JURISDIÇÃO DE EXCEÇÃO - Faculdade Mineira de Direito
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JURISDIÇÃO DE EXCEÇÃO - Faculdade Mineira de Direito
1 JURISDIÇÃO DE EXCEÇÃO: Os limites da suspensão dos direitos fundamentais na atuação norte-americana de combate ao terrorismo Igor Mateus Ávila Pires* RESUMO Sobrepostas as ordens do jusnaturalismo e do positivismo jurídico, no atual contexto da hermenêutica contemporânea, nenhum direito fundamental é absoluto, encontrando limites noutras prerrogativas cujo valor, para a sociedade coletiva, demonstra-se igual. Desta forma, admite-se, em nome da segurança pública e manutenção da ordem constitucional, a possibilidade de se restringir, temporariamente (ou enquanto perdurarem os fatos motivacionais de tais restrições), de forma pontual, alguns direitos humanos anteriormente tidos como intangíveis, mesmo que tais restrições não estejam previstas na Constituição Federal, a qual, em conformidade com as técnicas jurídicas, seria a única capaz de limitar estes direitos uma vez que é a própria que os confere. Propõe-se, então, a analisar as hipóteses legais e legalizáveis de restrições aos direitos fundamentais do indivíduo no processo de prevenção e combate ao terrorismo, tendo como parâmetro a atual conduta dos Estados Unidos da América. Neste processo, a partir da construção conceitual dos direitos fundamentais, promove-se um estudo da legitimidade de atuação do Estado na esfera particular dos indivíduos, analisando-se as hipóteses legalmente previstas para as restrições aos direitos humanos; verificando-se a constitucionalidade de tais restrições/limitações; e apontando as condutas contemporâneas norteamericanas de restrição de direitos humanos na promoção da segurança pública e nacional através do processo de prevenção e combate às práticas terroristas. Ao fim da pesquisa, pretende-se esclarecer o caminho correto a ser trilhado na busca por possíveis soluções, juridicamente válidas, para se evitar que a observância dos direitos fundamentais do indivíduo se torne um obstáculo intransponível para a Administração Pública no resguardo da segurança de seus nacionais. PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais; Terrorismo; Segurança nacional; Lei marcial; Constitucionalismo contemporâneo. * Bacharelando em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Telefone: (31) 9767-5820; endereço eletrônico: [email protected] 2 1- INTRODUÇÃO Pode o Estado, sob o argumento do exercício e preservação da segurança nacional e da presente ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, interferir na esfera pessoal do indivíduo a ponto de restringir alguns de seus direitos fundamentais? E em caso positivo, existiriam limites para esta intervenção? O próprio povo lhe confere tal legitimidade? Essa relativização dos direitos fundamentais do indivíduo é constitucional? Como lidar com esta aparente antinomia de princípios? Acima de tudo, como evitar que certas prerrogativas individuais, de caráter universal, confiram asilo jurídico a extremistas políticos e líderes terroristas? Apresentar uma resposta a estas indagações e seus desdobramentos é o que se propõe o presente trabalho, fruto de ampla pesquisa e reflexão dos mais renomados juristas e analistas políticos das últimas décadas. A suspensão, pelo Estado, de alguns direitos fundamentais a fim de combater a prática de ações terroristas vem se tornando conduta cada vez mais corriqueira em tempos contemporâneos de ultra-nacionalismo, extremismo político e intolerância religiosa. Tal conduta que, em princípio, somente deveria ser admitida em caráter temporário e excepcional, em conformidade com as disposições constitucionais para os casos de Estado de Sítio, Estado de Defesa e Leis Marciais, pode se tornar perigoso caminho para a construção de um regime político totalitário, de caráter facista e opressor, o verdadeiro terrorismo de Estado. As políticas norte-americanas impulsionadas pelo Patriot Act (UNITED STATES, 2001), no momento posterior aos ataques terroristas do Al Qaeda ao World Trade Center e ao Pentágono norte-americanos em 11/09/2001, que podem ser definidas como integrantes da Doutrina de Segurança Nacional, refletem a supremacia do interesse público sobre os direitos individuais na prática de outrora impensáveis atos inquisitivos e coercitivos exercidos através da imposição da força estatal. Mediante a permissão de quebra de sigilos fiscais, bancários, telefônicos e de outras comunicações particulares; cumprimento de ordens de busca e apreensão sem mandados judiciais; uso de câmeras de vídeo e escutas ilegais por uma polícia fiscalizadora; emprego da tortura para a obtenção de informações; toques de recolher; detenção de estrangeiros por prazo indeterminado em prisões localizadas em bases militares sem conferir-lhes a presença de advogados; censura à imprensa e às artes; atividade policial sem controle da lei; e a suspensão do habeas corpus, constrói-se um sistema processual penal do tipo inquisitivo, no qual o réu não passa de objeto da investigação, sem qualquer tipo de prerrogativa, vivenciando um processo sigiloso, concentrado nas 3 mãos do Estado e pautado na verdade formal. Deste modo, cria-se tribunais de exceção e, mediante o controle da mídia pelo Estado, com a utilização da “propaganda” para a promoção da boa imagem do Governo e sua perpetuação no poder, a exemplo de uma ditadura fascista, os cidadãos são privados de direitos individuais e coletivos fundamentais, cerceados em suas prerrogativas e garantias mais básicas, situação esta inimaginável no viés do constitucionalismo contemporâneo dentro do Estado Democrático de Direito. A princípio, leis de exceção somente criariam mais insegurança e instabilidade, semeando um terreno ainda mais fértil para a promoção do terror e da violência. Ao assumir uma postura repressora, o Estado passa a se sobrepor ao seu povo, ao passo que o medo de novos ataques terroristas gera um forte anseio por segurança e dura repressão aos agressores externos, sentimentos estes que falam mais alto do que certas garantias constitucionais, momento em que parcelas da população chegam ao ponto de abdicar de diversas prerrogativas fundamentais a fim de viver uma (muitas vezes falsa) sensação de proteção, deixando-se levar por um exacerbado envolvimento emocional e patriotismo cívico. No entanto, ações preventivas e repressivas ao terrorismo constituem dever do Estado uma vez que encontra sua origem num contrato social, um pacto político entre os homens para viverem em sociedade, promover a guarda da ordem constitucional através do exercício da segurança pública, elaborando leis e implementando políticas criminais para alcançar tal finalidade. O ponto chave e controvertido passa a ser, então, a existência e extensão dos limites de suspensão dos direitos humanos fundamentais na atuação do Estado ao invocar a segurança nacional durante esse processo de prevenção e combate ao terrorismo. A partir deste problema, sob o paradigma hermenêutico do Estado Democrático de Direito, o presente trabalho se desenvolve através da elaboração de uma investigação analítica sobre o tema da relativização dos direitos humanos fundamentais, observando as hipóteses existentes que autorizam sua suspensão, pautando-se de acordo com os dispositivos constitucionais existentes, especialmente os princípios e teorias jurídicas modernas e contemporâneas de hermenêutica, aportando-se em legislação de direito alienígena que trate do tema em tela, dando enfoque específico à norteamericana cujas alterações são perenes e de repercussão mundial após os acontecimentos de setembro de 2001. Busca-se, por conseguinte, pautar o caminho e definir os liames para a construção de soluções que viabilizem, além a consecução do dever estatal de promoção e resguardo da segurança pública nacional, a observância da soberania popular e respeito aos direitos humanos, mas que, ao mesmo tempo, este não sirva de amparo a agentes terroristas de grupos extremistas políticos que merecem a responsabilização criminal por todas as suas condutas ilícitas perpetradas. 4 2 - DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS Para que possamos analisar o caminho traçado pelo governo norte-americano na busca por soluções político-jurídicas na atuação de prevenção e combate ao terrorismo, salutar é o estudo e entendimento do conceito, histórico e desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais até o presente Estado contemporâneo, atentando-se a sua natureza, origem, eficácia e efetividade no âmbito da sociedade, bem como os existentes mecanismos de proteção destas prerrogativas individuais. 2.1 – Conceitos clássicos Dando significado ao termo “direito”, Manoel Gonçalves Ferreira Filho dispõe que “direitos são na medida em que se constituem em interesses juridicamente protegidos” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 67). De acordo com a definição denotativa explorada por José Afonso da Silva, são direitos fundamentais, “no nível do Direito Positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas” (SILVA, 2003, p. 178). O direito deve ser fundamental; o direito deve ser universal, nos dois sentidos de que é universal ou muito generalizadamente reconhecido e que é garantido a todos; e o direito deve ser suscetível de uma formulação suficientemente precisa para dar lugar a obrigações da parte do Estado e não apenas para estabelecer um padrão. (F. G. JACOBS apud FERREIRA FILHO, 1999, p. 67-68) Portanto, conclui-se que, prima facie, os direitos fundamentais são limitações ao poder (político). Um direito humano, por definição, é um direito moral universal, algo que todos os homens em toda parte, em todos os tempos, devem ter, algo do qual ninguém pode ser privado sem uma grave ofensa à justiça, algo que é devido a todo ser humano simplesmente porque é um humano. (MAURICE CRANSTON apud FERREIRA FILHO, 1999, p. 67) Del Vecchio expõe que a constante tutela dos direitos naturais da pessoa é, por conseguinte, o fim imutável do Estado, a missão primária que este é chamado a cumprir, e à qual não pode subtrair-se sem se privar do título que justifica a sua existência. Em suma, o Estado racionalmente 5 concebido é o ponto ideal de convergência dos direitos individuais, que lhe são logicamente anteriores, mesmo quando deles esperam o positivo reconhecimento e a positiva confirmação. Em todos os momentos de sua ação, não pode o Estado prescindir daquela sua fundamental “razão de ser”, que representa, a um tempo, seu princípio e fim, entendendo estes vocábulos, não em sentido empírico ou cronológico, mas na significação filosófica que lhes é peculiar. (DEL VECCHIO apud VARGAS, 2002, p. 23) Para José Cirilo Vargas, os direitos fundamentais revestem-se, acima de tudo, do elemento das liberdades individuais: Referem-se, de modo geral, aos próprios direitos subjetivos, como disse Seabra Fagundes, em virtude dos quais a pessoa humana se investe de certa soma de faculdades poderes, para que possa fazer o que é de seu interesse, fundada, naturalmente, na liberdade individual e na igualdade que a lei lhe assegura, nos limites dos direitos individuais das outras pessoas. Exemplos desses direitos são a vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade e a segurança. A eles se juntam os de participação política e os de natureza social. (VARGAS, 2002, p. 24) Alfonso Noriega, citado por Cirilo Vargas (2002), sustenta, a partir de seus estudos, que os direitos individuais são decorrentes da natureza humana, impondo o dever estatal de reconhecimento, respeito e proteção através da criação de condições jurídico-sociais que garantam o livre desenvolvimento humano conforme as vocações individuais e sociais. 2.2 - Terminologia Observa-se, de um modo geral, o uso, em vasta doutrina e normatividade constitucional do mundo inteiro, de todas as seguintes expressões: direitos, garantias e prerrogativas individuais; direitos metaindividuais; direitos humanos; direitos e liberdades fundamentais; direitos públicos subjetivos1; direitos e liberdades civis; direitos subjetivos (alusão ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada); direitos e garantias implícitos; direitos e garantias constitucionais; garantias constitucionais individuais; garantias institucionais; liberdades democráticas; direitos das pessoas; direitos do homem; direitos universais... Entendo que, salvo a utilização do vocábulo “garantias”, como será explicitado em tópico destacado mais à frente2, o emprego de todas as terminologias supraditas está adequado e reflete uma única idéia: os direitos fundamentais do homem. 1 Embora a expressão possa parecer excludente das liberdades negativas, José Afonso da Silva, Paulo Bonavides, Alessandro Groppalli, Afonso Arinos e Seabra Fagundes utilizam, com propriedade, a expressão “direitos públicos subjetivos”. 2 Os direitos individuais são os direitos oponíveis pelo homem ao Estado, visando precipuamente à proteção dos direitos à liberdade, à segurança, à propriedade, à igualdade. As garantias são os instrumentos de efetividade desses direitos (VARGAS, 2002, p. 29). 6 2.3 - Características A partir do conceito dos direitos fundamentais, Manoel Gonçalves (1999) elenca como suas principais características, elementos de estrita observância para sua materialização, os seguintes: Historicidade: são frutos de conquistas gradativas e cumulativas ao longo do tempo. Inalienabilidade: são direitos intransferíveis e inegociáveis. Imprescritibilidade: não deixam de ser exigíveis em razão do não uso. Irrenunciabilidade: nenhum ser humano pode abrir mão de possuir direitos fundamentais. Pode até não usá-los, mas não pode renunciar à possibilidade de exercêlos. Universalidade: todos os seres humanos têm direitos fundamentais que devem ser respeitados. Pessoalidade: traduz uma faculdade de exercer sua vontade para a satisfação de interesses humanos em conformidade com as leis. Relatividade: os direitos fundamentais não são absolutos. Podem ser limitados sempre que houver uma hipótese de colisão de direitos fundamentais. Se confronta com o próximo caractere: Imutabilidade: são direitos inatos, absolutos, derivantes do direito natural. As normas definidoras de direitos humanos fundamentais possuem aplicabilidade imediata3. Observa-se esta regra positiva no art. 5º, §1º da CRFB/88. Do mesmo modo, as prerrogativas individuais previstas em determinado ordenamento jurídico, em função de seu cunho universalizante, jamais excluem a incidência e a necessidade de observância de outros direitos elevados à categoria de fundamentabilidade. Para Philip Alston, os direitos humanos constituem-se de seis critérios, devendo, para tanto: Refletir um fundamentalmente importante valor social; ser relevante, inevitavelmente em grau variável num mundo de diferentes sistemas de valor; ser elegível para reconhecimento com base numa interpretação das obrigações estipuladas na Carta das Nações Unidas, numa reflexão a propósito das normas jurídicas costumeiras, ou nos princípios gerais de Direito; ser consistente com o sistema existente de Direito internacional relativo aos direitos humanos, e não meramente repetitivo; ser capaz de alcançar um muito alto nível de consenso internacional; ser compatível, ou ao menos não claramente incompatível com a prática comum dos Estados; ser suficientemente preciso para dar lugar a direitos e obrigações identificáveis. (ALSTON apud FERREIRA FILHO, 1999, p. 68) 3 Vide item 3.5 – Processo e Direitos Fundamentais. 7 Cada vez mais comum neste tema se torna o preocupante fenômeno da vulgarização dos direitos fundamentais. É claro que, como vimos, a definição dos direitos humanos fundamentais construiu-se, gradualmente, ao longo dos últimos séculos, mas, para evitar que esta situação esvazie todo o conteúdo jurídico de prerrogativas humanas tão basilares, faz-se primordial a constante observância e conhecimento preciso de seu conceito, o qual sirva como parâmetro para afastar a vulgarização e emprego aleatório desta terminologia. Philip Alston, citado por Ferreira Filho (1999), elenca alguns supostos direitos que surgem como tendência na ONU e em outros organismos internacionais a serem elevados à categoria de prerrogativas fundamentais: direito ao turismo; direito ao desarmamento; direito ao sono; direito de não ser morto em guerra; direito de não se sujeitar a trabalho maçante; direito à coexistência com a natureza, etc. Cabe à comunidade jurídica num todo, especialmente a constitucionalista, espancar idéias tão esdrúxulas que, da noite para o dia, são capazes de proclamar novos direitos fundamentais sem nenhum tipo de critério objetivo ou estudo técnico. 2.4. - Origem Os direitos humanos fundamentais nascem através do jusnaturalismo, o qual se desenvolveu, modernamente, a partir do pensamento político iluminista. Remoto ancestral da doutrina dos direitos fundamentais é, na Antiguidade, a referência a um direito superior, não estabelecido pelos homens mas dado a estes pelos deuses. Neste passo cabe a citação habitual à Antígona, de Sófocles, em que isso é, literalmente, exposto em termos inolvidáveis. A mesma idéia, com tratamento sistemático, acha-se no diálogo De legibus, de Cícero. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 9) As fontes históricas do jusnaturalismo remetem a Aristóteles e à Grécia antiga, como afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho, passando por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino no século XIII e a Escola do Direito Natural e das Gentes de Hugo Grotius e Pufendorf no século XVII. Verifica-se que, na Idade Média, os senhores feudais editavam “forais” ou “cartas de franquia”, nos quais estavam previstos direitos próprios e peculiares aos membros do grupo, outorgados por aqueles, dando-lhes caráter erga omnes. Entretanto, foi mesmo no período iluminista, através da positivação do Direito natural, que se consolidou o surgimento dos direitos fundamentais. O Estado de Direito surge na França, no fim do século XVIII, no período da revolução iluminista, quando as forças do Ancien Régime, o clero (Primeiro Estado), a nobreza (Segundo 8 Estado) e o o Terceiro Estado, que representava a burguesia e os camponeses, deram espaço para os ideais de "Liberté, Egalité, Fraternité”, frase de autoria de Jean-Nicolas Pache (político girondino francês). A passagem do Ancien Régime para a sociedade moderna é consumada na França com uma ruptura e uma brutalidade únicas. Do outro lado do Canal da Mancha, na Inglaterra, o regime constitucional foi instaurado progressivamente, as instituições representativas advêm do parlamento, cujas origens remontam aos costumes medievais. No século XVIII e XIX, a legitimidade democrática se substitui à legitimidade monárquica sem a eliminar totalmente, a igualdade dos cidadãos apagou pouco a pouco a distinção dos "Estados" (Nobreza, clero e povo). As idéias que a revolução francesa lança em tempestade através da Europa: soberania do povo, exercício da autoridade conforme a regras, assembléias eleitas e soberanas, supressão de diferenças de estatutos pessoais, foram realizadas em Inglaterra, por vezes mais cedo do que em França, sem que o povo, em sobressalto de Prometeu, sacudisse as suas correntes. A "democratização" foi ali (na Inglaterra) a obra de partidos rivais. [...] O Ancien Régime desmoronou-se (na França) a um só golpe, quase sem defesa. E a França precisou de um século para encontrar outro regime que fosse aceito pela grande maioria da nação. (RAYMOND ARON4 apud WIKIPÉDIA) Montesquieu, no “Espírito das Leis”, conforme aduz Ferreira Filho (1999), estabelece que o Estado de Direito determina o poder político subordinado a um Direito Objetivo, o qual prega o governo de leis, e não de homens. Retomando as antigas concepções da antiguidade greco-romana, tal direito [...] não era fruto de vontade de um legislador humano, por mais sábio que fosse, mas sim da própria natureza das coisas. [...] Na verdade, o legislador humano – e sito se aplica ao Poder Legislativo da doutrina da Separação dos Poderes – apenas declara a lei, não a faz. E isto tendo em vista a utilidade comum, conforme se depreende do art. 5º da Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão de 1789. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 2) “Destarte, o Estado de Direito é um Estado constitucional, poder-se-ia dizer mais explicitamente, se necessário fosse, Estado constitucional de Direito” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 3). Se as garantias individuais e o respeito às liberdades surgiram na Inglaterra por impulsos próprios do povo [num processo de construção de vários fatores históricos], na França, ao revés, foram produto de elaborações doutrinárias, de correntes teóricas, próprias e alheias (como a Declaração de Independência Americana), que encontraram no povo francês um amplo e propício campo de desenvolvimento e realização, e cuja precária situação contribuía para eclodir a Revolução de 14 de julho. (VARGAS, 2002, p. 27) O rule of law inglês, oriundo da jurisprudência anglicana, primo mais velho constitucionalismo europeu continental, 4 Filósofo e sociólogo francês, 1905-1983. Obra citada: O ópio dos intelectuais, de 1955. 9 [...] consiste na sujeição de todos, inclusive e especialmente das autoridades, ao império do Direito. Equivale, pois, ao Estado de Direito como limitação do poder, num sistema de direito não-escrito. Dicey sintetiza o rule of law em três pontos: primeiro, ausência de poder arbitrário por parte do Governo; segundo, a igualdade perante a lei; terceiro, serem as regas da constituição a conseqüência e não a fonte dos direitos individuais. Sim, porque os “princípios gerais da constituição são o resultado de decisões judiciais que determinam os direitos dos particulares, em casos trazidos perante as cortes”. Destarte, “a constituição é o resultado da lei comum _ ordinary law of the land_. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 12-13). Desta forma, a supremacia do Direito se pauta mediante o primado da Constituição, cuja idéia está expressa no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Esta não é, portanto, qualquer agenciamento do poder político. Só merece o nome se preencher concomitantemente duas condições: dividir o exercício do poder segundo a fórmula de Montesquieu5, criando um sistema de freios e contrapesos; não ir além dos limites que lhe traçam os direitos fundamentais. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 3). Emmanuel Sieyès, citado por Ferreira Filho (1999), constrói o ideal da supremacia da Constituição a partir do Poder Constituinte, a quem todos os indivíduos, plenamente livres e dotados de todos os direitos decorrentes de sua própria natureza, decidiram, mediante um contrato social, entregar o poder de concepção por meio da institucionalização e organização da sociedade. A Constituição é a positivação da vontade do povo, a Norma normarum6. O pacto social, para estabelecer a vida em sociedade de seres humanos naturalmente livres e dotados de direitos, há de definir os limites que os pactuantes consentem em aceitar para esses direitos. A vida em sociedade exige o sacrifício que é a limitação do exercício dos direitos naturais. Não podem todos, ao mesmo tempo, exercerem todos os seus direitos naturais sem que daí advenha a balbúrdia, o conflito. [...] a vida em sociedade presume uma coordenação do exercício por parte de cada um de seus direitos naturais. Direitos de que ninguém abre mão, exceto na exata e restrita medida imprescindível para a vida em comum. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 4) Os próprios direitos individuais, na medida em que estabelecem os limites de interferência do Estado na esfera do particular, também estabelecem limites a si próprios. No pensamento político setecentista, a declaração de direitos, por um lado, explicita os direitos naturais, por outro, [...], enuncia as limitações destes, que são admitidas a bem da vida em sociedade. Não é por mera coincidência que cada uma das antigas colônias inglesas da América do Norte, ao romper seus laços com a metrópole, tem o cuidado de formular desde logo a sua declaração de Direitos. Não é por capricho que essas colônias adotam declarações (a 5 A teoria da separação de poderes, atribuída a Montesquieu, na verdade é mais um mito do que uma realidade. O célebre filósofo francês não a defendeu, como geralmente se supõe, e nem considerou o judiciário como um poder, de vez que, ao referir-se ao poder judicial (puissance de juger) num Estado democrático, Montesquieu (Espirit des lois, XI, 6) afirma ser tal poder ‘invisível e nulo’ [...] pois ‘os juízes não são senão... a boca que pronuncia as palavras da lei [la bouche de la loi]’. (OVÍDIO BATISTA apud VARGAS, 2002, p. 61). 6 Norma das normas. 10 primeira, da Virgínia em 1776), antes de estabelecerem as próprias Constituições, e muito antes de se unirem pelas instituições confederativas (em 1781) e federativas (em 1787), com a Constituição dos Estados Unidos da América. O mesmo ocorre em relação a esses Estados quando se unem. Primeiro vem a declaração de direitos, no caso, embasando a própria declaração de independência (1776), bem antes, portanto, da vigência dos Artigos de Confederação (1781) e promulgação da Constituição da Filadélfia (1787). E o mesmo ocorreu na França. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é de 1789; a primeira Constituição, de 1791. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 5) A liberdade formal, por exemplo, se encontra no art. 4º da Declaração de 1789 que, na sua segunda parte, exprime: “O exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites não podem ser determinados senão pela lei”. (FRANÇA, 1789). A Declaração de 17897, enquanto renovação do contrato social, integra o chamado bloc de constitutionnalité, sob o qual atua o Conselho Constitucional francês através do controle de constitucionalidade. E esta coordenação dos direitos fundamentais não pode vir de outra forma senão através da lei, instrumento de coordenação das liberdades. O rule of law é expressão da Common Law, que inclui o direito judiciário inglês. De fato, este se desenvolveu a partir do século XII, quando cortes reais passaram a consolidar o direito consuetudinário – law of the land – que até então variava de região para região. Mas essa consolidação do direito se fez por meio de uma seleção, a que procediam os juízes, legistas formados no direito romano. Tal seleção se cristalizou em razão do stare decisis, pelo qual os juízes inferiores têm de se conformar com o entendimento dos tribunais mais altos. Por outro lado, esses tribunais souberam aproveitar a flexibilidade de fórmulas, como due process of law, para fazer evoluir o direito num sentido de racionalidade e de preservação da liberdade. Common law, rule of law, due process of law, equal protection of the laws, essas expressões e as idéias que exprimem passaram com os ingleses para a América do Norte. Essa herança não foi esquecida, ao contrário. Os tribunais americanos, e em primeiro lugar a Suprema Corte, couberam usar dessas fórmulas que flexibilizam as decisões, dando uma importante contribuição para o desenvolvimento da doutrina dos direitos fundamentais nos séculos XIX e XX. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 13) A Magna Carta Libertatum8, de 21 de junho de 1215, foi o primeiro9 instrumento 7 Atribui-se a La Fayette haver dado ênfase, desde 1783, à idéia de estabelecer uma declaração francesa dos direitos fundamentais. Às vésperas da revolução, era generalizada na França a reivindicação de que fossem solenemente reconhecidos esses direitos. Nos cahiers de doléances (ou seja, nas relações escritas de queixas e reivindicações que a comunidade eleitora incumbia o eleito de defender) preparados para a assembléia dos Estados Gerais convocada para 1789, que se transformaria na Assembléia Nacional revolucionária, registra-se, com freqüência, essa postulação. E, se isso era mais comum nos cahiers da burguesia, não faltava nos da nobreza e, também, conquanto mais raramente, nos do clero. Vários projetos, inclusive, foram preparados e por figuras ilustres como Sieyès e Condorcet. O próprio rei, em 23 de junho, se disse pronto a outorgar uma carta das liberdades. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 21) 8 Primeiro estatuto inglês e pedra angular da constituição britânica cujo nome completo é Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o Rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês), é um documento que limitou o poder dos monarcas da Inglaterra, especialmente o do Rei João, que o subscreveu e passou a reconhecer que a vontade do rei estaria sujeita à lei, devendo-se respeitar determinados procedimentos legais. (WIKIPÉDIA, 2008). 11 consistente na enumeração de prerrogativas inerentes a todos os súditos, neste caso, da monarquia inglesa. Note-se que na Magna Carta aponta a judicialidade um dos princípios do Estado de Direito. De fato, ela exige o crivo do juiz relativamente à prisão do homem livre. [item 39] [...] Nela, igualmente, está a garantia de outros direitos fundamentais: a liberdade de ir e vir (n. 41), a propriedade privada (n. 31), a graduação da pena à importância do delito (n. 20 e 21). Ela também enuncia a regra “no taxation without representation” (n. 12 e 14). Ora, isto não só provocou mais tarde a institucionalização do Parlamento, como lhe serviu de arma para assumir o papel de legislador e de controlador da atividade governamental. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 12) Ao longo dos séculos seguintes, vários outros direitos foram alvo de reivindicação parlamentar e ratificação da monarquia anglo-saxônica, destacando-se dois documentos declaratórios: É o caso, por exemplo, da Petition of Rights, de 7 de junho de 1628, que reclama o respeito ao princípio do consentimento na tributação, no do julgamento pelos pares para a privação da liberdade, ou da propriedade, na proibição de detenções arbitrárias, etc. Do mesmo modo, o Bill of Rights, de 13 de fevereiro de 1689, o qual, por outro lado, particularmente se preocupa com a independência do Parlamento, dando o passo decisivo para o estabelecimento da separação dos poderes. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 12). Para Jean Ribeiro, citado por Ferreira Filho (1999, p. 22), na Declaração dos Direitos do Homem de 1789, os direitos ali enunciados, declarados, são, em verdade, direitos do cidadão, condição esta que surge com o pacto social e pressupõe ordenação política. Ferreira Filho (1999) coloca que os direitos declarados em 1789 são naturais, abstratos, imprescritíveis, inalienáveis, individuais e universais. Ele os divide dois tipos. Os Direitos do Homem, as “liberdades dos modernos” (de caráter universal) de acordo com Benjamin Constant: Aí se incluem a liberdade em geral (art. 1º, 2º e 4º), a segurança (art.2º), a liberdade de locomoção (art. 7º), a liberdade de opinião (art. 10), a liberdade de expressão (art. 11) e a propriedade (liberdade de usar e dispor de bens) (art. 2º e 17). E seus corolários: a presunção de inocência (art. 9º), a legalidade criminal (art. 8º), a legalidade processual (art. 7º)10. Afora, a liberdade de resistir à opressão (art. 2º), que já se aproxima dos direitos do 9 Um dos documentos mais antigos que vinculou os direitos humanos é oCilindro de Ciro, que contêm uma declaração do rei persa (antigo Irã) Ciroll depois de sua conquista da Babilônia em 539 a.C. Foi descoberto em 1879 e a ONU o traduziu em 1971 a todos seus idiomas oficiais. Pode ser resultado de uma tradição mesopotâmica centrada na figura do rei justo, cujo primeiro exemplo conhecido é o rei Urukagina, de Lagash, que reinou durante o século XXIV aC, e de onde cabe destacar também Hammurabi da Babilônia e seu famosoCódigo de Hammurabi, que data do século XVIII aC. O Cilindro de Ciro apresentava características inovadoras, especialmente em relação a religião. Nele era declarada a liberdade de religião e abolição da escravatura. Tem sido valorizado positivamente por seu sentido humanista e inclusive foi descrito como a primeira declaração de direitos humanos (WIKIPÉDIA, 2008, grifos nossos). 10 As liberdades do comércio, indústria e profissão, não inscritas na Declaração de 1789, foram estabelecidas por lei em 1791, inseridas no âmbito constitucional pela Declaração de 1793 (art. 17) e pela Constituição do ano III (art. 335). Desse modo, estava igualmente consagrado a liberdade de trabalho. O direito ao trabalho, todavia, não seria 12 cidadão. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 23) E os Direitos do Cidadão, relativos a indivíduos que guardam uma determinada relação política com certa ordem institucional: Os direitos do cidadão são poderes. São a expressão moderna da “liberdade dos antigos”. Constituem meios de participação no exercício do Poder Político. Neste rol incluem-se os direitos de participar da “vontade geral” (art. 6º), ou de escolher representantes que o façam (art. 6º), de consentir no imposto (art. 14), de controlar o dispêndio do dinheiro público (art. 14), de pedir contas da atuação de agente público (art. 15). (FERREIRA FILHO, 1999, p. 25) Posteriormente, com o desenvolvimento do constitucionalismo moderno, observou-se que os dois documentos (a Constituição e a Declaração de direitos) passaram a se fundir num só, na própria Constituição: Constituições recentes, como a portuguesa de 1976 e a espanhola de 1978, falam em direitos fundamentais. No Brasil, a Carta de 1824 referia-se aos direitos políticos e individuais art. 178); a Lei Magna de 1891 continha simplesmente uma declaração de direitos; a de 1934, uma declaração de direitos (Título III) que compreendia um capítulo intitulado dos direitos e garantias individuais; a de 1937 possuía também um capítulo intitulado dos direitos e garantias individuais; a de 1946 repetia 1934 e continha uma declaração de direitos que incluía um capítulo intitulado dos direitos e garantias fundamentais. Nesta, o art. 141, §13, mencionava expressamente os direitos fundamentais do homem. A Constituição de 1967 preferiu direitos e garantias individuais (cap. IV), da mesma forma a Emenda n.1/69 (cap. IV). Já o art. 149, I (da redação de 1967), fala em garantias dos direitos fundamentais do homem, como o art. 152, I (da redação de 1969). A Constituição em vigor refere-se a direitos e garantias fundamentais (Título II), cujo capítulo I enuncia direitos individuais e coletivos e, o capítulo II, direitos sociais. O art. 17 faz referência a direitos fundamentais da pessoa humana, enquanto o art. 60, §4º, IV, a direitos e garantias individuais. Já o art. 5º, LXXI, menciona direitos e liberdades constitucionais. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 14-15). No constitucionalismo norte-americano, no mesmo sentido, observa-se que especialmente significativa para o desenvolvimento dos direitos fundamentais foi essa atuação “construtiva” da Corte Suprema [due process of law]. Com efeito, convém lembrar que a Constituição de 1787 não compreende uma declaração de direitos e garantias. É certo que, em 1791, foram promulgadas Emendas que consubstanciam alguns dos principais direitos fundamentais: liberdade de religião, de pensamento, e de sua expressão, direito de reunião (Emenda n. 1), inviolabilidade do domicílio (Emenda n. 4), processo e julgamento sem o due process of law (Emenda n. 5) etc. E mais tarde novas Emendas explicitaram outros deles, como a de n. 14, de 1868, onde está a cláusula equal protection of the laws. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 81) 2.5 - Classificação consagrado senão em 1848 (decreto de 25 de fevereiro e Constituição, Preâmbulo, item VII e art. 13) (FERREIRA FILHO, 1999, p. 24). 13 Dentre as várias classificações construídas pela doutrina constitucionalista ao longo do último século acerca dos direitos universais do homem, destacam-se duas de maior aceitação e emprego no meio político-jurídico. A primeira delas se refere à ordenação dos direitos fundamentais tomando-se como parâmetro o bem jurídico tutelado e sua natureza. Assim, como se pode observar em nossa Constituição (BRASIL, 1988), este critério se divide em: direitos individuais (inerentes ao homem em sua individualidade); direitos coletivos (referentes ao homem enquanto membro da coletividade); direitos sociais (aludem-se à tentativa estatal de se propiciar condições de vida mais favoráveis àqueles cidadãos menos favorecidos); e direitos políticos (relacionam-se com o poder do indivíduo interferir na estrutura governamental através de sua capacidade eleitoral, qual seja ativa ou passiva _ incluem o direito à nacionalidade). Já a outra classificação, mais prosaica, de caráter histórico, muito utilizada pelo Constitucionalismo clássico, se refere à secção dos direitos fundamentais em, no mínimo, três categorias: direitos fundamentais de primeira geração; direitos fundamentais de segunda geração; direitos fundamentais de terceira geração; direitos fundamentais de quarta geração11. Ingo Wolgang Sarlet reparte as prerrogativas individuais nas seguintes categorias: direitos de defesa, que demandam uma conduta negativa do Estado; direitos a prestação, que carecem de um agir estatal positivo para serem efetivados. Manoel Gonçalves Ferreira Filho decompõe os direitos fundamentais em: 11 Não constitui unanimidade na doutrina constitucionalista. Tais direitos se ligam, dentre outros, aos traumáticos efeitos provocados pela manipulação do patrimônio genético humano [...], bem como àqueles ligados ao patrimônio moral e econômico e da rapidez da veiculação de idéias ligadas à rede mundial de computadores [...]. (CRUZ, 2001, p. 212). 14 Liberdades públicas; Direitos sociais e econômicos; Direitos de solidariedade. 2.6 – Histórico e definição Para retratarmos a definição dos direitos fundamentais, devemos analisar o processo histórico de sua construção, passando pelas principais conquistas sociais e mudanças de paradigma sócio-político-econômico dos últimos séculos. Para tanto, opto por seguir a classificação retromencionada de elaboração de Manoel Gonçalves. 2.6.1 – Liberdades públicas12 As liberdades públicas surgiram com o início do reconhecimento dos direitos individuais, após o Petition of Rights de 1628, Habeas Corpus Amendment Act de 1679, Bill of Rights de 1688, Constituição Americana de 1787 e Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Neste contexto, reconhecendo a propriedade privada, o Estado se pauta pela sua intervenção mínima, atuação absenteísta, constituição negativa e desregulamentação de mercado a fim de promover a livre concorrência e livre iniciativa, formando um dos pilares de liberdade no paradigma liberal. Segundo o conceito de Ferreira Filho (1999), as liberdades públicas constituem direitos subjetivos, oponíveis ao Estado, poderes de agir reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica a todos os seres humanos. Titularizam, pois, estes direitos, não só todos os indivíduos, mas inclusive as pessoas jurídicas de acordo com a natureza dos mesmos e se compatível com eles. 12 A expressão liberdades públicas passou a ser preferida, no meio jurídico – pois no políticos jamais o foi – quando o jusnaturalismo cedeu lugar ao positivismo. Tais liberdades seriam prerrogativas reconhecidas e protegidas pela ordem constitucional. Entretanto, se a expressão serve para designar os direitos declarados em 1789 e noutras declarações de espírito exclusivamente liberal; ela é pouco adequada num mundo que reconhece entre as referidas “prerrogativas” direitos no plano econômico e social que vão bem mais longe do que meras liberdades. Por força da inércia, todavia, ainda modernamente ela é empregada no sentido de direitos fundamentais (FERREIRA FILHO, 1999, p. 15). 15 Por outro lado, são sujeitos passivos das liberdades públicas os mesmos componentes que os possuem e, ainda, especialmente, o Estado. Em contrapartida desses direitos, o sujeito passivo, em princípio, não deve senão uma abstenção, um não-fazer. Mas é claro que se o Estado deve, por um lado, abster-se de perturbar o exercício desses direitos, tem, por outro lado, a tarefa de, preventivamente, evitar sejam eles desrespeitados, e, também, a de, repressivamente, restaurá-los se violados, inclusive punindo os responsáveis por esta violação. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 30) Para os jusnaturalistas, o rol dos direitos de primeira geração é amplo e meramente exemplificativo, não havendo necessidade de sua formal declaração em nenhum tipo de documento público13. 2.6.2 - Direitos econômicos e sociais Os direitos de cunho econômico e social foram elevados, pela primeira vez, ao plano constitucional mediante a Constituição mexicana de 1917, a Constituição de Weimar de 1919 e a austríaca de 1920. A questão social (luta de classes para os marxistas) foi o fator fundamental para a construção destes direitos na Europa ocidental e Estados Unidos no fim do século XIX. No confronto entre o capital liberal e o capital conservador no século XIX, o conservador, no poder, não possuía interesse em interrompê-lo. Deste modo, observou-se o início da “destruição do ser humano” com as revoluções industriais, o surgimento do capitalismo e da relação de emprego, desenvolvendo-se os sistemas de produção em massa, a concentração empresarial e a super-exploração da massa trabalhadora. As causas sociais da gritante necessidade de se conferir maior respeito aos direitos humanos no âmbito social relacionam-se com a concentração operária em torno das fábricas e cidades, expansão da urbanização e reificação da camada operária, marginalizando-a e rebaixando-a incessantemente a níveis de qualidade de vida insuportáveis. No ramo político-ideológico, todas as idéias que, direta ou indiretamente, estimularam a criação de normas jurídicas interventoras na relação de emprego, a criação de partidos políticos operários (social-cristinanismo; socialismo; liberalismo autêntico; e anarquismo), o coorporativismo facista e o ultraliberalismo contribuíram para a construção do Welfare State na medida em que 13 Não é essa, obviamente, a posição dos autores não vinculados ao jusnaturalismo, como Jellineck e muitíssimos outros. Para estes, os referidos direitos são direitos subjetivos públicos, conferidos pelas normas de direito público (FERREIRA FILHO, 1999, p. 30). 16 iniciaram as mobilizações/organizações sociais em torno da defesa de direitos. A crítica socialista tocou fundo quando denunciou o caráter “formal” das liberdades reconhecidas nas Declarações. É a famosa crítica de Marx, segundo a qual o exercício dessas liberdades pressupunha condições econômicas – meios financeiros – sem as quais o indivíduo não poderia usufruir concretamente das mesmas. Ora, a maioria não tinha os meios necessários nem para viver dignamente. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 44) Em decorrência dos problemas evidentes do Liberalismo, relativos à desigualdade de condições efetivas no mercado, existência do capital conservador e da desregulamentação (inviabilizadora da livre concorrência e iniciativa), observou-se o início da construção de todo um aparato normativo com o intuito de corrigir-se tais deficiências, tendo a Lei antitruste Sherman Act, em 1890, nos Estados Unidos, inaugurado este rol, procedido do Clayton Act de 1914 e, mais tarde, da política do New Deal, a qual também não foi recebida pacificamente pela Suprema Corte, que decretou a inconstitucionalidade da intervenção estatal no domínio econômico em diversas ocasiões com base no leading case Schercchter Poultry Corp. v. United States (1935). Aos poucos, diversos acontecimentos e movimentos sociais contribuíram, cada qual de sua maneira, com a construção dos direitos sociais. O movimento reformista ganhou um forte apoio com a formulação da chamada doutrina social da Igreja a partir da encíclica Rerum Novarum, editada em 1891 pelo Papa Leão XIII. Esta retoma de São Tomás de Aquino a tese do bem comum, da essência na “vida humana digna”, bem como a doutrina clássica do Direito natural, ao mesmo tempo em que sublinha a dignidade do trabalho e do trabalhador. Chega, assim, à afirmação de direitos que exprimem as necessidades mínimas de uma vida consentânea com a dignidade de ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus. Daí o direito ao trabalho, à subsistência, à educação, etc. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 45) A despeito de já terem sido positivados de maneira ampla anteriormente14, fator chave no alcance destes direitos foi a 2ª República francesa com a promulgação da Constituição Federal de 1848. Os direitos resguardados por ela estão previstos em seu preâmbulo e noutro capítulo específico: No primeiro, que expressamente “reconhece os direitos e deveres anteriores e superiores às leis positivas” (III), é dada por tarefa à República “proteger o cidadão na sua pessoa, sua família, sua propriedade, seu trabalho, e pôr ao alcance de cada um a instrução indispensável a todos os homens”. Deve ela, ademais, “por uma assistência fraternal, 14 A Declaração francesa de 1793, por exemplo, afirma no art. 21: “Os socorros públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos infelizes, seja procurando-lhes trabalho, seja assegurando os meios de existência aos que não têm condições de trabalhar”. E no art. 22: “A instrução é necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com todo o seu poder os progressos da razão pública e pôr a instrução ao alcance de todos os cidadãos” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 45). 17 assegurar a existência dos cidadãos necessitados, seja procurando-lhes trabalho nos limites de seus recursos, seja dando-lhes, à falta de trabalho, socorros àqueles que estão sem condições de trabalhar” (VIII). Está aí explícito o direito ao trabalho, assim como, embora a ênfase seja menor, o direito à educação. No segundo, o que é mais relevante, consiste na previsão feita no art. 13 de que, para atender ao direito do trabalho, o Estado estabelecerá “trabalhos públicos para empregar os braços desocupados”. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 46) Verifica-se a ocorrência da Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado na Rússia, em 1918, mas esta foi, precipuamente, de caráter marqueteiro, a qual não enunciava nenhum direito, mas apenas princípios. O Tratado de Versalhes, em 1919, na sua Parte XIII, estabeleceu a constituição da Organização Internacional do Trabalho, consagrando direitos sociais “fundamentais”, direitos do trabalhador, tornando-os obrigatórios para o ordenamento jurídico de todos os Estados signatários. A Constituição de Weimar de 1919 surgiu, num momento pós-guerra, estabelecendo um Estado alemão republicano e tendo sido fortemente influenciada pela esquerda radical bolchevique, os Soviets. Nesta, foram diversos os direitos e deveres fundamentais dos cidadãos alemães expressamente previstos. Todas essas seções são marcadas por novo espírito, que se pode dizer “social”, mesmo quanto às liberdades. Em seu exame avultam, por exemplo, normas sobre o casamento e a juventude, a obrigatoriedade da instrução escolar, com a previsão de estabelecimentos públicos para tanto, mas o núcleo plenamente novo está na última seção. Nela destacam-se a sujeição da propriedade à função social – com a célebre fórmula: “A propriedade acarreta obrigações. Seu uso deve visar ao interesse geral” (art. 153) –, a repartição das terras (reforma agrária) (art. 155), a possibilidade da “socialização” de empresas (art. 156), a proteção ao trabalho (art. 157), o direito de sindicalização (art. 159), a previdência social (art. 161), a co-gestão das empresas (art. 165). (FERREIRA FILHO, 1999, p. 49) A Constituição de Weimar influenciou decisivamente as novas constituições européias e a Constituição brasileira de 1934, cujo Título IV tratava da “Ordem Econômica e Social”. O objeto dos direitos sociais é a prestação de um serviço ou, como declara Ferreira Filho (1999), uma contrapartida monetária em face da impossibilidade de se satisfazer um determinado direito mediante uma prestação direta. No que concerne à natureza jurídica dos direitos sociais, eles constituem um direito subjetivo de exigir (e não de agir como as liberdades públicas), um poder de demandar do Estado uma prestação concreta e a sua garantia institucional. Deste modo, possuem como sujeito passivo o Estado: Na Constituição brasileira de 1988 isso é cristalino. O texto afirma “dever do Estado” propiciar a proteção à saúde (art. 196), à educação (art. 205), à cultura (art. 215), ao lazer, pelo desporto (art. 217), pelo turismo (art. 180) etc. Igualmente, o direito ao trabalho que se 18 garante pelo socorro da previdência social ao desempregado (art. 201, IV). (FERREIRA FILHO, 1999, p. 50) Ressalte-se que, em alguns casos, tal responsabilidade é divida também com a sociedade, por exemplo, a obrigação de educar os indivíduos estendida à família (art. 205 da CRFB/88) e a seguridade social, a qual é sustentada pelo Estado em conjunto com todos os membros da comunidade (art. 195 da CRFB/88). Ferreira Filho (1999) acerta ao dizer que, ao seu próprio modo, também os direitos sociais e econômicos podem ser chamados de naturais uma vez que pressupõem sociedade e, assim, podem ser deduzidos da sociabilidade humana, a qual é a própria natureza do homem. Muito se discute no meio político e social se a atuação do Estado clientelista é a mais adequada para a promoção da sua função primordial, a de promover o bem comum15 de todos. Difícil se torna incentivar ao máximo a potencialização da consecução da vocação humana uma vez que se fornece, diretamente, inúmeros meios para a subsistência e realização do ser humano. Mas, por se tratar de tema diverso do ora proposto e de ampla discussão, limito-me a dizer que o ideal é o acompanhamento do cidadão na busca por suas necessidades individuais mediante a simples criação e manutenção de condições para que este possa ser bem sucedido em sua empreitada. Destaque-mos que o mecanismo de proteção judicial desses direitos sociais se dá de duas formas: a repressão às violações dos mesmos uma vez movimentada a jurisdição; o mandado de injunção; e a existência de Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão: Esta se acha na Constituição brasileira no art. 103, §2º. Tal ação, com efeito, visa a levar o Poder Público a efetivar uma norma programática16 da constituição. Ora, freqüentemente os direitos sociais estão nesse caso. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 52) O coroamento dos direitos de cunho sócio-econômico veio com a promulgação, pela Assembléia Geral da ONU, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a qual coloca os direitos fundamentais negativos em paridade com os direitos sociais: Com efeito, nela estão a liberdade pessoal, a igualdade, com a proibição das discriminações, os direitos à vida e à segurança, a proibição das prisões arbitrárias, o direito ao julgamento pelo juiz natural, a presunção de inocência, a liberdade de ir e vir, o direito de propriedade, a liberdade de pensamento e de crença, inclusive religiosa, a liberdade de opinião, de reunião, de associação, mas também de direitos “novos” como o direito de asilo, o direito a uma nacionalidade, a liberdade de casar, bem como direitos políticos – direito de participar da direção do país –, de um lado, e, de outro, os direitos sociais – o direito à seguridade, ao trabalho, à associação sindical, ao repouso, aos lazeres, à saúde, à educação, à vida cultural –, enfim, num resumo de todos estes – o direito a um nível de vida 15 Bem comum ou bem público é, nas palavras de Cármen Lúcia Rocha, o conjunto das condições materiais, espirituais e psicológicas para que cada um possa exercer sua própria vocação. 16 Conforme explica Bonavides (2001), é a norma de eficácia diferida, aquela que não possui aplicação direta nem imediata, estando diferida ate o adimplemento de lei infraconstitucional. É uma norma not self-inforcing. 19 adequado (o que compreende o direito à alimentação, ao alojamento, ao vestuário, etc) numa palavra –, aos meios de subsistência. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 53) 2.6.3 - Direitos de solidariedade Identificados e suscitados por Karel Vasak em 1979, na abertura dos cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, tais direitos dizem respeito à qualidade de vida e à solidariedade entre os seres humanos, os direitos difusos, compreendendo os direitos do patrimônio da humanidade. Este reconhecimento se desenvolveu, especialmente, na esfera positiva internacional, em documentos editados pela ONU, UNESCO... (v.g. Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher de 1952; Convenção para a Repressão do Genocídio de 1958; Declaração dos Direitos da Criança de 1959; Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial de 1963; Declaração sobre a Concessão de Independência dos Países e Povos Coloniais de 1960; Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966; Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966; Declaração sobre a Eliminação da Discriminação à Mulher de 1967; Declaração dos Direitos do Deficiente Mental de 1971; Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1981; Carta de Paris para uma nova Europa, de 1990) Manoel Gonçalves Filho (1999) elenca como direitos de solidariedade: o direito à paz (art. 20 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos [ONU, 1966]; art. 23 e alíneas 2ª e 9ª da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1981; art. 4º, VI e VII da Constituição da República [BRASIL, 1988]). direito ao desenvolvimento (apontado pela Comissão dos Direitos do Homem da ONU em 1977; Declaração sobre raça e os preconceitos raciais da UNESCO de 1978; Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento da ONU em 198617; art. 22 da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1981; art. 4º, IX da Constituição da República [BRASIL, 1988]). direito ao patrimônio comum da humanidade (Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados [ONU, 1974] – relativamente ao fundo do mar e seu subsolo). direito à comunicação (presente em diversas manifestações da UNESCO a partir da década 17 O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. (ONU - 1986 apud FERREIRA FILHO, 1999, p. 60) 20 de 1980; art. 5º, XIV, XXXIII e art. 220 da Constituição da República [BRASIL, 1988]). direito à autodeterminação dos povos – uma projeção do princípio das nacionalidades, oriundo da Revolução Francesa (art. 1º, §2º e art. 55 da Carta das Nações Unidas; Declaração de 1960 sobre a outorga da independência aos povos colonizados; art. 1º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU de 1966; art. 20 da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1981; art. 4º, III da Constituição da República [BRASIL, 1988]). direito ao meio-ambiente (Declaração de Estocolmo, em 1972; Declaração do Rio de Janeiro de 1992; art. 192 da Constituição iugoslava de 1974; art. 24, I da Constituição grega de 1975; art. 66 da Constituição Portuguesa de 1976; art. 45 da Constituição espanhola de 1978; art. 225 da Constituição da República [BRASIL, 1988]). A titularidade dos direitos de solidariedade é coletiva, constituem direitos difusos18, alguns de exercício e respeito individual, outros de todo um povo/sociedade e, também, do Estado visto que o povo é a sua dimensão pessoal. Já o objeto de tais direitos nada mais é do que uma conduta, a qual varia entre exigir, fazer (agir) e não fazer algo, impedindo ações que venham a atentar contra tais direitos ou promovendo atos que os resguardem. Em decorrência da própria característica destes direitos, não raro é a ocorrência de colisão entre os mesmos, por exemplo, autodeterminação em face do direito à paz. De acordo com Paulo Bonavides (2001), os direitos de solidariedade possuem a tendência de se consolidarem nesta última mudança de século, passando a serem vistos não mais com os elementos definidores dos demais direitos fundamentais, destinados especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, ou de um grupo deles ou de determinado Estado. Estes passarão a uma concepção enquanto destinados ao gênero humano. Por isso mesmo, esse autor os chama também de direitos difusos. Considerados direitos coletivos por excelência, sua concretização depende de um esforço coordenado em nível mundial sem precedentes e ainda por ser realizado. 