A justiça transicional brasileira e o exemplo argentino

Transcrição

A justiça transicional brasileira e o exemplo argentino
Revista Eletrônica do Ministério Público Federal
A justiça transicional brasileira e o exemplo argentino
Ivan Cláudio Marx*
Sumário
Introdução. O câmbio de funções das forças armadas nos períodos de transição brasileiro e
argentino. Direito à justiça. Os deveres de reparação e verdade no Brasil e na Argentina. Leis de
anistia e direito à verdade. Reflexão final. Bibliografia.
Introdução
1964. Os usurpadores se apoderaram do discurso e contaram a história. Nesta, sua
'revolução' era justificada pela existência de um inimigo interno (espécie de racismo biológico).
Ditadores que garantiriam a democracia. Atos institucionais ilegais que possibilitariam a
aplicação da lei. Censuras que viriam em prol das liberdades.
O dono da pena escreve o conto...
Finalmente, o retorno à democracia devolve ao povo o direito de contar sua história.
Mas, pasmem, apenas novas histórias podem ser contadas. A simples imagem de uma
reconstrução das verdades sufocadas provoca maiores calafrios em quem teme que a névoa se
dissipe.
Anistia, prescrição, 'não ao revanchismo'... cortinas de fumaça a apagar o verdadeiro
fogo dos tiros na escuridão, nos porões das delegacias, no Araguaia.
Está na hora do povo brasileiro escrever sua história, passando necessariamente pela
releitura do passado, como o fez e está fazendo o povo argentino.
Para isso, inicialmente, em um contexto de justiça transicional, os caminhos em prol da
redemocratização passam necessariamente pela obtenção dos direitos à verdade, reparação e
justiça. Ademais, também não se pode olvidar a necessária depuração das instituições
democráticas.
No presente trabalho, se pretende analisar a justiça de transição brasileira,
identificando os avanços já conseguidos, bem como o que ainda falta percorrer. Para tanto,
como meio comparativo, se utilizará a experiência da Argentina, cuja justiça de transição, além
de parâmetro mundial, pode, devido à similitude dos casos, trazer importantes ensinamentos à
redemocratização brasileira.
*
Procurador da República em Uruguaiana-RS, Doutorando pela UMSA – Universidade Museo Social Argentino.
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O câmbio de funções das forças armadas nos períodos de transição brasileiro e argentino
As ditaduras brasileira e argentina foram, inegavelmente, diferentes.
Conforme Nino,1 as transições democráticas são geralmente classificadas de acordo com
diferentes bases. Primeiro em sua modalidade: por força ou por consenso. Segundo por sua
etiologia: endógenas ou exógenas.2 E terceiro por seu estado jurídico: de continuidade3 ou de
ruptura.4 Ademais, neste caso haveria uma terceira categoria, que seria a das restaurações.5
Assim, classifica a transição argentina como sendo por colapso,6 mista7 e de
restauração. De modo que se poderia categorizar a transição brasileira como sendo por
consenso, endógena, e de restauração.
Como bem observam Saint-Pierre e Winand,8 “é possível encontrar algumas diferenças
entre Brasil e Argentina desde a origem das duas ditaduras até na intensidade, no ritmo, na
duração e na continuidade de cada regime militar”.
Dessa maneira, afirmam que,9 em quanto no Brasil ocorreu uma “transição pactuada”,
dominada por largo período de “distensão lenta, gradual e segura”, a Argentina sofreu uma
dramática e breve “transição por colapso”.
Tal transição por colapso, que para Ernesto López (El último levantamiento, 1988)
implica uma maior probabilidade de uma democracia mais duradoura, talvez seja responsável
também pela melhor redefinição e controle do papel das Forças Armadas que ocorreu na
Argentina.10.
Segundo Lopez11
A Argentina, de todos os países que emergiram da longa noite das ditaduras latinoamericanas, é o país que chegou mais adiante em matéria de redefinição das relações
civil-militares e de controle civil. Julgou e continua julgando os genocidas da última
ditadura ela mesma, varreu prontamente a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) do
interior do universo das instituições militares e elaborou um sólido marco jurídico
para sustentar a primazia dos poderes públicos e alcançar a subordinação militar.
Além disso, desenvolveu capacidades civis para conduzir a defesa e a política militar,
e assim um ministério da defesa no qual os oficiais da ativa não têm nenhuma função,
sendo um funcionariado civil quem o dirige.
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NINO, Carlos. p. 169-170.
Caso a democratização tenha iniciado por fatores internos ou externos.
Um novo sistema legal surge do anterior conforme o processo normal de criação de novas leis.
Em que a democracia se funda em uma constituição inteiramente nova.
Quando a nova democracia se baseia em uma constituição anterior, que havia sido suspensa ou derrogada
pelo regime autoritário.
Seria uma transição sui generis, mais devida ao colapso do regime autoritário, do que à força de grupos que
favoreciam a democratização ou mesmo ao consenso.
Em que se somam fatores endógenos (problemas internos) e exógenos (Guerra das Malvinas).
SAINT-PIERRE, Héctor Luis e WINAND, Érica. O legado da transição na agenda democrática para a defesa: os
casos brasileiro e argentino, p. 39.
