meu nome não é johnny
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meu nome não é johnny
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA - CFCH TÓPICOS ESPECIAIS EM PSICOMETRIA E PROFESSOR VICTOR EDUARDO SILVA BENTO MEU NOME NÃO É JOHNNY Uma leitura psicanalítica do romance e caso _ RESUMO Este é um estudo de pesquisa para disciplina de graduação, tópicos especiais em psicometria E, que aborda o caso apresentado no livro e filme Meu Nome Não é Johnny articulados com interpretações psicanalíticas sobre as toxicomanias das paixões. Distingue-se “lei” e “Lei”, a primeira relaciona-se a lei judicial; e a segunda à Lei-do-Pai, noção lacaniana que discute a representação simbólica da figura paterna. Considera-se a importância do pai real e do pai idealizado na figura da lei visando ações terapêuticas no sujeito em conflito com a Lei. Rio de Janeiro Nov. 2010 Augusto Imanishi Bonavita, 109078328 Fernando Ferreira de Castro, 109079007 INTRODUÇÃO Neste estudo pretendemos através do caso de João Guilherme Estrella, que nos é relatado a partir do filme e do livro MEU NOME NÃO É JOHNNY, realizar uma análise segundo as teorias da psicologia da toxicomania. A história de João Guilherme é especialmente interessante, pois ela nos é contata desde a sua infância e adolescência, ilustrando ricamente a relação e as influências dos pais em João. Jovem da classe média carioca, inteligente e de lábia, na adolescência tem contato com drogas e aos 30 anos é considerado um barão da cocaína no Rio de Janeiro. É preso, julgado e condenado a internação em hospital de custódia. E se recupera. É importante, porém, que não demos valor exacerbado para a “profissão” de João Guilherme – traficante – mas sim a sua condição de adicto, toxicômano. Nosso trabalho será buscar entender a história de vida do protagonista, o importante papel familiar em sua infância, juntamente com os acontecimentos de sua adolescência, que por fim produzem este indivíduo. Buscamos realizar uma análise teórica do personagem a partir do registro cinematográfico e literário, iluminando este caso pelo viés da teoria. Este estudo tem por modelo metodológico uma síntese contextualizando o enredo geral do filme, para enfim realizar uma análise posterior, e confronto com o corpo teórico pesquisado relativo à psicologia das toxicomanias, segundo as teorias freudianas e de teóricos posteriores. Por este princípio, será realizada uma nova narrativa dos fatos mais importantes para o estudo aqui exposto, buscando inicialmente uma descrição da história como ela nos é contada, baseando-se principalmente de citações do livro e falas durante o filme, visando a proximidade de um relato original da vida de “Johnny”. Posteriormente, como mediador de alguns pontos na análise do caso, busca-se uma relação do imagiário e efeitos cinematográficos de mescla e transição de imagens, cenas, fotografias e interpretações. O filme teve como parte do corpo de direção o próprio João Guilherme Estrella, que é retratado no livro conversando com o ator Selton Mello, o João no filme. É importante levar em consideração que o filme foi baseado no livro, onde é possível experimentar uma proximidade maior com a “história real”, tanto no que se refere a variedade de detalhes, como também na profundidade dos fatos da vida do verdadeiro João Guilherme Estrella. Consideramos a importância da infância e especialmente de certas experiências psíquicas desta etapa da vida a qual fornece as bases que produzem um sujeito toxicômano. Por este sentido, revela-se fundamental a relevância das figuras parentais na análise do caso de João Guilherme. Principalmente no que concerne a figura do pai como aquele que expressa a Lei, sendo o toxicômano um transgressor da mesma. Por fim verifica-se a similitude da representação simbólica da juíza Marilena Soares com a figura de “pai idealizado”, que se opõe ao “pai feroz” que é o policial, através do exercício de expressão da lei. Na falta de representação simbólica da Lei no adolescente, faz-se da lei uma via de inscrição no universo simbólico da Lei, e suas possíveis ações terapêuticas ao promover a socialização do indivíduo e introduzir limites. “João Guilherme é a prova viva de que é viável recuperar as pessoas.” (Juíza Marilena Soares) SÍNTESE DO CASO O filme “Meu Nome Não é Johnny”, assim como o livro homônimo no qual foi baseado, conta a história de João Guilherme Estrella, jovem da classe média carioca que aos 30 anos, durante o início dos anos noventa, tornou-se um barão da cocaína no Rio de Janeiro. Pela narrativa temos acesso desde a infância e adolescência de João e sua relação com os pais, o início de seu envolvimento com drogas, sua ascensão como traficante, sua prisão e recuperação. O início do filme mescla imagens de um passeio de carro com os pais, quando João ainda era criança, com imagens dele sendo levado preso dentro do camburão pela polícia. Em seguida há a cena de Maria Luiza, mãe de João, junto com Sofia, namorada do mesmo, no escritório do advogado que irá defender João preso em flagrante junto de grande quantidade de cocaína. A trama começa a nos esclarecer sobre a relação dessas duas mulheres com o vício e a prisão do réu. A mãe, ao ser questionada pelo advogado, informa-lhe que nunca soube do envolvimento de João com as drogas “Nunca pude imaginar... nem no meu pior pesadelo... não na nossa família” enquanto a namorada está preocupada que a polícia vá atrás dela em busca de informações sobre o caso “E aí, desde que o João Guilherme foi preso, eu morro de medo da policia bater lá na minha casa atrás de uma agenda atrás de mim, num sei.” O filme continua retornando para a infância de João Guilherme. João Rodrigues Estrella, pai de João Guilherme, é descrito no livro como “um garoto-propaganda do ‘milagre econômico’ brasileiro” e um “obcecado por vitórias”. Dedicava-se imensamente aos filhos “João amava ver seus moleques voando solo, passando alto por sobre as convenções e voltando aos seus braços agradecidos, lambuzados de liberdade. Cada vez mais, os filhos eram a sua vida.”