (séculos VIII e V a.C.) Renata Cardoso de Sousa Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre. __________________________________________________________ Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa (orientador) __________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes __________________________________________________________ Profª. Drª. Regina Maria da Cunha Bustamante Rio de Janeiro setembro de 2014 2 3 Agradecimentos Repito em minha dissertação as mesmas palavras que coloquei em minha monografia: se eu agradecesse aqui a todas as pessoas que me ajudaram a chegar onde estou hoje, só os agradecimentos teriam o tamanho do Le grand Bailly. Assim, você, que sabe que participou da minha vida e não está aqui, não se sinta excluído: eu tenho a consciência de que você participou dela. Devo essa dissertação, primeiramente, ao meu orientador, Fábio de Souza Lessa, que acreditou em mim desde o 3º período da graduação, quando me perguntou se eu queria ser bolsista de Iniciação Científica sem nem saber o que eu queria estudar. Agradeço também aos leitores do meu projeto de pesquisa na qualificação e da minha dissertação, a Prof. Dr.ª Regina Maria da Cunha Bustamante e o Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, que deram contribuições preciosíssimas para o desfecho dela. Também foram importantes aqueles que leram meu projeto no momento em que entrei no Mestrado e ajudaram-me a repensar alguns pontos fulcrais dele: Leila Rodrigues da Silva, Wagner Pinheiro Pereira, Silvio de Almeida Carvalho Filho, André Leonardo Chevitarese e Vantuil Pereira. Ao professor José D’Assunção Barros, que me ajudou a amadurecer minhas perspectivas teórico-metodológicas e a ver outras possibilidades dentro do meu próprio trabalho. Deixo meu agradecimento também aos amigos e amigas, colegas de academia ou não, que sempre estiveram comigo nessa minha jornada histórica (literalmente) e que aturaram o Páris até o fim: Bruna Moraes da Silva, Danielle Vasconcellos, Jéssica Gomes, Jessyca Rezende, Beatriz Vasconcellos, Joselita de Queiroz Nascimento, Michelle Moreira Gonçalves de Oliveira e Edson Moreira Guimarães Neto. Às professoras de Grego (Ático e Moderno) Tatiana Maria Gandelman de Freitas e Lucília Brandão. Se eu consegui ler um artigo em grego, se eu consegui ler alguma coisa da Ilíada na língua original, ou se consegui escrever esta pequenina frase... foi graças a elas! À professora Carole Anaïs que, com sua paciência infinita, conseguiu fazer com que, em dois anos, eu conseguisse ter domínio suficiente do francês para conseguir ler minha bibliografia. Aos meus professores de Graduação e Ensino Fundamental e Médio: só sou o que sou hoje devido à educação que tive nos colégios e na Universidade. Agradeço sobretudo aos meus professores de História e, especialmente, à Queila: nunca vou esquecer do primeiro dia 4 de aula de História da antiga 5ª série, quando ela pediu que escrevêssemos na primeira página do caderno “HISTÓRIA É VIDA”. À todos os meus familiares que estiveram colados comigo nessa empreitada, sobretudo minha mãe (Eliane), irmã (Roberta), avó (Carmelita) e prima (Sylvia), por sempre me incentivarem a continuar nessa carreira. E, por último, mas não menos importante, aos “Homeros” que compuseram a Ilíada e a Odisseia e a Eurípides: sem eles que, aí mesmo, não haveria dissertação alguma. 5 Resumo Pretendemos analisar, de forma comparada, a representação de Páris, herói cujo ato e átē (perdição) causaram a Guerra de Troia (c. 1250-1240 a.C.), na Ilíada, de Homero, e nas tragédias Alexandre (fragmentária), Andrômaca, As Troianas, Hécuba, Helena, Ifigênia em Áulis e Orestes, de Eurípides, de modo a compreender quais são e como se desenvolveram as fronteiras étnicas helênicas. Utilizaremos para a análise desse processo histórico-discursivo a metodologia comparada de Marcel Detienne, expressa em sua obra Comparar o Incomparável, e, para a análise do nosso corpus documental, a Análise de Discurso Francesa, presente nas obras teóricas de Eni P. Orlandi, Dominique Maingueneau e Pierre Charaudeau. Palavras-chave: História Comparada; Análise de Discurso; Homero; Eurípides; etnicidade. 6 Abstract We aim to analyze, on a comparative basis, the representation of Paris, hero whose act and átē (perdition) caused the Trojan War (c. 1250-1240 b.C.), in Homer’s Iliad and in Euripides’ tragedies Alexander (fragmentary), Andromache, Trojan Women, Hecuba, Helen, Iphigenia in Aulis and Orestes, in order to understand which are the hellenic ethnic boundaries and how it has been developed. We will use to analyze this historic-discursive process the comparitive methodology of Marcel Detienne, expressed in his Comparing the incomparable, and, to analyze our corpus , the French Discourse Analysis, present in Eni P. Orlandi, Dominique Maingueneau and Pierre Charaudeau’s theoretical works. Keywords: Comparative History; Dicourse Analysis; Homer; Euripides; ethnicity. 7 Sumário INTRODUÇÃO -----------------------------------------------------------------------------------------p. 09 CAPÍTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURÍPIDES: DOIS ESTILOS DE COMPOSIÇÃO -------------p. 24 CAPÍTULO 2 | PÁRIS, O CAUSADOR DE MALES ----------------------------------------------------p. 50 CAPÍTULO 3 | PÁRIS, O HERÓI ----------------------------------------------------------------------p. 76 CONCLUSÃO -----------------------------------------------------------------------------------------p. 100 ANEXO | TABELA DE TRANSLITERAÇÃO --------------------------------------------------------p. 105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ------------------------------------------------------------------p. 107 DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL --------------------------------------------------------------p. 107 DICIONÁRIOS E GRAMÁTICAS ------------------------------------------------------------p. 108 BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------p. 109 8 INTRODUÇÃO | TEMA, PROBLEMAS, METODOLOGIAS “O conhecimento revisitado das tradições da história e literatura da Guiné-Bissau poderá funcionar, dessa forma, como um Outro que nos complementa, ajudando-nos a revisitar até mesmo a imagem que fazemos de nós próprios” (SECCO, 2007, p. 16-17). Vivemos em um mundo plural e, por isso, nos embatemos frequentemente com Outros que, não necessariamente, habitam um país distante: o diferente mora ao nosso lado, convive conosco, porque, dentro de uma mesma sociedade, é possível estabelecer uma relação de alteridade. A cada dia que esbarramos com alguém que partilha de costumes e ideias diferentes das nossas, nos modificamos também: é como na metáfora de bolas de bilhar de Norbert Elias (1994, p. 29), pois, quando nos relacionamos com as pessoas, conversamos com elas, nunca permanecemos iguais, fazendo com que sempre estejamos modificando nossos limites de aceitação/rejeição, nossas fronteiras de convivência. Não era diferente na Antiguidade e, em nossa epígrafe, poderíamos muito bem substituir “Guiné-Bissau” por “Grécia Antiga”: afinal, estamos lidando com pessoas. É o homem que constrói suas próprias leis, bem como é ele quem faz a história, vivendo-a. À medida que o homem vive ele deixa indícios de sua vivência. São dessas “pistas”, desses “rastros”, que nós, historiadores, podemos estudar as sociedades do passado. No presente estudo se debruça sobre um indício que, até pouco tempo, era desconsiderado pela História como documentação: a literatura. Objetivamos não somente analisar os textos que compõem nosso corpus, mas colocalos em comparação. Cremos que a Ilíada, de Homero (VIII a.C.) e as tragédias Alexandre (fragmentária), Andrômaca, As Troianas, Hécuba, Helena, Ifigênia em Áulis e Orestes (século V a.C.) não são apenas produto de uma sociedade, mas que as epopeias influenciaram na construção da sociedade na qual eram encenadas as tragédias, bem como as tragédias e as próprias epopeias influenciaram na construção de suas próprias sociedades. Para estabelecer essa comparação, escolhemos como norte o antropólogo Marcel Detienne, que, em seu livro Comparar o incomparável lançou uma série de conceitos-chave e procedimentos para trabalhar com as comparações temporais e/ou espaciais. A comparação é algo intrínseco ao ser humano. Contudo, fazer uma comparação e fazer História Comparada 9 é bem diferente: é a partir dos anos 1920, com as obras de Marc Bloch, que a História Comparada vai tomando forma. O objetivo dela, para Bloch, é ressaltar diferenças e semelhanças em processos históricos distintos, tomando como base, preferencialmente, duas sociedades contíguas (BLOCH, 1998, p. 122-123). No Brasil, é em fins da década de 1970 que esse método comparativo é evidenciado: Ciro Flamarion Cardoso e Héctor Pérez Brignoli chamam a atenção para a sua importância nos estudos historiográficos, ressaltando ainda que não se trata de uma mera catalogação de diferenças e semelhanças, mas de busca de peculiaridades (CARDOSO; PÉREZ BRIGNOLI, 1983, p. 418). Entretanto, no início do século, a História Comparada sofre uma crise com o crescente destaque dado à História Cruzada: o historiador Jürgen Kocka coloca que ambas devem se relacionar, que método comparativo deve ser associado à histoire croissée (KOCKA, 2003, p. 44), mas Michael Werner e Bénédicte Zimmerman já veem a História Comparada como algo problemático: em seu artigo Beyond comparison: histoire croisée and the chalenge of reflexivity eles definem um método de História Cruzada e mostram razões pelas quais a História Comparada não seria uma metodologia tão adequada, pois seu uso é binário (semelhanças/diferenças) (WERNER; ZIMMERMANN, 2006, p. 33). É no bojo dessas discussões que surge a proposta de Marcel Detienne: ele critica a ideia de que só se pode comparar sociedades contíguas, ressaltando a ideia de que se pode “comparar o incomparável”, pois as sociedades espalhadas pelo mundo, embora plurais, compartilham algumas instituições (DETIENNE, 2004, p. 10 e 47): o casamento, a fundação, a morte etc. Embora Detienne seja ácido em suas críticas, visto que Marc Bloch não excluía a possibilidade de comparar sociedades distantes no tempo e no espaço (BLOCH, 1998, p. 121), é ele que melhor define um método comparativo, fechado e por isso escolhemo-lo como norte teórico. Assim, partindo de uma categoria1 (etnicidade), definimos como comparável2: a representação de Páris, tanto na epopeia homérica quanto nas tragédias de Eurípides. Essas representações serão devidamente analisadas em sua intrinsecidade através da Análise de Discursos, cabendo a nós, pesquisadores de História Comparada, colocar essas experiências variadas lado a lado para contrastá-las e/ou aproximá-las. Temos em mente que o método é um caminho e o objeto o qual pretendemos construir é que orienta a escolha dele 1 A categoria é um “traço significativo, uma atitude mental” que faz parte de “um conjunto, uma configuração” (DETIENNE, 2004, p. 57). 2 Os comparáveis são “mecanismos de pensamento observáveis nas articulações entre os elementos arranjados conforme a entrada: ‘figura inaugural que vem de fora’, ‘não-início’, ou outras. [...] são orientações, essas relações em cadeia, essas escolhas”. (DETIENNE, 2004, p. 57-58). 10 (ANDRADE, 1998, p. 38) e, visto que queremos estudar um processo ideológico de definição de fronteiras étnicas que tem como recorte temporalidades distintas, a metodologia comparativa de Detienne encaixou-se adequadamente. Para ler nosso corpus documental, adotamos como metodologia de leitura analítica a proposta por Eni Puccinelli Orlandi em seu livro Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. Identificamo-nos com a Análise de Discurso francesa3 por dois motivos: pela natureza do nosso corpus e pela proposta sócio-histórica desse método. Nossa documentação é formada por textos; cada um deles é a unidade analítica do discurso, entendido como um processo em curso (ORLANDI, 2012, p. 39). Assim, tomamos o discurso de Homero e o discurso de Eurípides como partes de um processo discursivo mais amplo. A Análise de Discurso trata de um sistema que envolve não apenas o discurso em si, mas a relação entre língua, ideologia e história, tendo em vista a produção de sentidos. O processo discursivo implica no perpasso da ideologia4 pelo discurso: é ela que produz sentido, pois “se materializa na linguagem” (ORLANDI, 2012, p. 96). A linguagem, por sua vez, “é linguagem porque faz sentido. E [...] só faz sentido porque se inscreve na história” (ORLANDI, 2012, p. 25 – grifos nossos). A história é o sentido, visto que o sujeito do discurso “se faz (se significa) na/pela história” (ORLANDI, 2012, p. 95). A fim de chegarmos à compreensão desse processo discursivo, é necessário cumprir três etapas: a partir da dessuperficialização 5 da superfície linguística (corpus documental) selecionado (a), obtemos o objeto discursivo (b), que se transforma em processo discursivo (c) ao chegarmos na formação ideológica daquele objeto. CORPUS DOCUMENTAL (a) dessuperficialização OBJETO DISCURSIVO (b) ideologia PROCESSO DISCURSIVO (c) 3 A A.D. francesa é diferente da A.D. anglo-saxã: enquanto aquela é oriunda da linguística e privilegia discursos escritos, esta vem da antropologia e trabalha mais com discursos orais. Além disso, a francesa destaca os mais propósitos textuais e a inglesa os comunicacionais (MAINGUENEAU, 1997, p. 16). 4 Defendemos que a ideologia em Homero é a própria paideía: “Por ideologia, entendemos um conjunto de representações dos valores éticos e estéticos que norteiam o comportamento social. No caso da sociedade ateniense, os valores estéticos estão representados pela proporção, justa medida, equilíbrio, enquanto os valores éticos, pela paideía (educação, cultura) – falar a língua grega, comer o pão, beber vinho misturado com água, cultuar os deuses, lutar na primeira fila de combate, obediência às leis, cuidar dos pais e fazer os seus funerais, manter o fogo sagrado, ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida política” (LESSA, 2010, p. 22). 5 O processo de dessuperficialização consiste na “análise do que chamamos materialidade linguística: o como se diz, o quem diz, em que circunstâncias etc.” (ORLANDI, 2012, p. 65). 11 A Guerra de Troia (1250-1240 a.C.) é um dos eventos da Antiguidade Grega mais relembrados por nós hoje em dia. Enquanto para nós essas histórias são mitos, não existiram de verdade, para os gregos ela existiram de fato. O passado que se reapropriava era um passado verídico, de um tempo pretérito, e a sua função era extremamente didática: com os heróis de outrora se aprendia a ser um verdadeiro homem. Homero ou Eurípides, ao comporem seus textos, não questionavam a materialidade histórica desses personagens e mesmo Tucídides, um historiador, utilizava a memória desses heróis do passado em sua História da Guerra do Peloponeso como se eles tivessem existido. Páris, Helena, Heitor, Menelau, podem não ter sido de “carne e osso”, mas permanecem no nosso imaginário: muitos filmes, séries de televisão e mesmo livros de ficção são escritos tendo os mitos gregos como pano de fundo. Essa reapropriação do material mítico não é, contudo, exclusividade do mundo contemporâneo: tragediógrafos e poetas dos períodos arcaico, clássico e helenístico também manejavam esses mitos para compor suas próprias histórias. Do mesmo modo que podiam modificar as histórias, modificavam também o caráter dos personagens. A imagem de Páris como um completo covarde está arraigada em nosso imaginário. Se tivermos em mente o desempenho de Páris no Canto III da Ilíada, essa ideia parece ser bem apropriada (HOMERO. Ilíada III, vv. 21-37). Tal episódio nos chamou a atenção: o herói foge (algo que ele não deveria fazer, pois é um herói). Contudo, Páris decide retornar para a luta (III, vv. 68-70). Em Eurípides não temos cenas assim: Páris é apenas mencionado. No nosso corpus documental, apenas em Aléxandros ele é de fato personagem (com falas etc.). Assim, como pretendemos analisar a sua representação? Através da análise dos adjetivos/epítetos que adornam sua caracterização e dos comentários dos outros personagens acerca dele. Catalogaremos esses elementos e, inserindo-os no âmbito do discurso, iremos delinear o personagem e qual o seu papel dentro da narrativa. A helenista Irene de Jong mostra que os personagens off-stage (que estão fora do palco) também desempenham papéis importantes, denotando a ideia de que “‘contar’ não precisa ser menos impressionante do que ‘mostrar’” (DE JONG, 2011, p. 389). A Ilíada e as tragédias euripidianas mostram momentos distintos da Grécia Antiga: o Período Arcaico (VIII-VII a.C.), no qual a poesia grega floresceu, com Homero e Hesíodo, dois aedos que lançaram as bases temáticas para o gênero trágico, o qual nasceu e entrou em crise no Período Clássico (V a.C.) e foi imortalizado por três grandes tragediógrafos: Ésquilo, 12 Sófocles e Eurípides. Ao recortarmos nossa pesquisa neste último trágico, referimo-nos a Atenas, visto que seu cenário de composição era nesta pólis. Em relação a Eurípides, não temos problemas de datação: sabemos que ele é, de fato, do século V a.C. Entretanto, com relação a Homero, esbarramos com esse problema. Não sabemos quando ele foi composto ou quando ele foi colocado na escrita, mas podemos chegar a um consenso? A maioria dos helenistas coloca a épica homérica no século VIII a.C., porém, há discordâncias. O historiador Gustavo Oliveira diferencia quatro abordagens acerca desses embates acadêmicos: a) “os poemas dizem respeito ao momento em que foram compostos”; b) “os poemas dizem respeito ao momento em que foram fixados”; c) “os poemas dizem respeito ao período que tentaram retratar”; d) “os poemas dizem respeito ao passado recente, alcançado na tentativa de atingir um passado ainda mais distante” (OLIVEIRA, 2012).6 Os defensores de (a) creem que a Ilíada e a Odisseia são o reflexo da sociedade do período em que eles foram compostos e o historiador vê nisso um problema, pois é necessário fixar essa marca para se ter certeza de qual sociedade se analisa e ainda não temos comprovação exata do período em que a épica homérica foi composta. Geralmente os defensores dessa ideia colocam Homero no século VIII a.C. Recentemente, até mesmo a genética se debruçou sobre esse tema: esses pesquisadores acreditam que a língua é como um DNA e as palavras, genes. Esses “genes” vão passando de uma língua para outra, criando raízes etimológicas semelhantes, como acontece na palavra água (do proto-germânico watōr derivaram-se wato – gótico –, water – inglês –, wasser – alemão –, vatten – sueco – etc.) (ALTSCHULER; CALUDE; MEADE; PAGEL, 2013, p. 417). Eles isolam essas palavras em comum entre o hitita, o grego moderno (essas duas as quais se conhece a época em que se desenvolveram) e o grego homérico e, através de uma frequência de cadeia de Markov7, chegam à conclusão que a antiguidade do grego da Ilíada é de cerca de 2.720 anos, ou seja, que seria mais ou menos de 707 a.C. Com a margem que eles põem nesse método, os textos homéricos são datados de entre 760 a 710 a.C. O objetivo desses pesquisadores é mostrar que a “linguagem pode ser usada, como os genes, para ajudar na investigação das questões históricas, arqueológicas e antropológicas” (ALTSCHULER; CALUDE; MEADE; PAGEL, 2013, p. 419) e eles afirmam que, como 6 Para conhecer quais helenistas partilham de quais opiniões, consultar o artigo de Gustavo Oliveira, intitulado Histórias de Homero: um balanço das propostas de datação dos poemas homéricos (consultar Referências Bibliográficas). 7 Essa cadeia funciona do seguinte modo: temos um objeto x do qual não conhecemos nada, mas também temos dois objetos y e z que se relacionam com esse x e do qual conhecemos algo em comum. Assim, através de uma fórmula fixa, conseguimos chegar ao resultado do nosso x. Aqui, no caso, o x seria o grego homérico, o y e o z o hitita e o grego moderno. 13 esses textos são oriundos de uma tradição oral, fica difícil de dizer se essa data diz respeito a quando eles foram produzidos ou cristalizados na escrita. A importância desse estudo é também mostrar como esse é um problema que não intriga somente a nós, cientistas humanos, mas aos cientistas das áreas de Exatas e Biológicas também, aumentando o leque de diálogo transdisciplinar. Desse modo, cremos que sua menção é essencial para chamar a atenção para outras perspectivas de trabalho. Os defensores de (b) creem que os poemas dizem respeito à sociedade que os fixou na escrita, fazendo com que a datação fique mais imprecisa ainda. Não há como chegar num consenso, como chegamos em (a) acerca de qual data seria mais apropriada. Já os que defendem (c) acreditam que os poemas dizem respeito ao Período Palaciano (XVII-1100 a.C.), pois fazem referência a esse passado, quando teria se desenrolado a Guerra de Troia. Essa proposta não é tão bem aceita, embora alguns estudiosos admitam que há múltiplas temporalidades em Homero (OLIVEIRA, 2012, p. 133). Os pesquisadores que adotam (d) como proposta de datação acreditam que os épicos referem-se ao período da desestruturação palaciana (1100-IX a.C.). Um dos principais defensores dessa ideia é o historiador Moses Finley: ele afirma que “[O mundo de Ulisses] Era muito mais ‘simples’ na sua organização social e política; era iletrada [sic] e a sua arquitetura não era verdadeiramente monumental, quer se destinasse aos vivos quer aos mortos” (FINLEY, 1982, p. 45). É, juntamente com (a), uma das principais perspectivas. Claude Mossé a inclui no seu verbete sobre Homero no Dicionário da Civilização Grega (2004, p. 171-172), mas admite que, mesmo assim, a datação permanece um enigma para nós. Gustavo Oliveira afirma que “o maior problema com essa tendência de associar os poemas homéricos com o período da Idade das Trevas está, justamente, na falta de documentação que comprove ou ao menos sugira sua probabilidade” (OLIVEIRA, 2012, p. 135). Do mesmo modo, o historiador Alexandre Santos de Moraes aborda essa discussão em sua tese de doutorado, afirmando ser o período entre os séculos X a IX a.C. o ideal para se colocar o que a Ilíada e a Odisseia mostram: a sociedade homérica seria a sociedade da época de desestruturação palaciana. O autor revisita as teses de Anthony Snodgrass e Oswyn Murray e toma Ian Morris como principal representante da datação de Homero no século VIII a.C., desconstruindo muitos de seus argumentos. A épica homérica não deve ser considerada oriunda de um período no qual surge a escrita, pois pertence à tradição oral, bem como não podemos atribuir a Homero a criação de um sistema políade: muitos autores afirmam que podemos encontrar sinais da pólis em Homero. 14 Essa última ideia é problemática: a épica já traz o termo pólis, mas ele não diz respeito à organização política, social, econômica e administrativa que encontramos no Período Clássico. O centro do poder, em Homero, é ainda o palácio, embora possamos encontrar estruturas que estarão presentes na pólis, como a assembleia. Nesses poemas, há uma miscelânea temporal muito grande, não podendo nós delimitarmos um único período sem sermos arbitrários. O próprio Finley afirma que “é com alguma liberdade que o historiador fixa nos séculos X e IX a.C. o mundo de Ulisses” (FINLEY, 1982, p. 46). Devido a essa polêmica, é muito difícil para o historiador tomar uma posição acerca da data da composição das epopeias. Escolhemos o século VIII a.C. à medida em que defendemos que esses poemas dizem respeito já a um movimento de conquista de apoikíai, como defende o historiador Irad Malkin. Mas é fato que a ancoragem histórico-temporal desses poemas pode retroceder mais no tempo, visto que ele pertence a uma tradição oral. O que vai mais nos interessar, em nossa pesquisa, é que a epopeia pertence a um tempo anterior às tragédias. Sendo períodos e gêneros distintos, cada um tende a representar Páris de uma maneira. Nosso problema diz respeito a um processo, que começa com as epopeias de Homero e continua a se desenvolver em outros gêneros literários: trata-se de um processo de elaboração de um código de conduta social através da prática da paideía8, o qual irá definir, também, as bases do que é grego e do que não é. Desde Homero há um discurso de alteridade. Assim, indagamo-nos: o que é grego9? O que não é? Era mais fácil para os gregos responderem à última pergunta: definia-se o não-grego para se definir o grego. Ao longo de toda a Odisseia, o herói Odisseu toma contato com Outros; todavia, é no episódio dos ciclopes em que se terá o contato com o grande representante da alteridade helênica, o qual será recuperado, por exemplo, no drama satírico Os Ciclopes, de Eurípides. Odisseu os descreve assim: “destituídos de leis, que confiados nos deuses eternos, não só não cuidam de os campos lavrar, como não plantam nada” [ἀθεµίστων / ἱκόµεθ᾽, οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν / οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO. Odisseia IX, vv. 107-108 – grifos nossos). O que importa, nessas sequências, não é a caracterização dos ciclopes, mas a definição daquilo que, definitivamente, não é helênico. Pela descrição de Odisseu, podemos caracterizar 8 Literalmente, paideía significa “criação de meninos”. Ela se constitui na transmissão de saberes e práticas helênicas. Para melhor definição, ver o capítulo 1 de nossa dissertação (Entre Homero e Eurípides: dois estilos de composição). 9 Vale ressaltar que “grego” aqui é uma conveniência. Há um intenso debate em torno do termo “heleno”: ele é usado em Homero para designar determinado povo, não todos os povos gregos, como será no Período Clássico. 15 os gregos: eles vivem sob um código de leis, sua principal fonte de subsistência é a agricultura, eles vivem em comunidade, cultuam os deuses, o pão é o seu principal alimento e possuem características humanas, sendo, inclusive, belos10. Por isso, preferimos utilizar o conceito de alteridade tal qual Marc Augé propõe. Para ele, a identidade é produzida pelo reconhecimento de alteridades, colocando em cena um Outro (AUGÉ, 1998, p. 19 e 20), que pode ser: a) o Outro exótico, que é definido a partir de um nós homogêneo; b) o Outro étnico homogêneo – como é o caso dos gregos em relação com os bárbaros; c) o Outro social (a mulher, a criança, o transgressor) e o Outro íntimo, pois temos várias identidades (AUGÉ, 2008, p. 22-3) . Segundo esse antropólogo, “não existe afirmação identitária sem redefinição das relações de alteridade, como não há cultura viva sem criação cultural” (AUGÉ, 1998, p. 28). Identidade e alteridade não se opõem, não se excluem: formam um par, complementando-se, visto que são “categorias [...] que a constituem [a sociedade] e definem” (AUGÉ, 1998, p. 10). Ele trabalha, especificamente, com a questão da alteridade nos mitos, na mídia e no contato entre os colonizadores e os nativos. O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropológica: o contato com outras culturas é imbuído de choques. Contudo, Charles Mugler aponta que a noção de outro retrocede mais no tempo do que sua etimologia: alteridade deriva do latim alter, outro. Mas, em Homero mesmo, já podemos ver o papel que o vocábulo állos, “outro”, desempenha para definir o dessemelhante (MUGLER, 1969, p. 1). E, se pararmos para pensar, o conectivo adversativo “allá”, que, até hoje, significa “mas” para os gregos, tem uma origem nesse vocábulo (BAILLY, 2000, p. 82; CHANTRAINE, 1968, p. 63-4): o “outro” assemelha-se ao “mas”, ao adverso. Assim como o conceito de alteridade, o de etnicidade tem um apelo marcadamente antropológico. Escolhemos trabalhar com o modo como Fredrik Barth entende a etnicidade e, mais ainda, o que é uma fronteira étnica e um grupo étnico, conceitos-chave para entendermos sua abordagem. Embora seja um texto clássico, Barth conseguiu abarcar o que compreendemos sobre etnicidade, ou seja, um discurso criado por um grupo para legitimar seu lugar social, sendo que esse discurso não vem do nada, mas sim da relação com outros grupos. 10 O termo utilizado pelos helenos para designar o belo é kalós, que tem tanto uma conotação de beleza externa quanto interna (virtude), podendo inclusive, dependendo do contexto, ser traduzido como “bom”, bem como o seu antônimo, kakós, pode ser traduzido por “feio” ou “mau”. 16 O termo etnia vem de um outro, éthnos, que é “toda classe de seres de origem ou de condição comum” (BAILLY, 2000, p. 581). Ele pode designar tanto um bando de animais (éthnea – nominativo épico jônico plural – HOMERO. Ilíada II, 459, para gansos; II, 469, para moscas; Odisseia XIV, v. 73, para porcos) quanto um conjunto de pessoas. O termo éthnos aparece, geralmente, ligado a uma estrutura formulaica, como “ἂψ δ' ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ' ἀλεείνων” (“mas de volta ao grupo – éthnos – dos companheiros retorna evitando a morte em batalha - kḗr”) ou “ἐπεὶ ἵκετο ἔ θνος ἑταίρων” (“depois voltou ao grupo – éthnos – de companheiros”11), visto que se repetem algumas vezes ao longo da Ilíada (a primeira estrutura mais do a segunda). O conceito de etnicidade começou a ser debatido recentemente: desde a década de 1970 que esse debate se destaca. O debate sobre a etnicidade foi alimentado desde a década de 1970 por uma abundante bibliografia que, se enriqueceu de modo considerável o conhecimento empírico das situações interétnicas atuais em todas as partes do mundo, não chegou verdadeiramente até hoje a permitir que se destaque uma teoria geral da etnicidade (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 120). Contudo, a heterogeneidade do debate não permitia que se chegasse a uma definição mais concreta de etnicidade e uma proposta de conceituação ainda não havia sido elaborada. Confundia-se (e ainda se confunde) muito os termos “raça” e “etnia”, que se configuram em instâncias diferentes: a etnia diz respeito às relações sociais entre o “nós” e o “eles” e a raça diz mais respeito às configurações biológico-fenotípicas que diferenciam um grupo do outro. Obviamente, o argumento racial será utilizado algumas vezes para essa diferenciação dicotômica, mas isso quer dizer que ele tem relação com o conceito de etnicidade, não que seja sinônimo deste. Assim, Glazer & Moynihan defendem que “a etnicidade refere-se a um conjunto de atributos ou de traços tais como a língua, a religião, os costumes, o que a aproxima da noção de cultura, ou à ascendência comum presumida dos membros, o que a torna próxima da noção de raça” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 86). Outros autores relacionam a etnicidade com o que impulsiona a formação de um povo, com a adequação comportamental das pessoas às normas sociais de um grupo ou às representações que condensam a pertença a um grupo (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 86). 11 Esses versos são de tradução própria. 