2.7 - Da impossibilidade de minoração do rol dos direitos fundamentais Os direitos individuais, conforme observamos, foram e são o resultado de um processo 18 Os interesses difusos são aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. 21 contínuo e gradual de conquistas políticas, sociais, econômicas, etc., ou seja, de conquistas humanas na sua dimensão interpessoal desde o fim do século XVIII. Desta forma, nítido se mostra o fator que demonstraremos a seguir, o de que os direitos fundamentais não podem ser simplesmente substituídos quando da elevação de novos direitos a esta categoria. A única hipótese de adulteração da relação das prerrogativas humanas constitucionais é através do acréscimo, da agregação de novos direitos, e nunca mediante uma redução dos mesmos, quer seja por permuta ou por simples extirpação. Exemplo maior desta situação é a elevação dos direitos fundamentais postos em nossa Constituição (BRASIL, 1988) à categoria de cláusulas pétreas19. A garantia de intangibilidade desse núcleo ou conteúdo essencial de matérias (nominadas de cláusulas pétreas), além de assegurar a identidade do Estado brasileiro e a prevalência dos princípios que fundamentam o regime democrático, especialmente o referido princípio da dignidade da pessoa humana, resguarda também a Carta Constitucional dos ‘casuísmos da política e do absolutismo das maiorias parlamentares’. (SARLET, 2001, p. 354) 2.7.1 - Teoria da Proibição do Retrocesso Social Joaquim José Gomes Canotilho define o princípio da proibição de retrocesso social como: O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação‘ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado. (CANOTILHO apud ALMEIDA, 2006) Com a proibição do retrocesso social torna-se impraticável qualquer plano político encadeado no sentido de esvaziar o conteúdo ou a natureza de direitos fundamentais. É interessante notar que quando está em análise o dever positivo do Estado, notadamente do Poder Legislativo (e em menor grau do Executivo), decorrente de um direito social a prestação, existe correlativamente uma imposição de abstenção. Isto porque, na medida em que há uma obrigação de concretizar um direito, por exemplo, através da criação de normas infraconstitucionais, exsurge um dever anexo de não tomar medidas retrocessivas que atentem contra as conquistas já atingidas em termos de legislação, no sentido de usurpá-las ou mesmo flexibilizá-las desarrazoadamente, sob pena de deixar-se de cumprir, por via reflexa, o dever concretizador. (ALMEIDA, 2006) Tendo como aporte esta delimitação, a jurisprudência européia construiu o “Princípio da 19 Art. 60, § 4º, inc, IV da CRFB/88, in verbis: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: os direitos e garantias individuais. 22 proibição do retrocesso social”, o qual se configura como “uma ‘cláusula geral’ de proteção dos direitos fundamentais, especializados pela legislação infraconstitucional, e que assume uma função de defesa para o cidadão contra as ingerências do Leviatã” (ALMEIDA, 2006). A também chamada “cláusula de vedação do retrocesso” foi concebida na Europa, mais precisamente na Alemanha e em Portugal, como decorrência do Estado Democrático de Direito e sua função de garantidor das conquistas atingidas em termos de direitos fundamentais. (ALMEIDA, 2006) O princípio da vedação do retrocesso dos direitos sociais atua como substrato para a dignidade da pessoa humana20 no atual período de transição de paradigmas sofrido pela esfera pública contemporânea na busca por afirmação e fundamentação de direitos. Constitui, inclusive, base de raciocínio e fundamentação jurídica para o exercício do controle de constitucionalidade em abstrato. Os direitos fundamentais sociais em seu cerne possuem um projeto emancipatório fascinante, assim como possuem todos os direitos fundamentais, uma vez que lutando por estes direitos e sua efetivação constrói-se a emancipação real do ser humano. Significam a saída da cidadania do plano jurídico-formal (projeto político) para o campo sócioeconômico. E nisto, reside a beleza e prestabilidade dos direitos fundamentais. (ALMEIDA, 2006) Ingo Wolfgang Sarlet nos chama a atenção para o enorme perigo do entendimento de direitos sociais como normas programáticas, declarando que: [...] negar reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso significaria, em última análise, admitir que os órgãos legislativos (assim como o poder público de modo geral), a despeito de estarem inquestionavelmente vinculados aos direitos fundamentais e às normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte. (SARLET, 2004b, p. 162) 2.7.2 - Efeito cliquet dos direitos fundamentais Desse modo, verifica-se que os direitos humanos fundamentais consolidados em lei, positivados, jamais podem vir a ser supridos. De acordo com esta proibição do retrocesso social (jurisprudência cliquet anti-retour), o legislador somente está autorizado a intervir com o objetivo 20 [...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2004a, p. 59-60) 23 de tornar os direitos fundamentais mais efetivos, vedando-se, inclusive, diminuir-lhes o alcance. Veja-se, nesse diapasão, o denominado effet cliquet instituído pela jurisprudência do Conselho Constitucional francês no domínio das liberdades fundamentais, na sua decisão DC 83-165, de 20 de janeiro de 1984, considerando que não é possível a revogação total de uma lei, nesse tipo de matéria, sem a substituir por outra que ofereça garantias com eficácia equivalente. Já em 1991, passou a admitir que o effet cliquet pudesse também operar no âmbito dos direitos econômicos e sociais. (STRECK, p. 10) A partir de 1991, com o julgamento do caso DC 90-287, em 16 de janeiro, a jurisprudência e doutrina francesas, esta com a liderança de Louis Favoreu, conforme explana o Tribunal Constitucional Português (REPÚBLICA PORTUGUESA, 2003), passou a admitir que o referido effet cliquet pudesse, ainda, operar no âmbito dos direitos econômicos e sociais. Alguns autores apontam para o chamado “efeito de Cliquet” dos direitos humanos. Essa expressão é utilizada pelos alpinistas e define um movimento que só permite o alpinista ir para cima, ou seja, subir. Assim ocorre com os direitos humanos, eles são inderrogáveis. (CORREIA, p. 101) 24 3 – CONSTITUIÇÃO E PROCESSO A estrita observância das regras processuais constitui uma das conseqüências relativas à imperatividade do princípio da legalidade. O indivíduo que busca a tutela jurisdicional do Estado necessita de prévio conhecimento de normas de conduta e atuação da jurisdição, precípuo da segurança jurídica e certeza de que a finalidade desta tutela estará sempre resguardada. E não existe outra esfera normativa senão a constitucional para conferir a legitimidade à produção e observância das regras e princípios de processo. As normas constitucionais são dotadas de valor hierárquico absoluto: encontram-se no topo do ordenamento jurídico e são incontrastáveis. Sua superioridade em relação às leis ordinárias implica o princípio da conformidade de todos os atos do Poder Público à Constituição. Nenhuma regra de Direito, seja de que setor da ordem jurídica provenha, goza de autonomia em face da Constituição. De qualquer nível o legislador está vinculado. Não há governo que se possa dizer soberano, pois todos estão limitados pelas normas constitucionais. Em certa ocasião, o Governo do Rio Grande do Sul intentou ação direta de inconstitucionalidade do art. 45 da Constituição; ao Judiciário, como resulta evidente, falece competência para declarar inconstitucional uma regra própria da Constituição. Nesse sentido, a melhor Doutrina alemã e a jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional Federal. (VARGAS, 2002, p. 52) Gomes Canotilho, ao ser citado pelo Professor Vargas (2002), aduz a impossibilidade constitucional de se conceber, em sua gênese originária, a inconstitucionalidade de uma norma em decorrência da legalidade democrática. Deste modo, ele realça que a figura das normas constitucionais inconstitucionais, a despeito de seu considerável papel na análise da validade material do Direito, não possui muitas considerações práticas. Assim, no processo de elaboração da constituição, somente se observa a subordinação a um grupo de princípios políticos que nada mais do que refletem a ideologia da maioria da sociedade. O escopo da Constituição será, então, a concepção política dominante na Assembléia Constituinte, onde reside a sua legitimidade. Assim a concebeu Emmanuel Sieyès dentro das teorias constitucionais clássicas. O instante supremo do Direito não é o do dia das promessas mais ou menos solenes consignadas nos textos constitucionais ou legais. O instante, realmente dramático, é aquele em que o juiz, modesto ou orgulhoso, ignorante ou culto, profere, mediante solene afirmação implícita na sentença: esta é a justiça que para este caso está anunciada no preâmbulo da Constituição21. (COUTURE apud VARGAS, 2002, p. 54, tradução nossa) 21 El instante supremo del derecho no es el del día de las promesas más o menos solemnes consignadas em los textos constitucionales o legales. El instante, realmente dramático, es aquel em que el juez, modesto o encumbrado, ignorante o excelso, profiere em solemne afirmación implícita em la sentencia: esta es la justicia que para este caso está anunciada em el Preambulo de la Constitución. 25 É justamente a positivação de direitos de caráter fundamental e separação das funções do Estado que caracterizam o diploma constitucional. Assim já dispunha a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão no seu art. 16: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição” (FRANÇA, 1789). O entendimento do processo como garantidor dos direitos individuais, antecipa a compreensão do prisma constitucional o Direito Processual. A condensação metodológica e sistemática do dos princípios constitucionais do processo leva a pontos essenciais: a tutela constitucional dos fundamentos da organização judiciária e do processo de jurisdição constitucional. (BARACHO apud CRUZ, 2001, p. 230) 3.1 – Hermenêutica e Teorias Constitucionais clássicas Hermenêutica é a ciência que estuda as diferentes possibilidades de interpretação, buscando a compreensão sintática, semântica e pragmática do texto legal. A história da Hermenêutica nasce na filosofia clássica grega, com Aristóteles. Ele pregou que a sociedade é interior ao homem (animal político), possuindo uma concepção indutiva da hermenêutica, diante da qual é fundamental a retórica e argumentação na análise do caso concreto, existindo também as máximas hermenêuticas, ou seja, os topóis, antepassado dos precedentes contemporâneos. As leis são normas abstratas que precisam ser adequadas pelo operador do Direito. A Hermenêutica desenvolveu-se no Império Romano (através das Instituições do imperador Justiniano e da Igreja) e passou pela Alta e Baixa Idade Média, momentos estes em que a herança cultural animista dos povos bárbaros influenciou o Direito fortemente, com a Igreja buscando a unificação européia através do latim (esse processo era dialético e produziu cismas, como as Cruzadas, a queda de Constantinopla, o cisma de Avignon) num momento de desagregação do poder político e desaceleração econômica. Com o fim das invasões bárbaras e algumas descobertas técnico-científicas, a economia européia reaquece e leva ao contato com os povos arábicos e orientais, que dá origem aos movimentos. O movimento Tomista (Paris), de São Tomás de Aquino, que pertencia a uma nova ordem religiosa da Igreja, os dominicanos, os quais buscavam seu espaço e poder. Este movimento retoma os conceitos clássicos de interpretação de Aristóteles, através das traduções feitas pela Universidade de Toledo (Espanha) do árabe para o latim. O transcendental divino se manifesta pela vontade de Deus onipotente (lei eterna). A manifestação da vontade humana consegue, em parte, nunca no todo, atingir a vontade divina. A ciência natural é baseada no âmbito sensorial e possui tendência 26 finalística, em que tudo tende a um fim e as pessoas tendem à sua essência, e essa tendência implica na ação de movimento, através da vontade de Deus. A física aristotélista se torna centro do mundo cristão, sendo a sua origem revelação de Deus (lei natural). Aqui, o raciocínio se torna indutivo. A despeito disso, o homem ainda pode se afastar de Deus e, por isso, as escrituras (lei divina) são oferecidas a ele como corretivo. Somente a Igreja, única capaz de interpretar as leis natural e divina, é capaz de julgar se a relações humanas (lei humana) são justas ou não, tornandose o juiz supremo do mundo ocidental; Já o movimento Glosador (Bolonha) retoma o Direito canônico romano, com o corpus juris justinianus. Entretanto, esse Direito romano estava ultrapassado e, para se tornar instrumento de manipulação da Igreja, precisava se adaptar às condições históricas e sociais da época. Na Universidade de Bolonha, de grande influência romana, cria-se um corpo de estudiosos para trabalhar esses textos romanos, tornando-os instrumentos de unificação do poder político na Europa. As adaptações dos textos eram feitas por meio de anotações prévias, interlineares e laterais, chamadas glosas. Os professores eram os glosadores. Os principais glosadores eram Iacúrsio e Inério. Os alunos, aprendizes de Bolonha, oriundos de toda a Europa, difundiam essas idéias ao voltarem para seus países, ocupando grandes cargos na sociedade (juízes, etc.). Essa 2ª geração foi chamada de Comentadores, Pós-glosadores ou Conciliadores, formados num centro de excelência de ensino da época. O movimento Glosador levou a um processo teórico, analítico e dedutivo de utilização do Direito. Contudo, esse universo teleológico é abalado e praticamente desintegrado a partir do século XVI. O Renascimento (com o aparecimento do humanismo e a redescoberta do estilo greco-romano nas artes); a Reforma Protestante (pregando a livre interpretação das escrituras sagradas e aceitando a riqueza, reforçando a noção de individualismo); o Iluminismo; o surgimento do Capitalismo (criando a noção de linearidade e sucessão rígida, valorizando os meios de produção e extinguindo a servidão); e a Revolução do raciocínio científico cartesiano constituem novos paradigmas na história da humanidade. É a revolução científica, que vai de Galileu a Isaac Newton, que molda as bases da Hermenêutica Clássica. Kepler prova que o sistema solar é heliocêntrico. Galileu, através da descoberta do telescópio, desmente Aristóteles com os corpos celestes sendo tão imperfeitos quanto a Terra, a qual não passa de um simples corpo celeste, não sendo obra prima da criação de Deus. Ele adotava caráter irônico ao colocar o representante da Igreja, com as propostas explicações acerca da origem do universo e da Terra, como um imbecil. A valorização, na ciência, do saber empírico, demonstrativo, buscando a exatidão 27 matemática desarticula toda a gramática divina da Igreja. René Descartes, através da obra “O discurso do método”, demonstra toda essa segregação entre religião e ciência, inexistente na forma medieval. Só há fé na razão, bastando ser racional para se chegar a Deus. Tudo é duvidoso até que se demonstre o contrário, sendo a única certeza a existência da dúvida acerca do pensamento, tornando esse, dessa forma, demonstrativo, com hipóteses, síntese e tese. Esse pensamento matemático-científico universal causou, por longo tempo, um complexo de inferioridade nas ciências humanas em relação às ciências exatas e biológicas. Todo raciocínio deve partir das partes mais simples para as mais complexas, havendo uma construção em etapas, do geral para o específico. Immanuel Kant, nesse contexto, separa o Direito da moral, com esta existindo no âmbito interno do indivíduo (assim como a religião), enquanto que aquele necessita da exteriorização, mesmo na omissão, para a sua incidência. Kant traz para o Direito a objetividade racional e científica universalizadas, admitindo a existência do imperativo categórico, ou seja, máximas universalizantes. John Locke cria a idéia de tripartição dos Poderes (Legislativo, Executivo _que engloba o Judiciário_ e Federativo _das causas internacionais). Montesquieu aprimora essa idéia com a divisão clássica, na obra o “Espírito das Leis”, já observando a concepção dos três poderes através do sistema de “freios e contrapesos”, independentes entre si. O mundo maquinário, cheio de partes, agregado, aplicava-se também ao Estado. A forma de conceber o Direito no âmbito do raciocínio cartesiano, como o faz Kant, se manifesta também em outros filósofos, com os contratualistas Hobbes e Rousseau. A Constituição surge pautada em critérios dogmáticos, racionais e matemáticos. Assim, o Poder Legislativo se torna fundamental ao conferir legalidade e legitimidade. As leis são intrinsecamente boas. O Poder Judiciário, como retratou Montesquieu, não pode valorar as leis. Essa forma de conceber a Hermenêutica vai levar o Direito a ser realizado harmonicamente, com a idéia de certeza, objetividade, coerência e previsibilidade. Um conjunto completo de regras. Constitui-se, assim, o período das codificações e universalizações no início do século XIX. Tal Positivismo jurídico, o qual nasce na Hermenêutica Clássica, possui a primeira manifestação com a Escola da Exegese, na França. Seus seguidores entendiam que a lei era o produto da razão da vontade geral, e que o juiz, no quadro de separação dos poderes, era um mero servidor público aplicador da lei. Ela propugnava uma hermenêutica que garantisse a mais absoluta objetividade, e que deveria fornecer ao magistrado um instrumento que lhe permitisse uma leitura racional do texto, através de um formalismo silogístico, livrando o operador do Direito da ânsia de promover interferências no julgamento pautadas nos seus valores e interesses pessoais. “[...] a 28 premissa maior seria o texto normativo, e a premissa menor o fato material. Havia uma concepção dedutiva de incidência do elemento abstrato ao elemento concreto. O estudo dos elementos sintáticos e semânticos da língua seria o centro das preocupações” (CRUZ, 2004, p. 75). A dogmática exegética formou-se logo após a publicação do Código Civil de Napoleônico, em 1804, prosseguindo com grande influência até praticamente os fins do século XIX. [...] No século XX, a Escola da Investigação Científica iria procurar “salvar” a Escola da Exegese, por meio da aplicação subsidiária de costumes, dos princípios gerais do Direito e da analogia, ao permitir uma investigação científica livre ao jurista exclusivamente nos casos em que o sistema jurídico se apresentasse dúbio ou lacunoso. (CRUZ, 2004, p. 75) A Escola da Exegese abriu também espaço para o desenvolvimento tanto do Subjetivismo quanto do Objetivismo. O primeiro, amplamente adotado nos Estados Unidos, levou à formação do Originalismo (busca da intenção dos constituintes); Textualismo (interpretação literal do texto, tolerando, contudo, diante da clara incompatibilidade do mesmo com a realidade, uma atualização do sentido normativo do texto pelos tribunais.); e Conceitualismo (admitindo a existência de discrição por parte do Judiciário na definição de normas genéricas). Já o “Objetivismo ganhou preferência entre os publicistas no século XIX, entre eles Engisch e Binding, o qual pregava que as intenções e desejos do legislador desapareceriam desde o momento de sua publicação” (CRUZ, 2004, p. 75). O segundo grande marco da Hermenêutica Clássica foi o Historicismo de Savigny, também do início do século XIX. Ele negou a tese central do jusnaturalismo de efetivar uma organização lógica, racional e universal do Direito, vez que considerava inaceitável tal pretensão em favor do Código Civil de Napoleão. Em síntese, rejeitava a idéia de direitos naturais que fossem construídos exclusivamente pela racionalidade humana ou que pudesse ser encontrada apenas nos textos legislativos. Entendia o Direito como a ciência que estudava as legislações, mas dava suma importância ao exame dos costumes. As legislações eram frutos da história de cada nação. Os costumes e a tradição, o volksgeist, eram inalienáveis e intransferíveis. Assim, cabia ao jurista formular os conceitos que regeriam a normatividade própria de cada povo. O Direito Natural não era composto de valores universais, mas fruto da história de cada sociedade. (CRUZ, 2004, p. 77) Segundo Álvaro Cruz (2004), a Escola Histórica construiu a observância rigorosa dos objetivos do racionalismo cartesiano na busca de uma correção e certeza matemáticas: Incorporou o método de raciocínio dedutivo, por meio do pressuposto que o texto da norma subsumiria o fato. Seu esforço concebeu um sistema jurídico fechado a valorações éticas e morais. O Direito, como um sistema coerente de regras jurídicas, pode superar as aparentes antinomias pelo esforço hermenêutico do intérprete. (CRUZ, 2004, p. 77) 29 Esse intérprete deveria deixar-se inspirar pelo “espírito e seu povo” no momento de aplicação do Direito. Contudo, essa aplicação reclamava o emprego de técnicas específicas correspondentes ao sistema gramatical, lógico, histórico e sistemático do Direito. Por meio delas o intérprete poderia alcançar a “verdadeira interpretação”, ou seja, atingir o ideal da precisão/correção das ciências naturais. O jusracionalismo compõe a espinha dorsal do pensamento savigniano. (CRUZ, 2004, p. 77) O que se chamou de “Direito dos Professores” foi a idéia historicista de que apenas os doutores em Direito eram capazes de perceber a ciência jurídica, tornando-a erudita, própria para o conhecimento de poucos. Somente esses professores detinham o receituário de aplicação do Direito. Dentro dessa forma específica de trabalhar as normas, o Historicismo criou classificações diferentes, todas referentes às formas características de interpretação pregadas: quanto às fontes (autêntica, judicial e doutrinária); quanto aos meios (gramatical, lógica e sistemática); e quanto aos resultados (declarativa, extensiva, analógica e restritiva). O Positivismo jurídico também agrega a Jurisprudência de Conceitos, de George Puchta. Seguindo o pensamento de Savigny, ele cria o Movimento Pandectista Alemão, dando origem ao Positivismo conceitualista. Por meio do método dedutivo, desenvolveu uma “genealogia de conceitos”, hierarquizando-os de forma contínua até a obtenção de normas jurídicas particulares nas decisões judiciais, empenhando-se no desenvolvimento de conceitos puros, unívocos, unisignificativos, de modo a permitir uma interpretação clara e exata dos textos normativos. Seu “positivismo científico” permitiu ao jurista um espaço criativo [...] (CRUZ, 2004, p. 79) Buscava uma idéia universal de Direito, delimitando um significado próprio e imutável aos signos/expressões dos textos jurídicos. Contudo, a despeito do seu viés criativo, a Jurisprudência dos Conceitos aprofundou ainda mais o distanciamento entre o Estado e a sociedade. Tornou o Direito alheio às esferas sociais, políticas e morais da sociedade, descolando a ciência jurídica da realidade. A idéia de justiça equivalia-se ao que era legal. (CRUZ, 2004, p. 79) O Positivismo filosófico de Augusto Comte, ao lado de Spencer e Lithé, foi outro fator de fundamental influência ao Positivismo jurídico. Comte foi o formulador da famosa lei dos três estados de evolução da humanidade, através da qual explicava o desenvolvimento filosófico a partir da Idade Média. No primeiro, o teleológico, os fenômenos são explicados por referência a causas sobrenaturais e à intervenção de seres divinos. O segundo Estado é a metafísica, no qual o pensamento recorre a princípios que são considerados como existentes além da superfície 30 das coisas e como constitutivos das forças reais que atuam na evolução da humanidade. O terceiro e último estado é o positivo, que rechaça todas as construções hipotéticas na filosofia, história e ciência, e limita-se à observação empírica e à conexão de fatos, seguindo os métodos utilizados nas ciências da natureza. (GOMES apud CRUZ, 2004, p. 103) Partindo da suposição de que a vida social poderia ser explicada pelo princípio da causalidade, Comte e Lithé foram fortemente influenciados pelas teorias da evolução orgânica de Lamarck e Darwin, e acreditavam haver uma lei fundamental da evolução, pela qual passado, presente e futuro poderiam ser previstos. Assim, o progresso humano seria permanente, até que a humanidade alcançaria sua etapa mais elevada, a positiva. É a noção da ilimitação da razão se garantida a ordem (através das leis universais, naturalmente). Diante disso, “o modelo liberal de Constituição, que organizava o Estado mínimo, era entendido, não como uma etapa do desenvolvimento da evolução humano, mas como a única forma possível de Constituição” (CRUZ, 2004, p. 104). Cruz (2004) afirma que novos vieses do formalismo jurídico se somariam ao positivismo analítico, ou seja, àquele que se preocupava apenas com a análise e interpretação do Ordenamento Jurídico do Estado, destacando-se o Positivismo Sociológico. Rudolph Von Jhering, dentro do positivismo sociológico, através da Jurisprudência de Interesses, entendia ser fundamental conhecer o Direito como forma de vivência. “Para ele, na verdade, o Direito era uma luta constante que colocaria o Estado em movimento, caso fosse acionado por um reclamante, a fim de garantir seus interesses” (CRUZ, 2004, p. 104). Assim, refutando o Direito objetivo, Jhering sustentou que o elemento criativo na ciência jurídica não se perfazia pelos estudos definidores dos interesses subjacentes à normatização jurídica, cuja concretização se buscava, e não a criação de direitos. O utilitarismo jurídico de Jhering criticou a teoria da decisão meramente como mecanismo de subsunção da lei ao fato, propondo sua adequação às necessidades da vida prática. Estabelece que o Direito é movido por interesses e aspirações, devendo-se buscar, dessa forma, a finalidade da norma, pois os valores comuns próprios da comunidade estariam inscritos na lei, com os interesses do legislador sobrepondo-se aos interesses individuais. Havendo lacunas na lei, o juiz deveria desenvolver critérios axiológicos, os mesmos de que o legislador partiu, para conjugar os interesses em pauta com base naqueles valores. Assim, o juiz sempre ficará restrito aos valores embutidos na vontade do legislador. “Todavia, a Jurisprudência dos Interesses abriria, mais tarde, espaço à Jurisprudência de Valores, vez que começava a admitir uma postura axiológica do magistrado diante de lacunas no Ordenamento Jurídico” (CRUZ, 2004, p. 105). Um dos principais seguidores de Jhering, Philipp Heck, da Universidade de Tübingen, 31 colocou o Direito como coordenador da garantia dos interesses individuais. O juiz não teria a mera função de subsumir o fato à lei (que conjugaria os interesses da comunidade), pois enquanto intérprete da lei no caso concreto, trataria de compor esses interesses segundo a lei, deveria adequar sua decisão às necessidades práticas da vida, com base nos interesses em pauta das partes litigantes.“Ainda dentro do positivismo sociológico, encontra-se o Realismo Jurídico norteamericano, o qual descreve o Direito em proposições que aferem como os homens efetivamente se conduzem” (CRUZ, 2004, p. 105). Bem como na Jurisprudência de Interesses, o seu alvo é a conduta dos homens, quando supõe ser possível alcançar um sistema de regras descritor do comportamento humano através da observação. Deste modo, abrir-se-ia espaço para a especulação relativamente às possíveis condutas dos juízes na aplicação da lei, o que leva, até hoje, à contratação pelos escritórios de advocacia, a fim de orientarem suas posturas perante o caso, de exames psicológicos especializados de membros do júri. Somou-se a esse positivismo sociológico o positivismo analítico de Kant, valorando-se a igualdade formal e a liberdade. Ainda no viés juspositivista, podemos mencionar Louis Favoreu trabalha com a idéia do bloc de constitucionnalité, na qual é importante conhecer, além da norma constitucional, as leis infraconstitucionais, os códigos, micro-sistemas, a forma de aplicação das leis (especialmente a jurisprudência, a qual cria direitos ausentes na Constituição) e a doutrina jurídica. Desta forma, é possível trabalhar com uma unidade e integração absoluta do ordenamento jurídico, obtendo a constante vinculação constitucional. Emmanuel Sieyès aborda que o Terceiro Estado (Assembléia Constituinte na França, em 1789) é o povo. Deste modo, a Constituição é a positivação da vontade do povo, a norma normarum. Através de seus pensamentos, Sieyès confere extremo valor ao ato anterior à Constituição, o ato formador. O século XVIII marca a vitória da igualdade formal, com a burguesia triunfando sobre o Antigo Regime. O século XVIII marca a vitória da igualdade formal, a qual garantia os direitos individuais. O positivismo sociológico somou-se ao positivismo analítico como mecanismo regulatório de uma sociedade burguesa, consolidando o Estado Liberal. Contudo, no fim do século XIX e início do século XX, tal noção de segurança e previsibilidade do Estado Liberal levou ao chamado “estado de polícia”, no qual a polícia era necessária para garantir a ordem. A liberdade extrema levou a enormes sofrimentos humanos, principalmente com a 2ª Revolução Industrial e a formação de grandes conglomerados econômicos e financeiros, consolidando uma enorme produção em escala, soberba para a época. 32 Constituiu-se uma enorme massa de trabalhadores oprimidos, sem garantias ou benefícios. A concentração de renda era imensa e as jornadas de trabalho desumanas, incorporando mulheres e crianças, uma classe de trabalhadores guetificados em condições de vida insalubres e miseráveis, explorados e espoliados de sua força de trabalho pela burguesia. Diante da pobreza e da expropriação que era imposta a esses trabalhadores, os ideais de igualdade de direitos e de liberdade para todos passaram a ser questionados. Havia uma distância muito grande entre os direitos humanos formalizados no papel e aqueles que eram vividos na realidade. Existiam os direitos formais e os direitos reais. Surgiram movimentos revolucionários opondo-se ao status quo burguês, como o Socialismo Utópico (Saint Simon, Fourier, Proudhom); o Anarquismo (Bakunim); O Socialismo Científico (Karl Marx e Friedrich Engels); e o Papel Social da Igreja, com a Encíclica Rero Novarum, do Papa Leão XIII, e a Encíclica 43, dentre outras, colocando a Igreja Católica como crítica do Capitalismo. Hegel trouxe elementos para uma nova visão do Direito, vez que foi capaz, através do conceito de trabalho, de abrir “[...] a perspectiva da formulação mais precisa desse novo conceito de justiça, a social, que depois se desenvolveria nas várias vertentes do pensamento contemporâneo. [...]” (CRUZ, 2004, p. 106) Ele influenciou diretamente o pensamento marxista e todo o socialismo real. Certamente também o fez no tocante à doutrina social da Igreja Católica, numa época que testemunhou, sem igual, a exploração do homem pelo homem. A luta por esses direitos levou à criação de sindicatos e ao emprego do instrumento da greve. A reação estatal fez-se presente sob a forma de contínua repressão a tais movimentos, através deste état gendarme, no qual quaisquer reivindicações por melhores condições de vida no trabalho eram tratadas como desordens públicas. Contudo, a gradual adoção do voto universal, especialmente a do voto masculino, desligando-o de critérios de renda e propriedade concorreu, paulatinamente, para o surgimento das primeiras leis sociais. A idéia de uma igualdade substantivo-material, também paulatinamente, sobrepunha-se à concepção formal de igualdade formalista da burguesia. Essa nova igualdade positivou-se constitucionalmente quase que de forma concomitante, no bloco de países subdesenvolvidos (México, em 1917) e de países desenvolvidos (Alemanha, Constituição de Weimar em 1919). Mas sua consolidação, em ambos os casos, foi fruto de dolorosos conflitos, como a revolução zapatista dos camponeses em favor da reforma agrária e, na Alemanha, tanto na Primeira Guerra Mundial quanto a rebelião comunista de Berlim, encabeçada, entre outros, por Rosa Luxemburgo. (CRUZ, 2004, p. 107) Ocorreu, assim, a criação do Estado Social (Welfare State). Foram considerados, nessa “segunda geração de direitos humanos”, como direitos fundamentais “os direitos sociais, 33 econômicos e culturais”, como saúde, educação gratuita, segurança, moradia, lazer, etc. Não se tratava apenas de enunciar os direitos nos textos constitucionais, mas prever os mecanismos adequados para viabilizar sua satisfação. O cidadão se torna um credor do Estado. Cobrava-se para que ele fosse o agente promotor das garantias e dos direitos sociais e coletivos. A hermenêutica formalista germânica do século XIX levou o Direito a ser deduzido exclusivamente dos conceitos das regras de sua própria aplicação. A interpretação silogística, enquadrando a lei ao caso, transformou o Legislativo no poder fundamental. Nesse novo contexto do Estado Social, O Poder Executivo toma do Legislativo as rédeas diante da concepção desses direitos coletivos, tornando-se o poder mais importante. Na transição do Estado Liberal para o Estado Social, os Estados Unidos configura essa mudança não na Constituição, mas na política de Roosevelt do New Deal, através de normas infraconstitucionais, criando a bipolaridade democrata e republicana. O aparecimento do fascismo na Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, e a ditadura do proletariado soviético representaram a cristalização de tais desejos de transformação. E evolução de Estados também se manifestou na Hermenêutica, propagando-se gradualmente. Durante a transição para a Hermenêutica Moderna, é possível, ainda, observar resquícios do positivismo formal. O Positivismo Legalista limitou a ciência jurídica exclusivamente ao exame da dogmática legislativa, dividindo-se em: Positivismo Legalista Subjetivo _ Windscheid, que traz a noção de que o intérprete deve se basear na Voluntas Legislatoris, atendo-se, exclusivamente, à norma. Ele poderia, no máximo, pesquisar os valores e interesses do legislador. Positivismo Legalista Objetivo _ Karl Engisch, o qual discorre que a lei é feita com um propósito, mas, com o passar do tempo, ela ganha vida própria, aplicando-se a casos antes impensáveis. O importante não seria a vontade do legislador, e sim a vontade da norma (Voluntas Legis). Nessa situação, o juiz disporia de um espaço criativo (contudo, diferente do espaço da Jurisprudência de Conceitos de Puchta). Essa concepção nasce de uma evolução publicista da Escola da Exegese. É nesse momento que se começa a perceber a existência de lacunas no Direito. [...] Adotando uma postura inovadora, característica do constitucionalismo material, voltado para o estudo do conteúdo do texto constitucional, entendido como reflexo da vontade popular (Decisionismo de Schmitt) ou como uma densificação normativo-científica dos valores supremos da sociedade (teoria da integração científico-espiritual da Escola de Zurich e, particularmente, de [Heller] e Smend). (CRUZ, 2004, p. 107) 34 Especialmente por meio do “positivismo analítico”, destacando-se Austin, Hart e Kelsen, houve um aperfeiçoamento do formalismo do positivismo até o formalismo positivista. De acordo com Álvaro Cruz (2004), Hans Kelsen centrou sua obra, intensamente discutida a partir da década de 1930 _ tendo vivido dois períodos de renascimento da doutrina do Direito Natural e por isso empenhando-se fortemente em rejeitar quaisquer justificações metafísicas da validade do Direito, no aspecto de que o Direito teria por objeto o exame de todo e qualquer Ordenamento Jurídico, complexo ou simples, democrata ou autoritário. Ele discorreu que os aspectos subjetivos ligados ao Ordenamento Jurídico deveriam ser estudados pela Política e pela Sociologia. Assim, Kelsen fez um esforço monumental para tornar objetivo-científica a ciência do Direito ao colocar como centro de sua investigação dois princípios: O princípio da causalidade (se é A, será B), próprio das ciências naturais; e o princípio da imputação (se é A, deve ser B), inerente ao Direito e às demais ciências sociais, no qual “se alguém não se comporta conforme as convenções sociais, ele deverá ser hostilizado e isolado pela sociedade em razão de seus princípios morais” (CRUZ, 2004, p. 113). Para Kelsen, a ciência, fosse ela natural ou social, deveria estar depurada de qualquer ideologia, possuindo função meramente descritiva. É importante frisar que, a despeito da originalidade de sua obra, Kelsen não rompeu completamente com o paradigma liberal do Direito. Podemos observar isso através do fato de que “o princípio da imputação entendia bem distintos e separados os fatos do âmbito normativo, reforçando a noção positivista de subsunção” (CRUZ, 2004, p. 113). Depois, ele ignorou as novidades trazidas pelo constitucionalismo de Weimar, principalmente aquelas relativas aos direitos sociais e coletivos. E isso ocorreu devido a seu modelo ignorar inteiramente, por exemplo, a existência de normas pragmáticas. O critério de validez de uma norma para Kelsen estava no fato dela se encontrar em conformidade com uma norma jurídica superior. Para ele, o Estado é pessoa jurídica e, assim, faz parte do Direito e se submete à Constituição. Em todas as normas que se referem às relações sociais existe uma hierarquia da norma superior sobre a norma inferior. A Constituição é o ápice da pirâmide hierárquica. O que fornece validade a essa Constituição é a teoria da Norma Hipotética Fundamental. Todo o Ordenamento estaria calcado nesse ato de força da sociedade, fruto da racionalidade humana. Essa grundnorm não se caracterizava como norma positiva, mas como contida num plano ideal, gnosiológico. A despeito dela não ser concreta, a grundnorm podia ser inferida a partir de um 35 comportamento descritivo, acrescentando, assim, a noção de eficácia à visão na qual a validade é igual à eficácia, colocando a Carta Magna de uma nação em constante observação. Diante da Teoria Pura do Direito de Kelsen, a noção de Estado de Direito confundia a noção científica do Direito como ordenamento coercitivo das condutas humanas como uma idéia particular de justiça. Kelsen via o Direito em seu aspecto dinâmico como um conjunto de autorizações e procedimentos aptos a conferir competências a pessoas investidas em funções públicas, estes ligados à aplicação/criação normativa. (CRUZ, 2004, p. 117) Ele critica a hermenêutica positivista, colocando que todo ato jurídico é paralelamente uma aplicação de uma norma superior (cognição) e a produção de uma norma inferior (volição). Logo, Kelsen contrapõe-se ao Pandectismo Alemão, o que postulava a viabilidade do surgimento de um Direito novo simplesmente através de uma interpretação cognitiva. Para tanto, chegou a distinguir a interpretação realizada pelas autoridades estatais competentes (autênticas) daquela produzida por professores e jurisconsultos (não autênticas), vez que somente a primeira seria criadora do Direito. Quanto à segunda, não autêntica, ela deveria simplesmente preocupar-se com um elenco de possíveis técnicas/métodos de interpretação [...] (CRUZ, 2004, p. 118) A interpretação autêntica é, ao mesmo tempo, cognitiva e volitiva, enquanto a interpretação não autêntica é apenas cognitiva. Aquela se torna marco referencial de distinção do positivismo clássico. Na hermenêutica clássica, as lacunas do sistema jurídico eram, em termos práticos, ignoradas, admitindo-se, em situações excepcionais, o emprego da eqüidade, da analogia e dos princípios gerais do Direito. Com o Voluntarismo de Kelsen e Merckel, as lacunas jurídicas seriam meramente aparências, vez que o próprio Direito regularia mecanismos para a solução de tais problemas. O legislador, por ato de vontade, permitiria que o Judiciário, nesses casos, decidisse discricionariamente. Kelsen acreditava que “a ciência do Direito teria seu objeto limitado ao fornecimento das molduras das possíveis interpretações/soluções. Contudo, a interpretação autêntica poderia deparar-se com situações nas quais somente a discricionariedade e a subjetividade, poderiam solucionar a questão” (CRUZ, 2004, p. 119). O que Kelsen coloca como o fim da Hermenêutica é, na verdade, o ponto de partida da Hermenêutica Contemporânea. Na visão de Kelsen, há um detrimento do Legislativo em favor do Executivo. Aliás, ele constituiu uma nova forma de repartição dos poderes, já que os atos estatais seriam atos criadores do Direito, independentemente deles serem legislativos, judiciais ou administrativos. Desse modo, a primordial diferenciação dos atos legislativos reside no atributo destes serem normas gerais e, todos os demais atos, quer sejam promovidos pelo Executivo quer sejam pelo Judiciário, serem normas individualizadas. Ainda, os atos judiciais e administrativos poderiam apresentar uma diferença funcional básica uma vez que estes podiam ser praticados como atos coercitivos. 36 O modelo clássico de Locke/Montesquieu sustentava-se numa diferença ontológica entre os atos de tais poderes. A diferença era qualitativa. Kelsen via a distinção tão somente do ponto de vista quantitativo. Pela teoria clássica, o ato legislativo era um ato estritamente volitivo. O ato jurisdicional, por outro lado, um ato de ciência, pautado, exclusivamente, pela razão. (CRUZ, 2004, p. 121) Kelsen apagava essa idéia, aceitando o modelo somente em casos indubitáveis. Nos demais, o juiz não poderia continuar como la bouche de la loi. O princípio da separação dos poderes era questionado, pois não havia, na prática, um sistema de vasos estanques, mas sim comunicantes. Diante das suas concepções, Kelsen questionava a idéia presente no controle de constitucionalidade positivista, especialmente no americano, pelo qual a decisão judicial de reconhecimento de inconstitucionalidade teria natureza declaratória. O certo seria que, quando um magistrado examinasse qual a norma geral aplicável ao caso, sua função não seria só declaratória, mas ele, preliminarmente, deveria verificar se a norma seria válida. Com base nisso, Kelsen questionou a existência de leis inconstitucionais. Sendo vigente, a lei era sempre válida perante a Constituição. “O Parlamento poderia optar por acatar as prescrições formais e materiais da Constituição, ou optar por uma regulamentação direta da Corte. Todavia, poderia ocorrer do Parlamento contrariar algum dispositivo constitucional ao optar por uma regulamentação indireta” (CRUZ, 2004, p. 122). O significado das normas de regulamentação indireta era que poderiam ser revogadas pelo processo usual no Parlamento, mas também por um processo especial, que devia ser previsto pela Constituição. Contudo, enquanto não fossem revogadas, tais normas permaneceriam válidas. (CRUZ, 2004, p. 122) Deveria tal processo diferenciado de controle ser promovido por um Tribunal Especializado, espécie de Corte Constitucional cuja única atribuição seria a análise constitucional. Essa Corte Constitucional avaliaria a constitucionalidade da lei em tese, ou seja, em abstrato. Seria desnecessário trazer uma lide que tivesse por pano de fundo a inconstitucionalidade, como se via no modelo clássico dos Estados Unidos. Agora, tratando-se de um processo especial de revogação da norma, o processo resumir-se-ia no confronto do texto constitucional (premissa maior) com a norma impugnada (premissa menor). Seria um processo objetivo, qual seja, sem partes, sem lide. Um mecanismo asséptico de fiscalizar a constitucionalidade das leis, independente dos interesses da sociedade. (CRUZ, 2004, p. 123) Os precedentes judiciais também seriam uma forma de legislação política dos tribunais. O Judiciário, através do controle de constitucionalidade, exerceria um papel de revogação das leis, uma forma de legislação negativa, o que abalava a teoria clássica de separação dos poderes. De acordo com Kelsen, salutar era a integridade e a manutenção da pureza da ordem jurídica 37 (indistinta do Estado), e seria somente um tipo de subproduto o efeito de proteção dos direitos fundamentais através do controle de constitucionalidade clássico. No Decisionismo de Schmitt, há uma crítica ao formalismo excessivo. O elemento político prepondera sobre o elemento jurídico. Ele coloca que o conteúdo é fundamental, pois todos os valores imanentes da sociedade estariam na Constituição. No Brasil, essa Teoria Decisionista do Direito é chamada de Teoria Dialógica, a qual busca um diálogo entre as decisões do povo (que forma a verdadeira Constituição) e as leis constitucionais, que são o próprio reflexo dessas decisões. Em termos analíticos, Cruz (2004) afirma que a obra de Schmitt foi a que melhor se identificou com o Estado Social de Direito. O seu conceito central foi o de “Comunidade Orgânica”, pelo qual conceberia uma nova forma de controle social. Para ele, a vontade geral rousseauniana dos formalistas nada mais era do que um somatório de vontades particulares, baseado, em cálculos aritméticos de votos secretos. Sendo assim, o liberalismo e o parlamentarismo estariam sempre subordinados a interesses menores. O primeiro por priorizar o indivíduo em detrimento da coletividade. O segundo, sustentado no conceito de mandato imperativo, por fazer do parlamentar um comissionado dependente e voltado exclusivamente para uma pequena parcela da população. (CRUZ, 2004, p. 108) A “Comunidade Orgânica” formada pela homogeneidade do corpo social absorve o indivíduo por completo numa retomada do pensamento hegeliano. A própria Constituição, por possuir caráter absoluto, não pode estar contida nos estreitos limites da normatividade jurídica, entende-se como uma decisão básica acerca do formato dessa comunidade, em termos de unidade política. Numa democracia, na qual o povo exprime a sua vontade por aclamação, e não por simples voto secreto, o intérprete autêntico é o Poder Executivo, representante de toda a nação, único que detém as armas para defender a Constituição. Schmitt se opunha frontamente à idéia de um Tribunal Constitucional como guardião da Constituição conforme Kant. Ao identificar a autoridade como força, considerava que o Judiciário seria incapaz de fazer respeitar a Constituição diante das resistências de grupos organizados na sociedade e do aparato do Estado Liberal. Somente o Executivo, por meio do aclamado Führer, ou seja, somente a Presidência do Reich era a única instituição apta a exercer poderes soberanos, dentre os quais o controle de constitucionalidade. Somente ela poderia pacificar a sociedade, tornando-se a verdadeira guardiã da decisão fundamental do povo, a Constituição. O Decisionismo supunha que situações extremas poderiam surgir diante de normas constitucionais dotadas de conceitos abertos, expressões polissêmicas, com múltiplos sentidos, em regra possibilitando mais de uma interpretação. Ora, Schmitt pautava sua concepção hermenêutica no modelo positivista de subsunção. Logo, em casos de lacunas no Direito, o controle de constitucionalidade deveria ser político, sob pena de “diminuir” a função judiciária. (CRUZ, 2004, p. 111) 38 Rudolph Smend desenvolve a teoria Integracionista ou Científico-Espiritual. Nela, o elemento político da Constituição (conteúdo) não pode ser esquecido, mas não é o único ponto fundamental (a despeito do pensamento de Schmitt). A segurança jurídica é vital, devendo proteger as minorias. A Constituição é, assim, o elo entre a política e o Direito. Esta visão se contrapõe duramente ao pensamento formal de Georg Jellineck, para quem Direito e política não se misturavam. A Constituição seria a norma fundamental simplesmente porque ela cria o Estado, o qual, somente então, cria o Direito. Assim, para Jellineck, a Supremacia da Constituição se daria exclusivamente no campo jurídico. Smend alargou as possibilidades interpretativistas da Constituição. Ele foi agudo em assinalar a importância da mudança constitucional, ultimada fora dos processos formais explícitos e técnicos de reforma constitucional. Diferentemente de Heller, que não conhecia fator integrativo do Estado mais importante do que o Direito, Smend excluiu o Direito do círculo dos fatores de integração estatal ao considerar a Justiça e a Legislação, de certo modo, corpos estranhos à Constituição. Cabe, aqui, citar a teoria material da Escola de Zurich, a qual segue a linha das idéias de Smend, em réplica aos excessos do positivismo jurídico formal e também à unilateralidade de um sociologismo sem limites. Nessa hermenêutica moderna, os direitos fundamentais transformam-se em princípios de caráter universal e de obrigatória observância, tendo o seu caráter normativo respeitado, ao contrário da hermenêutica clássica, na qual os princípios, a despeito de integrarem o ordenamento, ocupavam o mais baixo grau da hierarquia, sendo empregados de forma subsidiária e como “válvula de segurança”, ou seja, supletivamente em caso de anomias jurídicas. 3.2 – Estado Democrático de Direito Aristóteles já retratava em sua obra “Política” a tripartição das funções do Estado. Podem sempre ser considerados como dimensões paradigmáticas de uma ordem constitucional justa, e, desta forma, servirem de operadores paramétricos para se aquilatar da legitimidade e legitimação de uma ordem constitucional positiva. Neste sentido, averiguar se uma ordem constitucional está informada pelos princípios do Estado de Direito e democrático é ou pode ser uma pedra de toque para se concluir, positiva ou negativamente, acerca da sua dignidade de reconhecimento como ordem constitucional justa, como Estado de Direito ou Estado de não Direito, como Estado democrático o como ditadura. (GOMES CANOTILHO apud VARGAS, 2002, p. 42-43) 39 Acerca dos princípios e da tarefa do Estado Democrático de Direito, José Afonso da Silva discorre tendo como base o Estado brasileiro: a) princípio da constitucionalidade, que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se funda na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, com as garantias de atuação livre de regras da jurisdição constitucional; b) princípio geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais; c) sistema de direitos fundamentais, que compreende os individuais, coletivos, sociais e culturais; d) princípio da justiça social [...] como princípio da ordem econômica e da ordem social; como dissemos, a Constituição não prometeu a transição para o socialismo mediante a realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participava, como o faz a Constituição portuguesa, mas com certeza ela se abre também, timidamente, para a realização da democracia social e cultural, sem avançar significativamente rumo à democracia econômica; e) princípio da igualdade; f) princípio da divisão de poderes e da independência do juiz; g) princípio da legalidade; h) princípio da segurança jurídica. (SILVA apud VARGAS, 2002, p. 43) É cada vez mais ordinário o erro de se pensar que o liberalismo se contrapõe totalmente às idéias contemporâneas de Estado Democrático de Direito e de que o mesmo é inimigo das conquistas sociais do século XX, opondo-se aos direitos fundamentais de segunda geração. Ao contrário, o Liberalismo e suas idéias foram os grandes responsáveis por criarem as condições materiais e influenciarem, decisivamente, as ações que resultaram na imensa conquista do repúdio a qualquer forma de opressão contra os indivíduos através do combate e fim do absolutismo monárquico e privilégios medievais da nobreza e alto clero. O Estado democrático nascido na revolução americana e da revolução francesa, elegendo a forma representativa parlamentar, de exercício do poder político como a viável, institucionalizou-se à base da chamada teoria da divisão dos poderes e do sistema de freios e contrapesos. O povo soberano, impossibilitado de exercício direto do seu poder, escolhe (elege) representantes seus que, como mandatários, vão exercer, em nome do povo, o poder que a ele povo unicamente pertence. A lei revela-se como a mais avançada e racional forma de o povo expressar, de modo genérico, abstrato e prévio as regras da convivência social. Editada por intermédio de seus representantes, fixa os limites da atuação de todos, inclusive os órgãos do poder público. Institucionalizava-se, portanto, um Estado de Direito, submetido à lei como qualquer indivíduo em nome do povo editando leis. (CALMON DE PASSOS apud VARGAS, 2002, p. 38) Traduz o Estado de Direito a experiência imemorial de que o Poder tende ao abuso, e que este só é evitado, ou, ao menos, dificultado, quando o próprio Estado obedece à lei e está enquadrado num estatuto jurídico superior. O Estado se subordina ao Direito através de uma Constituição rígida, ou seja, de uma Constituição que não pode ser modificada a não ser por um processo especial, nela própria previsto, sempre mais difícil que o de elaboração da legislação ordinária, que o organizaria ao mesmo tempo que limitaria os poderes de seus órgãos, salvaguardando as liberdades, os direitos do homem. Estrutura-se o Estado de Direito em duas bases: a legalidade e o controle judiciário. (FERREIRA FILHO apud VARGAS, 2002, p. 38) 40 Não mais a vontade do monarca possui força de lei, mas neste novo conceito, o do Estado de Direito, todo o comando provém da vontade impessoal das leis, a qual nada mais é do que a expressão máxima da vontade geral da população, que se torna, simultaneamente, monarca e súdita, governante e governada. Se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo o Estado é um Estado de Direito, esta representa um pleonasmo. Porém, ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica. Estado de Direito, neste sentido específico, é uma ordem jurídica relativamente centralizada, segundo a qual a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis – isto é, às normas gerais que são estabelecidas por um parlamento eleito pelo povo, com ou sem a intervenção de um chefe de Estado que se encontra à testa do Governo -, os membros do Governo são os responsáveis pelos seus atos, os tribunais são independentes e certas liberdades dos cidadãos, particularmente a liberdade de crença e de consciência e a liberdade da expressão do pensamento, são garantidas. (KELSEN apud VARGAS, 2002, p. 41) Dentro do patamar do princípio da legalidade, no Estado Democrático de Direito não há espaço para a condução do Poder Judiciário de forma pessoal e com base em critérios subjetivos de justiça. As escolas jurídicas como a do Direito Alternativo fazem távola rasa da segurança jurídica, atentando contra os princípios basilares do Estado Democrático de Direito e representam um retrocesso ao autoritarismo de séculos atrás. É ao Legislativo que cabe a função de elaborar as normas jurídicas. O juiz é o representante, titular, agente do juízo, órgão judicante estatal, cujas decisões possuem vinculação plena. Assim, ao proferir a sentença, o praetor, que já possui prévio conhecimento do ordenamento jurídico, levando-se em conta as questões fáticas que lhe foram apresentadas e o pedido deduzido, confere o provimento final, acolhendo ou negando o objeto da pretensão resistida. Se o juiz não encontra no ordenamento jurídico a regra que ele “sente” (de sentire, setentia...) ser a aplicável, observar-se o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito.” Dispõe o art. 126 do CPC: “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de Direito.” Só se decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei se a Constituição diz que todo poder emana do povo e que é o povo que exerce o poder, parece haver redundância na colocação do adjetivo “democrático”. Se o povo é que exerce o poder, o Estado só pode ser democrático. É explícita, portanto, a forma de governo adotada. (VARGAS, 2002, p. 41) Como afirma o Professor Álvaro Cruz (2001), a dignidade da pessoa humana passa a ser o elemento chave que promove o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, no qual a sociedade assume uma postura ativa no sentido de se organizar para a consecução de seus interesses e necessidades, desconfigurando-se a separação entre Estado e sociedade. As relações entre o Estado e o Cidadão serão pautadas no princípio da subsidiariedade, o 41 qual assenta-se em política social, proposta por Estado descentralizado, com o reconhecimento de certa forma paradoxal, de dois entendimentos: abandona o igualitarismo social em proveito do valor da dignidade ao mesmo tempo em que foge do individualismo filosófico, para compor sociedade estruturada e federal. (BARACHO apud CRUZ, 2001, p. 224) O foco central não mais é o do Poder Legislativo ou Executivo, como ocorreu, respectivamente, durante os estados liberal e social, mas sim no Judiciário. Neste esteio, a Justiça Constitucional possui a função de proteger e promover o respeito à Constituição e aos direitos fundamentais, materializando, no universo jurídico, os sistemas políticos através do Direito Constitucional Jurisprudencial como afirma José Alfredo de Oliveira Baracho (2001), incorrendo, inclusive, no fenômeno contemporâneo de universalização das cortes constitucionais em todo o mundo. 