Idem.
A necessidade de equilíbrio entre a atuação militar e a supremacia da política civil já havia sido referida na
obra clássica “O Soldado e o Estado”, de Samuel Huntington, onde este propôs o chamado “controle
objetivo”.
LOPEZ, Ernesto. Argentina: Um longo caminho rumo ao controle civil sobre os militares. ps. 16-17.
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No caso brasileiro, como referem Saint-Pierre e Winand, 12 as Forças Armadas (FFAA)
“conseguiram conservar prerrogativas e níveis de autonomia que lhes permitem localizar fissuras
no quadro político nacional”. Tais fissuras seriam decorrentes das seguintes circunstâncias: 1. A
falta de clareza constitucional sobre questões da defesa e sobre as funções das FFAA; 2. Uma
certa incerteza entre as funções de “Defesa” e “Segurança”, possibilitando participações
indevidas por parte das FFAA nesta última função; 3. A débil estrutura de mando por parte do
Ministério da Defesa sobre os militares; 4. A falta de interesse da sociedade civil pelas questões
de Defesa; 5. A falta de preparo dos políticos para tratar dos assuntos da Defesa.
De fato, enquanto a Constituição argentina deixa muito clara a separação e os limites
entre as funções de Defesa e de Segurança, a Carta Magna brasileira não logra o mesmo,
permitindo que as FFAA mantivessem “ilhas de autonomia”, incluindo aí uma eventual função
interventora dos militares na segurança pública.
Conforme referem Saint-Pierre e Winand,13 o emprego das forças Armadas como
instrumento da lei e da ordem, previsto no art. 142 da CF,14
Ocorrerá de acordo com as diretrizes do presidente, depois de esgotados os
instrumentos destinados à preservação da ordem pública, à incolumidade das pessoas
e do patrimônio, relacionados no artigo 144 que trata da Segurança Pública. Esta é a
principal brecha deixada pela Constituição federal. Por ela, qualquer instância pode
tomar a iniciativa de convocar as FFAA. Ademais, as possibilidades de convocação são
amplas, podendo descaracterizar sua missão essencial.
Tal vem ocorrendo no Brasil em casos de atuações na repressão do tráfico de
entorpecentes, crime organizado e mesmo na prevenção do crime de contrabando, com apoio na
Lei Complementar nº 97, de junho de 1999.
Da mesma forma, também o papel do Ministério da Defesa brasileiro não demonstra
maior efetividade. Ao contrário da Argentina, que o instituiu já em 1958, 15 no Brasil, tal
ministério somente surgiu em 1999, com a Lei Complementar nº 97.
Passados já dez anos, o Ministério da Defesa brasileiro não parece lograr superar as
muitas barreiras a sua consolidação como verdadeiro controle civil das FFAA. Ademais de uma
maior difusão da cultura de Defesa, seria também necessário seguir as normas argentinas que
impedem a atribuição de cargos a militares nesse ministério, salvo se estiverem na reserva e
ocorra falta de pessoal civil devidamente qualificado.
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15
SAINT-PIERRE, Héctor Luis e WINAND, Érica. ps. 34-35.
Idem, ps. 51-52.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo exército e pela Aeronáutica, são instituições
nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (grifo nosso).
O Ministério da Defesa foi criado em 13 de junho de 1958, quando se promulgou a lei aprovada pelo
Congresso Nacional durante a presidencia de Arturo Frondizi para organizar os respectivos Ministérios. Seu
antecedente foi o Ministerio de Defensa criado pelo presidente Juan Domingo Perón logo depois da reforma
constitucional de 1949 e que havia sido suprimido em 1954.
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De modo que se pode facilmente identificar uma atuação insuficiente do Ministério da
Defesa brasileiro, principalmente quando comparado a seu par argentino. Isto, em um contexto
maior de um deficitário controle civil do papel das Forças Armadas, é um dos fatores
comprometedores da redemocratização brasileira, bem como da necessária depuração de suas
instituições democráticas.
Direito à justiça
A Argentina passou, mais recentemente, por dois períodos de ditadura militar
(1966-1973 e 1976-1983), intercalados por um pequeno retorno à ordem constitucional
(1973-1976).16
Já em 1983, as forças armadas ditaram a Lei 22.294, que foi propriamente uma lei de
auto anistia. Depois da posse do Presidente Raúl Alfonsín em 10 de dezembro de 1983, logo veio
a Lei 23.040,17 que derrogou a Lei de auto anistia nº 22.924.
Em 14 de agosto de 1984 foi ratificada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos –
CADH (1969) –, logo após ser aprovada pelo Congresso Nacional mediante a Lei 23.054. O Pacto
de Direitos Civis e Políticos foi ratificado mediante a Lei 23.313. A Convenção Contra a Tortura e
outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral
das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1984, foi aprovada pela República Argentina mediante
a Lei 23.338.18
Ademais, importa recordar que a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de
Genocídio, aprovada pela III Assembleia Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1948, já
havia sido ratificada pela República Argentina pelo Decreto-lei 6.286/1956. Todas essas
convenções citadas receberam hierarquia constitucional desde 1994, segundo o art. 75, inc. 22
da Carta Magna.19
Em 9 de dezembro de 1985, ocorreram o julgamento e a condenação dos integrantes das
Juntas Militares pela “Cámara Federal de la Capital Federal”, que foram confirmados pela Corte
Suprema em 30 de dezembro de 1986.
