Maio

Transcrição

Maio
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ANO 19
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TIRAGEM:
Nº 3
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MAIO/2011
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20 000 EXEMPLARES
O JAPÃO NA
O
Japão sobreviveu a Hiroshima e Nagasaki: sobreviverá a Fukushima. Contudo, o acidente nuclear trouxe à tona não apenas os espectros terríveis do passado, mas os dilemas políticos do presente, num país que perdeu para a China a condição de segunda maior economia do mundo.
O terremoto de 9 graus na escala Richter e o
tsunami que ele provocou seriam devastadores em
qualquer país. Entretanto, mais uma vez, como no
caso do grande terremoto de Kobe, em 1995, a
reação das autoridades japonesas evidenciou o esgotamento de um sistema assentado sobre as relações de compadrio entre as elites política e empresarial. É hora de uma nova reinvenção do Japão.
Os canhonaços dos “navios negros” do comodoro
A tragédia natural que atingiu o Japão desencadeou uma crise
americano Matthew Perry anunciaram a dissolução
política equivalente: o vazamento nuclear em Fukushima deve
do xogunato e a invenção do Japão Meiji, no século
ser, em parte, debitado à negligência de seus administradores,
XIX. Os bombardeios atômicos de 1945 anunciaprática comum num país onde, historicamente, vigoram relações
ram a dissolução do Japão Meiji e uma segunda inpromíscuas entre empresários e autoridades públicas
venção do Japão, no contexto da Guerra Fria. Agora, o trauma nacional, potencializado pelo acidente nuclear de Fukushima, pode acarretar uma terceira invenção do Japão.
Com Godzilla e uma coleção subsequente de “monstros radioativos”, os japoneses elaboraram, no caldeirão da
cultura popular, um imaginário coletivo sobre Hiroshima e Nagasaki. No meio da tragédia do terremoto e do tsunami,
o povo japonês voltou a demonstrar um estoicismo sem limites. Mas a mudança política exige uma outra qualidade:
indignação cívica contra autoridades que só têm ouvidos para os financiadores de seus partidos e carreiras.
Vejas as matérias nas págs. 6 a 9
R
A radioatividade,
de Curie a Fukushima
adioatividade é uma palavra que tem apenas cem anos e nasceu nos domínios das ciências naturais, a partir das experiências da jovem polonesa Marie
Curie. Da ciência, o saber sobre a radioatividade atravessou uma primeira
fronteira, ingressando na esfera da política, com o Projeto Manhattan, do qual
brotaram as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki.
A segunda fronteira conduziu o saber até a esfera da economia e, especialmente, da geração de eletricidade. Curie morreu de uma doença contraída sob
os efeitos da radiação. O acidente de Chernobil, na antiga União Soviética, em
1986, causou a morte de milhares, ao longo do tempo. Fukushima, no Japão,
provocou uma contaminação radioativa, ainda não completamente estimada,
do ar, das águas e do solo.
Pág. 5
DEBATE: DEMOCRACIA
E CULTURA NO BRASIL
Maria Bethânia
© Lusa/AFP
● Concurso de Redação – A
intertextualidade não é apenas a
chave para as provas de redação,
no Enem e nos vestibulares. A sua
compreensão ajuda a resolver
questões de todas as disciplinas.
Pág. 2
● Editorial – Ao votar contra o Irã
no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil não votou
com os Estados Unidos, mas com
a Constituição brasileira.
Pág. 3
● A crise que encheu de sangue a
maior cidade da Costa do Marfim começou há décadas. A sua
raiz está nas políticas de nacionalismo étnico implantadas na
ex-colônia francesa.
Pág. 3
● O Meio e o Homem – As “fábricas” da eletricidade, todas elas, produzem impactos sociais e ambientais. Fukushima revelou, dramaticamente, os riscos das usinas nucleares, mas tende a ocultar os riscos das usinas térmicas e hídricas.
Pág. 4
● Têm os Estados Unidos uma política para a América Latina? O
périplo de Barack Obama por três
países ensaiou uma resposta à indagação, que atormenta o próprio
governo americano.
Pág. 10
● Os bombardeios da coalizão ocidental na Líbia podem ter evitado uma tragédia humana em
Benghazi. Mas suscitam críticas
de todos os lados e evidenciam
os dilemas do Conselho de Segurança da ONU.
Pág. 11
● O Irã é uma ditadura teocrática repressiva, que não admite a organização política independente. A situação da minoria Bahai evidencia
que também não respeita a liberdade religiosa.
Pág. 12
TERCEIRA ENCRUZILHADA
© AFP
E mais...
16º CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO DE MUNDO E H&C - 2011
T
Mateus Prado
Especial para Mundo
odo texto, seja ele escrito, uma imagem, um desenho
animado, uma expressão corporal, não está desassociado
do resto do mundo. De certa forma, qualquer novo texto
dialoga com todo e qualquer texto que tenha sido produzido anteriormente. E irá dialogar com os textos produzidos no futuro.
Parece confuso, mas é muito simples. E, cada vez mais,
esta relação entre textos aparece nos vestibulares. A redação foi o primeiro lugar que a intertextualidade ocupou.
Quase todos os vestibulares do Brasil, incluindo o Enem,
têm propostas de redação que pedem que o aluno articule ideias entre os textos apresentados na prova e/ou acumulados pelo aluno no seu tempo de escolarização.
A cobrança da intertextualidade foi inserida primeiro
na parte da redação, pois os professores de português foram os primeiros a entender que só o acúmulo de conteúdo não traz grandes avanços na vida dos alunos. Só
fazia deles enciclopédias ambulantes. Depois de o aluno
ter acumulado os conteúdos mínimos da linguagem, o
que fazer? Colocar o aluno para fazer análise morfológica
de todas as frases possíveis? Não. Era necessário que o
aluno também fosse produtor de conhecimento.
A intertextualidade, a interdisciplinaridade, as compe-
A INTERTEXTUALIDADE,
NO ENEM E NO VESTIBULAR
mente nas aulas de redação. A primeira edição de Mundo
de 2011 (de março), traz uma proposta para o Concurso
de Redação que abusa, positivamente, do diálogo entre
textos. Os limites da liberdade de imprensa e a diplomacia estão expostos em textos de figuras díspares, como
Julian Assange e Leon Trótski.
A adesão a essa proposta de Mundo prepara para a
redação, mas também prepara para as questões que irão
aparecer em provas de todas as outras áreas do conhecimento. São vários os relatos de alunos que encontram,
em provas, o mesmo tema que apareceu em sala de aula,
só que cobrado de outra forma. Também são muitos os
alunos que encontram questões que só precisam de interpretação e dizem que “não aprenderam” aquela matéria. Enquanto caminha, lentamente, a reforma de nosso
Ensino Médio, algumas boas aulas de redação, onde o
aluno é incentivado a assumir papel de protagonista, podem ajudar que a formação “corra” para mais perto do
que são os novos vestibulares e do que é o Enem.
tências, as habilidades e tantas outras coisas da nova pedagogia foram ocupando cada vez mais espaço e chegaram a
algumas das questões dos vários vestibulares, além de terem fincado morada no Enem. É cada vez mais comum
encontrarmos questões que parecem não precisar de nenhum conteúdo avançado para resolvê-las mas, mesmo
assim, não são resolvidas pela maior parte das pessoas.
Nossa tradição escolar ainda tem muito do enciclopedismo iluminista. Muitos educadores acreditam que devem fazer com que cada aluno absorva todo o conhecimento que existe no mundo. Isto, na era da informação,
não é mais possível. A fórmula, para o professor que quer
estar em sintonia com seu tempo, que leva muito mais
alunos ao sucesso escolar, é fazer com que cada aluno acumule os conteúdos mínimos (mínimos mesmo), ensiná-lo
a “aprender” e, a partir daí, utilizar recursos para que eles
desenvolvam a capacidade cognitiva de relacionar textos.
O aluno capaz de criar um diálogo entre textos em
uma prova, ou entre textos da prova e sua experiência
escolar e de vida, faz com competência uma boa redação
e também consegue “navegar” com muito mais facilidade nos novos formatos de vestibular. Infelizmente, exceto
raras exceções, a intertextualidade é aprimorada quase so-
Mateus Prado cursou Sociologia e Políticas Públicas na
USP. É autor de livros didáticos sobre o Enem e
presidente do Instituto Henfil
CD-ROM
E X P E D I E N T E
“A primeira década do século XXI: uma visão de Mundo”
Valor: R$ 20,00 (assinantes de Mundo têm desconto de 20%), já incluídas as despesas postais.
Pagamento:
Depósito bancário em nome de Pangea – Edição e Comercialização de Material Didático Ltda. (Banco
Itaú – Agência 0786 – Conta corrente: 52.100-5). É imprescindível o envio por fax, e-mail ou correio,
do comprovante de depósito juntamente com as seguintes informações: nome do comprador, endereço
completo para entrega do CD, telefone e e-mail de contato (assinantes de Mundo deverão indicar o
nome da escola pela qual recebem o jornal). O envio só será possível se cumpridas estas condições.
Pangea E. C. M. Didático Ltda – Rua Dr. Romeu Ferro, 501 – São Paulo – SP – 05591-100
Telefaxes – (11) 3726 4069 – 2506 4332 – E-mail: [email protected]
Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,
Nelson Bacic Olic (Cartografia)
© Stock Free Photo
Já está à venda o CD-Rom “A primeira década do século XXI: uma visão de Mundo”. A primeira década do
século XXI assistiu a uma aceleração da história. Do ataque terrorista ao World Trade Center, em 2001, à “guerra
ao terror” e à emergência dos BRICs na economia mundial, até a crise econômica global e a eleição de Barack
Obama nos Estados Unidos, a paisagem geopolítica internacional conheceu mudanças profundas, estruturais.
Mundo – Geografia e Política Internacional seguiu cada um dos elementos
dessas mudanças. Tudo isso você pode encontrar neste CD, que contém, na íntegra, o conteúdo completo de nossa publicação, de 2000 a 2010. É uma verdadeira
enciclopédia do início do novo século, com análises e informações que fazem toda
a diferença do mundo.
INFORMAÇÕES PARA AQUISIÇÃO DO CD-ROM
PANGEA – Edição e Comercialização de
Material Didático LTDA.
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Jaqueline Rezende
Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo – SP.
