meu nome não é johnny

Transcrição

meu nome não é johnny
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA - CFCH
TÓPICOS ESPECIAIS EM PSICOMETRIA E
PROFESSOR VICTOR EDUARDO SILVA BENTO
MEU NOME NÃO É JOHNNY
Uma leitura psicanalítica do romance e caso
_
RESUMO
Este é um estudo de pesquisa para disciplina de
graduação, tópicos especiais em psicometria E, que
aborda o caso apresentado no livro e filme Meu
Nome Não é Johnny articulados com interpretações
psicanalíticas sobre as toxicomanias das paixões.
Distingue-se “lei” e “Lei”, a primeira relaciona-se a
lei judicial; e a segunda à Lei-do-Pai, noção
lacaniana que discute a representação simbólica da
figura paterna. Considera-se a importância do pai
real e do pai idealizado na figura da lei visando
ações terapêuticas no sujeito em conflito com a Lei.
Rio de Janeiro
Nov. 2010
Augusto Imanishi Bonavita, 109078328
Fernando Ferreira de Castro, 109079007
INTRODUÇÃO
Neste estudo pretendemos através do caso de João Guilherme Estrella, que nos é
relatado a partir do filme e do livro MEU NOME NÃO É JOHNNY, realizar uma
análise segundo as teorias da psicologia da toxicomania. A história de João Guilherme é
especialmente interessante, pois ela nos é contata desde a sua infância e adolescência,
ilustrando ricamente a relação e as influências dos pais em João. Jovem da classe média
carioca, inteligente e de lábia, na adolescência tem contato com drogas e aos 30 anos é
considerado um barão da cocaína no Rio de Janeiro. É preso, julgado e condenado a
internação em hospital de custódia. E se recupera.
É importante, porém, que não demos valor exacerbado para a “profissão” de
João Guilherme – traficante – mas sim a sua condição de adicto, toxicômano. Nosso
trabalho será buscar entender a história de vida do protagonista, o importante papel
familiar em sua infância, juntamente com os acontecimentos de sua adolescência, que
por fim produzem este indivíduo. Buscamos realizar uma análise teórica do personagem
a partir do registro cinematográfico e literário, iluminando este caso pelo viés da teoria.
Este estudo tem por modelo metodológico uma síntese contextualizando o
enredo geral do filme, para enfim realizar uma análise posterior, e confronto com o
corpo teórico pesquisado relativo à psicologia das toxicomanias, segundo as teorias
freudianas e de teóricos posteriores. Por este princípio, será realizada uma nova
narrativa dos fatos mais importantes para o estudo aqui exposto, buscando inicialmente
uma descrição da história como ela nos é contada, baseando-se principalmente de
citações do livro e falas durante o filme, visando a proximidade de um relato original da
vida de “Johnny”.
Posteriormente, como mediador de alguns pontos na análise do caso, busca-se
uma relação do imagiário e efeitos cinematográficos de mescla e transição de imagens,
cenas, fotografias e interpretações. O filme teve como parte do corpo de direção o
próprio João Guilherme Estrella, que é retratado no livro conversando com o ator Selton
Mello, o João no filme. É importante levar em consideração que o filme foi baseado no
livro, onde é possível experimentar uma proximidade maior com a “história real”, tanto
no que se refere a variedade de detalhes, como também na profundidade dos fatos da
vida do verdadeiro João Guilherme Estrella.
Consideramos a importância da infância e especialmente de certas experiências
psíquicas desta etapa da vida a qual fornece as bases que produzem um sujeito
toxicômano. Por este sentido, revela-se fundamental a relevância das figuras parentais
na análise do caso de João Guilherme. Principalmente no que concerne a figura do pai
como aquele que expressa a Lei, sendo o toxicômano um transgressor da mesma.
Por fim verifica-se a similitude da representação simbólica da juíza Marilena
Soares com a figura de “pai idealizado”, que se opõe ao “pai feroz” que é o policial,
através do exercício de expressão da lei. Na falta de representação simbólica da Lei no
adolescente, faz-se da lei uma via de inscrição no universo simbólico da Lei, e suas
possíveis ações terapêuticas ao promover a socialização do indivíduo e introduzir
limites.
“João Guilherme é a prova viva de que é viável recuperar as
pessoas.” (Juíza Marilena Soares)
SÍNTESE DO CASO
O filme “Meu Nome Não é Johnny”, assim como o livro homônimo no qual foi
baseado, conta a história de João Guilherme Estrella, jovem da classe média carioca que
aos 30 anos, durante o início dos anos noventa, tornou-se um barão da cocaína no Rio
de Janeiro. Pela narrativa temos acesso desde a infância e adolescência de João e sua
relação com os pais, o início de seu envolvimento com drogas, sua ascensão como
traficante, sua prisão e recuperação.
O início do filme mescla imagens de um passeio de carro com os pais, quando
João ainda era criança, com imagens dele sendo levado preso dentro do camburão pela
polícia. Em seguida há a cena de Maria Luiza, mãe de João, junto com Sofia, namorada
do mesmo, no escritório do advogado que irá defender João preso em flagrante junto de
grande quantidade de cocaína. A trama começa a nos esclarecer sobre a relação dessas
duas mulheres com o vício e a prisão do réu. A mãe, ao ser questionada pelo advogado,
informa-lhe que nunca soube do envolvimento de João com as drogas “Nunca pude
imaginar... nem no meu pior pesadelo... não na nossa família” enquanto a namorada está
preocupada que a polícia vá atrás dela em busca de informações sobre o caso “E aí,
desde que o João Guilherme foi preso, eu morro de medo da policia bater lá na minha
casa atrás de uma agenda atrás de mim, num sei.”