17 Como pudemos ver, as definições são diversas. Houve uma tentativa de juntar todas essas definições para compor o conceito de etnicidade em fins da década de 1978 (Burgess), mas que acabou por generalizá-lo. No âmbito da História Antiga, o historiador americano Jonathan M. Hall procurou sumarizar em oito pontos o que ele entende por etnicidade a partir de leituras diversas: (1) A etnicidade é um fenômeno mais social do que biológico. É definida mais por critérios social e discursivamente construídos do que por indícios sociais. (2) Traços culturais, genéticos, linguísticos, religiosos ou comuns não definem essencialmente o grupo étnico. Esses são símbolos que são manipulados de acordo com fronteiras atribuídas construídas subjetivamente. (3) O grupo étnico é distinto de outros grupos sociais e associativos em virtude da associação com um território específico e um mito de origem compartilhado. Essa noção de descendência é mais putativa do que atual, e julgada por consenso. (4) Os grupos étnicos são frequentemente formados pela apropriação de recursos por uma seção da população, ao custo de outra, como resultado de uma conquista ou migração de longa data, ou pela reação contra tais apropriações. (5) Os grupos étnicos não são estáticos ou monolíticos, mas dinâmicos e fluidos. Suas fronteiras são permeáveis até certo grau, e elas podem ser produto de um professo de assimilação e diferenciação. (6) Os indivíduos não precisam sempre agir em termos de sua pertença a um grupo étnico. Quando, contudo, a identidade do grupo étnico é ameaçada, sua internalização como identidade social de cada um de seus membros implica numa convergência de normas e comportamentos de grupo e a supressão temporária da variabilidade individual no esforço por uma identidade social positiva. (7) Tal convergência comportamental e saliência étnica é mais comum entre (ainda que não exclusiva a) grupos dominados e excluídos. (8) A identidade étnica só pode ser constituída em oposição a outras identidades étnicas. (HALL, 1997, p. 33). A definição de Hall se aproxima bastante da defendida por Fredrik Barth e Abner Cohen, autores que nos chamaram a atenção. Desse modo, propomos nos debruçar sobre as ideias deles dois, visto que ambos nos chamaram a atenção ao tratar da etnicidade. No entanto, escolhemos apenas um como norte teórico: o antropólogo norueguês Fredrik Barth. Para esse autor, o grupo étnico não é sinônimo de sociedade ou cultura. Essa é uma premissa fundamental, visto que trabalhamos com dois grupos que compartilham de um mesmo código de conduta social. Barth afirma que “a identidade étnica é associada a um conjunto cultural específico de padrões valorativos” (BARTH, 2011, p. 209): esse “conjunto cultural” seria justamente a paideía com o código de conduta que ela transmite. Além disso, ele enfoca justamente nos limites desse grupo étnico, a partir da definição de fronteira étnica: esse grupo não é estático, mas muda conforme entra em contato com outros grupos, justamente a fim de manter a sua própria etnicidade. Assim, “os traços 18 culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar, e a cultura pode ser objeto de transformações, sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade étnica” (LUVIZOTTO, 2009, p. 31). Segundo Barth, “se um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios para tornar manifesta a pertença e a exclusão” (BARTH, 2011, p. 195). A etnicidade é, desse modo, relacional: é a partir do contato com os Outros que ela se define e é a partir desse contato que ela também se mantém. “O campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidade”, afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, é aquele que estuda “os processos variáveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e são identificados pelos outros na base de dicotomizações Nós/Eles, estabelecidas a partir de traços culturais que se supõe derivados de uma origem comum e realçados nas interações raciais” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 141). A etnicidade também implica na construção de representações sociais, pois “a identificação de outra pessoa como pertencente a um grupo étnico implica compartilhamento de critérios de avaliação e julgamento” (BARTH, 2011, p. 196), pois assim se tem a ideia de que se “joga o mesmo jogo”, nas palavras mesmo de Barth. Essas representações são fundamentais para manter as características do grupo, visto que a comunicação é o locus privilegiado de inculcação delas. Ao pesquisarmos sobre o conceito de etnicidade, encontramos outro autor que nos chamou bastante atenção: o antropólogo iraquiano Abner Cohen. Esse autor estuda as sociedades africanas contemporâneas, mostrando como os costumes influenciam a política e como o discurso étnico define relações de poder entre grupos étnicos. Assim como Barth, Cohen também crê que o grupo se define e se redefine pelo contato com outros grupos étnicos: “um grupo étnico se ajusta a novas realidades sociais adotando costumes de outros grupos ou desenvolvendo novos costumes que são compartilhados com outros grupos” (COHEN, 1969, p. 1). Além disso, o antropólogo afirma que Os diferentes grupos étnicos organizam essas funções [normas culturais, valores, mitos e símbolos] de modos diferentes, de acordo com as suas tradições culturais e circunstâncias estruturais. Alguns grupos étnicos fazem uso extensivo dos idiomas religiosos organizando essas funções. Outros grupos usam a descendência [kinship], ou outras formas de relações morais, em vez disso. No curso do tempo, o mesmo grupo pode mudar de um princípio articulador para outro como resultado de mudanças dentro do sistema político encapsulado de ou outros desenvolvimentos ambos dentro ou fora do grupo (COHEN, 1969, p. 5-6). 19 Contudo, esbarramos no pensamento desse antropólogo quando este afirma que “de acordo com o meu uso, um grupo étnico é um grupo de interesse informal cujos membros são distintos dos membros de outros grupos dentro da mesma sociedade” (COHEN, 1969, p. 4). Isso seria aplicável somente à Ilíada, visto que aqueus e troianos seriam membros de uma mesma comunidade (que está sob um mesmo código de conduta), embora sejam membros de diferentes grupos étnicos. Entretanto, na realidade de Eurípides, em que a dicotomia grego/ bárbaro está bem mais definida (e em crise), essa observação não se aplica: a sociedade grega é diferente da sociedade bárbara. Especificamente tratando da Antiguidade Grega, alguns autores se debruçaram sobre a questão da etnicidade e da alteridade. O mais antigo registro bibliográfico que trazemos em nossa discussão é o da helenista Helen Bacon: Barbarians in Greek tragedy (1955). Em seu doutorado, ela faz uma análise dos elementos que caracterizam o bárbaro nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Tanto o vestuário, como o modo de falar ou as ações definem um personagem bárbaro, mas, dependendo do autor, um ou outro elemento é enfatizado. Em 1989, Edith Hall publicou a sua tese doutoral, Inventing the barbarian: Greek self-definition through tragedy, que teve grande repercussão no meio acadêmico. Praticamente todos os livros que trazem a questão da alteridade/etnicidade mencionam o trabalho de Hall, que se destina à análise da poesia trágica também. Sua hipótese principal é a de que quando os gregos escrevem sobre os bárbaros, eles estão fazendo um “exercício de auto-definição”, pois eles são opostos, e que essa “invenção” teria começado a partir das Guerras Greco-Pérsicas (490-479 a.C.). Além disso, ela defende que a ideia de pan-helenismo tem mais a ver com um ideal atenocêntrico do que helenocêntrico. Com relação a Homero, ela afirma que não existe uma polarização entre gregos e bárbaros no poema, embora essa diferenciação existisse nessa época, admitindo que a Guerra de Troia, originalmente, seria entre duas comunidades (HALL, 1989, p. 23). Contudo, ela critica os autores que veem em Homero uma diferenciação clara entre gregos e troianos. Em 1993, a helenista francesa Jacqueline de Romilly escreve um artigo comentando o livro de Edith Hall: Les barbares dans la pensée de la Grèce classique. Ela chama a atenção para o fato de que, mais do que inventar o bárbaro, os gregos inventaram o helenismo (ROMILLY, 1993, p. 3). A autora reforça a ideia de que essa dicotomia é mais política do que racial, embora admita que os gregos se liguem também pelo critério da raça. No mesmo ano, Barbara Cassin, Nicole Loraux e Catherine Peschanski organizaram Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros, com cinco ensaios das autoras 20 sobre a questão da alteridade na Grécia Clássica, especificamente, apresentados no Rio de Janeiro a convite do Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares. Elas analisam, sobretudo, como a pólis lidava com os seus Outros, categorizando e caracterizando o estrangeiro. A documentação principal reside na historiografia helênica, sendo Heródoto, Tucídides e Xenofonte os mais trabalhados. Elas mostram como os gregos são gregos por cultura, não por natureza, e como eles podem voltar a ser bárbaros através do desrespeito dos códigos de valores helênicos (CASSIN; LORAUX, 1993, p. 10). Um ano depois, Pericles Georges escreveu um livro que aborda não só o Período Clássico, mas também o Arcaico: Barbarian Asia and the Greek experience: from the Archaic Period to the age of Xenophon. Sua proposta no livro é mostrar como os gregos estereotiparam o bárbaro e qual a origem disso, evidenciando como essa definição ajudou a construir a identidade grega. No tocante a Homero, ele também não crê haver diferenciação entre gregos e troianos, mas admite que a Ilíada já traz uma diferenciação entre o nós e o eles, sobretudo ao se referir aos cários e lídios. Antonio Mario Battegazzore escreveu, em 1996, um artigo interessante sobre essa polarização grego versus bárbaro: La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica: riflessioni su cause ed effetti di una visione etnocêntrica. Seu trabalho é interessante, pois corrobora a ideia de que os gregos têm dois tipos de leitura sobre os bárbaros: uma horizontal (na qual os gregos reivindicam uma centralidade geográfico-cultural em relação aos outros povos) e uma vertical (os gregos são evoluídos, pois o passado bárbaro ficou para trás: os bárbaroi de hoje são atrasados, visto que pararam no tempo) (BATTEGAZZORE, 1996, p. 23). Ele não admite a possibilidade de diferenciação entre troianos e gregos na Ilíada, analisando essa dicotomia no Período Clássico. O historiador Irad Malkin, em 1998, escreve um livro inovador no que diz repeito ao uso conceitual da etnicidade para o mundo Antigo: The returns of Odysseus: colonization and ethnicity. Ele analisa os nostoí, heróis que cruzam regiões tentando voltar para casa, na mitologia grega e os relaciona à definição da identidade helênica a partir do contato com Outros. O autor defende, por exemplo, a ideia de que Odisseu, na verdade, seria uma metáfora para a colonização helênica, que acontecia, sobretudo, no século VIII a.C., sendo, assim, um “herói proto-colonial” (MALKIN, 1998, p. 3). Em 2001, Malkin organizou um livro com ensaios especificamente sobre a etnicidade no mundo grego: Ancient Perceptions of Greek Ethnicity, aquecendo os debates sobre o tema. 21 Em 2002, dois trabalhos se destacaram no tocante à questão da etnicidade helênica: o de Jonathan M. Hall (Hellenicity: between ethnicity and culture) e a coletânea de Thomas Harrison (Greeks and barbarians). Hall já havia escrito um livro, em 1997, sobre a questão étnica no mundo grego (Ethnic identity in Greek Antiquity) e o seu novo livro, na verdade, é um aprofundamento do tema e um alargamento da gama de documentos utilizados. Ele defende que existem determinados elementos que definem as fronteiras étnicas helênicas, os quais já apontamos aqui em nossa introdução. O livro de Harrison traz vários ensaios transdisciplinares sobre essas diferenciações entre gregos e bárbaros vistos de uma multiplicidade de naturezas documentais, que vão desde a literatura até a cultura material helênica. A helenista Lynette Mitchell, em 2007, publicou seu Panhellenism and the barbarian in Archaic and Classical Greece. Ela tenta definir o que é esse pan-helenismo, estendendo a análise para o Período Arcaico e defendendo que essa ideia não é apenas cultural ou política, mas, necessariamente, possui ambas as conotações. Dois anos depois, o classicista P. M. Fraser escreveu seu Greek ethnic terminology, no qual analisa o vocabulário étnico desde Homero até Bizâncio. Ele mostra como o termo éthnos mudou ao longo do tempo, indo da simples designação de uma coletividade até uma demarcação bem nítida do nós/eles, bem como relaciona a ele outros termos (como génos e pólis) que desempenham essa marcação étnica. Efi Papadodimas escreveu em 2010 um artigo digno de nota, pois se debruça especificamente sobre Eurípides: The Greek/Barbarian interaction in Euripides' Andromache, Orestes, Heracleidae: a reassessment of Greek attitudes to foreigners. Ele mostra como nas tragédias euripidianas a dicotomia grego versus bárbaro está cada vez mais fluida, visto que o tragediógrafo testemunha a “barbarização” dos próprios gregos. Para o autor, essa ideia de que o bárbaro é um oposto entra em crise, não sendo difícil encontrar em suas tragédias gregos agindo como bárbaros. O historiador grego Kostas Vlassopoulos, em seu Greeks and barbarians (2013), tentou desconstruir a ideia de que o grego é diametralmente oposto ao bárbaro, analisando como gregos e bárbaros conviviam no espaço mediterrânico. Esse é o principal argumento do seu livro. Os gregos, num plano discursivo, procuraram diferenciar o bárbaro de si, a fim de fundar sua própria identidade, mas, na prática, os gregos dialogaram bastante com os nãogregos, através de trocas culturais as quais não diziam respeito somente à imposição, mas à circulação mesmo de ideias e tecnologias pelo Mediterrâneo. Essas trocas tiveram como 22 principal palco o mundo das apoikíai, as “colônias” gregas, as quais frequentemente ou adotavam os costumes gregos (sobretudo o modo de organização políade) ou recebiam-nos e modificavam-nos, adaptando-os aos seus contextos. Nosso trabalho propõe analisar, comparativamente, os elementos que definiam as fronteiras étnicas em Homero e em Eurípides, sobretudo a partir da análise do herói Páris, visto, por nós, como o Outro por excelência na Ilíada e nas tragédias do ciclo troiano. Dividimos nosso trabalho em três capítulos: o primeiro trata da etnicidade de uma forma geral dentro das poesias épica e trágica, dessuperficializando os textos que analisaremos em nosso trabalho. Já o segundo trata de um aspecto recorrente na representação de Páris, nossa comparável: ele como sendo um causador de males. Vamos ver como Homero e Eurípides tratam disso, destacando como essa característica engloba uma série de elementos que definem fronteiras étnicas tanto na epopeia quanto na tragédia. No terceiro capítulo, nos debruçamos sobre um Páris guerreiro e como a sua representação como tal corrobora a definição desse personagem como sendo um Outro, bem como Homero e Eurípides lidam com essa alteridade dos troianos. 23 CAPÍTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURÍPIDES: DOIS ESTILOS DE COMPOSIÇÃO “[...] a epopeia [de Homero] é aqui construída como uma tragédia” (ROMILLY, 2013, p. 47) Nesse capítulo, vamos trabalhar a literariedade da epopeia homérica e a tragédia euripidiana, ou seja, o que faz dessas obras textos literários (ANDRADE, 1998, p. 27), que são “objeto[s] de conhecimento que representa[m] alegoricamente o ponto de vista do escritor a respeito da realidade humana” (ANDRADE, 1998, p. 31). Faremos isso de modo a mostrar como elas pertencem a um mesmo espaço discursivo, bem como a construção delas implica em um discurso que molda uma etnicidade helênica. Por isso, a epígrafe de Jacqueline de Romilly se faz de extrema importância para abrirmos nossa discussão: ela acredita que a epopeia homérica se constrói à maneira de uma tragédia. Obviamente, Homero não previu a existência dos trágicos, fazendo um poema que parecesse com uma tragédia futura. Contudo, a afirmação da helenista francesa implica na ideia de que as tragédias foram influenciadas pelas epopeias. Os textos homéricos são arquitextos12 não somente para Eurípides, mas para toda a tradição literária grega posterior, sendo que tanto Homero quanto Eurípides são hoje, ambos, arquitextos: eles influenciam no modo como produzimos textos (sejam eles escritos, visuais, orais etc.). Tanto a epopeia quanto a tragédia fazem parte do mesmo espaço discursivo 13: o material mítico homérico serviu aos tragediógrafos; a utilização de epítetos e comentários para caracterizar um personagem é tomada emprestada dessa tradição épica, bem como a utilização de algumas fórmulas conhecidas do público. Desse modo, podemos dizer que poesia épica e trágica fazem parte de uma mesma tradição mito-poética. No entanto, não podemos afirmar que o mito se desenrola na tragédia da mesma maneira que em Homero. Se fosse assim, dificilmente as peças de teatro atrairiam a atenção do público ateniense do século V a.C.: afinal, ninguém quer ver a mesma história contada do mesmo modo diversas vezes. Nenhum texto, embora influenciado por outros, é 12 O arquitexto designa “as obras que possuem um estatuto exemplar, que pertencem ao corpus de referência de um ou de vários posicionamentos de um discurso constituinte” (MAINGUENEAU, 2008, p. 64). 13 “O ‘espaço discursivo’, enfim, delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-se, mantêm relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados” (MAINGUENEAU, 1997, p. 117). 24 igual a esses predecessores: eles possuem um interdiscurso, que é esse diálogo com tradições literárias posteriores, mas nunca são cópias puras e simples. Homero mesmo, embora seja um arquitexto, não pode ser considerado o início de um processo discursivo: ele faz parte desse processo, visto que nos seus textos já existe um interdiscurso. Homero é um dos aedos que circulavam pela Grécia naquela época e ainda havia outros como ele antes dele. Além disso, ele é influenciado por várias tradições literárias que já existiam. Um exemplo disso é a utilização do contexto intralinguístico da poesia iâmbica para compor alguns personagens, como o próprio Páris (SUTER, 1984): esse tipo de verso era utilizado para acusar alguém de algo. Assim, a composição de algumas sentenças relativas à Páris, sobretudo quando o sujeito enunciador é um personagem da Ilíada (como Príamo ou Heitor), conservam esse ato de linguagem14 iâmbico. Escolhemos dois gêneros15 discursivos, para trabalhar com Páris: a epopeia de Homero e as tragédias de Eurípides. Antes de apresentarmos as análises comparadas do nosso herói em cada um deles, é mister discorrermos sobre a natureza da composição desses dois textos, pois trabalhamos com a Análise de Discurso como método de leitura deles. Para o analista, é importante dessuperficializar o corpus documental para criar um objeto discursivo, sobre o qual, enfim, nos debruçamos com fins analíticos. Essa dessuperficialização consiste em dirigir aos textos perguntas que vão ancorar nossa leitura em um determinado tempo, espaço e sociedade: “Quem escreveu?”, “Quando escreveu?”, “Onde escreveu?”, “De onde essa pessoa veio?”, “Para quem ela escreve?”, “O que ela defende?”, “Qual o gênero do texto?” são perguntas que devemos fazer antes de começar a analisar qualquer documentação. Esse processo tem a ver com a própria classificação do gênero discursivo ao qual pertence um determinado discurso: “O fato de que um texto seja destinado a ser cantado, lido em voz alta, acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo, que circule de determinada maneira e em certos espaços..., tudo isto [sic] incide radicalmente sobre seu modo de existência semiótica” (MAINGUENEAU, 1997, p. 36). O gênero é tão importante na construção do discurso que, na Grécia Antiga, ele influenciava diretamente na escolha do dialeto da composição dos textos, como a linguista britânica Anna Morpurgo Davies nos explica: 14 O ato de linguagem é uma sequência linguística com um valor ilocutório, ou seja, dotado de uma determinada força (no caso da poesia iâmbica, de acusação), que pretende operar sobre o sujeito receptor uma transformação. 15 Podemos classificar os gêneros de diferentes maneiras de acordo com suas condições comunicacionais (como fala, onde fala etc.) e estatutárias (quem fala, para quem fala, qual o lugar social de cada sujeito do discurso etc.). 25 O verso épico é escrito em alguma forma de jônico. A tragédia ática é escrita em ático, exceto pelos coros, os quais estão em uma forma dórica modificada. A poesia lírica pode estar em eólico; a prosa literária não. Em um número de instâncias, a escolha do dialeto é independente da origem do autor: Píndaro era de Tebas, mas não escreve em beócio. Hesíodo era também da Beócia, mas compôs em uma linguagem épica, i.e., em uma forma compósita de jônico (DAVIES, 2002, p. 157). A Ilíada não era encenada, do mesmo modo que as tragédias não se restringiam a uma récita: as performances épica e trágica eram diferentes. Para o melhor aproveitamento do estudo do nosso corpus e corroboração de nossas hipóteses, devemos observar não somente as semelhanças e diferenças, mas também quais as peculiaridades que cada gênero discursivo nos traz. Diferentemente da Ilíada, as tragédias não são tão extensas: para termos uma noção, a maior das tragédias que vamos estudar (Orestes, com 1.693 versos) corresponde a somente 10,78% da Ilíada (que possui 15.693 versos). As récitas aédicas e rapsódicas eram episódicas: a Ilíada e a Odisseia não eram cantadas de uma vez só, selecionando-se apenas episódios. Essa prática está presente na documentação mesma: no Canto VIII da Odisseia (vv. 266-369), Demódoco conta o episódio da traição de Afrodite e Ares. Outra diferença a se sublinhar é o próprio modo de compor: o aedo não escrevia seus poemas, ao contrário do trágico. O aedo memorizava o poema ou compunha-o na hora para o seu público, utilizando uma mnemotécnica16. Desse modo, vemos se repetirem fórmulas como “Assim que a Aurora, de dedos de rosa, surgiu matutina” [ἦµος δ᾽ ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς] e epítetos (como theoeidḗs, relativo a Páris), que equivaliam a uma pausa necessária para o cantor se lembrar do que falará a seguir e para ele poder compor, através do manejo do hexâmetro dactílico, os seus versos. Eurípides escreveu as suas tragédias e cada ator (em sua época, três17) decorava suas falas e as interpretava em cima do palco. Surge aqui, então, mais um elemento que distingue o gênero épico do trágico: a forma do texto. Em Homero há diálogos entre personagens, espaço para eles falarem; contudo, isso se dá através do discurso indireto livre de um narrador onisciente18. Nas tragédias, esse narrador desaparece: o discurso é direto, mesmo quando se trata do coro, e os narradores são sempre personagens. Os diálogos exerciam um papel muito 16 A mnemotécnica seria a arte, no caso do aedo, de lembrar e improvisar, se preciso, os versos a serem recitados. A título de aprofundamento do tema, ver o capítulo II de Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, de Marcel Detienne (consultar Referências bibliográficas). 17 É atribuído a Sófocles a introdução do terceiro ator. Até então, as tragédias eram interpretadas por apenas dois atores. Cada vez mais o ator vai ganhando destaque nas produções trágicas e, a partir de 449 a.C., havia não só competições de tragédias em si, mas de atores também (SCODEL, 2011, p. 53-54). 18 O narrador onisciente é aquele que conhece passado, presente e futuro da história e o íntimo de cada personagem, mas que não participa da trama. 26 importante: em determinadas tragédias mesmo o falar da personagem já mostrava a que âmbito social ela pertencia, como acontece com o frígio de Orestes (que é marcadamente um bárbaro) ou com Páris em Alexandre, cuja desenvoltura no falar denuncia que ele não é um pastor comum e excede aos outros. Além disso, não é o autor que interpreta suas peças19: ele delega essa função aos atores. A encenação trágica não corresponde somente à tragédia em si: havia esses atores (no caso de Eurípides, três20) que representavam os personagens. O figurino, as máscaras, deveriam trazer consigo as particularidades de cada personagem e torna-lo reconhecível ao público: eles deveriam saber quem era o mensageiro, o deus, o ancião, o herói, a mulher e assim por diante. Diferentemente, o aedo é, ele mesmo, narrador de sua história. Outro elemento é o espaço da performance: a récita aédica ocorre geralmente em banquetes, enquanto as encenações trágicas têm o espaço do odéon (teatro) para se desenrolar. Isso não significa, contudo, que o público do aedo seja mais restrito do que o do trágico. Podemos pensar que enquanto a epopeia geralmente era cantada no espaço do banquete aristocrático21, a tragédia se encenava no espaço da pólis, custeada pelos cidadãos ricos e aberta a toda a população (ROMILLY, 1997, p. 16) e, por isso, o alcance dela era maior22. Contudo, não podemos nos esquecer de que o poeta era itinerante, fazendo suas epopeias chegarem a vários lugares da Grécia. Essa é uma ideia bastante explorada pelo historiador Alexandre Santos de Moraes, que ressalta: A certa estabilidade de que alguns aedos gozavam nos palácios e ambientes aristocráticos homéricos não deve enublar nossas leituras. [...] quando encontramos o aedo iliádico Tamíris, que viajava para competir com outros aedos, ou mesmo o identificado no Hino Homérico a Apolo, que solicitara às donzelas délias que perpetuassem sua fama par os outros aedos que por ali passassem, chegamos à conclusão de que esse sedentarismo nada mais era do que uma condição momentânea. [...] A errância, portanto, não é apenas adequada a esses aedos: é provável que tenha sido um meio indispensável para a ampliação de seu repertório e a aquisição de novos materiais e canções (MORAES, 2012, p. 73 – grifos nossos). Quando vamos estudar os mitos gregos “convém ter em conta essa fragmentariedade das relíquias e a facilidade de variação que oferecem os relatos dos poetas” (GUAL, 1996, p. 19 Segundo Ruth Scodel, no início, os tragediógrafos poderiam ter sido, eles mesmos, atores em suas tragédias (SCODEL, 2011, p. 45). 20 Atribui-se a Sófocles o mérito de ter elevado de dois para três o número de atores. Na época de Ésquilo, existiam somente dois (ROMILLY, 1999, p. 33). 21 Também havia récitas em concursos, mas essas eram feitas por rapsodos, que reproduziam versos de aedos. 22 Embora os cidadãos mais pobres pudessem assistir às tragédias através de um financiamento governamental (theōriká), a maioria do público no teatro advinha da elite (SCODEL, 2011, p. 53). 27 24). Os mitos, em si, são bastante variáveis: existem mitos que não têm uma única versão. Afrodite, por exemplo, é filha de Zeus em Homero (Ilíada V, v. 131) e filha de Uranos em Hesíodo (Teogonia, vv. 180-200). Os mitos eram passados de geração para geração pela via oral, tanto pelos poetas quanto pelos próprios ouvintes, que passavam as histórias adiante. Além disso, como vimos, esses mitos circulavam, mesmo na época trágica: as peças poderiam ser apresentadas em localidades outras além de Atenas. Por isso que os mitos possuíam uma variação muito grande de região para região, sobretudo antes de terem sido escritos, como na época arcaica. O poema “original” (se assim considerarmos que existia um) sempre chega com modificações conforme passa de uma pessoa para outra. Esses textos foram copiados e recopiados ao longo dos séculos: durante a denominada Idade Média, os manuscritos épicos, trágicos e historiográficos serviam para o ensino do grego. Os copistas reproduziam determinados textos gregos, conforme o gosto de quem os encomendava. Devido a isso, muito se pensou que durante a Idade Média as obras da Grécia Antiga se perderam; entretanto, isso é inverificável, visto que foi a partir dos manuscritos conservados em bibliotecas que foram possíveis as edições impressas que temos hoje. Por causa dessa circulação intensa dos épicos e das tragédias, existem as interpolações, versos inseridos a posteriori. Em relação a Homero, desde a Antiguidade23 seus poemas são como o pomo da discórdia, pois muita tinta foi derramada e muitos autores já debateram tanto sobre sua verossimilhança, quanto pela sua autoria, conteúdo ou forma. Esses estudos se baseiam nos poemas em texto, já cristalizados pela escrita24. O trabalho com as obras de Homero, assim, esbarra com a Questão Homérica. Ela se constitui de uma série de debates acerca da autoria, da veracidade e da unidade dos poemas e muito já se escreveu sobre ela desde o século XVIII. De fato, um Homero parece não ter existido, mas cremos que o fio condutor dos dois poemas, que lhes dão unidade, é a própria ideologia que os perpassa. Não se comprovou ainda a existência da Guerra de Troia: conjectura-se que, se ela ocorreu, provavelmente foi entre 1250-1240 a.C., quando a região de Wilǔsa estava em disputa. No entanto, é fato que a sociedade representada por Homero tem uma materialidade histórica. 23 Robert Aubreton elenca os críticos de Homero que são conhecidos: Demócrito de Abdera, Hípias de Élis, Estesímbroto de Tasos, Hípias de Tasos, Aristóteles, Cameleão, Heráclides Pôntico, Filotas de Cós, Zenódoto de Éfeso, Neoptólemo de Pário, Aristófanes de Bizâncio e Aristarco. 24 É comum a ideia de que Pistístrato, tirano grego, no século VI, mandou que se colocassem por escritos os poemas homéricos, graças aos escritos de Wolf, que, a partir de documentação oriunda da Antiguidade, concluiu isso (WHITMAN, 1965, p. 66). Contudo, o helenista norte-americano Cedric Whitman afirma que essa ideia é impossível, pois “os dois grandes épicos nacionais dos gregos – se ‘nacional’ é colocado para significar panhelênico ou pan-ateniense e, de certo modo, são os dois – nunca poderia ter nascido de um programa cultural engendrado por um tirano [despot]” (WHITMAN, 1965, p. 74). Ele mostra uma série de outras origens para o épico, mostrando que é mais plausível diversas versões tivessem existido 28 Como mostramos em nossa introdução, os poemas homéricos foram compostos no século VIII a.C., mas referem-se ao século XIII a.C. Desse modo, elas imiscuem dois períodos: o Palaciano (XVII-XII a.C.) e o Políade Arcaico (VIII-VII a.C.). A arqueologia tem nos revelado muito acerca dessa constatação e esbarraremos com algumas delas ao longo do nosso estudo de caso. Por exemplo, em Homero há a presença de duas práticas funerárias: a inumação e a incineração. Aquela era mais comum na época dos palácios: as escavações em Cnossos e Micenas revelaram vários túmulos escavados ou com cúpula (thóloi). A prática de incinerar os mortos começa a surgir na época micênica, mas se difunde ao longo do período políade. A metalurgia do ferro não era comum na Grécia na época dos palácios: o bronze era o metal predominante. Já na época de composição dos poemas, ela era largamente praticada. O poeta mistura elementos de um tempo pretérito e de um presente, a fim tanto de ambientar sua obra quanto tornar a sociedade que ele representa familiar à sua audiência. Estrabão (c. 64/63 a.C. – 24 a.C.), geógrafo grego, resgata o debate entre Políbio (203120 a.C.) e Eratóstenes (c. 276/273 a.C. – 194 a.C.) acerca dos poemas homéricos. Este último acredita que o intuito do poeta foi apenas entreter seu público com uma história fantasiosa, desprovendo seus poemas de quaisquer informações verídicas. Políbio reconhece que o relato homérico é imerso em fantasia, mas evidencia “a existência de dados históricos e geográficos corretos” (GABBA, 1986, p. 38). Estrabão se inclina para essa última opinião, reconhecendo que tanto a Ilíada quanto a Odisseia contam eventos que realmente ocorreram, como a guerra de Troia e as viagens de Odisseu, do mesmo modo que afirma serem os dados geográficos e topográficos de uma grande precisão (GABBA, 1986, p. 39). Hoje, nos debruçamos sobre as epopeias de Homero cientes de que veraz é um termo extremo para designar as narrativas homéricas. Verossímil, talvez, à medida que a arqueologia nos forneceu muitos dados os quais mostram que Ilíada e a Odisseia não estão completamente fora nem do tempo em que foram compostas, nem do tempo a que se referem. Não podemos, contudo, negar essa materialidade dos poemas, porque ele possui uma ancoragem social, espacial e temporal. O texto literário é o “objeto de conhecimento que representa alegoricamente o ponto de vista do escritor [autor] a respeito da realidade humana” (ANDRADE, 1998, p. 31 – grifos nossos) e é essa “realidade humana” que vai nos interessar tanto no estudo da poesia épica quanto da trágica, sendo esses dois gêneros discursivos profícuos para o estudo da época que esses textos foram compostos. As epopeias e as tragédias não representam a sociedade 29 palaciana (do período da Guerra de Troia), mas a sociedade políade arcaica e a clássica, em que o aedo e o tragediógrafo compuseram, respectivamente. No caso da tragédia, essas interpolações também existem: a classicista Ruth Scodel traz a ideia de que Ifigênia em Áulis, por exemplo, tem partes que não foram escritas por Eurípides e que muitos especialistas concordam que a fala final do mensageiro não estava na tragédia original (SCODEL, 2011, p. 6). A exclusão do nosso corpus da tragédia Rhesus deveu-se, dentre outros motivos, ao fato de não sabermos se ela realmente foi escrita por esse tragediógrafo. A Antiguidade é um período da História que possui escassez de documentação escrita e isso dificulta o trabalho do historiador da literatura grega. Além disso, esbarramos frequentemente com esses problemas documentais os quais apresentamos acima. Nesse sentido, a Arqueologia nos ajuda bastante ao trazer à luz a cultura material da época, bem como o faz a Filologia, ao tentar recuperar fragmentos perdidos de textos antigos. O papel desse último ramo das Ciências Humanas é particularmente importante no caso de um de nossos textos: o fragmento trágico Alexandre, de Eurípides. Essa tragédia é peculiar nesse estudo, pois apenas fragmentos dela chegaram até nós. Sabemos como esses materiais (em especial o papiro) são perecíveis e, no caso de Alexandre, além da maior parte da tragédia ter se perdido no tempo, muitas palavras e até mesmo a indicação de sujeitos enunciadores desconhecemos: no fragmento 54, por exemplo, o personagem que fala pode ser tanto Páris quanto um mensageiro. No fragmento 62a há várias lacunas no início de alguns versos (vv. 4, 6, 11-14, 16 e 17), devido ao desgaste do tempo nas bordas do papiro, que levou para sempre o que estava escrito ali. No entanto, algumas sentenças são passíveis de serem reconstituídas e especialistas em língua grega constantemente se debruçam sobre esse tipo de documentação para tentar preencher esses vazios causados pela deterioração do material. Como são várias as pessoas que se dedicam a isso, vários podem ser os resultados finais desses preenchimentos. Abaixo, um exemplo de como três estudiosos podem fazer essa reconstituição de maneira diferente: Reconstituição do Reconstituição do argumento Reconstituição do 30 argumento (test. iii, l. 17- (test. iii, l. 17-18) de W. argumento (test. iii, l. 17- 18) de R. A. Coles (1974) Luppe (1977) 18) de Christopher Collard e Martin Cropp (2008) ἐπερωτηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά- ἀπ[ολο]γηθεὶς [δ]ὲ επὶ τοῦ δυνά- ...... ηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά- στου ....