CEP 05591-000. Fones: (0XX11) 3726.4069 / 3726.2564
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"Infelizmente não foi possível localizar os autores
de todas as imagens utilizadas nesta edição.
Teremos prazer em creditar os fotógrafos,
caso se manifestem."
2011 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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O VOTO E A CONSTITUIÇÃO
“É
BRASIL ADOTAR
SAYAD SAJJADI, EMBAIXADOR
DO IRÃ NA ONU, QUE CONCLUIU: “NÃO ESPERÁVAMOS
ISSO DO BRASIL”. NO DIA 25 DE MARÇO, A REPRESENTAÇÃO BRASILEIRA NO CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS
DA ONU, MUDANDO DE RUMO, VOTOU A FAVOR DE UMA
PROPOSTA PATROCINADA PELOS ESTADOS UNIDOS E DIMESMO LAMENTÁVEL VER O
ESSA POSIÇÃO”, RECLAMOU
VERSOS PAÍSES EUROPEUS QUE DETERMINAVA O ENVIO DE
UM RELATOR INDEPENDENTE PARA INVESTIGAR A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS NO IRÃ.
PODE
SER LA-
MENTÁVEL PARA A DITADURA TEOCRÁTICA IRANIANA, MAS
É UM ALÍVIO PARA A NAÇÃO BRASILEIRA, CUJOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS VINHAM SENDO SISTEMATICAMENTE
DESPREZADOS AO LONGO DO GOVERNO
A
NOSSA
CONSTITUIÇÃO
LULA.
DIZ QUE O PAÍS SE
REGE , NAS SUAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS , PELA
“PREVALÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS”. É O ITEM II DO
ARTIGO 4º, QUE FAZ PARTE DO TÍTULO I, QUE TRATA DOS
“PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS”. SÓ HÁ UM ITEM SITUADO
ACIMA, QUE AFIRMA O PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA NACIONAL. A “AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS”, ARGUMENTO USADO SEMPRE POR CELSO AMORIM, MINISTRO DO
EXTERIOR DE LULA, PARA RECUSAR VOTOS CONTRA VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS, APARECE EM POSIÇÃO INFERIOR, NO ITEM IV. O BRASIL CUMPRIU SUA OBRIGAÇÃO
CONSTITUCIONAL, FINALMENTE.
A MUDANÇA É INDISFARÇÁVEL. DURANTE OITO
ANOS, O BRASIL SE ABSTEVE OU VOTOU CONTRA DIANTE
DE TODAS AS RESOLUÇÕES QUE CONDENAVAM O IRÃ. ANO
PASSADO, ALEGANDO UMA “QUESTÃO CULTURAL”, ABSTEVE-SE FACE À RESOLUÇÃO QUE CONDENAVA O APEDREJAMENTO DE MULHERES CONDENADAS POR ADULTÉRIO .
AMORIM “JUSTIFICOU” A ABSTENÇÃO DIZENDO QUE NÃO
VOTARIA “PARA AGRADAR A IMPRENSA”.
O
VELHO ARGUMENTO DAS TIRANIAS EMERGIU
AGORA, COMO ERA DE SE PREVER:
“O BRASIL DEVERIA
MOSTRAR QUE É UM PAÍS INDEPENDENTE, E NÃO UM PAÍS
PEQUENO QUE SE CURVA AOS INTERESSES DOS ESTADOS
U NIDOS ”, EXCLAMOU O DIPLOMATA IRANIANO
MOHAMMAD REZA GHAEBI. NO CAMPO DOS DIREITOS
HUMANOS, O BRASIL NÃO DEVE MOSTRAR NADA A NINGUÉM, MAS APENAS RESPEITAR – SEMPRE, EM TODOS OS
CASOS – A NORMA CONSTITUCIONAL. A REPRESSÃO POLÍTICA NA CHINA, AS AMEAÇAS A DISSIDENTES EM CUBA
E, SEM DÚVIDA, A PRISÃO OFFSHORE DE GUANTÁNAMO,
QUE BARACK OBAMA NÃO FECHOU, DEVEM SER IGUALMENTE CONDENADAS. UM “PAÍS INDEPENDENTE” NÃO
“SE CURVA” À VONTADE DOS AIATOLÁS.
NACIONALISMO ÉTNICO É FONTE DA CRISE
NA COSTA DO MARFIM
A
Costa do Marfim: Geografia e Geopolítica
MALÍ
BURKINA FASO
Áreas originalmente
recobertas por florestas
Áreas de estepes
e savanas
GUINÉ
C O STA D O M A R F I M
Iamussuko
Abidjan
LIBÉRIA
Golfo da Guiné
clivagem religiosa: no norte, predominam
os seguidores do Islã; os cristãos estão concentrados mais ao sul e, por todo o país,
vivem seguidores de crenças ancestrais.
Nas suas primeiras três décadas de existência, a Costa do Marfim foi governada,
com mão de ferro, por Félix HouphouëtBoigny, o líder do movimento pela independência e, em seguida, um firme aliado da
França. Nesse período, uma fase áurea na
qual o país alcançou a posição de maior exportador de cacau do mundo, a ausência de
democracia era compensada pela estabilidade política e pelo desenvolvimento econômico. No conturbado contexto político regional e continental, a Costa do Marfim fi-
Linha de clivagem
Norte/Sul
GANA
recusa do presidente da Costa do
Marfim, Laurent Gbagbo, no poder desde 2000, em aceitar o resultado das eleições, realizadas em dezembro de 2010 e
vencidas pelo opositor Alassane Ouattara,
foi o estopim da crise que eclodiu em abril.
Na verdade, a crise já dura pelo menos
duas décadas, nesta antiga colônia francesa do ocidente africano que alcançou a
independência em 1960.
O território marfinense possui a forma de um quadrilátero, no interior do qual
podem ser individualizadas duas grandes
regiões. O centro-sul, tipicamente de clima tropical úmido, era originalmente
recoberto por florestas, hoje em grande
parte destruídas pela ocupação. As plantações de cacau e café, principais produtos de exportação, situam-se nessa área. Na
parte setentrional, o clima tropical tornase cada vez mais seco em direção norte. A
clivagem natural induziu uma ocupação
humana e formas de valorização econômica bastante diferenciadas entre as duas
porções do território (veja o mapa).
Com quase 22 milhões de habitantes,
o país exibe 60 grupos étnicos, agrupados
em áreas-núcleo mais ou menos bem definidas. A diversidade humana é intensificada pela presença marcante de descendentes de imigrantes oriundos de países
vizinhos, que correspondem a cerca de um
terço da população. Há, ainda, uma
Limite sul do islamismo
majoritário
Principais regiões
agrícolas (cacau e
café)
gurava como uma espécie de oásis.
A marcha rumo à crise começou nos
últimos anos do governo Boigny e acelerou-se a partir de 1993, quando os novos
governantes inauguraram políticas de nacionalismo étnico. Sob a etiqueta da
“marfinidade”, criaram-se leis separando
os “nacionais legítimos” dos cidadãos “estrangeiros”. Segundo tais leis discriminatórias, só poderiam se candidatar em eleições os cidadãos cujos pais tivessem nascido no país. Por essa via, quase um terço
da população ficou excluído da vida política – inclusive o opositor Ouattara, cujo
pai nasceu em Burkina Fasso, situado ao
norte da Costa do Marfim.
A política da “marfinidade” destruiu
o que restava de estabilidade. A partir de
1999, o país sofreu golpes militares, que
degeneram numa guerra civil. O conflito
foi precipitado pelo veto à candidatura
presidencial do nortista Ouattara, em
2000. Dois anos mais tarde, por meio de
uma rebelião, grupos étnicos do norte assumiram o controle daquela região. O
avanço dos revoltosos rumo ao sul foi contido por forças da França e da Comunidade de Estados da África Ocidental, mas
o país continuou dividido entre o norte
rebelde e o sul governista.
Só em 2007 assinou-se um acordo de
paz entre o governo as Forças Novas, a
organização política e militar dos rebeldes. Com base nele, organizaram-se as eleições de 2010. O triunfo de Outtara
deflagrou a nova crise, concluída pelo assalto ao palácio presidencial e a prisão de
Gbagbo. A queda de Gbagbo foi cercada
de massacres, promovidos pelas tropas dos
dois lados. Ouattara só conseguiu assumir
a presidência devido ao respaldo de tropas da França, que continua a operar como
um poder semicolonial em diversas de suas
antigas colônias africanas.
Terminou a longa crise marfinense?
Provavelmente, não. As políticas étnicas
deixaram cicatrizes profundas e semearam
a terra para conflitos futuros.
MAIO 2011
3
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo
AS “FÁBRICAS” DE ELETRICIDADE
e altamente poluentes, como o
Brasil: Participação das fontes renováveis
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FONTE: Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica 2010-2019
(com 100%),
em virtude dos
acordos que lea biomassa, a eólica e a solar. Tomadas em varam à construção da Usina Hidrelétrica
conjunto, elas definem o que se denomina de Itaipu, e pela Noruega (99%), em funmatriz elétrica. As proporções de contribui- ção do intenso aproveitamento dos recurção dessas fontes variam de país para país, sos hídricos naturais do país e do sistema
em função de fatores como o “cardápio” de interligado aos demais países nórdicos.
O Plano Decenal de Expansão de
recursos naturais disponíveis e das decisões
políticas estratégicas postas em prática pe- Energia Elétrica 2010/2019 do Brasil,
los Estados ao longo do tempo. Recente- publicado em 2010, propicia algumas
mente, as estratégias energéticas sofrem constatações importantes. Nesta década,
influênciam relevante de considerações a oferta de energia elétrica conhecerá incremento de quase 50%. As fontes renosocioambientais e socioeconômicas.
Como desenvolvimento econômico é váveis responderão por uma participação
quase sinônimo de consumo de energia, não em torno de 80% da geração total (veja o
há surpresa na constatação de que os dez pa- gráfico 1). Nesse conjunto, a fonte hídrica,
íses que mais geram energia elétrica sejam que engloba as hidrelétricas de grande
Estados Unidos, China, Japão, Rússia, Ca- porte e, principalmente, as pequenas cennadá, Índia, Alemanha, França, Grã-Breta- trais hidrelétricas (PCHs), terá participanha e Brasil. Na maioria desses países, a ma- ção oscilando entre 71 e 74%. Com um
triz elétrica é dominantemente térmica, com papel complementar à fonte hídrica, a bioutilização extensiva de fontes não renováveis massa – através da queima do bagaço e paGráfico 1
Q
uando se observa uma imagem de
satélite captada à noite, chama a atenção
o contraste entre manchas brilhantes e
grandes regiões escuras. As primeiras indicam, sobretudo, a localização das aglomerações urbanas; as segundas, as áreas
esparsamente povoadas ou não ocupadas
pela humanidade.