. Ainda no início do filme vemos as diferenças entre a mãe e o pai na relação com João Guilherme. Numa cena Maria Luiza conta a João Rodrigues que foi chamada na escola de seu filho, não por que este estava com notas baixas, muito pelo contrario, mas por que era “líder incontestável em fuzarcas monumentais”. Logo em seguida ouve-se o barulho de uma explosão, uma bomba de São João, que João Guilherme, com cerca de 8 anos, estourou dentro da sala de estar. O pai se encaminha para sala para lhe dar uma bronca, mas quando descobre que o motivo do estouro era um gol do Vasco passa a comemorar o gol e anuncia “Então estamos na final! Domingo tem maraca!”. “Crianças no poder. Este era um dos lemas da infância dourada criada por João Estrella para os filhos”. Da infância somos apresentados ao João Estrella no início da adolescência. João “Aos 13 anos, graduado em matéria de praia, pediu [ao pai] uma prancha de surfe.” O pai disse-lhe que pagaria a metade, e a outra metade o filho teria que pagar com o dinheiro que iria conseguir trabalhando como entregador de jornais. “Em seis meses tinha sua prancha, e continuava acordando às cinco da manhã, agora para madrugar na praia, com dois ou três amigos mais arrojados.” É na adolescência que João inicia seu contato com as drogas. “... João Guilherme fumou maconha pela primeira vez aos 14 anos. Tinha medo, mas um dos colegas surfistas em quem mais confiava, dois anos mais velho, garantiu que não tinha nada demais. Na ligação do Canal de Marapendi com o Quebra-Mar, onde seu pai o ensinara a pescar, ele agora queimava fumo e delirava sobre as ondas. O gerente da bagunça começava a não caber mais na sua agenda.”. O “gerente da bagunça” era seu pai e daí para frente os dois iam cada vez se distanciar mais, mesmo morando juntos. João Rodrigues Estrella descobrira uma doença pulmonar, com poucas chances de recuperação. A notícia abala muito o pai, que se recusa a lutar contra a doença, o que implicaria no mínimo em largar o vício do cigarro. “Seu pai tinha perdido um pulmão para o cigarro (Hollywood sem filtro, dois maços por dia) e, antes disso, começava a perder algo mais vital: sua vontade de se divertir e divertir os outros.” A crise da doença acaba acarretando na separação dos pais. Maria Luiza vai morar com sua mãe, e pai e filho permanecem morando juntos na mesma casa. Há uma passagem no filme onde João sobe para o quarto de seu pai, e estes iniciam uma breve conversa amigável, enquanto se dá uma festa no andar de baixo. João, o pai, no momento em que seu filho se despedia para voltar para a festa, lhe dá um conselho: “... vai lá, vai lá. [de volta para a festa] Aproveita bem, porque olha, o tempo é uma raposa. Quando você vê te leva tudo.” João Guilherme vai conhecendo e utilizando uma série de drogas durante a adolescência. “Embora preferisse fumar maconha, João já tinha experimentado cocaína... Antes de tomar gosto pelos efeitos do pó branco, encantara-se com a possibilidade de ousadia e transgressão que ele significava.”. O pai debilitado pelo câncer e deprimido, passa a ficar o tempo todo em seu quarto deixando a casa transformar-se “numa espécie de território livre. O portão passara a ficar aberto e ninguém precisava se anunciar. Havia sempre música e fumaça no ar”. Uma das características de João Guilherme era a sua lábia e seu poder de comunicação, talvez por isso ele tenha acabado sendo o escolhido para fazer as “tretas” ou “roles”, que é na gíria popular o ato de ir comprar a droga com os traficantes. Para conseguir bons preços, João passou a comprar em quantidade grande e depois dividia a droga, primeiro maconha, depois a cocaína. “Não se sentia fazendo tráfico, mas um delegado de polícia não pensaria da mesma forma”. Num dos encontros com um traficante, para pagar a cocaína que tinha pegado anteriormente e repassado para seus amigos, foi perguntado pelo traficante “Quer pegar 50 gramas? Te dou um mês pra vender. João Guilherme nunca sequer vira uma quantidade daquela na sua frente, mas seu olho brilhou. Topou na hora. E ali começava a confirmar, por vias tortas, o prognóstico feito pelo pai na volta da Disney: aquele menino ia longe.” A partir do estabelecimento de um acesso “facilitado” à droga, João ampliou seus hábitos de vida repletos de festas e badalações, e sempre na presença de vários amigos. Neste percurso, João, que já havia se apaixonado “a primeira vista” por Sofia em uma de suas festas em casa, inicia sua busca por ela nas noites cariocas, a encontra, e assim inicia um relacionamento apaixonado, num vínculo que tinha a cocaína e todos os hábitos que derivavam do seu uso como protagonistas. João começa a fazer negociações cada vez maiores, e em uma destas ocasiões, o seu contato que negociava o pó, demonstra não mais acompanhar o ritmo com que João requisitava