3.3 – Teorias constitucionais contemporâneas O constitucionalismo contemporâneo, que surge após a Teoria científico-espiritual de Rudolph Smend, é composto por três correntes, a Liberal, a Comunitarista e a Procedimentalista. 3.3.1 – Liberalismo A corrente Liberal, oriunda do liberalismo de Adam Smith, prega pela mínima intervenção do Estado. A Constituição deve ser mínima, sintética, apresentando apenas elementos de cardeais e fundamentais, atuando como garantia dos interesses individuais. O Estado é excluído, pela Constituição negativa, de ações da esfera privada do cidadão. O Direito privado e o público eram pólos opostos e bem distintos, tendo o Código Civil como regulador do primeiro e a Constituição do segundo. Essa corrente liberal se subdivide em três outras correntes menores, que são a Liberalista, a Interpretativista e a Não-interpretativista, possuindo enorme difusão em todo o sistema jurisdicional norte-americano. 42 3.3.1.1 - Liberalistas A primeira, dos Liberalistas, tem como principais representantes no constitucionalismo norte-americano Hayek e Nozik, e se caracteriza basicamente pelas características da corrente liberal em seu extremo alcance. As regulamentações econômicas e políticas não devem existir. Uma “mão invisível” gere o mercado e conseqüentemente o Estado liberal, segundo Adam Smith. O único papel do Estado é prover segurança jurídica. Um dos únicos elementos do Direito que seria incorporado pelo Estado e sociedade seria a previsibilidade. 3.3.1.2 – Interpretativitas A corrente Interpretativista do Direito Constitucional se baseia na interpretação dos textos nos modos clássicos. Os valores pessoais devem estar de fora, partindo-se da lei ao fato. Essa corrente se dividiu em duas outras, o Originalismo e o Minimalismo. Os Originalistas, representados por Robert Bork e Willian Renhquist, acreditam que os valores utilizados na interpretação devem ser os dos constituintes, no caso norte-americano, os pais criadores da América. Ocorre a busca nas interpretações da intenção original dos constituintes (original intent). Já os Minimalistas, representados principalmente por Cass Sunstein, percebem que, além dessa busca da interpretação, a ação da Suprema Corte deve ser mínima, com o intuito de formar um Estado, uma Constituição e uma jurisdição nacional mínima. A proposta minimalista, segundo Sunstein, liga-se à noção de evitar uma apreciação de questões constitucionais de forma prematura. Questões ainda em discussão, sem definição na sociedade, não devem ser apreciadas pela Suprema Corte. Para os minimalistas, uma das grandes razões dessa precaução em relação a tais assuntos é o efeito vinculativo das decisões judiciais da Suprema Corte, o fenômeno stare decisis22. Esse fenômeno, se ocorrer de forma maximalista, como no Roe case, para Sunstein, pode gerar um desprestígio da mais alta magistratura note-americana, causando mais custos do que benefícios. O caso citado por Sunstein é o feito Roe v. Wade (1973), no qual a texana Jane Roe, estuprada, procurou terminar a sua gravidez através do aborto. A lei do Estado do Texas proibia o 22 A decisão vinculante refere-se a um predicado já vigente no direito brasileiro, da eficácia de certas decisões, especialmente das decisões tomadas no controle concentrado de constitucionalidade das normas. (PERTENCE, 2003, p. 395). 43 aborto, salvo em situação de risco para a saúde da gestante. Levado o caso para a Suprema Corte Americana, esta decidiu a favor de Roe, colocando que o direito de uma mulher ao aborto se enquadrava no direito à privacidade (reconhecido pelo precedente Griswold v. Connecticut) protegido pelas Emendas Constitucionais n.5 e n. 14. Essa decisão deu às mulheres total autonomia sobre a sua gravidez durante os três primeiros meses, criando diferentes níveis de interesse público no segundo e terceiro trimestre de gravidez. Como resultado, a legislação de 46 estados-membros foi alterada por essa decisão da Suprema Corte. Sunstein aborda que a Suprema Corte deveria ter se abstraído de posicionar-se antes que a sociedade americana tivesse amadurecido sua posição. Para tanto, poderia ter se negado a apreciar a matéria (negativa de certiorari) ou se limitado a discutir o aborto em razão do estupro sofrido por Jane Roe. 3.3.1.3 - Não-Interpretativistas Em reposta aos Interpretativistas, surge outra corrente liberal, a Não-Interpretativista. Os autores dessa corrente também se subdividiram em dois movimentos. Os Conceitualistas, representados por Lawrence Tribe, e os Construtivistas, que tiveram em Rawls e Dworkin grandes representantes. Os Conceitualistas viam na Constituição um instrumento vivo. Para eles há um processo de aprendizado contínuo, evolutivo, gerando novos valores em cada geração e isso refletiria também na Constituição. Ela é vista como um projeto aberto a mudanças. Ele critica os Interpretativistas dizendo que o texto constitucional não deve ser gerido pelos mortos (referência ao interpretativismo originalista, o qual buscava nos constituintes os valores para a interpretação). Já os Construtivistas tomam linhas um pouco diferentes da corrente anterior. John Rawls acredita que a construção de direitos parte de um consenso justaposto, são direitos universais, direitos humanos (dentro do caráter privado da corrente liberal). O imobilismo social deve ser combatido, e Rawls dava o devido valor e importância à educação. Por sua vez, Ronald Dworkin taxa os interpretativistas de convencionalistas, e diz que os princípios são muito importantes, capazes de permear o Direito com valores morais, proporcionando uma “leitura moral da Constituição”. Uma decisão é justa, portanto, se fornece resposta correta (mesmo que não se baseie na 44 23 estrita legalidade) para o caso. Deve ser observado o Princípio da Integridade . Dworkin aponta a diferença estrutural ou morfológica entre regras e princípios. Enquanto o primeiro tem o campo de atuação definido, o outro tem um grau de abstração tão grande, que seria impossível tal delimitação. Deve haver, assim, uma comunidade de princípios, utilizada pelos legisladores e pelo juiz, que conhece e trabalha com todos esses princípios, sendo assim, um verdadeiro Hércules. Dessa forma, ele não só interpreta, mas constrói o Direito. Esse juiz deve dar continuidade no processo construtivo, seguindo o caminho das gerações anteriores e deixando-o aberto para os seguintes darem seqüência nesse trabalho, sempre, é claro, analisando a conseqüência futura. A decisão deve partir do caso concreto e, através de processo reconstrutivo, atingir alto grau de abstração de forma a revelar o princípio referente ao caso. E as regras devem ser interpretadas à luz dos princípios, podendo ser afastadas se não atenderem ao princípio referente à situação. Todo caso é um hard case, único e irrepetível, só havendo uma decisão correta e integracionista a ser aplicada. O diálogo torna-se fundamental para que o juiz atinja o fim desejado, qual seja a decisão racional. Essa decisão não pressupõe ponderação, mas sim a imaginação dos princípios como normas que se excepcionam reciprocamente nos casos concretos, vez que não podem, muitas vezes, ser contemporaneamente aplicados. 3.3.2 – O Comunitarismo A efetividade é um conceito jurídico, formulado pela Sociologia Jurídica, que se traduz pela efetiva aplicação fática da norma pela sociedade e pelo Estado. O Constitucionalismo da Efetividade dos direitos fundamentais surge em um momento de reafirmação da necessidade do Direito para o Estado. Nas décadas de 60 e 70, no Brasil, surgiu um movimento de negação ao Direito, a Teoria Crítica ao Direito. Nessa teoria se inserem nomes como Miguel Reale e Roberto Mira Filho. O primeiro, seguindo a Teoria Irracionalista de M. Foucault, colocou que o Direito, visando a tudo normativizar, torna as pessoas dóceis ao exercício do jogo de poder. Já o segundo, um tributarista marxista, taxou o Direito como um instrumento de ação da burguesia, levando ao aumento da 23 A integridade é dividida por Dworkin em integridade na legislação e integridade na aplicação. No primeiro caso, aqueles que criam a lei devem mantê-la coerente com seus princípios; no segundo, requer-se que aqueles responsáveis por decidir o sentido da lei busquem coerência com a integridade. Isso explicaria porque os juízes devem conceber o corpo de normas que eles administram como um todo, e não como um cenário de decisões discricionárias no qual eles são livres para fazer ou emendar as normas, uma a uma, com um interesse meramente estratégico (BARACHO JÚNIOR, 2000, p. 121). 45 desigualdade social. Em resposta a esse movimento surge na década de 80, no Brasil, o Constitucionalismo da Efetividade, que traz o princípio da dignidade humana como princípio norteador (princípio da unidade material da constituição) e apresenta o Direito como mecanismo para a inclusão social. Este modelo constitucional é oriundo do Comunitarismo Constitucional que teve, com Zagrebelsky e Alexy, grande influência no modelo brasileiro. Na base deste Comunitarismo está um movimento de critica ao liberalismo, surgido nos Estados Unidos nos anos 80 do último século, especialmente em razão dos movimentos econômicos de desestatização e de globalização. Segundo os comunitaristas, a manutenção de interesse individuais, egoísticos e egocêntricos e de um Estado mínimo, dos liberais, tende a uma fragmentação inevitável. “Dessa forma, o Comunitarismo rejeita a visão liberal de um pluralismo universalista, calcado em visões particulares sobre ‘vida digna’ e adota uma concepção cultural de uma coletividade em particular” (CRUZ, 2004, p. 154). Portanto, o diálogo de idéias e valores definirá, para os comunitaristas, a forma de aplicação do Direito em respeito à pluralidade de comunidades. Essa aplicação deve pautar-se em razão da moral comunitária e em função de uma responsabilidade social com os valores densos da comunidade. O pensamento comunitário adota, portanto, uma teoria constitucional pautada numa estrutura axiológica de decisões políticas e morais de uma comunidade. Ora, essas idéias compartilhadas na sociedade e cristalizadas na Constituição, empoem uma ação afirmativa do Estado a seu favor. Logo, nos Estados Unidos, espera-se da Suprema Corte uma posição decidida em favor de tais valores, especialmente daqueles ligados às noções tradicionais da moral/cultura do povo americano. (CURZ, 2004, p. 157) Na Europa, o Comunitarismo chegou com a idéia “de que as Cortes Constitucionais estariam ligadas necessariamente a uma eticidade material, que equiparava as normas constitucionais, especialmente seus princípios, aos valores supremos da comunidade” (CRUZ, 2004, p. 157). Assim, a “Jurisprudência de valores” torna-se parte fundamental do Comunitarismo Constitucional. Os principais nomes do movimento comunitarista passam por conservadores como Alasdair MacIntyre e liberais-comunitários como Walzer, Taylor e Ackerman. O Constitucionalismo da efetividade brasileiro apresenta essa teoria de forma revista, sendo de Alexy a perspectiva incorporada pelo modelo constitucional nacional. Conforme apresenta Álvaro Cruz (2004), Alexy apresenta uma teoria voltada à ética discursiva, preocupando-se com o exame das regras de linguagem. Ele apresenta uma perspectiva principiológica do Direito, afastando-se da visão clássica, que identificava os princípios como normas generalíssimas dos sistemas, como se percebe em Del Vecchio e Bobbio. Alexy entendia os princípios como normas de aplicação direta e imediata em sua Teoria da 46 Argumentação. Ele adotou um paradigma procedimental, sustentando basicamente a proteção aos direitos fundamentais ao aspecto dialógico do discurso e à racionalidade do ‘princípio da proporcionalidade’. Assim, ao invés de uma visão monológica, centrada no controle da subjetividade do juiz, Alexy optou por um esforço dialógico que embasaria toda sua Teoria da Argumentação. (CRUZ, 2004, p. 165) Através da Teoria da Decisão, Alexy reconhece a impossibilidade da idéia de certeza e objetividade absolutas do positivismo, passando à tentativa de solucionar o ordenamento lacunoso e contraditório através da racionalidade dialógica (intersubjetividade da argumentação jurídica) do julgador. Outro ponto da teoria de Alexy é o da Ponderação principiológica. A “Lei de colisão”, criada por ele para solucionar antinomias principiológicas, dispõe que um princípio só pode ser satisfeito à custa de outro. Logo, o operador do Direito deveria justificar racionalmente o porquê de sua escolha por um princípio em detrimento do outro, estabelecendo uma regra individualizada para aquele caso concreto. A ponderação implicava numa operação mental de quantificação dos argumentos e dos princípios no ato de estabelecer sua preferência. Esse procedimento, com segurança, é norteado pelo princípio da proporcionalidade e seus três subprincípios, necessidade, adequação e proporcionalidade propriamente dita. Ele também criou as regras de justificação, critérios para determinar a preferência entre os argumentos; e as regras de transição, as quais visavam a promoção de acordos sobre questões práticas quando as argumentações não surtam efeitos. Alexy acreditava que o subjetivismo da decisão “não garantiria a obtenção de uma resposta correta ao caso, mas certamente estaria controlado, a fim de não se tornar arbitrariedade [...]” (CRUZ, 2004, p. 173). 3.3.3 - Procedimentalismo Constituindo-se a mais bem estruturada teoria constitucional contemporânea, ele funciona a partir do fato da sociedade ser divida em sistemas, cada um exercendo um papel próprio, todos possuindo uma lógica exclusiva dentro de uma linguagem binária e deontológica, capazes de se acoplarem no progresso e da sociedade. A unidade de Acoplamento estrutural entre o Direito e a Política seria a Constituição. No sistema jurídico não se deve trabalhar com valores, uma vez que estes dependem do referencial, 47 levando a prevalecer a lógica da maioria, de forma que o juiz se torna um político e, o sistema jurídico, uma ditadura. A função do Direito é apenas a caracterização de expectativas sociais, feito para solucionar as frustrações sociais. Na sua forma discursiva, (Procedimentalismo Crítico-Deliberativo), essa teoria interpretativa de Habermas aborda que toda percepção de mundo passa pela linguagem, qual possibilita uma comunicação para se atingir a sua função precípua, o entendimento. Só através do discurso, uma linguagem procedimentalizada (e não qualquer comunicação humana), em que as pessoas, inclusive as minorias, são livres para se expressarem e são respeitadas em suas idéias e atendidas em seus anseios, é que se torna possível atingir a legitimidade da sociedade, transformando as pessoas em cidadãs. E é a Constituição, processo e procedimento, que garante tal discurso, viabilizando a noção de igualdade formal – procedimental. É possível observar, então, o Pluralismo Jurídico como conseqüência lógica da estruturação do ordenamento jurídico promovida no procedimentalismo. 3.4 – O Pluralismo jurídico A nova interpretação filosófica se agrega com as bases do Estado Democrático de Direito para a concepção do Pluralismo jurídico. Ocorre a expansão e democratização do sistema Judiciário, fazendo o cidadão intérprete da Constituição e co-autor de suas próprias leis. A prática da virtude cívica amplia o espaço público com a criação de formas de participação política que vão além da simples representação. Este pluralismo valoriza as diferenças, respeitando-as através do reconhecimento da multiplicidade de identidades sociais e garantia aos estilos de vida diferenciados. O Igualitarismo alcançou um novo patamar na busca da otimização da igualdade de oportunidades. As ações compensatórias _ ações afirmativas _ do Estado constituem o seu indicador mais importante. Igualdade passa a ser tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida da sua desigualdade. Os direitos fundamentais também são forma de tutela das minorias, uma das condições básicas do Estado Democrático de Direito. As ações afirmativas podem ser entendidas como medidas públicas ou privadas, coercitivas ou voluntárias, implementadas na promoção/integração de indivíduos e grupos sociais tradicionalmente discriminados em função da origem, raça, sexo, opção sexual, idade, 48 religião, patogenia físico-psicológica, etc. (Cruz, 2003a, p.185). Segundo expõe Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2003a), tal expressão foi consolidada nos Estados Unidos na década de 60, numa Executive Order de iniciativa do Presidente Democrata John F. Kennedy, de inspiração na obra Uma teoria da Justiça24, do Professor da Universidade de Harvard John Rawls. Elas são, portanto, atos discriminatórios lícitos, constituindo um elemento essencial à conformação do Estado Democrático de Direito, o qual se fortalece com a aprovação do Civil Rights Act, em 1964. As ações afirmativas são a representação da nova noção de Igualdade, procedimental e formal. Esta concepção de igual proteção das leis (equal protection of the laws) é complementar do devido processo legal. Podemos observar o pluralismo jurídico por meio de jurisprudências que inserem as minorias na sociedade, por exemplo, nos casos norte-americanos Shelley v. Kramer (1948) e Roy Romer, Governor of Colorado, et al. Petitioners v. Richard G. Evans (1996). 3.5 – Processo e direitos fundamentais O processo25 não possui finalidade própria, mas, na verdade, vai muito além do que simples forma de composição de litígios. Tem o dever de atuar como um instrumento político de consecução do paradigma adotado através do Direito. Ele visa a servir à realização dos objetivos estabelecidos na Constituição, perfazendo-se de caráter instrumental, axiológico e mutável, moldando-se de acordo com a própria sociedade cujos reflexos importam no aperfeiçoamento da Constituição. Já Goldschmidt afirmava que o Direito processual não poderia senão florescer no terreno do liberalismo. Calamandrei estudou as mutações do conceito de ação, no contraste entre liberdade e autoridade. O traço mais original da obra de Couture é a relação entre os institutos processuais e seus pressupostos políticos e constitucionais. Hoje acentua-se a ligação entre Constituição e processo, no estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos na esfera fechada do processo, mas no sistema unitário do ordenamento jurídico: é esse o caminho, ensina Liebman, que transformará o Processo, de simples instrumento de justiça, em garantia de liberdade. (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO apud VARGAS, 2002, p. 55) O processo contemporâneo deve espelhar e proteger os valores individuais e coletivos 24 Na Theory of Justice, as affirmative actions vão “além da igualdade formal, jurídica, da igualdade de oportunidade, para preconizar a equality of results, igualdade de resultados, inspirada também na encíclica papal Pacem in Terris, sobre os direitos essenciais da pessoa humana. 25 Segundo Rosemiro Pereira Leal (2004), enquanto estrutura regente da jurisdição, o processo é uma instituição de previsão constitucional para discussão e decisão de direitos construída a partir dos princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia. 49 proferidos pela ordem constitucional. Condiciona-se a assegurar a legalidade imposta pela ordem constitucional do Estado vigente, demonstrando agir a serviço e em consonância com este. A jurisdição26 é o monopólio da arbitragem (modalidade de resolução de conflitos na qual ocorre a convocação de terceiros para julgar o litígio) exercido pelo Estado (Estado-juiz). E para regular, de modo a conferir uniformidade ao exercício da jurisdição, permitindo-o materializar-se de forma justa, equânime e eficaz, foi criado o processo. Acha-se definitivamente ultrapassada a fase das declarações de direitos e liberdades fundamentais. Constitui hoje preocupação universal a criação de um sistema jurídico que assegure a observância de tais direitos e a garantia de tais liberdades. (HELENO FRAGOSO apud VARGAS, 2002, p. 18). Ada Pellegrini ressalta a importância de se ater, na construção das normas processuais, o referencial da Constituição, a norma fundamental de qualquer ordenamento jurídico, única capaz de trilhar o caminho a ser percorrido pelo legislador ordinário no procedimento de construção normativa do processo a fim de que este não se desvie dos princípios políticos basilares do Estado, em especial o da tutela jurisdicional; do devido processo legal; e do juízo natural. É justamente a Constituição, como resultante do equilíbrio das forças políticas existentes na sociedade, em um determinado momento histórico, que se constitui no instrumento jurídico de que deve utilizar-se o processualista para o completo entendimento do fenômeno “processo” e de seus princípios. O Estado de Direito só pode atingir seu real coroamento através desses instrumentos processual-constitucionais de tutela dos direitos fundamentais. (GRINOVER apud VARGAS, 2002, 49-50). Faz-se mister diferenciar, ainda que precariamente, o Direito Processual Constitucional do Direito Constitucional Processual, muito embora haja discordâncias desta divisão27. O primeiro, para grande parte da doutrina processualista fundado por Kelsen, diz respeito ao estudo dos instrumentos processuais de garantia (dos direitos fundamentais constitucionais) propriamente ditos, tais como os princípios regentes de toda a estrutura processual e os institutos processuais que se materializam a partir dos mesmos. Já o Direito Constitucional Processual refere-se a ramo do Direito Constitucional no qual são abordados, sistematicamente, todos os institutos e sistemas processuais que foram elevadas ao 26 Além da jurisdição contenciosa ou propriamente dita, existe a jurisdição voluntária, inexistente no processo penal, a qual carece de técnica processual em sua definição como tal como afigura Frederico Marques: [...] a impropriamente denominada jurisdição voluntária, que não é voluntária nem jurisdição, constitui função estatal de administração de direitos subjetivos [...] O seu caráter é o de atividade estatal administrativa (MARQUES apud VARGAS, 2002, p. 62). 27 Separar as normas jurídico-processuais [...] e coordená-las, ao depois, sob a forma de sistema para constituírem, assim, no Direito Processual, uma nova categoria científica – Direito Processual Constitucional – não se nos afigura aconselhável, e, tampouco, acertado. Notadamente no Direito pátrio em que não há órgãos jurisdicionais próprios e especiais para o julgamento da constitucionalidade das leis, como sucede no Direito europeu. A aplicação das normas constitucionais é feita, ou através do processo civil, ou através do processo penal, com os respectivos órgãos jurisdicionais (MARQUES apud VARGAS, 2002, p. 64). 50 grau de normas fundamentais, positivadas e consagradas nas Constituições, sendo denominadas pela doutrina constitucionalista como as garantias constitucionais de caráter processual. As normas processuais são, como aduz Hélio Tornaghi, o prolongamento e a efetivação do capítulo constitucional sobre os direitos e as garantias individuais. De nada valeria que uma Constituição dissesse ser a casa o asilo inviolável do indivíduo, no qual ninguém pode entrar a não ser nos casos e pela forma prevista em lei,se uma lei não dispusesse sobre os casos e as formas. Seria inútil estabelecer que ninguém pode ser preso fora dos casos previstos em lei, se uma lei não previsse os casos de prisão. A Constituição ministra os princípios, mas nem pode nem lhe compete estar descendo a minúcias sobre procedimento. A lei processual vem assim complementá-la. (TORNAGHI apud VARGAS, 2002, p. 4) Segundo a corrente constitucionalista majoritária em nosso ordenamento, a do Constitucionalismo da Efetividade, tendo como participantes José Afonso da Silva, Paulo Bonavides e Cármen Lúcia Rocha dentre outros, relativamente à eficácia das normas, estas possuem efeitos variados, classificando-se dentre as seguintes categorias, de autoria dos italianos Crisafulli, Azariti e Bermini: normas de eficácia plena > aplicação direta e imediata; normas de eficácia contida ou contível > apresentam aplicabilidade direta e imediata, mas com o advento de norma infraconstitucional, ela possui seu campo de incidência restringido; normas de eficácia diferida > carecem de aplicação direta e imediata, estando condicionadas a adimplemento de norma infraconstitucional (normas programáticas); normas de eficácia limitada por princípio programático > possuem aplicabilidade direta e imediata, porém, em decorrência de seu alto grau de conceitualidade, demasiado aberto, detêm um campo de incidência indeterminado, livre; normas de eficácia limitada por princípio institutivo > não dispõem de eficácia em função da inexistência da instituição a que se referem. A despeito disto, observa-se que, em sede de direitos humanos fundamentais, tais classificações não podem ser admitidas sob pena de esvaziamento da razão de ser das Constituições. As normas, regras ou princípios, que tratam do tema de direitos metaindividuais devem ser, acima de todas as outras, imperativas e dotadas da máxima eficácia e efetividade28. 3.5.1 – Jus puniendi 28 Segundo Miguel Reale (2002), a eficácia diz respeito à produção de efeitos jurídicos, ao passo que a efetividade se refere à repercussão e produção de efeitos da norma na esfera social. 51 Conforme explana Tourinho Filho (2006), de todos os bens jurídicos que ao Estado é conferida a tutela, através da via legal, alguns deles constituem bens que, caso violados, afetam gravemente as condições de vida em sociedade. Constituem-se estes bens nada mais do que nos direitos fundamentais. O direito à vida, à honra, à integridade física são exemplos. Tais bens e muitos outros são tutelados pelas normas penais, e sua violação é o que se chama ilícito penal ou infração penal. O ilícito penal atenta, pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 9) Destarte, ao próprio Estado encerra a obrigação de resguardo dos direitos individuais, o qual também lança mão das ciências penais para afastar, quando necessário, indivíduos que demonstram serem incapazes de respeitar as prerrogativas humanas alheias no convívio social. Mas como esses bens ou interesses são tutelados em função da vida social, como tais bens ou interesses são eminentemente públicos, eminentemente sociais, o Estado, então, ao contrário do que ocorre com outros bens ou interesses, não permite que a aplicação do preceito sancionador ao transgressor da norma de comportamento, inserta na lei penal, fique ao alvedrio do particular. Conforme acentua Fenech, quando ocorre uma infração penal, quem sofre a lesão é o próprio Estado, como representante da comunidade perturbada pela inobservância da norma jurídica, e, assim, cabe ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos, tomar a iniciativa motu próprio, para garantir, com sua atividade, a observância da lei. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 9) O Professor Gonzáles Bustamante, citado por Tourinho Filho, constrói o seu conceito de jus puniendi como uma prerrogativa, garantia própria da sociedade no intuito de promover a defesa e prevenção dos direitos que lhes são mais caros: O jus puniendi equivale à legítima defesa que se reconhece aos particulares. A sociedade tem o direito de defender-se, adotando contra qualquer pessoa que ponha em perigo sua tranqüilidade as medidas preventivas e repressivas que sejam condizentes. (GONZALES BUSTAMANTE apud TOURINHO FILHO, 2006, p. 10) Verificamos que o jus puniendi se divide em dois tipos. O primeiro, em abstrato, se refere ao momento legislativo em que se determina a tipicidade e se comina um sanção penal a determinada conduta. O segundo, jus puniedi em concreto, corresponde ao momento em que o agente pratica a conduta proibida pela norma penal, ensejando, assim, a ação do Estado no sentido de cumprir seu dever de aplicação da lei penal. Observa-se, aqui, um fenômeno interessante: com o simples surgimento da pretensão punitiva forma-se a lide penal. Mesmo que o autor da conduta punível não queira resistir à 52 pretensão estatal, deverá fazê-lo, pois o Estado também tutela e ampara o jus libertatis do indigitado autor do crime. Revela-se, assim, a lide penal por meio do binômio direito de punir versus direito de liberdade. É, portanto, sui generis o litígio penal. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 10-11) A finalidade do Processo Penal é, pois, permitir a promoção do Direito Penal, funcionar como instrumento de aplicação da norma jurídico-penal editada pelo legislador em nome do povo. Podemos dizer que existe uma finalidade mediata, que se confunde com a própria finalidade do Direito Penal – paz social -, e uma finalidade imediata, que outra não é senão a de conseguir a “realizabilidade da pretensão punitiva derivada de um delito, através da utilização da garantia jurisdicional.” (TOURINHO FILHO, 2006, p. 29) Daí dizer Manzini que ele consiste em obter, mediante a intervenção do juiz, a declaração de certeza, positiva ou negativa, do fundamento da pretensão punitiva derivada de um delito. Assim, não constitui o Processo Penal nem uma discussão acadêmica para resolver, in abstracto, um ponto controvertido de Direito, nem um estudo ético tendente à reprovação da conduta moral de um indivíduo. Seu objetivo é eminentemente prático, atual e jurídico e se limita à declaração de certeza da verdade, em relação ao fato concreto e à aplicação de suas conseqüências jurídicas. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 29) 3.5.1.1 – Sistemas Processuais Penais A partir dos princípios que o informam, o Processo Penal pode adotar três tipos distintos de sistemas. O primeiro deles é o Sistema Inquisitivo. Este sistema, bastante comum no Direito Canônico da Idade Média, se caracteriza por ter como função principal a autodefesa da administração da justiça, muito longe de se encampar como um processo em busca da promoção da justiça. Típico dos governos autoritários, confere ao juiz o poder de concentrar todas as atividades do processo (acusar, defender e julgar), bem como este detém a sua iniciativa. O réu não possui qualquer tipo de defesa, não é sujeito de direitos processuais ou prerrogativas individuais fundamentais, mas tão somente objeto da investigação. Os atos processuais no tipo inquisitório são escritos e sigilosos, quando se busca, tão somente, a verdade formal, perfazendo-se a confissão suficiente para a condenação, mesmo que para tanto seja realizado o emprego da tortura ou outras provas tidas como ilícitas no viés contemporâneo. Já o Sistema Acusatório é diametralmente oposto ao inquisitivo, compondo-se de todos os princípios normativos ordenadores do Estado Democrático de Direito. Foi largamente adotado em toda a Antiguidade, especialmente na Índia, Atenas e Roma republicana. Nele, as funções processuais, julgar, acusar e defender, são distribuídas a pessoas distintas: o juiz e as partes, compondo-se uma relação processual. O réu é, acima de tudo, sujeito de direitos, 53 devendo arcar com todos os deveres e prerrogativas os quais possui frente às outras partes, estando todas em patamar de igualdade. Os atos processuais são, em geral, orais, e, eventualmente, escritos. O processo/procedimento se torna uma seqüência de atos processuais públicos, permitindo a fiscalização social, pautado pelo contraditório, ampla defesa e liberdade processual na busca pela verdade real. Por último, temos o Sistema Misto, também conhecido como Sistema Acusatório Formal, o qual é composto por três fases diferenciadas: a fase de investigação preliminar, a de instrução, ambas de caráter inquisitivo, e a fase de julgamento, marcada pela adoção do sistema acusatório. Este sistema se originou na França revolucionária do fim do século XVIII e, atualmente, encontrase presente não só lá, mas também em vários outros Estados europeus e até mesmo na América Latina (Venezuela). Observamos que, no ordenamento jurídico brasileiro, o sistema adotado é o acusatório, a despeito das características inquisitivas do inquérito policial, mas como o mesmo não integra o nosso processo penal, constituindo-se, apenas, de fase pré-processual, não há que se falar em sistema misto. Também nos Estados Unidos o sistema processual penal adotado é o acusatório. 3.6 – Mecanismos de proteção dos direitos humanos: as garantias O ordenamento jurídico, mediante o exercício do dever do Direito de preservar e promover os direitos humanos fundamentais, cria determinados institutos e dispositivos, nas mais variadas esferas, a fim de atender a este papel. Podemos nomear estes mecanismos, no sentido amplo, de garantias dos direitos individuais. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelece em seu artigo XVI: "Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição" (DALLARI, 2003, p. 219) Como já adiantado, vislumbra-se carência de técnica jurídico-lingüística a equiparação de garantia a sinônimo do conceito de direito no que tange aos direitos fundamentais. Rui Barbosa distingue os direitos e as garantias da seguinte forma: [separam-se] no texto da lei fundamental, as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, 54 que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias: ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito. (BARBOSA apud VARGAS, 2002, p. 44) A despeito da Constituição Federal colocar, formalmente, direitos e garantias fundamentais no mesmo patamar, observa-se, dentro do viés do jusnaturalismo, nítida a distinção de fontes entre eles, sendo as garantias de criação estatal e posteriores ao Direito (natural). Calamandrei ensina que o termo garantia, de múltiplos significados, implica, em sentido estrito, um remédio, algo de terapêutico, restaurador. (VARGAS, 2002, p. 49) Será através das garantias destes direitos humanos primordiais que os seus destinatários são socialmente efetivados como cidadãos ativos do Estado. Deste modo, podemos dividir estas garantias dos direitos fundamentais em algumas categorias, senão vejamos. Garantias constitucionais se chamam, primeiramente, as defesas postas pela Constituição aos direitos especiais do indivíduo. Consistem elas no sistema de proteção organizado pelos autores da nossa lei fundamental em segurança da pessoa humana, da vida humana, da liberdade humana. (RUI BARBOSA apud FERREIRA FILHO, 1999, p. 32) Estas enunciadas por Rui Barbosa são as chamadas garantias-institucionais. Para a maioria da doutrina constitucionalista, ao se tratar dos mecanismos constitucionais de proteção dos direitos de solidariedade, a mesma se dá mediante as garantias-institucionais (internacionais em função da proteção normativa externa). [As garantias constitucionais são] providências que, na Constituição, se destinam a manter os poderes no jogo harmônico das suas funções, no exercício contrabalançado das suas prerrogativas. Dizemos então garantias constitucionais no mesmo sentido em que os ingleses falam nos freios e contrapesos da Constituição. (RUI BARBOSA apud FERREIRA FILHO, 1999, p. 32) Estas garantias, de acordo com a classificação adotada por Ferreira Filho (1999), constituem as garantias-sistema em decorrência de sua origem no sistema constitucional. No sentido estrito, as garantias para Ferreira Filho (1999) são: garantias-limite: limitadoras do poder de agir, constituem proibições preventivas da violação dos direitos; garantias-institucionais: sistema de proteção organizado para a defesa dos direitos fundamentais (v.g. O sistema judiciário no Brasil); garantias-instrumentais: constituem o liame entre as duas anteriores já que são “defesa de direitos específicos ao mesmo tempo que meios de provocar a atuação do sistema de 55 proteção institucionalizado. Compreendem os remédios constitucionais 29 [...].” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 33) Observa-se que a própria categoria das garantias stricto sensu constitui um tipo de direito do cidadão, direitos subjetivos à garantia. Frise-se que tais garantias, legais, devem ser postas pelo Poder Legislativo através de lei formal, e não legiferação do Poder Executivo, quer seja via medida provisória quer seja através de lei delegada. Observe-se que a Constituição brasileira em vigor é expressa ao dispor sobre a lei delegada, proibindo a delegação de competência para legislar sobre “direitos individuais”, ou seja, sobre liberdades públicas (art. 68, §1º, II). (FERREIRA FILHO, 1999, p. 34) Para Fix-Zamúdio, citado por Mário Lúcio Quintão Soares, as garantias constitucionais, dentro do Direito Processual Constitucional se divide em: “as que têm por finalidade a tutela dos direitos da pessoa humana em sua dimensão individual e social, consagradas sob a denominação de jurisdição constitucional da liberdade” (SOARES, 2003, p. 406); e “as que compõem o conjunto de instrumentos processuais dirigidos para lograr o cumprimento efetivo das disposições constitucionais, objetivando estabelecer os limites e atribuições dos órgãos de poder, cognominando-se de jurisdição constitucional orgânica” (SOARES, 2003, p. 406). 3.6.1 – Princípios Os princípios do Estado de Direito também atuam como garantias constitucionais: É tradicional no direito brasileiro a inserção dos princípios básicos do Estado de Direito entre os direitos e garantias fundamentais. Isto tem uma razão de ser. São eles encarados como outras tantas garantias contra o arbítrio. Realmente, o princípio da legalidade condiciona a uma forma – a forma de lei – o estabelecimento de restrições aos direitos fundamentais; o princípio da igualdade exige que o regime legalmente estabelecido para cada direito seja igual para todos30; e, enfim, o princípio da justicialidade sujeita toda e 29 Remédios constitucionais, para Ferreira Filho (1999), são as ações especiais constitucionalmente previstas para fazer valer direitos fundamentais. 30 Igualdade perante a lei: isonomia. 56 31 qualquer lesão de direito ao crivo dos tribunais . Pode-se, por isso, ver neles direitosgarantia, com o caráter de limites: direitos-garantias-limites. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 104) Segundo o prof. Marcelo Galuppo (1999), os princípios são, na visão dworkiniana, juntamente com as regras, normas do ordenamento jurídico. Entretanto, as regras constitucionais normalmente possuem um campo de incidência determinado; uma conceitualidade mais fechada (sem tanta liberdade para o intérprete); tipicidade mais cerrada (elementos tipológicos da norma: objetivo, subjetivo, espacial e temporal); exigem, em geral, a positividade para a sua eficácia (salvo no caso de costumes). Já os princípios, contrapondo-se às regras, possuem campo de incidência bem mais indeterminado; conceitualidade mais aberta e tipicidade não cerrada. Eles, ainda, não exigem positividade para obterem eficácia, moldando-se com basilares da compreensão e gestão racional de qualquer sistema jurídico. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio é “mandamento nuclear de um sistema, verdadeira alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência.” (MELLO, 1992, p.299) Miguel Reale (2002) dispõe que os princípios podem ser omnivalentes ou universais (comuns a toda e qualquer ciência); plurivalentes ou regionais (comuns a algumas ciências); ou setoriais (comuns a um determinado setor de uma ciência). Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma [leia-se regra]. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de todos os seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura nele esforçada. (MELLO, 1992, p. 300) O Estado Democrático de Direito chegou tardiamente no ordenamento jurídico processualpenal brasileiro. Somente com o advento da última Constituição Federal (BRASIL, 1988) é que princípios ditatoriais, inerentes à época de promulgação do diploma normativo do processo criminal brasileiro, 1942, foram suplantados do rol de aplicação dos operadores do Direito. Vejamos então, de forma um pouco concisa por não se tratar do tema central ao qual se propõe o presente trabalho, alguns dos princípios processuais constitucionais e penais basilares de toda e qualquer jurisdição penal dentro da concepção de Estado Democrático. 31 Art. 5º, XXXV CRFB/88. 57 3.6.1.1 – Princípios garantistas em Direito Penal Mais especificamente no campo das ciências penais, podemos elencar alguns princípios de Direito material e processual que constituem elementos essências ao respeito à dignidade da pessoa humana e à condução da ordem e progresso sociais. 3.6.1.1.1 – Princípio da reserva legal ou da legalidade Decorrente do princípio constitucional da Legalidade, estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina, e nem pena sem prévia cominação legal. Objetiva promover uma limitação do poder punitivo estatal, atuando em prol da segurança jurídica, assumindo uma função garantista. Esse arbítrio judiciário, mais de inspiração política do que jurídica, com a especificação das medidas penais e às vezes a própria determinação dos crimes deixados à livre decisão dos julgadores, criara um regime de insegurança e descrédito da Justiça que ameaçava as próprias bases da ordem de Direito. Foi esse um dos motivos mais influentes nos movimentos de reforma do sistema penal da época, que pretendiam, por fim, dentro do espírito do Iluminismo, estabelecer um regime de segurança jurídica e de respeito à pessoa do homem. A reação necessária contra aquela situação de arbítrio e violência foi um sistema de penas rigorosamente fixado na lei, como já vamos encontrar no código francês de 1791. (ANÍBAL BRUNO apud VARGAS, 2002, p. 27) O Estado Democrático de Direito só pode privar seu cidadão da liberdade quando não restar dúvidas acerca de sua conduta ilícita, típica e culpável, fazendo-o, sempre, na letra da lei. A norma penal tem valor absoluto e se dirige a todos, o que não significa necessariamente que a todos obrigue. Este aspecto só interessa sob o prisma da culpabilidade. O direito não se esgota numa função de determinismo (imperativo), tendo também função de valoração. (HELENO FRAGOSO apud VARGAS, 2002, p 33) Deste modo, o sistema penal é fechado, não havendo o Direito Penal fora do campo normativo, sendo vedada, mesmo que aparentemente a lei pareça lacunosa ou omissa, a realização de interpretações analógicas ou a aplicação de analogias, salvo em bonam partem. Para grande parte da doutrina e jurisprudência penalista garantista, como José Cirilo Vargas (2002), a única fonte de direito penal é a lei. O rigor dessa limitação e a força dessas garantias estão no princípio que faz da lei penal a 58 fonte exclusiva de declaração dos crimes e das penas, o princípio da absoluta legalidade do direito punitivo, que exige a anterioridade de uma lei penal, para que determinado fato, por ela definido e sancionado, seja julgado e punido como crime. (ANÍBAL BRUNO apud SILVA, 2002) Na doutrina penalista, há aqueles que dizem que este princípio é oriundo do pensamento iluminista, como o de Feuerbach (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão). Já outros colocam que tal princípio remonta à Carta Magna de 1215. Já a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, no seu art. 8º, 2ª parte, positivava o princípio da reserva legal, falando, também, no devido processo legal: “Ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada”. (FRANÇA, 1789). Heleno Fragoso expõe: O princípio da legalidade dos delitos e das penas surge como exigência da natureza política. A fórmula latina, no entanto, resultou dos princípios assentados por Feuerbach, como conseqüência de sua teoria da coação psicológica. Toda inflição de pena pressupõe uma lei penal (nulla poena sine lege). Somente a ameaça de um mal através da lei fundamenta a noção e a possibilidade jurídica da pena. A inflição de pena está condicionada à existência da ação ameaçada (nulla poena sine crimine). Através da lei a pena ameaçada se liga ao fato como o pressuposto jurídico necessário. O fato legalmente ameaçado (o pressuposto legal) é condicionado através da penal (sic) legal (nullum crimen sine poena legali). Através da lei o mal liga-se a determinada violação do direito como necessária conseqüência jurídica. Formulava, assim, Feuerbach, os princípios básicos do Direito penal, que em caso algum admitiam exceção. Em nenhum caso pode haver crime ou pena sem prévia ameaça. (FRAGOSO apud VARGAS, 2002, p. 81) Como conseqüências do princípio da reserva legal podemos observar, de acordo com Nilo Batista (2002), a irretroatividade da lei penal; a obrigatoriedade da escrita da norma penal; a vedação às analogias em matéria de direito penal (nulla poena sine lege stricta), implementando-se uma interpretação quase que gramatical; e o Princípio da Taxatividade, através do qual se estabelece que a norma penal deve ser clara, precisa, fechada no sentido de definir, delimitar certa conduta (tipicidade). O Princípio da Legalidade (ou de reserva legal) tem um significado político, no sentido de ser uma garantia constitucional dos direitos do homem. (...) À lei e somente a ela compete fixar as limitações que destacam a atividade criminosa da atividade legítima. Esta é a condição de segurança e liberdade individual. (DAMÁSIO JESUS apud SILVA, 2002) 3.6.1.1.2 – Princípio da intervenção Mínima Decorre do direito de poder punir, limitador do jus puniendi estatal, consistente no fato do 59 Estado só poder recorrer ao Direito Penal e, portanto, à pena criminal, como ultima ratio, ou seja, em última instância, e somente quando bens jurídicos fundamentais para a vida humana e para sociedade forem lesados. E mesmo assim quando não houver, em outro ramo do direito, uma proteção jurídica satisfatória. O direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros ramos do direito. (MUÑOZ CONDE apud BATISTA, 2002, p. 85) Este princípio é limitador do Poder Legislativo, para que este não regule crimes que agridam os bens jurídicos e também não utilize o Direito Penal como morfina. Decorrente deste princípio surgem o Princípio da Fragmentariedade e o da Subsidiariedade. O princípio da intervenção mínima não está expressamente inscrito no texto constitucional (de onde permitiria o controle judicial das iniciativas legislativas penais) nem no Código Penal, integrando a política criminal; não obstante, impõe-se ele ao legislador e ao intérprete da lei, [...] por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídico-penais, dotados de positividade, e com pressupostos políticos do Estado de Direito Democrático. (BATISTA, 2002, p. 85) 3.6.1.1.3 – Princípio da Proteção jurídica dos bens fundamentais Bem é tudo aquilo que é útil, valioso e necessário para vida do homem e da sociedade, e bem jurídico é todo aquele bem protegido pelo Direito, observando-se a imposição constitucional da tutela penal, o qual se situa na fronteira entre política criminal e o Direito Penal. Os bens podem ser individuais ou supra-individuais (difusos, coletivos ou individuais homogêneos). Nilo Batista (2002, p. 96-97) dispõe que as funções do bem jurídico no Direito Penal são: axiológica; sistemático-classificatória; exegética; dogmática; e crítica. Verificamos que o Direito Penal só deve proteger os bens jurídicos fundamentais para vida digna e para a própria concepção dos valores do Estado Democrático de Direito, preservando e reproduzindo as relações sociais complexas. Deste modo, a aplicação das ciências penais não fica banalizada como ocorre nos Estados ditatoriais. 3.6.1.1.4 – Princípio da Lesividade 60 Para que haja uma lesão é preciso que haja agressão a algum bem jurídico determinado (objeto do crime). Assim, configura-se requisito a exteriorização (alteridade) dos atos. Só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral. [...] O direito penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos. (ROXIN apud BATISTA, 2002, p. 91) As funções deste princípio implicam na não criminalização de atitudes internas, pensamentos ou atos preparatórios. Não se responsabiliza, no âmbito penal, condutas que não excedam a esfera do próprio autor. Ainda, verifica-se que não se condena condutas imorais, etc., as quais configuram crimes impossíveis. O Estado não pode agir em razão de determinadas características existênciais, da pessoa. Não se admite a punição a um indivíduo, de forma discriminatória, pelo que ele é, mas sim pelo que ele faz. O Direito Penal é o da ação, e não do autor. “Um direito que reconheça e ao mesmo tempo respeite a autonomia moral da pessoa jamais pode apenar o ser, senão o fazer dessa pessoa, já que o próprio Direito é uma ordem reguladora de conduta” (ZAFFARONI apud BATISTA, 2002, p. 93). 3.6.1.1.5 – Princípio da Culpabilidade Não há crime nem pena se não há culpa (nullum crimen, nulla poena sine culpa). A culpa evidencia-se com a vontade de ação de um sujeito e a negligência de uma situação previsível, com um resultado que poderia ter sido evitado. O núcleo da idéia é a reprovabilidade da conduta. A culpa deixa de ser atrelada ao fato objetivo assim como não se pode julgar um indivíduo pelo que ele é ou representa (negação à responsabilidade objetiva e difusa). Este princípio impõe a subjetividade da responsabilidade penal. Neste campo, trata-se do Direito Penal do fato do agente, e não do agente do fato. As conseqüências maiores do princípio da culpabilidade são o Princípio da Previsibilidade; o Princípio da Evitabilidade; a Intranscendência e Individualização da pena. O princípio da intranscendência ou da pessoalidade (subjetividade) da pena dispõe que toda e qualquer pena/sanção penal é pessoal e intransferível, não podendo ser herdada nem extrapolar a esfera do agente infrator. Da subjetividade da responsabilidade penal tem-se que no Direito Penal não existe responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva. Já a individualização da pena prescreve que a pena deve ser aplicada levando-se em 61 consideração o indivíduo, particularizando-a. Em nosso ordenamento jurídico, ele se encontra positivado no art. 5º, XLVI CRFB/88. Ela é composta de três partes: cominação da pena (individualização legal); aplicação da pena (individualização judicial); e execução da pena. Neste campo, o tema mais atual é a chamada co-culpabilidade. Trata-se de considerar, no juízo de reprovabilidade, que é a essência da culpabilidade, a concreta experiência social dos réus, as oportunidades que se lhes depararam e a assistência que lhes foi ministrada, correlacionando sua própria responsabilidade a uma responsabilidade geral do Estado que vai impor-lhes a pena; em certa medida, a co-culpabilidade faz sentar no banco dos réus, ao lado dos mesmos réus, a sociedade que os produziu, como queria Ernst Bloch. Como diz Zaffaroni, “reprovar com a mesma intensidade a pessoas que ocupam situações de privilégio e a outras que se acham em situação de extrema penúria é uma clara violação ao princípio da igualdade corretamente entendido.” “O direito realmente igual.” – anota Cirino – “é o que considera desigualmente indivíduos concretamente desiguais.” O art. 5º, I do Código Penal da República Democrática da Alemanha, de 1968, abre as portas a essa orientação: “Uma ação é cometida de forma reprovável quando seu autor, não obstante as possibilidades de uma conduta socialmente adaptada que lhe tenham sido oferecidas, realiza, por atos irresponsáveis, os elementos legalmente constitutivos de um delito ou de um crime”. (BATISTA, 2002, p. 105) Neste esteio, fala-se também no Princípio da Proporcionalidade da pena, através do qual as penas devem ser proporcionais ao crime, em todos os estágios, desde a cominação até a aplicação, devendo-se observar o mal causado, as causas que levaram à prática do delito, as circunstâncias fáticas, antecedentes sociais, etc. 3.6.1.1.6 – Princípio da Humanidade O princípio da humanidade refere-se à estrita observância da dignidade da pessoa humana dentro da concepção do Estado Democrático de Direito, através do qual o Direito Penal deve ter o homem como um fim em si mesmo. O princípio da humanidade intervém na cominação, na aplicação e na execução da pena, e neste último terreno tem hoje, face à posição dominante da pena privativa de liberdade, um campo de intervenção especialmente importante. A racionalidade da pena implica tenha ela um sentido compatível com o humano e suas cambiantes aspirações. A pena não pode, pois, exaurir-se num rito de expiação e opróbrio, não pode ser uma coerção puramente negativa. Isso não significa, de modo algum, questionar o caráter retributivo, timbre real e inegável da pena. Contudo, a pena que se detém na simples retributividade, e, portanto converte seu modo em seu fim, em nada distingue da vingança. A pena de morte, estritamente retributiva e negativa (além de ineficaz, do ponto de vista da prevenção geral), violenta essa racionalidade. (BATISTA, 2002, p. 100) Assim já dispunha o art. 