A partir desse momento, tendo em vista a pressão exercida pelas forças armadas,
surgiram as tentativas de, por meios legislativos, impedir tais julgamentos. Primeiramente surgiu
a Lei 23.492, de 24 de dezembro de 1986, denominada “Punto Final”, seguida da Lei 23.521, de
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19
O primeiro ato do governo constitucional do Presidente Héctor J. Cámpora, em 25-05-1973, foi ditar a Lei
20.508, anistiando de forma geral os crimes executados até aquela data.
Cuja validade constitucional foi confirmada pela Corte Suprema em “Dufour, Félix E.”, Fallos 306:174.
Sancionada em 30 de julho de 1986; promulgada em 19 de agosto de 1986 e publicada no “B.O.” em
26-02-1987.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em Viena em 23 de maio de 1969, também foi
aprovada pela Lei 19.865, ratificada pelo poder executivo nacional em 5 de dezembro de 1972 e em vigor
desde 27 de janeiro de 1980. No entanto, tal lei não possui rango constitucional por não ser uma convenção
sobre direitos humanos.
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8 de junho de 1987, chamada de “Obediencia Debida”. A primeira restringiu novas reclamações a
respeito de crimes cometidos durante a ditadura a um período de 60 dias. 20 A segunda funcionou
como anistia aos militares de posição intermediária, que teriam obrado em virtude de
obediência devida.21
Depois disso, ampliando a impunidade, o Presidente Carlos Menem, por meio dos
decretos de 6 de outubro de 1989 e 29 de dezembro de 1990, indultou os oficiais que haviam
sido excluídos dos benefícios da Lei de Obediencia Debida. Este, sim, foi o verdadeiro e
derradeiro golpe ao direito à justiça.
Em 1995, no caso “Priebke”, Fallos 318-2148, a Corte Suprema reconheceu (em que
pese a dissidência dos juízes Petracchi, Belluscio e Levene) a imprescritibilidade dos crimes
contra a humanidade, concedendo a extradição de Erich Priebke ao governo da Itália, para ser
julgado por participação na morte de 335 pessoas na chamada “matanza de las Fosas
Adreatinas”, de março de 1944.
Ainda no ano de 1995, foi aprovada pela Lei 24.556 a Convenção Interamericana sobre o
Desaparecimento Forçado de Pessoas, sendo que, em 1997, a Lei 24.820 lhe outorgou hierarquia
constitucional.
A Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a
Humanidade22 foi aprovada por meio da Lei 24.584, em 29 de novembro de 1995, sendo
ratificada por meio do decreto 579/2003, e tendo recebido outorgamento de hierarquia
constitucional pela Lei 25.778 (3 de setembro de 2003).23
Finalmente, o Tratado de Roma, firmado em 19 de junho de 1998, e seu Estatuto do
Tribunal Penal Internacional anexo, que deu uma definição de crime contra a humanidade, foram
aprovados pela Lei 25.390 em 30 de novembro de 2000 (Boletim Oficial, 23 de janeiro de 2001).
As leis de Punto Final e de Obediencia Debida foram derrogadas (sem retroatividade)
por meio da Lei 24.952 (1998), e depois tiveram declarada sua nulidade pela Lei 25.779, em
2003. Além disso, no Fallo “Simón”, de 14 de junho de 2005, as leis de Punto Final e Obediencia
Debida tiveram sua inconstitucionalidade declarada pela Corte Suprema.
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O art. 1º da lei estabelece “la extinción de la acción penal respecto de toda persona por su presunta
participación en cualquier grado, en los delitos del art. 10 de la Ley 23.049, siempre que: no estuviere
prófuga; no estuviere declarada en rebeldía; no haya sido ordenada su citación a prestar declaración
indagatoria, por tribunal competente, antes de los sesenta días corridos a partir de la fecha de promulgación
de la referida ley”.
O resultado dessas leis, na verdade, não se distanciava muito da posição desde o início defendida pelo
presidente Alfonsín, de punir apenas os grandes responsáveis pelas atrocidades, poupando os subalternos.
Nessa, a definição dos crimes contra a humanidade surge da remissão feita à definição dada no Estatuto do
Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 8 de agosto de 1945.
Em 10 de setembro de 2007, a CIDH parabenizou a Argentina por ser o oitavo país latinoamericano que
ratifica todos os tratados interamericanos de direitos humanos. Os outros Estados que já haviam ratificado
todos os tratados interamericanos de direitos humanos são Costa Rica, Equador, México, Paraguai, Peru,
Panamá e Venezuela. O último tratado ratificado pela Argentina, com depósito do instrumento de ratificação
em 5 de setembro de 2007, é o protocolo para a abolição da pena de morte.
