Visualidades - Universidade Metodista de São Paulo
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Visualidades - Universidade Metodista de São Paulo
ISSN 1679-6748 Visualidades Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual V. 7, n.1 Jan-Jun/2009 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS Reitor Edward Madureira Brasil Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Divina das Dores de Paula Cardoso Diretor da Faculdade de Artes Visuais Raimundo Martins Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual Alice Fátima Martins Editores Edgar Franco Rosana Horio Monteiro Conselho Editorial Irene Tourinho José César Clímaco Raimundo Martins Paulo Menezes Conselho Científico Ana Claudia Mei de Oliveira (PUC-SP, Brasil) / Belidson Dias (UnB) / Fernando Hernández (Universidad de Barcelona) / Flavio Gonçalves (UFRGS, Brasil) / Françoise Le Gris (UQAM, Canadá) / Juan Carlos Meana (Universidade de Vigo) / Kerry Freedman (Northern Illinois University, EUA) / Margarita Schultz (Universidade Nacional do Chile, Chile) / Maria Luísa Távora (UFRJ, Brasil) / Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB, Brasil). Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) V834 (GPT/BC/UFG) Visualidades: Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual I Faculdade de Artes Visuais I UFG. – V. 7, n.1 (2009). – Goiânia-GO: UFG, FAV, 2009. V. :il. Semestral Descrição baseada em V. 7, n.1 ISSN: 1679-6748 1. Artes Visuais – Periódicos I. Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Artes Visuais II. Título. CDU: 7(05) Tiragem: 300 exemplares Data de circulação: novembro/2009 Créditos Página da HQ “Salamandra Pagã” de Antônio Amaral Capa: Ilustração de Antônio Amaral Programação Visual: Diogo Fernandes Honorato Direçao de Ar te Márcio Rocha Projeto Gráfico Marcus H. Freitas Editoração Diogo Fernandes Honorato Revisão Juscelina Bárbara Matos Luciana Hidemi Nomura FACULDADE DE ARTES VISUAIS / UFG Secretaria de Pós-Graduação I Revista Visualidades Campus II, Samambaia, Bairro Itatiaia, Caixa Postal 131 – 74001970 – Goiânia-GO. Telefone: (62) 3521-1440 e-mail: [email protected] www.fav.ufg.br/culturavisual/ Sumário Apresentação: História em quadrinhos – Uma arte consolidada 06 Edgar Franco Dossiê História em Quadrinhos As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado 15 Waldomiro Vergueiro A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional 43 Gazy Andraus O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro 69 Elydio dos Santos Neto Fanzine: comunicação popular e resistência cultural Henrique Magalhães 109 Ensaio Visual Vislumbres Pós-humanos Edgar Franco 119 Sumário Artigos Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções 141 urbanas. Janaína R. Furtado Andréa vieira zanella 159 O mito do artista como extensão do mito do herói Francielly Rocha Dossin 173 Auto-retratos da pós-modernidade: cindy sherman em “untitled film stills” Ângela Prada 187 La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate Rodrigo Gutiérrez Viñuales 217 Colecionando cartões postais: os lugares constituídos em contexto de isolamento Telma Camargo da Silva Resenha Arte, ciência, tecnologia: experimentação Marta M. Kanashiro 239 Sumário Painéis Tereza Bicuda: a senhora, a diaba e a louca 250 Rosilandes Cândida Martins O Brasil na França pelas lentes de Samuel Costa 251 Marcos André Galdino Morais Estéticas da existência: Subjetivações sobre a moda 252 Lorena Pompei Abdala Normas Para Publicação de Trabalhos 254 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Apresentação: História em quadrinhos – Uma arte consolidada Edgar FRANCO 1 A história em quadrinhos (HQ), essa linguagem artística secular, já foi motivo de preconceito por parte de múltiplos setores da sociedade e da academia. O caso mais notório foi a cruzada contra as histórias em quadrinhos nos Estados Unidos, deflagrada pelo artigo Horror in The Nursey, publicado na revista Collier em 1948 e escrito pelo psicólogo Fredrick Werthan. Ele acreditava que as HQs eram perniciosas e nocivas à formação do caráter das crianças. Com o impacto de seu artigo, Werthan escreveu Sedução dos Inocentes, também contra os quadrinhos, o livro levou o senado norte americano a obrigar os editores a criarem o “American Comics Code”, código que censurava deliberadamente muitas formas de quadrinhos e vigorou por muitos anos nos