mais “encomendas”. Em uma das falas João diz: “O Rio de Janeiro não anoitece sem tocar meu telefone umas vinte vezes.” Todo este rol de acontecimentos acaba por promover um uso cada vez mais crônico da cocaína, em ambientes repletos também de outras drogas, tabaco, álcool e afins. Em meio a este pico no seu nível de consumo há o falecimento do seu pai que se dá de forma trágica, já em um estágio de muito sofrimento por causa dos seus pulmões, com sintomas de tosse crônica e dor, este falece em seu quarto, em meio a uma das festas de seu filho. Apesar das fatalidades em sua família o contato de João com a droga aumenta cada vez mais, bem como a sucessão dos seus fornecedores. Cada vez mais os seus “contatos” de negociação da cocaína têm de ser passados a frente, para outros mais capazes de prover uma quantidade que suporte a demanda dos amigos, e também clientes de João. Inclusive, alguns de seus contatos acabam sendo pegos e há a necessidade de novos esquemas. O tráfico passa a ser o seu meio de renda. Com isso João tem a possibilidade de se mudar, compra um novo apartamento em área nobre da zona sul do Rio de Janeiro, porém sem ao mesmo tempo dispor de muito dinheiro, porque João “gasta o que ganha”, boa parte do seu orçamento é voltada para a cocaína e festas em seu apartamento, para amigos e para seus clientes, um ponto de venda e consumo. João ainda mantém contato com sua mãe fazendo visitas eventuais. Em uma dessas visitas, por ocasião do aniversário da mãe e na presença de amigas dela, João dá um belo colar brilhante para Maria Luiza, que fica espantada com o presente aparentemente tão caro “deve ter lhe custado os olhos da cara”, e Sofia responde: “custou os olhos, a boca, o nariz e o resto de vergonha na cara que seu filho tem.” A mãe não sabe bem como explicar com o que o filho trabalha para suas amigas: “parece que ele trabalha na área de vendas.” Com a passagem desse processo, os impulsos em busca de mais diversão e liberdade acabam por lhe render uma vida volúvel, ora usufruindo de boa-vida e fartura, ora sem luz, telefone e outros, por não pagar as contas, além de problemas com seu carro. João não possui uma vida econômica estável e num dado momento de instabilidade, com inúmeros problemas de contas a pagar, é pego em emboscada por dois oficiais corruptos membros da polícia militar, que vão atrás dele em busca da droga e dos lucros da sua venda. Em uma busca em seu apartamento, sem luz, telefone, ou gás, encontram uma grande quantidade, 2 quilos de cocaína. A qual João negou enquanto possível não possuir, mas os policiais acabam encontrando. Não tendo dinheiro, nem mais drogas a prover aos policiais, estes lhe pedem 50 mil dólares para que não fosse entregue às autoridades. João é obrigado a aceitar o suborno propondo encontrar uma maneira eficiente de vender a droga e pagar o pacto. Neste ponto de sua trajetória, João Guilherme está em ascensão, cumpre o pacto feito com os policiais pagando sua dívida de acordo com o previsto. Encontra um fornecedor melhor, capaz de lhe prover maiores quantidades e melhor pureza, e, ao mesmo tempo, conhece através de um primo de Sofia um contato em Barcelona, Espanha, que lhe pede para levar o equivalente a quase 1 milhão de reais em cocaína para a Europa. Desta maneira, João se coloca em uma nova aventura, o esquema de levar a droga até a Europa. Consegue realizar o feito, chegando em Barcelona e sendo prosperamente remunerado. Em uma conversa com o primo de Sofia, este, o primo, fala que sua meta é acumular 1 milhão de dólares, ao que João responde: “a minha meta é torrar 1 milhão de dólares”. Com o dinheiro em sua posse, João e Sofia viajam pela Europa esbanjando em hotéis, passeios luxuosos, bons restaurantes, regado a muita droga e álcool. Neste momento de grande consumo, o relacionamento do casal também passa por instabilidade e freqüentes brigas, principalmente na volta da Europa, em que Sofia reclama do seu relacionamento. Ao mesmo tempo em que o enredo do filme e do livro ilustra as aventuras do casal na Europa, são apresentadas notícias de prisões feitas no Brasil e desarticulação de esquemas de tráfico de entorpecentes, envolvendo inclusive grandes apreensões. Outro ponto de atrito entre o casal é a freqüência das festas em casa, Sofia começa a ficar descontente com a vida que levam, e num trecho ela fala: “eu to cansada João, eu estou cansada dessa palhaçada... eu to de saco cheio dessa vida desgovernada. Tem três meses que este apartamento virou uma boate João. Todo dia, toda noite, tenho que agüentar esse povo vindo aqui pirar de graça na minha casa. Você tá muito velho pra esse tipo de vida.” O incomodo de Sofia atribula a relação com João, mas eles permanecem juntos. O consumo e a venda de cocaína por João só continuam aumentando. Mais uma vez ele começa a planejar uma nova viagem para Europa onde vão transportar cerca de 6 quilos da droga. Ainda quando estão processando e separando a droga em um apartamento em Copacabana, João e mais dois amigos são surpreendidos por um grupo de policiais fortemente armados que os prendem em flagrante. Agora não havia mais volta, o esquema montado para a captura de Johnny, como era chamado pelos noticiários, conseguira realizar-se. Não havia como fugir ou subornar. “A gente ta na sua cola há mais de 6 meses. A gente sabe mais da sua vida do que você.” Na cadeia João tem de se adaptar. O clima é hostil, muito diferente do ambiente abastado