Visualidades - Universidade Metodista de São Paulo

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Visualidades - Universidade Metodista de São Paulo
ISSN 1679-6748
Visualidades
Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual
V. 7, n.1 Jan-Jun/2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
Reitor
Edward Madureira Brasil
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação
Divina das Dores de Paula Cardoso
Diretor da Faculdade de Artes Visuais
Raimundo Martins
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual
Alice Fátima Martins
Editores
Edgar Franco
Rosana Horio Monteiro
Conselho Editorial
Irene Tourinho
José César Clímaco
Raimundo Martins
Paulo Menezes
Conselho Científico
Ana Claudia Mei de Oliveira (PUC-SP, Brasil) / Belidson Dias (UnB) / Fernando Hernández (Universidad
de Barcelona) / Flavio Gonçalves (UFRGS, Brasil) / Françoise Le Gris (UQAM, Canadá) / Juan Carlos
Meana (Universidade de Vigo) / Kerry Freedman (Northern Illinois University, EUA) / Margarita Schultz
(Universidade Nacional do Chile, Chile) / Maria Luísa Távora (UFRJ, Brasil) / Mauro Guilherme Pinheiro
Koury (UFPB, Brasil).
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) V834 (GPT/BC/UFG)
Visualidades: Revista do Programa de Mestrado em Cultura
Visual I Faculdade de Artes Visuais I UFG. – V. 7, n.1 (2009). – Goiânia-GO: UFG, FAV, 2009.
V. :il.
Semestral
Descrição baseada em V. 7, n.1
ISSN: 1679-6748
1. Artes Visuais – Periódicos I. Universidade Federal de Goiás.
Faculdade de Artes Visuais II.
Título.
CDU: 7(05)
Tiragem: 300 exemplares Data de circulação: novembro/2009
Créditos Página da HQ “Salamandra Pagã” de Antônio Amaral
Capa: Ilustração de Antônio Amaral
Programação Visual: Diogo Fernandes Honorato
Direçao de Ar te Márcio Rocha
Projeto Gráfico Marcus H. Freitas
Editoração Diogo Fernandes Honorato
Revisão Juscelina Bárbara Matos
Luciana Hidemi Nomura
FACULDADE DE ARTES VISUAIS / UFG
Secretaria de Pós-Graduação I Revista Visualidades
Campus II, Samambaia, Bairro Itatiaia, Caixa Postal 131 – 74001970 – Goiânia-GO.
Telefone: (62) 3521-1440
e-mail: [email protected]
www.fav.ufg.br/culturavisual/
Sumário
Apresentação: História em quadrinhos – Uma arte
consolidada
06
Edgar Franco
Dossiê História em Quadrinhos
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos:
em busca de sua legitimação como produto artístico e
intelectualmente valorizado
15
Waldomiro Vergueiro
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu
potencial imagético informacional
43
Gazy Andraus
O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas?
Um olhar brasileiro
69
Elydio dos Santos Neto
Fanzine: comunicação popular e resistência cultural
Henrique Magalhães
109
Ensaio Visual
Vislumbres Pós-humanos
Edgar Franco
119
Sumário
Artigos
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções
141
urbanas.
Janaína R. Furtado
Andréa vieira zanella
159
O mito do artista como extensão do mito do herói
Francielly Rocha Dossin
173
Auto-retratos da pós-modernidade: cindy sherman em
“untitled film stills”
Ângela Prada
187
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos
temas de debate
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
217
Colecionando cartões postais: os lugares constituídos em
contexto de isolamento
Telma Camargo da Silva
Resenha
Arte, ciência, tecnologia: experimentação
Marta M. Kanashiro
239
Sumário
Painéis
Tereza Bicuda: a senhora, a diaba e a louca
250
Rosilandes Cândida Martins
O Brasil na França pelas lentes de Samuel Costa
251
Marcos André Galdino Morais
Estéticas da existência: Subjetivações sobre a moda
252
Lorena Pompei Abdala
Normas Para Publicação de Trabalhos
254
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Apresentação: História em quadrinhos – Uma
arte consolidada
Edgar
FRANCO 1
A história em quadrinhos (HQ), essa linguagem artística secular, já foi motivo de preconceito por parte de múltiplos setores da sociedade e da academia. O caso mais notório foi a
cruzada contra as histórias em quadrinhos nos Estados Unidos,
deflagrada pelo artigo Horror in The Nursey, publicado na revista Collier em 1948 e escrito pelo psicólogo Fredrick Werthan.
Ele acreditava que as HQs eram perniciosas e nocivas à formação do caráter das crianças. Com o impacto de seu artigo, Werthan escreveu Sedução dos Inocentes, também contra os quadrinhos, o livro levou o senado norte americano a obrigar os
editores a criarem o “American Comics Code”, código que censurava deliberadamente muitas formas de quadrinhos e vigorou
por muitos anos nos EUA. Essas ações de censura repercutiram
em todo o mundo ocidental.
Curiosamente, alguns anos após a polêmica criada pelo livro
de Fredrick Werthan, o Brasil fez história ao realizar a Primeira
Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos do mundo.
Ela aconteceu em junho de 1951, na cidade de São Paulo; foi
organizada por um grupo de quadrinhistas brasileiros que tinha
à frente Álvaro de Moya, Jayme Cortez, Syllas Roberg, Reinaldo
de Oliveira e Miguel Penteado. O Museu de Arte de São Paulo
(MASP), que havia sido inaugurado à época, manteve o preconceito vigente contra os quadrinhos e não aceitou que a exposição fosse realizada em suas dependências, mas os organizado-
6
Edgar Franco
Apresentação
res foram perseverantes e conseguiram o espaço do Centro de
Cultura e Progresso, clube da juventude judia, e incluíram na
mostra originais de quadrinhos de nomes consagrados da nona
arte como: Alex Raymond (Flash Gordon), George Herrimann
(Krazy Kat), Hal Foster (Príncipe Valente), Will Eisner (The Spirit), Burne Hogart (Tarzan) e Al Capp (Li’l Abner).
Ao longo do século XX as HQs consolidaram-se como linguagem artística. O primeiro gênero de quadrinhos no início do
século passado era o humorístico, por isso foram alcunhados
de Comics nos Estados Unidos, mas o seu potencial expressivo
não demorou a revelar-se e muito rapidamente, já nas primeiras
décadas do século XX, outros gêneros de HQs foram surgindo.
Na década de 1930, considerada a “década de ouro” das HQs
norte americanas, ocorreu a consolidação de gêneros como a
aventura, a ficção científica, o policial, as histórias de guerra,
de cavalaria e de faroeste. Nessa época surgem os quadrinhos
de inspiração neoclássica com cenários muito bem acabados
como podemos ver em Tarzan de Harold Foster, Flash Gordon
de Alex Raymond, entre outros. As HQs passam a ser exploradas em todo o seu potencial narrativo, sendo lidas e admiradas
por pessoas de classes sociais diversas, além de abarcarem toda
a variedade possível de gêneros, aos poucos elas vão atraindo
públicos das mais variadas faixas etárias.
Desde a década de 1950 surgem nos EUA trabalhos voltados para um público mais intelectualizado como as HQs de
Jules Feiffer e de Charles Shultz. Posteriormente eclode o movimento underground nos quadrinhos norte americanos revelando, entre outros talentos, Robert Crumb, autor de quadrinhos
viscerais com críticas profundas ao chamado American way of
Life. Já na Europa, desde o surgimento das histórias em quadrinhos, os artistas perceberam o potencial ilimitado dessa arte e
investiram em trabalhos mais elaborados e pesquisados, muitos
deles passando a publicar álbuns luxuosos que são distribuídos
em livrarias para serem consumidos por um público de padrão
cultural elevado. Revistas periódicas, como a italiana Linus e
a francesa Pilote, foram importantes veículos para revelar novos talentos da HQ européia, que posteriormente vieram a ter
seus trabalhos veiculados em álbuns, como é o caso dos quadri-
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nhistas Guido Crepax, Moebius, Philippe Druillet, Milo Manara,
entre outros. O amadurecimento da linguagem quadrinhística
em todo o mundo, incluindo o Brasil, suscitou o surgimento
de pesquisas dedicadas à análise dos múltiplos aspectos que a
compõem.
A partir da década de 1970, o Brasil assistirá o crescimento
das pesquisas acadêmicas sobre a linguagem dos quadrinhos,
com destaque para estudiosos pioneiros como Antônio Luiz
Cagnin, Álvaro de Moya e Moacy Cirne. Essas pesquisas, que
inicialmente estavam ligadas à área da comunicação, foram gradativamente migrando para outros campos como o das artes,
lingüística, psicologia, história, design, arquitetura, e também
para o âmbito das novas tecnologias e novos suportes, como
estudos sobre as HQtrônicas - histórias em quadrinhos hipermidiáticas.
Atualmente o país conta com pesquisadores de todas as regiões e muitos programas de mestrado e doutorado, nas mais
diversas áreas, acolhem pós-graduandos interessados em estudar as histórias em quadrinhos. Nesse contexto, o campo da
pesquisa em Cultura Visual, área de nosso programa de mestrado na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal
de Goiás, também se abre para a investigação dessa singular
linguagem artística. Diante disso decidimos publicar um dossiê
sobre as histórias em quadrinhos, buscando selecionar alguns
dos pesquisadores mais importantes no contexto contemporâneo brasileiro.
O dossiê abre com o artigo do professor Dr. Waldomiro Vergueiro, docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da
Comunicação da Escola de Artes e Comunicações da Universidade de São Paulo e coordenador do Observatório de Quadrinhos da USP – um dos grupos de pesquisa pioneiros no Brasil
a dedicar-se exclusivamente ao estudo das HQs. Seu artigo, As
histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca
de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente
valorizado, apresenta a evolução da visão sobre as histórias em
quadrinhos nos círculos acadêmicos, de produto da cultura de
massa à sua inserção no mundo das manifestações artísticas
socialmente reconhecidas.
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Edgar Franco
Apresentação
O segundo artigo, escrito pelo professor Dr. Gazy Andraus
- docente da UNIFIG, Centro Universitário Metropolitano de
São Paulo, pesquisador de quadrinhos com dezenas de artigos
publicados e também autor de histórias em quadrinhos poético-filosóficas -, foi intitulado A autoria artística das histórias
em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional.
Nele o autor trata dos elementos que caracterizam a unicidade
da linguagem quadrinhística, das características singulares da
percepção das HQs a partir de uma análise neurofisiológica e
da autoralidade artística no âmbito dos quadrinhos.
Na seqüência temos o artigo do professor Dr. Elydio dos
Santos Neto, docente do Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), um estudioso da importância dos quadrinhos para a educação com ênfase na abordagem
transpessoal. O seu texto, O que são histórias em quadrinhos
poético-filosóficas? Um olhar brasileiro, apresenta-nos uma das
vertentes mais inovadoras e criativas do universo da produção
de histórias em quadrinhos de arte no país, enfatizando o diálogo arte-comunicação-educação desses trabalhos e sua importância nos processos de construção de respostas aos problemas
vivenciados na sociedade contemporânea.
Concluindo o dossiê, temos o artigo do professor Dr. Henrique Magalhães, docente do Departamento de Comunicação
e Turismo e do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, quadrinhista premiado e também criador da
importante editora independente Marca de Fantasia, totalmente dedicada a publicar quadrinhos e livros de pesquisadores de
HQs. Seu texto, Fanzine: comunicação popular e resistência
cultural, destaca a riqueza dos fanzines de histórias em quadrinhos como espaço para a experimentação de linguagens artísticas, fomento à produção e veiculação de novos autores.
Coroando a seleção ímpar de pesquisadores presentes no
dossiê temos a arte da capa dessa edição, uma criação do premiado quadrinhista piauiense Antônio Amaral. Um dos artistas
autorais mais importantes no cenário da HQ brasileira. Amaral
tem uma produção de vanguarda, baseada em uma cosmogonia pessoal que une influências da escrita automática surrealista, do dadaísmo, da arte regional e de recentes teorias da físi-
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ca. Por fim, o ensaio visual desse número da Visualidades inclui
algumas HQs curtas de minha autoria, quadrinhos do gênero
poético-filosófico contextualizados no universo ficcional futurista da Aurora Pós-humana.
Meus sinceros agradecimentos a todos que participaram direta ou indiretamente da produção desse dossiê. Espero que
ele contribua ainda mais para a consolidação da pesquisa sobre
histórias em quadrinhos no âmbito acadêmico brasileiro.
Notas
1. Edgar Franco é artista multimídia e professor permanente do Programa de Pós-graduação
(Mestrado) em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG.
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Edgar Franco
Dossiê História em
Quadrinhos
Focuses on the trajectory of comics towards its artistic and cultural legitimating. Discusses the difficulties
for the acceptance of the comics in well established
cultural institutions and detaches the work of artists
who used the comics language in their works. Brings
to context the search for artistic autonomy in underground and mainstream comics. Presents the graphic
novels as the new format for the worldwide dissemination of the comics language, making it possible to
reach other levels of public and new environments
for commerce. Identifies innovative trends in the comics publication field , with emphasis in the use of
comics in journalism and in biographical narratives,
identifying the main authors in the field.
Keywords: Comix, Auhorship, Art.
abstrac t
As histórias em quadrinhos no limiar de
novos tempos: em busca de sua legitimação
como produto artístico e intelectualmente
valorizado
Waldomiro
Vergueiro
resumo
Enfoca a trajetória das histórias em quadrinhos para
sua legitimação artística e cultural. Discute as dificuldades para aceitação dos quadrinhos em equipamentos
culturais já estabelecidos e destaca o trabalho de artistas que utilizaram recursos da linguagem quadrinística
em suas obras. Contextualiza a busca pela autonomia
artística em obras produzidas no circuito underground
e do quadrinho mainstream. Apresenta as graphic novels como novo formato para disseminação da linguagem dos quadrinhos em nível mundial, possibilitando
atingir outras camadas de públicos e novos espaços de
comercialização. Identifica tendências inovadoras na
publicação de histórias em quadrinhos, com destaque
para o jornalismo em quadrinhos e a utilização de quadrinhos para narrativas biográficas, identificando os
principais autores e obras na área.
Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Autoria;
Arte.
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As histórias em quadrinhos padeceram durante décadas a
indiferença das camadas intelectuais da sociedade, apesar de
representarem a continuidade de uma longa tradição de manifestações iconográficas, cuja gênese pode ser encontrada nas
pinturas das cavernas do homem pré-histórico e que se desenvolveram durante séculos em diversas formas de manifestações
artísticas, como as colunas de Trajano, a Tapeçaria de Bayeux,
o Livro dos Mortos, etc. Embora constituindo uma linguagem
própria – híbrida da linguagem escrita e da imagem desenhada
-, os quadrinhos tiveram sua aceitação pelas elites pensantes
dificultada por diversos fatores, mas principalmente por sua característica de linguagem direcionada para as massas. No entanto, os últimos anos parecem ter trazido novos e promissores ventos para as histórias em quadrinhos no que diz respeito
à sua inserção no mundo das manifestações artísticas socialmente reconhecidas. Este artigo busca discutir essa trajetória
e traçar algumas diretrizes que garantam a permanência dessa
forma de manifestação do pensamento humano no campo das
Artes.
A luta pela legitimação
Recentemente, uma conceituada pesquisadora brasileira da
área de histórias em quadrinhos, pleiteou a um importante museu de Arte da cidade de São Paulo a instalação de uma grande
exposição sobre o tema . Embora não se recusando a abrigar a
exposição, os responsáveis pelo equipamento cultural condicionaram sua concordância à justificativa, por parte da professora, de que as histórias em quadrinhos poderiam ser entendidas
como Arte. Logicamente, considerando a evolução da linguagem gráfica seqüencial e seu atual estágio de aceitação no
mundo artístico contemporâneo, a professora se recusou a elaborar tal justificativa ao museu paulistano, entendendo que a
esta altura tal esclarecimento deveria ser dispensável para uma
instituição com tão larga trajetória na preservação e divulgação
de bens culturais; além disso, pesou também na decisão o fato
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
desta mesma instituição museológica ter abrigado, na segunda
metade do século passado, uma das primeiras exposições de
quadrinhos do mundo, demonstrando na ocasião uma postura
de vanguarda em relação à postura então dominante no meio
intelectual brasileiro e mundial.
De fato, com relação a esse fato, além de salienta-lo e solidarizar-se com a professora pela resposta infeliz por ela obtida,
pode-se cogitar que os atuais responsáveis por essa importante
instituição artística e cultural da cidade de São Paulo, além de
desconhecerem a própria história do órgão que dirigem, fazem
ainda parte de uma minoria de intelectuais que persiste vendo
a arte como uma “essência metafísica reconhecida pelos seus
méritos técnicos, mas, principalmente, pelo seu status filosófico” (MARTINS, 2006, p. 67), da mesma forma em que ignoram
ou fingem ignorar os avanços ocorridos na área artística, especialmente no que se refere às histórias em quadrinhos, a partir
da década de 1960, quando “uma grande variedade de movimentos – arte pop, arte conceitual, performance, instalações,
arte ambiental, etc. – intensificaram abertamente a resistência
às polaridades do sistema das belas artes
buscando manter e até mesmo aprofundar a relação entre arte e vida” (MARTINS,
2006, p. 68).
Esses movimentos estiveram mesmo no
centro da inserção das histórias em quadrinhos no mundo das artes, pois, na realidade, elas adentraram o ambiente museológico por meio da arte pop, especialmente na
obra de artistas como Andy Warhol (19281987) e Roy Liechtenstein (1923-1997), que
Figura 1 – Roy Lichtenstein, Estados
apreenderam elementos da linguagem gráUnidos, 1963. Drowning Girl.
fica seqüencial e os re-significaram em seus
Pertencente ao acervo do Museu de
trabalhos artísticos, produzindo intenso imArte Moderna, de New York
pacto visual (Fig. 1).
No entanto, ainda que esses autores tenham representado,
no ambiente norte-americano, o começo de um movimento de
reconhecimento dos quadrinhos como manifestação artística,
eles não se constituíram, absolutamente, em precursores desse
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tipo de valorização da linguagem gráfica seqüencial. Na realidade, o mérito nessa área cabe a diversos intelectuais europeus,
mais ágeis em reconhecer o forte impacto social dos produtos
quadrinísticos e sobre ele realizando estudos e exposições. Nesse sentido, também não se pode desmerecer a ação visionária
de alguns admiradores do gênero no Brasil, que, já em 1951,
ainda que sem obter o mesmo impacto no contexto intelectual
brasileiro, realizaram a primeira exposição de histórias em quadrinhos em ambiente formalmente constituído como artefato
cultural (MOYA, 2001).
Por outro lado, é preciso reconhecer que a classificação de
extratos ou páginas de histórias em quadrinhos como objetos
museológicos é muito pouco em termos de descrição ou categorização das possibilidades artísticas dos quadrinhos. Bebendo nas águas das mais variadas artes, como a ilustração, o teatro, a literatura, a caricatura e o cinema (BARBIERI, 1998), as
histórias em quadrinhos constituem um gênero complexo, em
que elementos narrativos de várias manifestações artísticas ou
linguagens são explorados.
Esta característica híbrida da linguagem quadrinística, bem
como o fascínio que ela tradicionalmente exerceu sobre grandes massas de leitores, principalmente os mais jovens, está talvez no centro de sua rejeição pelas elites intelectuais. Embora
compreendidas pelo universo da arte na era da reprodução mecânica, conforme visto por Benjamin (2006 [1969]), elas eram
difíceis de classificar e contextualizar. No entanto, talvez em
maior medida que a indústria cinematográfica, objeto de atenção do autor alemão, os quadrinhos levavam o aspecto de distração a seu extremo, dificultando sua compreensão por parte
dos críticos de Arte. Daí, a incompreensão, o estranhamento.
Isto também dificultou a inserção das histórias em quadrinhos no ambiente acadêmico, em que eles foram virtualmente
ignorados durante boa parte do século, independentemente de
seu impacto social. Como explicam Lombard e colegas (1999,
p. 17),
[...] apesar de seu potencial para a pesquisa, as tiras de quadrinhos, as revistas de histórias em quadrinhos, e os cartuns [...]
permaneceram virtualmente não-estudados por décadas. Quando
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
a arte dos quadrinhos, na forma de revistas, finalmente achou o
seu caminho para os “labs” da universidade Americana nos anos
1940, na maioria das vezes ela era tratada como um pária, um
perigo para a juventude, para a moral, para o próprio tecido da
sociedade Americana.
A atenção dispensada aos quadrinhos pelos intelectuais
ocorreu em paralelo com a emergência de movimentos de produção de quadrinhos que buscavam sua independência das
obras disponibilizadas pela indústria massificada – genericamente denominada como quadrinhos mainstream -, colocandose como auto-suficientes e superiores ao que era então disponibilizado pelas grandes editoras de quadrinhos. Nesse sentido, eles se aliavam, embora muitas vezes não explicitamente,
à crítica à indústria cultural feita pelos ideólogos da Escola de
Frankfurt, que viam os produtos dessa indústria como essencialmente os mesmos. Como defenderam Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (2006 [1944], p. 43-44) em seu famoso texto
sobre a indústria cultural,
[...] O padrão unificado de valor consiste no nível conspícuo de
produção, a quantidade de investimento evidenciada. As diferenças orçamentárias de valor na indústria cultural não têm nada a
ver com diferenças reais, com o significado do produto em si. Os
meios técnicos, também, estão sendo engolfados por uma uniformidade insaciável. A televisão busca a síntese do rádio e do filme,
atrasada somente enquanto as partes interessadas não podem
concordar. Tal síntese, com suas possibilidades ilimitadas, promete
intensificar a pobreza da estética material tão radicalmente que
a identidade de todos os produtos da indústria cultural, ainda sutilmente disfarçada hoje, irá triunfar abertamente amanhã numa
irônica realização do sonho de Wagner da obra de arte total.
Surgido na costa do Pacífico nos Estados Unidos, o movimento dos quadrinhos underground, também conhecidos como
comix, bebeu mais especificamente na fonte dos movimentos
hippies e da revolta estudantil, representando uma tomada de
decisão pelo fortalecimento e autonomia da produção quadri-
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nística e sua utilização como meio privilegiado para manifestação artística e social. Fazendo jus ao seu tempo, seus autores, em geral oriundos e atuantes no ambiente universitário,
recusavam-se a fazer parte da máquina editorial massificada e
massificante, bem como a seguir as normas estabelecidas pelas grandes editoras do país. Extremamente rígidas e reguladas,
essas normas eram conseqüência indesejada da ainda recente
perseguição aos quadrinhos, ocorrida há apenas uma década
e tinham sua expressão concreta no chamado Comics Code,
pelo qual cada publicação em quadrinhos era analisada e recebia um selo de aprovação, atestando sua insipiência em relação
aos valores socialmente aprovados (NYBERG, 1998).
Os artistas do movimento underground propunham uma
criação quadrinística totalmente desvinculada de editoras ou
normas editoriais, com obras voltadas para a expressão de sentimentos, para o desafio às tradições e para a liberação de costumes, sem preocupações imediatas com o consumo ou motivações mercantilistas. À frente dessa verdadeira bandeira libertária estiveram nomes posteriormente consagrados no universo
dos quadrinhos, verdadeiros ícones em sua proposição como
forma de manifestação artística capaz de suplantar as limitações da produção industrializada: Robert Crumb, Gilbert Shelton, Rick Griffin, S. Clay Wilson, Spain Rodriguez, entre outros
(SKINN, 2004).
Embora limitado espacial e temporalmente, pois o movimento dos quadrinhos underground teve seu apogeu basicamente
entre final da década de 1960 e meados de 1970, a influência tanto de obras como de autores ampliou-se bem além das
fronteiras do estado da Califórnia e atingiu os países europeus
e latino-americanos, podendo-se afirmar que ajudaram na formulação de um estilo de produção de quadrinhos. Na Europa,
eles foram fontes de inspiração para revistas de vanguarda. Nas
Américas, por sua vez, assumiram forte viés político-partidário,
sendo o estilo preferencial utilizado por artistas latino-americanos para o enfrentamento de governos totalitários que se espalharam pelo continente nas décadas de 1960 e 1970. No Brasil,
a influência do quadrinho underground pode ser encontrada
na obra do mineiro Henfil e nas colaborações dos vários parti-
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
cipantes do semanário O Pasquim, do Rio de Janeiro, em que
as audaciosas alfinetadas nos representantes ou nos (mal)feitos
da ditadura militar eram retratados por traços econômicos e
esteticamente desafiadores, numa composição que se afastava
de cânones mais tradicionais e adentrava pelo universo da caricatura e da sátira (Fig. 2). Esse espectro de atuação das histórias em quadrinhos – mas não exclusivamente delas, uma vez
que a revista O Pasquim também abria espaço para a charge,
o cartum, a crônica –, também realizava a crítica de costumes,
principalmente à classe média acomodada, tão necessária à sociedade da época.
Figura 2 – Graúna,
de Henfil, publicado
em O Pasquim
Com o reconhecimento do potencial artístico dos quadrinhos por parte dos intelectuais europeus e com a eclosão do
movimento de quadrinhos underground estavam assentadas as
bases para uma outra etapa na legitimação cultural das histórias em quadrinhos no mundo inteiro. Pode-se dizer que estava
se agilizando o ritmo em que elas deixavam de ser vistas como
uma linguagem exclusivamente direcionada para o público de
menor idade e passavam a ser encaradas como manifestações
voltadas a públicos diversos, com diferentes níveis de qualidade
e representação do mundo.
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Marasmo e renovação durante a Era de Prata dos
quadrinhos
De fato, pode-se também afirmar que o processo de reconhecimento das histórias em quadrinhos parece ter avançado
por etapas. De um primeiro momento, com as páginas dominicais e tiras diárias, quando foram vistos como forma de assimilação das camadas populares, quase que majoritariamente composta por imigrantes europeus ou asiáticos, à civilização norteamericana, os quadrinhos passaram depois, com as revistas de
quadrinhos ou comic-books, a ser direcionados prioritariamente
ao público infanto-juvenil, sofrendo as agruras e perseguições
de pais e educadores, num movimento de rejeição que se espalhou por praticamente os quatro cantos do mundo.
A verdadeira “ressaca cultural” que seguiu o período mais
acirrado de perseguição ao meio – anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial, época da chamada caça às
bruxas e apogeu da Guerra Fria entre Estados Unidos e União
Soviética, com a proposição do já mencionado Comics Code
–, pode ser vista como um momento, ainda que forçado, de
preparação para a transposição dos limites da linguagem, àquele tempo ainda aparentemente intransponíveis. Desta forma, à
mesmice de uma produção padronizada, massificada e padronizadora seguiu-se um momento de ajuste, em que proposições
diferenciadas de produção e composição estética eram expressas em diversas partes do mundo.
Mesmo no âmbito da produção industrializada de quadrinhos era possível vislumbrar indicadores dessa busca por novos
parâmetros criativos. Em meio a centenas de títulos e histórias
que apenas repetiam um modelo de quadrinhos anódinos, agindo de forma quase subterrânea no ambiente dessa produção
industrializada - ou mesmo sob o olhar complacente de seus
editores –, alguns autores dos quadrinhos comerciais norteamericanos – aqueles publicados nas revistas de super-heróis,
principalmente pelas duas grandes editoras da área, a Marvel e
a DC Comics –, incluíam em suas histórias elementos narrativos
ou gráficos que as faziam avançar além de produções contemporâneas, transformando-se em marcos para outros autores do
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
gênero. O trabalho de Jim Steranko à frente do personagem
Nick Fury, por exemplo, apresentava diferenças gritantes em
relação aos da média dos criadores da época, com designs em
que abundavam as fotocolagens e fotomontagens inspiradas
em movimentos artísticos como a arte psicodélica e a Op Art.
Outro autor que se destacou na produção industrializada de
quadrinhos foi Steve Ditko, mundialmente conhecido como um
dos criadores do personagem Homem-Aranha, cujos primeiros
38 números foram por ele desenhados. Verdadeiro “mestre da
composição, linguagem corporal e ritmo da narrativa” (WOLK,
2007, p. 156), ele se revelou especialmente inspirado no trabalho que realizou para a revista Strange Tales, protagonizada
pelo mestre das artes místicas conhecido como Doutor Estranho (Fig. 3). Nessas histórias, contrariamente ao que fazia nas
aventuras do Homem-Aranha, em que colocava o herói lutando
contra as leis da física,
[...] os personagens em torno do Doutor Estranho eram libertos
dessas leis e do mundo em geral, flutuando livremente em outro
espaço dimensional cheio com elementos encurvados, de design
em garrancho. Não existem quase ângulos retos nas histórias do
Doutor Estranho de Ditko além das bordas dos quadrinhos. Vezes
e vezes, entretanto, há imagens de portais estranhamente moldados pelos quais planos de existência mais estranhos podem ser
vistos, e a implicação é que os retângulos da página impressa atuam como a mesma forma de portal para os leitores (WOLK, 2007,
p. 159-160).
Figura 3 –Doctor Strange, de Steve Ditko, um marco do quadrinho industrializado norteamericano
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O trabalho desses dois autores na Marvel Comics, juntamente com o de artistas como Neal Adams na DC Comics, sinalizavam para alguma coisa inovadora em termos de linguagem
das histórias em quadrinhos, que ainda não podia ser suficientemente vislumbrada devido às dificuldades impostas pela mão
pesada da censura institucional, desempenhada pelo Comics
Code Authority. Essa inovação iria surgir ao final da década de
1970 e viria pelas mãos de um veterano na área, o nova-iorquino Will Eisner (1917-2005). Chamava-se graphic novel.
O surgimento das graphic novels
Existe uma grande dose de lenda em torno das narrativas
que se referem à criação das graphic novels no ambiente quadrinístico norte-americano. Já faz parte do folclore da área a
narrativa de Will Eisner sobre a publicação de sua primeira contribuição nessa área, tantas vezes ele se encarregou de contála e re-contá-la em entrevistas, palestras e eventos de quadrinhos. Esse episódio é narrado da seguinte forma por Bob Andelman (2005, p. 290):
Eisner telefonou para Oscar Dystel, então presidente da Bantam
Books, e jogou o conceito. Dystel não somente conhecia Eisner
mas se dizia que era um fã de seu trabalho em The Spirit. Dystel
lembrou-se dele, mas era um homem ocupado, como editores
normalmente são, e estava impaciente. Ele queria saber o que
era que Eisner tinha, exatamente. Eisner olhou para o seu boneco, e um instinto lhe disse, Não diga a Dystel que é uma revista
em quadrinhos ou ele baterá o telefone na sua cara.
Assim Eisner pensou por um momento, e disse: “É uma graphic
novel.”
“Oh,” Dystel disse, “isto parece interessante; eu nunca tinha ouvido falar disso antes.”
Por convite de Dystel, Eisner levou o boneco a seu escritório.
Dystel olhou o boneco, olhou para Eisner em descrença, e então
olhou de volta para o boneco. Então Dystel balançou sua cabeça.
“Chame isso do que você quiser,” ele disse tristemente, “mas isto
é ainda uma revista em quadrinhos! Nós não vendemos revistas
em quadrinhos na Bantam. Eu estou surpreso com você, Will. Vá
em busca de um pequeno editor.”
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
Na realidade, Eisner não havia criado nada novo, por mais
que afirmasse que a idéia lhe viera repentinamente. Ele não
havia absolutamente inventado a expressão graphic novel, pois
não se tratava da primeira vez que ela era utilizada em relação
especificamente a um produto quadrinístico. Antes de Eisner, o
termo já havia sido utilizado pelo crítico de quadrinhos norteamericano Richard Kyle, em 1964, e também por Henry Steele na revista Fantasy illustrated, em 1966. Da mesma forma,
o trabalho que Eisner então oferecia ao editor – Um contrato
com Deus -, tampouco poderia ser considerado de fato a primeira graphic novel a ser publicada no ambiente de quadrinhos
norte-americano, com diversas obras podendo ser apontadas
como suas antecessoras (destacando-se, neste aspecto, Jungle
book, the Harvey Kurtzman, e Beyond time and again, de George Metzger, para apenas citar dois exemplos).
Por outro lado, a própria idéia compreendida pela expressão
graphic novel pode ser facilmente contextualizada em outros
países, com destaque para os álbuns encadernados de histórias
em quadrinhos, já naquela época correntemente publicados no
ambiente europeu, em geral trazendo histórias completas de
personagens consagrados, anteriormente publicadas na forma
de capítulos em revistas como Tintin, Spirou ou Pilote. Foi a
partir desses álbuns que o crítico Richard Kyle, já mencionado,
cunhou inicialmente o termo graphic story, que rapidamente
substituiria por graphic novel, visando inspirar os autores norteamericanos a adotarem o mesmo nível de sofisticação das publicações européias (GRAVETT, 2005, p. 8).
No entanto, polêmicas à parte, é preciso reconhecer que
Will Eisner, com seu prestígio como criador da área e inteligente
atuação mercadológica, foi de capital importância para a popularização do termo e ampliação do mercado para esse tipo de
publicação. Após algumas rejeições, ele finalmente conseguiu
publicar Um contrato com Deus pela Baronet Books, em 1978
(Fig. 4). Tratava-se de uma coletânea de quatro histórias sobre
pessoas que Eisner havia conhecido durante sua infância e adolescência no Bronx; na obra, o autor fugia do formato original
dos quadrinhos, evitando contar a trama quadro a quadro e às
vezes utilizando a página inteira para uma única ilustração.
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Figura 4 – Um contrato com Deus,
de Will Eisner, considerada por
muitos como a primeira graphic
A obra não atingiu um sucesso imediato, mas aos poucos sua qualidade foi se impondo e a reação a ela se solidificando de forma calorosa e encorajadora, a partir de sua
difusão entre o público adulto. Isso lhe garantiu sucessivas
reimpressões. De uma certa forma, a aceitação do trabalho
representava o apoio dos leitores às idéias de Will Eisner e
à sua proposta de modificar os estereótipos que existiam
em relação às publicações de histórias em quadrinhos.
Por mais que a expressão graphic novel represente um
termo com diferentes acepções, é possível dizer que ela
veio a influir positivamente no ambiente dos quadrinhos no
mundo inteiro, predispondo leitores e críticos não só a uma
nova forma de publicação de histórias em quadrinhos, mas,
também, a uma nova formulação artística para o gênero.
Tratava-se de uma nova maneira de viabilizar e disseminar
os quadrinhos, um novo pacote, no dizer de Charles Hatfield (2005), que viria a somar aos já existentes. Segundo
esse autor,
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
A história a arte dos quadrinhos se formou nas histórias de
certos pacotes ou formatos. Nos Estados Unidos, o mais dominante desses pacotes foi a página de jornal e a “revista em
quadrinhos.” O primeiro consiste de uma miscelânea de traços
e gêneros, a maioria contida pelas rígidas barreiras da tira
diária ou da dominical; ele aparece no interior da mais ampla
miscelânea dos jornais, e quadrinhos produzidos para ele são
vistos no máximo como tipos secundários. A chamada revista
em quadrinhos, por outro lado, é uma revista pequena e autocontida ou panfleto (mais ou menos de tamanho meio tablóide). Nos primeiros dias da indústria, esta revista incorporava
uma miscelânea de gêneros, tanto narrativos como não-narrativos; mais recentemente, no entanto, ele veio a se concentrar
em um único personagem ou grupo de personagens e, mais
freqüentemente, em uma única história (tipicamente entre
dezoito ou vinte e quatro páginas de extensão). Desde o final dos anos 1980, uma terceira forma de empacotamento de
quadrinhos ganhou espaço na cultura impressa Americana: a
“graphic novel”, o que no jargão da indústria significa qualquer narrativa quadrinística em tamanho de livro ou um compêndio de tais narrativas (excetuando volumes de reimpressão
de tiras de jornal, que compõem um gênero longevo, ainda
que criticamente invisível em si mesmo). Cada um desses três
pacotes, a página de quadrinhos, a revista em quadrinhos, e
a graphic novel, tem seus próprios horizontes em termos de
conteúdo, audiência e aporte cultural.
A nova denominação ajudou a abrir as portas de outros
espaços de comercialização e exposição para as produções
quadrinísticas, elevando-as a um novo patamar no espectro das criações artísticas no último quarto do século 20 e
início do século 21. Mais que isso: como formato de produção, as graphic novels tornaram possível quebrar a barreira entre os quadrinhos industrializados e os alternativos,
criando condições para um mercado diferenciado, em que
a qualidade artística, o aprofundamento psicológico, a ousadia do design e a complexidade temática passaram a ter
seu valor melhor equacionado. Pode-se dizer que, a partir
delas, as histórias em quadrinhos se firmaram como a 9ª
Arte ou como Arte Seqüencial.
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Os caminhos da Arte Seqüencial
A partir da década de 1980, as histórias em quadrinhos passaram a ser referenciadas como a 9a Arte. Nisso, completavam
um conjunto formado por artes mais tradicionais (as seis primeiras: música, dança, pintura, escultura, literatura e teatro),
acrescidas de duas outras de criação mais recente, o cinema e
a fotografia (embora não fique muito claro porque o cinema,
posterior à fotografia, mereceu a 7a colocação...). Quase que
paralelamente, as histórias em quadrinhos passaram a ser também mencionadas como Arte Seqüencial, uma denominação
pouco satisfatória, uma vez que, a rigor, poderia se referir não
apenas às histórias em quadrinhos, mas também a outras artes
com as mesmas características, como o cinema e a animação
(razão pela qual, este autor prefere utilizar a expressão arte
gráfica seqüencial para fazer referência às histórias em quadrinhos...). Isto, no entanto, talvez não tenha tanta importância,
mas sim a proposição das histórias em quadrinhos como arte,
objetivo que a expressão parece atender satisfatoriamente. De
qualquer forma, já no início da década de 1980 intensificou-se
o uso desse termo por pesquisadores e artistas. Mais uma vez,
foram liderados por Will Eisner, que o utilizou em um curso
sobre quadrinhos que ministrou na School of Visual Arts da
cidade de Nova Iorque e posteriormente como título de seu
primeiro livro teórico na área (EISNER, 2001 [1985]). Tal como
ele, outros artistas trataram de divulgar essa denominação em
eventos e publicações da área.
Tratou-se de mais um passo na busca da legitimação
cultural da linguagem. Nesse sentido, Thierry Groensteen, analisando a realidade dos quadrinhos a partir da situação européia, também identifica dois momentos na história recente,
bem semelhantes ao que se passou no ambiente norte-americano: em primeiro lugar, a reconquista do leitor adulto, ocorrida a partir de 1972, com o lançamento da publicação L´Echo
de Savanes, considerada por ele como a primeira revista “somente para adultos”; em segundo lugar, o crescimento da publicação de álbuns na França, ocorrida quase que em paralelo
com o desaparecimento das revistas tradicionais de quadrinhos
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
do país, Tintin, Pif, Pilote, Charlie, Metal Hurlant. Nesse sentido, Didier Pasamonik (2008, p. 15) complementa o pensamento de Groensteen, afirmando que
[...] Do início dos anos 90 e em um crescendo nos anos seguintes, não houve um grande editor de literatura que não tenha buscado publicar histórias em quadrinhos: Albin Michel, Gallimard,
Grasset, Le Seuil, Flammarion, Hachette, Denoël, Fayard, Le Diable
Vauvert, Buchet-Chastel, La Martinière[...]
Ao mesmo tempo, do outro lado do mundo, grupos de artistas que poderiam ser considerados como sucessores do movimento underground norte-americano passaram a ter maior destaque no universo dos quadrinhos norte-americanos. Colaborou
fortemente para isso a proeminência obtida por Art Spiegelman e sua obra Maus. Com pretensões
nitidamente biográficas, Maus trazia a
história dos pais do autor, que haviam
sido prisioneiros em um campo de concentração alemão durante a Segunda
Grande Guerra. Utilizando uma narrativa
em primeira pessoa, na qual ele próprio
contracena com seu pai e o faz recordar
os momentos terríveis da perseguição aos
judeus durante o conflito mundial, com
todas as conseqüências psicológicas e
pessoais que o período de confinamento havia trazido, Spiegelman utiliza um
recurso característico das fábulas e das
histórias em quadrinhos infantis: retrata
os personagens como animais, individuaFigura 5 – Maus, de Art Spiegelman,
lizando as diversas nações por tipologias
sucesso junto à crítica norte-americana
zoológicas – os judeus como rato, os alemães como gatos, os ingleses como cães,
os poloneses como porcos, etc. (Fig. 5)
Tendo sido inicialmente publicado em capítulos na revista
Raw, fanzine sofisticado de histórias em quadrinhos de vanguarda, editada por Spiegelman e Françoise Mouly de 1980 a
1991, Maus, após sua publicação em formato graphic novel, re-
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cebeu em 1992 um prêmio Pulitzer especial. Desta forma, com
ele, escancarava-se para o mercado norte-americano e para o
mundo em geral o potencial do novo formato de disseminação
de quadrinhos, que não mais precisava ficar vinculado a narrativas nos gêneros tradicionais – super-heróis, policiais, aventuras,
etc. – mas podia ser explorado para incursões no campo da
história, da memória social e do jornalismo. Criavam-se – ou,
melhor dizendo, solidificavam-se – assim novas expectativas em
relação ao meio. Na realidade, pode-se dizer que com ele se
quebrava também um preconceito, o de que histórias em quadrinhos não se prestam à retratação episódios históricos especialmente problemáticos, como o Holocausto dos judeus na 2a.
Guerra Mundial. Como menciona Rocco Versaci (2007 , p. 82)
Um meio que parece mesmo menos equipado para comunicar
esta particular história seria o da revista em quadrinhos. De fato,
em termos de concepções populares, seria difícil encontrar dois
assuntos mais discrepantes que o Holocausto e as revistas em quadrinhos, pois a última é comumente encarada como uma diversão
imatura enquanto o primeiro, por contraste, se tornou congelado
na maioria das mentes como uma metáfora para o mal absoluto,
tão amplos são seus horrores. Ambas as percepções são infortunadas, pois nem o Holocausto nem as revistas em quadrinhos são
bem servidas por essas generalizações. Apesar da aparente incongruência entre quadrinhos e o Holocausto, entretanto, Art Spiegelman ousadamente une os dois em suas graphic novels Maus I
(1986) e Maus II (1991).
O reconhecimento obtido por Spiegelman chamou a atenção do público em geral, que de repente se viu defronte a uma
realidade já familiar aos admiradores do gênero, a muitos artistas atuantes na indústria de quadrinhos e àqueles que se haviam aventurado na produção de quadrinhos underground. Face
a essa nova realidade, pode-se dizer que o cabedal social das
histórias em quadrinhos foi objeto de forte valorização, passando elas a terem um novo tipo de recepção. A este movimento
veio se somar a entrada no mercado ocidental das produções
de quadrinhos japonesas – os mangás –, que propunham uma
estética diferenciada em relação aos quadrinhos mainstream,
com obras que se colocavam, em princípio, como buscando ho-
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
rizontes mais ambiciosos que a produção tradicional ocidental.
E esta invasão nipônica se fez inicialmente por obras que se
destacavam em termos de qualidade Gen Pés Descalços, de Keiji Nakazawa, que transitava pelo mesmo espaço memorialístico
de Maus (Fig. 6). Nele, em uma narrativa emocionante, o autor
relembra sua trágica experiência
de vida, quando, ainda menino,
esteve presente na cidade de
Hiroshima durante o lançamento da primeira bomba atômica
pelos Estados Unidos, perdendo
parte de sua família durante o
conflito e sofrendo danos psicológicos irreparáveis.
Face à invasão japonesa e à
boa acolhida da obra de Spiegelman, os grandes editores
comerciais intensificaram a produção não apenas de graphic
novels, mas também de miniséries em sua linha normal de
produção. Assim, um movimen- Figura 6 – Gen Pés Descalços, de Keiji
Nakazawa, uma comovente história sobre
to que havia começado em 1986 as agruras da guerra e o sofrimento
com o objetivo de revitalizar um causado pela bomba de Hiroshima
dos ícones da editora DC, o personagem Batman – com Batman: O Cavaleiro das Trevas, de
Frank Miller e Klaus Janson (Fig. 7) –, passou a ter um ritmo
muito mais rápido de lançamentos, muitas vezes representando
obras especialmente criadas para o novo formato, outras vezes
coletando histórias ou arcos de histórias aparecidos nas edições
normais, ou seja, em revistas de linha. Nesse espírito ocorreu o
aparecimento de obras que depois se revelariam de capital importância na revitalização do gênero dos quadrinhos de superheróis, como Watchmen (1986), de Alan Moore e Dave Gibbons; Demolidor: A queda de Murdoch (1986), de Frank Miller
e David Mazzuchelli; Batman: Ano Um (1987), de Frank Miller
e David Mazzuchelli; Batman: a piada mortal (1988), de Alan
Moore e Brian Bolland; Batman: Asilo Arkham (1989), de Grant
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Morrison e Dave McKean; Marvels (1991), de Kurt Busiek e
Alex Ross; Astro City (1995), de Kurt Busiek e Brent Anderson;
e O Reino do Amanhã (1996), de Mark Waid e Alex Ross, entre
outros (KANNENBERG, 2008).
Figura 7 – Batman: O Cavaleiro das Trevas, obra
significativa de um novo momento dos quadrinhos
de super-heróis
Além das histórias protagonizadas por super-heróis, outras
obras surgiram no mercado mainstream buscando a excelência
artística e atingir um público mais adulto, muitas delas sendo
extremamente bem sucedidas em ambos objetivos. Entre elas,
deve-se destacar a contribuição de Neil Gaiman e Dave McKean
em Violent Cases (1987), publicada originalmente na Inglaterra, dois anos antes de Gaiman dar início à obra pela qual ficou
mais conhecido, Sandman (1989-1996), que realizou com diversos desenhistas. Outro trabalho semelhante que esse escritor
realizou no gênero fantasia foi Os Livros da Magia (1990), também com diversos autores e com a mesma qualidade estética e
literária de Sandman, mas sem atingir o mesmo sucesso.