EUA. Essas ações de censura repercutiram em todo o mundo ocidental. Curiosamente, alguns anos após a polêmica criada pelo livro de Fredrick Werthan, o Brasil fez história ao realizar a Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos do mundo. Ela aconteceu em junho de 1951, na cidade de São Paulo; foi organizada por um grupo de quadrinhistas brasileiros que tinha à frente Álvaro de Moya, Jayme Cortez, Syllas Roberg, Reinaldo de Oliveira e Miguel Penteado. O Museu de Arte de São Paulo (MASP), que havia sido inaugurado à época, manteve o preconceito vigente contra os quadrinhos e não aceitou que a exposição fosse realizada em suas dependências, mas os organizado- 6 Edgar Franco Apresentação res foram perseverantes e conseguiram o espaço do Centro de Cultura e Progresso, clube da juventude judia, e incluíram na mostra originais de quadrinhos de nomes consagrados da nona arte como: Alex Raymond (Flash Gordon), George Herrimann (Krazy Kat), Hal Foster (Príncipe Valente), Will Eisner (The Spirit), Burne Hogart (Tarzan) e Al Capp (Li’l Abner). Ao longo do século XX as HQs consolidaram-se como linguagem artística. O primeiro gênero de quadrinhos no início do século passado era o humorístico, por isso foram alcunhados de Comics nos Estados Unidos, mas o seu potencial expressivo não demorou a revelar-se e muito rapidamente, já nas primeiras décadas do século XX, outros gêneros de HQs foram surgindo. Na década de 1930, considerada a “década de ouro” das HQs norte americanas, ocorreu a consolidação de gêneros como a aventura, a ficção científica, o policial, as histórias de guerra, de cavalaria e de faroeste. Nessa época surgem os quadrinhos de inspiração neoclássica com cenários muito bem acabados como podemos ver em Tarzan de Harold Foster, Flash Gordon de Alex Raymond, entre outros. As HQs passam a ser exploradas em todo o seu potencial narrativo, sendo lidas e admiradas por pessoas de classes sociais diversas, além de abarcarem toda a variedade possível de gêneros, aos poucos elas vão atraindo públicos das mais variadas faixas etárias. Desde a década de 1950 surgem nos EUA trabalhos voltados para um público mais intelectualizado como as HQs de Jules Feiffer e de Charles Shultz. Posteriormente eclode o movimento underground nos quadrinhos norte americanos revelando, entre outros talentos, Robert Crumb, autor de quadrinhos viscerais com críticas profundas ao chamado American way of Life. Já na Europa, desde o surgimento das histórias em quadrinhos, os artistas perceberam o potencial ilimitado dessa arte e investiram em trabalhos mais elaborados e pesquisados, muitos deles passando a publicar álbuns luxuosos que são distribuídos em livrarias para serem consumidos por um público de padrão cultural elevado. Revistas periódicas, como a italiana Linus e a francesa Pilote, foram importantes veículos para revelar novos talentos da HQ européia, que posteriormente vieram a ter seus trabalhos veiculados em álbuns, como é o caso dos quadri- V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G nhistas Guido Crepax, Moebius, Philippe Druillet, Milo Manara, entre outros. O amadurecimento da linguagem quadrinhística em todo o mundo, incluindo o Brasil, suscitou o surgimento de pesquisas dedicadas à análise dos múltiplos aspectos que a compõem. A partir da década de 1970, o Brasil assistirá o crescimento das pesquisas acadêmicas sobre a linguagem dos quadrinhos, com destaque para estudiosos pioneiros como Antônio Luiz Cagnin, Álvaro de Moya e Moacy Cirne. Essas pesquisas, que inicialmente estavam ligadas à área da comunicação, foram gradativamente migrando para outros campos como o das artes, lingüística, psicologia, história, design, arquitetura, e também para o âmbito das novas tecnologias e novos suportes, como estudos sobre as HQtrônicas - histórias em quadrinhos hipermidiáticas. Atualmente o país conta com pesquisadores de todas as regiões e muitos programas de mestrado e doutorado, nas mais diversas áreas, acolhem pós-graduandos interessados em estudar as histórias em quadrinhos. Nesse contexto, o campo da pesquisa em Cultura Visual, área de nosso programa de mestrado na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, também se abre para a investigação dessa singular linguagem artística. Diante disso decidimos publicar um dossiê sobre as histórias em quadrinhos, buscando selecionar alguns dos pesquisadores mais importantes no contexto contemporâneo brasileiro. O dossiê abre com o artigo do professor Dr. Waldomiro Vergueiro, docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Artes e Comunicações da Universidade de São Paulo e coordenador do Observatório de Quadrinhos da USP – um dos grupos de pesquisa pioneiros no Brasil a dedicar-se exclusivamente ao estudo das HQs. Seu artigo, As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado, apresenta a evolução da visão sobre as histórias em quadrinhos nos círculos acadêmicos, de produto da cultura de massa à sua inserção no mundo das manifestações artísticas socialmente reconhecidas. 