ω [.] .... π[1-2]ρειτο καὶ στο[υ] τ[ι]µωρ[ίαν] π[α]ρεῖτο καὶ στου ....ω[.]......[.(.)]ρειτο καὶ [...]. [...]. [...]. Luppe e Coles completam algumas lacunas que Collard e Cropp preferem deixar apenas com a indicação de que havia algo ali que foi perdido. Assim como Collard e Cropp às vezes dão certeza de algo que, em Coles e Luppe, estava indicado como uma suposição (como no caso da palavra dynástou). Desse modo, esse tipo de documentação está sempre em modificação, embora, como David Kovacs reconhece (KOVACS, 2002, p. 48), o assunto do texto em si não se modifique (aqui, no caso do argumento, a ideia da existência de um agón, que é o próprio tema da peça em si, uma vez que ela trata da disputa entre Páris e Diomedes pela vitória nos jogos realizados por Troia). No caso de Alexandre, o argumento25, encontrado apenas posteriormente à descoberta dos restos da tragédia em si, foi essencial para saber do que de fato ela se tratava e para ajudar os pesquisadores a tentar chegar a um consenso sobre essas perdas léxicas e de indicações dos sujeitos enunciadores. Essa tragédia, provavelmente, era a primeira de uma tetralogia (tragédia 1 + tragédia 2 + tragédia 3 + drama satírico) que se constituía dela mesma, de Palamedes (também fragmentária), de As Troianas e de Sísifo (desaparecida). Há questionamentos acerca dessa ideia, mas é inegável que as três tragédias têm muito em comum: a ação de Alexandre começa na montanha (monte Ida), Palamedes se desenrola nas planícies (a cidade em si) e As Troianas é ambientada na praia (acampamento grego), o que denota uma organicidade na composição da trilogia e um movimento progressivo, sobretudo porque a própria Atenas era assim constituída espacialmente (MARISCAL, 2003, p. 214 e p. 444). A helenista Lucía Romero Mariscal trabalha especificamente com Alexandre e suas propostas chamaram nossa atenção pelo fato de ela mostrar como o tema da peça é extremamente influenciado pelos acontecimentos da época, bem como ela conseguir relacionar o personagem principal (Páris) a Alcibíades, cidadão ateniense que ajudou os 25 O argumento é uma anotação feita por estudiosos copistas que antecede a tragédia. Ele a resume e pode dar algumas informações importantes no tocante à sua apresentação. 31 espartanos durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e que possuía ambições tirânicas.26 Ruth Scodel chama atenção ao fato de que essas correlações são comuns, mas que sempre encontram questionamentos. Edith Hall critica muito os autores que procuram relacionar a qualquer custo as tragédias a um acontecimento da época, geralmente relativo à Guerra do Peloponeso, afirmando que elas não representam a vida cotidiana de Atenas, mas um ideal do que ela deveria ser (HALL, 2010, p. 168; 1997, p. 94). Concordamos em parte com essa afirmação: estamos lidando com um discurso, no qual a ideologia dominante está presente, visto que se trata aqui de uma legitimação dos valores ideais que um cidadão deve possuir. No entanto, Eurípides, quando escreve suas peças, não é completamente indiferente aos acontecimentos da sua época, pois, como vimos, todo texto literário representa o ponto de vista do autor, sua visão de mundo. De fato, seria uma imprudência acadêmica querer encaixar cada tragédia num acontecimento específico, forçando uma correspondência falaciosa, mas é possível reconhecer dilemas intrínsecos às discussões acerca da guerra em algumas tragédias: Alexandre, veremos, parece ter conexão latente com o episódio da peste em Atenas, bem como Eurípides parece mostrar com As Troianas sua opinião acerca da invasão de Melos ou Siracusa. O contexto histórico ateniense de Andrômaca (c. 426 a.C.) não é o mesmo que o de Orestes (c. 408 a.C.), pois esta é encenada no fim da Guerra do Peloponeso e aquela no início. Atenas muda muito nesses 27 anos de guerra e graças, sobretudo, ao relato de Tucídides, conhecemos mais pormenorizadamente os acontecimentos da época. Do mesmo modo, algumas tragédias trazem releituras do mito a fim de demonstrar algo específico: Helena traz uma Helena que nunca foi para Troia. Ele toma emprestado de Estesícoro e Heródoto a ideia de Helena ter ficado no Egito durante a Guerra de Troia, em vez de ter estado lá o tempo todo (como acontece em Homero) (SCODEL, 2011, p. 162; HALL, 2010, p. 279). Um eídolon teria sido colocado em Troia e, na verdade, a rainha estaria esperando por seu esposo, Menelau, no Egito. A Guerra de Troia, afinal, teria sido causada por uma ilusão, por nada. Isso reforça o discurso “pacifista” euripidiano: em suas tragédias troianas, geralmente ambientadas num cenário pós-guerra, a ideia de que a guerra traz mais prejuízos e sofrimentos do que benefícios está sempre presente (JOUAN, 2000, p. 5). Esse episódio nos mostra também como o mito pode ter uma atualização ética: Helena deixa de ser a má esposa e passa a ser um modelo para as esposas atenienses da época, pois 26 Vamos aprofundar essas ideias no capítulo seguinte (Páris, o causador de males). 32 traz a ideia da fidelidade ao marido. O próprio Páris deixa de ser um exemplo exclusivamente heroico e se transforma no modelo do que é bárbaro, como defendemos. Isso tem a ver, diretamente, com a própria época em que se compõe: a dicotomia “grego versus bárbaro” no século V a.C. se consolida ao mesmo tempo em que, em Eurípides, entra em crise, sendo necessário reiterar aos cidadãos atenienses a ideia do que é o bárbaro. Não é correto afirmar que as Guerras Greco-Pérsicas foram o marco inicial para se pensar a etnicidade helênica (HALL, 1989, p. VLASSOPOULOS, 2013, p. 163), pois desde Homero, como estamos vendo, isso é verificável. O historiador Kostas Vlassopoulos chama a atenção para esse debate: Acadêmicos modernos têm frequentemente interpretado esse fenômeno [dos troianos serem mostrados praticamente iguais aos gregos] argumentando que no tempo de Homero (o século oitavo) a identidade grega estava ainda incipiente [inchoate] e a justaposição de todos os não-gregos como bárbaros não tomou lugar. Essa é uma interpretação histórica que induz ao erro [misleading] [...]; mas também é uma interpretação literária dos épicos homéricos que induz ao erro. Não devemos subestimar a sofisticação poética desses épicos [...]. Quando ele descreve como o líder dos cários barbarophonoi [sic] “veio para a guerra todo decorado com oureo, como uma garota, bobo que ele era”, o tema da luxúria efeminada bárbara e a desaprovação grega disso está claramente presente (VLASSOPOULOS, 2013, p. 171). Do mesmo modo, não é correto dizer que os gregos só começaram a lutar entre si a partir da Guerra do Peloponeso: muitos gregos lutaram contra gregos já nas Guerras GrecoPérsicas (VLASSOPOULOS, 2013, p. 55). As póleis não eram tão unidas quanto geralmente se pensa que elas são: “os gregos não tinham nenhum centro ou instituição em torno da qual se poderia organizar sua história; as comunidades falantes de grego estavam dispersas por todo o Mediterrâneo e elas nunca alcançaram uma unidade política, econômica ou social” (VLASSOPOULOS, 2007, p. 91). Ainda segundo Kostas Vlassopoulos, o que dava unidade a essas comunidades eram as networks existentes: marinheiros, comerciantes, soldados, intelectuais, todos criavam uma rede de circulação de pessoas, produtos e ideias que unia essas póleis, assemelhando-se à nossa globalização moderna (termo, inclusive, que o historiador usa para se referir a esse fenômeno na Antiguidade grega). Segundo o historiador britânico Frank William Walbank, o que unia os gregos era justamente a religião e a cultura em comum (2002, p. 245). Essa ideologia era compartilhada por todas as póleis, mas elas particularizavam-na. São conhecidas as peculiaridades de Esparta, Atenas, Corinto, e, principalmente, das póleis que ficavam em regiões de apoikíai (colônias): essas regiões eram loci privilegiados de trocas culturais entre a cultura grega e as 33 culturas Outras que rodeavam esses locais (VLASSOPOULOS, 2013, p. 277). O historiador iraniano Irad Malkin mostra como Odisseu pode ser visto como um herói protocolonial, visto que por todos os lugares que ele passa, ele vai deixando sua “marca”, embatendo-se constantemente com Outros no seu caminho de volta para casa (MALKIN, 1998, p. 2). O próprio mar era um ambiente propício ao encontro com alteridades, muitas vezes hostis (LESSA; SOUSA, 2014, p. ). Debruçar-nos sobre as obras literárias a fim de comprovar as descobertas arqueológicas ou o que aconteceu de fato durante a guerra (seja a de Troia, seja a do Peloponeso) ou se os heróis de míticos existiram de verdade é uma veleidade. Contudo, não é impossível relacioná-las com o momento de sua composição. Portanto, é mais profícuo: 1) tentarmos compreender as representações de Páris levando em conta os elementos de ancoragem histórica e social da obra, relacionando texto com seus contextos intra e extralinguísticos; e 2) buscarmos os modos pelos quais aquela sociedade funcionava e as representações sociais que a legitimavam e mantinham as suas fronteiras étnicas através da análise das práticas discursivas. O historiador italiano Emilio Gabba nos mostra elucidativamente isso em relação a Homero: Em qualquer caso, e contemplando separadamente a investigação sobre os poemas e a análise da realidade histórica dos feitos descritos, o aproveitamento histórico da obra homérica será seguro e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos como família, vida social e política, instituições e normas, princípios éticos, comportamento religioso, cultura material, ou fatores econômicos. Os símiles entre os poemas são, em suma, particularmente reveladores (GABBA, 1986, p. 45 – grifos nossos). Os costumes apresentados na Ilíada, na Odisseia e nas tragédias são modelares para aqueles que ouvem os poemas ou assistem às encenações: todo o modo de conduta social dos heróis é trabalhado de modo a servir como exemplo para os kaloì kaì agathoí, ou seja, os “belos e bons”, os aristocratas. Esses homens eram o público do aedo (CARLIER, 2008, p. 15; AUBRETON, 1968, p. 138) e, mais tarde, serão os dos trágicos. O aedo cantava aquilo que o público queria ouvir. Temos exemplo disso até mesmo na própria Odisseia, pois, quando a canção de Demódoco, aedo da Feácia, não agrada mais, mandam-lhe parar de tocar: [...] Δηµόδοκος δ᾽ ἤδη σχεθέτω φόρµιγγα λίγειαν: οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόµενος τάδ᾽ ἀείδει. ἐξ οὗ δορπέοµέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός, ἐκ τοῦ δ᾽ οὔ πω παύσατ᾽ ὀιζυροῖο γόοιο ὁ ξεῖνος: µάλα πού µιν ἄχος φρένας ἀµφιβέβηκεν. 34 ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ὁ µὲν σχεθέτω, ἵν᾽ ὁµῶς τερπώµεθα πάντες, ξεινοδόκοι καὶ ξεῖνος, ἐπεὶ πολὺ κάλλιον οὕτως: [...] não mais ressoe a cítara o cantor Demódoco, pois sua poesia não agrada a todo ouvinte. Assim que nos pusemos a cear e o aedo começou, o hóspede não mais reteve o pranto, a angústia circum-envolveu seu pericárdio. Demódoco, já basta! Que anfitriões e o hóspede possam unir-se na alegria! (Odisseia VIII, vv. 537-543). Os trágicos não tinham uma liberdade total para encenar o que quisessem: eles escreviam as suas tragédias, as quais passavam por um crivo antes de serem encenadas (SCODEL, 2011, p. 43). Além disso, havia os juízes responsáveis por decidir qual peça merecia o primeiro prêmio. Aquela que ficava em segundo ou que nem ganhava era uma peça que não foi do gosto dos jurados27. Quando vamos estudar as tragédias, é importante termos em mente quais peças ganharam, pois isso significa que elas serviram mais ao modelo ideológico políade. No caso de Eurípides, apenas duas tragédias suas ganharam o primeiro prêmio (Ifigênia em Áulis e Hipólito); Orestes ganhou o segundo. Na realidade, sua fama foi póstuma, pois seu estilo de composição influenciou bastante as gerações posteriores de tragediógrafos: Sêneca, por exemplo, para compor sua As Troianas, inspirou-se n’As Troianas e na Hécuba de Eurípides. Além disso, suas tragédias foram bastante reencenadas em períodos posteriores, nos quais Atenas já tinha perdido toda a sua glória e esplendor (SCODEL, 2011, p. 43). No teatro, era a pólis que estava sendo representada, desde os ritos que precediam a encenação trágica28 (inscrita num espaço religioso, pois eram realizadas dentro das Grandes Dionisíacas e das Leneias) até todo o espaço do odéon (incluindo o palco, através das encenações que colocavam em destaque as instituições e valores políades, e os assentos do público (theátron), que eram organizados de modo tal que os cidadãos podiam não só enxergar uns aos outros como também podiam reconhecer, através do lugar que se ocupava, aqueles mais proeminentes dentro da pólis ateniense). É a síntese da ideia da publicidade das ações, que existe desde a poesia épica e atinge seu ápice durante a democracia: uma publicidade direcionada aos interesses políades. 27 Sobre detalhes desse julgamento, ver o tópico Finances and Contests, do capítulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy, de Ruth Scodel (consultar Referências Bibliográficas). 28 Para mais detalhes sobre os ritos que precediam as competições trágicas, ver o tópico The Festivals, no capítulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy, de Ruth Scodel (consultar Referências Bibliográficas). 35 No entanto, é inviável dimensionar a opinião dos sujeitos receptores: não podemos especular sobre a recepção das peças em relação a todos os espectadores, ainda mais quando temos em mente que essas peças podiam circular pelas outras póleis e regiões de colonização, as quais possuíam um público bem mais heterogêneo do que o ateniense (HALL, 2006, p. 29). O mesmo acontece com as epopeias de Homero: não temos como precisar a recepção dos poemas, que também tinham uma audiência bem heterogênea. Desse modo, cabe a nós, historiadores, observar qual o efeito pretendido sobre os sujeitos destinatários ao se compor esses textos. A Ilíada, único poema homérico que trata de Páris, nos conta a história da ira de Aquiles (ROMILLY, s/d, p. 18). Por causa dessa temática comum aos Cantos e da proto-panhelenicidade do poema (MITCHELL, 2007, p. 54), cremos que a Ilíada tem uma unidade intrínseca. Contudo, essa opinião não é uma unanimidade: no tocante aos questionamentos acerca da forma do poema: havia duas escolas filológicas, a de Alexandria e a de Pérgamo (surgidas por volta do século IV a.C.), as quais possuíam posturas divergentes acerca das epopeias de Homero. A primeira praticava a atetese: tudo o que se cria não pertencer à Ilíada original se suprimia. Já a segunda preferia a exegese, ou seja, a crítica do texto, sem omitir versos. Em 1795, F. A. Wolf publicou seu Prolegomena ad Homerum, o qual deu início à “questão homérica” e a uma série de trabalhos denominados analistas: neles, procura-se analisar as epopeias de Homero visando criticar filologicamente esses textos, apontando para as contradições, as dissonâncias entre Ilíada e Odisseia e os elementos de pouca verossimilhança na obra. Em contraponto a essas teses, há os unitaristas, que defendem a unidade dos poemas. Ainda existem os neo-analistas: eles não desconsideram todo o debate acerca de algumas incongruências das epopeias, mas creem que haja uma certa homogeneidade das obras, oriundas de uma tradição anterior ao poeta, o qual, com sua genialidade, teria reunido e composto um texto único. Para Robert Aubreton e Gregory Nagy os poemas homéricos possuem uma unidade intrínseca porque derivam dessa tradição épica precedente. A própria Telemáquia (Cantos IIV da Odisseia), as narrativas de retorno dos nóstoi, os relatos de batalhas singulares entre heróis são temas anteriores à composição da Ilíada e da Odisseia. Homero, ou quem quer que tenha composto essas duas epopeias, conhecia tais histórias e se baseou nelas para compor as suas próprias. 36 O que chama atenção é o que configura o sentido do discurso do aedo: as noções de alḗtheia e lḗthē (“esquecimento”). A função do poeta é rememorar os feitos de deuses e homens, não deixando que se esqueça deles. Para a sociedade, isso é fulcral: o homem morre fisicamente, mas sua memória é imortal se ele assim merecer. Para ganhar essa glória imorredoura, ele precisa ser reconhecido pela sua própria sociedade e, assim, ser cantado por gerações. Ele precisa agir em conformidade com o que aquela sociedade espera de um herói. Dentre alguns valores, ressaltamos alguns com os quais vamos trabalhar mais adiante: a aretḗ (excelência), a timḗ (honra), kléos/kŷdos (glória), kalòs thánatos (bela morte) e alkḗ/andreía (coragem). Eurípides é influenciado por essa tradição poética homérica e esses valores também perpassam as suas obras: o herói homérico não se diferencia tanto do herói trágico, pois há muita tenuidade entre eles, como veremos. Contudo, na tragédia, a ideia da falha, do erro, hamartía, é muito mais forte, embora na epopeia exista uma ideia semelhante, a qual traz à tona um questionamento sobre a infalibilidade do herói: a átē (perdição), que tem estreita ligação com desígnios divinos. A tragédia traz o herói falho e as situações que o envolvem servem de catarse para o público: é assistindo àqueles personagens que o cidadão políade toma consciência dos problemas da sociedade e de si mesmo. Ao mesmo tempo, a tragédia implica em permanência e mudança: ela legitima os valores (pan-)helênicos e os critica, a fim de estimular essa mudança e, desse modo, manter viva a sociedade. Além da forma29, um dos pontos que tornam a tragédia um gênero discursivo (visto que há semelhanças entre uma tragédia e outra) é a utilização do material mítico cultural. Essas histórias se passavam em “um passado que já era remoto para a audiência da Atenas antiga” (SCODEL, 2011, p. 3). Para os gregos, os heróis e deuses existiram de verdade: eram parte de sua história. Aquiles, Páris ou Heitor existiram para eles. Como vimos, o mesmo mito é contado e recontado nos palcos, mas o que vai diferenciar os tragediógrafos de Homero e, por sua vez, um tragediógrafo do outro, é: 1) o modo como o mito é contado (figurino, máscaras, diálogos entre os personagens); 2) as modificações no mito que os autores fazem, a fim de servirem a seus propósitos; 3) as atualizações éticas desses mitos e 4) as alusões aos acontecimentos contemporâneos. 29 “A tragédia era um tipo específico de drama. Era encenada por atores (em Atenas, não mais que três) e um coro de doze, depois quinze, que cantavam e dançavam, auxiliados por um tocador de aulós, um instrumento de sopro [reeded wind instrument]. Na maioria das partes, os atores usavam um verso falado, principalmente o trimetro iâmbico, ou recitativo, enquanto os coros cantavam entre cenas, mas o líder do coro poderia falar pelo grupo durante as cenas dos atores, enquanto os atores poderiam cantar, ambos em resposta ao coro e em monódio [both in responsion with the chorus and in monody]” (SCODEL, 2011, p. 3 – traduzido do original em inglês por Renata Cardoso de Sousa e Bruna Moraes da Silva). 37 Esse passado mítico é um dos elementos que constituem a fronteira étnica helênica. O antropólogo Christian Karner chama atenção para o fato de que a etnicidade é “amplamente associada à cultura, descendência, memória/história coletivas e língua” (KARNER, 2007, p. 17). Ele retoma a ideia de ethnie (etnia) proposta por John Hutchinson e Anthony Smith, que seria um grupo restrito a um determinado espaço que se designa sob um etnômio, com mitos e elementos culturais em comum, uma memória histórica compartilhada e um senso de solidariedade entre os seus membros (KARNER, 2007, p. 18). Essa ideia dialoga bastante com a noção de grupo étnico de Fredrik Barth, a qual delineamos em nossa Introdução. Portanto, os gregos se constituíam num grupo étnico que utilizava o discurso como meio de (re)definir suas fronteiras étnicas e, desse modo, garantir a sua existência. No âmbito textual, Homero é o responsável por tentar fixar essas fronteiras: ele traz à memória as histórias dos heróis do passado e dos deuses do presente, bem como ressalta a importância dos ancestrais, visto que um indivíduo é sempre reconhecido por sua filiação. Aquiles é o Pélida (filho de Peleu), Diomedes é o Tidida (filho de Tideu) e mesmo Zeus, um deus, tem como um dos epítetos “Crônida” (filho de Cronos). Eurípides apresenta constantemente o tema da destruição da linhagem familiar como um grande problema não somente para o indivíduo, mas para a comunidade: em nosso corpus documental, Andrômaca, As Troianas, Hécuba, Ifigênia em Áulis e Orestes trazem episódios de desmantelamento da família. A primeira tragédia mostra o sofrimento de Andrômaca ao tentar proteger seu filho da fúria de Hermíone, sendo que a personagem mesma já sofrera com a morte de Astýanax, seu primogênito, que é abordada em As Troianas. A filha de Helena, por sua vez, amargura-se por não conseguir ter um filho com Neoptólemo, seu marido: sem filhos não há herdeiros de bens materiais e imateriais, como a memória da linhagem. É como se o nome da família morresse na memória social, pois os filhos são responsáveis por mantê-la viva. Na Ilíada, um dos maiores medos expressos é o de perder o filho na guerra e não ter a quem deixar a herança ou ter que reparti-la com parentes distantes (V, vv. 152-158). Em As Troianas, além do sofrimento de Andrômaca vemos o de Hécuba, que se desespera por Polixena ter sido dada em sacrifício. A rainha de Troia sofre também em Hécuba a perda do filho, Polidoro, morto brutalmente pelo trácio sedento de riquezas a quem ele estava confiado. Ifigênia se dará ao sacrifício, assim como Polixena, em Ifigênia em Áulis, levando ao desespero sua mãe, Clitemnestra. Embora a preferência seja por filhos do sexo masculino, eram as filhas as responsáveis pelos funerais dos mortos: as mulheres 38 exerciam um papel fundamental no enterro dos entes queridos (HALL, 1997, p. 106). As tragédias mesmas nos mostram isso, como é o caso de Antígona, de Sófocles: o tema central da peça é o esforço da personagem homônima para conseguir dar um funeral adequado ao irmão que, por ter assassinado o próprio irmão, é condenado a ficar aos corvos, sem enterro. Agamemnon, pai de Ifigênia, amaldiçoa Páris por ter causado toda a situação de sua família: não fosse ele ter que partir para Troia para resgatar a cunhada, a filha estaria a salvo. Contudo, a sorte do rei de Micenas está traçada de uma vez por todas, pois sua mulher o assassina no retorno da guerra. Com a família desmantelada, Orestes, filho do casal, desencadeará uma vingança desmesurada: mata a mãe e tenta matar Helena em Orestes, atraindo para si a fúria das Erínias, divindades responsáveis por atormentar aqueles que cometiam atos indignos, sobretudo o assassinato de familiares. Edith Hall mostra como “a vida familiar de um cidadão era um componente da sua identidade política” (HALL, 1997, p. 104): público e privado se misturavam. A experiência social é fundamental para que um indivíduo se sinta pertencente a um grupo étnico e ajude a manter essas fronteiras. Desse modo, os espaços públicos de convivência (o banquete, a ágora, o templo, o ginásio, o teatro) são loci importantes dentro do grupo étnico helênico, bem como a publicidade das ações: um grego é um homem essencialmente público. Ele está exposto aos olhares do seus ísoi (iguais) e estes lhe julgam conforme seus atos: o homem grego não é somente o homem do ser, mas também é o homem do fazer. Para ser social, o homem grego deveria se instruir: a educação tinha um papel muito importante dentro da Hélade. Devia-se conhecer os códigos de conduta e, principalmente, praticá-los. Segundo a filóloga Carmem Soares, “a tragédia é um gênero literário regido por uma poética didático-hedonista” (SOARES, 1999, p. 16), ou seja, ao mesmo tempo em que gera prazer e entretenimento, educa. Essa não é uma característica exclusiva dela: a poética didático-hedonista advém da poesia épica, que contava, com deleite, as façanhas dos heróis e dos deuses. Sua função é imortalizar esses seres extraordinários, conservando suas memórias para as gerações vindouras tomarem-nos de exemplo. Os mitos, as histórias desses heróis do passado, servem de advertência aos vivos, àqueles que as ouvem. A epopeia e a tragédia compilam toda uma tradição mítica e o mito, por excelência, tem justamente a função de “revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria” (ELIADE, 1972, p. 13 – grifos nossos). Ele “possui o espantoso poder de engendrar as noções fundamentais da ciência e as principais formas da 39 cultura” (DETIENNE, 2008, p. 34): sua difusão constitui uma prática de paideía. Assim, os poemas homéricos possuem uma função paidêutica (VIEIRA, 2002, p. 14), bem como as tragédias de Eurípides. Paideía é um termo que aparece pela primeira vez na documentação no século V 30 a.C. , em uma tragédia de Ésquilo (JAEGER, 2010, p. 335). Traduzir esse termo é muito difícil: literalmente, significa criação de meninos (paîs significa “criança”); comumente, traduz-se como educação, mas esse termo não contempla todo o significado da paideía (MOSSÉ, 2004, p. 107-108): ela se constitui na transmissão de saberes e práticas helênicas. Ela “acaba por englobar o conjunto de todas as exigências ideais, físicas e espirituais, que formam a kalokagathia, no sentido de uma formação espiritual consciente” (JAEGER, 2010, p. 335). A paideía se configura num aspecto ideológico da sociedade, como nos explica o historiador Fábio de Souza Lessa: Por ideologia, entendemos um conjunto de representações dos valores éticos e estéticos que norteiam o comportamento social. No caso da sociedade ateniense, os valores estéticos estão representados pela proporção, justa medida, equilíbrio, enquanto os valores éticos, pela paideía (educação, cultura) – falar a língua grega, comer o pão, beber vinho misturado com água, cultuar os deuses, lutar na primeira fila de combate, obediência às leis, cuidar dos pais e fazer os seus funerais, manter o fogo sagrado, ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida política (LESSA, 2010, p. 22). Assim, preferimos explicar aqui o sentido de paideía e deixar a palavra sem tradução para o português: ela se constitui da transmissão de saberes e práticas culturais. Os poemas são loci de paideía, porque contam mitos: eles trazem uma série de modos de conduta caros à sociedade helênica, que vão servir para formar o kalòs kagathós e, no século V a.C., o politḗs (cidadão). Esses homens vão se inspirar nos heróis e nas suas façanhas, nos seus atos, que são passados às gerações futuras por intermédio da poesia, seja ela épica, lírica ou trágica: [...] para que a honra heroica permaneça viva no seio de uma civilização, para que todo o sistema de valores permaneça marcado pelo seu selo [o do herói], é preciso que a função poética, mais do que objeto de divertimento, tenha conservado um papel de educação e formação, que por ela e nela se transmita, se ensine, se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes, crenças, atitudes, valores de que é feita uma cultura. (...) a epopeia desempenha o papel de paideía, exaltando os heróis exemplares, assim como os gêneros literários ‘puros’ como o romance, a autobiografia, o diário íntimo o fazem hoje (VERNANT, 1978, p. 42 – grifos nossos). 30 Jaeger ainda sublinha que os ideais educativos da paideía que vão ser desenvolvidos no século V a.C. se baseiam em práticas educativas muito anteriores (JAEGER, 2010, p. 1). 40 Esses heróis seguem esse modo de conduta social, que é expresso pelas suas ações. Quando eles se desviam desse código, são submetidos a uma vergonha social ou (principalmente na tragédia) são vítimas de reviravoltas às vezes incontornáveis em suas vidas. Páris, como veremos, erra ao fugir da batalha, mas, quando acusado pelo seu irmão de ser covarde, retorna, para recuperar sua honra. Já Édipo, herói da trilogia tebana de Sófocles, mancha a honra da sua família ao casar-se com sua própria mãe e dessa hamartía desencadeiam-se uma série de episódios fatídicos que culminam na desgraça de sua linhagem. Seu destino mesmo já estava (mal) traçado quando seu pai se apaixonou por um homem: a pederastia era uma prática educacional comum na Grécia, na qual um erastés (mais velho) ficava responsável por iniciar um erómenos (mais novo) na vida adulta. Contudo, relacionarse sexualmente com um homem era vetado. Essas normas ajudam a reforçar essas fronteiras étnicas helênicas, que são constantemente abaladas pelo contato com os Outros. Enquanto em Homero essas fronteiras estão sendo formadas, em Eurípides elas estão turvas. Em Andrômaca, As Troianas, Hécuba, Ifigênia em Áulis e Orestes, vemos que o grego é passível de se barbarizar, sobretudo quando esse grego é um espartano. Na primeira tragédia, Hermíone (uma espartana) tem atitudes controversas e é mostrada usando muito ouro (v. 147), mas não chega a ser comparada a uma bárbara. Ela ainda é porta-voz de valores helênicos, reforçando a ideia de que Andrômaca é a bárbara (v. 261). Ela afirma que “Não há nenhum Heitor aqui, / nenhum Príamo ou seu ouro: essa é uma cidade grega” [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε, / οὐ Πρίαµος οὐδὲ χρυσός, ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv. 168-169). Ela ainda afirma que: “Esse é o modo como os bárbaros são:/ pai dorme com filha, filho com mãe / e irmã com irmão, gente próxima / assassina gente próxima e não tem lei para prevenir isso” [τοιοῦτον πᾶν τὸ βάρβαρον γένος: / πατήρ τε θυγατρὶ παῖς τε µητρὶ µείγνυται / κόρη τ᾽ ἀδελφῷ, διὰ φόνου δ᾽ οἱ φίλτατοι / χωροῦσι, καὶ τῶνδ᾽ οὐδὲν ἐξείργει νόµος] (vv. 173-176). Percebamos a caracterização do bárbaro por ela nessa passagem: ela critica aqueles que mantêm relações sexuais dentro do núcleo familiar (pai, filho, filha, mãe, irmãos) e o assassinato entre phíltatoi31. O tema da trilogia tebana, de Sófocles, gira em torno disso: Édipo se casa com a mãe e seus netos se matam entre si. É interessante o resgate desse tema, 31 Essa palavra é de difícil tradução. Em sua raiz está phílos (amigo) e o Le Grand Bailly indica esse vocábulo para que possamos ter uma tradução de phíltatos. Contudo, essas palavras não têm o mesmo significado: há uma razão para Eurípides escolher phíltatos em vez de phílos. Contudo, quando traduz Phíltatos (nome próprio), coloca que é, literalmente, “bem-amado” [bien-aimé] (BAILLY, 2000, p. 2083). Cremos que “gente próxima” é o que mais se aproxima do sentido dessa palavra, visto que phílos designa essa ideia: são pessoas que se conhecem, que são próximas, que se assassinam. 