A QUESTÃO DA INCONVERSIBILIDADE DA MOEDA

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A QUESTÃO DA INCONVERSIBILIDADE DA MOEDA
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A QUESTÃO DA INCONVERSIBILIDADE DA MOEDA: EXPERIENCIA
RECENTE DO ESTADO BRASILEIRO
Marcelo Pereira Fernandes (UFRRJ)
Alexandre Jerônimo de Freitas (UFRRJ)
RESUMO
O Brasil, como as economias periféricas em geral, possui uma fragilidade financeira
estrutural materializada na sua incapacidade de emitir dívida em sua própria moeda no
mercado internacional. Porém, nos últimos anos o Brasil tem ampliado sua capacidade
de financiamento, atenuando aquilo que ficou conhecido na literatura como pecado
original. O objetivo deste artigo é analisar quais são as raízes desta melhora quanto à
capacidade de financiamento do país, que gerou uma maior resistência financeira à crise
internacional para o caso brasileiro e tentar responder se este processo representa uma
transformação estrutural ou seria apenas o fenômeno conjuntural.
Palavras-Chave: inconversibilidade, dívida, crise financeira, Brasil
ABSTRACT
Brazil, as the peripheral economies in general, has a fragile financial structure embodied
in its inability to issue debt in its own currency in the international market. But in recent
years Brazil has increased its financing capacity, reducing what is known in the
literature as original sin. The aim of this paper is to analyze what are the roots of this
improvement in their ability to finance the country, which created greater financial
resilience to the international crisis in the Brazilian case and try to answer whether this
process represents a structural change or cyclical phenomenon.
Key-Words: inconvertibility, debt, financial crisis, Brazil
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A QUESTÃO DA INCONVERSIBILIDADE DA MOEDA: EXPERIENCIA
RECENTE DO ESTADO BRASILEIRO
Marcelo Pereira Fernandes (UFRRJ)
Alexandre Jerônimo de Freitas (UFRRJ)1
1 – INTRODUÇÃO
A fragilidade financeira das economias periféricas é uma questão amplamente
discutida na literatura, principalmente, latino-americana. Suas raízes podem ser
encontradas não apenas na estrutura econômica nacional como também nas assimetrias
do sistema monetário e financeiro internacional.
As economias periféricas podem financiar sua divida pública através do
mercado doméstico ou nos mercados internacionais, assim como suas dívidas podem ser
emitidas na moeda local ou em divisas estrangeiras. Historicamente tais economias
sempre encontraram dificuldades em se financiarem nos mercados locais e quase
sempre em moeda estrangeira. Esta dificuldade tornou-as dependentes financeiramente
de ciclos de liquidez dos mercados internacionais e extremamente suscetíveis as crises
financeiras internacionais.
A eclosão da crise financeira de 2008 nos Estados Unidos logo se alastrou para a
Europa, levando a economia mundial a sua maior crise desde a grande depressão da
década de 1930. No entanto, parte das economias periféricas não só não foram as
tradicionais primeiras vítimas da crise como conseguiram manter um ritmo de elevado
crescimento econômico. Mais ainda, neste período alguns países sul-americanos, dentre
eles o Brasil, foram capazes de emitir dívidas nos mercados internacionais em sua
própria moeda além de reduzir sua exposição à crise financeira amortizando grande
parte de sua dívida pública em moeda estrangeira.
O objetivo deste artigo é analisar quais são as raízes desta melhora quanto à
capacidade de financiamento do país, que gerou uma maior resistência financeira à crise
internacional para o caso brasileiro e tentar responder se este processo representa uma
transformação estrutural ou seria apenas o fenômeno conjuntural. Além desta
introdução o artigo está divido em mais três seções. Na segunda seção analisaremos os
conceitos de pecado original e “intolerância à dívida”, utilizados pelo mainstream
econômico para destacar as dificuldades financeiras daqueles países que não conseguem
emitir dívida em sua própria moeda. Na terceira seção será dedicada a uma visão
heterodoxa do mesmo fenômeno. Na quarta seção será apresentado o caso brasileiro nas
1
Professores do Departamento de Economia da UFRRJ.
3
últimas décadas e, por fim, na última seção constarão algumas breves considerações
finais.