8 Edgar Franco Apresentação O segundo artigo, escrito pelo professor Dr. Gazy Andraus - docente da UNIFIG, Centro Universitário Metropolitano de São Paulo, pesquisador de quadrinhos com dezenas de artigos publicados e também autor de histórias em quadrinhos poético-filosóficas -, foi intitulado A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional. Nele o autor trata dos elementos que caracterizam a unicidade da linguagem quadrinhística, das características singulares da percepção das HQs a partir de uma análise neurofisiológica e da autoralidade artística no âmbito dos quadrinhos. Na seqüência temos o artigo do professor Dr. Elydio dos Santos Neto, docente do Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), um estudioso da importância dos quadrinhos para a educação com ênfase na abordagem transpessoal. O seu texto, O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro, apresenta-nos uma das vertentes mais inovadoras e criativas do universo da produção de histórias em quadrinhos de arte no país, enfatizando o diálogo arte-comunicação-educação desses trabalhos e sua importância nos processos de construção de respostas aos problemas vivenciados na sociedade contemporânea. Concluindo o dossiê, temos o artigo do professor Dr. Henrique Magalhães, docente do Departamento de Comunicação e Turismo e do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, quadrinhista premiado e também criador da importante editora independente Marca de Fantasia, totalmente dedicada a publicar quadrinhos e livros de pesquisadores de HQs. Seu texto, Fanzine: comunicação popular e resistência cultural, destaca a riqueza dos fanzines de histórias em quadrinhos como espaço para a experimentação de linguagens artísticas, fomento à produção e veiculação de novos autores. Coroando a seleção ímpar de pesquisadores presentes no dossiê temos a arte da capa dessa edição, uma criação do premiado quadrinhista piauiense Antônio Amaral. Um dos artistas autorais mais importantes no cenário da HQ brasileira. Amaral tem uma produção de vanguarda, baseada em uma cosmogonia pessoal que une influências da escrita automática surrealista, do dadaísmo, da arte regional e de recentes teorias da físi- 9 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G ca. Por fim, o ensaio visual desse número da Visualidades inclui algumas HQs curtas de minha autoria, quadrinhos do gênero poético-filosófico contextualizados no universo ficcional futurista da Aurora Pós-humana. Meus sinceros agradecimentos a todos que participaram direta ou indiretamente da produção desse dossiê. Espero que ele contribua ainda mais para a consolidação da pesquisa sobre histórias em quadrinhos no âmbito acadêmico brasileiro. Notas 1. Edgar Franco é artista multimídia e professor permanente do Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG. 10 Edgar Franco Dossiê História em Quadrinhos Focuses on the trajectory of comics towards its artistic and cultural legitimating. Discusses the difficulties for the acceptance of the comics in well established cultural institutions and detaches the work of artists who used the comics language in their works. Brings to context the search for artistic autonomy in underground and mainstream comics. Presents the graphic novels as the new format for the worldwide dissemination of the comics language, making it possible to reach other levels of public and new environments for commerce. Identifies innovative trends in the comics publication field , with emphasis in the use of comics in journalism and in biographical narratives, identifying the main authors in the field. Keywords: Comix, Auhorship, Art. abstrac t As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado Waldomiro Vergueiro resumo Enfoca