em que foi criado. A violência está por toda parte e de todos os lados. A questão subitamente se volta pra defesa de João Guilherme. Não haveria como inocentálo, mas poder-se-ia suavizar a pena. Porém sabe-se que isso não será fácil. A juíza responsável pelo seu caso era Marilena Soares, conhecida por ser “mão de ferro”. A solução adotada foi desarticular a estratégia da promotoria de enquadrá-lo no antigo artigo 14: “Associação para fins de tráfico”. João Guilherme resolve então se colocar como dono de toda a cocaína, inocentando seus amigos que estavam com ele na hora da prisão. “A cocaína era minha, excelência. Senhora Laura e o senhor Sérgio não tem nada a ver com isso. Eu fiz tudo isso sozinho.” Em seguida João critica o modo como se viu retratado pelos jornais. “Aí eu abri o jornal, tinha lá minha foto. Tava escrito lá: Bandido Johnny Preso. Meu nome não é Johnny, meu nome é João, eu não sou bandido. Não sou nenhum Pablo Escobar, não tenho quadrilha, não tenho fortaleza, num tenho dinheiro na Suíça. Usava droga e vendia e ia usando e ia vendendo e ia usando e ia vendendo. Se eu fosse tão poderoso assim minha família num ia estar vendendo o único imóvel que tem pra pagar a minha defesa. Eu não queria que a minha mãe estivesse ouvindo isso. Eu uso droga desde moleque e uns tempos antes de ser preso eu estava cheirando muito. Cheirando muito. Cheirando com meus amigos, cheirando mais de cem gramas por semana.” Essa confissão abala a todos e João completa com uma fala direcionada a sua mãe que assistia a acariação. “Desculpa mãe. Eu só queria falar pra senhora o que eu to sentindo agora. Todo mundo tem seus sonhos eu também meus sonhos.” Questionado pela juíza por que ele recorria a uma atividade criminosa para realizar seus sonhos João responde “Mas eu num vendia droga pra ganhar dinheiro. Eu vendia droga pra gastar dinheiro, pra comprar mais pó, pra usar mais droga. Eu nunca soube o que é dentro [e] o que é fora da lei... a minha vida... as coisas foram acontecendo”. Somado aos relatos de João, foi pedida a análise de um perito que confirmou que ele era parcialmente incapaz de responder às suas atitudes devido a sua dependência da droga, o que tenderia a uma redução de pena. Na sentença de Marilena Soares vemos que ela acaba concordando com a hipótese da defesa. “Fica difícil imaginar um punhado de pessoas com graves problemas de dependência a entorpecentes, martirizados por dolorosos problemas pessoais, conseguirem no delito a estabilidade que jamais conseguiram nas suas vidas. Substituo a pena privativa de liberdade pela internação em hospital de custódia pelo prazo mínimo de dois anos.” Durante sua condenação em um hospital de custódia, João esteve em contato com outros presos em condições muito piores que a sua, “aqui todo mundo é louco, tem uns mais loucos que os loucos” e assim falou outro preso a João no seu primeiro dia de prisão. Neste período João é visivelmente diferente de todos os outros ali, temperamento estável, sempre lendo um livro e mantendo boas relações com os outros condenados. Trabalhou em escritório durante parte de sua pena e também sempre estava na organização de algo em grupo entre os presos, como partidas de futebol. Todo o processo de privação de liberdade e, conseqüentemente, de privação da cocaína e do álcool permitiu que João vivesse um processo de reflexão, “depuração da consciência”, como diz o livro. Nas cenas finais vemos João saindo no indulto de natal, visita sua família. Para sua surpresa também recebe um cartão da juíza Marilena Soares, que continha a mensagem: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos.” Há o encontro com Sofia, que já o tinha abandonado depois de um tempo preso, e teve um filho em outro relacionamento. João passa do final da madrugada até o início da manhã, sentado na praia contemplando o mar. ANÁLISE DO CASO Por que sim nesta família? – Uma análise introdutória Como ponto de partida desta análise, será utilizada uma sugestão produzida pelo filme, trata-se da primeira cena da trama. A filmagem começa com uma aproximação gradual do foco da câmera para a mesa onde João se encontra trabalhando, que se refere ao ponto de sua trajetória na qual ele trabalha no manicômio, próximo do natal de 1995. João examina correspondências, e, por fim, se depara surpreso com uma carta em especial, abrindo-a. As imagens mostram um cartão de natal com uma mensagem no verso. Esta mensagem se refere àquela enviada pela juíza Marilena Soares antes do indulto de natal concedido. Diferentemente do trecho posterior na trama, não há uma narração da mensagem, apenas uma música, semelhante a uma “caixinha-de-música”, remetendo a uma melodia infantil. A mensagem cita um “nascimento”: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que pela primeira vez lançamos um olhar inteligente sobre nós mesmos (...).” Após tempo suficiente para a leitura da mensagem, é mostrado o verso do cartão onde revela-se uma imagem de um “Papai Noel”. Em um jogo de transição de imagens, a figura do Papai Noel se desfoca e dá lugar ao pai de João chegando em seu carro, vestido de Papai Noel e fumando um cigarro. Este sai do carro apagando imediatamente o cigarro, saca uma câmera portátil e inicia uma filmagem. As imagens do filme se transferem para o que seria a imagem da câmera portátil, uma filmagem em 8mm, onde se vê belas imagens da família Estrella, quando estes estão a comemorar e decorar a casa para o