Em algum momento de 2011 a população mundial atingirá a marca de 7
bilhões de pessoas e, segundo as previsões correntes, estima-se que em 2050 o
efetivo demográfico mundial ficará em
torno de 9 bilhões. Desde 2009, pela
primeira vez na história, há mais pessoas
vivendo em áreas urbanas do que nas
zonas rurais.
Dado o ritmo de crescimento da população urbana, especialmente em países
de grande população absoluta e grande
contingente rural, como a Índia e a China, assim como em outros países asiáticos
e africanos, pode-se prever que, por volta
de 2030, cerca de dois terços da população mundial estarão vivendo em cidades.
Em 2050, essa proporção atingirá 75%.
Além disso, nas últimas décadas, centenas de milhões de pessoas em todo o
mundo aumentaram seu padrão de consumo – o que tem repercussões importantes nos níveis de consumo energético.
Entre os vários fatores que permitem
uma condição de vida mais digna para
os moradores das áreas urbanas, dois são
essenciais: o abastecimento de água potável e o acesso a eletricidade. Tendo esse
último fator em vista, os governos se preocupam em disponibilizar energia elétrica para toda a população com tarifas razoáveis, além de assegurar a segurança
energética, evitando os chamados
“apagões”. A demanda por eletricidade
cresce fortemente, sob os impactos combinados da expansão da população urbana e do aumento da renda de parcelas
expressivas da população mundial.
As fontes mais utilizadas para a geração de energia elétrica são o carvão, o petróleo, o gás natural, a hídrica, a nuclear,
lha de cana – e a energia eólica terão
crescimento em sua participação (veja
o gráfico 2).
O Brasil opera cerca de 200 hidrelétricas e quase 600 PCHs e existem três
grandes projetos previstos para entrar
em funcionamento até 2015: as usinas
de Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira, e a gigantesca Usina de Belo Monte, no rio Xingu. O grande obstáculo
diante de projetos desse porte, especialmente o de Belo Monte, é a obtenção
das licenças ambientais.
O uso de fontes não renováveis no
Brasil conhecerá incremento até 2013,
quando sua participação começará a diminuir. Nesse conjunto, a única exceção
será a fonte nuclear, cuja participação aumentará com a entrada em funcionamento da Usina de Angra III.
Usinas térmicas convencionais, movidas a fontes não renováveis, geram poluição e fortes emissões de gases de efeito
estufa. Usinas elétricas baseadas nas fontes eólica, solar ou biomassa possuem reduzida densidade no fluxo energético,
sendo utilizadas para complementar outras fontes da matriz elétrica. Apesar de
suas óbvias vantagens ambientais, elas
não conseguem atender às grandes demandas energéticas das áreas urbanas.
“Não existe almoço grátis”, como dizem os economistas. Todas as “fábricas”
de eletricidade têm impactos sociais e
ambientais. Grandes hidrelétricas geralmente exigem vastos reservatórios, que
inundam áreas extensas. Nos Alpes italianos, décadas atrás, a ruptura de uma
barragem, sob o efeito de fortes chuvas e
do degelo de primavera, produziu uma
onda de inundação que devastou diversas pequenas cidades. Na China, onde a
geração térmica de eletricidade é dominante, estima-se que, a cada ano, morram dois a três mil trabalhadores em minas de carvão. Além disso, doenças respiratórias causadas pela poluição do ar
das cidades formam um dos fatores principais da mortalidade precoce no país.
Fukushima atraiu, mais uma vez, os
olhares para os riscos das “fábricas” nucleares de eletricidade. Mas a tragédia japonesa não deveria ocultar os impactos ambientais e os riscos associados às diversas
outras fontes de produção elétrica.
2011 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
4
RADIOATIVIDADE
PURA ENERGIA, EMISSÕES GAMA TÊM
EFEITOS DEVASTADORES
u me tornei a Morte, o destruidor de mundos”. Ao
proferir a frase célebre, extraída do texto religioso hindu
Bhagavda-Gita, logo após a explosão do teste Trinity, o
primeiro da história nuclear, o físico Julius Robert
Oppenheimer, cientista-chefe do Projeto Manhattan que
desenvolveu as bombas de Hiroshima e Nagasaki, antecipava o medo que se apoderou da humanidade desde
agosto de 1945.
Tudo começou com a descoberta dos Raios Catódicos,
por J. J. Thomson, e dos Raios X, por Wilhem Roentgen
(primeiro Nobel de Física, em 1901). Depois, intensificaram-se os estudos sobre estranhas emissões que atravessavam determinados materiais. Os novos fenômenos interessaram ao francês Henri Becquerel (Nobel de Física de
1903) que, utilizando um sal duplo de potássio e uranila,
conseguiu afetar chapas fotográficas ocultas dentro de envelopes escuros. A princípio, Becquerel imaginava que as
emissões eram estimuladas pelo Sol, mas ao deixar o minério sobre o envelope dentro de uma gaveta, observou
que a chapa fotográfica era afetada da mesma maneira.
Quem estabeleceu a diferença entre as emissões de
Raios X e as emissões descobertas por Becquerel, que não
necessitam de estímulo elétrico, foi uma jovem polonesa
chamada Marie Sklodowska Curie. Ela e seu marido Pierre
(que dividiram o Nobel de 1903 com Becquerel) decompuseram o minério que emitia raios espontâneos e detectaram que essas emissões eram causadas pelo urânio.
A busca por novos elementos com características semelhantes os levou à descoberta do polônio – homenagem à terra natal de Marie – e de um outro elemento, que
emitia forte luminosidade no escuro e, por isso, foi batizado de rádio (do latim radius, que significa raio). A intensa
atividade do elemento originou a expressão radioatividade. Marie Curie ainda ganharia o Nobel de 1911, na área
de química, tornando-se a primeira e única mulher a ganhar duas vezes o prêmio – e também a única a ganhá-lo
em duas áreas científicas distintas. Ela morreu em 1934,
com 66 anos, de uma doença contraída por prolongada
exposição à radiação. Seus relatórios de experiências da
década de 1890, até hoje contaminados por radioatividade, estão guardados em caixas recobertas por chumbo.
O passo seguinte seria dado por Ernest Rutherford (Nobel
de Química de 1908), ao determinar que as emissões radioativas se dividiam em duas possibilidades, nomeadas como Alfa
e Beta. A emissão Gama seria observada apenas posteriormente. Ao bombardear átomos de nitrogênio com partículas
alfa, produzindo oxigênio e liberando um próton, Rutherford
induziu a possibilidade da fissão nuclear.
Daquele ponto em diante, não bastava saber que os
elementos possuidores de núcleos instáveis emitiam radiação espontaneamente. Era preciso ir além, e resolveu-se
cutucar o rabo do dragão – expressão usada pelos cientis-
A descoberta da radioatividade e o seu controle formam uma das principais vertentes da
história da Física. De Marie Curie a Robert Oppenheimer, os cientistas fabricaram o
“destruidor de mundos”
Chernobil, 25 anos depois
© Nara, Washington
“E
Elcio Bertolla
Especial para Mundo
RÚSSIA
Minsk
BELARUS
U C R Â N I A
Chernobil
RÚSSIA
Kiev
BELARUS
Chernobil
UCRÂNIA
ROM.
0
50 km
Zona totalmente interditada
ou sob controle permanente
Zona sob controle periódico
Nagasaki
tas do Projeto Manhattan. Em 1929, Enrico Fermi profetizou a fissão nuclear em um trabalho apresentado na Sociedade Italiana Para o Progresso da Ciência. O próprio
Fermi (Nobel de Física de 1938) construiria, mais tarde, a
primeira pilha nuclear da história nos subterrâneos do campo de futebol americano da Universidade de Chicago. Esse
protótipo, o primeiro dos reatores nucleares, originou a
produção de plutônio, material físsil da bomba de Nagasaki.
A fissão nuclear deixou de ser um sonho e entrou para a
realidade em dezembro de 1938, quando os alemães Otto
Hahn e Fritz Strassman publicaram a descoberta do elemento bário como resultado do bombardeamento de urânio com nêutrons. Como o bário é um átomo de menor
número atômico que o urânio, só podia ter sofrido um processo de quebra (fissão). Quem propôs uma explicação matemática para o fenômeno foi a física Lise Meitner, antiga
assistente de Otto Hahn que vivia na Dinamarca e que havia fugido do nazismo por conta de sua origem judia.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, surgiu o receio de que cientistas alemães pudessem criar uma arma de
destruição muito mais poderosa do que as existentes. O sinal
de alerta foi dado quando Leo Szilard, fugindo da Alemanha,
procurou Albert Einstein na Universidade de Princeton e informou-lhe sobre as pesquisas avançadas dos físicos alemães.
De posse da informação, Einstein enviou uma carta ao presidente Franklin Roosevelt, que determinou a criação do Projeto Manhattan. Dois bilhões de dólares mais tarde, nasceram as bombas que foram lançadas sobre o Japão.
Dos três tipos de emissões radioativas, a emissão Gama
é a mais perigosa e devastadora. Constituída apenas por
ondas eletromagnéticas – ou seja, pura energia – possui
grande capacidade de penetração mesmo através de sólidos consistentes. Os efeitos variam de acordo com o tempo de exposição, quantidade de radiação e a resistência
inerente ao tipo de organismo exposto. Entre os vários
efeitos, podem se listar alterações que vão do impedimento reprodutivo das células, passando por modificações genéticas e chegando à própria destruição celular.
Ao redor da antiga usina nuclear de Chernobil, na
Ucrânia, mantém-se até hoje uma Zona de Exclusão de
30 quilômetros (veja o mapa).
O resultado nocivo mais comum é o desenvolvimento de câncer, que atinge especialmente os sistemas linfático e intestinal, além da medula óssea. Em doses mais
elevadas, surgem queimaduras de pele e hemorragias generalizadas. Há relatos de sobreviventes de Hiroshima
que presenciaram pessoas sangrando pela boca, nariz,
ouvidos e olhos. Ainda hoje, são constatados efeitos hereditários em indivíduos descendentes das pessoas que
foram afetadas pela radiação em Hiroshima e Nagasaki.