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
Outro autor que também enveredou pelo universo das graphic
novels foi o inglês Alan Moore, com diversas obras de grande sucesso lançadas pela editora que fundou, a American Best Comics,
posteriormente transformadas em graphic novels. Dirigidas ao público mais adulto, todas essas obras brincam com elementos fantasiosos e revisitam os diversos gêneros dos quadrinhos, como o
de super-heróis (Top Ten, Supremo), fantasia (Prometea), drama
(A small killing, Lost girls), humor (D. R. and Quinch), aventura (A
Liga Extraordinária) e ficção científica (V de Vingança, A balada de
Halo Jones, Skizz).
No entanto, mais do que salientar esses e outros incríveis autores e suas obras maravilhosas, talvez seja mais produtivo encara-los,
em seu conjunto, como um testemunho vivo do avanço qualitativo
da arte seqüencial mesmo no mercado mainstream. Além disso,
é importante também destacar que o crescimento da oferta de
graphic novels permitiu a utilização da linguagem dos quadrinhos
para a exploração de diversos gêneros que haviam sido tratados
apenas marginalmente por ela. E isso ocorreu de tal maneira que
uma nova classificação temática foi gerada na área, com trabalhos
que jogaram por terra todas as idéias pré-concebidas sobre as limitações da linguagem quadrinística para ir além de propostas ficcionais.
Nessa linha, um dos pontos altos da área na última década foi
o surgimento do gênero atualmente conhecido como jornalismo
em quadrinhos, voltado para a documentação de acontecimentos e fatos reais. O destaque nessa área é o jornalista e artista de
quadrinhos Joe Sacco, cujas obras se transformaram em modelos
para todos aqueles que intentam enveredar pelas mesmas veredas
criativas. Palestina: uma nação ocupada (Fig. 8), sua primeira obra
nessa linha, publicada originalmente em 1993, é um relato de sua
viagem aos territórios ocupados da Palestina, retratando com muita
sensibilidade a rotina dos moradores e dando voz a um povo que
convive cotidianamente com a privação em um país militarmente
ocupado. Seus desenhos, em estilo underground, evidenciam um
autor comprometido com aquilo que está retratando, nitidamente
tomando o partido daqueles que entrevista, participando de demonstrações, assistindo a funerais e até mesmo dividindo suas provisões e acomodações com membros da comunidade palestina.
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Figura 8 – Palestina, de Joe Sacco, a ponta de lança de um novo gênero
quadrinhístico, o jornalismo em quadrinhos
Sacco publicou várias obras com o mesmo objetivo de Palestina, assentando as bases em que outros autores também
trabalharam ou continuam a trabalhar. Desta forma, alinhadas
com o chamado Novo Jornalismo, essas obras quadrinísticas se
impuseram por uma narrativa pessoal e relatos de eventos da
vida real. A importância desse trabalho não pode ser subestimada. Segundo Rocco Versaci (2007, p. 111), esses
[...] quadrinistas jornalistas aproveitaram ao máximo a linguagem
gráfica do meio para reanimar a mais distintiva característica do
Novo Jornalismo: o aprofundamento da perspectiva do indivíduo
como um organizador da consciência. Além disso, os quadrinistas
jornalistas atingem camadas de significado inacessíveis ao jornalismo
em prosa sozinho devido à linguagem gráfica dos quadrinhos que
agrega palavras e imagens. E ainda mais, como os Novos Jornalistas, os quadrinistas jornalistas abraçam uma destacada atitude anti“oficial”, anticorporação. Entretanto, diferentemente da absorção do
Novo Jornalismo pela indústria e a resultante diluição de sua mensagem radical, os quadrinistas jornalistas retêm, paradoxalmente, um
poderoso status marginal que dificultará que esses trabalhos sejam
totalmente “co-optados.” Quando alguém fala sobre a literatura do
jornalismo, trabalhos de quadrinistas jornalistas devem ser incluídos,
pois eles proporcionam histórias e levantam importantes questões de
representação e verdade de maneiras que não estão disponíveis ao
jornalismo estritamente em prosa, “Novo” ou de outro modo.
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As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
Além do jornalismo em quadrinhos, outro gênero que adquire força nesse novo momento de legimitação das histórias
em quadrinhos é a narrativa pessoal, enfocando relatos de vida
e memórias. É um gênero que tem suas raízes no quadrinhos
underground, principalmente com o trabalho de Robert Crumb,
e que posteriormente, com seus sucessores no âmbito do hoje
denominado quadrinho alternativo, atingiu níveis de qualidade
antes pouco vislumbrados, mesmo pelos admiradores do gênero. Ele já aparece claramente nas já mencionadas obras de
Art Spiegelman e Keiji Nakazawa, mas se aprofunda de forma
significativa nos trabalhos de autores como o norte-americano
Charles Burns e o japonês Kazuichi Hanawa.
Figura 9 e 10 – Black Hole e Na Prisão,
obras que dão continuidade ao gênero
biografia em quadrinhos, com grande
profundidade artística
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O primeiro retrata em Black Hole (Fig. 9), uma extensa graphic
novel elaborada em imagens luxuriantes, ousadas e bastante
perturbadoras, que levou dez anos para ser concluída, a época
da sua juventude, na década de 1970, e a convivência diária
com drogas e sexo, colocando a nu momentos de fragilidade
e indecisão frente a um mundo que parecia não lhe oferecer
as respostas que buscava. O segundo expõe em Na Prisão (Fig.
10) a época em que seu autor esteve confinado em uma prisão
japonesa, devido a uma acusação de porte ilegal de armas, descrevendo o dia-a-dia de seu confinamento.
Outros gêneros mais tradicionais dos quadrinhos também
tiveram grande desenvolvimento nos últimos anos. Sem querer
esgotar o assunto, é possível destacar Sincity, de Frank Miller,
Cidade de Vidro, de Paul Auster e David Mazzucchelli, Estrada
para a Perdição, de Max Alan Collins e Richard Piers Rayner, nos
quadrinhos policiais; Moonshadow, de J. M. DeMatteis e Jon J.
Muth, no gênero fantasia; Birdland e Crônicas de Palomar, de
Gilbert Hernandez, Ghost World, de Daniel Clowes, Strangers
in Paradise, de Terry Moore, Jimmy Corrigan, the smartest kid
in the world, de Chris Ware, em histórias do cotidiano; Hellboy,
de Mike Mignola, nas histórias de terror; Os Invisíveis, de Grant
Morrison, Akira, de Kathuhiro Otomo, Hard Boiled, de Frank
Miller e Geoff Darrow, Give me Liberty, de Frank Miller e Dave
Gibbons, The Originals, de Dave Gibbons, na ficção científica;
Pussey!, de Daniel Clowes, Buddy does Seattle, de Peter Bagge,
Quimby the Mouse, de Chris Ware, no humor (KANNENBERG,
2008).
Em todos os títulos acima mencionados – e em muitos outros que não foram incluídos por absoluta falta de espaço –,
pode-se observar a preocupação com a elaboração de histórias
que fujam do comum e tenham a marca do seu autor. Algumas
apresentam uma visão acerba e crua da sociedade, em desenhos aparentemente grotescos e mesmo horripilantes. Outras
buscam proporcionar deleite estético em níveis similares aos
proporcionados pelas outras artes, inspirando-se abertamente
em grandes obras da representação pictórica universal.
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artístico e intelectualmente valorizado
Conclusão
Em sua obra Reading comics: how graphic novels work
and what they mean, Douglas Wolk (2007, pag. 10) argumenta, em relação à evolução das histórias em quadrinhos, que
“se existe tal coisa como uma idade de ouro dos quadrinhos,
ela está acontecendo exatamente agora.” Analisando a produção atual e o nível de qualidade de imagens e roteiros encontrados em muitas produções quadrinísticas, não se pode
deixar de concordar com esse autor. Estamos, sim, vivendo
uma grande época para os quadrinhos.
Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que a
produção industrializada continua massiva e massificante: tolhida em limites mais amplos do que os de vinte ou trinta anos
atrás, é certo, mas, ainda assim, com evidentes limitações. A
oferta de quadrinhos como um todo, considerada a produção
industrial, continua disponibilizando, em proporções bastante
exageradas – cerca de 80 ou 90 por cento, dependendo do
ponto de vista -, daquilo que poderia ser denominado como
lixo, ou seja, quadrinhos padronizados e presos a um modelo
industrializado de produção, voltados para a reprodução das
mesmas histórias a serem consumidas pelas mesmas massas
de leitores invisíveis e não-identificados. Apenas uma pequena
parcela da produção continua a ser composta por obras que
realmente colaboram para o avanço da linguagem dos quadrinhos e sua evolução artística, enquanto todo o restante da
produção busca perpetuar o interesse da sociedade em geral
por esse meio de comunicação de massa. Mas nisso as histórias em quadrinhos não se diferenciam de todas as outras artes, pois fato semelhante pode ser encontrado no cinema, no
teatro, na literatura, etc. Ambas as tipologias de produção – o
lixo, por um lado, e a arte, por outro –, cumprem muito bem
o seu papel.
A boa notícia é que as obras que fazem avançar a linguagem quadrinística já não se situam mais somente no âmbito
do quadrinho alternativo. Cada vez mais, é possível encontrar
no contexto de quadrinhos mainstream obras que, embora
tratando de temáticas aparentemente padronizadas, re-elabo37
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ram a linguagem e influem significativamente em seu aprimoramento. E isso ocorre com freqüência cada vez maior.
Existem motivos para otimismo em relação à legitimação das
histórias em quadrinhos na sociedade. Embora algumas portas
de instituições culturais ainda permaneçam estupidamente fechadas para acesso e valorização das produções quadrinísticas,
outras já se abrem e algumas até mesmo se escancaram para
elas. Bibliotecas, que antes sequer cogitavam em armazenar
quadrinhos, já as oferecem abertamente. Livrarias criam seções
especiais para comercialização de graphic novels, álbuns e mini-séries. Escolas são tomadas por professores e alunos ávidos
pela utilização de histórias em quadrinhos em sala de aula. São
novos tempos.
Exercícios de futurologia são sempre arriscados. Assim, seria provavelmente arriscado fazer qualquer tipo de prognóstico
em relação ao futuro da arte gráfica seqüencial. Existe um caminho a ser percorrido, talvez ainda com algumas dificuldades.
Autores e leitores, no entanto, parecem cada vez menos temerosos em relação a ele e o vêem como uma grande promessa. E
talvez realmente o seja.
Notas
1. Informação oral, prestada informalmente em junho de 2008. Os nomes foram omitidos,
por decisão deste autor, visando evitar constrangimentos aos envolvidos.
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Waldomiro Vergueiro
As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto
artístico e intelectualmente valorizado
Waldomiro Vergueiro
é doutor e livre-docente em Ciências da Comunicação e Professor Titular
do Departamento de Biblioteconomia e Documentação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Docente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da ECA-USP,
onde também coordena o Observatório de Histórias em Quadrinhos. Publicou os seguintes livros: Como usar as histórias em quadrinhos na sala
de aula, O Tico-Tico: Centenário da primeira revista de histórias em quadrinhos no Brasil e Historieta Latinoamericana. v. 3: Brasil (na Argentina).
Endereço: Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Butantã, São Paulo, Rua Jorge
Tibiriçá, 266, Vila Mariana, São Paulo, SP, 04126-000, Tel. 3091-4076, ramais 27 e 34; e-mail: [email protected]
41
Comics are imagetic literature, that allows input and
understanding, resulting in a different way that acts
inside the two hemispheres of the human brain. The
image operates into right side of brain, while phonetical rational information acts on left side. Those aspects
help in education of human values in a sistemic way,
integrative, considerating interdisciplinary on education.
Beyond, comics can also be authoral, distint from the
pattern way, when something is elaborated by a group,
intenting exclusively commercial finality. In both of cases, comics must be reknowned as art, as any other
human expressions like visual arts, plastic arts, movies,
literature and others.
Keywords: Comics, Authorship, Art.
abstrac t
A autoria artística das histórias em quadrinhos
(HQs) e seu potencial imagético informacional
Gazy
Andraus
resumo
A história em quadrinhos (ou HQ) é uma arte literárioimagética, permitindo uma atuação e entendimento
que incide de forma diferenciada nos hemisférios cerebrais. A imagem recai no hemisfério direito do cérebro,
enquanto que a informação escrita fonética racional
atua no esquerdo. Tais aspectos auxiliam na educação
dos valores humanos de forma sistêmica, integrativa,
considerando-se a interdisciplinaridade no ensino. Além
disso, a história em quadrinhos pode ser também autoral, distintamente daquela padronizada como fruto de
uma equipe para finalidade estritamente comercial. Em
ambos os casos, a história em quadrinhos deve receber
o estatuto de arte, como quaisquer outras das expressões humanas que são assim classificadas, tais como as
artes visuais, plásticas, cinema, literatura e outras.
Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos, Autoria,
Arte.
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
1. Histórias em quadrinhos (HQs) e informação
sistêmica
As histórias em quadrinhos não servem apenas ao auxílio
interdisciplinar ou às aulas de literatura, mas principalmente
como agentes artísticos auto-suficientes literário-imagéticos
apresentados de uma maneira própria, independentemente.
Isto se dá, sobretudo, devido à relação intrínseca das HQs como
uma literatura imagética (ou panvisual) e a importância delas
como imprescindível e necessário objeto de estruturação cultural aos povos: objeto este que auxilia em uma melhor interface
dos dois hemisférios cerebrais: esquerdo: racional (fonético) e
direito: intuitivo (imagético).
Assim, as HQs somente agora estão se tornando melhor reconhecidas no mundo e principalmente no Brasil, ganhando espaço em setores de mídia impressa e televisiva, que lhes concede cada vez mais prestígio, haja vista que os quadrinhos estão
migrando para formatos similares a livros e álbuns destinados
a livrarias, bem como têm sido indicados ao ensino pelos PCNs,
e adquiridos pelo governo a fim de figurarem nas bibliotecas
escolares. Porém, isto nem sempre foi assim, graças a um desconhecimento acerca do potencial relativo às artes, no auxílio
mental à formação humana.
1.1 A expansão neuroplástica
Embora a história da humanidade pressuponha a manifestação expressiva gestual, sonora (gutural) e garatujada, a necessidade gregária de compartilhamento de informações foi o
deflagrador de toda essa epopéia criativa, tanto artística, como
científica. A escrita evoluiu da vontade de se registrar a informação, facilitando assim a comunicação, tornando-a fluida e
mediadora para o entendimento prático, principalmente, apesar de abarcar possibilidades abstratas de pensamento. Mas
isso não significa que os desenhos (que originaram a escrita
ideográfica e fonética), sejam de somenos importância, ou que
44
Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
induzam a “erros”, múltiplas interpretações ou que sejam limitados. Nem que, se esses fossem os casos, o desenho pudesse ser tido como informação “infantilizada” e menos complexa
nos quadrinhos, como parece ter sido assim percebido, inclusive pela ciência cartesiana.
Ao contrário: o desenho, como expressão direta de uma
mente que elabora racional e criativamente, expressa os anseios, temores, alegrias e outros humores da pessoa que busca
representar graficamente seus estados de ânimo. Morin (2000)
já explicou que o ser humano é complexo, e não apenas um ser
racional, pois sente, pensa, teme, se alegra, expressa, assim,
manifestando uma complexidade de sentimentos que não se
restringem a um padrão único e formatável. De Gregori (1999),
com sua teoria do cérebro triuno (fig. 1), argumenta que o cérebro humano contém todas as outras versões de cérebros anteriores, até a inteligência básica da vida. Assim, expõe que
aliado aos dois hemisférios (direito e esquerdo), repousa internamente o cérebro central,
réptil, que responde pelo
pragmatismo. Dessa forma,
De Gregori diz que deve haver uma utilização proporcional entre esta porção central
(ação decidida), o hemisfério esquerdo (racionalidade)
e o direito (criatividade).
Sem uma utilização comum
proporcional a esses três
módulos conjugados, o ser
humano acaba por pender,
ora para uma parte, ora para
outra, desenvolvendo mais
Figura 1 DE GREGORI, Waldemar. Os
poderes dos seus três cérebros. São
algumas áreas e menos ouPaulo: Pancast, 1999
tras. Ainda assim, ressalte-se
que é de conhecimento científico que o funcionamento cerebral cognitivo resulta da atividade integrada dos hemisférios,
e em rede. Porém, tal desproporcionalidade apontada por De
Gregori explicaria, em parte, porque o ensino cartesiano, cuja
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modalidade exclusivista e dominante atinente ao hemisfério
esquerdo, deveria já estar totalmente reformulado, incluindo a inserção de modalidades novas de pensamento, como
a atividade criadora (a criatividade, atinente ao hemisfério
direito cerebral). A mudança de paradigma na ciência, por
exemplo, da clássica para a quântica, teve uma repercussão
total na relação entre sujeito e objeto: o cientista não poderia mais, agora na visão quântica, deixar de afetar sua pesquisa, ainda que fosse como uma espécie de “demiurgo”,
cuja observação participante proporcionaria a medição e localização no tempo-espaço da micropartícula atômica. Pois,
embora ele possa continuar suas medições, o fator “observação” altera a posição no tempo e espaço da micropartícula, que tanto poderia ser um corpúsculo material, como
também uma possibilidade ondulatória que figurasse potencialmente em qualquer lugar, o qual se define mediante a
Figura 2 CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1990
escolha momentânea do físico (fig. 2). Neste último caso,
coloca-se em pauta a possibilidade existencial no tempo-espaço da partícula, cuja posição que seria eleita dependeria
realmente do fator, agora subjetivo, da ponderação do homem (do pesquisador). Em outras palavras: a possibilidade
de algo estar em algum lugar, depende da mente humana
eleger tal realidade e “estagná-la”, posicioná-la, definitivamente, co-realizando a “realidade” tridimensional.
Os cientistas ainda não compreendem como isso se dá,
46
Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
nem como uma partícula possa ser dual ao mesmo tempo
(matéria/onda), porém, sua mente se “reformatou” como
que para aceitar um estado natural da existência, que não
condiz com o que a concepção da lógica linear anterior, na
visão de um mundo newtoniano em que todo o universo parecia ser uma máquina funcional, cuja manutenção independia do homem, em que este seria apenas um mero observador sem poder alterar algo. No entanto, na nova física que
vai além do mero efeito ação/reação, culminaram os cientistas por aceitar a facticidade dual da micropartícula ser/estar e onda/matéria ao mesmo tempo, como real e plausível,
a despeito de uma lógica simples e cartesiana não poder
abarcar tal premissa. A mente destes pesquisadores, então,
principiou a adentrar num novo paradigma, mais complexo e absolutamente inóspito ao modo de pensar habitual,
remodelando a si mesma (a mente), tornando-se propícia
a aceitar este “novo”, esta dualidade atômica, como bem
afirmou Capra (1999).
Além disso, devido a estudos atuais da neurociência,
sabe-se que a mente é neuroplástica, bem como não cessa
jamais de se ampliar (e regenerar), desde que seja estimulada para tal, e não com um ensino que contemple apenas
a chamada inteligência racional, pois falho e manco, já que
insuficiente para atuar nos hemisférios cerebrais de modo
satisfatoriamente equilibrado.
Experimentos com tomografias computadorizadas têm
sido utilizados para ilustrar novas descobertas do funcionamento cerebral, que apontam para repensar tais questões.
Constatou-se assim que
(...) experimentos de laboratório e estudos clínicos indicam
claramente que a leitura do chinês requer, para a identificação
de seus morfemas–caracteres, uma alocação de funções cerebrais, localizadas entre os hemisférios cerebrais direito e esquerdo, um tanto diferente daquela que os leitores da Europa
Ocidental e os leitores de alfabetos fonéticos orientais usam
para a identificação de palavras. (SAENGER, 1995).
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Dessa maneira, à mesma forma que os ideogramas, os desenhos das histórias em quadrinhos podem incidir em áreas distintas do cérebro, ativando-as, diferentemente do que faz uma
leitura da escrita cartesiana.
Como se percebe, ainda há muito que se pesquisar e deduzir, mas claro está que, longe de serem empecilhos à educação,
os quadrinhos são potentes informações imagéticas que podem
ser utilizadas como literatura diferenciada, aliada à literatura
convencional escrita (e também aos textos acadêmicos) como
forma de melhorar a interação dos hemisférios cerebrais, promovendo fontes de conhecimento e deflagrações criativas que
auxiliariam na transformação do ensino em algo não somente
sistêmico e informacional, como também indispensavelmente
lúdico. Os quadrinhos, além de servirem informação imagética
de forma diferenciada, também divertem, mas é de salientar a
influência que podem trazer ao psiquismo humano (como os
noticiários de televisão, os filmes etc). Esta influência, inclusive, foi pressentida e vivenciada (até de forma exagerada), na
década de 1950, quando os Estados Unidos viviam uma crise
sem precedentes, o que resultou em expressões artísticas de
temáticas mais fortes e de tons “negativos”, como nas histórias
de terror que pululavam nas revistas de HQs (comics). Infelizmente, isso bastou para que psiquiatras, psicólogos, pedagogos e educadores sem muita reflexão acusassem os quadrinhos
como pérfidos à educação da juventude. O problema, realmente, é que muitas das histórias não eram para crianças, e faltou
visualizar tal fato, como é feito atualmente nos cinemas, com
classificações etárias. A mesma síndrome correu mundo afora
e no Brasil. Seu resgate só veio a partir da década de 1960 e
1970, com o advento de teóricos europeus e de estudos culturais, percebendo o valor real dos quadrinhos, retirando-os aos
poucos do limbo a que foram submetidos.
Aqui, conjecturo baseado em minha tese de doutorado
(Andraus, 2006), que a razão principal de as HQs terem sido
desvalorizadas no processo cultural foi realmente a performance da assim e então chamada “mente dominante” (hemisfério
esquerdo), já que, por atuar de forma incisiva no racional, desvalorizou, como na ciência clássica, o subjetivismo, a expressão
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Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
artística, pois que esta era (e é) entranhada e deflagrada pelo
hemisfério direito. Dessa forma, tal cisão permitiu desconsiderarse o valor da arte dos desenhos e dos quadrinhos por extensão,
superestimando a escrita racional do pensamento estritamente
cartesiano.
Advirto que durante um grande período, a ciência que estuda o cérebro, considerou o hemisfério esquerdo como “dominante”, relegando a um segundo plano o lado direito. Também
foi percebido que os homens, em seu início desde a pré-história,
por algum motivo ainda não esclarecido, utilizavam mais a mão
direita para a execução de ferramentas e outros afazeres (Facure, 2003). Ora, os hemisférios cerebrais comandam de forma
inversa os lados do corpo. Destarte, o hemisfério esquerdo acabou por ter uma maior ampliação, já que a mão direita trabalhava mais. Porém, foi a partir da década de 1950 que o cérebro
passou a ser melhor conhecido, e somente depois é que se entendeu que a falta de clareza quanto ao potencial do hemisfério
direito não o classificava como de somenos importância: se é o
esquerdo que diagnostica, nomeia, calcula, classifica tudo, é o
direito que visualiza, cria, conceitua, abstrai.
Assim, a questão de o fonema ter se sobressaído e soberanamente valorizado conquanto a seu conteúdo intrínseco, encontra eco e respaldo no que apontam as pesquisas com tomografias computadorizadas do cérebro.
Um fato que comprova a desatenção em relação à importância da informação imagética, logo, do desenho – e conseqüente
supervalorização da escrita fonética –, se deu no grande mercado norte-americano, ao final da década de 1960 para início da
de 1970. O artista norte-americano de histórias em quadrinhos,
Jim Steranko, quando roteirizava e desenhava a revista Nick Fury
para a editora Marvel Comics (Casey, 2004), introduziu uma história contendo suas três páginas iniciais completamente mudas
(Fig. 3), cuja tônica informacional se dava exclusivamente pelas imagens desenhadas, com total ausência de textos escritos
(excetuando-se pelo título da história e do personagem como
acontece em narrativas de filmes, em que, em muitos momentos desenrolam-se ações sem falas). Porém, o estigma no qual o
texto descritivo fonético seria preponderante como elemento
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Figura 3 STERANKO, Jim. Quem será Scorpio. Nick Fury. Heróis da TV. N. 17. São
Paulo: Abril, nov. 1980, p. 4-5
necessário às histórias em quadrinhos, e sua ausência nas páginas elaboradas pelo desenhista, causou estranheza ao editor,
que temia que os jornaleiros pensassem se tratar de erro de impressão, e devolvessem a edição. Na verdade, a questão se torna muito mais complexa, à medida que o valor à escrita fonética se torna desmesurado, dirimindo a importância da informação imagética, conforme se pode asseverar por mais este fato
pontual, corroborando um sintomático analfabetismo icônico,
já aventado por Groensteen (2004). O pesquisador francês reforça a questão de que as pessoas não sabem ler imagens, nem
desenhos, tornando-se analfabetas em reconhecer tais artes, o
que propicia uma padronização por parte das editoras, excluindo do rol de suas publicações trabalhos diferentes, vanguardistas, já que crêem ser difíceis de serem lidos e aceitos pelos
leitores. Porém, o que diz Groensteen, em realidade, é que a
estultícia em se nivelar por igual a todas as coisas da sociedade, acaba por sacrificar a riqueza e diversidade cultural, no
caso, o leque de estilos de desenhos diferentes, contribuindo
para uma uniformização empobrecedora no quesito cultural ati-
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Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
nente à variedade nos desenhos de quadrinhos, e conseqüente
falta de apreciação por parte dos leitores.
Enfim, há de se preocupar e atentar com o que o pesquisador europeu diz, já que a teoria da neuroplasticidade cerebral,
atualmente em voga com fundamentos científicos comprovados, explica que a inteligência humana se amplia se estimulada.
Por esse prisma, caso os estímulos sejam padronizados e não
requeiram esforços em novos reconhecimentos, há o perigo de
um uso menos qualitativo do potencial mental. É fácil se compreender isso, quando se reporta à questão diferencial entre a
física clássica e a quântica, conforme se comentou: atualmente, não há dúvidas entre os físicos que não se pode teorizar e
nem praticar tal ciência apenas com a visão mecanicista, que
pode e deve ser usada cotidianamente, mas necessita de apoio
e ampliação com a física quântica, a qual propiciou os raios
lasers e toda a tecnologia computacional e de chips da atualidade. Caso, se caia na mesmice em se aceitar apenas a física
anterior, deve-se eliminar toda a tecnologia atual baseada em
noções e cálculos quânticos (inclusive os computadores quânticos que estão sendo testados atualmente). O mesmo caminho
e raciocínio pode ser transposto para as artes, e no caso, para
os quadrinhos.
2. Histórias em quadrinhos: conceituações e arteautoral literário-imagética
As histórias em quadrinhos, assim, começaram desde a pintura rupestre, antes da escrita, e culminaram nas artes sacras
medievais, difundindo-se e estruturando-se como linguagem
graças à prensa de Gutemberg e aos jornais. Depois, impressas
em revistas ganharam um novo nicho. Mister se faz lembrar que
elas, as HQs, em seu início, realizado nos jornais, eram de humor, porém para o público adulto. Somente depois é que vieram
as HQs de temática infantis. No Brasil, uma das revistas que passaram a publicar HQs foi intitulada de “Gibi” (meninote negro) e
acabou sendo sinônimo de todas as outras que vieram depois.
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As HQs têm várias outras denominações pelo orbe, como
Comics nos EUA, Fumetti (alusão aos balões de fala e pensamento) na Itália, Historieta na Espanha e América latina, Mangá no Japão, Bande Dessinées e Bandas Desenhadas na França
e Portugal respectivamente etc.
Além disso, outras classificações importantes, mas pouco
percebidas, são possíveis às histórias em quadrinhos:
• HQs de autor (ou de
arte): Asterix, por exemplo,
na França e Como qualquer
outro veículo de expressão
humana, seja a literatura
convencional, o cinema, as
artes em geral, as histórias
em quadrinhos possuem autonomia própria e linguagem
específica (nem sempre precisam ser lidas de forma linear,
conforme se vê na (fig. 4),
carregando em sua forma a
autoria, e não só o processo
industrial. Torna-se fácil compreender isso, ao se remeter
ao cinema: os diretores seriam o equivalente aos escritores literários, devido à sua
função peculiar e pessoal, inFigura 4 CRUMB, Robert. Bobobolinski
jetando seu estilo e marca em
(fotocópia de página da minha coleção particular)
suas produções. Da mesma
forma que os livros, muitos filmes são produzidos também de forma autoral pulverizada, com
personagens como carro-chefe, imprescindindo da importância
do nome do diretor (autor), configurando uma diferenciação
entre o filme autoral e o industrial, comercial, de autorias pulverizadas. Porém, a diferença entre um filme autoral e outro
“industrial”, é o mote que irá atrair platéias específicas: há pessoas que se locomovem aos cinemas apenas para ver determi-
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Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
nadas obras, dependendo do nome dos diretores, por detrás da
produção. Como exemplo, filmes de Akira Kurosawa, ou Ridley
Scott, ou ainda mesmo Mel Gibson, cuja autoria se impõe como
marca em cada uma de suas últimas produções (Paixão de Cristo e Apocalypto, dois de seus recentes filmes, como exemplo.
São filmes que, apesar da violência e da produção milionária,
possuem uma simbologia do sacrifício, do expurgo “heroístico”
religioso – diga-se espiritualista, apresentando-se de forma contundente, como no herói sacrificial do filme “Coração Valente”.
Ao que tudo indica, uma sintomática marca de seu diretor Gibson). Na literatura, o mesmo se
repete: Jorge Luis Borges, José
Saramago ou Clarice Lispector
irão servir de leitura para seus
fãs, enquanto nas histórias em
quadrinhos, semelhante fato
se configura, embora tal faceta
seja pouco observada pela mídia
em geral: os autores de HQs têm
público leitor cativo, que buscam obras de Neil Gaiman, Alan
Moore, Moebius, Frank Miller,
e no Brasil, Lourenço Mutarelli,
Edgar Franco (Fig. 5), Laerte e
outros, distinguindo seus trabalhos da grande massa de revisFigura 5 FRANCO, Edgar. O redescobrimento.
tas
de quadrinhos que se mosQuadreca. N. 14. São Paulo: Comarte, 2005, p. 30
tram vendáveis apenas graças a
seus personagens (como as de super-heróis e mangás). Além
disso, o mercado livreiro mundial (em especial, finalmente, o
brasileiro) tem crescido de forma exponencial, abarcando quadrinhos no formato de livros, com distribuição semelhante ao
comércio livreiro, o que auxilia numa valorização crítica crescente por parte da mídia especializada, enaltecendo as virtudes da
arte quadrinhística, e auxiliando-a na solidificação de um status
de autoria e autoridade (como nos livros).
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V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Há outros “diagnósticos” à Literatura da Imagem ou Nona
Arte (como também são chamadas as histórias em quadrinhos
na Europa), além do quadrinho de autor e quadrinho comercial,
como se verifica;
• Quadrinho infantil, infanto/juvenil e adulto: Asterix,
por exemplo, na França e países de língua francófona servem
como leitura às três faixas etárias. Os super-heróis norte-americanos, em geral, são mais endereçados aos jovens adolescentes, enquanto personagens como Magali e Mônica têm como
alvo crianças (excetuando-se o recente lançamento “Mônica Jovem” no estilo mangá, produzido pelos Estúdios Maurício de
Sousa, para o público adolescente). Também as histórias do
personagem Horácio (único que é elaborado de forma autoral
por Maurício) se assemelham às de Asterix, já que podem ser
lidas e entendidas distintamente tanto por crianças, como jovens e até adultos, assim como as tiras (formatos específicos
para jornais principalmente) da Série Fala Menino de autoria
de Luis Augusto, servem a adolescentes (Fig. 6). Este item, da
diferenciação de faixa etária do público leitor, é necessário salientar, quase nunca é levado em conta na área dos quadrinhos,
no Brasil;
Figura 6 AUGUSTO, Luis. Inocente, até que se prove o contrário. Col. Menino! Vol. 7. Fig. 1:
Salvador: BA: Fala Menino Produções, 2007, p. 71
• Há diferenças entre HQs, Charges e Cartuns e Caricaturas: basicamente, as histórias em quadrinhos são formadas de
imagens desenhadas que se seqüencializam, independente de
seus temas serem ou não de humor. Já a caricatura tem como
base o exagero na expressão gráfica (não somente no desenho,
54
Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
mas também nas imitações, nas atuações em filmes, por exemplo, que podem igualmente ser caricaturais). As charges e cartuns são quase sinônimos, embora no Brasil se diferenciem da
seguinte maneira: charges são desenhos de humor geralmente
políticos e temporais, enquanto os cartuns seriam desenhos engraçados de entendimento universal. Deve ser lembrado que a
caricatura é um termo que provém do latim (caricare) e significa “exagero”, aplicando-se a quaisquer desenhos expressivos
de humor, estejam nas charges,
cartuns ou HQs. No exterior,
em geral, o termo caricature
é usado para as charges e até
cartuns;
• Gêneros literário-imagéticos: neste ponto, assim como
na literatura convencional existem diversos gêneros narrativos
nas histórias em quadrinhos,
como humor, ação/aventura
(ficcional), terror (Fig. 7), crítico social, romântico, poético,
filosófico, erótico, super-herói,
documental, underground etc;
• Estilos da Arte nos quadrinhos: pode-se perceber na
literatura imagética seqüencial
uma gama estilística de desenhos e narrativas que se igualam ao existente na arte em geral e no cinema: Art Nouveau,
Figura 7 CORTEZ, Jayme. O Retrato do mal. Saga de Surrealismo, Realismo, Noir (ciTerror. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 37
nema), Pop Art, Expressionismo, Grafite;
• Estudos de caso de autor: Há muitos autores de HQs espalhados pelos países (como EUA, Europa, Brasil, Líbano). Aqui
se desfila uma gama variada da literatura imagética, apenas
para se ter como referência o quão agigantado e versátil é seu
universo autoral. Por exemplo: Winsor McKay: quadrinhista,
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criador de Little Nemo e um dos primeiros autores de desenho
animado com a obra Gertie, o dinossauro; Alan Moore (Inglaterra) e suas HQs poético-científicas, imbricando em conceitos
de ecologia e ciência quântica e filosófica; Frank Miller
e a opressão psicológica do
herói e sua dualidade psíquica: o confronto entre o
desejo pessoal e o senso de
dever nas imagens fortes de
Batman e Demolidor; a série
clássicos ilustrados nas HQs
com Bill Sienkewicz e seus
quadrinhos expressionistasnouveau e as HQs de Neil
Gaiman, com Sandman e
o universo onírico visual;
as HQs jornalísticas ou documentais como as de Joe
Sacco com Palestina, ou
Maus de Art Spiegelman;
bem como artistas da HQs
Figura 8 CAZA. Arkhé. Les Humanoides Associés:
contemporâneos do Líbano
Tournai/Belgique, 1991
e sua visão no meio da guerra, como no caso da autora
Lina; Will Eisner e suas Graphic Novels (outro nome para um
formato melhor na publicação de quadrinhos, do que simplesmente as revistas tradicionais) de estética pessoal e que exploram a sensibilidade humana dentro das cidades; Passageiros
do Vento de Bourgeon mostrando a África na escravidão com
uma pesquisa textual e visual apurada; Caza (França) (Fig. 8) e
suas HQs nas 4 fases: psicodélica; urbano-crítica-social; cósmica
e por fim a atual, tendo várias referências literárias, como Dante Aleghieri e Gibran khalil Gibran, por exemplo; a plasticidade
na arte das HQs do personagem Surfista Prateado dos norteamericanos Stan Lee e John Buscema e suas HQs de cunho
existencialista; Feif fer e seu quadrinho caricatural crítico e social; Peter Kuper demonstrando na HQs “grafitada” muda O
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A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
Sistema como se dá a inter-relação no tecido social e a influência que cada ser humano tem na teia da vida; Grant Morrison
trazendo em seus roteiros de ficção científica conceitos atuais
da ciência; Henfil (Brasil) e seus
traços soltos, e sua crítica ainda
atual; autores de HQ Brasileiros
do gênero terror, como Flávio
Colin e Shimamoto e seus traços “nervosos”; Edgar Franco
(Brasil) e sua arte bio-cibermística, discutindo os rumos futuros
da humanidade e pós-humanidade, Calazans com esquetes filosóficas; Gazy Andraus e a arte
fantástico-filosófica,
Antônio
Amaral e seus quadrinhos dadaístas (Fig. 9) etc;
• Fanzines ou revistas alternativas: Há ainda que
mencionar tais produções artesanais e seu tremendo potencial
criativo e de design e conteúdo
Figura 9 AMARAL, Antonio. Hipocampo — A 3 a.
vanguardista, promovendo a auocorrência. Teresina: Edição do Autor, s/data, p. 11
to-editoração e confraternização
(aproximação) social universal.
Na verdade, fanzines (neologismo que aglutinam duas palavras
inglesas: fanatic e magazines) se distinguem de revistas alternativas, conforme classificação feita por Magalhães (1993): os
primeiros trazem artigos de determinados assuntos, enquanto
que os segundos trazem as próprias criações artísticas (HQs,
poesias, contos etc), embora já seja habitual considerar ambos
como fanzines. Em geral, os fanzines (ou simplesmente zines)
são edições em que os autores amadores e/ou profissionais
divulgam suas artes (Fig. 10). No caso em questão das HQs,
seus autores tentam confrontar e achar brecha no mercado capitalista que de outra forma não lhes daria chance. Muitos são
trabalhos ousados e de vanguarda que só enriquecem a criatividade da linguagem dos quadrinhos. No exterior, como na Fran-
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ça, por exemplo, os
fanzineiros são sondados pelos editores, e muitos acabam
por serem chamados
para fazerem trabalhos
profissionais:
deve-se salientar que
as histórias em quadrinhos na França
são tidas e editadas
como livros, tanto no
formato (grande e
quase em sua totaliFigura 10 MAGALHÃES, Henrique. Top! Top!. N. 18. João Pessoa:
dade com capa dura),
Marca de Fantasia, junho de 2005
como na intenção de
JOZZ. Zine Royale. N. 3. São Paulo: independente, inverno de 2008
serem lidos, relidos e
IDEGO. 3 quilo e meio. N. 1. independente. Maio de 2008
poderem integrar bibliotecas. Como um
exemplo de fanzine brasileiro de
temática ousada, existiu a revista
Mandala (antiga Tyli-Tyli), composta por quadrinhos filosóficos
e arte underground, editada pela
Marca de Fantasia, editora da Paraíba que tem como idealizador
Henrique Magalhães, doutor pela
Sorbonne, quadrinhista, fanzineiro e professor universitário.
• A literatura imagética dos
quadrinhos também alcançou a
Internet, tornando-se uma nova
linguagem híbrida, pois alia som
e movimento, tendo sido rebatizada no Brasil como HQtrônicas
(Fig. 11) pelo artista e pesquisador Edgar Franco (2004). Nesse
58
Gazy Andraus
Figura 11 FRANCO, Edgar Silveira.
HQTrônicas: do suporte de papel à
rede Internet. São Paulo: Annablume;
Fapesp, 2004
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
caso, a Internet se configura como um novo campo pleno de
estudo e descoberta das HQs, mas que, como qualquer outra
mídia, não deve ser pré-julgada sem uma análise pormenorizada, para que não se incorra no mesmo erro que houve aos quadrinhos: saber o alcance que as HQtrônicas podem oferecer e
quais as influências decorrentes dessas experiências no cérebro
e mente neuroplásticas humanas requer mais pesquisas. Assim,
há a possibilidade de se estar descortinando paulatinamente
uma nova literatura nesse universo virtualizado, em que coexistirá com as versões impressas.
Como se verifica, há uma gama de classificações dentro do
universo artístico das histórias em quadrinhos, que somente na
atualidade está sendo verificado de forma ampla. A questão da
linguagem quadrinhística também ter uma qualidade intrínseca de arte, também deve ser mais apuradamente pesquisada e
notificada. Pois a própria área das artes se contaminou com a
racionalização em excesso, tornando-se igualmente preconceituosa,
excluindo outras manifestações e
expressões humanas artísticas, de
seu próprio conjunto, perdendo
inclusive seu significado essencial,
como se verá a seguir.
3. A arte em xeque
Figura 12 MANGUEL, Alberto. Uma História
da Leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, p. 122
O paradoxo da expressão artística nomeada de História em Quadrinhos é que esta se instaura,
não apenas como uma manifestação humana possível, mas sim
como uma necessidade premente
de fornecer narrativas imagéticas
e simbólicas (Fig. 12). Cristina
Costa (2002, p. 9) defende a ne-
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cessidade das narrativas (contações de histórias, contos, folhetins, novelas etc) alertando que para “filósofos como JeanPaul Sartre e Merleau-Ponty, psicólogos como Jacques Lacan
e antropólogos como Lévi-Strauss, o homem teria, em algum
momento da sua história, vivenciado um processo único de
ruptura com a natureza.”. Assim, este processo abriria um
precedente, em que tal separação desconfortável, tem sido
traduzida até hoje em mitos que repetem esta cisão, como
uma busca de algo que permanece na estrutura interna humana como uma ruptura, um afastamento de um “paraíso”
olvidado:
esse desligamento de uma situação primordial na qual estivera
imerso foi sentido pelos primeiros hominídeos como uma grande perda, associada contraditoriamente a idéias do nascimento,
condenação e desterro. Há milênios o homem relembra em seus
ritos esse momento em que, ao deixar o paraíso, rompe com a
natureza generosa e abundante, com a reprodução indolor e
com a imortalidade. (COSTA, 2002, p. 9)
Dessa forma, elaborar narrativas, e assim, expressões artísticas em quadrinhos, se torna condição sine qua non para
a existência humana. Tais elaborações e narrativas fornecem
combustível para uma busca de retorno a este paraíso que
se foi. E os quadrinhos, como possibilidades criativas aliadas
à premência do imagético, se tornam veículos pelos quais o
ser humano possibilita tais realizações e compartilhamentos,
apesar de todo o preconceito que grassou acerca de sua importância social e cultural.
Outro motivo, e mais específico, para um não reconhecimento dos quadrinhos como arte, embora não perceptível
facilmente, pode estar vinculado a todo o envolvimento que
o ser humano teve com o despertar do racionalismo cartesiano e a diminuição do valor dado às imagens desenhadas,
como já se mencionou. Mas, além disso, uma elitização da
vida burguesa, buscando distanciar-se da plebe, como asseverou Costa (2002), pode ter motivado tal preconceito, num
processo iniciado no Renascimento e que se estendeu até a
Modernidade, aproximando-se das maneiras da nobreza. Isto
60
Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
se deflagrou por novas atitudes, novos modos de se vestir e
falar, elitizando-se, assim, e excluindo as outras modalidades
da cultura popular.
Nesse sentido, Costa (2002) reflete que a Modernidade expôs a burguesia a uma forma de ser e pensar calcada essencialmente na escrita individual e silenciosa, tornando o racionalismo a prática mais aceita e legitimada, que era acessível
apenas aos que desfrutavam de uma posição social que permitia a educação letrada, excluindo-se artesãos, camponeses,
comerciantes e mulheres, que continuavam numa cultura oral
e proletária, vivenciando as crenças, fábulas, lendas e demais
narrativas ficcionais.
Por tudo isso, é provável que as histórias em quadrinhos,
apesar de na atualidade estarem sendo em igual monta editadas em formatos de livros para o mercado livreiro, por terem
sido muito próximas da cultura popular em forma e conteúdo
- revistas impressas em tiragens grandes e de valor acessível,
bem como conteúdos de imagens aliadas a textos coloquiais
na maioria das vezes -, configuraram-se num prato cheio para a
desculpa “burguesa” de que são materiais de qualidade baixa.
Também o estabelecimento de uma arte atrelada apenas ao
fazer artístico, ou apenas ao que se institucionalizou chamar
de belas-artes, como bem advertiu Shusterman (1998), além de
limitar os conteúdos, impediu que outras formas de expressão
mais recentes pudessem ser vistas como arte, como no caso
das histórias em quadrinhos autorais.
Mas o conceito de arte vem do latim: ars, artis que significa maneira de ser ou de agir (HOUAISS), e conforme Rohden
(1985), deriva do verbo latino ágere, agir. E Shusterman (1998)
alerta que as designações gregas anteriores referiam-se à arte
como techné (de onde derivou o termo técnica) e poiésis, significando basicamente criação. Para ele, a definição de arte foi
preponderante para a história da humanidade, e afetou o começo da filosofia ocidental, surgida na cultura antiga de Atenas, na
Grécia. Dessa forma, um princípio da divisão racional começou a
se estabelecer naquela época, desde que a filosofia foi tida como
fonte superior de sabedoria, opondo-se assim à arte. A filosofia
se ergueu então, com Platão e Sócrates, como uma supremacia
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intelectual dirigida, contrária aos sofistas e retóricos e também
aos poetas, já que, segundo Shusterman (1998) eram estes que
melhor retransmitiam as tradições sagradas. Dessa forma, Platão
condenou a arte como sendo ilusória e afeita ao irrealismo, temendo que ela prejudicasse a ação humana. O filósofo concebia
que o artista se ligava ao público numa corrente de “possessão
divinizada”, cuja fonte eram as musas. Aristóteles, por sua vez,
separou o fazer artístico da ação concreta, apresentando a arte
como uma atividade racional de fabricação externa, a poiésis. Tal
atividade concebia um objeto por meio de uma habilidade técnica
(techné), diferenciando-se da atividade prática (práxis: ação, logo,
arte). Porém, a experiência estética e a fruição contemplativa da
arte não se limitam ao que se convencionou historicamente chamar de arte. Shusterman adverte que a estética e a fruição são
encontradas em várias atividades, tais como nos esportes, nos
rituais, na ornamentação doméstica e corporal, na decoração, na
mídia popular etc. Os argumentos em defesa de uma arte per
si, cuja estética está limitada às convenções artísticas, preza que
a experiência estética não seria possível sem a prática artística.