natal. Imagens belas de uma família feliz. As imagens começam a se misturar, cenas infantis de João, momentos extrovertidos e simpáticos de sua infância se mesclam com imagens posteriores de João adulto. Como por exemplo, a imagem do pequeno João passeando alegremente no Corcel de seu pai, subitamente muda para uma cena na qual João adulto está sendo levado preso no carro da polícia. Um olhar distante é comum em ambos os trechos, e há uma transição interessante de um afago de sua mãe que na cena correlata de João adulto é mostrado sirenes da polícia e caos pela passagem da mesma pelo tráfego do Rio de Janeiro. Há inclusive um efeito especial no qual os créditos mudam como se fossem “pó” sendo inalado. A esperada chegada do passeio familiar em um destino é quebrada com a chegada do comboio policial à delegacia. João tira fotos para a sua ficha criminal e na imagem correlata observa-se João enquanto criança vestido de “cowboy” e disparando tiros “faz-de-conta”, enquanto seu pai o filma. A correlação das imagens é nitidamente percebida pela diferença de uma filmagem nítida, mais moderna, e uma filmagem antiga, típica da filmagem de câmeras super 8. Esta cena inicial se encerra com um enquadramento no rosto do menino João, enquanto dá “tiros no ar” e lança para a câmera um olhar penetrante e mau. Seria este “jogo de imagens” uma sugestão da relação dos fatos posteriores da vida de João e a sua infância? O início com trilha sonora infantil, remetendo a uma “música de berço”, porém ao mesmo tempo com um tom reflexivo, seguida de uma mensagem sobre o “verdadeiro nascimento”. Referir-se-ia a passagem a um nascimento simbólico? Bem como na cena da mãe fazendo carinho em João, e na cena correlata da polícia passando com sirenes ligadas. Que conexão existe nestas imagens paralelas? É neste ponto que chegamos a uma questão maior: por que nesta família? Segundo Olivenstein, como nos esclarece Bento (2010): “ele [Olivenstein (1983, 1991] parece acreditar na existência de uma relação causal entre a ocorrência de certas experiências psíquicas na infância e o posterior surgimento de uma toxicomania”, é observada com esta contribuição uma clara resposta à pergunta inicial desta primeira análise. Sim, certas experiências da infância exercem um fator causal em determinadas passagens ao ato na vivência do toxicômano adulto. Olivenstein também acrescenta duas condições necessárias e suficientes para a produção de um toxicômano, além da estrutura psíquica toxicômana: “1) que o indivíduo encontre a droga; e, 2) que ele possua certa relação com a transgressão da lei, ou mais precisamente, uma tendência para transgredir a Lei do pai.” (BENTO, 2010) Estas duas condições expostas são satisfeitas ao longo das passagens encontradas no filme, e principalmente no livro, em inúmeros pontos da trama. A primeira se dá na adolescência de João, quando este fuma maconha pela primeira vez, incentivado pelos amigos em quem confiava, satisfazendo a condição de encontro com a droga: [...] João Guilherme fumou maconha pela primeira vez, aos 14 anos. Tinha medo, mas um dos colegas surfistas em quem mais confiava, dois anos mais velho, garantiu que não tinha nada demais. Na ligação do Canal de Marapendi com o Quebra-Mar, onde seu pai o ensinara a pescar, ele agora queimava fumo e delirava sobre as ondas. A segunda condição é solidamente ilustrada na passagem do livro, em entrelinhas, quando se fala da escolha de João pela cocaína em detrimento da maconha, como, por exemplo, no trecho a seguir: “Antes de tomar gosto pelos efeitos do pó banco, encantara-se com a possibilidade de ousadia e transgressão que ele significava.” É, portanto, claramente observável a relação de João com a transgressão, transgressão da “Lei” – satisfazendo a segunda condição exposta por Olivenstein como fundamentais para a “possível” produção de um toxicômano. É precisa a perspectiva da trama cinematográfica neste sentido, sobre a questão do “nascimento simbólico” de João, que é caracterizado pela introjeção da Lei. O verdadeiro lugar de “nascimento” para o toxicômano em reabilitação se dá quando este introjeta a lei-do-pai? Qual é a importância do pai para João? Qual é a relevância do pai segundo a “Lei”? João amava ver seus moleques voando solo, passando alto por sobre as convenções e voltando aos seus braços agradecidos, lambuzados de liberdade. Cada vez mais, os filhos eram a sua vida. João Rodrigues Estrella é repetidamente colocado em foco como um pai presente, especialmente na etapa da infância de João Guilherme, onde sempre é mostrado como um amigo de seu filho, participando nas brincadeiras e travessuras. Recebe no livro o codinome de “gerente da bagunça.” Possui por certo um perfil de “pai liberal”, que valorizava “força, competitividade e personalidade incisiva”, contudo, mesmo realizando as vontades do filho e provendo suporte, prezava que seu filho despertasse iniciativa própria, que como o mesmo dizia: “andasse com as próprias pernas.” Isto é bem representado no episódio em que João pede a seu pai uma prancha de surf, ao que o pai responde que aceitaria pagar metade do valor da prancha, porém a outra metade seu filho teria de conseguir. O acordo é selado e os dois conseguem cumpri-lo. Ao final de pouco tempo o pai de João já pode com orgulho vê-lo surfar as ondas de Ipanema. Por um olhar da psicanálise lacaniana, o pai é quem transmite a lei, demarca as fronteiras e é aquele de quem o