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “As penas 62 devem ser proporcionais ao delito e úteis à sociedade.” (FRANÇA, 1789) A emenda VIII à Constituição americana, ratificada, como todas as dez primeiras, em 1791, proibia a inflição de penas cruéis e incomuns. É este hoje um princípio largamente aceito, que consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. (BATISTA, 2002, p. 99) Como conseqüências jurídico-normativas do princípio da humanidade, podemos verificar as seguintes prerrogativas: vedação à incomunicabilidade do preso (art. 5º, LXIII CRFB/88); direito à obtenção de identificação dos responsáveis pela prisão e pelo interrogatório policial (art. 5º, LXIV CRFB/88); obrigação de respeito à integridade física e moral do preso (art. 5º, XLIX CRFB/88); vedação às penas de morte (salvo caso de guerra), caráter perpétuo, trabalhos forçados, banimento e penas cruéis (art. 5º, XLVII CRFB/88); proibição da identificação datiloscópica em face da identificação civil (art. 5º, LVIII CRFB/88). Neste esteio, vejamos a emenda de número oito da Constituição americana: “Nenhuma fiança excessiva será requerida, nem serão impostas multas excessivas, nem cruéis ou inusitadas penas serão cominadas32.” (UNITED STATES, 1787, tradução nossa). O princípio da humanidade, que postula da pena uma racionalidade e uma proporcionalidade que anteriormente não se viam, está vinculado ao mesmo processo histórico de que se originaram os princípios da legalidade, da intervenção mínima e até mesmo – sob o prisma da “danosidade social” – o princípio da lesividade. (BATISTA, 2002, p. 98-99) Vislumbramos, ainda, a existência de outros princípios de Direito material de extrema importância na composição do Estado Democrático de Direito. São eles postos na Constituição, garantias fundamentais: direito ao relaxamento imediato de prisão ilegal (art. 5º, LXV CRFB/88); direito do preso a receber assistência de advogado (art. 5º, LXIII CRFB/88); direito de o preso ser informado sobre seus direitos (art. 5º, LXIII CRFB/88); certas proibições pontuais de extradição (art. 5º, LI e LII CRFB/88); sigilo de correspondência, de dados e de comunicações telegráficas (art. 5º XII CRFB/88); infranqueabilidade do domicílio (art. 5º, XI CRFB/88), dentre outros. 3.6.1.2 – Princípios garantistas de Processo Penal Os princípios do Estado Democrático de Direito na esfera do Processo Penal, introduzidos, 32 Amendment 8 - Cruel and Unusual Punishment. Ratified 12/15/1791. Excessive bail shall not be required, nor excessive fines imposed, nor cruel and unusual punishments inflicted (UNITED STATES, 1787). 63 juntamente com este paradigma constitucional, em nosso ordenamento pela Constituição da República de 1988, são, por conseqüência, garantias constitucionais de direitos fundamentais, partindo de princípios genéricos de Teoria Geral do Processo até se especializarem em decorrência das peculiaridades das ciências penais. Destarte, vejamos os principais princípios políticos e jurídicos do sistema processual penal acusatório. 3.6.1.2.1 – Princípio do Devido Processo Legal O devido processo legal, segundo Ada Pellegrini Grinover, citada por Cândido Dinamarco, é o “conjunto de garantias constitucionais do processo que, a partir do art. 39 da Magna Carta de 1215, tutelam os direitos processuais dos litigantes, dando ao processo uma configuração não apenas técnica, mas também ético-política.” (DINAMARCO apud VARGAS, 2002, p. 151) Como bem diz Redenti, em síntese magnífica, o princípio se resume em se assegurar à pessoa a defesa em juízo, ou “em não ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem a garantia que pressupõe a tramitação de um processo, segundo a forma estabelecida em lei.” (TOURINHO FILHO, 2006, p. 58) O devido processo legal surgiu, como afirma Geraldo Brindeiro (2003), na Magna Carta inglesa de 1215, a qual estabeleceu que ninguém poderia ser processado senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou em harmonia com a lei do país, quando a expressão law of the land equivalia a esta atualmente tão consagrada. Ele foi introduzido na Constituição norteamericana em 1791, mediante a 5ª emenda33. Mais tarde, já em 1868, todos os estados membros da federação ficaram vinculados a esta cláusula através da 14ª emenda34. Interessante é o desenvolvimento do due process of law no Direito norte-americano, o qual, no início, se relacionava com as garantias propriamente ditas, as ordely proceedings (v.g. proibição 33 Amendment 5 - Trial and Punishment, Compensation for Takings. Ratified 12/15/1791. No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation (UNITED STATES, 1787). 34 Amendment 14 - Citizenship Rights. Ratified 7/9/1868. 1. All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws. [...] (UNITED STATES, 1787). 64 do bill of attainder _ ninguém pode ser considerado culpado sem um processo e julgamento regular garantida a ampla defesa; da aplicação retroativa de leis; da auto-incriminação forçada; do double jeopardy _ julgamento repetido pelo mesmo fato). Deste modo, em razão da ausência de análise do conteúdo material das leis, denomina-se esta fase de procedural due process. Somente mais tarde, já em 1890, é que se iniciou, ainda timidamente, a proteção substantiva dos direitos e liberdades positivados na Constituição um século antes com as dez primeiras emendas, o Bill of Rights. Deste modo, foi através da construção jurisprudencial que a sociedade norte-americana se desprendeu do sentido apenas adjetivo do devido processo legal e se desenvolveu a teoria do substantive due process. A despeito dos retrocessos sofridos pela substantive due process no fim do século XIX e primeira metade do século XX pela Suprema Corte, este mesmo tribunal veio novamente a prestigiá-la a partir dos anos 60, enfatizando a importância da proteção de valores fundamentais contra ações arbitrárias e irrazoáveis. Enquanto na Inglaterra jamais se concebeu que o princípio pudesse ser invocado contra um ato do Parlamento, supremo depositário da soberania, nos Estados Unidos a fórmula cedo começou a ser considerada limitativa para o próprio Congresso e a construir um dos standards jurídicos com que a Corte Suprema censura a constitucionalidade das leis. (GRINOVER apud VARGAS, 2002, p. 159) Este princípio atua como uma garantia do indivíduo contra o Judiciário, assegurando-lhe um processo válido e regular, na forma da lei. O cidadão que pratica um crime só pode ser privado da liberdade mediante um processo legal e justo. Se o órgão do Ministério Público requer a prisão preventiva, fora dos casos em que é cabível, e o juiz a decreta, o processo não é justo. Impetrando-se habeas corpus, negado pelo Tribunal, persiste a injustiça. (VARGAS, 2002, p. 11) Na mesma trilha de raciocínio de Hans Kelsen, Paulo Dourado Gusmão expõe que o Estado, enquanto destinatário mediato das normas, somente possui legitimidade para agir dentro da estrita observância e em conformidade com os limites que lhe são impostos na lei: Achamos que se deve distinguir o destinatário imediato do destinatário mediato das normas jurídicas. No primeiro caso, todas as pessoas (capazes e incapazes) são destinatários da norma jurídica. São destinatários mediatos os tribunais e órgãos estatais, somente quando provocados por petição ou por ação judicial ou quando a norma é transgredida. (GUSMÃO apud VARGAS, 2002, p. 33). O princípio do devido processo legal cria os direitos ao contraditório, à ampla defesa e à isonomia entre as partes, previstos, no ordenamento jurídico brasileiro, no art. 5º, LIV, LV e LVI da CRFB/88. Podemos discorrer como conseqüência fática do devido processo legal a vedação de 65 aplicação de qualquer sanção de natureza penal se faltar a observância do princípio Nulla poena sine iudicio. Quando um cidadão pratica um delito (em tese) de ação pública, nasce para o Estado o poder-dever de exercitar o seu direito de punir. Todavia, esse direito só pode ser exercitado perante um órgão da Jurisdição, vedada a aplicação arbitrária da lei, sem a participação do réu tentando manter seu estado de liberdade. (VARGAS, 2002, p. 98) A obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX CRFB/88) também se espelha no devido processo legal, pois todos os atos do juiz devem ser motivados, terem respaldo na lei e nos princípios jurídicos a fim de se evitar a sua tirania e julgamento de acordo com vontade própria. Observamos que o devido processo legal relaciona-se intimamente com todos os princípios de Direito Penal material relativos à lesividade, reserva legal e culpabilidade. Dentro do devido processo legal verifica-se a obrigatoriedade de respeito a outras garantias legais, como, por exemplo, a instituição do tribunal do júri como o único competente para julgar crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII CRFB/88); e a restrição da determinação de prisão sem a ordem de autoridade competente, salvo casos de flagrante delito (art. 5º, LXI CRFB/88), os quais não dispensam a obrigatoriedade da comunicação imediata de prisão a magistrado competente a fim de que este decida sobre a necessidade de conversão da mesma em custódia preventiva (art. 5º, LXIII CRFB/88). Não se impondo esta necessidade nos termos legais, há o direito à liberdade provisória, independentemente de cabimento de fiança (art. 5º, LXVI CRFB/88). 3.6.1.2.2 – Princípio do Contraditório Este princípio é a espinha dorsal do processo penal acusatório. Ele possibilita o conhecer da parte daquilo alegado pela outra e oportunidade de se defender. E não é direito a qualquer tipo de defesa, mas à defesa técnica quando, ainda que o réu não constitua advogado, o Estado lhe confere um, ad hoc ou através da Defensoria Pública. Tal princípio consubstancia-se na velha parêmia audiatur et altera pars – a parte contrária deve ser ouvida. Assim, a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”, para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, “dar a cada um o que é seu.” (TOURINHO FILHO, 2006, p. 47) 66 Ao receber a petição inicial da ação penal (denúncia ou queixa-crime), o juiz, em seu primeiro ato, determina a citação do réu a fim de que este tome conhecimento do processo e inicie sua defesa. A citação é o ato de comunicação mais importante, o qual inicia a relação processual. A ausência do contraditório, em qualquer fase do processo penal, enseja a completa nulidade dos atos praticados em desrespeito ao mesmo. Ainda, em nosso Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), vislumbramos que, mesmo citado por edital, se o réu não comparece nem constitui defensor nos autos, o processo não corre a sua revelia, este é suspenso, assim como o prazo prescricional, até que o mesmo se apresente e, através do contraditório, possa dar seqüência a sua defesa. O princípio do contraditório encontra-se expresso em nossa Constituição no art. 5º, LV CRFB/88. Dele, decorrem os princípios da igualdade processual e liberdade processual. Em sede de inquérito policial, não há que se falar em contraditório uma vez que este se encontra fora do processo penal e não aplica nenhuma pena, pois a autoridade policial não julga, acusa. Nele, não se pode invocar o princípio da igualdade de armas nem se falar em defesa já que carece de acusação judicial. 3.6.1.2.3 – Princípio da Ampla Defesa É a próxima decorrência lógica do devido processo legal, intrinsecamente ligada à oportunidade do contraditório, referindo-se, também, à liberdade processual. Em nosso ordenamento se encontra posto no art. 5º, LV da CRFB/88. Constitui marco da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana o caso Gideon v. Wainwright, decidido em 1963, no qual se consagrou o direito à defesa técnica por um advogado em qualquer tipo de processo, em especial, o criminal. 3.6.1.2.4 – Princípio da Liberdade Processual Possibilita ao réu realizar a sua defesa sem limitações. [...] consiste na faculdade que tem o acusado de nomear o advogado que bem quiser e entender; na faculdade que possui de apresentar provas que entender convinháveis, desde que permitidas em Direito, de formular ou não reperguntas às testemunhas etc. 67 (TOURINHO FILHO, 2006, p. 48); Ademais, o réu não é obrigado a fazer prova contra si mesmo. 3.6.1.2.5 – Princípio da Isonomia das Partes A igualdade das partes, a qual se reflete, também, na igualdade processual (art. 5º, I CRFB/88), implica no fato de os litigantes ocuparem pólos diametralmente opostos, compartilhando, igualmente, cada qual na sua função, direitos, ônus, e obrigações. Um reflexo deste princípio é a exigência de constituição de advogado pelo réu, pois a sua defesa deve ser técnica uma vez que é o Ministério Público, em decorrência do princípio da oficialidade, na pessoa dos promotores de justiça e procuradores da república, o encarregado pela acusação. Decorrente da igualdade das partes materializa-se o princípio da paridade de armas, através do qual ambas podem, por se encontrarem no mesmo plano, devem dispor das mesmas ferramentas processuais e meios de prova. Uma certa mitigação deste princípio é o do favor rei. 3.6.1.2.6 – Princípio da imparcialidade do juiz O juiz é, apenas, o agente público investido no cargo de exercício da jurisdição. Não se admite, assim, a sua parcialidade. Cabe ao magistrado a função de julgar a lide, e, para tanto, este necessita de assumir uma condição de neutralidade em todas as fases do processo, especialmente, no provimento final. Para tanto, deve ser preservada a independência do juiz, não só política, mas também social, razão ensejadora das restrições às suas atividades descritas no art. 95, I a V da CRFB/88. 3.6.1.2.7 – Princípio do Estado de Inocência A não ser que haja uma sentença penal condenatória transitada em julgado, ninguém pode 68 ser considerado culpado pela prática de qualquer delito. Contudo, a expressão presunção de inocência não deve ter o seu conteúdo semântico interpretado literalmente – caso contrário ninguém poderia ser processado –, mas no sentido em que foi concebido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: nenhuma pena pode ser imposta ao réu antecipadamente. E a melhor doutrina acrescenta: a prisão antecipada se justifica como providência exclusivamente cautelar, vale dizer, para impedir que a instrução criminal seja perturbada ou, então, para assegurar a efetivação da pena. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 62) A inocência não se presume, é um status jurídico. (art. 5º, LVII CRFB/88). Por isso, deve-se utilizar o termo “estado de inocência”, senão também não seriam possíveis certas medidas cautelares (busca e apreensão; prisão preventiva, etc.). Há, na verdade, presunção de culpa, a qual justifica estas medidas de necessidade processual. Entretanto, a custódia cautelar, privando o indivíduo de sua liberdade, deve ser feita estritamente na forma e autorizações da lei, pois do contrário, o réu estaria sofrendo uma pena antecipadamente, e isso violenta o princípio da presunção de inocência. Não havendo perigo de fuga do indiciado ou imputado e, por outro lado, se ele não estiver criando obstáculo à averiguação da verdade buscada pelo juiz, a prisão provisória torna-se medida inconstitucional. Se se pretende dar combate ao crime implacavelmente, superlotando as cadeias e decuplicando seu número, é muito simples: basta riscar da Constituição o princípio da presunção de inocência e mandar às favas o princípio proibitivo das provas obtidas ilicitamente... (TOURINHO FILHO, 2006, p. 64) 3.6.1.2.8 – Princípio do Favor rei O magistrado, no momento do provimento final, a despeito de toda a instrução processual, ainda permanecendo em dúvida, deve resolver-se a favor do réu. Este princípio do in dubio pro reo é conseqüência dos status jurídico de inocência de todos os indivíduos. Não há, de fato, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado o particular empenho da liberdade e autonomia da pessoa humana. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 73) É também conhecido como favor innocentiae ou favor libertatis. O favor rei deve constituir um princípio inspirador da interpretação. Isso significa que, nos casos em que não for possível uma interpretação unívoca, mas se conclua pela possibilidade de duas interpretações antagônicas de uma norma legal (antinomia interpretativa), a obrigação é escolher a interpretação mais favorável ao réu. (BETTIOL apud TOURINHO FILHO, 2006, p. 73) 69 3.6.1.2.9 – Princípio da Verdade Real Ao Estado só interessa punir o autor da infração, e no limite de sua culpa. “[...] O processo penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material, como fundamento da sentença.” (TOURINHO FILHO, 2006, p. 36). [...] enquanto o Juiz não penal deve satisfazer-se com a verdade formal ou convencional que surja das manifestações formuladas pelas partes, e a sua indagação deve circunscrever-se aos fatos por ela debatidos, no Processo Penal o Juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, quem realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou, para dar base certa à justiça. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 37) Como diz Tourinho Filho (2006), ao contrário do processo civil, no processo penal acusatório não há espaço para presunções, ficções, transações e demais elementos contrários à declaração de certeza da verdade real. Eventuais transações que ocorrem na esfera penal são excepcionais e aplicáveis aos delitos de menor potencial ofensivo. A mitigação a este princípio é a única opção de revisão criminal sobre sentença condenatória, nunca sobre sentença transitada em julgado, ou seja, sempre em favor do réu condenado, nunca em favor da sociedade. 3.6.1.2.10 – Princípio da Proibição da utilização de provas ilícitas Toda e qualquer prova obtida por meios ilícitos, obtidas através de transgressões a normas de Direito material ou processual, não são admitidas em juízo, salvo em bonam partem. Assim, uma busca e apreensão ao arrepio da lei, uma audição de conversa privada por interferência mecânica de telefone, microgravadores dissimulados, uma interceptação telefônica, uma gravação de conversa, uma fotografia de pessoa ou pessoas em seu círculo íntimo, uma confissão obtida por meios condenáveis, como o famoso “pau-de-arara”, o “lie detector” e, enfim, toda e qualquer prova obtida ilicitamente, seja em afronta à Constituição, seja em desrespeito ao direito material ou processual, não será admitida em juízo. Trata-se de uma demonstração de respeito não só à dignidade humana como também à seriedade da Justiça e ao ordenamento jurídico. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 58) Do mesmo modo não se admite as provas ilícitas por derivação (fruits of the poisonous tree), 70 que são aquelas que, embora legalmente recolhidas, para serem obtidas foram empregados meios ilícitos. No caso Time, Inc. v. Hill, de 1967, o justice da suprema Corte Abe Fortas tratou do weighing process, um processo de ponderar quando deve prevalecer o direito à privacidade na quebra dos sigilos para fins de obtenção de provas processuais35. Exemplo maior das provas ilícitas por derivação é a prestação de algum tipo de informação mediante a tortura, como vem se tornando conduta habitual das autoridades norte-americanas nas práticas de prevenção e combate ao terrorismo. Assim, em conformidade com este princípio, toda e qualquer informação que possa levar à identificação de possíveis agentes terroristas ou a planos dos mesmos sobre novos ataques não deveria ser admitida quando da formalização judicial da acusação aos mesmos. Infelizmente, como afirma Tourinho Filho (2006), somente o ordenamento jurídico brasileiro proclama, de forma absoluta e peremptória, o princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. Há, deste modo, uma limitação aos meios de prova, embora, às vezes, aceite-se provas obtidas de maneira ilícita em favor do réu. Entre o interesse estatal quanto à repressão e o respeito à dignidade humana e aquela série mínima de liberdades e garantias espraiadas no nosso ordenamento jurídico, o legislador constituinte brasileiro optou pela última solução. A eficácia da persecução penal precisava encontrar um limite no respeito das garantias individuais. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 59) Na Carta Magna brasileira encontra-se exposto no art. 5º, LVI CRFB/88. 3.6.1.2.11 – Princípio da Obrigatoriedade / Legalidade Este princípio da obrigatoriedade ou da legalidade consiste na obrigatoriedade da promoção da ação penal pública e da persecução penal, dada através do dever legal dos órgãos oficiais encarregados de agirem. “O princípio da obrigatoriedade se embasa no apótema nec delicta maneant impunita (os delitos não podem ficar impunes)” (TOURINHO FILHO, 2006, p. 332). Quando ocorre o crime, nasce para o Estado o dever de atuar em procura da repressão. O princípio da legalidade é o que melhor atende aos interesses do Estado. Dispondo o Ministério Público dos elementos mínimos para a propositura da ação penal, deve promovêla (sem inspirar-se em critérios políticos ou de utilidade social). O contrário implicaria 35 It is, simply stated, the right to be let alone; to live one’s life as one chooses, free from assault, intrusion or invasion except as they can be justified by the clear needs of community living under a government of law (FORTAS apud BRINDEIRO, 2003, p. 430). 71 atribuir-lhe um desconchavado poder de indulto. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 332-333) Contudo, sabemos que o princípio da obrigatoriedade comporta mitigação: ação penal privada (vigora o princípio da oportunidade); instituto da transação penal (acordo feito pelo Ministério Público nas infrações de menor potencial ofensivo, antes mesmo da instauração da ação penal); sursis processual (presente em nosso ordenamento desde 1995, através da suspensão condicional do processo para os crimes em que a pena mínima privativa de liberdade cominada é de um ano. Uma vez atendidas as obrigações assumidas, a persecução penal, após ficar suspensa por período de dois a quatro anos, é encerrada); outros institutos de despenalização; aplicação do princípio da insignificância ou da bagatela (no qual a lesão ao bem jurídico tutelado pela conduta praticada é tão ínfimo que há a disponibilidade da persecução – refere-se à doutrina da intervenção mínima). 3.6.1.2.12 – Princípio da Oficialidade Como bem explica Tourinho Filho (2006), decorre do fato da repressão às infrações penais ser papel eminentemente estatal, cabendo a este o dever de punir aquele que transgredir as normas de Direito Penal. E será justamente através da ação penal que o Estado deduzirá sua pretensão punitiva em juízo. Em tese, todo cidadão pode propor ação penal contra qualquer infração penal. Há, então, a persecução penal encarregada à polícia e ao Ministério Público, órgãos oficiais criados pelo Estado. Este princípio da oficialidade, entretanto, não afasta as ações penais privadas. Observamos que, no Direito norte-americano, em contraponto ao nosso, a acusação é uma espécie de faculdade do Ministério Público, vigorando, para este, o princípio da oportunidade. De acordo com Edinaldo de Holanda Borges (2005), o plea bargaining criou este juízo de conveniência que permite ao Ministério Público negociar, em troca da confissão (plea guilty), condições mais favoráveis ao acusado. Tourinho Filho (2006) expõe que legislações desta natureza possuem a razão de ser dessa faculdade da propositura da ação penal no aforismo minima non curat praetor (o Estado não se preocupa com as coisas mínimas). Decorrente do princípio da oficialidade surge o princípio ne procedat iudex ex officio36 Com o advento da nova Constituição federal, art. 129, I, foram revogados, porque não recepcionados pelo texto constitucional, os dispositivos do CPP (art. 26 e 531) que previam 36 Brocardo jurídico romano: não proceda o juiz de ofício. 72 o procedimento de ofício (auto de prisão em flagrante, portaria do delegado ou do juiz), cabendo agora ao Ministério Público iniciar por denúncia, agora também nessas hipóteses, a ação penal respectiva. Precedentes do STF. (MIRABETTE apud VARGAS, 2002, p. 59) De acordo com o princípio da iniciativa das partes, o juiz está inerte, não age de ofício, deve ser provocado. Cabe à parte a provocação da prestação jurisdicional, ao Ministério Público a denúncia nos crimes de ação penal pública e ao querelante o oferecimento de queixa-crime nos crimes de ação penal privada. Se a ação penal é o direito de invocar a tutela jurisdicional-penal do Estado, não se concebe, por incongruente, que o próprio Estado-juiz invoque a si mesmo a tutela em apreço. O juiz estaria solicitando uma providência a si mesmo. Haveria, como muito bem diz Carnelutti, jurisdição sem ação, como se tem no processo de tipo inquisitório. Seria atribuir ao juiz, em lugar da parte, uma ação que se identifica com a jurisdição, ou, ao menos, que se transforma em jurisdição, o que é um verdadeiro monstro de lógica processual. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 51) Ressalte-se que a iniciativa das partes não se confunde com a produção de provas à escolha do juiz. 3.6.1.2.13 – Princípio da Indisponibilidade Decorrente do princípio da obrigatoriedade, uma vez instaurada a ação penal, ela não pode ser suspensa ou cancelada. O Ministério Público não pode desistir da ação instaurada. “Os órgãos do Ministério Público não agem senão em nome da sociedade que eles representam. Eles têm o exercício, mas não a disposição da ação penal. Esta não lhes pertence” (VABRES apud TOURILHO FILHO, 2006, p. 331). Também o delegado, por sua vez, não pode dispor do inquérito policial, só o juiz. Os institutos do sursis processual, da transação penal e da composição civil (renúncia ao direito de queixa/representação mediante reparação civil) mitigam esse princípio. Frise-se que o pedido de absolvição pelo Ministério Público não viola o princípio da indisponibilidade tendo em vista seu compromisso com a verdade real. 3.6.1.2.14 – Princípio da Indivisibilidade 73 Nos crimes de ação penal pública, o Ministério Público não pode escolher contra quem irá propor a ação penal. Esta é una, indivisível, devendo abranger todos que cometeram a infração. Tourinho Filho (2006) afirma que, uma vez que a propositura da ação é dever, não se pode escolher contra quem cumpri-lo. O mesmo se aplica às ações penais privadas. A única mitigação à observância deste princípio nas ações penais públicas é quando, posteriormente ao oferecimento da denúncia, no decorrer da instrução, surgem novos fatos indiciantes de indivíduos antes excluídos da lide por ausência de material probatório. 3.6.1.2.15 – Princípio da vinculação da decisão do juiz O princípio ne eat judex ultra petita partium esclarece que é vedado ao juiz decidir fora dos limites que lhe foram impostos no pedido da petição inicial (ação penal). Ele decorre do princípio do ne procedat judex ex officio. Caso, no decorrer da instrução, o juiz verifique que o crime praticado foi diverso daquele narrado na inicial, ele não pode julgar fora do pedido. Caber-lhe-à, então, aplicar os institutos da emendatio libelli (é conferido prazo para o réu produza sua defesa sobre o novo tipo penal incriminador) e mutatio libelli (quando a nova definição jurídica importar em aplicação de pena mais grave, os autos são encaminhados ao Ministério Público para que este possa aditar a peça acusatória e requerer as provas de direito). Na hipótese da tipificação feita pela parte acusadora ter sido tecnicamente imprópria, caso descrita a conduta praticada na inicial, poderá o juiz, na sentença, deixar de condenar o réu no tipo indicado na ação penal e enquadrar-lhe naquele que melhor se amolda à conduta narrada na exordial e realmente perpetrada. 3.6.1.2.16 – Princípio do Juízo Constitucional (natural) A competência jurisdicional é fixada na própria Constituição, impedindo a criação de juízos/tribunais de exceção. É, para Tourinho Filho (2006), a mais alta expressão dos princípios fundamentais da administração da justiça. Está presente no art. 5º, XXXVII da nossa Constituição Federal (BRASIL, 1988). 74 Seu significado político-liberal, diz Dinamarco, associa-se mais de perto às garantias do Processo Penal que do Processo Civil, resolvendo-se na preocupação de preservar o acusado e sua liberdade de possíveis desmandos dos detentores do poder. (TOURINHO FILHO, 2006, p. 42) Discute-se se o Tribunal Militar não é de exceção. Mas seria sim exceção se um militar fosse julgado por um tribunal comum, e vice-versa. 3.6.1.2.17 – Princípio do Duplo Grau de Jurisdição A fim de possibilitar o reexame das decisões, sendo os magistrados humanos e susceptíveis a erro, foi criado o duplo grau de jurisdição. Este erro pode ser de procedimento (error in procedendo), ou em relação ao julgamento do mérito (error in judicando). Destarte, através do recurso, é dada à parte que se sentir prejudicada a revisão da decisão proferida. A finalidade técnica do recurso é, em suma, o aprimoramento da decisão, em geral, feito por um órgão hierarquicamente superior àquele que proferiu a decisão impugnada. “O duplo grau, pois, pressupõe uma jurisdição inferior, que conhece da causa, e outra superior, com a tarefa precípua de rever as decisões proferidas pela inferior” (TOURINHO FILHO, 2006, p. 76). 3.6.1.2.18 – Princípio da Publicidade Através do princípio da publicidade, os atos processuais são públicos. Via de regra, adota-se a publicidade absoluta, a qual encontra limitações em casos relativos à exposição da intimidade de alguma das partes ou em casos de grande repercussão social, nos quais a publicidade extrema pode vir a causar dificuldades na persecução penal e na aplicação da lei penal. Nestes casos, o juiz ou a lei (certas matérias) podem restringir a publicidade. Com a publicidade dos atos judiciais, a própria sociedade pode fiscalizar o cumprimento da lei e a observância ao devido processo legal. A publicidade pode ser ampla (ou popular) ou limitada (restrita às partes). Em geral, as audiências são públicas. No direito pátrio, este princípio encontra-se no art. 5º, LX CRFB/88. Acerca do inquérito, que não é processo, este pode ser sigiloso, a despeito da oposição, em nosso Direito, do Supremo Tribunal Federal em relação a este entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o qual considero o mais adequado. 75 3.6.1.2.19 – Princípio da Oralidade Para a eficácia dos atos processuais, requer-se a forma oral. A oralidade torna o processo mais compacto e dinâmico. Contudo, como no processo brasileiro não vigora o princípio da identidade física do juiz, ele é todo registrado por escrito. Ainda assim, não se pode substituir a sustentação oral por escrito. Ressalte-se que alguns atos processuais só podem ser feitos por via escrita. (v.g. interpelação). Os juizados especiais (processo sumário) são, em nosso ordenamento, aqueles órgãos do Estado que mais prestigiam este princípio. No júri também há a oralidade fortemente empregada. Temos, ainda, os requisitos para o exercício da jurisdição, os chamados Princípios da Jurisdição. O Juízo Natural; a Aderência Territorial; a Investidura; a Indelegabilidade, Inevitabilidade e Inafastabilidade dos juízes e; por último, a Inércia, que indica que a jurisdição não pode ser voluntária, são os pressupostos de essencial observação na aplicação do Direito Democrático. 3.6.2 - A proteção dos direitos fundamentais contra o legislador Não obstante a própria separação dos poderes constitua uma forma de garantir os direitos fundamentais, observa-se a perene necessidade de se respeitar outros preceitos a fim de salvaguardar as prerrogativas básicas de todo ser humano. A condição de constitucionalidade dos atos do Poder Legislativo, respeitando-se a hierarquia normativa, deve sempre ser constituída pelos limites formais e materiais nas Constituições rígidas37, partindo-se do pressuposto de que os direitos estão declarados nestas normas fundamentais. Outra condição basilar para a efetivação da potencialidade do Estado Democrático de Direito e a própria subsistência da ordem e progresso nas sociedades é a desvinculação política dos tribunais, especialmente os superiores, os quais, mais do qualquer juízo de primeira instância, devem ser imparciais e independentes, livres das amarras do jogo de interesses e favores intrínseco 37 Segundo Bonavides (2001), categoria de classificação da Constituição quanto ao processo de reforma, realizada por Bryce no fim do século XIX, na qual existe um procedimento mais solene, longo e exigente em termos de quorum de aprovação do que o procedimento de formação das leis infraconstitucionais. 76 à atividade política. Ainda, requer-se um eficaz sistema de controle de constitucionalidade, propiciando as duas vias, não só a concentrada, mas também e, especialmente, a difusa. 3.6.2.1 - Do controle de constitucionalidade das leis A idéia de norma normarum, rígida, geradora de efeitos, divisão do poder constituinte, da norma constitucional, levou à formação do Controle de Constitucionalidade das leis. Este surgiu na Europa, no fim do século XVIII, na Alemanha e França, com os antecedentes específicos do moderno controle no Direito Inglês. Ele é o corolário lógico da supremacia da Constituição, mantendo a sua finalidade. A Constituição é a base, o critério de avaliação da conformidade do ordenamento jurídico com o próprio texto constitucional. O Controle de Constitucionalidade está presente em todas as peças processuais, em todos os ramos do Direito. O órgão que realiza o Controle de Constitucionalidade pode ser o Executivo (político), Judiciário (judicial) ou ainda pode ser realizado um Controle misto. O Controle de Constitucionalidade político é feito pelos representantes do povo, na esfera política. Surgiu e persiste na França. O Controle de Constitucionalidade judicial surge nos Estados Unidos, e se dá pela interferência exclusiva do Poder Judiciário. Já o Controle de Constitucionalidade Misto é realizado tanto pelo Executivo quanto pelo Judiciário, fazendo-se presente no Brasil e na grande maioria dos países. Nesse Controle de Constitucionalidade Judicial existem dois métodos: o método concentrado e o método difuso. Na via concentrada, apenas um órgão judicial exerce o controle de constitucionalidade, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal. Há a exceção dos Tribunais de Justiça Estaduais que exercem a Representação Estadual de Inconstitucionalidade, como retrata o artigo 125 §2º da Constituição Federal de 88. O STF cuida, assim, das ADI ordinária, ADI omissiva, ADC e ADPF direta ou indireta. Na via difusa, qualquer órgão do Judiciário pode exercer o Controle de Constitucionalidade. Toda e qualquer peça processual admite esse tipo de controle. A corrente teórica Constitucional Contemporânea do Procedimentalismo dá grande valor a esse método, uma vez que a sociedade, através dele, passa a ter uma base de apoio no Poder Judiciário. 77 Há, ainda, a dicotomia do controle direto e abstrato de constitucionalidade das normas, em que alguns processos, no controle abstrato, o único objeto é a verificação da compatibilidade ou não da lei em face da Constituição, não se analisando a sua aplicabilidade ou não a determinado caso concreto. No Brasil, Rui Barbosa, com a Constituição de 1891, surge o Controle Difuso de Constitucionalidade das leis, o qual nasceu com célebre caso norte-americano julgado pelo justice Marshall em 1803 entre Madison e Marbury. Nele, foi decido que o Poder Judiciário apenas declara a inconstitucionalidade de uma lei para aquele determinado caso em que se encontra atuando, não aplicando tal norma nesta lide, mas sem revogá-la, sem legislar. Fala-se, assim, numa exceção de inconstitucionalidade quanto às leis. Com base no stare decisis38, todos os demais tribunais da federação norte-americana passam a seguir o entendimento da Suprema Corte. Os casos que podem provocar o controle de constitucionalidade nos Estados Unidos referem-se àqueles em que há: violação de cláusulas de contratos; violação da cláusula da igualdade; violação do devido processo legal; e violação da rule of reasonnableness, “invocada quando a lei em causa não realiza um equilíbrio satisfatório entre os sacrifícios que podem surgir nas demandas que participam os cidadãos e as vantagens que podem atender a vida em sociedade” (BARACHO, 2001, p. 102). O modelo norte-americano de controle de constitucionalidade se perfaz de um controle judicial; repressivo (feito sobre ato perfeito e acabado); difuso; de caráter incidental (a declaração não é o objeto da ação); e com efeitos in casu, inter partes e ex tunc (pois o ato inconstitucional é declarado nulo). Diferentemente, temos o modelo europeu de controle de constitucionalidade normativa. Este foi consagrado, primariamente, na Constituição da Áustria em 1920 sob forte influência kelseniana, e adotado na Constituição da República Italiana de 1947, na Lei Fundamental de Bonn em 1949, na Constituição da República Portuguesa de 1976 e na Constituição espanhola de 1978. São características deste modelo europeu: controle judicial (Corte Constitucional, porém, desvinculada do Judiciário); especialização; repressão; concentração (a inconstitucionalidade pode ser suscitada em qualquer esfera do Judiciário, que deverá remeter o caso à Corte Constitucional); de caráter principal; efeitos erga omnes, ex tunc e ex nunc, pois, embora o ato seja considerado nulo, alguns de seus efeitos são considerados válidos. Estados nacionais como o Brasil e o México adotam um modelo misto de controle de constitucionalidade, mesclando, de acordo com suas próprias peculiaridades, os dois modelos 38 Regra que implica na adoção de determinados princípios jurídicos reconhecidos a casos similares subseqüentes (FERREIRA FILHO, 1999, p. 73). 78 retromencionados, político e judicial concentrado/difuso. Embora o Supremo tenha por competência precípua a guarda da Constituição, isso não o transforma em Corte Constitucional: todos os juízes e tribunais do País podem reconhecer a inconstitucionalidade de uma lei e deixar de aplicá-la ao caso em julgamento, com base no critério de controle difuso da constitucionalidade, pela via de defesa, ou via de exceção, da parte litigante. Essa atividade tem sido denominada “jurisdição constitucional”, porque visa resguardar os valores sociais e políticos da Constituição. (VARGAS, 2002, p. 65) Destaca-se, diferentemente do modelo europeu, o modelo de controle de constitucionalidade do berço do liberalismo e do reconhecimento da existência de direitos humanos fundamentais, o modelo francês. Neste, a Constituição Federal de 1958 e uma emenda na mesma realizada em 1974 conferiram ao Conselho Constitucional, de composição política feita pelo Executivo e Legislativo, o poder de verificar a conformidade legislativa francesa à sua Constituição. Este modelo caracteriza-se pelo: controle jurisdicional (o Conselho Constitucional é equiparado a uma Corte Constitucional); desvinculação absoluta do Poder Judiciário (decorrente da tradição francesa de separação concisa das funções do Estado); controle preventivo (no curso do processo legislativo, antes da regra ser promulgada e entrar em vigor); especialização; concentração; caráter principal; efeitos erga omnes; ausência de declaração de nulidade/anulação, mas a exigência de compatibilização constitucional. Após o exercício deste controle, a inconstitucionalidade de qualquer lei passa a ser inquestionável. Ressalte-se que, como explica a doutrina de Louis Favoreu, em decorrência de decisões do Conselho Constitucional entre 1970 e 1974, a jurisprudência criou o bloc de constitutionnalité, parâmetro sobre o qual é exercido o controle de constitucionalidade, compreendendo a Constituição francesa de 1958, a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 e o preâmbulo da Constituição da República Francesa de 1946, bem como princípios constitucionais reconhecidos pelas demais leis do Estado francês. Por último, verificamos também a existência da possibilidade de se alegar, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, a inconstitucionalidade normativa por omissão, suscitada para apontar a necessidade de adoção de medidas a fim de se conferir efetividade às normas programáticas. 3.6.3 - A proteção dos direitos fundamentais contra o administrador No intuito de se evitar a violação das liberdades públicas, o não adimplemento dos direitos 79 sociais e o desrespeito aos direitos de solidariedade por parte do poder Executivo, cria-se órgãos especializados na defesa dos direitos fundamentais, inclusive, mobilizando o Poder Judiciário. Ferreira Filho (1999) elenca três sistemas de proteção: O primeiro deles é o Sistema de Proteção Judicial, no qual o Judiciário atua com o poder de prevenir e corrigir as violações dos administradores. Este sistema guarda estreita relação com a rule of law inglesa, desenvolvendo o due process of law, os writs39 com origem na Carta Magna de 1215, Petition of Rights de 1628, Habeas Corpus Amendment Act de 1679, Bill of Rights de 1688, e o mandado de segurança no Brasil40. O segundo é o Sistema Contencioso Administrativo, francês, construído a partir da própria tradição e constante preocupação francesa de refutar a interferência de um Poder (função) do Estado na esfera de outro, razão pela qual se criou um órgão específico, no Poder Executivo, para fiscalizar seus atos em prejuízo dos indivíduos – o Conselho de Estado, uma espécie de juízo administrativo para, dentre outras funções, julgar os litígios entre o indivíduo e o Estado. Mesmo vinculado ao Executivo, o Conselho de Estado goza de real independência e grande prestígio, cuja jurisprudência deu origem à teoria do détournement de pouvoir; e reconhecimento de princípios supralegais no bloc de constitutionnalité. O terceiro sistema apontado pelo ilustre constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho é o Ombudsman, originário da Suécia, em 1809, tendo se desenvolvido e espalhado pelos países nórdicos, Reino Unido, França e península ibérica. Órgão independente dos três poderes clássicos, o Ombudsman consiste num poder, atribuído a um ou a grupo de indivíduos, para fiscalizar toda a Administração Pública através de reclamações e cobranças perante o poder competente para corrigir desvios ou violações de direitos. Destaca-lhe a Constituição portuguesa em vigor os traços principais (art. 23). Nela estão: 1. Os cidadãos podem apresentar queixas por ação ou omissão dos poderes públicos ao Provedor de Justiça, que as apreciará sem poder decisório, dirigindo aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças. 2. A atividade do Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição. 3. O Provedor de Justiça é um órgão independente, sendo o seu titular designado pela Assembléia da República. 4. Os órgãos e agentes da Administração cooperam com o Provedor de Justiça na realização de sua missão. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 88) A seu modo, o órgão do Ministério Público se assemelha a este sistema a partir da Constituição vigente (BRASIL, 1988) com o art. 129, II, III e IV: 39 Ações especiais destinadas a proteger direitos de tipo específico. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 85) Modalidade de ação constitucional exclusiva do ordenamento jurídico brasileiro, de antecedentes mexicanos: Amparo, previsto no art. 103, I da Constituição mexicana de 1971. 40 80 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição. (BRASIL, 1988) Acerca do órgão do Ministério Público, Manoel Gonçalves ressalta que “não é ele, porém, um órgão de defesa desses direitos, mas sim, mais precisamente, um órgão de promoção da defesa social desses direitos.” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 127) 3.6.4 - A proteção internacional dos direitos fundamentais A proteção internacional dos direitos humanos fundamentais configura-se mais como uma proteção política. Podemos elencar: o Protocolo Adicional ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; o direito de queixa ao Comitê dos Direitos do Homem na ONU41; e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Relativamente a esta última, foi firmado o Pacto de São José da Costa Rica, em 1969, criando-se, então, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos42 e uma Corte Interamericana de Direitos Humanos. Existem, ainda, a Corte de Justiça das Comunidades Européias; e a Convenção Européia para a proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 1950, na qual houve a declaração de direitos fundamentais e a instituição da Comissão Européia de Direitos Humanos e da Corte Européia de Direitos Humanos, “[...] erigindo a Corte Européia numa instância superior à do Judiciário dos Estados contratantes.” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 92) 3.6.5 – Ações constitucionais 41 agressor. 42 A despeito do Comitê apenas prover um parecer sobre o assunto, fazendo uma recomendação ao Estado A procedimentalidade da atuação desta comissão é a seguinte: requisição de informações ao Estado agressor; formulação de proposições/recomendações ao mesmo; em face da inexistência de atos objetivando reparar ou cessar a lesão, após 3 meses, mediante deliberação da maioria absoluta da Comissão, há representação na Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujo jus postulandi é restrito à comissão ou aos Estados-membros. 81 Os direitos fundamentais também recebem especial proteção judicial através de ações especiais, de previsão constitucional e rito processual simplificado. Estas ações, chamadas pela doutrina de verdadeiros remédios constitucionais, são garantias que atuam enquanto instrumentos de efetivação da tutela dos direitos fundamentais, ensejando a verdadeira jurisdição constitucional das liberdades. “O remédio constitucional é uma espécie de ação judiciária que visa a proteger categoria especial de direitos públicos subjetivos.” (BUZAID apud FERREIRA FILHO, 1999, p. 138) São elas o habeas corpus (art. 5º, LXVIII CRFB/88), o habeas data (art. 5º, LXXII CRFB/88), o mandando de segurança (art. 5º, LXIX CRFB/88), o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX CRFB/88), o mandado de injunção (art. 5º, LXXI CRFB/88), a ação popular (art. 5º, LXXIII CRFB/88) e a ação civil pública (art. 129, III CRFB/88). 3.6.5.1 – O Direito de petição É nítido que, juntamente com estas garantias que são os remédios constitucionais, está o direito de petição (direito de representação). Disposto no ordenamento jurídico brasileiro no art. 5º XXXIV da CRFB/88, seu conceito me parece bastante auto-explicativo: Art. 5º XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. (BRASIL, 1988) “Consiste o direito de petição no poder de dirigir a uma autoridade um pedido de providências, ou de intervenção, em defesa de seus direitos ou de interesses, próprios ou coletivos.” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 139) O direito de petição possui origem inglesa e era encaminhado pelos súditos ao monarca (right of petition). Ele é composto dos caracteres de gratuidade e forma escrita. Os abaixoassinados, por exemplo, representam o exercício do direito de petição na forma coletiva. Doutrinariamente, o direito de petição se diferencia do direito de reclamação, fundando-se, o segundo, na possibilidade de denunciar atos abusivos cometidos por agentes públicos. Infelizmente, é possível observar que, nos tempos atuais, tal direito de petição mostra-se bastante enfraquecido e desprestigiado, a despeito da ausência de qualquer tipo de restrição em sua 82 legitimidade ativa e do dever dos órgãos e entes públicos de prestarem os esclarecimentos solicitados. Para tanto existem, assim, os verdadeiros remédios constitucionais, incorrendo o direito de ação como conditio sine qua non para que os mesmos sejam alcançados em sua finalidade. 3.6.5.2 – O Habeas Corpus O habeas corpus é uma medida preventiva para se garantir a liberdade de locomoção sempre que se verificar violação ou ameaça, cerceamento do direito de ir e vir. Através do mesmo é emitida uma ordem judicial para que cesse tal cerceamento. Este cerceamento, porém, para ensejar o habeas corpus, deve ser ilegal. O texto é enfático e didático, mas não reclama mais do que isso. De fato, fala em ilegalidade, ou abuso de poder, mas este não passa de uma forma – ainda que sutil – de ilegalidade. Igualmente, havendo uma ilegalidade, pouco importa que haja violência ou não, pois sempre haverá coação (ilegal). (FERREIRA FILHO, 1999, p. 142) A origem do habeas corpus se deu na Carta Magna de 1215, conforme já discorremos anteriormente, através do requerimento de observância do princípio da legalidade. Trata-se exatamente de uma medida judicial para instrumentar a norma citada. Com efeito, constitui um writ da common law, pelo qual um tribunal real reclamava a apresentação da pessoa de quem estava preso por ordem de autoridade, ou tribunal local, para que seu caso fosse apreciado pelo referido tribunal real. [...] (FERREIRA FILHO, 1999, p. 140) Entretanto, este foi realmente solidificado através do Habeas Corpus Act em 1679, que consistia numa ordem de apresentação em juízo da pessoa acusada de um crime para a verificação da legalidade da prisão; em da sua reedição em 1816, também no império inglês, quando assumiu os caracteres atuais de medida contra qualquer tipo de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, o jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. Na Constituição norte-americana de 1787, ele está positivado no art. 1º, seção 9ª, estendendo-se, com a construção da jurisprudência da Suprema Corte, a outros aspectos da liberdade individual. No Brasil, o habeas corpus (H.C.) surgiu no Código de Processo Penal do Império de 1832, tendo sido elevado, em 1891, à condição de garantia constitucional. Frise-se que, em nosso ordenamento, até a reforma constitucional de 1926, o H.C. incorporava, também, a finalidade hoje destinada ao Mandado de Segurança. Como já abordado, sua natureza é de ação constitucional, possuindo cabimento tanto contra 83 atos de autoridades, pessoas ou entes públicos, quanto contra atos de particulares. Independentemente da origem do ato antijurídico, no Brasil, a competência jurisdicional para conhecer, processar e julgar pedido de habeas corpus é dos tribunais superiores. Em função de rito especial e procedimento bem simplificado, o H.C. é largamente apelidado de remédio heróico. A sua legitimidade ativa se estende a qualquer tipo de pessoa, independentemente de qualquer habilitação profissional para atuar na área jurídica. O impetrante pode ou não ser o mesmo indivíduo que o paciente, aquele em favor de quem é impetrada a ordem. Já em relação à legitimidade passiva, esta é denominada autoridade coatora, e será identificada através do indivíduo que ameaça ou agride a liberdade de locomoção do paciente através de sua conduta. Podemos dividir o habeas corpus em três espécies distintas, muito embora tal classificação possua, apenas, cunho didático. O H.C. liberatório ou repressivo se refere à situação em que a ordem concedida faz cessar o já existente constrangimento à liberdade de locomoção. A espécie preventiva se aplica conta ameaça ao direito de ir e vir, sendo expedido, pela autoridade competente, um salvo-conduto. Já o habeas corpus de ofício é concedido sempre que verificada, no curso de alguma ação judicial, sofrimento ou iminência de sofrimento de constrangimento ilegal na liberdade de locomoção. 3.6.5.3 – O Mandado de Segurança O Mandado de Segurança é a ação através da qual ocorre a tutela de direitos individuais líquidos e certos, os quais não se enquadrem no rol de proteção do habeas corpus e do habeas data, quando os mesmos estão sob ameaça ou lesão mediante uma ilegalidade ou abuso de poder perpetrados por uma autoridade pública. Ele constitui, a exemplo do habeas corpus, uma ordem para que cesse a coação ilegal praticada. Invenção tipicamente “tupiniquim”, o mandado de segurança inovou o ordenamento jurídico brasileiro em 1926, tendo assumido o status de ação constitucional na Carta de 1934. Suas fontes de inspiração foram vários writs do direito anglo-americano e o amparo mexicano. Entretanto, este foi, como já dissemos, uma espécie de desmembramento do habeas corpus da Constituição de 1891. Vislumbramos que direito líquido e certo é aquele que já está materializado em relação à sua condição de executabilidade, pode ser imediatamente comprovado, e, função de não se admitir fase de instrução probatória no mandado de segurança, tal direito agredido deve ser demonstrado pela via escrita, podendo haver pedido liminar acautelatório. 