Assim, Shusterman crê que o termo “estética” - de raiz grega - foi
concebido no século XVIII como parte da diferenciação cultural
entre ciência, práxis e arte, originando o conceito moderno de
arte apenas atrelado às belas-artes. Porém, segundo o mesmo autor, são proposições falsas, pois, a fruição e a estética preexistem
a uma questão prática e também a um conceito: já não havia a
estética nos sentimentos humanos antes que se tenha sido criado
o termo “estética”? Assim, não se pode limitar e definir a arte
apenas atrelada ao conceito de belas-artes: separar a arte dos
outros envolvimentos e concepções não ligadas diretamente ao
que se convencionou como belas-artes e ainda pretender que os
artistas elaborem obras fora de um contexto da realidade intrínseca da vida, foi uma falha do processo fragmentário da ilusão
cartesiana (racional), que serviu apenas para isolar a arte da ação
social e política do cidadão que faz parte de uma polis (cidade), e
que nela influi em todos os sentidos. Alguns estudos e teses atuais põem em cheque esta deliberação dogmática que a arte tem
sido referenciada, inclusive pelo meio acadêmico. Arslan (2008)
destrincha essa questão, abordando que
62
Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
A concepção do estético na contemporaneidade, segundo a ideologia dominante, distante de qualquer pragmatismo, prefere discutir a arte a partir da própria história e não a partir das práticas
artísticas, esquecendo a tensão necessária (entre experiência e
pensamento) para a reflexão cultural.
Na mesma tese de doutorado, Arslan se baseia em vários
autores como Bordieu, Canclini, Hernández e mesmo Shusterman, para desmascarar este preconceito que foi crescendo em
volta ao fazer artístico, à concepção de arte, e que culminou
em segregar a maioria dos cursos de arte (não acadêmicos) e
alunos que, desejosos apenas de extravasar e se permitir trabalhar com suas próprias expressões, aprendendo e apreendendo a vivenciar a arte, são escorraçados e marginalizados por
uma “arte oficial” que existe compulsoriamente em nossas sociedades. Porém, é interessante que na tese da pesquisadora
desfilam momentos teóricos explicitando facetas contra uma
relação distanciada com a arte: arte como expressão (ou manifestação dos sentimentos), arte como técnica (ou como fazer) e
arte como conhecimento: todas possibilidades no rol artístico,
sem que apenas uma das modalidades seja considerada como
arte-mor. Além disso, com base na teoria multicultural e híbrida
da Cultura Visual, traz em alguns momentos, dentro de seus
capítulos na tese referida, as “narrativas visuais”, que são seqüências em fotos narrando algumas considerações abordadas
textualmente (e cartesianamente), modificando o aspecto da
leitura, fazendo com que o leitor experimente além da narrativa
habitual textual e fonético-cartesiana, um pouco da narrativa
imagética, pura, em que seja obrigado a utilizar o potencial
latente de seu hemisfério direito.
Tais tentativas vêm ao encontro de um pensamento mais expandido acerca da arte, como fez Shusterman (1998), em que
define que o papel da arte é oferecer uma expressão integrada
às dimensões corporais e intelectuais humanas que foram separadas durante a condensação do racionalismo fragmentário (hemisfério esquerdo dominando o direito). Isto faz refletir acerca
de uma fruição artística em que a estética seja parte integrante
e natural do processo. Ademais, os símbolos usados pela arte
afetam a alma humana diretamente, tocando-a e comovendo-a,
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enquanto as expressões racionais não têm participação tão ampla nesse processo (Grassi). Neste ponto, a reintegração da arte
também vem ao encontro desta reformulação paradigmática de
uma mente sistêmica, já explicada por De Gregori (1999) acerca do cérebro triádico (ou triuno), a uma melhor culturalização
e crescimento ético e estético do homem. E pensar as histórias
em quadrinhos como arte, é resgatar esta qualidade que foi
erroneamente relegada e banida do rol das artes.
Considerações
A arte, portanto, tem sido colocada como uma forma de
expressão separada do fazer científico e social. Além disso, ainda se estabeleceram diferenças entre arte popular e erudita,
bem como gêneros que seriam artísticos e outros não. Todas
estas divisões remetem a um pensar fragmentário, retomando
De Gregori (1999) e seu conceito de cérebro triuno, em que a
mente central se divide da racional, que igualmente confronta,
ou obscurece, a intuitiva. Em outras palavras, a ciência isolou
a arte; e esta, em si mesma, isolou seus conteúdos mantendo
alguns e expulsando outros (como fez às histórias em quadrinhos). O que se percebe são atitudes entronizadas por uma
mente cindida, fragmentária e que não consegue operar de
modo sistêmico, conforme atuava durante o predomínio de um
pensamento embasado em leis físicas clássicas ou newtonianas.
Apenas com a mudança paradigmática advinda da descoberta da física quântica, em que as estruturas microatômicas se
apresentam dualmente (como partícula corpuscular e/ou onda
intangível), tem sido possível uma reorientação mental, diminuição de preconceitos e até ruptura com uma maneira retrógrada
de se pensar. Além disso, novas teorias cognitivas, embasadas
pela neuroplasticidade cerebral e seus hemisférios, propõem
que a educação deve ser ampla, unindo à ciência as artes, para
um profícuo elaborar neuroplástico e amplo.
Assim, nesta esteira de mudanças, a arte dos quadrinhos,
com suas variadas facetas de gêneros, afinal, está sendo redirecionada de forma distinta na atualidade e ofertada, em muitos
64
Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
países, para o público adulto, como se verificou, no formato
de álbuns, em contrapartida a um arrefecimento de revistas
para o leitor infantil. Este quadro pode estar contribuindo para
uma mudança decisiva na aceitação deste tipo de leitura adulta
panvisual, principalmente por parte de teóricos que anteriormente jamais viram nas histórias em quadrinhos qualquer valor
informacional, e por artistas que sequer lembravam-se da arte
dos quadrinhos; ou quando o faziam, ignoravam-nos quase que
totalmente, como um subproduto minimamente indigno de reflexão.
Portanto, tal literatura imagética, longe de ser apenas um
adendo ou anexo da literatura escrita, é, ao contrário, a base
e essência dessa última, e uma arte autoral própria, com estrutura e linguagem específicas, que auxilia na melhora performática do cérebro neuroplástico, no que concerne ao hemisfério
direito, atinente às imagens e artes em geral, num salutar equilíbrio ao esquerdo (racional), operacionalizado pela porção central (pragmática), contribuindo largamente à formação artística
cultural e educacional humana, de forma íntegra e sistêmica,
conforme se necessita na atualidade.
Referências
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doutorado. São Paulo: ECA-USP, 2006.
ARSLAN, Luciana Mourão. Amadores da Arte: Práticas artísticas em cursos livres de pintura da cidade de São Paulo. Tese
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CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1990.
CASEY, Todd. O Homem misterioso. Wizard Brasil. Ano 2,
n. 13. outubro de 2004, p. 12-18.
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COSTA, Maria Cristina Castilho Cristina. Ficção, Comunicação e mídias. São Paulo: Senac, 2002.
DE GREGORI, WALDEMAR. Os poderes dos seus três cére-
65
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FRANCO, Edgar Silveira. HQTrônicas: do suporte de papel à
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GRASSI, Ernesto. Poder da imagem, impotência da palavra racional: em defesa da retórica. São Paulo: Duas Cidades,
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ROHDEN, Huberto. Filosofia da arte. São Paulo: Alvorada,
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MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do
futuro. Brasília/São Paulo: Unesco/Cortez editora, 2000.
SAENGER, PAUL. A separação entre palavras e a fisiologia
da leitura . In David R. OLSON e Nancy TORRANCE. Cultura Escrita e Oralidade. São Paulo, Ática, 1995.
66
Gazy Andraus
A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional
Gazy Andraus
Professor da UNIFIG, Doutor em Ciências da Comunicação, na área de
Interfaces da Comunicação, pela ECA-USP, mestre em Artes Visuais pelo
Instituto de Artes da Unesp, pesquisador do Observatório de História em
Quadrinhos da ECA-USP e do INTERESPE – Interdisciplinaridade e Espiritualidade, editor e autor independente de histórias em quadrinhos adultas
de temática fantástico-filosófica.
E-mail: [email protected]
67
The text begins presenting the arisen of he philosophical-poetic comics in Brazil. Next it shows de different
expressions which have been used to define the type, at
the same time that it sets the discussion about the construction of its identity. From the contribuition of artists,
scholars and researchers it bulids a definition of philosophical-poetic comics and it tries to identify its main features. In conclusion it suggests that philosophical-poetic
comics can participate in the art-communication-education dialogue in the buliding process of answers to the
problems experienced by the contemporary society.
Keywords: philosophical-poetic comics, Revista Mandala, Revista Tyli-Tyli.
abstrac t
O que são histórias em quadrinhos poéticofilosóficas? Um olhar brasileiro
Elydio dos Santos
NETO
resumo
O texto inicia apresentando o surgimento dos quadrinhos poético-filosóficos no Brasil. Em seguida mostra
as diferentes expressões que têm sido utilizadas para
definir o gênero, ao mesmo tempo em que explicita a
discussão em torno da construção de sua identidade.
A partir das contribuições de artistas, estudiosos e pesquisadores constrói uma definição de quadrinhos poético-filosóficos e procura identificar suas características
principais. Conclui sugerindo que as histórias em quadrinhos poético-filosóficas podem participar, no diálogo
arte-comunicação-educação, dos processos de construção de respostas aos problemas vivenciados na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Quadrinhos poético-filosóficos, Revista
Mandala, Revista Tyli-Tyli.
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Um convite à leitura...
Convido o leitor ou leitora deste artigo a fazer uma pequena “transgressão” e iniciar a leitura deste trabalho pela história
em quadrinhos, intitulada “Parto”, de autoria de Edgar Franco,
publicada no ensaio visual deste número da Visualidades. Ao
terminar de ler procure responder a si mesmo/mesma a seguinte pergunta: Esta história que acabo de ler é, de fato, uma
história em quadrinhos? Mas onde estão os tão famosos balões? E os diversos e diferentes requadros que existem em uma
página? É possível que em uma HQ possam existir páginas com
um único requadro que se identifica com a própria página? E
quanto à temática? Há público para uma temática de reflexão
tão séria, envolvendo aspectos filosóficos e éticos da existência humana, numa linguagem que é considerada quase sempre
como de entretenimento? Não é uma HQ muito curta para o
tamanho do problema que se propõe a refletir?
Assim como Edgar Franco outros artistas têm criado HQs
com estas mesmas características e tais histórias vêm sendo definidas de forma diferente pelos vários autores que sobre ela
se debruçam: HQs poéticas, HQs filosóficas, HQs de fantasia
filosófica ou HQs poético-filosóficas.
O objetivo deste trabalho é examinar a origem deste gênero
de HQs no Brasil, definir suas características principais e apontar para as implicações de sua produção nos limites das artes,
da comunicação e da educação. Optei, mesmo correndo certos
riscos, em transcrever citações, ainda que longas, sempre que
julguei importante registrar um depoimento ou então fragmentos de artigos que foram publicados em revistas de histórias
em quadrinhos e outros materiais bibliográficos que não são de
fácil acesso. Compreendo que esta é uma maneira de recolher
de forma mais sistematizada um rico material que se encontra
atualmente disperso.
1. Quando e com quem surgiram os quadrinhos
poético-filosóficos no Brasil
70
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
Desde o final da década de 1980 um grupo de artistas no
Brasil vem elaborando uma produção no campo dos quadrinhos
chamada por alguns de “quadrinhos poéticos”, por outros de
“quadrinhos poético-filosóficos” e, por outros ainda de “fantasia filosófica” ou “quadrinhos fantástico-filosóficos”. São representantes conhecidos e significativos deste grupo de artistas:
Flávio Calazans, Edgar Franco, Gazy Andraus, Henry e Maria
Jaepelt, Wally Viana, Joacy Jamys, Luciano Irrthum, Eduardo
Manzano e Antonio Amaral.
Figura1 - Capa do Barata 8
F i g u r a 2 - C a p a Ty l i - Ty l i 1
De acordo com Franco (1997) Calazans pode ser considerado como um dos precursores no Brasil deste quadrinho de
fundo filosófico. Foi por muitos anos editor do fanzine Barata
e está na origem de produções editoriais que abriram espaço
para os quadrinhos filosóficos. O fanzine Barata (figura 1) e a
revista Tyli-Tyli (figura 2) são dois exemplos expressivos. No Barata possibilitou que autores como Gazy Andraus (figura 3)
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F i g u ra 3 - H o m e n s A r m P a z - G a z y A n d ra u s
Figura 4 - Anomalia - Edgar Franco
e Edgar Franco (figura 4) pudessem não apenas mostrar sua
produção, mas também se conhecer e construir novos caminhos no campo dos fanzines e dos quadrinhos. Em depoimento
a mim concedido, Gazy Andraus revela que conheceu Flávio Calazans entre o final de 1986 e início de 1987, e que este encontro foi importante para sua constituição como desenhista de
tendência poético-filosófica. Nas palavras do próprio Andraus
(2007a, p. 2):
Desenhei bastante também em Goiânia, durante um ano e meio,
período em que fiquei lá, mas quase não fazia histórias em quadrinhos, tendo voltado depois ao Estado de São Paulo, reiniciando o
curso de Artes na FAAP. Pouco antes disso, no final de 1986 para
o início de 1987, retomei os quadrinhos. Aconteceu dessa forma:
eu estava desestimulado com o curso (em Goiânia) porque havia
muita greve, e também estava meio sem vontade de fazer HQs
72
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
com super-heróis. Então, num dos retornos a São Vicente (cidade
onde resido), conheci o Flávio Calazans num sebo de Santos. Ele
se apresentou e me convidou para participar do fanzine “Barata”
que editava em cooperativa com seus amigos do curso de publicidade da UNISANTOS. As HQs do Barata eram bem diferentes do
mainstream.
Foi com esse estímulo que reiniciei a fazer histórias em quadrinhos, e logo na terceira HQ que fiz, meu estilo que misturava
poesia e espiritualidade numa estética diferente, já principiou a
aparecer.
Ao lado da história de sua produção pessoal, que tomou
novos rumos e ampliou-se a partir de suas publicações no Barata em 1987, Gazy Andraus (2008c), em seu conjunto de textos sobre sua memória de vida sob o enfoque visual, relembra
como foi seu encontro com Edgar Franco por meio do mesmo
fanzine editado por Calazans:
Em 1992, logo após o término de minha faculdade, minha mãe
falecera de ataque cardíaco, corroborado pelo exagero do fumo
de cigarros.
Pouco depois desse período, um fato curioso se deu: encontrei
uma HQ no número 17 do “Barata”, muito similar a meu estilo.
Ela se chamava “Progéria Interior” e era assinada por alguém que
eu não conhecia: Edgar Franco. Qual não foi minha surpresa ao
me deparar com o endereço do autor: ele indicava a cidade de
Ituiutaba, em Minas Gerais, a mesma que eu nasci.
Quando escrevi para ele, descobri que morava em Brasília cursando arquitetura na UNB, mas nas férias sempre voltava à sua cidade natal, coincidentemente, a minha. Pois marcamos de nos
conhecer numa das férias, o que acabou por angariar uma sólida
amizade, em que nos tratamos até como “irmãos”. Edgar, apesar
de ser 5 anos mais novo que eu, e nunca ter visto meu trabalho
antes, elaborava HQs similares a mim, de conteúdo complexo, filosófico, mas de número de páginas reduzido. Nosso estilo acabou,
depois, sendo reconhecido por Fantasia Filosófica.
Isto se deu da seguinte forma: resolvemos criar um fanzine único
em dupla, chamado “Irmãos Siameses”. Fizemos o lançamento,
inclusive, no mês de junho de 1994 na Gibiteca de Santos. Tiramos umas 50 cópias xerocadas do zine, e depois dividimos o que
restou, após o lançamento.
Ele continha várias histórias nossas: a primeira era dele, e a última minha, sendo que as do miolo se alternavam em roteiros
meus com desenhos dele e vice-versa. A coincidência é que tanto
73
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a primeira como a última HQs tinham um enfoque temático e estrutural muito similar: é como se cada um de nós, sem termos conhecimento prévio, tivéssemos realizado uma HQ igual, cada qual
com seu estilo! Isto me chamou tanto a atenção que lhe disse que
ambas as histórias tinham que iniciar e finalizar o fanzine.
Depois, mandamos uma cópia para o evento realizado anualmente em Ourense, na Espanha galega. Lá, seu organizador, Henrique
Torreiro nomeou nosso trabalho de “fantasia filosófica autêntica”, de onde acabamos
por utilizar tal nomenclatura
como o estilo por nós realizado: roteiros curtos, condensados como hai-kais, e arte vanguardista1.
Calazans é, pois, um nome
importante para a constituição
do gênero poético-filosófico
no Brasil, seja por seu trabalho
como editor no fanzine Barata
ou pelas HQs filosóficas que ele
próprio escreveu e desenhou
(figura 5). Henrique Magalhães
(2004, p. 46-49) confirma esta
afirmação em texto de sua autoria sobre os vários grupos
que publicavam fanzines entre
as décadas de 1980 e 1990:
Figura 5 - Calazans
Desses grupos, um que muito se sobressaiu foi a Cooperativa Barata, capitaneada por Flávio Calazans, editor da revista Barata.
Com coerência e sempre reunindo um bom time de participantes,
a Barata – que, lembramos está mais para uma revista independente que para um fanzine – manteve-se firme em sua proposta
durante quase todo o percurso.
Apenas no final da década de 1990 os membros da Cooperativa
Barata deram sinal de saturação e perderam um pouco do prumo.
(...) Enfim, o grupo encerrou suas atividades com o número 26 da
revista Barata, de outubro de 2000, após 21 anos de produção.
Apesar desse desfecho melancólico, a experiência da Cooperativa
Barata pode servir de exemplo a outros grupos que desejem fazer um trabalho dentro do espírito coletivo e bem mais estrutura74
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
do. (...) Com espírito crítico e irrequieto, por vezes polêmico, Calazans notabilizou-se, também, pela edição de álbuns. No início
dos anos 1990, lançou com Paula Prata, Absurdos: quadrinhos
sob hipnose, uma obra que marcaria seu processo espontâneo
de criação. Calazans radicalizou na concepção da obra, realizando-a sob hipnose. (...) Outro trabalho não menos significativo foi
o álbum Guerra das Idéias. Nesta obra já clássica da produção
independente brasileira, temos um verdadeiro tratado libertário
que conta de forma sintética e provocadora a história das lutas da humanidade, confrontando as idéias revolucionárias aos sistemas estabelecidos. Ainda,
dentro da produção calazanista – como
ele mesmo denominou sua obra –, temos A Hora da Horta, um libreto que
reconta os primórdios da história do
Brasil, por ocasião das comemorações
dos 500 anos do descobrimento.
As HQs poético-filosóficas, por
seu caráter autoral e não-comercial,
encontraram seu espaço mais adequado de publicação nos fanzines,
editados e publicados pelos próprios autores, mas chegaram a ter
também revistas independentes. É
o caso da revista Tyli-Tyli 2 que posFigura 6 - Mandala
teriormente, a partir do número 9,
passou a chamar-se Mandala (figura 6). Ambas foram publicadas pela Editora Marca de Fantasia,
tendo como editor Henrique Magalhães 3 (2004, p. 57-58),
que explica porque aconteceu a mudança da revista:
A revista Tyli-Tyli congregou toda uma nova geração de quadrinhistas, que inspirados nos “quadrinhos poéticos” passaram a
produzir suas histórias de forma muito pessoal e experimentando uma estética diferenciada dos quadrinhos convencionais.
Com o afluxo de novos autores e diversidade de expressão, a
revista deslocou-se de sua inspiração original vinculada à obra
de Calazans e mudou de nome para Mandala, tornando-se mais
abrangente. Esta revista trouxe uma auto-reflexão sobre o conceito de “quadrinhos poéticos”, procurando definir suas diretrizes.
75
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
O caráter não popular dos trabalhos poético-filosóficos, a
exigir também um leitor diferenciado, criou dificuldades para
a continuidade da revista Mandala, como explica Henrique
Magalhães em entrevista a mim concedida (2007):
Com o tempo os quadrinhos poéticos passaram a ser muito herméticos, a representar uma viagem muito interiorizada dos autores. Ao mesmo tempo, vinham embasados cada vez mais numa
bibliografia centrada nas novas tecnologias. Alguns quadrinhos,
para serem entendidos, tinham que trazer um texto explicativo
sobre cada referência. Isto complicou demais e até tirou a força
comunicativa da linguagem dos quadrinhos, que é contar uma
história em seqüência. Os leitores se afastaram ou perderam
interesse pelo gênero, restando um círculo de alguns autoresleitores.
Apesar de minha insistência em continuar produzindo a revista,
a procura foi diminuindo na medida em que aumentava o número de autores-colaboradores, o que me levou a crer que a publicação não estava saindo de seu restrito círculo. A última edição,
número 13, não teve compradores, o que fez perder o sentido a
continuidade de sua produção.
Outro fator foi a falta de periodicidade. Como a Mandala era
uma produção independente, voltada para o meio dos leitores
de fanzines, a distância de uma edição a outra fez com que os
leitores perdesse o interesse pela publicação. Creio que isto ocorre com todas as publicações seriadas no meio independente. Preferi partir para a edição de livros e álbuns, que são trabalhos
fechados em uma edição e não dependem de periodicidade.
Além das revistas Tyli-Tyli e Mandala a Editora Marca de
Fantasia publicou também álbuns contendo especialmente trabalhos poéticos ou filosóficos: Guerra das Idéias, de Flávio Calazans, foi publicado em 1997 e em 2001; Ternário M.E.N., de
Gazy Andraus, em 2001; Agartha, de Edgar Franco, em 2002;
Guerra dos Golfinhos, de Calazans, em 2002; Transessência:
transcendendo a essência, de Edgar Franco, em 2003 e Elegia, também de Edgar Franco, em 2005. Acompanha Elegia
um CD com a leitura musical da HQ criada por Edgar Franco,
sendo as composições de autoria de Grim e Naberius, músicos
da Banda de Black Metal Sinfônico “Eternal Sacrifice”.
É importante lembrar que além destes artistas acima desta76
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
cados há outros, menos conhecidos talvez, mas também com
produção no gênero e que tiveram espaço para apresentação de
seus trabalhos junto às publicações da Editora Marca de Fantasia. Entre outros, podem ser citados Érika Saheki, Ivânia Cristina,
Jefferson Camargo, Al Greco, Rosemário, Michel, Nuno Nisa Reis,
Rafael Lopes, Manoel Macedo, Norival Bottos Júnior, Lavoisier,
Caique, Whisner, Soter Bentes, André Marron Gavazza, Flávio Rafael, Fabio Mor, Murilo Rufião e André Marron.
A Comix Book Shop publicou, em 1996, a Brasilian Heavy Metal e nela tiveram espaço para publicação alguns autores
de quadrinhos poético-filosóficos: Antônio Amaral, Flávio Calazans, Gazy Andraus, Edgar Franco e Luciano Irrthum.
Wellington Srbek publicou em 2001, com a Lei de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo
Horizonte, o álbum Quantum,
com texto de sua autoria e desenhos de Fernando Cypriano, Leonardo Muniz e Luciano Irrthum.
O trabalho, de modo especial
pela temática reflexiva e filosófica, e também pela narrativa curta e criativa (embora mais longa
do que aquilo que habitualmente
se vê no gênero), pode ser considerado como sendo do gênero
poético-filosófico.
A Opera Graphica Editora publicou no ano de 2003, com texto
de Edgar Franco e arte de Mozart
Couto, o álbum BioCyberDrama
(figura 7), na coleção Opera Brasil, no qual Franco, como roteiFigura 7 - biocyberdrama
rista, apresenta com maiores detalhes, inclusive em texto introdutório à HQ, seu universo ficcional da aurora pós-humana. A mesma editora, em parceria com
Edições Pulsar, publicou também Hipocampo: 3a. Ocorrência
(s/d), de Francisco Amaral (figura 8).
Também Edgard Guimarães4 deu uma contribuição
77
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
importante para a divulgação do novo gênero no campo dos
quadrinhos, de acordo com o relato de Andraus5 , que publicou com ele o seu importante trabalho Homo Eternus (1993a,
b,c,d):
Porém, antes mesmo de conhecer o trabalho de quadrinhistas que
faziam HQs similares, como
Edgar Franco, eu fui motivado por Calazans a produzir uma auto-edição, para
ser co-editada e publicada
pelo Edgard Guimarães,
(não confundir com Edgar
Franco, e nem com Henrique Magalhães) em seu,
então IQI – Informativo de
Quadrinhos Independentes.(...) Este “Homo Eternus”, como uma quadrilogia, tinha também uma
capa especial para a edição
encadernada, caso o leitor
preferisse depois, em lugar
de adquirir os volumes em
separado. O IQI trazia divulgado um volume a cada
bimestre e o encadernado
após a divulgação dos 4
volumes. Para o prefácio
convidei Guimarães e CaFigura 8 - Hipocampo
lazans, e fechando cada
volume, inseri dois textos
meus que sintetizavam os objetivos do “Homo Eternus”. A receptividade foi boa, pois aos poucos os leitores amantes de HQs e fanzineiros foram começando a reconhecer meu trabalho e estilo, que
mescla a linguagem das HQs à uma poeticidade haikaizada e condensada. Cada vez mais era convidado a participar com trabalhos
meus em outros zines, como “Barata”, “Bifa”, “Ideário”, “Phobus”,
“Tchê” etc.
Hoje a SM Editora, cujo editor é José Salles, que tem sua sede
em Jaú (SP), vem abrindo espaço para os quadrinhos poético-filosóficos. Edgar Franco já publicou dois números da revista Arlectos
e Pós-Humanos por esta editora nos anos de 2006 e 2007.
78
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
Distante do grupo de autores que vem publicando os quadrinhos poético-filosóficos, mas muito próximo da proposta poética e filosófica do grupo, Marcelo Campos6 publicou no ano de
2007, pela Editora Casa 21 do Rio de Janeiro, o álbum de tiras
Talvez Isso... (figura 9), que sem explicitar a intencionalidade de
uma reflexão filosófica a permite abundantemente ao longo das
70 tiras nas quais colocou a criatividade e a competência técnica
de um desenhista experiente. Gazy Andraus concorda que este
trabalho de Campos pode ser considerado do gênero poético-filosófico (Andraus, 2008).
As HQs poético-filosóficas ainda são pouco conhecidas no
Brasil, embora em 2007, a revista Língua Portuguesa, de São Pau-
Figura 9 - Talvez isso
lo, em trabalho assinado por seu editor Luiz Costa Pereira Junior,
tenha dedicado uma extensa matéria, intitulada “Poesia em quadrinhos”, ao estudo deste gênero fazendo referências ao trabalho
de Henrique Magalhães como editor, e aos trabalhos dos artistas
Edgar Franco, Antonio Amaral, Flávio Calazans e Gazy Andraus.
2. As diferentes formas de expressão para definir o
gênero
Entre os artistas, estudiosos e pesquisadores do gênero poético-filosófico não há uma unanimidade quanto à expressão
mais adequada para a caracterização do mesmo. Em fevereiro
de 1995, no número 01 da revista Tyli-Tyli, seu editor, Henri79
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
que Magalhães (1995, p. 2), no editorial utiliza as expressões
quadrinhos esotéricos, filosóficos ou poéticos para referir-se ao
gênero que aquela revista começava a publicar:
Os quadrinhos brasileiros são ricos em seu universo criativo. Dos
quadrinhos infantis, tão difundidos, ao terror, do humor debochado aos super-heróis. Desta forma, tem surgido já há alguns anos
um gênero de quadrinhos que não encontra espaço para publicação que nos fanzines e revistas alternativas ou independentes:
são os quadrinhos esotéricos, ou filosóficos, ou poéticos, tão bem
representados pelo trabalho de Flávio Calazans, Gazy Andraus,
Edgar Franco, Joacy Jamys e tantos outros. Com a revista Tyli-Tyli
(dedicada à personagem homônima de Calazans) estamos criando
um espaço onde todos estes novos autores poderão dar vazão a
seus quadrinhos reflexivos.
No artigo da revista Mandala, nº 13, de Junho de 2001,
Magalhães utiliza a expressão “Quadrinhos Poéticos” para referir-se ao gênero em questão:
Os quadrinhos ditos poéticos têm como princípio a liberdade de
expressão incondicional visto que fluem da subjetividade mais intrínseca do autor. Mais que qualquer outro gênero de quadrinhos,
os poéticos, procuram produzir as reflexões, os questionamentos,
as inquietações do artista de uma forma muito pessoal e diferenciada do senso comum. Isto é o que torna o poeta por vezes um
visionário, um sujeito que enxerga outras nuanças da realidade.
(2001a, p. 19).
Em entrevista a mim concedida (2007) explicou porque optou por utilizar esta expressão:
Elydio: Por que você prefere a expressão quadrinhos poéticos e
não quadrinhos poético-filosóficos?
Henrique Magalhães: No início, quando ainda não tínhamos uma
definição para o gênero, eu costumava chamá-los de quadrinhos
poético-filosóficos, porque no geral eles tratavam de questões
metafísicas, introspectivas e oníricas. Mas sempre achei o termo
meio vago e muito abrangente. A filosofia requer um pensamento
mais estruturado, quando a maioria dos quadrinhos me parecia
muito subjetivos, como expressão de uma visão mais para o devaneio que para o rigor filosófico. Desse modo, dada a liberdade expressiva textual e gráfica dos autores, considerei que eles estavam
80
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
mais próximos da linguagem poética que filosófica. Considerá-los
apenas quadrinhos poéticos não diminui sua importância, apenas
lhes dão uma dimensão mais impressionista, mais pessoal.
Esta é também a expressão utilizada por Edgard Guimarães
em seu artigo “Reflexões sobre Quadrinhos Poéticos” (2001, p.
17): Diversas considerações devem ser feitas inicialmente sobre
os “quadrinhos poéticos”, ou seja, sobre essa “mistura” de histórias em quadrinhos e poesia.
Henrique Torreiro, organizador da Xornadas de Banda Deseñada de Ourense (Espanha) e da Expofanzines, catálogo de
1997, p. 15, utiliza a expressão “fantasia filosófica” para referir-se ao fanzine Irmãos Siameses, de Edgar Franco e Gazy
Andraus. Este mesmo catálogo, quando se refere ao trabalho
Homo Eternus, de Gazy Andraus, adjetiva-o de cómics filosóficos.
Na mesma direção de Torreiro, Gazy Andraus prefere utilizar a expressão quadrinhos fantástico-filosóficos como explicita
em entrevista a mim concedida no ano de 2007:
ELYDIO: São utilizadas várias terminologias aparentemente sinônimas: quadrinhos poéticos (Henrique Magalhães), quadrinhos poético-filosóficos (Edgar Franco), quadrinhos de fantasia filosófica
(Catálogo da Expo Fanzines de Ourense, Espanha). Qual você considera mais adequada ao tipo de quadrinhos que você produz?
GAZY: Talvez HQs Fantástico-filosóficas, mesmo. Acho que revela
a fantasia, mas ao mesmo tempo a seriedade, a busca da sabedoria, e a espiritualidade inerente. E abrange mais do que se fosse
HQ espiritualista, só por causa dos preconceitos concernentes às
questões de ordens espirituais. A abordagem do termo “filosofia”
evita tal preconceito, e pode atingir mais pessoas.
As evidências das publicações mostram que foi Edgar Franco, em seu artigo no livro “As histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e Prática”, de 1997, organizado por Flávio Calazans,
que utilizou pela primeira vez a expressão poético-filosófico
ao denominar uma das linhas do que chamava de quadrinhos
subterrâneos no Brasil como “linha poético-filosófica” (Franco,
1997, p. 54). Em correspondência eletrônica trocada comigo,
81
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quando indagado sobre a criação do termo poético-filosófico,
Franco (2008) respondeu o seguinte:
Na verdade o termo quadrinhos “Poético-filosóficos” foi criado
por mim para o artigo que saiu no livro “As histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e Prática”, de 1997 - defini a linha “poéticofilosófica” lá. Detalhe importante é que o artigo foi escrito em
1995 para um número do zine DROWNED que não foi lançado.
Então eu reformulei para o formato que está no livro e apresentei no Intercom de 1996 em Londrina, Calazans reuniu os artigos
apresentados no GT de quadrinhos de 96 no livro que foi lançado
em 1997.
Franco utiliza a mesma expressão em artigo intitulado “História em Quadrinhos Redondos”, publicado na revista Mandala,
número 13, de Junho de 2001, quando apresenta sua visão
sobre o que sejam os quadrinhos poético-filosóficos:
A primeira maneira encontrada para tentar classificar esses trabalhos foi chamá-los de poéticos, pois foi feito um paralelo com
a literatura, ou seja, os quadrinhos tradicionais estariam para a
prosa assim como os quadrinhos ‘poéticos’ estariam para a poesia, como todo rótulo, esse certamente foi insuficiente para classificar a abundância e diversidade dessas manifestações que não
passariam despercebidas até ao mais desatento leitor que acompanhe o cenário de quadrinhos alternativos brasileiros. (...) Todos
estes quadrinhistas possuem suas singularidades, mas algumas
das características de seus trabalhos podem reuní-los num grupo
que como disse anteriormente convencionou-se chamar de quadrinhistas poético-filosóficos, anexando a palavra filosófica ao rótulo
por verificar que a maioria deles também apresentava trabalhos
com a pretensão filosófica de levar o leitor a refletir sobre alguma
questão existencial, citando inclusive filósofos, além de poetas.
(p. 14).
Como os textos anteriores sugerem, Edgar Franco prefere
a expressão quadrinhos poético-filosóficos e na mesma correspondência acima citada (2008) explica porque a considera mais
adequada que os termos fantasia filosófica ou quadrinhos poéticos:
Sobre “fantasia filosófica”
É um termo que gosto muito também, mas ele é menos abrangen-
82
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
te ao meu ver. O meu trabalho e o de Gazy se encaixam perfeitamente nessa terminologia, mas algumas HQs de Calazans, Joacy e
mesmo de Amaral não podem ser consideradas HQs de “fantasia”
então acredito que HQs poético-filosóficas é mais abrangente. Em
uma classificação eu diria que a “fantasia filosófica” é um dos
sub-gêneros das HQs “poético-filosóficas”.
Sobre a expressão “quadrinhos poéticos”
É mais abrangente ainda, no entanto ampla demais. O aspecto
“filosófico”, questionador fica de fora, a principal característica
das HQs poético-filosóficas é sua pretensão filosófica, levar o leitor a refletir sobre temas específicos, não são simples exercícios
líricos de poesia quadrinhizada (é claro que existem casos assim,
mas...).
E ainda, no mesmo texto (2008), explicita sua compreensão
do termo poético:
Sobre o termo “poética”
Vejo a poética mais no aspecto aristotélico, de “devir” (diretamente conectada ao aspecto filosófico) - de possibilidades de vir a
ser, mas no sentido de poíesis também é interessante: o ato criativo!!!! Então, para mim, a somatória de devir e criação = poética.
Uso em minha tese de doutorado também o termo poética (para
definir as poéticas prospectivas das ciberartes) e lá eu defendo o
meu ponto de vista assim (trecho da tese página 110 - capítulo
III):
Aristóteles, em sua Poética, ao definir o ofício do poeta, enfatiza o devir que envolve a atividade poética, destacando a universalidade da arte e seu valor filosófico superior ao dos relatos históricos. Sua visão da função poética-artística nos remete
ao caráter antecipatório da FC explicado pelo “deslocamento
conceitual” proposto por P.K. Dick e relatado no capítulo II:
Não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim,
o de representar o que poderia acontecer, quer dizer, o
que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por
escreverem verso ou prosa (...) diferem, sim, em que diz
um as coisas que sucederam, e o outro as que poderiam
suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o
universal, e esta o particular (ARISTÓTELES, 1987, p. 209).
No contexto de minha definição das poéticas ciberartísticas prospectivas, utilizo o termo “poética” para referir-me aos métodos
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operacionais utilizados pelos ciberartistas, que envolvem sempre o
ferramental das novas tecnologias, sobretudo: telemática, robótica,
biogenética e nanoengenharia; mas também no sentido aristotélico
de poética, segundo o qual a poesia é universal e envolve o devir,
aquilo que pode “vir a ser”.
Pessoalmente prefiro a denominação quadrinhos poético-filosóficos e considero a fundamentação de Edgar Franco, no que
diz respeito à poética e à filosofia, bastante pertinente, motivo
pelo qual é o termo por mim escolhido para referir-me ao gênero
que aqui está sendo estudado. Cabe, no entanto, uma melhor
explicitação do que entendo por filosofia ou reflexão filosófica.
Compreendo a reflexão filosófica como uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas da realidade que
ameaçam nossa existência (SAVIANI, 1983), mas que não precisa, entretanto, ser construída necessariamente segundo o viés
acadêmico. Há os que acreditam que somente é possível fazer
filosofia na academia. Sem dúvida a academia é um espaço favorável à elaboração filosófica, mas não o único e nem necessariamente o melhor. Claro está que quem se dispõe a fazer filosofia
na academia terá que estar atento aos padrões deste contexto
que, em alguns casos e infelizmente, chegam a ser dificultadores
para a reflexão filosófica. No entanto, é necessário lembrar que
é possível construir a reflexão filosófica fora de tal contexto. De
acordo com Palácios (1997, p. 33):
Há outras condições para fazermos filosofia: ter espírito crítico, imaginação e poder argumentativo. Espírito crítico para não aceitar de
mãos beijadas tudo o que nos é dito ou tudo o que lemos; imaginação para estar em condições de achar soluções saídas do labirinto
em que nos encontramos e poder argumentativo para fundamentar
racionalmente nossas intuições. Em outras palavras, nos comportarmos na filosofia como o fazemos como seres normais: avaliar o que
escutamos ou vemos ou lemos, pensar se concordamos, avaliar, refletir e decidir as coisas por nós mesmos, como pessoas adultas que
não precisam ser conduzidas pelas mãos de outros adultos.
Podemos, portanto, estar em condições de filosofar mesmo antes
de saber que o fazemos.
Palácios (1997, p. 63) sugere ainda que este exercício de
84
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
reflexão exige a expressão daquilo que está dentro de nós:
‘Procurei a mim mesmo’, diz Heráclito. Pois façamos isto. Procuremos a nós mesmos, escrevamos o que está dentro de nós, o
que nós mesmos pensamos. (...) Temos as condições intelectuais
para isso, não temos? Usemo-las e ousemos. Que diferente ir a
um congresso de filosofia no qual só se falasse o que cada um
pensa, que expusesse o fruto das próprias pesquisas, do próprio
trabalho, sem comentários, sem enésimas leituras; um congresso
em que cada um tivesse a coragem de se expor e de dizer quem
está certo e quem está errado e porque; dizer, também, porque o
próprio expositor está certo.
Assim o exercício da reflexão filosófica, exercido com radicalidade, dentro ou fora da academia, pode contribuir com a
formação de seres humanos com capacidade de autonomia e
de autoria. Se pensarmos que estamos num país que precisa
que seus cidadãos se assumam como autores de sua própria
história, então teremos clareza da urgência da tarefa filosófica,
como na perspectiva aqui sugerida.
Penso que as histórias em quadrinhos poético-filosóficas podem provocar este tipo mais aberto de reflexão filosófica e desta forma contribuir com o processo de constituição do modo de
ser humano e brasileiro diante das exigências problemáticas do
mundo contemporâneo.
3. O que são histórias em quadrinhos poéticofilosóficas?
A seguir apresento uma tentativa de definição de alguns
aspectos que definam as histórias em quadrinhos poético-filosóficas considerando, de modo especial, as visões de alguns
artistas, estudiosos e pesquisadores das mesmas. É importante
frisar que o empenho por definir apropriadamente o gênero
manifestou-se, pela primeira vez, nas páginas da revista Mandala em pequenos estudos coordenados por Henrique Magalhães
a partir de uma correspondência enviada por João Antônio
Buhrer D’Almeida, em 04 de junho de 1998, conforme relata o
próprio editor (Magalhães, 2000), e na qual João Antônio fala85
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va da necessidade de uma discussão mais ampla sobre o tema.
A seguir recolho, entre outros, algumas das contribuições que
foram publicadas nas páginas daquela revista.
3.1. O que dizem artistas, estudiosos e pesquisadores?
Edgar Franco, artista e pesquisador, assim define o que chamou, em 1997, de linha poético-filosófica dos quadrinhos subterrâneos no Brasil:
Quadrinhistas que passam mensagens filosóficas e questionamentos existenciais em seus trabalhos, muitas vezes lançam mão de
textos poéticos de sua autoria ou de outrem como roteiro para
suas HQs. Nem sempre têm compromisso com a linearidade da
narrativa, além disso, são caracterizados por muito experimentalismo no enquadramento e no traço. (1997, p. 54)
Para Franco, portanto, dois aspectos basicamente definem as histórias em quadrinhos poético-filosóficas: 1. O fato
de apresentarem uma intencionalidade filosófica ou reflexiva e
também poética; 2. O trabalho diferenciado com a linguagem
quadrinhística, expresso na quebra da linearidade narrativa e
no experimentalismo do traço e do enquadramento.
Gazy Andraus, igualmente artista e pesquisador, em seu artigo “HQs fantástico-filosóficas: gênero único no Brasil”, também identifica as duas características explicitadas por Edgar
Franco e acrescenta uma terceira. Para ele (2008a, p.6 – 7) as
histórias em quadrinhos poético-filosóficas tendem a ser curtas,
isto é, apresentam poucas páginas e, às vezes, uma única página, o que pede uma leitura diferenciada do apreciador, ou seja,
uma leitura e uma interpretação menos convencional, menos
cartesiana:
O que os autores de HQs poéticas, ou então, fantástico-filosóficas
fazem, é ir direto à essência de tais buscas humanas, “filtrandoas”, ou canalizando-as diretamente em uma arte “condensada”,
sintetizada, similar à forma dos hai-kais, que torna muitas vezes
difícil o entendimento racionalizado instantâneo do leitor.
Um Hai-Kai tem uma estrutura própria, em que a poesia, métrica,
86
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
rítmica a torna direta, sem que aparente o ser: faz com que a mente do leitor se torne focada, pense mais rapidamente, e conclua
de uma forma muitas vezes “inconclusa”. (...) Reafirmo, porém,
exclusivamente, que a dita “Fantasia-filosófica” tem as características de um koan e/ou hai-kai: uma história de poucas páginas,
de mensagem condensada, em que aparentemente não há uma
narrativa que contemple começo, meio e fim tradicionais, em que
não aconteçam situações dramáticas comuns e sim, mensagens
oriundas de um autor cujo pensar se torna “condensado” e atinge
da mesma forma o leitor.
Geralmente são HQs que precisam de uma preparação melhor dos
leitores, pois que estão acostumados com as narrativas tradicionais com muitos quadrinhos e páginas, que têm uma linearidade
mais clara e abrangente...o cérebro em sua atividade racional se
compraz em tais narrativas já que acostumamo-nos a usar cotidianamente o processamento da razão muito mais do que o da
intuição criativa. E sente dificuldade em “entender” outros tipos
de narrativas, de “lógicas”.
Em entrevista a mim concedida Gazy Andraus (2007) não
nega, mas relativiza a influência de autores europeus – autores
de HQs fantásticas como Caza, Moebius e Druillet – no processo de criação das HQs poético-filosóficas brasileiras, e aponta
o caráter “condensado” dos quadrinhos brasileiros como uma
diferença muito importante em relação aos quadrinhos europeus:
Elydio: Você concorda com a afirmação de que as HQss poéticofilosóficas brasileiras sofreram forte influência da fantasia poética
européia, de modo especial por meio dos trabalhos de Caza, Druillet e Moebius?
Gazy: Sim, mas não consciente, e nem total. Já fazíamos assim
aqui. Uma de minhas primeiras HQs foi “Vil Existência”, que trazia
um estilo artístico similar aos das HQs com um viés narrativo europeu. Isso sem que eu conhecesse o quadrinho europeu direito. (...)
Porém, há uma diferença básica das HQs de lá e as daqui: aqui fazemos HQs curtas, “nervosas” e mais condensadas, e lá, não. Aqui,
isso acontece, acredito eu, devido às idiossincrasias de nosso povo,
afeito à influência mais direta e espiritual do que noutros lugares.
(...) Mas acho que aqui elas são mais incisivas e mais diretas ao
hemisfério direito do cérebro, do que as de lá. Na França, as HQs
non-sense de Moebius têm essa conotação, e algumas antigas de
Caza também. Atualmente, não sei dizer, mas parece que se rende-
87
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ram todos ao mercado, fazendo HQs longas, de epopéias, como os
norte-americanos. A obra de Caza se diluiu e perdeu muito a força
atualmente. Eu vejo as HQs fantástico-filosóficas (assim alcunhadas
por Henrique Torreiro) como a contra-parte dos haikais, na forma
de HQs: mensagens condensadas, visuais-literárias, para quebrar a
mente racional, tal como os koans zen-budistas são utilizados pelos
mestres para trazerem a mente cósmica a seus discípulos.
Henrique Magalhães – pesquisador, editor e desenhista – assim expressa sua maneira de compreender as HQs poético-filosóficas, apontando também para as características da reflexão e do
rompimento com a formalidade dos quadrinhos comerciais como
importantes para a identificação do gênero:
Quando comecei a observar mais atentamente os quadrinhos poéticos vi-os pelo prisma da contestação política, por meio do trabalho
de tendência anarquista de Flávio Calazans. Gazy Andraus e Edgar
Franco já me tinham chamado a atenção pela forte expressão visual inconfundível e incomparável nas HQs brasileiras. Além dos três
autores chaves citados, acrescentaria Wally Viana e Henry e Maria
Jaepelt (...). O ponto comum desses autores é a produção de quadrinhos de caráter muito pessoal, que poderemos considerar como
sendo poéticos e filosóficos, pois aludem às questões mais interiorizadas de cada um. Outro elemento marcante é o rompimento com
a formalidade dos quadrinhos comerciais, com a freqüente eliminação do quadro como limite espacial e pelo fluxo atípico de narrativa. Como exemplo, cito os quadrinhos de Calazans que inúmeras
vezes formam páginas sem hierarquização do texto, podendo ser
lidas sob os mais diversos ângulos. (...) É certo que os quadrinhos
podem prescindir do texto, mas não o contrário: não se concebe
uma história em quadrinhos sem imagens. Portanto, o texto deve
estar vinculado à imagem, complementando-a ou reforçando-a,
sem descrevê-la literalmente. (...) Nesta categoria encaixo as histórias em quadrinhos ‘poéticas’. O texto divide com a imagem a
função da comunicação, tornando-se inseparáveis e complementares. Como ocorre, aliás, com as melhores histórias em quadrinhos,
de qualquer gênero. Não resta dúvida, portanto, que os ‘poemas
ilustrados’ são histórias em quadrinhos e formam um gênero à parte, os “Quadrinhos Poéticos”. Nele, o autor trabalha sua subjetividade, aguçando a percepção do leitor e propondo novas formas
de leitura. Uma leitura centrada na imagem que eventualmente é
complementada pelo texto, que por sua vez apresenta-se repleto
de subjetividade (2000, p. 17-18).