41 pois Tebas era inimiga de Atenas, sendo a pólis que teria começado a Guerra do Peloponeso ao invadir Plateia, região de domínio ateniense. Não podemos afirmar que Eurípides tinha isso em mente quando compôs Andrômaca, pois não podemos ir além do que a documentação nos mostra, mas mostrar como sendo algo bárbaro hamartíai de heróis tebanos é, no mínimo, curioso. Menelau, nessa peça, é quem recebe as críticas mais duras, vindas de Peleu, durante um agón entre os dois personagens: o ancião o critica por ter deixado um frígio levar sua esposa de sua própria casa (vv. 590-609) e afirma que os espartanos são só bons de guerra mesmo, que, em outras matérias, são inferiores (vv. 724-726). O homem espartano é inferiorizado. Em Orestes, Menelau já é comparado a um bárbaro: Tíndaro o acusa de ter se tornado um bárbaro por ter estado entre bárbaros (v. 485). Em Andrômaca, os espartanos ainda não são diretamente “barbarizados”, como acontece em Orestes; aquela tragédia foi encenada praticamente no início da Guerra do Peloponeso, enquanto esta foi no final, quando as inimizades se acirraram de tal maneira que os espartanos foram, paulatinamente, sendo deixados de fora da fronteira étnica helênica, tornando-se Outros. Ainda em Orestes, Pílades, Electra e seu irmão são capazes de ações condenáveis em nome da vingança. Em Ifigênia em Áulis, vemos Agamemnon, um grego, levar sua filha ao sacrifício e em As Troianas e Hécuba os gregos se comportam de maneira condenável em relação às cativas troianas, piorando a situação deplorável em que já se encontram com o fim de Troia. As rivalidades da Guerra do Peloponeso e a temática vencedor/perdedor são expressas na produção textual da época: assim como hoje em dia é impossível ficar indiferente aos acontecimentos que nos cercam, Eurípides também não conseguiu fazê-lo em sua época. A obras literária em si é um “artefato fonomorfossintático; é universo semântico; é campo sintomatológico da história, do social e da consciência; numa palavra: é presentificação imagética do homem em ação” (ANDRADE, 1998, p. 15). Embora ambientadas em Troia, essas tragédias traziam temas caros à realidade ateniense. São comuns peças que se desenrolam em lugares estrangeiros (as quais Edith Hall chama de “roteiros de deslocamento” [displacement plots]), onde a etnicidade e os direitos de cidadania são contestados (HALL, 1997, p. 98). Os troianos, como vimos, eram um exemplo de barbárie, mas, frequentemente, eram representados como vítimas dos gregos, ganhando uma certa “simpatia” de Eurípides. Hall acredita que “se a representação trágica da Guerra de Troia era para tornar os espartanos ‘bárbaros’ e assimilá-los ao arquétipo do persa arrogante, 42 então os ‘atenienses’ desse mundo mítico, contudo paradoxalmente, pode ser a vítima troiana da agressão espartana” (HALL, 1989, p. 214). A helenista Casey Dué coloca que a representação dos troianos dessa maneira “convida a audiência a transcender as fronteiras étnicas e políticas que dividem as nações na guerra. Desse modo, os atenienses podem explorar suas próprias tristezas testemunhando o sofrimento dos outros, inclusive de suas próprias vítimas” (DUÉ, 2006, p. 116). Não podemos negar que a exposição do sofrimento alheio é um apelativo para chamar a atenção acerca do próprio sofrimento ateniense: a viúva, os órfãos, os prisioneiros de guerra são categorias que podem ser compartilhadas a qualquer momento pelos atenienses, visto que se está em uma época de guerra. Do momento que ele mostra os malefícios da guerra através desses personagens, ele está colocando sua visão acerca dos prejuízos desencadeados por ela, bem como questionando a legitimidade dela. Embora não participasse efusivamente da política como Ésquilo e Sófocles, ele era uma pessoa de opinião na época. Se ele pudesse mostra-la nos palcos, um dos lugares para onde os olhares da pólis se voltavam, ele poderia convidar as pessoas que o assistiam a questionar também essa guerra. Contudo, acreditamos que a intenção não era “universalizar” o sofrimento nem colocar o troiano como o ateniense em si, mas mostrar que o espartano é tão condenável que até o bárbaro era melhor. Afirmamos isso porque o troiano, embora visto dessa maneira piedosa, não deixava de ser bárbaro, devido à sua caracterização. As fronteiras étnicas, como vimos, são borradas em Eurípides, mas não é por caracterizar “melhor” o troiano, mas por assimilar o espartano (grego) a ele, o exemplo de bárbaro. Além disso, como defendemos aqui, essa caracterização do troiano (que é compartilhada com o persa, o egípcio etc.) já vem dos poemas homéricos. Geralmente, quando falamos de identidade/alteridade em Homero, pensamos primeiramente na Odisseia. Esse poema é marcado pelo embate com Outros, visto que Odisseu viaja por terras longínquas e, às vezes, hostis. É emblemático o encontro desse herói com o Cíclope, personagem-síntese daquilo que é não ser grego. Odisseu, enquanto “aedo de si mesmo”, conta o que viu quando chegou à terra dos Cíclopes: ἔθνα δ'ανὴρ ἐνιαυε πελώριος, ὅς ῥα τὰ µῆλα οἶος ποιµαίνεσκεν ἀπόπροθεν· οὐδὲ µετ' ἄλλους πωλεῖτ', ἀλλ' ἀπάνευθεν ἐὼν ἀθεµίστια ᾔδη. καὶ γᾶρ θαῦµ' ἐτἐτυκτο πελώριον, οὐδὲ ἐῴκει ἀνδρί γε σιτοφάγῳ, ἀλλὰ ῥίῳ ὑλήεντι ὑψηλῶν ὀρέων, ὅ τε φαίνεται οἶον ἀπ'ἄλλων. 43 dormia um ente gigantesco, que pascia a rês sozinho nos confins. O ser longínquo não convivia com ninguém, sem lei, um ímpio. Dissímile de um homem comedor de pão, o monstro colossal mais parecia o pico da cordilheira infinda, sem vizinho à vista. (HOMERO. Odisseia IX, vv. 187-192). Polifemo, é descrito como um monstro: é “gigantesco”, “colossal” (pelṓrios), parece o “pico da cordilheira” (hypsēlôn oréōn). Ele não parece um “homem comedor de pão” (andrí ge sitophágo): vive sozinho e em estado de athemistía, sem (a-) leis (thémistes). Os gregos se definem pela publicidade de seus atos: o homem grego é, idealmente, um homem público. Todos veem o que todos fazem e todos vivem pela manutenção de sua comunidade. Do mesmo modo, a lei, nómos, é o que diferencia o homem do animal, que vive no âmbito da phýsis, natureza, e do ágrios, selvagem. Odisseu adentra a caverna de Polifemo com seus companheiros e eles começam a comer seu queijo (demonstrando, até, pouca educação, visto que os hóspedes devem esperar que o anfitrião lhes ofereça algo para comer). Quando o Cíclope chega, Odisseu lhe faz uma súplica, a qual é respondida com aspereza: νήπιός εἰς, ὦ ξεῖν', ἢ τηλόθεν εἰλήλουθας, ὅς µε θεοὺς κέλεαι ἢ δειδίµεν ἢ αλέασθαι· οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν οὐδὲ θεῶν µακάπων, ἐπεὶ ἦ πολὺ φέρτεροί εἰµεν· οὐδ' ἂν ἐγὼ Διὸς ἔχθος ἀλεθάµενος πεφιδοίµην οὔτε σεῦ οὔθ' ἑταρων, εἰ µὴ θυµός µε κελεύοι. Ou és um imbecil ou vens de longe, estranho, rogando que eu me dobre aos deuses ou que evite-os, pois Zeus porta-broquel não chega a preocupar Cíclopes, nem um outro olímpico: somos bem mais fortes. Não te acolheria, nem teus sócios, para poupar-me da ira do Cronida. O cor é meu tutor. (HOMERO. Odisseia IX, vv. 273-278). O Cíclope, aqui, desliza duas vezes: primeiramente, nega uma súplica. Isso gera um estado de átē: “a recusa [da súplica] resulta em perdição” (MALTA, 2006, p. 61), sendo que “a oposição plural-singular, litaí-áte, ‘súplicas-perdição’, que parece indicar uma significativa oposição entre coletividade, entendimento e reconhecimento, de um lado, e isolamento, 44 teimosia e cegueira, de outro [devemos destacar]” (MALTA, 2006, p. 58-9). Essa súplica é a do xénos, aquele que se hospeda em um lugar. Assim, em segundo lugar, ele nega um costume que, factualmente, não é somente grego (embora no plano do discurso ele tenha sido “exclusivizado” pelos helenos ao longo do tempo), mas é difundido por todo o Mediterrâneo: a hospitalidade (xénia), que é [...] um código de conduta, uma convenção não escrita que atravessava as fronteiras do Mediterrâneo oriental. Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida, em que havia troca de presentes e festivais, e sua origem estava na xenuia da Idade do Bronze tardia [...] que surge nas tábuas de Linear B [...]. A xenuia governaria, na verdade, o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros aos palácios do Peloponeso no século XIII a.C. [suposto século da ocorrência da guerra de Troia] (HUGHES, 2009, p. 188). Páris também transgride a xénia, configurando-se num Outro. Tem-se admitido que os troianos são o Outro estrangeiro: conjectura-se que Troia, na verdade, nunca fez parte da Hélade e muitos autores se referem aos troianos como estrangeiros como se fosse algo óbvio e natural. Claude Mossé mostra que a Ilíada “conserva a memória de uma grande expedição dos Helenos da Europa [των Ελλήνων της Ευρώπης] contra Troia” (MOSSÉ, 2000, p. 10), embora “helenos” designe apenas uma parte da Grécia em Homero (HALL, 2002, p. 129) e o termo “Europa” tivesse sido cunhado a posteriori (MITCHELL, 2007, p. 20). Hillary Mackie crê que essa diferenciação nesses termos se dá porque eles representam duas culturas diferentes no plano linguístico (uma de elogio e outra de acusação). Kostas Vlassopoulos, ao analisar a glocalização do não-grego na Grécia, ou seja, os modos pelos quais os gregos “adotam e adaptam”32 repertórios estrangeiros, ele fala que em Homero já acontecia isso, visto que os heróis troianos eram estrangeiros [foreigns] (VLASSOPOULOS, 2013, p. 167). Para justificar essa ideia, o historiador afirma que [...] no lado aqueu do Catálogo das Naus enumera um sem-número de comunidades de todo o mundo grego que manda contingentes a Troia sob a liderança de Agamemnon, enquanto o catálogo dos aliados troianos enumera várias pessoas falando outras linguagens (allothrooi) [sic], que mandam suas tropas para ajudar os troianos, incluindo os lícios, os cários, os trácios, os paflagônios, os frígios, os mísios e os peônios (VLASSOPOULOS, 2013, p. 171). 32 Essa é uma expressão muito utilizada por Kostas Vlassopoulos ao longo de seu livro. 45 Os cários são denominados barbaróphōnos33 (Ilíada II, v. 867), não os troianos. “Mas outras são as línguas dos outros homens que se espalham ao longe” [ἄλλη δ’ ἄλλων γλῶσσα πολυσπερέων ἀνθρώπων] (II, v. 804) no exército troiano, mas isso não significa que o troiano esteja falando outra língua: seus aliados eram de regiões não-gregas. Discordamos dessas posições: não há, na Ilíada, nenhuma referência ao caráter estrangeiro de Troia. Contudo, também não é adequado falarmos que os troianos eram iguais aos gregos, como ressalta Jacqueline de Romilly em seu Pourquoi la Grèce?: “entre os dois [troianos e aqueus], como Zeus mesmo, Homero tem a balança igual. [...] Homero ignora tal oposição [Europa vesus Ásia]” (ROMILLY, 2013, p. 38 e 39). Ela afirma que Homero não os diferencia porque se tratam de humanos guerreando, e os valores da humanidade se sobrepõem aos do grupo étnico: “ele não marca as diferenças entre indivíduos e, tampouco, entre os povos. Do lado troiano como do lado aqueu, são ‘mortais’ que se afrontam” (ROMILLY, 2013, p. 37). Antonio Mario Battegazzore mostra que “entre gregos e troianos estão faltando elementos, mesmo que mínimos, de distinção: a alimentação e o vestiário, bem como os princípios morais, são idênticos para todos; os cultos, as habitações, o modo de combater valem para um como para outro” (1996, p. 17). Ele concorda com Edith Hall ao dizer que não existe uma distinção entre Europa e Ásia na Ilíada (HALL, 1989, p. 39; BATTEGAZZORE, 1996, p. 17). De fato, Homero não traz esses termos geográficos, mas não podemos dizer que não exista diferenciação alguma, como John Heath corrobora: Os troianos de Homero são notoriamente difíceis de ser distinguidos dos gregos: eles cultuam os mesmos deuses, lutam com táticas idênticas e compartilham formas equivalentes de habitação, comida, vestimenta, funerais e parentesco. Mesmo as diferenças – poligamia oriental, por exemplo – são minimizadas. Os principais protagonistas da guerra, um da Europa e outro da Ásia, até falam a mesma língua. Os troianos não aparentam, ao menos para muitos leitores modernos, mostrar os principais defeitos da psicologia do bárbaro que veio a caracterizá-los no quinto século: tirania, luxúria imoderada, emocionalismo irrestrito, afeminação, crueldade e servilidade. De fato, Homero é frequentemente admirado hoje em dia por sua descrição equânime de gregos e não-gregos, especialmente quando os épicos são comparados com a literatura ateniense da época pós-Guerras Greco-Pérsicas. Essa interpretação positiva dos troianos era uma exceção na antiguidade, contudo, e ainda há críticos que veem um retrato negativo dos troianos como uma raça na Ilíada. 33 Ele é composto de duas palavras: o substantivo phōnḗ, “voz”, e a onomatopeia bar bar, analógico ao nosso “blá blá”, que designa uma linguagem incompreensível. Assim, o barbaróphōnos é aquele de quem não se compreende a fala. Desse modo, se dos cários só se ouve “bar bar”, isso significa que eles não falam o grego, ou o falam mal (JANSE, 2002, p. 334-5). Como a língua é um dos traços marcantes de uma cultura (AUGÉ, 1998, p. 24-5), desconhecer o grego significa desconhecer a cultura grega: o termo barbarophónos acaba designando um povo estrangeiro. No sumério e no babilônio já existia uma palavra que utiliza esse recurso onomatopaico para definir o estrangeiro: barbaru. J. Porkony coloca que algo semelhante ocorre no latim, com o termo balbutio, e no inglês, com o termo baby: são palavras compostas de sons repetitivos (HALL, 1989, p. 4, n. 5). 46 Essa leitura está errada, eu acredito, e entende mal tanto as convenções épicas e as maiores preocupações poéticas de Homero (HEATH, 2005, p. 531). Os troianos são regidos pelo mesmo código de conduta dos gregos; contudo, eles fazem um uso diferente de alguns aspectos desde. Se um aspecto existe em Homero (como a poligamia de Príamo, a maioria dos arqueiros no exército troiano etc.), ele não deve ser jamais minimizado: tem um porquê de o poeta colocar aquilo ali e simples explicações, como “é para preencher a métrica” ou “é uma interpolação posterior”, não nos é suficiente para compreender uma produção tão complexa. De fato, Homero não distingue os troianos de modo a caracterizá-los como bárbaros: essa é uma denominação inexistente nos poemas, embora exista a palavra que lhe tenha dado origem (barbaróphōnos). Contudo, aqueus e troianos não são iguais: se dentro de um mesmo exército, temos heróis diferentes, por que de um exército para outro não haveria mudanças? Os habitantes de Troia são caracterizados de modo a serem diferenciados dos aqueus. Defendemos que os troianos são um outro grupo étnico: eles são regidos pelo mesmo código de conduta grego, mas o uso que eles fazem desses costumes é diferente. E, como veremos no capítulo seguinte, muitos dos elementos de caracterização dos troianos, sobretudo a de Páris, serão utilizados pela tragédia para caracterizar os bárbaros. Um grupo étnico é definido não na total, mas na sutil diferença: A fronteira étnica depende da cultura, utiliza a cultura, mas não é idêntica a esta última tomada em seu conjunto. Dois grupos sociais vizinhos, muito parecidos culturalmente, podem chegar a considerar-se completamente diferentes e excludentes do ponto de vista étnico, opondo-se com base em um único elemento cultural isolado, tomado como critério (CARDOSO, 2005, p. 11-2). Jonathan Hall não crê, contudo, que possa haver etnicidade na Ilíada: […] a evidência de uma diferenciação étnica de fato entre gregos e troianos na Ilíada não é totalmente convincente. Os troianos usam a onomástica grega, cultuam os mesmos deuses que os gregos, possuem a mesma organização cívica dos gregose são retratados pelo poeta de forma não menos (e talvez até mais) simpática que os gregos. É admitivelmente verdade que Troia é retratada como extraordinariamente abastada e que alguns de seus ocupantes – notavelmente Páris – adota uma vida de luxúria doentia. Também há indícios de que os troianos são retratados como um tanto excitáveis e um pouco desordenadamente em comparação com o campo grego (HALL, 2002, p. 118 – grifos do autor). O discurso é o mesmo: os troianos são quase iguais aos aqueus e esse “quase” não é suficiente para haver uma diferenciação de fato entre os dois exércitos. Lynette Mitchell 47 escreve o mesmo: “os aqueus não são qualitativamente diferenciados dos troianos” (MITCHELL, 2007, p. 44), mas afirma que os gregos já tinham uma noção do que não era grego e do que era, colocando, mais uma vez, na Odisseia sua análise acerca disso (MITCHELL, 2007, p. 49-50). Kostas Vlassopoulos afirma que existe uma diferenciação Eu/Outro em Homero: “os temas e motivos que mais tarde se tornarão o instrumental [stock-in-trade] das descrições gregas do Outro estavam claramente presente na época de Homero e também estão presentes no poema [Ilíada]” (VLASSOPOULOS, 2013, p. 171). Contudo, retorna à questão dos costumes iguais: “aqueus e troianos são retratados cultuando os mesmos deuses, falando a mesma língua, aceitando o mesmo código moral e valores sociais” (VLASSOPOULOS, 2013, p. 171). No tocante aos costumes, poderíamos argumentar, com base na própria obra de Vlassopoulos, que os valores difundidos na Ilíada e na Odisseia não eram exclusivos dos gregos, mas eram universais. Esse autor afirma que “Mas como a Ilíada, o poeta da Odisseia não está geralmente interessado em explorar as diferenças culturais e étnicas; em vez disso, o poema opta por salientar instituições como a troca de presentes e hospitalidade [guestfriendship] que juntam pessoas de diferentes lugares” (VLASSOPOULOS, 2013, p. 172). Concordamos em parte: tanto eram valores universais que, até hoje, a Ilíada e a Odisseia são atuais, sendo adaptadas, sobretudo, para o público infanto-juvenil, nossos paîdes contemporâneos. Na Ilíada, os costumes são os mesmos: mas o uso que os troianos fazem de alguns deles é diferenciada. Algo parecido acontece na Canção de Rolando (XI d.C.): por exemplo, o costume de nomear as espadas é inerente ao francos. As espadas quase que têm uma anima própria: Rolando conversa com sua Durindana e, quando está a ponto de morrer, tenta quebra-la para que ninguém mais a possua, mas não obtém êxito, visto que ela não quer se quebrar (vv. 2338-2354). Marcúlio, emir muçulmano (inimigo épico dos francos), nomeia não só sua espada (Preciosa), mas também sua lança (Maltet). O exagero (nomear espada e lança, animando em demasia os objetos) é o que diferencia o muçulmano (o Outro) do franco. Assim, o casamento é comum a gregos e troianos; mas Príamo (rei troiano) é polígamo. A assembleia é comum a gregos e troianos; mas o modo de convoca-la e conduzi-la é diferenciado, sendo simplificado do lado troiano (MACKIE, 1996, p. 22). O catálogo das naus (Canto II) nomeia tanto gregos quanto troianos que foram para a guerra; mas há mais nomes especificados do lado grego do que no troiano: o catálogo troiano é bem mais simplificado. Além disso, alguns costumes (como a xénia), no plano do discurso, foram 48 colocados como quase exclusivamente gregos ao longo do tempo, sobretudo após as Guerras Greco-Pérsicas. E é também no plano do discurso que vemos algumas diferenças entre os troianos e os aqueus: aqueles têm um modo de falar diferente, como enfatiza Hilary Mackie, bem como os símiles utilizados por Homero na composição dos troianos revelam que, em batalha, eles são os animais caçados, não os caçadores: eles estão em desvantagem na Ilíada. Os troianos, portanto, são um Outro: mas não quer dizer que eles são o Outro estrangeiro, que não é grego. Eles compartilham de um mesmo código de conduta, mas o reapropriam, constituindo-se de um outro grupo étnico. A ideia de que os troianos são estrangeiros surge a posteriori, como vamos observar nos próximos capítulos, sobretudo a partir da caracterização de Páris. 49 CAPÍTULO 2 | PÁRIS, O CAUSADOR DE MALES “Páris, na Ilíada, tanto herói quanto arqueiro, não é nem um homem completo, nem um guerreiro completo” (LISSARAGUE, 2002, p. 115). Assim Páris é visto pelo historiador francês François Lissarague: nem um homem, nem um guerreiro completo. É comum encontrarmos designações não tão heroicas a Páris vindo de helenistas contemporâneos. Ele é geralmente visto pelos autores que escrevem sobre a Guerra de Troia como “vaidoso”, “frívolo”, “cômico”, “luxuriante”, “geralmente uma figura não heroica” (RUTHERFORD, 1996, p. 33 e 83), “afeminado”, “frouxo” (LORAUX, 1989, p. 93), “playboy”, “patético” (HUGHES, 2009, 219), “egoísta”, “superficialmente atrativo” (SCHEIN, 2010, p. 22 e 24), “tolo” (CARLIER, 2008, p. 100), “não heroico”, “o mais desmerecido dos filhos de Príamo” (REDFIELD, 1994, p. 113 e 114), “almofadinha” [fop] (GRIFFIN, 1983, p. 8), “antagonista [...] de Aquiles” (NAGY, 1999, p. 61), “fujão”/“desertor”, “covarde” (AUBRETON, 1956/1968, p. 168/202) ou “idiota” (CLARKE apud SUTER, 1984, p. 7). No entanto, isso não acontece apenas com os autores contemporâneos: tanto Homero como Eurípides trazem um Páris constantemente sendo rechaçado. O motivo principal é o fato de ele ter causado a Guerra de Troia, mas Homero traz, além disso, a ideia dele não ser um guerreiro tão bom assim, o que gera reprimendas também. Nesse capítulo, vamos ver como nosso herói é visto como um causador de males dentro desse espaço discursivo e como os outros personagens reagem a essa sua faceta. Tanto a épica quanto a tragédia trazem essa ideia acerca desse personagem e há uma relação entre ela e nossa comparável, pois é importante para definir alguns critérios de etnicidade. Entretanto, em Homero ainda não há a ideia de Páris como um bárbaros, como já há em Eurípides: ele é alguém a quem se pode causar vergonha34 (no bojo da ideia defendida por Ann Suter de que o discurso que cerca Páris tem a ver com o discurso iâmbico). 34 Segundo E. R. Dodds, a Grécia possui uma cultura de vergonha [shame-culture], não uma cultura de culpa [guilt-culture]: esta tem mais a ver com o que o indivíduo pensa de si mesmo, não do que os outros pensam dele. Assim, dizer que Páris é alguém a quem se pode causar vergonha é mais apropriado do que dizer que Páris é alguém a quem se pode culpar. Nesse ponto, discordamos da terminologia utilizada por Ann Suter para tratar do personagem: “blame” (culpa) não é cabível para designar o discurso iâmbico, sendo preferível, pois, “acusatório”. 50 Na Ilíada, quando Páris recua ante a fúria de Menelau, Heitor o repreende (III, vv. 3945). Quatro qualificações são utilizadas pelo poeta, através das palavras do seu irmão, para nosso herói: dýsparis (literalmente, “dis-Páris”), eîdos áriste (“melhor forma”), gynaimanés (enlouquecedor de mulheres) e ēperopeutá (enganador). Dýsparis é uma qualificação interessante; ela é composta de um prefixo e um substantivo: dýs- é um prefixo de negação e Páris o próprio nome do herói aqui tratado. Pode ter dado origem ao termo latino dispare, que, por sua vez, originou nosso “díspar” (diferente, dessemelhante). “Páris funesto” é a tradução que Carlos Alberto Nunes dá a esse termo, a qual é adequada ao seu significado, visto que essa expressão denota as contrariedades do personagem e os maus presságios que ocorreram antes de seu nascimento. Embora menos próxima ao sentido original, a tradução de Haroldo de Campos mantém a alusão, jogando com o ritmo das palavras: “Páris mal-parido”. Eîdos (forma) áriste (de áristos, “melhor”) denota a beleza física de Páris, a qual deveria ser pressuposto, segundo Heitor, para seu bom desempenho no campo de batalha: por ser o mais belo troiano, deveria ser também o melhor guerreiro. Contudo, essa denominação tem uma peculiaridade: esse epíteto só é utilizado para mulheres (SUTER, 1984, p. 72). De homens, apenas Heitor e Páris são denominados dessa maneira e essa fórmula só aparece quando um dos dois faz algo indigno de sua estirpe no âmbito militar. Por estar no vocativo (o nominativo é eidos áristos), é designativo de um insulto. Em Eurípides, há algumas alusões à beleza física de Páris. Entretanto, as palavras usadas são diferentes: em Alexandre (fr. 61d, v. 8), o coro diz que Páris possui “formas que se diferem dos outros” (morphê diapher[ ). É uma designação menos específica do que “eîdos áriste”, utilizada por Homero. Além disso, sua beleza aparece intrinsecamente ligada ao excesso de ouro, às roupas que ele usa. É uma beleza acessória, externa, (literalmente) bárbara, que causou a desgraça de muitos. Em Eurípides e em Homero, sua beleza se liga: a) ao fato de ele pertencer a uma elite (Páris é diferente das pessoas comuns, por isso o coro de Alexandre frisa essa ideia da beleza como distinção social e é a partir dela e de suas façanhas, incompatíveis com um doúlos – escravo – que se desconfiará da origem do pastor que ganhou os jogos) e b) à ruína que ela causou (Hécuba, na peça homônima de Eurípides, deixa claro que Helena se deslumbrou com a riqueza e a beleza de Páris). Nosso herói é um gynaimanés na Ilíada. Essa é uma qualificação formada por dois substantivos: gynḗ (mulher) e mánē (loucura), palavra que deriva do verbo maínomai (desejar ardorosamente, loucamente – ISIDRO PEREIRA, 1951, p. 113; “ser louco por” [esser pazzo] – NAZARI, 1999, p. 223; ficar/deixar [rendre] louco – BAILLY, 2000, p. 1217 – ver µαίνω). 51 Anatoille Bailly traduz essa palavra por “fou des femmes” (louco por mulheres) (2000, p. 422 – ver γυναικοµανής). Carlos Alberto Nunes, como vimos acima, traduz como “sedutor de mulheres”; Haroldo de Campos, por “mulherengo”. Ann Suter nota que esse mesmo epíteto é utilizado para designar Dionisos no Hino a essa divindade (1984, p. 74), traduzindo-o como “he who drives women mad” (“aquele que deixa as mulheres loucas”) e criticando aqueles que traduzem a palavra por “women crazy” (“louco por mulheres”). Assim, enquanto Carlos Alberto Nunes e Ann Suter partem para uma tradução que denota o aspecto ativo do adjetivo (Páris como agente da sedução/enlouquecimento), Anatoille Bailly e Haroldo de Campos optam por um aspecto passivo (Páris como vítima dessa loucura). “Deixar louco as mulheres” ou “ser louco por mulheres” não altera, enfim, a ideia de que Páris é um homem relacionado a essa esfera da sedução, do amor, da paixão. Ēperopeutá não é traduzido por Carlos Alberto Nunes: ele une esse vocábulo a gynaimanés sob a denominação de “sedutor de mulheres”. Haroldo de Campos traduz como “impostor”, denotando sua acepção, ligada à enganação. O Le grand Bailly mostra duas traduções, ligadas ao verbo ēperopeúō: “enganador” e “sedutor” (BAILLY, 2000, 906). Ann Suter evidencia que esse epíteto é utilizado também, na tradição poética, para Hermes e Prometeu, dois dos maiores enganadores da mitologia (1984, p. 75-76), sendo “enganador” sua melhor tradução. Esse epíteto dialoga, então, diretamente com theoeidḗs, epíteto utilizado para Páris em vários cantos, no que toca a esfera da dissimulação. Theoeidḗs – que significa, literalmente, “de forma divina” (theoí – deuses; eîdos – forma exterior, aspecto – BAILLY, 2000, p. 584; NAZARI, 1999, p. 146) –, denota a escassa relação de Páris com o ambiente bélico. Theoeidḗs acompanha mais Páris que outros personagens. É como o “de pés velozes”, de Aquiles, ou o “de muitos ardis” de Odisseu: acaba se transformando em um epíteto quase que exclusivo para o herói. Esse é um adjetivo que denota a beleza física de um personagem (FONTES, 2001, p. 95). Ann Suter chama a atenção para a própria etimologia da palavra, da sua formação: ter a “forma de um deus” é problemático, visto que os deuses sempre se disfarçam. Assim, ser theoeidḗs é ser, de certo modo, falso: você aparenta ser uma coisa que não é (SUTER, 1984, p. 63). Além disso, segundo ainda Ann Suter, theoeidḗs é um epíteto não-bélico: Aqueles aos quais esse epíteto é aplicado com alguma frequência, pois, são notáveis por serem todos homens, mas nenhum guerreiro: Teoclímeno, o vidente; Telêmaco, muito jovem para lutar; Príamo, muito velho para lutar. De fato, os quarto 52 pretendentes e Alcínoo compartilham também essa característica comum a esse grupo (SUTER, 1983, p. 60-1). Não só esse epíteto se repete frequentemente, mas também as quatro palavras que analisamos: elas fazem parte de uma fórmula que aparece novamente no Canto XIII (Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιµανὲς ἠπεροπευτὰ) e esta tem um tom acusador. São palavras que Heitor dirige a Páris a fim de censurá-lo, de constrangê-lo e de, através da némesis35, fazer com que ele sinta vergonha de seu comportamento. Os heróis vivem sob a sombra do aidṓs, comumente traduzido como “vergonha” ou “respeito”, mas que, de fato, “é o medo da desaprovação ou da condenação pelos outros que faz um homem ficar e lutar bravamente” (SCHEIN, 2010, p. 177). Essa noção de aidṓs corrobora o caráter agonístico da sociedade helênica, se configura numa “vulnerabilidade à norma ideal expressa pela sociedade” (REDFIELD, 1994, p. 116) e faz parte do desenvolvimento da poesia iâmbica (acusatória). Heitor fala, em sua reprimenda a Páris no Canto III, que o exército inimigo ri da atitude de Páris (v. 43); há poucos risos na Ilíada, como observou James M. Redfield, e, segundo esse autor, em todas as situações ele “é a marca da liberação da tensão social” (REDFIELD, 1994, p. 286). A seguir, Heitor continua sua reprimenda, lembrando a Páris que foi ele quem causou a guerra, devendo, pois, ele retornar ao campo de batalha para enfrentar Menelau. O herói ainda lembra o irmão de que “Esses cabelos, a cítara, os dons de Afrodite, a beleza / não te valeram de nada ao te vires lançado na poeira” [οὐκ ἄν τοι χραίσµῃ κίθαρις τά τε δῶρ᾽ Ἀφροδίτης / ἥ τε κόµη τό τε εἶδος ὅτ᾽ ἐν κονίῃσι µιγείης] (III, vv. 46-55). Os cabelos de Páris (kómē), a cítara (kítharis) – instrumento musical –, os dons de Afrodite (dōra Aphrodítēs) – relacionados ao amor e à beleza – e a sua forma física (eîdos), não lhe servem para o campo de batalha: ali é o domínio da força (bíē), da coragem (alkḗ), não da música, da beleza e do amor. Aqui também Páris serve de khárma, um motivo de divertimento para os outros. É alguém acusável, vergonhoso, que necessita ser repreendido com palavras. Mesmo Helena não fica satisfeita com as atitudes de Páris: primeiramente, recusa-se a ir encontrá-lo, dizendo à Afrodite (que estava disfarçada): “Não voltarei para o tálamo, pois vergonhoso seria participar-lhe do leito; as Troianas, sem dúvida, haviam/ de murmurar; já sobejam as dores que na alma suporto” [κεῖσε δ᾽ ἐγὼν οὐκ εἶµι: νεµεσσητὸν δέ κεν εἴη:/ 35 Némesis “é uma ira mediada pelo sentido social; um homem não somente sente isso, mas se sente correto em sentir isso” (REDFIELD, 1994, p. 117). Ainda segundo esse autor, némesis se contrapõe ao aidṓs: os dois se relacionam à censura, mas este seria uma censura interna (você vê que está errado, sente vergonha de si mesmo e faz o certo) e aquele uma externa (alguém vê que você está fazendo algo errado, censura, você sente vergonha e faz o certo). 53 κείνου πορσανέουσα λέχος: Τρῳαὶ δέ µ᾽ ὀπίσσω/ πᾶσαι µωµήσονται: ἔχω δ᾽ ἄχε᾽ ἄκριτα θυµῷ] (III, vv. 410-412 – grifos nossos). Helena teme a némesis das troianas, mas o medo de desagradar aos deuses é maior: Afrodite lhe ameaça e ela acaba indo encontrando-se com Páris (III, vv. 413-420). Ao se defrontar com nosso herói, Helena, assim como Heitor, o reprova por ter voltado para o palácio e o instiga a retornar para combater Menelau: ἀλλ᾽ ἴθι νῦν προκάλεσσαι ἀρηΐφιλον Μενέλαον ἐξαῦτις µαχέσασθαι ἐναντίον: ἀλλά σ᾽ ἔγωγε παύεσθαι κέλοµαι, µηδὲ ξανθῷ Μενελάῳ ἀντίβιον πόλεµον πολεµίζειν ἠδὲ µάχεσθαι ἀφραδέως, µή πως τάχ᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ δουρὶ δαµήῃς. Vai provocar, então, logo, o discípulo de Ares potente, para, outra vez, vos medirdes em duelo. Aliás, aconselho-te a que não faças tamanha tolice, pensando que podes com o louro herói Menelau contender numa luta corpórea, que em pouco tempo sua lança potente há de ao solo postrar-te (III, vv. 428-436). Na Ilíada, Helena é a única mulher mortal que repreende um homem, um anḗr, sendo o homem repreendido justamente Páris. Isso seria um absurdo: temos a ideia, por causa de uma construção historiográfica simplista e de uma documentação oriunda, em sua maioria, do Período Clássico Ateniense, de que a mulher não possuía voz na Grécia Antiga (LESSA, 2010, p. 15-6). Contudo, a própria documentação do Período Clássico nos mostra “brechas” nesse ideal de comportamento: as mulheres não eram completamente passivas A tragédia, nesse sentido, exerce um papel importante para que possamos estudar esse aspecto. Em Eurípides, Helena, Andrômaca e Ifigênia culpam Páris pela situação em que se encontram: a elas é dada voz para expressar essa ideia. Segundo o historiador Fábio de Souza Lessa, as tragédias [...] são suportes de informação importantes para a compreensão da dinâmica políade e, em especial, do comportamento feminino; isto porque, em cena, a pólis refletia sobre si mesma, havendo uma abordagem de problemáticas totalmente atuais na Atenas do século V, além de permitirem ascender as contradições inerentes à consolidação da mulher na pólis democrática. [...] Para Richard Buxton, a tragédia é o lugar do conflito, das tensões e rupturas; sendo as mulhetes, neste espaço, agressivas, dominadoras, ativas e seres visíveis (LESSA, 2004, p. 80). 54 As tragédias do ciclo troiano de Eurípides não tratam da Guerra de Troia em si36: ou elas se passam antes (como Alexandre) ou depois dela (como o resto de nossa documentação). É nas tragédias que se passam depois da guerra que as mulheres em questão enunciam essa responsabilidade do Páris pelos seus destinos e a voz feminina aqui é imprescindível: são as mulheres e as crianças que mais sofrem com a guerra. Elas ficam sem seus esposos e pais, tornam-se cativas do inimigo, veem suas vidas ruírem. Antes da encenação das tragédias, algumas cerimônias se desenrolavam, como a apresentação dos tesouros da cidade e dos órfãos de guerra: as crianças cujos pais deram a vida por Atenas eram sustentadas pela pólis e eles deveriam continuar – pelos seus pais, pelo seu nome e pela sua cidade – a lutar. Sendo a Ilíada um texto que circulava bastante no Período Clássico (e congelado na escrita durante ele) por ser utilizado para a paideía, o fato de Helena reprimir Páris é significativo. Tanto esse poema quanto a Odisseia também trazem um modelo feminino a priori muito bem delimitado e fechado, que muito influenciou na própria construção do modelo clássico. Penélope é o grande exemplo: a mulher tecelã, fiel ao marido, submissa ao filho homem, que utiliza a métis para urdir, literalmente, a trama que lhe garante os vinte anos de espera por Odisseu. Em Homero, a representação de Helena denota algo que acontece também no Período Clássico: “a sociedade políade buscou manter as mulheres distanciadas da esfera da ação masculina, mas ao memso tempo concedeu-as a função de policiar as ações dos cidadãos, isto é, de vigiar o comportamento masculino” (LESSA, 2004, p. 77 – grifos do autor). Helena, nesse excerto do poema homérico, é a responsável por vigiar o comportamento de Páris, reprimindo-o. O helenista australiano Christopher Ransom crê que Páris não se deixa afetar pela némesis nem pelo aidṓs (RANSOM, 2011, p. 55); mas é através da némesis de Helena e de Heitor que o herói sentiria aidṓs pelos seus atos e voltaria para a guerra, o que invalida sua afirmação. Entretanto, essa reprimenda não surte efeito de pronto: somente no Canto VI o herói retornará para a guerra (e dela não se ausentará mais). Páris é mostrado frequentemente também como causador de grande desgraça para os combatentes, tanto em Eurípides quanto em Homero. No Canto XXII da Ilíada, quando Heitor diz que não vai recuar da luta singular com Aquiles, dando Helena e os bens do palácio “que o divo Páris nas côncavas naus para Tróia nos trouxe – causa, que foi, inicial desta 36 À exceção de Rhesos, a qual tem a autoria de Eurípides questionada e não incluímos em nosso corpus documental. 