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Regenerações / 8 - A lógica das bem-aventuranças revela-se nas provas
e nos empreendimentos exigentes
A inteligência da mansidão das mãos
"Entre todos aqueles caracóis ao vento,
entre todos aqueles louros corimbos,
parecia que aquela cabeça prateada,
dissesse com tremor, crianças,
sim... pequenos, sim ...
E as crianças procuravam em festa
por vezes, com grito alegre,
as mãos trémulas e a cabeça
em que só vivia
aquele pobre sim"
Giovanni Pascoli, La nonna (A avó)
As bem-aventuranças não são virtudes, não são um discurso ético sobre as ações humanas. São antes o
reconhecimento de que, no mundo, existem já os pobres, os mansos, os puros de coração, os que choram, os que
são perseguidos por causa da justiça, os misericordiosos. E chamam-lhes 'felizes'.
As bem-aventuranças são, acima de tudo, uma revelação, um retirar o véu para ver uma realidade mais profunda e mais
verdadeira do que parece. O evangelho não nos apresenta uma ética da virtude (esta já existia), mas dá-nos e revela-nos o
humanismo das bem-aventuranças (que não existe ainda e, por isso, pode sempre chegar). Se compreendêssemos e
vivêssemos a lógica das Bem-aventuranças, deveríamos ir para as ruas, para as praças, para as empresas, para os campos de
refugiados, olhar ao redor e repetir com e como Jesus de Nazaré: "Bem-aventurados, bem-aventurados ...".
Há demasiados puros de coração, perseguidos por causa da justiça, pobres, mansos, que ainda estão à espera de
serem chamados ‘bem-aventurados'. Não sabemos que somos bem-aventurados até que alguém nos vê, nos
reconhece e nos chama com este nome maravilhoso. Quando Moisés desceu do Monte Sinai, com novas tábuas da
Lei, ele não sabia que o seu rosto se tornara resplandecente (Êxodo 34, 29). Foi o seu povo que lhe revelou a
presença daquela luz especial. A luz sobre o rosto e toda a felicidade aparecem dentro de um relacionamento.
Começamos a descobrir sermos felizes na pobreza, nas perseguições, durante o choro, nosso e dos outros, porque
alguém que nos ama no-lo diz, no-lo recorda. As bem-aventuranças mais importantes são as dos outros. E as nossas
despertam somente quando são chamadas pelo nome.
A mansidão existe, encontramo-la todos os dias, faz-nos viver e, graças a ela, fazemos viver quem está à nossa volta.
Os mansos reconhecem-se antes de mais pela ternura, têm a mesma raiz. Manso, ameno, terno. Os mansos
desenvolvem uma amizade especial com as mãos - a palavra latina evoca a docilidade com que os cordeiros deixam
passar sobre o dorso a mão do seu pastor. Esta ternura é a oposto da romântica e sentimental, que inunda os talk
show e os spot publicitários. Os mansos conhecem o canto espiritual sublime das mãos.
Antes de mais, são dóceis à ação da mão que os trabalha, sabem deixar-se trabalhar. Esta é a primeira dimensão da
mansidão: saber estar quietos e dóceis, especialmente nos dias em que a mão da vida se faz sentir mais intensamente.
Para reconhecer os mansos é necessário, então, observá-los nos momentos da doença, durante as provas e, acima de
tudo, no encontro com a morte. A mansidão é ajuda crucial durante os abandonos, os lutos, os desertos interiores e
exteriores, quando, como o cordeiro, devemos dispor-nos docilmente para deixar que a mão do pastor faça o seu
trabalho. E nós o nosso: a mansidão é o oposto da passividade. É um trabalho contínuo, tenaz e perseverante. A mansidão
é a bem-aventurança dos pobres, que conseguem ficar e viver em condições impossíveis para os não-mansos.
Encontramos, muitas vezes, a mansidão entre os idosos e os velhos. A mansidão de coração assemelha-se com a
macieza do fruto maduro, que realiza o seu desígnio tornando-se alimento para os outros, caindo e nutrindo a terra.
Os olhos mais mansos que conheci foram olhos de idosos e ainda mais de idosas. Só esses olhos têm as cores
deslumbrantes e luminosas do último Outono.
Não é raro que uma pessoa revele toda a sua mansidão escondida (até para si mesma) na última fase da vida, nos
últimos dias, na última hora. Quando consegue confiar-se docilmente às mãos de enfermeiros e médicos, virada e
revirada no leito, mansa na mão que passa durante a vigília, nas últimas noites infinitas. Ou quando conseguimos,
por um dom inesperado, vislumbrar a mão do anjo da morte e reconhecê-la como a mão boa e amiga do pastor e,
assim, deixar-se abraçar e acariciar por ela no último abraço-dança da vida. Então, a primeira terra que o manso
herda é aquele pequeno lenço que o acolhe, benigna e irmã, quando, por fim regressa a casa. Como Abraão, que
obedientemente seguiu a voz que o chamava para uma terra prometida e que morreu, exilado e estrangeiro,
possuindo apenas a terra para o túmulo comprada aos hititas, para sepultar a sua esposa Sarah.