Para Edgard Guimarães (2001, p. 18) a principal caracterís88
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
tica das HQs poético-filosóficas parece estar principalmente na
temática poética e reflexiva:
O ponto principal, no entanto, sobre os quadrinhos poéticos diz
respeito ao conceito mais amplo do que seja poesia. (...) Poesia é
a expressão que toca “a alma” do ser humano, mesmo que não
se possa definir com precisão o que seja “tocar a alma”. Assim o
poeta pode se expressar usando a palavra escrita, tanto em versos
como em prosa, ou usando imagens como o desenho e a fotografia, e obviamente a história em quadrinhos não ficaria de fora
como forma de expressão poética. (...) Os quadrinhos poéticos
incluem, portanto os trabalhos que aparentam ser HQss normais,
mas cujos temas ou desenvolvimentos “toquem a alma”, como
Gaiman em “Sandman”, Hugo Pratt em “A Balada do Mar Salgado” ou Jim Starlin em “A morte do Capitão Marvel7” .
Também eu, em trabalho anterior, localizei na reflexão filosófica uma das principais características do gênero poéticofilosófico:
É importante, pois, deixar claro que as HQs poético-filosóficas têm
como uma de suas marcas principais provocar a reflexão filosófica, não no sentido de gerar, necessariamente, textos rigorosos
como na academia, mas no sentido de convocar uma reflexão
mais aprofundada, na perspectiva das subjetividades de seus autores, sobre alguns aspectos da condição humana (SANTOS NETO,
2007, p. 4).
3.2. Definição e caracterização das histórias em
quadrinhos poético-filosóficas: um esforço de síntese
A partir do quanto foi trazido aqui, como contribuição dos
vários artistas e estudiosos do tema, é possível afirmar que histórias em quadrinhos poético-filosóficas são aquelas que apresentam, de maneira explícita em sua arte, a intenção de que
seja feita uma reflexão poética, enquanto aberta criativamente
ao contínuo movimento da vida, e filosófica, enquanto provocação a um pensar aprofundado sobre a condição humana. As
histórias em quadrinhos poético-filosóficas tendem a ser apresentadas em histórias curtas que, muitas vezes, rompem com
89
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a linearidade convencional das narrativas em quadrinhos usando, para tanto, de criativos recursos seja no traço do artista
seja em novas propostas de utilização dos requadros.
São, portanto, três as características que principalmente
definem uma história em quadrinhos poético-filosófica: 1. A
intencionalidade poética e filosófica; 2. Histórias curtas que
exigem uma leitura diferente da convencional; 3. Inovação na
linguagem quadrinhística em relação aos padrões de narrativas
tradicionais nas histórias em quadrinhos.
Quando se fala da intencionalidade poética aqui é no sentido sugerido por Edgar Franco, que se referenciou no pensamento de Aristóteles, isto é, um olhar que, sem perder completamente o pé do chão presente e estando aberto aos influxos
criativos da imaginação, consegue vislumbrar as coisas que ainda não são e trazê-las para a fruição e reflexão do leitor ou leitora. Da mesma forma, quando se fala na intencionalidade filosófica não se está pensando aqui na filosofia que está presente necessariamente em qualquer obra de arte, mesmo naquela
que se destina a fazer rir ou a ajudar a passar o tempo. Nem
se está pensando naqueles autores que, como Alan Moore8
, por exemplo, conseguem construir reflexões filosóficas em
quadrinhos já consolidados no mercado formal. E muito menos
se está pensando naqueles trabalhos que usam a linguagem
das histórias em quadrinhos para introduzir ao pensamento
de filósofos já consagrados, seja do pensamento ocidental ou
oriental. Quando se fala de intencionalidade filosófica a referência é ao desejo, que explicitam os autores poético-filosóficos, de provocar uma reflexão mais profunda sobre a condição
humana em seus leitores e leitoras e, para isso, compartilham
suas visões sociais, oníricas, subjetivas, cósmicas, políticas e
espirituais por meio da linguagem dos quadrinhos.
A inovação da linguagem, as histórias curtas e condensadas e, com certeza, o apelo à reflexão pedem um leitor diferenciado em relação aos padrões habituais. A construção do
sentido da história e sua interpretação passam, em grande
parte, pela experiência que o mesmo fez com a leitura. O sentido não é imediatamente dado e nem é fruto de uma lógica
detetivesca, mas depende muito mais dos estados de consci-
90
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
ência percebidos e refletidos pelo leitor ao longo da narrativa
imagética. E, sob um certo ângulo, portanto, é possível falar
numa co-autoria do leitor naquilo que diz respeito à construção de sentido, isto é, os quadrinhos poético-filosóficos, em
certa medida, contribuem para o processo de construção de
autoria, de autoconhecimento e de autonomia daqueles que
os lêem. Isto é tarefa bastante exigente para um leitor e os leitores do gênero poético-filosófico, certamente, ainda existem
em número restrito se comparados com a grande maioria dos
leitores brasileiros.
4. Histórias em quadrinhos poético-filosóficas: o
diálogo arte-comunicação-educação para ajudar a
pensar a condição humana
As duas últimas décadas do século XX trouxeram mudanças
significativas tanto no cenário internacional como nacional. Vimos o avanço radical do neoliberalismo e da globalização econômica; a crise e o desmoronamento do socialismo real expresso, de modo simbólico, na queda do muro de Berlim; a crise
dos paradigmas tradicionais para a produção de conhecimento
e a emergência de um discurso, de caráter pós-moderno, que
afirma a impotência da condição humana para a construção
de utopias de igualdade e transformação da sociedade; os estupendos avanços da tecnologia favorecendo, por um lado, o
aumento de benefícios em termos de saúde, educação e comunicação, mas, por outro, permitindo a sofisticação do consumo
e o conseqüente aumento da exclusão e do fosso entre ricos e
pobres; a emergência econômica de países do oriente; os conflitos bélicos entre nações do ocidente e do oriente com conseqüências e implicações imediatas para os demais países do planeta, principalmente aqueles com condições econômicas mais
consolidadas; e, ainda, a agonia do planeta, de modo especial
em seus aspectos ambientais, sob o forte caráter predatório
das relações exploratórias estabelecidas pelos seres humanos.
Este contexto nos faz perguntar: Que mundo estamos
91
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construindo? Para onde estamos caminhando? A história acabou mesmo? Não há saídas? Não será possível justiça e solidariedade sobre o planeta Terra? E nós brasileiros estamos fadados a simplesmente repetir o sucesso e a imposição de outras culturas? Temos uma contribuição a dar neste momento
de construção/desconstrução da civilização planetária? É neste
quadro de perguntas e dúvidas que compreendo a importância
dos quadrinhos poético-filosóficos. Eles são uma criação cultural que dialoga com as questões existenciais do homem contemporâneo com um grande repertório de temas – existenciais,
espirituais e filosóficos – como: o sofrimento humano, a morte, a esperança, o destino, o ego encapsulado em si mesmo,
a mente humana, o feminino materno, a consciência planetária, a consciência cósmica, o imediatismo e o consumismo, a
ciência, a religião, as instituições sociais, o autoconhecimento,
a tensão entre as polaridades masculina e feminina do ser, a
sexualidade, o poder, as lutas e contradições internas do ser
humano, a fraternidade, a fratricidade, a evolução dos homens
e dos animais, a espiritualidade, o inacabamento humano e a
construção da liberdade.
Vejo, assim, que as histórias em quadrinhos poético-filosóficas poderão auxiliar a compreender como a educação, a arte
e a comunicação estão imbricadas na cultura contemporânea
e quais problemas e possibilidades de respostas criativas estão
presentes neste universo no atual momento histórico de nossa
cultura. É importante que tais artistas continuem, portanto a
produzir e a dialogar com o nosso tempo.
Finalizando...
A HQ “Parto”, de Edgar Franco, que consta na íntegra no
ensaio visual desta revista, e que pedi ao leitor ou leitora que
examinasse antes de iniciar a leitura deste trabalho, é um bom
exemplo de uma história em quadrinhos poético-filosófica. É
uma história de apenas cinco páginas em que não há os requadros tradicionais das HQs. Cada página, por assim dizer,
confunde-se com um grande quadrinho. O traço estilizado e
92
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
sofisticado de Edgar Franco destaca-se e o leitor atento poderá
observar detalhes simbólicos preciosos na construção de cada
imagem. Nelas sente-se a tensão entre os humanos que éramos/somos e os humanos (pós-humanos?) que podemos vir a
ser.
A HQ começa com uma referência aos úteros artificiais entendidos como eletrodomésticos acessíveis. Eles substituem a
antiquada reprodução sexuada: sofrida, desgastante, perigosa,
mas também prazerosa. Certamente está presente aqui o tema
da tecnologia no processo humano de desenvolvimento. Qual o
lugar da tecnologia no projeto ético que nós humanos queremos desenvolver?
A narrativa assume, pois, como problema central de sua
reflexão, o projeto ético que estamos construindo como humanidade, de modo especial com a presença das tecnologias
avançadas. “Poucos insistem na ancestral técnica biológica, que
desgasta o corpo e está sujeita a erros do acaso...” diz o texto
da HQ. Será possível termos o controle absoluto de tudo? Será
sadio termos o controle de tudo? O que nos assusta em não
termos o controle sobre todas as coisas? São as imperfeições?
As deficiências? O que são as imperfeições e as deficiências
na ordem das coisas? Haverá perfectibilidade nas imperfeições
e nos erros? Primeiro Otto Rank e depois Stanislav Grof nos
ensinaram que o trauma do parto tem sido um momento importante para constituição do ser humano. Nele aprendemos
o processo doloroso de morte e renascimento. A vida é um
permanente movimento que supõe saber morrer para o que já
passou e saber nascer para o novo que está nascendo ou renascendo. Este aprendizado, contudo, é feito na dor. Será possível
abolir este processo? Será possível eliminar a dor? Será desejável? Qual o limite aceitável da dor? Eliminar a dor seria eliminar
nosso aprendizado para enfrentar a construção da existência?
A HQ provoca a pensar que tipo de seres “humanos” estamos ajudando a se constituir com as nossas tecnologias. No
mundo futuro talvez não seja mais característica dos partos o
choro das crianças, que morreram para a vida do útero e nasceram para a vida nas culturas e sociedades humanas. Talvez
elas nasçam sorrindo uma vez chegadas à maturação. Talvez
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não corram mais os riscos de um “berço ruim” como no útero
antigo. Mas haverá para elas a possibilidade de conhecer a alegria e a serenidade da vitória de quem trilhou o caminho entre
a morte e o renascimento? Ou haverá “uma profunda tristeza
enigmática em seus semblantes”? O que queremos? O que estamos fazendo?
Com certeza trabalhos deste tipo, se utilizados, por exemplo, como provocações em trabalhos educativos, na educação
formal e não-formal, poderão auxiliar o estabelecimento de diálogos e experiências que favoreçam o trato compreensivo com
os desafios da condição humana (e pós-humana?). Isto é bastante desejável, mas será possível?
Tive a oportunidade de perguntar a Henrique Magalhães
(2007), um dos primeiros editores a abrir-se com entusiasmo ao
gênero poético-filosófico, o que ele pensava sobre o futuro deste gênero em terras brasileiras e ele me respondeu o seguinte:
No Brasil não há a menor chance de uma cultura como essa vingar nos meios comerciais. O que resta é o entusiasmo dos autores
com suas auto-edições. Isto não é pouco, mas não garante a profissionalização. De todo modo, acredito que os quadrinhos poéticos são uma das expressões mais fortes do que se pode chamar
de quadrinho autoral e não devem ser abandonados de vez.
De minha parte vejo, claramente, as dificuldades que aponta Henrique Magalhães e comungo com ele da vontade de ver
o gênero prosseguir, pois fico fortemente tocado pelo seu potencial reflexivo, transformador, político, estético, educativo e
desejo que os artistas continuem a produzir sua obra, ainda
que seja numa cultura cujo mercado oferece muitos obstáculos
para acolhê-la e divulgá-la. Que consigam manter vivo o entusiasmo pelas HQ poético-filosóficas, pois está aí um trabalho
capaz de provocar transformações na direção de uma cultura
com mais alegria, beleza e, por que não, na direção da “criação
de um mundo em que seja menos difícil amar” (PAULO FREIRE,
1982, p. 218).
Notas
94
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
1. Conferir o relato em: http://www.ibacbr.com.br/?dir=artigos&pag=013&opc=0086.
Acesso em 14 de setembro de 2008.
2. O nome da revista é uma homenagem a uma das principais personagens de Flávio
Calazans.
3. Foi o editor que lançou, no Brasil, as primeiras revistas dedicadas exclusivamente aos
quadrinhos poético-filosóficos. Natural de João Pessoa, Paraíba, onde criou, em 1975, a
personagem de HQs “Maria”, publicada em tiras diárias em diversos veículos no Brasil e em
Portugal. Fez Mestrado na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
e Doutorado na Universidade de Paris VII, ambos com estudos dirigidos aos fanzines de
histórias em quadrinhos. Atualmente é professor do Curso de Comunicação Social na UFPB.
Dirige a editora Marca de Fantasia (nome que tem origem no fanzine homônimo e que foi
criado por Magalhães; www.marcadefantasia.com.br), lançando o fanzine Top! Top!, as
revistas Mandala, Quiosque, Maria Magazine e a coleção Corisco, além de álbuns e livros
sobre quadrinhos e cultura alternativa.
4. Quadrinhista e Editor Independente. Mestre em Ciências pelo Instituto Tecnológico de
Aeronáutica. Participou do livro “História em Quadrinhos – Teoria e Prática” organizado por
Flávio Calazans. Publicou os livros “Fanzine”, um estudo sobre publicações independentes,
“Algumas Leituras sobre Príncipe Valente” e organizou a publicação do livro “O que é
Histórias em Quadrinhos Brasileira”, todos pela Editora Marca de Fantasia.
5. Conferir o relato em: http://www.ibacbr.com.br/?dir=artigos&pag=013&opc=0082.
Acesso em 14 de setembro de 2008.
6. Marcelo Campos é desenhista de quadrinhos e diretor da Quanta Academia de Artes.
Trabalhou em diferentes campos das artes visuais e ficou conhecido por ter sido o primeiro
brasileiro da nova geração a publicar seus trabalhos nos Estados Unidos. Hoje divide seu
tempo entre dirigir sua escola de artes e partilhar, pela docência, a grande experiência que
tem com as histórias em quadrinhos.
7. Neste artigo estou preocupado em identificar e explicitar os traços do que sejam as
histórias em quadrinhos poético-filosóficas no Brasil. Por certo é possível, guardadas
as devidas distâncias, encontrar trabalhos próximos em outros países e culturas, como
sugerem Edgard Guimarães e também algumas produções européias, mas não é meu
objetivo, neste momento, realizar este estudo e nem mesmo fazer uma aproximação críticocomparativa.
8. Roteirista de origem inglesa que ficou conhecido por escrever textos para as histórias
em quadrinhos de forma criativa e usando largamente motivos e referências filosóficas e
literárias. Também escreveu histórias de super-heróis, como Super-Homem e Batman, que
se tornaram muito conhecidas. Alguns de seus trabalhos significativos são: “Do Inferno”,
“Wathcmen” e “V de Vingança”.
95
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98
Elydio dos Santos Neto
O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.
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VVAA. Brasilian Heavy Metal: the illustrated fantasy maga-
Elydio dos Santos Neto
Doutor em Educação pela PUC-SP. Docente-pesquisador do Mestrado em
Educação da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), membro do
Observatório de Quadrinhos da USP, do Grupo INTERESPE e do Grupo de
Estudos e Pesquisa Paulo Freire da UMESP. Pós-doutorando no Instituto
de Artes da UNESP com a pesquisa “As Histórias em Quadrinhos poéticofilosóficas no Brasil: Contextualização histórica e estudo das interfaces
educação, arte e comunicação”.
99
The fanzines, publications of fans, directed at other fans
of a certain artistic expression, have achieved a great
progress in recent years, thanks in part to advance technological, but also by the maturity of the public and
authors, encouraged by the fanzines. As a vehicle for
groups that produce the fringes of the cultural industry,
the fanzines can be considered as an event that falls
within the field of study of folkcomunicação. The wealth
of fanzines is in the testing of artistic languages and encouraging the production and delivery of new authors.
Keywords: Fanzine, comics, communication
abstrac t
Fanzine: comunicação popular e resistência
cultural
Henrique
magalhães
resumo
Os fanzines, publicações de fãs, ou aficionados, dirigidas a outros fãs de determinada expressão artística,
têm alcançado uma evolução enorme nos últimos anos,
em parte graças ao avanço tecnológico, mas também
pelo amadurecimento do público e autores, fomentados pelos próprios fanzines. Como veículo de grupos
que produzem à margem da indústria cultural, os fanzines podem ser considerados como uma manifestação
que se insere no campo de estudo da folkcomunicação.
A riqueza dos fanzines está na experimentação de linguagens artísticas e no fomento à produção e veiculação dos novos autores.
Palavras-chave: Fanzine, quadrinhos, comunicação
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Publicações amadoras produzidas por fãs e dirigida a fãs de
expressões artísticas, os fanzines surgiram nos Estados Unidos
na década de 1930 com os autores de ficção científica. Esse tipo
de revista artesanal ou semiprofissional representava a única
possibilidade para os jovens autores veicularem seus trabalhos,
que se tratavam de um gênero ainda considerado como subliteratura. Foi com esse caráter de resistência e inovação que os
fanzines se firmaram e se difundiram pelo mundo. De pequenas
revistas baratas que serviram de suporte a experimentações
artísticas, os fanzines se transformaram em publicações
reflexivas, analisando os diversos aspectos das artes de forma
crítica e independente.
No Brasil os fanzines surgiram em outubro de 1965, sendo,
então, chamados de boletins. O primeiro fanzine brasileiro foi
editado em Piracicaba, São Paulo, por Edson Rontani, chamou-se
Boletim Ciência-Ficção Alex Raymond e era dedicado às histórias
em quadrinhos. Foi só em meados da década de 1970 que se
começou a utilizar o termo “fanzine”, quando essa denominação
passou a ser difundida de forma mais freqüente pelas revistas
especializadas francesas e pelas publicações ligadas ao
movimento punk inglês.
O caráter de “marginalidade”, por serem publicações
produzidas à margem do mercado, sem fins lucrativos e com
forte motivação comunitária, habilita os fanzines a se inserir na
categoria de folkcomunicação, pois são porta-vozes de setores e
expressões artísticas menosprezadas pela grande imprensa. Os
fanzines representam o pensamento de indivíduos, associações
e grupos de aficionados que produzem seus próprios veículos
como forma de interação, troca de informações e opiniões.
No tocante aos fanzines dedicados aos quadrinhos, que
formam uma das mais representantes vertentes desse gênero de
publicações no país, eles representam a resistência dos autores
frente ao descaso das editoras, a afirmação dos quadrinhos locais
e contraposição aos quadrinhos estrangeiros. Nesse contexto, a
importância dos fanzines reside não só na difusão e renovação
dos quadrinhos no Brasil, mas também por contribuírem para
a criação de um es­paço essencial de discussão e avaliação dos
quadrinhos como expressão artística.
102
Henrique Magalhães
Fanzine: comunicação popular e resitência cultural
Inicialmente os fanzines não passavam de boletins
rudimentares, impressos em mimeógrafos. Com o desenvolvimento
tecnológico das últimas décadas do século 20, o barateamento e
popularização dos meios de impressão, foram surgindo fanzines
cada vez mais sofisticados, aproximando-se do acabamento e
requinte gráfico das publicações do mercado.
Os fanzines e a folkcomunicação
Como boletins produzidos por indivíduos, fã-clubes ou
associações, os fanzines (de fanatic magazine, ou magazine do
fã), são publicações amadoras, sem fins lucrativos, que visam
a troca de idéias, investigação ou promoção de um objeto de
culto. A frágil estrutura dos fanzines, que se caracteriza por
pequenas tiragens, difusão restrita para um público dirigido e
temática especializada, condiciona sua concepção gráfica, seu
alcance e sua periodicidade. Esse tipo de publicação destina-se a
um público interessado e que já tem alguma referência sobre o
assunto enfocado, ou seja, ao fã.
O termo “fã”, mesmo estando na etimologia da palavra
fanzine, talvez não represente de forma precisa os editores dessas
publicações. Fruto de uma ação entusiasta de simpatizantes de
determinada atividade artística, seus protagonistas poderiam
ser mais considerados como aficionados. Mais que uma postura
de passividade e contemplação do objeto de culto, própria do
fã, o que caracteriza o editor de fanzine é sua atitude proativa,
sua necessidade de interação e investigação.
Numa referência ao culto dos astros da indústria cultural,
Edgar Morin (1972) atribui ao fã uma adoração quase religiosa.
Para ele, o amor do fã não pode possuir, seja no sentido
sociológico ou no senso físico do termo. A estrela escapa à
apropriação privada. O amor pela estrela não tem ciúmes, é sem
desejo, é compartilhado, pouco sexualizado, o que quer dizer, é
um amor de veneração.
Em seu anonimato, o fã se resigna a reunir todas as coisas
que representem a materialização do objeto amado, como se
103
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
dele pudesse se apropriar pelo consumismo. Para Morin, o fã
desejaria ser amado, mas com humildade. “É esta desigualdade
que caracteriza o amor religioso, adoração não recíproca, mas
eventualmente recompensada” (Morin, 1972, p.69).
Podemos pensar numa dessas recompensas como o acesso
à vida privada do mito graças às informações publicadas pelas
revistas profissionais. A impossibilidade do contato direto de forma
permanente com o ídolo leva o fã a participar de um fã-clube,
cuja direção pode chegar a manter relações de proximidade com
o objeto de culto.
Já para o editor de fanzine, não basta essa atitude
contemplativa, de veneração. Ele quer algo mais que um certo
conhecimento sobre o assunto enfocado. O caráter desse tipo
aficionado requer, em princípio, uma motivação impregnada de
inquietude, uma curiosidade sobre os bastidores da arte. Para o
editor de fanzine, mais que ser fã, é preciso deixar-se levar pelo
desejo de participar ativamente do meio que é objeto de admiração
e estar disposto a interferir, usando para isso a produção dessas
pequenas publicações.
No campo das artes, não há limite temático para os editores
de fanzines. Alguns se dedicam às estrelas da música pop, aos
ídolos do rock, às bandas do momento, a um gênero musical;
outros procuram investigar os astros do cinema e os gêneros
cinematográficos. Literatura, televisão, comportamento, moda,
rádio, tudo o que estiver ligado a expressões artísticas e à indústria
cultural pode ser objeto de estudo dos fanzines.
Mas, sem dúvida, os quadrinhos são o tema mais apreciado
pelos editores e leitores de fanzines. Contribui para isso, certamente,
o fato de o suporte dos fanzines, a revista impressa, ser o mesmo
dos quadrinhos, tornando o fanzine ao mesmo tempo veículo
para a reflexão sobre a arte e para a publicação dos experimentos
artísticos. Dentro dessa categoria de fanzines encontram-se várias
divisões, com publicações dedicadas a personagens e autores, a
estúdios e grupos de produção, a gêneros e épocas. São notórios
os fanzines dedicados ao universo dos super-heróis; os de nostalgia
dos quadrinhos, voltados aos personagens clássicos da “época de
ouro” dos quadrinhos; os de ficção científica; de faroeste, além
dos que promovem o lançamento dos jovens quadrinistas.
104
Henrique Magalhães
Fanzine: comunicação popular e resitência cultural
Roberto Benjamin (2000, p.17), ao abordar a Folkcomunicação
no contexto da comunicação de massa, realça “a importância da
comunicação interpessoal e grupal – inclusive pelos seus aspectos
de mediação – tanto entre a população de cultura folk, como nos
demais segmentos da sociedade”. Essa comunicação interpessoal
é, sem dúvida, uma das maiores motivações dos fanzines, que
privilegiam a troca de informações entre os fãs, seja por intermédio
da seção de cartas e colaborações com artigos, críticas, resenhas e
quadrinhos, seja pelo contato direto com outros fãs.
Nos fanzines, os fãs se identificam num universo comum, saem
do isolamento, encontram o terreno adequado para expressar suas
paixões, se fortalecem como participantes de um grupo. Não só pelo
aspecto de comunhão comunitária, nessas pequenas publicações os
leitores e editores estimulam o olhar investigativo e crítico enquanto
exercitam sua liberdade de expressão. Grandes debates e polêmicas
acontecem nos fanzines, acrescentando elementos cognitivos e
promovendo análises construtivas para o resgate e desenvolvimento
de sua arte.
Dentro da perspectiva de comunicação de grupo, os editores
e leitores dos fanzines desenvolvem linguagens comuns próprias
ao grupo do qual procedem. Dessa forma, os fãs de quadrinhos
possuem uma linguagem que se coaduna com seu grupo, assim
como os fãs de rock utilizam jargões próprios dos apreciadores
desse gênero musical. Essa linguagem comum vai além da expressão
textual, chegando a demarcar de forma inconfundível o aspecto
gráfico dos fanzines.
Numa classificação genérica, é comum a utilização de certos
termos que unificam os vários grupos em torno da produção dos
fanzines. O próprio termo fanzine é um neologismo formado pela
contração de fanatic e magazine, do inglês, de onde derivaram
zine, como abreviatura do termo; zinar, para a ação de se fazer o
fanzine; zineiro ou fanzineiro, para o sujeito da ação; fanzinagem e
fanedição, como a atividade de edição dos fanzines. Por analogia,
uma fanzinoteca vem a ser uma biblioteca de fanzines.
Esses termos que permeiam os grupos de fãs aproximam-se
das gírias, próprias de uma linguagem tribal e de uma expressão
folclórica, ou seja, de identidade e manifestação espontânea de
determinado meio cultural. Por pertencer a grupos relativamente
105
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
isolados da sociedade, todos esses neologismos são reconhecidos
de forma familiar por seus membros, mas não são imediatamente
absorvidos pela cultura oficial. Apesar de o termo fanzine ter se
difundido nos últimos anos particularmente na mídia, ele só agora
começa a figurar em alguns dicionários e enciclopédias.
Numa aproximação com a produção de imprensa popular e
outros gêneros de publicações, a exemplo dos folhetos de cordel,
podemos afirmar que os fanzines fazem parte do que denominamos
de Folkcomunicação, como o define Luiz Beltrão: “é o processo de
intercâmbio de informações e manifestações de opiniões, idéias
e atitudes de massa através de agentes e meios ligados direta ou
indiretamente ao folclore” (Beltrão apus Benjamin, 2000, p.12).
É certo que os fanzines, com suas pequenas tiragens quase
confidenciais, que muitas vezes não ultrapassam os 50 exemplares,
não podem ser considerados um meio de massa, mas identificamos
com clareza nesses veículos um forte processo de intercâmbio de
informações, com destaque para a expressão da crítica e da opinião.
Os fanzines têm na reflexão sua força, gerando debates entre os
leitores e mesmo, em seu conjunto, interferindo nas publicações do
mercado.
Por outro lado, o próprio Beltrão viria ampliar o conceito de
Folkcomunicação para além das amarras da definição de folclore
adotada de forma oficiosa no país. Inicialmente, ele identificava
a Folkcomunicação como sendo a expressão apenas de grupos
marginalizados cultural e geograficamente: “Hoje pensamos que as
pesquisas se devem estender a outros setores excluídos, sem acesso
aos mass media, pela sua posição filosófica e ideológica contrária as
normas culturais dominantes, setores que se poderiam classificar de
contraculturais” (BELTRÃO, 2000, p.13).
Essa nova definição, mais abrangente, afinal contempla os
fanzines em vários aspectos de sua produção. Os fanzines são não
só veículos de aficionados, mas também de grupos que não possuem
acesso à grande imprensa. A divulgação das novas bandas de rock é
feita particularmente por intermédio dos fanzines. Os novos autores
de poesias e histórias em quadrinhos têm nos fanzines o espaço para
publicação de sua obra, visto que não se tem veículos do mercado que
contemplem de forma adequada o fluxo da produção dos autores
nacionais, muito menos as obras dos novos artistas.
106
Henrique Magalhães
Fanzine: comunicação popular e resitência cultural
A concentração da indústria cultural, em particular das grandes
editoras no eixo Rio de Janeiro/São Paulo é mais um agravante para a
veiculação de expressões regionais. Os fanzines são, pois, um produto
de grupos marginalizados cultural e geograficamente, bem como
porta-vozes de um tipo de cultura que denominamos genericamente
de underground, contracultural ou independente.
A tecnologia a favor dos fanzines
Até o final da década de 1980 o fanzine foi concebido para ser
um veículo impresso, ocupando um espaço paralelo às publicações
do mercado. Talvez não fosse o caso de se falar numa imprensa
alternativa, como observa Edgard Guimarães (2005), editor
do fanzine QI, visto que o fanzine não se configura como uma
alternativa mercadológica. Pelo seu caráter
amador, o fanzine estaria mais para uma
cultura independente, livre das amarras do
mercado, da imposição das grandes tiragens,
da linguagem consensual para um público
genérico.
O fanzine é um veículo de comunicação
dirigida, que tem as dimensões do universo
de seu público. Como na maioria das vezes os
fanzines se identificam nas especificidades, é
comum lidar-se com públicos reduzidos da
mesma forma que proliferam indefinidamente
os títulos e abordagens dessas publicações.
Figura 1 - Ficção, o primeiNo início, para a edição dos fanzines,
ro fanzine brasileiro
foram utilizados os meio rudimentares de
reprodução que viabilizassem as pequenas tiragens, tendo em vista
a adequação dos custos. O mimeógrafo a álcool e à tinta foram os
instrumentos para as primeiras publicações, a exemplo de Ficção, o
primeiro fanzine brasileiro, lançado por Edson Rontani em Piracicaba,
em outubro de 1965.
Com o desenvolvimento das fotocopiadoras e o barateamento
das cópias, tornou-se viável a edição de fanzine por esse processo,
desde a produção, com reduções e ampliações de originais
107
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
datilografados e imagens, até a reprodução, com as cópias. Este
instrumento trouxe um grande desenvolvimento aos fanzines pela
qualidade de reprodução gráfica, incluindo amplamente as ilustrações.
O salto tecnológico com a popularização das fotocopiadoras favoreceu
a propagação dos fanzines de quadrinhos, que faziam as vezes de
revistas/portfólios e revistas especializadas no gênero, com ensaios,
críticas e matérias noticiosas.
A possibilidade de reprodução das artes gráficas, a exemplo dos
quadrinhos, estimulou o surgimento de inúmeros autores por todo o
país e com eles vieram seus fanzines. Ainda que o objetivo da maioria
dos quadrinistas fosse chegar ao mercado editorial, não era mais
necessário esperar uma chance remota para mostrar o trabalho. Os
fanzines ocuparam o espaço, relegado pelas editoras comerciais, de
veículo promotor dos novos talentos, estimulando o aparecimento de
sucessivas gerações de quadrinistas.
A importância dos fanzines dá-se também pelo papel de
vanguarda cultural que eles engendram. É nos fanzines onde são
experimentadas as novas linguagens, o padrão gráfico inovador, as
ousadias conceituais. Não raro, o meio empresarial vai buscar nos
fanzines a renovação estética para certos públicos identificados com
novas linguagens. Os fanzines, enquanto manifestação espontânea
e democrática de grupos, muitas vezes formados por jovens, trazem
a legitimação das linguagens populares nem sempre facilmente
percebidas pelos meios empresariais.
O melhor exemplo para ilustrar essa postura, é a difusão maciça
de alguns nomes dos cartuns nacionais. Os maiores autores de tiras,
charges e cartuns veiculados nos jornais de circulação nacional da
atualidade vieram do meio dos fanzines e publicações alternativas.
Uma quantidade enorme de novos quadrinistas é influenciada por
Henfil, Angeli, Ziraldo, Laerte, Paulo Caruso e Jaguar, para citar
apenas alguns dos autores consagrados. Dessa forma, começamos
a assistir o reconhecimento do trabalho de Marcatti, Edgar Franco,
Wellington Srbek e Cedraz como autores de obras personalizadas,
além de jovens autores de nossa arte seqüencial (os quadrinhos).
Do mesmo modo que os fanzines podem servir como alavanca
para a profissionalização, eles têm favorecido o surgimento de
pequenas editoras independentes. O público dessas editoras é
o mesmo dos fanzines, acrescido de outras camadas simpáticas
108
Henrique Magalhães
Fanzine: comunicação popular e resitência cultural
a produtos diferenciados do mercado. Um dos fatores que tem
contribuído para o surgimento dessas editoras
e para a concepção de um produto cultural
bem mais acabado é, sem dúvida, a revolução
tecnológica trazida pela informática.
O folclore e a cultura popular não
devem ser encarados como uma cultura
estática, imutável. Ela vem se adaptando às
transformações da sociedade, incorporando
elementos da mitologia urbana, das mídias e
das novas tecnologias. Numa alusão à produção
dos folhetos de cordel, Luiz Beltrão, citado
por Roberto Benjamin, afirma que justamente
a mais nova apropriação tecnológica ocorreu
com relação à informática.
F i g u r a 2 - F a n z i n e To p ! t o p !
O poeta popular José Honório produz seus
versos em um
computador. A sua opção pela
informática nada tem de romântica. Foi uma escolha tecnológica e
econômica. As gráficas existentes
na cidade onde reside (TimbaúbaPE), desde as primitivas de caixas
de tipo, às que operam off-set, somente recebem encomendas de tiragens acima das possibilidades de
mercado, para os cordéis do poeta.
Utilizando o computador, José Honório imprime o número de folhetos que considera possível vender
de imediato e guarda os mesmos
na memória eletrônica, realizando
novas tiragens na medida em que
Figura 3 - Fanzine Mandala
as pequenas edições se esgotam
(BENJAMIN, 2000, p.19-20).
De forma coincidente, esta é a mesma estratégia adotada pela
editora Marca de Fantasia, de João Pessoa, PB. Por esta editora
independente são feitas edições seqüenciais de fanzines, revistas e
livros de tiras (Top! Top!; Mandala, Quiosque; e a coleção “Das
109
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Figura 4 - Fanzine
Guerra das Idéias
de Flávio Calazans
F i g u r a 5 - Fa n z i n e K a tita: tiras sem preconceito de Anita C. Prado e Ronaldo Mendes
Figura 5 - Fanzine Maria de Henrique Magalhães
tiras, coração”, respectivamente), além de álbuns de histórias em
quadrinhos e livros teóricos sobre cultura pop. Cada publicação
tem tiragem inicial de 50 exemplares, para uma projeção de 200
exemplares; ao esgotar-se essa primeira edição, outra tiragem é
produzida, dando seqüência à difusão da obra. Dessa forma, o
álbum Guerra das Idéias, de Flávio Calazans, que está na quarta
edição ampliada, conta já com 360 exemplares, o álbum de tiras
Katita: tiras sem preconceito, de Anita Costa Prado e Ronaldo
Mendes já teve a primeira tiragem esgotada e Maria, de Henrique
Magalhães, foi publicado com 800 exemplares.
Sem dúvida, o avanço dos recursos tecnológicos transformou
alguns fanzines em publicações compatíveis com boa parte
das publicações do mercado. Com o computador, o visual dos
fanzines tornou-se mais limpo, livre das imperfeições dos tipos
datilográficos, dos riscos de canetas e colagens de originais.
É certo que essas transformações não foram aceitas com
tranqüilidade por uma parte dos editores, que viam no acesso
fácil à tecnologia o fim da pureza artesanal dos fanzines. Para
eles, a verdadeira linguagem dos fanzines deveria ser aquela suja,
que atestasse o labor artesanal, a presença da alma e do suor do
editor, com suas imperfeições e máculas, próprias da expressão
humana mais autêntica.
Mas o canto sedutor da tecnologia soou mais alto e de forma
irreversível. Atualmente já podemos ver fanzines com qualidade
110
Henrique Magalhães
Fanzine: comunicação popular e resitência cultural
gráfica excepcional, com utilização de cores nas capas impressas
em offset ou impressão à laser, e com os requintes dos melhores
programas gráficos, acessíveis em qualquer computador. Essa
evolução dos fanzines e demais publicações
independentes (revistas, álbuns, livros), faz-nos
pensar na possibilidade da formação de um
mercado paralelo, criando um filão até então
inexistente no meio editorial.
Já existem alguns núcleos de produção que
têm utilizado as novas tecnologias bem como as
leis de incentivo à cultura estaduais e municipais
para a edição de excelentes publicações.
Podemos citar a editora Nona Arte, de André
Diniz, do Rio de Janeiro, que vem desenvolvendo
um trabalho excepcional na edição de revistas
independentes, abrindo espaço não só para
sua produção como para a de outros autores
Figura 6 - Revista Subversivos
representativos dos quadrinhos brasileiros. A
série Subversivos, editada por ele, reconta a
história recente do Brasil sob o regime
militar a partir da visão dos reprimidos,
das organizações clandestinas que
visavam uma transformação radical do
país. Esta é uma visão dos perdedores,
que em geral não entra nos anais da
história.
Da mesma forma, Wellington Srbek,
em Belo Horizonte, tem aproveitado
o incentivo estatal para a publicação
de revistas e álbuns com acabamento
gráfico profissional e conteúdo também F i g u r a 6 - E s t ó r i a s G e voltado para elementos da cultura r a i s d e W e l l i n g t o n S r b e k
brasileira. São visões de histórias e lendas
e mesmo da ficção extraordinária dos super-heróis que fazem uma
ligação entre a cultura popular e a erudita. As revistas e álbuns
são produzidos dentro do circuito dos fanzines, mas estão abertos
a outros públicos, que venham somar à valorização de uma arte
genuinamente brasileira.
111
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Curioso é que trabalhos tão criativos e autorais não tenham espaço
nas editoras comerciais. A busca do lucro fácil, das fórmulas feitas,
da importação de modelos estrangeiros da cultura de massa como
diretrizes do mercado fazem com que as expressões mais autênticas
de nosso povo sejam menosprezadas, cabendo à resistência de seus
criadores, nesse caso à auto-edição ou o estabelecimento de circuitos
independentes, o registro de uma cultura com caráter nacional.
Conclusão
Os fanzines de quadrinhos no Brasil representam a resistência
dos quadrinhos brasileiros frente ao descaso das grandes editoras e
a invasão dos quadrinhos estrangeiros. A importância dos fanzines
se configura não só pela difusão e renovação dos quadrinhos no
Brasil, mas também por contribuírem para a formação do público
e criação de um es­paço essencial de discussão e avaliação dos
quadrinhos como expressão artística.
A partir da década de 1960, com o surgimento do primeiro
fanzine brasileiro, é possível notar uma sensível evolução da visão
crítica dos leitores e do posicionamento proativo dos novos autores.
Foi nos fanzines que esses agentes culturais e o público recolheram
elementos para a formação de uma visão mais ampla sobre os
quadrinhos como fruto da indústria cultural, mas também como
veículo extraordinário de reflexão, que extrapola o universo de seus
renomados heróis.
Inicialmente como boletins rudimentares (mimeografados)
de fãs-clubes ou aficionados, os fanzines tornaram-se, com o
desenvolvimento tecnológico e popularização dos meios de
impressão, publicações cada vez mais sofisticadas, aproximando-se
do requinte das publicações do mercado. No entanto, mantêm seu
caráter contestador e veículo de integração de grupos culturalmente
marginalizados.
Essas novas publicações independentes têm tomado fôlego nos
últimos anos, conquistando um público curioso e exigente, que vai
buscar nas livrarias especializadas e não nas bancas de revistas o
produto para sua apreciação. A resposta a esse público encontra-
112
Henrique Magalhães
Fanzine: comunicação popular e resitência cultural
se na evolução gráfica das publicações e no aprimoramento do
conteúdo, onde se procura refinar a elaboração dos argumentos e
uma concepção mais sólida dos personagens.
Referências
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Semião, Antônio Éder et alli. Tudo que você sempre quis saber
sobre quadrinhos mas sua mamãe relutava em lhe responder Curitiba:
Edição do autor, abril de 1996.
113
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Artigos
Andraus, Gazy. Tyli-Tyli: A revista de quadrinhos filosóficos do
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Franco, Edgar. Panorama dos quadrinhos subterrâneos no Brasil.
In Calazans, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias
em quadrinhos no Brasil: teoria e prática. Coleção GT Intercom nº
7. São Paulo: 1997, p.51-65.
Guimarães, Edgard. A questão da produção, divulgação e
distribuição de edições independentes. In Calazans, Flávio Mário de
Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria
e prática. Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: 1997, p.66-80.
114
Henrique Magalhães
Fanzine: comunicação popular e resitência cultural
Henrique Magalhães
Professor Dr. da Universidade Federal da Paraíba, UFPB
Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.
Doutor em Sociologia pela Universidade Paris 7, França. Professor do Departamento de Comunicação e Turismo e do Mestrado em Comunicação
da UFPB. Faz pesquisa e extensão na área de cultura e imprensa alternativa. Criador e editor da editora Marca de Fantasia e da Gibiteca Henfil, de
João Pessoa. [email protected]
115
Ensaio Visual
Vislumbres Pós-humanos
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134
Edgar Franco
Edgar Franco é artista multimídia com mestrado em multimeios na Unicamp onde estudou as histórias em quadrinhos (HQs) na Internet, batizando essa linguagem híbrida de quadrinhos e hipermídia de HQtrônicas
(histórias em quadrinhos eletrônicas), pesquisa que serviu como base para
o livro “HQtrônicas: Do Suporte Papel à Rede Internet” (Annablume/ FAPESP, 2008, 2ª Edição). Sua tese de doutorado em artes, “Perspectivas PósHumanas nas Ciberartes” (ECA/USP), foi premiada no programa “Rumos
Pesquisa” do Centro Itaú Cultural em São Paulo. É professor adjunto da
FAV/UFG - Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás,
e do mestrado em Cultura Visual da mesma universidade, em Goiânia. As
histórias em quadrinhos que compõem o ensaio visual fazem parte da série de trabalhos em múltiplas mídias ambientados no universo ficcional da
“Aurora Pós-humana”, criado pelo artista inspirado nas perspectivas póshumanas da tecnociência e nos aspectos tecnognósticos que impregnam
as novas tecnologias. Além de dezenas de HQs, outros trabalhos como
a HQtrônica premiada “Neomaso Prometeu”, o site de bioarte “O Mito
Ômega”, e o projeto musical multimídia “Posthuman Tantra” integram o
conjunto de obras ambientados na “Aurora Pós-humana”.
135
Artigos
Graffiti and pichação are contemporary urban interventions that include divergent discourses about their manifestations. It was the objective of this research, starting
with the interviews from six graffitists, to discuss the
discourses that were produced about difference between graffiti and pichação, searching to reflect about the
relations between art, aesthetic, intervention and constitution of the individuals in the urban contexts. It was
observed that the discourses of the graffitists enhanced
the aesthetic differences from the products of these activities and showed clearly that they are languages that
keep moving among them. The two activities make possible that the subjects apprehend another possibility of
living and express themselves in the city, establishing
other norms, other ethic, and other symbolic order.
Key-Words: Graffiti; pichação; aesthetic;
abstrac t
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e
intervenções urbanas
Janaína R.
Furtado
Andréa Vieira
zanella
resumo
Graffiti e pichação são intervenções urbanas contemporâneas que implicam discursos divergentes acerca destas
manifestações. Objetivou-se, a partir de entrevistas com
seis grafiteiros, debater os discursos produzidos acerca
da diferença entre graffiti e pichação, buscando refletir sobre as relações entre arte, estética, intervenção e
constituição dos sujeitos em contextos urbanos. Observou-se que os discursos dos grafiteiros ressaltam as diferenças estéticas existentes entre as atividades. Ambas
as atividades permitem que os sujeitos apreendam outras possibilidades de habitar e se expressar na cidade,
impondo-lhes outras regras, outra ética e outra ordem
simbólica.
Palavras-chaves: graffiti, pichação, estética;
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Pouco a pouco a psicologia brasileira vem ocupando espaço
nas discussões e debates sobre arte, embora saibamos que não é
recente a aproximação entre essas áreas. O diálogo é fundamental
para o desenvolvimento da ciência psicológico, pois, afinal, quem
produz arte e quem se relaciona com o mundo sensivelmente são
seres humanos que, por meio destas atividades, transformam a
realidade, criam novas possibilidades de existência, criando-se e
recriando a si mesmos neste processo.
Não obstante as diversas possibilidades de criação e expressão
estética, pretende-se aprofundar, neste momento, estas reflexões a
partir do graffiti e da pichação urbana, consideradas manifestações
estéticas emergentes nas cidades do mundo todo e também
como intervenções que irrompem uma dada ordem urbana. Os
grafiteiros e pichadores fazem falar para/no/ao urbano de outro
lugar, geralmente da margem dos discursos que oficialmente ali
são veiculados. Orlandi (2004), ao analisar a produção de sentidos
da/ na cidade por meio do graffiti e da pichação, reitera-os como
vestígios de novas posições-sujeito possíveis, outros sujeitos
simbólicos, outros sujeitos sócio-políticos e cidadãos outros que reelaboram os signos na sua relação com a realidade, face ao modo
como esta mesma sociedade o significa.
