Untitled - Blog da Editora Underworld
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THE IRON KING Tradução: Ana Death Duarte - Capítulo Um O fantasma no computador Meu pai desapareceu no dia do meu sexto aniversário. Dez anos já se passaram. Não, ele não foi embora. Partir implicaria malas e gavetas vazias, além de cartões de aniversário atrasados com notas de dez dólares dentro. Partir implicaria que estava infeliz com a minha mãe ou comigo, ou que havia encontrado um novo amor em algum outro lugar. Nada disso é verdade. Ele também não morreu, porque teríamos ficado sabendo se isso tivesse acontecido. Não houve acidente de carro, nada de corpo, nada de policiais indo de um lado para o outro na cena de um assassinato brutal. Tudo aconteceu em meio a muito silêncio. No dia do meu aniversário de seis anos, meu pai me levou ao parque, um dos meus locais prediletos naquela época. Era um parquezinho solitário no meio do nada, com uma trilha de corrida e uma lagoa verde nebulosa, rodeada de pinheiros. Estávamos à margem dessa lagoa, dando comida para os patos, quando ouvi a música de um caminhão de sorvete no estacionamento lá em cima, na colina. Quando implorei um picolé a meu pai, ele riu, me deu algumas notas na mão e falou para eu ir atrás do caminhão. Aquela foi a última vez em que o vi. Depois, quando a polícia realizou uma busca naquela área, encontraram os sapatos do meu pai na beira da água – mas nada além disso. Mandaram mergulhadores fazer uma outra busca, dessa vez na água, mas a lagoa tinha apenas uns três metros de profundidade. E galhos de árvore e lama foi tudo que encontraram lá embaixo. Meu pai havia desaparecido sem deixar rastros. Durante meses depois disso, eu tive um pesadelo recorrente em que ficava em pé no topo daquela colina, olhando para baixo e vendo meu pai caminhar direto para dentro da lagoa. Enquanto a água cobria sua cabeça, eu podia ouvir a musiquinha do caminhão de sorvete ao fundo, mas era uma música lúgubre, com palavras que eu quase conseguia entender. Quase. Toda vez que eu tentava entender mesmo o que dizia a tal música, eu acabava acordando. Não muito tempo depois do desaparecimento do meu pai, minha eu e minha mãe nos mudamos para bem longe, fomos para uma cidadezinha rural minúscula bem no meio da região do rio Louisiana. Minha mãe dizia que queria ‘recomeçar’, mas bem lá no fundo, eu sempre soube que ela estava fugindo de alguma coisa. Mais dez anos se passariam até que eu descobrisse do que ela fugia. Meu nome é Meghan Chase. Em menos de vinte e quatro horas será meu aniversário de dezesseis anos. Meus doces dezesseis anos. Uma idade mágica. Quando, ao menos em teoria, as garotas se tornam princesas, acabam se apaixonando, indo a bailes e danças de formatura e fazem outras coisas do gênero. Inúmeras histórias e canções, além de diversos poemas, já foram escritos sobre essa idade maravilhosa, quando uma garota encontra o verdadeiro amor, as estrelas brilham para ela e o belo príncipe a leva embora com ele enquanto o sol se põe. Eu não achava que comigo seria assim. Na manhã anterior ao meu aniversário, acordei, tomei banho e revirei a minha cômoda em busca de algo para vestir. Normalmente eu só pegaria qualquer coisa mais ou menos limpa que estivesse no chão, mas hoje era um dia especial. Hoje era o dia em que Scott Waldron finalmente me notaria. Eu queria estar com o visual perfeito. É claro que, infelizmente, eu não tenho aquelas roupas que me tornariam popular, roupas que são usadas por pessoas populares. Enquanto as outras garotas passam horas em frente a seus closets, chorando e se perguntando: ‘O que eu vou vestir?’, nas minhas gavetas tenho basicamente três coisas: roupas que me foram doadas, roupas compradas em brechós e macacões. Como eu gostaria que não fôssemos tão pobres! Eu sei que o trabalho em uma fazenda de criação de porcos não é exatamente um dos mais glamourosos, mas bem que minha mãe poderia ter dinheiro para comprar pelo menos uma calça jeans legal para mim. Olhei com um misto de ódio e desgosto para o meu escasso guarda-roupa. Ah, bem, acho que o Scott vai ter que ficar embasbacado mesmo é com a minha graça e com o meu charme naturais. Isso se eu não fizer papel de idiota na frente dele, é claro. Por fim eu acabo escolhendo uma calça cargo, vestindo também uma camiseta de um tom neutro de verde, e colocando o meu único par de tênis todo detonado, antes de passar uma escova nos meus cabelos loiros quase brancos. Meus cabelos são lisos e muito finos, e as drogas dos fios estavam elétricos de novo. Parecia que eu tinha enfiado o dedo numa tomada. Fui descendo as escadas, enquanto os prendia num rabo de cavalo. Meu padrasto, Luke, estava sentado à mesa, bebendo café e folheando um dos jornais dessa cidadezinha, um jornalzinho que mais parece uma coluna de fofocas de alguma escola secundária do que uma fonte genuína de notícias. “Bezerro de cinco patas nasce na fazenda dos Patterson” é a manchete gritante da primeira página; deu pra ter uma ideia, não? Ethan, meu meio-irmão de quatro anos e meio, estava sentado no colo do pai, comendo um pop tart1 e deixando cair várias migalhas no macacão do Luke. Estava com o Floppy2, seu coelhinho de pelúcia predileto, preso no braço, e de vez em quando tentava fazer com que o bichinho comesse seu café da manhã; a carinha do coelho estava cheia de migalhas e baba. Ethan é um bom garoto. Ele tem os cabelos encaracolados e castanhos, que nem os do pai, e herdou os grandes olhos azuis da minha mãe. É o tipo de garotinho que faz as velhinhas pararem para falar com ele, cheias de ternura, e para quem estranhos acenavam do outro lado da rua. Minha mãe e o Luke mimam muito o filhinho deles, mas isso não parece estragar o menino... ainda bem! “Onde está a minha mãe?”, perguntei ao entrar na cozinha. Abrindo as portas do armário, procurei dentre as caixas de cereal por aquela que eu queria, me perguntando se minha mãe havia se lembrado de comprá-la. É claro que não! Não havia 1 Pop tart é um tipo de bolinho da Kellog’s, geralmente comidos frio, mas que pode ser aquecido em forninhos ou no micro-ondas. 