2 – PECADO ORIGINAL E DEBT INTOLERANCE
Há um consenso entre os economistas a respeito do caráter assimétrico do
sistema monetário internacional. Porém, o consenso acaba neste reconhecimento. Muito
mais polêmicas são as discussões sobre suas origens, suas causas, e as consequencias
deste fato sobre as economias nacionais.
O reconhecimento das assimetrias entre as moedas das economias periféricas e
centrais levou alguns autores a formular, por sua vez, a hipótese da existência de um
“pecado original” (original sin) na raiz desse problema (Eichengreen e Hausmann e
Panizza, 2003; Eichengreen, Hausmann e Panizza, 2002). Essa linha de abordagem
privilegia a (in) capacidade de um país, por um lado, de emitir dívida na sua própria
moeda no mercado internacional2 e, por outro, gerar fontes de financiamento de longo
prazo nos mercados domésticos. Esse problema introduz um alto grau de volatilidade do
produto e dos fluxos de capitais, além de diminuir o grau de autonomia da política
monetária (Eichengreen Hausmann e Panizza, 2003).
De acordo com esses autores, observa-se que nas economias periféricas existe
uma expressiva correlação positiva entre o pecado original e a volatilidade
macroeconômica, que pode ser explicado por três fatores: i) a limitada capacidade das
autoridades operarem com políticas anticíclicas; ii) a baixa capacidade do banco central
em atuar com emprestador de última instância numa economia com elevados passivos
em dólar e; iii) os custos da desvalorização do câmbio por conta do estoque de dívidas
denominadas em dólar (Eichengreen, Hausmann e Panizza, 2003, p.19)
Assim, a volatilidade macroeconômica dificulta extremamente o desempenho
das economias que sofrem do pecado original. Uma desvalorização cambial, por
exemplo, não apenas esbarra no problema do descasamento de moedas na estrutura
patrimonial da economia (currency mismatch), mas também no risco de repasse da
desvalorização do câmbio para os preços (efeito pass-through) que tende a ser mais
elevado nas economias periféricas. Nessas condições, a escolha da política cambial, um
importante instrumento de reativação de uma economia em recessão, se torna uma
opção muito custosa e incerta. Por isso, uma das consequencias do pecado original é a
tendência das economias periféricas em acumular reservas internacionais como forma
de se proteger dos potenciais efeitos desestabilizadores das finanças internacionais
(Eichengreen e Hausmann e Panizza, 2007, p.131).
Eichengreen e Hausmann e Panizza (2003) buscam explicar a causa do pecado
original a partir, principalmente, do tamanho das economias, expresso em termos de
produto, comércio e crédito doméstico. A hierarquia entre as moedas reflete a existência
de economias com maior peso no cenário internacional, que possuem por decorrência as
2
Eichengreen e Hausmann (1999) consideravam também a impossibilidade do país emitir
dívida de longo prazo internamente na sua própria moeda, o que seria a face doméstica do pecado
original. Mas a estabilidade de preços alcançada nos anos 1990 por várias economias periféricas tornou
possível o endividamento a longo prazo internamente na sua própria moeda, como reconhecem
Eichengreen e Hausmann e Panizza (2003). Neste trabalho estamos considerando a emissão de dívida de
longo prazo, uma vez que, no caso brasileiro ainda é uma dificuldade considerável para o governo.
4
moedas mais demandadas. Além disso, os mercados financeiros mais profundos,
localizados nas economias mais desenvolvidas, permitem aos agentes ampliarem seus
investimentos em uma vasta gama de produtos financeiros com maior liquidez e com
isso diminuírem os riscos de perdas, situação frontalmente distinta das que se verificam
nas demais economias.
É possível analisar também o conceito do pecado original a partir das
dificuldades domésticas dos Estados das economias periféricas em emitir títulos de
dívida de longo prazo em seus mercados domésticos. Estas estariam relacionadas ao
histórico de políticas econômicas equivocadas que provocariam maior volatilidade
macroeconômica e instabilidade monetária (Jeanneu e Tovar, 2006).