Elcio Bertolla é químico pela Universidade Mackenzie e
professor do Colégio Visconde de Porto Seguro,
Colégio e Curso Pré-Vestibular Stockler,
Curso Pré-Vestibular Anglo-Vinci
e Curso Pré-Vestibular CPV Medicina
MAIO 2011
5
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
O
Japão enfrenta a sua mais grave crise
desde o fim da Segunda Guerra Mundial,
declarou o primeiro-ministro Naoto Kan,
em 11 de abril, um mês após a ocorrência
do tsunami e terremoto de 9 graus na escala Richter, que provocaram vazamento
de plutônio da usina nuclear de
Fukushima. Kan afirmou que o país está
em “alerta total” (nível 7, o de maior gravidade na escala internacional). A radiação acumulada durante 25 dias na província de Fukushima excedeu os níveis
tolerados para o período de um ano. No
dia seguinte, porta-vozes da Tokyo Electric
Power Company (Tepco), operadora da
usina, informaram que os vazamentos de
materiais radioativos igualam e “podem
superar” os ocorridos em 1986, em
Chernobil, na Ucrânia. A Tepco é uma
empresa conhecida por falsificar dados
sobre o estado de segurança das usinas que
administra (veja o box). A confissão revela que outro tsunami atingiu o Japão: estão em jogo as fundações do Estado
nipônico.
Kan expressou de forma patética a gravidade da crise política, durante uma visita
à sede da Tepco, cinco dias após o desastre
natural: “O que está acontecendo aqui?”,
perguntou, em altos brados, aos executivos
da empresa, por ele acusados de colocar os
seus próprios interesses acima do bem-estar
do povo japonês. “Não é uma questão de se
a Tepco vai cair, é uma questão de se o Japão
vai errar”. Depois, assumiu pessoalmente a
direção da equipe de crise, e considera a hipótese de nacionalizar a Tepco, segundo informa o Yomiuri, jornal de maior circulação
do país. É provável que muito da postura de
Kan seja jogo de cena: afinal, ele é membro
do Partido Democrata (PDJ) – que, em setembro de 2009, venceu por maioria esmagadora as eleições parlamentares e desbancou
o poderoso Partido Liberal Democrático
(PLD), no poder desde 1955. Ao tomar distância dos métodos administrativos da
Tepco, Kan certamente afia as garras para
atacar o PLD. E, do ponto de vista histórico, terá os fatos ao seu lado.
O PLD nasceu em 1955, junto com o
atual Estado japonês, recriado sob ocupação militar dos Estados Unidos, à sombra
dos cogumelos de Hiroshima e Nagasaki
(veja a matéria na pág. 7). No quadro da
Guerra Fria, a economia e o sistema político japoneses foram construídos como
uma espécie de posto avançado dos interesses globais da “esfera capitalista” em
geral e dos Estados Unidos em particular
TSUNAMI POLÍTICO AMEAÇA F
O JAPÃO TEM SEGUIDO ADIANTE SEM UMA LIDERANÇA EFETIVA POR TANTO TEMPO, NA BASE DE UMA PROCISSÃO INFINDÁVEL DE
PRIMEIROS-MINISTROS E GABINETES DE GOVERNO SEM ROSTO, QUE A DISFUNCIONALIDADE POLÍTICA JÁ QUASE PARECE UMA
HABILIDADE ADQUIRIDA. MAS ESTA CRISE LANÇOU UMA LUZ IMPIEDOSA SOBRE TAL CARÊNCIA. KAN, QUE PROMETEU A MUDANÇA
POLÍTICA, PRECISA AGORA FAZÊ-LA ACONTECER. O POVO JAPONÊS PODE AJUDAR, ADOTANDO UMA ATITUDE DIFERENTE DIANTE DE
SEU GOVERNO. O ESTOICISMO, EMBORA ADEQUADO PARA ENFRENTAR A ADVERSIDADE, NÃO SERVE PARA PROVOCAR MUDANÇAS. JÁ
PASSA DA HORA PARA OS JAPONESES EVIDENCIAREM UMA RAIVA LEGÍTIMA CONTRA UM SISTEMA QUE OS DECEPCIONOU.
(“A CRISIS OF LEADERSHIP, TOO”, THE ECONOMIST, EDITORIAL, 26 DE MARÇO DE 2011, P. 14)
© Yomiuri Shimbun/AFP
JAPÃO
Terremoto e tsunami abriram as comportas da mais grave crise política do Japão no pós-guerra
naquela região do Pacífico. A burocracia
estatal coordenou e planejou o crescimento industrial, oferecendo subsídios e proteção aos conglomerados e selecionando
as empresas destinadas a concorrer no
mercado mundial. Valores tradicionais da
cultura nipônica – como disciplina e fidelidade às empresas – estruturaram as
relações entre capital e trabalho, alicerçadas sobre a garantia de emprego vitalício.
O Estado encarregou-se de investir em
educação, formando profissionais de elevada qualificação.
Espinha dorsal do novo Estado, o PLD
atingiu o auge de seu poder nos anos 1970,
sob a liderança do então primeiro-ministro Kakuei Tanaka. O partido, hegemônico, funcionava como um comitê de representantes dos interesses das grandes
empresas e bancos, que financiavam diretamente as suas campanhas eleitorais. Sob
esse sistema, desenvolveram-se relações de
assustadora promiscuidade entre políticos,
financistas e industriais, receita certa de
corrupção. O próprio Tanaka renunciou
em meio a um grande escândalo, em 1974.
Embora chacoalhado por sucessivas denúncias, o modelo “funcionava”. A exportação de bens de consumo de alto valor
agregado (automóveis, aparatos tecnoló-
gicos, robótica, microeletrônica), estimulada pela subvalorização do iene (o que
tornava os produtos japoneses baratos no
mercado externo) permitiu a entrada de
rios de dólares no país. O dinheiro fluía,
favorecendo ainda mais a prática da
corrupção e a especulação imobiliária.
A festa acabou nos anos 1990, com a
recessão prolongada, o desemprego (marcando o fim do sonho do “emprego vitalício”) e o estouro da bolha especulativa no
setor imobiliário. Em 1990, o índice
Nikkei, que mede o valor das ações, desabou de quase 40 mil pontos, em janeiro,
para menos de 20 mil, em dezembro. A
súbita queda do valor das ações e dos imóveis produziu uma hecatombe na economia real, da qual o Japão nunca se recuperou de fato, ainda mais tendo que competir com o crescimento avassalador da vizinha China.
Foi esse o quadro que, finalmente, em
2009, conduziu o PDJ ao poder, então sob
a liderança de Yukio Hatoyama, um político de retórica reformista, mas com trajetória ligada ao PLD. Seu avô participou da
fundação do velho partido, do qual ele
mesmo foi membro, até 1993, quando passou para a oposição. Hatoyama prometia
uma espécie de “New Deal japonês”: refor-
çar a rede de proteção social, numa situação em que o país enfrentava níveis recordes de desemprego (5,7%); reforma das
aposentarias para beneficiar os mais pobres;
escolas públicas gratuitas; mais subsídios
para os agricultores; o fim dos “gastos excessivos” nas obras públicas (o mecanismo
utilizado pelo PLD para compensar os
“amigos”). Prometia, ainda, dar continuidade à aliança com os Estados Unidos, mas
questionou a presença militar americana no
Japão – o que, provavelmente, foi decisivo
para a sua queda, em junho de 2010, quando foi substituído por Kan.
O desastre de Fuskushima demonstra
que o “New Deal” prometido por Hatoyama
não decolou. Ao contrário, prevalecem os
mecanismos de cumplicidade entre autoridades públicas e empresários, os quais permitiram que uma empresa irresponsável
como a Tepco permanecesse em funcionamento até hoje. Se Kan tem mesmo a intenção de “reformar o Japão”, iniciando pela
nacionalização da Tepco, terá que comprar
uma guerra sem tréguas com o PLD e seus
associados. Ele não dispõe de muitas escolhas: se não o fizer, seu partido será engolido
pelo mesmo tsunami que abriu as comportas do inferno nipônico.
2011 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
6
FUNDAMENTOS DO
N
ESTADO NIPÔNICO
RUMO À TERCEIRA INVENÇÃO DO JAPÃO?
a manhã de 7 de dezembro de 1941, sem qualquer aviso prévio e em meio a
negociações diplomáticas bilaterais, 353 caças japoneses decolaram de seis portaaviões em duas ondas consecutivas e bombardearam a frota americana baseada em
Pearl Harbor. A “data que viverá na infâmia”, como a qualificou o presidente Franklin
Roosevelt, definiu o futuro do Japão.
Seis meses antes, tentando evitar a guerra contra os Estados Unidos, altos oficiais da Marinha Imperial estabeleceram contato com os filósofos da chamada Escola
de Kioto. O projeto de criar um polo político contrário à guerra deu origem a um
ciclo de debates promovido pelo mensário Chuokoron. Entre os debatedores estava
Keiji Nishitani, professor da cátedra de Religião em Kioto. Nos debates, ele fez o
elogio do Japão medieval e lamentou, em tons nostálgicos, uma modernização que
significava ocidentalização.
Contudo, seu tema verdadeiro não era o Ocidente, mas a China: “O problema
mais básico é a ‘consciência de China’ dos chineses, a consciência de sempre terem
sido o centro da Ásia e do Japão ter sido educado por uma graça da cultura chinesa.
Nesta situação, o principal é, de algum modo, fazê-los ver e reconhecer que o Japão
é hoje o líder na construção da Ásia Oriental Maior – e deve ser o líder em virtude
de uma necessidade histórica.”
O Japão moderno foi inventado duas vezes, ambas a partir de traumas oriundos
de conflitos com os Estados Unidos. Entretanto, a sombra da China pairou sobre
os dois inventos. Hoje, depois da tragédia provocada pelos efeitos combinados do
terremoto e do tsunami, os japoneses se perguntam se não é tempo de reinventar,
mais uma vez, a nação e o Estado. A terceira invenção, se ocorrer, representará em
diversos sentidos uma reação à ascensão chinesa.