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Nesse contexto, a Corte Suprema Argentina, nos Fallos “Arancibia Clavel” (8 de março
de 2005), “Simón” (14 de junho de 2005) e “Mazzeo” (13 de julho de 2007), vem,
majoritariamente, considerando os crimes cometidos pelos agentes de Estado durante a ditadura
argentina como sendo crimes contra a humanidade, e por tanto imprescritíveis e insuscetíveis de
anistia e indulto.24 Ademais, no caso “Mazzeo”, a Corte Suprema reviu o alcance da garantia da
coisa julgada nesses delitos.25
Os principais argumentos da Corte são baseados nas convenções ratificadas pela
República Argentina, bem como pela existência do direito consuetudinário internacional (que já
previa a imprescritibilidade e a não anistiabilidade dos crimes contra a humanidade quando de
seu cometimento pelos agentes de Estado argentinos). Para tanto, argumentam que o “direito de
gentes” sempre foi reconhecido pela Constituición de la Nación (CN) argentina. Está previsto
atualmente no art. 118 da CN, sendo que originariamente, na CN de 1853, já constava em seu
art. 102.
Também é considerado o fato de que a Comissão Interamericana é a intérprete da
Convenção Americana de Direitos Humanos. Tal competência foi reconhecida expressamente
pela República Argentina, conforme atestam os fallos 315:1492 (“Ekmekdjian”), 318:514,
319:3148 e 321:3555. Assim, a Corte argentina estaria vinculada à interpretação da Convenção
dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). E o entendimento desta é
justamente o de que não são admissíveis obstáculos de direito interno a impedir os países de
cumprir sua obrigação de sancionar os crimes cometidos contra os direitos humanos. Assim, na
ocorrência de crimes contra a humanidade, nem a prescrição, nem as anistias e indultos, e nem
mesmo a coisa julgada e sua correspondente garantia do ne bis in idem, seriam obstruções
aceitáveis à necessária obrigação de investigação e julgamento (CIDH – “Barrios Altos”,
“Velásquez Rodrígues” e “Almonacid”).
No fallo “Mazzeo”, a Corte Suprema Argentina, depois de citar a jurisprudência da CIDH
(Serie C nº 154, caso “Almonacid”, de 26 de setembro de 2006, parágrafo 124), refere a
existência do “controle de convencionalidade” como obrigação dos juizes, ademais do controle
de constitucionalidade.
Como refere a Corte:
En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer una especie de “control de
convencionalidad” entre las normas jurídicas internas que aplican en los casos
concretos y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. En esta tarea, el
Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la
interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de
la Convención. [fallo “Mazzeo”, cons. 21].
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25
Em seus votos dissidentes (entre eles o considerando 62 de sua dissidência no fallo Simón), o juiz Fay lança
importantes argumentos contrários a esta tese. Refere tratar-se do uso do direito penal do inimigo, onde,
pela primeira vez, os direitos humanos estariam sendo utilizados para fortalecer o poder penal estatal e não
para proteger o acusado.
A este argumento, além de Fait, também a Juiza Argibay (cons. 6º e ss.) teve voto dissidente.
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Com relação ao caso brasileiro, em que pese haver sofrido um período ditatorial
extenso, o direito à justiça não logrou sucesso.
A ditadura brasileira surgiu com o golpe militar de 31 de março de 1964. Os militares se
autoproclamavam
revolucionários,
protegendo
a
população
da
ameaça
comunista.
A
“revolução”, de posse do poder político, precisava apoderar-se do poder da “verdade”. Para
isso, utilizou-se de todos os instrumentos de exclusão, toda “microfísica do poder”, que foi se
exacerbando a cada novo Ato Institucional, até o escancaramento do regime ditatorial com a
edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), dando poderes “macrofísicos” ao governo.
O AI-5, ao contrário dos AIs anteriores, teria duração indefinida, dando ao Presidente
poderes para, entre outras coisas, cassar políticos, fechar o Congresso e suspender a garantia do
habeas corpus26.
Mesmo na Argentina, que teve uma ditadura mais repressiva que a brasileira, não houve
a suspensão dessa garantia do cidadão27.
Em 1979, surgiu a Lei nº 6.683, que, ao anistiar os crimes ocorridos antes e durante a
ditadura28, pretendia superar o passado como parte de um projeto de abertura democrática.
Ao contrário das leis de Punto Final e Obediencia Debida aprovadas por um governo
democrático posterior ao período de exceção, a lei de anistia brasileira pode ser justamente
considerada uma lei de auto-anistia29. De fato, a Lei 6.683/79 foi aprovada pelo próprio governo
militar, que, depois de praticar crimes contra o que existe de mais humano em parte de sua
população, se auto-imuniza30.
Entretanto, ao contrário das leis argentinas de “olvido”, essa lei manteve sem
interrupções seus efeitos. Somente em outubro de 2008 a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
impetrou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental31, pedindo que seja dada à
Lei de Anistia
[...] uma interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus
preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos
ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão
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28
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31
A suspensão do habeas corpus é tão aberrante que não pode ser aceita em caso algum. É o que já referiu a
Corte Interamericana em seus principais julgamentos acima referidos.