2 Floppy quer dizer “flexível”. nada ali além de cereais com fibras, e os de marshmallow – que desgosto! – para o Ethan. Era tão difícil assim se lembrar de comprar Cheerios3 pra mim? Luke me ignorou e continuou bebendo seu café. Ethan estava comendo seu pop tart e espirrou no braço do pai, o que me deixou satisfeita. Bati com força as portas do armário da cozinha. “Onde está a minha mãe?”, perguntei, um pouco mais alto dessa vez. Luke levantou um pouco a cabeça e por fim olhou para mim. Seus preguiçosos olhos castanhos, iguais aos de uma vaca, mostravam uma leve surpresa. “Ah, oi, Meg”, disse ele, numa voz calma. “Não ouvi você entrar. O que foi que você disse?” Soltei um suspiro e repeti a minha pergunta pela terceira vez. “Ela foi a uma reunião com algumas das senhoras lá na igreja”, Luke me informou, numa voz que era mais um murmúrio, voltando em seguida a ler seu jornal. “Ela vai demorar algumas horas para voltar, então você vai ter que pegar o ônibus.” Eu sempre pegava o ônibus. Só queria lembrar a minha mãe de que ela precisava me levar para tirar minha carteira de aprendiz de motorista nesse final de semana. Tentar conversar com o Luke era inútil. Eu poderia lhe dizer alguma coisa catorze vezes diferentes, e ele esqueceria o que disse no exato momento em que eu saísse da sala. Não que o Luke fosse malvado ou mal-intencionado, nem mesmo um imbecil. Ele adorava Ethan e minha mãe parecia feliz com ele. De verdade. Porém, toda vez que eu falava com o meu padrasto, ele olhava para mim com uma surpresa genuína, como se tivesse esquecido que eu morava ali também. 3 Cheerios é uma marca de cereal para café da manhã da General Mills, que surgiu no mercado no dia 1o. de maio de 1941, sendo o primeiro cereal com base em aveia pronto para ser comido frio. Peguei um bagel4 de cima da geladeira e fiquei mastigando-o devagar, de olho no relógio. Beau5, nosso pastor alemão, entrou e colocou a cabeça enorme no meu joelho. Fiz carinho atrás das orelhinhas dele, ao que o cão respondeu com um grunhido de alegria. Pelo menos o cachorro gostava de mim. Luke levantou-se, colocando Ethan com gentileza de volta em sua cadeira. “Tudo bem, garotinho crescidinho”, ele disse, beijando-o no alto da cabeça. “O papai aqui tem que arrumar a pia do banheiro, então fica aí sentado e bonzinho. Quando eu tiver acabado lá, vamos dar comida aos porcos, tá?” “Tá”, disse Ethan, com uma voz que parecia mais o pio de um passarinho, balançando as perninhas gorduchas dele. “O Floppy quer ver se a Sra. Daisy já teve os bebezinhos.” O sorriso cheio de orgulho de Luke por causa do filho era tão desgostoso que senti náuseas. “Hei, Luke”, eu disse, quando ele se virou para sair, “aposto que você não sabe que dia é amanhã.” “Hum?” Ele nem mesmo se virou. “Não sei não, Meg. Se você tiver planejado algo para amanhã, fala com a sua mãe.” Ele estalou os dedos e Beau imediatamente me largou ali para acompanhá-lo. O som de suas pegadas foi sumindo enquanto subia as escadas, e fiquei sozinha com meu meio-irmão. Ethan chutou o ar com seus pezinhos, olhando para mim daquele jeito solene dele. “Eu sei”, anunciou educadamente, colocando seu pop tart na mesa. “Amanhã é seu aniversário, não é? O Floppy me contou e eu lembrei.” 4 Bagel é um pão em forma de rosca. 5 Beau, em francês, quer dizer ‘bonito’, ‘belo’. “É”, murmurei. Então eu me virei e tentei fazer uma cesta com o bagel, que acertou a parede e depois caiu dentro da lata de lixo, deixando uma mancha de gordura por cima da tinta. Soltei um sorriso amarelo e decidi deixar isso pra lá. “O Floppy me disse para desejar a você um Feliz Aniversário Adiantado.” “Agradece ao Floppy por mim.” Despenteei o cabelo quando saí da cozinha, com meu humor completamente azedo. Eu sabia! Sabia que minha mãe e o Luke iam esquecer que meu aniversário era amanhã. Não ganharia cartão, nem bolo, nem mesmo um ‘feliz aniversário’ de ninguém. Só da droga do coelhinho de pelúcia do meu irmãozinho. Que patético isso, não? De volta ao meu quarto, peguei meus livros, a lição de casa, umas roupas de ginástica e o iPod que comprei com um ano de economias, apesar do desdém do Luke por essas ‘engenhocas inúteis, que deixam as pessoas com cérebro de passarinho’. Como um verdadeiro caipira, meu padrasto não gosta de nada que possa facilitar a vida das pessoas, além de não confiar nessas coisas que ele chama de engenhocas. Celulares? De jeito nenhum, temos uma linha de telefone fixo perfeitamente funcional. Videogames? São instrumentos do Diabo, que transformam as crianças em delinquentes e serial killers. Implorei diversas vezes que minha mãe comprasse um notebook para eu usar na escola, mas Luke insiste que, se aquele trambolho daquele PC velho dele é bom o bastante para ele, também é ótimo para a família toda. E daí que a conexão discada demora uma eternidade para começar a funcionar? Tipo, quem usa conexão discada ainda hoje em dia? Olhei no meu relógio para ver as horas e soltei vários palavrões em sequência. O ônibus ia chegar logo e eu ainda tinha uma boa caminhada de uns dez minutos até chegar à estrada principal. Ao olhar pela janela, vi que o céu estava cinza e as nuvens tinham aquela cara de que iam despejar sobre a gente uma chuva das