Tepco, uma história de falsificações
Um inventário das falsificações praticadas pelos responsáveis da Tepco em relatórios sobre as
condições de funcionamento da usina de Fukushima e de outras usinas da empresa, produzido
por organizações de defesa do meio ambiente, dá uma dimensão da catástrofe política:
● Anos 1980 e 1990: em vários momentos a Tepco falsificou dados, inclusive o número de
fendas nos tanques de pressão dos reatores da usina.
● 1991 e 1992: funcionários bombearam ar para dentro do tanque de segurança do reator 1
da usina, para minimizar a leitura de testes de vazamentos.
● 2000: detectadas rachaduras nos canos de água na usina.
● 2002: um engenheiro da General Electric, que fabricou três dos seis reatores da usina, soou
o alarme. Não haviam sido feitas inspeções em 13 reatores nas usinas da Tepco. Ele denunciou 29 episódios de dados falsificados, provocando a renúncia de altos executivos da Tepco.
● 2006: vapor radioativo vazou de um cano da usina. A empresa também foi acusada de
falsificar dados sobre a temperatura da água de resfriamento em 1985 e 1988. Os dados
tinham sido usados em inspeções obrigatórias da usina em 2005. Em 2007, surgiram outros
dados falsificados de um reator da Tepco.
● 2007: ao menos oito pessoas morreram quando a usina de Kashiwazaki-Kariwa foi danificada
por um terremoto. Canos estouraram, houve incêndios e água radioativa vazou de uma piscina de armazenagem de varetas de combustível usadas. A usina continuou fechada por um ano
para que a segurança em caso de terremoto, considerada suficiente pela empresa, fosse melhorada. Mais tarde, determinou-se que a Tepco tinha pulado 117 inspeções no local.
● 2009: outro incêndio ocorreu na planta de Kashiwazaki-Kariwa, ferindo um funcionário.
● 2 de março de 2011: a agência reguladora de energia nuclear do Japão acusou a Tepco de
negligência: a empresa teria deixado de inspecionar 33 equipamentos na planta de Fukushima,
incluindo os elementos no sistema de resfriamento central nos seis reatores e as piscinas de
varetas usadas. A empresa admitiu ter cometido erros, e que também tinha deixado de fazer
19 inspeções na planta de outra usina localizada em Fukushima. Especialistas já vinham
advertindo, há mais de três décadas, que o reator do tipo Mark1, produzido pela General
Electric, não foi construído para sobreviver a uma combinação de terremoto e tsunami.
A primeira invenção produziu o Japão Meiji, imperial e expansionista. Em 1854,
no quadro da expansão americana no Pacífico, o comodoro Matthew Perry forçou
a abertura do comércio japonês bombardeando portos do país. Os “navios negros”
de Perry desataram a crise e o colapso do sistema político do xogunato, assentado
sobre o poder regional dos senhores da guerra, os chefes regionais que mantinham
os camponeses sob servidão. A devolução do poder ao imperador Mutsuhito, completada em 1867 e 1868, tornou-se conhecida como Restauração Meiji. Instalado
em Edo (Tóquio), a antiga “capital do leste”, o imperador suprimiu o poder do
xogum e realizou a centralização política do país.
O novo sistema político baseou-se numa fusão original entre o absolutismo
moderno e a antiga religião xintoísta. O Estado Xinto, como foi chamado, identificou a nação ao imperador e coloriu o nacionalismo japonês com os ingredientes
da glorificação da guerra e da honra. A restauração do poder imperial conferiu
vigoroso impulso modernizador e industrializante ao país. Em poucas décadas, o
Japão alcançou a condição de maior potência do Oriente.
O Japão Meiji desenvolveu seu próprio expansionismo imperial, nas ilhas oceânicas e no continente asiático. O “Destino Manifesto” japonês, como ficou conhecido,
foi concebido por intelectuais nacionalistas que se ressentiam da antiga, tradicional
posição periférica de seu país em relação à China, o “Império do Centro”. Era disso
que Nishitani continuava a falar, obsessivamente, às vésperas de Pearl Harbor.
Na hora da derrota, em agosto de 1945, não faltou simbolismo. Após os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, os representantes do imperador tiveram
que assinar a rendição incondicional a bordo de um porta-aviões americano. Começava, pelas mãos dos Estados Unidos, a segunda invenção da nação japonesa. Reformado e ocidentalizado, o país foi envolvido na arquitetura mundial da Guerra Fria,
tornando-se um dique contra a expansão da influência soviética no leste asiático.
No imediato pós-guerra, sob a administração militar do general Douglas
MacArthur, foram desenhadas as reformas destinadas a ocidentalizar o Japão. O
imperador negou a sua divindade, em emissão radiofônica, destruindo os fundamentos do Estado Xinto. A nova Constituição limitou os gastos bélicos às necessidades estritas de defesa e manteve as bases militares dos Estados Unidos no país.
A Constituição conservou a monarquia, mas transferiu o poder político para o
parlamento. Contudo, o parlamentarismo imposto de fora tinha como vício de
origem a ausência das tradições ocidentais do jogo político e partidário. O vazio foi
preenchido pelo Partido Liberal Democrático (PLD), que emergiu como instituição destinada a forjar consensos no interior da elite empresarial e desdobrá-los na
esfera política e administrativa.
Os sistemas político e econômico do Japão do pós-guerra propiciaram forte
crescimento da produção e da riqueza social, durante quatro décadas. Durante trinta anos, entre 1950 e 1980, a expansão japonesa contrastou com o desastre social
do maoísmo numa China assolada pela pobreza e por pavorosas crises de fome.
Contudo, o “modelo japonês” esgotou-se nos anos 1990, deixando um rastro de
persistente recessão e uma crise política larvar, que decorre do abismo entre a elite
dirigente e a massa da nação. Os líderes japoneses mentem mais que o normal para
seus eleitores. Eles protegem empresas arrogantes, ineficientes e fraudulentas, como
a Tepco, responsável pelos reatores de Fukushima. As eleições não provocam mudanças verdadeiras, mas apenas novas versões do mesmo, envelhecido modelo. Os
japoneses não acreditam no que lhes dizem seus governantes sobre a extensão e
gravidade do acidente nuclear.
O Japão ficou doente exatamente quando se acelerou o ritmo da expansão chinesa. No cenário asiático do século XXI, o Japão se desloca, uma vez mais, para
uma posição periférica em relação à China – apesar de sua riqueza per capita muito
maior e tecnologia mais sofisticada. Uma terceira invenção do Japão, mais uma vez
oriunda de um grande trauma nacional, mas agora sem participação americana,
teria que oferecer uma resposta criativa ao desafio chinês.
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JAPÃO
O “TERCEIRO IMPACTO”:
DE GOJIRA A EVANGELION
o longo da Guerra Fria, o fantasma de uma terceira
guerra mundial rondou a imaginação global. Seria, sem
dúvida, um confronto nuclear. Muito se escreveu sobre o
pouco que talvez restasse do planeta, caso o embate entre
os arsenais de bombas atômicas da União Soviética e dos
Estados Unidos finalmente irrompesse. Na prática, o temido confronto nunca ocorreu. Com a queda do Muro
de Berlim, em 1989, houve alguma agitação em torno
do vazamento da tecnologia nuclear e ainda circulam
cenários de guerras nucleares localizadas e atentados terroristas usando artefatos atômicos.
Em vez de um confronto em escala global, a realidade das duas últimas décadas é a dos conflitos regionais,
dos ataques com armas convencionais (ou nem tanto,
como os aviões atirados contra as Torres Gêmeas em Nova
York, em 2001). Numa aparente regressão civilizatória,
no lugar de uma terceira confrontação em escala planetária, emergem a cada dia novas formas de “guerra santa”,
vários surtos de “limpeza étnica” nos Bálcãs e na África, a
institucionalização de bandos e guerrilhas de narcotraficantes na América Latina. É como se a imagem de uma
batalha apocalíptica finalmente cedesse à realidade dos
conflitos pulverizados – que se tornam globais apenas
quando se convertem em eventos midiáticos, narrados
em imagens, reportagens e filmes que justificam um aperto a mais nas engrenagens da violência em rede, do terror
de Estado e do consumo em massa de visões conspiratórias
da aventura humana.
O terremoto seguido de tsunami que provocou o
maior desastre em usina nuclear da história, no Japão,
recolocou em evidência os riscos dessa forma de produzir energia elétrica, de um lado, mas também as peculiaridades da cultura japonesa. A imprensa rapidamente
notou como os japoneses se mobilizaram de forma ordeira, pacífica e solidária após a catástrofe. Anos de treinamentos para situações de emergência mostraram uma
eficácia ao menos parcial. A dimensão cultural da resposta à catástrofe ganhou realce e relevância, apesar da
ocultação de informações pela empresa responsável pela
usina de Fukushima e pelo próprio governo japonês (veja
a matéria na pág. 6).
Um ícone lembrado foi Godzilla (em japonês,
“Gojira”). O gênero “filme de monstros” frequenta não
apenas a cultura popular japonesa, mas tornou-se um pro-
Japoneses aprenderam a reciclar o
medo pela cultura popular. Seus
“monstros radioativos” surgiram com
Hiroshima e Nagasaki, dinamizando
uma psicoterapia nacional incessante
Reprodução
A
Gilson Schwartz
Especial para Mundo
duto de exportação, uma resposta pop à própria ocupação militar do Japão após a Segunda Guerra Mundial.
Claro que “filmes de monstros” não são exclusividade
japonesa. A indústria cinematográfica americana produziu clássicos como King Kong e uma infinidade de “guerras de mundos”, em geral no espaço sideral, pródigas em
confrontos entre a tecnologia ocidental e as mais variadas mostruosidades, fauna que o já clássico Star Wars
celebrizou, criando uma das mais variadas e divertidas
coleções de ETs, uma criatividade que se prolonga e
sofistica no recentíssimo Avatar.