Entretanto, em que pese a manutenção de tal garantia na Argentina, é bem verdade que ela não teve seus
necessários efeitos práticos, uma vez que os militares não respondiam adequadamente à requisições de
informação por parte dos juizes. De fato, as autoridades pertinentes informavam, apenas, que as pessoas a
cujo favor se interpunham os habeas, não se encontravam detidas. Tal impossibilidade de controle judicial
das ilegalidades cometidas pelo governo militar foi assinalada pela Corte Suprema no caso “Pérez Smith”.
A Lei considera como conexos e igualmente perdoados os crimes de “qualquer natureza” relacionados aos
crimes políticos ou praticados por motivação política no período de 2 de setembro de 1961 até 15 de agosto
de 1979.
Caso se entenda que o art. 1º da Lei 6.683/1979 se estende aos agentes do governo.
Ora, não existe auto-perdão em relações inter partes. E, como o governo não estava legislando apenas para
sua auto-consciência, resta óbvio que tal imunidade resulta inválida frente ao povo brasileiro, e,
principalmente, frente às vítimas das atrocidades.
ADPF nº 153, protocolada en 21/10/2008.
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contra opositores políticos, durante o regime militar (1964-1985).
De fato, no que se refere ao direito à justiça, o Brasil está muito longe de alcançar o
desenvolvimento ocorrido na Argentina.
Inicialmente se pode observar que o Brasil, ao contrario daquele país, não ratificou
importantes tratados sobre direitos humanos.
No que se refere ao sistema regional dos direitos humanos, o Brasil é signatário da
Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, “Pacto de São José da Costa Rica”, aprovada
pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. No entanto, está pendente a ratificação da
Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas,
aprovada pela
Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em Belém do Pará, a 9 de junho de
1994.32
Já no âmbito do sistema da ONU, o Brasil ratificou os seguintes importantes
instrumentos internacionais de direitos humanos:
1. Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1948). Ratificada em
15 de abril de 1952, e promulgada pelo Decreto Nº 30.822, de 6 de maio de 1952; 2. Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), ratificado em 24 de janeiro de 1992. 33 3.
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes
(1984). Ratificada em 28 de setembro de 1989.34
O Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, firmado em 19 de junho de 1998,
foi assinado pelo Brasil em 07.02.2000, sendo aprovado pelo Decreto Legislativo nº 112, que foi
promulgado pelo Decreto Presidencial nº 4.388, de 25.09.2002.
Não obstante, o Brasil não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes
de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, de 26 de novembro de 1968. Tampouco ratificou a
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, com entrada em vigor internacional
em 27 de janeiro de 1980.
Também a contribuir para o insuficiente desenvolvimento do trato do tema direito à
justiça no Brasil está o fato de que, em que pese a previsão dos § 3º e 4º do art. 5º da CF/88,35
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35
A Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, em que
pese haver sido assinada pelo Brasil em 06 de fevereiro de 2007, também não foi ratificada.
O Brasil não ratificou os dois protocolos facultativos ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
O Protocolo Opcional à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou
Degradantes, também foi ratificado em 12 de janeiro de 2007.
Art. 5º da CF/88:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
Às emendas constitucionais.
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado
adesão.
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acrescentados pela Emenda Constitucional nº 45/2004, nenhum dos tratados de direitos humanos
já ratificados, entre os acima referidos, recebeu ainda alcance constitucional. 36 Ademais, não há
nenhuma referência na Carta Magna brasileira sobre o direito de gentes. Disto decorre o fato de
que, até o presente momento, nenhum agente de Estado tenha sido processado por crimes
cometidos contra a população civil durante a ditadura.
Entretanto, após haver sido anunciado, no final do ano de 2007, que a justiça italiana
havia expedido mandados de prisão contra 140 repressores da América do Sul, dos quais 13 são
brasileiros, tornou-se indiscutível a necessidade de atuação da justiça brasileira.37
Nesse contexto, Procuradores da República de São Paulo encaminharam representações
às Procuradorias da República de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Uruguaiana (RS), relativas a
cidadãos italianos vítimas de desaparecimento forçado no Brasil durante o período militar.
O caso remetido à procuradoria de Uruguaiana refere-se ao cidadão ítalo-argentino
Lorenzo Ismael Viñas, militante do grupo “montoneros”, que, ao pretender evadir-se para a
Itália, por intermédio do Brasil, teria sido sequestrado e devolvido pelas autoridades brasileiras
aos militares argentinos, logo após atravessar a fronteira (Paso de Los Libres-Uruguaiana).
A investigação desse caso, juntamente com a do desaparecimento do padre argentino
Jorge Oscar Adur, requisitada pelo Ministério Público Federal de Uruguaiana à Polícia Federal
daquela cidade, trata-se, atualmente, da única tentativa de punição por fatos cometidos
durante o regime militar no Brasil. O entendimento se baseia no fato de que tais crimes, por
serem considerados de lesa humanidade, seriam insuscetíveis de anistia e de prescrição.