filho, simbolicamente, demanda uma Lei permitindo a introjeção dos limites do superego e a consolidação do ego. Segundo publicação de V. Bento para a Revista de Estudos Criminais de 2007, o pai seria responsável pela “inserção de limites até que se constitua a Lei, quando resolver sua adolescência, seu Complexo de Édipo, formando o superego, a partir da introjeção dos pais e de suas leis.” No caso de João Rodrigues Estrella, vemos comportar-se como um pai atuante e estimulador, mas tende, contudo, a não operar a interdição, dar limites, permitindo assim que o filho permaneça em busca de um gozo eterno e sem distinção de caminhos para realizá-lo, e sem encontrar uma satisfação. Crianças no poder. Este era um dos lemas da infância dourada criada por João Estrella para os filhos. Se algum deles tinha um plano, era encorajado a levá-lo até o fim. Pingue-Pongue na cama dos pais? Tudo bem. Um voluntário para trazer as madeiras e outro para buscar as raquetes, comandava o dono do quarto. Futebol na sala-de-estar? Ok, deixa que eu afasto os móveis. João Guilherme levava a filosofia ao pé da letra, e naquela mesma copa do México, quando Jairzinho fez um gol salvador contra a Inglaterra, ouviu-se um estrondo sob a televisão. O menino tinha explodido uma bombinha de São de João. Na sequência deste trecho, o filme mostra que a atitude do pai ao ouvir o som da explosão foi a de rapidamente se encaminhar para a sala-de-estar, a fim de saber o que aconteceu, e isto se deu no dado momento em que conversava com sua esposa a respeito da notificação de mal comportamento na escola, cuja diretora nomeou João como “líder incontestável em fuzarcas monumentais.” Ao abordar o filho, este explica que o motivo de ter estourado a bomba foi porque houve um gol, e então os dois passam a comemorar juntos. Sem que houvesse um corte, uma repreensão com relação à atitude do filho. Este dado exemplifica de forma contundente a condição de pai fraco, que não impõe uma atitude repressora, a expressão da lei. Quando o genitor é vivenciado como frágil (pai idoso, impotente, homossexual ou incapaz de levar a mulher ao orgasmo), tal transmissão torna-se inoperante surgindo a referida tendência para transgredir a Lei, destacada [por Olivenstein] como uma das duas condições suficientes e necessárias para a produção da toxicomania. (BENTO, 2010) A partir destas colocações é sintetizado como foi experimentada a infância e o surgimento da adolescência por João Guilherme. É necessário, contudo, analisar também outros fatos da história desta relação entre pai e filho. No período de sua adolescência começa a se instaurar um afastamento entre os dois, motivado pelo que KNOBEL (1981, p.24) chama “síndrome da adolescência normal” dentro da temática que trata a psicologia do desenvolvimento, caracterizada principalmente por uma busca da expressão de si. Intensificada pelas mudanças corporais e hormonais, afastamento dos pais, despertar da sexualidade e do início da escolha de objetos, características desta etapa. Assim como é também motivada por conta da doença do pai, impossibilitado de estar presente como antes. Ao mesmo tempo, o pai de João sente que não pode mais acompanhar seu filho, segue o trecho do livro: “[...] nada contra a família, apenas não tinha mais tempo para ela. Queria rua, vida direto na veia. De certa forma cumpria regiamente o mandamento de liberdade que seu pai lhe transmitira.” Com esta sugestão, é confirmado que o pai seria o grande provedor deste incentivo de busca pelo gozo, fundamentando sua ação no princípio de prazer, levando à busca desenfreada de João Guilherme pela droga, a partir do seu encontro com a mesma. Um olhar adulto cego de sentido simbólico olha para o que poderia servir para obtenção de seu próprio gozo. E é nessa mesma direção que o adolescente se vê preso ao olhar. (CONTE, 1999, p. 254-5) O pai vê na liberdade a diretriz que ele entende como se fosse uma garantia de felicidade do filho, porém ao criar uma relação de infinita liberdade ele inscreve uma falta no filho que o conduz a uma estrutura desejante, no entanto, sem jamais encontrar satisfação plena. Vemos claramente agora, a influencia do pai no desenrolar posterior da trajetória de João Guilherme. João satisfez todas as condições que o enquadraria como um toxicômano; o encontro com a droga, a tendência para transgredir a Lei-do-pai, e, como seu pai pode ser considerado como um pai frágil, há ainda um facilitador neste processo. A forma de expressão de João, que se instaura a partir do ato, o ato de se drogar, é vivenciado como uma falta, a falta de uma inscrição simbólica que o permite simbolizar sua existência. A ida em busca do ato de se drogar é instrumento de transgressão, e principalmente, um apelo de que a função paterna se faça presente. O incentivo é a principal diretriz do pai de João. A liberdade, a diversão, o apoio para realizar qualquer uma das idéias do filho, é um ato de incentivar a ido ao gozo, a busca pelo prazer, sem estabelecer o limite. Aproveitando-se deste sentido, podemos supor uma certa concepção de João para com o pai, como uma relação entre iguais, uma relação de identificação onde João, identificado com o pai, sai em busca de encontros priorizando o prazer, a busca pelo gozo. Em Sobre o Narcisismo: uma introdução, Freud aborda a dialética que religa a escolha narcísica de objeto (o objeto é escolhido sob o modelo da pessoa própria) e a identificação (o sujeito, ou