Há, contudo, uma diferença essencial entre as “guerras
contra monstros” da cultura pop americana e a longa série de
“monstros radioativos” produzidos pela indústria cultural japonesa após a catátrofe de Hiroshima e Nagasaki: enquanto
os alienígenas de Hollywood são irreversivelmente não hu-
Explosões, incêndios, monstros e heróis mutantes
●
●
●
●
Monte Fuji em Vermelho: http://www.youtube.com/watch?v=mTg3D1PoyUE&feature=player_embedded
Neon Genesis Evangelion: o Terceiro Impacto: http://www.youtube.com/watch?v=iRA0_FWVt28&feature=player_embedded
Astro Boy (o Átomo Poderoso): http://www.youtube.com/watch?v=D4HVYZhohGw
National Kid e os Seres Abissais: http://www.youtube.com/watch?v=DcUIs3nrRtk&NR=1
manos, inimigos irredutíveis, cujo enfrentamento se resolve
apenas pela liquidação total do Outro, a “monstrologia” japonesa é menos maniqueísta. As fronteiras entre o humano e o
não humano são menos absolutas, as mutações entre as duas
espécies são frequentes e mesmo os monstros evoluem (como
exoesqueletos pré-históricos, em Godzilla, ou robóticos, nos
Transformers, sem esquecer da vasta coleção de simpáticos e
sempre capazes de evolução Pokémons). Na série Neon Genesis
Evangelion, tudo começa com o Terceiro Impacto – a explosão de usinas nucleares seria o começo do fim, depois do grande
terremoto em Tóquio (1923) e do segundo impacto (as bombas americanas de 1945).
Godzilla permanece como o ícone maior dessa história, que passa pelo cinema e pelas várias categorias de
pulp fiction (histórias em quadrinhos, desenhos animados ou animes e games, cada vez mais games). O monstro desperta das profundezas do oceano em 1954, após
uma série de testes nucleares no Pacífico. Rapidamente,
o gênero foi assimilado pela indústria japonesa. Em 1960,
a fábrica de eletrodomésticos National Electronics (atualmente, Panasonic) lançou National Kid, herói que frequentemente se lança em combates contra seres abissais.
Ultraman, Astro Boy (que, em japonês, é o Tetsuwan
Atomu, ou “Átomo Poderoso”), Gen...
Desde a irrupção de Godzilla, a indústria cultural japonesa produziu incessantemente conteúdo ligado ao
trauma das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima
e Nagasaki. No centro de todas essas criações, está a convergência sempre perversa entre tecnologia (não apenas a
nuclear), monstruosidade e angústias juvenis. Da turminha do National Kid aos adolescentes que pilotam “mecas”
(exoesqueletos robóticos) em Neon Genesis Evangelion, o
tema retorna ciclicamente.
A exploração do potencial comercial das relações entre cultura popular, indústria de consumo e identidade
nacional convive, nessa já longa tradição, com uma espécie de psicoterapia coletiva incessante que em boa medida reforça na sociedade japonesa o sentimento de
vitimização. Mas, ao contrário dos monstros americanos,
as tecno-monstruosidades japonesas guardam nos seus
enredos alguma autocrítica poética, algum espaço para a
tomada de consciência da responsabilidade humana, política e empresarial pelas catástrofes que apenas aparentemente são de cunho natural, abissal ou telúrico.
O exemplo mais elaborado e poético dessa tradição mergulhada em contradição é a obra prima de Akira Kurosawa,
Sonhos, em especial o episódio “Monte Fuji em Vermelho”.
Profeticamente, o maior cineasta japonês (acusado por muitos de ter ocidentalizado demais seus filmes) coloca uma
família e um cientista diante de um Monte Fuji em chamas.
Terremoto? Tsunami? Confira a resposta, exibida nos cinemas em 1990 e disponível no YouTube (veja o box).
Gilson Schwartz é professor de economia na USP e
líder do grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento
(www.cidade.usp.br)
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8
JAPÃO
POLÍTICA ENERGÉTICA SUBSTITUIU
PETRÓLEO POR REATORES NUCLEARES
A
Estratégia de ampliação do uso da fonte nuclear derivou dos “choques do petróleo” da década de 1970.
Agora, todo o planejamento energético será repensado
catástrofe natural e humana que atingiu o Japão em
março vai ainda ecoar por muito tempo. Desde já, ela
levanta indagações sobre o futuro das estratégias
energéticas, no mundo inteiro. As usinas nucleares, que
pareciam voltar à moda, estão mais uma vez sob o fogo
da crítica.
Logo após o acidente na usina de Chernobil, na
Ucrânia, que fazia parte da antiga União Soviética, em
1986, os questionamentos sobre a validade do uso da fonte nuclear para a geração de energia se tornaram muito
fortes. Contudo, a passagem do tempo e o desenvolvimento
de novas tecnologias e sistemas operacionais reabilitaram
a opção nuclear. Nos últimos anos, um número crescente
de especialistas passou a defender a fonte nuclear com base
na maior sofisticação dos sistemas de segurança, que as
tornariam praticamente imunes a acidentes.
Os argumentos favoráveis ganharam força a cada novo
relatório do IPCC sobre mudanças climáticas. A produção de eletricidade por fonte nuclear provoca emissões
quase insignificantes de gases de efeito estufa, ao contrário do que ocorre com as centrais térmicas a carvão, petróleo ou gás. Do ponto de vista ambiental, a única desvantagem se relaciona ao armazenamento e destinação
final dos resíduos radioativos gerados pelos reatores.
O acidente de Fukushima provavelmente não acarretará mudanças de curto prazo na produção de eletricidades em países altamente dependentes da energia nuclear.
Mas, com certeza, o preço de construção e manutenção
de novas usinas sofrerá forte incremento, por conta da
introdução de novos sistemas de segurança.
A matriz energética japonesa depende intensamente
– em cerca de 15%, o que não é pouco – da fonte nuclear. Fukushima trouxe à tona, com uma clareza brutal, a
pergunta: como um país que sofreu o “holocausto atômico” em Hiroshima e Nagasaki apostou tanto na energia nuclear? A resposta envolve uma combinação de fatores geográficos, históricos, econômicos, sociais e geopolíticos. Num lado da equação, há uma nítida carência
de recursos naturais energéticos; no outro, as estratégias
energéticas conduzidas pelos governos ao longo dos ciclos econômicos de longo prazo.
O Japão, um arquipélago formado por cerca de 3.500
ilhas, possui superfície de quase 373 mil km2, pouco maior
que a área do Maranhão. Quatro ilhas principais –
Honshu, Hokaido, Shikoku e Kiushu – perfazem 97%
do território japonês. Situado no interior do Círculo de
Fogo do Pacífico, em faixa de contato entre três grandes
placas tectônicas, o país está sujeito cotidianamente a
abalos sísmicos de variadas intensidades. A usina de
Fukushima encontra-se na região nordeste da ilha de
Honshu, local do epicentro do terremoto (veja o mapa).
O país é muito montanhoso, tanto que as regiões acidentadas cobrem grande parte do território e as planíci-
sul, a quantidade de vítimas seria muitas vezes maior.
Por um “capricho geológico”,
CHINA
A região da megalópole
o
Japão
é desprovido de grandes
RÚSSIA
HOKAIDO
Outras áreas do país
recursos minerais, especialmente
de matérias-primas energéticas, o
Limite
das
PLACA
EUSOASIÁTICA
que o obriga a importar cerca de
Placas tectônicas
COREIA
MAR
DO
80% dos recursos que necessita.
DO
NORTE
Direção de
Sendai
LESTE
Isso não impediu que o país manFukushima
deslocamentos das
U
(MAR DO JAPÃO)
H
S
tivesse, durante três décadas, a
placas tectônicas
COREIA
N
O
Tóquio PLACA
H
DO
posição de segunda maior potênDO
Yokoyama
Kioto
Epicentro do
PACÍFICO
SUL Hiroshima Kobe
Nagoya
cia econômica mundial, condição
Osaka
terremoto
OCEANO
Nagasaki
perdida para a China em 2010.
SHIKOKO
KIUSHU
PACÍFICO
A matriz energética japonesa
PLACA DAS FILIPINAS
atravessou transformações marcantes desde o final da Segunda
Gráfico 1
Guerra Mundial. Em 1950, o carvão representava cerca de
metade das fontes primárias, a fonte hídrica contribuía com
A matriz energética do Japão
em quatro tempos
algo em torno de um terço e o petróleo perfazia apenas
%
pouco mais de 5%. Em 1965, no ponto intermediário do
Petróleo
70
grande ciclo de crescimento econômico, o petróleo já conCarvão
60
tribuía com quase 60%, o carvão retrocedera para 27% e a
Hidro
50
Nuclear
fonte hídrica representava 11% do total.
40
Uma segunda mudança estrutural na matriz energética
Gás
30
decorreu das novas estratégias provocados pelos “choques
Outras
20
do petróleo” de 1973 e 1979. A partir de então, o país
10
pôs em prática um plano de reduzir a dependência em
0
1950
1961
1970
2007
relação ao petróleo importado e, também, de diversificar
os fornecedores do produto, a fim de reduzir a vulnerabilidade da economia frente à instabilidade geopolítica
Gráfico 2
no Oriente Médio. Essas ações foram complementadas
A matriz elétrica do Japão
com a implementação de políticas de aprimoramento da
Gás 26%
eficiência energética. Desde os anos 1970, o Japão pasNuclear 23%
sou a apostar fortemente na fonte nuclear.
Carvão 27%
As consequências apareceram rápido. Nas últimas
décadas, a participação do petróleo na matriz energética
Petróleo 14%
reduziu-se praticamente pela metade, enquanto a fonte
Outras 3%
Hidro 7%
nuclear quintuplicou sua participação. Contudo, mesmo depois de todas essas mudanças, o Japão continua
figurando entre os três maiores consumidores e importaes, especialmente as litorâneas, não representam mais que dores do “ouro negro” (veja o gráfico 1).