Este ambiente econômico seria muito hostil a emissão de ativos financeiros com
longo prazo de maturação resultando num mercado de títulos doméstico eminentemente
de curto prazo. Esta estrutura de endividamento do governo e da iniciativa privada
contribuiu para as crises sofridas na década de 1990 quando a fuga de capitais
pressionou a moeda e exigiu elevação nos juros. Devido ao caráter de curto prazo da
dívida os agentes sofreram uma pressão muito grande quando os custos para a rolagem
da dívida se elevaram. Os países que dependiam de dívidas denominadas em moedas
estrangeiras sofreram mais (Jeanneu e Tovar, 2006, p.56)
No entanto, o problema decisivo não estaria no histórico de políticas
econômicas equivocadas, alta inflação ou fracas instituições. Segundo os autores, e isso
merece destaque, mesmo economias periféricas com instituições sólidas, inflação baixa
e orçamento equilibrado também sofrem restrições financeiras externas e internas3. A
análise desenvolvida por Eichengreen, Hausmann e Panizza (2002; 2003) tem o mérito
de também reconhecer a existência de uma estrutura assimétrica do sistema financeiro
internacional como uma questão crucial para as economias periféricas.
Outra forma de analisar o mesmo fenômeno encontra-se no conceito de
“intolerância ao endividamento” (debt intolerance), que parte de um ponto de vista
contrário ao pecado original. Para autores como Reinhart, Rogoff e Savastano (2003) o
problema das economias que não conseguem emitir moeda conversível é de origem
essencialmente doméstica. Segundo eles, tais economias apresentam um histórico de
políticas econômicas equivocadas que se traduzem no recorrente não pagamento de
compromissos externos (serial defaulters) e nos processos inflacionários crônicos. E, as
ações irresponsáveis quanto ao cumprimento das obrigações externas realizadas no
passado são levadas em consideração pelos investidores no presente (history matters).
Isto levaria a uma estrutura fiscal frouxa, e a um sistema financeiro doméstico pouco
dinâmico e instável. Segundo os autores, problemas desse tipo estão presentes há dois
séculos nessas economias.
A intolerância ao endividamento se manifesta na forte pressão sobre as
economias periféricas em relação aos níveis de endividamento considerados admissíveis
pelos padrões das economias centrais. A incapacidade de endividamento na sua própria
moeda e a dificuldade de obter financiamento externo de longo prazo são conseqüências
da intolerância. As economias que sofrem do problema estão sujeitas a uma elevada
3
Eichengreen, Hausmann e Panizza (2007) citam o exemplo do Chile como um país com sólidas
instituições e políticas econômicas estáveis que não consegue emitir dívida externa em sua própria
moeda.
5
volatilidade macroeconômica, mesmo nos períodos em que a economia mantém acesso
ao financiamento externo.
Seguindo o raciocínio da intolerância ao endividamento, na tese do “medo de
flutuar” (fear of floating), Calvo e Reinhard (2000) questionam a afirmação de que um
número crescente de economias nacionais passou a seguir o regime de câmbio flutuante.
Os autores ressaltam que, na verdade, a maioria emprega variados mecanismos que
impedem a livre flutuação da taxa de câmbio. As autoridades das economias periféricas
não permitem a livre flutuação do câmbio por receio de seus impactos sobre a inflação e
sobre a dívida externa privada e pública. Esse receio faz com que as taxas de juros
sejam voláteis e a política de juros tenha um caráter eminentemente pró-cíclico, no
sentido de que uma desvalorização do câmbio, é acompanhada de uma alta dos juros4.
De certa forma, a tese do medo de flutuar tenta reforçar a noção da intolerância
ao endividamento quanto à responsabilidade das autoridades econômicas pela alta
volatilidade que determinadas economias estão sujeitas. Ela secundariza o fato de que a
volatilidade das moedas de qualidade inferior decorre da estrutura do sistema monetário
e financeiro internacional. Ademais, mesmo nas economias desenvolvidas não
prevalece a flutuação pura. Ocorrem intervenções seletivas e por vezes coordenadas dos
bancos centrais que procuram atenuar a volatilidade das moedas ou impedir períodos
prolongados de subvalorização ou sobrevalorização cambial5 (Batista Junior, 2005;
Brunhoff, 2005).
Soma-se a isso que, segundo Damill, Frenkel e Rapetti (2005), os casos de
problemas de endividamento, o passado remoto (dois séculos, como querem os
defensores do debt intolerance) é simplesmente irrelevante. No inicio dos anos 1970
quando os bancos privados internacionais precisavam descarregar sua enorme liquidez
após 40 anos de um mercado de capitais internacional praticamente inexistente, as
dívidas externas tinham expressão muito limitada e estavam concentradas nos governos
e organismos multilaterais. Além disso, em relação à Argentina, lembram os autores,
caso o passado remoto tivesse realmente importância o país teria se beneficiado nas suas
avaliações de risco-país, já que foi o único latino-americano que não entrou em default
na depressão dos anos 1930.