55 guerra funesta” [µάλ᾽ ὅσσά τ᾽ Ἀλέξανδρος κοίλῃς ἐνὶ νηυσὶν / ἠγάγετο Τροίηνδ᾽, ἥ τ᾽ ἔπλετο νείκεος ἀρχή] (vv. 115-116 – grifos nossos). A ideia de que Páris foi o princípio de tudo também se encontra presente no Canto V, quando é mencionado: relata-se que Féreclo, artífice, foi quem fabricou os navios nos quais Páris foi atrás de Helena, “que tinham sido o princípio da grande desgraça dos Teucros/ e dele próprio, por ter desprezado os orác’los divinos” [ἀρχεκάκους37, αἳ πᾶσι κακὸν Τρώεσσι γένοντο / οἷ τ᾽ αὐτῷ, ἐπεὶ οὔ τι θεῶν ἐκ θέσφατα ᾔδη] (V, vv. 63-64 – grifos nossos). Aqui, a arkhekákos dos troianos foi a própria partida de Páris, que é denominado como causador de uma méga pêma aos seus conterrâneos. A expressão se repete no Canto VI, quando Heitor diz: “Um fautor de desgraças fez nascer o Olimpo / para o magnânimo Príamo, os filhos e o povo Troiano. / Se concedido me fosse assistir-lhe à descida para o Hades, / esquecer-se-ia minha alma, por certo, dos males presentes” [µέγα γάρ µιν Ὀλύµπιος ἔτρεφε πῆµα / Τρωσί τε καὶ Πριάµῳ µεγαλήτορι τοῖό τε παισίν. / εἰ κεῖνόν γε ἴδοιµι κατελθόντ᾽ Ἄϊδος εἴσω / φαίην κε φρέν᾽ ἀτέρπου ὀϊζύος ἐκλελαθέσθαι] (VI, vv. 280-285 – grifos nossos). Aqui, a alusão a Páris como causador da guerra, de grandes desgraças (méga pêma), aparece novamente. Ainda nesse Canto, quando Heitor repreende Páris, essa ideia também se repete e o herói acrescenta que “Tu próprio, quiçá, te indignaras, / caso encontrasse alguém que fugisse à defesa da pátria [σὺ δ᾽ ἂν µαχέσαιο καὶ ἄλλῳ, / ὅν τινά που µεθιέντα ἴδοις στυγεροῦ πολέµοιο] (VI, vv. 329330). Durante essa reprimenda (VI, vv. 326-342), Páris é interpelado por Heitor como daimóni’ (vocativo masculino singular de daímōn), palavra que designa uma relação íntima entre os interlocutores, bem como “é costumeiramente usada quando o falante quer persuadir o endereçado a mudar aquele comportamento ou atitude” (SUTER, 1984, p. 59). Comumente traduzido por “demônio”, muitas vezes confunde o leitor desavisado das obras de Homero. Essa tradução implica numa concepção cristã (ou seja, posterior ao tempo ao qual nos referimos), além de ser, pela conotação da palavra, uma solução pouco cabível, pois o daímōn não é ruim. O termo designa uma divindade qualquer e, nesse caso, é uma interpelação: o vocativo corrobora essa ideia. Heitor, assim, exorta Páris à batalha, chamando a atenção para o fato de ele ter causado a guerra. Ele, por sua vez, acalma Heitor, dizendo que ele está se preparando para a batalha, visto que ele já havia sido exortado pela própria Helena, a qual lamenta não lhe ter sido destinado um homem melhor, que sentisse vergonha pelos seus atos. A reprimenda de 37 Arché é o princípio; kakós é tanto o mau quanto o feio. 56 Helena, enfim, surtiu efeito, e Páris de fato vai ao encontro de Heitor, que ocorre ainda no Canto VI (vv. 503-525). No entanto, ele não retorna sem escutar mais uma vez algo de Helena: ela volta a criticar o herói, afirmando que ele “nunca teve firmeza, nem nunca há de tê-la” [δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ νῦν φρένες ἔµπεδοι38 οὔτ᾽ ἄρ᾽ ὀπίσσω / ἔσσονται], (VI, vv. 352-353) . Fica claro, nessa passagem, que a átē de Páris foi o motor da guerra. Ao retirar Helena de Menelau quando estava alojado em seu palácio, ele cometeu uma infração: desrespeitou a hospitalidade (xénia), prática cara aos helenos. Essa transgressão foi uma das engrenagens da átē (cegueira) de Páris: visto que a átē se dá de três momentos (princípio, estado/ato e consequência), o “rapto” de Helena é o “estado/ato” que teve como princípio a escolha de Afrodite e a guerra como consequência (MALTA, 2006, p. 78). Em Eurípides, a maioria esmagadora das menções a Páris dizem respeito ao fato de ele ter causado a guerra. Alguns personagens, como Agamemnon e Ifigênia em Ifigênia em Áulis (vv. 467-468, vv. 1283-1311), ou Andrômaca e Helena em As Troianas (vv. 919-934, vv. 940-943, vv. 597-600), culpam-no diretamente pelas suas ruínas, mas, geralmente, é o coro quem o faz (As Troianas, vv. 780-781; Hécuba, vv. 629-656, vv. 905-951; Helena, vv. 1110-1120; Andrômaca, vv. 274-300; Ifigênia em Áulis, vv. 573-589). É importante frisarmos a importância do coro, pois ele é uma espécie de arauto da pólis: O coro era elemento fundamental. No desempenho cumprido por ele, vertia-se uma grande quantidade de comentário social, instrutivo e cheio de ponderação, que continuamente reiterava e sumarizava os valores da comunidade, as atitudes e atributos aceitos e estimados. Os diálogos tomaram da retórica homérica o seu estilo exortativo: aconselham, comentam, orientam, exortam, denunciam, mostram arrependimentos, expõem de forma mordaz o que devia de ser aceito ou evitado, dando expressões a reações extremas, dramatizando seus castigos e suas recompensas (CODEÇO, 2010, p. 72). Além disso, o coro está, aqui, exercendo um papel que sua natureza intralinguística desempenha: ele canta em versos iâmbicos (ROMILLY, 2013, p. 227), de natureza acusatória. É de comum conhecimento que Páris causou a guerra e o coro faz questão de lembrar disso. Em Helena, a personagem homônima se acusa, dizendo que seu démas (beleza do corpo) causou a ruína de Troia (vv. 384-385), mas o coro, na mesma tragédia, vem lembrar: “sobre o mar cinza, com remo bárbaro / o homem que veio, que veio trazendo aos filhos de Príamo / você, Helena, como sua esposa da Lacedemônia / Páris, o fatalmente 38 Phrén, como já vimos, é o músculo diafragma; émpedos significa firme. Robert P. Keep, traduzindo do alemão o dicionário homérico de Georg Autenrieth, denomina essa expressão (phrénes émpedoi) por “unimpaired”, que, por sua vez, significa algo que não tem sua força reduzida. 57 casado” [ὅτ᾽ ἔδραµε ῥόθια πεδία βαρβάρῳ πλάτᾳ /ὅτ᾽ ἔµολεν ἔµολε, µέλεα Πριαµίδαις ἄγων / Λακεδαίµονος ἄπο λέχεα/ σέθεν, ὦ Ἑλένα, Πάρις αἰνόγαµος] (vv. 1117-1120). Aqui, Páris é denominado ainógamos, adjetivo composto da palavra ainós (terrível) e gámos (casamento), o que ratifica a causa da guerra e relembra a sua átē homérica. O mesmo acontece em As Troianas: Menelau culpa Helena (As Troianas, vv. 1037-1038), mas o coro vem lembrar de quem é a culpa (vv. 780-781). Mesmo em Alexandre, Páris aparece como alguém que tem uma responsabilidade em relação às origens da guerra. Isso, contudo, fica implícito: Lucía Romero Mariscal defende que a representação de Páris nesse fragmento é feita de modo a identifica-lo com dois grupos sociais: a) a população rural de Atenas, que, durante a Guerra do Peloponeso, é responsabilizada por ter levado a peste à cidade (MARISCAL, 2003, p. 169) e b) com os týrannoi, cujas presenças assolavam Atenas e criavam um clima de incerteza no tocante à manutenção da democracia (MARISCAL, 2005, p. 14). Alexandre foi interpretada justamente depois dessa grande peste ter assolado a pólis e ter matado, inclusive, um de seus principais membros: Péricles. Lucía Mariscal coloca que Ao apresentar as origens da guerra de Troia em termos de oposição entre o espaço político da cidade e o espaço apolítico da montanha [o Ida, onde Páris foi criado], entre os sujeitos que habitam ditos espaços contrapostos e entre as convenções que assim o delimitam, Eurípides aborda um dos temas que o pensamento político tradicional havia já explorado ao longo de sua história e que durante a guerra do Peloponeso se converteu em uma experiência trágica similar a que se representa em Alexandre sob a fábula mítica que deu pé à guerra troiana. Como assinala Ph. Borgeaud, “Convém recordar, com a tradição grega, que é uma guerra que há na origem da tomada de consciência da oposição entre o rústico e o cidadão”. [...] é sobretudo ao princípio da guerra do Peloponeso, quando a tensão entre os habitantes da cidade e os do campo se faz mais traumática, ao abrir a cidade de Atenas as suas portas a uma ingente massa de população rural e agreste que a duras penas se integra na cidade e a contamina, com os terríveis resultados da virulenta propagação da peste que descreve Tucídides no segundo livro de sua História da Guerra do Peloponeso (MARISCAL, 2003, p. 168-169 – grifos nossos). Segundo a autora, é Páris que traz consigo a crise para a cidade, pois insiste em participar dos jogos sabendo que não é um nobre (MARISCAL, 2003, p. 165). O tema de Alexandre gira em torno do agôn (disputa) esportivo ganhado por Páris, na época um pastor ainda, cuja descendência nobre era desconhecida. Era inconcebível que um doûlos (escravo) ou látris (servo) ganhasse as provas esportivas, nas quais os aristoí deveriam sobressair-se. Aliás, já era inconcebível a concessão dessa participação de grupos menos privilegiados da sociedade nesse tipo de evento: Príamo já cometera um erro aí, ao deixar que um simples pastor se juntasse aos aristocratas nos jogos. A sua participação “quebrará a ordem da cidade 58 e provocará uma cadeia de transgressões que teriam lugar em todos os âmbitos da mesma. Sua pretensão de tomar parte nos funerais equivale a formar parte da cidade, a ocupar um lugar que não lhe pertence” (MARISCAL, 2003, p. 165). Desse modo, Deífobo, irmão de Páris, é quem vai pedir providências acerca disso: exige que o pastor seja morto pela sua audácia e, vendo que o pai não lhe daria suporte, pede a Hécuba que o faça. Na iminência da morte dele, o pastor que acolheu o herói chega para impedir que isso aconteça, mostrando as roupas que vestiam Páris quando ele foi exposto e uma cena de anagnórisis (reconhecimento) se desenrola: o látris é reconhecido como aristós e reintegrado à família troiana. Frequentemente, em Eurípides, Páris está relacionado a um ambiente ágrios (selvagem): ele é denominado algumas vezes boúkolos (pastor); em Helena, a personagem homônima fala do passado de Páris, quando ele se sentava junto com seu gado (vv. 358-359); em Andrômaca (v. 706), Peleu se refere a Páris não como “Páris de Troia”, mas como “Páris do [Monte] Ida”. Marcar sua pertença a um ambiente selvagem é revelador no que toca a construção de sua representação na tragédia, gênero no qual é recorrente sua denominação como bárbaros. O próprio mito que envolve Páris (sua exposição no Monte Ida, seu acolhimento pela ursa e, depois, pelo pastor, pessoa em contato constante com o ágrios) denota que em Páris coabitam duas instâncias: o nobre ligado ao ambiente do humano e o camponês ligado ao ambiente do selvagem. Esse nobre, contudo, é um tirano. Na Atenas Clássica, esses tiranos eram vigiados de perto e o recurso do ostracismo visava embarreirar a quebra da democracia: os nomes daqueles que poderiam oferecer riscos ao poder democrático eram marcados em ostrákai (pedaços de cerâmica) e aquele que obtivesse mais votos poderia ser exilado de Atenas. Lucía Mariscal relembra Jean-Pierre Vernant, que, ao analisar a representação de Édipo, chama atenção para a ideia de que a criança exposta ao nascer e que retorna à sua região natal para reivindicar seus direitos é, geralmente, ligada à figura do týrannos (MARISCAL, 2005, p. 14, n. 9). Lucía Mariscal também nos lembra que em 417 a.C., Alcibíades, “um homem, como Alexandre, extraordinariamente bonito, popular, e que por essas datas vai ganhando um discutido poder” (MARISCAL, 2005, p. 17) vence competições atléticas, assim como Páris. Esse mesmo Alcibíades vai liderar os atenienses em uma invasão a Siracusa e causar uma derrota dura a essa pólis. Ele também passa um tempo em Esparta, auxiliando o inimigo, para depois retornar a Atenas. Assim, “O certo é que Alexandre compartilha com Alcibíades o 59 traço mais singular [señero] de ambos personagens: a beleza. Uma beleza extraordinária que se entende como um sinal de excelência, mas que pode, contudo, malograr-se” (MARISCAL, 2005, p. 19). Mesmo no campo de batalha, quando luta, Páris é repreendido. No Canto XI da Ilíada, como vimos, Diomedes o reprime por tê-lo atingido: ‘τοξότα λωβητὴρ κέρᾳ ἀγλαὲ παρθενοπῖπα εἰ µὲν δὴ ἀντίβιον σὺν τεύχεσι πειρηθείης, οὐκ ἄν τοι χραίσµῃσι βιὸς καὶ ταρφέες ἰοί: νῦν δέ µ᾽ ἐπιγράψας ταρσὸν ποδὸς εὔχεαι αὔτως. οὐκ ἀλέγω, ὡς εἴ µε γυνὴ βάλοι ἢ πάϊς ἄφρων: κωφὸν γὰρ βέλος ἀνδρὸς ἀνάλκιδος οὐτιδανοῖο. ἦ τ᾽ ἄλλως ὑπ᾽ ἐµεῖο, καὶ εἴ κ᾽ ὀλίγον περ ἐπαύρῃ, ὀξὺ βέλος πέλεται, καὶ ἀκήριον αἶψα τίθησι. τοῦ δὲ γυναικὸς µέν τ᾽ ἀµφίδρυφοί εἰσι παρειαί, παῖδες δ᾽ ὀρφανικοί: ὃ δέ θ᾽ αἵµατι γαῖαν ἐρεύθων πύθεται, οἰωνοὶ δὲ περὶ πλέες ἠὲ γυναῖκες.’ Fútil frecheiro, de cachos frisados, espião de mulheres, se te atrevesses, armado, a lutar, frente a frente, comigo, nenhum amparo acharias nesse arco e nas setas inúmeras. Só por me haveres riscado no pé fazes tanto barulho, ao que dou tanto valor como a tiro de criança ou de moça. Vã, sempre, é a flecha que um ser desprezível e imbele dispara. Bem diferente se dá com meus tiros que, embora de leve o dardo atinja o inimigo, sem mais, da existência o despoja; as róseas faces não cessa, na dor, de arranhar a consorte; órfãos, os filhos lhe ficam, e, o solo tingido de sangue, a apodrecer, tão-só abutres atrai, não mais belas mulheres (XI, vv. 385-395) Isso se dá porque Páris é um arqueiro (que, como veremos no capítulo seguinte, é desvalorizado) e porque não há paridade na luta: ele, na escala hierárquica do campo de batalha, é inferior a Diomedes. Além de “arqueiro” (toxóta), Páris é também designado como um patife / malfeitor, (lōbētḗr) e um espião de mulheres (virgens) (parthenopîpa). Lōbētḗr designa um “comportamento ultrajante [...] ofensivo às regras da sociedade heroica” (SUTER, 1984, p. 79). Não é um epíteto exclusivo de Páris; Tersites, por exemplo, é denominado desse modo também (Ilíada II, v. 275), por Odisseu. Suter argumenta que foi uma denominação desnecessária por parte de Diomedes (e aí é Diomedes quem é chamado de “frívolo”), visto que ambos estão equiparados socialmente: não seria o mesmo caso entre Odisseu e Tersites, no qual este seria um membro inferior da sociedade. Socialmente, não: ambos são da elite, um do lado troiano, outro do lado aqueu; 60 contudo, no campo de batalha, sim, eles estariam desequiparados: como vimos, Páris é das tropas ligeiras. Diomedes seria membro das tropas pesadas: ele usa os armamentos comuns aos guerreiros homéricos. Páris deveria procurar alguém do seu estatuto bélico para lutar, não com alguém que está hierarquicamente acima de sua posição no campo de batalha. Parthenopîpa (párthenos – virgem, mulher que ainda não é casada – acrescida do verbo opipeúō – “olhar com inquietude” (BAILLY, 2000, p. 1389), observar curiosamente, segundo Ann Suter, é um epíteto que demonstra covardice na batalha (1984, p. 84). Associado com a totalidade das outras denominações do verso, é, de fato, desmerecedor: em uma batalha o que menos importa é desejar mulheres. Kéra aglaè é uma denominação bastante ambígua. Literalmente, significa “cornos brilhantes” (kéras, “cornos”; aglaós, brilhante). Pode referir-se tanto ao seu arco, pois essa arma podia ser feita de chifres de animais, quanto a um penteado, a um modo de arrumar o cabelo (SUTER, 1984, p. 82). Carlos Alberto Nunes prefere essa última acepção, traduzindo essa expressão como “de cachos frisados”, bem como Haroldo de Campos, que traduz apenas como “de cachos” (“sórdido sagitário de cachos”). Referindo-se ou à beleza ou ao arco, a acepção negativa em relação à batalha é a mesma. Ainda nesse excerto, Diomedes compara o disparo de arco e flecha de Páris com o de uma criança (páïs) ou mulher (gynḗ). É a segunda vez que Páris é infantilizado na Ilíada: a primeira, que se dá indiretamente (visto que ele não é mencionado, mas, por ser filho do rei de Troia, a denúncia vale para ele também), é quando Menelau afirma que “os seus filhos [de Príamo] soberbos não são de confiança [ἐπεί οἱ παῖδες ὑπερφίαλοι καὶ ἄπιστοι]” (III, v. 105) e que o ancião deve presenciar o acordo. Anatoille Bailly, ao traduzir hyperphíalos em seu dicionário, coloca que “en parl. des Troyens” (falando de troianos), significa “orgulhoso, arrogante”, denotando uma distinção de vocabulário ao se referir aos gregos. Contudo, o classicista John Heath coloca que essa palavra não denigre todos os troianos, mas certos indivíduos, como Páris, que causou a guerra, defendendo que “não há nada no poema que sugere que Homero considera todos os troianos moralmente ‘contaminados’ [‘tainted’]” (HEATH, 2005, p. 534). Cremos que há a possibilidade de distinção no uso do vocábulo, pois os troianos, afinal, são os inimigos na guerra. A terceira vez, também indiretamente, é quando Príamo denomina os filhos restantes de “crianças más que causam aflição” (kakà tékna katēphónes), (XXIV, v. 253). Isso é uma 61 desvalorização deles, uma diminuição de valor dessa pessoa que é comparada a uma criança, pois a sociedade homérica é patriarcal, onde o anḗr é quem detém o poder familiar, político. Além disso, ele é comparado a uma mulher. Christopher Ransom analisa a efeminação de Páris, mostrando que “isso é útil e informativo para analisar o ‘outro’, o homem que quebra as regras da masculinidade e cujas transgressões e excessos ajudam a definir o ideal de masculinidade promovendo um contraste contra o qual a identidade do homem ‘real’ pode ser estabelecida” (RANSOM, 2011, p. 35). Ademais, a criança e a mulher são um Outro também: o Outro social (RANSOM, 2011, p. 36). Cremos que Páris não deixa de ser um personagem paidêutico, não por mostrar como não agir, mas, justamente, por mostrar como agir. Mesmo quando Páris parece engrenar na luta, Heitor, já desconfiado, acaba o insultando quando o encontra aparentemente parado: “Páris funesto, de belas feições, sedutor de mulheres, / onde se encontra Deífobo, e Heleno, senhor poderoso? / Onde Ásio, de Hírtaco o filho? Adamante, gerado por Ásio? / Que é de Otrioneu? Do fastígio a altanada cidade dos Teucros / hoje desaba, envolvendo-te, alfim, a precípite Morte” [‘Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιµανὲς ἠπεροπευτὰ / ποῦ τοι Δηΐφοβός τε βίη θ᾽ Ἑλένοιο ἄνακτος / Ἀσιάδης τ᾽ Ἀδάµας ἠδ᾽ Ἄσιος Ὑρτάκου υἱός; / ποῦ δέ τοι Ὀθρυονεύς; νῦν ὤλετο πᾶσα κατ᾽ ἄκρης / Ἴλιος αἰπεινή: νῦν τοι σῶς αἰπὺς ὄλεθρος’], (XIII, vv. 769-773). No Canto XXIV (vv. 247-262), quando Príamo censura seus filhos, indiretamente Páris é insultado também. O ancião fala que só restaram os filhos dignos de censura (elénkhea), os mentirosos (pseûstai), os dançarinos (orkhéstai) e os que cantam e dançam (khoroitypíēsin áristoi); ou seja, filhos que não estão aptos para entrar na guerra. No campo de batalha, valoriza-se a intrepidez no combate e a habilidade guerreira, em detrimento da dança e do canto. Mas isso não quer dizer que essas práticas não são valorizadas na sociedade grega: estes são valorizados fora de um contexto bélico. Pelo contrário, faz parte da paideía. Entretanto, ligar o Outro ao domínio das artes musicais não é incomum nas tragédias: Edith Hall nos mostra que em As Suplicantes, de Ésquilo, somente os bárbaros cantam (HALL, 1989, p. 130). Em Eurípides não é diferente: em Ifigênia em Áulis, Páris é mostrado “tocando melodias asiáticas [bárbaras] na sýrinx,/ imitando na sua flauta / o aulós frígio do Olimpo” (vv. 576-578). Assim, nos parece que não é todo instrumento musical que serve à paideía. É interessante perceber que sýrinx e o aulós são tipos de flautas, instrumentos que deformam a face quando tocados, pois temos que inchar as bochechas. Essa deformação é uma metáfora para a própria deformação na caracterização do personagem. No período 62 clássico, Platão, Alcibíades e Aristóteles viam no aulós um instrumento com “efeitos maléficos à formação do caráter do cidadão” (CERQUEIRA, 2013, p. 62). A lira, a cítara, pelo contrário, são instrumentos bem vistos para a educação do cidadão: por isso que o Páris de Homero toca-a. Ele está desempenhando ainda um exemplo a ser seguido, algo que não acontece na tragédia: como vimos, Páris ou é o pastor (ligado ao domínio o ágrios, do selvagem), ou o escravo (o Outro social por excelência do kalós kagathós) ou o bárbaro. No entanto, ser um músico profissional não era bem visto na Atenas Clássica: um músico de ofício, portanto, era visto como alguém inepto à vida cívica e relapso na condução de assuntos particulares. Ele compartilhava da covardia feminina. Esses foram os argumentos utilizados pelo Zeus de Eurípides, na tragédia Antíope, para desqualificar o lirista Anfião – suspeita de feminilidade, incompetência militar e déficit de coragem e virilidade (CERQUEIRA, 1997, p. 126). A música fazia parte da paideía, mas ser um músico profissional esbarrava num estereótipo semelhante ao do bárbaro, implicando em uma alteridade social: o músico é covarde, é efeminado, não serve para a guerra. Tendo em mente que Páris tem em sua caracterização esse elemento já na Ilíada, isso denota o quanto ela serviu para moldar uma fronteira étnica, um Outro. Como pudemos perceber, duas coisas desencadeiam reprimendas a Páris na Ilíada: a) o fato de ele ter fugido da batalha com Menelau e de não a ter terminado (mesmo que por um desígnio divino) e b) seu jactar-se, desencadeado pelo ferimento de Diomedes. Não somente Heitor, seu irmão, o repreende, mas outros heróis, Príamo e mesmo Helena, a mulher por quem ele luta. Na tragédia, ele é lembrado, majoritariamente, como aquele que causou a guerra. Por ser o causador da desgraça de muitos, o seu caráter Outro precisa ser bem delineado. Essas reprimendas que Páris sofrem, contudo, não passam em branco para ele: ele sempre as responde. Quando Páris foge do embate com Menelau, recuando para dentro do exército troiano, Heitor lhe cobre de reprimendas. No entanto, elas não ficam sem resposta: Ἕκτορ ἐπεί µε κατ᾽ αἶσαν ἐνείκεσας οὐδ᾽ ὑπὲρ αἶσαν: αἰεί τοι κραδίη πέλεκυς ὥς ἐστιν ἀτειρὴς ὅς τ᾽ εἶσιν διὰ δουρὸς ὑπ᾽ ἀνέρος ὅς ῥά τε τέχνῃ νήϊον ἐκτάµνῃσιν, ὀφέλλει δ᾽ ἀνδρὸς ἐρωήν· ὣς σοὶ ἐνὶ στήθεσσιν ἀτάρβητος νόος ἐστί· µή µοι δῶρ᾽ ἐρατὰ πρόφερε χρυσέης Ἀφροδίτης· οὔ τοι ἀπόβλητ᾽ ἐστὶ θεῶν ἐρικυδέα δῶρα ὅσσά κεν αὐτοὶ δῶσιν, ἑκὼν δ᾽ οὐκ ἄν τις ἕλοιτο· 63 É justo, Heitor, o que dizes; contrário à razão não discorres. Teu coração é tão duro quanto o aço: semelha ao machado que, manejado pelo homem lhe aumenta o poder e no tronco mui facilmente penetra, talhando-o para o uso das naves. Resolução tão intrépida encerras, assim, no imo peito. Não me censures por causa dos mimos da loura Afrodite, pois desprezíveis não são os presentes valiosos que os deuses, de seu bom grado, concedem; que, à força, ninguém os alcança. (III, vv. 59-66). Páris divide a responsabilidade pela guerra: não fora somente ele quem a causou, mas Afrodite também, ao lhe prometer a mulher mais bela do mundo em troca do pomo dourado. Essa afirmação, entretanto, não parece diminuir a parte que cabe ao herói: Heitor, mais a frente, se refere a ele como sendo o “fautor desta guerra [τοῦ εἴνεκα νεῖκος ὄρωρεν]”, fórmula que se repetirá várias vezes para Páris ao longo da Ilíada. Esses versos também mostram uma outra qualidade de Páris: a habilidade com as palavras. A importância dessa habilidade retorna em Alexandre, de Eurípides, quando Páris deixa claro que “Frequentemente um homem em desvantagem pela ineloquência/ perde para um eloquente, mesmo que seu caso seja justo” [ἀγλωσσίᾳ δὲ πολλάκις ληφθεὶς ἀνήρ / δίκαια λέξας ἧσσον εὐγλώσσου φέρει] (fr. 56). O aglóssos (literalmente, “sem língua”) não tem chance contra o euglóssos (literalmente, “de boa língua”) e Páris, tanto na Ilíada quanto em Alexandre (textos em que ele é personagem) demonstra ser ótimo com as palavras. Sempre que ele é censurado por Heitor ou por Helena, faz um discurso que acaba acalmando o seu interlocutor, ora atribuindo a responsabilidade da guerra não apenas a ele, ora se propondo a entrar na batalha, ora defendendo-se quando acusado de desserviço por Heitor num momento em que ele está, de fato, lutando nas batalhas. Essa é uma habilidade que não tem tanto valor na guerra quanto a força física e a estratégia militar: a Ilíada, por ser um poema bélico, tem mais cenas de batalhas longas do que de diálogos longos. Contudo, ter uma boa retórica, clareza na fala, enfim, ser um hábil orador é uma virtude do anḗr. Os troianos são ótimos falantes. Hillary Mackie explora bastante essa ideia em seu livro Talking Trojan: speech and community in the Iliad. Ela defende que o falar troiano denota uma praise culture (cultura de elogio), enquanto o aqueu uma blame culture (cultura de culpabilização). Ela mostra como os troianos, muitas vezes, conseguem dissuadir seus inimigos da luta, como acontece com Glauco e Diomedes (Ilíada VI, vv. 120-238): aquele conta a este sua genealogia, lembrando-o de que seus pais foram xénoi, hóspedes um do outro. Eles, então, decidem não lutar e trocar presentes, transportando a xénia para o campo de batalha. 64 A autora também sustenta que os troianos evitam embates em que tenham que desferir insultos a outros guerreiros. Quando há a interpelação, eles utilizam epítetos de elogio, não de reprimenda (MACKIE, 1996, p. 83). Heitor não dá tréplicas (como acontece nessa repreensão seguinda da defesa do Páris – ele não replica) e seu discurso é introspectivo e reflexivo, bastante poético e construído esteticamente para ser assim pelo poeta (MACKIE, 1996, p. 115). Além disso, os troianos são os únicos heróis que suplicam pela vida em batalha. Destarte, podemos perceber que Páris é um típico troiano nesse aspecto: ele é hábil com as palavras. E, se as palavras são como flechas (MACKIE, 1996, p. 56), esse elemento combina ainda com o fato de ele ser um arqueiro (sendo que, como vimos, a maioria do contingente de arquearia da Guerra de Troia é oriunda dos troianos). Ainda ligado à questão do discurso de Páris, no Canto III (v. 60) há um símile interessante e incomum na epopeia: a comparação de um humano (Heitor) com um objeto (machado – pélekys). Seth Benardete afirma que: O símile que Páris usa é único em muitas coisas. Em nenhum outro lugar um herói é comparado a algo feito pelo homem; nem a palavra technê é recorrente na Ilíada (bastante comum, contudo, se estivesse na Odisseia); nem erôê é usada comumente para um homem, mas para o arremesso de uma lança. Heitor não é o madeireiro, mas o machado, ou ainda madeireiro e machado; seu coração multiplica sua força; ele é autossuficiente. Ele carrega dentro de si os meios para um grande poder. Ele é todo arma. (BENARDETE, 2005, p. 51). Isso torna seu discurso diferenciado: Homero e seus personagens utilizam símiles que comparam o homem aos animais, que são seres animados. Páris compara um humano a um ser inanimado. Essa é mais uma particularidade desse personagem, que, esse excerto, é mostrado pela primeira vez falando, dialogando, na epopeia. Essa não é a única vez que Páris responderá Heitor: no Canto VI, Páris responde às acusações do herói e lhe acalma, afirmando que Hécuba não trouxe ao mundo um análkydos (sem-glória), (vv. 332-341). Também quando Heitor lhe acusa injustamente de estar parado na guerra, Páris responde (XIII, vv. 774-788). Do mesmo modo, não será só seu irmão que ouvirá resposta de Páris: Helena também ouve (III, vv. 438-446). Assim como se sucedeu com Heitor, Páris acalma o seu interlocutor através das palavras, do mýthos – amenizando a situação –, e atribui o acontecido a um deus: ele não é o responsável sozinho pelo malsucedido. Afrodite é quem lhe dá Helena de presente, não podendo ele negar; Athená ajudou Menelau, por isso que ele venceu: não foi por causa de sua inabilidade guerreira. 65 Só há uma pessoa que Páris não responde depois que é interpelado de modo agressivo: Diomedes. Sendo assim, nosso herói só retruca troianos e a “Helena” que está em Troia. Esses jogos interessantes de palavras e comparações são comuns em Homero. Por isso que é interessante nos debruçarmos sobre esses símiles de animais que envolvem Páris. Eles são muito frequentes na Ilíada. Annie Schnapp-Gourbeillon ressalta que eles têm uma função específica no épico: Explicar [rendre compte], valorar, dar a medida, aqui está umas funções fundamentais. Na aproximação analógica, o animal dá a ver as virtudes dos heróis aos quais ele se refere: ele sugere, ele enfatiza [met un valeur], ele retorna uma imagem amplificada e seletiva, como um espelho sutilmente deformado. [...] ele é signo, mensagem, presságio; [...]. Portador do sofrimento humano, [...]; ator de uma reversão indizível, [...]; elemento fundamental de uma definição social do indivíduo, [...] (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 11). Os símiles de caça são bastante elucidativos na hora de representar o lado mais fraco e o mais forte. Segundo Michael Clarke, “o contraste entre predador e caça é um padrão nas falas [dos heróis que comparam homens a animais], onde um guerreiro compara aqueles com quem ele luta, ou aqueles que ele vê, a bravos ou covardes animais” (CLARKE, 1995, p. 9). O narrador da Ilíada também utiliza bastante esses símiles, tendo como o leão o animal caçador por excelência (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 39-40), encarnação dos valores heroicos em sua simbologia (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 50). Quando Menelau resolve enfrentar Páris, no início do Canto III, o leão é o símile que corresponde a Menelau. τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν ἀρηΐφιλος Μενέλαος ἐρχόµενον προπάροιθεν ὁµίλου µακρὰ βιβάντα, ὥς τε λέων ἐχάρη µεγάλῳ ἐπὶ σώµατι κύρσας εὑρὼν ἢ ἔλαφον κεραὸν ἢ ἄγριον αἶγα πεινάων: µάλα γάρ τε κατεσθίει, εἴ περ ἂν αὐτὸν σεύωνται ταχέες τε κύνες θαλεροί τ᾽ αἰζηοί: ὣς ἐχάρη Μενέλαος Ἀλέξανδρον θεοειδέα ὀφθαλµοῖσιν ἰδών: φάτο γὰρ τίσεσθαι ἀλείτην: αὐτίκα δ᾽ ἐξ ὀχέων σὺν τεύχεσιν ἆλτο χαµᾶζε. τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς ἐν προµάχοισι φανέντα, κατεπλήγη φίλον ἦτορ, ἂψ δ᾽ ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ᾽ ἀλεείνων. ὡς δ᾽ ὅτε τίς τε δράκοντα ἰδὼν παλίνορσος ἀπέστη οὔρεος ἐν βήσσῃς, ὑπό τε τρόµος ἔλλαβε γυῖα, ἂψ δ᾽ ἀνεχώρησεν, ὦχρός τέ µιν εἷλε παρειάς, ὣς αὖτις καθ᾽ ὅµιλον ἔδυ Τρώων ἀγερώχων δείσας Ἀτρέος υἱὸν Ἀλέξανδρος θεοειδής. Logo que o viu Menelau, o guerreiro discípulo de Ares, como avançava com passo arrogante na frente do exército, muito exultante ficou, como leão esfaimado que encontra um cervo morto, de pontas em galho, ou uma cabra selvagem; 66 avidamente o devora, ainda mesmo que cães mui ligeiros lhe venham vindo no encalço e pastores de aspecto robusto: dessa maneira, exultou Menelau quando Páris, o belo, teve ante os olhos, pensando que iria, por fim, castigá-lo. Rapidamente do carro pulou, sem que as armas soltasse. Quando o formoso Alexandre, que um deus imortal parecia, o viu à frente dos outros, sentiu conturbar-se-lhe o peito e para o meio dos seus recuou, escapando da Morte. Como se dá quando alguém nos convales dos montes estaca em frente de uma serpente, a tremerem-lhe as pernas e os joelhos, e retrocede de um salto, com o rosto sem cor, todo medo: por esse modo afundou para o meio dos Teucros valentes Páris, o divo Alexandre, do filho de Atreu temeroso. (III, vv. 21-37). Chama-nos atenção os símiles utilizados. Primeiramente, um que remete à caça (leão versus cervo ou cabra); depois, um que mostra o enfrentamento homem versus animal (homem versus serpente, humano versus selvagem). Páris é assemelhado à cabra e ao veado. Ambos são animais que possuem relação com o deus Dioniso (SUTER, 1984, p. 111). Além disso, são a caça do leão. Este sobrepuja em força o veado e a cabra, bem como está no topo da cadeia alimentar desse ambiente selvagem. O símile no Canto XIII (vv.489-495) também é revelador: o exército troiano é composto de carneiros, animal que serve de caça. Outro símile relacionado ao nosso herói nessa passagem é o do pastor que teme a serpente. Este é peculiarmente interessante: a serpente é o símbolo de Zeus, que, sob o epíteto Xénios, garante o cumprimento das regras da hospitalidade (xénia). Levando em consideração que Páris desrespeitou a xénia ao retirar Helena de Menelau durante sua estadia em Esparta, há bastante razão para ele temer a “serpente”: a ira de Zeus recai sobre Páris, mesmo que, no momento, Zeus esteja do lado dos troianos. A transgressão do nosso herói se sobressai. Quando Páris entra em batalha, ele está vestindo uma pele de leopardo, comum nas representações dos arqueiros citas na imagética (LISSARAGUE, 2002, p. 104 e 105). Segundo Aristóteles, esse animal é comum na Ásia Menor (lugar onde fica Troia), sendo um animal muito selvagem (ARISTÓTELES. História dos Animais VIII, 27, 9). O leopardo é um animal associado a Dioniso e está presente frequentemente em suas representações (COHEN, 2012, p. 462). A associação de Páris com esse deus é trabalhada por Ann Suter em sua tese, visto que ela mostra como a poesia iâmbica39 (uma blame poetry, “poesia acusatória”) está ligada à construção da representação de Páris por Homero. A Ilíada não é o início de um processo discursivo, mas parte dele: outros gêneros poéticos que tramitavam pela sociedade influenciaram na composição da épica homérica. Ann Suter ressalta que nos versos 39 A partícula “-amb-” (-αµβ-) está ligada aos cultos dionisíacos e “designa canções e danças em sua honra” (SUTER, 1984, p. 105), como o dithýrambos, o thríambos e o íthymbos. 