15% do total. Tais características morfológicas induziA eletricidade é um subconjunto da matriz energética
ram a população se concentras nessas planícies, especial- total. Na matriz elétrica japonesa, a participação da fonmente as voltadas para a vertente do Pacífico, onde as te nuclear é de quase 25%, enquanto cerca de dois terços
densidades são altíssimas. A população japonesa é de apro- da geração de eletricidade se realiza em usinas térmicas
ximadamente 127 milhões de habitantes, com cerca de convencionais, movidas a gás, carvão ou petróleo. Uma
três quartos deles concentrados na ilha de Honshu, onde geração complementar depende de hidrelétricas e de ouse situa a capital, Tóquio. Na verdade, Tóquio é o núcleo tras fontes renováveis (veja o gráfico 2). Antes do acida mais populosa região urbana do mundo, a megalópole dente de Fukushima, o governo planejava ampliar a parTokaido, que engloba, além da capital, as cidades de ticipação da energia nuclear na geração de eletricidade
Yokohama, Osaka, Nagoya, Kobe e Kioto, abrigando para 40%, até 2020, e 50%, em 2030. Diante do que
cerca de 37 milhões de habitantes. Se o terremoto e o aconteceu, com certeza, esta estratégia será revisada.
tsunami tivessem ocorrido 300 ou 400 quilômetros ao
Japão: aspectos geográficos
0
100 KM
67
58
51
45
33
27
20
21
10
6
14 13
11
8
4
4
3
5
FONTE: Derruau, Max; O Japão e AIE
FONTE: Agência Internacional de Energia (2007)
MAIO 2011
9
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
ESTADOS UNIDOS
DEMOCRACIA FOI O FOCO DA VISITA DE
OBAMA À AMÉRICA LATINA
O
s Estados Unidos, com Barack Obama na presidência, tem uma política para
a América Latina? Foi a pergunta que
emergiu quando anunciou-se que o presidente visitaria países latino-americanos e
surgiu a figura de um quase desconhecido, Arturo Valenzuela, novo encarregado
para a América Latina no Departamento
de Estado americano. Valenzuela fez essa
pergunta a si mesmo em audiência num
subcomitê da Câmara dos Deputados.
A viagem de Obama foi mais curta do
que aquela de George W. Bush em 2007.
Obama só visitou três países, mas a secretária de Estado Hilary Clinton definiu-a
como “vital” em termos diplomáticos.
Valenzuela faz parte da “família”, foi assessor de Bill Clinton para questões latino-americanas e é citado como militante
democrata convicto, especialista em “origens e consolidações de democracias”. Ele
porta um currículo invejável, tendo ainda
em vista que nasceu no Chile e fez carreira acadêmica nos Estados Unidos. No cargo que passou a ocupar, coube-lhe definir
o que seria a agenda latino-americana de
Obama. Foi o que fez, em declarações à
imprensa e, sobretudo, em depoimentos
perante o Congresso.
Relações com Cuba ficam mais ou
menos o mesmo de sempre, com pequenos gestos de escassa abertura e com direitos humanos em primeiro lugar. A ambição de Valenzuela é “reconstruir” relações com a América Latina. Sob o seu
ponto de vista, elas naufragaram nos oito
anos dos dois mandatos de Bush e agora
se trata mesmo de reconstruí-las. A ênfase
absoluta é na questão da democracia.
No governo Bill Clinton, como assessor de segurança nacional, ele tratou sobretudo do México. O combate aos cartéis
de drogas mexicanos assume, na visão do
governo Obama, o caráter de contrainsurgência. Guerra civil? Pelo menos uma
ausência causou estranheza, no roteiro da
viagem de Obama: a Colômbia, que é o
mais firme aliado dos Estados Unidos no
continente, recebe gordas verbas para
combate ao narcotráfico e continua às
voltas com um renitente espasmo guerrilheiro. O país acolhe, como o México, assessores militares dos Estados Unidos, que
Sob a orientação do assessor Arturo Valenzuela, o presidente americano definiu um eixo de
política externa para o subcontinente. O alvo implícito é a Venezuela de Hugo Chávez
© Roberto Stuckert/PR
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
Barack Obama manteve breve encontro com Dilma Rousseff, pautado por temas estratégicos como o petróleo e o
equilíbrio geopolítico no hemisfério
migraram da base americana fechada no
Equador, onde o presidente é um populista
de esquerda. Acontece que o Plano Colômbia, de assistência militar no combate
ao narcotráfico e à guerrilha, tem verbas
reduzidas no projeto de orçamento de
2012, encaminhado por Obama ao Congresso americano.
O roteiro de Obama ficou entre o simbólico e o pragmático. O Brasil desempenha papel proeminente na América Latina
e é preciso reconhecê-lo. Além disso, um
encontro entre os dois presidentes, do Brasil
e dos Estados Unidos, talvez permitisse ir
mais fundo nos quesitos Honduras e Irã,
embora Honduras não estivesse contemplada no roteiro latino-americano. O Brasil acabou se declarando favorável a que o Conselho de Direitos Humanos da ONU examine violações em todos os lugares onde aconteçam – e elas acontecem, sistematicamente, no Irã. Quanto a Honduras, o Brasil não
reconhece seu governo por considerá-lo ilegítimo, oriundo de um golpe. Não é o que
acham os Estados Unidos, muitos felizes com
a eleição de um presidente que tomou o lugar de outro, de estilo venezuelano.
Já o Chile, o outro país sul-americano visitado, é visto como uma espécie de modelo,
sobretudo em política, com arraigada tradição democrática que voltou a se afirmar depois da ditadura de Augusto Pinochet, transitando de um longo período de governo de
centro-esquerda para um presidente de cen-
tro-direita. O Chile também atraiu as atenções mundiais com o resgate de 33 mineiros
soterrados numa mina de cobre, conduzido
com eficiência e profissionalismo.
El Salvador, terceiro país visitado, tem
se mostrado um firme aliado dos Estados
Unidos na América Central. É uma grata
surpresa para Washington, quando se leva
em conta que seu presidente elegeu-se como
candidato da Frente Farabundo Marti de
Libertação Nacional (FMLN), os ex-guerrilheiros esquerdistas combatidos no passado por uma ditadura pró-americana.
A escala em El Salvador teve, sobretudo, o objetivo de fazer um levantamento
geral da situação na América Central. O
presidente americano quer mostrar que,
no país, se pratica um esquerdismo “responsável e moderado”, em oposição ao
chavismo venezuelano. El Salvador e Chile
fizeram há pouco a alternância de poder
nos dois sentidos, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. El Salvador ajudou a tirar Honduras do isolamento imposto por iniciativa da Venezuela
e do Brasil. Em seu depoimento no Congresso, Valenzuela disse que é preciso “consolidar na América Latina instituições democráticas vibrantes”. Seu testemunho foi
intitulado “Os Estados Unidos tem uma
política para a América Latina?”. É, sem
dúvida, uma pergunta persistente.
Disposto a oferecer algumas respostas,
Valenzuela visitou El Salvador nos dias 10
e 11 de fevereiro, preparando a viagem de
Obama, o que dá a medida da importância atribuída ao pequeno país centro-americano. Os Estados Unidos enfrentaram,
no passado recente, situações complicadas
na América Central, especialmente os conflitos entre governos e guerrilhas de esquerda na Nicarágua e em El Salvador. O
sandinismo, contra o qual lutaram, venceu as últimas eleições na Nicarágua.
Alternância em cheque? O presidente
sandinista Daniel Ortega, que manifestou
solidariedade a Kadafi, pretende se reeleger em 2011.
Há pouco, quase coincidindo com o depoimento de Valenzuela, o secretário-geral
da Organização dos Estados Americanos
(OEA), José Miguel Insulza, disse, em entrevista ao jornal El Tiempo, da Colômbia,
que a democracia deve ter limites institucionais. Insulza criticava as buscas de eleições
continuadas, como na Venezuela. Falou em
“concentração do poder”, o que considera
antidemcrático. A Venezuela, mais uma vez,
como alvo. “Não podemos ficar mudos, o
que seria aceitar situações como essa”, arrematou Valenzuela. “Assim como saudamos
líderes populares que optaram por deixar o
poder, de acordo com a alternância democrática, lamentamos mudanças constitucionais que beneficiem quem está no poder”,
concluiu a figura que está a cargo da América Latina no Departamento de Estado.
2011 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
10
LÍBIA
HESITAÇÃO E DISSENSO MARCAM A
OPERAÇÃO MILITAR OCIDENTAL
A
Líbia não é “o Iraque de Obama”, como sugerem críticos situados
em pontos antagônicos do espectro
político. Ao contrário da invasão do
Iraque, uma ação unilateral dos Estados Unidos, condenada pela maioria do Conselho de Segurança da
ONU (CS), a operação aérea na
Líbia foi deflagrada a partir da Resolução 1973 do CS, adotada em março, com dez votos favoráveis, nenhum contrário e cinco abstenções.
No Iraque, George W. Bush perseguia uma estratégia de reforma geopolítica do Oriente Médio, disfarçada como difusão da democracia. Na
Líbia, um Barack Obama relutante
segue a reboque da França e da GrãBretanha, seus aliados europeus que
pressionaram até conseguir um consenso mínimo para a montagem de
uma coalizão militar.
“O Ocidente quer o petróleo da
Líbia”, sugeriram os pouco criativos Hugo
Chávez e Fidel Castro, solitários amigos
de um Muhammar Kadafi abandonado
pelos árabes e africanos. As empresas petrolíferas ocidentais têm amplo e desimpedido acesso às reservas petrolíferas líbias
desde 2003, quando Kadafi concluiu um
acordo abrangente com os Estados Unidos e se incorporou à “guerra ao terror”
de Bush. Atrás da Resolução 1973 não está
o petróleo, mas o espectro de tragédias do
passado recente, como o genocídio de
Ruanda, em 1994, e o massacre de Srebrenica, na antiga Iugoslávia, em 1995.
Semanas depois do início das ações
aéreas da coalizão, quase se esqueceu a circunstância na qual o CS votou pela intervenção. Os bombardeios da coalizão começaram na undécima hora, quando as
forças de Kadafi atingiam as entradas de
Benghazi, uma cidade de um milhão de
habitantes. Em Ruanda, sob o olhar aterrorizado do mundo, uma ditadura terminal hutu promoveu o genocídio de 800
mil cidadãos tutsis. Em Srebrenica, forças
paramilitares sérvias assassinaram 8 mil
muçulmanos bósnios, em área declarada
“refúgio seguro” pela ONU. Sob o impacto das tragédias, a ONU revisou seus conceitos sobre a soberania nacional e, em
Operação aérea contra Kadafi não consegue ocultar as divergências entre as potências do CS da
ONU. Os críticos da coalizão ocidental têm fartos argumentos, mas não exibem alternativa realista
ropeus, e resistiu às insistências de
franceses e britânicos pelo fornecimento de armas aos rebeldes líbios.
Além disso, ao contrário da França,
os Estados Unidos adiaram um reconhecimento do governo rebelde de
Benghazi, exprimindo preocupação
com a presença de jihadistas na periferia da insurreição popular líbia.