O filme continua retornando para a infância de João Guilherme. João Rodrigues
Estrella, pai de João Guilherme, é descrito no livro como “um garoto-propaganda do
‘milagre econômico’ brasileiro” e um “obcecado por vitórias”. Dedicava-se
imensamente aos filhos “João amava ver seus moleques voando solo, passando alto por
sobre as convenções e voltando aos seus braços agradecidos, lambuzados de liberdade.
Cada vez mais, os filhos eram a sua vida.”. Ainda no início do filme vemos as
diferenças entre a mãe e o pai na relação com João Guilherme. Numa cena Maria Luiza
conta a João Rodrigues que foi chamada na escola de seu filho, não por que este estava
com notas baixas, muito pelo contrario, mas por que era “líder incontestável em
fuzarcas monumentais”. Logo em seguida ouve-se o barulho de uma explosão, uma
bomba de São João, que João Guilherme, com cerca de 8 anos, estourou dentro da sala
de estar. O pai se encaminha para sala para lhe dar uma bronca, mas quando descobre
que o motivo do estouro era um gol do Vasco passa a comemorar o gol e anuncia
“Então estamos na final! Domingo tem maraca!”. “Crianças no poder. Este era um dos
lemas da infância dourada criada por João Estrella para os filhos”.
Da infância somos apresentados ao João Estrella no início da adolescência. João
“Aos 13 anos, graduado em matéria de praia, pediu [ao pai] uma prancha de surfe.” O
pai disse-lhe que pagaria a metade, e a outra metade o filho teria que pagar com o
dinheiro que iria conseguir trabalhando como entregador de jornais. “Em seis meses
tinha sua prancha, e continuava acordando às cinco da manhã, agora para madrugar na
praia, com dois ou três amigos mais arrojados.”
É na adolescência que João inicia seu contato com as drogas. “... João Guilherme
fumou maconha pela primeira vez aos 14 anos. Tinha medo, mas um dos colegas
surfistas em quem mais confiava, dois anos mais velho, garantiu que não tinha nada
demais. Na ligação do Canal de Marapendi com o Quebra-Mar, onde seu pai o ensinara
a pescar, ele agora queimava fumo e delirava sobre as ondas. O gerente da bagunça
começava a não caber mais na sua agenda.”. O “gerente da bagunça” era seu pai e daí
para frente os dois iam cada vez se distanciar mais, mesmo morando juntos.
João Rodrigues Estrella descobrira uma doença pulmonar, com poucas chances
de recuperação. A notícia abala muito o pai, que se recusa a lutar contra a doença, o que
implicaria no mínimo em largar o vício do cigarro. “Seu pai tinha perdido um pulmão
para o cigarro (Hollywood sem filtro, dois maços por dia) e, antes disso, começava a
perder algo mais vital: sua vontade de se divertir e divertir os outros.” A crise da doença
acaba acarretando na separação dos pais. Maria Luiza vai morar com sua mãe, e pai e
filho permanecem morando juntos na mesma casa. Há uma passagem no filme onde
João sobe para o quarto de seu pai, e estes iniciam uma breve conversa amigável,
enquanto se dá uma festa no andar de baixo. João, o pai, no momento em que seu filho
se despedia para voltar para a festa, lhe dá um conselho: “... vai lá, vai lá. [de volta para
a festa] Aproveita bem, porque olha, o tempo é uma raposa. Quando você vê te leva
tudo.”
João Guilherme vai conhecendo e utilizando uma série de drogas durante a
adolescência. “Embora preferisse fumar maconha, João já tinha experimentado
cocaína... Antes de tomar gosto pelos efeitos do pó branco, encantara-se com a
possibilidade de ousadia e transgressão que ele significava.”. O pai debilitado pelo
câncer e deprimido, passa a ficar o tempo todo em seu quarto deixando a casa
transformar-se “numa espécie de território livre. O portão passara a ficar aberto e
ninguém precisava se anunciar. Havia sempre música e fumaça no ar”.
Uma das características de João Guilherme era a sua lábia e seu poder de
comunicação, talvez por isso ele tenha acabado sendo o escolhido para fazer as “tretas”
ou “roles”, que é na gíria popular o ato de ir comprar a droga com os traficantes. Para
conseguir bons preços, João passou a comprar em quantidade grande e depois dividia a
droga, primeiro maconha, depois a cocaína. “Não se sentia fazendo tráfico, mas um
delegado de polícia não pensaria da mesma forma”. Num dos encontros com um
traficante, para pagar a cocaína que tinha pegado anteriormente e repassado para seus
amigos, foi perguntado pelo traficante “Quer pegar 50 gramas? Te dou um mês pra
vender. João Guilherme nunca sequer vira uma quantidade daquela na sua frente, mas
seu olho brilhou. Topou na hora. E ali começava a confirmar, por vias tortas, o
prognóstico feito pelo pai na volta da Disney: aquele menino ia longe.”
A partir do estabelecimento de um acesso “facilitado” à droga, João ampliou
seus hábitos de vida repletos de festas e badalações, e sempre na presença de vários
amigos. Neste percurso, João, que já havia se apaixonado “a primeira vista” por Sofia
em uma de suas festas em casa, inicia sua busca por ela nas noites cariocas, a encontra,
e assim inicia um relacionamento apaixonado, num vínculo que tinha a cocaína e todos
os hábitos que derivavam do seu uso como protagonistas. João começa a fazer
negociações cada vez maiores, e em uma destas ocasiões, o seu contato que negociava o
pó, demonstra não mais acompanhar o ritmo com que João requisitava mais
“encomendas”. Em uma das falas João diz: “O Rio de Janeiro não anoitece sem tocar
meu telefone umas vinte vezes.”