84 Didaticamente, o mandado de segurança se divide em repressivo, objetivando cessar constrangimento ilegal já existente; e preventivo, quando há a iminência deste constrangimento. Como se depreende da própria conceituação do mandado de segurança, seu impetrante pode ser qualquer pessoa, física ou jurídica, ou até mesmo entes despersonalizados (mesas de casas legislativas, chefias de Executivos e órgãos da Administração Pública que tenham prerrogativas ou direitos próprios a defender) que se encontre na titularidade do direito líquido e certo sob ameaça. Já o pólo passivo, da autoridade coatora, pode ser ocupada por qualquer autoridade ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público responsável pela violação ou ameaça a direitos líquidos e certos do impetrante. Observemos que a autoridade coatora será aquela da qual surgiu a ordem que resultou na agressão/ameaça, e não aquela que simplesmente se encontra executando uma determinação superior. Ressalte-se que, de acordo a lei, o Ministério Público tem o dever de atuar como custus legis em todas as ações de mandado de segurança, o que não afasta sua legitimidade ativa para aqueles direitos líquidos e certos dos indivíduos cuja defesa se encontra dentro de sua esfera de atribuições. O prazo para ajuizamento do mandado de segurança é de 120 dias contados a partir da ciência do impetrante do ato impugnado, sendo o mesmo decadencial, o qual não se interrompe ou suspende. Após o mesmo, decretada a perda do direito desta ação, restarão as vias ordinárias para o interessado. O mandado de segurança também comporta o litisconsórcio ativo, quando se busca a proteção, em conjunto, de vários direitos individuais. Mas também existe o mandado de segurança na forma coletiva, cujo objeto será a tutela de direitos coletivos, líquidos e certos, que se encontrem sob ameaça/violação por ilegalidade ou abuso de poder de autoridade/agente público, cujos efeitos da decisão que defere o mandado de segurança coletivo serão erga omnes. Nesta modalidade, estão abrangidos os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, todos eles direitos transindividuais. É em função disto que se atribui a legitimidade ativa desta ação para os diversos órgãos coletivos de defesa dos interesses da coletividade (partidos políticos com representação no Congresso Nacional; sindicatos ou associações constituídos há pelo menos um ano). 3.6.5.4 – O Mandado de Injunção O Mandado de injunção é a ação constitucional que tutela os direitos à nacionalidade, à soberania e à cidadania que se encontram prejudicados em seu exercício em razão da ausência de 85 norma infraconstitucional regulamentadora 43 dos dispositivos constitucionais (normas constitucionais not self-inforcing). Assim, através desta efetivação concreta de um direito assegurado na constituição, o mandado de injunção configura-se num método de controle concreto de constitucionalidade por omissão. Relativamente à natureza do mandado de injunção, a doutrina e jurisprudência nacionais divergem sobre seu caráter mandamental (a exemplo do mandado de segurança e habeas corpus) ou declaratório. O atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de atribuir-lhe caráter meramente declaratório em razão da semelhança com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão de ato legislativo. A sua origem, também no direito anglo-saxão, remonta ao writ of injuction: O writ of injuction é definido como uma ordem judicial, editada por equidade, que determina a uma parte que se abstenha de fazer ou continuar a produzir algo, seja um ato particular, seja uma atividade, porque isto causaria “dano irreparável”. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 149) Para outros, também houve a inspiração brasileira, inovadora em nosso ordenamento em 1988, no direito italiano através da ingiunzione. [...] trata-se de um instituto processual mediante o qual pode conseguir-se uma decisão de condenação de forma mais simples que a do processo ordinário. Dada esta característica, o procedimento é articularmente útil para os créditos certos e munidos de prova, em relação aos quais o devedor não teria razão para resistir em juízo e poderia fazê-lo, num processo ordinário, somente com finalidade dilatatória da condenação. (SCIACCHIATANO apud FERREIRA FILHO, 1999, p. 149) No que tange à sua legitimidade ativa, o mandando de injunção pode ser impetrado por qualquer pessoa física ou jurídica de direito privado que tenha o exercício de algum direito à nacionalidade, à soberania ou à cidadania impedido em razão de inexistência de norma regulamentadora. Já a legitimidade passiva desta ação constitucional será aplicada àquela pessoa (física ou jurídica, de direito público ou privado) ou órgão responsável pela omissão normativa que inviabilize a concretização dos direitos pretendidos. Em razão da ausência de norma infraconstitucional que regulamente o mandado de injunção, questão controversa se formou a respeito das conseqüências da concessão do mesmo. Parte da doutrina entende que o mandado de injunção deferido investe o magistrado que o julgou no poder de editar a regulamentação requerida para a plena efetivação do direito pleiteado. Contudo, deste modo, estaria havendo um desrespeito ao princípio da separação dos 43 Norma regulamentadora pode ser entendida como aquela que possui medidas de caráter legislativo ou administrativo necessárias para tornar efetivo um determinado preceito posto na Constituição. 86 poderes, intocável em nosso ordenamento (art. 60, §4º, III CRFB/88). [...] uma outra corrente sustenta que o mandado de injunção não conduz senão à comunicação da falta de norma regulamentadora. O mandado de injunção não diferiria da ação de inconstitucionalidade por omissão senão no rito, abreviado, análogo ao do mandado de segurança. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 150) Este é posicionamento adotado pelo nosso Supremo Tribunal Federal, diga-se, pois, irrisório para uma colenda corte, a princípio, formada pelos mais bem capacitados juristas no país investidos no exercício de promover a máxima efetivação das normas constitucionais. “Enfim, uma terceira [corrente], intermediária, não admite que o juiz se torne legislador, mas que dê prazo ao legislador para colmatar a lacuna, sob pena de poder o direito invocado ser exercido como se existisse a regulamentação” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 150). O Supremo Tribunal Federal somente admite esta terceira hipótese quando também o poder público, além do dever de editar o provimento normativo faltante, também for o sujeito no pólo passivo da relação de direito material que emerge do preceito constitucional não efetivado. Lamentável, pois. 3.6.5.5 – O Habeas Data O habeas data foi criado pelo legislador constituinte na nossa Carta de 1988, objetivando a tutela do direito à informação. Ele possui uma dupla finalidade. A primeira, visando ao conhecimento de informações pessoais, e a segunda pretendendo a possibilidade de retificação de informações errôneas que constem dos registros de dados. A lei n. 9.507/97 admite uma terceira finalidade: anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável. O habeas data é uma ação de aplicabilidade imediata, gratuita e personalíssima. Para que se justifique a justa causa para a propositura desta ação, é necessário que a entidade governamental ou privada tenha se negado ou permanecido inerte diante de pedido de prestação das informações requeridas. Verifica-se, a exemplo do habeas corpus, que o habeas data também pode ser impetrado por qualquer pessoa, restringindo, em razão de suas características, esta legitimidade ativa à correlação de pessoalidade com as informações necessárias em decorrência da proteção ao direito de intimidade. No pólo passivo podem estar presentes tanto entidades governamentais da Administração direta ou indireta, quanto pessoas jurídicas de direito privado com banco de dados 87 aberto ao público. Em relação à proteção de dados sigilosos, sabemos que o direito de informação deve, sempre, ser interpretado em consonância com todo o restante do sistema jurídico, compatibilizandose, assim, com os dispositivos constitucionais que autorizam o sigilo de dados imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado. Contudo, tais dados sigilosos de importância à segurança da ordem constitucional, via de regra, não se aplicam aos indivíduos. 3.6.5.6 – A ação popular A ação popular é aquela que tutela o patrimônio público, alguma entidade de que o Estado participe, a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural, agindo mediante a anulação de um ato lesivo. A ação popular possui origem no direito romano, permitindo a qualquer do povo zelar pela res pública. No direito brasileiro, foi introduzida em 1934, na Constituição Federal, suprimida em 1937 e sendo reintroduzida em 1946, a exemplo do mandado de segurança. Para que seja possível a ação popular, deve haver a prática de um ato ilegal, contrário ao ordenamento jurídico, e que venha a agredir objeto de interesse de toda a sociedade relativamente ao patrimônio público, histórico, cultural, meio ambiente e à Administração Pública em sua moralidade. Uma das formas de incentivo a tal proteção é a isenção de custas judiciais e ônus da sucumbência aos autores, salvo a comprovação de má-fé. A sua finalidade precípua é permitir que todos os cidadãos possam atuar como fiscais da conduta do poder público. Assim, são legitimados para a propositura da ação popular os indivíduos que possuam, na qualidade de nacionais, o pleno gozo dos direitos políticos. Desse modo, qualquer cidadão atua como substituto processual da coletividade no interesse da defesa de seus direitos. O Ministério Público não possui legitimidade para o ajuizamento da ação popular, mas pode dar seqüência no andamento processual quando houver a desistência da ação pelo autor. Serão sujeitos passivos na ação popular as pessoas jurídicas (públicas ou privadas) em nome das quais foi praticado o ato ilegal e lesivo a algum objeto da ação; as autoridades que concorreram para a prática daquele ato; e, por fim, os beneficiários daquele ato. 3.6.5.7 – A ação civil pública 88 A ação civil pública, introduzida em nosso ordenamento em 1985, e no âmbito constitucional em 1988, é a ação constitucional que atua como instrumento de proteção do patrimônio público e social, meio ambiente e demais interesses difusos e coletivos. Tais interesses difusos e coletivos são enunciados, enquanto um rol exemplificativo, pela lei de ação civil pública (7.347/85): direitos do consumidor; bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; ordem urbanística; e ordem econômica. Entretanto, também se estendem aos mesmos os direitos difusos e coletivos de investidores do mercado imobiliário; de crianças e adolescentes; de pessoas portadoras de deficiência; de idosos; questões de saúde pública; de comunidades indígenas e outras minorias étnicas; descumprimento de regulações de engenharia genética; tutela de direitos humanos; e atos de improbidade administrativa, dentre outros. A ação civil pública objetiva a indenização pelo dano causado destinada à reconstituição dos bens lesados. Pode também ter por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou de não fazer, cumprimento este que será determinado pelo juiz, sob pena de multa diária, independentemente de requerimentos do autor. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 156) O Ministério Público a possui como uma de suas funções institucionais, estendendo-se a legitimidade ativa da ação civil pública às pessoas jurídicas de direito público interno (quer seja da Administração direta ou indireta) e associações cuja finalidade seja a proteção de interesses difusos e coletivos, desde que constituídas há mais de um ano. Também configura atribuição legal do Ministério Público a atuação enquanto custus legis e o prosseguimento da ação quando esta for ajuizada por terceiros legitimados que venham a desistir da mesma. No pólo passivo, podem estar presentes tanto pessoas e órgãos de direito público quanto de direito privado (físicas e jurídicas). Frise-se que, em razão da ação civil pública, o Ministério Público pode instaurar e promover o inquérito civil público, cuja finalidade será a preparação, levantamento de fatos e provas que permitam a instrução de futura ação civil pública. 3.7 – Direito de resistência Muito se fala, em decorrência do princípio da legalidade, no direito de resistência. Cirilo Vargas (2002) defende esta idéia forte no art. 5º, II da Constituição Federal (BRASIL, 1988), quando a ninguém pode ser imposta obrigação ou limitação de conduta senão pela via legal. De acordo com este jurista, tal enunciado constitucional decorre do princípio penal da exclusão da 89 44 ilicitude . A despeito da possibilidade do exercício deste direito de resistência, todos os cidadãos gozam de mecanismos constitucional-processuais através dos quais podem lançar mão para efetivar e proteger suas prerrogativas individuais fundamentais. O Poder Judiciário atua como uma garantia contra lesões a direitos individuais. Infelizmente, na prática é possível vislumbrar que, na maioria das ocasiões, as atitudes decorrentes do exercício do direito de resistência materializam-se mais eficazes do que a atuação incisiva do Judiciário, o que nunca é favorável aos interesses do Estado uma vez que incitam a autotutela45, inflamam as camadas populares e perturbam a ordem pública, permeando perigoso campo de subversões sociais e ataques, inclusive, contra a ordem constitucional e as instituições governamentais que podem não estar atendendo aos anseios e expectativas da população de modo satisfatório. Por tais motivos discordo da possibilidade de exercício indiscriminado do direito de resistência. A importância de se invocar a tutela jurisdicional, conforme Humberto Theodoro Júnior, reside no fato de que ela “é, em última análise, por via dos mecanismos e instrumentos do Direito Processual [aquela em] que atuará o Estado para realizar a tutela final e prática dos direitos subjetivos que emanam da Carta Magna.” (THEODORO JUNIOR apud VARGAS, 2002, p. 35). Cândido Dinamarco ressalta que “em todo o campo coberto pela jurisdição constitucional das liberdades vê-se, pois, a obcecada preocupação em dar efetividade às garantias que a Constituição oferece, para que não fiquem em mera promessa” (DINAMARCO apud VARGAS, 2002, p. 35). 44 Constitui-se de circunstâncias que retiram a tipicidade da conduta delituosa: estado de necessidade; legítima defesa; estrito cumprimento do dever legal; exercício regular de direito; consentimento do ofendido; e princípio da adequação social. 45 Emprego da violência privada na resolução de conflito: desforço incontinenti, legítima defesa, autodefesa estatal. 90 4 – REGIMES ESPECIAIS DE SUSPENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Um dos elementos caracterizadores do Estado Democrático de Direito é justamente o equilíbrio estável de forças existente entre os mais diversos grupos sociais, havendo uma distribuição igual de valores, proteções e poderes entre os mesmos. É este equilíbrio que caracteriza e preserva a ordem jurídica constitucional. Podem haver, no entanto, algumas situações nas quais a natural competição entre os grupos sociais extrapola o âmbito limitador do texto constitucional e de suas instituições e enseja, assim, a crise constitucional, na qual não há respeito aos parâmetros jurídicos previamente estabelecidos e reguladores da ordem constitucional. Desse modo, uma vez constatada a situação de crise constitucional, os próprios ordenamentos jurídicos autorizam a adoção de medidas de exceção, sob o regime de legalidade extraordinária, para que seja restabelecido o anterior equilíbrio. Excepcionalmente, em situações de graves anormalidades, as Constituições de diversos Estados nacionais, tanto na Europa quanto nas Américas admitem, nos limites legais, o condicionamento de diversos direitos fundamentais a um regime de emergência, o regime extraordinário. As liberdades públicas, todavia, podem ficar sujeitas a um regime excepcional, em situações de grave crise, ou ameaça, como guerra ou desordens internas. Nestas situações – como se diz - “de emergência” ficam elas sujeitas a regime extraordinário. Este varia de Estado para Estado, preferindo uns o sistema rígido do estado de sítio, outros o flexível, como a lei marcial, não faltando formulações que combinam um com outro. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 36) Têm-se, pois, neste momento, a necessidade de se promover a defesa do Estado, das instituições democráticas e da Constituição contra os processos de mudança violenta e perturbação da ordem pública mediante a imposição de determinadas circunstâncias que fogem ao regular sistema constitucional, substituído pelo sistema constitucional das crises, assim considerado por Aricê Moacyr Amaral dos Santos: Como o conjunto ordenado de normas constitucionais que, informadas pelos princípios da necessidade e da temporariedade, tem por objeto as situações de crises e por finalidade a mantença ou o restabelecimento da normalidade constitucional. (SANTOS apud SILVA, 2003, p. 741) Estes princípios dirigentes dos estados de exceção determinam que: A declaração é condicionada à ocorrência de pressuposto fático; os meios de resposta têm 91 sua executoriedade restrita e vinculada a cada anormalidade em particular e, ainda, ao lugar e ao tempo; o poder de fiscalização política dos atos de exceção é de competência do Legislativo; o controle judicial a tempore e a posteriori do Judiciário. (SANTOS apud SILVA, 2003, p. 742) É preciso a estrita observância de tais princípios para que o estado de exceção não se configure em simples arbítrio ou ditadura. Infelizmente, “quase sempre o estado de exceção funciona como instrumento de preservação do domínio de uma classe dominante [...].” (SILVA, 2003, p. 742) É necessário que os executores respeitem os limites legais expressos na Carta Magna que é quem autoriza, em nome do povo, a possibilidade de ocorrência de estado de exceção no ordenamento jurídico. Assim, a fiscalização do estado de sítio e estado de defesa, como a da lei marcial, não foge à apreciação do Judiciário, sob pena dos mesmos, em caso de mera apreciação política, permitirem arbítrios, na maioria das vezes, irreparáveis àqueles que venham a sofrer os danos de suas conseqüências. A despeito disso, há divergências doutrinárias sobre o assunto: A melhor doutrina [...] repele esse entendimento. A apreciação de dever ou não ser declarado o sítio é uma apreciação política, uma apreciação de conveniência. Deve, por isso, ficar a critério das autoridades políticas que por ela responderão. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 135) Deste modo, entende Manoel Gonçalves que somente o controle político deveria atuar sobre a legitimidade fática ou não da decretação do estado de sítio. Os atos praticados durante o estado de sítio são submetidos também a um controle político. Este é desempenhado pelo Congresso, não só durante o prazo de suspensão das garantias, mas também posteriormente. Na verdade, este controle posterior, dadas as circunstâncias, é o que pode ser mais perigoso. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 136) Observamos, assim, a existência de um controle político da decretação; uma fiscalização política concomitante das medidas; a permanência da atividade do Congresso Nacional; e a permissão do controle jurisdicional (pleno controle de legalidade, durante a medida e depois de cessada a sua vigência). Haverá, sempre, a responsabilização dos executores e agentes incumbidos da implementação dos regimes extraordinários. Cessado o estado de exceção, cessarão também os seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos atos ilícitos cometidos por tais agentes. Deverá, também, haver a prestação de contas pelo chefe do Executivo, aquele que decretou o estado excepcional, através da qual é realizada a especificação e a justificação das providências adotadas, com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas. Ressalte-se que qualquer desrespeito do chefe do Poder Executivo às normas e limites constitucionais implica em crime de responsabilidade, sem prejuízo da responsabilização nas esferas civis e penais pelos atos ilegais. 92 4.1 – Estado de defesa Dentre os regimes de exceção existentes, o mais brando deles é, sem dúvidas, o estado de defesa, antigo medidas de emergência no constitucionalismo brasileiro. O estado de defesa se propõe a combater as ameaças à ordem pública ou à paz social em face de grave e iminente instabilidade constitucional e calamidades naturais de grandes proporções, as quais venham a comprometer tal ordem e paz sociais. As circunstâncias de suspensão de garantias fundamentais, em se tratando do estado de defesa, são taxativas, expressas na Carta constitucional e de rigor extremo na sua observância. Nosso ordenamento jurídico autoriza: a restrição ao exercício do direito de reunião; do sigilo de correspondência e de comunicação telefônica e telegráfica, assim como ocupação e uso de bens e serviços (exclusivo para a hipótese de calamidade pública, sendo que a União responderá pelos danos e custos decorrentes em tais bens); possibilidade de prisão sem ordem judicial, mas imediatamente comunicada ao juiz competente que a poderá relaxar, havendo, de qualquer modo, a impossibilidade desta prisão ser superior a 10 dias ou de se promover a incomunicabilidade do preso a fim de que ele possa gozar da prerrogativa de provocar o controle judicial da legalidade de seu encarceramento. A abrangência do estado de defesa é a locais restritos e determinados, não podendo se estender a todo o território nacional. Relativamente a sua limitação temporal, esta não pode ser condicionada a nenhum tipo de circunstância fática, mas tão somente a implementação de data marcada nos limites impostos pelo texto da carta constitucional. A decretação do estado de defesa, no ordenamento jurídico brasileiro, em que a competência para esta decretação é do chefe do Executivo, se condiciona a pareceres do Conselho da República e do Conselho da Defesa Nacional, os quais não irão vincular a decisão de decretação do Presidente da República. Porém, deverá haver ratificação, controle posterior realizado pelo Congresso Nacional, sobre o qual, havendo rejeição do decreto, cessarão, imediatamente, seus efeitos. Na maioria dos países de tradição romano-germânica, a competência para a decretação do estado de defesa, como no estado de sítio, é atribuída ao Pode Legislativo. 4.2 – Estado de sítio 93 Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999) entende que o estado de sítio é aquele dentre os regimes extraordinários o que melhor se conforma dentro do Estado Democrático de Direito de acordo com o entendimento dos Estados de sistema jurídico de tradição romano-germânico (França, Alemanha, Portugal, Brasil, etc.). O estado de sítio surgiu na República Francesa, já em 1791, quase que em simultaneidade com o reconhecimento formal dos direitos individuais pelo liberalismo político. Pouco após o solene reconhecimento das liberdades, aperceberam-se os franceses de que, em certas circunstâncias graves, como o assédio de uma cidade por inimigo em armas, era praticamente impossível ao mesmo tempo respeitá-los e assegurar a defesa da praça. Em razão disso, um decreto de 10 de julho de 1791, posterior à Declaração dos Direitos do Homem mas anterior à primeira Constituição, previu o estado de sítio, isto é, admitiu a suspensão temporária e localizada de certas garantias constitucionais, em momento de grave perigo, nas praças efetivamente cercadas (sítio “real”). (FERREIRA FILHO, 1999, p. 129) Posteriormente, o estado de sitio também foi estendido aos casos de desordem interna, o que Manoel Gonçalves (1999) chama de sítio ficto. Em nosso ordenamento, o estado de sítio, ainda sem esta alcunha, surgiu na Constituição de 1824. Permitia esta (art. 179, §32) que, “nos casos de rebelião ou invasão de inimigos pedindo a segurança do Estado”, se dispensassem, “por tempo determinado, algumas formalidades que garantem a liberdade individual... por ato especial do Poder Legislativo.” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 129) Em 1891, já com a atual denominação, o estado de sítio foi largamente usado pelos anos subseqüentes, tendo sido, por conseqüência, pormenorizado na Carta de 1934. Já a Constituição de 1937 possuía condição sui generis uma vez que admitia a própria suspensão de sua vigência diante da hipótese da deflagração de uma guerra. A essência do estado de sítio consiste na suspensão temporária e localizada de garantias46 constitucionais. O sistema do estado de sítio importa na suspensão de garantias constitucionais. Isto significa que, durante a situação excepcional formalmente decretada pelo Poder competente e pelo procedimento adequado, não subsistem as garantias constitucionais em sentido estrito, salvo a institucional. Assim, não prevalecem garantias-limite, como a proibição da censura, garantias-instrumento como o habeas corpus, o que, na verdade, restringe e eventualmente anula na prática o recurso ao contencioso. Portanto, a proteção do direito. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 37) 46 Vide item 3.6 - Mecanismos de proteção dos direitos humanos: as garantias. 94 No entanto, tão somente são suspensas as garantias no sentido estrito, uma vez que, de acordo com a exposição de Manoel Gonçalves (1999), caso o estado de sítio implicasse na suspensão das garantias constitucionais lato sensu do indivíduo, o mesmo equivaleria à suspensão da norma fundamental, da Constituição, o que é inadmissível pelo ordenamento jurídico. Não se pode confundir o estado de sítio com a suspensão da Constituição, não atinge ele as garantias constitucionais lato sensu. Pode colher, entretanto, e normalmente colhe, as garantias em sentido estrito, seja as garantias limite, seja as garantias instrumentais, mormente as judiciais. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 131) Destaque-se que o estado de sítio não suspende os direitos fundamentais em si, mas apenas as garantias dos mesmos, as limitações das ações governamentais que estão presentes na Carta Magna, alargando, assim, a esfera de atuação e intervenção legítima do Estado no âmbito do indivíduo. “[...] Por outro lado, suspende os remédios constitucionais, consequentemente afasta a possibilidade de tutela judicial, o que enseja ampla margem de discrição à ação repressiva” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 131). Pré-requisito básico do estado de sítio é a limitação temporal. Caso esta não exista, não há que se falar em suspensão das garantias constitucionais, mas sim supressão destes mecanismos de proteção dos direitos humanos fundamentais. Esta limitação pode ser condicionada a determinada data, ou a acontecimento de fato futuro, porém certo, na hipótese de guerra ou agressão armada estrangeira. Verifica-se que também é possível a ocorrência de limitação de ordem espacial, não se aplicando o estado de sítio em todo o território nacional, mas apenas em algumas partes do mesmo. Justamente por se configurar como uma medida excepcional e perigosa, somente se admite o estado de sítio em decorrência de circunstâncias que coloquem a ordem constitucional em extremo perigo, situações de grave comoção nacional ou de guerras. Entenda-se por comoção grave aquela que não possa ser enfrentada com os meios normais e dentro das regras normais referentes à manutenção da ordem pública. Trata-se de um juízo político que cabe o Presidente da República que solicita a autorização para instaurar o estado de sítio, e ao Congresso Nacional que a defere, ou não. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 132) Também a fundamentação fática do estado de sítio serve para a identificação do elenco de medidas permitidas após a instauração do mesmo. Tal procedimento de instauração, que importa numa modificação interina da legalidade, é atribuído, na Europa e no Brasil, ao Legislativo, órgão habilitado a legislar, salvo alguns casos ainda mais excepcionais que, ainda assim, condicionam esta declaração a ulterior ratificação do Poder Legislativo. Observamos que, em nosso ordenamento jurídico, cabe ao próprio Legislativo decidir se, juntamente com o estado de sítio, serão suspensas e em que condições as imunidades dos 95 parlamentares. Conforme já expusemos, vislumbra-se uma variedade de níveis de restrições em face do estado de sítio. Deste modo, as modalidades do mesmo serão dispostas de acordo com o grau destas medidas autorizadas, pautadas pela sua fundamentação. No direito brasileiro, são duas a modalidades: A comoção intestina grave (de ampla repercussão nacional), que permite a obrigação de residência em localidade determinada; detenção de pessoas em edifício não destinado a réus de crimes comuns; busca e apreensão domiciliares; suspensão do exercício da liberdade de reunião; censura de correspondência, imprensa, telecomunicações e diversões públicas; requisição de bens; intervenção nas empresas prestadoras de serviços públicos. E a hipótese de guerra, a qual “permite as medidas que se fizerem necessárias, respeitada a índole do sistema.” (FERREIRA FILHO, 1999, p. 134) Na verdade, a sua decretação institui não o arbítrio, mas uma legalidade excepcional, e transitória, sob a qual autoridade tem amplos poderes para proibir o exercício de liberdades, ou a menos restringi-lo quanto lhe parecer adequado. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 37) Uma vez declarado o estado de sítio, a sua execução será feita por aqueles indivíduos nomeados pelo Legislativo ou, no caso brasileiro, pelo Presidente. Entretanto, mais uma vez, ressaltemos a importância de se manter a condução deste estado na letra da lei: [...] o estado de sítio não gera nem permite o arbítrio. De fato, mesmo suspensas garantias constitucionais, o Executivo ainda está sujeito a normas e limites que configuram como que uma “legalidade extraordinária”, adequada aos momentos de grave crise. Inclusive, se houver abuso, aí cabe a intervenção do Judiciário. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 131) No direito brasileiro, a decretação do estado de sítio deve observar o controle político prévio de autorização, feito pelo Congresso Nacional por deliberação de maioria absoluta de seus membros. A despeito de não vinculantes, também se exige pareceres do Conselho da República e do Conselho da Defesa Nacional. 4.3 – Lei marcial A lei marcial constitui-se no regime de exceção composto por leis cujo efeito implica na permissão, através de uma declaração formal, de conferência da administração ordinária do Estado _ desprezando a sua divisão de funções _ a autoridades militares. 96 É possível observar, inclusive, que a administração da justiça é feita, geralmente, por um tribunal militar, uma corte marcial. A lei marcial somente encontra espaço no ordenamento jurídico (existente na maioria dos Estados que adotam o sistema jurídico anglo-americano) em situações excepcionais, como em casos de grave perigo à ordem constitucional, preparação de instituição de um regime político totalitário, ou ainda catástrofes de ordem natural. Exemplo comum é a suspensão do remédio do habeas corpus. Através da mesma, são suspensas diversas garantias e direitos fundamentais dos cidadãos, dentre eles a liberdade de reunião, manifestação de opinião e prisão devidamente fundamentada e realizada por autoridade competente. Os sistemas flexíveis não preordenam a conduta da autoridade, assim não instituem uma legalidade excepcional. Aplicam simplesmente o princípio romano: salus reipulicae suprema lex esto. Por isso, são considerados perigosos para a ordem constitucional. Entre eles, todavia, inscreve-se a lei marcial adotada na Grã-Bretanha. Esta permite que a autoridade, para prevenir a situação anormal, ou para restabelecer a normalidade, faça o que lhe parecer correto. Seus atos, porém, a menos que haja um bill of indemnity, uma lei de anistia, votada pelo Parlamento, estão sujeitos a exame pelo Judiciário. Este poderá, então, ou aceitar a sua necessidade, o que exclui a criminalidade do ato eventualmente praticado, ou, ao invés, aplicar a sanção ao responsável. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 37) Nos Estados Unidos da América, o conceito de lei marcial se encontra intimamente relacionado com a possibilidade de se realizar a custódia prisional, por tempo indeterminado e motivação sigilosa de qualquer indivíduo, eliminando o processo de supervisão de aplicação da lei pelo Poder Judiciário. Assim está previsto na Constituição norte-americana: “O privilégio do mandado de habeas corpus não será suspenso, senão quando em casos de rebelião ou invasão, a segurança pública pode requerê-la47” (UNITED STATES, 1787, tradução nossa). 47 The privilege of the Writ of Habeas Corpus shall not be suspended, unless when in Cases of Rebellion or Invasion, the public Safety may require it (UNITED STATES, 1787). 97 5 – TERRORISMO A concepção moderna de terrorismo surgiu na Europa do século XVIII, especificamente durante a fase de “terror” da Revolução Francesa, a qual viu, por exemplo, a decapitação em praça pública da rainha Maria Antonieta em 1793. Os anos de 1793 e 1794, marcados pela suspensão da constituição, pela perseguição e pela execução dos contra-revolucionários, deram mostras da capacidade destrutiva e da “flexibilidade” da legalidade daquele Estado. Os contra-revolucionários também reagiram com ações “terroristas”, o que apontou para o elemento tendencialmente viciado desse ciclo de terror. Mas foi apenas na Rússia czarista que a teoria do terrorismo como modalidade de luta política se desenvolveu, como lemos em Bakunin, Morosow e Netchaiev. (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 46) A partir de então, traçando um panorama histórico deste fenômeno essencialmente moderno, podemos verificar como o mesmo se desenvolveu e tomou dimensões universais. Na segunda metade do século XIX, a Rússia se tornou a pátria do terrorismo, o qual se associava à ação de grupos anarquistas (os niilistas) e populistas, os quais utilizavam, como estratégia política, o emprego da violência, disseminando-se por todo o continente europeu, agindo, em especial, no Estado czarista que era marcado pela opressão social e por um regime autocrático que cerceava qualquer tipo de manifestação política. Grupos revolucionários na Rússia, Europa ocidental e Estados Unidos começaram a praticar atentados terroristas contra diversos elementos chave do governo de cada Estado e nas regiões freqüentadas pelas elites locais. Foram estes os primeiros grupos que reivindicaram o terrorismo como uma forma de ação. Neste esteio é possível mencionar, em 1881, o assassinato do czar russo Alexandre II pelo grupo populista radical Narodnaia Volia. Já em 1914, na Bósnia-Herzegóvina, o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, em Sarajevo, foi um ataque terrorista que veio a deflagrar a Primeira Grande Guerra Mundial. Seus agentes e ideológicos emergiram, justamente, daquilo que Lênin definiu como “proletariado de bacharéis”, surgido com a criação das universidades russas. Desde então, a mistura explosiva de progresso e desenraizamento típica da modernização tornaria endêmico o terrorismo apocalíptico que, hoje em dia, lança aviões contra edifícios, difunde gases venenosos no metrô, metralha políticos e assassina industriais em nome do advento de um novo mundo que ninguém sabe bem qual seja. O caos, a injustiça e a infâmia da época em que vivemos são signos premonitórios da aproximação do fim dos tempos, o apocalipse. Entretanto, antes da chegada da grande purificação, terríveis batalhas serão travadas contra as forças da desordem, do mal, do engano e da vileza. Por fim, apesar de todos os desastres e traições, os puros prevalecerão e a virtude e a justiça serão restauradas. A convulsão apocalíptica marcará a restauração ou o nascimento do universo imóvel da fraternidade, do bem e da ordem, eternamente desejados e nunca alcançados pelo homem. (DE FIORE, 2007, p. 71) 98 Com o fim da Primeira Guerra Mundial, inicia-se a era dos totalitarismos. Mediante a ascensão de Iossif Vissarionovich Dzhugashvili, Stálin “o açougueiro” (1924, tornando-se secretário-geral do Partido Comunista Soviético) e Adolf Hitler (1933, quando é designado chanceler do Reich) ao poder, os próprios Estados passaram a utilizar a violência no intuito de impor seu poder totalitário sobre seus súditos. É neste momento, com o Nazismo e o Stalinismo, que surge o conceito de terrorismo de 48 Estado . A própria União Soviética é que dá origem, em 1918, aos primeiros campos de concentração através da criação do Gulag, prática amplamente difundida pela Alemanha nazista nos anos seguintes, tendo como grande marco a inauguração, em 20 de maio de 1940, do campo de Auschwitz, na Polônia. Estes governos do terror também não admitiam conhecer oposicionistas, eliminando, sistematicamente, não só as fontes populares de insurgência, sob o pretexto de proteção da ordem interna, mas também as lideranças políticas que lhes ameaçassem, como o assassinato de Sergei Mironovich Kirov, líder bolchevique, em 1934, fato que deu início ao Grande Expurgo no império soviético. Encerrada a Segunda Guerra Mundial, o neocolonialismo do século XIX entra em crise e deflagra-se a luta pela descolonização. Lutas por libertação nacional eclodem em todas as antigas colônias e protetorados, impulsionadas por grupos nacionalistas adeptos da luta armada. Tal fenômeno é particularmente expressivo no norte da África e no Oriente Médio, dando início ao conflito entre árabes e judeus pelo controle do território da antiga Palestina. É neste cenário palestino que surgiram, ao longo da segunda metade do século XX, as organizações armadas israelenses como a Irgun (autores do atentado a bomba contra o hotel King David, em Jerusalém, em 1946), Haganah e Stern; e as organizações árabes como a Frente de Libertação Nacional da Argélia (promotora da Batalha de Argel, em 1957, uma série de ataques contra alvos franceses na capital argelina), a Organização para a Libertação da Palestina, a Frente Popular para a Libertação da Palestina (autora do seqüestro de um vôo da companhia israelense El Al na rota Roma - Tel Aviv), e o Setembro Negro (responsável pelo assassinato de 11 atletas da delegação israelense nos jogos olímpicos de Munique em 1972). Em 1959, o triunfo da Revolução Cubana faz da luta armada o modelo de enfretamento aos regimes ditatoriais na América Latina, com o embate entre grupos revolucionários e governos autoritários marcando a história de nosso continente até o início dos anos 90. (CHOMSKY, et al, 2007, p. 38) Podemos citar como integrantes deste movimento o Sendero Luminoso (que no Peru, em 1983, exterminou 69 pessoas, incluindo 20 crianças); a Organização Latino-Americana de 48 Vide item 5.1.1 - Terrorismo de Estado. 99 Solidariedade (Olas); e a Frente Sandinista de Libertação Nacional. No Brasil, em 1966, assistiu-se ao atentado a bomba no aeroporto Guararapes, em Recife, deixando duas vítimas fatais e ferindo outras quinze, o qual foi atribuído a integrante da Ação Popular. Já em 1968, um atentado a bomba contra o quartel do II Exército, em São Paulo, deixou um militar morto e outros tantos feridos. Em 1973, foi implementada a Operação Marajoara, a terceira incursão promovida pelo exército brasileiro no Bico do Papagaio (região do estado de Tocantins) para dizimar a guerrilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Em meados dos anos 60, grupos de jovens europeus, inspirados por ideais revolucionários de esquerda ou de autodeterminação em regiões separatistas optam pelo caminho das armas para transformar seus sonhos políticos em realidade. Por vezes articulados com grupos armados de outros países, criam as redes do que ficaria conhecido como o “terrorismo internacional dos anos 70”. (CHOMSKY et al, 2007, p. 39) Decorrentes deste movimento de “utopia armada”, surgiram, por exemplo, os grupos Baader-Meinhof na Alemanha (cuja primeira grande ação se deu em 1968); as Brigate Rosse na Itália (que seqüestraram e assassinaram o político italiano Aldo Moro em 1978); Euskadi Ta Askatasuna na Espanha (ETA: Pátria Basca e Liberdade, promotor, dentre tantos ataques, do assassinato do primeiro ministro espanhol Luis Carrero Blanco em Madri, em 1973); o Irish Republican Army na Irlanda do Norte (IRA, autores do Bloody Friday em 1972 ao explodir, simultaneamente, 20 bombas no centro de Belfast); e o Weather Underground Organization nos Estados Unidos. A partir de 1979, com a Revolução Iraniana, e a Guerra do Líbano, que durou de 1975 a 1990, observou-se a emergência do islã e o aparecimento de novos grupos terroristas, pautados no fundamentalismo religioso, tais como o Hezbollah no Líbano (autores da explosão da embaixada norte-americana no Líbano em 1983, deixando 63 mortos); o Hamas na Palestina; a Jihad Islâmica (promotora do atentado perpetrado pelo americano Timothy Mc Veigh, vetereno da Guerra do Golfo, em1995 em Oklahoma City, que teve como alvo o Edifício Federal Alfred P. Murrah, cujo resultado foi de 168 mortos e mais de 500 feridos) e a Al Qaeda (atentados contra as embaixadas americanas no Quênia e Tanzânia em 1998, World Trade Center em Nova York em 2001, e trens subterrâneos de Madri em 2004), estas duas disseminando-se, especialmente, pelo Afeganistão, Paquistão, Irã, e Arábia Saudita. A revolução iraniana de 1979 e o fracasso dos grupos árabes em defender Beirute dos ataques israelenses durante a Guerra do Líbano levam uma nova geração de muçulmanos a utilizar a luta armada em prol da implementação da chariá pelo Estado. É esta nova geração que adota os ataques suicidas como principal estratégia de luta na região. (CHOMSKY et al, 2007, p. 39) 100 5.1 – Conceito Questão controversa, especialmente no âmbito do Direito Internacional, é a definição do termo terrorismo, fundamentalmente porque estudiosos da área procuram estabelecer um conceito fixo, em especial na fundamentação do ato terrorista, contrariando, assim, a própria dinamicidade do Direito que acompanha as constantes e voláteis mudanças sociais. Certo é que, atualmente, existem diversos tipos diferentes de terrorismo, variando de acordo com a sua inspiração, podendo ser étnica ou nacionalista; religiosa; comunista/anarquista; de extrema-direita, etc. O dicionário Aurélio apresenta duas definições do vocábulo. Segunda a primeira, terrorismo seria um “modo de coagir, ameaçar ou influenciar outras pessoas, ou de imporlhes a vontade pelo uso sistemático do terror”. De acordo com a segunda, seria uma “forma de ação política que combate o poder estabelecido mediante o emprego da violência”. (COGGIOLA, 2007, p. 40) “Eleito inimigo número um da civilização, no seu uso atual o termo designa uma atividade com um fim em si mesmo, desvinculado de qualquer outro objetivo que não o da sua própria execução” (COGGIOLA, 2007, p. 40). O conceito de “terrorismo” no seu sentido contemporâneo, porém, surgiu com a Revolução Francesa. O período compreendido entre setembro de 1793 e julho de 1794, caracterizado pela violência e pelas execuções utilizadas pelos revolucionários para enfrentar as forças da reação, deu origem ao termo, que apareceu pela primeira vez em 1798 no suplemento do Dicionário da Academia Francesa. A expressão passou então a ser utilizada para caracterizar o extermínio de pessoas de oposição ao regime e a violência promovida pela autoridade governamental instituída. (COGGIOLA, 2007, p. 40) Desse modo, a revolução democrática associou-se ao terror no seu sentido político. Neste sentido, Karl Marx dispôs: “O terror na França nada mais foi do que o método plebeu para acabar com os inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o espírito pequeno-burguês” (MARX apud COGGIOLA, 2007, p. 41). Relativamente à derrota na revolução austríaca de 1848, ele afirmou que os massacres sem resultados nas jornadas de junho e outubro, a fastidiosa festa expiatória em fevereiro e março e o canibalismo da contra-revolução convencerão os povos de que para abreviar, simplificar e concentrar a agonia mortífera da velha sociedade só existe um meio: o terrorismo revolucionário. (MARX apud COGGIOLA, 2007, p. 41) 101 Numa resolução editada pela ONU em 2002, através da qual se definiu, oficialmente, a política antiterrorista mundial, houve a tentativa de se construir um conceito definitivo de terrorismo: Terrorismo é, na maioria dos casos, um ato político. Tem como propósito provocar danos dramáticos e mortais sobre civis e criar uma atmosfera de medo, geralmente por motivo político ou ideológico, secular ou religioso. O terrorismo busca ser um assalto contra a lei, a ordem, os direitos humanos e a resolução pacífica de disputas, princípios que nortearam a criação deste organismo mundial. O terrorismo não é um fenômeno unívoco, deve ser entendido à luz do contexto no qual as atividades terroristas aparecem. O terror foi usado como tática em quase todos os cantos do planeta, sem distinguir riqueza, gênero ou idade de suas vítimas, na sua maioria civis. (UNITED NATIONS apud COGGIOLA, 2007, p. 45) 5.1.1 – Terrorismo de Estado Vislumbra-se, também, a existência do chamado “terrorismo de Estado”. Este ocorre quando as situações de legalidade extraordinária dos regimes de exceção se tornam regra dentro de determinado ordenamento jurídico. A Administração do Estado, sob o pretexto de garantir a ordem pública e a segurança de seus nacionais em função de determinados grupos opositores da política empregada e movimentos de insurreição popular, rebeliões ou agressões armadas estrangeiras, lança mão da faculdade de suspender um conjunto de garantias de direitos humanos fundamentais a fim de obter maior liberdade de ação no processo de combate a tais fenômenos e restaurar a paz social. Contudo, o problema surge quando os princípios da legalidade, que pauta os limites destas medidas, e da temporariedade são absolutamente ignorados e tornam os cidadãos de determinado Estado vítimas de um regime arbitrário, opressor e mortífero, como ocorreu na Alemanha e União Soviética no pós-Primeira Guerra Mundial, ou, de forma assemelhada, nas ditaduras latinoamericanas dos anos 1960-1980, no caso do Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Conforme esclarece Hannah Arendt (1989), o fenômeno que se observou na União Soviética e na Alemanha nazista foi o aumento do terrorismo de Estado na medida inversa ao da existência de oposição política interna àqueles governos totalitários, oposição esta que, ao invés de atuar como pretexto para a subsistência do terror, foi o último obstáculo para a implementação do Estado total. Arendt (1989) afirma que uma característica básica dos regimes totalitários é o fato deste não abolir com a ordem jurídica vigente, mas simplesmente passar a sobrepor o Estado a ela. Os nazistas, por exemplo, não se preocuparam em revogar a constituição de Weimar, mas editaram inúmeros decretos e leis que permitiam a condução da sociedade de modo a transformar todos num só indivíduo, destruindo a idéia de pluralismo. 102 Todas as instituições criadas pelos Estados totalitários e a sua política adotada não pode ser definida pelas leis que as criam. O ordenamento jurídico é apenas desconsiderado, há a crença de que se pode dispensar qualquer consensus juris, fator este que sempre contribui para o sucesso desses regimes uma vez que persiste a constante sensação de que, com a permanência das leis anteriores, o totalitarismo vigente caminhará, inevitavelmente, para a normalização. Na prática, esse estado de permanente ilegalidade era expresso pelo fato de que “muitas das normas em vigor já não [eram] do domínio público”. Teoricamente, correspondia ao postulado de Hitler, segundo o qual “Estado total não deve reconhecer qualquer diferença entre a lei e a ética”, porque, quando se presume que a lei em vigor é idêntica à ética comum que emana da consciência de todos, então não há mais necessidade de decretos públicos. (ARENDT, 1989, p. 444) O domínio total possui a tentativa de tornar os homens supérfluos, recepcionando toda a humanidade como se fosse una, reduzindo todas as pessoas à identidade de reações a fim de justificar a sobreposição estatal. Para tanto, muitas das vezes são fabricadas situações e circunstâncias fáticas para que a única liberdade que exista seja a de preservar a espécie. Deste modo, as ideologias dos governantes totalitários se transformam e verdadeiras armas que obrigam os governados a entrarem em harmonia com o movimento do terror. A violência mantenedora do poder esmaga as próprias leis que por si devem garantir aquela estrutura social. Os Estados autoritários do século XX, assim como, antes deles, os totalitários, calcam essa atitude violenta em uma retórica da segurança nacional. O inimigo externo teria aliados internos, justificativa que se prestou tanto para a suspensão do estado de direito como para a generalização da sobreviolência prendendo, torturando e executando os próprios cidadãos. (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 49) Entende-se que não há distinção entre o terrorismo de Estado e o massacre cometido pelo Estado. A Alemanha nazista teria sido terrorista ao impor as leis raciais e obrigar os judeus a utilizar a estrela de Davi para se identificar em público. Como esse terrorismo era peça fundamental no caminho para os guetos e, posteriormente, para os campos de concentração e, daí, para os campos de extermínio, fica não só difícil, mas na verdade artificial distinguir essencialmente neste caso entre terror e violência de Estado. (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 49) Esta concepção de terrorismo de Estado, de acordo com o ponto de vista político adotado, pode estender-se, cada vez mais, em tempos contemporâneos: No segundo pós-guerra, o terrorismo de Estado deixou de ser a exceção e passou a ser a norma em certas regiões do planeta. Foi praticado em larga escala, em primeiro lugar, nas colônias francesas em luta pela independência, como Madagascar e Argélia. Na grande mídia, porém, o vocábulo “terrorismo” foi reservado apenas para a prática das formações militares irregulares, pois que para uma nação era terrorismo, para outras era luta pela 103 liberdade. Os bascos do ETA, os irlandeses do IRA, os “peshmergas” curdos, os palestinos de Al Fatah, os argelinos da Frente pela Libertação Nacional ou os chechenos, mais recentemente, foram todos considerados terroristas, mesmo quando claramente lutavam pela autodeterminação de seus povos. (COGGIOLA, 2007, p. 44) 5.1.2 – Distinção: Terrorismo x Crime Organizado Faz-se importante ressaltar a distinção existente entre o terrorismo e o crime organizado, duas mazelas que afligem, profundamente, a sociedade mundial contemporânea com infindáveis reflexos nos setores políticos, econômicos e sociais. Embora ambos os fenômenos sociais sejam oriundos de anomalias do sistema global neoliberal, têm-se que o terrorismo possui como fundamento um cunho político, (no qual se inserem os conflitos religiosos, étnicos ou raciais), retrato de uma insatisfação com a presente ordem social, políticas públicas ou determinados membros no poder, estabelecendo como alvos instituições político-governamentais representativas de um sistema que os ofensores visam a erradicar ou, então, aquilo que constitui a razão de ser de qualquer Estado nacional, os seus súditos. “O terrorismo é sempre um tipo de publicidade. Donde a longuíssima história da tortura pública de rebeldes políticos, bruxas e marginais” (DE FIORE, 2007, p. 70). As eclosões periódicas do fenômeno do terrorismo, na antiguidade, o que as provocava era a sensação de fim do mundo vivida durante as crises – guerreiras, dinásticas ou provocadas pela fome. Na modernidade, essa sensação provém da contínua erradicação dos camponeses, da urbanização desmedida, da dissolução das sociedades tradicionais, da globalização econômica, destruidora das antigas economias e, acima de tudo, da proletarização da antiga classe média, substituída pela nova. (DE FIORE, 2007, p. 71) Já o crime organizado, diferentemente, busca, tão somente, o lucro, a maior obtenção de montante financeiro pelo menor esforço possível, constituindo quadrilhas especializadas em furtos e roubos, sem possuir alvos especificamente governamentais, mas apenas preocupando-se com aqueles que gozam de maior disponibilidade de recursos monetários. Acreditamos que o relacionamento entre terroristas e crime organizado permanecerá basicamente restrito aos negócios, isto é, os terroristas recorrerão aos criminosos para conseguir documentos falsos, armas contrabandeadas ou assistência logística sempre que não conseguirem esses itens por seus próprios meios. Os grupos criminosos não devem, porém, formar alianças a longo prazo com os terroristas. O crime organizado é motivado pela obtenção de lucro e tende a considerar mau negócio qualquer atividade que exija mais do que isso. No entanto, os líderes terroristas se preocupam com o fato de os laços com parceiros sem ideologia aumentarem as chances de infiltração policial ou de lucro seduzir os fiéis. (UNITED STATES, 2006, p. 192) 104 5.2 – Terrorismo islâmico Após declarada e deflagrada a guerra contra o terror, em 2004 os Estados Unidos da América identificaram melhor seu grande inimigo e ajustaram o foco, restringindo a guerra ao terrorismo islâmico. É preciso, assim, compreender o fenômeno do fundamentalismo islâmico, o qual se encontra cada vez mais exacerbado, tornando-se preocupação extremamente pertinente nas pautas de reuniões de cúpula dos principais líderes políticos do planeta, para que seja possível o estudo das políticas antiterror. Com o extremismo religioso do Islamismo – especialmente os suniitas radicais – ditando as regras de conduta de milhares de jovens sem emprego, passando fome, sem nenhum tipo de esperança num futuro terreno materialmente confortável, grandes contingentes populacionais, dispostos a abrir mão de “tudo” o que têm, são cooptados pelos grupos extremistas paramilitares desejosos de promoverem a jihad, a Guerra Santa em nome de Alá contra o mundo ocidental e o American way of life que, na visão muçulmana (através da qual o Estado é inseparável da religião, onde os grupos religiosos se confundem com os grupos políticos) constituem prática pecaminosa que não só coloca o futuro da humanidade em xeque como também merece, exemplarmente, punição com a pena de morte. Tudo começou no mundo da Guerra Fria, quando tropas soviéticas invadiram o Afeganistão, em dezembro de 1979, dando início a um conflito que duraria dez anos, e prontamente os Estados Unidos se disponibilizaram a ajudar os afegãos, enviando-lhes mais de US$ 600 milhões por ano através de armas e treinamentos das milícias locais (os mujahedins) em bases especiais da inteligência norte-americana, havendo o controle destes recursos pelo Paquistão. Também militantes da organização Irmãos Muçulmanos (a semente do fundamentalismo islâmico, fundado em 1928 no Egito) foram enviados pelos diversos países árabes a fim de auxiliarem no combate aos soviéticos. Assim, desembarcaram verdadeiras avalanches de combatentes que os afegãos chamaram de wahabis, pela proximidade com a corrente wahabita da Arábia Saudita – que defende, entre outros princípios, a aplicação da chariá, a lei islâmica, pelo Estado. Eles vinham dos países do Golfo, do Magreb (norte da África) e da Palestina. (WEBER, 2007, p. 62) Próximo ao fim da guerra, em 1988, os combatentes árabes já dispunham de uma ampla estrutura de campos de treinamento (especialmente em áreas rurais do Paquistão, sob o a proteção 105 do seu serviço secreto), especialização militar e conhecimento tecnológico que lhes permitiria implementar seus novos planos. Com o passar do tempo, a visão de um fundamentalismo vigoroso, sectário e hostil ao progresso se impôs. A região transformou-se em laboratório militar e político. O objetivo final seria introduzir pela força a chariá nos países vizinhos, as repúblicas muçulmanas da Ásia Central. Em seguida, levá-la aos países do Golfo e finalmente ao Magreb. (WEBER, 2007, p. 62) Constate-se que a motivação dos terroristas islâmicos é a distância entre o mundo contemporâneo e os seus ideais saudosistas do passado rural pré-capitalista. O caos, a injustiça e a infâmia da época em que vivemos são signos premonitórios da aproximação do fim dos tempos, o apocalipse. Entretanto, antes da chegada da grande purificação, terríveis batalhas serão travadas contra as forças da desordem, do mal, do engano e da vileza. Por fim, apesar de todos os desastres e traições, os puros prevalecerão e a virtude e a justiça serão restauradas. A convulsão apocalíptica marcará a restauração ou o nascimento do universo imóvel da fraternidade, do bem e da ordem, eternamente desejados e nunca alcançados pelo homem. (DE FIORE, 2007, p. 70) É esta certeza apocalíptica típica dos movimentos terroristas de fundamentalismo religioso que os move adiante. [O terrorismo] pretende algo muito mais desmesurado do que tomar o Estado: sua meta é desencadear o apocalipse. Sua lógica não é a lógica cruel, mas objetiva, da luta política racional. É a lógica dos mitos que alimentam as erupções de ódio, esperança e nostalgia, os pilares emocionais dos movimentos messiânico-purificadores da modernidade. Motivo pelo qual esse tipo de terrorista não é visto pela opinião pública como “normal”, mas como um tipo de “louco religioso”. Suspeita, aliás, sensata. (DE FIORE, 2007, p. 70) Num destes campos de treinamento, o egípcio Abdul Rahman, apesar de cego, construiu forte liderança entre os militantes e declarou que na Guerra Santa, a jihad, também se podia conceber que irmãos da mesma religião fossem mortos na busca pelo bem maior. E foi a partir daí que A Base (Al Qaeda) se formou, “dentro da lógica do sacrifício, considerado digno de glória na medida em que servia para salvar o islã.” (WEBER, 2007, p. 63). Neste contexto, Osama Bin Laden, saudita de família nobre e riquíssima que havia rompido com o governo de seu país por considerá-lo desrespeitoso ao islamismo em face de suas conexões com os Estados Unidos e o mundo capitalista, destacou-se por seu carisma, veemência e dedicação ao islã, tornando-se respeitado e admirado por todos os membros daquele novo grupo cujo objetivo é regenerar o espírito do mundo. Assim, aproveitando-se da rede financeira sustentada por comerciantes paquistaneses, a Al Qaeda adquiriu cada vez mais um caráter transnacional, difundindo-se por áreas de fraco governo, ausência de estrutura estatal e pouca ocupação, territórios que se tornaram ideais para o grupo 106 estruturar seus planos e treinamentos. A Al Qaeda criou, então, uma espécie de cartilha islâmica para o país e para as outras áreas e guerrilha. De seus feudos – os campos de Jalalabad e de Kandahar, além das zonas tribais –, Bin Laden e seu braço direito, o egípcio Ayman al-Zawahiri, médico de formação, financiaram o regime talibã. (WEBER, 2007, p. 63) O movimento da Al Qaeda não possui unicidade, os grupos, embora obedientes, são baseados em cisões internas e compartimentalizações estanques, mantendo pouca relação com o pericentro da organização, no melhor estilo das guerrilhas dos mujahedins. Esta rede se difundiu por todo o mundo islâmico, Europa e Estados Unidos, despertando e utilizando células até então adormecidas. E a partir de então os ataques foram variados, contra as embaixadas americanas na Tanzânia (Dar es-Salaam) e no Quênia (Nairobi) em 1998; com a destruição das imagens do Budas de Bamyan em março de 2001; contra o World Trade Center em Nova York em 2001; contra o metrô de Madri em 2004; e contra um double-deck bus londrino em 2005, todos funcionando, também, como propaganda dos ideais do movimento. Os Estados Unidos “compreenderam, finalmente, que estavam diante de uma guerra de longa duração, irregular, de fraca intensidade, mas capaz de desestabilizar bruscamente vários países por meio de atentados, da infiltração e de células inoperantes.” (WEBER, 2007, p. 63). A despeito de ter obtido algum sucesso desde então, como a detenção de Khaled Sheikh Mohammed, “o químico”, um dos líderes da Al Qaeda, o próprio governo norte-americano sabe que a presente “guerra” está longe de ter fim. A invasão do Iraque, em 2003, só veio reforçá-la. Surgiram movimentos autônomos, entre os quais o de Abu Mussab Zarqaui, com seu exército islâmico no Iraque, que jurou obediência à organização. Um grupo tão radical que Al Zawahiri, braço direito de Bin Laden, preferiu se distanciar, para não ser responsabilizado pelo prejuízo de possíveis massacres civis. Além disso, o enfraquecimento das forças americanas no Iraque permitiu que fosse relançada a guerrilha no Afeganistão – onde os Estados Unidos também mantêm tropas –, em efeito dominó. (WEBER, 2007, p. 65). 