3 – UMA CRÍTICA HETERODOXA
Os problemas da assimetria monetária levantados por autores de tradição
heterodoxa possuem um tratamento diferente no que tange as suas causas e nas formas
como se propagam nas economias nacionais e através do sistema monetário
internacional.
Segundo Carneiro (2008, p. 545) as teorias sobre a incapacidade dos países
periféricos em emitir dívida em sua própria moeda nos mercados financeiros
4
Segundo Calvo e Reinhart (2000, p.7), em face da desvalorização do câmbio, as autoridades
vivem um dilema: o aumento dos juros poderá criar dificuldades para o setor real e financeiro da
economia. Por outro lado, a manutenção das taxas de juros debilitará ainda mais a credibilidade. No fim, a
busca pela credibilidade forçará as autoridades a aumentar os juros e estabilizar o câmbio.
5
Por exemplo, em 2003 as autoridades norte-americanas junto com seus pares europeus e
japonês atuaram em conjunto para desvalorizar o dólar. (Cf. Brunhoff, 2005, p.81).
6
internacionais são motivadas pelas razões que impedem as moedas periféricas
transformem-se em reserva de valor. Até os anos 1990, a atrofia da função reserva de
valor das moedas nacionais, que implicava numa resistência dos agentes econômicos em
adotar posições ilíquidas, era vista como motivada pela incerteza gerada pela
instabilidade monetária promovida pelos longos anos de alta inflação.
Nestas condições, pelo lado doméstico, o financiamento de longo-prazo no
mercado doméstico era inviável devido à elevada preferência pela liquidez dos agentes
e, no âmbito internacional, as moedas destes países carregavam um risco cambial, que
facilmente poderia descambar para um risco de default. Isto por sua vez, impedia que os
países emitissem títulos em moeda local nos mercados financeiros internacionais
(Carneiro, 2008, p. 543).
A partir deste raciocínio a estabilização monetária vigente nos países da região
desde a década de 1990 deveria ter propiciado as condições necessárias para que fosse
possível a emissão de títulos públicos de longo prazo nos mercados domésticos. Logo, o
motivo para a existência do pecado original, deslocou-se do âmbito doméstico para o
externo através da hipótese de que seria o valor externo da moeda condicionado pelo
seu status na hierarquia de moedas que constitui no sistema monetário internacional o
motivo maior.
Carneiro (2008, p. 548) sugere uma abordagem alternativa baseada na hipótese
de que “a estabilidade de preços obtida no plano doméstico não se traduz
necessariamente em estabilidade monetária, ou seja, a estabilização do valor interno da
moeda não se transmite à estabilidade do valor externo da moeda”. Para o autor a
causalidade é contrária: seria a instabilidade no valor externo da moeda o motivo
fundamental para a instabilidade de seu valor doméstico.
A principal razão encontrar-se-ia na própria constituição do sistema monetário
internacional, fortemente hierarquizado. Esta hierarquia parte de uma moeda reserva –
hoje o dólar – que não possui nenhum prêmio de liquidez, cumprindo o papel de ativo
sem risco do sistema, para formar uma pirâmide cujas escalas se diferenciam pelo risco
das demais moedas em relação ao dólar. No topo encontram-se as moedas conversíveis
na moeda reserva e que não sofrem do pecado original, e a base é formada pelas moedas
periféricas avaliadas como de risco elevado pelos mercados financeiros e por isso são
tidas como incapazes de cumprir a função de reserva de valor pelos investidores
internacionais.
A questão das assimetrias do sistema monetário internacional já havia sido
identificada por Keynes na sua obra Treatesie on Money (Belluzzo e Almeida, 2002;
Prates e Cintra, 2008). Na visão de Keynes, a existência de uma hierarquia entre as
moedas implica em graus diferentes de autonomia das políticas monetárias praticadas
pelas nações no sistema internacional desde os tempos do padrão-ouro. Sem poder
emitir dívida externa em sua própria moeda as economias periféricas são obrigadas a
recorrer ao mercado financeiro internacional, o que determina importantes assimetrias
nos processos de ajustamento no balanço de pagamentos entre devedores e credores
(Belluzzo e Almeida, 2002, p.57).