Além disso, a iluminar o horizonte de possível responsabilização de tais crimes, deve-se
destacar o importante precedente jurisprudencial advindo do Processo de Extradição nº 974,
julgado em 6 de agosto do presente ano, em que fora extraditado para a Argentina o tenentecoronel uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini, acusado de vários crimes, incluindo o
desaparecimento forçado de pessoas, durante o regime militar no Uruguai.
Neste caso, o Supremo Tribunal Federal brasileiro, por maioria, entendeu que o crime
de sequestro, por seu caráter permanente, excluiria a incidência da prescrição e mesmo da
anistia.
Embora ainda não tenha sido reconhecido o caráter de imprescritibilidade e não
anistiabilidade dos crimes contra a humanidade, tal decisão, reconhecendo o caráter de
continuidade do crime de sequestro, já abre um precedente para que muitos crimes deste tipo
36
37
Em 9 de julho de 2008, foi aprovado nos termos do § 3º do art. 5º da CF, pelo Decreto Legislativo nº 186, o
texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados
em Nova Iorque, em 30 de março de 2007.
Em fim, já não havia como negar a participação do Brasil na denominada Operação Condor, uma aliança
político-militar entre os vários regimes ditatoriais da América do sul, quais sejam Brasil, Argentina, Uruguai,
Paraguai, Chile e Bolívia – criada com o objetivo de coordenar a repressão à dissidência política nesses
países.
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ocorridos no Brasil possam receber a devida investigação.
Nesse contexto, importa observar que, conforme acima referido, o Brasil ainda não
ratificou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, de 9 de
junho de 1994, aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em
Belém do Pará, em 9 de junho de 1994, nem a Convenção Internacional para a Proteção de Todas
as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado.
De modo que, por ora, segundo a legislação interna, os crimes de desaparecimento
forçado só podem ser julgados como crimes de sequestro.
Mas isso não impede que, praticados crimes de desaparecimento forçado que se
enquadrem no conceito de crimes contra a humanidade, como os cometidos pelos agentes do
Estado durante a ditadura militar brasileira, se lhes apliquem os conceitos de imprescritibilidade
e de não anistiabilidade.
Ou seja, os militares poderiam ser processados por crimes de sequestro, em respeito ao
princípio da tipicidade legal (já que inexistente na época, e mesmo ainda hoje, tipificação
interna para o crime de desaparecimento forçado), mas não poderiam alegar excludentes de
responsabilidade inaplicáveis a crimes considerados de lesa humanidade. Da mesma forma, e
com as mesmas observações acima, na existência do crime de tortura (definido pela Lei 9.455/97),
seriam processados pelo crime de lesão corporal.
Os deveres de reparação e verdade no Brasil e na Argentina
A Argentina editou importantes leis buscando garantir a justa reparação às vítimas da
ditadura e a familiares de desaparecidos. Entre elas, se destaca a Lei nº 24.043, de 23 de
dezembro de 1991, que previu o pagamento de indenizações às vítimas do terrorismo de Estado.
Tal lei recebeu interpretação extensiva pela Corte Suprema (CS), como no caso “Yofre de Vaca
Narvaja” – CS, 14 de outubro de 2004. Depois veio a “Ley de beneficio a las personas ausentes
por desaparición forzada y a las fallecidas como consecuencia del accionar de las fuerzas
armadas” (Lei nº 24.411).
Da mesma forma, a Lei nº 25.914/2004, previu indenização para os filhos nascidos
durante a privação da liberdade de suas mães e/ou desaparecidos por razões políticas.
Logo depois de Uganda (Comisión de Investigación sobre la Desaparición de Personas en
Uganda, 1974) e Bolívia (Comisión Nacional de Investigación de Desaparecidos Forzados, 1982), a
Argentina também se adiantou no estabelecimento de uma Comissão de Verdade, o que veio a se
transformar em um fenômeno mundial.38
Por meio do Decreto 187, foi criada nesse país a Comisión Nacional sobre la
38
Segundo a Anistia Internacional (Verdad, justicia y reparación. Creación de una comisión de la verdad
efectiva), de 1974 a 2007 foram criadas ao menos 33 comissões de verdade em 28 países.
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Desaparición de Personas (CONADEP) pelo presidente Raúl Alfonsín, em 15 de dezembro de 1983.
Tal comissão teve o objetivo de investigar as graves e sistemáticas violações aos direitos
humanos levadas a cabo pelo governo militar durante a chamada “guerra súcia” entre 1976 e
1983, também conhecida como ‘Proceso de Reorganización Nacional’. Sua investigação resultou
no livro “Nunca Más”, entregue ao Presidente Alfonsín em 20 de setembro de 1984.
Ademais, até hoje são tomadas medidas para garantir o direito à verdade, como os
relatos de vítimas sobreviventes de sequestros expostos em programas televisivos.
No Brasil, com a Lei nº 9.140/95, que reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas
em razão de participação política na época da ditadura militar e obrigou a União a indenizar os
familiares das vítimas, e a Lei nº 10.559/2002, que instituiu reparações pelos gravames sofridos
pelas vítimas sobreviventes do regime militar,39 se há cumprido simplesmente o dever de
reparação.