5.3 – Medo e terror político-social As ações terroristas contemporâneas levam as sociedades ocidentais à convivência permanente com o medo, muitas vezes chegando à limites absurdos de preocupação e prevenção que somente são justificáveis pelo próprio interesse estatal de proteger seus nacionais. 107 Vale lembrar que, ao longo da história humana, o uso do terror sempre foi uma arma política importante. Aterrorizar os adversários é útil para paralisá-los, desmoralizá-los, demonstrar sua vulnerabilidade, enfraquecer sua vontade. Estados como o asteca ou o assírio esmeraram-se em inspirar terror a seus vizinhos. Esquartejar Tiradentes e expor pedaços de seu corpo em cidades de Minas Gerais serviu para inibir os aspirantes a conspirador. Cortar a cabeça de Luis XVI e jogá-la aos reis da Europa garantiu que a República iria até o fim. (DE FIORE, 2007, p. 70) Todos nós constatamos, facilmente, que tais metas profetizantes do fim dos tempos estão sendo alcançadas por seus idealizadores. “O terrorismo está hoje presente no imaginário coletivo como uma ameaça constante, capaz de desestruturar o poder – ou sustenta-lo, no caso de seu uso pelo Estado – através do medo” (CHOMSKY et al, 2007, p. 37). O sentimento fundamental dos terroristas modernos é a alienação, causada pelo desenraizamento inerente ao processo de modernização, a perda de qualquer esperança de reforma desse mundo impuro e imperfeito. É por isso que, na falta de um ideal futuro ou passado, eles podem prescindir de qualquer ideal, bastando-lhes o alívio da destruição pura. (DE FIORE, 2007, p. 70) Em conformidade com estudos levantados pela própria CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY (UNITED STATES, 2006), observa-se cada vez maior a necessidade de alerta intermitente e fortes investimentos nas áreas de segurança pública no que tange à prevenção de ataques terroristas. Foi lançado, em novembro de 2003, o “Projeto Conselho Nacional de Inteligência 2020”, desenvolvido pela CIA a fim de produzir um relatório completo com prognósticos e especulações, delineando as forças que irão moldar e construir o futuro. Para tanto, foram reunidos 25 dos maiores especialistas das mais variadas disciplinas para a promoção de um profundo debate com analistas da comunidade de inteligência, consultando-se diversas organizações políticas e econômicas, “futuristas” renomados (como Ted Gordon do Millenium Project da Organização das Nações Unidas; Jim Dewar, diretor do Centro da Corporação RAND para Políticas Globais de Longo Prazo e para o Futuro da Condição Humana; e Ged Davis, ex-diretor do projeto de cenários internacionais da Shell), confrontando-se metodologias e implementando conferências e work-shops ao redor do globo terrestre no intuito de aprofundar o estudo de temas de interesse específico. “[...] Os participantes exploraram as principais tendências apresentadas pelos especialistas e, então, desenvolveram cenários alternativos sobre como tais tendências poderiam se desenvolver nos próximos 14 anos” (UNITED STATES, 2006, p. 230-231). De acordo com esta projeção realizada pela CIA para os próximos 12 anos, fatores-chave que vêm motivando o terrorismo internacional estão em constante crescimento, tais como: o fortalecimento da identidade muçulmana e seu maior envolvimento em lutas separatistas nacionais ou regionais; proliferação de redes informais de fundações de caridade exploradas por 108 fundamentalistas islâmicos; crescente desemprego nos países muçulmanos, especialmente nas camadas mais jovens da população, alienando-as e colocando-as à disponibilidade do recrutamento terrorista. Prevê-se que a exacerbação do sentimento de “antiglobalização e oposição às políticas norte-americanas podem reunir um grande número de simpatizantes, financiadores e colaboradores dos terroristas.” (UNITED STATES, 2006, p. 188). Informações obtidas pelo Serviço Secreto norte-americano indicam que os radicais islâmicos desejam a criação de uma insurgência internacional. Cada vez mais comum será a criação de novos grupos terroristas, não com o perfil da atual Al Qaeda, mas a partir da adoção de um viés descentralizador em face das atuais facilidades de se obter material, treinamentos, instruções e informações sobre potenciais alvos on-line. Pequenos grupos difusos e regionais, formados por indivíduos autoproclamados jihadistas, assumirão a cena do terrorismo internacional com a previsão da dissolução da Al Qaeda, disseminando todo o seu conhecimento para os diversos radicais dispostos a combater e expulsar os “invasores infiéis”, cada vez mais auto-suficientes em relação às necessidades logísticas e financeiras. O zelo religioso dos terroristas muçulmanos extremistas aumenta seu desejo de perpetrar atentados que resultem em um número elevado de óbitos. Historicamente, terroristas inspirados pelo fervor religioso são mais destrutivos, pois os grupos aos quais pertencem os isentam de restrições. (UNITED STATES, 2006, p. 190) As novas tendências terroristas levantadas pela CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY apontam para uma originalidade atinente às tecnologias, planejamento e armas, as quais passarão a contar não só com as de destruição em massa (com os grupos terroristas na intermitente tentativa de comprar ou roubar armas nucleares), mas também com agentes biológicos, o “bioterrorismo”, os quais podem ser produzidos e aplicados em qualquer lugar, constituindo uma vantagem definitiva nesta “guerra” uma vez que um atentado pode mostrar-se bem sucedido antes mesmo que as autoridades percebam o ataque. Ademais, campos inexplorados até então, como o espaço cibernético e a tecnologia da informação, surgem como novos alvos do terror: [...] capacidade de conduzir ataques físicos e cibernéticos contra centros mantenedores da infra-estrutura de informação global, inclusive Internet, redes de telecomunicações e sistemas de computação que controlam processos industriais importantes, como usinas elétricas, refinarias e mecanismos de controle de enchentes. Os terroristas já especificaram como alvo a infra-estrutura de informação dos Estados Unidos da América e são capazes de ataques que poderiam corromper os sistemas [...]. (UNITED STATES, 2006, p. 192) Desse modo, observa-se, num retrato construído pela própria Agência de Inteligência do Governo dos Estados Unidos, um cenário de pânico e insegurança total, trazendo drásticas 109 conseqüências para a economia global, em que todos os indivíduos se tornam reféns do medo: Prevemos que em 2020, haverá um sentimento mais profundo de insegurança, o qual pode ser baseado tanto em percepções psicológicas como em ameaças físicas. Os aspectos psicológicos, [...], incluem preocupações com a segurança dos empregos, bem como temores relacionados à migração, entre populações locais e de imigrantes. O terrorismo e os conflitos internos pode interromper o processo de globalização ao aumentar significativamente os custos de segurança associados ao comércio internacional, à manutenção do policiamento de fronteiras, e ao afetar negativamente os padrões de comércio e os mercados financeiros. Embora bem menos prováveis que os conflitos internos, conflitos entre as grandes potências criariam riscos à segurança mundial. O potencial para a proliferação de (WMD) Armas de Destruição em Massa aumentará ainda mais a sensação de insegurança. (UNITED STATES, 2006, p. 186) 5.4 – Guerra contra o terror No contexto das crises econômico-financeiras internacionais dos anos 70 e início dos anos 80, Ronald Reagan, republicano conservador, assumiu a presidência dos Estados Unidos da América e promoveu uma guinada radical na Administração norte-americana. Os Estados Unidos adotaram, a partir de então, uma política agressiva antiterrorista em inúmeras localidades do planeta, do mundo árabe à América caribenha. Após os avassaladores ataques de 11 de setembro de 2001, os mesmos conservadores americanos, agora sob a égide do governo Bush (filho), apertaram as rédeas da guerra contra o terror, iniciando uma era de agressão imperial em escala global. Na história mais aceita, os anos 80 são descritos pelos estudiosos como a década do “terrorismo de Estado”, empreendido especialmente pela Líbia e pelo Irã. Os Estados Unidos teriam meramente respondido de forma “pró-ativa” a esse terrorismo. E o mesmo fizeram seus aliados, como Israel e África do Sul, que integraram a rede de terror clandestina organizada pelos partidários de Ronald Reagan, presidente entre 1981 e 1989. (CHOMSKY, 2007, p. 66) Um dos cânones fundamentais da doutrina Bush, lançada após a destruição do World Trade Center, foi “aqueles que hospedam terroristas são também culpados do terror e devem ser tratados como tal.” (GEORGE W. BUSH apud CHOMSKY, 2007, p. 66). A própria América, numa nova versão do Destino Manifesto do século XIX, se autodeclarou xerife do mundo, e contra sua força militar e econômica ninguém ousa discutir, mesmo que esta conduta seja contrária a tudo o que se informa em nível de Direito Internacional, matéria esta que já não aparenta possuir utilidade alguma a não ser para entreter socialistas utópicos moderninhos. Ninguém tampouco aceitaria que qualquer Estado, hoje, com exceção dos autodeclarados 110 Estados “iluminados”, tivesse esse poder de determinar normas e aplicá-las de forma seletiva, por sua vontade, contentando-se com o louvor à própria notabilidade, generosidade e visão messiânica do que é correto. (CHOMSKY, 2007, p. 69) Para um especialista em relações internacionais de Harvard citado por Noam Chomsky (2007), Graham Allison, este princípio é o mais importante na doutrina americana de guerra ao terror ao passo que “revoga unilateralmente a soberania dos Estados que cuidam de santuários terroristas” (CHOMSKY, 2007, p. 66). Este princípio adotado pela administração Bush se coaduna com outro previsto na Carta de 1787, a qual previa e repudiava a traição à América, no seu artigo terceiro, Do Poder Judiciário, seção 3, Traição (UNITED STATES, 1787). Formalmente anunciado como estratégia de segurança nacional de setembro de 2002, foi imediatamente descrito no Foreign Affairs, uma revista do establishment, como uma “nova grande estratégia imperial” que explicitava o direito de Washington de eliminar qualquer desafio potencial à sua dominação global. (CHOMSKY, 2007, p. 66) Por tais razões, a guerra contra o Afeganistão foi considerada como o paradigma da guerra justa, muito embora a ausência de provas sólidas sobre esta situação tenha constituído enorme descontentamento entre muitos especialistas das áreas política e de relações internacionais ao abordarem a universalidade do conceito de guerra justa: Se os Estados Unidos podem bombardear outro país para forçar seus líderes a entregar suspeitos de envolvimento em atos terroristas, então, em princípio, Cuba, Nicarágua e uma série de outros países também podem bombardear os Estados Unidos, porque não há dúvidas do envolvimento do país em ataques terroristas muito sérios. O caso de Cuba, há 45 anos, está documentado de forma extensa por fontes impecáveis e não é questionado. No exemplo da Nicarágua, os EUA foram até condenados pelo Tribunal Internacional de Haia e pelo Conselho de Segurança da ONU (em resoluções vetadas). (CHOMSKY, 2007, p. 69) O que se vê neste contexto é que as normas de Direito Internacional foram ignoradas pelas simples vontade e soberania nacional e internacional da maior potencia econômica e militar do planeta. Um distinto estudioso, Michael Glennon, da Escola de Direito e Diplomacia Fletcher, da Universidade Tufts, argumenta que o Direito Internacional, promovido a simples perfumaria, deveria ser abandonado porque não reflete mais a prática, ou seja, os Estados Unidos e seus aliados simplesmente o ignoram. O direito internacional e a Carta da ONU, ele aponta, limitam a capacidade dos Estados Unidos de recorrer à força. [...] Outros observam que a lei é um instrumento vivo e, portanto, determinado pela prática, e a prática demonstra que novas normas foram estabelecidas, permitindo a “autodefesa antecipada”, outro eufemismo para agressão à vontade. A suposição tácita é de que as normas são estabelecidas pelos poderosos e que só eles têm o direito de antecipar a autodefesa. (CHOMSKY, 2007, p. 69) 111 Atualmente, as políticas externas militares dos Estados Unidos encontram-se voltadas para o “Eixo do Mal”, expressão criada pelo presidente George W. Bush para designar os países que, de acordo com informações da inteligência norte-americana, possuem programas nucleares, podem conferir asilo ou incentivo financeiro a terroristas e são contrários à política internacional praticada pelo seu Estado. São eles a Coréia do Norte, o Irã e o Iraque. 5.4.1 – Política de Segurança Nacional A política de Segurança Nacional norte-americana faz parte da nova onda de guerra contra o terror. Este modelo de política criminal é, ao mesmo tempo, de restritas e amplas dimensões na medida em que tem por objeto a guerra declarada ao terror, e gera repercussões internacionais ao prever a atuação e combate do terrorismo no exterior. Para evitar que a observância dos direitos fundamentais do indivíduo se torne um obstáculo intransponível para a Administração Pública no resguardo da segurança de seus nacionais, esta política se pauta na restrição / suspensão destes “obstáculos” para que o Estado possa agir livremente, muitas vezes, ele mesmo, praticando o verdadeiro terrorismo. 5.4.1.1 – Política criminal Preliminarmente, vejamos em que consiste, efetivamente, a política criminal adotada por determinado Estado no processo de combate à mazela do crime na sociedade, como expõe Nilo Batista: Do incessante processo de mudança social, dos resultados que apresentem novas ou antigas propostas do Direito Penal, das revelações empíricas propiciadas pelo desempenho das instituições que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da criminologia, surgem princípios e recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação. A esse conjunto de princípios e recomendações denomina-se política criminal. (BATISTA, 2002, p. 34) Assim, Nilo Batista classifica, de acordo com as etapas do sistema penal, os diferentes tipos de política criminal existentes: Segundo a atenção se concentre em cada etapa do sistema penal, poderemos falar em 112 política de segurança pública (ênfase na instituição policial), política judiciária (ênfase na instituição judicial) e política penitenciária (ênfase na instituição prisional), todas integrantes da política criminal. Como anota com precisão Pulitanò, há entre a criminologia a política criminal a distinção – e ao mesmo tempo relacionamento – intercorre entre a capacidade de interpretar e aquela de transformar certa realidade. (BATISTA, 2002, p. 34) Diversos são os conceitos de política criminal formulados pelos por variados juristas ao longo das décadas, e podemos observar que todos eles mantêm um mesmo consenso, o de que a política criminal, antes de tudo, deve partir do estudo social momentâneo com fincas em aperfeiçoar a ordem social através da redução do número de transgressões à lei penal. Para A. Bruno, a política criminal é “um conjunto de princípios de orientação do Estado na luta contra a criminalidade, através de medidas aplicáveis ao criminosos. Para Basileu Garcia, “a política criminal examina o direito em vigor, apreciando a sua idoneidade na proteção social, contra os criminosos e, em resultado dessa crítica, sugere as reformas necessárias. Verificado se a legislação vigente alcança a sua finalidade, trata de aperfeiçoar a defesa jurídico-penal contra a delinqüência.” Para Marc Ancel, “todo mundo parece concordar com que a política criminal tem de início por objeto, indiscutivelmente, a repressão do crime pelos meios e procedimentos do direito penal (ou, mais amplamente, do sistema penal) em vigor.” (BATISTA, 2002, p. 35) A reeducação efetiva, objeto central da política criminal, deve ser capaz de criar condições que conduzam o condenado a compreender as contradições sociais que o levaram à adoção da postura criminosa (prática individual e egoística) e desenvolver no mesmo a consciência de coletividade, democracia e igualdade, estruturando-se como política de transformação social e institucional, e contraindo, ao máximo, o sistema punitivo. A constatação, pela pesquisa empírica nos últimos cinqüenta anos, do fracasso da pena privativa da liberdade com respeito a seus objetivos proclamados, levou a uma autêntica inversão de sinal, ou política criminal que postula a permanente redução do âmbito de incidência do sistema penal. Assim se entende Fragoso: “uma política criminal moderna orienta-se no sentido da descriminalização de da desjudicialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas antisociais que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego de sanções criminais”, isto é, no sentido de uma “conselheira da sanção não-penal”. (BATISTA, 2002, p. 36) Destarte, conclui-se que os Estados Unidos da América, na sua política de segurança nacional, encontram-se na imediata contramaré do que se entende como uma política criminal adequada, eficaz e efetiva, empregando condutas que contradizem suas tradições democráticas e sociais. O processo penal é regido por uma série de princípios e regras que outra coisa não representam senão postulados fundamentais da política processual penal [criminal] de um Estado. Quanto mais democrático for o regime, o processo penal mais se apresenta como um notável instrumento a serviço da liberdade individual. Sendo o processo penal, como já se disse, uma expressão de cultura, de civilização, e que reflete determinado momento político, evidente que os seus princípios oscilam à medida que os regimes políticos se alteram. Num estado totalitário, consideram-se as razões do Estado. Num democrático, 113 como bem o disse Bettiol, aqui já citado, a liberdade individual, como expressão de um valor absoluto, deve ser tida como inviolável pela Constituição. (TOURINHO FILHO, 2006, p.36) 5.4.1.2 – Condutas “ilícitas” justificáveis? Ressalte-se a natureza utilitária das escolhas no combate e prevenção ao terrorismo. O que se observa atualmente é que o governo dos Estados Unidos vem, aos poucos, desenvolvendo-se num agente da prática do terrorismo de Estado. Princípios essenciais do Estado Democrático de Direito como a lesividade, culpabilidade, contraditório, ampla defesa, liberdade processual, vedação da utilização de prova ilícita e estado de inocência estão sendo mandados às favas diante da crescente preocupação em prever e combater novos ataques terroristas. O Ex-Ministro de Justiça norte-americano, Roberto González, já chamou a atenção sobre as proibições presentes na Convenção de Genebra de 1949 (UNITED NATIONS, 2008), acerca da qual os Estados Unidos da América são signatários e que, ainda assim, não são cumpridas pelo mesmo neste “estado de segurança nacional”. De acordo esta Convenção, não poderiam ocorrer as prisões secretas de suspeitos de terrorismo, inexistindo a sua comunicação a qualquer tipo de autoridade judicial; a criação de tribunais de exceção; a manutenção da base militar panamenha de Guantánamo49, para onde são levados os prisioneiros acusados de terrorismo, mantidos encarcerados sem nenhum tipo de acesso a advogado ou julgamento por um tribunal judicial, local em que estes indivíduos detidos são submetidos a tratamentos desumanos, mantidos sob condições precárias de alimentação e higiene, e ainda constantemente sendo alvos de tortura; a utilização do complexo prisional de Abu Ghraib, no Iraque, sede de inúmeras atrocidades humanas, numa verdadeira espécie de campo de concentração de prisioneiros acusados de subversão social; a legalização de certos métodos de tortura, especialmente o de afogamento (waterboarding), preferido das autoridades militares norteamericanas, no intuito de se obter algum tipo de informação que permita desarticular um novo ataque terrorista ou identificar alguma célula do terrorismo islâmico camuflada em território ocidental. 49 Nos países totalitários, todos os locais de detenção administrados pela polícia constituem verdadeiros poços de esquecimento onde as pessoas caem por acidente, sem deixar atrás de si os vestígios tão naturais de uma existência anterior como um cadáver ou uma sepultura. Comparado a essa novíssima invenção de se fazer desaparecer até o rosto das pessoas, o antiquado método do homicídio, seja político ou criminoso, é realmente ineficaz. O assassino deixa atrás de si um cadáver e, embora tente apagar os traços da sua identidade, não pode apagar da memória dos que ficaram vivos a identidade da vítima. A operação da polícia secreta, ao contrário, faz com que a vítima simplesmente jamais tenha existido. (ARENDT, 1989, p. 485) 114 A preocupação principal do juiz americano é assegurar a todos um efetivo contraditório, e em cada espécie concreta à corte cabe verificar que a oportunidade de defesa tenha sido realmente plena, não permitindo a supressão ou a limitação das provas. (GRINOVER apud VARGAS, 2002, p. 154) Em 24 de abril 1996, após o atentado em Oklahoma City, o governo norte-americano aprovou o The Antiterrorism and Effective Death Penalty Act (Public Law No. 104-132), também conhecido como AEDPA, o qual constitui uma série de leis cujo objetivo é deter o terrorismo, providenciar justiça às vítimas e prover mais eficácia à pena de morte, dentre outros. O AEDPA exerceu enorme impacto na ação de habeas corpus nos Estados Unidos. Uma de suas imposições consiste na limitação do poder dos juízes federais (que exercem o segundo grau de jurisdição na América do Norte) para conferir liberdade provisória, a não ser que as cortes de justiça estaduais entendam que a decisão proferida contrarie dispositivo ou forma de aplicação de norma federal de acordo com o entendimento da Suprema Corte; ou casos de evidente decisão contrária às provas dos autos. Deste modo, o que se viu foi uma enorme restrição ao direito constitucional de liberdade de locomoção, retirando-se dos cidadãos norte-americanos a garantia do habeas corpus em sede de julgamento de segundo grau, atentando-se, assim, de frente com o princípio do estado de inocência. O AEDPA também criou mais restrições relativamente aos writs, os remédios constitucionais como o habeas corpus e mandado de segurança, impondo que novos writs não podem ser ajuizados subseqüentemente em face da negativa de um anterior. Assim, esta barreira imposta veda que alegações feitas em sede de habeas corpus na esfera federal, já previamente decididas, possam ser apreciadas. Ainda, foi retirado da Suprema Corte o poder de rever uma decisão da corte de apelação que negue pedido de habeas corpus, colocando a decisão da corte de apelação federal como inquestionável. O AEDPA também estabeleceu um sistema de revisão especial para casos de crimes punidos com a pena capital, no qual estados-membros que atinjam um determinado nível de controle de qualidade da performance do conselho das cortes judiciais na fase procedimental de pós-convicção das cortes estaduais, passam a dispor de restritos limites temporais relativos a habeas corpus impetrados na esfera federal por indivíduos já no “corredor da morte”. Pouco depois de promulgado, o AEDPA foi largamente atacado como violador do Artigo I, Seção 9, cláusula 2 da Constituição dos Estados Unidos50, mas a Suprema Corte norte-americana já rechaçou qualquer tipo de entendimento acerca da sua inconstitucionalidade, contrariando um dos 50 Article. I. - The Legislative Branch Section 9 - Limits on Congress: The privilege of the Writ of Habeas Corpus shall not be suspended, unless when in Cases of Rebellion or Invasion the public Safety may require it (UNITED STATES, 1787). 115 preceitos base do Estado Democrático de Direito: “O acusado não deve ser preso senão na medida em que for necessário para o impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime” (BECCARIA apud TOURINHO FILHO, 2006, p. 65). A despeito de serem variadas as ideologias políticas, no mundo inteiro as autoridades legitimam, tácita ou, em alguns casos, expressamente, o emprego da violência na administração de seus súditos. Muitas vezes, criam-se departamentos especializados na investigação de focos de resistência ao modelo de administração adotado pelo governo local, [...] revestidos da condição de polícia política, atuando em desmedida esfera de ação. Seus agentes amparam-se de impunidade total, agindo sob capa protetora. Cometem atrocidades sem conta, e, substituído o regime, não há qualquer tentativa séria de apuração dos crimes e punição dos culpados, em nome de uma suposta pacificação nacional. (VARGAS, 2002, p. 9) A Constituição de 1787, em seu artigo 3º, Seção 3, dispõe que: Traição contra os Estados Unidos deverá consistir somente em deflagrar guerra contra os mesmos, ou em aderir a seus inimigos, prestar-lhes auxílio e conforto. Nenhum indivíduo deverá ser acusado de traição senão pelo depoimento de duas testemunhas sobre o mesmo ato, ou a sua confissão em juízo51. (UNITED STATES, 1787, tradução nossa) 5.4.1.2.1 – O Patriot Act e seus procedentes O processo de contra-ataque ao terrorismo nos Estados Unidos da América foi, após a administração Clinton, reaberto intensamente no pós 11 de setembro de 2001, em especial com algumas leis de caráter antidemocrático e inquisitivo. Dentre essas legislações de exceção destaca-se a principal delas, a que, na verdade, deu origem a uma coletânea de atos normativos criados para permitir condutas “anteriormente” ilícitas, o Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act de 2001, mais conhecido como o PATRIOT Act (Public Law No. 107-56). Após os ataques em Nova York e no Pentágono, o Congresso iniciou um incessante trabalho em leis anti-terrorismo, até que o Departamento de Justiça encaminhou à casa legislativa o AntiTerrorism Act de 2001, que mais tarde foi aprovado pelo Congresso sob a denominação atual. O Patriot Act foi aprovado com ampla margem de votos a seu favor, tendo recebido apoio de 51 Article III. - The Judicial Branch Section 3 – Treason: Treason against the United States, shall consist only in levying War against them, or in adhering to their Enemies, giving them Aid and Comfort. No Person shall be convicted of Treason unless on the Testimony of two Witnesses to the same overt Act, or on Confession in open Court. The Congress shall have power to declare the Punishment of Treason, but no Attainder of Treason shall work Corruption of Blood, or Forfeiture except during the Life of the Person attainted (UNITED STATES, 1787). 116 ambos os partidos majoritários, o Republicano e o Democrata. A despeito desta aprovação exemplar, inúmeras foram e são as críticas da sociedade norte-americana contra o mesmo, acusando-o de violar uma enorme variedade de direitos constitucionais civis, por exemplo, através do cumprimento de ordens de busca e apreensão sem mandado judicial; quebra do sigilo à informação; detenção de imigrantes ilegais por tempo indeterminado, etc. Relativamente a muitos dos atos previstos no Patriot Act, vários tribunais em toda a América os julgaram inconstitucionais. Deste modo, diversas foram as propostas de emenda ao Patriot Act, incluindo o Protecting the Rights of Individuals Act, o Benjamin Franklin True Patriot Act e o Security and Freedom Ensured Act (SAFE), tendo sido todas, no entanto, rejeitadas. Porém, a situação governista interessada também agiu e, por sua vez, em 2003, chegou até a elaborar um documento intitulado Domestic Security Enhancement Act. Entretanto, conhecido como Patriot II, o mesmo foi tão condenado por estender as provisões do original que jamais foi encaminhado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos ao Congresso americano como proposição legislativa. Dezenas de mudanças na legislação norte-americana foram implementadas pelo Patriot Act, destacando-se o National Security Act (Public Law No. 235) de 1947, o Foreign Intelligence Surveillance Act (50 United States Code, §§1801–1811, 1821–29, 1841–46, and 1861–62) (FISA) de 1978, o Electronic Communications Privacy Act (Public Law No. 99-508) (ECPA) de 1986, O Money Laundering Control Act (Public Law No. 99-570) de 1986, o Bank Secrecy Act (31 United States Code §5311-5330 and 31 Code of Federal Regulations §103) (BSA), e o Immigration and Nationality Act (8 United States Code) (INA) de 1952. Como medidas de caráter genérico, O Patriot Act criou um fundo para atividades contraterroristas e aumentou os recursos destinados ao FBI, autorizando, temporariamente, o Departamento de Justiça a empregar parcela de seus recursos financeiros para firmar contratos privados de segurança; autorização de contratação de diversos tradutores pelo FBI; criou o National Virtue Translation Center; permitiu a convocação dos militares pelo Procurador-Geral do Estado para auxílio em questões envolvendo armas de destruição em massa; expandiu o programa National Electronic Crime Task Force; criou a determinação de entrega de lista de agentes terroristas conhecidos às empresas aéreas para que estas procedam a checagens antes de cada vôo; direcionou US$ 5 milhões à Administração Anti-Drogas (DEA) para treinamento de policiais no sul e leste asiáticos; cominou penas criminais para as condutas de corrupção passiva; tipificou como crimes ligações de operadores de telemarketing que não se identifiquem completamente; estabeleceu sanções comerciais à Coréia do Norte e Afeganistão; e destinou US$ 50 milhões para o desenvolvimento de laboratórios de desenvolvimento e suporte às habilidades forenses de segurança cibernética. 117 Sobre os novos procedimentos de vigilância, que tinham duração de utilização prevista até o fim de 2005, foram realizadas emendas às leis já existentes que regulavam o assunto, o Foreign Intelligence Surveillance Act (FISA) e o Electronic Communications Privacy Act (ECPA). Relativamente à investigação terrorista, houve uma ampliação do conceito de “atividade terrorista”, incorporando quaisquer manuseios de artifícios perigosos e assistências de variadas montas a terroristas; criando-se o tipo legal do terrorismo doméstico (como assassinatos e seqüestros); redefinindo-se o cyber-terrorismo (alterações de registros pessoais; condutas que causem danos financeiros a indivíduos superiores a US$ 5 mil; invasões a computadores oficiais e prejuízos causados virtualmente à Administração Pública); e alargando o conceito de terrorismo ao incorporar a prática de atividades: “perigosas à vida humana que configurem violação de lei criminal de qualquer Estado, [...] que intimidem ou coajam a população civil [...], influenciem a política de governo pela intimidação ou coerção ou afetem a conduta de um governo através de armas de destruição em massa, assassinatos ou seqüestros52” (UNITED STATES, 2001, tradução nossa) Buscou-se o enquadramento dos crimes de terrorismo na jurisdição de competência da justiça federal; novas penas para ataques em sistemas de transporte coletivo; criminalização de condutas que envolvam o manuseio de agentes biológicos sem a comprovação de fins profiláticos, protetivos, ou para pesquisas científicos de caráter pacífico; instituição de inúmeras recompensas sobre informações ou atos úteis no combate ao terror, com valores superiores a US$ 5 milhões; ampliação da atuação do serviço secreto, com promoção de emendas às General Education Provisions Acts, realizando-se um monitoramento aproximado de todos os estudantes do país, e conferindo imunidade legal àqueles diretores de instituições de educação que montem dossiês e bancos de dados de seus alunos e suas condutas com fins de investigação de relações com práticas terroristas; criação das National Security Letters (Cartas de Segurança Nacional), documentos expedidos pela CIA, FBI ou Departamento de Defesa a entidades ou organizações privadas para repassarem, na integralidade, seus bancos de dados, sem nenhum tipo de autorização judicial e, ainda, vedando que tais destinatários revelem o recebimento de tais cartas; fim da barreira que impedia investigações e vigilância com o propósito de se obter inteligência estrangeira; removeu-se a impossibilidade de se implementar vigilância investigativa contra cidadãos americanos; expandiuse o limite temporal dos mandados de busca e apreensão e ordens de quebra de sigilo telefônico/telemático e implementação de escutas etc.; acesso a grampos e escutas telefônicas53 52 Patriot Act - Title VIII: "[…] dangerous to human life that are a violation of the criminal laws of the United States or of any State […] [intend to] intimidate or coerce a civilian population, […] influence the policy of a government by intimidation or coercion, […] to affect the conduct of a government by mass destruction, assassination, or kidnapping" (UNITED STATES, 2001). 53 Sem a necessidade de se identificar os suspeitos ou alvos das escutas e grampos nas ordens judiciais, o que foi 118 mediantes simples mandados de busca e apreensão; implementação de escutas telefônicas móveis; permissão de que as autoridades apresentem, posteriormente à busca e apreensão, mandados judiciais aos titulares dos bens recolhidos e imóveis invadidos54; qualquer corte localizada no território americano passou a exercer jurisdição para conferir mandados judiciais, permitindo, assim, que as agências nacionais escolham os juízes que mais lhes convenham de acordo com seus interesses, alterando-se o Stored Communications Access Act (18 United States Code § 2701 e seguintes); ordens judiciais de prestação de informações sobre usuários de internet emitida a empresas de telecomunicações foram ampliadas, devendo-se fornecer dados que vão desde o endereço do suspeito até os dados de sua conta bancária e número do cartão de crédito; permitir que o FBI obrigue os bibliotecários a produzirem verdadeiros dossiês, valendo-se de livros, registros em áudio, artigos e demais tipos de documentos para auxiliar nas investigações contra o terrorismo internacional e atividades de inteligência clandestinas. Relativamente ao financiamento de grupos e projetos terroristas, o Patriot Act majorou as penas e ampliou a incidência do tipo penal de lavagem de dinheiro, incorporando todas as transações financeiras destinadas ao tráfico de armas, munição, contrabandos em geral, importação de produtos falsificados, crimes financeiros a distância pela internet, crimes de violência e suborno a autoridades públicas; determinou que estrangeiros acusados de prática de crimes de lavagem de dinheiro sejam proibidos de ingressar nos Estados Unidos; quadruplicou a pena máxima prevista para crimes de contrafação de moeda estrangeira; impôs de normas ao Tesouro Nacional para que obrigasse as instituições financeiras que atuam na América a criar bancos de dados completos sobre transações que possam ter qualquer relação com lavagem de dinheiro; ampliou as hipóteses de confisco de bens de acusados de crimes contra o sistema financeiro; vedou fusões e incorporações de instituições financeiras com um histórico ruim em relação à prevenção de crimes de lavagem de dinheiro; proibiu bancos estrangeiros sem presença física no território dos Estados Unidos (os shell banks); obrigou os bancos americanos a manterem um cadastro atualizado de todos os donos de bancos privados fora dos Estados Unidos que mantenham contas ligadas aos mesmos ou abertas por estrangeiros; vedou transações financeiras diretas destinadas a bancos estrangeiros, devendo, antes, haver um depósito em banco internacional com atuação na América; proibiu a utilização de contas internas de realocação de recursos utilizadas pelos bancos; alargou o conceito de instituição financeira a fim de facilitar a fiscalização dos crimes de lavagem de dinheiro; expandiu a competência da Secretaria do Tesouro Nacional nos Estados Unidos para regular transações financeiras, especialmente aquelas envolvendo estrangeiros e organizações não-nacionais; dentre posteriormente alterado em 2005 com USA PATRIOT and Terrorism Prevention Reauthorization Act. Este sistema de busca e apreensão, conhecido como “sneak and peek search”, foi rechaçado pela juíza Ann Aiken em setembro de 2007 depois que um advogado de Portland, Brandon Mayfield, foi preso por engano após o cumprimento de uma destas ordens, tendo sido reconhecida a violação à Quarta emenda da Constituição de 1787. 54 119 outras medidas de cunho administrativo que fecha o cerco aos crimes contra o sistema financeiro. No que diz respeito ao tratamento com os imigrantes, o Patriot Act promoveu emendas no Immigration and Nationality Act de 1952 a fim de ampliar os poderes do Procurador-Geral do Estado e no Serviço de Imigração e Naturalização (ampliando-se a sua estrutura administrativa, direcionando-lhes um fundo adicional de US$50 bilhões); constrição aos métodos e condições de concessão de visto de entrada nos Estados Unidos, realizando um intercâmbio de informações com o Centro de Identificação de Informações Criminais Interestadual; desenvolvimento de novas tecnologias de identificação de candidatos a obterem novos vistos de entrada no país, facilitando o cruzamento de informações; vedação de entrada em solo americano de indivíduos (e suas famílias) ligados a organizações que apóiem atos terroristas; recomendação aos países de imigrantes com grande incidência de passaportes falsos (como o Brasil) de adoção de novos sistemas de segurança; ampliação do programa de monitoramento de estudantes estrangeiros, potenciais agentes terroristas; criação de uma comissão para estudos sobre adoção de técnicas biométricas de identificação dos indivíduos que entrarem em solo americano; e permitiu às autoridades americanas que estas promovam a custódia preventiva, por tempo indeterminado, de imigrantes ilegais que constituam ameaça à segurança nacional. Um dos grandes objetivos do Patriot Act também é fomentar um compartilhamento de informações entre os diversos órgãos e instituições do governo para proteção e infra-estrutura de combate ao terrorismo, cruzando fronteiras jurisdicionais, alterando-se, inclusive, o Omnibus Crime Control and Safe Streets Act de 1968 (Public Law No. 90-351). Também foram realizadas alterações no Victims of Crime Act (VOCA) de 1984 (42 United States Code 10601 e seguintes), especificamente no tocante à administração e formação do fundo nacional de indenização das vítimas de crimes nos Estados Unidos e suas famílias55. Ressalte-se que o Patriot Act rejeita, expressamente, todas as formas de discriminação contra árabes e muçulmanos que surgiram como uma onda no pós-9/11. Em decorrência da violação à liberdade de associação, impedimento de prestação de serviços e, inclusive, implemento, por parte da sociedade civil, de tentativas de pacificação de grupos acusados de terrorismo ou subversão social, no caso Humanitarian Law Project et al v. John Aschcroft, decidido pela corte federal de Los Angeles em janeiro de 2004, a seção do Patriot Act que trata da vedação de prover assistência e conselho profissionais a acusados de terrorismo e subversão da ordem pública foi declarada inconstitucional, atentando contra a primeira (liberdade de expressão e de exercício da advocacia) e quinta56 emendas da Constituição de 1787. Esta decisão 55 Existe um entendimento no Congresso de que as vítimas de terrorismo deveriam obter o direito de confisco dos bens apreendidos de agentes terroristas. 56 Amendment 5 - Trial and Punishment, Compensation for Takings. Ratified 12/15/1791. No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or 120 foi a primeira a considerar algum dispositivo do Patriot Act inconstitucional desde a sua promulgação seis semanas após 11 de setembro de 2001. O governo do estado-membro da Nova Escócia promulgou uma lei em novembro de 2007 no intuito de proteger as informações pessoais de métodos de coleta do Patriot Act, a The new Personal Information International Disclosure Protection Act. No mesmo sentido, a fim de resguardar o sigilo de informações de cidadãos canadenses presentes nos bancos de dados dos órgãos e empresas do estado-membro da Columbia Britânica, foram feitas emendas na Freedom of Information and Protection of Privacy Act (FOIPPA), delimitando a incidência das medidas de coleta de informação aos cidadãos americanos. Um dos aspectos mais interessantes do Patriot Act é que o mesmo é, em diversas partes, uma lei temporária, que implica na constrição de certas garantias e direitos fundamentais por um determinado período de tempo considerado pelas autoridades como suficiente para implementar as investigações necessárias à limpeza da sociedade de infiltrações terroristas. Assim, o mesmo estava previsto para encerrar sua eficácia acerca de inúmeras medidas em 31 de dezembro de 2005. Alguns meses antes de seu encerramento, era acirrada a disputa entre aqueles desejosos da manutenção permanente do Patriot Act e outros grupos que objetivavam a revisão de inúmeras medidas consideradas agressivas aos direitos humanos. A primeira mudança oficial do Patriot Act se deu em julho de 2005 com o USA PATRIOT and Terrorism Prevention Reauthorization Act (Public Law No. 109-177, H.R. 3199), que implementou mudanças no Intelligence Reform and Terrorism Prevention Act (Public Law 108-458) (IRTPA) de 2004, levando-as, efetivamente, ao Patriot Act original de 2001. Foram criadas novas provisões acerca de penas de morte para terroristas, aumento de segurança em portos marítimos, novas medidas de combate ao financiamento do terrorismo, maiores poderes ao Serviço Secreto e medidas contrárias ao uso de metanfetamina57, dentre outras de caráter mais geral. No entanto, algumas mudanças também foram direcionadas no sentido de ampliar o Patriot Act original, como o aumento dos prazos de rastreamento de informações e acompanhamento investigativo e o adiamento da data de encerramento de eficácia de algumas seções da primeira lei (como a do Terrorista Solitário _ Lone Wolf Terrorist), ambos de 2005 para 2009. Também se observou nova expansão do conceito de terrorismo, a fim de incluir-se o recebimento de indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation (UNITED STATES, 1787). 57 Droga estimulante dos sistema nervoso central empregada pelas autoridades norte-americanas em interrogatórios de suspeitos de envolvimento com atos terroristas. 121 treinamento militar de organizações terroristas. Outra conduta que passou a ser criminalizada foi a de atos de planejamento de ataques terroristas contra sistemas de transporte em massa, o que, evidentemente, atenta diretamente contra o princípio da lesividade que condena a criminalização de atos preparatórios e que não cheguem a gerar dano efetivo. Em julho de 2005, o Senado americano elaborou uma proposição de lei, simultaneamente à Casa Branca, que reautorizava o Patriot Act, mas procedendo a algumas modificações no mesmo, especialmente em relação à necessidade de maior proteção às liberdades civis. Já o documento de produção do Executivo praticamente reeditava a lei de 2001. Então, valendo-se de sua maioria política no Congresso, o presidente Bush aprovou, em março de 2006, uma lei que, supostamente, mesclava as duas proposições, mas, em verdade, rejeitava e removia grande parte das mudanças que versavam na proposta oriunda do Senado. O Patriot Act se tornou permanente. Sobre as diversas controvérsias envolvendo a invocação do Patriot Act, um dos seus maiores problema é o fato de que o mesmo é muito pouco conhecido pela população. Até mesmo os Congressistas Jim McDermott e John Conyers Jr. foram flagrados, como divulgado por Michael Moore (2004) no seu filme Fahrenheit 9/11, dizendo que não lêem a grande maioria das leis que votam e aprovam, pois do contrário o processo legislativo seria bastante lento. Pesquisa realizada pela CNN em 2003 demonstrou que apenas 10% da população norte-americana estava familiarizada com o Patriot Act, e mais de 25% não possuía qualquer conhecimento real do mesmo, enquanto outros 25% estavam muito pouco familiarizados com a lei. Já em 2006, a porcentagem daqueles que estavam familiarizados com o ato aumentou apenas 17%. (USA TODAY, 2006) Já no fim de 2006, o Presidente George W. Bush obteve a aprovação do Military Comissions Act (Public Law No. 109-366), o qual permite a rescisão dos limites de intervenção nos direitos fundamentais através da suspensão do habeas corpus, emprego da tortura e detenção em bases militares americanas no exterior de suspeitos de práticas de atos contrários à segurança nacional dos Estados Unidos da América e seu julgamento por vias inquisitórias. Mas a própria lei não deixa claro se a mesma se aplica, inclusive, aos cidadãos norte-americanos ou tão somente àqueles indivíduos estrangeiros que se encontrem ameaçando a ordem constitucional interna. O seu objetivo é "autorizar julgamentos por uma comissão militar para as violações da lei de guerra e para outros propósitos58” (UNITED STATES, 2006, tradução nossa). Nítida fica a violação ao princípio do juízo natural. A aprovação da chamada Lei da Tortura (Military Comissions Act), autoriza a detenção de 58 To authorize trial by military commission for violations of the law of war, and for other purposes (UNITED STATES, 2006). 122 suspeitos de prática de ato terrorista por tempo indeterminado, permitindo que o próprio Poder Executivo realize a escolha dos métodos a serem utilizados nos interrogatórios, “legalizando”, inclusive, algumas práticas de tortura por parte de agentes da CIA. Com esta nova norma, em verdade, se publiciza as práticas da CIA que já são conduzidas nas bases militares secretas norte-americanas em todo o planeta, as quais, até então, impunham a necessidade da terceirização da tortura, com a CIA valendo-se de agentes de outros Estados, como o Paquistão, para obter, a qualquer custo, as informações desejadas de indivíduos acusados de envolvimento com o terrorismo. Falando sobre a sua importância, o presidente G. W. Bush: Hoje, o Senado mandou um forte sinal aos terroristas de que nós continuaremos a usar cada elemento do poder nacional para perseguir e evitar ataques na América. O Military Comissions Act de 2006 vai permitir a continuação do programa da CIA que tem sido a mais potente ferramenta da América no combate à guerra do terror. Sob este programa, suspeitos de terrorismo têm sido detidos e questionados sobre ameaças contra nosso país. Informações obtidas através do programa têm ajudado a salvar vidas em solo americano e estrangeiro. Ao autorizar a criação de comissões militares, esta norma irá, também, permitir que nós processemos suspeitos de terrorismo por crimes de guerra59. (BUSH apud WIKIPEDIA, Military Comissions Act of 2006, tradução nossa) A Suprema Corte dos Estados Unidos, em decisão de outubro de 2007, no caso “Hamdan vs. Rumsfeld”, declarou que qualquer preso sob custódia do governo americano, em território de qualquer Estado, possui direito à proteção da Convenção de Genebra, cuja os Estados Unidos são signatários e que veda a prática da tortura e de meios insidiosos contra prisioneiros. Hamdan foi custodiado há cinco anos na base militar de Guantánamo suspeito de práticas subversivas contra o governo. Deste modo, a CIA suspendeu, temporariamente, o uso da tortura nos interrogatórios. Porém, em 20 de julho de 2007, o presidente George W. Bush expediu uma ordem executiva, espécie de decreto, regulamentando o Military Comissions Act. Esta ordem executiva implica na retomada oficial pela CIA das práticas de tortura em interrogatórios de suspeitos de envolvimento com atos terroristas, detendo-os pelo tempo que for entendido necessário, retirando-lhes qualquer contato com advogados ou familiares. "Os EUA atuarão dentro da lei. Asseguraremo-nos de que os profissionais têm os instrumentos necessários para fazer seu trabalho dentro da lei", afirmou Bush. 59 Today, the Senate sent a strong signal to the terrorists that we will continue using every element of national power to pursue our enemies and to prevent attacks on America. The Military Commissions Act of 2006 will allow the continuation of a CIA program that has been one of America' s most potent tools in fighting the War on Terror. Under this program, suspected terrorists have been detained and questioned about threats against our country. Information we have learned from the program has helped save lives at home and abroad. By authorizing the creation of military commissions, the Act will also allow us to prosecute suspected terrorists for war crimes (BUSH apud WIKIPEDIA, Military Comissions Act of 2006) 123 "Alguns dirão que estes terroristas já não são um ameaça real contra os EUA. Eu não estou absolutamente de acordo", disse Bush. (GLOBO, G1, 2007) Muitas destas técnicas autorizadas à CIA são vedadas aos militares norte-americanos através do Manual de Conduta Militar, retirando dos mesmos a possibilidade do emprego de choque elétrico, trucidamento, afogamento, estupro, uso de drogas e mutilação para com os indivíduos detidos sob acusação de terrorismo e outros atos atentatórios à ordem pública, mas agora permitindo que as comissões militares formadas pela CIA utilizem destes tipos de artifícios. Tal decreto normativo do Executivo está permeado de trechos bastante subjetivos, proibindo atos intencionais e ultrajantes contra suspeitos detidos apenas quando o seu propósito for humilhar e degradar um indivíduo. Deste modo, práticas como o waterboarding ou técnicas de stress utilizadas na tentativa de se obter informações são aceitáveis, bem como ferir ou espancar qualquer sujeito pelo tempo necessário desde que tais agressões não tragam ao mesmo risco de morte, dano significativo de função ou dor física extrema. Observamos que todas estas práticas autorizadas atentam diretamente contra a Torture Act de 2000 (18 United States Code §§ 2340, 2340A, e 2340B), que torna crime federal, punível com pena de multa e detenção superior a 20 anos (e prisão perpétua ou capital caso a vítima venha a falecer) a prática, por qualquer nacional norte-americano, de atos de tortura ou conspiração para a tortura fora do território norte-americano. Muitos consideram que a adoção de práticas de tortura no processo de interrogatório de suspeitos de prática criminosa é o primeiro passo para tornar as próprias autoridades, as quais deveriam sempre zelar pela preservação da ordem e do progresso do Estado Democrático de Direito, em criminosos. Niccolò Machiavelli fala que a prática da tortura nada mais é do que um crime utilizado como método para solucionar outro crime. Em entrevista à Rede Globo News, Roberto Pimentel, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, declarou que “o pior da tortura é que ela é eficiente” (GLOBO NEWS, 2008). Ainda, ignora-se, por completo, a questão da proibição da utilização da prova ilícita obtida na tortura. Tornam-se cada vez mais comuns os vôos de rendition (secretos, transportando prisioneiros para diversas bases militares secretas em todo o mundo, contando as agências de inteligência americanas com a complacência do governo dos demais Estados aonde se localizam tais bases). Em 17 de julho de 2007, uma nova ordem executiva passou a criminalizar o movimento anti-guerra nos Estados Unidos. Sentindo-se atrapalhado na condução da Administração Pública por constantes manifestações de grupos de direitos humanos e de grupos políticos da oposição ao governo, a Casa Branca determinou o congelamento do patrimônio dos cidadãos e organizações 124 norte-americanos que venham a ameaçar os esforços dos Estados Unidos no processo de estabilização no Iraque. Uma rápida análise dos acontecimentos recentes nos permite vislumbrar que diversos são os exemplos de processos de vigilância e coletânea de informações em massa da população norteamericana, ignorando, por absoluto, todo e qualquer direito constitucional ao sigilo de informações e à intimidade. A National Security Agency dos Estados Unidos (NSA) foi acusada, de acordo com notícias veiculadas em toda a imprensa norte-americana, a partir de denúncia feita pelo USA Today em 10 de maio de 2006, de montar um amplo e secreto banco de dados com registros de ligações telefônicas de todos os usuários das quatro maiores companhias de telefonia do país: AT&T, SBC, Verizon and BellSouth. Estima-se que a montagem deste banco iniciou-se sete meses antes dos ataques de 11 de setembro de 2001, já perfazendo mais de 1,9 trilhões de registros de ligações. Através destes atos ilegais verifica-se a clara violação do direito à intimidade e sigilo de informação, previsto na Emenda n. 4 da Constituição da norte-americana60, e ao Stored communications Act de 1986 (18 United States Code § 2701), o qual veda expressamente a entrega de informações provenientes de bancos de dados ao governo sem que haja um mandado ou sentença judiciais. O governo norte-americano jamais negou nem confirmou tais acusações. Também em maio de 2006 foi noticiado que algumas destas empresas de telefonia que, hoje, encontram-se com diversos processos judiciais contra a NSA acusando-a de furto de informações e outras condutas ilícitas, teriam firmado contratos escusos com a mesma NSA envolvendo a cessão de informações e a permissão de monitoramento de todos os seus servidores de internet, disponibilizando, assim, todo o conteúdo visualizado pelos usuários dessas companhias. Especulase que muitas empresas de telecomunicações já mantêm uma conexão direta com a “black room” da NSA, para onde são redirecionadas as informações de interesse da mesma. A partir destes dados obtidos a NSA ordenou dezenas de milhares de investigações policiais em todo o país, a maioria delas sendo cumprida sem nenhum tipo de mandado judicial. No ano de 2004, o Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) infiltrou-se e montou dossiês de grupos de protestantes contra a Administração Pública norte-americana antes da Convenção Nacional do Partido Republicano, chegando a promover mais de 1.800 prisões e identificações datiloscópicas de manifestantes envolvidos. Este procedimento nada mais foi do que 60 Amendment 4 - Search and Seizure. Ratified 12/15/1791. The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no Warrants shall issue, but upon probable cause, supported by Oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized (UNITED STATES, 1787). 