Todo este rol de acontecimentos acaba por promover um uso cada vez mais
crônico da cocaína, em ambientes repletos também de outras drogas, tabaco, álcool e
afins. Em meio a este pico no seu nível de consumo há o falecimento do seu pai que se
dá de forma trágica, já em um estágio de muito sofrimento por causa dos seus pulmões,
com sintomas de tosse crônica e dor, este falece em seu quarto, em meio a uma das
festas de seu filho. Apesar das fatalidades em sua família o contato de João com a droga
aumenta cada vez mais, bem como a sucessão dos seus fornecedores. Cada vez mais os
seus “contatos” de negociação da cocaína têm de ser passados a frente, para outros mais
capazes de prover uma quantidade que suporte a demanda dos amigos, e também
clientes de João. Inclusive, alguns de seus contatos acabam sendo pegos e há a
necessidade de novos esquemas.
O tráfico passa a ser o seu meio de renda. Com isso João tem a possibilidade de
se mudar, compra um novo apartamento em área nobre da zona sul do Rio de Janeiro,
porém sem ao mesmo tempo dispor de muito dinheiro, porque João “gasta o que
ganha”, boa parte do seu orçamento é voltada para a cocaína e festas em seu
apartamento, para amigos e para seus clientes, um ponto de venda e consumo. João
ainda mantém contato com sua mãe fazendo visitas eventuais. Em uma dessas visitas,
por ocasião do aniversário da mãe e na presença de amigas dela, João dá um belo colar
brilhante para Maria Luiza, que fica espantada com o presente aparentemente tão caro
“deve ter lhe custado os olhos da cara”, e Sofia responde: “custou os olhos, a boca, o
nariz e o resto de vergonha na cara que seu filho tem.” A mãe não sabe bem como
explicar com o que o filho trabalha para suas amigas: “parece que ele trabalha na área
de vendas.”
Com a passagem desse processo, os impulsos em busca de mais diversão e
liberdade acabam por lhe render uma vida volúvel, ora usufruindo de boa-vida e fartura,
ora sem luz, telefone e outros, por não pagar as contas, além de problemas com seu
carro. João não possui uma vida econômica estável e num dado momento de
instabilidade, com inúmeros problemas de contas a pagar, é pego em emboscada por
dois oficiais corruptos membros da polícia militar, que vão atrás dele em busca da droga
e dos lucros da sua venda. Em uma busca em seu apartamento, sem luz, telefone, ou
gás, encontram uma grande quantidade, 2 quilos de cocaína. A qual João negou
enquanto possível não possuir, mas os policiais acabam encontrando. Não tendo
dinheiro, nem mais drogas a prover aos policiais, estes lhe pedem 50 mil dólares para
que não fosse entregue às autoridades. João é obrigado a aceitar o suborno propondo
encontrar uma maneira eficiente de vender a droga e pagar o pacto.
Neste ponto de sua trajetória, João Guilherme está em ascensão, cumpre o pacto
feito com os policiais pagando sua dívida de acordo com o previsto. Encontra um
fornecedor melhor, capaz de lhe prover maiores quantidades e melhor pureza, e, ao
mesmo tempo, conhece através de um primo de Sofia um contato em Barcelona,
Espanha, que lhe pede para levar o equivalente a quase 1 milhão de reais em cocaína
para a Europa. Desta maneira, João se coloca em uma nova aventura, o esquema de
levar a droga até a Europa. Consegue realizar o feito, chegando em Barcelona e sendo
prosperamente remunerado. Em uma conversa com o primo de Sofia, este, o primo, fala
que sua meta é acumular 1 milhão de dólares, ao que João responde: “a minha meta é
torrar 1 milhão de dólares”. Com o dinheiro em sua posse, João e Sofia viajam pela
Europa esbanjando em hotéis, passeios luxuosos, bons restaurantes, regado a muita
droga e álcool. Neste momento de grande consumo, o relacionamento do casal também
passa por instabilidade e freqüentes brigas, principalmente na volta da Europa, em que
Sofia reclama do seu relacionamento.
Ao mesmo tempo em que o enredo do filme e do livro ilustra as aventuras do
casal na Europa, são apresentadas notícias de prisões feitas no Brasil e desarticulação de
esquemas de tráfico de entorpecentes, envolvendo inclusive grandes apreensões. Outro
ponto de atrito entre o casal é a freqüência das festas em casa, Sofia começa a ficar
descontente com a vida que levam, e num trecho ela fala: “eu to cansada João, eu estou
cansada dessa palhaçada... eu to de saco cheio dessa vida desgovernada. Tem três meses
que este apartamento virou uma boate João. Todo dia, toda noite, tenho que agüentar
esse povo vindo aqui pirar de graça na minha casa. Você tá muito velho pra esse tipo de
vida.”
O incomodo de Sofia atribula a relação com João, mas eles permanecem juntos.
O consumo e a venda de cocaína por João só continuam aumentando. Mais uma vez ele
começa a planejar uma nova viagem para Europa onde vão transportar cerca de 6 quilos
da droga. Ainda quando estão processando e separando a droga em um apartamento em
Copacabana, João e mais dois amigos são surpreendidos por um grupo de policiais
fortemente armados que os prendem em flagrante. Agora não havia mais volta, o
esquema montado para a captura de Johnny, como era chamado pelos noticiários,
conseguira realizar-se. Não havia como fugir ou subornar. “A gente ta na sua cola há
mais de 6 meses. A gente sabe mais da sua vida do que você.”