Transgressores da lógica racional moderna a partir da qual as
cidades frequentemente são construídas (HARVEY, 1990), o graffiti
e a pichação entram na cena urbana e ali ora se amalgamam ou se
diferenciam de suas variadas manifestações, conforme os grafiteiros
e/ou pichadores significam o seu fazer e a relação desse fazer com
o modo como essas mesmas atividades foram se constituindo no
contexto específico do Brasil.
Enquanto o graffiti vem sendo considerado arte urbana e
pouco a pouco cooptado pelo sistema econômico-social vigente
(SCHLECHT, 1995), tirado das ruas, ou financiado por diversas
agências, proprietários de estabelecimentos comerciais, exposto
em museus e galerias; a pichação continua sendo compreendida
como a sujeira das cidades. No encalço desta distinção vigoram as
concepções de arte, estética e vandalismo. Se, por um lado, algumas
vezes o graffiti é veiculado como arte urbana e/ou expressão
estética por meio da qual alguns grupos almejam transformar a
realidade social, sendo, portanto, considerado mensagem, arte,
140
Janaína R. Furtado
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas.
bem como uma ferramenta conveniente para tirar alguns jovens
das ruas; a pichação, por outro lado, é ratificada como lixo urbano
e os pichadores como meros marginais em busca de adrenalina.
Eis que na produção dessa diferença, ou na discussão sobre a
diferença, encontramos o ensejo para dialogar sobre psicologia e
arte, relações estéticas e intervenções urbanas.
Nossa conversa se fundamenta nos discursos de grafiteiros
sobre a diferenciação enunciada entre graffiti e pichação, diferença
marcadamente brasileira e que possibilita aprofundar os debates
acerca dos modos de constituição dos sujeitos em contextos
urbanos. Nos diálogos com os grafiteiros se entretecem reflexões
de alguns autores que se dedicam ao debate, caracterizando-se,
portanto, este texto como tecitura plural.
Reflexões estéticas, graffiti e pichação
Graffiti e pichação são palavras comuns para os cidadãos
brasileiros, acostumados a se deparar com estas práticas nos
muros, paredes, portas, ônibus, etc. No entanto, a palavra pichação
não existe em outros lugares do mundo para os quais toda escrita
urbana e muralismos são denominados como graffitis. Pichação
como conceito é um produto brasileiro e designa as escritas
urbanas compostas por letras estilizadas, com poucas cores e de
rápida reprodução.
Ramos (1994) coloca que, embora o graffiti e a pichação sejam
práticas que possuem uma mesma raiz e que, muitas vezes, busquem
lugares não autorizados para expor os trabalhos e compartilhem
riscos comuns e perseguições, a diferença entre graffiti e pichação
está na linguagem empregada. Embora a autora entenda que entre
estas duas formas de intervenção haja muitas similaridades, uma
vez que se caracterizam como transgressão do espaço urbano,
na pichação não há, necessariamente, uma preocupação estética
na ação. Os pichadores preferem lugares valorizados socialmente,
como museus, igrejas, escolas, instituições, para criticarem e
contestarem diversos valores sociais. “Aos pichadores interessa
mais o ato, o rito, o aparecer, o transgredir e menos o processo
criador” (RAMOS, 1994, p.48).
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Estes sujeitos ou grupos, marginalizados pela suas condições
sociais, respondem a esta marginalização por meio da pichação
urbana, enfocando o ato e não o trabalho final, que do rabisco ao
sujo, das frases pornográficas às de amor, procura falar ao urbano. Os
grafiteiros, diferentemente, “não pretendem agredir o espaço urbano,
do qual eles mesmos fazem parte, mas sim desmistificar os símbolos
de dominação cultural deste espaço, e evidenciar as desimportâncias
urbanísticas” (RAMOS, 1994, p.50).
Gitahy (1999) destaca ainda que o graffiti procura entrar na
dinâmica urbana de forma interativa, privilegiando as imagens em
decorrência da sua origem nas artes plásticas, enquanto que na
pichação o primordial é a palavra ou escrita pela qual se dá vazão ao
descontentamento social e à falta de expectativas de certas camadas
sociais urbanas. Para o autor, as posturas destas duas formas de
intervenção urbanas são diferentes, sendo preciso considerar estas
diferenças para não ser arbitrário em relação ao aparecimento e
desenvolvimento destas duas linguagens no Brasil. Entretanto, tanto
grafiteiros como os pichadores têm como suporte para suas atividades
a cidade como um todo, diferenciando-se de outras manifestações
artísticas urbanas.
Outros autores que se debruçaram sobre o graffiti falam da
diferença existente entre graffiti e pichação no Brasil (LARA, 1996;
LODI, 2003; ORLANDI, 2004). De modo geral, ressaltam que as
diferenças na elaboração das formas, implicando uma distinção
na percepção estética das mesmas, constituem os fundamentos
comumente utilizados para diferenciar o graffiti da pichação. Orlandi
(2004) faz uma reflexão acerca da diferença promulgada entre estas
práticas e evidencia a pichação como discurso no urbano, no qual e
pelo qual, nos limites do indecifrável, os sujeitos se apresentam como
sujeitos de vontade, na luta por espaços de significação.
Para além do debate sobre o fato dessas práticas serem
consideradas arte ou não, o que foge ao escopo deste trabalho,
destaca-se a sua dimensão constitutiva tanto de seus artifícios quanto
das pessoas que com o graffiti e/ ou pichação se relacionam seja
negando, acolhendo, se opondo, contrapondo aos traços e cores
objetivados nos espaços urbanos. Mas o que isso significa?
Para a Psicologia Histórico-Cultural um ser humano tornar-se sujeito
singular mediado pelas diversas relações que institui com o mundo e
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Janaína R. Furtado
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas.
com sua própria existência. Dentre elas, ressaltamos a importância
das relações estéticas, relações estas que exigem outra postura do
sujeito frente aos objetos, os quais são tomados mais por sua forma e
significado do que por sua função utilitária, mesmo que esta coexista
no momento em que a relação se firma (VÁSQUEZ, 1999).
Por relações estéticas entende-se uma forma de apropriação
do mundo, pautada pela sensibilidade e na qual sujeito e objeto se
descolam do imediato, da experiência física e concreta e se constituem,
ambos, enquanto estéticos (ZANELLA, 2004). Na relação estética o
mundo é re-criado e uma nova compreensão da realidade se constitui
na produção de outros sentidos, construídos a partir do olhar que se
lança mais aberto às coisas, para além delas. Este olhar mais amplo
corteja o mundo seduzido pela possibilidade de forjar novas relações,
novas visibilidades, forjando ao mesmo tempo a existência do sujeito
que olha e que, olhando, se re-cria.
O olhar estético, historicamente produzido na ininterrupta dialética
entre modos coletivos e singulares de se perceber o mundo, estranha
o unicamente visível e do visível desliza ao imaginável, objetivando-se
no ato criador, ato no qual o estético para mim torna-se possibilidade
de ser estético para outro.
Toda criação de algo novo, sendo arte ou não, parte de e
engendra outra forma de relação com os objetos do mundo e com
as próprias emoções, os quais ganham novos sentidos a partir dessa
nova configuração onde se combina o antigo com o novo, superase a reprodução do vivido e criam-se a novas possibilidades para a
existência singular e coletiva (VIGOSTKI, 2001). Relações estéticas,
por sua vez, são o fundamento da elaboração criadora da realidade,
pois “relação estética é relação sensível que, no prazer/desprazer,
no deleite ou repulsa, forja a própria sensibilidade e se objetiva na
atividade criadora” (ZANELLA, 2004, p.139). Não passam, portanto,
sem deixar vestígios no psiquismo humano, configurando-se material
de base para a elaboração criadora e possibilitando a síntese das
emoções implicadas neste processo tão complexo.
Método
O presente artigo resulta de uma pesquisa de mestrado que
objetivou compreender os processos de criação no graffiti e suas
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implicações no contexto urbano de Florianópolis/SC (FURTADO,
2007). Neste período, pesquisadora entrou em contato com
grafiteiros por meio de uma loja de roupas que estava localizada no
centro da cidade e que era ponto de encontro de muitos grafiteiros
da região. Os donos da loja, também grafiteiros, foram os primeiros
interlocutores da pesquisadora e lhes apresentaram vários grafiteiros
da cidade, sendo que com alguns deles foram realizadas entrevistas.
Seis grafiteiros da cidade de Florianópolis foram sujeitos de
pesquisa, todos do sexo masculinos, com idades entre 20 a 29
anos de idade, e pertencentes a diversos grupos (crews) de graffiti
da cidade. Todos eles nasceram e viveram parte de suas vidas em
outros municípios ou estados e, na época, estavam residindo em
Florianópolis há alguns anos. Grafitavam em diversas localidades
da cidade, geralmente no centro, mas também em outros bairros,
inclusive nos quais moravam.
As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas com a
devida autorização dos participantes1. Foram marcadas por telefone
ou pessoalmente no momento em que a pesquisadora foi apresentada
ao grafiteiro. Estas entrevistas ocorreram em diferentes lugares,
conforme a escolha dos sujeitos entrevistados, mas geralmente na
própria rua onde eles realizavam suas intervenções.
A análise das entrevistas fundamentou-se nas teorias de Bakhtin
(1990) e Vigotski (2000). Buscou-se, a partir de regularidades e
diferenças nos discursos dos sujeitos, identificar temas, relações
e dimensões, configurando unidades de análises que permitiram
descrever e compreender os sentidos que os grafiteiros atribuíam ao
graffiti e à pichação.
Entende-se que o discurso se produz como ato num contexto
singular e irrepetível que possibilita e impossibilita a emergência de
certos enunciados, entendidos como unidades reais da comunicação
discursiva (BAKHTIN, 1990). Em uma mesma enunciação, enunciados
concretos dialogam retrospectivamente e prospectivamente com
outros enunciados, produzindo e fazendo circular discursos (BRAIT
& MELO, 2005). Toda enunciação constitui apenas uma fração de
uma corrente de comunicação verbal ininterrupta mais ampla, que
não pode ser separada do curso histórico das enunciações e na qual
estão as marcas da subjetividade, intersubjetividade, alteridade que
caracterizam a linguagem em uso.
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Janaína R. Furtado
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas.
Nestes enunciados transversalizam-se diversas vozes que
se deixam ouvir e não se deixam ouvir no texto, caracterizando
o discurso como dialógico e polifônico. O aspecto polifônico do
discurso dos sujeitos, ou seja, a multiplicidade de vozes que aparecem
no mesmo texto, deve-se justamente pelo fato do discurso ser
dialógico e nele o sujeito carregar o tom de outras vozes, refletindo
a realidade de seu grupo e a materialidade histórica e social em
que está inserido. Em uma entrevista, por exemplo, o sujeito se
expressa, mas ocupa o lugar de autor apenas por um ponto de
vista que trabalha o texto, está em todo lugar e lugar nenhum,
na intersecção entre a forma e o conteúdo (AMORIM, 2002).
Por meio dos processos de significação engendradas na situação
da entrevista pôde-se recompor o contexto das atividades e seus
sentidos para os grafiteiros, localizando os sujeitos, as histórias e as
transformações dos processos investigados.
Entre o graffiti e a pichação, um vão?
Longe de querer discutir se uma ou outra atividade se adéqua
ou não ao campo das artes, ressalta-se que a diferença entre graffiti
e pichação localiza-se no Brasil, o que não ocorre em outros países
nos quais os dois tipos de intervenção urbana são consideradas
graffitis, produções estéticas em um lugar de fronteira, boardline
no espaço urbano. Observou-se que no cerne do debate sobre
a diferença, configura-se outro debate: estética, o vandalismo e
intervenção urbana.
Alguns grafiteiros entrevistados são, de certa forma, também
pichadores e costumam colocar seus tags em diversos locais da
cidade, mesclando as duas atividades. As tags são assinaturas
em spray de grafiteiros ou suas crews que caracterizam o tipo
de intervenção realizada na pichação, cujos grafismos foram, a
princípio, influenciados pelo movimento de graffiti norte-americano.
Aos poucos os pichadores brasileiros desenvolveram estilos de
letras e modos de atuação na cidade extremamente diversificados,
tornando a estética própria da pichação no Brasil reconhecida no
mundo inteiro (MANCO, 2005).
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Por vezes, antes ou depois de uma produção em graffiti, os
grafiteiros aplicam algumas tags nas paredes, muros, latas, portas,
etc. Segundo Japão (entrevistado para esse artigo) a atividade ilegal,
rápida e com pouca elaboração, como o bomb2 ou os tags, ação típica
de pichadores, apresentam-se como uma espécie de recompensa
de uma produção de graffiti, na qual houve um planejamento e
maior tempo de execução. Ou seja, antes ou depois de fazer uma
produção em graffiti mais elaborada, alguns grafiteiros gostam de
aplicar os tags ou fazer uns bombs para se divertir. Outras vezes é
uma forma de mostrar pra cidade que a cidade não pára e que se
alguém disser “aqui neste muro não cabe um graffiti”, o grafiteiro
vai lá e bombardeia o muro só pra poder mostrar que não adianta
frear o movimento, que ele acontece.
De certa forma, os grafiteiros também se reconhecem no
reconhecimento que a pichação feita no Brasil tem pelo mundo a
fora. Ner, 20 anos, por exemplo, ao responder sobre a diferença
entre graffiti e pichação, conta:
São coisas distintas porque muita gente não sabe, mas assim como o
carnaval, o samba, a pichação é um negócio nosso, nacional. Tu vai
para os Estados Unidos e tu não vê o que tu vê no Brasil. Tu não vê
prédio de quarenta andares ser pichado no último andar. É um negócio
totalmente nacional, é nosso, é brasileiro e é bem distinto do graffiti
(NER, 2006).
Ao mesmo tempo em que Ner denota um reconhecimento
da pichação como um produto nacional, singular, característica
da cultura urbana brasileira, também identifica a diferença entre
graffiti e pichação, embora não afirme claramente qual a diferença
entre essas atividades.
Se em um primeiro momento Ner apresenta um discurso que
evidencia existir uma diferença entre graffiti e pichação, ao me
falar de sua preferência, da sua prática no graffiti, Ner parece se
posicionar exatamente em um dos pontos no qual essas atividades
se imbricam, mas não as diferencia de todo: a intervenção ilegal,
rápida, na qual não há tempo para maiores elaborações da
imagem que se faz e que, portanto, possibilita que o produto
do seu trabalho se assemelhe ao produto das pichações. Tanto o
graffiti quanto à pichação podem se caracterizar como formas de
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Janaína R. Furtado
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas.
intervenção urbana ilegal, aquelas que não pedem para passar e
acabam, muitas vezes, estando relacionadas ao vandalismo. Neste
sentido, o grafiteiro e o pichador querem assinar sua crew, colocar
seu nome, ou fazer valer a sua escrita, o seu estilo, tornando-se
visíveis no mundo das impessoalidades urbanas.
Dos seis grafiteiros entrevistados, Lai foi o que mais atuou como
pichador e por mais tempo em São Paulo, onde as gangues de
pichação são muitas e em suas disputas querem ser reconhecidas,
estar em todos os lugares, em mais lugares possíveis, e nos mais
diversos. Lá, participou de uma crew de pichadores chamada
“Nada Somos”, autodenominavam-se alpinistas urbanos, pois
buscavam sempre os lugares mais altos da cidade. Diz: “Antes
eu fazia mais vandalismo como eu já te falei. A gente gostava
bastante de pichar no alto que era meio que uma disputa a
pichação, né? (....) O importante, o foco do pichador é o ibope”
(LAI, 2006).
Perguntamo-nos se não seriam os objetivos implicados nestas
atividades que os sujeitos realizam na cidade um dos aspectos
que distingue o graffiti da pichação. A formação de grandes
grupos de pichadores, almejando um reconhecimento advindo da
quantidade e qualidade de lugares em que inserem os nomes de
seus grupos, e uma outra forma de expressão estética, parece se
diferenciar dos modos como os grafiteiros atuam nos contextos
urbanos e se relacionam com eles e entre si.
Dentro da disputa, a procura do reconhecimento da crew
por outros grupos e pelos pichadores que inovam ao procurar os
lugares, não só mais altos, mas também os mais perigosos, leva Lai
a afirmar que “(....) eu considero o movimento mais underground
que existe na face da terra, a pichação”. Underground significaria,
então, a pintura no subterrâneo, no suburbano, nos lugares ocultos
da cidade, no silêncio da noite. Para Lyn e Ner, o graffiti também
pode ser underground quando realizado nos becos, valas, túneis,
muros destruídos, portas de ferro, o que depende da atitude do
grafiteiro, suas formas de expressão. Segundo Lyn,
Atitude e expressão. Cada um tem a sua atitude. Como eu te falei,
tem gente que só grafita produção, autorizado, com bastante tinta,
com tema ou sem tema. Tem gente que só grafita na rua. Tem gente
que grafita os dois. Tem gente que só picha, daí mais vandalismo.
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Eu, pra mim, vejo a pichação como “street art”, dependendo do
lugar. Eu, por exemplo, não picho na casa da tiazinha. Eu já procuro
uma coisa mais “underground”.
Lyn não somente reconhece distintas posturas dos grafiteiros em
relação ao trabalho no graffiti, como qualifica a pichação como uma
forma de arte de rua, se feita em determinados lugares. Enuncia-se,
também, como pichador, porém, um pichador, ao contrário do que
socialmente se afirma sobre a pichação, pois não picha em qualquer
lugar e prefere aqueles denominados por ele como underground.
Segundo Ramos (1994), os grafiteiros costumam se preocupar
com o lugar no qual intervém, diferentemente dos pichadores para
os quais importa o protesto e a transgressão, o que Lyn denota ao
falar em um momento da entrevista que não picha, por exemplo,
na casa da “tiazinha”. Outros grafiteiros, durante as entrevistas,
mesmo quando estavam falando dos momentos em que pichavam,
fizeram algumas ressalvas acerca dos seus lugares de atuação. Estes,
geralmente, não picham muros ou paredes recém pintados pelos
proprietários ou monumentos públicos, a não ser que tenham um
objetivo de protesto preciso que inclua esses lugares, tornando-os
alvos da pichação.
Compreende-se que entre graffiti e pichação há um vão, um
abismo no qual sentidos múltiplos podem se fazer ecoar pelas
vozes que se expressam pelos mais variados discursos visuais na
cidade. Certamente, para iniciarmos o debate acerca da fronteira
entre vandalismo ou protesto, arte ou rabiscos desimportantes,
legalidades e ilegalidades no graffiti e na pichação, teríamos que
esclarecer as tramas articuladas entre os discursos, as ideologias e
os contextos sociais.
Os grafiteiros, neste caso, falam como grafiteiros que também
picham para um ouvinte/pesquisadora que quer ouvir sobre graffiti
e pergunta sobre as diferenças entre graffiti e pichação. Graffiti
e pichação se apresentam, portanto, intrincados, hibridizados.
O grafiteiro/pichador que grafita aqui, mas não picha ali. Outros
pichadores, por sua vez, ocupariam outras posições nos discursos
e, portanto, sentidos outros bailariam no ritmo dos sentidos
engendrados por estas práticas. Para um urbanista metódico talvez
a pichação seja apenas sujeira urbana, sem técnica ou estética;
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Janaína R. Furtado
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas.
e o graffiti só técnica sem ética. Nós perguntamos pelo modo
como estes sujeitos grafiteiros pesquisados se constituem sujeitos
urbanos, grafiteiros/pichadores, que por meio de sua práxis urbana
protestam, vandalizam, criam objetos estéticos, arte ou não-arte,
num contínuo e descontínuo processo de reinventar a si mesmos.
Estilos e essências: (re) pensando as relações estéticas
e intervenções urbanas
Segundo Lyn, a pichação e o graffiti partem da mesma essência,
a intervenção ilegal. Quando é perguntado sobre a diferença entre
as duas, afirma:
Na essência, no começo, é a mesma coisa porque a pichação e o
graffiti ilegal, vai muito disso aí, da ilegalidade porque a pichação é
ilegal, é intervenção urbana. Se você fizer um graffiti ou uma pichação
num lugar ilegal eles ficam muito parecidos não no estilo, mas na
intervenção social.
O fato de o graffiti e a pichação utilizarem o mesmo suporte
para suas atividades – a cidade – de dialogarem com o espaço como
forma de intervenção social e urbana, geralmente ilegal, dificulta a
intenção de diferenciá-las e possibilita hibridizações e semelhanças
diversas, bem como que os próprios grafiteiros se apreendam
como grafiteiros que também fazem pichações. No entanto, Lyn
enuncia uma diferença que se respalda no estilo. Pergunto-me se
o discurso de Lyn vai ao encontro do que Ramos (1994) afirma ser
um dos elementos que distingue a pichação do graffiti, a linguagem
utilizada. O estilo o qual Lyn faz menção é o da elaboração das
letras, o tempo exigido para o trabalho e rebuscamento da pintura,
ou seja, o modo como o sujeito se insere nos espaços urbanos e
intervém neles, assim como o estilo mesmo das letras.
No graffiti parece haver uma preocupação estética com o
resultado do trabalho e com o espaço. Não por acaso o tempo
exigido para um graffiti, que usa variadas cores e atenta para os
contornos, o que não é comum na pichação, é maior. Isso não quer
dizer que no graffiti só há imagens com ilustrações e desenhos
figurativos e na pichação mais as letras. No decorrer das entrevistas,
os jovens esclareceram que no graffiti há letras e personagens,
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letras que ganham uma forma singular, passam por um processo
criador específico. Porém, na pichação não se faz qualquer
letra, são igualmente letras estilizadas, criadas para possibilitar o
reconhecimento da crew.
Como afirma Orlandi (2004), as letras na pichação são sinais
gráficos que representam uma vontade social e comunicam-se entre si
fora da ideologia da informação e da comunicação convencionalmente
aceitas nas cidades, como os outdoors por exemplo. Neste sentido, se
na pichação parece não haver preocupação com os rebuscamentos,
contornos, fundos e cores da imagem, a imagem produzida também
passa por um processo criador singular, envolvendo uma percepção
estética por parte de quem as cria e de quem as contempla, impondo,
na mesma medida, uma estética outra aos contextos urbanos e para
seus transeuntes, que muitas vezes as percebem como letras sem
significado, rabiscos na parede.
O aparentemente sem significado significa o urbano, impõese como signo urbano, ideológico, irrompendo com as formas
cristalizadas de se comunicar e se expressar nestes espaços. Para
os pichadores, que passam por um processo de iniciação no
próprio movimento, aprendendo a fazer as letras e decodificá-las,
essas palavras também significam, referem-se às suas crews, à sua
existência, às suas escolhas, enfim, a tudo que a ordem simbólica
dominante na cidade não viabiliza, renega, esconde, oculta.
A discussão estética no urbano implica, fundamentalmente,
em uma discussão ética em relação aos modos como os espaços
da cidade podem ser utilizados e por quem. Da mesma maneira,
dizer que no processo de criação na pichação não há preocupação
estética com o resultado do trabalho ou com o espaço no qual a
pichação é colocada, pois o espaço também não é qualquer um e sim
aquele que faz sentido ao pichador e aos seus objetivos, é produzir
efeitos de sentido, portanto, ideológicos, que vão de encontro com
a estética-ética dominante nos contextos urbanos.
No graffiti, por sua vez, há uma elaboração que tange a clareza
e a mensagem que transmite, aproximando-se da arte por meio
de sua linguagem. Qualquer busca de uma diferenciação estética
entre graffiti e pichação não pode significar a pichação como uma
atividade onde se faz qualquer coisa. Afinal, as letras passam por
um processo singular, único, de invenção. Estilizadas, possibilitam a
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Janaína R. Furtado
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas.
diferenciação de um e outro pichador e vem qualificando a atividade
no Brasil. E se o lugar, aparentemente, é qualquer um, está ao juízo
do pichador, o lugar é justamente aquele capaz de causar impacto,
de produzir efeitos a quem passa e a quem se considera proprietário
do espaço. Neste sentido, a pichação e o graffiti desprivatizam,
tornando públicos alguns espaços da cidade.
Lyn e Ner contextualizam a pichação como uma atividade nacional
que começou com a intenção de protesto por volta da década de 60.
Deste protesto, a escrita de rua teria passado, segundo Lai, por um
processo de evolução. Japão e Pablo também consideram o graffiti
como a evolução da pichação e sua decorrência, a evolução da escrita
de rua. Neste movimento, o graffiti tornou-se algo mais elaborado,
exigindo outras técnicas.
Para Japão, os procedimentos do graffiti – sombreamento,
preenchimento da imagem, uso de diversas cores, detalhamento do
fundo e da forma – provocam uma diferença estética clara:
Esteticamente a diferença é clara né. Na pichação é só risco, traço,
usando uma única cor e no graffiti é mais colorido e mais elaborado,
mas hoje já está surgindo o“grapicho”, que é junção dos dois.(...) Os
graffitis mesmos estão vindo influenciados pela pichação, por isso que
eu te digo que a diferença é mais estética (JAPÃO, 2007).
Japão afirma que a diferença entre graffiti e pichação é estética e
se refere a alguns novos graffitis, os “grapichos”, que mesclam as duas
atividades. Considera, contudo, que a pichação, tipo tag reto, é um
produto nacional e que os graffitis são influenciados pelas inovações
da pichação. De certa forma, o que Japão possibilita problematizar
em seu discurso é que essas duas formas de intervenção urbana se
hibridizam e se constituem mutuamente.
A partir da entrevistas com os grafiteiros, percebe-se que, ao
mesmo tempo em que afirmam haver uma diferença entre graffiti
e pichação, constituem-se como grafiteiros na interlocução com
os diversos sentidos apropriados acerca da pichação, muitas vezes
atuando também como pichadores ou em uma prática de graffiti
que muito se assemelha à pichação. Mesmo que a diferença esteja
explícita no discurso, não significa que seja simples estabelecela partindo do produto destas atividades ou do modo como os
grafiteiros intervêm nos espaços urbanos.
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Entretanto, entendemos que os grafiteiros denotam uma
distinção em relação à linguagem utilizada no graffiti e na pichação,
que produzem produtos estéticos diferentes. Decorre disso que
os processos de criação envolvidos nestas atividades também se
apresentam diversificados, na medida em que os grafiteiros procuram
criar imagens usando variados elementos para sua elaboração.
Por sua vez, são o foco o graffiti e a pichação de valorizações
particulares, muitas vezes díspares por parte da sociedade, cujos
produtos materiais estão, enquanto signos urbanos, inseridos no
campo de disputas ideológicas.
Considerações finais
Embora graffiti e pichação sejam formas de intervenção
urbana e a cidade seja o seu suporte, os objetivos destas práticas
igualmente se diferem, bem como as relações tecidas entre os
sujeitos, deles com esses objetivos e com a cidade. Por vezes, a
linha tênue que pode separar o graffiti da pichação perpassa pela
legalidade e ilegalidade do trabalho ou, mais precisamente, pelo
tipo de intervenção realizada. Dificilmente uma obra mais elaborada,
com cores diversificadas, contornos e fundos é confundida com
a pichação, no entanto, o movimento de graffiti não se qualifica
apenas por produções ou atividades autorizadas. Neste sentido,
muitos grafiteiros seriam também pichadores se considerarmos
apenas o produto da atividade e não todo o contexto no qual o
próprio sujeito está inserido.
Sabe-se que, por um lado, muitos grafiteiros aprenderam
sozinhos e entre eles técnicas e procedimentos mais elaborados de
graffiti. Por outro, as pichações de hoje são produções extremamente
precisas e as suas letras estilizadas podem ser compreendidas
como expressões estéticas no urbano. Se os grafiteiros designam
diferenças entre graffiti e pichação, elas são, contudo, linguagens
inter-cambiantes e se desenvolveram e ainda se desenvolvem de
maneira interdependente.
Entre graffiti e pichação evidenciam-se diferenças estéticas
e diferenças na maneira de apropriação dos espaços urbanos.
Diferenças que não suprimem as possibilidades de seus artífices,
como grafiteiros, por vezes atuarem como pichadores ou
1 5 2 Janaína R. Furtado
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas.
valorizarem a pichação como atividade por cujo intermédio podem
protestar em relação às tensas dinâmicas sociais entre público e
privado. Ademais, entre o autorizado e não autorizado, legal e
ilegal, o graffiti e a pichação muitas vezes se assemelham e são
compreendidos como práticas marginais, de vandalismo. Se no
graffiti os sujeitos utilizam variados elementos para a elaboração da
imagem no espaço, configurando diferenças em relação à pichação,
na pichação também ocorrem processos de criação e seus produtos
também implicam uma outra ética-estética no urbano.
Notas
1 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres Humanos
da UFSC em dezembro de 2005. Todos os entrevistados, devidamente esclarecidos quanto
aos objetivos da pesquisa, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, contendo
os objetivos da pesquisa, e autorizaram a utilização de seus nomes e imagens.
2 Bomb é um estilo de pintura que se assemelha muito à pichação porque é elaborado de
forma rápida, sem muito refinamento de desenho e utilizando no máximo três cores de spray
e um rolinho para contornos.
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VIGOTSKI, Liev Semióniovich. Obras escogidas III: problemas del
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VIGOTSKI, Liev Semióniovich.. Psicologia da Arte. São Paulo:
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ZANELLA, Andréa Vieira. Atividade criadora, produção de
conhecimentos e formação de pesquisadores: algumas reflexões.
Psicologia e Sociedade, v. 16, n.1, p.135-145. 2004
1 5 4 Janaína R. Furtado
Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas.
Janaína Rocha Fur tado
Mestre em psicologia social pela Universidade Federal De Santa CatarinaUFSC.
Email: [email protected]
Co-autora:
Andréa Vieira Zanella
Professora do departamento de graduação e pós-graduação de psicologia
da Universidade Federal De Santa Catarina-UFSC.
Email: [email protected]
155
From the symbolic hermeneutics developed by the Circle
of Eranos, and concepts like myth and symbol, this article aim to reflect about the artist’s myth as an extension
of Hero’s myth. To identify the heroic myth as a point of
reference in the artistic identity construction, I introduce mythcritic as methodology.
Key-Words: symbol, myth, artist’s figure
abstrac t
O mito do artista como extensão do mito do
herói
Francielly Rocha
Dossin
resumo
A partir da hermenêutica simbólica desenvolvida pelo
Círculo de Eranos e de conceitos como mito e símbolo, este artigo visa refletir sobre o mito do artista como
extensão do mito do herói. Para podermos identificar o
mito heróico como ponto de referência na construção
da identidade artística, apresenta a mitocrítica como
metodologia.
Palavras-chaves: símbolo, mito, figura do artista
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Mito e símbolo
Toda fala da experiência artística é mito, todo mito é poesia1.
Intelectualizar a arte é sempre uma tarefa árdua e intangível
em sua completude. Podemos, ao invés de imbuir-nos de uma
missão que de antemão se mostra frustrada, ser conscientes de
que tangemos apenas partes do objeto em questão, o alcançamos
apenas por uma aproximação, tão plena de interstícios e fendas
quanto à própria arte. Se toda fala da experiência artística é poesia,
devemos retê-la também na construção de um texto que se propõe
a pensar a arte.
Especula-se que a arte tenha surgido a partir de práticas rituais e
mágicas. Pinturas e esculturas de períodos da chamada “pré-história”
sobreviveram ao tempo, possibilitando especulações científicas,
como dos arqueólogos. Naturalmente, expressões artísticas como a
dança e o teatro não proporcionam tais formas de registro, fazendo
com que a verdade em torno da origem da arte permaneça na
ordem do inefável.
No entanto, a hipótese da ligação entre a arte e práticas
mágicas é bastante crível, principalmente quando nos atemos ao
desenvolvimento da arte na história, em sua forma linear como
estamos habituados. A partir do momento em que o homem teve
consciência de sua “situação” no mundo, a questão que o atormenta
desde então é sobre sua brevidade e possível posteridade. A morte é
a grande impulsionadora, pois se constitui no fato mais transtornador
da vida. Para poder suportá-la o homem cria, acontecimento esse
onde pode projetar a transcendência. Na arte vemos e vivenciamos
metáforas da existência e alegorias da morte.
Toda prática humana se constitui como forma de buscar sentido
para sua existência, mas a arte, como uma forma de linguagem, é
então o lugar de excelência para a expressão dessa falta na busca
de preenchê-la. Segundo o filósofo Théodore Jouffroy, “somente
o invisível nos comove” (apud MANGUEL, 2003, p. 222), é este
vácuo presente numa obra de arte que nos “atinge”, da mesma
maneira que é justamente esse vazio que conduz a obra de arte e
nossa relação com ela a um caráter de transcendência, e também,
158
Francielly Rocha Dossin
O mito do artista como extensão do mito do herói
porque não dizer, mágica. Afinal, nossa relação com a arte não
se dá apenas através recognição da qualidade estética ou sua
relevância histórico-social. É o que nos explica Vargas (2005, p.
19), “[...] O reconhecimento da qualidade da obra de arte não se
limita a reconhecer o conhecimento da linguagem ou da história da
linguagem, mas também é o reconhecimento de uma revelação, de
um mistério”.
A ciência no período da construção de seu discurso fundador
precisou negar o que a precedeu para poder, enfim, conquistar seu
posto que hoje ocupa de forma privilegiada e quase hegemônica em
nossa sociedade. Como resultado disso, o discurso científico criou
certos preconceitos vinculados a termos como magia, transcendência,
mitologia e mito. Esses foram, e são vistos como superstições, histórias
falsas, “coisas do homem primitivo e ignorante”, e são situados em
oposição ao racional e à ciência. Desconsiderando, assim, as duas
formas de pensamento como relacionais e igualmente inerentes
ao homem. Apesar de negar a validade daqueles, podemos notar
a presença do mito em toda nossa fala e comportamento. Dessa
forma, o mito e a mitologia são boas fontes/formas para pensarmos
modelos de comportamento e seus significados, principalmente em
relação à permanência de modelos artísticos, é o que se propõe a
mitocrítica.
Mesmo não se oferecendo a ser de fato uma metodologia
para análise e leitura de obras artísticas e críticas, a hermenêutica
simbólica se constitui como base para uma reflexão epistemológica
sobre os elementos que nos conduzem a relação dessas.
A hermenêutica simbólica do Círculo de Eranos2 (Eranoskreis)
nasceu na Europa no período entre guerras, mais especificamente
na década de 30, na forma de um grupo interdisciplinar, com o
objetivo de trazer diferentes concepções filosóficas e confrontálas com a concepção predominante no ocidente. Sabe-se que esse
período histórico foi marcado pela desilusão acerca do pensamento
econômico, científico e tecnológico, que sob a égide “civilizacional”,
não pode conter crises como a de 1929, nos EUA, e a implosão da
Primeira Grande Guerra Mundial que culminou ainda na Segunda
Grande Guerra Mundial3, as quais o historiador Eric Hobsbawn,
por exemplo, chama de “Guerras Totais”. Segundo ele, “para os
que cresceram antes de 1914, o contraste foi tão impressionante
159
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que muitos [...] se recusaram a ver qualquer continuidade com
o passado” (HOBSBAWN, 1995, p. 30). Essas experiências
impulsionaram o esforço para encontrar formas alternativas para o
pensamento ocidental que se mostrava então tão desastroso.
A inspiração teórica do Círculo de Eranos foi Carl G. Jung, o
que justifica a direção junguiana que o grupo toma desde o início.
Muitos reconhecidos pensadores fizeram parte do grupo, dentre
eles, o mitólogo Joseph Campbell que se dedicou principalmente
ao estudo do mito do herói, o romeno Mircea Eliade já bastante
conhecido dos acadêmicos brasileiros, e o antropólogo Gilbert
Durand que desenvolve a mitocrítica, metodologia para análise de
obras literárias, infelizmente ainda pouco conhecido e estudado
no Brasil.
O conteúdo conceitual erosiano centra-se no estudo da mitologia
e do mito que é o veículo no símbolo. O conceito de símbolo é o
que difere o pensamento do Círculo de Eranos de outras correntes
do pensamento como, por exemplo, o estruturalismo. Difere
também da hermenêutica filosófica, na qual Gadamer é um dos
maiores representantes. Nesta o homem é marcado pela tradição
e cultura. Para Gadamer (1985), estamos imersos na história e
não há possibilidade de nos situarmos fora dela. Já sob o ponto de
vista da hermenêutica simbólica o mito antecede a história, logo,
qualquer consciência histórica é, em verdade, precedida de uma
inconsciência mítica.
Sobre a questão o pesquisador, professor e artista Antônio
Vargas (2006, p. 26) diz, “Durand esclarece que sem o
funcionamento das estruturas míticas não há inteligência histórica
possível, já que é a existência de uma mitologia ‘mãe’ que permite
que os acontecimentos históricos sejam ‘inscritos’ em uma narrativa
com sentido coletivo”. Não obstante, esse entendimento se dá
também pela negação do conceito de história como linearidade e
evolução.
O símbolo, principal conceito, assim como os outros conceitoschave da tradição erosiana, é bastante complexo, ambíguo e
inesgotável. Defini-lo é uma tarefa escorregadia, até porque
estamos na ordem do simbólico o que dificulta sua identificação,
mas mesmo assim é sempre uma manifestação concreta. O
símbolo aqui apresentado não corresponde ao símbolo/signo
160
Francielly Rocha Dossin
O mito do artista como extensão do mito do herói
semiótico, pois ele é uno, sendo ao mesmo tempo significante
e significado, não tem objetividade em si, também não contém
apenas subjetividade. Ele é conduzido através do mito (narrativa),
e seu sentido se constrói através das redundâncias sincrônicas.
O símbolo é também relação, não permitindo distanciamento
e exigindo afetividade, por isso algo é símbolo para uma pessoa
quando esse algo existe nela e para ela, lembrando que o
substancial nesta instância é menos os pólos desta relação do
que a própria relação. Portanto, o símbolo foge à ordem da razão
e se instaura na ordem do transcendental. As grandes imagens
inseridas na história da arte, por exemplo, nos pertencem como
símbolos. Assim, a atividade artística e até mesmo a própria idéia
de arte podem também ser entendidas como símbolos.
Em toda relação há um pré-conceito, ou concepção que a
antecede. Essa concepção para Gadamer é histórica, enquanto a
hermenêutica simbólica não se detém na história e na realidade
como expressão dialética, pois há sempre o elemento de poesia,
de elevação que não se deixa reduzir.
Para a hermenêutica simbólica, antes da história há o mito,
que seria então pré-conceito. O que explica o símbolo é esse
conceito prévio não racionalizável. Quando o símbolo necessita
de explicação ele deixa de ser, se instaura uma crise e perde seu
sentido gerando outra significação, talvez menos rica. Ele é o que
desencadeia na pessoa, uma espécie de epifania. O símbolo está
presente no mito, que por sua vez, tenta dar conta da singularidade
simbólica, ligando o homem ao mundo.
O mito do herói e o mito do artista
Vários mitos atuam numa sociedade, uns emergem e
outros submergem. Um mito, como o do herói, pode ser visto
por um olhar histórico e social no sentido de que dentre suas
diversas características, algumas são mais ou menos enfatizadas
dependendo de seu contexto.
Um dos maiores símbolos é o mito do herói. Carregado de
tragicidade, o heroísmo não é moral, lembrai-nos que o mito não
é histórico nem cultural, e qualquer ato do herói, circunscrito num
161
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espaço-tempo, que poderia ser moralmente julgado, é justificado
pelo fim que visa sempre o bem da coletividade. Segundo Vargas
(2006, p. 27),
O herói é um dos símbolos mais importantes existentes. Nos emocionamos
com sua trajetória porque, embora sua origem seja parcialmente divina e
seus feitos estejam além do humano, ele também é humano, sofre como
nós, possui uma existência finita e um fim trágico. E o mais importante: o
motivo da existência do herói é a realização de uma ação que beneficiará
a coletividade. É seu destino.
Podemos claramente notar a forma como o mito do herói é
vivenciado quando nos deparamos com o mito do artista. Ao submeter
os discursos de especialistas em arte, como críticos, historiadores e
mesmo artistas, à análise mitocrítica podemos claramente notar que
a mitologia artística está fortemente presente na obra de arte e,
principalmente, na construção da identidade artística.
Vargas nos relata que os estudos de Ernst Kris, Otto Kurz e
Eckhard Neumann, “apontam um redobramento do mito do herói em
mito de artista. As mesmas características heróicas são encontradas
nas biografias de artistas assim como, nas análises e declarações da
crítica sobre os artistas e suas obras”. E continua, “O mito do artista
atua como um fio invisível que une sincronicamente observadorobra-artista, logo permite a vinculação de um determinado artista
como outros de diferentes épocas” (VARGAS, Ibid, p. 27).
Podemos verificar nas biografias dos artistas, em suas próprias
falas ou as da crítica, a repetição de alguns mitemas, com variações,
é claro, de um relato para outro, mas mantendo certa regularidade
em sua estrutura. Mesmo atualmente, apesar de artistas e críticos
negando qualquer tônica mitológica, encontramos mitemas que
coincidem com a trajetória do herói. Por isso pode ser interessante
no estudo sobre identidade artística considerar a influência do mito
e da mitologia em sua construção simbólica coletiva.
A mitocrítica é uma metodologia criada por Durand, para obras
literárias que Antonio Vargas adapta para as artes plásticas, e nos
relata (Ibid., p. 152), “[...] propus uma via alternativa cruzando
os pressupostos epistemológicos e metodológicos apresentados
por Durand com outros oriundos dos estudos sobre a mitologia
162
Francielly Rocha Dossin
O mito do artista como extensão do mito do herói
artística.” E ainda, “O resultado preserva os três pilares e assegura
o lugar da obra como lugar central da discussão, mas substitui a
identificação dos mitemas nas obras para localizá-los nos discursos
da crítica sobre as obras e o autor e do autor sobre sua obra e seus
conceitos de ser artista” (VARGAS, p 152).
Em seus estudos, Durand pôde notar que uma obra só resiste ao
tempo quando se mitifica. É com o objetivo de auxiliar a identificar a
mitologia nos discursos referentes às obras que surge a mitocrítica.
Tal método considera a estrutura, o autor (e sua biografia) e o
contexto sócio-histórico da época, que são os três pilares citados
acima por Vargas. O caminho que a mitocrítica propõe é a procura
da redundância nos conjuntos de mitemas.
O mitema é a menor unidade com sentido dentro da narrativa
do mito, e os mitologemas são mitemas maiores, como capítulos.
Por exemplo, o mitologema de origem contém mitemas como o de
ascendência nobre, proteção divina, profecia, nascimento difícil e
precocidade. Mas não podemos pensar em entender o mito como
algo retilíneo, em partes, mas sim, em sua integralidade, é o que nos
alerta Levi-Strauss (1979, p. 67-68), “[...] devemos estar conscientes
de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos
uma novela ou um artigo de jornal, ou seja, linha por linha, da
esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito,
porque temos de apreender como uma totalidade [...]”.
Pensemos ainda sobre a figura do artista. Ele não constrói sua
identidade do nada, mas sim de idéias precedentes sobre o que
é ser um artista. O primeiro título oficial concedido a artistas foi
o de “familiar”, referentes aos artistas que trabalhavam para uma
determinada corte, na época o título os elevava ao status de membro
da corte. Daí até antes do romantismo, os artistas conviveram
relativamente bem com os que criavam a demanda por arte, os
nobres e a igreja.
No romantismo, período de desencantamento com a revolução
industrial e com a burguesia, começamos a notar uma abundância
em relação a biografias dramáticas, narrando as infinitas faltas e
necessidades passadas por determinados artistas. A influência
do romantismo é contundente, visto que o modelo de artista
transformador nasce nesse período, apesar de muitos pensarem
que esse modelo tenha surgido com as vanguardas modernas.
163
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Como escreve Peter Gay (1999, p. 11), é nesse momento em que a
burguesia (incluindo artistas, médicos, historiadores, etc.) começa a
se deliciar e se angustiar com uma certa introspecção, visando uma
busca maior do “eu”, da individualidade.
Essa herança romântica é um paradoxo para o artista que
busca a aproximação da arte com a vida, pois o artista romântico
é o desajustado. Em Goya, por exemplo, podemos notar em sua
biografia que a maior redundância se dá em torno da valorização
do marginal. Também herança do romantismo é o que se refere
à degradação dos corpos, ao martírio que demonstra os limites
da consciência humana, está presente então, o artista criador de
consciência e de verdade.
As principais características do herói é visar o bem da coletividade,
como já citado, e o de transitar entre mundos, afinal, “o herói [é] a
união das forças celestes e terrestres” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
1989, p. 488). Isso se mostrará de diferentes formas na trajetória
do artista. Podemos facilmente notar isso quando o mito do herói
se estende para o mito da celebridade, talvez o herói mais em voga
em nosso tempo. É comum relato de celebridades que depois de
viverem períodos turbulentos (como a experiência com drogas)
voltam para compartilhar sua experiência com a coletividade, ou
em relato próprio ou de tablóides narrando como tais celebridades
fazem ou pensam “qualquer coisa” própria do “mortal”.
Quando o mito do herói se estende no mito do artista, podemos
notar dois modelos principais: O artista guerreiro, de natureza
externa tendo como principal característica anexar territórios, ou
seja, ampliar o campo de atuação, e o artista asceta, de natureza
interna cujo traço marcante é o de lutar com seus próprios limites,
de psicopompo.
Uma parte da narrativa que para o modelo guerreiro pode ser
um importante mitema, para o artista de natureza interior pode
nada ser, ou ainda, ser sua ruína. Um bom exemplo é o filme que
narra a vida de Jackson Pollock, artista de natureza interior. O
filme nos mostra que quando surge o mitema de potência sexual
é exatamente no momento de sua derrocada. Já o mesmo mitema
presente na narrativa biográfica de um artista de natureza exterior se
mostra como algo positivo até mesmo fator constituinte de seu ato
criador, como por exemplo, no filme biográfico de Pablo Picasso.