pesadas, então peguei uma jaqueta também. E, não pela primeira vez, desejei morar mais perto da cidade. Juro que quando eu tiver uma carteira de motorista e um carro, nunca mais vou pisar nesse lugar. “Meggie?” Ethan estava parado ali na entrada, prendendo seu coelhinho com o queixo. Com seus olhos azuis voltados para mim, um ar sombrio naquele olhar. “Posso ir com você hoje?” “O quê?”, perguntei, encolhendo os ombros enquanto vestia minha jaqueta, e procurei por minha mochila ali à minha volta. “Não, Ethan. Eu vou pra escola agora. Escola de gente grande; não é para criancinhas que nem você.” Eu me virei e senti dois bracinhos envolvendo minhas pernas. Colocando a mão na parede para evitar minha queda, olhei feio para o meu meio-irmão. Ethan se agarrou a mim como se fosse um cachorro, com o rosto inclinado para cima, olhando para o meu, o maxilarzinho tenso. “Por favor!”, ele me implorou. “Vou ser bonzinho, eu prometo. Me leva com você? Só hoje?” Com um suspiro, eu me abaixei e peguei-o do chão. “Que foi, pequenino?”, perguntei, tirando os cabelos da frente dos olhinhos dele. Nossa mãe teria que cortar os cabelos dele em breve; estava começando a parecer um ninho de rato. “Você está horrivelmente grudento hoje. O que está acontecendo?” “Tô com medo”, murmurou Ethan, enterrando o rostinho no meu pescoço. “Você está com medo?” Ele balançou a cabeça em negativa. “O Floppy está com medo.” “Do que o Floppy está com medo?” “Do homem que tem dentro do armário.” Senti um leve calafrio percorrer minhas costas, de baixo até em cima. Às vezes, Ethan ficava tão quieto e sério, que era difícil me lembrar que tinha apenas quatro aninhos. Ele ainda tinha aqueles medos infantis de monstros debaixo da cama, do bicho-papão e do monstro do armário6. No mundo de Ethan, bichinhos de pelúcia falavam com ele, homens invisíveis acenavam para ele detrás dos arbustos e criaturas assustadoras ficavam batendo com suas longas unhas na janela de seu quarto. Raramente ele ia procurar a minha mãe ou o Luke para falar dos monstros e do bichopapão; desde quando ficou grandinho o bastante para andar, ele sempre vinha me procurar para falar disso. Soltei um suspiro, sabendo que ele queria que eu fosse lá em cima e desse uma olhada, para garanti-lo de que não havia nada à espreita nem em seu armário, nem debaixo de sua cama. Era pra isso que eu tinha uma lanterna na cômoda dele. Do lado de fora da casa, os relâmpagos brilhavam no céu e trovões estrondosos rugiam ao longe. Dei um passo para trás. Minha caminhada até o ponto de ônibus não seria nada agradável. Que droga! Não tenho tempo pra isso. 6 No original, “boogeymen”, que recebe diversos nomes, em cada cultura diferente, aparece com as seguintes grafias, no singular: bogeyman, boogyman ou boogeyman. É um monstro lendário em que as crianças costumam acreditar, sendo um termo amplo e metafórico para representar algo de que se tem um medo irracional. Alguns dizem que sua origem é escocesa. Na Escócia, são chamados, às vezes, de “boggles”, “boggarts”, ou ainda “bogies”. No Brasil, costuma-se usar o termo “bicho-papão”, além do “monstro do armário” ou “homem do saco”, formas criadas para assustar as crianças e levá-las à obediência. Ainda, na época das Cruzadas, os muçulmanos personificavam o “boogeyman” no Rei Ricardo Coração de Leão. Ethan, por sua vez, tentou se afastar, e olhou para mim, com olhinhos suplicantes. Soltando mais um suspiro, eu disse, num murmúrio: “Tudo bem”, colocando-o no chão. “Vamos ver se tem algum monstro lá.” Subi as escadas e ele me acompanhou em silêncio, observando ansioso enquanto eu pegava a lanterna e me ajoelhava, iluminando embaixo da cama. “Não tem nenhum monstro aqui não”, anunciei, me levantando. Caminhei até a porta do armário e escancarei-a, enquanto Ethan ficava espiando por entre as minhas pernas. “Nenhum monstro aqui também. Acha que vai ficar bem agora?” Ele fez que sim com a cabeça e olhou para mim, com um sorrisinho se formando nos lábios. Ia fechar a porta do armário quando percebi que havia um estranho chapéu cinza no canto. A parte de cima dele era arredondada, sua borda era circular e tinha uma fita vermelha em volta da base: era um chapéu de feltro. Que bizarro! Por que isso estaria ali? Conforme fui endireitando minha postura e me preparava para me virar, algo se mexeu – e eu vi aquilo com o cantinho do olho. Vislumbrei uma figura se escondendo atrás da porta do quarto do Ethan, e os olhos claríssimos da criatura me observavam pela fresta da porta. Virei a cabeça para ver melhor, mas é claro que não havia nada ali. Nossa, agora o Ethan conseguiu fazer com que eu começasse a ver monstros imaginários! Preciso parar de ficar assistindo àqueles filmes de terror tão tarde da noite. Um estrondo de trovão bem acima da minha cabeça me fez ter um sobressalto, e pingos gigantescos atingiam os vidros das janelas como se fossem tiros. Correndo e deixando Ethan para trás, saí voando da casa e desci a entrada de carros a toda velocidade. Estava ensopada quando cheguei no ponto de ônibus. A chuva tardia de primavera não estava gélida, mas era fria o suficiente a ponto de ser desconfortável. Cruzei os braços e me encolhi debaixo de um cipreste coberto de musgo, esperando o ônibus chegar. Onde será que está o Robbie?, eu me perguntei, com os olhos lá na estrada. Geralmente ele já está aqui a essa hora. Talvez não estivesse a fim de ficar todo ensopado e tenha ficado em casa. Ao pensar nisso, bufei e revirei os olhos. Matando aula de novo, é? Preguiçoso! Bem que eu gostaria de fazer isso. Ah, se eu tivesse um carro! Eu sabia que alguns garotos e garotas ganhavam carros dos pais no aniversário de dezesseis anos. Eu? Teria