Porém, mesmo entre as economias periféricas, a assimetria não é igual para
todas. De acordo com Carneiro (2008, p. 551), alguns países do leste asiático encontrarse-iam numa situação intermediária na qual suas moedas possuiriam uma
conversibilidade virtual sustentada pelo seu elevado nível de reservas e seus elevados
7
superávits em conta-corrente. Ambos os fatores contribuiriam para uma melhor
avaliação dos agentes sobre o risco destas moedas embora não sejam capazes de
eliminar por completo o problema do pecado original.
A visão de que parte dos efeitos causados pelo pecado original advém da
fragilidade da moeda como reserva de valor também é compartilhada por Câmara Neto
e Vernengo (2010). Mas os autores enxergam que uma nova arquitetura financeira
regional poderia servir para a promoção de um esforço para aumentar as fontes de
financiamento regionais, fortalecendo os mercados financeiros locais e, com isso,
reduzindo os problemas relacionados com o pecado original no âmbito doméstico
(Câmara Neto e Vernengo, 2010, p. 201).
Os mercados financeiros pouco desenvolvidos da América Latina tornam as
fontes de crédito escassas e dispendiosas. A ausência de um mercado significativo de
títulos públicos de longo-prazo resultaria da falta de um ativo financeiro que permitisse
um refúgio seguro em tempos de crise, o que terminaria por constranger o
desenvolvimento dos mercados financeiros locais (Câmara Neto e Vernengo, 2010, p.
208).
As economias mais avançadas do leste-asiático, por exemplo, por possuir
mercados financeiros mais desenvolvidos consegue melhores condições de crédito
doméstico e externo, o que mitiga os efeitos do pecado original, garantindo as suas
moedas uma colocação intermediaria na hierarquia das moedas, situação melhor que a
dos países da América do Sul. A experiência asiática desta forma indicaria que a adoção
de sistemas financeiros mais fechados, regulados por controles sobre a conta capital,
junto à participação ativa dos governos no desenvolvimento de um mercado de títulos
públicos, podem reduzir parte do impacto do pecado original.
Desta forma, uma nova estrutura financeira regional seria capaz de promover o
uso de moedas locais no comércio intra-regional e que permitisse aumentar a parcela da
dívida pública denominada em moedas regionais, o que reduziria a necessidade do uso
de divisas estrangeiras contribuindo para aliviar os efeitos do pecado original,
principalmente no que tange ao financiamento de longo prazo nos mercados domésticos.
(Câmara Neto e Vernengo, 2010, pp. 208 e 211).
No entanto, como lembra Medeiros (2008, p.122), o mercado financeiro
internacional exerce uma pressão para que parcela considerável do endividamento das
economias periféricas seja denominada em moeda estrangeira. Nas economias
periféricas que abriram sua conta capital essa situação implica também numa restrição
fiscal e monetária que seus governos precisam enfrentar. A perda de autonomia é
percebida quando as autoridades econômicas utilizam algum tipo de política que pode
ser percebido (com ou sem fundamento) como contrário aos interesses do mercado
financeiro. Isto eleva os prêmios de risco dos títulos, quando não raro a fuga de capitais.
Mais uma vez, esse “poder de veto” dos mercados financeiros acometem todas as
economias, porém de forma bastante diferenciada (Belluzzo, 1995, p.19). Neste caso,
não restam dúvidas que os Estados Unidos são o país com maior autonomia, estando
muito à frente dos demais.
De fato, o poder monetário é o instrumento importante de poder dos Estados.
Entretanto, conforme Kirshner (1995, p.263), esse é um poder que pode ser exercido por
pouquíssimos Estados porque nas relações monetárias a hierarquia é mais pronunciada
do que em outras questões econômicas. Tal situação fica clara quando se observa a
8
gestão da política monetária dos Estados Unidos. Aumentos nas taxas de juros do Fed
(banco central) atraem fluxos de capitais para o mercado financeiro norte-americano,
podendo provocar desvalorizações repentinas nas taxas de câmbio das economias mais
vulneráveis. Isto leva a um reordenamento das taxas de juros dos países, não
necessariamente com estabilidade.
Por outro lado, particularmente para as economias periféricas cabe ressaltar que,
seguir as regras do jogo do mercado financeiro internacional não garante a manutenção
dos fluxos de capitais uma vez que estes são orientados pelas expectativas de ganhos
financeiros de curto prazo e por fatores exógenos a essas economias (Prates, 1999).