Na cadeia João tem de se adaptar. O clima é hostil, muito diferente do ambiente
abastado em que foi criado. A violência está por toda parte e de todos os lados. A
questão subitamente se volta pra defesa de João Guilherme. Não haveria como inocentálo, mas poder-se-ia suavizar a pena. Porém sabe-se que isso não será fácil. A juíza
responsável pelo seu caso era Marilena Soares, conhecida por ser “mão de ferro”. A
solução adotada foi desarticular a estratégia da promotoria de enquadrá-lo no antigo
artigo 14: “Associação para fins de tráfico”.
João Guilherme resolve então se colocar como dono de toda a cocaína,
inocentando seus amigos que estavam com ele na hora da prisão. “A cocaína era minha,
excelência. Senhora Laura e o senhor Sérgio não tem nada a ver com isso. Eu fiz tudo
isso sozinho.” Em seguida João critica o modo como se viu retratado pelos jornais. “Aí
eu abri o jornal, tinha lá minha foto. Tava escrito lá: Bandido Johnny Preso. Meu nome
não é Johnny, meu nome é João, eu não sou bandido. Não sou nenhum Pablo Escobar,
não tenho quadrilha, não tenho fortaleza, num tenho dinheiro na Suíça. Usava droga e
vendia e ia usando e ia vendendo e ia usando e ia vendendo. Se eu fosse tão poderoso
assim minha família num ia estar vendendo o único imóvel que tem pra pagar a minha
defesa. Eu não queria que a minha mãe estivesse ouvindo isso. Eu uso droga desde
moleque e uns tempos antes de ser preso eu estava cheirando muito. Cheirando muito.
Cheirando com meus amigos, cheirando mais de cem gramas por semana.” Essa
confissão abala a todos e João completa com uma fala direcionada a sua mãe que
assistia a acariação. “Desculpa mãe. Eu só queria falar pra senhora o que eu to sentindo
agora. Todo mundo tem seus sonhos eu também meus sonhos.” Questionado pela juíza
por que ele recorria a uma atividade criminosa para realizar seus sonhos João responde
“Mas eu num vendia droga pra ganhar dinheiro. Eu vendia droga pra gastar dinheiro,
pra comprar mais pó, pra usar mais droga. Eu nunca soube o que é dentro [e] o que é
fora da lei... a minha vida... as coisas foram acontecendo”.
Somado aos relatos de João, foi pedida a análise de um perito que confirmou que
ele era parcialmente incapaz de responder às suas atitudes devido a sua dependência da
droga, o que tenderia a uma redução de pena. Na sentença de Marilena Soares vemos
que ela acaba concordando com a hipótese da defesa. “Fica difícil imaginar um punhado
de pessoas com graves problemas de dependência a entorpecentes, martirizados por
dolorosos problemas pessoais, conseguirem no delito a estabilidade que jamais
conseguiram nas suas vidas. Substituo a pena privativa de liberdade pela internação em
hospital de custódia pelo prazo mínimo de dois anos.”
Durante sua condenação em um hospital de custódia, João esteve em contato
com outros presos em condições muito piores que a sua, “aqui todo mundo é louco, tem
uns mais loucos que os loucos” e assim falou outro preso a João no seu primeiro dia de
prisão. Neste período João é visivelmente diferente de todos os outros ali,
temperamento estável, sempre lendo um livro e mantendo boas relações com os outros
condenados. Trabalhou em escritório durante parte de sua pena e também sempre estava
na organização de algo em grupo entre os presos, como partidas de futebol. Todo o
processo de privação de liberdade e, conseqüentemente, de privação da cocaína e do
álcool permitiu que João vivesse um processo de reflexão, “depuração da consciência”,
como diz o livro.
Nas cenas finais vemos João saindo no indulto de natal, visita sua família. Para
sua surpresa também recebe um cartão da juíza Marilena Soares, que continha a
mensagem: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira
vez um olhar inteligente sobre nós mesmos.” Há o encontro com Sofia, que já o tinha
abandonado depois de um tempo preso, e teve um filho em outro relacionamento. João
passa do final da madrugada até o início da manhã, sentado na praia contemplando o
mar.
ANÁLISE DO CASO
Por que sim nesta família? – Uma análise introdutória
Como ponto de partida desta análise, será utilizada uma sugestão produzida pelo
filme, trata-se da primeira cena da trama. A filmagem começa com uma aproximação
gradual do foco da câmera para a mesa onde João se encontra trabalhando, que se refere
ao ponto de sua trajetória na qual ele trabalha no manicômio, próximo do natal de 1995.
João examina correspondências, e, por fim, se depara surpreso com uma carta em
especial, abrindo-a. As imagens mostram um cartão de natal com uma mensagem no
verso. Esta mensagem se refere àquela enviada pela juíza Marilena Soares antes do
indulto de natal concedido. Diferentemente do trecho posterior na trama, não há uma
narração da mensagem, apenas uma música, semelhante a uma “caixinha-de-música”,
remetendo a uma melodia infantil. A mensagem cita um “nascimento”: “O verdadeiro
lugar de nascimento é aquele em que pela primeira vez lançamos um olhar inteligente
sobre nós mesmos (...).” Após tempo suficiente para a leitura da mensagem, é mostrado
o verso do cartão onde revela-se uma imagem de um “Papai Noel”. Em um jogo de
transição de imagens, a figura do Papai Noel se desfoca e dá lugar ao pai de João
chegando em seu carro, vestido de Papai Noel e fumando um cigarro. Este sai do carro
apagando imediatamente o cigarro, saca uma câmera portátil e inicia uma filmagem. As
imagens do filme se transferem para o que seria a imagem da câmera portátil, uma
filmagem em 8mm, onde se vê belas imagens da família Estrella, quando estes estão a
comemorar e decorar a casa para o natal. Imagens belas de uma família feliz.