muita sorte se ganhasse um bolo! A maioria dos meus colegas de classe já tinham carteiras de motorista, e iam, eles mesmo dirigindo, a festas e a qualquer lugar aonde quisessem ir. Eu sempre era deixada para trás, a garota caipira e tímida que ninguém nunca queria convidar para fazer nada. A exceção era o Robbie, pensei, me corrigindo, e encolhendo mentalmente os ombros. Só um pouquinho. Pelo menos o Robbie vai lembrar. Que coisa maluca será que ele planejou para meu aniversário amanhã? Eu quase poderia garantir que seria algo estranho ou insano. No ano passado, ele me arrastou para fora de casa para fazermos um piquenique à meia-noite no bosque. Foi bem bizarro; eu me lembro do vale montanhoso e da lagoazinha com os vaga-lumes de um lado para o outro em cima dela, mas embora tivesse explorado o bosque que ficava atrás da minha casa inúmeras vezes desde então, nunca mais consegui encontrar aquele lugar. Ouvi um farfalhar nos arbustos atrás de mim. Provavelmente era um gambá ou um cervo, ou talvez até mesmo uma raposa, buscando abrigo da chuva. Os animais selvagens daqui eram estupidamente atrevidos e tinham pouco medo dos humanos. Se não fosse Beau, o jardim dos vegetais e legumes da minha mãe seria um bufê para os coelhos e para os cervos, e a família local de guaxinins iria servir-se de tudo que tínhamos em nossos armários da cozinha. Ouvi um galho de árvore se partir, dessa vez mais perto. Eu me mexi, desconfortável ali, determinada a não me virar por causa de alguma droga de um esquilo ou de um guaxinim. Não sou como a Angie, a ‘Madame-Seios-Enormes’, a Senhorita Líder de Torcida, que ficaria louca se visse um gerbil7 numa gaiola, ou uma mancha minúscula de sujeira em sua calça jeans da Hollister. Eu catava o feno e matava ratos, além de conduzir os porcos pela lama... cheia de lama até os joelhos. Animais silvestres não me assustam. Ainda assim, olhei para o fim da estrada, na esperança de ver o ônibus virando a esquina. Talvez fosse a chuva e minha própria imaginação doentia, mas o bosque parecia o set de filmagens de ‘A Bruxa De Blair’8. Não tem nenhum lobo nem serial killer aqui, falei pra mim mesma. Para de ser paranoica. De súbito, a floresta ficou muito silenciosa. Eu me apoiei na árvore e comecei a tremer e tentei, por meu do meu desejo e da minha vontade, fazer com que o ônibus aparecesse. Ali parada, senti um calafrio rastejando pelas minhas costas. Com cuidado, ergui o pescoço e espiei através das folhas. Um enorme pássaro preto estava 7 O gerbil também é conhecido como ‘rato do deserto’. 8 “A Bruxa de Blair” (The Blair witch Project) é um filme norte-americano, de 1999, filmado de forma que parecesse um documentário, escrito e dirigido por Daniel Myrick e Eduardo Sánchez. O filme mostra os últimos cinco dias de três pessoas perdidas nas florestas de Burkittsville que, depois de entrevistarem moradores do local, encontram e ouvem na floresta coisas estranhas, como gritos, choros de criancinhas e inexplicáveis pilhas de pedras e galhos amarrados em árvores. empoleirado em um galho, com as penas espetadas por causa da chuva, sentado, imóvel como uma estátua. Enquanto eu o olhava, o bicho virou a cabeça, e seus olhos, verdes como vidro colorido, encontraram os meus. E foi então que alguma coisa esticou a mão em volta da árvore e me pegou. Gritei e dei um pulo, indo parar longe, com o coração batendo como uma marreta, querendo sair pelos meus ouvidos. Eu me virei e me preparei para fugir, com a mente cheia de pensamentos sobre estupradores, assassinos e o Leatherface9 do filme O Massacre da Serra Elétrica. Ouvi uma explosão de gargalhadas atrás de mim, e parei. Robbie Goodfell10, meu vizinho mais próximo – o que quer dizer que ele morava há mais de 2 km de distância da minha casa –, estava apoiado no tronco da árvore, ofegante de tanto dar risada. Magrelo e alto, usando uma calça jeans surrada e uma camiseta velha, Robbie parou de rir um pouco para olhar para o meu rosto pálido, antes de cair na gargalhada de novo. Seus cabelos vermelhos espetados estavam emplastrados e colados em sua testa, e suas roupas, grudadas na pele, enfatizando a estrutura magra e ossuda dele, embora seus membros destoassem de seu corpo. Apesar 9 Leatherface, cuja tradução literal é “rosto de couro”, é um personagem da série de filmes “O Massacre da Serra Elétrica”. Sendo um dos primeiros vilões de filmes de terror, e tendo aparecido em todos os seis filmes da série, desde o primeiro, de 1974, o canibal Leatherface usa uma máscara feita de pele humana, e foi devido a esta peculiaridade que lhe deram esse nome. 10 O nome do amigo de Meghan, Robbie Goodfell, é claramente inspirado em Robin Goodfellow, famoso por suas travessuras maldosas. Puck, o bobo da corte das fadas, é identificado com a figura do Robin Goodfellow que, segundo as lendas, à noite, realiza alguns serviços para a família da qual ele cuida. Puck, também conhecido como Robin Goodfellow, é ainda um personagem da famosa peça “Sonho de uma Noite de Verão”, de William Shakespeare, que também aparece na história (homônima) em quadrinhos de Sandman de Neil Gaiman, com a belíssima arte de Charles Vess. de estar ensopado, coberto por galhos finos, folhas e lama, nada disso o incomodava. Poucas coisas tinham o dom de incomodá-lo. “Droga, Robbie!”, gritei, com raiva, batendo os pés e mirando para chutá-lo. Ele esquivou-se do meu chute e foi cambaleando até a estrada, com o rosto vermelho de tanto rir. “Isso não foi nada engraçado, seu idiota! Você quase me fez ter um ataque do coração!” “D-desculpa, princesa”, disse Robbie, arfando, apertando o peito na altura do coração enquanto tentava respirar. “É que foi