Neste país nunca foram criadas Comissões de Verdade e Reconciliação (direito à
verdade). Tampouco se há punido agentes de Estado por crimes cometidos durante o período
ditatorial40 (direito à justiça). Além disso, a não abertura dos arquivos da ditadura impede
maiores avanços no descobrimento da verdade.
Por tal razão, a Procuradoria Geral da República brasileira interpôs uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI ou ADIN nº 4.077) impugnando o art. 23, da Lei nº 8.159/1991, e os
arts. 3º e 4º, da Lei nº 11.111/2005. Tais dispositivos delegam ao Executivo a fixação de
categorias de sigilo dos documentos públicos, instituindo uma comissão com a finalidade de
decidir sobre a aplicação das restrições ao acesso de tais documentos.
O eventual provimento desta ação pode em fim representar um importante passo do
Brasil no caminho do descobrimento de seu passado.
Leis de anistia e direito à verdade
Com as leis de anistia, nos países que sofreram períodos ditatoriais, se há pretendido
sanar os ferimentos com o simples esquecimento. Como se, não havendo como reparar o passado
nem punir proporcionalmente os culpáveis, não restasse mais que perdoar e esquecer.
Entretanto, para Hannah Arendt e Jankélévitch,41 apenas se perdoa onde se poderia
julgar e castigar. Ou seja, haveria uma simetria entre punir e perdoar, de modo que os homens
não seriam capazes de perdoar o que não podem punir.
Desse modo, os crimes cometidos pelos agentes de Estado, durante as ditaduras,
devidamente classificados como sendo crimes contra a humanidade, seriam imperdoáveis,
39
40
41
Em razão da anistia prevista no artigo 8º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1998 (ADCT).
Como adiante será referido.
Conforme Derrida, Jacques. El siglo y el perdón. Fe y saber. 2ª ed. Buenos Aires: ediciones de la flor, 2006.
p. 20.
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justamente pela impossibilidade de serem devida e proporcionalmente castigados. Ou seja, o
inexpiável, irreparável, seria também imperdoável e imprescritível.
É verdade que Derrida discorda deste entendimento. Para o famoso filósofo ocorreria
justamente o contrário, ou seja, se há algo que perdoar, seria unicamente o imperdoável, o
pecado mortal, o que não se pode punir. Assim, o perdão seria puro, desinteressado e
incondicional,
independente
do
arrependimento
do
culpável.
Mas
nem
mesmo
este
entendimento é compatível com as anistias. Derrida deixa muito claro que tal perdão não se
confunde com anistia, prescrição ou mesmo desculpa.
Segundo o autor,42 o perdão é algo heterogêneo à ordem jurídica, judicial ou penal. E
somente pode ser concedido pela vítima, sem intermediários. Mas, no Ocidente, a tradição
teológica concede ao soberano um direito exorbitante de perdoar. Isto baseado em que, além da
vítima, Deus também poderia perdoar. E como o soberano era o representante de Deus na terra,
disso provinha seu direito.
Hoje em dia, entretanto, se poderia argumentar que esse direito exorbitante, ao
pretender anistiar os crimes cometidos pelos agentes de Estado, só poderia ser aceito quando
exercido por um governo democrático, posterior ao que praticou os crimes atrozes (verdadeira
anistia), e, de preferência, com a sanção do povo ao perdão, conforme ocorreu no referendo
uruguaio em 16 de abril de 1989, à Lei nº 15.848/1986 daquele país.
É também verdade que, mesmo nesse caso, não se poderia falar propriamente em
perdão, pois este só poderia ser concedido, efetivamente, pelas vítimas (ou, talvez, por seus
familiares), diretamente aos agressores, ou seja, sem qualquer intermediação jurídica ou
política. Afinal, ninguém pode medir o valor da vida, muito menos a do outro. Mas uma anistia
referendada pela população respeitaria, ao menos formalmente,43 o sistema democrático.
Ademais, é necessário recordar que o esquecimento, vinculado ao perdão, também é
utilizado para justificar a prescrição dos crimes. Entretanto, não há como esquecer o que nos é
ocultado. Apenas o medo do desprazer é que poderia justificar a afirmação de que a violência
opressiva da ditadura no Brasil representa um assunto encerrado, superado. Mas o desprazer de
relembrar estes fatos e proporcionar-lhes justiça resulta necessário, tanto para possibilitar um
reinício, quanto para impedir um retrocesso.
Esquecer? Ninguém esqueceu. Perdoar? Ninguém perdoou.
Ao povo brasileiro não lhe foi oportunizado perdoar. Até porque, para tanto, seria
imprescindível o direito à verdade, que até hoje lhe é negado. Basta ver a lei nº 11.111/2005, já
referida, que prevê ressalvas ao acesso de documentos.
42
43
Ob. Cit., p. 21-22.
Seria necessário, ainda, verificar se tal decisão não representaria uma ditadura da maioria, principalmente
nos casos em que apenas uma minoria há sofrido a persecução do terrorismo de Estado. De modo que queda
aqui apenas uma reflexão a demonstrar a complexidade da aceitação de tais medidas de imunidade a crimes
tão atrozes.