As imagens começam a se misturar, cenas infantis de João, momentos
extrovertidos e simpáticos de sua infância se mesclam com imagens posteriores de João
adulto. Como por exemplo, a imagem do pequeno João passeando alegremente no
Corcel de seu pai, subitamente muda para uma cena na qual João adulto está sendo
levado preso no carro da polícia. Um olhar distante é comum em ambos os trechos, e há
uma transição interessante de um afago de sua mãe que na cena correlata de João adulto
é mostrado sirenes da polícia e caos pela passagem da mesma pelo tráfego do Rio de
Janeiro. Há inclusive um efeito especial no qual os créditos mudam como se fossem
“pó” sendo inalado. A esperada chegada do passeio familiar em um destino é quebrada
com a chegada do comboio policial à delegacia. João tira fotos para a sua ficha criminal
e na imagem correlata observa-se João enquanto criança vestido de “cowboy” e
disparando tiros “faz-de-conta”, enquanto seu pai o filma.
A correlação das imagens é nitidamente percebida pela diferença de uma
filmagem nítida, mais moderna, e uma filmagem antiga, típica da filmagem de câmeras
super 8. Esta cena inicial se encerra com um enquadramento no rosto do menino João,
enquanto dá “tiros no ar” e lança para a câmera um olhar penetrante e mau. Seria este
“jogo de imagens” uma sugestão da relação dos fatos posteriores da vida de João e a sua
infância? O início com trilha sonora infantil, remetendo a uma “música de berço”,
porém ao mesmo tempo com um tom reflexivo, seguida de uma mensagem sobre o
“verdadeiro nascimento”. Referir-se-ia a passagem a um nascimento simbólico? Bem
como na cena da mãe fazendo carinho em João, e na cena correlata da polícia passando
com sirenes ligadas. Que conexão existe nestas imagens paralelas? É neste ponto que
chegamos a uma questão maior: por que nesta família?
Segundo Olivenstein, como nos esclarece Bento (2010): “ele [Olivenstein (1983,
1991] parece acreditar na existência de uma relação causal entre a ocorrência de certas
experiências psíquicas na infância e o posterior surgimento de uma toxicomania”, é
observada com esta contribuição uma clara resposta à pergunta inicial desta primeira
análise. Sim, certas experiências da infância exercem um fator causal em determinadas
passagens ao ato na vivência do toxicômano adulto. Olivenstein também acrescenta
duas condições necessárias e suficientes para a produção de um toxicômano, além da
estrutura psíquica toxicômana: “1) que o indivíduo encontre a droga; e, 2) que ele
possua certa relação com a transgressão da lei, ou mais precisamente, uma tendência
para transgredir a Lei do pai.” (BENTO, 2010)
Estas duas condições expostas são satisfeitas ao longo das passagens
encontradas no filme, e principalmente no livro, em inúmeros pontos da trama. A
primeira se dá na adolescência de João, quando este fuma maconha pela primeira vez,
incentivado pelos amigos em quem confiava, satisfazendo a condição de encontro com a
droga:
[...] João Guilherme fumou maconha pela primeira vez, aos 14
anos. Tinha medo, mas um dos colegas surfistas em quem mais
confiava, dois anos mais velho, garantiu que não tinha nada
demais. Na ligação do Canal de Marapendi com o Quebra-Mar,
onde seu pai o ensinara a pescar, ele agora queimava fumo e
delirava sobre as ondas.
A segunda condição é solidamente ilustrada na passagem do livro, em
entrelinhas, quando se fala da escolha de João pela cocaína em detrimento da maconha,
como, por exemplo, no trecho a seguir: “Antes de tomar gosto pelos efeitos do pó
banco, encantara-se com a possibilidade de ousadia e transgressão que ele
significava.”
É, portanto, claramente observável a relação de João com a transgressão,
transgressão da “Lei” – satisfazendo a segunda condição exposta por Olivenstein como
fundamentais para a “possível” produção de um toxicômano. É precisa a perspectiva da
trama cinematográfica neste sentido, sobre a questão do “nascimento simbólico” de
João, que é caracterizado pela introjeção da Lei. O verdadeiro lugar de “nascimento”
para o toxicômano em reabilitação se dá quando este introjeta a lei-do-pai? Qual é a
importância do pai para João?
Qual é a relevância do pai segundo a “Lei”?
João amava ver seus moleques voando solo, passando alto por
sobre as convenções e voltando aos seus braços agradecidos,
lambuzados de liberdade. Cada vez mais, os filhos eram a sua
vida.
João Rodrigues Estrella é repetidamente colocado em foco como um pai
presente, especialmente na etapa da infância de João Guilherme, onde sempre é
mostrado como um amigo de seu filho, participando nas brincadeiras e travessuras.
Recebe no livro o codinome de “gerente da bagunça.” Possui por certo um perfil de “pai
liberal”, que valorizava “força, competitividade e personalidade incisiva”, contudo,
mesmo realizando as vontades do filho e provendo suporte, prezava que seu filho
despertasse iniciativa própria, que como o mesmo dizia: “andasse com as próprias
pernas.” Isto é bem representado no episódio em que João pede a seu pai uma prancha
de surf, ao que o pai responde que aceitaria pagar metade do valor da prancha, porém a
outra metade seu filho teria de conseguir. O acordo é selado e os dois conseguem
cumpri-lo. Ao final de pouco tempo o pai de João já pode com orgulho vê-lo surfar as
ondas de Ipanema.