tão perfeito!” Ele deu uma última gargalhada, segurando as costelas enquanto fazia isso. “Cara, foi impressionante. Você deve ter pulado mais ou menos um metro no ar. Que foi? Achou que era o Leatherface ou algo do gênero?” “É claro que não, imbecil”. Eu me virei, desviando o olhar dele, ofendida, tentando esconder meu rosto que ardia de tão vermelho. “E eu já falei pra você não me chamar mais de princesa! Não tenho mais dez anos de idade! “Com certeza, minha princesa.” Revirei os olhos e soltei a seguinte pergunta: “Alguém já lhe disse que você tem a maturidade de uma criancinha de quatro anos?” Ele riu, todo alegre. “Olha quem está falando! Não fui eu quem ficou acordado a noite toda com as luzes acesas depois de ver ‘O Massacre da Serra Elétrica’. Eu tentei avisar você...” Ele fez uma careta grotesca e veio cambaleando na minha direção, com os braços abertos. “Ooooh, cuidado, é o Leatherface.” Franzi a testa e chutei água pra cima dele. Que fez o mesmo comigo, rindo ainda. Na hora em que o ônibus chegou, uns minutos depois, estávamos os dois cobertos de lama, pingando de tão molhados, e o motorista falou para irmos nos sentar lá atrás. “O que você vai fazer depois das aulas?”, me perguntou Robbie enquanto nos ajeitávamos lá no banco de trás, bem atrás mesmo no ônibus. A nossa volta, os alunos conversavam, contavam piadas, riam e, de modo geral, não prestavam atenção em nós dois. “Quer tomar um café depois? Ou poderíamos entrar no cinema de fininho e ver um filme.” “Hoje não, Rob”, eu respondi, tentando espremer minha camiseta e tirar a água dela. Agora que tinha acabado, eu me arrependia de nossa luta na lama. Eu ia parecer o Monstro da Lagoa Negra11 na frente do Scott. “Você vai ter que fazer isso sem mim dessa vez. Vou ser instrutora de uma pessoa depois das aulas.” No reflexo, os olhos verdes de Robbie ficaram estreitos. “Instrutora de uma pessoa? Instrutora de quem?” Meu coração palpitou e tentei não deixar escapar um sorriso idiota. “Scott Waldron.” “O quê?” O lábio de Robbie curvou-se em uma careta de desgosto. “O jogadorzinho?12 Por que, ele precisa que você o ensine a ler?” 11 O monstro da Lagoa Negra é a criatura do filme de ficção científica de 1954, chamado “Creature from the Black Lagoon”, que é o último sobrevivente de uma espécie de humanoides anfíbios que viveram na Era Devoniana e habitavam uma lagoa localizada em uma parte inexplorada da Floresta Amazônica. Ao que tudo indica, no filme, os nativos já conheciam tal criatura, já que o capitão do barco usado pelos pesquisadores menciona uma lenda local sobre “homens-peixe”. 12 No original, “jockstrap” é um termo pejorativo para se referir a atletas em geral, e, aqui, a um jogador de futebol americano. Jockstrap é um “protetor de testículos”, usado pelos referidos atletas e jogadores para proteger a região nas atividades esportivas. Franzi a testa e olhei para ele. “Só porque ele é o capitão do time de futebol, isso não quer dizer que você possa agir como um imbecil. Ou está com ciúmes?” “Ah, sim, claro. É isso mesmo”, disse Robbie, em tom de desdém. “Eu sempre quis mesmo ter o QI de uma pedra! Não, espera. Isso seria um insulto às pedras”, completou ele, bufando. “Não acredito que você esteja caidinha pelo jogadorzinho. Você pode conseguir coisa tão melhor, princesa.” “Não me chama de princesa!” Desviei o olhar para esconder meu rosto, vermelho de novo. Fervendo. “E só vou ensiná-lo algumas coisas, só isso. Ele não vai me chamar para ir ao baile de formatura. Nossa!” “Certo.” Robbie não parecia convencido. “Ele não vai, mas você espera que ele faça isso. Admite, vai. Você está babando por ele, não muito diferente de todas as líderes de torcida cabeça-oca da escola.” “E daí se eu estiver?”, perguntei, irritada, me virando para ficar de novo de frente para ele. “Não é da sua conta, Rob. O que você tem a ver isso, hein?” Ele ficou muito quieto, murmurando coisas ininteligíveis bem baixinho. Virei as costas para ele e fiquei olhando para fora, pela janela do ônibus. Eu não me importava com o que ele havia dito. Nessa tarde, por uma hora gloriosa, Scott Waldron seria só meu, e ninguém iria atrapalhar isso. As aulas foram se arrastando. Tudo que os professores falavam era um monte de baboseira, e os ponteiros dos relógios pareciam estar andando para trás. A tarde foi se arrastando também e para mim era como se tudo estivesse envolto em brumas. Por fim – até que enfim! –, o sinal que anunciava o fim da última aula tocou. Minha libertação da tortura infinita de problemas de x é igual a y! Hoje é o dia!, disse a mim mesma enquanto fazia manobras para atravessar os corredores lotados de alunos da escola pública Albany. Meus tênis molhados chiavam sobre o piso conforme eu andava, e um miasma de suor, fumaça e odores corporais pesados no ar. O nervosismo sacudindo as minhas entranhas. Você vai conseguir. Não fica pensando nisso; é só ir até lá e acabar logo com isso. Desviando dos alunos, fui percorrendo o corredor e dei uma espiada para dentro da sala dos computadores. Lá estava ele, sentado em uma carteira, com ambos os pés em cima de uma outra cadeira. Scott Waldron, capitão do time de futebol. O belo Scott. Scott, o Rei da Escola. Vestia uma jaqueta do time de futebol vermelha e branca que deixava em destaque seu peito largo, e seus pelos grossos e loiro escuros roçavam o colarinho. Meu coração batia muito. Era algo insano mesmo. Uma hora inteirinha na mesma sala com Scott Waldron, sem nenhuma líder de torcida e nenhum jogador de futebol entre mim e ele. Normalmente, eu nem mesmo poderia chegar perto assim de Scott; ele vivia cercado de Angie e seu grupinho de tietes, ou os camaradas dele do