Mas o manso, acostumado à ação das mãos de outros, também usa as suas mãos para abraçar, para curar, para acolher
um amigo, para abrigar um arrependimento. Os mansos abraçam, apertam, choram juntos e sabem que não se
conhece alguém sem o ter estreitado ao peito, sem ter-lhe beijado a face, no beijo da paz. Eles conhecem e usam a
linguagem humilde e forte do corpo, a linguagem da carícia, são mestres da ternura e da inteligência das mãos. Todos
somos capazes de acariciar os nossos filhos e todos nós sabemos acariciar quem amamos. Estas carícias fazem parte do
repertório de base dos seres humanos - e dos outros primatas superiores. Mas só os mansos sabem e podem acariciar
quem quer que seja: crianças e adultos, famílias e desconhecidos (só os mansos deveriam acariciar os filhos dos
outros). E assim, com o exercício das mãos, tratam aquelas feridas das solidões e dos abandonos que só se curam
quando sentem passar sobre a pele, ligeiramente, uma mão amiga. Se não existisse a multidão de mansos que habitam
hospitais, enfermarias de pediatria, escolas, centros de acolhimento, cooperativas sociais e atuam como voluntários
nas prisões, nas estações e ao longo das ruas à noite, a vida, nesses lugares, seria impossível ou demasiado dolorosa.
Bem-aventurados os mansos, bem-aventurados quem os encontram e por eles é acariciado e amado.
Os mansos, então, são necessários para desarmar os conflitos e reconstruir a concórdia e a paz em todo o lado. Se
no desenvolvimento de um conflito (entre irmãos por causa de uma herança, entre colegas, entre sócios, dentro de
uma comunidade) não intervém a ação de, pelo menos, um manso, as únicas soluções encontradas são as dos
tribunais - que nunca são verdadeiras soluções nas relações primárias das nossas vidas: é o abraço dos corpos e das
mãos a única verdadeira resolução de conflitos entre irmãos e amigos. Os mansos tudo cobrem, tudo suportam.
Aos mansos é prometida a terra: é esta a sua herança. Mas a terra no humanismo bíblico pertence a Deus: "Minha é
toda a terra” (Êxodo 19, 5). É neste horizonte que deve, então, ser lida então esta bem-aventurança (e todas as
outras). Nós somos apenas donos temporários e passageiros de uma terra que não é nossa. A primeira lei da terra é
a gratuidade, toda a terra e todas as terras são, em primeiro lugar, bens comuns e, depois, bens usados com
responsabilidade e cuidado para o nosso bem-estar (shalom). Então, o manso possui cada terra não a possuindo; e,
por isso, partilha-a. Sente-a como herança recebida gratuitamente, não como mercadoria adquirida nos mercados;
e, como tal, quererá deixá-la aos próprios filhos. Ele abre as portas da sua casa, porque sabe que ela é,
verdadeiramente, também dos outros, de todos. E quando, a sua casa se enche de não-familiares, não se sente nem
um herói nem um altruísta, mas apenas alguém que possui uma terra recebida como oferta e herança, mesmo
quando a comprou com os salários pesados do trabalho emigrante, com as economias de uma vida inteira. Cada
uma das nossas propriedades é segunda, porque toda a terra é de YHWH e, portanto, não é de ninguém nem de
todos. A terra é sempre terra prometida, está para além de um Jordão que contemplamos mas não atravessamos.
E se aos mansos é prometida a terra, então a terra prometida é a terra dos mansos. Cada terra habitada pelos
mansos torna-se já terra prometida. Também a terra da nossa cidade, do nosso bairro, da minha casa, se torna terra
prometida, se houver nela pelo menos um manso.
Mas o manso vive também a sua vida como terra herdada. No decurso da existência, chega quase sempre um
momento decisivo quando entendermos, cada um de modo diferente, que a vida que estamos a levar não é aquela que
queríamos ter. A árvore que floresceu a partir das sementes da juventude não é a que pensávamos ou queríamos. O
manso encontra a sua felicidade-bem-aventurança acolhendo com docilidade a vida que está a viver porque entende
que, para ele, para ela, não há uma árvore melhor crescida fora daquela sua terra. Nenhuma árvore se assemelha à
semente, nenhuma boa vida adulta coincide com as esperanças da juventude - e se coincide não é boa. Esta mansidão
é o contrário da resignação, porque enquanto o resignado perante a desilusão da vida adulta se torna triste,
amargurado e apagado, o manso está feliz e reconciliado. São muitos, inumeráveis, os mansos que encontram a sua
felicidade nas famílias, comunidades religiosas, que se revelaram ao longo do tempo diferentes das escolhidas e
sonhadas, às vezes muito diferentes, demasiado diferentes para os não-mansos. Os mansos são capazes de florescer
em cenários que não estavam no programa no dia do casamento ou da ordenação religiosa, mas uma vez ali chegados,
abraçaram-nos com a mesma ternura com que abraçaram no primeiro dia a esposa. Os abraços dos mansos são todos
iguais. Nós não podemos controlar todos os eventos que, dentro e fora de nós, determinam a nossa felicidade. As
maiores coisas da vida não as escolhemos. São herança que nós não compramos nem merecemos. Podemos rejeitá-las
e fugir em busca de uma terra única e exclusivamente nossa. O manso, pelo contrário, acolhe-as plenamente, sem
benefício do inventário. Fá-las entrar em sua casa e pôr a mesa com a mais bela toalha. E um dia, surpreendendo-se,
consegue festejar, encontrando-se finalmente adulto e maduro. Há poucas alegrias maiores do que aquelas que
florescem das festas celebradas juntamente com as nossas desilusões. Os mansos conhecem esta festa, saboreiam esta
alegria madura e são abençoados. "Bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra."
Luigino Bruni, Avvenire, 20 de Setembro de 2015