164
Francielly Rocha Dossin
O mito do artista como extensão do mito do herói
Um mitema bastante freqüente é o da precocidade, dificilmente
se lê alguma biografia ou texto crítico que não relate o belo desenho
que o grande artista em questão fez na infância, ou como cantava
aquela criança que agora se tornara um famoso tenor, mesmo
sabendo que toda criança pode desenhar e cantar de forma graciosa
a obter aplausos da família.
Podemos notar na crítica de Donald Kuspit (1992), que mesmo
quando tentamos de alguma forma ‘nos livrar’ do mito do artista,
acabamos por reafirmá-lo. No texto, Kaspit fala do mito do artista de
vanguarda (que na verdade é bem anterior ao período dos ‘ismos’),
onde identifica dois modelos, o artista educador (equivalente ao
guerreiro, de natureza exterior) e o artista personalista (equivalente
ao asceta, de natureza interior). O primeiro, é aquele que procura
revolucionar, ou seja, mudar o mundo herdado; o segundo, é aquele
que entende a arte como sofrimento, sentimento que se constitui
como via para um “Eu” elevado.
Cansado desses modelos pretensiosos, o autor clama pelo
“artista suficientemente bom”. O modelo proposto é o de um artista
que se apóia na sua exclusividade, menos interessado em lutar com
o mundo e mais propenso a viver em harmonia com o mundo.
Este artista aceita o fato de que é parte da sociedade, pois sem a
sociedade não há o “Eu”. Ainda, aqui, sua sugestão parece bastante
coerente, mas ao finalizar o texto onde tece sua nova proposta,
mostra o quanto o mito do artista continua claramente presente ao
dizer que através do novo modelo de artista suficiente bom talvez
consigamos, enfim, mudar o mundo.
O mito do herói parece ser prioritariamente masculino, essa é
uma questão que deixo, neste momento, em aberto. Tal fato pode
ser compreensível ao entender que nossa história da arte se baseia
na historiografia ocidental, eurocêntrica. Mas seria correto pensar
o mito como algo que precede a história e o social e se instala
no inconsciente? Se a resposta é afirmativa, como entender a falta
da mulher nestas narrativas entendidas como o mito do herói?
Para entender o mito do herói que se desdobra no mito do artista,
teremos de, para uma futura pesquisa, analisar, se é que possível, o
mito de uma heroína e achar sua estrutura nas imagens de artistas
mulheres. Uma pesquisa sobre a figura da artista mulher é bastante
interessante e relevante. Fica aqui lançado o desafio.
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Notas
1 Fala do professor Dr. Antônio Vargas durante as aulas do seminário temático “mito e
imagem do artista” ministrado em 2007/2 no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
da Universidade do Estado de Santa Catarina. Aproveito a ocasião para observar que as
digressões aqui expostas são frutos de reflexões a partir das aulas deste seminário.
2 Fundado por Olga Fröbe-Kaptein e tendo como padrinho o fenomenólogo Rudolf Otto.
3 Entre elas a guerra civil espanhola, que se mostrou um conflito não só espanhol, mas
europeu, quando todas as concepções políticas se materializaram nas guerrilhas.
Referências
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CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos.
Rio de janeiro: José Olympio, 1989.
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Rainha Vitória a Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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Ponto de vista – revista de educação e processos inclusivos. v. 6/7.
Florianópolis: UFSC, 2005.
166
Francielly Rocha Dossin
O mito do artista como extensão do mito do herói
Filmes
POLLOCK. Direção: Ed Harris. Produção: Brant-Allen, Fred
Berner Films, Pollock Films, Zeke Productions. Roteiro: Steven
Naifeh, Gregory White Smith, Barbara Turner, Susan J. Emshwiller.
Intérpretes: Ed Harris , Marcia Gay Harden, Tom Bower, Jennifer
Connellye outros. [E.U.A: California filmes], 2000. 1 fita de vídeo
(122 min).
OS AMORES DE PICASSO. Direção: James Ivory. Produção:
Ismail Merchant e David L. Wolper. Roteiro: Ruth Prawer Jhabvala,
baseado em livro de Arianna Stassinopoulos Hoffington. Intérpretes:
Anthony Hopkins, Natascha McElhone, Julianne Moore, Joss Ackland
e outros. [E.U.A: Warner Bros], 1996. 1 fita de vídeo (125 min).
Apoio
GARAGALZA, Luis. Filosofía e historia en la Escuela de Eranos.
In: Anthopos – Revista de documentación científica de la cultura.
Barcelona: Anthropos, n.153, 1994.
ORTIZ-OSÉS, Andrés. El círculo eranos: origem y sentido. In:
Anthopos – Revista de documentación científica de la cultura.
Barcelona: Anthropos, n. 153, 1994.
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Artes da UERJ. Rio de Janeiro: UFRJ, Ano 7, v. 1, n.9, 2006.
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mito do artista nas artes plásticas. In BULHÕES, M. A.; KERN, M. L.
(org). As questões do sagrado na arte contemporânea da América
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artística. In: Urdimento – Revista de estudos pós-graduados em
artes cênicas. Florianópolis: UDESC/CEART, v. 1, n.07, 2005.
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Francielly Rocha Dossin
O mito do artista como extensão do mito do herói
Francielly Rocha Dossin
Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – PPGAV, Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – CEART/UDESC. E-mail: [email protected]
169
Divided in three parts, this text begins with a short presentation of American photographer Cindy Sherman.
The second part of the text introduces the series of photographs: “Untitled Film Stills “, through which the artist
gained notoriety in the contemporary art world.
Sherman’s auto-portraits are analysed as a staged criticism of femininity represented in television and cinema.
The last part of the text discusses a photograph from
the series “Untitled Film Stills”; the artist gazing at a
mirror. Through Roland Barthe’s considerations in: “Camera Lucida” self-portraits and mechanisms of representation of the artist are discussed.
Key words: Cindy Sherman, identity, self portrait.
abstrac t
Auto-Retratos Da Pós-Modernidade: Cindy
Sherman Em “Untitled Film Stills”
Ângela
Prada
resumo
Dividido em três partes, este texto inicia-se com uma
breve apresentação do trabalho da fotógrafa americana Cindy Sherman. A segunda parte do texto trata do
seu primeiro trabalho, considerado uma referência na
arte contemporânea: “Untitled Film Stills” (Fotografias
de Cena sem título). Desenvolvido durante o final da
década de 70 nos Estados Unidos, o trabalho representa e questiona imagens da feminilidade, construídas ao
longo dos anos pelo cinema e televisão, em forma de
auto-retrato.
A última parte do texto analisa uma fotografia deste trabalho. Sob a ótica da obra “A câmara clara” de Roland
Barthes são traçadas análises sobre a questão do autoretrato e mecanismos de representação da artista.
Palavras-chaves: Cindy Sherman, identidade, auto-retrato.
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Esclarecimentos iniciais sobre Cindy Sherman
Nascida em Glen Ridge, no Estado de Nova Jersey, a artista americana Cindy Sherman cresceu no subúrbio de Nova Iorque. Quando
criança um de seus passatempos favoritos era brincar com roupas. A
pequena Cindy gostava de se vestir com roupas de adultos. Seu pai,
um engenheiro e sua mãe, professora, se divertiam fotografando a
pequena garota vestida com as roupas velhas da avó: “com meias
dentro de um sutiã que pendia na cintura” (SHERMAN apud SMALL,
1987, p. 157).
Sem preocupações em se vestir para parecer bonita, mas interessada em encarnar outros personagens, Cindy Sherman se lembra
de uma foto que tirou junto com sua amiga quando pequena; as
duas se vestiram de velhinhas e andaram pelo quarteirão, encontrando um vizinho que fingiu acreditar naquela simulação1.
Durante a década de 70, Sherman foi aluna de graduação do
curso de Artes Plásticas do “State University College em Buffalo”,
Nova Iorque. Inicialmente se envolveu com pintura: “algo para fazer
enquanto eu assistia à tv” (SHERMAN apud SMALL, 1987, p. 157)
e gostava de copiar exatamente o que observava em revistas ou em
seu reflexo no espelho. Inserida na tradição do auto-retrato, Sherman pesquisava seu próprio rosto.
Formada em Artes Plásticas em 1976, Sherman se mudou no
próximo ano para Nova Iorque. Suas inocentes brincadeiras de criança iam adquirindo contornos cada vez mais sofisticados: a artista
continuava a se produzir, elaborando cuidadosamente um teatro da
superfície sobre seu suporte favorito - ela mesma.
Ao se caracterizar como diferentes personagens, Sherman se
concentrava somente na aparência, sua atitude não sofria transformações; suas simulações eram cuidadosamente elaboradas com visitas freqüentes a brechós, bazares2 e empréstimos de amigos.
Para Sherman as personagens pareciam surgir dos objetos e
roupas que ela ia adquirindo: “... e de repente os personagens surgiam, só porque eu tinha tantos detritos deles.” (SHERMAN apud
HOWELL, 1995, p. 7)
Se auto-definindo como “reservada”3, para a artista, o sentido de se vestir de formas diferentes era:
“[...] mais uma questão de me esconder, estar disfarçada, ir de for172
Ângela Prada
Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills”
ma subversiva para uma abertura de exposição onde as pessoas
não saberiam que eu estava lá. Eu não estava representando um
papel; eu nunca me vesti e depois me comportei como uma pessoa bizarra; era mais uma questão de subversão me mim mesma”
(SHERMAN, 2003, p. 5).
Seu primeiro grande trabalho fotográfico, através do qual a artista ganhou notoriedade no disputado universo da arte contemporânea foi realizado durante os primeiros anos em que se mudou
para Nova Iorque. Esta série de 70 fotografias é denominada: “Untitled Film Stills” (Fotografias de Cena sem título) e objeto de estudo
deste texto. Vejamos algumas imagens desta série:
Figura 1 - Imagens da série Untitled Film Stills” (Fotografias de Cena sem título)
Depois deste primeiro trabalho, Sherman, prosseguiu suas pesquisas artísticas utilizando seu corpo como uma tela para diferentes
simulações. Suas fotografias são agrupadas em séries e cada imagem é tão diferente, que rosto verdadeiro por trás de tantos disfarces parece cada vez mais impossível de ser localizado.
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Após um início de carreira com dificuldades financeiras, as múltiplas telas corporais de Sherman logo se tornariam um negócio
extremamente rentável: a primeira série de fotografias de Cindy
Sherman – “Untitled Film Stills” (Fotografias de Cena, sem título),
foram adquiridas pelo MOMA (Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque), vinte anos depois da sua mudança para Nova Iorque, por
um milhão de dólares.
Uma exposição de toda a série foi realizada no MOMA em 1997
e patrocinada pela cantora Madonna4. Hoje, as fotografias de Sherman alcançam preços consideráveis em leilões de arte de prestígio
tais como Sotheby’s e Christie’s.
Segundo de poimento de David Ross, seu trabalho mudou a idéia do que a fotografia poderia ser5.
Já, John Waters6 nos oferece o seguinte depoimento:
“as pessoas não falam mais em fotografia, mas sim em arte, por causa do seu trabalho”
A popularidade de Cindy Sherman é crescente no universo da
arte contemporânea. Não são apenas ávidos colecionadores que
procuram suas imagens, Sherman parece ter se estruturado como
uma artista ícone da representação fotográfica pós-moderna. Seu
trabalho é considerado referência para muitos outros artistas jovens.
Artigos e comentários sobre sua obra são abundantes na Internet.
Controvérsias e diferentes interpretações sobre suas diversas séries vêm sendo traçadas ao longo dos anos por inúmeros especialistas e teóricos de diferentes áreas como: semiótica, fenomenologia,
feminismo e psicanálise. Interessante salientar que o trabalho da artista gera tantas polêmicas teóricas que Arthur Danto (1990,p. 65),
de forma jocosa aponta que: “...deve haver programas de estudo
inteiros em instituições de estudos avançados onde pode-se formar
e até conseguir um título de doutor em 'Estudos sobre Sherman'7
Untitled film stills
O primeiro trabalho de Cindy Sherman: “Untitled Film Stills”
(Fotografias de Cena, sem título), é considerado uma referência
na história da arte contemporânea. Ao nos debruçarmos sobre
estas fotografias, encontramos elementos para a discussão sobre
formas de representação da figura feminina na arte. Em “Untitled
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Ângela Prada
Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills”
Film Stills”, Sherman representa e questiona ícones da feminilidade,
construídos ao longo dos anos pelo cinema e televisão, em forma
de auto-retratos.
Este trabalho, realizado entre 1977 e 1980, é inteiramente feito
em formato 35mm, preto e branco. Em uma primeira observação,
nas 70 fotografias de cenas apresentadas por Sherman, temos a
impressão de observar mulheres diferentes retratadas em situações
extremamente ambíguas, que nos remetem a um universo ficcional
de imagens de filmes, anúncios, revistas de moda e televisão.
Porém, em uma análise mais atenta e acurada, percebemos que
todas as mulheres representadas são na verdade, versões cuidadosamente construídas de uma mesma mulher: a fotógrafa Cindy Sherman. Nesta série, a artista trabalha simultaneamente como diretora,
maquiadora, cenógrafa, figurinista, atriz e fotógrafa de cena.
O autor David Harvey em sua obra: Condição Pós Moderna
(1992, p. 18) se confundiu com a ambigüidade das imagens apresentadas por Sherman. Ele nos relata uma visita à exposição da
artista e relata que demorou para perceber que todas aquelas fotografias eram de uma mesma mulher.
Ora, o trabalho de Cindy Sherman, em “Untitled Film Stills” é
inteiramente construído sobre um jogo de aparências. Uma hábil
manipuladora e construtora de aparências, Sherman utiliza cenografia, maquiagem, figurino e iluminação como um pintor utilizaria
um pincel.
Esta hábil manipulação dos estereótipos femininos que Sherman
representa em uma performance orientada com o seu próprio corpo, nos aponta para o jogo de aparências que nós, participantes e
consumidores destas imagens também parecemos experienciar.
Sherman parece totalmente consciente das simulações estabelecidas pelo seu jogo de aparências, quando ela nos diz: “...as pessoas
vão buscar por debaixo da maquiagem e das perucas por um denominador comum, o reconhecível” (SHERMAN apud FELIX, 1996,
p. 15).
Isto é, ao olharmos para estas fotografias, tentamos desesperadamente reencontrar a Cindy Sherman real por trás de todas as
aparências que ela habilmente constrói (grifo nosso).
Mas nossa autora não será tão facilmente reencontrada. Ela
continua seu jogo de simulações dizendo: “...quero fazer as pessoas
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reconhecerem algo sobre elas, ao invés de mim” (SHERMAN apud
FELIX, 1996,p. 15).
Permeadas por ambigüidades e por um jogo que nos deixa suspensos esperando uma próxima ação que parece prestes a acontecer
(em um espaço extra-quadro, ou em uma seqüência cinematográfica sugerida), as fotografias de cenas apresentadas por Sherman,
nos dão a impressão de vermos mulheres totalmente diferentes, pegas de surpresa em meio a cenas enigmáticas.
Ao lidarmos com clichês e um imaginário visual claramente sedimentado em nossas mentes sobre papéis da feminilidade, a performance fotográfica particular que Sherman nos oferece, manipula
habilmente nosso olhar.
Todas estas fotografias parecem ter um valor conotativo subjacente, questionando mecanismos de representação da figura feminina na mídia. Nosso olhar divaga confuso, atento e maravilhado:
o jogo de simulação da imagem feminina proposto por Sherman
é construído habilmente e brinca com nossa memória visual dos
estereótipos.
A artista nos intriga de forma contundente, pois o que parece
estar em jogo aqui, é também a nossa consciência de auto-imagem.
Vamos tentar desvendar uma fotografia deste trabalho para também compreendermos mais sobre nós mesmos.
Nosso reflexo no espelho de Cindy Sherman
Com uma escrita em tom confessional, Roland Barthes, o autor
de “A câmara clara” discorre sobre o seu desejo em descobrir o que
é a “fotografia em si” (BARTHES, 1984, p. 12). Com um discurso
metodológico que aborda semiologia, psicanálise e filosofia o autor
procura desvendar os mistérios de fotografias que o ferem como
lanças pontiagudas.
Um realista ferrenho dividido entre o desejo e o seu objeto;
Barthes somente concebe a dualidade da fotografia em termos teóricos. As duas faces: referente e representação estão coladas; os
grãos de prata atestam a emanação luminosa do sujeito, do “isso
foi”8. O que Barthes observa está ali: o seu reencontro com sua mãe
já falecida em uma fotografia antiga é a maior prova disto.
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Ângela Prada
Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills”
Ora, a concepção da fotografia como um objeto duplo, onde não podemos separar o que é representado da sua imagem, é extremamente pertinente para iniciarmos esta análise sobre uma imagem de Cindy Sherman.
Salientamos a fotografia n. 56, da série “Untitled Film Stills” em que
Sherman se olha no espelho:
Figura 2 - fotografia n. 56, da série “Untitled Film Stills”
Diante das imagens de Cindy Sherman, a busca pelo referente;
ou seja, pela real identidade da artista, por trás de toda a máscara
de maquiagem, figurino e encenação, é uma constante.
Em busca pela figura autêntica, pela Cindy Sherman real, por
trás de todos os simulacros cuidadosamente construídos, autores
interpretam esta e todas as outras 69 fotografias da série, como se
fossem emanações da personalidade da própria artista, que estaria representada de forma múltipla em toda a série “Untitled Film
Stills”.
Esta busca é uma constante em trabalhos teóricos, claramente
reforçada pelo fato da artista utilizar seu corpo como suporte para
os múltiplos personagens camaleônicos que cria.
A analogia com as observações de Barthes são claras: se a fotografia ou a imagem constitui-se enquanto emanação do seu referen-
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te, as imagens de Sherman também se desdobrariam em representações da própria autora: personagem e artista estariam espelhadas
em forma de auto-retratos.
Mas Cindy Sherman faz auto-retratos?
As palavras de Sherman são reveladoras neste sentido: inicialmente ela nega estar produzindo auto-retratos, mas refletindo um
pouco sobre a sua forma de caracterização ela nos diz: “[...] sempre
tento me distanciar o máximo possível de minhas fotografias. Talvez
por isso mesmo eu crie auto-retratos [...]” (SHERMAN apud BROFEN, 1996, p. 14).
Ora, percebemos uma contradição em suas palavras; ao mesmo
tempo em que se sente distanciada dos personagens que cria, Sherman também se sente próxima, pelo seu próprio distanciamento.
Vejamos as palavras de Whitney Chadwick9 sobre a artista:
“O trabalho da fotógrafa norte americana Cindy Sherman representa o fim do auto-retrato porque não revela absolutamente nada
sobre a personalidade da artista”.
Se distanciando das concepções correntes de auto-retrato enquanto espelhos da identidade, da alma, da subjetividade e da autoimagem do retratado, o trabalho de Sherman propõe um desvio.
Interessante salientar aqui também, os comentários de Michelle
Maryanne (2005, p. 142) em sua tese de doutorado sobre a artista.
Ela aponta que estes auto-retratos, ao invés de revelarem um ser
mítico; isto é a própria criadora por trás da máscara, na verdade
se estruturam enquanto uma representação onde a identidade (ou
no caso o referente de Roland Barthes) é oferecida para o outro. O
receptor, espectador cinematográfico, público voyeurista, críticos,
fãs e jovens seguidores da estética da pose possuem um papel fundamental na atribuição de sentido às imagens da artista.
O referente que Cindy Sherman representa é devolvido em forma de reflexo para aqueles que a observam. Além das máscaras
artificialmente construídas; a peruca, a maquiagem, a luz, a artista
questiona um sistema de representação construído sobre a aparência.
Neste sentido, Laura Mulvey (1983, p. 442) a célebre autora do
texto: “Prazer visual e cinema narrativo”, nos esclarece que o ato
de observar personagens no cinema retoma para os espectadores,
um momento na constituição da personalidade humana que Lacan
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Ângela Prada
Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills”
denomina de: “a fase do espelho”. É durante esta fase que a criança
reconhece sua imagem refletida no espelho. Mas esta imagem reconhecida é vista como um corpo refletido do ser, uma imagem no espelho mais perfeita do que a experiência de nosso próprio corpo.
Analogamente, este tipo de operação parece estar em pleno
funcionamento quando os espectadores de cinema assistem a um
filme: sensações de reconhecimento com a imagem projetada na
tela, operam a todo o momento. A tela cinematográfica converte-se
em espelho da nossa auto-imagem projetada.
Ora, ao olharmos para a imagem de Sherman frente ao espelho
é natural que rememoremos nossa própria imagem refletida e que
também, ao mesmo tempo, esta nos escape; de alguma forma continuamos buscando emanações do referente.
Mulvey nos diz: uma super-instência na superfície
pode estar mascarando algo que não está sendo visto.
Narciso mergulha no lago apaixonado pela sua própria imagem; inútil procurar algo atrás do espelho, a máscara de Sherman é o auto-retrato da superfície.
As superfícies do papel fotográfico e do espelho são planas:
impossível mergulhar e se afogar tentando desesperadamente encontrar aquela que se revela sobre papel.
O jogo da fotógrafa brinca com o reflexo: aparências estereotipadas; uma ilusão onde viver não ultrapassa a superfície do espelho.
Para onde fugiu o referente de Roland Barthes? O “isso foi” dificilmente será reencontrado.
Alguns entrevistadores falam da decepção ao se depararem
com a verdadeira artista: um rosto branco inexpressivo. Uma mulher
comum, vestida de calça jeans e moletom, uma expressão vaga, um
olhar desprovido de significado.
Por mais que tentemos encontrar a Cindy Sherman real em nossa análise teórica, buscando referências para tentar compreender
quem é a mulher mascarada que se olha; ao nos depararmos com
uma imagem onde ela se observa no espelho, caímos novamente
em seu jogo de simulações.
A mulher que observa sua imagem refletida é também mais uma
personagem. Cuidadosamente construída, com maquiagem, peruca
loira e uma poderosa contra-luz, Cindy Sherman observa mais uma
de suas poses artificialmente construídas frente ao espelho. Sobrará
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espaço nesta imagem para um pedaço de nosso reflexo?
A cabeça mutante de Sherman é muito maior do que a nossa
cabeça pensante e desmorona sobre a superfície do espelho. Ao
buscarmos a nossa imagem parecemos nos dissolver na imagemespelho da artista.
Em meio a tantas outras encenações, a referente e a sua representação, agora inevitavelmente cindidas, parecem precisar de uma
pequena pausa para ver o que está refletido na tela fotográfica.
Sherman se converte em caleidoscópio de nós mesmos.
Notas
1 “Eu me tornava um monstro, ou algo parecido – era muito mais divertido do que ficar
parecida com a Barbie.” (SHERMAN, 1997 apud FUKU, 1997)
2 Sherman relata que compunha seus personagens comprando roupas em brechós, pois não
gostava de lojas convencionais e também não dispunha de muito dinheiro. Porém, o hábito
de comprar artigos usados parece ter acompanhado Sherman, mesmo depois de ter tido muito sucesso financeiro com as suas obras. Freqüentadora assídua dos chamados “yard sales”
(vendas de artigos usados por famílias nos Estados Unidos) Sherman não resiste a mais uma
compra: “Eu incremento minhas sucatas”. (SHERMAN, 2001 apud SCOTT, 2001).
3 Sherman relata ter tido um pouco de dificuldade em morar no Hallwalls – um espaço coletivo. Seu quarto era no final do corredor. (SHERMAN, 2003, p. 5).
4 Para maiores informações sobre esta exposição, consultar: http://www.moma.org/
exhibitions/1997/sherman/index.html
5 Ross (diretor de importantes museus nos EUA), assim como várias personalidades do
mundo das artes plásticas nos EUA oferecem seu depoimento a respeito do trabalho da
artista no vídeo: “Guest of Cindy Sherman” que narra o envolvimento da artista com o
seu namorado Paul H-O produtor de um programa sobre exposições denominado “Gallery
beat”. O trailer em formato de vídeo digital, está acessível em: http://www.youtube.com/
watch?v=CeRu2t84SWE.
6 John Waters, diretor de comédias transgressoras nos EUA na década de 70, também oferece seu depoimento sobre Sherman neste vídeo. Acreditamos que a distinção entre as duas
palavras acaba por denegrir a concepção da fotografia enquanto obra de arte, desta maneira
optamos por utilizar tanto a designação fotógrafa quanto artista ao nos referirmos à Cindy
Sherman.
7 Danto, apesar de ser um grande entusiasta do trabalho da artista dirige sua crítica ao que
chama de: “radicais feministas neo-estruturalistas, marxistas da escola de Frankfurt e hermenêuticas semiológicas”. (DANTO, 1990,p.65)
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Ângela Prada
Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills”
8 Barthes utiliza especificiamente esta expressão para se referir à singularidadade da imagem
fotográfica: “...na fotografia jamis posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla relação conjunta: de realidade e de passado. ...O noema da fotografia será então: ‘isso foi’...”. (BARTHES,
1984, p.15).
9 A este respeito ver: Chadwick, Whitney. The self portrait: seduction and betrayal the difficulty of reading self portraits. Disponível em: http//www.npg.org.uk/live/mirrconf.asp.
Referências
Livros
BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução: Júlio Castanon Guimarães, 3. ed, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
FELIX, Zednik. Cindy
1975
-1995.
Hamburg:
Sherman
Schimer
Photographic
Art
Books,
Work,
1996.
HARVEY, David. A condição pós moderna: uma pesquisa sobre
as origens da mudança cultural. Tradução: Adail Ubirajara Sobral
e Maria Stela Gonçalves. 5. ed, São Paulo: Edições Loyola, 1992.
MARYANNE, Maryanne. Framing the artist: Cultural Analysis and the myths of Cindy Sherman. 1 ed. Fairfax: Pro quest Information and Learning Company, 2005.
PHILLIPS, Lisa Photoplay: obras da The Chase Manhattan
Collection. New York: The Chase Manhattan Collection, 1994.
SHERMAN, Cindy. The complete Untitled Film Stills: Cindy
Sherman. 1 ed.New York: The museum of Modern Art, 2003.
XAVIER, I (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
181
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Periódicos
DANTO, Arthur. C. The state of the art world: the Nineties begin. The Nation, New York, v. 251, n. 2, p. 65, July 9, 1990.
FUKU, Noriko. A woman of parts. Art in America. New York.,
v85, n6, p74, jun. 1997.
HOWELL, Greg. Anatomy of the artist. Art Papers, 19, n. 4,
july/august, 1995.
MULLINS, Charlotte. Living doll Photographer Cindy Sherman tells
Charlotte Mullins about artifice as image. The Financial Times, New
York, 31 maio 2003. Weekend Magazine – The arts, p. 28, may, 2003.
SCOTT, Stefanie. Rummage Sale Enthusiast in Wisconsin Shares
Shopping Strategy. The Post-Crescent. Appleton, abr. 26, 2001.
SMALL, Michael. Photographer Cindy Sherman shoots her best
model – herself. People Weekly, v. 28, n. 22, p. 157, nov. 1987.
Documentos eletrônicos
<http://www.moma.org/exhibitions/1997/sherman/index.html>
Acesso em: 03/06/2005.
CHADWICK, Whitney. The self portrait: seduction and betrayal
(the difficulty of reading self portraits. Disponível em: <http://www.
npg.org.uk/live/mirrconf.asp. Acesso em: 14/10/2005.
WATERS, John. <http://www.youtube.com/
watch?v=CeRu2t84SWE>
182
Ângela Prada
Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills”
Ângela Prada
Doutoranda em Multimeios – UNICAMP. Mestre em Artes Visuais – UFRJ
Especialista em Jornalismo Cultural – PUC – SP. Professora Universitária –
fotografia, vídeo, história da arte, fotojornalismo.
Trabalhou sete anos como fotógrafa profissional. Seus trabalhos foram
publicados nos seguintes veículos: “The New York Times”, Folha de São
Paulo, Revista Playboy, entre outros.
Email: [email protected], [email protected]
183
The present thematic test focuses its tie attention on
different from the Latin American conservation and
the patrimony. Aspects of historical type consider here,
like also reflections around the evolution of the patrimonialista legislation in the continent, the creation and
trajectory of institutions of patrimony, restoration and
study, the revaluation of the Historical Centers and the
concept of “cultural surroundings”, or the increasing interest by the small towns. It is also approached from
a critical perspective, becoming emphasis in several of
the problems that must confront the patrimony in Latin
America, like the loss of the “urban memory”, the political interventions destroying the patrimony (monumental
or natural) in entailment to private real estate businesses, or the errors in the interventions of restoration or
rehabilitation.
Keywords: Latin America. Conservation. Patrimony
abstrac t
La Conservacion Y El Patrimonio En America
Latina. Algunos Temas De Debate
Rodrigo Gutiérrez
Viñuales
resumo
El presente ensayo centra su atención en diferentes temáticas vinculadas a la conservación y el patrimonio latinoamericanos. Se tienen aquí en cuenta aspectos de
tipo histórico, como asimismo reflexiones en torno a la
evolución de la legislación patrimonialista en el continente, la creación y trayectoria de instituciones de patrimonio, restauración y estudio, la revalorización de los
Centros Históricos y del concepto de “entorno cultural”,
o el creciente interés por los pequeños poblados. Se
aborda también desde una perspectiva crítica, haciéndose hincapié en varios de los problemas que debe afrontar el patrimonio en América Latina, como la pérdida
de la “memoria urbana”, las intervenciones políticas destruyendo el patrimonio (monumental o natural) en vinculación a negocios inmobiliarios privados, o los errores
en las intervenciones de restauración o rehabilitación.
Palabras clave: Latinoamérica. Conservación. Patrimonio
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1. Introducción
La historia de América Latina ha estado marcada desde hace
quinientos años por la influencia de la cultura europea. Los españoles,
sobre todo, han dejado su huella artística la cual, combinándose con
las formas y manifestaciones locales, engendró un nuevo modelo de
civilización.
Por esta razón, y a pesar de la importancia de este contacto EuropaAmérica, la historia del Nuevo Continente ha seguido su propio camino,
siendo su situación y su realidad distintas a las europeas.
Estas diferencias deben de tenerse en cuenta si se quiere realizar
un estudio adecuado sobre la conservación y el patrimonio americanos.
Es más, inclusive entre los propios países americanos existen tales
singularidades; no es el mismo caso el del Perú o el de México, con su
fuerte tradición cultural indígena y colonial, que el de países más modernos
como Brasil o Argentina en donde el patrimonio decimonónico acapara
la mayor atención.
Existen también otras diferencias de carácter histórico con respecto a
Europa. Se han producido en América ciertos procesos con anterioridad a
sus similares en el Viejo Continente. Este es el caso de la desamortización
de los bienes de los conventos e iglesias, hecho que España sufre hacia
mediados de la década de los treinta del XIX y que en Argentina ya se
había producido con el presidente Bernardino Rivadavia en 1822.
Este suceso nos permite pasar a analizar algunos aspectos de la
evolución del tratamiento del patrimonio cultural americano durante el
siglo XIX.
2. El patrimonio en América durante el siglo XIX
La desamortización de bienes en la Argentina durante el gobierno
de Rivadavia trajo consigo consecuencias nefastas que dejaron cicatrices
durante muchos años. Los conventos y las órdenes religiosas fueron
eliminados legalmente pasando los edificios a formar parte del patrimonio
nacional bajo la apariencia de que iban a transferirse al clero secular.
Este manejo del poder político determinó entre otros aspectos que las
ciudades de Buenos Aires, Córdoba y Salta permanecieran sin obispos
por largo tiempo.
1 8 6 Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
En cuanto a los conventos algunos se convirtieron en hospitales,
otros en cuadras de tropas y en general quedaron destrozados
perdiéndose irremediablemente el patrimonio. El viejo Colegio
de los jesuitas en la capital argentina quedó en manos del clero
secular pasando luego al Estado quien lo convirtió en el histórico
Colegio Nacional de Buenos Aires. He aquí un caso aislado de
reaprovechamiento adecuado de un edificio.
En Perú se produjo la desamortización poco después que en la
Argentina y ejemplo claro de lo allí ocurrido es la actual situación del
convento de San Agustín en el Cuzco que desde aquel momento está
en ruinas, las cuales hoy pueden verse justamente en la calle “Ruinas”
de la capital cuzqueña.
Otro convento peruano, el de San Francisco de Lima, fue
sufriendo una degradación paulatina a través de los años posteriores
a aquella desamortización. Era esta, originalmente, una construcción
que abarcaba tres o cuatro manzanas, y que fue derribándose por
partes para ir abriendo calles. Tal tratamiento llegó al culmen de la
destrucción con la apertura de la avenida Abancay hacia principio de
los años sesenta de nuestro siglo.
Estos atravesamientos sufridos por San Francisco no solamente
terminaron con su antigua situación física sino que también afectaron
la idea de conjunto monumental con que había sido planeado y
terminaron con su carácter de convento como centro del barrio.
En México la desamortización también trajo efectos negativos.
Inclusive el Estado y la Iglesia permanecieron divididos por casi un
siglo y medio, produciéndose la ansiada reconciliación recién en la
década de los ochenta de la presente centuria. El poder político,
entonces, tomó la decisión de devolver a la Iglesia muchos de los
bienes apropiados en el siglo pasado.
3. La evolución de la legislación y el patrimonio en
Latinoamérica durante el siglo XX y sus problemas
3.1. Leyes, generalidades y casos
En el transcurso del siglo XX la conservación y la salvaguarda
fueron alcanzando distintas connotaciones en cada país americano,
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dadas aquellas diferencias acotadas en nuestra introducción y la
variedad de posibilidades de intervenir en el patrimonio. Mientras
unos dieron mayor importancia al tema de los monumentos históricos
otros centraron sus esfuerzos en el estudio de los poblados típicos y
otros -los menos- en el problema del paisaje urbano, el entorno o el
ambiente natural.
De todas formas existieron denominadores comunes dignos de
destacarse por ejemplo la concientización respecto de la primordial
necesidad de resguardar los testimonios precolombinos. Esto se
dio especialmente a fines del siglo XIX y principios del XX, cuando
comienzan a valorizarse los ejemplos artísticos coloniales y mucho
más adelante, tras la Carta de Quito de 1967, se empieza a tomar en
cuenta el patrimonio de los siglos XIX y XX.
En los años treinta, juntamente con la señalada importancia que
se da a lo colonial, se dieron diversas normas, leyes y fundaciones
tendentes a la conservación del patrimonio. En Brasil en 1927 se
creó la Inspectoría de Monumentos del Estado de Bahía a la que
siguieron ejemplos similares en otros países como México -leyes de
1930 y 1934 que mencionaban las “poblaciones y bellezas típicas”- y
Guatemala -creación del Parque Nacional de Tikal en 1955 que incluía
la conservación de este centro cultural maya-.
En el aspecto de la legislación también son destacables las leyes
de Brasil en 1937 y de Argentina en 1940, claros productos de la
VII Conferencia Interamericana celebrada en Montevideo en 1937,
en la que se propuso la cooperación entre los países, y el Congreso
de Historia de América llevado a cabo en Buenos Aires en el mismo
año, en el que se recomendó hacer el inventario de los patrimonios y
legislar sobre él.
Brasil, a partir de su ley de 1937, centró su interés en las obras
de arte, al contrario que la Argentina que se interesó más por los
monumentos. En aquel país fue creado el Servicio de Patrimonio
Histórico Artístico Nacional (SPHAN) el cual se dedicó también a la
organización de congresos y a la publicación de estudios y trabajos,
convirtiéndose en un sistema armado desde arriba hacia abajo, de
gran carácter federal. La labor de SPHAN en Brasil fue intensificándose
con el tiempo, adaptándose notablemente a los cambios sociales y
culturales, no sin graves contratiempos. El presidente Collor de Melo
llegó a deshacer prácticamente al SPHAN creando comisiones de
1 8 8 Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
cultura locales las que puso en manos de funcionarios públicos y
burócratas. Esta decisión interrumpió en su momento un positivo
proceso de más de medio siglo, poniendo fin a una acertada
tarea federativa y evidenciando nuevamente la triste realidad de
la negativa intervención política en asuntos de Patrimonio que
en diversas épocas tuvieron los gobiernos.
La ley de 1940 en la Argentina basó sus artículos en los
de las leyes de Francia, Inglaterra, Bélgica e Italia. La Comisión
Nacional que se creó a partir de ella habría de encargarse de
realizar los inventarios, restauraciones, publicaciones, declarar
los monumentos nacionales y organizar museos. Los problemas
de fondo, los directos, se quedaron, no obstante, sin resolver.
La evolución de la legislación del Patrimonio en la Argentina a
partir de 1940 ha conducido a la situación actual en que las leyes
son insuficientes. En varios municipios existen reglamentaciones
generales y otras de casos más particulares. Muchas de ellas
están redactadas con un lenguaje romántico tendiendo más a
una expresión de deseos que a otra cosa.
A nivel provincial hay en Argentina otras leyes de carácter
general pero que presentan notables falencias. De todas maneras
se han producido ciertos avances como el de Tucumán, provincia
que tras el advenimiento de la democracia en 1983 aprobó una
nueva Constitución Provincial en la cual fue introducido el tema
de la Conservación del Patrimonio.
En ese mismo año se aprobó a nivel nacional una ley en la
que se establecía que todo edificio de más de cincuenta años
perteneciente al Estado -aunque también sugiere que se haga
lo mismo con los de propiedad privada- no puede ser alterado
en su estructura sin la vista y autorización de la Comisión
Nacional de Monumentos. Lamentablemente esta regla no
se aplicó en la realidad y así los argentinos vimos caer, entre
otros ejemplos, parte del convento de Santa Catalina de Buenos
Aires, construcción de principios del siglo XVII, para dar lugar a
edificios nuevos.
Otro ejemplo en la capital argentina es el de la conocida
como Manzana de San Juan, centro de las monjas clarisas, en la
convergencia de las calles Alsina y Chacabuco, que se demolió
para dar cabida a un moderno hotel.
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Durante los años cuarenta hubieron otros países latinoamericanos
que legislaron sobre su patrimonio, tales los casos de Venezuela
(1945) y Guatemala (1947). El de este último país puede considerarse
el ejemplo más completo de legislación a lo largo del siglo con la
creación de la Comisión Nacional para Antigua de Guatemala
(CNPAG) en 1969 la cual controla entre otros aspectos las acciones
de los ayuntamientos, indicándoles donde deben colocar un cartel,
donde poner una escultura, etc. Para llevar a cabo su tarea CNPAG ha
hecho hincapié en la necesidad de concientizar a la propia población,
siguiendo de esta manera con una de las ideas ya esbozadas en el
Convenio Italiano de Gubbio de 1960.
La conservación y restauración del patrimonio, que en un primer
momento se había reducido a la preservación e intervención en sitios
relacionados con la vida o hechos de próceres, cambiaron su sentido
durante los años cuarenta, momentos en que pasó a tener mayor
importancia el patrimonio artístico. A partir de aquí puede hablarse de
un cambio fundamental en ciertos conceptos como el de “patrimonio
histórico” reemplazado ahora por esa idea de “patrimonio artístico”.
Un nuevo cambio de pensamiento habría de producirse en los
setenta. En ese momento quedó ya en evidencia que el patrimonio
estaba más allá de un prócer o de un monumento artístico: a este
debía considerárselo como parte de un proceso histórico. Aquí
podemos señalar como ejemplo la importancia que tomó en la
Argentina Virasoro, máximo representante del movimiento Art Decó
en ese país, cuyas obras fueron discutidas pero a la vez fue reconocida
su validez como testimonio histórico.
Como corolario podemos afirmar que la legislación en América
es en general insuficiente y con muchos baches lo que permite a las
“aves de presa” de la construcción y la política accionar casi libremente
sobre el patrimonio, por lo cual es constante el peligro en que este se
encuentra.
3.2. Uno de los problemas: la pérdida de la “memoria
urbana”
En numerosas ocasiones se ha procedido lamentablemente a
deshacer las obras que marcaron los rasgos artístico-arquitectónicos
190
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
de una época, ya sea porque estas “estaban pasadas de moda”, ya
sea por la “fiebre” de construir o por la de “destruir” todo testimonio
de regímenes políticos pasados.
Otra manera muy habitual en América de pérdida de la memoria
urbana es el constante cambio, en muchas ciudades, del nombre de
las calles. En Resistencia (Argentina) sucedió, entre otros casos, con
la actual calle Arturo Illia. En diversos períodos de su corta historia
-apenas sobrepasa el siglo de existencia- se llamó Edison, en honor al
sabio; Uruguay, como homenaje a nuestros hermanos orientales; Eva
Perón, cuando la mujer del presidente era el personaje más carismático
del país; Antártida Argentina, poco después de la revolución que
derrocó a Perón; y, finalmente, desde hace poco más de diez años, ya
recuperada la democracia luego del Proceso militar, se llama Arturo
Illia.
En esos años el bloque de concejales peronistas del Municipio de
Resistencia había cambiado el nombre de la calle Tucumán, la continuación
de Antártida Argentina, por el de Juan D. Perón (otro caso de pérdida
de la memoria urbana). Sus grandes rivales de la Unión Cívica Radical no
querían quedar en “inferioridad de condiciones” y comenzaron a buscar
un nombre para cambiar el “añejo” de Antártida Argentina, la otra calle
comercial junto a la nueva Juan D. Perón- de Resistencia.
En ningún momento repararon ni unos ni otros en el hecho de
que quienes habían colocado aquellos nombres, Antártida Argentina y
Tucumán, lo habían hecho con alguna razón -ni hablar de los anteriores
nombres-. El hecho es que los radicales buscaron recuperar alguna de sus
figuras e “inmortalizarlas” en el asfalto. Las dos más grandes, Hipólito
Yrigoyen y Marcelo T. de Alvear ya tenían sus calles; el ex-presidente que
les quedaba era Arturo Illia y a él eligieron.
Además del cambio del nombre de las calles, otra de las maneras de
ir borrando la memoria urbana es la de los proyectos llevados a la práctica
que arrasan con lo existente y tergiversan el sentido urbano. En Caracas
encontramos el caso quizá más grave del continente con la construcción
de grandes autopistas y el entubamiento de los ríos, acciones que han
cambiado la antigua fisonomía de la capital venezolana.
Otro caso, aunque este fue ya más lejos pues se trató lisa y llanamente
de un cambio en la propia topografía del lugar, es el que ocurrió en Río
de Janeiro en la época del gobernante Pereira Pasos a fines del siglo
XIX y principios del XX, quien ordenó que dos de los morros que se
191
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encontraban en la bahía fueran eliminados mediante una “tajada” en
diagonal.
3.3. Cambios producidos a partir de la Carta de Venecia
(1964) y las Normas de Quito (1967)
Durante la década del sesenta vieron la luz los dos documentos
fundamentales que sentaron las bases para el cambio del status quo de
la legislación y el patrimonio en América Latina: la Carta de Venecia de
1964 y las Normas de Quito de 1967.
La primera de ellas fue rubricada por dos jóvenes latinoamericanos
que se hallaban estudiando en Italia, el peruano Víctor Pimentel y el
mexicano Carlos Flores Marini. Ciertas recomendaciones que allí se hicieron
representaban toda una novedad para América: la documentación
histórica, el turismo cultural, el respeto por todas las etapas de la obra, el
tratamiento conservacionista y no reproductor, etc.
En cuanto al documento de Quito es más amplio en su articulado
respecto al de Venecia y en el se detallan problemas específicos de
Latinoamérica. Participaron de las reuniones en la capital ecuatoriana
especialistas americanos y españoles quienes se plantearon la necesidad
de vincular nuevamente a los países del Nuevo Mundo con España y
Portugal, de valorar el Patrimonio de los siglos XIX y XX y de accionar en
el aspecto técnico.
Las Normas de Quito tendieron más a una cuestión de tipo urbanístico
y de manejo político del patrimonio. Su alcance es de mayor escala -sin
ser completamente específica de América- que la Carta de Venecia cuyo
hincapié fue mayor en temas de patrimonio y conservación.
Hasta estos momentos no se había tenido demasiado en cuenta
el concepto de “monumento histórico” comprendiendo “la creación
histórica aislada así como el conjunto urbano o rural” (Carta de Venecia,
art. 1). Esta valorización del entorno se dio tardíamente, cuando ya habían
sucedido casos como el de San Diego de Bogotá: el pequeño convento
se preservó pero no se cuidó el espacio que lo rodeaba y hoy apenas se
puede ver entre grandes autopistas y hoteles.
Un ejemplo similar es el de Villa Hortensia en el Barrio Alberdi
de Rosario (Argentina), una quinta de verano de principios de siglo,
al estilo de las de Mar del Plata, edificio que en los años ochenta
1 9 2 Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
de nuestro siglo se declaró Patrimonio Histórico. Lamentablemente
la manzana que lo rodeaba se loteó y esta construcción que había
dado origen al barrio y que sus dueños habían armado a la manera
de un pequeño pueblo, en la actualidad ya se halla unida a la ciudad,
“aprisionada” entre modernas muestras de arquitectura.
Volviendo a las Normas de Quito, este documento hará que
países como Brasil, Cuba, Chile, México y Guatemala pongan al día
sus legislaciones. Se reiniciaron las tareas inventariales y se dio impulso
para la formación de técnicos intervencionistas y la organización
de talleres y laboratorios. No obstante este ímpetu inicial varios
países del continente continuarán con legislaciones anacrónicas,
especialmente los centroamericanos. Otras naciones aprobaron leyes
sobre el patrimonio pero sin llegara a aplicarla. En este sentido el caso
más evidente es el de Perú, y en menor medida el del ya señalado
México.
3.4. El caso de los “Centros Históricos”
En Perú los casos de los centros históricos como Lima, Cuzco,
Arequipa y Trujillo son patéticos. Esta última ciudad posee una
estructura de manzanas cuadradas que en la época colonial estaban
ubicadas dentro de una muralla de tapia -típica de regiones secas,
de poca lluvia- de forma octogonal y alargada. Esta muralla no fue
respetada en el siglo XX; parte de ella se tiró para dar cabida a
edificios modernos y otra se utilizó como basamento para los mismos.