a trajetória das histórias em quadrinhos para sua legitimação artística e cultural. Discute as dificuldades para aceitação dos quadrinhos em equipamentos culturais já estabelecidos e destaca o trabalho de artistas que utilizaram recursos da linguagem quadrinística em suas obras. Contextualiza a busca pela autonomia artística em obras produzidas no circuito underground e do quadrinho mainstream. Apresenta as graphic novels como novo formato para disseminação da linguagem dos quadrinhos em nível mundial, possibilitando atingir outras camadas de públicos e novos espaços de comercialização. Identifica tendências inovadoras na publicação de histórias em quadrinhos, com destaque para o jornalismo em quadrinhos e a utilização de quadrinhos para narrativas biográficas, identificando os principais autores e obras na área. Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Autoria; Arte. V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G As histórias em quadrinhos padeceram durante décadas a indiferença das camadas intelectuais da sociedade, apesar de representarem a continuidade de uma longa tradição de manifestações iconográficas, cuja gênese pode ser encontrada nas pinturas das cavernas do homem pré-histórico e que se desenvolveram durante séculos em diversas formas de manifestações artísticas, como as colunas de Trajano, a Tapeçaria de Bayeux, o Livro dos Mortos, etc. Embora constituindo uma linguagem própria – híbrida da linguagem escrita e da imagem desenhada -, os quadrinhos tiveram sua aceitação pelas elites pensantes dificultada por diversos fatores, mas principalmente por sua característica de linguagem direcionada para as massas. No entanto, os últimos anos parecem ter trazido novos e promissores ventos para as histórias em quadrinhos no que diz respeito à sua inserção no mundo das manifestações artísticas socialmente reconhecidas. Este artigo busca discutir essa trajetória e traçar algumas diretrizes que garantam a permanência dessa forma de manifestação do pensamento humano no campo das Artes. A luta pela legitimação Recentemente, uma conceituada pesquisadora brasileira da área de histórias em quadrinhos, pleiteou a um importante museu de Arte da cidade de São Paulo a instalação de uma grande exposição sobre o tema . Embora não se recusando a abrigar a exposição, os responsáveis pelo equipamento cultural condicionaram sua concordância à justificativa, por parte da professora, de que as histórias em quadrinhos poderiam ser entendidas como Arte. Logicamente, considerando a evolução da linguagem gráfica seqüencial e seu atual estágio de aceitação no mundo artístico contemporâneo, a professora se recusou a elaborar tal justificativa ao museu paulistano, entendendo que a esta altura tal esclarecimento deveria ser dispensável para uma instituição com tão larga trajetória na preservação e divulgação de bens culturais; além disso, pesou também na decisão o fato 16 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado desta mesma instituição museológica ter abrigado, na segunda metade do século passado, uma das primeiras exposições de quadrinhos do mundo, demonstrando na ocasião uma postura de vanguarda em relação à postura então dominante no meio intelectual brasileiro e mundial. De fato, com relação a esse fato, além de salienta-lo e solidarizar-se com a professora pela resposta infeliz por ela obtida, pode-se cogitar que os atuais responsáveis por essa importante instituição artística e cultural da cidade de São Paulo, além de desconhecerem a própria história do órgão que dirigem, fazem ainda parte de uma minoria de intelectuais que persiste vendo a arte como uma “essência metafísica reconhecida pelos seus méritos técnicos, mas, principalmente, pelo seu status filosófico” (MARTINS, 2006, p. 67), da mesma forma em que ignoram ou fingem ignorar os avanços ocorridos na área artística, especialmente no que se refere às histórias em quadrinhos, a partir da década de 1960, quando “uma grande variedade de movimentos – arte pop, arte conceitual, performance, instalações, arte ambiental, etc. – intensificaram abertamente a resistência às polaridades do sistema das belas artes buscando manter e até mesmo aprofundar a relação entre arte e vida” (MARTINS, 2006, p. 68). Esses movimentos estiveram mesmo no centro da inserção das histórias em quadrinhos no mundo das artes, pois, na realidade, elas adentraram o