Por um olhar da psicanálise lacaniana, o pai é quem transmite a lei, demarca as
fronteiras e é aquele de quem o filho, simbolicamente, demanda uma Lei permitindo a
introjeção dos limites do superego e a consolidação do ego. Segundo publicação de V.
Bento para a Revista de Estudos Criminais de 2007, o pai seria responsável pela
“inserção de limites até que se constitua a Lei, quando resolver sua adolescência, seu
Complexo de Édipo, formando o superego, a partir da introjeção dos pais e de suas
leis.” No caso de João Rodrigues Estrella, vemos comportar-se como um pai atuante e
estimulador, mas tende, contudo, a não operar a interdição, dar limites, permitindo
assim que o filho permaneça em busca de um gozo eterno e sem distinção de caminhos
para realizá-lo, e sem encontrar uma satisfação.
Crianças no poder. Este era um dos lemas da infância dourada
criada por João Estrella para os filhos. Se algum deles tinha um
plano, era encorajado a levá-lo até o fim. Pingue-Pongue na
cama dos pais? Tudo bem. Um voluntário para trazer as
madeiras e outro para buscar as raquetes, comandava o dono
do quarto. Futebol na sala-de-estar? Ok, deixa que eu afasto os
móveis. João Guilherme levava a filosofia ao pé da letra, e
naquela mesma copa do México, quando Jairzinho fez um gol
salvador contra a Inglaterra, ouviu-se um estrondo sob a
televisão. O menino tinha explodido uma bombinha de São de
João.
Na sequência deste trecho, o filme mostra que a atitude do pai ao ouvir o som da
explosão foi a de rapidamente se encaminhar para a sala-de-estar, a fim de saber o que
aconteceu, e isto se deu no dado momento em que conversava com sua esposa a respeito
da notificação de mal comportamento na escola, cuja diretora nomeou João como “líder
incontestável em fuzarcas monumentais.” Ao abordar o filho, este explica que o motivo
de ter estourado a bomba foi porque houve um gol, e então os dois passam a comemorar
juntos. Sem que houvesse um corte, uma repreensão com relação à atitude do filho. Este
dado exemplifica de forma contundente a condição de pai fraco, que não impõe uma
atitude repressora, a expressão da lei.
Quando o genitor é vivenciado como frágil (pai idoso,
impotente, homossexual ou incapaz de levar a mulher ao
orgasmo), tal transmissão torna-se inoperante surgindo a
referida tendência para transgredir a Lei, destacada [por
Olivenstein] como uma das duas condições suficientes e
necessárias para a produção da toxicomania. (BENTO, 2010)
A partir destas colocações é sintetizado como foi experimentada a infância e o
surgimento da adolescência por João Guilherme. É necessário, contudo, analisar
também outros fatos da história desta relação entre pai e filho. No período de sua
adolescência começa a se instaurar um afastamento entre os dois, motivado pelo que
KNOBEL (1981, p.24) chama “síndrome da adolescência normal” dentro da temática
que trata a psicologia do desenvolvimento, caracterizada principalmente por uma busca
da expressão de si. Intensificada pelas mudanças corporais e hormonais, afastamento
dos pais, despertar da sexualidade e do início da escolha de objetos, características desta
etapa. Assim como é também motivada por conta da doença do pai, impossibilitado de
estar presente como antes. Ao mesmo tempo, o pai de João sente que não pode mais
acompanhar seu filho, segue o trecho do livro: “[...] nada contra a família, apenas não
tinha mais tempo para ela. Queria rua, vida direto na veia. De certa forma cumpria
regiamente o mandamento de liberdade que seu pai lhe transmitira.” Com esta
sugestão, é confirmado que o pai seria o grande provedor deste incentivo de busca pelo
gozo, fundamentando sua ação no princípio de prazer, levando à busca desenfreada de
João Guilherme pela droga, a partir do seu encontro com a mesma.
Um olhar adulto cego de sentido simbólico olha para o que
poderia servir para obtenção de seu próprio gozo. E é nessa
mesma direção que o adolescente se vê preso ao olhar.
(CONTE, 1999, p. 254-5)
O pai vê na liberdade a diretriz que ele entende como se fosse uma garantia de
felicidade do filho, porém ao criar uma relação de infinita liberdade ele inscreve uma
falta no filho que o conduz a uma estrutura desejante, no entanto, sem jamais encontrar
satisfação plena. Vemos claramente agora, a influencia do pai no desenrolar posterior da
trajetória de João Guilherme. João satisfez todas as condições que o enquadraria como
um toxicômano; o encontro com a droga, a tendência para transgredir a Lei-do-pai, e,
como seu pai pode ser considerado como um pai frágil, há ainda um facilitador neste
processo. A forma de expressão de João, que se instaura a partir do ato, o ato de se
drogar, é vivenciado como uma falta, a falta de uma inscrição simbólica que o permite
simbolizar sua existência. A ida em busca do ato de se drogar é instrumento de
transgressão, e principalmente, um apelo de que a função paterna se faça presente.
O incentivo é a principal diretriz do pai de João. A liberdade, a diversão, o apoio
para realizar qualquer uma das idéias do filho, é um ato de incentivar a ido ao gozo, a
busca pelo prazer, sem estabelecer o limite. Aproveitando-se deste sentido, podemos
supor uma certa concepção de João para com o pai, como uma relação entre iguais, uma
relação de identificação onde João, identificado com o pai, sai em busca de encontros
priorizando o prazer, a busca pelo gozo.
Em Sobre o Narcisismo: uma introdução, Freud aborda a
dialética que religa a escolha narcísica de objeto (o
objeto é escolhido sob o modelo da pessoa própria) e a
identificação (o sujeito, ou tal de suas instâncias, é
constituído sob modelo dos seus anteriores: pais, pessoas
do ambiente).