A Resolução 1973 é um primor
de ambiguidade. O trecho crucial
diz que as potências da coalizão
estão autorizadas a “usar todos os
meios” para proteger a população
civil, exceto ações terrestres na
Líbia. Sarkozy, Cameron e Obama
afirmaram que Kadafi deve deixar
o poder, mas reconheceram que
esse não é um objetivo contemplado pela resolução. A coalizão realizou bombardeios táticos contra
forças de Kadafi, coordenados com
frustradas ofensivas terrestres dos rebeldes.
Os russos acusaram a coalizão de tomar
partido numa “guerra civil” líbia. Chineses, brasileiros e indianos sugeriram que a
operação aérea não está protegendo civis,
mas perpetuando a violência. São críticas
mais ou menos fundamentadas, porém
fáceis: afinal, ninguém ofereceu uma alternativa melhor, com exceção de propostas irrealistas de um cessar-fogo geral.
Na Líbia, ao menos em tese, civis recebem proteção de uma coalizão militar
ocidental. Mas, no Bahrein e no Iêmen,
regimes ditatoriais pró-ocidentais matam
manifestantes nas ruas. Dois pesos e duas
medidas? A escala da violência é desigual:
não há um massacre em massa ocorrendo
nos dois pequenos países do Golfo Pérsico.
Mas, sobretudo, a realpolitik não foi suprimida: Washington tem um acordo militar com o Bahrein e com a Arábia
Saudita, dona das chaves dos fluxos globais e petróleo e potência “protetora” do
reino vizinho. No terreno puramente
moral, há uma “hipocrisia”, sem dúvida.
Contudo, quase nada é mais hipócrita do
que a palavra “hipocrisia” quando manipulada pelos amigos de Kadafi.
© Mark Garten/UN Photo
Demétrio Magnoli
Editor de Mundo
Ambiguidades e interesses difusos marcam a aprovação da intervenção
estrangeira na Líbia pelo Conselho de Segurança da ONU
2005, declarou solenemente que é obrigação dos Estados proteger a população
civil. O iminente massacre de Benghazi
desmoralizaria irremediavelmente a nova
tomada de posição da ONU.
Apesar das aparências, a votação no CS
evidenciou mais dissenso que consenso.
Rússia e China, membros permanentes,
se abstiveram, junto com Alemanha, Índia e Brasil, membros provisórios mas integrantes do G4, o grupo de pretendentes
a cadeiras definitivas no CS. As abstenções têm significados diferentes. Rússia e
China poderiam vetar a resolução: suas
abstenções representam, no fundo, uma
autorização disfarçada para a operação
aérea. Alemanha, Índia e Brasil não poderiam vetá-la: suas abstenções equivalem a
uma condenação oportunista da intervenção, que lhes assegura um direito de crítica permanente sem o ônus de serem
responsabilizados pelo eventual massacre
em Benghazi. Não é uma credencial perfeita para países que almejam a admissão
como membros permanentes do CS.
Nicolas Sarkozy, presidente da França, assumiu a dianteira na pressão pela
intervenção – e o primeiro ataque, que
pegou de surpresa os próprios americanos
e britânicos, foi empreendido por caças
franceses. David Cameron, primeiro-ministro conservador da Grã-Bretanha, insistiu até conseguir a anuência de Washington para apresentar a Resolução 1973
ao CS. Sarkozy está de olho no calendário
eleitoral francês, buscando meios para reconstruir uma imagem doméstica destroçada por seus programas de austeridade
econômica. Cameron, eleito há pouco,
tenta construir uma imagem de liderança, da qual ainda carece. Os motivos dos
dois europeus podem não ser muito bonitos, mas ao menos eles não se alinharam com mais um tirano árabe que não
hesita em abrir fogo contra seu povo.
Barack Obama hesitou, premido entre
a hipótese do massacre, que desmoralizaria
sua posição internacional, e a herança
iraquiana de Bush, que coloca sob suspeição
a ação de forças militares americanas em mais
um país do mundo árabe. No fim, cedeu,
mas sob condições. Washington logo repassou o comando da operação à OTAN,
enfatizando que a liderança caberia aos eu-
MAIO 2011
11
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
IRÃ
REPÚBLICA ISLÂMICA PERSEGUE
MINORIA BAHAI
A precursora no Brasil
© http://media.bahai.org
rinta anos depois da Revolução Islâmica, o desejo de
mudança provoca cenas inusitadas em Teerã e nas principais cidades iranianas. A chamada “geração K”, que nasceu sob o regime do aiotolá Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica do Irã, foi a primeira a mostrar sua insatisfação nas ruas. Em suas fileiras, destacavam-se jovens mulheres usando lenços que deixavam
mechas de cabelo à mostra, uma afronta ao rígido código
de conduta do regime. Pouco depois, elas ganharam a
companhia de mulheres de gerações anteriores, cobertas
pelo chador negro, e até de clérigos de turbante.
As manifestações contra a reeleição do presidente
Mahmoud Ahmadinejad acabaram sufocadas, mas nos
últimos meses protestos em menor escala voltaram a acontecer, como reflexo das revoltas no mundo árabe. Em
nenhum deles apareceram manifestantes identificados
como bahais, os integrantes de uma minoria religiosa
condenada à não existência a partir da ascensão dos aiatolás. De tão perseguidos, os bahais não ousam protestar
em público. Desde 1979, quando perderam direitos essenciais como frequentar universidades ou ter emprego
público, só restou a eles a resistência silenciosa.
O Irã abriga 300 mil bahais numa população de 66,4
milhões de pessoas. Fora do país dos aiatolás, a situação é
diferente. Com escritório na ONU, em Nova York e em
Genebra, os bahais tentam mobilizar a política internacional a favor dos que continuam em território iraniano. Na
cruzada contra a intolerância religiosa, contam com o apoio
da advogada iraniana Shirin Ebadi, prêmio Nobel da Paz de
2003. O mais recente movimento do grupo é pela libertação de sete lideranças bahais condenadas a pena de 20 anos
de prisão, acusadas de espionar, colaborar com Israel, espalhar “corrupção na Terra” e atuar contra a ordem islâmica.
“O crime que eles cometeram é ser bahais e não querer
mudar de religião”, reitera a prêmio Nobel nos mais diversos fóruns internacionais. Exilada em Londres desde 2009,
Shirin sentiu dentro de casa o drama da perseguição religiosa. No auge da campanha do governo Ahmadinejad contra
sua atuação pelos direitos humanos, a Irna, a agência oficial
de notícias do regime, chegou a divulgar a falsa informação
de que uma filha de Shirin havia se convertido à fé bahai.
Sede mundial Bahai, situada em Haifa
(Israel); Leonora Armstrong trouxe a fé para
o Brasil, em 1921 (fotos abaixo)
Divulgação
T
Religião bahai nasceu na Pérsia, em meados do século XIX. Com a Revolução
Islâmica no Irã, seus seguidores perderam direitos básicos de cidadania
Divulgação
Luiza Villaméa
Especial para Mundo
A primeira bahai radicada no Brasil foi a americana Leonora Armstrong, que chegou em 1921, aos 25 anos, a bordo
do vapor SS Vasari. O objetivo de Leonora era justamente divulgar a fé bahai, desconhecida no país. De lá para cá, em
termos de grande público, a situação não mudou muito. Mas, hoje, o país soma cerca de 57 mil bahais, boa parte deles
vindos depois da ascensão dos aiatolás ao poder no Irã. Entre os projetos de maior visibilidade da comunidade no país
está a Escola das Nações, uma instituição educacional bilíngue (português e inglês). Quanto a Leonora, quatro anos após
desembarcar no Brasil traduziu a primeira obra bahai para o português e não parou de atuar até 1980, quando morreu em
Salvador, na Bahia. (Luiza Villeméa)
Religião monoteísta criada em 1844 na antiga Pérsia
por Bahá’ú’lláh, considerado pelos seguidores como o último profeta enviado por Deus, o bahaísmo encontrou
oposição desde os primórdios. O fundador e os primeiros adeptos da fé acabaram exilados na cidade de Acre,
na Palestina, 80 anos antes da criação do Estado de Israel. Próxima de lá, em Haifa, fica a sede mundial da fé
bahai. No Brasil, há uma comunidade de quase 60 mil
bahais (veja o box).
Arqui-inimigo de Israel, o regime dos aiatolás jamais
faz referência à localização geográfica da sede bahai, mas
sempre acusa os seguidores da fé de espionagem e colaboração pró-Israel. Se renegassem à crença, os bahais
poderiam ter a cidadania reintegrada. Como eles recusam a conversão, são perseguidos sem trégua nos Estados
islâmicos. Entre os bahais de todo o mundo, estimados
em sete milhões, não há dúvida de que a situação mais
crítica é a do Irã, onde pelo menos 200 seguidores da
religião foram mortos desde 1979. Até hoje ocorrem com
frequência ataques incendiários a propriedades de bahais.
A perseguição religiosa não é, no entanto, exclusividade do país de Ahmadinejad. No Egito, cerca de dois mil
seguidores da fé bahai viviam até recentemente à margem
da sociedade por não se enquadrarem nas três religiões
admitidas pelo Estado: islamismo, cristianismo e judaísmo. Como não podiam tirar carteira de identidade, não
tinham acesso a serviços públicos de saúde e educação.
Eram também impedidos de realizar transações em instituições financeiras. Para reverter a situação, precisavam se
registrar como adeptos de uma das três religiões aceitas
pelo Estado. Há dois anos, uma determinação da Suprema Corte do país abriu novas perspectivas para os bahais,
ao permitir que as pessoas tirassem documentos oficiais
deixando em branco o espaço reservado à religião.
Em países de maioria islâmica, mas Estado laico, como
a Turquia, o cenário é outro. Embora as instituições bahais
não sejam reconhecidas pelo Estado e a fé não possa ser
declarada nos documentos oficiais, não há perseguição.
Tanto que uma das mais conhecidas lideranças da comunidade bahai turca, o físico Cuneyt Can, tornou-se há
três anos decano da Faculdade de Artes e Ciências da
Universidade do Oriente Médio, em Ancara, a capital
turca. No momento em que ventos da mudança sacodem o mundo muçulmano, essa é uma trajetória a ser
seguida. Por enquanto, impera a intolerância religiosa.
No mesmo Egito que derrubou o ditador Hosni Mubarak, incêndios similares aos do Irã estão sendo registrados.
O último deles, em março, destruiu as casas de 40 famílias bahais na aldeia de Shouraneya, no vale do rio Nilo.
Luiza Villaméa é jornalista e mestre em História
pela USP
2011 MAIO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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