67 em que Príamo insulta seus filhos “o vocabulário necessário para elogio e acusação é usado aqui: νεικέω [injuriar] e αἰνέω [elogiar]” (SUTER, 1984, p. 96). Esses verbos aparecem no aoristo (neíkesse / ḗnēs’): Páris causa neíkos pelo seu ainós a Afrodite. Desse modo, tanto a ideia de que os troianos fazem parte de uma cultura de elogio (praise culture), quanto a de que Páris é um personagem acusável (blame figure) podem ser corroboradas a partir dessa utilização de ambos vocabulários pelo poeta. Outro símile nos chama atenção, quando Páris volta ao campo de batalha: οὐδὲ Πάρις δήθυνεν ἐν ὑψηλοῖσι δόµοισιν, ἀλλ᾽ ὅ γ᾽, ἐπεὶ κατέδυ κλυτὰ τεύχεα ποικίλα χαλκῷ, σεύατ᾽ ἔπειτ᾽ ἀνὰ ἄστυ ποσὶ κραιπνοῖσι πεποιθώς. ὡς δ᾽ ὅτε τις στατὸς ἵππος ἀκοστήσας ἐπὶ φάτνῃ δεσµὸν ἀπορρήξας θείῃ πεδίοιο κροαίνων εἰωθὼς λούεσθαι ἐϋρρεῖος ποταµοῖο κυδιόων: ὑψοῦ δὲ κάρη ἔχει, ἀµφὶ δὲ χαῖται ὤµοις ἀΐσσονται: ὃ δ᾽ ἀγλαΐηφι πεποιθὼς ῥίµφά ἑ γοῦνα φέρει µετά τ᾽ ἤθεα καὶ νοµὸν ἵππων: ὣς υἱὸς Πριάµοιο Πάρις κατὰ Περγάµου ἄκρης40 τεύχεσι παµφαίνων ὥς τ᾽ ἠλέκτωρ ἐβεβήκει καγχαλόων, ταχέες δὲ πόδες φέρον: αἶψα δ᾽ ἔπειτα Ἕκτορα δῖον ἔτετµεν ἀδελφεὸν εὖτ᾽ ἄρ᾽ ἔµελλε στρέψεσθ᾽ ἐκ χώρης ὅθι ᾗ ὀάριζε γυναικί. Páris, também, não ficou muito tempo na estância elevada, mas, tendo as armas de bronze vestido, de fino trabalho, corta, apressado, a cidade, nos rápidos pés confiado. Como galopa um cavalo habituado no estábulo, quando pode do laço escapar e, fogoso, a planície atravessa para ir banhar-se, impaciente, na bela corrente do rio, cheio de orgulho, soleva a cabeça; por sobre as espáduas bate-lhe a crina, agitada; consciente da própria beleza, levam-no os pés para o prado, onde os outros cavalos se reúnem: Páris, o filho de Príamo, assim, desde do alto da Acrópole da sacra Pérgamo, envolto em couraça que a vista ofuscava. Vem exultante; seus rápidos pés o conduzem em pouco tempo aonde Heitor se encontrava, o divino guerreiro, que tinha precisamente deixado o local em que à esposa falara (VI, vv. 503-517). Páris é mostrado como um cavalo dentre cavalos: assim ele se encaminha para a batalha. O cavalo é um símbolo de destaque social (é um animal muito caro, difícil de se manter, demanda bastante recursos) e de auxílio (ele desloca o guerreiro na guerra, bem como serve à competição esportiva – SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 169). Além disso, é um animal que representa o troiano, como é frequentemente perceptível em Homero. Eurípides também destaca essa característica deles, denominando-os phílippoi (literalmente, 40 O termo “acrópole” (akrópolis) não aparece no original; trata-se do alto mesmo de Troia. Contudo, a raiz dos dois termos é a mesma. 68 “amigos dos cavalos”; Alexandre, fr. 62f). Esse símile aparece justamente quando Páris retorna para o campo de batalha: ele está disposto a auxiliar seus ísoi. O cavalo também é um animal que oscila entre o mundo dos homens e dos deuses (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1981, p. 162), corroborando o caráter theoeidḗs de Páris e a ideia, defendida por Ann Suter, de que Páris é um nome que tem relação com o divino: Homero o usa nesses versos ao se referir a ele, antes de compará-lo a um cavalo. Alguns personagens (como Astýanax, que também é chamado de Skamándrios) teriam nomes duplos: um para ser usado costumeiramente e outro em casos especiais, dentro de grupos especiais, este último relacionando-se à esfera do divino. Ann Suter utiliza-se do pensamento de R. Lazzaroni, que mostra que existe, na epopeia, uma “linguagem dos deuses” e uma “linguagem dos homens” (SUTER, 1984, p. 28). O nome Páris, que é menos comum na Ilíada do que Aléxandros, é utilizado apenas pela família e “em contextos em que o poeta deseja enfatizar sua divindade, nesse caso, como uma fonte de inspiração para um guerreiro em combate” (SUTER, 1984, p. 31). Páris também teria conexão com a ilha de Paros, um dos lugares de culto a Dioniso. Quando Heitor já está morrendo, diz a Aquiles que “O coração tens de ferro; impossível me fora dobrá-lo./ Que isso, porém, contra ti não provoque a vingança dos deuses,/ quando tiveres de a vida perder, muito embora esforçado,/ das Portas Céias em frente, aos ataques de Páris e Apolo” [ἦ γὰρ σοί γε σιδήρεος ἐν φρεσὶ θυµός. / φράζεο νῦν, µή τοί τι θεῶν µήνιµα41 γένωµαι / ἤµατι τῷ ὅτε κέν σε Πάρις καὶ Φοῖβος Ἀπόλλων / ἐσθλὸν ἐόντ᾽ ὀλέσωσιν ἐνὶ Σκαιῇσι πύλῃσιν] (XXII, vv. 357-360). Aqui, novamente, Páris é usado num sentido divino, pois remete à sua ligação com o deus Apolo, arqueiro, como ele, e que lhe auxilia a atingir sua glória máxima ao matar o melhor dos aqueus, Aquiles. Em Alexandre (fr. 42d), Eurípides coloca que “Quando ele (Páris) se tornou um homem jovem e excedeu muitos em beleza / e força, a ele foi dado um segundo nome, Alexandre, / porque ele espantou bandidos e protegeu o rebanho” [γενόµενος δὲ νεανίσκος καὶ πολλῶν διαφέρων κάλλει τε / καὶ ῥώµῃ αὖθις Ἀλέχανδρος προσωνοµάσθη, λῃστὰς / ἀµυνόµενος καὶ τοῖς ποιµνίοις ἀλεξήσας]. Assim, aqui “Aléxandros” é um distintivo, um 41 Mênin (de mênis) é a primeira palavra da Ilíada: significa “ira”. O ultraje feito à timḗ de Aquiles por Agamemnon (a partir do momento que este lhe toma um géras, privilégio, que lhe foi destinado: Briseida) gera nele uma mênis, a qual causa pêma a todos ao longo da guerra. A Ilíada é a história da ira de Aquiles e suas consequências, como pontuou Jaqueline de Romilly (ROMILLY, s/d, p. 18). A palavra mênis, ao longo do poema, é utilizada para designar o que tem a ver com essa ira de Aquiles, segundo Gregory Nagy (NAGY, 1999, p. 73 e 74), e isso, nesta passagem, se verifica. 69 segundo nome dado a uma pessoa que se destaca das outras. Em As Troianas, Helena usa Páris e Alexandre sem distinção: πρῶτον µὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν, Πάριν τεκοῦσα: δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε Τροίαν τε κἄµ᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος, δαλοῦ πικρὸν µίµηµ᾽, Ἀλέξανδρόν ποτε. ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει. ἔκρινε τρισσὸν ζεῦγος ὅδε τριῶν θεῶν: καὶ Παλλάδος µὲν ἦν Ἀλεξάνδρῳ δόσις Φρυξὶ στρατηγοῦνθ᾽ Ἑλλάδ᾽ ἐξανιστάναι, Ἥρα δ᾽ ὑπέσχετ᾽ Ἀσιάδ᾽ Εὐρώπης θ᾽ ὅρους τυραννίδ᾽ ἕξειν, εἴ σφε κρίνειεν Πάρις: Κύπρις δὲ τοὐµὸν εἶδος ἐκπαγλουµένη δώσειν ὑπέσχετ᾽, εἰ θεὰς ὑπερδράµοι κάλλει. [...] ἦλθ᾽ οὐχὶ µικρὰν θεὸν ἔχων αὑτοῦ µέτα ὁ τῆσδ᾽ ἀλάστωρ, εἴτ᾽ Ἀλέξανδρον θέλεις ὀνόµατι προσφωνεῖν νιν εἴτε καὶ Πάριν: ὅν, ὦ κάκιστε, σοῖσιν ἐν δόµοις λιπὼν Σπάρτης ἀπῆρας νηὶ Κρησίαν χθόνα. Primeiro, essa aí gerou as origens dos males, Páris tendo gerado: depois, o velho destruiu Tróia e a mim, ao não matar o bebê, acre imitação de um tição – Alexandre, então. A partir daí, o restante escuta como é. Aquele julgou um triplo jugo de três deusas: bem, o dom de Palas para Alexandre era despovoar a Hélade, comandando frígios; Hera jurou que sobre a Ásia e os limites da Europa Páris, se a escolhesse, teria a soberania; Cípris, com minha aparência se estonteando, prometeu dá-la, se ultrapassasse as deusas em beleza. [...] [Páris] Veio trazendo uma deusa não miúda consigo O nume vingador42 dessa aí, se queres Chamar-lhe de Alexandre, ou se de Páris: Deixando-o em tua casa, ó maldito43, De navio partiste de Esparta rumo a Creta. (As Troianas, vv. 919-931; 940-943 – grifos nossos). O helenista Michael Lloyd chama a atenção para esse uso indistinto de Páris e Alexandre em Eurípides (LLOYD, 1989, p. 77), mas ele também crê que esse uso é indistinto em Homero, o que discordamos: mostramos, com a análise de Ann Suter, que é possível que Páris seja um nome divino e Alexandre um nome comum. Cremos que essa indiferença se dá em Eurípides porque nosso herói, em suas obras, não representa tanto um exemplo a ser seguido, mas porque ele é um bárbaros. Páris perde o caráter helênico e helenizante que ele 42 Alástōr é um gênio mau (“mauvais génie”; BAILLY, 2000, p. 73), o que reforça a ideia de Páris como um causador de males. 43 Kákiste (vocativo de kákistos) seria “o pior de todos”. Aqui a palavra kakós (que indica tanto o feio quanto o mau) aparece com o sufixo –istos, que indica superlativo. 70 apresenta na Ilíada, sendo, aqui a súmula da alteridade completa: ele tanto é o estrangeiro como aquela pessoa indesejada na cidade. Quando começamos nossa pesquisa de graduação, não tínhamos conhecimento de nenhum autor que tratasse de Páris especificamente. Conforme fomos pesquisando referências bibliográficas, descobrimos uma pequena discussão filológica sobre essa dupla denominação de Páris, a qual é interessante recuperarmos. Aliás, sobre Páris, especificamente, apenas a filologia debruçou-se. John A. Scott (1913) crê que Aléxandros é uma tradução para o grego de Páris. De etimologia imprecisa, este seria um nome estrangeiro; já aquele, formado pela composição do verbo aléxō (proteger, defender) e do substantivo andrós (homem, varão), seria grego porque ambas as palavras que o formam são gregas. Além disso, esse autor crê que Páris é o grande herói da tradição mítica, em detrimento de Heitor, seu irmão. Ele defende que Homero criou Heitor para encarnar todos os valores heroicos que pertenciam a Páris, personagem o qual, por motivos morais, não poderia ser representado de maneira tão heroica. O nome Héktōr já existia nas tabuinhas de Linear B (e-ko-to), escrita da época dos palácios (XVII-XI a.C.), (CHADWICK, 1970, p. 98), mas não sabemos se Homero o pega emprestado para nomear seu personagem ou se Heitor mesmo já era um parte da tradição mítica, sendo recuperado por Homero. Samuel E. Bassett (1920) não concorda nem discorda de John Scott, mas mostra que há pesquisas as quais apontam que Aléxandros poderia ser derivado do nome Alaksandu, um príncipe de Wilǔsa, região que seria a própria Troia, incluindo, assim, os avanços da Arqueologia. Hititologistas defendem que Troia não é nada mais que a região denominada Trūiša44. Na contracorrente dessa hipótese de Scott veio Ann Suter (1984), com sua tese de doutorado Paris/Alexandros: a study in Homeric technique of characterization, com a qual nós concordamos em muitos pontos. Ela afirma que Páris é mais utilizado num contexto íntimo (pela família, ou seja, troianos) sim, mas que Aléxandros também é usado pela sua família, sendo o nome mais recorrente para denomina-lo. Ela atribui esse fato à ideia de que Páris seria um nome divino, utilizando a ideia de R. Lazzaroni sobre a linguagem dos homens 6 A partícula -iša é um sufixo; dividindo a palavra (Trū-iša), temos como raiz o elemento trū-. Em grego, Troia é Troíē (Τροίη) e, provavelmete, deriva de um vocábulo mais antigo, Trṓē (Τρώη), Trṓ-ē. Como os hititas não conheciam o som de “ō” (ω), o -ū- poderia fazer esse papel (KLOEKHORST, 2013, p. 46). Assim, a Troíe de Homero era a Trūiša hitita, assim como o Aléxandros de Homero era o Alaksandu hitita. Para mais informações, ver sessão V – Hipóteses. 71 e a linguagem dos deuses em Homero. Assim como inúmeros outros personagens da tradição mítica e das obras homéricas, o segundo nome (mais incomum) do nosso herói seria aquele que o eleva à condição de um ser divinizado, visto que está em constante relação com Afrodite e com Helena (que, na tradição mítica, transforma-se em uma divindade após a morte). A autora também defende que Páris não é um nome desprovido de etimologia (o que caracterizaria sua origem estrangeira): poderia ser derivado de Paros, uma ilha grega que tem estreita relação com o culto a Dioniso e com os festivais que lhe homenageiam através da récita de versos iâmbicos. A poesia derivada do iâmbico é de caráter “culpabilizante” (blame poetry), na qual se culpa alguém por algo, disforizando essa pessoa. Arquíloco, expoente desse tipo de poesia, era ele mesmo conhecido como Arquíloco de Paros. Além disso, ao observar que Páris tem menos epítetos que Aléxandros e que o desenvolvimento formulaico daquela denominação é precário em detrimento desta (o que não deveria acontecer, pois Páris é um nome que melhor se encaixa no hexâmetro dactílico), ela chega à conclusão de que aquela denominação é mais recente do que Aléxandros, sendo impossível esta denominação ser uma tradução daquela. Irene J. F. de Jong (1987) vai de encontro à tese de Scott, argumentando que Páris é um nome utilizado no contexto troiano e Aléxandros em um contexto grego, para ressaltar o caráter “estrangeiro” (DE JONG, 1987, p. 127) do personagem. Segundo de Jong, “O poeta da Ilíada, ao manter o nome ‘troiano’ ‘Páris’, pode ter intencionado introduzir um elemento ‘realista’ na representação dos troianos como falantes de uma língua estrangeira” (DE JONG, 1987, p. 127). Assim, ela concorda com John Scott, pois Aléxandros continua sendo uma tradução de Páris. Contudo, ela confessa, em uma nota de rodapé, não ter lido a tese de Ann Suter, embora a conheça (1987, p. 127, n. 4). Discordando de todos os autores acima elencados, Michael Lloyd (1989) argumenta que não há uma utilização consciente de Homero de Páris e Aléxandros, afirmando que não há distinção no emprego desses dois nomes em Homero e estendendo a análise a Eurípides. Na tragédia, Páris é utilizado mais vezes ainda do que Alexandre e Helena mesmo, em As Troianas, utiliza os dois nomes para se referir a ele (LLOYD, 1989, p. 78). Ele conclui, assim, que “A nacionalidade do falante não tem nada que ver com qual nome é usado” (LLOYD, 1989, p. 77). Essa discussão é importante porque, conforme o que os autores defendem, pode-se estabelecer uma relação entre a denominação dupla e o caráter diferenciado de Páris na Ilíada 72 como representante de uma alteridade. Entretanto, acreditamos que essa dupla denominação tem a ver mais com um problema intratextual do que com um problema de definição étnica, pois concordamos com a análise de Ann Suter. A definição do caráter díspar de Páris como um representante da alteridade e como um personagem-síntese das fronteiras étnicas que separas aqueus e troianos está mais ligada ao discurso do poeta, imbricado de uma ideologia, acerca dele e de seu grupo étnico do que a escolha de um nome. Esta está mais ligada à percepção de Páris como um representante da aristocracia heroica. No século V a.C., não há dúvidas de que os troianos pertencem a uma cultura Outra, de que eles são bárbaroi. Contudo, não podemos afirmar o mesmo para Homero. Como vimos, muitos autores colocam os troianos como o Outro estrangeiro já nas epopeias. Eles são um Outro, mas ainda não deixam de partilhar um código de conduta, mesmo que com suas reapropriações, grego. São essas reaprorpiações que configuram os troianos num grupo étnico distinto dos aqueus. A ideia de que os troianos são estrangeiros surge a posteriori, quando são “frigianizados” (HALL ,1989, p. 39). Um exemplo claro dessa “frigianização” está no diálogo entre Orestes e o frígio em Orestes (vv. 1506-1519 – grifos nossos). ΟΡΕΣΤΗΣ ποῦ 'στιν οὗτος ὃς πέφευγεν ἐκ δόµων τοὐµὸν ξίφος; ΦΡΥΞ προσκυνῶ σ᾽, ἄναξ, νόµοισι βαρβάροισι προσπίτνων. ΟΡΕΣΤΗΣ οὐκ ἐν Ἰλίῳ τάδ᾽ ἐστίν, ἀλλ᾽ ἐν Ἀργείᾳ χθονί. ΦΡΥΞ πανταχοῦ ζῆν ἡδὺ µᾶλλον ἢ θανεῖν τοῖς σώφροσιν. ΟΡΕΣΤΗΣ οὔτι που κραυγὴν ἔθηκας Μενέλεῳ βοηδροµεῖν; ΦΡΥΞ σοὶ µὲν οὖν ἔγωγ᾽ ἀµύνειν: ἀξιώτερος γὰρ εἶ. ΟΡΕΣΤΗΣ ἐνδίκως ἡ Τυνδάρειος ἆρα παῖς διώλετο; ΦΡΥΞ ἐνδικώτατ᾽, εἴ γε λαιµοὺς εἶχε τριπτύχους θανεῖν. ΟΡΕΣΤΗΣ δειλίᾳ γλώσσῃ χαρίζῃ, τἄνδον οὐχ οὕτω φρονῶν. ΦΡΥΞ οὐ γάρ, ἥτις Ἑλλάδ᾽ αὐτοῖς Φρυξὶ διελυµήνατο; ΟΡΕΣΤΗΣ ὄµοσον — εἰ δὲ µή, κτενῶ σε — µὴ λέγειν ἐµὴν χάριν. 73 ΦΡΥΞ τὴν ἐµὴν ψυχὴν κατώµοσ᾽, ἣν ἂν εὐορκοῖµ᾽ ἐγώ. ΟΡΕΣΤΗΣ ὧδε κἀν Τροίᾳ σίδηρος πᾶσι Φρυξὶν ἦν φόβος; ΦΡΥΞ ἄπεχε φάσγανον: πέλας γὰρ δεινὸν ἀνταυγεῖ φόνον. ORESTES: Onde está aquele que fugiu do palácio à minha espada? FRÍGIO: (prosternando-se diante de Orestes) Eu te saúdo, senhor, prostrando-me segundo os modos bárbaros. ORESTES: Aqui não estamos em Ílion, mas em terra argiva. FRÍGIO: Em toda parte, é mais doce viver do que morrer, para os homens sensatos. ORESTES: Não gritaste, por acaso, para que socorressem Menelau? FRÍGIO: Eu?... Pelo contrário, para que defendessem a ti! É que tu mereces mais. ORESTES: Foi então com justiça que a filha de Tindáreo morreu? FRÍGIO: Com toda a justiça! Tivesse ela, ao menos, três gargantas para morrer. ORESTES: Por covardia, procuras agradar com a língua, mas não pensas assim no teu íntimo. FRÍGIO: Pois não foi essa mulher a que arruinou a Hélade, e com a Hélade os próprios frígios? ORESTES: Jura – se não, mato-te – que não falas para me agradar. FRÍGIO: Pela minha vida juro, que é coisa por que farei jura sincera. ORESTES: Também, em Troia, tinham assim medo do ferro, os frígios todos? FRÍGIO: Afasta o gládio! Porque, estando perto, reflete uma morte terrível. Aqui o frígio demostra ser um completo covarde: prosterna-se, grita. Ele se mostra extremamente temeroso pela sua vida, e o seu discurso tenta dissuadir Orestes de assassiná-lo; 74 parece com o que se sucede no episódio de Glauco e Diomedes, no qual o embate fatal é adiado. E, assim como Glauco, o troiano de Orestes consegue que o príncipe o deixe vivo. A covardia, a prosternação e o grito são traços comuns de diferenciação étnica nas tragédias e aqui aparece mais um elemento que já se encontra na Ilíada: a dissuasão pela fala. Páris, além de ser um troiano, é o causador da Guerra de Troia, que fez perecer toda uma linhagem de heróis. Em uma época de guerra, ele é a metáfora preferida tanto para os espartanos (os inimigos na guerra) quanto para os atenienses perniciosos. Nas tragédias de Eurípides, mesmo os espartanos são representados de maneira pouco louvável: a fronteira entre o que é grego e o que não é também se encontra em crise e os espartanos (gregos) são comparados a bárbaros em suas tragédias. O referencial de comparação, muitas vezes, é o troiano, como acontece em Orestes. Tíndaro, pai de Helena, ao reprimir Menelau por ouvir Orestes, matricida, fala: “Tornaste-te bárbaro, por teres estado muito tempo entre os bárbaros [os troianos]” [βεβαρβάρωσαι, χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (EURÍPIDES. Orestes, v. 485). Em Eurípides, as questões acerca da alteridade entre aqueus e troianos e da etnicidade do povo grego ficam mais claras, em detrimento da Ilíada: esse tragediógrafo já denomina os troianos de bárbaroi, termo que inexiste em Homero, como vimos. Eurípides encena suas peças no século V a.C., num contexto no qual a pólis dos atenienses se encontra consolidada, mas já entrava em crise, em virtude da Guerra do Peloponeso. Segundo Karl Reinhardt, o teatro euridipiano é exatamente o termômetro da crise. A geração jovem se coloca contra a antiga, mas ambas têm a chance de falar, quase simultaneamente, através de seus poetas – Eurípides e Sófocles –, pois eles vivem num mesmo contexto (REINHARDT, 2011, p. 20). O interessante é perceber que algumas características troianas vão se perpetuar na configuração dos personagens, sendo utilizadas para designar os bárbaros em geral, o Outro homogêneo grego, sobretudo os persas, outro por excelência. O desrespeito à hospitalidade, comum ao Ciclope da Odisseia e a Páris na Ilíada, retornará na tragédia como sinal de barbárie. Quando Menelau chega ao Egito, diz: “Nenhum homem tem um coração tão incivilizado / a ponto de não me dar comida ao ouvir meu nome” [ἀνὴρ γὰρ οὐδεὶς ὧδε βάρβαρος φρένας, / ὃς ὄνοµ᾽ ἀκούσας τοὐµὸν οὐ δώσει βοράν] (EURÍPIDES. Helena vv. 501-502). Será comum, por exemplo, atribuir aos persas o domínio do arco e contrastá-lo com o modo grego de fazer guerra, o tradicional face a face (HALL, 1989, p. 85). É sobre esse aspecto, o modo de fazer guerra, que nos debruçaremos em nosso próximo capítulo. 75 CAPÍTULO 3 | PÁRIS, O HERÓI “Eu estarei com você Todas as vezes que contar a minha história Por ser tudo o que eu fiz” (Remember Me – James Horner) Vamos analisar, nesse capítulo, como Páris é representado como herói e guerreiro e como essa representação se liga à nossa comparável. Defendemos que Páris é um exemplo de como se agir na Ilíada, visto que essa é a característica primordial do herói homérico e, em Eurípides, o seu estatuto heroico é afetado, pois ele é visto mais um “pastor” (boukólos; v. Ifigênia em Áulis, v. 574), “escravo” (doúlos; v. Alexandre, fr. 48), “músico” (Ifigênia em Áulis, vv. 576-577) e, principalmente, “bárbaro”, designações comuns a ele na poesia trágica que destoam da construção da personalidade heroica ideal. Isso não significa, contudo, que a caracterização feita por Homero não influencie na construção de Páris em Eurípides, visto que defendemos que já em Homero existe uma alteridade entre aqueus e troianos. Se o filme Troia (dir. Wolfgang Petersen, EUA, 2004) não ganhou muita popularidade pelo excesso de liberdade poética em relação à história da Ilíada, essa epígrafe da música-tema do filme, Remember Me, escrita por James Horner e interpretada por Josh Groban e Tanja Tzarovska , pelo contrário, traz algo intrínseco à caracterização do herói: ele é tudo o que ele faz em batalha. São as façanhas heroicas que dão dinamicidade à epopeia, que são, de fato, o material sobre o qual elas se debruçam. Na tragédia, essas façanhas e os dramas 76 dos heróis míticos são o material catártico o qual o tragediógrafo utiliza para compor suas tramas. Os atos dos heróis são exemplares para aqueles que os ouvem, não os heróis per se. Essa ideia já se encontra na Ilíada e, para tratarmos de Páris, essa noção nos é fundamental, pois ele é um herói à medida que demonstra, através dos seus atos, como um homem deve agir. O locus privilegiado de atuação de um herói, nesse poema, é a batalha: o tema mesmo da Ilíada é a Guerra de Troia em si, com os heróis aqueus e troianos se enfrentando fisicamente. Esse cenário bélico encontramos somente na Ilíada, pois em Eurípides, não existe a possibilidade de analisarmos o comportamento de Páris como um combatente: ele não é mostrado como um nas suas tragédias. Aliás, todas as tragédias do ciclo troiano que analisamos não se desenrolam na guerra: Alexandre se passa antes da guerra, enquanto todas as outras se passam depois. Isso denota uma preferência de Eurípides por mostrar um ambiente pós-bélico: ele trabalha com as consequências de uma guerra para um povo. Assim, são comuns temáticas que dizem respeito ao dilaceramento do núcleo familiar, da escravização daquele que era livre, privilegiando às vezes certos tipos de personagens que, à primeira vista, não mereceriam um destaque em uma obra trágica, como, por exemplo, as escravas troianas. É por esse motivo que muitos autores afirmam que Eurípides dá voz a esses personagens “marginais” (SAÏD, 2002, p. 62), pois a degradação que separa os extremos sociais (grego/bárbaro; livre/escravo) é bem mais temível em uma sociedade em guerra: a esposa do cidadão pode virar a concubina do inimigo. É só Atenas perder a guerra. A definição do caráter heroico muda ao longo dos séculos, sendo o herói trágico semelhante, mas não igual ao homérico. Gÿorgy Lukács, filósofo alemão, crê que o herói trágico traz um “brilho renovado” sobre o homérico, explicando-o e transfigurando-o (LUKÁCS, 2000, p. 33). Jacqueline de Romilly mostra como o sofrimento é intrínseco ao herói trágico: “Para ser trágico, o herói deve sofrer. [...] no espírito mesmo do gênero trágico, a necessidade de pintar heróis imperfeitos e atormentados, em uma palavra, de toma-los – eles, as exceções – como paradigma da condição humana e de seus males” (2013, p. 210). Na tragédia, a noção de hamartía (falha) se torna mais latente e o herói é justamente aquele a quem seus erros implicam em uma trama: por exemplo, Páris, em Alexandre, é o camponês, é o habitante do ambiente selvagem (a montanha – PELOSO, 2002, p. 37) que penetra na cidade reivindicando um reconhecimento o qual, a priori, não lhe seria adequado (os prêmios oriundos da vitória nos jogos troianos). Graças aos erros de Clitemnestra e Orestes, os Átridas sofrem uma desestruturação familiar que vai se desenrolar em Orestes. 77 O herói homérico também é falho, mas essa falha está ligada à átē (perdição): se ocasiona uma situação de desequilíbrio e o herói tem que fazer por onde revertê-la. Páris e Aquiles se assemelham nesse ponto: ambos incorrem em átē. A causa da perdição de Páris é o desrespeito da ética hospitaleira, retirando Helena do palácio de seu esposo, e a consequência direta é a própria Guerra de Troia. Já a causa da perdição de Aquiles é a recusa da súplica: Agamêmnon reconhece seu estado de átē, causado pela privação do géras (privilégio) de Aquiles (a escrava troiana Briseida) e suplica a Aquiles seu retorno à guerra, através de uma litḗ (súplica), mas este a ignora. Impedir que a átē de outrem seja eliminada com a recusa de uma súplica acaba gerando um estado de átē no próprio Aquiles. O historiador Christopher Jones mostra como o termo hḗrōs (herói) muda de acepção ao longo tempo: primeiramente, essa palavra foi utilizada para denominar aqueles seres públicos extraordinários, executores de façanhas mais extraordinárias ainda, os quais se configuravam nos personagens principais das histórias contadas pelas epopeias. Com o passar dos séculos, essa designação foi ganhando uma nova roupagem e se infiltrando cada vez mais nos interstícios da sociedade e da vida privada. Segundo Jones, isso não é uma decadência, tampouco uma ressignificação do termo, visto que ele continua a ser usado para denominar aqueles que têm poder no pós-morte, mesmo numa acepção cristã. O que acontece é a difusão e a continuidade da utilização de hḗrōs, possibilitada pelo processo de expansão da cultura helênica, o qual culmina no helenismo (c. IV-I a.C.). O termo passa a designar não somente os heróis da mitologia, mas também as pessoas que se destacam na vida pública, sobretudo “aqueles que caíram na guerra, ou deram suas vidas a serviço de suas comunidades de outras maneiras” (JONES, 2010, p. 1). Para Jones, os heróis homéricos são todos aqueles que lutaram em Troia, seja grego ou troiano, e têm mais a ver com uma acepção ligada a senhor (lord) do que a guerreiro (warrior). No entanto, como vimos, é na guerra que esse senhor pode demonstrar seu valor: um senhor é, necessariamente, um guerreiro no mundo homérico. Jones, entretanto, mostra uma resistência da Atenas Clássica em designar um morto comum de hḗrōs, o que significa que eles mantêm um certo tradicionalismo em considerar apenas os heróis mitológicos como hḗrōes (JONES, 2010, p. 3, 4 e 21). Em nossa pesquisa, esbarramos sempre com a ideia de que Páris, na verdade, seria um anti-herói, pois ele apresenta uma série de atitudes que o caracterizariam como sendo uma pessoa covarde, medrosa etc. Em primeiro lugar, é necessário termos em mente que os heróis não são uma massa indistinta: eles constituem um grupo social fechado, com um código de 78 conduta modelar, mas não podemos nos esquecer de que uma sociedade é composta de indivíduos, cada um com sua personalidade específica. O eu não se anula por causa do nós, ele se agrega ao nós, contribuindo com sua singularidade ao todo. Vários autores se debruçaram, de algum modo, sobre os heróis da Antiguidade de maneira mais ou menos ampla, tentando defini-los: Joseph Campbell, Robert Aubreton, Cedric Whitman, Karl Kerényi, Gregory Nagy, Seth L. Schein, María Cecilia Colombani, Anastasia Serghidou, David J. Lunt e Christopher Jones. À exceção de Campbell, Kerényi, Serghidou e Lunt, geralmente eles dão destaque aos heróis homéricos. É interessante perceber que não há divergência de opiniões, mas complementaridade. Joseph Campbell foi pioneiro no tratamento dos heróis: seu estudo é de fins da década de 1940. Muito influenciado pela Psicanálise, procura delinear o perfil do herói em geral em O herói de mil faces. Ele cria uma tipologia, através de um estudo comparado de várias mitologias, que abrange todos os heróis, de todas as épocas e tradições epopeicas; afirma que esse personagem passa obrigatoriamente por doze estágios em sua vida: ela é permeada por ritos de passagem. Campbell não fala de um herói específico ou de uma determinada tradição heroica: ele conceitua o herói, o vê como um homem que morreu como um “homem moderno”, mas que, como um “homem eterno”, ou seja, “aperfeiçoado, não específico e universal”, renasce para “retornar ao nosso meio transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu” (CAMPBELL, 2007, p. 28). Desse modo, ele corrobora o valor educacional que um herói possui para aqueles que o rememoram, além de pontuar o seu caráter mortal. Na década de 1950, Robert Aubreton escreveu um livro introdutório sobre Homero que aborda de maneira diferente os heróis. Esse autor crê que haja uma psicologia em Homero, afirmando que a representação deles é tão humana que “acabamos por considerá-lo não mais como herói sobre-humano, mas como homem igual a nós que, por sua virtude e piedade, chega a se superar” (AUBRETON, 1968, p. 188). Essa “psicologia homérica” consiste, sobretudo, na consideração do herói não apenas em seu caráter coletivo, mas em sua individualidade, em sua especificidade. Desse modo, Aubreton divide esse capítulo o qual ele dedica aos heróis de acordo com sua análise de cada um daqueles que ele crê serem importantes nas epopeias: Aquiles, Pátroclo, Agamêmnon, Heitor, Páris, Menelau, Andrômaca, Helena, Odisseu, Penélope, Telêmaco, Nausícaa e Eumeu. Observemos que ele inclui as mulheres (“heroínas”, segundo o autor) e o porqueiro Eumeu nessa seleção, 79 aumentando a gama de possibilidades de definição do herói: ele é um(a) personagem mítico, corroborando a ideia de Christopher Jones acerca do que é o hḗrōs na épica. Enquanto Aubreton publicava seu livro, Cedric Whitman escrevia seu Homer and the heroic tradition, lançado em 1958 e bem recebido: quase todos os autores que trabalham com heróis mencionam seu trabalho em seus próprios. Ele tenta compreender a Ilíada à luz das noções que regem aquela sociedade representada por Homero (e a relação existente entre os heróis e essa sociedade). Para esse autor, a Ilíada já apresenta um discurso bem próximo do trágico, no qual a humanidade dos heróis é representada de modo mais acentuado e a demonstração de sentimentos (como raiva, amor, compadecimento) é comum. Whitman também trabalha com a noção do herói como modelo, como aquele que passa todas essas noções aos ouvintes da epopeia, construindo um estudo de caso de Aquiles. No mesmo ano, Karl Kerényi publicou o seu Os Heróis Gregos; o livro é o segundo volume da série Mitologia Grega, cujo primeiro volume trata dos deuses gregos. A proposta do livro é apresentar os heróis gregos a leitores acadêmicos ou não, debruçando-se não somente sobre os relatos escritos sobre eles, mas também a cultura material, tratando também da questão do culto ao herói e de sua historicidade. Para Kerényi, os heróis se mostram “entrelaçados com a história, com os acontecimentos, não de um tempo primevo, que está fora do tempo, mas do tempo histórico [...]