Partindo deste principio de identificação surge uma questão: a saída tóxicomana
de João derivaria de uma identificação com um pai também tóxicomano? Seria possível
discutir aqui uma identificação narcísica?
Neste sentido, ambos, o pai e o filho, correspondem ao que seria uma relação
entre iguais, são muito parecidos, não tem limites, e apenas na diferença é que pode
haver o amor, se só há igualdade, sem corte, sem limite, sem diferença, não há desejo. O
desejo de João pela droga, poderia ser dito como um desejo onipresente e narcísico em
busca do prazer, que corresponde aos preceitos que inconscientemente lhe foram
transmitidos. A busca pelo prazer, sem cortes. Faz-se necessário neste sentido realizar a
demanda de uma diferença nessa relação paternal, uma diferença, a qual é
imprescindível para a inscrição desejante, para o “nascimento simbólico.”
“Preso a este Outro do qual ele é complemento, a droga não é
apenas o vício de encobrir a incompletude, mas também um
apelo dirigido ao Outro, para que intervenha nesta relação
narcísica com o objeto. É isto que ele vai buscar na polícia, na
instituição, no analista. Uma dose de pai real que intervenha em
sua relação com este objeto que, antes de ser objeto de consumo,
é um objeto que consome.” (BENTES, 1993. p.143)
O adolescente, portanto, demanda o limite, e não sendo este demarcado,
instaura-se a falta, a demanda pela Lei. João e a polícia, esta última como um símbolo
de representação da lei, seria como uma relação de pai e filho? É interessante então
olharmos para outra personagem central na recuperação de João. Receberia a juíza um
status de “figura paternal” pela sua importância?
Qual a importância da “lei” da juíza para João?
A Juíza Marilena Soares é citada como salvadora de João Guilherme. Como no
livro é descrito, ela se tratava de uma juíza “mão-pesada”, rigorosa e justa. O
julgamento de João não foi diferentemente rigoroso, este porém, confessara não
somente a responsabilidade do crime flagrado em seu apartamento, mas em seu discurso
confessa a existência de uma falta. Uma falta dos limites, do que era certo ou errado.
Segue abaixo trechos de sua confissão.
[...] A cocaína era minha, excelência. Senhora Laura e o senhor
Sérgio não tem nada a ver com isso. Eu fiz tudo isso sozinho. Aí
eu abri o jornal, tinha lá minha foto. Tava escrito lá: Bandido
Johnny Preso. Meu nome não é Johnny, meu nome é João, eu não
sou bandido. Não sou nenhum Pablo Escobar, não tenho
quadrilha, não tenho fortaleza, não tenho dinheiro na Suíça.
Usava droga e vendia e ia usando e ia vendendo e ia usando e ia
vendendo. Se eu fosse tão poderoso assim minha família num ia
estar vendendo o único imóvel que tem pra pagar a minha defesa.
Eu não queria que a minha mãe estivesse ouvindo isso. Eu uso
droga desde moleque e uns tempos antes de ser preso eu estava
cheirando muito. Cheirando muito. Cheirando com meus amigos,
cheirando mais de cem gramas por semana.
O trecho prossegue em um diálogo: “desculpa mãe. Eu só queria falar pra
senhora o que eu to sentindo agora. Todo mundo tem seus sonhos eu também meus
sonhos.” E a juíza replica. “Mas para realizar seus sonhos você não precisaria
necessariamente recorrer a uma atividade ilegal.” João continua. “Mas eu não vendia
droga pra ganhar dinheiro. Eu vendia droga pra gastar dinheiro, pra comprar mais pó,
pra usar mais droga. Eu nunca soube o que é dentro, o que é fora da lei... a minha
vida... as coisas foram acontecendo.”
Como é possível contextualizar através dos trechos de sua confissão, o caso de
João Guilherme, embora este fosse adulto, era como um caso de adolescente em conflito
com a Lei. Na base do que a legislação concebe como fundamental para uma
condenação, está a intenção de realizar o delito entendendo que se trata de atividade
criminosa. Embora João soubesse que cometia um ato criminoso na medida em que
sabia que poderia ser preso, era impossibilitado de frear sua iniciativa em direção à
droga. João é um toxicômano, com tendência a passar dos limites os quais não vê, por
não estar simbolicamente introjetado pela Lei-do-pai.
“A falta de controle decorrerá, em última instância, da
dificuldade de pensar, e simbolizar, o que fará do adolescente um
sujeito impulsivo, limitado às expressões de uma “linguagemato.” (BENTO, 2007)
A falta que se faz presente no caso é a falta de uma estrutura, da inscrição
simbólica, e o papel da juíza neste julgamento é fundamental para a formação desta
estrutura. João, inclusive em seu julgamento, é insensível a gravidade de seus atos em
relação à droga, tanto no que se refere ao consumo, como ao tráfico, demonstrando
inclusive um certo “orgulho” para expressar sua relação com a droga. Não há uma
distinção clara para João da droga como um objeto de prazer e da droga como artefato
de uma conduta ilegal perante a sociedade. É neste contexto que a contribuição de
MARTINS (1999, p.240) nos esclarece a importância do juíz para o toxicômano em
conflito com a Lei:
“(...) o menor infrator, quando interrogado pelo juíz confessa
sempre com orgulho; e mais: mente, aumenta (…) Ele busca e
atua, e o juíz nesta questão é facilmente manipulável. Sua figura
se constrói para o menor infrator, muito vinculada com uma
figura do policial. O policial é aquele 'pai feroz', e necessário, e
o juíz 'pai idealizado'. É por isso que esses menores, quando
existe aquele exercício eficiente da autoridade, acabam
gravitando em volta dos juízes. Eles sempre voltam. O juíz acaba
virando ponto de referência, totalmente fora da realidade, o 'pai
idealizado por excelência', que se antagoniza com aquele 'pai
feroz' que é o policial, uma necessidade que ele tem para se
construir.”