125 um ataque direto à dissidência política e liberdade de expressão na América. O governo nova yorkino chegou a ajuizar uma demanda contra estes atos, requerendo a entrega dos dossiês montados, mas a justiça federal norte-americana negou tal pedido. Já nas últimas duas semanas de 2003, em razão de suspeitas de tentativa de um ataque terrorista na cidade de Las Vegas no reveillon, o FBI (FEDERAL BUREAU OF INVESTIGATION, a polícia federal norte-americana) promoveu, sem autorização judicial, uma coletânea de praticamente todos os registros de hotelaria, aeroportos, agências de carros, lojas de presentes e cassinos que pudessem levar a qualquer pista sobre tais ataques. A partir deste ano de 2008, a CIA e o FBI, em operação conjunta nos aeroportos de todo o território norte-americano, não permitem que nenhum passageiro, cidadão americano ou estrangeiro, embarque em aeronaves portando laptops, PDAs, hand-helds ou discos rígidos portáteis sem antes copiar todo o conteúdo dos drivers de armazenamento de memória destes microprocessadores portáteis. “Em determinada época, diz Beling, o processo inquisitivo converteu-se em um instrumento de poder desconhecedor dos interesses individuais” (TOURINHO FILHO, 2006, p. 92). É exatamente isso que se observa atualmente, o acusado com objeto da investigação cujo foco é promover a sua incriminação. O que se vê é um retorno da administração dos Estados Unidos da América aos tempos do COINTELPRO, sigla formada através de anagrama do Programa de Contra Inteligência norteamericano (Counter Intelligence Program). Oficialmente, o COINTELPRO foi empreendido de 1956 a 1971, perfazendo-se de uma série de projetos secretos e ilegais conduzidos pelo FBI objetivando a investigação e desmantelamento de organizações políticas dissidentes nos Estados Unidos, sob o pretexto de proteger a segurança nacional, prevenir a violência e promover a manutenção da ordem política e social existente. Na verdade, era uma polícia secreta dentro da polícia secreta. Como afirma Hannah Arendt, “a única regra segura num Estado totalitário é que, quanto mais visível é uma agência governamental, menos poder detém; e, quanto menos se sabe da existência de uma instituição, mais poderosa ela é.” (ARENDT, 1989, p. 453). Os alvos envolviam grupos suspeitos de atos subversivos, tais quais os extremistas como o The Ku Klux Klan e o National States Rights Party; comunistas e socialistas, inclusive os de cunho estudantil e não-violentos (Democratic Society, National Lawyers Guild, e Weathermen); nacionalistas, tais como o Partido dos Black Panthers e a República da Nova África; grupos de movimentos civis não-violentos como o de Martin Luther King Jr. e demais movimentos (inclusive evangélicos) que lutavam pelos direitos dos negros (Southern Christian Leadership Conference, National Association for the Advancement of Colored People _ NAACP_, Congress on Racial Equality _ CORE _). 126 O FBI utilizava-se rotineiramente de expedientes de infiltração de agentes no centro das organizações, com o objetivo central de promover o descrédito e desequilíbrio dentro das mesmas; promoção de jogos psicológicos contra as lideranças dos movimentos, plantando informações falsas na imprensa e divulgando informações em nome das organizações combatidas, inclusive através de cartas e telefonemas anônimos; movimentando líderes sociais (pastores, diretores de escola, empregadores etc.) a seu favor contra tais organizações; prisões ilegais de acusados de integrarem estes movimentos, fabricando provas contra os mesmos e prestando depoimentos falsos em seu desfavor; utilização de todos os tipos banco de dados de instituições públicas, escutas ilegais, violações de correspondências, arrombamentos de casas e escritórios etc. para investigar a vida dos suspeitos; e utilização de força excessiva e violência ilegais, promovendo, continuamente, atos de vandalismo, ameaças, tortura (especialmente com sacos plásticos pretos envoltos nas cabeças dos suspeitos, asfixiando-os para obter informações) e assassinatos contra os supostos membros das organizações alvo. Deste modo, qualquer um pode observar que as táticas do COINTELPRO, que após a década de 70 foi oficialmente encerrado, continuaram em exercício com as táticas contra-terroristas da administração Reagan e, hoje, estão cada vez mais dentro da “legalidade” forçada pelo Governo da Casa Branca. É certo que chega a haver um desequilíbrio na relação agente terrorista – Estado uma vez que aquele dispõe do vantajoso elemento surpresa, pode, a seu tempo, concatenar e planejar, meticulosamente, suas ações, pegando o Estado, na maioria das vezes, desprevenido e incapacitado de lidar com situações de grande alarde social. Deste modo, justifica-se, pois, a ausência de contraditório e prática de certos atos de caráter inquisitório na fase de inquérito e condução das investigações. É difícil estabelecer igualdade absoluta de condições jurídicas entre o indivíduo e o Estado no início do procedimento, pela desigualdade real que em momento tão crítico existe entre um e outro. Desigualdade provocada pelo próprio criminoso. Desde que surge em sua mente a idéia do crime, estuda cauteloso um conjunto de precauções para subtrair-se à ação da justiça e coloca o Poder Público em posição análoga à da vítima, a qual sofre o golpe de surpresa, indefesa e desprevenida. Para restabelecer, pois, a igualdade nas condições da luta, já que se pretende que o procedimento criminal não deve ser senão um duelo ‘nobremente’ sustentado por ambos os contendores, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem nos primeiros momentos, apenas para recolher os vestígios do crime e os indícios da culpabilidade do seu autor. (JIMÉNEZ ANSEJO apud TOURINHO FILHO, 2006, p. 49) Entretanto, a atuação do Estado, mesmo nesta fase investigatória, deve-se pautar de acordo com o princípio da legalidade e da humanidade. Observamos, assim, que as leis inspiradas na doutrina de segurança nacional, especialmente 127 as anti-terrorismo, contém dispositivos violadores do princípio da lesividade. O fenômeno decorrente dos ataques de 11 de setembro implicou numa enorme discriminação de todos os povos de origem árabe em toda a Europa e América do Norte. Todos os indivíduos descendentes dos povos do nordeste da África, noroeste asiático e golfo pérsico, ainda que cidadãos norte-americanos, foram, numa absoluta subversão ao esse princípio da lesividade e ao Estado Democrático de Direito, considerados pelas autoridades dos Estados Unidos da América potenciais agentes ou colaboradores de células terroristas. A partir de então, muitos deles se viram obrigados a submeterem-se a atos inquisitivos de interrogatório, concentração e cerceamento dos direitos de livre locomoção na expectativa do governo obter algum tipo de informação útil. As “medidas de segurança”, de caráter preventivo, em prol da segurança nacional, compuseram a denominação utilizada pelas autoridades norte-americanas para justificarem tais atos atentatórios à dignidade da pessoa humana. Uma das três funções precípuas do princípio da lesividade é a proibição de incriminação de simples estados ou condições existenciais. Levada às últimas conseqüências, essa função do princípio da lesividade implica excluir do campo do direito penal as medidas de segurança, uma vez que, como acentua Zaffaroni, um direito penal fundamentado na perigosidade é um direito penal de autor. (BATISTA, 2002, p. 93-94) 5.4.1.2.2 – Suspensão do Estado Constitucional Nos Estados Unidos, a lei marcial é limitada por diversas decisões judiciais que foram conferidas entre a Guerra Civil norte-americana e a Segunda Guerra Mundial. É o Insurrection Act (10 United States Code §331-335) que compõe o conjunto de leis que regulam o poder do Presidente dos Estados Unidos da América de intervir, através da atuação militar, nos estadosmembros norte-americanos em casos de fraqueza legislativa, insurreições ou rebeliões. No geral, o Insurrection Act procurava limitar, ao máximo, o poder do Executivo, confiando aos estadosmembros e aos governadores locais a responsabilidade inicial para lidar com situações desta monta. Em 1878, o Congresso Nacional norte-americano aprovou o Posse Comitatus Act (18 United States Code §1385), o qual proíbe o envolvimento de autoridades militares nas questões do governo civil, incluindo a condução da justiça e da aplicação da lei, sem a prévia aprovação do Congresso, cominando sanção de exoneração do cargo para aqueles que viessem a desrespeitá-lo. Em outubro de 2006, foi aprovada o John Warner Defense Authorization Act H.R.5122 128 (public law 109-364), o qual permite ao Presidente norte-americano a decretação de estado de emergência pública, ou o “Estado de Segurança Nacional”, através do qual autoridades militares estatais podem tomar o controle do Estado sem a necessidade de qualquer consentimento dos governadores dos estados-membros da federação ou de outras autoridades, interferindo em todos os entes da federação, podendo enviar tropas a qualquer parte do território nacional, assumir o controle das unidades estaduais da Guarda Nacional. O presidente pode empregar as Forças Armadas, incluindo a Guarda Nacional no serviço Federal, para restabelecer a ordem pública e fazer cumprir as leis dos Estados Unidos quando, como resultado de um desastre natural, epidemia ou outra emergência séria da saúde pública, ataque terrorista ou incidente, ou outra condição em qualquer estado ou território dos Estados Unidos, o presidente determine que tenha ocorrido violência numa extensão tal que as autoridades constituídas do estado ou território sejam incapazes de (“se recusem” ou “falhem em”) manter a ordem pública, para reprimir, em qualquer estado, qualquer insurreição, violência, associação ilegal ou conspiração61.” (UNITED STATES, 2007, tradução nossa) Esta lei também militariza a fronteira com o México, principal ponto de entrada irregular de indivíduos no território norte-americano, e torna mais simples o processo de detenção de manifestantes contrários ao governo, de estrangeiros ilegais no país, potenciais agentes terroristas e outros “indesejáveis”, permitindo a prisão por tempo indeterminado, sem julgamento, de “dissidentes políticos”. Para tanto, diversas são as instalações construídas, em tempo recorde, para servirem como campos de detenção para qualquer um que se oponha às autoridades nacionais. Assim, os imigrantes ilegais passam a se tornar um dos principais alvos desta nova política de segurança nacional, construindo-se novas instalações de Vigilância para a Imigração e Emergência. Neste esteio, observa-se que o Congresso autorizou, em 2007, por via legislativa, a construção de um muro de mais de 1.200 km percorrendo áreas limítrofes entre os dois Estados (Estados Unidos e México) que são de difícil fiscalização e patrulhamento pelas autoridades norteamericanas, na tentativa de frear as “hordas invasoras” de imigrantes ilegais que, muitas vezes, possam conter indivíduos com intuitos diferentes dos de “fazer a América”, mas, na verdade, fazer sofrer a América através do terrorismo. Com este procedimento, foi autorizado, através desta public law 109-364, o gasto de mais de US$ 600 bilhões pelo Pentágono para cobrir os gastos com as ações militares no Iraque, 61 The President may employ the armed forces, including the National Guard in Federal service, to— ‘‘(A) restore public order and enforce the laws of the United States when, as a result of a natural disaster, epidemic, or other serious public health emergency, terrorist attack or incident, or other condition in any State or possession of the United States, the President determines that— ‘‘(i) domestic violence has occurred to such an extent that the constituted authorities of the State or possession are incapable of maintaining public order; and ‘‘(ii) such violence results in a condition described in paragraph (2); or ‘‘(B) suppress, in a State, any insurrection, domestic violence, unlawful combination, or conspiracy if such insurrection, violation, combination, or conspiracy results (UNITED STATES, 2007). 129 Afeganistão e no próprio território norte-americano, bem como a ampliação e codificação de acordos de transferência de tecnologia, amplificando-se o processo de controle de multidões e outros armamentos projetados para reprimir opositores. Observamos que o governo dos Estados Unidos está construindo uma espécie de etát gendarme, um estado de polícia permanente a fim de obter maior liberdade de ação na manutenção da ordem pública, utilizando, para tanto, o contexto de guerra ao terrorismo. Em 2007, foi editada uma nova proposição de lei, o 2008 Defense Authorization Bill, H.R. 1585, o qual repele as mudanças feitas no Posse Comitatus e Insurrection Acts através do John Warner Defense Authorization Bill, mas o mesmo foi vetado e prontamente engavetado pelo Presidente G. W. Bush. "O projeto de lei que o Congresso me enviou iria acabar com uma das ferramentas mais valiosas da guerra contra o terror", disse o presidente no seu programa semanal de rádio transmitido neste sábado. "Por isso vetei." [...] "Essa não é a hora para o Congresso abandonar práticas que se provaram eficientes na tarefa de manter a América segura" [...] "Nós criamos procedimentos alternativos para questionar os operantes mais perigosos da Al-Qaeda, particularmente aqueles que podem ter conhecimento de ataques planejados para nosso território", disse Bush. "Se nós acabarmos com esse programa e restringirmos os métodos usados pela CIA àqueles descritos no manual militar, poderíamos perder informações vitais de terroristas de alto escalão da al-Qaeda, e isso poderia custar vidas americanas." (PRESS, 2008) Destarte, o Posse Comitatus Act foi revogado pelo John Warner Defense Authorization Act, atuando, assim, contra a enorme tradição norte-americana de defesa da democracia e construção jurisprudencial, eliminando um texto normativo que servia como uma das melhores proteções contra as intenções de usurpação do poder por uma administração inescrupulosa e negligente, um Poder Executivo que venha a planejar a força como um instrumento para fazer cumprir suas ordens. Este processo que tornou mais fácil a decretação da lei marcial através da invocação da Insurrection Act atenta diretamente contra o princípio federativo norte-americano, retirando dos prefeitos e governadores o comando de emergências que sempre foram de sua competência. Verifica-se que não mais se respeita o artigo I da Constituição de 1787, o qual dispõe, em sua seção 8, sobre os poderes privativos do Legislativo, dentre os quais estão a faculdade de declarar guerra, editar as leis relativas à gestão das forças armadas e, principalmente, convocar os militares para a execução das leis federais, encerrar insurreições e repelir invasões62. É, no mínimo, curioso o fato de que a aprovação da public law 109-364 se encaixa com precisão nas disposições presentes na Diretiva Presidencial de Segurança Nacional e Interna (NSPD 51, HSPD 20), promulgadas pelo Presidente Bush em maio de 2007. Nesta, uma vez declarada uma situação de emergência pelo presidente, a NSPD 51, automaticamente, instaura a lei marcial sob a 62 Article. I. - The Legislative Branch Section 8 - Powers of Congress: To provide for calling forth the Militia to execute the Laws of the Union, suppress Insurrections and repel Invasions (UNITED STATES, 1787). 130 autoridade do U.S. Department of Defense e da Casa Branca, o que suspende o governo constitucional sob as acomodações da Continuidade de Governo, conferindo-se, assim, poderes de nível excepcional e anômalo ao presidente e seu vice imediato. Houve, ainda, um retorno do Sedition Act de 1918, o qual durou até 1921, uma espécie de emenda ao Espionage Act de 1917, aprovada às pressas pelo presidente Woodrow Wilson em tempos de guerra, o qual agredia amplamente a Primeira emenda da Constituição de 1787: “O Congresso não deverá editar nenhuma lei ... restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa63.” (UNITED STATES, 1787, tradução nossa). Este Sedition Act, em suma, proibia que qualquer americano utilizasse linguagem considerada desleal, abusiva, agressiva ou desmerecedora relativamente ao Governo dos Estados Unidos, sua bandeira ou forças armadas. Assim, sob a camuflagem de definir o papel dos militares no caso de uma “emergência flagelante”, o John Warner Defense Authorization Act cria novos poderes, fundamentalmente discricionários, para o presidente, pautando um perigosíssimo caminho para o arbítrio e totalitarismo típico dos regimes de repressão, situação esta impensável no contemporâneo contexto do Estado Democrático de Direito, principalmente no país dos pais da liberdade e democracia modernas. Estes poderes irrestritos do presidente lhe permite a suspensão da aplicação de diversas leis civis tanto no nível federal quanto no nível estadual, administrando sem a necessidade de prestar contas e sem a existência de nenhum tipo de controle, prévio ou posterior, quer seja legislativo ou judicial. A implementação desta doutrina da segurança nacional, para muitos críticos, nada mais é do que a definição dos contornos da ditadura democrática da Casa Branca na América. 5.4.1.3 – Clamor Social Ameaças das piores montas, como ceifar a vida de familiares, a fim de enganar suspeitos e manipulá-los mentalmente durante um interrogatório configuram ato de tortura? E a utilização de força militar contra patrocinadores estatais e paraestatais do terrorismo, é lícita? Uma disciplina do curso de mestrado em Direito da Universidade norte-americana de Georgetown, em Washington, “A lei de 24 Horas”, aborda um estudo pormenorizado da legitimação 63 First Amendment to the United States Constitution Ratified 12/15/1791 Congress shall make no law... abridging the freedom of speech, or the press (UNITED STATES, 1787). 131 das intervenções promovidas pelo Estado através de condutas anti-humanitárias praticadas por um agente da Unidade de Contra-Terrorismo dos Estados Unidos da América demonstradas no seriado da Fox “24 Horas”. No seu dia-a-dia, Jack Bauer, agente federal da Counter Terrorist Unit (Unidade Contra Terrorista) ligada ao Pentágono norte-americano, personagem protagonista da série altamente renomada e premiada ao longo de diversas temporadas, emprega, corriqueiramente, atos que ignoram os direitos humanos fundamentais a fim de, a qualquer custo, identificar e cessar as ameaças terroristas a seu Estado, torturando suspeitos para obter qualquer informação indiciária, invadindo consulados e embaixadas estrangeiras em solo americano, promovendo seqüestros (abduções) internacionais, prisões ilegais, etc. Produções de Hollywood desta monta apenas retratam uma situação que vem se tornando o cotidiano da sociedade norte-americana. Ademais, o cinema nada mais é do que o reflexo dos anseios e aflitos sociais. O fato do estrondoso sucesso da série “24 Horas” estende-se além da sua excelente qualidade de direção, produção e atuação. Os roteiros e adaptações utilizados se relacionam diretamente com questões presentes no corpo social, seja a favor ou contra as medidas empreendidas adotadas pelas autoridades dos Estados Unidos no processo de prevenção ao terrorismo, a sua discussão em sede acadêmica, como ocorre na Georgetown University, somente demonstra a importância e pertinência do assunto na contemporaneidade. Caractere extremamente relevante a ser considerado acerca de ações terroristas é o fato de comporem situações de alta comoção social, havendo, assim, um endosso tácito por parte da maior parte da população sobre a extirpação absoluta dos direitos do agente criminoso. Por exemplo, num plano similar, em se tratando de crimes comuns, muitas vezes envolvendo casos de organismos criminosos organizados, pode-se elencar, no Brasil, os fatos envolvendo a morte do garoto João Hélio e do jornalista Tim Lopes. Pôde-se observar, em decorrência de ambos os crimes, um latente desejo de vingança presente na população brasileira, desejo este reproduzido incessantemente, durante várias semanas, pela mídia e representantes políticos do Congresso Nacional. Para muitos, tal vingança poderia (ou deveria) se materializar mediante violentas agressões aos direitos individuais do cidadão durante todo o procedimento de investigação policial, processo e julgamento judiciais dos envolvidos acusados, destruindo princípios fundamentais de processo penal como o do estado de inocência, contraditório e ampla defesa, verdade real e publicidade. Para ilustrar estes fatos, basta verificar pesquisa realizada pelo Jornal “O Globo” em março deste ano, veiculada pela Folha Online (2008), a qual informa que 40% dos brasileiros que possuem curso superior e que foram entrevistados são favoráveis aos métodos de tortura, sendo que, no geral da população universo pesquisada, 26% aprovam o emprego da tortura por parte das autoridades policiais. O mesmo ocorreu na sociedade civil dos Estados Unidos da América que, revoltada com o 132 desafio a sua soberania nacional com os ataques de 11 de setembro de 2001, imediatamente apoiou as decisões políticas e militares envolvendo a Guerra do Afeganistão, motivada pela caçada a Osama bin Laden e os demais líderes do Al Qaeda. Observou-se, assim, um afastamento dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, o do devido processo legal, que sempre foi tão preservado na tradição jurídica norteamericana, presente naquele ordenamento de 1787. 133 6 – LEGITIMAÇÃO DO DIREITO A fim de entendermos se as legislações voltadas para a suspensão de direitos e garantias fundamentais, mesmo em nome de uma causa tão séria como o resguardo da segurança nacional contra o terrorismo, é necessário que se proceda a um breve estudo sobre a legitimação da intervenção do Estado na esfera pessoal dos indivíduos. 6.1 – Legitimidade do Direito e Princípio da Legalidade Ressalte-se, a priori, que o princípio da legalidade não se confunde com a legitimidade do Direito, como explica Álvaro Cruz: Fica claro que o papel da esfera pública como elemento social de aferição da capacidade do direito de garantir a sujeição da sociedade por meio de uma fundamentação advinda do resgate racional de pretensões de validade desse direito. Assim, a legitimidade jurídica afasta-se do conceito estrito de legalidade. (CRUZ, 2003, p. 461) O princípio da legalidade é um dos regentes de todo ordenamento jurídico de qualquer Estado, constituindo-se numa das maiores expressões do Estado Democrático de Direito, através do qual ocorre a preeminência da lei64, obrigando todo e qualquer agente público a condicionar toda a sua esfera de atuação nos limites que são, anteriormente, estabelecidos pelo próprio povo mediante a via normativa. O antecedente mais remoto da separação de poderes encontra-se em ARISTÓTELES, que considera injusto e perigoso atribuir-se a um só indivíduo o exercício do poder, havendo também em sua obra uma ligeira referência ao problema da eficiência, quando menciona a impossibilidade prática de que um só homem previsse tudo que nem a lei pode especificar (DALLARI, 2003, p. 216) Durante toda a Antigüidade e período medieval, a legitimidade do Direito residiu na tradição e costumes dos povos. Havia uma ligação veemente entre o sagrado e as autoridades sociais, como nos casos dos faraós egípcios, reis incas e astecas e do catolicismo durante a Idade Média. 64 Há, porém, casos em que a referência à lei na Constituição [...] não exclui a possibilidade de que a matéria seja regulada por um ‘ato equiparado’, e ato equiparado à lei formal, no sistema constitucional brasileiro atual, será apenas a lei delegada (art. 68) e as medidas provisórias, convertidas em lei (art. 62). (SILVA, 2003, p. 420). Hoje, nosso texto constitucional, com a redação dada pela EC n. 32/01, proíbe, expressamente, a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito penal (art. 62, § 1.º, I, "b" CRFB/88). 134 O batismo de Clóvis, rei dos francos, marcando sua adoção ao cristianismo e a aliança do poder da realeza com a Igreja Romana tem profunda importância histórica, marcando o início progressivo da afirmação do catolicismo na Europa Ocidental. O poder secular absolvia uma esfera mítica, dando-se contornos de sagrado por meio de rituais de purificação. A sanção estatal ganha contornos religiosos. A ligação do direito à religião se torna fenômeno praticamente indistinguível. (CRUZ, 2003, p. 464) De acordo com as teorias da sociedade natural, desenvolvidas por Aristóteles, Cícero e São Tomás de Aquino, a espécie humana possui a imanente necessidade de se relacionar com os demais seres humanos, naturalmente (e também mediante um processo racional de vontade) buscando o apoio comum. Repetindo Aristóteles, Aquino afirmou que a vida solitária é sempre exceção, desenvolvida por semi-deuses ou verdadeiras “bestas humanas”. Nesta concepção, a associação entre os homens constitui uma condição essencial de vida. “Só em tais uniões e com o concurso dos outros é que o homem pode conseguir todos os meios necessários para satisfazer as suas necessidades e, portanto, conservar e melhorar a si mesmo, conseguindo atingir os fins de sua existência” (DALLARI, 2003, p. 11). Porém, com o Renascimento, Humanismo e Reforma Protestante, a justificação de ação do Estado passou a residir no direito. O princípio da legalidade tem origem no jusnaturalismo do século XVII, quando surge a idéia de que o Estado deve obedecer à soberania popular, um racionalismo que prega a necessidade de se valorizar e promover os direitos individuais, intangíveis por quem quer que seja em decorrência da sua universalidade e anterioridade à formação do Estado, intrínsecos à natureza do próprio homem. Este posicionamento, consolidado com a Revolução Francesa e difundido pelos seus ideais, serviu como forte combatente às antigas monarquias absolutistas, nos moldes do antigo regime governamental que se instaurava por praticamente todo o continente europeu. Celso Ribeiro Bastos afirma que A sujeição do próprio Estado à vontade dimanada de um de seus órgãos, o Legislativo, só foi possível ao termo de um longo processo de corrosão do absolutismo monárquico. Foi, portanto, o advento do Estado Constitucional que tornou possível falar-se de um autêntico princípio da legalidade (BASTOS apud SILVA, 2002) A despeito das defesas ao autoritarismo absolutista que promovia, Thomas Hobbes afirmou que qualquer tipo de ação só poderia vir a sofrer algum tipo de sanção caso a mesma fosse, previamente, condicionada a tal. Destas relações entre o pecado e a lei, e entre o crime e a lei civil, pode inferir-se em primeiro lugar, que onde acaba a lei acaba também o pecado. Em segundo lugar, que onde acaba a lei civil acaba também o crime." (HOBBES apud SILVA, 2002) 135 De acordo com Hobbes, todos os indivíduos, livres e iguais, decidiram unir-se e abrir mão de prerrogativas de exercício de direitos em nome de uma esfera superior, o Estado, criado através deste pacto social. Em sua obra Leviatã, de 1651, ele desenvolve a idéia de que, em razão da igualdade, todos os homens são egoístas e agressivos em seu estado de natureza, razão pela qual constituem perene ameaça uns aos outros. Mas como este homem também é racional, em busca de se proteger através da promoção da paz, ele realiza o contrato social, uma mútua transferência de direitos. O Estado65 passa a ter o papel de proteger e zelar pelo bem dos seus súditos. É o princípio da legalidade que propicia a defesa dos cidadãos contra as arbitrariedades e o despotismo do governante. Este princípio serve de legitimação da atuação e relação do Estado para com seus nacionais. Para os contratualistas, há a negativa do impulso associativo natural. Ao lado do problema do fundamento do poder, a doutrina clássica do Estado sempre se ocupou também com o problema dos limites do poder. Problema que geralmente é apresentado como problema das relações entre direito e poder (ou direito e Estado). (BOBBIO apud SILVA, 2002) Os positivistas, ao negarem as idéias de direito natural, terminaram criando a supremacia da lei como fonte máxima e hierarquicamente superior dentre as demais fontes de direito. Na verdade chegou-se ao ponto de que tudo que não pudesse ser resolvido haveria de assim permanecer em função da legalidade estrita, ou em outras palavras, o que não tem solução solucionado está pela legalidade. Hans Kelsen foi, sem dúvida, o maior propalador desta idéia de primazia da lei [...] (SILVA, 2002) O princípio da legalidade visa a assegurar, pois, a igualdade (em decorrência das características de generalidade e abstração da lei) e a segurança jurídica. A vitalidade das instituições democráticas está ligada à lei e à obediência à mesma. A importância da segurança jurídica é bem evidente, bastando ressaltar que sem a mesma a angústia social seria de tal ordem que inviabilizaria a vida em sociedade. [...] As garantias que este princípio propicia ao cidadão também são uma forma de segurança. Com a atividade estatal limitada aos mandames legais e com o aumento crescente, absurdo até, da interferência do Estado na sociedade civil, a previsibilidade de suas atitudes são da maior importância. (SILVA, 2002) Norberto Bobbio, citado por Alexandre Rezende Silva, defende arduamente o princípio da legalidade O governo das leis celebra hoje o próprio triunfo na democracia. E o que é a democracia se não um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos conflitos sem 65 Hobbes destaca-se dos demais contratualistas, que remontam a Platão, por defender, diante do estado natural, o mau governo, espelhado no absolutismo da sua época, afirmando que este, em qualquer circunstância, deveria sempre ser obedecido. 136 derramamento de sangue? E em que consiste o bom governo democrático se não, acima de tudo, no rigoroso respeito a estas regras? Pessoalmente não tenho dúvidas sobre a resposta a estas questões. E exatamente por não ter dúvidas, posso concluir tranqüilamente que a democracia é o governo das leis por excelência. No momento mesmo em que um regime democrático perde de vista este seu princípio inspirador, degenera rapidamente em seu contrário, numa das tantas formas de governo autocrático de que estão repletas as narrações dos historiadores e as reflexões dos escritores políticos. (BOBBIO apud SILVA, 2002) “Pretende-se, através da norma geral e abstrata, e, por isso mesmo, impessoal, editada pelos representantes do povo, garantir que a atuação do Estado nada mais seja que a concretização dessa vontade geral.” (VARGAS, 2002, p. 77). O princípio da legalidade passou a ser visto como expressão da regra limitadora do campo de atuação do Estado, como garantidor dos direitos individuais contra os mandos e desmandos dos agentes públicos. Já que todo o poder emana do povo, as autoridades nada mais são do que representantes dos nacionais de um Estado. Esse princípio é o antídoto natural do poder monocrático, pois tem como raiz a idéia de soberania popular e de exaltação da cidadania. Nesta última, na cidadania, se consagra a radical mudança do sistema de poder [ocorrida no Brasil], ou seja, a ditadura militar, assentado no arbítrio e na tirania, durantes mais de duas décadas. (VARGAS, 2002, p. 77) A partir da segregação das funções do Estado com o Liberalismo francês, cabe ao Poder Legislativo, e a nenhum outro, exercer, impessoalmente, essa representação dos interesses públicos na esfera política, materializando-os no ordenamento e criando mecanismos legais de alcançá-los. Dizia o contratualista John Locke: Embora em uma comunidade constituída, erguida sobre sua própria base e atuando de acordo com a sua própria natureza, isto é, agindo no sentido da preservação da comunidade, somente possa existir um poder supremo, que é o legislativo, ao qual tudo o mais deve ficar subordinado, contudo, sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram. Porque sendo limitado qualquer poder concedido como encargo para conseguirse certo objetivo, por esse mesmo objetivo, sempre que se despreza ou contraria manifestamente esse objetivo, a ele se perde o direito necessariamente, e o poder retorna às mãos dos que o concederam, que poderão colocá-lo onde o julguem melhor para a garantia e segurança próprias. E, nessas condições, a comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e atentados de quem quer que seja, mesmo dos legisladores, sempre que forem tão levianos ou maldosos que formulem planos contra as liberdades e propriedades dos súditos; porque, não tendo qualquer homem ou sociedade homens o poder de renunciar à própria preservação, ou consequentemente, os meios de fazê-lo, a favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de outrem, sempre que alguém experimente trazê-los a semelhante situação de escravidão, terão sempre o direito de preservar o que não tinham o poder de alienar, e de livra-se dos que invadem esta lei fundamental, sagrada e inalterável da própria preservação em virtude da qual entraram em sociedade. E assim pode dizer-se neste particular que a comunidade é sempre o poder supremo, mas não considerada sob qualquer forma de governo, porquanto este poder do povo não pode nunca ter lugar senão quando se dissolve o governo. (LOCKE, 1991, p. 275) O principal entendimento doutrinário e jurisprudencial é de que não cabe, senão ao próprio legislador, apreciar a justiça de uma lei, de modo que o Judiciário deve, apenas, limitar-se a aplicá- 137 66 la independentemente de juízos pessoais: patere legem quam fecisti . É curioso, entretanto, que essa mesma descrença não colha as Declarações de Direitos fundamentais que, ou repousam num Direito transcendente, ou na communis opinio dos jurisconsultos e políticos. Uma análise, todavia, de certas decisões judiciais, mormente da Corte Suprema dos Estados Unidos e de Cortes Constitucionais européias, como a alemã, revela que às vezes os tribunais encontram fórmulas sutis para declarar a inconstitucionalidade de leis desarrazoadas, com base em fórmulas como o due process of law, ou em princípios como o de igualdade. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 109) Deste modo, o Legislativo é colocado como o Poder central, superior aos demais e o legitimado, pelo próprio povo, a construir a sociedade nos moldes de seu interesse. Neste sentido, Locke: Em todos os casos, enquanto subsiste o governo, o legislativo é o poder supremo; o que deve dar leis a outrem deve necessariamente ser-lhe superior; e desde que o legislativo não o é de outra qualquer maneira senão pelo direito que tem de fazer leis para todas as partes e para qualquer membro da sociedade, prescrevendo-lhes regras às ações e concedendo poder de execução quando as transgridem, o legislativo necessariamente terá de ser supremo, e todos os outros poderes em membros ou partes quaisquer da sociedade dele derivados ou a ele subordinados (LOCKE, 1991, p. 275) Os ensinamentos de Locke foram seguidos durante décadas, inspirando a sociedade mundial através de diversos filósofos e juristas. Depois, com Montesquieu, foram retomadas as idéias de Aristóteles e teorizada a separação das funções do Estado, que, de acordo com Dallari (2003), era um fator considerado indispensável pelo mesmo, ainda que fosse o próprio povo a exercer esses três poderes. A liberdade política somente existe nos governos moderados. Mas nem sempre ela existe nos governos moderados. Só existe quando não se abusa do poder, mas é uma experiência eterna que todo homem que detém o poder é levado a dele abusar: e vai até onde encontra limites. Quem o diria? A própria virtude precisa de limites. Para que não se abuse do poder é necessário que pela disposição das coisas o poder limite o poder. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistrados, o Poder legislativo está unido ao Poder Executivo, não há liberdade pois é de esperar que o mesmo monarca ou assembléia faça leis tirânicas e as execute tiranicamente. Não há também liberdade, se o poder de julgar não está separado do Poder legislativo e do Executivo. Se aquele que estiver unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos será arbitrário, pois o juiz será também o legislador. Se o poder de julgar estiver unido ao Poder executivo, o juiz terá a força de um opressor (MONTESQUIEU apud SILVA, 2002). Assim como antes, as reflexões do francês e contratualista Montesquieu receberam enorme aceitação em toda a filosofia e política das décadas subseqüentes. Em uma verdadeira política de legalidade, anula-se o direito de resistência contra o direito 66 “Suporta a lei que fizeste”, adágio típico do liberalismo político, constitui a síntese do princípio da legalidade. 138 injusto: o que importa é que as regras estejam sendo cumpridas. Quem quiser opor resistência, mas não podendo, basta colocar no Legislativo representantes capazes de elaborar leis que expressem o ideal de justiça. (VARGAS, 2002, p. 78) Mais tarde surgiu, ainda mediante a idéia do Contrato Social, a idéia de lei enquanto vontade geral do povo construída por Rousseau. A vontade geral é a expressão máxima da soberania, presente no vínculo institutivo do Estado. Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, por isso entendo que a Lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas, e jamais um homem como um indivíduo ou uma ação particular. Desse modo, a Lei poderá muito bem estatuir que haverá privilégios, mas ela não poderá concedê-los nominalmente a ninguém; a Lei pode estabelecer diversas classes de cidadãos, especificar até as qualidades que darão direito a essas classes, mas não poderá nomear este ou aquele para serem admitidos nelas; pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode eleger um rei ou nomear uma família real. Em suma, qualquer função relativa a um objeto individual não pertence, de modo algum, ao poder legislativo. (ROUSSEAU apud SILVA, 2002) Rousseau, segundo Cruz (2003b), agrega o elemento da modificabilidade ao contratualismo a partir da sua oposição ao fato de que uma só geração viesse a vincular todas as subseqüentes através de um pacto que não acompanha as mudanças sociais e suas necessidades voláteis com o passar do tempo. Deste modo, o Poder Legislativo viria a socorro do povo, mediante a soberania popular, para sempre adequar as normas às suas vontades, residindo, aí, a legitimação do poder. O interesse do Estado passa a ser, pois, a vontade geral que, de acordo com Rousseau, reside no bem comum67. Deste modo, a finalidade de toda a legislação passa a ser a liberdade e a igualdade. É neste ponto que a se fala na supremacia do interesse público sobre o privado. Só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é o bem comum. O que generaliza a vontade geral é menos o número de votos do que o interesse comum que os une. – A vontade geral é sempre certa e tende sempre à utilidade pública – Por que é sempre certa a vontade e por que desejam todos constantemente a felicidade de cada um, senão por não haver ninguém que não se aproprie das palavras de cada um e não pense em si mesmo ao votar por todos [...]. A vontade geral, para ser verdadeiramente geral, deve sê-lo tanto no objeto quanto na essência, deve partir de todos para aplicar-se a todos. (ROUSSEAU apud SILVA, 2002) Também Kant preocupou-se com a legitimidade do Direito, afastando-se das concepções religiosas e metafísicas, aproximando-se da moral e dos interesses de auto-afirmação do livrearbítrio do homem. 67 De acordo com Habermas citado por Cruz (2003b), esta idéia de orientação de todos os cidadãos para o bem comum é irrisória em tempos de pluralismo jurídico e sociedades complexas. “[...] a produção e a reprodução dessa sociedade altamente complexa tornou-se possível não pela nossa efetiva e permanente participação nas decisões públicas, mas, ao contrário, como demonstra Niklas Luhmann, por um processo interno de diferenciação e especialização funcionais da sociedade em diversos subsistemas sociais” (CARVALHO NETTO, 2003, p. 144). 139 O direito natural era fundamentado na autonomia racional do homem, que passava a conduzir-se não apenas pelo temor ao poder sancionatório do direito, mas também e principalmente pela ação intrasubjetiva da ética e da moral individual. Assim, o direito natural fundando na autonomia humana substitui o direito natural calcado na metafísica religiosa de autores como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Para Kant, a base do direito era o contrato, sendo o direito privado o principal eixo do ordenamento jurídico. (CRUZ, 2003, p. 466) Foram estas as principais influências, juntamente com Voltaire, D’argenson, Helvetius, Malby, Condorcet que inspiraram as teorias constitucionalistas modernas. O art. 5º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o qual se encontra em vigor no ordenamento francês por força do Preâmbulo da Constituição de 1958, expõe: “A lei não proíbe senão as ações prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que não é proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.” (FRANÇA, 1789). Já o art. 29.2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe: No exercício de seus direitos e no desfrute de suas liberdades, toda pessoa estará sujeita somente às limitações estabelecidas pela lei com o único fim de assegurar o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos demais, e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral em uma sociedade democrática. (ONU, 1948) O ordenamento jurídico brasileiro adota o princípio da legalidade em seu art. 5º, II, ao enunciar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL, 1988). E a esfera do Poder Executivo, tanto quanto as demais, deve-se ater, em todas as suas condutas, intimamente dentro dos limites do poder de agir que lhe é conferido pela lei. Neste sentido, Seabra Fagundes: Todas as atividades da Administração Pública são limitadas pela subordinação à ordem jurídica, ou seja, à legalidade. O procedimento administrativo não tem existência se lhe falta, como fonte primária, um texto de lei. Mas não basta que tenha sempre por fonte a lei. É preciso, ainda, que se exerça segundo a orientação dela e dentro dos limites nela traçados... Para Duguit, o princípio da legalidade, prevalecente hoje em todos os povos civilizados, significa subordinação à lei, mas entendida esta no sentido material (norma de caráter geral e abstrato), só assim exprimindo uma real garantia do indivíduo contra o arbítrio do poder público. Mas, cabe lembrar, esse ponto de vista, embora doutrinariamente o melhor, não corresponde praticamente à conceituação atual da legalidade, acolhida nas diversas organizações políticas. O chamado princípio da legalidade se tem entendido como o condicionamento de toda atividade à lei no sentido formal (regra emanada do órgão legislativo), não havendo meio juridicamente utilizável para estabelecer e manter aquela distinção. A lei formal obriga, protegida pelas mesmas sanções que asseguram o cumprimento da lei material. (FAGUNDES apud VARGAS, 2002, p. 78) Álvaro Cruz (2003b) expõe que, para Habermas, a instância formal do Direito não é suficiente para legitimar o ordenamento jurídico como aponta Weber. Conforme ensina o 140 68 procedimentalismo e nós veremos mais à frente , a legitimidade do Direito está na participação de todos os cidadãos no procedimento legislativo, atuando em conjunto na esfera discursiva com o objetivo de reconhecer a racionalidade dos argumentos vencedores e adotá-los. 6.2 – Teorias Clássicas de Fundamentos dos Direitos humanos Os direitos humanos fundamentais dividem-se, basicamente, em dois grandes grupos no que tange à sua fundamentação. Burgoa afirma existir diversas teorias para solucionar a questão da fundamentação, origem formal das prerrogativas individuais, sendo, porém, apenas variantes de duas teses opostas: a jusnaturalista e a estatista. Sabe-se que a Declaração francesa de 1789 é de inspiração direta do jusnaturalismo; o homem nasce com direitos naturais. O Estado apenas os reconhece. A outra teoria, estatista, parte de um critério oposto, negando qualquer direito que o cidadão possa opor ao Estado, forma política e jurídica em que o povo se organiza. O Estado, no exercício do poder soberano, cujo titular é o povo, outorga aos cidadãos determinadas prerrogativas, que os colocam a salvo de arbitrariedades das autoridades. Tais prerrogativas, os direitos públicos subjetivos, derivam da autolimitação do poder do Estado. O Professor Marcelo Galuppo adota terminologias de cunho mais abrangente e filosófico, elencando o Comunitarismo e o Liberalismo. No comunitarismo, os direitos fundamentais decorrem exclusivamente de uma condição inerente à natureza do homem. A atuação do Estado em relação à existência dos mesmos reside no dever deste protegê-los, garanti-los e restaurá-los coercitivamente quando violados: Na verdade, o Estado contemporâneo nasce, como se viu, de uma filosofia política que o justifica exatamente pela necessidade de dar proteção aos direitos fundamentais. Lembre-se o art. 2º da Declaração de 1789: “O fim de qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem”. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 31) Art. 2º Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.” (FRANÇA, 1789). O Comunitarismo, partindo do pensamento aristotélico no qual os homens somente potencializam sua condição a partir do momento em que integram a polis, ou seja, desenvolvem a 68 Vide item 6.4 - Fundamentação e conceito dos direitos fundamentais no viés procedimentalista. 141 atividade política, estabelece que [...] os Direitos Humanos são categorias que, na comunidade, atribuem ao homem certas características comuns que configuram sua identidade, categorias essas produzidas pela própria comunidade. Por serem produzidas pela comunidade, estas categorias não gozam de primazia contra a comunidade e, por isso mesmo, não podem servir de exceção às pretensões comunitárias. Os Direitos Humanos, neste contexto, não são oponíveis à vontade popular. (GALUPPO, 2003, p. 218) Para o Comunitarismo, “os Direitos Humanos devem sua legitimidade à autocompreensão ética e à autodeterminação soberana realizada pela comunidade política” (HABERMAS, 2001, p. 116). Para os comunitaristas, o Estado é quem os confere, tendo-os como um ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, no sentido expresso pela Declaração Universal de 1948 (ONU, 1948). Entretanto, com analisa o Professor Marcelo Galuppo (2003), em face da necessidade de conceitos extra-culturais de direitos humanos individuais para o sucesso e desenvolvimento do capitalismo, os direitos fundamentais alcançaram, com o modernismo da metafísica cartesiana, uma nova origem, agora não mais resultantes de uma comunidade específica, mas sim anteriores à mesma, de caráter universal, pressupondo a pré-existência do homem à sociedade. O comunitarismo partia de uma concepção estática de universo e sociedade, como afirma Galuppo (2003), uma característica chamada de dominação tradicional por Max Weber, orientadora do exercício de poder nas sociedades pré-modernas. O desmoronamento do referencial aristotélico-tomista no século XV, notavelmente pela perda do poder da Igreja Católica Apostólica Romana, encerrou a supremacia da idéia de centros como referenciais normativos para os indivíduos, passando-se a lidar com a idéia moderna de sujeito e indivíduo, o homem como grande centro orientador de suas ações. Descartes, na sua obra Meditações Metafísicas, disposto a provar a existência da alma e de Deus, somente chega à conclusão de que todas as afirmações feitas pelo homem são passíveis de erro, pois passam pelos sentidos cognitivos. Assim, a sua única certeza reside no fato de que ninguém pode chegar a duvidar de sua própria existência, pois esta idéia é inata, parte da mente humana. Foi a partir desta linha de raciocínio que se desenvolveu o Liberalismo, concebendo o homem, em sua esfera individual, como pré-existente à sociedade, sendo todos livres e iguais num estado natural. Assim afirma John Locke: Embora no Estado de Natureza tenha tal direito [de a ninguém se sujeitar], a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte poucos observadores 142 da eqüidade e da justiça, a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que estão já unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de ‘propriedade’. (LOCKE, 1991, p. 265) É através do contrato social que os homens firmam entre si que se constrói o Estado, cuja finalidade é protegê-los, mas este mesmo Estado se encontra limitado pelo Direito Natural, havendo uma reserva dos indivíduos em relação a seus direitos e liberdades mais básicos, e apenas renúncia, como explana Galuppo (2003), da prerrogativa de fazer valer pessoalmente os direitos. Embora os homens, quando entrem em sociedade, abandonem a igualdade, a liberdade e o poder executivo (de aplicar a lei) que tinham no Estado de Natureza, nas mãos da sociedade, para que disponham deles por meio do poder legislativo conforme o exigir o bem dela mesma, entretanto, fazendo-o cada um apenas com a intenção de melhor se preservar a si próprio, à sua liberdade e propriedade – eis que criatura racional alguma pode supor-se que troque a sua condição para pior –, o poder da sociedade ou legislativo por ela constituído não se pode supor se estenda mais além do que o bem comum, mas fica na obrigação de assegurar a propriedade de cada um. (LOCKE, 1991, p. 265) Para muitos jusnaturalistas como Ferreira Filho (1999), o simples fato da Constituição Federal brasileira de 1988 enumerar os direitos e garantias fundamentais no seu Título II, à frente da estruturação do Estado, demonstra que o legislador constituinte reconhece os direitos individuais como inerentes ao homem e a sua própria condição, quase absolutos, apenas encontrando limitações em alguns casos de regime extraordinário. Mas, como declara Galuppo (2003), aí reside o grande paradoxo da teoria Liberalista. Como pode Descartes estar certo de que os demais indivíduos são sujeitos (pensam e reconhecem a própria existência) se a sua única certeza reside no fato dela se originar em sua mente? Desse modo, não podemos afirmar que todos os indivíduos prefiram a proteção do Estado promovida pelo contrato social, muito menos que, após a sua realização, eles decidam cumpri-lo. É o egoísmo através do interesse na auto-proteção que leva ao contrato social, e apenas se pode supor que todos os demais também são egoístas e, “se todos somos egoístas, não há razões racionais que nos levem a preferir o Contrato Social” (GALUPPO, 2003, p. 225). Observa-se que, com o passar das décadas, ambas as concepções mostraram-se falhas e problemáticas, encontrando dificuldades de adaptação às constantes mudanças das características e necessidades de cada sociedade. 6.3 – Transição do Estado Social para o Estado Democrático de Direito 143 A ciência contemporânea constitui um dos três principais paradigmas que causaram, no período pós-2ª Guerra Mundial, a transição do Estado Social para o Estado Democrático de Direito. Seguindo a rebuscada exposição de Álvaro Ricardo Cruz em sua obra Jurisdição Constitucional Democrática (CRUZ, 2004), demonstraremos, de forma simplória, as bases em que se consolidaram o Estado Democrático de Direito e a Hermenêutica procedimentalista. 