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E, neste caso, em que a angústia permanece, movida por uma incerteza constante, o
tempo, que deveria aplacar a dor, só faz intensificá-la.
O transcurso desse tempo, recheado de mentiras, não justifica tampouco nenhuma
prescrição. Esse cálculo funcional, que considera a distância dos fatos e o clamor social, não se
aplica aos crimes contra a humanidade, conforme alicerçado entendimento internacional,
confirmado pelos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos.44 Esse costume
internacional, que surgiu com os julgamentos em Nuremberg, foi várias vezes reafirmado,
destacando-se a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes
Contra a Humanidade (1968) e o Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional (1998).
Quando se desconsidera o que há de humano em cada vítima, os crimes, embora
executados contra o corpo destas, ferem a humanidade como um todo. O mal absoluto faz com
que toda a humanidade duvide de seus direitos.
E é por isso que para esses crimes não são aceitos mecanismos de impunidade como a
anistia e a prescrição.
Pode-se, inclusive, dizer que a situação dos desaparecidos forçados se aproxima da pena
de Antígona,45 qualificada por Lacan como sendo “Antígona no entre-duas-mortes”. Referindo-se
ao lamento de Antígona, alude Lacan:46
Quando começa essa queixa? A partir do momento em que ela transpõe a entrada da
zona entre a vida e a morte, onde o que ela já tinha dito ser toma forma do lado de
fora... Seu suplício vai consistir em ser trancada, suspensa, na zona entre a vida e a
morte. Sem ainda estar morta, ela já está riscada do mundo dos vivos... (grifo
nosso).
De fato, ocorreu o mesmo com os desaparecidos da ditadura militar. Depois de
sequestrados já estavam riscados do mundo dos vivos. Somente lhes restava esperar, enquanto
eram torturados, a chegada inevitável da morte.
No entanto, a tragédia sofocliana tem também outra interessante similitude com os
crimes cometidos durante a ditadura militar. Trata-se do direito dos familiares de velarem seus
mortos. Se o decreto de Creonte implicava uma afronta ao direito de Antígona de velar seu
irmão, o mesmo ocorre com a não elucidação do destino das vítimas desaparecidas. E as leis
brasileiras que impedem o acesso aos arquivos secretos do período ditatorial logram o mesmo
efeito.47
44
45
46
47
Corte que julgará o Brasil pela inércia quanto ao cumprimento de seu dever de garantia e respeito aos
direitos à verdade, proteção judicial e outros decorrentes da Convenção Americana de Direitos Humanos, no
que se refere aos fatos ocorridos na “Guerrilha do Araguaia”.
Flagrada cobrindo de cinzas o cadáver de seu irmão Polinices, conforme o costume fúnebre tebano,
contrariando o decreto que havia proibido o sepultamento daquele, Antígona é levada a Creonte, que havia
ditado o decreto, e condenada à morte sendo encarcerada viva no túmulo dos Labdácidas, de quem
descendia.
Lacan, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. p. 339.
Basta citar o exemplo das buscas por corpos no Araguaia, bem como o caso argentino da menor Mônica
Graciela Santuchola, desaparecida em 03-12-1976, junto a seus pais, com 14 anos de idade. Seus restos
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Ao impedir o direito à verdade, essas leis impedem que feridas sejam sanadas. A dúvida
e a incerteza sobre o que há passado a seus filhos(as), esposos (as), pais, etc. tornam, ademais,
imprescritível a dor e impossível o perdão.
Reflexão final
No contexto de uma Justiça Transicional, tem o Estado o dever de cumprir certas
obrigações, necessárias a uma transição justa e legítima, a possibilitar uma democracia
permanente.
Assim, em frente à existência de crimes contra a humanidade cometidas pelo regime
anterior, o Estado não pode se omitir, devendo, além de possibilitar o direito à verdade e à
reparação às vítimas e seus familiares, fazer justiça julgando os culpados. Isto o deve à toda
sociedade, e não somente às vítimas.
É necessário recordar que tais crimes, conforme o costume internacional, são
considerados de lesa humanidade, por lesá-la como um todo, ainda que executados somente
contra o corpo de parte de seus membros. De modo que os montoneros e a esquerda brasileira,
bem como toda oposição aos regimes militares instalados na América do Sul, foram objeto direto
de um crime perpetrado contra toda a humanidade, contra toda liberdade de pensamento e
qualquer anseio democrático.
E é por isso que, na democracia, não se podem aceitar escusas para a tortura e a morte.
Nem a anistia nem a prescrição podem exercer tal papel de justificativa metafísica. De forma
que o cumprimento dos deveres de reparação, verdade e justiça, é uma obrigação do Estado.
Uma dívida cuja satisfação, esperada pela população, transforma-se em finalidade do Estado
Democrático de Direito.
É dado o momento do povo brasileiro participar da construção das verdades. Para tanto,
é preciso seguir o exemplo argentino. E isso passa necessariamente pela supressão das mentiras
e a reconstrução do passado, garantindo-se os direitos à verdade, justiça, reparação e reestruturação democrática dos aparelhos institucionais.
Apagando os rastros das mentiras, se re-escreve parte da história e se assentam as bases
para um futuro democrático.
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