ambiente museológico por meio da arte pop, especialmente na obra de artistas como Andy Warhol (19281987) e Roy Liechtenstein (1923-1997), que Figura 1 – Roy Lichtenstein, Estados apreenderam elementos da linguagem gráUnidos, 1963. Drowning Girl. fica seqüencial e os re-significaram em seus Pertencente ao acervo do Museu de trabalhos artísticos, produzindo intenso imArte Moderna, de New York pacto visual (Fig. 1). No entanto, ainda que esses autores tenham representado, no ambiente norte-americano, o começo de um movimento de reconhecimento dos quadrinhos como manifestação artística, eles não se constituíram, absolutamente, em precursores desse 17 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G tipo de valorização da linguagem gráfica seqüencial. Na realidade, o mérito nessa área cabe a diversos intelectuais europeus, mais ágeis em reconhecer o forte impacto social dos produtos quadrinísticos e sobre ele realizando estudos e exposições. Nesse sentido, também não se pode desmerecer a ação visionária de alguns admiradores do gênero no Brasil, que, já em 1951, ainda que sem obter o mesmo impacto no contexto intelectual brasileiro, realizaram a primeira exposição de histórias em quadrinhos em ambiente formalmente constituído como artefato cultural (MOYA, 2001). Por outro lado, é preciso reconhecer que a classificação de extratos ou páginas de histórias em quadrinhos como objetos museológicos é muito pouco em termos de descrição ou categorização das possibilidades artísticas dos quadrinhos. Bebendo nas águas das mais variadas artes, como a ilustração, o teatro, a literatura, a caricatura e o cinema (BARBIERI, 1998), as histórias em quadrinhos constituem um gênero complexo, em que elementos narrativos de várias manifestações artísticas ou linguagens são explorados. Esta característica híbrida da linguagem quadrinística, bem como o fascínio que ela tradicionalmente exerceu sobre grandes massas de leitores, principalmente os mais jovens, está talvez no centro de sua rejeição pelas elites intelectuais. Embora compreendidas pelo universo da arte na era da reprodução mecânica, conforme visto por Benjamin (2006 [1969]), elas eram difíceis de classificar e contextualizar. No entanto, talvez em maior medida que a indústria cinematográfica, objeto de atenção do autor alemão, os quadrinhos levavam o aspecto de distração a seu extremo, dificultando sua compreensão por parte dos críticos de Arte. Daí, a incompreensão, o estranhamento. Isto também dificultou a inserção das histórias em quadrinhos no ambiente acadêmico, em que eles foram virtualmente ignorados durante boa parte do século, independentemente de seu impacto social. Como explicam Lombard e colegas (1999, p. 17), [...] apesar de seu potencial para a pesquisa, as tiras de quadrinhos, as revistas de histórias em quadrinhos, e os cartuns [...] permaneceram virtualmente não-estudados por décadas. Quando 18 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado a arte dos quadrinhos, na forma de revistas, finalmente achou o seu caminho para os “labs” da universidade Americana nos anos 1940, na maioria das vezes ela era tratada como um pária, um perigo para a juventude, para a moral, para o próprio tecido da sociedade Americana. A atenção dispensada aos quadrinhos pelos intelectuais ocorreu em paralelo com a emergência de movimentos de produção de quadrinhos que buscavam sua independência das obras disponibilizadas pela indústria massificada – genericamente denominada como quadrinhos mainstream -, colocandose como auto-suficientes e superiores ao que era então disponibilizado pelas grandes editoras de quadrinhos. Nesse sentido, eles se aliavam, embora muitas vezes não explicitamente, à crítica à indústria cultural feita pelos ideólogos da Escola de Frankfurt, que viam os produtos dessa indústria como essencialmente os mesmos. Como defenderam Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (2006 [1944], p. 43-44) em seu famoso texto sobre a indústria cultural, [...] O padrão unificado de valor consiste no nível conspícuo de produção, a quantidade de investimento evidenciada. As diferenças orçamentárias de valor na indústria cultural não têm nada a ver com diferenças reais, com o significado do produto em si. Os meios técnicos, também, estão sendo engolfados por uma uniformidade insaciável. A televisão busca a síntese do rádio e do filme, atrasada somente