Com tais esclarecimentos é verificável que João encontra na juíza o amparo e o
investimento dela para com ele, para com a inscrição simbólica da Lei, fundamental
para a produção desta marca simbólica que permitirá a inscrição dos princípios e valores
compartilhados socialmente. Só assim é possível que o “delinquente” se adapte a vida
social, a partir da dissolução desta falta, permitindo a significação de sua existência. É
valiosa a adição que SILVA (1999. p.245) apresenta: “(...) pela via da recusa, sabe-se
das regras, a questão é como lidar com elas ou como torná-las simbólicas para o
sujeito, de tal modo que lhe permita ter acesso aos objetos simbolicamente,
encontrando a possível inscrição no Outro.”
A condução do caso pela juíza Marilena Soares parece prever a necessidade
deste posicionamento que é demandado dela por parte de João. Esta profere uma
sentença adequada às necessidades que se fazem presentes neste indivíduo, permitindo o
trabalho de “depuração da consciência”, como o próprio livro cita. Durante o período
preso em hospital de custódia, João apresenta conduta exemplar, participando inclusive
na interação social entre o grupo de presos, no trabalho, contribuindo na posição de
auxiliar de escritório no próprio manicômio, e, inclusive, sendo contemplado pela
autorização da juíza, que permite que João possa estudar violão enquanto cumpre sua
pena, por ter um ótimo relacionamento no presídio. FREUD (1930) fala da importância
do trabalho para ação terapêutica e socialização de delinquentes:
“A ênfase na importância do trabalho, tem maior efeito do que
qualquer outra técnica de vida, no estabelecimento de uma maior
aproximação do indivíduo com a realidade; em seu trabalho ele
está pelo menos seguramente preso a uma parte da realidade
humana, a comunidade humana. O trabalho é tão valioso para as
oportunidades que juntamente com as relações humanas que lhe
são implícitas proporciona para uma descarga considerável dos
impulsos libidinais componentes, narcísicos, agressivos e mesmo
eróticos, quando indispensável para a subsistência, que justifica
a existência numa sociedade.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cena final do filme é de rica importância para o fechamento deste estudo,
como uma ilustração e analogia pertinente, concluindo o ciclo que é proposto no início e
paralelamente no final da trama. A relação que se expressa a partir da expressão
“nascimento” identificada no cartão da juíza na primeira cena, e durante a cena final.
Através do trecho final do filme, de aproximadamente três minutos, a começar
pelo o que seria a primeira cena da obra, o enquadramento da camera focalizando João
trabalhando no manicômio. Enquanto este trabalha, um dos dois policiais em um canto
do escritório “cheira uma carreira de cocaína” e prontamente oferece à João, que recusa.
A seguir se dá a leitura do cartão de natal, falando sobre o “lugar de verdadeiro
nascimento”, desta vez narrada com a voz da própria juíza. Subitamente, na sequência,
vê-se nas imagens uma cena do ponto-de-vista de um automóvel dentro do Túnel
Rebouças, se dirigindo a saída para a Lagoa Rodrigues de Freitas, há uma elevação
repentina da trilha sonora, com uma música emocionante. A camera foca no rosto de
João enquanto observa as familiares paisagens de sua cidade natal, e chora ao lado dos
amigos também emocionados.
A analogia que se fecha entre o início e o final do filme é a questão do
nascimento. A cena final é claramente uma analogia a um nascimento de fato, a saída do
túnel escuro em direção a luz como umo “parto” de um novo sujeito, passagem a idéia
de saída de útero, através das imagens, que poderia ser ligado a cena descrita
anteriormente, a recusa da droga, a leitura do cartão e a introjeção da Lei.
Ao recusar a droga João nos mostra a veracidade da mudança de fato instaurada,
a possibilidade real de “cura” através da lei que abriga. A separação da simbiose com
um universo pautado no prazer, eclodida no renascimento através da inscrição simbólica
da Lei, como é sentida na cena final descrita. A credibilidade da reabilitação.
João hoje é produtor musical, músico, cantor e compositor.
“João Guilherme é a prova viva de que é viável recuperar as
pessoas.” (Juíza Marilena Soares)
REFERÊNCIAS
FIUZA, G. Meu nome não é Johnny / Guilherme Fiuza – 8ª edição, Rio de Janeiro,
Record, 2008.
BENTO, V. E. S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: considerações sobre o
conceito de narcisismo em Freud (1905) e sobre a paixão amorosa "tóxica" a partir de
Freud. Revista ABP-APAL, v. 16, n. 4, 1994b, p. 154-164.
BENTO, V. E. S. Introdução às justificativas clínicas e teóricas da hipótese das paixões
“tóxicas. Estudos de psicologia, Campinas, v.27, n.1, p.109-120, 2010.
BENTO, V. E. S. Para uma semiologia psicanalítica das toxicomanias: adicções e
paixões tóxicas no Freud pré-psicanalítico. Revista Mal-estar e Subjetividade, v. 7, n. 1,
2007c, p. 89-121.
GOMES, M. M; GUIMARÃES, M. A.de M.; BENTO, V. E. S. Da lei no estatuto da
criança e do adolescente à uma psicanálise do adolescente em conflito com a Lei.
Revista de estudos criminais, v.7, n.24, p.81-104, 2007.

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