time. Havia outros alunos no laboratório de informática com a gente, mas ou eram nerds ou daqueles tipos acadêmicos; Scott Waldron nem os notaria. E os jogadores e as líderes de torcida não estariam ali nem mortos, se pudessem evitar. Respirei fundo e entrei na sala. Ele não olhou para mim, nem de relance, quando passei ao lado dele. Estava jogado, relaxado na cadeira, com os pés para cima e a cabeça jogada para trás, brincando de jogar uma bola invisível pela sala. Limpei a garganta. Ele nem me notou. Pigarreei de novo, um pouco mais alto dessa vez. Nada ainda. Reunindo minha coragem, dei um passo, fiquei na frente dele e fiz um aceno com a mão. Seus olhos castanhos, cor de café, ergueram-se e encontraram os meus. Por um momento, ele parecia surpreso. Então ergueu uma de suas sobrancelhas, formando um arco preguiçoso, como se ele não pudesse nem imaginar por qual motivo eu desejaria falar com ele. Ah, não. Diz alguma coisa, Meg. Algo inteligente. “Hum…”, eu disse, gaguejando, “Oi, eu sou a Meghan. Eu me sento atrás de você. Na aula de informática.” Ele ainda estava olhando para mim com aquela cara de quem não estava entendendo nada, e senti o calor tomando conta das minhas bochechas. “Hum... Eu não vejo muito essas coisas de esporte, mas acho que você é um excelente quarterback13... não que eu tenha visto muitos... bem, só você mesmo, pra falar a verdade. Mas me parece que você sabe o que está fazendo. Mesmo. Vou a todos os seus jogos, sabe? Geralmente fico lá atrás, então é bem provável que você não me veja.” Ah, meu Deus! Cala a boca, Meg! Cala a boca agora. Pus a mão na boca para fazê-la calar-se, para pôr um fim naquelas baboseiras que eu dizia sem parar, e a minha vontade era de rastejar para dentro de um buraco e morrer. O que eu estava pensando quando concordei com isso? Era melhor ser invisível do que parecer uma vadia, especialmente na frente do Scott. Ele ficou pestanejando, preguiçosamente, e tirou os fones dos ouvidos. “Me desculpa, gata”, ele falou, num tom baixinho e também preguiçoso, com aquela voz rouca dele. “Eu não ouvi o que você falou.” Scott olhou para mim com um ar de crítica naqueles olhos e soltou um sorriso amarelo. “É você que vai ser minha instrutora?” “Hum, sim.” Endireitei minha postura e reuni os restos de dignidade que ainda tinha. Meu nome é Meghan. O Sr. Sanders me pediu para ajudar você com seu projeto de programação.” 13 Quarterback é o jogador de futebol americano que recebe a bola do centro e dirige as ofensivas. Ele continuou olhando para mim, com aquele sorriso sem graça nos lábios. “Você não é aquela garota caipira que mora lá no pântano? Você sabe o que é um computador, sabe?” Meu rosto ficou vermelho de raiva, como se estivesse pegando fogo. Em chamas. Meu estômago se contraiu e virou uma bolinha bem pequenininha. Ok, então eu não tinha um computador excelente em casa. E daí? É por esse motivo que eu passava a maior parte da minha tarde depois das aulas aqui, no laboratório, fazendo a lição de casa ou apenas navegando na Internet. Programação e web design eram duas coisas com as quais eu tinha facilidade. Eu sabia usar bem um computador, droga! Porém, ao me deparar com a crítica de Scott, tudo que consegui fazer foi falar, gaguejando: “É-é, sei sim. Eu sei muita coisa.” Ele olhou para mim com um ar de dúvida e senti a ferroada em meu orgulho ferido. Tinha de provar a ele que eu não era a caipira retardada que ele achava que eu era. “Veja, vou mostrar a você”, eu me ofereci, esticando a mão para usar o teclado que estava sobre a mesa. Então algo estranho aconteceu. Eu nem tinha encostado nas teclas e, na tela do computador, teve início uma espécie de transmissão. Quando parei, com os dedos pairando sobre o teclado, palavras começaram a rolar pela tela azul. Meghan Chase. Nós estamos vendo você. Estamos vindo atrás de você. Fiquei paralisada. As palavras continuaram a aparecer, aquelas mesmas três frases, repetidas vezes. Meghan Chase. Nós estamos vendo você. Estamos vindo atrás de você. Meghan Chase nós estamos vendo você nós estamos vindo atrás de você. MeghanChase nósestamosvendovocênósestamosvindoatrásdevocê… várias vezes, sem parar, até ocuparem toda a tela. Scott inclinou-se para trás em sua cadeira, me fuzilando com aquele olhar de ódio, e depois olhou para o computador. “O que é isso?”, ele perguntou, franzindo a testa. “Que diabos você está fazendo, sua aberração?” Empurrando-o para o lado, balancei o mouse, apertei a tecla Escape, e depois Ctrl/Alt/Del, tudo isso para tentar fazer parar de aparecer aquelas infinitas frases. Nada disso funcionou. De repente, do nada, as palavras pararam de aparecer e a tela ficou em branco por um momento. Em seguida, em letras garrafais, uma outra mensagem piscava à nossa frente: SCOTT WALDRON ESPIA OS RAPAZES NO CHUVEIRO, ROFL14. Eu estava arfando. A mensagem começou a rolar pelas telas de todos os computadores, como se estivesse andando pela sala, multiplicando-se pelas telas, e eu estava me sentindo impotente, pois não tinha como fazer com que aquilo parasse. Os outros alunos em todas as carteiras pararam de fazer o que estavam fazendo, chocados por um instante, e depois começam a apontar para ele e cair na risada. Eu podia sentir o olhar de Scott como se fosse uma faca cortante em minhas costas. Com medo, me virei na direção dele e vi que estava me fulminando com os olhos, com a respiração bem pesada. O peito arfante. O rosto dele estava vermelho carmesim, um vermelho bem forte, brilhante e profundo, fosse de raiva ou de vergonha – não sei dizer –, e ele começou a falar, apontando com o dedo para mim: “Você acha isso engraçado, é, garotinha do pântano? Acha, é? Pode esperar que vou mostrar pra você o que é engraçado. Você acabou de cavar seu próprio túmulo, vadia.” 