enquanto as partes interessadas não podem concordar. Tal síntese, com suas possibilidades ilimitadas, promete intensificar a pobreza da estética material tão radicalmente que a identidade de todos os produtos da indústria cultural, ainda sutilmente disfarçada hoje, irá triunfar abertamente amanhã numa irônica realização do sonho de Wagner da obra de arte total. Surgido na costa do Pacífico nos Estados Unidos, o movimento dos quadrinhos underground, também conhecidos como comix, bebeu mais especificamente na fonte dos movimentos hippies e da revolta estudantil, representando uma tomada de decisão pelo fortalecimento e autonomia da produção quadri- 19 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G nística e sua utilização como meio privilegiado para manifestação artística e social. Fazendo jus ao seu tempo, seus autores, em geral oriundos e atuantes no ambiente universitário, recusavam-se a fazer parte da máquina editorial massificada e massificante, bem como a seguir as normas estabelecidas pelas grandes editoras do país. Extremamente rígidas e reguladas, essas normas eram conseqüência indesejada da ainda recente perseguição aos quadrinhos, ocorrida há apenas uma década e tinham sua expressão concreta no chamado Comics Code, pelo qual cada publicação em quadrinhos era analisada e recebia um selo de aprovação, atestando sua insipiência em relação aos valores socialmente aprovados (NYBERG, 1998). Os artistas do movimento underground propunham uma criação quadrinística totalmente desvinculada de editoras ou normas editoriais, com obras voltadas para a expressão de sentimentos, para o desafio às tradições e para a liberação de costumes, sem preocupações imediatas com o consumo ou motivações mercantilistas. À frente dessa verdadeira bandeira libertária estiveram nomes posteriormente consagrados no universo dos quadrinhos, verdadeiros ícones em sua proposição como forma de manifestação artística capaz de suplantar as limitações da produção industrializada: Robert Crumb, Gilbert Shelton, Rick Griffin, S. Clay Wilson, Spain Rodriguez, entre outros (SKINN, 2004). Embora limitado espacial e temporalmente, pois o movimento dos quadrinhos underground teve seu apogeu basicamente entre final da década de 1960 e meados de 1970, a influência tanto de obras como de autores ampliou-se bem além das fronteiras do estado da Califórnia e atingiu os países europeus e latino-americanos, podendo-se afirmar que ajudaram na formulação de um estilo de produção de quadrinhos. Na Europa, eles foram fontes de inspiração para revistas de vanguarda. Nas Américas, por sua vez, assumiram forte viés político-partidário, sendo o estilo preferencial utilizado por artistas latino-americanos para o enfrentamento de governos totalitários que se espalharam pelo continente nas décadas de 1960 e 1970. No Brasil, a influência do quadrinho underground pode ser encontrada na obra do mineiro Henfil e nas colaborações dos vários parti- 20 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado cipantes do semanário O Pasquim, do Rio de Janeiro, em que as audaciosas alfinetadas nos representantes ou nos (mal)feitos da ditadura militar eram retratados por traços econômicos e esteticamente desafiadores, numa composição que se afastava de cânones mais tradicionais e adentrava pelo universo da caricatura e da sátira (Fig. 2). Esse espectro de atuação das histórias em quadrinhos – mas não exclusivamente delas, uma vez que a revista O Pasquim também abria espaço para a charge, o cartum, a crônica –, também realizava a crítica de costumes, principalmente à classe média acomodada, tão necessária à sociedade da época. Figura 2 – Graúna, de Henfil, publicado em O Pasquim Com o reconhecimento do potencial artístico dos quadrinhos por parte dos intelectuais europeus e com a eclosão do movimento de quadrinhos underground estavam assentadas as bases para uma outra etapa na legitimação cultural das histórias em quadrinhos no mundo inteiro. Pode-se dizer que estava se agilizando o ritmo em que elas deixavam de ser vistas como uma linguagem exclusivamente direcionada para o público de menor idade e passavam a ser encaradas como manifestações voltadas a públicos diversos, com diferentes níveis de qualidade e representação do mundo. 