tal de suas instâncias, é constituído sob modelo dos seus anteriores: pais, pessoas do ambiente). Partindo deste principio de identificação surge uma questão: a saída tóxicomana de João derivaria de uma identificação com um pai também tóxicomano? Seria possível discutir aqui uma identificação narcísica? Neste sentido, ambos, o pai e o filho, correspondem ao que seria uma relação entre iguais, são muito parecidos, não tem limites, e apenas na diferença é que pode haver o amor, se só há igualdade, sem corte, sem limite, sem diferença, não há desejo. O desejo de João pela droga, poderia ser dito como um desejo onipresente e narcísico em busca do prazer, que corresponde aos preceitos que inconscientemente lhe foram transmitidos. A busca pelo prazer, sem cortes. Faz-se necessário neste sentido realizar a demanda de uma diferença nessa relação paternal, uma diferença, a qual é imprescindível para a inscrição desejante, para o “nascimento simbólico.” “Preso a este Outro do qual ele é complemento, a droga não é apenas o vício de encobrir a incompletude, mas também um apelo dirigido ao Outro, para que intervenha nesta relação narcísica com o objeto. É isto que ele vai buscar na polícia, na instituição, no analista. Uma dose de pai real que intervenha em sua relação com este objeto que, antes de ser objeto de consumo, é um objeto que consome.” (BENTES, 1993. p.143) O adolescente, portanto, demanda o limite, e não sendo este demarcado, instaura-se a falta, a demanda pela Lei. João e a polícia, esta última como um símbolo de representação da lei, seria como uma relação de pai e filho? É interessante então olharmos para outra personagem central na recuperação de João. Receberia a juíza um status de “figura paternal” pela sua importância? Qual a importância da “lei” da juíza para João? A Juíza Marilena Soares é citada como salvadora de João Guilherme. Como no livro é descrito, ela se tratava de uma juíza “mão-pesada”, rigorosa e justa. O julgamento de João não foi diferentemente rigoroso, este porém, confessara não somente a responsabilidade do crime flagrado em seu apartamento, mas em seu discurso confessa a existência de uma falta. Uma falta dos limites, do que era certo ou errado. Segue abaixo trechos de sua confissão. [...] A cocaína era minha, excelência. Senhora Laura e o senhor Sérgio não tem nada a ver com isso. Eu fiz tudo isso sozinho. Aí eu abri o jornal, tinha lá minha foto. Tava escrito lá: Bandido Johnny Preso. Meu nome não é Johnny, meu nome é João, eu não sou bandido. Não sou nenhum Pablo Escobar, não tenho quadrilha, não tenho fortaleza, não tenho dinheiro na Suíça. Usava droga e vendia e ia usando e ia vendendo e ia usando e ia vendendo. Se eu fosse tão poderoso assim minha família num ia estar vendendo o único imóvel que tem pra pagar a minha defesa. Eu não queria que a minha mãe estivesse ouvindo isso. Eu uso droga desde moleque e uns tempos antes de ser preso eu estava cheirando muito. Cheirando muito. Cheirando com meus amigos, cheirando mais de cem gramas por semana. O trecho prossegue em um diálogo: “desculpa mãe. Eu só queria falar pra senhora o que eu to sentindo agora. Todo mundo tem seus sonhos eu também meus sonhos.” E a juíza replica. “Mas para realizar seus sonhos você não precisaria necessariamente recorrer a uma atividade ilegal.” João continua. “Mas eu não vendia droga pra ganhar dinheiro. Eu vendia droga pra gastar dinheiro, pra comprar mais pó, pra usar mais droga. Eu nunca soube o que é dentro, o que é fora da lei... a minha vida... as coisas foram acontecendo.” Como é possível contextualizar através dos trechos de sua confissão, o caso de João Guilherme, embora este fosse adulto, era como um caso de adolescente em conflito com a Lei. Na base do que a legislação concebe como fundamental para uma condenação, está a intenção de realizar o delito entendendo que se trata de atividade criminosa. Embora João soubesse que cometia um ato criminoso na medida em que sabia que poderia ser preso, era impossibilitado de frear sua iniciativa em direção à droga. João é um toxicômano, com tendência a passar dos limites os quais não vê, por não estar simbolicamente introjetado pela Lei-do-pai. “A falta de controle decorrerá, em última instância, da dificuldade de pensar, e simbolizar, o que fará do adolescente um sujeito impulsivo, limitado às expressões de uma “linguagemato.” (BENTO, 2007) A falta que se faz presente no caso é a falta de uma estrutura, da inscrição simbólica, e o papel da juíza neste julgamento é fundamental para a formação desta estrutura. João, inclusive em seu julgamento, é insensível a gravidade de seus atos em relação à droga, tanto no que se refere ao consumo, como ao tráfico, demonstrando inclusive um certo “orgulho” para expressar sua relação com a droga. Não há uma distinção clara para João da droga como um objeto de prazer e da droga como artefato de uma conduta ilegal perante a sociedade. É neste contexto que a contribuição de MARTINS (1999, p.240) nos esclarece a importância do juíz para o toxicômano em conflito com a Lei: “(...) o menor infrator, quando interrogado pelo juíz confessa sempre com orgulho; e mais: mente, aumenta (…) Ele busca e atua, e o juíz nesta questão é facilmente manipulável. Sua figura se constrói para o menor infrator, muito vinculada com uma figura do policial. O policial é aquele 'pai feroz', e necessário, e o juíz 'pai idealizado'. É por isso que esses menores, quando