Lo que más sorprende en este caso es que el autor de tal aberración
fue un arquitecto de la propia Trujillo relacionado con el INC (Instituto
Nacional de Cultura).
En definitiva, las leyes de protección existen pero no son respetadas.
Lo mismo ocurre, como vimos, con el concepto de “Centros Históricos”
respecto de que son tanto “patrimonio cultural de la humanidad”
como que “pertenecen en forma particular a todos aquellos sectores
sociales que los habitan” y con ellos se debe procurar “una política
de conservación integral”, tal como se especificó en las conclusiones
del “Coloquio sobre la preservación de los Centros Históricos ante el
crecimiento de las ciudades contemporáneas”, celebrado en Quito,
en marzo de 1977.
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3.5. El problema de la intervención política en asuntos
de patrimonio
Otro de los males que han sufrido varios países americanos es el
de la derogación de artículos por conveniencia política. Como casos
de esta realidad se pueden señalar:
1) los Monumentos declarados “históricos” a los que se les priva
luego de tal condición para poder alterarlos en parte o demolerlos.
Ejemplo de ello es el ocurrido durante los últimos gobiernos militares
en Uruguay donde numerosos edificios públicos, escuelas antiguas
-que se derribaron para hacer edificios nuevos- y otros monumentos
fueron intervenidos con el único fin de hacer negocios;
2) las leyes que se derogan en partes. Este es el caso de lo ocurrido
en el Centro Histórico de Corrientes (Argentina). Desde 1977 -ya en
época de gobierno militar- existía una “Ordenanza Histórica” que en
diversas ocasiones fue modificada -a veces solo por un día !- para
que pudieran realizarse obras nuevas, las que encontraban en los
monumentos antiguos un estorbo.
Así un día se presentaba un proyecto; al comprobarse su inviabilidad
por “culpa” de la “Ordenanza Histórica”, se anulaban las normas de
esta que imposibilitaba la realización de aquel; una vez que el proyecto
se encontraba dentro de la legalidad, sin el condicionamiento de la
“Ordenanza”, era aprobado y al siguiente día se reinstauraban las
antes anuladas reglas de la “Ordenanza”.
Lamentablemente, por lo visto en numerosos lugares y épocas
de América el concepto de “Bien Común” no tuvo ni tiene ningún
valor. La política del liberalismo consistente en que “el que tiene dinero
hace lo que quiere” arrasa con tal concepto. A veces los americanos
agradecemos el que no haya habido dinero en el continente porque
con él se habrían podido llevar a cabo muchos de los proyectos que
se presentaron a lo largo del siglo y la historia de nuestro patrimonio
artístico probablemente sería más dolorosa.
En este sentido es de lamentar el caso de Venezuela, país que
tradicionalmente ha contado con dinero y que ha intervenido en sus
monumentos históricos con muy mal tino, perdiendo en las últimas
décadas gran parte de su patrimonio.
194
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
4. Problemas de intervención en el patrimonio de
América Latina
4.1. La búsqueda mal entendida de “nuestras raíces”. La
pérdida del patrimonio americano durante el siglo XX
En América y especialmente en los países del sur como Argentina
o Uruguay, de menor tradición colonial y más influídos por las
inmigraciones y por lo tanto por la cultura europea de fines del siglo
XIX y principios del XX, siempre se pensó como modelo a una Europa
a la que se veía como culta, como una unidad.
El gran desconcierto surgió al producirse el estallido de la primera
Guerra Mundial; con gran incredulidad se vio en América la lucha entre
países cuya imagen era justamente aquella, de que estaban unidos.
Esta situación aceleró el proceso de ver los distintos aspectos de la vida
desde un punto de vista más americano.
Con la guerra quedaron también interrumpidas las importaciones
de los países americanos respecto de los productos que recibían de
Europa; esto produjo un repunte de las industrias nacionales.
Dentro de este proceso de “americanización” comenzado en
aquella época y que hoy continúa, algunos países comprendieron
como necesidad, respecto de lo urbano, el “llegar a lo original”.
Aquí volvemos sobre el tema de la memoria urbana. Se atentó y se
sigue atentando contra una de las normas de la Carta de Venecia
consistente en que “las aportaciones de todas las épocas patentes
en la edificación de un monumento, deben ser respetadas, dado que
la unidad de estilo no es el fin que se pretende alcanzar” (art. 11), a
menos, agrega, que los elementos que quieren eliminarse “ofrezcan
poco interés”.
Entre los ejemplos de vejación a estas ideas podemos señalar el de
la República Dominicana. En los años setenta surgió en Santo Domingo
la obsesión de que había que recomponer la “cara” del siglo XVI en el
centro histórico. A una de las casas de esa centuria comprendidas en
este perímetro se le habían añadido distintos “ropajes” a lo largo de los
siglos y su coronación definitiva era el último ejemplo que quedaba en la
capital dominicana del art nouveau. La idea de regresar al XVI terminó
por ser más fuerte y tal art nouveau se perdió irreparablemente.
195
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Cosas similares se hicieron muchas veces en sitios arqueológicos.
Recién en los años setenta los arqueólogos fueron formados como
“cuidadores de ruinas” sobre todo en México y Perú. Anteriormente
estos profesionales se limitaban a excavar pero no a consolidar, a
“asegurar las condiciones de conservación” (Carta de Venecia, art.
15), a proteger los hallazgos que se iban produciendo en las tareas
de campo.
La consolidación en ejemplos arquitectónicos data de los
años posteriores a la primera guerra mundial. En lugares como
las misiones franciscanas de California, cuyo ejemplo se siguió
en otras zonas de América, se dio una suerte de romanticismo,
consolidándose las ruinas pero con el carácter de ruinas, es decir
se consolidaron las roturas, las caídas de revestimiento, la falta de
revoques en la punta de los dinteles, etc.
4.2. El caso de los “templetes” y los “cambios de clima”
Otra de las actitudes fue la de no tocar las obras protegiéndolas
mediante un templete para que no se deterioraran más el cual
alteró el ambiente que rodeaba el monumento. De esto podemos
señalar numerosos ejemplos pero citaremos tres en la Argentina:
1) el templete de hierro y vidrio erigido a fines del siglo XIX
para proteger la habitación de la Casa Histórica de Tucumán, lugar
de la Declaración de la Independencia Nacional en 1816, y que
fue derribado durante los años cuarenta por Mario J. Buschiazzo al
emprender la reconstrucción del monumento en casi su totalidad;
2) el templete construído en la época del art decó que protege la
casa natal de Fray Mamerto Esquiú en la provincia de Catamarca;
3) el templete que protege la mal atribuída casa natal del
General don José de San Martín en Yapeyú (Corrientes) y que fue
construído en los mismos años en que Buschiazzo derribaba el de
Tucumán.
Con obras como las señaladas el monumento queda desvirtuado
en cuanto al espacio y al entorno. Esta mal entendida protección
atenta además contra el microclima de la obra, con los materiales
originales los cuales fueron utilizados pensándose en la acción
directa del sol, los vientos, las lluvias, etc. En el caso de la Casa de
196
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
Yapeyú, los insectos, ya sin estos “problemas” del clima, han ido
degradando las piedras de las ruinas.
Estos “cambios de clima” hechos por el hombre no son
privativos de nuestro siglo. Ya en el siglo XVI, cuando los españoles
convirtieron a Lima en capital del Perú en detrimento del Cuzco,
antigua capital del imperio incaico, trasladaron desde el templo
cuzqueño de Coricancha a Lima las momias de los 14 incas que se
habían conservado allí desde hacía años.
En Lima, con un clima distinto al de Cuzco, las momias
alcanzaron un grado de putrefacción en menos de una década
perdiéndose de manera definitiva tales testimonios.
4.3. El agregado de partes nuevas y la incorporación
de elementos acordes con el “gusto actual”
El tema de las partes agregadas, tanto en lo que se refiere a
su inclusión como a la forma de añadirlas, ha dado lugar durante
años a numerosas polémicas debido a que existieron y existen
diversas visiones sobre cómo encarar este tipo de problemas. No
obstante las opiniones encontradas en general los especialistas
coinciden en la necesidad, para una correcta adecuación, de utilizar
avances modernos como los acondicionadores, los sanitarios o la
electricidad.
En los años setenta surgió el concepto de que ese agregado
de partes nuevas debía hacerse “en estilo”, es decir copiándose las
formas del resto del edificio en intervención, tratando a la vez de
que se notaran lo menos posible los fragmentos nuevos.
Aquí podemos señalar los trabajos llevados a cabo en Arequipa
(Perú) durante esa década en donde se rehicieron edificios imitando
lo antiguo, como en el caso del patio de la Compañía de Jesús.
A pesar de las buenas intenciones que se tengan en este sentido
es fundamental que se dejen también, discreción mediante, las señas
de los nuevos tiempos, tal como hemos señalado en el primer párrafo
de este punto.
En España podemos señalar un caso notorio de esta imitación
de lo antiguo y que es la Sagrada Familia de Barcelona, la cual fue
planteada por Gaudí de manera tal que todas sus partes y detalles
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fueran artesanales. Luego de su muerte la construcción se continuó
copiando literalmente las partes ya existentes, siguiéndose un
erróneo concepto simétrico, alejado de la idea original de Gaudí.
Derivado de los aspectos de restauración y tecnología surge
también un problema de notoria actualidad: la incorporación a los
monumentos de elementos acordes con el gusto actual. Este tema
que se ha planteado en España sobre casos como el de las ruinas
del Teatro romano en Sagunto, está signado por el afán de ciertos
profesionales de imitar formas consagradas por los medios de
comunicación quienes demuestran una total falta de identificación
con el patrimonio y no han entendido que la tarea del restaurador
ha de ser, en buena medida, anónima.
4.4. El deseo de resaltar los materiales naturales y las
texturas
Otra de las equivocaciones en las que se cayó a la hora de
restaurar fue la de quitar a los edificios antiguos los revoques y
estofados para resaltar los materiales naturales y las texturas.
Con ello no solo se perdieron pinturas murales y molduras sino
que también se evitó que partes que originalmente sí habían sido
preparadas para estar al descubierto pudieran distinguirse del resto
del conjunto.
Esto fue lo que ocurrió con varias portadas de cantería en el
Cuzco en la época de reconstrucción que siguió al terremoto de 1950.
Tales portadas que debían resaltarse sobre el muro blanqueado hoy
se confunden con la tosca mampostería de piedra que ha quedado
a la vista a su alrededor. Como casos podemos señalar los de la
puerta de San Antonio Abad y la iglesia de Santa Clara, en donde
por esa búsqueda del “material a la vista” se perdieron varias de las
pinturas murales que cubrían las paredes del templo.
Distinto fue el tratamiento que se siguió en las obras coloniales
de lugares como Salvador de Bahía (Brasil), en donde se respetaron
las fachadas de los edificios pero se reconstruyeron totalmente
los interiores. Las fachadas se convirtieron así en meros telones
ornamentales detrás de los cuales pueden encontrarse cosas
inverosímiles.
198
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
Entre tantos inconvenientes no deben dejar de señalarse
aspectos positivos como las buenas actitudes entre ellas la humildad
de los viejos arquitectos que intentaron ponerse al día con los nuevos
postulados y la conciencia que se fue tomando respecto del valor de
los monumentos antiguos, especialmente de los coloniales.
5. Temas derivados de las Cartas de Venecia y Quito
5.1. El panorama general del patrimonio americano a
partir de la Carta de Venecia de 1964
El hecho de que dos latinoamericanos hubieran rubricado la
Carta de Venecia en 1964 no significaba que sus postulados fueran
los que hasta ese momento seguían los arquitectos restauradores
en el continente, cuyas características se acercaban más a la de los
“amantes de lo antiguo” y a la de los historiadores.
Las ideas que aun primaban en América Latina tendían más bien
a considerar que el único patrimonio rescatable era el anterior a la
época de la Independencia; se seguía pensando en el monumento
aislado y no en el entorno (salvo excepciones como alguna misión
religiosa o sitio precolombino), etc.
La Carta de Venecia tuvo su difusión en América a través de
revistas como los Anales del Instituto de Arte Americano de Buenos
Aires o el Boletín del Centro de Investigaciones Históricas y Estéticas
de Caracas. En Perú fue difundida por Pimentel quien hizo un glosario
de artículos de la Carta para ser aplicados en el país, el cual encontró
oposición en un arquitecto que escribió la titulada “Mi Carta de
Lima”.
Quien escribió “Mi Carta de Lima” era un neocolonialista que
entendía el manejo del patrimonio desde su particular punto de
vista. Fue el constructor del Hotel de Turistas del Cuzco en los años
treinta, un edificio neocolonial para cuyo levantamiento fue necesario
derribar un edificio auténticamente colonial.
199
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
5.2. Las Normas de Quito y la importancia del
entorno
La concientización del valor del patrimonio tomó otro matiz
en 1967 con el surgimiento de las Normas de Quito. Se cambió
el viejo concepto de que el carácter histórico de un lugar estaba
dado por si allí se había producido algún hecho de relevancia (el
nacimiento de un prócer, la firma de algún tratado, el libramiento
de una batalla, etc.). A partir de ese momento tomó importancia
la idea de lo estético independientemente de lo histórico;
se comenzó a valorar el monumento como obra de arte y el
monumento y su entorno, no como edificio aislado.
Para esta entonces muchos entornos ya habían sido
cambiados en su fisonomía, generalmente de dos maneras, o
variándose el tamaño de los edificios -la mayoría de más tamaño
que los existentes- o alterando las características físicas de los
mismos afectando así el sentido estético original. Inclusive en la
actualidad continúan haciéndose desastres en este sentido. Hay
sectores urbanos cuyas fisonomía y arquitectura son coloniales, y
en donde antiguamente se planearon calles angostas para permitir
que la sombra cobijara tales arterias y en las cuales pudiera
correr el aire. Con el advenimiento de las “modernidades” se ha
visto desaparecer edificios reemplazándoselos por antejardines
modificando toda aquella concepción.
Como ejemplo podemos señalar el Banco construído en la
calle Leandro N. Alem de Buenos Aires que cuenta con un amplio
antejardín y por lo tanto está sometido a una acción mucho más
directa del sol, primitivamente no planeada. Además de esta
manera se atenta contra una normativa existente que manda
que las casas de la vereda oeste de la calle Alem deben poseer
soportales (galerías o recovas) a la manera antigua.
Finalmente el prestigioso arquitecto constructor del Banco,
casi con carácter de “intocable” entre sus colegas, debió dar
marcha atrás y colocar unos soportales que actualmente cubren
la vereda, la cual de esta manera se encuentra siempre bajo
techo.
200
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
5.3. La revalorización de los Centros Históricos y el
interés por los pequeños poblados
Este movimiento de revalorización de los Centros Históricos
se produjo justamente después de la Carta de Venecia; antes
solamente se tenían en cuenta las ciudades antiguas como Cuzco
o Antigua. A partir de Venecia se valorizaron centros como los
de México, el Barrio de San Telmo en Buenos Aires, la Lima
“cuadrada” -la colonial, trazada en cuadrícula-, etc.
Luego de Venecia surgió también el interés por los pequeños
poblados históricos. Se empezaron a estudiar problemas como
el de la incidencia del turismo sobre ellos y la necesidad de no
verse absorbidos por este. También se presentó el problema de la
tugurización de los centros antiguos, tema en el que durante los
setenta la propia Unesco llegó a tener injerencia al enviar a hacer
trabajos en Cuzco, Quito y Salvador (Bahía). Posteriormente se
fue pasando a otras ciudades de menor tradición pero poseedoras
también de un rico patrimonio como Montevideo, Catamarca
(Argentina), Bogotá, etc.
El tema de los pequeños poblados no ha sido hasta hoy
estudiado con profundidad. La Unesco, no obstante, ha mostrado
su interés en ellos a través de publicaciones como las del programa
que Sylvio Mutal condujo en Lima, el cual ha editado una obra
titulada justamente “Pequeños poblados” en donde se hace un
estudio de los mismos en el Perú.
Más allá de los logros aislados en el plano práctico que se
fueron produciendo en América Latina después de Venecia, debe
tomarse como una conquista el hecho de que estos temas se
convirtieran en objetos de análisis.
5.4. La conservación del patrimonio, la restauración y
las tecnologías
Nuevas investigaciones sobre el patrimonio y su conservación
fueron iniciadas a partir de Venecia. Se puso en evidencia la
preocupación de profesionales de áreas distintas a la de la
restauración directa (economistas, abogados, etc.) respecto de
201
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lo mismo y los equipos de planificación urbana fueron de a poco
incorporando a sus labores estos temas.
El propio monumento empezó a ser tratado de otro modo,
teniéndose en cuenta todas sus etapas de construcción. Se estudiaron
los materiales y las tecnologías tradicionales además de otros problemas
que antes no se habían abordado. Se comenzaron a diferenciar la
restauración de la conservación y de la reconstrucción.
Esto obviamente no fue practicado en su totalidad ni en todas
las zonas. En varios lugares se utilizaron materiales actuales para
la restauración sin tenerse en cuenta los originales, por ejemplo
en la iglesia de Molinos en Salta (Argentina), que construída
primeramente en adobes sufrió una restauración con hormigón
armado. También es el caso de la casa de Nicolás Avellaneda en
Tucumán cuya estructura original era de madera y fue restaurada
con estructuras metálicas.
La restauración de arquitecturas de tierra con cemento se ha
vuelto algo habitual y generalmente negativo en América Latina.
Otro caso es el de las pinturas inadecuadas que se utilizan en las
intervenciones. Las paredes de tapia del Capitolio de Caracas hoy se
encuentran “enmascaradas” con materiales sintéticos lo cual hace
necesarias continuas restauraciones.
En el campo de la tecnología la realidad muestra un descenso
marcado de intervenciones con uso indiscriminado de los nuevos
materiales teniéndose más en cuenta las soluciones tradicionales
a base de adobe, piedra, madera o caña, ahora recuperados para
la construcción. Más allá de cierto romanticismo se han sabido ver
su utilidad y menores costos. Lo mismo ha ocurrido con el correcto
uso que no contados profesionales han dado al ladrillo.
Finalmente debe señalarse otro aspecto de imperiosa importancia
como es el del uso posterior del edificio o monumento y su
manutención. Las restauraciones deben hacerse teniendo en cuenta
cual será el uso posterior que se dará al edificio. Debe organizarse
además el mantenimiento, designándose responsabilidades, de tal
manera que no ocurran casos como el del Fuerte de Cobos en
Salta (Argentina) que tuvo que ser restaurado tres veces en los
últimos cuarenta años por carecer de una utilización práctica y del
cuidado necesario. Justamente el fomento de la conservación y el
mantenimiento fue uno de los temas en que puso especial énfasis
202
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
la Campaña Europea para el Renacimiento de la Ciudad de 1981 en
su apartado sobre Rehabilitación de inmuebles y barrios antiguos.
5.5. Las intervenciones en pintura y escultura
Además de la restauración y conservación de los edificios
comenzaron a tenerse en cuenta a partir de Venecia y Quito elementos
complementarios de los monumentos especialmente las obras de arte
pictóricas y escultóricas.
América Latina es rica en cuanto a testimonios coloniales de
pinturas de caballete y la talla de imaginería y retablos. Habitualmente
se piensa que por ser estos objetos de arte móviles pueden cambiarse
de lugar sin alterar la arquitectura; las evidencias han demostrado lo
contrario.
En los últimos años la tendencia ha marcado que las tareas de
conservación y restauración se acometieron de forma paralela,
gracias a lo cual se han abandonado en gran medida estos cambios
de sitio y hasta inclusive las mutilaciones, como ocurriera en el XIX
con las tallas de las vírgenes en Buenos Aires que se recortaron para
poder ser vestidas a la manera neoclásica o las columnas barrocas
de Paucartambo en el departamento de Cuzco que fueron alisadas y
pintadas.
Las pinturas murales son merecedoras de un tratamiento
preferente y más cuidadoso que las de caballete por el hecho de
que son parte de la misma arquitectura. Para su restauración se hace
necesario el reacondicionamiento previo de los muros que la soportan.
El criterio a seguir debe ser el mismo que en la arquitectura, es decir
la conservación de las distintas etapas de la obra.
En las dos últimas décadas el descubrimiento de este tipo de
pinturas se ha multiplicado asombrosamente en Latinoamérica, ya no
solo de la época colonial sino también del siglo actual hasta nuestros
días, sobre todo en zonas semirrurales. A este tema de las pinturas
murales ha de agregarse el de las tallas en piedra o madera adosadas
a la arquitectura, muy comunes en América; valiosas piezas de este
tipo han sido sustraídas de sus lugares originales mutilando el sentido
de conjunto.
203
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5.6. Los centros de restauración y estudio
Una de las premisas de la Carta de Venecia y que fue luego
reafirmada en las Normas de Quito fue la necesidad de crear centros
que cubriesen las necesidades técnicas a fin de llevar a cabo las
tareas de conservación. A estos centros podemos dividirlos en tres
grandes grupos: los talleres y laboratorios, los cursos de formación
y los centros de inventario.
En cuanto a los talleres y laboratorios podemos destacar en
América Latina el trabajo del Consejo Nacional para la Protección
de la Antigua Guatemala que desde 1969 viene trabajando en
restauración, complementando las tareas directas con otras
menores pero no menos importantes como la labor de estudiantes
a través de los cuales se llega a una concientización de las familias,
la realización de estudios ecológicos botánicos y sísmicos, etc.
El Proyecto PER 71/539 en Perú fue una muestra de la ayuda
dispensada por la Unesco a países latinoamericanos durante los
años setenta, en este caso uno de los dos con mayor raigambre
hispánica. El trabajo consistía en un estudio a realizarse durante siete
años sobre 27 monumentos tanto precolombinos como coloniales.
Para los primeros eran necesarias las tareas arqueológicas.
El PER 71/539 organizó durante su existencia un sistema de
talleres y laboratorios que luego siguieron su labor bajo la dirección
del Instituto Nacional de Cultura. Mientras el taller de objetos
muebles trabajaba sobre imágenes y pinturas, otros especialistas lo
hacían sobre pinturas murales. Era este un lógico complemento a
los trabajos de arquitectura y arqueología.
A su vez el PER 71/539 estaba relacionado con el Plan COPESCO
surgido también a mediados de los años setenta, y cuyo objetivo
estaba centrado en los departamentos de Cuzco y Puno. COPESCO
puede señalarse como una idea derivada de la Carta de Quito de
1967 ya que su finalidad primordial era la de promover el turismo
cultural, consistiendo el trabajo en obtener y reinvertir dinero en el
patrimonio.
Esta “explosión” turístico-cultural en el Cuzco trajo consigo
varios inconvenientes no previstos en un principio, tal como ocurre
en las muy visitadas ruinas de Machu Picchu en donde se ve
constantemente a la gente caminando libremente por los andenes
2 0 4 Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
incaicos, cuya estructura no está preparada para soportar el peso
de tanta humanidad.
Inclusive los propios organizadores del “boom” atentaron contra el
patrimonio en su afán ilimitado de erigir una infraestructura hotelera
adecuada y de abrir carreteras en zonas localizadas, entre otros
menesteres. Concretamente, al trazar en el terreno la ruta SicuaniPuno no tuvieron compasión con sitios arqueológicos a los que, en
comparación con otros más importantes, consideraron en aquel
entonces de segundo o tercer nivel.
En lo que a los cursos de formación respecta, es tema que puede
ir enlazado con los referidos anteriormente sobre el Proyecto PER
71/539, plan en el que se incluyeron cursos de formación técnica con
el apoyo de la Unesco y la OEA.
A nivel universitario pocas son las facultades en Latinoamérica que
actualmente incluyen materias sobre patrimonio y conservación. No
obstante en los últimos años se ha ido incrementando la oferta de
cursos de posgrado como los de las universidades de Bahía (Brasil)
-quizá los más prestigiosos-, la de México y la Universidad Católica de
Córdoba (Argentina).
Fuera del ámbito universitario existen centros de trabajos que
también han organizado cursos de formación. Caben señalar los
organizados por el Centro Paul Coremans en México. De él han
salido en los últimos treinta años numerosos especialistas de
América.
Un problema más grave aun que la limitada oferta de cursos de
formación en Latinoamérica es el hecho de que un gran número de
estos profesionales que gozan de la posibilidad de perfeccionarse
en el exterior al regresar a sus respectivos países no obtienen una
conveniente reinserción en el mundo laboral. De esta manera estos
nuevos especialistas en conservación e intervención en pintura,
escultura y arquitectura se ven relegados en las responsabilidades
de primer nivel por funcionarios públicos y otros “aficionados” a las
antigüedades.
Como se puede apreciar también en América Latina existen
problemas y conflictos similares a los planteados en el programa de
“Legislación y Patrimonio” en el capítulo referido a “La redefinición
de la oferta cultural en la España de los ochenta”, como ser este de
la formación de personal técnico en el ámbito de la conservación.
205
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Pueden señalarse también aquí la insuficiencia de los programas
de rehabilitación, el estado entre la terciarización y el abandono de
los centros históricos y el problema de los espacios públicos y las
periferias, sobre algunos de los cuales hemos hablado.
Pasando al tema de los centros de inventario, indicar que el
trabajo de inventariado se inició en Latinoamérica a principios del
siglo XX y ya para los años veinte tenemos conocimiento de diversas
publicaciones al respecto. En los tres últimos decenios de la centuria
estas tareas se acrecentaron, catalogándose edificios y zonas
urbanas de manera sintética y orgánica en todo el continente.
El tema de los inventarios es de suma importancia ya que
cumplen la función, previa a la intervención, de ver lo que existe.
Los inventarios pueden ser de enumeración (simple cómputo de lo
existente) o razonados (calificando el estado de los monumentos u
objetos, incluyendo los problemas que puedan llegar a sufrir).
El modelo utilizado para las labores de inventariado han sido
las fichas del Consejo de Europa. Luego de una etapa inicial de
primeras experiencias y reuniones en Colombia, México, Chile y
Costa Rica en las cuales se trató el tema, se fueron paulatinamente
aunando los criterios respecto de la ejecución de aquellas tareas.
En el primero de esos países se montó un importante Centro de
Inventario que sirvió de ejemplos a otros que vinieron después en
Sudamérica. Además de los monumentos comenzaron a tenerse en
cuenta los objetos de arte, las partituras musicales, los documentos
y libros antiguos y otras manifestaciones de propiedad pública y
privada que quedaron registradas en la institución.
En Brasil se han hecho tareas similares, incluyendo publicaciones
en los estados de Bahía y Minas Gerais. Lo mismo México, cuyas
tareas hoy se sistematizan a través del Instituto Nacional de Bellas
Artes (INBA). En ese país se han realizado catálogos sistemáticos
de monumentos nacionales, estado por estado, estudios que
continúan publicándose en la actualidad.
La otra cara de la moneda es la mostrada por Argentina donde
el Comité Nacional del Icomos ha perdido tiempo y recursos
sin aprovechar la oportunidad de inventariar, manteniendo
prácticamente sin uso varios equipos de máquinas procesadoras.
Esto es un indicativo de la técnica sola es insuficiente y que el trabajo
de base -más lento y menos espectacular- también es necesario.
2 0 6 Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
Por último cabe señalar que además de los inventarios de obras
muebles e inmuebles señaladas, últimamente se están encarando los
de materiales y sistemas tradicionales de construcción, es decir las
estructuras de piedra, madera, caña, tierra, etc. Esto se ha vuelto de
imperiosa necesidad para la rehabilitación de edificios y para la mayor
conservación de los ámbitos urbanos.
6. La intervención en el patrimonio latinoamericano.
Temas actuales de debate
El tema de los inventarios, que ya fue incluido en el capítulo
anterior al ser tratados los diferentes tipos de centros de formación
surgidos tras la Carta de Venecia por lo cual no volveremos sobre
las mismas consideraciones, debe incluirse también aquí como una
de las formas de intervención de actual necesidad en el continente
americano.
A dichos trabajos de inventariado podemos sumar otras dos tareas
de vital interés como son la de las obras de conjunto y la recuperación
integral del patrimonio.
En lo que respecta a las obras de conjunto debemos señalar
como importantes las numerosas tareas de este tipo desarrolladas
en Quito luego del terremoto de 1980. Las mismas contaron con el
apoyo de España y más concretamente de “Cooperación Española”,
cuyos técnicos supieron respetar los conocimientos de los especialistas
locales. Así, mientras estos se dedicaron sobre todo a los trabajos
arqueológicos, los españoles intervinieron más en las obras de arte.
Tal fue el caso de las obras realizadas en San Francisco de Quito, quizá
la más importante intervención de las que se concretaron durante los
ochenta en la capital ecuatoriana.
Con el asesoramiento de “Cooperación Española” se creó
también la “Escuela Taller Angostura” de Ciudad Bolívar (Venezuela),
cuyo objetivo fundamental es la formación de artesanos de la
construcción. Los nuevos especialistas que van surgiendo trabajan en
la rehabilitación de edificios de esa ciudad practicando en las propias
obras lo aprendido.
El tema de la recuperación integral en América Latina se
desarrolla en un plano mucho más modesto que en Europa donde
207
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
las posibilidades económicas son notoriamente superiores. Como
ejemplo en nuestro continente podemos tomar el del Servicio Nacional
de Arquitectura que interviene en el patrimonio histórico-artístico del
Noroeste argentino, zona en donde se reparte labores juntamente
con la Fundación Tarea, la cual cuenta sobre todo con especialistas en
restauración de objetos de arte.
Se da así una incidencia mixta de capitales, por un lado los
públicos (el Servicio) y por otro los privados (Tarea). A ellos se van
sumando los apoyos de los municipios de la región, en lo económico,
pero fundamentalmente en la mano de obra y en el apoyo moral
(cofradías, feligreses, etc. que preparan fiestas y otras celebraciones).
El municipio toma también la responsabilidad del mantenimiento
posterior a las obras. Entre otros lugares intervenidos se hallan Uquía,
Casabindo y Huacalera.
7. Los pasos posteriores a la restauración
Tres son los temas que tendremos en cuenta en este capítulo: el
mantenimiento continuo, la revisación de lo restaurado y por último
los aspectos de actual consideración en América Latina y que serán
continuos objetos de análisis en los próximos años en lo que respecta
a la restauración.
Sobre el tema del mantenimiento algo hemos dicho en capítulos
anteriores. Hemos centrado nuestra atención sobre el hecho de que,
previamente a la restauración de un monumento, debe quedar en
claro quién se hará cargo del mantenimiento del mismo en el futuro.
Debe diferenciarse lo que es una obra privada -donde de por sí el
propietario asumirá la mayor parte de la responsabilidad- de lo que es
una pública -en donde hay que dejar bien definido quién se adjudicará
tales compromisos-.
Es imprescindible, ya durante la restauración, utilizar soluciones
técnicas que favorezcan tales mantenimientos en el porvenir,
colocando materiales adecuados y que posean un fácil escurrimiento
de las aguas en el caso de los edificios, o protegiendo debidamente
las salas de los museos cuando se trata de objetos de arte.
Se considera actualmente indispensable -más allá de si se cumple
o no- una revisión periódica de las intervenciones en restauración, cada
2 0 8 Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
cinco, diez o quince años según el caso. Esto surge de la necesidad de
verificar el acierto o no en las técnicas utilizadas.
Esta propuesta fue presentada por el arquitecto brasileño Ciro
Correia Lima en el Cuarto Congreso Nacional de Preservación realizado
en Corrientes (Argentina) en octubre de 1988.
Los interventores deben entender que las soluciones no son
definitivas, que existen materiales que a primera vista parecen
buenos pero que los años demuestran su incompatibilidad con los
componentes originales de los edificios. Ejemplo de lo dicho pueden
ser las obras de restauración en las que se utilizó el hierro, sustancia
que con los años fue oxidándose dañando los monumentos más de
lo que estaban.
Otro caso es el del silicato de etilo, consolidante que se emplea a
través de un rociado y que ha sido utilizado en varios sitios arqueológicos
del Perú, por ejemplo en Chan-Chan desde 1975. Al cabo de diez años
el químico encargado de estos trabajos volvió al lugar y reparó en que
el componente no había surtido efecto. Decidió entonces tomar una
muestra para experimentar, comprobando entonces que el silicato se
había evaporado por completo.
La vigilancia y la readecuación, entonces, es fundamental; por ello
es también importante que todas las intervenciones, como la señalada
en el párrafo anterior, sean reversibles, es decir que si se comprueban
errores en los trabajos sea posible repetir el proceso hasta lograr el
punto conveniente.
En la actualidad otros dos problemas fundamentales se están
debatiendo en Latinoamérica en el plano de la restauración. Ellos,
comunes en gran medida a Europa, son el arreglo de las restauraciones
mal hechas y el problema del deterioro de las obras de hormigón
armado. En el caso del primero, es problema que se está verificando
especialmente en los edificios de finales del siglo XIX y principios del
XX. Para ello es necesario no solo estudiar la obra sino también su
“historia material”, analizando los documentos que han quedado
de la época de la construcción primera y de las sucesivas etapas de
agregados si es que las hubiera.
En lo que atañe al problema del deterioro de las obras de hormigón
armado, los daños que están mostrando numerosas obras realizadas
en ese material se deben a alteraciones químicas que anteriormente
eran desconocidas y que se están comprobando en la actualidad. Estas
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V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
verificaciones no solo se están produciendo en las obras nuevas sino
también en las obras restauradas con dicho material. Existe además
un alto porcentaje de probabilidad de que estas averías se constaten
también en obras de ingeniería como puentes, presas hidroeléctricas,
etc.
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212
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate
Rodrigo Gutiérrez Viñuales
Rodrigo Gutiérrez Viñuales nació en Resistencia (Argentina) el 19 de octubre de 1967. Profesor Titular de Historia del Arte de la Universidad de
Granada (España). Ha impartido cursos de doctorado en las universidades
de Granada, Zaragoza y Pablo de Olavide (España) y en las nacionales
de Misiones y del Nordeste (Argentina). Ha dictado clases y dado conferencias por invitación en las citadas universidades y en las de Sevilla, La
Laguna, Jaime I de Castellón y Complutense de Madrid (España), Federal
de Goiás (Brasil), La Habana (Cuba) y Politécnica (Puerto Rico), además de
hacerlo en numerosas instituciones públicas y privadas de España, Italia,
México, Cuba, Puerto Rico, Colombia, Ecuador, Brasil, Paraguay, Argentina, Chile y Uruguay.
Coordinador de la Biblioteca y del Archivo de Arte Latinoamericano del
Centro de Documentación de Arquitectura Latinoamericana (CEDODAL),
Buenos Aires (Argentina). Coordinador de Iberoamérica y miembro del Comité Internacional de la Revista de Museología, Madrid, desde 1998.
Especializado en arte iberoamericano de los siglos XIX y XX, ha publicado un centenar de estudios sobre estos temas, destacando entre sus
últimos libros: Monumento conmemorativo y espacio público en Iberoamérica (Madrid, Cátedra, 2004), Arte Latinoamericano del siglo XX. Otras
historias de la Historia (Zaragoza, Prensas Universitarias, 2005), América
y España, imágenes para una historia. Independencias e identidad 18051925. (Madrid, Fundación MAPFRE, 2006). Comisario de varias exposiciones, siendo las más recientes: “Cultura funeraria y expresión artística
en Iberoamérica” (Biblioteca de Andalucía, noviembre de 2006 y Funermostra-Feria de Muestras, Valencia, mayo de 2007), “Ecuador. Tradición
y modernidad” (Biblioteca Nacional, Madrid, abril-agosto de 2007), “Arte
Latinoamericano en la colección BBVA” (Palacio del Marqués de Salamanca, Madrid, septiembre-diciembre 2007), “Buenos Aires. Los escenarios de
Luis Seoane” (octubre-diciembre de 2007) y “El reencuentro entre España
y Argentina en 1910. Camino al Bicentenario” (Banco Provincia, Buenos
Aires, 2007).
213
In the searching of bringing new meanings to personal
biography, some people affected by the broken up of
a cesium-137 teletherapy unit, in Goiânia, became the
disaster memory-guardian. Among the private archives
established, Luiza Odete ´s files are a case in point due
to a postcards collection of urban landscapes, gathered
when she was as a secluded patient at Naval Marcilio
Dias Hospital, in Rio de Janeiro. Based upon the analysis of this collection and on the data from interviews
made with the collection owner, this paper addresses
the following questions: in the context of segregation,
which place/es a person builds when looking at Rio de
Janeiro tourist images? Why collect postcards as a disaster radiation victim?
Key-Words: post-cards; traumatic memory; radiation disaster
abstrac t
Colecionando Cartões Postais: Os Lugares
Constituídos Em Contexto De Isolamento
Telma Camargo da
Silva
resumo
Na procura da re-significação da biografia pessoal, algumas pessoas atingidas pela radiação decorrente da
ruptura de um aparelho de radioterapia, contendo césio137, em Goiânia, se tornaram guarda-memória do desastre. Entre os arquivos pessoais assim construídos, o
acervo de Luiza Odete se destaca por conter uma coleção de cartões postais de paisagens urbanas, reunida
em 1987, quando ela estava isolada no Hospital Naval
Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. A partir da análise desta coleção e de entrevistas orais com a colecionadora,
este texto discute as seguintes questões: que lugar/es
se constrói, em contexto de segregação, o olhar pousado sobre uma coleção de imagens turísticas do Rio
de Janeiro? Por que colecionar cartões postais enquanto
vítima de um desastre radioativo?
Palavras-chave: cartões-postais; memória traumática;
desastre radioativo.
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Introdução
Durante o meu trabalho de campo (1996 – 1997)1, para a
redação da minha tese de doutorado sobre as representações de
saúde e de doença e sobre a produção da memória no contexto
do desastre radioativo de Goiânia, um fato me chamou a atenção: a
constituição de acervos pessoais por parte das pessoas impactadas
pela catástrofe. No processo de coleta de dados, que compreendeu
o registro sonoro e visual de narrativas de múltiplos atores sociais, a
construção de histórias de vida e a consulta a arquivos públicos, eu
me deparei com estes acervos pessoais compostos por documentos
escritos, iconográficos e sonoros.
Para alguns, como no caso dos policiais militares, que na época
reivindicavam uma relação de causa e efeito entre sofrimento e
trabalho realizado durante a emergência radioativa, colecionar
documentos remetia à constituição de uma identidade de vítima
da radiação. O pertencimento à rede social do desastre carecia de
comprovação e neste contexto, os acervos pessoais se configuravam
como suportes da memória testemunhal (SILVA, 1998, p. 117-138).
Eram estas coleções de documentos que constituiam o elemento
fundamental da performance desses indivíduos nos espaços
públicos onde os relatos dos dramas sociais vivenciados em 1987
eram revividos: as reuniões da Associação de Cabos e Soldados,
os encontros no Hospital da Polícia Militar do Estado de Goiás
(HPM- Goiânia) e nas Audiências Públicas, no Congresso Nacional,
em Brasília. Para outros, colecionar documentos, como recortes de
jornais onde a notícia era o próprio colecionador, indicava que o curso
‘normal’ da vida havia sido interrompido, como já expresso através
do processo de narrativização do desastre, e que a trajetória da
catástrofe estava imbricada na história de vida do indivíduo afetado
(SILVA, 2002). Contudo, o arquivo construído por Luiza Odete2
se diferenciava dos outros. Entre os vários tipos de documentos
guardados havia uma coleção de cartões postais com imagens da
cidade do Rio de Janeiro, formada por ela quando estava internada,
enquanto paciente contaminada pela radiação, no Hospital Naval
Marcílio Dias, localizado no Rio de Janeiro. Estas imagens do Rio
turístico representado nos cartões postais e guardadas ao longo dos
anos por uma pessoa vitimada pela exposição à radiação suscitou
216
Telma Camargo da Silva
Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento
alguns questionamentos: 1) em contexto de isolamento, que lugar/
lugares, o olhar constrói quando pousado sobre uma coleção de
paisagens urbanas? 2) Se, como aponta Ecléia Bosi, “a memória
do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com
a escola, com a Igreja, com a profissão, enfim com os grupos de
convivência e os grupos de referência peculiares a cada indivíduo”
(apud SA, 2007, p. 45), que memória do Rio de Janeiro se constrói
através da sociabilidade vivenciada como paciente do Hospital
Marcílio Dias? 3) Por que colecionar cartões postais de cenas urbanas
enquanto vítima de um desastre radioativo?
Assim, este texto se propõe discutir e analisar a interligação
entre o ato de colecionar cartões postais, a representação das
imagens guardadas e a instituição da pessoa social, em contexto de
desastre radioativo.
A constituição da coleção de cartões postais: a
biografia cultural dos objetos guardados e a narrativa
da segregação
Ao discutir o uso de fontes visuais, Meneses enfatiza a
necessidade de examiná-las “mais do que como documentos, (vêlas) como ingredientes do próprio jogo social, na sua complexidade
e heterogeneidade” (2005, p. 44). Nesta perspectiva, e ele
acrescenta, as imagens têm uma dimensão de objeto, de artefato,
que junto com a possibilidade aberta de identificar e interpretar os
sentidos da linguagem visual contida na fotografia, faz-se necessário
refletir sobre os contextos em que, nesse caso os cartões postais,
se integram à vida social de quem os coleciona. É o levantamento
da constituição do acervo que nos dará elementos para significálo na história de vida de um indivíduo: como, quando e porquê
um conjunto de documentos se constitue como um acervo a ser
guardado e conservado?
Antes de falarmos sobre os documentos guardados por Odete,
vamos situá-la na rede social engendrada pelo desastre de Goiânia.
Luiza Odete foi uma das primeiras pessoas a ter contato com a fonte
radioativa. O material chegou até ela porque sua família morava no
Ferro Velho do Ivo, seu primo e irmão de Devair, a pessoa que comprou
217
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
a cápsula e a levou para o seu Ferro Velho. Nesse mesmo local, ficava
a casa em que Devair morava e foi em sua residência e em seu local
de trabalho que ele distribuiu partes do pó radioativo para membros
de sua rede familiar e de amizade. Luiza Odete faz parte do grupo de
pessoas que fascinada com o brilho de purpurina azul do césio-137
à noite, usou o material no corpo. Em conseqüência, ela não só foi
irradiada e contaminada pela radiação, como também teve todas as
partes do corpo que anteriormente haviam sido cobertas pelo brilho
do césio, transformadas em radiodermites. O lado esquerdo do seu
pescoço se transformou em uma grande ferida, com lesões perto da
artéria. Foi nestas condições que alguns dias após o reconhecimento
pela Comissão Nacional de Eneriga Nuclear (CNEN) do desastre de
Goiânia como um desastre radioativo, o que aconteceu em 29 de
setembro de 1987, ela integrou o segundo grupo de pessoas3 que
foi transferido do isolamento no Hospital Geral de Goiânia (HGG)
para o isolamento no Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD)4, no Rio
de Janeiro, onde ficou até início de dezembro de 1987. Este hospital
militar era, segundo relatos, a única instituição hospitalar preparada,
naquela época, para receber pacientes vítimas da síndrome aguda da
radiação. Isto porque ele fazia parte do projeto secreto de construção
do submarino atômico brasileiro, pelos militares. Ou seja, ele havia
sido equipado e re-estruturado com a construção de espaços
projetados para atender uma possível emergência decorrente de
catástrofes relacionadas ao projeto de construção do submarino
nuclear brasileiro – “Projeto Remo” –, parte do chamado programa
nuclear paralelo brasileiro, patrocinado pelas Forças Armadas5. Uma
equipe de profissionais altamente qualificada em termos de medicina
nuclear também fazia parte dos quadros do HNMD.
É pois no contexto do Hospital Naval Marcílio Dias, que o
arquivo pessoal de Odete começou a ser constituído. Dessa época
e enquanto paciente, ela guarda um conjunto composto de textos
impressos de orações dadas pelo capelão do HNMD e a coleção de
dezessete postais da cidade do Rio de Janeiro. Também fazem parte
do seu acervo, vários recortes de jornais e documentos relacionados
à presença dos filhos em Cuba, em 1992, quando se deslocaram
para este país para receberem tratamento médico.
A coleção de cartões postais6, objeto de análise deste texto,
retratam:
218
Telma Camargo da Silva
Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento
• Ponte Rio - Niterói (“Ponte Presidente Costa e Silva): um
cartão;
• Vista aérea do Cristo Redentor: dois postais;
• Vista em contre-plogée do Cristo Redentor tendo à frente
o Bondinho de Santa Theresa: um postal ;
• Teatro Municipal: um postal;
• Bondinho do Pão de Açúcar: um postal;
• Vista noturna do Rio: dois postais;
• Vista parcial do Pão de Açúcar e do Morro da Urca: um
postal;
• Praia de Copabana com vista diurna e com banhistas: dois
postais;
• Vista noturna da Baia de Guanabara, do Pão de Açúcar e
do Morro da Urca um postal;
• Vista noturna de um velejador tendo ao fundo o Cristo
Redentor: um postal;
• Vista noturna do mar, tendo ao fundo vista parcial da
cidade do Rio: um postal;
• Vista diurna da orla da Zona Sul do Rio: dois postais;
• Vista do entardecer nos calçadões de Copacabana: um
postal;
Dos dezessete cartões da coleção, onze postais não trazem
nenhum texto no verso. Segundo Luiza Odete, eles lhe foram dados
no HNMD por duas integrantes do grupo de atendimento: Daise
e Luiza. A primeira, funcionária do Instituto de Radioproteção e
Dosimetria (IRD), assina duas das seis mensagens textuais. Estas duas
mensagens são datadas (12/12/87) e, ao contrário dos cartões sem
escrita no verso, indicam que foram enviados quando Luiza Odete
já havia retornado a Goiânia.
Uma dessas mensagens indica que Luiza Odete embora tenha
passado três meses no Rio de Janeiro não visitou a cidade: “Luíza
(Odete), esta é uma das paisagens lindas da minha cidade. Infelizmente
você não pode conhecer” (Imagem 1). A outra mensagem associa
a iconografia do Cristo Redentor de braços abertos – representado
em quatro postais da coleção – ao acolhimento de todos que
acreditam e têm fé: “Luíza (Odete), tenha fé neste Cristo que está
aberto para todos que crêem nele” (Imagem 2).