. Eles surgem diante de nós como se tivessem, de fato, existido” (KERÉNYI, 1998, p. 17). Ao escrever sobre a guerra de Troia, mais uma vez Aquiles é o grande destaque da análise, assim como faz nosso próximo autor. Gregory Nagy, em seu livro The best of the Achaeans: concepts of the hero in Archaic Greek poetry (1979), trata dessa tradição anterior à composição dos épicos, defendendo que sua unidade se dá justamente por essa origem em comum deles. Nagy procura delinear um perfil de Aquiles, o qual ele considera o principal herói da Ilíada, comparando-o com outros heróis (Heitor e Neoptólemo), e resgata do épico uma série de noções (como kléos, ákhos, pénthos, timḗ) imprescindíveis tanto para a compreensão da função das epopeias quanto dos cultos heroicos. Ele defende que esse culto surgiu simultaneamente à composição dos épicos e que os jogos “de coroa” (Olímpicos, Ístmicos, Délficos e Nemeios) são oriundos da prática de jogos fúnebres, possuindo, pois uma estrita relação com o próprio culto ao herói. Nas epopeias, no entanto, não há a menção ao culto dos heróis pelo fato de esse culto ser estritamente local: ele defende que já existe uma conotação pan-helênica nelas e colocar uma prática religiosa que destoe da religião olímpica comprometeria esse caráter. 80 Seth L. Schein, em The mortal hero: an introduction to Homer’s Iliad (1984), aproxima-se muito da análise de Nagy com relação ao culto heroico: ele não existe nas epopeias de Homero porque iria de encontro a toda a pan-helenicidade dos poemas, definida pela representação apenas do culto aos deuses olimpianos. Ele não faz um estudo de caso de nenhum herói, tentando abordá-los de maneira a tentar defini-los dentro da Ilíada. Schein se aproxima de Whitman em sua abordagem ao definir o herói sob a ótica acentuada do humano, comparando o discurso das epopeias ao discurso trágico: ele enfatiza o fato da morte ser a única certeza que se tem acerca do destino de um herói. A própria etimologia da palavra, hḗrōs, denotaria isso: Hērōs parece ser etimologicamente relacionado com a palavra hōrē, “estação”. [...] em Homero hōrē significa, em particular, a “estação da primavera”, e um “herói” é “sazonal” quando ele chega ao seu esplendor, como flores na primavera, só para ser cortado uma vez e para sempre. (SCHEIN, 2010, p. 69). María Cecilia Colombani dedica dois pequenos tópicos aos heróis em seu livro introdutório sobre Homero (2005). Eles tratam da lógica aristocrática e da função da soberania. Colombani aborda uma série de noções caras à aristocracia guerreira e que perpassam todo o código de conduta dessa sociedade que Homero representa. Ela faz das palavras de Louis Gernet, que na década de 1960 publicou seu Anthropologie de la Grèce Antique, as suas: “Os heróis formam uma espécie aparte entre os deuses e os homens: seus representantes são efetivamente homens, mas homens que, depois da morte, adquiriram uma condição e estatuto sobre-humanos” (GERNET apud COLOMBANI, 2005, p. 58). Esses homens, segundo Colombani, são representantes de valores sociais (COLOMBANI, 2005, p. 60) e são rememorados pela sociedade políade como exemplos a serem seguidos. Anastasia Serghidou escreveu um artigo sobre o herói trágico, especificamente, no livro Héros et heroïnes dans les mythes et les cultes grecs, organizado por Vinciane PirenneDelforge e Emilio Suárez de la Torre. Ela acredita que ele é “fundado sobre a ideia de uma divinização impossível”, sendo a imagem do herói na tragédia “semelhante ao homem mortal, ao qual o modelo heroico se coloca como aquele do personagem livre e do bom cidadão” (SERGHIDOU, 2000, p. 1). A autora trabalha com a imagem do herói decaído (héros déchu), colocando em primeiro plano a análise da dicotomia livre versus escravos. O herói é o homem livre, construído em contraposição ao escravo, e está mais perto dos humanos do que os heróis de outrora. 81 David J. Lunt, em sua tese Athletes, heroes and the quest for imortality in Ancient Greece (2010), também retorna à questão do culto aos heróis, aproximando-se também da abordagem de Nagy, embora não o mencione em sua discussão bibliográfica. Seu destaque está em mostrar como o herói homérico serviu de exemplo para os homens da pólis, sobretudo para os atletas. Para isso, ele delineia com mais precisão o que seria um herói para os gregos e os modos pelos quais eles foram rememorados, começando pelos heróis homéricos, passando por Teseu, os Dióscuros (Castor e Pólux) e Héracles, até chegar nos heróis de “carne e osso”, que foram rememorados nas competições atléticas através das récitas em sua homenagem No mesmo ano, Christopher Jones lança New heroes in Antiquity: from Achilles to Antinoos, livro cujo objetivo, como vimos, é mostrar como o termo hḗrōs (herói) foi utilizado ao longo do tempo para denominar não mais aqueles grandes heróis do passado, mas também pessoas comuns que se destacavam de algum modo na sociedade, ressaltando como a difusão dessas histórias míticas foram imprescindíveis para que essa definição penetrasse nos interstícios das sociedades do período clássico. Assim, sua análise perpassa desde o herói homérico (mítico) até o herói “heroicizado”, no caso, o romano Antínoo, que morreu em 130 d.C. Em virtude dessa revisão bibliográfica de tratamento do herói, podemos concluir que: a) a mortalidade do herói é constantemente reforçada; b) eles não estão ligados apenas a um plano mortal, mas a um divino também, seja por terem parentescos com deuses, seja por serem protegidos de um, seja por serem cultuados como divindades após suas mortes; c) o herói é exemplar, pois é portador de um código de conduta no qual as suas aretaí estão sempre postas à prova, sobretudo, na batalha, e, assim, os mortais comuns querem chegar o mais próximo possível dessa glória heroica, seja associando um herói à sua família, seja sendo vitorioso em suas atividades; d) eles têm uma materialidade histórica, pois os gregos criam na veracidade dos mitos em que eles acreditavam; e) o herói trágico é mais falho do que o homérico, o qual sempre procura restabelecer sua posição de destaque com suas ações. Nenhum desses autores que trabalham diretamente com os heróis fazem um estudo específico de comparação entre os heróis homéricos e trágicos ou sobre Páris, seja na poesia épica, seja na poesia trágica. Contudo, essas obras aqui mencionadas serão fulcrais para a análise de Páris, pois ele pertence à categoria dos heróis. Na Ilíada Páris é o herói da paixão: seus epítetos não são bélicos, como os de outros personagens, e ele não é o melhor guerreiro troiano, como veremos. Também não é um personagem belicoso. Como lembra Aubreton, “Homero faz de Páris o homem amoroso por 82 excelência, e que não pode resistir à paixão que os deuses lhe inculcaram” (AUBRETON, 1968, p. 202). Enquanto o nosso herói se arma para a guerra, é designado por dîos (divino, semelhante aos céus – “sky-like” (SUTER, 1984, p. 59), epíteto comum a outros personagens, como seu próprio irmão. Também aparece outro epíteto recorrente de Páris: “marido de Helena cacheada” (Elénēs pósis ēykómoio), reforçando sua relação com Helena. Ann Suter chama a atenção que essa construção formulaica aparece somente em relação a Zeus e Hera (1984, p. 68) e que, das cinco vezes que aparece, quatro são dentro do campo de batalha (1984, p. 70). Isso significa, para a autora, que “a sua imagem como Ἑλένης πόσις ἠϋκόµοιο é aquela de um guerreiro bem-sucedido e conselheiro. [...] Talvez Páris não se sinta em casa no campo de batalha por natureza, mas quando ele de fato luta, é por causa de sua relação com Helena” (1984, p. 70-1). É o que Robert Aubreton afirma: Tendo conquistado a sua “deusa” [Helena], nada mais interessa a Páris senão conservá-la. Para tanto, são-lhes necessárias a vida e a salvaguarda de Tróia. Ele só luta em caso extremo, quando Troia corre perigo, quando, por conseguinte, seu amor está ameaçado. É hostil a qualquer compromisso que possa resultar em devolver a Menelau aquela que lhe arrebatou. (AUBRETON, 1956, p. 169). Essa relação intrínseca de Páris com a paixão (seja pelos seus epítetos, seja pela relação protecional que Afrodite estabelece com ele) tem uma relação latente com a sua própria atuação na batalha: como excelente herói do amor, ele deixa a desejar como herói bélico. Amor e guerra não combinam. Páris treme e muda de cor ao se defrontar com Menelau (III, v. 35): ele fica ôkhrós, pálido. Ainda na Ilíada, a makhlosýnē, a luxúria, de Páris aparece como a engrenagemprincípio dessa átē cuja consequência é a própria guerra (visto que se remete à escolha de Afrodite), (XXIV, vv. 25-30). Em Eurípides, essa ideia de que o enlace amoroso entre Páris e Helena é o causador da guerra retorna (As Troianas, vv. 398-399; vv. 780-781; Ifigênia em Áulis, vv. 467-468; Helena, vv. 25-30; vv. 223-224; vv.666-668), embora o tragediógrafo oscile, dependendo da obra e de quem é o enunciador (se grego ou troiano), em atribuir a Helena um papel ativo ou passivo em sua retirada do palácio. No Canto VII da Ilíada (vv. 354-365), os troianos se reúnem em assembleia. Antenor, um conselheiro, afirma que o que se deve fazer é devolver Helena e os tesouros aos gregos. Páris, no entanto, descarta essa possibilidade, não se opondo, no entanto, a entregar os bens materiais. O problema é Helena: ele jamais a devolverá. Páris não faz questão das riquezas, as 83 quais, parece, não lhe faltam: no Canto XI, ele, inclusive, utiliza-se delas para “incentivar” Antímaco a fazer oposição contra a devolução da esposa: “[Teucro] Prostra a Pisandro, depois, e o nas pugnas intrépido, Hipóloco,/ filhos de Antímaco, o sábio, que, mais do que todos, fazia/ oposição para Helena não ser restituída ao marido –/ fruto de belos presentes por parte de Páris, muito ouro” [αὐτὰρ ὃ Πείσανδρόν τε καὶ Ἱππόλοχον µενεχάρµην / υἱέας Ἀντιµάχοιο δαΐφρονος, ὅς ῥα µάλιστα / χρυσὸν Ἀλεξάνδροιο δεδεγµένος ἀγλαὰ δῶρα / οὐκ εἴασχ᾽ Ἑλένην δόµεναι ξανθῷ Μενελάῳ] (XI, vv. 122-125 – grifos nossos). Fica claro que Páris “compra” a opinião de Antímaco com “aglaá dôra” e “málista khrysòn”. Essa ideia de que os troianos possuem ouro em demasia é recorrente em Eurípides. Em Hécuba (vv. 10-12) Polidoro relata que Príamo “comigo muito ouro enviou” [πολὺν δὲ σὺν ἐµοὶ χρυσὸν ἐκπέµπει – grifos nossos] para o trácio que o hospedou (e acabou o matando para ficar com todo esse ouro). Novamente (vv. 492-493), os troianos são mostrados possuindo muito ouro, quando Taltíbio pergunta se a mulher que ele vê é Hécuba, a “rainha dos frígios de muito ouro” [ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν]. Em As Troianas, no agṓn entre Hécuba e Helena, a primeira ressalta que a segunda “Vislumbrando-o [Páris], com trajes bárbaros, /e com ouro luzindo, teu espírito desvairou-se” [ὃν εἰσιδοῦσα βαρβάροις ἐσθήµασι / χρυσῷ τε λαµπρὸν ἐξεµαργώθης φρένας – grifos nossos] (vv. 991-992). Em Helena, o adjetivo polykhrýsos (no acusativo plural, polykhrýsous) é usado para designar os dómoi (construções) troianos. Em Ifigênia em Áulis, Agamemnon comenta o princípio da guerra, quando “O homem que julgou as deusas/ (assim é a história que os homens contam)/ veio da Frígia para a Lacedemônia vestido roupas de cores vibrantes/ e brilhando com joias de ouro, a luxúria dos bárbaros” [ἐλθὼν δ᾽ ἐκ Φρυγῶν ὁ τὰς θεὰς/ κρίνων ὅδ᾽, ὡς ὁ µῦθος Ἀργείων ἔχει,/ Λακεδαίµον᾽, ἀνθηρὸς µὲν εἱµάτων στολῇ/ χρυσῷ δὲ λαµπρός, βαρβάρῳ χλιδήµατι] (vv. 71-74). Esse excerto revela que o ouro é a “luxúria dos bárbaros”: a predileção pelo ouro é um costume do Outro e o distingue dos gregos. A helenista Helen Bacon afirma que Eurípides é menos detalhista que Sófocles e Ésquilo ao descrever as vestimentas bárbaras, embora o embate com o bárbaro esteja mais presente em suas obras, mas que o ouro em excesso, a riqueza das roupas, é um elemento distintivo do bárbaro (BACON, 1955, p. 87, 123 e 124), servindo, assim, como um marcador étnico. Muito ouro é sinal de excesso; por isso é que os bárbaros são caracterizados com o adorno de muitas joias (HALL, 1989, p. 80). Em Andrômaca, esse adjetivo (no dativo, polychrýsō) é novamente utilizado para designar os troianos (v. 2). Contudo, a própria Hermíone (v. 147-154), uma grega, usa muito 84 ouro e a própria Helena se deixa seduzir pelo ouro de Páris, como vimos no excerto de As Troianas. Não podemos deixar de observar que Hermione é uma espartana. Os espartanos, nas obras de Eurípides, são representados como pessoas que se assemelham aos bárbaros, como fica claro, por exemplo, na passagem em que Tíndaro recrimina Menelau, dizendo-lhe “Tornaste-te bárbaro por teres vivido tanto tempo entre os bárbaros” [βεβαρβάρωσαι, χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (Orestes, v. 485). Eurípides os representa dessa maneira porque eles são os inimigos dos atenienses na Guerra do Peloponeso: o grego pode voltar a um estado de barbárie, como acontece com os espartanos. Assim, representar Hermíone usando muito ouro ou depreciar Menelau (como acontece em Orestes ou Ifigênia em Áulis que, inclusive, ganha o primeiro prêmio na competição trágica em que foi encenada), é representar o espartano como semelhante ao bárbaro porque é digno de cometer atos bárbaros, sobretudo durante a guerra. Entretanto, por mais que Eurípides faça essas correlações, dada a natureza “temática e simbólica” de suas obras (BACON, 1955, p. 124), o troiano ainda é o referencial de barbárie: em Andrômaca Hermione afirma à personagem-título que “não há nenhum Heitor aqui,/ nenhum Príamo ou seu ouro: essa é uma cidade helênica” [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε,/ οὐ Πρίαµος οὐδὲ χρυσός, ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv. 168-169), pedindo para que ela não introduza costumes do seu “bárbaron génos” lá. Em Orestes, a caracterização do frígio como um homem medroso, covarde, que se prosterna e elabora um discurso defensivo para manter a sua vida corrobora seu pertencimento ao domínio dos bárbaros. Na Ilíada, o excesso de ouro de Troia não designa barbárie, mas, definitivamente, designa uma alteridade. Somente os troianos são relacionados à posse do ouro (II, vv. 229231) e eles são, justamente, o inimigo na guerra. Embora os heróis homéricos sejam regidos por um ideal de conduta comum, os troianos são diferentes dos aqueus: o uso que eles fazem desse código ético é diferenciado às vezes. Páris se utiliza de todos os meios para manter a posse de sua amada Helena, desde suas riquezas até mesmo sua vida: ele só entra em batalha quando se vê a ponto de perde-la. Por isso ele não possui tantos epítetos ligados à guerra. Heróis como Aquiles, Agamêmnon, Menelau, Odisseu e o próprio Heitor são qualificados com adjetivos relacionados ao ambiente bélico. No Canto III da Ilíada, no qual Helena mostra alguns heróis a Príamo, fica evidente isso. Vejamos os epítetos desses guerreiros em comparação aos de Páris no supracitado Canto: 85 Agamemnon “homem de aspecto imponente” (v. 166); “rei poderoso” (v. 178); “tão belo e de tal corpulência” (v. 167); “tão belo conspecto” (v. 169); “majestade tão grande” (v. 170); “de Atreu descendente” (v. 178); “tão grande rei, chefe de homens, quão forte e notável guerreiro” (v. 179); “venturoso” (v. 182); “filho dileto dos deuses” (v.182). Odisseu “de espaldas mais largas de ver e de peito mais amplo” (v. 194); “guieiro veloso” (v. 197); “astucioso guerreiro” (v. 200); “em toda sorte de ardis entendido e varão prudentíssimo” (v. 203); “o astucioso” (v. 216); “indivíduo bisonho que o cetro na mão mantivesse (...)/ imaginara, talvez, ser pessoa inexperta ou insensata” (vv. 218-220). Menelau “de Ares forte discípulo” [areḯphilos] (v. 206). Ájax “tão belo e de tal corpulência” (v. 226); “de bem maior estatura e de espaldas Telamônio mais largas que os outros” (v. 227); “baluarte dos homens Aquivos” (v. 229); “gigante” (v. 229). Heitor “de penacho ondulante” (v. 83). Páris “divo” [theoeidḗs / dîos] (vv. 16, 37, 100, 328, 437), “belo” (v. 27), “de formas divinas” (v. 58), “de belas feições” (v. 39), “sedutor de mulheres” (v. 39), “Esses cabelos, a cítara, os dons de Afrodite, a beleza” (v. 54), “marido de Helena de belos cabelos” (v. 328). Agamemnon é o ánax: ele é o chefe da expedição, rei de todos os reis; é o chefe de homens, o notável guerreiro: aqui está denotado seu aspecto bélico, sobretudo pela sua habilidade de comando. Odisseu, com a sua astúcia, também possui um aspecto bélico: isso se dá porque essa métis não está ligada apenas à dissimulação, à mentira, mas ao planejamento mesmo necessário a uma guerra. É ele que tem a ideia do cavalo de Troia, que garante a vitória dos gregos: essa guerra foi ganha pela métis. Menelau é amigo de Ares (areḯphilos), deus da guerra; e Ájax é o gigante, corpulento, personagem cuja força física sobrepuja, por exemplo, a força da métis, ligada à inteligência. Do mesmo modo, o penacho de Heitor se refere a uma parte do seu elmo, que, por sua vez, é parte da armadura de um guerreiro e ainda pode se referir à sua habilidade com os cavalos (ressaltada em outros Cantos), pois o penacho lembra a crina desse animal. Como vimos, o cavalo é necessário à guerra, deslocando os guerreiros no campo de batalha e, às vezes, auxiliando-os nas lutas. Páris não possui epítetos 86 bélicos e o único elemento relacionado à guerra que ele possui é o arco, o qual é desvalorizado. Na tragédia, o arco é a arma do bárbaro por excelência, que, por sua vez, se materializa na figura do persa. Páris é mostrado como um arqueiro duas vezes (Hécuba, vv. 387-388; Orestes, v. 1409) nas tragédias que analisamos, assim como Teucro (Helena, vv. 75-77). A diferença é que tanto em Hécuba quanto em Orestes, o arco de Páris é mencionado em contexto bélico e, em Helena, Teucro usa seu arco fora da guerra e o iria utilizá-lo para matar uma mulher, não um homem. Homero também traz essa ideia de diferenciação de uso do arco. Páris entra na guerra com “arco e espada” (tóxa kai xíphos) e “duas lanças na mão” (dýo kekorythména khalkô). Páris é um arqueiro e isso fica bastante claro ao longo da Ilíada. Se teve uma arma que não mudou muito ao longo do tempo foi o arco (KEEGAN, 1995, p. 179), embora variantes tenham surgido (como a besta – crossbow): ele é oriundo do Oriente, tendo entrado de uma vez por todas nas fileiras da infantaria grega através do contato dos cretenses com a Síria e o Egito (SUTHERLAND, 2001, p. 113). Na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), os arqueiros ganharam um destaque muito grande; Marcos Alvito afirma, inclusive, que as forças secundárias (peltastas, arqueiros, fundibulários e demais tropas ligeiras) tiveram um papel decisivo (SOUZA, 1988, p. 64), embora a falange hoplítica sempre fora preferida a esse modo de luta (LISSARAGUE, 2002, p. 117). Essa preferência se dá em virtude de uma tradição de se preterir as tropas ligeiras em detrimento de uma forma de luta aristocrática que implica na valorização do combate corpo a corpo. Essa valorização já começa na Ilíada: há pouquíssimos arqueiros; e, talvez se todos eles morressem em batalha, a Guerra de Troia não seria encerrada por causa disso, afinal: “Aqueus e Troianos se batem / corpo-a-corpo e não ficam à espera de apoio / de flechas ou de lanças de longe atiradas; / lutando de bem perto” (Ἀχαιοί τε Τρῶές τε / δῄουν ἀλλήλους αὐτοσχεδόν: οὐδ᾽ ἄρα τοί γε / τόξων ἀϊκὰς ἀµφὶς µένον οὐδ᾽ ἔτ᾽ ἀκόντων, / ἀλλ᾽ οἵ γ᾽ ἐγγύθεν ἱστάµενοι), (XV, vv. 707-712 – grifos nossos). Mencionados, há seis arqueiros na Ilíada: Filoctetes e Teucro do lado aqueu; Páris, Pândaro, Heleno e Dólon do lado troiano. Tanto Páris quanto Pândaro e Heleno usam o arco em batalha. Dólon aparece em apenas um Canto da Ilíada, para morrer nas mãos de Odisseu e Diomedes, e sua função é a de espiar os aqueus, não de lutar contra eles, não chegando a entrar em batalhas. Filoctetes vem acompanhado de um grupo de arqueiros, que não chegam a 87 entrar em ação. Tampouco o próprio herói o faz: ele foi abandonado em uma ilha por seus companheiros no caminho para Troia, em decorrência de um ferimento que exalava um odor terrível. Há ainda o povo da Lócrida, um povo arqueiro o qual foi auxiliar os aqueus. É mencionado uma vez no poema, mas ele não entra em batalha: os lócrios são medrosos demais para isso (XII, vv. 712-718). Do lado aqueu, Teucro é o único que luta em batalha com o arco e ele aparece em Helena, de Eurípides, portando-o: ele quase atira na esposa de Menelau durante a peça. Ele vai parar no Egito, onde está também Helena. O motivo? Ele foi expulso de sua terra pelo pai. Ser exilado era algo vexatório: o economista Émile Mireaux mostra que os exilados começam a surgir por volta do século VII a.C., mas que a prática de um membro de uma comunidade se exilar não era tão incomum antes dessa data: A estes contingentes de desenraizados deve-se finalmente acrescentar todos aqueles que uma vingança, um crime, um homicídio, às vezes acidental, obrigaram a deixar a família e a cidade e a procurar o refúgio da hospitalidade às vezes para sempre. Pois quando o fugitivo culpado é apenas um bastardo, ou mesmo um simples filho segundo, raras são as famílias dispostas a assumir o encargo do pagamento de uma composição para recuperar um membro que, em regra geral, não é senão um encargo suplementar para o patrimônio familiar (MIREAUX, s/d, p. 255). Na Atenas Clássica, a prática do ostracismo vem reforçar a ideia de que ser privado de viver em sua terra era um dos piores castigos: os cidadãos atenienses escreviam em um pedaço de cerâmica, óstrakon, o nome de quem deveria ser exilado, por ser perigoso à ordem democrática. Teucro, em Helena, representa alguém indesejado, o que corrobora a ideia de que o arco era uma arma que denotava vileza. Ser privado de sua pólis era o equivalente a estar morto (HALL, 1997, p. 97). Mas falta algum arqueiro nesse time aqueu, não? Ou foi esquecido o famoso arco de Odisseu, objeto que definirá o destino de Penélope no palácio de Ítaca? Justamente: seu arco está em casa; Odisseu não o utiliza na guerra. Aqui, o arco tem uma função outra, a qual não se perdera através do tempo: caça e esporte, passatempos comuns da aristocracia. Desse modo, a maioria do contingente de arquearia é oriundo do lado troiano da guerra. Os arqueiros não lutam face a face: atiram de longe suas setas. O seu comportamento na Ilíada é bastante peculiar: eles compartilham de uma comunicação não-verbal e verbal bastante parecida: escondem-se e jactam-se quando ferem o inimigo (por exemplo, V, vv. 100-106; XIII, vv. 593-597; vv. 712-718). Além disso, fugir e sentir medo é bem mais comum entre eles do que entre os outros guerreiros (por exemplo, III, vv. 33-37; XII, vv. 712-718). 88 Esse comportamento não é adequado dentro do código de conduta guerreira, o que torna o grupo dos arqueiros, de certa forma, marginalizado no campo de batalha, pertencendo a uma categoria hierárquica inferior à daqueles que usam a lança ou a espada na luta. Páris aparece na Ilíada pela primeira vez no Canto III: os dois exércitos se aproximam e ele chama os aqueus para lutar em um embate singular (III, vv. 15-20), quando um guerreiro luta sozinho com outro corpo-a-corpo. Esse tipo de combate é o que mais acontece nessa epopeia. Mesmo numa batalha coletiva, em que todo o exército está lutando, são batalhas singulares que ocorrem: sabemos o nome de quem mata e de quem morre. Por isso que não podemos dizer que há a valorização somente de um em detrimento do outro: ambos – morto e assassino – são relembrados. Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennó Assunção se debruçaram de maneiras diferentes sobre esse tema da bela morte, utilizando as mesmas passagens da Ilíada. As suas noções resumem-se nos diagramas abaixo: No primeiro diagrama, vemos a visão de Vernant: àqueles que morrem em batalha, é implicada uma série de características que os tornam áristoi (os melhores). É o fato de morrer em batalha que lhe dá esse estatuto. Para Rennó (segundo diagrama), não é a sua morte que lhe implica a qualidade de áristos, mas a morte dos outros; matando em batalha que se consegue angariar para si essas séries de características, configurando-se, pois, em áristoi. Quando esses guerreiros implacáveis, esses áristoi, morrem é que se dá a bela morte, pois foi a morte de pessoas honoráveis. Cremos que tanto Vernant quanto Rennó não são visões díspares, mas complementares acerca da bela morte. Tanto uma concepção quanto outra está presente na Ilíada: Homero “equilibra igualmente a grandeza dos assassinos e o páthos (sofrimento) dos assassinados” (SCHEIN, 2010, p. 72). Nesse embate singular contra Menelau, ele se veste antes (vv. 328-339). A descrição é longa, porque no próprio vestir-se há um processo e uma estrutura formulaica: 1) cnêmides (“caneleiras”); 2) couraça; 3) espada; 4) escudo; 5) elmo e 6) lança. Aqui, está, basicamente, 89 todos os apetrechos necessários a um guerreiro e os quais estarão presentes na armadura do hóplita. Isso é interessante para que possamos comparar com o que a Arqueologia tem trazido para nós. Não há, por exemplo, registros arqueológicos de cnêmides no período de desestruturação palaciana (1100-IX a.C.), como há no Políade Arcaico; mas isso não impede que elas não fossem feitas naquele período em um material perecível (ZANON, 2004, p. 136). O mesmo acontece com as couraças, mas nada também impede que elas fossem derretidas para a reutilização do metal (ZANON, 2004, p. 137). A espada (xíphos) que Páris traz, com cravos de prata, tem correspondente arqueológico de origem minoica: esse tipo de espada não era muito forte e quebrava, saindo a lâmina do cabo. Assim, o guerreiro ficava desarmado (ZANON, 2004, p. 139). Embora não saibamos como é a espada de Menelau (só nos é dito que esse herói se armou do mesmo modo que Páris), ela se quebra no decorrer da luta singular. Isso mostra que o poeta da Ilíada possuía um conhecimento da cultura material palaciana. Contudo, esse tipo de espada não servia para corte (como acontece na epopeia), apenas para perfuração. Espadas que cortam e perfuram só apareceriam por volta de 1200 a.C. (ZANON, 2004, p. 140). Esse é mais um exemplo de mistura periódica: a espada corta e perfura, como é de conhecimento da audiência homérica, mas o aspecto dela é o de uma espada palaciana. “Homero”, segundo a arqueóloga brasileira Camila Aline Zanon, “juntou esses retalhos e os costurou com tal primazia, que somente com o surgimento da Arqueologia é que pudemos diferenciar um pouco dos seus elementos constitutivos no tocante a essas épocas” (2004, p. 146). Isso denota, também, que ele não ignorava as práticas bélicas, o que nos ajuda a compreender mais a representação de Páris. Outro ponto interessante reside no fato de que a couraça que Páris veste não é sua: é de Licáone, seu irmão. Nosso herói não possui sua armadura completa, corroborando a sua habilidade como arqueiro: esse guerreiro fazia parte das tropas ligeiras, não das pesadas. Os membros daquela precisavam se despir da armadura completa, pesada, para poder exercer sua função na guerra: perseguir o inimigo. Eles geralmente eram pessoas de menor condição financeira, que não podiam arcar com um armamento completo, ou, até mesmo, mercenários estrangeiros. Eram fundibulários, peltastas, arqueiros: essas armas são muito mais baratas. As batalhas singulares seguem uma ordem também: primeiro, há o tiro de lanças; só a partir daí que o embate corpo a corpo, com espadas, se desenrola (III, vv. 346-360). Aqui, o tiro de Páris não fere nem mesmo a armadura de Menelau, enquanto o tiro deste atravessa o escudo e seu khitṓn, sua túnica por baixo da armadura. Páris se encurva, impedindo que algo 90 pior lhe aconteça. A luta continua e Menelau passa a atacar Páris com a espada, que se quebra. Issonão é atribuída à sua fragilidade, mas a um desígnio dos deuses. Contudo, como vimos, era passível de isso acontecer. Afrodite, vendo a desvantagem desse herói, o retira do campo de batalha, colocando-o no tálamo, à espera de Helena. Não fosse a intervenção da deusa, Menelau teria alcançado alto kŷdos: ele é o valor que os deuses atribuem ao homem. Nas palavras da filósofa argentina María Cecilia Colombani, “se kûdos [sic] descende dos deuses, kléos ascende até eles” (DETIENNECOLOMBANI, 2005, p. 52). Leslie Kurk acrescenta que aquele que possui kŷdos tem um “poder especial conferido por um deus que faz um herói invencível” (KURK apud LUNT, 2010, p. 64). Se um homem não demonstra ser digno desse valor, ele morre áphantos (invisível) e nṓnymnos (sem nome, sem glória). No Canto VI (vv. 521-525), Heitor, ao ver nosso herói, afirma que nenhum anḗr poderia deixar de valorizar (atimáō) seus “trabalhos na guerra” (érgon mákhēs), mas que não quer os exercer, gerando aískhos (vergonha). Esse verbo (atimáō) é composto de duas partes: o prefixo de negação a- e o verbo timáō (valorizar), que dá origem à palavra timḗ, uma das noções mais caras ao guerreiro: ela é o valor de uma pessoa. Para um guerreiro, o campo de batalha é o locus privilegiado de demonstração desse valor, de sua honra. Desse modo, como vimos, é na Ilíada, mais do que na Odisseia, que os heróis têm a sua timḗ posta a prova. Richard B. Rutherford sintetiza bem o que significa essa honra na Grécia antiga: No coração do sistema de valores dos heróis de Homero está a honra, τιµή, expressa pelo respeito de seus pares e personificada em formas tangíveis – tesouros, presentes, mulheres, um lugar honorável no banquete. Em tempo de guerra é inevitável que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha, habilidade como um líder e um lutador. Outras qualidades são também admiradas – habilidade como orador, piedade, bom senso e conselho, lealdade, hospitalidade, gentileza, mas essas são secundárias e a última poderia de fato estar sem lugar no combate (RUTHERFORD, 1996, p. 40). Segundo Redfield, a timḗ é a medida de um homem em relação ao outro, implicando numa comparação de um indivíduo com outro. Isso só é possível se esses homens estão inseridos em uma sociedade na qual existe uma publicidade das ações45, ou seja, na qual se verifique uma união do que entendemos hoje como vida privada e vida pública. O valor de um 45 A sociedade grega é uma sociedade agonística. Esse termo não existe na língua portuguesa: é um adjetivo derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimológica é a palavra ágon (competição). Foi utilizado para caracterizar a sociedade helênica no que diz respeito à noção de competição: o indivíduo está sempre sob o olhar do público, sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos (vergonhosos) 91 homem se lhe era atribuído não por ele mesmo, mas por outros homens. Esse reconhecimento é o que configura a kléos, a glória (ou reputação)46. Esta é a glória dada pelos homens àqueles que se destacam. Enquanto a vida tem um fim, a kléos é imortal, pois ela se dá através da rememoração desses mortos grandiosos, seja através da oralidade – o canto do aedo ou a narração de mitos47 –, seja através da construção de túmulos. Na Ilíada, uma passagem chama atenção para isso; trata-se de uma fala de Heitor (VII, vv. 81-91). É no Canto VII também (v. 516) que Páris recebe uma designação interessante, hyiòs Priámoio. Ann Suter chama atenção para ela, pois está numa passagem que “implica numa total reversão da caracterização, de covarde para herói, de mulherengo [womanizer] para guerreiro” (1984, p. 71). Páris, como veremos, depois de desafiar os guerreiros aqueus acaba sendo enfrentado por Menelau e foge, retornando, depois, para um combate singular. Afrodite ainda o retira da guerra e ele só volta a ela no Canto VII. Justamente aqui, no Canto que intermedia sua fuga e seu retorno, tanto no plano semântico quanto no linguístico ocorre o turning point de Páris. No Canto VII, também, Páris mata seu primeiro adversário na Ilíada (vv. 8-10). Ele é Menéstio, um korynḗtēs, guerreiro que porta maça, uma espécie de porrete; ou seja, não utiliza as armas convencionais de guerra homérica (espada ou lança). Ele também faz parte das tropas ligeiras do exército aqueu, assim como Páris, que é arqueiro do lado troiano. Há, portanto, uma equiparidade na luta: o toxótēs lutando contra o korynḗtēs. No Canto seguinte, No Canto VIII, Páris continua demonstrar sua qualidade de arqueiro: ele fere um dos cavalos de Nestor com seu arco (VIII, vv. 80-84). Páris também retorna à ação no Canto XI. É nesse conjunto de Cantos (XI ao XIII) que Páris mais se mostra um guerreiro ativo, utilizando sua arma principal: o arco e flecha. Ele fere Macáone, afastando-o da luta, e depois Eurípilo, que estava retirando a armadura de Apisáone, morto em batalha (XI, vv.504-509; vv. 581-584). Outro alvo seu é Diomedes (XI, vv. 369-395). Nosso herói sai de um esconderijo (lókhos) e jacta-se. A fórmula utilizada é “eukhómenos épos ēúda”, típica dessas situações de vanglória (MARTIN, 1989, p. 29). Esse é 46 “Para os gregos antigos”, segundo David Lunt, “a imortalidade heroica consistia em dois componentes, glória e fama (kléos) e honras cultuais (timḗ)” (LUNT, 2010, p. 83). O culto ao herói não é mostrado na Ilíada; a arqueologia já mostrou que ele já existia na época de Homero (JONES, 2010, p 14). A explicação de Seth L. Schein para o aedo da Ilíada e da Odisseia exclui-lo estaria no caráter pan-helênico das obras: “[...] a religião olimpiana de Homero é pan-helênica. [...] Homero transcende os limites do culto regional e local para criar na poesia uma unidade religiosa que não existia historicamente” (SCHEIN, 2010, p. 49). Christopher P. Jones já afirma o contrário: Homero influenciou o culto aos heróis (JONES, 2010, p. 14). 