14 Roling on the floor laughing – Rolando no chão de tanto rir. Ele saiu que nem um torpedo da sala, com o eco das gargalhadas formando uma trilha atrás dele. Uns poucos alunos abriram imensos sorrisos, olhando para mim, e me aplaudiram, fazendo sinal de positivo com os polegares também. Um deles até mesmo piscou pra mim! Meus joelhos tremiam. Caí numa cadeira e fiquei olhando, pasma, para a tela do computador, que de repente se desligou, levando a mensagem ofensiva consigo. Mas o estrago já havia sido feito. Minhas entranhas ficaram agitadas, e senti umas pontadas atrás dos olhos. Enterrei o rosto nas minhas mãos. Estou morta. É isso; fim de jogo, Meghan. Será que a minha mãe vai me deixar me mudar para uma escola particular no Canadá? Uma risada bem baixinha cortou meus pensamentos sombrios e levantei a cabeça para ver de onde vinha. Agachado em cima do monitor, com a silhueta negra em contrate com a janela aberta, havia uma coisa, minúscula e disforme. Uma coisa comprida, esguia e macilenta que tinha braços longos e finos, e orelhas de morcego enormes! Olhos verdes como os de um gato preto, com aquela fenda no lugar da íris, estavam me observando do outro lado da mesa, reluzindo, cheios de inteligência. A coisa abriu um largo sorriso, deixando entrever um punhado de dentes pontudos brilhando, um brilho azul néon, antes de sumir, como uma imagem na tela do computador. Fiquei sentada ali, com o olhar fixo no lugar em que a criatura estava, minha cabeça girando para dezenas de lugares diferentes, tudo de uma vez só. Certo! Isso é mesmo o máximo. Não basta Scott me odiar, como estou começando a ter alucinações também. Meghan Chase: vítima de um ataque de nervos com quinze anos de idade. É melhor me internarem logo, porque com certeza eu não vou sobreviver a mais um dia na escola. Forçando-me a arrumar minha postura, segui, arrastando os pés, andando como se fosse um zumbi, até o corredor. Robbie esperava por mim perto dos armários, com uma garrafa de refrigerante em cada uma das mãos. “Hei, princesa”, foi como ele me cumprimentou, enquanto eu passava por ele, toda desajeitada. “Você saiu cedo. Como foi a sua aulinha com o Scott?” “Não me chama de princesa”, murmurei, batendo a cabeça no meu armário. “E a ‘aulinha’ foi fabulosa. Por favor, pode me matar agora.” “Isso é bom, hein?” Ele jogou uma Diet Coke pra mim, que quase não consegui pegá-la no ar, e abriu sua root beer15, que sibilou, soltando espuma ao ser aberta. Dava para ouvir o sorriso enorme na voz dele. “Bem, acho que posso falar ‘Eu disse...’” Olhei furiosa para ele, soltando adagas com os olhos, deixando claro que ele não deveria se atrever a continuar. O sorriso sumiu do rosto de Robbie. “... mas... não vou.” Ele franziu os lábios, tentando não rir, nem mesmo sorrir. “Porque... isso seria errado.” “O que você está fazendo aqui, afinal?”, eu quis saber. “A essa hora todos os ônibus já foram embora. Você estava espreitando o laboratório de informática, esperando que eu aparecesse? Que nem um stalker assustador e sinistro?” Rob tossiu alto e bebeu um grande gole de sua root beer. “Hei, eu estava aqui pensando...”, ele continuou, todo animado, “o que você vai fazer no seu aniversário amanhã?” Vou me esconder no meu quarto e enfiar minha cabeça debaixo das cobertas, pensei, mas encolhi os ombros e abri a porta do meu armário. “Não sei. Qualquer coisa. Não 15 Root beer é um refrigerante comum nos Estados Unidos, feito de raízes e extratos de ervas. tenho nada planejado.” Peguei meus livros, enfiei-os dentro da minha bolsa, e bati com tudo a porta do armário. “Por quê?” Robbie sorriu para mim daquele jeito que sempre me deixa nervosa, um sorriso largo que esticava o rosto todo dele, de modo que seus olhos ficavam parecendo duas fendas verdes. “Eu tenho uma garrafa de champanhe que consegui roubar da adega”, ele disse, bem baixinho, mexendo as sobrancelhas para cima e para baixo. “Que tal se eu der uma passada na sua casa amanhã? Podemos comemorar o seu aniversário com estilo.” Nunca bebi champanhe. Tentei dar uma bicadinha na cerveja do Luke uma vez e quase vomitei. Minha mãe às vezes trazia para casa vinho em caixinha, e aquele até que não era tão terrível. Eu não era muito chegada a bebidas alcoólicas; nunca fui a festas nem fui convidada para ir a nenhum evento especial. Essa era eu: A Garota Invisível16. Que diabos? Você só tem dezesseis anos, certo? “Com certeza”, respondi a Robbie, encolhendo os ombros, resignada. “A ideia me parece boa. Bem que eu poderia fazer algo que memorável também.” 16 A Garota Invisível é Susan “Sue” Storm Richards, do Quarteto Fantástico. No início ela era chamada de Garota Invisível, depois passando a ser chamada de Mulher Invisível. Ela é uma super-heroína da Marvel, criada por Stan Lee e Jack Kirby. A personagem apareceu pela primeira vez na revista Fantastic Four no. 1, em novembro de 1961, e foi a primeira super-heroína criada pela Marvel na Era de Prata dos quadrinhos. Como os outros membros fundadores do Quarteto Fantástico, Sue recebeu seus poderes depois de ter sido exposta a uma tempestade cósmica. Seu poder principal lida com ondas de luz, o que a permite ficar invisível, além de deixar outros invisíveis junto com ela. No filme “O Quarteto Fantástico”, de 2005, fica meio implícito que ela ganhou os poderes da invisibilidade por se sentir meio deixada de lado por Reed Richards, que vem a ser seu marido depois. Ele inclinou a cabeça para o lado, olhando para mim. “Você está bem, princesa?” O que eu poderia dizer a ele? Que o capitão do time de futebol, por quem eu