4 – A EXPERIÊNCIA RECENTE DO BRASIL
Conforme analisamos na terceira seção, a forma de inserção das economias
periféricas no sistema monetário e financeiro internacional sempre implicou em
constrangimentos para a condução de suas políticas macroeconômicas e, por
conseguinte, para a viabilização de suas estratégias de desenvolvimento. Estes
constrangimentos referem-se a maneira pela qual o país central administra o padrão
monetário internacional, e a direção imposta pela potência hegemonica na geopolítica
mundial (Medeiros e Serrano, 1999, p.120).
No final dos anos 1980 um conjunto de circunstâncias favoráveis foi responsável
pelo retorno dos fluxos de capitais para as economias latino-americanas. Nesse período,
em que as avaliações sobre os benefícios da globalização financeira eram bastante
otimistas, as pressões das autoridades norte-americanas e dos organismos internacionais
foram importantes para disseminar a vinculação estreita entre crescimento e abertura da
conta capital6. Com isso, as economias latino-americanas passaram a manter elevadas
taxas de juros a fim de atrair capitais, iniciando um novo ciclo de endividamento
externo. As diversas crises financeiras durante a década de 1990 culminaram com uma
modificação das políticas da região. Em uma conjuntura pouco favorável em relação ao
início dos anos 1990, vários governos latino-americanos foram eleitos com uma visão
crítica a cerca da globalização financeira.
O Brasil sofreu o contágio de todas as essas crises. A começar pela crise
mexicana em dezembro de 1994, passando pela crise asiática em 1997-1998 e russa em
1998. Em janeiro de 1999 um ataque especulativo obrigou o governo a deixar o câmbio
flutuar, colocando um fim na experiência de ancoragem cambial iniciada em 1994 com
o plano Real (Fernandes, 2011).
Mas as fortes turbulências na economia brasileira continuaram até o primeiro
semestre de 2003, quando então iniciou um período de relativa estabilidade. As linhas
de crédito externo retornaram e o país conseguiu a primeira emissão de títulos
soberanos em mais de 12 meses. As taxas de juros do principal título do país negociado
no exterior, o C-Bond, caiu fortemente (Cepal, 2003, p.163).
A melhora na posição externa do país pode ser considerada como resultado da
soma de uma conjuntura favorável da economia internacional com algumas políticas
6
Na avaliação do FMI e Banco Mundial está presente a idéia da “repressão financeira” uma
característica de países pouco desenvolvidos que mantém as taxas de juro internas abaixo da taxa de
equilíbrio que, com efeito, gera um nível de poupança abaixo do potencial.
9
adotadas pelo governo brasileiro. Pelo lado da economia internacional, as exportações
brasileiras foram favorecidas pela melhora duradoura nos termos de troca, fenômeno
que ficou conhecido como super ciclo das commodities (ver Serrano, 2008). Os
seguidos superávits comerciais (ver gráfico abaixo) alimentaram os saldos positivos
experimentados pela conta de transações correntes do país.
Gráfico 1- SALDO DA BALANÇA COMERCIAL (US$ MILHÕES)
Fonte: Cepal
Esta melhora nas contas externas brasileiras se constituiu em um dos principais
elementos que alimentaram a valorização da moeda brasileira a partir da segunda
metade dos anos 2000. Esta valorização fez com que os preços dos ativos financeiros
em real se tornassem mais atraentes aos investidores internacionais, o que estimulou
ainda mais o fluxo de capitais, já sustentado principalmente por um diferencial de juros
elevado. Parte destes investimentos externos direcionou-se ao mercado doméstico de
títulos facilitando o financiamento da dívida pública, mitigando em parte os efeitos do
pecado original.
No Brasil ao final de 2001 o mercado de títulos movimentava uma montante de
189 bilhões de dólares (38% do PIB) sendo que deste montante apenas 59% eram
emitidos no mercado doméstico em moeda local. Em 2008 o país emitiu um total de 324
bilhões de títulos sendo que 79% destes foram emitidos em moeda local (Burger e
Warnock, 2006; Burger, Warnock e Warnock, 2010).