47 David Lunt, ao mostrar a etimologia da palavra kléos, mostra também que ela tem uma estreita ligação com essa cultura oral: klýein é ouvir. Assim, a “kléos só pode ser possuída se alguém a proclama e alguém a escuta” (LUNT, 2010, p. 88). 92 o comportamento típico de um arqueiro e por isso que Diomedes lhe adereça muitos insultos. A qualidade de Páris como arqueiro (toxótēs) é desprezada: “arco e flecha, embora praticado por certos indivíduos como Páris e Teucro, é o mais longe possível marginalizada, e o termo ‘arqueiro’ pode ser até mesmo usado como um insulto” (RUTHERFORD, 1996, p. 38). Páris segue sua participação em batalha, liderando uma das colunas troianas contra os acaios (XII, v. 93). Eneias, herói troiano de quem já falamos em nossa introdução, chama ao seu auxílio Páris e outros guerreiros (XIII, vv. 489-495). Ainda nesse Canto, Páris mata outro grego, o coríntio Euquénor, estimulado pela perda de um amigo, Harpalião (XIII, vv. 660663; 671-672). Esta é a única vez em que um arco mata um aqueu. Em todas as outras passagens envolvendo tiros de arco, apenas Teucro, arqueiro aqueu, mata com o arco. É interessante perceber que o único arqueiro em atividade do lado aqueu se chama “Troiano”: “Teucro” é outra denominação para o troiano. Isso corrobora a ideia do arco ser uma arma típica desse exército. Geralmente, o arco apenas fere, causando, na maioria das vezes, uma reprimenda daquele que é atingido àquele que atinge, como é o caso de Diomedes e Páris (e ainda de Diomedes e Pândaro). No Canto XV, Páris atinge por trás [ópisthe] Deíoco, quando este se retirava da luta (XV, vv. 341-342). Esta é sua última ação em batalha: a partir daí, ele só é mencionado. Aqui, em seu último ato bélico, nosso herói faz algo que não é bem visto. Afinal, o combate deve ser feito face-a-face e o ataque pela frente do guerreiro. Matar ou ferir pelas costas é desonroso: você não deu oportunidade da pessoa se defender, nem dela ver quem a matou. Aqui aparece uma outra faceta da caracterização do guerreiro Páris, a qual parece ser exclusiva a ele, mas que é mais comum em batalha do que poderíamos imaginar. Em várias passagens, Páris é mostrado sentindo medo. Ele foge do embate singular quando vê que Menelau de fato lutaria com ele (III, vv. 21-37). Sua fuga é inadmissível: ele causou a guerra. O fato de ele ter desencadeado todo o conflito e, ao se deparar com Menelau, recuar de medo, mexe mais com os nervos de Heitor do que o próprio fato de ele simplesmente fugir. O aristocrata, que é um guerreiro, deve enfrentar as batalhas e qualquer fuga é condenável. Ainda no Canto III (vv. 39-45), Heitor ressalta que Páris tem todas as qualidades fenotípicas necessárias aos kaloì kagathoí, mas que seu comportamento não estava condizendo com o de um. Carece-lhe força (bíē phresìn) e coragem (alkḗ). A alkḗ é o traço distintivo do guerreiro, junto com a andreía, a coragem varonil, cara ao gênero masculino. Cremos que ela é o impulso positivo e a qualidade daquele que supera o medo para enfrentar situações-problema; é a justa medida entre insegurança e convicção exacerbada. Ela é uma 93 característica intrínseca do ser humano, mas se manifesta com mais ou menos intensidade em um indivíduo consoante três aspectos: a) predisposição no caráter, na índole do mesmo; b) incitação por parte de outra pessoa ou c) motivação por parte de um outro sentimento. No caso de Páris, a coragem se manifesta pela incitação de outrem, bem como pelo medo de perder Helena: veremos mais adiante que ele aceita devolver os tesouros que ele trouxe de Esparta, mas se nega a devolver a consorte. Quando passamos por essas situaçõesproblema, podemos encará-las imediatamente, ou podemos recuar diante delas, a menos que outra pessoa nos encoraje ou que tenhamos vergonha de recuar, como é o caso de Páris também. O ato corajoso desse herói é mensurado a partir da sua intrepidez diante do confronto com o perigo em um campo de batalha. O valor de um kalòs kagathós consiste na sua coragem. O valente é sempre o nobre, o homem de estatuto social elevado. A vitória é para ele a distinção mais alta e o conteúdo próprio da vida. Do mesmo modo se dá com os atletas: a vitória é essencial para que este possa reclamar para si um estatuto honorífico semelhante ao de um herói, que, ao ficar cara a cara com um igual o enfrenta, à medida que é conduzido “pelo medo da vergonha” (BALOT, 2004, p. 416)48. Ele quer ser reconhecido pela sua bravura, não pela sua fraqueza. Contudo, por mais que o herói deva ser intrépido, isso não implica necessariamente que o ele seja proibido de sentir medo: ele é intrínseco e não é incomum um guerreiro amedrontar-se na Ilíada. Até mesmo Aquiles, o melhor dos aqueus, sente medo. Nicole Loraux mostra que “na epopeia, não há guerreiro que não tenha tremido alguma vez [...]. Não existe o grande guerreiro que não tenha sentido um dia em todo o seu ser o tremor do terror. Como se o medo fosse a prova que qualifica o herói” (LORAUX, 2003, p. 97). Isso se dá porque eles são humanos: o homem é passível de sentir medo, mas isso não o qualifica como um completo covarde. Pelo contrário: “O medo do bravo combatente revela a verdadeira dimensão do perigo que ele enfrente, e que o engrandece” (FONTES, 2001, p. 103). Tanto a coragem quanto o medo coabitam o mesmo indivíduo. Este é corajoso à medida que a coragem sobrepuja o medo; é covarde quando o medo sobrepuja a coragem. Nas palavras de Simon Blackburn, “a coragem não é a ausência de medo (...), mas a capacidade de sentir o grau adequado de medo” (BLACKBURN, 1997, p. 80). Assim, é incorreto afirmar que o medo é diametralmente oposto à coragem, bem como que um herói é totalmente 48 Ryan Balot ainda afirma que a coragem é “a qualidade ou disposição do personagem que faz um indivíduo superar o medo a fim de atingir um objetivo pré-concebido” (BALOT, 2004, p. 407). 94 destemido. Ser covarde não é sinônimo de sentir medo: a covardia implica, também, na recusa total à batalha e o não retorno numa situação de fuga. Contudo, é fato que o medo pesa sobre os troianos e os arqueiros como um elemento desqualificativo porque ele está associado a outras características devalorativas. Por isso que Páris será sempre reprimido, como veremos, mas sem deixar, contudo, de ser um exemplo: além das qualidades aristocráticas que ele porta, quando ele recua em batalha, ele retorna, matando guerreiros inimigos, liderando colunas, incitando os companheiros à luta. Destarte, isso não significa uma contradição da Ilíada, como afirmou Moses Finley (FINLEY, 1982, p. 43)49, mas um aspecto paidêutico: como ser humano, tem-se o direito de sentir medo, de recuar. Ter medo também é comum, como vimos; recuar, entretanto, é uma atitude desonrosa. Por isso que Páris retorna à batalha. Contudo, ele o faz depois de a) ser motivo de graça [khárma] para os inimigos, que riem dele e b) ser censurado por Heitor e Helena: ele sente vergonha de seus atos depois que sua atitude é internalizada como sendo algo indigno de um anêr. Aqui, a némesis de Heitor desencadeou aidṓs em Páris. Nessa censura, Heitor afirma que este carece de bíē (força) e alkḗ (coragem). Contudo, no Canto VI, o mesmo Heitor afirma que todos sabem que Páris é corajoso (álkimos) e tem valor (timḗ). O código de conduta do guerreiro, seja ele de qual lado da batalha for, é o mesmo, bem como a representação dele. Tanto aqueus quanto troianos estão sob esse mesmo código e são representados da mesma maneira, com as mesmas vestimentas em batalha: armam-se do mesmo jeito, como já pudemos ver, com os mesmos tipos de metal, com as mesmas armas. Isso acontece também na imagética, como nos mostra François Lissarague: grego e bárbaro é representado da mesma maneira (LISSARAGUE, 2002, p. 113-114). O que vai diferenciar o contingente troiano do aqueu é justamente o tipo de arma valorizada, não o valor do guerreiro, bem como se enfatizará que mesmo o melhor guerreiro troiano não é páreo para o melhor guerreiro aqueu (Ilíada XXII, v. 158). O problema de Páris é a demora em entrar no campo de batalha, esquivando-se o quanto for possível (“Mas, voluntário te escusas, não queres lutar”). Mas nunca ele a abandona completamente. Essa lição é de extrema importância para os futuros politḗs, guerreiros da pólis, que aprendem a Ilíada e a Odisseia e fazem desse ideal de conduta heroica seu próprio ideal e têm como máxima a sentença “hamarteîn eikòs anthrṓpous”, errar é humano (EURÍPIDES. Hipólito, v. 615). 49 “Muitas vezes o próprio material apresentava contradições internas (...). [Páris] (...) aparece simultaneamente como um desprezível covarde e como um verdadeiro herói” (FINLEY, 1982, p. 43). 95 Destarte, a Ilíada, assim como a Odisseia, configura-se num discurso de legitimação da etnicidade helênica, além de um discurso paidêutico. Aliás, é através da paideía que essa ideologia será passada, de geração em geração, até chegar ao ponto de formar os kaloì kagathoí, aqueles bem-nascidos que virão a governar a pólis e a vencer os jogos helênicos como atletas. Até mesmo durante a Idade Média essas epopeias foram revisitadas e passaram muito tempo sem serem estudadas e questionadas, segundo Carlier, pelo seu caráter de texto religioso. Esse autor afirma que esse movimento de estudo das obras homéricas poderia ser um convite ao questionamento da Bíblia, que também é um texto religioso e de função modelar (no entanto, inserido em uma outra ética, diferente da sociedade de Homero), (CARLIER, 2008, p. 13). Alguns autores, como Robert Aubreton e Richard B. Rutherford, defendem que a Ilíada demonstra preferência pelos troianos. Os argumentos giram em torno de três questões, praticamente: a) a representação familiar do lado troiano e de toda a “sensibilidade” daí oriunda (como a cena entre Heitor e Andrômaca, ou de Hécuba e Heitor); b) o fato dos troianos ganharem a maioria das batalhas e c) a Ilíada terminar com os funerais de Heitor, configurando-o, pois, como o grande herói dessa epopeia. Há problemas nesses argumentos: a “cidade” grega é improvisada, enquanto a troiana é a “cidade” de fato (MACKIE, 1996, p. 1). Isso se dá porque os gregos são os invasores e os troianos são os invadidos. As esposas, pais, filhos pequenos dos gregos ficaram em seus palácios: quem vai à guerra é o anḗr. Assim, é inviável entre os gregos cenas relativas ao oîkos, ao domicílio. Os troianos ganham a maioria das batalhas porque assim quis um grego: Aquiles pede para sua mãe, a deusa Tétis, que interceda junto a Zeus para fazer com que os troianos ganhassem todas as batalhas, a fim de mostrar a Agamemnon o quanto ele fazia falta. Lembremo-nos de que o primeiro Canto da Ilíada trata justamente da rixa que apartou Aquiles da guerra e que a própria narrativa dessa epopeia diz respeito à ira desse herói e das suas consequências. O funeral de Heitor encerra a Ilíada; o de Aquiles, contudo, nem aparece nela. Seria um indicativo de que aquele herói é mais importante do que este e que sua morte seria o grande final do poema. O problema é que a Ilíada não era cantada num dia inteiro para o público: primeiro porque sua récita não demoraria só um dia, visto que ela tem 15.693 versos; segundo, porque esse poema era cantado em episódios nas competições e nos banquetes. Assim, podia se cantar só o episódio da luta entre Menelau e Páris, ou só o episódio em que 96 Helena descreve os guerreiros aqueus, ou só o episódio em que Páris atira em Diomedes e ele o rechaça, e assim por diante. Nem mesmo a divisão em Cantos, como conhecemos, havia sido feita: somente os sábios alexandrinos fariam isso, muitos séculos depois da cristalização do poema na escrita. Desse modo, não podemos pensar os funerais de Heitor como o grande fim da récita: era o grande fim desse episódio. Não há o famigerado the end cinematográfico na Ilíada. Também existem as considerações acerca da bela morte por Teodoro Rennó Assunção, que exploramos em nosso trabalho. O que importa é o que o herói faz em vida: sua morte é o fim de suas façanhas, incluindo o matar. Por isso que Aquiles não precisa morrer no poema para ter seu valor corroborado. O que corrobora o valor de Aquiles na Ilíada pode ser justamente o funeral de Heitor: assim como este seria honrado e rememorado pela morte do guerreiro homenageado (VII, vv. 81-91), Aquiles o será pela morte de Heitor. Comparando hipoteticamente, se Aquiles viesse a morrer na Ilíada, o valor de Páris, seu assassino, seria corroborado. E Homero não queria mostrar isso: Páris, embora exemplo, ainda é um transgressor das leis da xénia, valor caro aos helenos e a todos os habitantes do Mediterrâneo (VLASSOPOULOS, 2013, p. 90), e causador de uma guerra que fez perecer uma geração de hemítheoi, semideuses (os heróis). Em virtude do apresentado nesse capítulo, pudemos ver que os heróis, embora partilhem aspectos em comum de sua categoria, não se constituem de uma massa indistinta, homogeneamente constituída: cada herói tem a sua peculiaridade. A de Agamêmnon é a sua liderança, a de Odisseu sua métis, a de Ájax sua força física e a de Páris... sua beleza. Homero consegue construir personagens diferentes, que não agem da mesma maneira, embora sejam arautos de um mesmo código de conduta. Entretanto, embora sejam regidos por esse ideal de conduta, os troianos são diferentes dos aqueus: o uso que eles fazem desse código ético é diferenciado às vezes. Páris mesmo é um transgressor e, embora tente consertar seus erros, continua sendo o causador da guerra que tanto gera sofrimento a ambos os lados. Ele ainda está em estado de átē. Por isso, seu valor bélico é diminuído: como destacar alguém que causou uma guerra? John A. Scott vê isso como uma inovação de Homero: Páris seria o principal guerreiro troiano, mas, como desrespeitou a xénia, causando a Guerra de Troia, perdeu seu posto para Heitor, que seria um personagem inventado para receber todas as características as quais teriam pertencido ao próprio Páris na tradição mítica (SCOTT, 1913). 97 Essa ideia, contudo, não possui argumentação suficiente para comprovação, até mesmo porque o nome de Heitor já constava nas tabuinhas de Linear B (CHADWICK, 1970, p. 98). Não podemos ir além da documentação e afirmar que esse ou aquele personagem é uma criação exclusiva de Homero, visto que a Ilíada e a Odisseia são o resultado de inúmeras tradições orais posteriores à composição das obras. Assim como Eurípides reelabora os mitos da tradição épica em suas tragédias, Homero também o faz em suas epopeias: “os materiais que o poeta utiliza para recordar são versáteis, móveis, feitos de fórmulas, de episódios e de um repertório de informações variado que pode se empregado com certa liberdade e adequado às conveniências poemáticas e melódicas” (NUÑEZ, 2011, p. 239). É por essa razão que os poemas homéricos não foram os primeiros do processo discursivo sobre o qual nos debruçamos, sendo “obras musicais [...] [que] formam um todo orgânico no qual poesia e música se interpenetram e intercambiam significados” (NUÑEZ, 2011, p. 239-240 – grifos nossos). Do mesmo modo, Eurípides ainda está longe de ser a última etapa desse processo: a poesia épica e trágica influencia nosso próprio modo de escrever, permanecendo ainda viva na nossa memória social. E, assim como a poesia, o herói é, ele mesmo, um todo orgânico (LUKÁCS, 2000, p. 66) no que diz respeito ao seu código de conduta, mas particularizado como indivíduo, pois um herói nunca é igual a outro herói. Desse modo, a representação de Páris não é, em hipótese alguma, a representação de um anti-herói. Primeiramente, porque é anacrônico denomina-lo desse modo: Massaud Moisés nos mostra em seu Dicionário de Termos Literários que a ideia de anti-herói é intrínseca ao romance do século XVIII. Para ele, “o anti-herói não se define como a personagem que carrega defeitos ou taras, ou comete delitos e crimes, mas a que possui debilidade ou indiferenciação de caráter, a ponto de assemelhar-se a toda gente” (MOISÉS, 1999, p. 29). Além disso, “o herói eleva e amplifica as ações que pratica, o anti-herói as minimiza ou rebaixa” (MOISÉS, 1999, p. 29). Os heróis de Homero e de Eurípides não são comuns a todas as pessoas: eles representam um passado mítico anterior àqueles que ouvem as epopeias e assistem às representações teatrais. São “imagens limites” (ROMILLY, 2013, p. 31), que representam o extremo das ações e emoções, visto que são paidêuticos. O herói, como vimos, é um hemitheós, alguém acima do homem comum e inferior aos deuses, pois é mortal, como nós, como o público dos poetas, possuindo atitudes semelhantes (visto que são humanos também), mas, definitivamente, com um estatuto diferenciado dos brotoí comuns. Páris, na tragédia, quando personagem, ainda exerce esse papel: ele não se torna “menos herói” por ser um 98 doúlos, um boukólos, visto que essas histórias acerca de Troia pertencem também à mitologia grega e a ambientação em Troia também é uma estratégia para provocar catarse: as vítimas da Guerra de Troia estão sendo sempre comparadas às vítimas da própria Guerra do Peloponeso. Edith Hall mostra como mesmo esses displacement plots (roteiros de deslocamento) servem para legitimar a identidade helênica, definindo suas fronteiras étnicas: Mesmo com a pluralidade étnica da tragédia e o seu interesse em heróis e comunidades espalhadas por distâncias vastas pelo mundo conhecido, o foco ateniense, o “atenocentrismo” da tragédia, é manifestado de muitos jeitos. [...] mesmo peças com nenhum foco óbvio em Atenas incluem frequentemente um aition [sic], uma explicação pelo mito, das origens dos costumes atenienses: [...] os tragediógrafos usavam comunidades outras sem ser Atenas como lugares para autodefinição étnica; o mundo bárbaro frequentemente funciona na imaginação trágica como o lar dos vícios (por exemplo, o despotismo persa, a falta de lei dos trácios, a efeminação e a covardice orientais) concebidas como correlativos às virtudes democráticas atenienses idealizadas: liberdade de fala, equanimidade diante da lei e coragem masculina (HALL, 1997, p. 100). O bárbaro é a matéria-prima sobre a qual os gregos definem suas fronteiras étnicas: é observando-o que eles constroem a si mesmos. Claude Mossé corrobora esse aspecto, ao afirmar que “essa alteridade do bárbaro, entretanto, não é necessariamente negativa; é apenas o avesso da civilização encarnada pelo grego” (MOSSÉ, 2004, p. 55). Entretanto, esse processo de classificação não é exclusivo ao século V a.C.: já em Homero podemos ver um esforço de definição dessas fronteiras, quando o poeta caracteriza os troianos (sobretudo Páris) para desenvolver uma caracterização que implica numa diferenciação pautada ao mesmo tempo na valorização do inimigo, o qual não pode ser inferior a fim de enaltecer a vitória, e na marcação de alteridades em relação a ele. 99 CONCLUSÃO “Se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber”. (Ítaca – Konstantinos Kaváfis)50 Em virtude do apresentado, pudemos compreender que a análise da Ilíada, da Odisseia e das tragédias do ciclo troiano de Eurípides vai além da simples tentativa de comprovação de feitos heroicos, da existência de uma guerra, da existência do próprio aedo e da correlação simplista com eventos da “realidade histórica”. É mais profícuo buscar a compreensão das estruturas políticas, econômicas, sociais, culturais, religiosas e institucionais da época em que os poemas foram compostos, traçando como os gregos conseguiram construir e consolidar suas fronteiras étnicas de forma dinâmica. Além disso, a rememoração dos heróis e de suas façanhas é importante para a configuração de todo um código de conduta helênico, corroborando a ideia de uma função paidêutica das obras homéricas e trágicas. No tocante à historicidade desses heróis, ela está ligada, por um lado, ao papel que suas personalidades desempenham na vida do público 50 Tradução de José Paulo Paes. Disponível em http://www.org2.com.br/kavafis.htm. 100 helênico – que os rememoram e os cultuam – e, por outro, à ligação inextricável entre o autor, que compôs os textos, e o seu contexto histórico, fazendo com que a trama e os heróis sejam constituídos com base na própria sociedade na qual eles vivem e conhecem. Lembremo-nos de que a Ilíada, por ter sido composta posteriormente, diz respeito mais as características deste período do que do período no qual se travou a guerra de Troia, a época palaciana. No contexto da pólis, as características caras à personalidade de Páris não serão preteridas na paideía. Pelo contrário: Aristóteles, no século IV, dedica um espaço em sua Política a considerações sobre o ensino da música e da ginástica, a qual objetiva, dentre outras coisas, a manter o equilíbrio físico do cidadão. No tocante ao nosso objeto principal, Páris, concluímos que ele, como personagem da Ilíada, desempenha um modelo de como agir para os ouvintes da epopeia. Isso se dá porque ele demonstra atitudes condizentes com a de um herói, ou seja, o protagonista desses poemas de exaltação das façanhas desses seres extraordinários, que viveram numa época precedente à época dos simples humanos, que vivem à sombra desse passado glorioso. Devemos ter em mente que Páris, mesmo não demonstrando muita destreza na guerra, não deixa de ser um herói: ele possui essas características intrínsecas a eles. Heitor, ao mesmo tempo que o chama de covarde no Canto III, irá reconhecer que ele possui coragem, no Canto VI, como já vimos em uma citação anterior. Quando Páris comete um ato indecoroso, procura corrigi-lo, a fim de reaver a sua honra; assim acontece quando ele retorna para combater com Menelau e retorna à guerra no Canto VI. Páris também tem a sua bela morte, seja falecendo no campo de batalha, seja matando. A Ilíada, como influenciadora do discurso trágico, mostra um herói humano e, portanto, em sua singularidade e em sua relação com a sociedade na qual ele está inserido. Essa sociedade o reconhece como um áristos, um melhor, aquele que deve liderar; contudo, para isso, ele deve demonstrar, pelas suas atitudes, que é digno de seu posto: deve zelar para que sua timḗ, sua honra, não seja manchada através de ações que ponham em xeque sua aretḗ, sua virtude, causando a némesis da sociedade e seu próprio aidṓs. Um herói pode fraquejar, tremer, sentir medo, mas este não deve sobrepujar o ímpeto de ficar e lutar. Quando ocorre a fuga, o retrocesso, este deve ser corrigido, a fim de que se restaure a timḗ e de que aquele que fugiu não seja alvo da némesis dos seus ísoi. É isso o que acontece com Páris, que é muito mais do que uma simples “contradição da epopeia”: ora ele se mostra corajoso, ora ele se mostra temente, pois é a representação de um ser humano. Ele 101 recua e retorna à batalha, configurando-se num exemplo de como se agir, mas, de fato, ele é representado de uma maneira diferente e singular pelo poeta. Isso se dá devido à problemática da alteridade, da qual tratamos no capítulo sobre Homero: Páris será representado como um modelo de conduta, mas também como um estereótipo do Outro. Inúmeros heróis aqueus poderiam servir para expressar esse movimento de fuga/retorno, mas um herói troiano é escolhido. Aliás, a maioria dos heróis que fogem na Ilíada é troiana. O caso de Páris se configura num problema de alteridade interna, tanto por ele ser o inimigo na guerra (o troiano) quanto por ser o transgressor de normas, inclusive, universais (no caso a xénia, ou seja, a hospitalidade). Este modo de caracterizar Páris, ao longo do tempo, vai cada vez mais sobrepujar-se à sua representação como um kalòs kagathós helênico e, gradativamente, esse personagem deixará de ser o theoeidḗs para ser o bárbaros, sobretudo na tragédia. Mas essa questão não diz mais respeito ao nosso trabalho aqui desenvolvido em torno da Ilíada, um poema composto cerca de três séculos antes desse gênero teatral ser cristalizado culturalmente nas póleis. Em Eurípides, o herói não perde uma dimensão paidêutica, mas está mais ligado à ideia do erro: o herói erra e aprendemos com esses erros. Páris não deixa de ser um herói, pois pertence à tradição mítica, mas se torna na tragédia, de uma vez por todas, o bárbaro. Tivemos por objetivo, com essa dissertação, analisar a representação de Páris na épica homérica e nas tragédias de Eurípides, perscrutando as mudanças sociais e culturais que estão presentes nos textos literários. Defendemos que a Ilíada já traz a ideia de identidade/alteridade helênica, mostrando um discurso étnico que legitima a centralidade aqueia em detrimento da troiana e como essa diferenciação influencia na construção do bárbaro na poesia trágica. Também mostramos como a epopeia e a tragédia pertencem a um mesmo espaço discursivo, tornando profícua a nossa análise e utilizando a Análise de Discurso francesa para tal. Acreditamos que essa diferenciação entre gregos e troianos, em Homero, não diz respeito a uma diferenciação entre o grego e o bárbaro, ou entre o grego e o estrangeiro, mas entre dois grupos étnicos: um que está no Peloponeso e outro que se encontra na Ásia Menor, reapropriando o código de conduta grego e estabelecendo contatos com culturas nãohelênicas. Mas, historicamente, são os troianos gregos? Não podemos afirmar com certeza absoluta. Primeiramente porque as datas são fluidas: convenciona-se, através de estudos arqueológicos e filológicos que Homero compõe no século VIII a.C. Convenciona-se que a Guerra de Troia aconteceu no século XIII a.C. 102 Além disso, lidamos com um problema caro à História Antiga: documentação. Ela é escassa e nas escavações poucos materiais escritos foram encontrados. Achou-se um selo com hieróglifos luvitas no sítio arqueológico de Hissarlik (antiga Troia, hoje na Turquia), o qual data provavelmente do segundo milênio antes de Cristo; entretanto, como podemos ter certeza de que ele foi produzido lá? Sendo um nó comercial importante, vizinha do Helesponto, o que garante que aquele selo não foi parar em Troia através de comerciantes? Segundo o hititologista holandês Alwin Kloekhorst, a hipótese luvita (que se destacou em 1995) vem sendo bastante questionada e ele defende que é mais provável que a língua falada em Troia nessa época fosse o lêmnio, oriundo da região de Lemnos e que deu origem ao etrusco. Ele também mostra que Troia, na época da guerra, provavelmente não era grega: Trūiša (uma região de Wilǔsa, que seria Troia), estava sob domínio hitita, embora haja evidências de embates entre os ahhiyawa (aqueus) e esse povo pelo domínio da região na época. Contudo, a partir do século VIII a.C. (quando Homero compõe seus poemas e os gregos entram em processo de “colonização”), provavelmente havia “Greek-speakers” na região onde fora Troia (KLOEKHORST, 2013, p. 48). Ela era parte das apoikíai (“colônias” gregas)51. O historiador americano Barry Strauss corrobora a ideia de Kloekhorst, afirmando que Troia era uma cidade grega desde 750 a.C., quando foi povoada por colonos gregos, e assim se manteve durante toda a Antiguidade (STRAUSS, 2008, p. 28). Desse modo, o mundo das apoikíai seria diretamente influenciado pela cultura e língua gregas. Vlassopoulos coloca que essas “colônias” eram loci privilegiados tanto de trocas culturais entre gregos e outros povos, bem como, paradoxalmente, ajudaram a consolidar um modelo forte do que é ser grego: o processo de criar apoikíai fizeram o modelo de uma comunidade grega se tornar abstrato e canônico: uma comunidade com um corpo de cidadãos divididos entre tribos, governado por magistrados, conselhos e assembleia, equipado com um tipo particular de espaço público (agorá) e adornado com um tipo particular de templo e edifício público (teatro, casa concelhia, ginásio) (VLASSOPOULOS, 2013, p. 277). Os troianos são um grupo étnico dentro da comunidade helênica no discurso de Homero, tendo em Páris a síntese de alteridade, visto que ele desrespeita códigos helênicos. Muitas das características desse personagem são reapropriados por Eurípides para caracterizar o bárbaro (inclusive ele mesmo, que já será denominado bárbaros em suas tragédias). Dentre esses 51 Kostas Vlassopoulos explica que não é apropriado atribuir o conceito de “colônia” aos movimentos expansionistas gregos do século VIII, pois a “colonização” grega é completamente diferente da colonização moderna (2013, p. 103). 103 pontos de diferenciação estão a predominância do arco como arma de guerra, a capacidade de se submeter o exército inimigo (como pudemos ver com a análise dos símiles de animais, mas sem deixar de valorizar esse inimigo, para a vitória ser gloriosa), o excesso de ouro, a expressão verbo-corporal (discurso defensivo e dissuasivo, o esconder-se, o jactar-se), as vestimentas, o excesso de medo, a lida com as artes musicais, a luxúria, a efeminação (do aliado cário), a súplica pela vida e a procrastinação para entrar em batalha. Eurípides, por sua vez, explora ao máximo esses elementos e os troianos já se encontram completamente frigianizados, ligados à Ásia e sendo mostrado como bárbaros. Os gregos que agem como bárbaros são comparados aos troianos, bem como eles estão sempre sendo designados desse modo. Assim, também, a própria fronteira do que é bárbaro e do que é grego encontra-se cada vez mais turva: há uma crise nessa definição e o grego, em Eurípides, pode barbarizar-se facilmente, visto que está em meio a uma guerra. A produção historiográfica acerca da etnicidade helênica tem sido cada vez mais comum e esperamos que nossa pesquisa contribua para essa discussão. Esperamos, ademais, que ela contribua para as análises acerca dos poemas homéricos e das tragédias de Eurípides, que têm sido cada vez menos comuns. Com essa dissertação, objetivamos, também, fomentar o interesse pelo tema e novas pesquisas acerca dessa temática. Cremos ser muito importante o estudo da literatura grega, porque ela foi o norte da sociedade helênica e reverbera até os dias de hoje, seja em produções fílmicas ou na literatura. A funcionalidade paidêutica dos textos que estudamos contribui para tal movimento, bem como a própria importância desse legado cultural oriundo dos gregos, o qual também se faz sentir até hoje no modo de pensar, de construir, de escrever. Pudemos ver, com a análise de Páris, como o autor da Ilíada trabalha com a ideia do herói e como, através de sua representação, ele define as fronteiras étnicas que perpassam essa paideía a qual está presente também nas tragédias de Eurípides, que corroboram e reapropriam esses elementos de diferenciação através da construção dos personagens, sobretudo de Páris, o bárbaro. Outrora, a Grécia possuía uma grande extensão territorial e sua importância política, econômica e cultural era, grosso modo e com fins assimilativos, tão grande quanto a da Inglaterra a partir da Primeira Revolução Industrial e a dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, o pequeno país europeu, que aparece nos jornais diariamente devido a um período de crise e necessidade, ainda exerce uma influência muito grande no que diz respeito a esse legado, que permanece de pé. A cultura helênica e o estudo acerca desta ainda não estão em vistas de entrar em crise. 104 Anexo | TABELA DE TRANSLITERAÇÃO LETRA GREGA TRANSLITERAÇÃO α a ᾳ a β b γ g δ d ε e ζ z η ē ῆ ê ῃ ē θ th 105 ι i κ k λ l µ m ν n ξ x ο o π p ρ r ῥ rh σ, ς s τ t υ y (entre consoantes), u (em ditongos) φ ph χ kh ψ ps ω ō ῶ ô ῳ ō Observação sobre os espíritos: o grego antigo possui uma marcação específica, denominada espírito. Ele vem sobre todas as vogais, o rô (ρ) inicial e as semivogais dos ditongos que iniciarem a palavra. O espírito pode ser fraco ou forte; quando ele é fraco (’), a vogal se pronuncia normalmente e quando ele é forte (‘), a vogal é pronunciada de modo aspirado, como se estivesse sendo acompanhada por um erre (r). O rô do início das palavras sempre terá espírito forte, visto que ele já é aspirado, conforme está na tabela. Quando transliteradas, as palavras com espírito forte possuem um agá (h) na frente. Assim, por exemplo, a palavra 106 οὐρανός (céu) é transliterada como ouranós; ἁµαρτία (falha), como hamartía; ῥῶ (a letra grega ρ), como rhô, com o agá entre o erre e a próxima letra. Observação sobre os conjuntos γγ, γκ e γχ: quando aparecem essas consoantes juntas, o primeiro gama é transliterado como ene (n), pois ele se nasaliza. Assim, por exemplo, ἀγγελος (mensageiro) é transliterada como ángelos; ἀναγκαία (necessidade), como anankaía; ἐγχανδής (amplo), como enkhandḗs. REFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS Documentação Textual ARISTOTE. Histoire des animaux – livre VIII. Trad. J. Barthélemy Saint-Hilaire. Paris: Hachette, 1883. Disponível em: http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/aristote_hist _animaux_08/lecture/default.htm. Acesso em: 28/11/2013. ARISTÓTELES. Política. Trad. 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