6.3.1 - O Existencialismo Um desses paradigmas foi o Existencialismo. A 2ª Guerra Mundial mostrou ao homem que ele não é eterno. Kierkegaard tem seu pensamento à tona uma vez que busca guardar e trabalhar aquilo que realmente importa ao ser humano, dentro da noção de falibilidade e previsibilidade do mesmo. Como conseqüências, surgem padrões de comportamento para fugir à sociedade. Padrões estes alternativos (religiões orientais, comunidades esotéricas, movimentos dark, punk, hippie como em Woodstock, etc.) ou movimentos mais engajados, conflitos armados entre a sociedade e as autoridades, tais como as Revoluções Estudantis no Brasil em 1968; revoluções contra o consumismo capitalista; a Primavera de Praga, em 1968, contra a Ditadura Socialista. Nesse contexto também surge, nas décadas de 60 e início de 70, a Teoria Crítica do Direito, a qual já foi previamente mencionada, buscando explicar o momento vivido de negação das instituições estatais e de organização da sociedade. Na época, acreditava-se em transformar a razão consumista em razão comunicativa, como o V da vitória de Winston Churchill ou o símbolo de paz e amor dos hippies. Foi possível também observar uma desconsideração da cidadania, um movimento de negação dos direitos civis. Contudo, essa desobediência civil, de grandes líderes como Gandhi, Nelson Mandela, Madre Teresa de Calcutá e Martin L. King, levou, na verdade, ao aprofundamento da cidadania, ao passo em que se findava o Comunismo, o Socialismo Real e o Colonialismo. Esse aprofundamento da cidadania se dá pela virtude cívica (de cunho religioso ou não). Ocorre uma grande mudança. No Estado Democrático é a população que vai em busca dos seus direitos e garantias. Não há mais um poder soberano, como dizia Streck acerca do Judiciário. Também não é possível ver a nítida separação entre Estado e sociedade. É o surgimento do Estado Novo, o 3º Estado, trazendo consigo novos direitos humanos, nos quais todos clamavam pelo fim dos crimes contra a humanidade (genocídios, etc.), sendo incorporados os direitos à paz, à 144 autodeterminação dos povos e a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado. Ao invés da relação sujeito/objeto de Schleiemarcher, impôs-se À ciência a relação sujeito/sujeito de Heidegger e Gadamer. A era da certeza no progresso indefinido da humanidade é paulatinamente substituída pela angústia do existencialismo, base para uma nova concepção do racionalismo filosófico: a reviravolta lingüístico-pragmática. (CRUZ, 2004, p. 142) 6.3.2 – Nova Revolução Científica Sem dúvida, um fator decisivo para se atingir a Hermenêutica Contemporânea foi a Nova Revolução Científica, o segundo paradigma no processo de construção do Estado Democrático de Direito. Na Ciência Moderna, predominavam certos princípios que permitiam uma concepção de mundo extremamente segura, racional, e previsível. Dentre esses princípios se destacavam a Linearidade; a Causalidade (causa-efeito); a Neutralidade e Objetividade; a Universalidade; a Precisão Matemática; e o Sujeito Cartesiano. A Ciência Contemporânea, contudo, vem a desestruturar cada um desses princípios modernistas. Primeiramente, apresenta-se o princípio da Não-linearidade. Ele é provado pela Teoria da Irradialidade das espécies de Darwin, na qual a evolução se dá através de janelas de oportunidade, de forma aleatória. Assim, a ciência passa a adotar um princípio diferente da evolução linear de Galileu e Ptolomeu através da Irradiação Evolutiva. A segurança que existia na previsibilidade desmistifica-se com a Entropia científica. È importante observar que, muitas vezes, é a concorrência de causas que provoca um efeito. Isso leva à Entropia, ou seja, desordem no Universo. Não há previsibilidade quando se altera a ordem de algo, mesmo substituindo somente uma peça na engrenagem. O princípio da causalidade mostra-se falho, inexplicável em todas as situações vislumbráveis. A Ciência da Incerteza se contrapõe à anterior idéia de neutralidade e objetividade. A separação entre observador e observado constituía um dos grandes problemas das Ciências Sociais, as quais eram colocadas de forma periférica. Essa noção foi substituída pelo Princípio da Incerteza de Bohr e Heisenberg. Também nas ciências naturais o homem não consegue se desvincular da natureza. A ciência mostra-se, portanto, 145 sempre parcial, subjetiva, ou melhor, intersubjetiva. O homem interfere naquilo que ele observa. Não há mais a idéia cartesiana de um método à priori. A relação sujeito-objeto é substituída pela relação sujeito-sujeito. A verdade não é mais absoluta. A Teoria da Relatividade de Newton trabalha com a idéia de Universalidade. Mas a Teoria da Relatividade de Einstein muda esse conceito, colocando que as idéias de tempo e espaço são dependentes da velocidade. Coisas que eram tidas como completamente distintas, na verdade, são uma só. Um exemplo disso é a fórmula da bomba atômica (E=MC2). Nem tudo é tão absoluto, pois a verdade é falível, é contingencial, evolui com o tempo. A verdade é heurística. A precisão matemática presente na ciência moderna evapora-se com o desenvolvimento da ciência contemporânea. No século XX, Gödel e Browner demonstram que a matemática é cheia de abstrações, saltos de pensamentos, conceitos arbitrários e subjetivos. E da mesma forma, existem, na matemática, equações que são indecifráveis. Dessa forma, a ciência não é dotada de precisão (pois nem matemática ela o é). Ela se baseia em suposições e hipóteses, em Asserções de Probabilidades. O sujeito cartesiano era o sujeito cognoscente, baseado na razão, construído na consciência humana. Aí surge Sigmund Freud e cria a Psicanálise. Álvaro Cruz (2004) retrata que ele coloca que a razão convive com os extintos do prazer e da realidade. A noção de instinto demonstra que a mente humana (Psique) é formada não só pela consciência (Ego), “no qual se desenvolveria o princípio da realidade, que permitiria a transferência e sublimação do instinto primário de auto-satisfação” (CRUZ, 2004, p. 142); mas também pelo Id, que seria a inconsciência, a qual é constituída pelos instintos, pelo princípio do prazer. Esse inconsciente seria, na visão freudiana, amoral e inacessível aos influxos externos, manifestando-se por lapsos, atrasos, esquecimentos, atos falhos, fantasias e sonhos. O homem, então, só se diferenciaria do animal com a descoberta do Superego, o centro da consciência moral e do sentido de culpa, fruto de um complexo desenvolvimento de interiorização com os pais (complexo de Édipo/Electra), passando pelas as fases oral [...], anal [...] e fálica [...], chegando à maturidade como suporte para a organização dos sentimentos sociais, como a família, religião e o Estado. (CRUZ, 2004, p. 142) Com Freud fica estabelecido que o processo de cognição vai além da consciência. Ao contrário, vislumbra um jogo consciência/inconsciência que ultrapassa os limites da ciência clássica. A racionalidade cartesiana não percebe essa relação. O homem não é apenas produto da razão, e, consequentemente, da lei. 146 Souza Santos (2001) afirma que o paradigma científico contemporâneo impõe a superação do determinismo pela imprevisibilidade; do mecanicismo pela espontaneidade; da ordem pela evolução e pelo acidente; da objetividade pela subjetividade; da razão pura para a percepção do inconsciente como etapa do conhecimento. Logo, a ciência sofreu uma dura transição epistemológica com essa nova forma de paradigma. E esse novo paradigma científico chegaria às ciências humanas pela “filosofia da linguagem”, que se contrapôs à “filosofia da consciência”. (CRUZ, 2004, p. 142) 6.3.3 – Giro Lingüístico filosófico O Racionalismo filosófico, até então, era ditado por Kant e Descartes, impondo a relação de um sujeito cognoscente observando o fenômeno empírico (o objeto), enquanto a linguagem era mero instrumento de comunicação e identificação. Wittgenstein inaugura o Giro Lingüístico Filosófico. Ele coloca que a linguagem não exerce papel meramente designativo do mundo, mas também constitui ação, o que Habermas chama de Agir comunicativo. Baseado nessa idéia, Austin aborda que o papel designativo da linguagem é locucionário e, quando se torna ação, é um papel ilocucionário. No primeiro, designa-se um papel perlocucionário, pois toda fala provoca uma relação com terceiros, uma vez que ela é intersubjetiva. Portanto, a cosmovisão do ser/sujeito é fixada por horizontes definidos lingüisticamente para o indivíduo e para a sociedade. Desaparece o ser ciente fechado em si mesmo, titular de uma consciência encapsulada e surge o ser-no-mundo. Ou seja, o ser-do-homem é uma possibilidade sempre renovada de vir-a-ser, de poder-ser, isso é, de se renovar/atualizar. O homem é uma abertura para o ser, uma possibilidade aberta, e que encontra sua finitude apenas no tempo, na noção de sua não eternidade. (CRUZ, 2004, p. 143) Wittgenstein ainda desenvolve a teoria dos “Jogos Lingüísticos”, os quais tornam a linguagem contextualizada. As palavras e a relação significado e significante só têm sentido dentro de seu próprio jogo lingüístico. Heidegger, em linha semelhante, coloca que a linguagem é o mundo dos seres e constrói o próprio sujeito. Não existem mais fatos, só versões dos fatos. A subjetividade humana encontra-se indissociável da ciência. Heidegger concebe a idéia de um círculo hermenêutico. Para ele, a interpretação funda-se numa pré-visão (vorsicht) individual do intérprete, que se manifesta pela antecipação de uma possibilidade de compreensão de um texto. Há, pois, uma posição inicial, definitiva ou provisória, mas sempre antecipatória do intérprete. Contudo, isso não forma um círculo vicioso, pois se o intérprete conhece a limitação intrínseca do ato de interpretar, ele pode integrar suas pré-compreensões a um novo horizonte formado pelo texto que interpreta. Para ele, a compreensão depende da história, pois a existência do homem e da sociedade é definida por ela. (CRUZ, 2004, p. 144) 147 Gadamer cria a idéia de “Espiral Hermenêutica”, a fusão entre o horizonte do texto e o horizonte do próprio intérprete. Para ele, a compreensão se dará na fusão do mundo da experiência/horizonte no qual o texto foi escrito, com o mundo da experiência/horizonte, no qual o intérprete se formou. Essa fusão de horizontes supõe a idéia de um diálogo entre as pré-compreensões do intérprete (passado) e o horizonte do problema que se estabelece com a leitura do texto/presente. Assim, o intérprete torna-se co-autor do texto, pois participa sempre de uma reconstrução no momento de sua interpretação. Ele e o texto modificam-se no processo, evoluindo numa espiral hermenêutica. (CRUZ, 2004, p. 145) Thomas Kuhm retrata o Universo construído através de paradigmas. A história caminha por saltos, como diz Boaventura de Souza Santos citado por Cruz (2004), e as mudanças de paradigma se dão de forma abrupta. Essa noção de paradigmas se dá através de um amadurecimento da forma de pensar, quando Piaget e Kohlberg a colocam como uma forma, um processo de aprendizagem. Klaus Günther considera a aplicação do Direito dividida em: Discurso de Justificação: pautado no pensamento kantiano, só que de forma discursiva. A norma é válida se for universalizável, mas com base num discurso lingüístico. Esse discurso de justificação (ou fundamentação) se relaciona com a forma de construção da lei. Discurso de Aplicação: deve ser observada a aplicação da lei no caso concreto, a fim de se obter a melhor resposta. Logo, a interpretação da norma passou a implicara reconstrução de seu sentido diante de um caso concreto que demandava sua interpretação. [...] Dois elementos fundamentais dessa nova hermenêutica, desde então, estariam estabelecidos: a) a interpretação jurídica não mais se limitaria a uma dogmática exegética de textos jurídicos; o texto não seria desvinculado de seu contexto de aplicação, ou seja, do caso concreto sob exame; e, b) o esforço de compreensão exigiria clareza no desenvolvimento do raciocínio, de maneira que outros pudessem ser capazes de entender o porquê da decisão. (CRUZ, 2004, p. 148) Por sua vez, Perelman e Viehweg também contribuíram decisivamente para a construção da hermenêutica contemporânea. Perelman fala que é retoricamente, intersubjetivamente, construindo argumentos que se encontra a melhor forma da norma a se aplicar de acordo com o tanque de opções. Por último, Viehweg, através da Tópica, resgata a hermenêutica antiga em seu processo indutivo. A Tópica de Viehweg e o concretismo de Müller se assemelham ao passo que pregam pela valorização do método indutivo, ou seja, vão do concreto para o abstrato. Porém, na base teórica de cada conjectura existem pontos divergentes. 148 A Tópica de Theodor Viehweg tem origem em 1953 com a sua obra “Tópica e Jurisprudência”. Motivado pela exaustão do positivismo racionalista, foi inevitável a ressurreição da tópica como método. Ela consistiu num elemento básico para o desenvolvimento da hermenêutica contemporânea. “Caracterizou [Viehweg] a tópica como uma técnica de pensar o problema, ou seja, aquela técnica mental que se orienta para o problema” (BONAVIDES, 2001, p. 449). O método tópico caracteriza-se como uma "arte de invenção" e, como tal, uma "técnica de pensar o problema", elegendo-se o critério ou os critérios recomendáveis para uma solução adequada. A Tópica considera mais importante o caso concreto do que a legislação, o que acaba por abalar o sistema normativo. Para Theodor, muito mais importante que buscar uma norma para a solução do caso é buscar as circunstâncias dos elementos, as provas concernentes ao mesmo. Ele chega ao ponto de defender que um bom argumento pode se sobrepor à própria Constituição. Com a Tópica, a norma e o sistema perdem o primado. Tornam-se meros pontos de vista, simples topoi, cedendo lugar ao eixo chave da interpretação, à hegemonia do problema. Referindo-se ao método tópico, Paulo Bonavides faz a seguinte ponderação: Da tópica clássica, concebida como uma simples técnica de argumentação, a corrente de Viehweg compôs um método fecundo de tratar e conhecer o problema por via do debate e da descoberta de argumentos ou formas de argumentação que possam, de maneira relevante e persuasiva, contribuir para solucioná-lo satisfatoriamente. (BONAVIDES, 2001, p. 449) Bonavides (2001) expõe que o método de Müller tem sua base medular na Tópica, na qual ele fez algumas modificações. Todo esforço será encima da estruturação e racionalização do processo para a concretização da norma, de maneira que a Tópica, atribuindo a permissividade à atividade interpretativa, implica na vinculação desta interpretação com racionalização metodológica, o que não desconstrói o teor de obrigatoriedade ou normatividade da regra constitucional. Para Friedrich Müller, o texto de uma norma é apenas o início de toda uma construção normativa, a qual, após a interpretação, transforma-se no programa normativo. Além do texto, a norma constitucional compreende também um domínio normativo, ou seja, parcela de uma realidade efetiva a qual o programa normativo apenas abarca em parte. Segundo Müller, a norma constitucional não se confunde com o texto da norma, mas vai além, configura-se através do programa normativo e do domínio normativo, “de sorte que a interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto, portanto, ao contrário do que acontece com os processos hermenêuticos tradicionais no campo jurídico.”(BONAVIDES, 2001, p. 456). Ainda, frise-se que a análise dos dados lingüísticos (programa normativo) e a análise dos 149 dados reais (domínio normativo) constituem dois procedimentos distintos e incompletos, ambos inseridos no processo de concretização. Cabe ao intérprete da norma articular tais processos. Assim, a normatividade constitucional é, no processo de concretização, o efeito global da norma com seus dois elementos (programa normativo e domínio normativo), os quais somente irão se integrar no momento em que se chegar à norma de decisão, isto é, à norma aplicável ao caso concreto. O concretismo realça a necessidade de se obter uma decisão conforme a coisa (a chance de alteração da importância de uma norma constitucional com base em alterações fáticas do mundo social, a consideração de conjecturas históricas, políticas e científico-sociais), cuja intenção é se eliminar o espaço existente entre a norma jurídica e a realidade. O processo de concretização possui três pontos de basilar observância: o fato, o programa da norma e o âmbito normativo. Para o concretismo, é o corpo legislativo, o órgão do governo, o administrador, o aparelho judiciário, buscando a decisão reguladora da causa que regula o caso concreto, e não o texto constitucional. Então, Müller defende a idéia de que o texto constitucional e o contexto são uma só coisa e, assim, o fato não pode ignorar a Constituição. Não pode haver nem a primazia absoluta do texto, como ocorria no positivismo, nem tanto do contexto, como na Tópica de Viehweg. Enfim, percebe-se que o Concretismo vem como uma reformulação da Tópica ao trazer, não apenas o contexto exposto por Viehweg, mas um meio termo entre texto e contexto. É nesse terreno que nasce a mais bem estruturada Teoria Constitucional Contemporânea, o Procedimentalismo. 6.4 – Fundamentação e conceito dos direitos fundamentais no viés procedimentalista Com o novo giro lingüístico filosófico, a partir de Piaget e Kohlberg, verifica-se que “a identidade que uma pessoa tem de si mesma não lhe é inata, mas desenvolvida por meio de um processo de equiparação e diferenciação [...] Em suma, não há o Eu sem o Outro” (GALUPPO, 2003, p. 226). Se a linguagem é o meio privilegiado da formação da identidade, e pressupondo uma similaridade entre o desenvolvimento da identidade individual e da identidade coletiva, então nos é lícito pressupor que a linguagem assuma um papel decisivo no processo de integração social. E é a partir da linguagem que podemos superar os problemas a que nos conduziram o Comunitarismo e o Liberalismo. (GALUPPO, 2003, p. 228) 150 Segundo Galuppo (2003), o logos, razão ou linguagem, em sua natureza reside na intersubjetividade, dialógica (relacionando-se com os sujeitos da fala) e não monológica. Porém, sempre há riscos da linguagem fracassar no papel integrativo e, racionalmente, se evita este fracasso pelo agir estratégico (processo de “instrumentalização” de alguém por outro indivíduo, utilizando-o como meio de alcance de determinado fim) e pelo discurso. O discurso [agir comunicativo] é a ação pela qual um sujeito-falante pretende convencer69 o outro da validade das pretensões contidas em seu discurso. Assim, quando a pretensão é criticada por um falante, o discurso se instaura para produzir um consenso capaz de realizar a integração social. (GALUPPO, 2003, P. 229) Habermas, citado por Galuppo (2003), afirma que o princípio basilar do discurso refere-se à validade das normas de ação a partir do momento em que estas são objeto de consenso de todos os participantes dos discursos racionais. Peter Bal aponta quatro condições para a validade do procedimento discursivo: “a) que o discurso seja livre de coerção física; b) que ofereça iguais condições de participação; c) que nenhum tópico seja por definição excluído da discussão; d) que apenas o melhor argumento exerça coerção sobre os falantes” (GALUPPO, 2003, p. 230). No plano jurídico, observa-se que o princípio do discurso se transforma no princípio democrático. Este princípio democrático se relaciona, exclusivamente, com a validade/legitimidade das normas de Direito, referindo-se aos sujeitos enquanto cidadãos, num plano discursivo pautado por regras vinculantes, o código jurídico (mas passíveis de revisão), em que estes cidadãos participam como sujeitos jurídicos. “A dogmática jurídica [...] só é admissível hoje como ciência do direito se não for exatamente dogmática, há que ser fundamentada, aberta e se saber limitada pela permanente possibilidade de refutação de suas premissas e afirmações” (CARVALHO NETTO, 2003, p. 152). De acordo com o princípio democrático, no plano da justificação racional de normas universais, “só podem pretender validade legítima as leis que puderem contar com o consentimento de todos os cidadãos em um processo discursivo de legislação que, por sua vez, foi constituído legalmente.” (GALUPPO, 2003, p. 231) No caso dos direitos humanos, Habermas (2001) afirma que estes se relacionam, ao mesmo tempo, com a moralidade e com o Direito, assumindo formas legais de conteúdos morais. “Como normas legais, eles protegem pessoas individuais somente na medida em que estas pertençam a uma comunidade legal particular – normalmente os cidadãos de um estado-nação” (HABERMAS, 2001, 69 Persuasão racional. 151 p. 118). [...] se compreendermos os direitos fundamentais como direitos naturais, exigências morais, egoísticas, que antecederiam a própria organização jurídico-política, condicionando-a ao mínimo necessário para evitar a autodestruição, ou seja, que se pretendermos reduzir ao máximo a dimensão pública buscando afirmar a cidadania, mataremos precisamente a cidadania. A cidadania requer a dimensão pública ou eu a reduzo a dimensão individual, os direitos individuais, a mero egoísmo, inviabilizando a própria noção de convivência comum, do respeito ao outro, que é dimensão pública inafastável dos direitos privados. (CARVALHO NETTO, 2003, p. 156) Observa-se, então, que os direitos humanos se tornam fundamentais somente quando o princípio democrático se materializa, “quando a argumentação prática dos discursos morais se converte em argumentação jurídica limitada pela faticidade do Direito, que implica sua positividade e coercibilidade, sem, no entanto, abrir mão de sua pretensão de legitimidade (GALUPPO, 2003, p. 233). O direito fundamental é condição para a realização de um membro de uma comunidade, titular de pretensões reciprocamente reconhecidas e sustentadas pela institucionalização constitucional de mecanismos bastantes a viabilizar a formação imparcial e adequada de juízos de justificação e de aplicação de normas jurídicas. (CRUZ, 2001, p. 213) O Professor Galuppo (2003) esclarece que os direitos fundamentais se formam num processo de construções, e também se sujeitam a revisões já que estas resultam do fato de que quaisquer argumentos, mesmo os melhores, são sempre provisórios até que surjam novos argumentos capazes de melhor resistir às críticas do argumento anterior. Assim, a utilização dos termos 1ª, 2ª e 3ª gerações de direitos humanos, noção que espelha segregação, contraria a realidade que demonstra que esta concepção se encontra superada pela hermenêutica e constitucionalismo contemporâneos, os quais concebem os direitos fundamentais num processo gradual de conquistas e variantes de acordo com o tipo de Estado constitucional e momento histórico. Como afirma Bobbio (1992), eles nem nasceram todos ao mesmo tempo nem de forma definitiva, trabalhando, assim, com os aspectos de generatividade e garantismo. Neste aspecto, não mais há que se falar na doutrina do “status” de Jellineck (CRUZ, 2001), a qual configura os direitos fundamentais como determinantes da posição jurídica do indivíduo em face do Estado, quer seja ela positiva ou negativa, o que, a contrário senso, antagoniza Estado e sociedade, vinculando esta aos valores descritos na Constituição. Normas constitucionais também são mutáveis, e mesmo as normas básicas que uma Constituição declarou não sujeitas a emendas partilham, juntamente com todo o Direito Positivo, do fato que elas podem ser ab-rogadas, digamos, após a mudança de regime. (HABERMAS, 2001, p. 115) 152 Parte do conteúdo dos direitos fundamentais guarda íntima conexão com prévias garantias de participação dos cidadãos no processo político. O “sistema de direitos”, como o chama Habermas, citado por Galuppo (2003), é fixado ao longo da história do constitucionalismo. Os direitos fundamentais só poderão continuar como tais se a própria Constituição, como a nossa expressamente afirma no §2º do seu art. 5º, se apresentar a moldura de um processo de permanente aquisição de novos direitos fundamentais. Aquisições que não representarão apenas alargamento da tábua de direitos, mas, na verdade, redefinições integrais dos nossos conceitos de liberdade e de igualdade, requerendo nova releitura de todo o ordenamento à luz das novas concepções dos direitos fundamentais. (CARVALHO NETTO, 2003, p. 154) Este sistema de direitos habermasiano é integrado pelo conteúdo básico dos direitos fundamentais: a) direito à maior medida possível de iguais liberdades individuais de ação; b) direitos fundamentais que resultam da elaboração politicamente autônoma do status de membro em uma associação voluntária sob o direito; c) direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de adjudicação de ações protetivas e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual; d) direitos fundamentais a iguais oportunidades de participação em processos de formação da opinião e da vontade públicas nos quais os cidadãos exercitam sua autonomia política e através dos quais eles positivam um direito legítimo; e) direitos fundamentais à provisão de condições de vida que sejam socialmente, tecnologicamente e ecologicamente assegurados. (GALUPPO, 2003, p. 235) Como ensina Habermas, os direitos humanos iniciam-se com a aplicação do princípio discursivo no campo jurídico, criando o princípio democrático, e materializam-se através da institucionalização de condições que possibilitem o exercício discursivo da autonomia política. Deste modo, o Direito que irá regular todo o ordenamento e a sociedade será aquele que incorporar as diretrizes fundamentais que o legitimam (SOARES, 2003). A função do Direito passa a ser a de transformador social para a efetivação de direitos ainda não materializados. Com o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, [...], a Constituição, para articular-se com uma visão procedimentalista da política deliberativa e a democracia, deve ser compreendida, fundamentalmente, como a interpretação da e a prefiguração de uma mistura de direitos fundamentais, que apresenta as condições procedimentais de institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias para uma legislação política autônoma; ou seja, das condições procedimentais que configuram e garantem, e termos constitucionais, um processo legislativo democrático. (HABERMAS, 1997, p. 259) Como esclarece o Professor Marcelo Cattoni de Oliveira, citado por Álvaro Cruz (2001), o Direito não mais pode existir como aquele meio liberal de decisão majoritária, pautada na decisão da superioridade numérica, na “vontade geral” republicana, mas tão somente no princípio democrático, primando pela institucionalização de processos normativos encadeados que permitam a participação discursiva de todos os cidadãos na construção da sociedade através das tomadas de 153 decisões. E os fundamentos do processo jurisdicional democrático serão, uma vez em conjunto com a aplicação jurídica ética, a eficácia e a facilidade de acesso à tutela jurisdicional, o contraditório, a igualdade entre as partes e a fundamentação das decisões, dentre outros princípios processuais garantistas. De acordo com Álvaro Cruz (2001), a concepção procedimentalista do processo promove a reinterpretação dos discursos de justificação (processo legislativo) e dos discursos de aplicação do Direito (processo judiciário), pautadas nas teorias de Adequação ao Caso Concreto de Günther e Direito como Integridade de Dworkin. 154 7- CONCLUSÃO Para os jusnaturalistas, exatamente por se acharem fora do âmbito de atuação do Estado, num nível superior ao deste, os direitos fundamentais não podem ser alvo de interferência do mesmo, permanecendo relativos, apenas, à esfera de atuação de cada um individualmente. Ao Estado nada cabe senão legitimar tais direitos humanos universais, especialmente através do constitucionalismo, devendo-os, como dispõe José Cirilo Vargas (2002), definir, regulamentar, garantir e respeitar tais prerrogativas. [...] quanto à obrigação de os definir, o Estado a cumpre de maneira política, ou seja, determinando-lhes o conteúdo. E somente isso, porque o ente estatal não os cria: descobreos, traz os mesmos à tona e os ilumina, mostra-lhes os contornos e a essência, numa função meramente declaratória. Os direitos existirão com ou sem o Estado, com ou sem definição. [...] a regulamentação dos direitos e garantias funda-se no problema de fixar os limites entre o bem comum e o bem individual. Nada mais. Se é certo que o Estado tem por objeto imediato o bem comum, terá, no entanto, de conformar-se ao bem individual, quando se encontra em face de um daqueles direitos decorrentes da própria personalidade humana, como o direito de locomoção, por exemplo. Só mesmo em situação excepcional e de extremada penúria social e política pode haver intervenção na esfera da liberdade de locomoção. (VARGAS, 2002, p. 47, grifos nossos) É por isso que a doutrina constitucionalista jusnaturalista, em sua maioria absoluta, liderada por nomes como Manuel Gonçalves Ferreira Filho, somente vislumbra como únicas hipóteses de autorização da suspensão de prerrogativas fundamentais do indivíduo as restritas previsões constitucionais que hão de ser sempre, no ordenamento jurídico, pontuais. Verifica-se, através do Constitucionalismo contemporâneo, que os direitos fundamentais não são naturais, nem mais absolutos, inalienáveis e invioláveis. Eles encontram limites na esfera democrática e constituem um resultado de diversas lutas ao longo da história humana, assumindo uma conceitualidade aberta e cunho predominantemente principiológico para se moldarem de acordo com o evolutivo conjunto de necessidades do indivíduo. Desse modo, passam a existir algumas situações, enquadradas no estado de exceção, que permitem, somente assim, a suspensão temporária da ordem constitucional a fim de que o Estado possa restabelecer a estrutura e a paz social uma vez que, em se tratando da manutenção da ordem social, a preservação e perpetuação da mesma possui reflexos e interesses protetivos correlacionados aos direitos humanos particularizados pelos indivíduos. Tão somente mediante a autorização do poder constituinte pode o Estado, em face de situações de Estado de Defesa, Estado de Sítio e Lei Marcial aplicar, a certos direitos, algumas restrições. Sobre o regime preventivo contra o terrorismo acerca do qual é forçada a Constituição a adotar, vislumbra-se que o campo de atuação do Estado sobre os direitos individuais para a 155 relativização destas garantias constitucionais é pautado pela rigorosa observância da legalidade e da necessidade. Sobre isto é interessante registrar a jurisprudência administrativa francesa. Segundo Jean Rivero ela redunda em quatro princípios. O primeiro: “liberdade é o princípio, a medida restritiva, a exceção”; segundo: deve haver uma conciliação entre as necessidades da ordem e as exigências da liberdade, de modo que comete ilegalidade (abuso de poder) quem sacrifica sistematicamente a liberdade à ordem; terceiro: a conciliação deve levar em conta a situação concreta, não meras considerações abstratas; quarto: a medida preventiva só se justifica pela necessidade. Se não é, estritamente falando, necessária, é abusiva. (FERREIRA FILHO, 1999, p. 36) Frise-se, no entanto, que não se pode confundir legalidade com legitimidade. Não basta que a atuação da Administração seja feita de acordo com a lei se esta não atende aos preceitos básicos de sua real legitimação pelos cidadãos. Em outras palavras, o direito necessita da legitimidade como elemento catalisador das expectativas de comportamento numa sociedade, ou seja, seria o elemento que superaria a tensão entre a faticidade e a validade num ordenamento jurídico. O direito não pode assumir nem impor uma legalidade autoritária pura e simplesmente e esperar que a sociedade obedeça docilmente. A legitimidade assume o papel de integração permitindo ao Estado agir coativamente sem precisar de empregar a força pura e simplesmente. (CRUZ, 2003b, p. 461) Os direitos fundamentais não podem ser concebidos como instrumentos do Estado, mas na verdade, constitui o Estado instrumento destes direitos: O Direito Constitucional concebe os direitos fundamentais como dotados de eficácia imediata, o que significa dizer que eles podem ser, desde logo, invocados pelos particulares perante o Poder Judiciário; que a lei, nessas circunstâncias, poderá eventualmente “discipliná-los”, “regulamentá-los”, para efeito de melhor otimizar a sua eficácia [...] A idéia de que os direitos fundamentais serão aplicados nos termos da lei sofre uma viragem e, a partir daí, tem-se que as leis é que haverão de ser editadas nos termos dos direitos fundamentais. (CLEVÉ, 2003, p. 391) Supera-se a conceituação moderna de direitos humanos através da evolução hermenêutica, quando “os direitos fundamentais são os direitos que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado momento histórico, se quiserem que o direito por eles produzido seja legítimo, ou seja, democrático” (GALUPPO, 2003, p. 236). O Professor Menelick de Carvalho Netto (2003) dispõe que os direitos fundamentais devem ser compreendidos como um resultado de conquistas históricas discursivas socialmente elaboradas. Estes direitos devem ser tomados como permanentemente abertos, mutáveis como a Constituição num processo de afirmação da cidadania. O Estado é [...] uma máquina concebida pelo constituinte para buscar a plena efetividade, a 156 plena concretização dos princípios, dos objetivos e dos direitos fundamentais. [...] Todos os poderes do Estado, ou melhor, todos os órgãos constitucionais, têm por finalidade buscar a plena satisfação dos direitos fundamentais. (CLÉVE, 2003, p. 388) Peter Häberle, citado pelo Professor Mário Lúcio Quintão Soares (2003), expõe que somente através da tutela dos direitos fundamentais é que se confere às minorias alguma possibilidade de ter suas necessidades atendidas como se fosse a maioria, característica esta essencial da democracia contemporânea. Seguindo Smend, Häberle afirma que as prerrogativas fundamentais do homem não são restrições ou limitações contrapostas ao poder de agir do Estado, mas, na verdade, formam com ele uma relação unificante. O procedimentalismo concebe o Estado Democrático de Direito em sua magnitude, efetivando e tornando-o acessível a todos os setores da sociedade. O Estado Democrático de Direito, que, ao contrário do Estado Liberal e do Estado Social, não possui regra pronta e acabada para a legitimidade de suas normas, mas reconhece que a democracia não é um estado, mas um processo que só ocorre pela interpenetração entre a autonomia privada e a autonomia pública que se manifesta na sociedade civil, guardiã de sua legitimidade. (GALUPPO, 2003, p. 237) A verdadeira democracia reside na participação e entendimento discursivo de todos os integrantes da ordem social, a partir do qual será construída a ordem pública, ou seja, a ordem jurídica que irá regulamentar todos os setores da vida em comunidade, visando, sempre, a profusão do pluralismo jurídico e a integração de todos os súditos do Estado. “A legitimidade do direito, como decorre do princípio do discurso, só é alcançada se todos os envolvidos por suas normas puderem reconhecer-se simultaneamente como seus atores” (GALUPPO, 2003, p. 236). Assim, a democracia participativa no Estado democrático de direito se manifesta na estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos possibilidades efetivas de aprendizado da democracia, de participação nos processos decisórios, de exercício do controle crítico nas divergências de opinião e da produção de inputs políticos de participação. (SOARES, 2003, p. 407) A representação democrática possui, como aponta Canotilho, citado por Mário Lúcio Soares (2003), uma dualidade de legitimação. A jurídico-formal, positivada na carta constitucional, e a representação democrática material, na qual a força legitimadora do Poder Legislativo concentra-se, também, no conteúdo justo de seus atos, o qual parte da observância do preceito do princípio democrático. [...] são as modernas exigências morais, abstratas e universais, da igualdade e da liberdade de todos que ganham maior densidade e concretude ao serem incorporadas tanto pelos usos, costumes e tradições da experiência vivida dos distintos povos, ou seja, pela eticidade, quanto pelos diversos ordenamentos jurídicos modernos, ou seja, pelo direito, pela legalidade, quanto ainda pela política, ganhando a efetividade da imperatividade estatal. Se 157 enfocadas de outro ângulo, podemos ver que são essas exigências, agora já transformadas em direitos fundamentais por sua incorporação ao Direito, que fornecem insumos básicos de legitimidade, de credibilidade institucional, indispensáveis ao bom funcionamento do Direito e da política da complexa sociedade moderna. (CARVALHO NETTO, 2003, p. 146) Não basta mais a existência das formalidades constitucionais das teorias clássicas, mas também deve estar presente a sua materialidade através da concretude dos direitos. Como afirma Menelick Netto (2003), forma e matéria não podem ser compreendidas como contraditórias, mas complementares, co-originárias e eqüiprimordiais. O saber jurídico da razão do Estado é aquele que procura justificar as atuações do Poder Público. O Estado age e o Direito Constitucional justifica a sua atuação. Este é um saber jurídico tradicional que põe em risco os direitos fundamentais. Ao lado do saber jurídico constitucional da razão do Estado, talvez seja o caso de desenvolvermos uma nova dogmática constitucional que nós poderíamos chamar de dogmática constitucional emancipatória. Ela é, ao mesmo tempo, dogmática (porque é a tecnologia do saber jurídico), crítica (porque põe em questão os fundamentos e os pontos de partida), principiológica (porque leva a sério os princípios constitucionais), personalizadora (porque tem como ponto de partida o homem, o cidadão, e não o Estado; o homem não é instrumento do Estado, mas este, sim, é instrumento do homem), pós-positivista (porque questiona os dogmas do positivismo), e, por fim, emancipatória (porque acredita nas potencialidades do ser humano e na realização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana). (CLEVÉ, 2003, p. 393) A aplicação das normas passa pelo fato de nos encontrarmos numa situação hermenêutica de mundo, não sendo suficiente a simples leitura do texto, mas também as circunstâncias e eventos sociais que o Direito regula. Apesar dos direitos básicos originalmente consistirem em direitos negativos ou “defensivos”, que garantiam liberdades e mantinham uma administração intervencionista dentro dos limites do direito, eles agora se transformaram nos princípios arquitetônicos da ordem jurídica, transformando dessa forma o conteúdo das liberdades individuais ou “subjetivas” no conteúdo de normas fundamentais que penetram e moldam o direito objetivo. (HABERMAS apud GALUPPO, 2003, p. 235) No entanto, o que se vislumbra no Direito norte-americano não é o mesmo. A atual apreensão social em face do terrorismo é lícita e justificável em grande parte pela posição que os Estados Unidos ocupam no atual cenário internacional e pelos últimos atentados de proporções devastadoras na moral e soberania nacional do Estado americano. Porém, a mesma deve, acima de qualquer situação, encontrar seus limites na única razão de existência do Estado, seu povo. A Constituição Federal dos Estados Unidos da América deixa em aberto a definição legal de hipóteses de configuração do Estado de Exceção em que se possa suspender a ordem constitucional vigente e, conseqüentemente, direitos humanos fundamentais, razão pela qual o Governo norteamericano possui maior facilidade em criar legislações específicas para o tratamento de certos grupos de indivíduos integrantes ou colaboradores de grupos terroristas ou que venham, tão 158 somente, a incentivar a subversão social, conferindo-lhes, assim, apenas aquelas prerrogativas individuais que bem entender, ignorando dispositivos supranacionais de tratados de direitos humanos na consecução de seu objetivo maior, salvaguardar seus nacionais com a manutenção da integridade física e moral de seu povo e território. A significação profunda do estado de exceção como uma estrutura original pela qual o direito inclui em si o vivo por meio de sua própria suspensão se revelou em toda a sua clareza com a military order que o Presidente dos Estados Unidos decretou em 13 de novembro de 2001. Tratava-se de submeter os não-cidadãos suspeitos de atividades terroristas a jurisdições especiais que incluíam sua detenção ilimitada (indefinite detention) e sua transferência ao controle de comissões militares [...] A novidade da ordem do Presidente Bush foi apagar, radicalmente, o estatuto jurídico desses indivíduos e de produzir, assim, entidades que o direito não podia nem classificar nem nomear [...] nem prisioneiros nem acusados, mas simples detainees, eles se acham submetidos a uma pura soberania de fato, a uma detenção que não é apenas indefinida num sentido temporal, mas também por sua própria natureza, pois ela escapa completamente à lei a toda forma de controle judiciário. (AGAMBEN, 2002, p. 5) Cria-se uma ordem jurídica específica para lidar com seus inimigos, os quais, justamente por adotarem práticas terroristas que desconhecem qualquer tipo de humanismo, não têm, em seu tratamento, a rigorosa observância de preceitos universalizantes de direitos humanos e de prisioneiros de guerra, “justificando-se” práticas agressoras à dignidade da pessoa humana impensáveis em qualquer ordenamento jurídico ocidental. Contudo, ainda que se permita ou faça “vistas grossas” frente à manobra de conduta norteamericana retromencionada, o maior perigo reside no fato desta, em face de seu caractere de indefinição temporal, vir se transformando de medida política aplicável a momentos de crise em inovador padrão de reorganização da estrutura político-jurídica pós-moderna: Atualmente, diante da progressão continua do que chegou a ser definido como uma “guerra civil mundial”, o estado de exceção tende sempre mais a apresentar-se como o paradigma de governo dominante da política contemporânea. Uma vez que o estado de exceção tornouse a regra, há o perigo de que essa transformação de uma medida provisória e excepcional em técnica de governo ocasione a perda da distinção tradicional entre as formas de Constituição. (AGAMBEN, 2002, p. 5) Sob o manto da doutrina de segurança nacional, evidencia-se a verdadeira prática do terrorismo de Estado mediante a constrição dos direitos constitucionais e ações governistas totalitárias, mediante a concentração dos poderes da Administração nas mãos de uma cúpula política que, muitas das vezes, por interesses econômicos escusos ou simplesmente ditatoriais, pode se perpetuar no poder e tomar quaisquer medidas que bem entender, desconstituindo todo o aparato normativo-constitucional de estruturação do Estado e das formas de organização social. Quando qualquer Governo, valendo-se de uma posição de força, ignora a Constituição e desrespeita as normas da Declaração de Direitos, os demais Estados ou a própria 159 Organização das Nações Unidas se limitam a fazer protestos, quase sempre absolutamente inócuos. Em conclusão, pode-se afirmar que a proclamação dos Direitos do Homem, com a amplitude que teve, objetivando a certeza e a segurança dos direitos, sem deixar de exigir que todos os homens tenham a possibilidade de aquisição e gozo dos direitos fundamentais, representou um progresso. Mas sua efetiva aplicação ainda não foi conseguida, apesar do geral reconhecimento de que só o respeito a todas as suas normas poderá conduzir a um mundo de paz e de justiça social. (DALMO DALLARI apud VARGAS, 2002, p. 13) As leis antiterror destroem a Constituição norte-americana, revogam dispositivos que são pilares mestres da Carta de 1787, legítimas conquistas históricas, resultado de séculos de luta, suor, sangue e trabalho, verdadeiros símbolos de uma nação inteira que são desmanchados através de uma simples caneta. Se tomarmos o que a Suprema Corte dos EUA entende por Constituição, veremos que é exatamente essa garantia que as leis antiterror desse tipo destruiriam. O respeito à dupla tensão presente entre o direito à igualdade e à liberdade de todos. Toda essa construção, uma construção fantástica, admirável, mesmo com todas as críticas que lhe podem ser dirigidas, é colocada em tela de desafio. Desafio aos direitos fundamentais, à formalidade constitucional e ao próprio controle de constitucionalidade como garantias evolutivas do constitucionalismo. (CARVALHO NETTO, 2003, p. 162) Bobbio (1992) diz que a história do direito constitucional não pode permanecer como uma história de promessas não cumpridas. A América, gênese do controle de constitucionalidade difuso, pátria da liberdade, deve zelar pela sua Constituição, e não há outro setor da sociedade senão o Poder Judiciário para fazê-lo, desenvolvendo a maior e mais importante função que lhe é atribuída. O controle difuso faz com que qualquer um de nós seja intérprete autorizado da Constituição, uma vez que não se autorizou ao Legislativo e nem a qualquer outro pode violar os direitos fundamentais, e em que a matéria constitucional, por ser sempre afeta aos direitos fundamentais de todos nós, reconhece-se competência para discussão, averiguação e decisão dessa matéria a qualquer juiz em qualquer caso concreto diante dele. (CARVALHO NETTO, 2003, p. 163) O Poder Judiciário é o guardião da Constituição, das liberdades e dos direitos fundamentais. A sua atuação no processo de efetivação dos direitos fundamentais é, nas palavras do Professor José Alfredo de Oliveira Baracho (2001), o exercício da Justiça Constitucional. Nos Estados Unidos, a Justiça Constitucional é oriunda da tradição de seu próprio sistema político, anterior, até mesmo, de qualquer tipo de positivação na Carta de 1787, mas construído através dos conflitos coloniais mediante a prática política e constitucional. Na América do Norte, a Justiça Constitucional exerce papel fundamental no sistema de checks and balances (freios e contra pesos), desempenhando função única no federalismo norte-americano e na formação de todo o seu sistema político, no qual a separação de poderes confere nítido prestígio superior ao Poder Judiciário, o que valoriza, e muito, a Suprema Corte. Esse papel político que é conferido à Suprema Corte, seguindo exposição de Baracho 160 (2001), funciona como válvula de equilíbrio daquele sistema político e de evolução da própria sociedade civil. O sucesso da justiça constitucional encontra novos caminhos para a consolidação da democracia e a superação dos regimes autoritários, com resposta para as várias controvérsias existentes nas democracias ocidentais. Para vencer as crises da representação política, a Justiça Constitucional consolida-se como um verdadeiro contra poder, como garantia apreciável e necessária. Pode-se dizer que é uma espécie de certo declínio da política. As liberdades e os direitos fundamentais invocados e defendidos pelos juízes, superaram a fase em que eram reclamadas por revoluções e assembléias. Com a crise dos parlamentos, a palavra é dada à Justiça Constitucional e o constitucionalismo contemporâneo demonstra esta nova tendência. (BARACHO, 2001, p. 94) É a Justiça Constitucional norte-americana que permite a compreensão da forma de interpretação e aplicação da Constituição de 1787. Baracho (2001) ensina que ela não consagra o controle de constitucionalidade concentrado, configurando-lhe como difuso, realizado não só pela Suprema Corte mas por todo o sistema judiciário, tanto no seu sentido orgânico quanto no material, não havendo nenhum tipo de procedimento positivado específico a ser seguido em relação a este controle. Destarte, a atividade jurisdicional vai garantir ao conteúdo das leis. O juiz, trabalhando o viés hermenêutico procedimentalista, tem o dever de se vincular ao Processo na atuação do Direito, bem como a todos é conferido o Devido Processo (Ações Constitucionais) para o controle de constitucionalidade do sistema jurídico adotado e para o exercício dos direitos fundamentais de vida, liberdade e igualdade, com inclusão, no sistema jurídico, dos destinatários normativos, a fim de fruírem dos direitos fundamentais líquidos e certos, assegurados constitucionalmente. A autoridade encarregada de aplicar a Constituição não pode fazer o que bem quiser do texto constitucional, há limites, esses limites são intersubjetivamente compartilhados, e a maior garantia de qualquer constituição chama-se cidadania, uma cidadania viva e atuante, zelosa de seus direitos. (CARVALHO NETTO, 2003, p. 163) Destaque-se a Corte Warren nos Estados Unidos que, ao longo dos anos sessenta, desmantelou a doutrina do double standard70 e promoveu o fim dos limites de aplicação do Bill of Rights, reintegrando o substantive due process nos Estados Unidos. Através de célebres julgados, os direitos fundamentais foram, em muitos campos da sociedade civil, definitivamente inseridos no cotidiano da população norte-americana, como: o caso Mapp v. Ohio (1961), que consolidou o princípio da proibição da utilização de prova ilícita nos julgamentos; Baker v. Carr (1962) que eliminou o controle eleitoral praticado pelos Estados; Robinson v. Califórnia (1962) que vedou a 70 A décima quarta emenda, ratificada em 1868, tentou restringir as pretensões dos Estados [membros] em limitar os direitos e liberdades reconhecidos pelo Bill of Rights, mas a Corte, fazendo uma leitura mais restritiva, manteve a teoria do double standard, que incitará que cada estado deve ter sua própria interpretação da declaração de direitos _ Slaughter Houses Cases em 1873 (BARACHO, 2001, p. 112). 161 aplicação de penas cruéis e inabituais; Gideon v. Wainwright (1963) que confirmou o direito de assistência a um advogado conferido pelo Estado para aqueles suspeitos que não possuem condições financeiras de contratar um (right of counsel); Escobedo v. Illinois (1964) que confirmou o direito à defesa técnica; Miranda v. Arizona (1966) que consagrou o direito do suspeito de prática delituosa ser assistido por advogado e permanecer em silêncio, sendo informado de seus direitos antes de ser interrogado; e Klofer v. North Carolina (1967), que declarou o direito definitivo a processo criminal no tribunal do júri (BARACHO JÚNIOR, 2003) e (BARACHO, 2001). Conforme aduz José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior (2003), o Poder Judiciário norteamericano deve se manter atento no sentido de refutar a chamada “doutrina das questões políticas”, a qual, de acordo com entendimentos da Suprema Corte, por meio da aplicação da teoria alemã de Jurisprudência de Valores, implica na interpretação da supremacia do interesse público (especialmente sob o ponto de vista da Administração Pública) sobre o privado. Também deve afastar a freqüente relutância de se examinar judicialmente o mérito administrativo, incorrendo, assim, na recusa da prestação da tutela jurisdicional de determinados direitos violados pelo governo. O entendimento dos direitos humanos fundamentais sujeitos de ponderação judicial como mandados de otimização constrói o terreno ideal para a semeadura do subjetivismo e decisionismo judiciais. De acordo com o Professor Baracho Júnior (2003), é necessário que se reconheça o caráter de distinção do sistema binomial Política-Direito, interpretando a construção constitucional de matérias políticas e morais sob o universo jurídico, sem jamais afastar a observância da norma jurídica e a tutela dos direitos fundamentais. Espero que os tempos áureos da Suprema Corte, sob a égide do Chief Justice Warren, de 1953 a 1969, sirva de paradigma para inspirar todo o sistema jurídico norte-americano no processo de expansão do judicial review, do controle jurisdicional de constitucionalidade, e consolidar, em compasso com a sociedade, complexa e mutável, a América para os americanos, redescobrindo-se o american dream e efetivando-se o potencial Estado Democrático de Direito que paira sob o mundo contemporâneo*. * Agradecimentos: Agradeço ao meu orientador, o Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz, pela inspiração acadêmica, e a todos os demais amigos e colegas de faculdade e PRMG/MPF que, de algum modo, demonstram interesse pelo tema e me incentivaram a desenvolver o presente trabalho. “Uma das maiores virtudes da democracia é permitir-se duvidar de si mesma, ao assegurar liberdade e espaço até mesmo para aqueles que nela não crêem.” Norberto Bobbio Artigo científico elaborado a partir de Monografia apresentada à disciplina Monografia II, da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais em Belo Horizonte, maio de 2008, ao professor orientador Álvaro Ricardo de Souza Cruz. 162 ABSTRACT Overlapped the orders of the Jusnaturalism and the Legal Positivism, in the current context of contemporary hermeneutics, no basic right is absolute, finding limits in other prerogatives whose value, for the collective society, is considered equal. In such a way, one admits, on behalf of the public security and maintenance of the constitutional order, the possibility of its restriction, temporarily (or while the facts of such restrictions last), and in a promptly form, some human rights previously had as intangible, even though such restrictions are not exactly previously regulated in the Federal Constitution, which, in compliance with the legal techniques, would be the only one capable to limit these rights once it’s who brings them to life. It is planned, then, to analyze the legal and legalized hypotheses of the restrictions of basic rights of the individual in the process of prevention and combat of terrorism, having as basis the actual conduct of the United States of America. In this process, from the conceptual construction of the basic rights, a study of the legitimacy of the intervention of the State in the particular sphere of individuals is promoted, analyzing the legal hypotheses of the restrictions of human rights; verifying the constitutionality of such restrictions/limitations; and pointing the actual north-americans restrictions of human rights implemented in the promotion of public and national security throughout the process of prevention and combat of terrorism practice. With this research, we intended to clarify the correct path to be followed in the search for possible solutions, legally valid, in order to prevent that the observance of the basic rights of individuals becomes an unbearable obstacle for the Public Administration in the defense of the security of its nationals. KEY-WORDS: Human Rights; Terrorism; National security; Martial law; Contemporary Constitucionalism 163 8 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. 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