Além da ampla liquidez internacional e da melhora nas condições externas e
macroeconômicas internas que atraiu investidores, é necessário compreender esta
expansão do mercado de títulos a partir da busca por outras fontes de financiamento que
não deteriorasse a posição financeira externa do país. A ausência de mercados de títulos
nos países emergentes exige que muitos deles se endividem fortemente em dólares nos
mercados internacionais. Como vimos esta política foi muito estimulada nos 1990 e
acabou por fragilizar a posição financeira internacional destes países de forma a
exacerbar os efeitos das crises financeiras ocorridas naquele período.
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O desenvolvimento dos mercados domésticos de títulos permite uma maior
diversificação dos investimentos de forma a reduzir o risco e a taxa de juros dos ativos
financeiros em geral. O fortalecimento da estrutura financeira doméstica facilita a
formação de um mercado de dívidas de longo prazo.
Por outro lado, o governo brasileiro utilizou uma soma considerável dos seus
recursos para implantar uma política sistemática de acumulação de reservas e para
saldar grande parte da dívida pública externa.
Gráfico 2 - RESERVAS INTERNACIONAIS/DÍVIDA EXTERNA
Fonte: Cepal
Gráfico 3 - DÍVIDA EXTERNA (%PIB)
Fonte: Cepal
11
Esta opção bastante contestada por alguns analistas devido ao custo de se manter
elevadas reservas em dólar foi, como vimos, motivada pelas crises externas dos anos
1990. Mas o fato é que isto resultou numa acentuada melhora de nossa posição externa,
verificável pela relação dívida externa/exportação – que permite, em parte, avaliar nossa
capacidade de pagamentos em moeda estrangeira.
Gráfico 4 - POSIÇÃO EXTERNA
Fonte: Cepal
Estas políticas serviram para melhorar a confiança dos mercados financeiros
confirmada pela elevação da classificação de risco do Brasil para investment grade,
primeiramente pela Standard and Poor’s (abril/2008), Fitch Ratings (maio/2008), e pela
Moody’s (setembro/2009). Tudo isto acabou permitindo a adoção de uma política de
emissão de títulos soberanos globais em moeda nacional nos mercados financeiros
internacionais a partir de setembro de 2005.
Contrariando em parte a tese do pecado original, o governo brasileiro emitiu o
denominado Global BRL 2016, títulos no valor de R$ 3,4 bilhões com vencimentos
acima de 10 anos e cupom de juros de 12.5% ao ano (Tesouro Nacional, 2005). Em
outubro e dezembro de 2006 emitiu o Global BRL 2022 de R$ 650 milhões com juros
de 12,5% em outubro, R$ 750 milhões em dezembro. E novamente em fevereiro de
2007 o Brasil emitiu o seu terceiro título em reais ofertado no mercado externo no valor
de R$ 1,5 bilhão.
5- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desta análise é possível verificar como os efeitos do pecado original,
tanto em pelo seu braço externo como pelo doméstico, foram minimizados pelo Brasil
nos últimos anos através de um conjunto de políticas que aproveitou a conjuntura
favorável na economia internacional que perdurou até a eclosão da crise financeira de
2007.
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De forma extremamente surpreendente o país não sucumbiu imediatamente à
forte instabilidade financeira internacional. Embora tenha experimentado novamente um
retorno dos déficits em transações correntes (ver gráfico 4), o considerável
fortalecimento de nossa posição financeira externa permitiu a economia brasileira se
recuperar relativamente rápido do impacto inicial da crise sem enfrentar graves
problemas no balanço de pagamentos.
A despeito desta significativa melhora, ainda é cedo para que se possa avaliar se
ela reflete uma mudança estrutural que permitiria a moeda brasileira alterar seu status na
hierarquia das moedas posicionando-se num estrato mais intermediário semelhante ao
de algumas nações do leste-asiático.
Embora o mercado de títulos doméstico tenha se expandido nos últimos anos
permitindo um crescimento na parcela da dívida pública emitida em moeda nacional e
das condições de rolagem, os prazos da dívida ainda são muito curtos - girando numa
média de 3,1 anos nos primeiros meses de 2012 (Tesouro Nacional, 2012) - e o país esta
longe de consolidar um mercado de títulos públicos de longo prazo.
A emissão de títulos em moeda local nos mercados financeiros internacionais
entre 2005 e 2007 revela um sinal que não pode ser subestimado, porém ainda
representam uma fonte muito restrita de crédito para que possa ser considerada uma
alternativa viável de financiamento para o país.
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