tinha uma quedinha fazia dois anos, estava a fim de acabar comigo, que eu estava vendo monstros o tempo todo e que os computadores da escola haviam sido hackeados ou estavam possuídos? É, claro. O ser mais chegado a travessuras e pegadinhas da escola não ficaria com pena de mim. Conhecendo o Robbie como eu conheço, ele acharia que tudo isso era uma piada genial e me daria os parabéns. Se eu não o conhecesse, poderia até achar que ele tinha armado isso tudo. Só sorri para ele, um sorriso cansado, e fiz que sim com a cabeça. “Estou bem sim. A gente se vê amanhã, Robbie.” “Até amanhã então, princesa.” Minha mãe chegou atrasada para me buscar... de novo. Fiquei sentada no meiofio, debaixo da chuva que caía – ainda bem que era uma chuva leve –, por uma boa hora, contemplando a minha vida miserável e olhando enquanto os carros entravam e saíam do estacionamento. Por fim, sua van azul virou a esquina e parou na minha frente. O banco do passageiro estava cheio de sacolas da mercearia e jornais, então eu entrei e fui para o banco de trás. “Meg, você está toda ensopada”, minha mãe disse, aos gritos, me olhando pelo espelho retrovisor. “Não se senta aí no estofado não; pega uma toalha ou algo do gênero. Você não trouxe um guarda-chuva?” Estou feliz em ver você também, mãe, pensei, franzindo a testa enquanto pegava o jornal que estava no chão e colocava-o no banco do carro. Nada de ‘como foi seu dia?’, ou ‘me desculpa por ter me atrasado’. Eu deveria ter abandonado aquela coisa estúpida de bancar a instrutora do Scott e deveria ter pego o ônibus e voltado para a minha casa. Ficamos um pouco em silêncio, enquanto ela ia dirigindo até em casa. As pessoas costumavam me dizer que eu era parecida com ela, isso é, antes de o Ethan entrar na equação e dominar a cena toda. Até hoje eu não sei onde viam alguma semelhança. Minha mãe é uma daquelas senhoras que ficam naturais em seus terninhos e de salto alto; eu, bem, eu gosto de calças cargo bem folgadas e tênis. Os cabelos da minha mãe têm espessos cachos dourados; os meus são finos e sem vida, e são quase prateados se vistos sob uma luz apropriada. Ela parece um membro da realeza. É graciosa e esguia. Eu só pareço magrela mesmo. Minha mãe poderia ter se casado com qualquer um que quisesse no mundo; um astro do cinema, um magnata dos negócios, mas ela escolheu o Luke, o fazendeiro, dono daquela pobre fazendinha de porcos lá no meio do mato. O que me lembrou de … “Hei, mãe. Não esquece que você tem que me levar para tirar a minha carteira de aprendiz de motorista nesse final de semana.” “Ah, Meg”, disse ela, seguido de um suspiro. “Não sei. Tenho muito trabalho a fazer nesse fim de semana e seu pai quer que eu o ajude a arrumar o celeiro. Talvez na semana que vem.” “Mãe, você prometeu!” “Por favor, Meghan. Eu tive um dia cansativo.” Minha mãe soltou um suspiro de novo e olhou para mim pelo retrovisor. Seus olhos estavam injetados de sangue, e nas bordas estavam manchados de rímel. Eu me mexi ali no banco de trás, sentindo-me desconfortável. Minha mãe esteve chorando? “O que houve?”, perguntei, num tom de cautela. Ela hesitou, mas começou a falar: “Bem, aconteceu um... um acidente em casa”, e o tom de sua voz me revirou o estômago. “Seu pai teve de levar o Ethan até o hospital essa tarde.” Ela fez uma pausa de novo, piscando rapidamente, e respirou, mas não tão fundo. “Ele foi atacado pelo Beau.” “O quê?!” Comecei a surtar. Nosso pastor alemão? Atacando o Ethan? “Está tudo bem com o Ethan?”, exigi saber, sentindo meu estômago se remexendo de medo. “Sim.” Minha mãe me deu um sorrido cansado. “Muito abalado, mas não é nada sério, graças a Deus.” Soltei um suspiro de alívio e perguntei: “O que aconteceu?”, ainda não conseguindo acreditar que nosso cachorro tinha mesmo atacado um membro da família. Beau adorava o Ethan; ele ficava perturbado até se alguém dava uma bronca no menino! Eu tinha visto Ethan puxando o pelo, as orelhas ou o rabo do Beau e o cachorro respondia a tudo isso com uma lambida. Tinha visto Beau pegar Ethan pela manga de sua camisa e vir trazendo o menino pela entrada de carros. Gentilmente. Nosso pastor alemão poderia até ser um terror para os esquilos e os cervos, mas nunca, nunca nem mesmo havia mostrado os dentes para alguém da casa. “Por que o Beau ficou louco assim?” Minha mãe balançou a cabeça, sem saber o que dizer. “Eu não sei. Luke viu o Beau correndo escadaria acima, e depois ouviu o Ethan gritando. Quando ele chegou no quarto do menino, viu o cachorro arrastando o Ethan pelo chão. O rostinho dele estava bem arranhado e havia marcas de mordidas em seus braços.” Meu sangue gelou. Vi a cena de Ethan sendo ferido, imaginei seu medo e supremo terror quando nosso pastor antes confiável partiu pra cima dele. Ainda assim, era difícil acreditar nisso, como se fosse algo saído de um filme de terror. Eu sabia que minha mãe estava tão pasma quanto eu; ela confiava totalmente em Beau. Ainda assim, ela não estava me contando tudo. Eu sabia disso pelo jeito como pressionava os lábios um no outro. Havia algo que minha mãe não estava me contando, e eu tive medo de saber o que era. “O que vai acontecer com o Beau?” Seus olhos encheram-se de lágrimas e meu coração afundou em meu peito. “Não podemos deixar um cachorro perigoso correndo por aí, Meg”, ela disse, e ouvi a súplica por compreensão no tom de sua voz. “Se Ethan perguntar, diga a ele que encontramos uma outra casa para o Beau.” Ela respirou bem fundo e agarrou o volante, de leve, sem olhar para mim. “É pela segurança da família, Meghan. Não culpe o seu pai. Mas, depois que o Luke levou o Ethan para casa, ele levou o Beau até o chiqueiro para ser sacrificado.”