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V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Figura 1 - Verso do cartão “Ponte
Presidente Costa e Silva (Rio – Niterói)”
Figura 2 - Verso do cartão “Vista Aeréa do Cristo
Redentor com Jóquei Clube , ao fundo”
Os outros quatro textos são assinados por Luiza. A data
impressa em dois dos cartões – 25/11/87 – confirma que Luiza
Odete se encontrava ainda hospitalizada no Marcílio Dias quando
os recebeu. As mensagens expressam: 1) laços de amizade: “com
2 2 0 Telma Camargo da Silva
Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento
muita amizade e carinho da amiga Luiza”; 2) assinalam a passagem
pela cidade: “Lembranças do Rio de Janeiro, Luiza” (Imagem 3) ; 3)
votos relativos a data comemorativa: “Feliz Natal e Próspero Ano
Novo com muito carinho da amiga Luiza”; “Kardec Feliz Natal e um
bom Ano Novo com muito carinho, Luiza”.
IFigura 3 – Verso do cartão “Vista Noturna – Barra da Tijuca”
Os cartões postais segundo Luíza Odete lhe foram dados como
“uma recordação, uma demonstração de afeto pelo fato de ter
passado um longo tempo no Rio e nunca ter tido a oportunidade
de conhecer a cidade”. Ela acha também que as pessoas tinham
este carinho porque acreditavam que ela não fosse viver. De fato, a
percepção dela não estava equivocada. Um dos médicos, integrantes
da equipe do HNMD, descreve a forma como ela chegou no Rio de
Janeiro e foi posteriormente transferida para uma enfermaria isolada
e blindada, onde permaneceu por mais de dois meses:
Uma paciente como a L. Odete, a irradiação incorporada que ela possuía
era tão alta ... Mas que veio (para o Marcílio Dias) com os dados de Goiânia
errados. De início nós julgamos que ela não tivesse uma incorporação tão
grande, entendeu? Então colocamos numa enfermaria especial, também,
221
V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
mas numa enfermaria que não tem blindagem de parede, são paredes
como essa. Do lado de fora, o monitor começou a disparar. Todo mundo
pensou que fosse defeito do monitor. Não, não foi defeito não, tem alguma
coisa aqui dentro. Era ela. Aí ela foi transferida para uma enfermaria
blindada. (...) Pela primeira vez para uma enfermaria blindada. (COSTA,
Lenine Fenelon. 1996).
As imagens da cidade do Rio de Janeiro _ cidade recortada na
perspectiva de construção de uma paisagem turística, convidativa
ao passeio e ao prazer _ chegaram até Luíza Odete no momento
em que ela se encontrava segregada. O espaço vivenciado naquele
momento estava fisicamente blindado e até o piso era revestido por
uma lona de plástico para que os fluídos corporais, por exemplo o
suor, veículo de contaminação radioativa, não chegassem a outras
áreas do hospital. O lugar simbólico também indicava o momento
do isolamento e da ruptura. Por um lado porque os laços familiares
estavam rompidos _ em suspenso _ pois os filhos haviam ficado
em Goiânia e ela tinha o sentimento de que nunca mais poderia
reencontrá-los. Por outro lado, os contatos pessoais estavam restritos
à equipe interdisciplinar que atuava no Marcílio Dias e o mundo de
fora da instituição era mediado por estes profissionais. O HNMD
representou para ela uma prisão e esta percepção acompanhou
toda a sua permanência no Rio de Janeiro mesmo nos momentos
finais de seu tratamento quando, segundo ela diz em entrevista,
podia chegar até o quintal do hospital e de lá ver a Rocinha e
ouvir o som de tiros que ecoavam de lá. Ou, mesmo quando de
ambulância, saía do Marcílio Dias para fazer alguns exames. Nessas
ocasiões, ela relembra os trechos da cidade vislumbrados pela janela
do carro: as imagens da Barra da Tijuca.
É nesta temporalidade e nesse contexto que a coleção de cartões
postais se constitui e enquanto objeto físico, como um artefato, se
integra à história pessoal de Luiza Odete. Mas que significados se
processam através do ato de guardar esta coleção ao longo de vinte
anos (1987-2007)? Como pensar a relação entre a constituição da
identidade social de vítima do desastre e a constituição e manutenção
do arquivo pessoal?
Os cartões postais como objetos de conhecimento
222
Telma Camargo da Silva
Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento
Os cartões postais surgem por volta de 1870, quando Emamnuel
Hermman, economista austro-húngaro, produziu uma coleção
propalada como “um novo meio de correspondência postal”
(SOUZA, 2006, p. 2), onde a correspondência era postada sem
invólucro protetor. No Brasil, os postais começam a ser veiculados
a partir de 1904 (VELLOSO, 2000, p. 114). No início, as imagens
impressas se constituíam de gravuras. Com a incorporação da
fotografia e das técnicas de reprodução fotomecânica, em 1891,
a produção e o consumo de postais foram ampliados (MACHADO,
2002, p. 5). Esta incorporação da fotografia no objeto cartão-postal
acabou interferindo no tamanho das reproduções fotográficas, com
o surgimento do formato 9 x 14 cm ou 14 cm x 9 cm. (VELLOSO,
Op. Cit., p. 114). Os primeiros anos do século XX representam o que
os estudiosos desse tema chamam de “anos dourados” ou “idade
de ouro” do cartão-postal e o “hábito de colecionar postais depois
de utilizá-los como correspondência tornou-se uma prática comum
entre as mulheres de famílias das elites e dos setores médios urbanos
no Brasil, como uma forma de se conectar com as novidades do
mundo da chamada belle époque” (Ibid., p.114).
A relação que se estabelece entre o consumidor e o receptor
do cartão-postal aponta para a construção de temáticas que
posteriormente se constituirão em objeto de estudo de diferentes
campos disciplinares. Por um lado, os cartões-postais, enquanto
iconografia, são enviados para marcar a experiência vivida em
algum lugar distante. No início do século XX, o hábito de viajar
era incentivado entre as elites brasileiras e emergia em decorrência
do surgimento dos novos meios de transporte, como estradas de
ferro e os navios a vapor. Os postais, nesse contexto, indicavam
uma distinção de classe através da comprovação visual do ‘estive
lá”. Fontes de recordação de momentos vividos em outros lugares,
fora do espaço da vivência cotidiana. Mas eles também permitiam,
do lado do destinatário, as viagens da imaginação, as “viagens sem
sair do lugar”. Ou como diz Velloso (Op.Cit., p. 120):
Os postais, através de suas imagens de cidades e paisagens, permitiam
muitas vezes a realização destas viagens apenas no campo da imaginação,
já que nem sempre era possível concretizá-las no mundo real; eles
democratizavam o desejo de viagem pelo mundo desconhecido, por parte
de seus remetentes e destinatários.
223
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É desta forma que o escritor Mário de Andrade, segundo Moraes
(1993)7, viaja ao exterior através das imagens de 110 cartões postais
recebidos de oitenta remetentes no período entre 1922-1940. Seria
então, o mesmo que dizer que Mário de Andrade fez inúmeras
incursões ao exterior através de suas “viagens de gabinete”. Ou de
outra forma, pensar sobre as possíveis construções de lugares que
o seu olhar elaborou a partir das visões trazidas pelas fotografias
dos cartões postais recebidos.
Por outro lado, enquanto mensagem textual, os cartões
postais reafirmam relações de sociabilidade através de uma escrita
resumida. Além de manter o destinatário atualizado sobre a viagem
que o autor-remetente está realizando, expressa em notícias breves,
a escrita postal também assinala e reafirma laços de amizade, de
afetividade. É o que nos revela, por exemplo, os 31 cartões postais
trocados no período de 1906 a 1908, entre Monteiro Lobato e sua
noiva Purezinha (LOBATO, 2006). Através desta correspondência, o
leitor tem acesso não só aos aspectos da vida privada de jovens do
início do século XX, como também aos cenários da vida cotidiana
do interior paulista, como festas e meios de transportes.
Como assinalado por Velloso (Op. Cit., p. 116), a transição
do cartão-postal de objeto comercializável a objeto de coleção foi
intermediada pela sua utilização como correspondência. Contudo,
foram os hábitos de uma determinada época que permitiram
a constituição das coleções de cartões postais. Com isto quero
enfatizar que o colecionismo de cartões postais8, como uma
iniciativa pessoal de constituição de arquivos, se institui como
uma prática historicamente situada. Hábito que se fomentou no
auge da circulação dos postais, no início do século XX, e praticado
na maioria das vezes por mulheres. É desta forma que estes
artefatos são guardados e posteriormente publicados e estudados
como no caso da coleção de cartões guardados por Purezinha
ou por Josephina Cunha Campos9 estudada por VELLOSO(2000).
Somente, anos mais tarde, estes artefatos atraem o interesse das
instituições museológicas que efetivam em ações a expressão
“colecionar cartões-postais é como guardar épocas dentro de um
baú” (MASSON; SILVA:1997).
E estes arquivos pessoais e estes baús guarda-memórias foram ao
longo dos últimos anos abertos por estudiosos vindos de diferentes
2 2 4 Telma Camargo da Silva
Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento
campos como da História, da Arquitetura, e da Antropologia. Em
sua maioria estes estudos focalizam as representações construídas
pelas imagens fotográficas reproduzidas nos cartões-postais e
privilegiam as análises sobre: 1) as mudanças decorrentes do
processo de modernização e as contradições da modernidade
a partir da reflexão sobre as paisagens culturais retratadas em
cartões-postais do fim do século XIX e início do século XX em São
Paulo (FREHSE: 1999; 2000; GERODETTI; CORNEJO, s/d; IMAGENS
DA METRÓPOLE, 2004) e no Rio de Janeiro (MACHADO, Op. cit.);
2) as mudanças na socialização das famílias urbanas a partir do
projeto modernizador da República (VELLOSO, Op. cit.); 3) o retrato
de uma época, como exemplifica o estudo feito por Gilberto Freyre
sobre o Ciclo da Borracha em que este estudioso analisou cartõespostais enviados por migrantes (Apud MASSON; SILVA, Op.Cit.).
Posteriormente, com a implantação e consolidação dos estudos
de pós-gradução em Turismo, surgem trabalhos que analisam as
relações estruturantes dos cartões-postais de paisagens com o
objeto a ser vendido, no caso as paisagens como lugares “turísticos”
(SOUZA, Op. Cit.). Nesta perspectiva, outra linha de pesquisa parte
da interpretação das imagens impressas nos cartões postais para
analisar as políticas públicas propostas para o setor turístico na
cidade do Rio de Janeiro (SIQUEIRA: 2006; MACHADO, Op. cit.).
Paralelamente ao interesse na interpretação da iconografia dos
cartões-postais e do foco na análise do conteúdo da mensagem
textual, um outro campo de estudo analisa os postais como um estilo
de correspondência e relaciona a sua guarda às relações de gênero
engendradas no século XIX. Nesse sentido, Sacramento (2006) em
resenha do livro de Michelle Perrot intitulado As mulheres ou os
silêncios da história, ao dizer que na cena histórica a memória do
privado coube às mulheres, afirma:
Enquanto os homens da burguesia, no século XIX, têm o hábito de
colecionar quadros, livros como distinção e sinônimo de suas conquistas
econômicas, as mulheres preocupam-se com a roupa branca e os objetos,
em uma ânsia de reter sua vidas em ‘mil nadas”: estojos, nos quais guardam
“mechas de cabelo, flores secas, jóias de família”, e depois fotografias,
croquis e cartões-postais de viagens e outras miudezas. (SACRAMENTO,
2006 , p. 2)
225
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O colecionamento de cartões-postais se constitui assim,
retomando uma expressão de Sacramento (Op. Cit.), como uma
das configurações de “espaços de memória” das “mulheres
emparedadas”, no caso, as mulheres européias burguesas do século
XIX. É neste ponto, após uma revisão da bibliografia disponível sobre
o tema, que volto aos postais presenteados a Luiza Odete quando
ela era paciente interna no HNMD e posteriormente transformados
em uma coleção integrante de um arquivo pessoal conservado ao
longo de vinte anos.
Emparedamento e evitação: guardando as marcas do
sofrimento
Foi como emparedada que Luisa Odete vivenciou os meses
de tratamento no HNMD e nesse contexto é a destinatária dos
cartões-postais que colecionou. Eles assinalam laços de amizade e
afetividade demonstrados por membros da equipe de profissionais
de saúde para uma paciente em situação aguda de contaminação
radioativa. As imagens fotográficas do Rio turístico, das viagens
turísticas, foram oferecidas pelos remetentes como uma forma de
proporcionar uma “viagem da imaginação”, uma sugestão para
conhecer e sentir estando longe. Contudo, no caso de Luiza Odete, a
“viagem de gabinete” como empreendida pelos devaneios de Mário
de Andrade se transformou na “viagem do isolamento”. O Cristo
que abençoa uma expressão de contenção da dor e resignação
frente ao sofrimento mais do que uma visita imaginária a um marco
turístico da cidade.
A coleção de cartões postais, em 1987, configurava um elo entre
dois mundos separados pela radiação, pelo medo e pelo risco da
contaminação radioativa. Nesse contexto, o mundo da ordem, por
um lado, se expressava através do recorte visual feito pelas pessoas
que escolheram entre os vários cartões postais disponívies, aquelas
imagens que na percepção do remetente/doador representavam
a paisagem urbana do Rio. As imagens trazidas pelas fotografias
faziam pensar em praia, liberdade, sol no corpo, luz, espaço
aberto, corpos bronzeados, brisa soprando no passeio de barco,
mar infinito. O mundo da desordem, por outro lado, era aquele
2 2 6 Telma Camargo da Silva
Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento
evocado pela presença da Luiza Odete: o mundo poluído, o mundo
das coisas fora de lugar e por isto entendido como “desastre” e
acidente (DOUGLAS, 1966, p. 11-17). Esse corpo “sujo” _ símbolo
das consequências decorrentes do risco tecnológico, da pobreza
que se nutre das sucatas e da falta de informação _ deveria ser
primeiramente higienizado através dos rituais de purificação que
aconteciam no HNMD para ser posteriormente re-inserido na
sociedade. É esta dualidade entre ordem/desordem; pureza/perigo;
confiança/medo; liberdade/segregação que condensa o significado
atribuído aos cartões postais como uma dádiva que estabelece a
ligação entre dois mundos.
É importante assinalar que o “espaço da ordem” naquele contexto
remete ao imaginário constituído sobre a cidade do Rio de Janeiro e
o “lugar que ela ocupa como cenário propriciador da sexualidaede e
da sedução” e “como as praias da Zona Sul foram sendo construídas
na imagem da cidade como lugares de beleza” (HEILBRON, 1999, p.
99). Maria Luiza Heilborn continua sua interpretação afirmando:
(...) a configuração geográfica e o clima tropical da cidade ocupam um
papel proeminente. Às características físicas do espaço associadas às
temperaturas elevadas em quase todos os períodos do ano é atribuída
uma incitação à exibição dos corpos: os espaços abertos oferecidos pelas
praias, parques e praças funcionariam como um convite permanente ao
desvelamento dos corpos (Ibid, p. 98).
Contudo, enquanto integrada e associada ao “mundo da
desordem”, a experiência vivenciada naquele momento e naquele
lugar por Luiza Odete se configuram como o oposto das imagens
trazidas por este imaginário. No lugar do desvelamento e da
beleza corporal ela sente e vê no seu corpo as feridas provocadas
pela radiação ao mesmo tempo em que passa pela experiência
do enclausuramento e da segregação. A vivência do sofrimento
impossibilita a transgressão para o empreendimento da “viagem
através da imaginação” como aquela empreendida por Mário de
Andrade ao olhar as imagens de sua coleção de cartões postais. Os
cartões postais, no caso de Luiza Odete, reafirmam a impossibilidade
de saída dos limites do prédio do HNMD porque contaminada pela
radiação. Logo, mais do que as imagens/lugares trazidos pelos
cartões postais, é a materialidade desses objetos – desses artefatos
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– que integram o jogo social como indicadores de uma sociabilidade
construída em situação de emparedamento e que coloca de um lado
a paciente contaminada pelo desastre e, do outro, os integrantes da
equipe de saúde atuando em contexto de emergência radioativa.
No jogo da memória entre o esquecimento e a lembrança, ao
longo dos anos o que fica é a memória do sofrimento: a viagem
do Rio é a viagem da dor. Nesse sentido, o lugar que se constrói a
partir das imagens é o lugar da evitação. Não são as visualidades
que são guardadas mas a experiência cotidiana do emparedamento
expressa no fato de receber os cartões como objetos sinalizadores
da proibição da livre circulação pela cidade. Perguntada se gostaria
de visitar o Rio de Janeiro, ela responde que este é a única cidade
que não tem vontade de conhecer. Mas aí então a inevitável
pergunta: por que colecionar os cartões postais da cidade? Para
ela, o significado está em guardar para lembrar do sofrimento e da
reclusão. Nesse sentido, o colecionamento, a guarda e manutenção
da coleção adquire ao longo de vinte anos a mesma interpretação
que ela dá ao fato de ter recusado uma cirurgia plástica para apagar
do corpo as cicatrizes deixadas pelas radiodermites em seu pescoço.
Emparedada, enquanto mulher, negra, pobre e vítima de um
desastre radioativo, estes elementos constituem uma situação de
estigma vivida ao longo dos anos pós-abertura da cápsula de césio,
em 1987. Carregando na pele as cicatrizes deixadas pela radiação,
ela conscientemente guarda a memória corporificada do desastre
(SILVA, 2001; 2005). Da mesma forma ela guarda a coleção de
cartões postais do Rio de Janeiro como lembrança do lugar que se
deve evitar: a dor da radiação. Mais do que guardada _ conservada
_, a coleção é “carregada” como as cicatrizes corporais são por ela
carrregadas. São pois os cartões-postais como artefatos, mais do que
a representação das iconografias que resignificam o Rio de Janeiro
como o lugar da evitação. Assim, estes elementos configuram
a memória traumática (SILVA, 2007), em que a experiência do
desastre ainda não se transformou numa experiência de redenção, e
o sofrimento social (KLEINMAN et al.1997, p. IX; SILVA, 2002;2007),
através do trauma, continua a se processar.
2 2 8 Telma Camargo da Silva
Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento
Notas
1 Os dados analisados nesse texto fazem parte do arquivo pessoal da autora e foram coletados
com o apoio financeiro da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research (Grant n.
5969 e n. 7046). Uma versão deste trabalho foi apresentada no Simpósio Temático “Histórias,
Biografias e Lugares: As narrativas locais e a construção simbólica dos lugares”, coordenado
pelas professoreas Cintya Maria Costa Rodrigues e Telma Camargo da Silva, no âmbito do III
Simpósio Internacional: Cultura e Identidades, organizado pela Associação Nacional de História
(ANPUH), e realizado em Goiânia em setembro de 2007.
2 Não foi usado pseudônimo a pedido da entrevistada.
3 Este segundo grupo foi composto por Kardek (marido da Luiza Odete), Maria Gabriela e
Edmilson.
4 O HNMD remonta à casa Marcílio Dias, instituição filantrópica, fundada em 1926, por um
grupo de esposas de oficiais da Marinha com o objetivo de prestar assistência social e educacional
a filhos de praças. Em 18 de setembro de 1972, dá lugar ao Centro Médico Naval Marcílio Dias
criado com o objetivo de prestar assistência médica na região do 1° Distrito Naval e passa a ter
função de ensino e pesquisa. Em 8 de fevereiro de 1980 é inaugurado o Hospital Naval Marcílio
Dias como Hospital de Base em atendimento às necessidades advindas do Fundo de Saúde da
Marinha (FUSMA). Passa então a acumular funções de formação técninca e de aperfeiçoamento
dos militares na área de saúde, além de pesquisa médica através de uma Escola de Saúde e
de um Instituto de Pesquisas Biomédicas. (Histórico do Hospital Naval Marcílio Dias. Wikipédia.
Acesso em: 12 de outubro de 2007).
5 “O programa nuclear paralelo foi impulsionado no Governo do General João Baptista Figueiredo
(1979 a 1983), quando a Marinha começou a colocar em prática um plano paralelo para dominar
o ciclo do combustível, o “Projeto Ciclone”. Na mesma época, a Aeronáutica trabalhava em
duas frentes: intensificava suas pesquisas – iniciadas em 1974, no Governo do general Ernesto
Geisel - para enriquecer urânio a laser; e levantava uma base, na Serra do Cachimbo, no Estado
do Pará, para testar artefatos nucleares. O Exército, por sua vez, projetava um reator a grafite,
para obter plutônio”. (...) O “primeiro sinal visível” sobre a existência de um programa nuclear
paralelo, patrocinado pelas Forças Armadas, foi revelado pelo Jornal do Brasil, na edição do dia
4 de setembro de 1986.” (MALHEIROS. T. 1996: 77-78). Esta articulação das Forças Armadas
engendrou o Projeto Aramar, base do programa nuclear paralelo, que culminou com a inauguração oficial do Centro Experimental Aramar em março de 1988, em Iperó, no interior do
estado de São Paulo. (Ibid. p. 82-84).
6 As imagens reproduzidas nos cartões postais são de propriedade de Colombo Cine Foto
Produções Ltda e Edicartd Editora Cultural ltda. Os fotógrafos cujos nomes constam nos cartões
são: Carlos O. Sainz e Aldo Colombo.
7 O estudioso Marcos Antonio de Moraes assinala que a única viagem feita por Mário de
Andrade ao exterior foi uma escala técnica no Peru. A obra citada, uma edição facsimilar, é
uma organização feita por Moraes e apresenta parte do conjunto de postais remanescentes
na coleção Mário de Andrade, sob a guarda do IEB-USP. Esta edição apresenta 110 dos 246
postais presentes na coleção.
8 O estudo e colecionismo sistemático de cartões postais se denomina cartofilia.
9 Álbum de postais formado entre os anos de 1905 e 1912.
229
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Telma camargo da silva
Ph.D. em Antropologia pela City University of New York – CUNY, onde
defendeu em 2002 a tese Radiation Illness Representation and Experience
the Aftermath of the Goiânia Radiological Disaster. Em 1977, obteve o
título de mestre pela École des Hautes Études en Sciences Sociales –EHSS
com uma dissertação sobre a a obra de Leandro Gomes de Barros, autor
de folhetos de cordel.
[email protected], [email protected]
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Resenha
Arte, ciência, tecnologia: experimentação
Mar ta M.
Kanashiro
A revista portuguesa Nada tem se dedicado, desde 2003, a
publicar artigos sobre arte, ciência e tecnologia. A reunião desses
temas não é nova, mas a proposta dessa publicação diferencia-se de
muitas que circulam no mercado editorial, pois almeja ser um espaço
de experimentação “indisciplinar”, num movimento que atravessa
estética e ciência e é composto pelos mais diferentes encontros. A
idéia central de João Urbano (2003), coordenador e editor da revista,
é dar visibilidade àquilo que oscila entre produção artística e teórica
híbrida, “uma mescla – diz ele - de saberes que produzam acima de
tudo acontecimentos”. É uma ruptura, portanto, com concepções
que trabalham muito diretamente com categorias já existentes, na
tentativa de alcançar ou disparar o novo.
Em mais de um editorial (contra os quais o autor sempre reluta
ou recusa de alguma forma, a exemplo de seus títulos), Urbano cita
a “porética” que o inspira. De Silva Carvalho (1996), a idéia de escrita
porética ou porista “é aquela que abre passagem, que abre caminho
na aporia, isto é, no lugar sem caminho, na fronteira (frontier),
na Wilderness. (...) a escrita porética transforma o impossível em
possibilidade de existência, quer isto dizer, e mais uma vez, que a
estética porética (...) procura resolver problemas, achar soluções
(sempre precárias e provisórias)” (CARVALHO, 1996). Para ele, isso
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significa assumir a contradição e viver a tensão, significa tratar do
não linear, do inesperado, dos desvios, do acidental, do divergente,
do desconexo.
É por esse viés que os temas da publicação, que hoje é
distribuída na Espanha e no Brasil, além de Portugal, abarcam de
forma irreverente, não disciplinada e instigante, as artes plásticas,
a filosofia, a arquitetura, literatura, música, bioarte, infoarte, artes
performativas, o design, e também, a inteligência artificial, as
biotecnologias, a biologia, neurociências, robótica e toda a sorte
de áreas tecnocientíficas, as quais, para Urbano, dão forma a “um
novo paradigma aberto ou devir bioinformático, que vem tendo
implicações fortíssimas no nosso modo de vida” (Urbano, 2003, p.
6).
O número 11 da Nada, de agosto desse ano, foi o primeiro
a ser concebido fora de Portugal, sob coordenação de Pedro
Peixoto Ferreira e Emerson Freire, membros do grupo CTeMe
(Conhecimento, Tecnologia e Mercado), da Unicamp. A novidade,
no entanto, não afasta de forma alguma a proposta inicial da
revista, pelo contrário, parece retomá-la e reforçá-la por meio das
ressonâncias entre a equipe de João Urbano e o grupo de pesquisa
CTeMe. Nessa edição, antropólogos, arquitetos, designers, artistas,
sociólogos e filósofos estão reunidos em torno do vínculo entre
afeccção, sensação e percepção.
Este elo, como explicam Ferreira e Freire em seu editorial, não
apenas é tema de alguns textos, mas também, o próprio método
de trabalho de alguns autores e o efeito intencionado sobre os
leitores. Nas palavras de Ferreira (2008): “Trata-se, grosso modo,
de um esforço para pensar o impensado do próprio pensamento,
i.e., aquilo que não pode ser pensado, mas que se apresenta como
a condição de possibilidade de todo e qualquer pensamento. Como
alternativa ao pensamento que se limita à recombinação do já
pensado (das representações e modelos já construídos), propõe-se
um pensamento que se dá sobre, como e no impensado, concebido
como afecção, sensação ou percepção”.
Sob o título “Informação e Sensação”, o primeiro texto dessa
edição traz à tona as idéias do filósofo francês Gilbert Simondon
(1924-1989). O autor Emerson Freire, cientista da computação
e sociólogo, resgata de forma minuciosa o percurso trilhado
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Marta M. Kanashiro
Arte, ciência, tecnologia: experimentação
pelo filósofo para chegar aos conceitos de informação, sensação
e percepção. Freire retoma outros autores, como Lev Manovich
(professor de artes visuais da Universidade da Califórnia - EUA),
para sinalizar o desafio de se levar sempre em conta esse tripé
(informação-sensação-percepção), o qual se relaciona com a
invenção e, portanto, é o campo problemático com o qual os mais
diversos domínios, e também a arte, deverão lidar. É com Simondon
que a edição sinaliza o problema e uma espécie de rumo possível, na
medida em que também é dele o último texto dessa publicação.
O antropólogo da Universidade de Concórdia (Canadá), David
Howes, vem logo a seguir para explorar de forma mais direta o eixo
afecção, sensação percepção proposto pelos editores. Ele reflete
sobre a idéia de sinestesia, ou o cruzamento de diferentes sensações,
comumente relacionadas isoladamente aos cinco sentidos do corpo.
Em “A mente multidirecional”, Howes defende que os sentidos não
podem ser estudados adequadamente quando isolados. Criticando
o estudo das sensações pela via congnitivista da antropologia, o
autor argumenta a interação ou a conjugação dos sentidos, que
ele nomeia “modulação da percepção”. O autor apresenta o caso
dos Desana, um grupo indígena Tukano da Amazônia colombiana,
para abordar a interconexão dos fenômenos sensoriais e desvelar
a necessidade de um diálogo entre neurocientistas cognitivos e
antropólogos para uma compreensão mais ampla.
“A identidade na era de sua reprodutibilidade” é a entrevista
feita com o antropólogo do Museu Nacional (Universidade
Federal do Rio de Janeiro) e co-coordenador da Rede Abaeté de
Antropologia Simétrica, Eduardo Viveiros de Castro. Nesse texto,
que traz fotografias feitas pelo próprio entrevistado, a abordagem
recai, em especial, sobre a relação entre fotografia, antropologia e a
experiência de pesquisa de campo de Viveiros de Castro. No conjunto
de suas respostas, o antropólogo reúne diferentes problemas
apontando para a complexidade com a qual nos defrontamos hoje.
Dentre eles, esta a incorporação da imagem, do conhecimento e do
signo como mercadoria: “(...) o fluxo do capital – argumenta ele –
passa a investir a imagem de uma maneira e com uma violência e
eficiência inauditas, não há dúvida de que a tecnologia de imagem
passa a ser estratégica do ponto de vista político-econômico dos
povos indígenas. Não são mais as terras indígenas que são cobiçadas,
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mas também o simulacro fantasmático dessas terras: as imagens
que elas projetam, o conhecimento suposto que representam – o
imaterial, o incorporal. Na medida em que o incorporal começa a ser
maciçamente capitalizado, as tecnologias de produção de imagem
se tornam tecnologias cruciais para os índios dominarem (...)”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2008).
A etnomusicóloga da Universidade Federal de Minas Gerais,
Rosângela Pereira de Tugny, apresenta por sua vez, relatos e reflexões
acerca de sua experiência etnográfica de registro de cantos dos índios
Maxakali, presentes no nordeste de Minas Gerais. Tugny afirma, em
“Um fio para înomõxã: em torno de uma estética maxakali”, que
sua compreensão do trabalho musical passa não pela invenção de
formas, mas pela captação de forças ou pela sonorização de forças
que não sonoras a princípio. Como apontado por Ferreira (2008b),
trata-se de uma certa estética relacional e trans-humana das
aberturas e dos devires entre os Maxakali. Vale ainda destacar que,
de certa forma, o texto de Tugny e Howes encontram-se quando a
etnomusicologa afirma que é parte desta captação de forças tornar
mais densas as sensações de espaço e tempo, e as operações do
olhar e da escuta, que se complementam e integram-se.
Após o desafio deixado pelos conceitos de Simondon, no texto
de abertura de Freire, e das abordagens de Howes, Viveiros de
Castro e Tugny, com um caráter mais teórico antropológico e com
experiências mais ligadas ao conhecimento tradicional indígena, o
texto “Etnografia, cinematografia e cidade”, do arquiteto e urbanista
Paulo Tavares, traz um universo um tanto diverso, mais urbano, e
que predomina também nos dois textos seguintes da revista.
Tavares elabora um percurso teórico no qual retoma importantes
autores da antropologia, como Clifford, Malinowski, Margareth
Mead, Bateson, e o pensamento perspectivista, dentre outros,
para situar e problematizar algumas especificidades da experiência
etnográfica, da obtenção de imagens na pesquisa de campo e dos
filmes etnográficos. É a partir de Walter Benjamin, que o autor
nos mostra uma ponte fundamental da etonografia às máquinas e
que emergem questões relativas ao mundo industrial, a produção,
o mercado e a experiência urbana e do sujeito contemporâneo. É
nesse trajeto que Tavares aponta as mudanças na experiência e na
percepção.
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Marta M. Kanashiro
Arte, ciência, tecnologia: experimentação
O sensível ensaio fotográfico “Lazar”, por sua vez, do designer
e pesquisador Christian Pierre Kasper, focaliza uma habitação de
rua e seu morador e construtor (que dá nome ao ensaio) na cidade
de São Paulo, para trazer a tona um deslocamento interessante
com relação às abundantes teorias que visualizam a situação de rua
como ausência e falta, e colocar em primeiro plano a construção,
criação, a subjetividade e percepção nesse espaço.
Se os dois textos anteriores proporcionavam a entrada num
novo território, o do urbano, o texto seguinte nos traz o movimento
e imprime uma outra cadência aos textos. Deste momento em
diante os textos da revista parecem assumir, um após o outro, uma
velocidade cada vez maior até chegar a uma certa vertigem produtiva
do novo. Do “Fluxo ao lugar” é a tradução de um capítulo da tese
“Go with the Flow. Architecture, Infrastructure, and the Everyday.
Experience of Mobility” (2006), de Gilles Delalex – arquiteto da
École Nationale des Ponts et Chausséess (França). O arquiteto
viajou durante três meses, de carro, pelas estradas européias para
realizar sua pesquisa que além da tese também produziu mais de
40 mil fotografias. Nesse texto, Delalex parte dessa experiência,
da estética nas estradas, das redes envolvidas no movimento das
pessoas, para propor uma leitura menos reducionista da influência
dos fluxos globais nos lugares.
O texto seguinte, também uma tradução, abre uma
problemática mais voltada para a tecnologia, a qual perdura
em todos os cinco últimos textos da revista. “Forma, difração e
colapso”, traz trechos da entrevista “How like a Leaf” (2000),
feita por Thyrza N. Goodeve com a bióloga Donna Haraway.
Atualmente, professora da Universidade da Califórnia (Santa
Cruz), Haraway publicou inúmeros livros nos quais tematiza
transformações sociais e políticas conectadas às mudanças
na ciência e na tecnologia, sendo “Manifesto para Ciborgues:
Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista no Final do Século XX”
(1985) sua obra mais difundida. Em sua conversa com Goodeve,
Haraway aborda sua relação com a biologia e a filosofia, expondo
seu próprio pensamento, sua ironia, que transita entre fenômenos
biológicos e histórias cosmológicas.
Os textos e imagens de “Corpos d’água” e “Fluid Geographies:
explorando o terreno entre arte visual e mapeamento” são os
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trabalhos da artista Eve André Laramée, que conectam ciência e
poder. Laramée tem explorado há mais de 20 anos, as relações
entre arte, ciência, natureza, ficção e política em diversas obras
e em suas passagens por varias universidades renomadas, nos
Estados Unidos. As instalações de “Fluid Geographis” exploram o
desenvolvimento de armas atômicas no norte do México, por meio
da construção de mapas. Ao mesmo tempo em que esse trabalho
constrói e explora uma cartografia, para trazer à tona relações
de poder, camadas de estórias, camadas de informações e redes,
também se estabelece entre a arte e o mapeamento, apontando
colapsos de dualismos (como arte/ciência, natureza/cultura, fato/
ficção), assim como escolhas e critérios de geógrafos, cartógrafos
e políticos na elaboração de mapas para reafirmar a idéia de algo
construído e negociado.
Em “Sobre o futuro do humano”, o sociólogo Laymert Garcia
dos Santos promove o encontro entre uma série de autores, tais
como C. S. Lewis, Günther Anders, Konstantino Karachalios, Vernor
Vinge, Ray Kurzweil, Hermínio Martins, Peter Sloterdjik, Bárbara
Stiegler e Michel Foucault para refletir sobre e problematizar o
futuro do humano. O autor sinaliza a importância da politização
da biologia, da tecnologia e da tecnociência, numa época em que
a política tornou-se vital. Um período em que vige a aceleração da
aceleração tecnológica, coloca nas mãos da atual geração escolhas
éticas e opções tecnológicas decisivas sobre esse futuro.
A cientista social Cecília Diaz-Isenrath, por sua vez, analisa
em “In_formação” a vídeo-instalação “Deep play” de Haroun
Farocki, e trata de uma questão crucial para a politização da
tecnologia, a saber, o controle dos fluxos, imagens e informações,
e os dispositivos concretos que operam esses sistemas. “More
than meets the eye: os transformers e a vida secreta das
máquinas” segue uma trilha semelhante ao partir da operação de
transformação de um brinquedo (os robôs transformers em duas
versões, de 1984 e 2007) para captar, dentre outros elementos, a
nossa postura diante das máquinas. Mas Ferreira (2008) vai além
de observar que passamos de operadores ativos a operadores
passivos ou espectadores das máquinas, para também refletir
sobre o deslocamento da transformação para as formas e sobre
as diferenças entre mecânico e maquínico.
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Marta M. Kanashiro
Arte, ciência, tecnologia: experimentação
O último texto da revista é “Cultura e técnica”, uma tradução da
introdução do livro “Du mode d’existence des objets techniques”,
do filósofo Gilbert Simondon, autor resgatado pelo primeiro artigo
da revista. Nessa introdução, Simondon propõe uma modificação
do olhar sobre a tecnologia, por meio de um afastamento seja da
tecnofilia ou da tecnofobia. O ciclo percorrido pelos artigos, que
partem e retornam a Simondon, parece sinalizar o quão fundamental
é o pensamento desse filósofo, que influenciou Deleuze e Guattari
presentes em grande parte das reflexões da revista. O conjunto de
textos dessa edição culmina assim nessa espécie de rumo possível
que este filósofo e seu pensamento podem proporcionar, mas num
trajeto que vai dos grupos indígenas as transformações ligadas a
tecnologia, e que pode sinaliza direções (sempre provisórias) para
novas passagens que não podem deixar de assumir as contradições
que nos constituem e rodeiam.
Referencias
CARVALHO, S. O poreticismo. In: Silva Carvalho (org). A
Linguagem Porética. Brasília Editora: Porto, 1996. disponível em:
<http://www.silvacarvalho.com/recensoes.htm#PORETICISMO>
Ultima consulta: 03 setembro de 2008.
FERREIRA, P. P. e FREIRE, E. Editorial impossível. In: João
Urbano (org), Revista Nada, Lisboa: Urbanidade Real, n. 11,
2008a, p. 5.
FERREIRA, P. P. Release para lançamento da revista Nada no
Brasil, agosto, 2008b, p 1-7 (arquivo pessoal).
URBANO, J. Editorial em forma de outra coisa. In: João Urbano
(org), Revista Nada,, Lisboa: Urbanidade Real, n. 1 2003, p. 5-9.
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V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
URBANO, J. Editatorial. In: João Urbano (org), Revista Nada,
Lisboa: Urbanidade Real, n. 2, 2004, p. 5-11.
VIVEIROS DE CASTRO, E.; FERREIRA, P. P. [et al]. A identidade
na era de sua reprodutibilidade técnica. Entrevista com Eduardo
Viveiros de Castro. In: João Urbano (org), Revista Nada. Lisboa:
Urbanidade Real, n. 11 2008, p. 34-51.
2 4 4 Marta M. Kanashiro
Arte, ciência, tecnologia: experimentação
Marta M. Kanashiro
socióloga e jornalista. Atua como pesquisadora no Laboratório de Estudos
Avançados em Jornalismo (Labjor) e no Grupo de Pesquisa Conhecimento,
Tecnologia e Mercado (CTeMe), ambos da Unicamp
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Painéis
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Tereza Bicuda: a senhora, a diaba e a louca
Rosilandes Cândida
Martins
Resumo
Este projeto de pesquisa pretende explorar a lenda de Tereza
Bicuda através da análise do conteúdo das diferentes narrativas
(imaginários visuais) encontradas sobre ela. O elemento narrativo
é rico para entender essas representações e transformações. Antes
de analisar “as estórias” propriamente ditas, será preciso investigar
a formação histórica da região, levantar a bibliografia existente e,
posteriormente, resgatar os temas e as narrativas. Aproveitarei os
resultados da pesquisa de campo já realizada pela historiadora Nei
Clara de Lima – “Histórias da gente de Jaraguá”, 2003, (9 versões)
e farei a coleta de novas histórias mais ligadas às preocupações da
cultura visual. Como o mito Tereza Bicuda confere visibilidade à
cultura local. Como as diferentes representações de Bicuda pode
nos ensinar sobre as expressões simbólicas de uma cultura e da
realidade histórica local. Como os atores da população de Jaraguá
vêem sua própria história. Que traços identitários (ou estereotipias)
as diferentes narrativas de Tereza revelam. Como diferentes atores da
região re-interpretam o seu passado. Como as narrativas fantásticas
da tradição oral popular podem ser estudadas na perspectiva da
cultura visual. Qual a importância desses estudos para a linha
Culturas de Imagem e Processos de Mediação. Uma educação
estética popular? Ao longo do processo da pesquisa é minha
intenção constituir um banco de dados, reunindo narrativas relativas
à apreensão e à reinvenção do mito Tereza Bicuda no tempo e no
espaço local para utilização estética pedagógica intertextual entre
visualidade e cênica.
Palavras-chave: Cultura popular, teatro, Tereza Bicuda,
memória.
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Rosilandes Cândida Martins
O Brasil na França pelas lentes de Samuel
Costa
Marcos André Galdino
Morais
Resumo
A proposta dessa pesquisa é analisar a produção fotográfica
de Samuel Costa, goiano, morto precocemente em 1987 aos 33
anos, especificamente as imagens do Brasil que ele veiculou na
Europa entre 1980 e 1985, quando viveu na França. O trabalho
envolve, num primeiro momento, a identificação, catalogação e
digitalização das fotografias produzidas por Samuel Costa nesse
período dentro da temática escolhida para estudo, a partir de
consulta ao acervo da família. O objetivo principal da pesquisa é
investigar a estética documental dominante na fotografia brasileira
do período, a partir da análise das fotografias de Samuel Costa. Com
isso, pretendemos observar no trabalho produzido pelo fotógrafo a
presença, sobretudo, de uma visualidade que evidencia questões de
identidade e a criação ou não de processos que apontam para novas
sintaxes visuais no contexto da produção fotográfica documental do
período. Essa pesquisa pretende ainda contribuir para os estudos
referentes à história da fotografia em Goiás, bastante incipientes,
resgatando e divulgando a produção fotográfica de Samuel Costa.
Palavras-chave: fotografia documental, Samuel Costa, história
da fotografia.
Marcos André Galdino Morais
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V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G
Estéticas da existência: Subjetivações sobre a
moda
Lorena Pompei
Abdala
Resumo
Como se dariam as propensões e noções de gosto? Pensando
nas práticas de si é que se buscará, neste estudo, a transcendência do
utilitarismo da moda para uma noção de subjetivação e experiência
estética. Entendimento do posicionamento identitário legitimado
pelas múltiplas dobras e territórios ocupados pelos sujeitos. Em
maior ou menor grau possuímos objetivações e subjetivações de
gosto relacionadas às práticas da aparência ou existência. Todos
nós vemos e somos vistos, portanto de uma forma ou de outra é
pouco provável um absoluto alheamento de si mesmo e dos outros.
Somos artefatos visuais e portamos informações imagéticas. Negar
a estética de si, no sentido foucaultiano, seria negar a própria
existência, já que a constituição do Eu esta ligado à imagem do
próprio corpo, segundo o “Estádio do Espelho” de Jacques Lacan.
Assim, pensemos em corpos construídos por um discurso, corpos
que se projetam pelas experiências estéticas como um meio de
comunicação subjetiva com o mundo, corpos percebidos pela poética
da obra aberta, que admitem um universo de formas perceptíveis e
interpretações plurais que se complementam e geram novas formas
de perceptos.
Palavras-chave: Moda; Estética; Subjetividade
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Lorena Pompei Abdala
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Normas para publicação de trabalhos
A Revista Visualidades é uma publicação semestral do Mestrado em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Seu objetivo é a publicação de trabalhos originais e inéditos – em português, espanhol, inglês e
francês – dedicados à diversidade de manifestações que articulam o sentido visualmente, tratando-as em relação à cultura e
como cultura.
Os originais, sob a forma de artigos, ensaios visuais, relatos
de pesquisa, entrevistas, resenhas e resumos de dissertações e
teses, serão avaliados preliminarmente pelo Conselho Editorial
quanto à pertinência à linha editorial da revista. Numa segunda
etapa, as contribuições enviadas serão submetidas a pareceristas ad hoc. O Conselho Editorial reserva-se o direito de propor
modificações no texto, conforme a necessidade de adequá-lo
ao padrão editorial e gráfico da publicação.
Artigos e entrevistas deverão ter entre 4.000 e 9.000 palavras. Resenhas: até 2.000 palavras. Resumos de teses e dissertações: até 400 palavras. Relatos de pesquisa: até 3.000 palavras. Serão aceitas resenhas de livros publicados no Brasil há 2
anos, no máximo, e, no exterior, há cinco anos. Serão aceitas
também resenhas de filmes e exposições. As imagens para os
ensaios visuais devem ser em P&B, com resolução mínima de
300 dpi.
O texto deve ser acompanhado de uma biografia acadêmica
do(s) autor(es) em, no máximo, 5 linhas, e das seguintes informações complementares: endereço completo do autor principal, instituição à qual está ligado, telefone, fax e e-mail. Essas
informações devem ser enviadas separadamente.
Os trabalhos devem ser precedidos de um resumo de 5 a
8 linhas e 3 palavras-chave, ambos em inglês e português. As
resenhas devem ter título próprio e diferente do título do trabalho resenhado e devem apresentar referências completas do
trabalho resenhado.
Os textos deverão ser digitados no editor Microsoft Word
(Word for Windows 6.0 ou posterior), salvos no formato Rich
Text Format (rtf), com página no formato A4, fonte Times New
Roman, corpo 12, entrelinhamento 1,5 e parágrafos justificados.
As notas devem ser sucintas, empregadas apenas para informações complementares e não devem conter referências bibliográficas. Devem ser inseridas no final do texto, antes das
referências bibliográficas, e numeradas seqüencialmente.
Referências bibliográficas:
Quando o autor citado integrar o texto, usar o formato: Autor (ano, p.). Em caso de citação ao final dos parágrafos, usar o
formato: (SOBRENOME DO AUTOR, ano, p.). Diferentes títulos
do mesmo autor publicados no mesmo ano serão identificados
por uma letra após a data (SILVA, 1980a), (SILVA, 1980b). As
referências bibliográficas completas devem ser informadas apenas no final do texto, em ordem alfabética, de acordo com as
normas da ABNT (NBR-6023/2000):
SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo.
Tradução. Edição, Cidade: Editora, ano, p. ou pp. SOBRENOME,
Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In:
SOBRENOME, Nome do organizador (Org.). Título do livro
em itálico. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. X-Y.
SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico
em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. X-Y, mês, ano.
Documentos eletrônicos: Para a referência de qualquer tipo
de documento obtido em meio eletrônico, deve-se proceder da
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SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico
em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. X-Y, mês, ano. Disponível em:<http://www> Acesso em: dia mês ano.
Os originais devem ser enviados por e-mail e uma cópia em
CD-ROM deve ser encaminha pelo correio. O CD-ROM deve conter também as imagens e o currículo resumido do(s) autor(es).
As imagens devem ser gravadas no formato TIFF ou JPEG, com
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