existe aquele exercício eficiente da autoridade, acabam gravitando em volta dos juízes. Eles sempre voltam. O juíz acaba virando ponto de referência, totalmente fora da realidade, o 'pai idealizado por excelência', que se antagoniza com aquele 'pai feroz' que é o policial, uma necessidade que ele tem para se construir.” Com tais esclarecimentos é verificável que João encontra na juíza o amparo e o investimento dela para com ele, para com a inscrição simbólica da Lei, fundamental para a produção desta marca simbólica que permitirá a inscrição dos princípios e valores compartilhados socialmente. Só assim é possível que o “delinquente” se adapte a vida social, a partir da dissolução desta falta, permitindo a significação de sua existência. É valiosa a adição que SILVA (1999. p.245) apresenta: “(...) pela via da recusa, sabe-se das regras, a questão é como lidar com elas ou como torná-las simbólicas para o sujeito, de tal modo que lhe permita ter acesso aos objetos simbolicamente, encontrando a possível inscrição no Outro.” A condução do caso pela juíza Marilena Soares parece prever a necessidade deste posicionamento que é demandado dela por parte de João. Esta profere uma sentença adequada às necessidades que se fazem presentes neste indivíduo, permitindo o trabalho de “depuração da consciência”, como o próprio livro cita. Durante o período preso em hospital de custódia, João apresenta conduta exemplar, participando inclusive na interação social entre o grupo de presos, no trabalho, contribuindo na posição de auxiliar de escritório no próprio manicômio, e, inclusive, sendo contemplado pela autorização da juíza, que permite que João possa estudar violão enquanto cumpre sua pena, por ter um ótimo relacionamento no presídio. FREUD (1930) fala da importância do trabalho para ação terapêutica e socialização de delinquentes: “A ênfase na importância do trabalho, tem maior efeito do que qualquer outra técnica de vida, no estabelecimento de uma maior aproximação do indivíduo com a realidade; em seu trabalho ele está pelo menos seguramente preso a uma parte da realidade humana, a comunidade humana. O trabalho é tão valioso para as oportunidades que juntamente com as relações humanas que lhe são implícitas proporciona para uma descarga considerável dos impulsos libidinais componentes, narcísicos, agressivos e mesmo eróticos, quando indispensável para a subsistência, que justifica a existência numa sociedade.” CONSIDERAÇÕES FINAIS A cena final do filme é de rica importância para o fechamento deste estudo, como uma ilustração e analogia pertinente, concluindo o ciclo que é proposto no início e paralelamente no final da trama. A relação que se expressa a partir da expressão “nascimento” identificada no cartão da juíza na primeira cena, e durante a cena final. Através do trecho final do filme, de aproximadamente três minutos, a começar pelo o que seria a primeira cena da obra, o enquadramento da camera focalizando João trabalhando no manicômio. Enquanto este trabalha, um dos dois policiais em um canto do escritório “cheira uma carreira de cocaína” e prontamente oferece à João, que recusa. A seguir se dá a leitura do cartão de natal, falando sobre o “lugar de verdadeiro nascimento”, desta vez narrada com a voz da própria juíza. Subitamente, na sequência, vê-se nas imagens uma cena do ponto-de-vista de um automóvel dentro do Túnel Rebouças, se dirigindo a saída para a Lagoa Rodrigues de Freitas, há uma elevação repentina da trilha sonora, com uma música emocionante. A camera foca no rosto de João enquanto observa as familiares paisagens de sua cidade natal, e chora ao lado dos amigos também emocionados. A analogia que se fecha entre o início e o final do filme é a questão do nascimento. A cena final é claramente uma analogia a um nascimento de fato, a saída do túnel escuro em direção a luz como umo “parto” de um novo sujeito, passagem a idéia de saída de útero, através das imagens, que poderia ser ligado a cena descrita anteriormente, a recusa da droga, a leitura do cartão e a introjeção da Lei. Ao recusar a droga João nos mostra a veracidade da mudança de fato instaurada, a possibilidade real de “cura” através da lei que abriga. A separação da simbiose com um universo pautado no prazer, eclodida no renascimento através da inscrição simbólica da Lei, como é sentida na cena final descrita. A credibilidade da reabilitação. João hoje é produtor musical, músico, cantor e compositor. “João Guilherme é a prova viva de que é viável recuperar as pessoas.” (Juíza Marilena Soares) REFERÊNCIAS FIUZA, G. Meu nome não é Johnny / Guilherme Fiuza – 8ª edição, Rio de Janeiro, Record, 2008. BENTO, V. E. S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: considerações sobre o conceito de narcisismo em Freud (1905) e sobre a paixão amorosa "tóxica" a partir de Freud. Revista ABP-APAL, v. 16, n. 4, 1994b, p. 154-164. BENTO, V. E. S. Introdução às justificativas clínicas e teóricas da hipótese das paixões “tóxicas. Estudos de psicologia, Campinas, v.27, n.1, p.109-120, 2010. BENTO, V. E. S. Para uma semiologia psicanalítica das toxicomanias: adicções e paixões tóxicas no Freud pré-psicanalítico. Revista Mal-estar e Subjetividade, v. 7, n. 1, 2007c, p. 89-121. GOMES, M. M; GUIMARÃES, M. A.de M.; BENTO, V. E. S. Da lei no estatuto da criança e do adolescente à uma psicanálise do adolescente em conflito com a Lei. Revista de estudos criminais, v.7, n.24, p.81-104, 2007.