21 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Marasmo e renovação durante a Era de Prata dos quadrinhos De fato, pode-se também afirmar que o processo de reconhecimento das histórias em quadrinhos parece ter avançado por etapas. De um primeiro momento, com as páginas dominicais e tiras diárias, quando foram vistos como forma de assimilação das camadas populares, quase que majoritariamente composta por imigrantes europeus ou asiáticos, à civilização norteamericana, os quadrinhos passaram depois, com as revistas de quadrinhos ou comic-books, a ser direcionados prioritariamente ao público infanto-juvenil, sofrendo as agruras e perseguições de pais e educadores, num movimento de rejeição que se espalhou por praticamente os quatro cantos do mundo. A verdadeira “ressaca cultural” que seguiu o período mais acirrado de perseguição ao meio – anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial, época da chamada caça às bruxas e apogeu da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, com a proposição do já mencionado Comics Code –, pode ser vista como um momento, ainda que forçado, de preparação para a transposição dos limites da linguagem, àquele tempo ainda aparentemente intransponíveis. Desta forma, à mesmice de uma produção padronizada, massificada e padronizadora seguiu-se um momento de ajuste, em que proposições diferenciadas de produção e composição estética eram expressas em diversas partes do mundo. Mesmo no âmbito da produção industrializada de quadrinhos era possível vislumbrar indicadores dessa busca por novos parâmetros criativos. Em meio a centenas de títulos e histórias que apenas repetiam um modelo de quadrinhos anódinos, agindo de forma quase subterrânea no ambiente dessa produção industrializada - ou mesmo sob o olhar complacente de seus editores –, alguns autores dos quadrinhos comerciais norteamericanos – aqueles publicados nas revistas de super-heróis, principalmente pelas duas grandes editoras da área, a Marvel e a DC Comics –, incluíam em suas histórias elementos narrativos ou gráficos que as faziam avançar além de produções contemporâneas, transformando-se em marcos para outros autores do 22 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado gênero. O trabalho de Jim Steranko à frente do personagem Nick Fury, por exemplo, apresentava diferenças gritantes em relação aos da média dos criadores da época, com designs em que abundavam as fotocolagens e fotomontagens inspiradas em movimentos artísticos como a arte psicodélica e a Op Art. Outro autor que se destacou na produção industrializada de quadrinhos foi Steve Ditko, mundialmente conhecido como um dos criadores do personagem Homem-Aranha, cujos primeiros 38 números foram por ele desenhados. Verdadeiro “mestre da composição, linguagem corporal e ritmo da narrativa” (WOLK, 2007, p. 156), ele se revelou especialmente inspirado no trabalho que realizou para a revista Strange Tales, protagonizada pelo mestre das artes místicas conhecido como Doutor Estranho (Fig. 3). Nessas histórias, contrariamente ao que fazia nas aventuras do Homem-Aranha, em que colocava o herói lutando contra as leis da física, [...] os personagens em torno do Doutor Estranho eram libertos dessas leis e do mundo em geral, flutuando livremente em outro espaço dimensional cheio com elementos encurvados, de design em garrancho. Não existem quase ângulos retos nas histórias do Doutor Estranho de Ditko além das bordas dos quadrinhos. Vezes e vezes, entretanto, há imagens de portais estranhamente moldados pelos quais planos de existência mais estranhos podem ser vistos, e a implicação é que os retângulos da página impressa atuam como a mesma forma de portal para os leitores (WOLK, 2007, p. 159-160). Figura 3 –Doctor Strange, de Steve Ditko, um marco do quadrinho industrializado norteamericano 23 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G O trabalho desses dois autores na Marvel Comics, juntamente com o de artistas como Neal Adams na DC Comics, sinalizavam para alguma coisa inovadora em termos de linguagem das histórias em quadrinhos, que ainda não podia ser suficientemente vislumbrada devido às dificuldades impostas pela mão pesada da censura institucional, desempenhada pelo Comics Code Authority. Essa inovação iria surgir ao final da década de 1970 e viria pelas mãos de um veterano na área, o nova-iorquino Will Eisner (1917-2005). Chamava-se graphic novel. O surgimento das graphic novels Existe uma grande dose de lenda em torno das narrativas que se referem à criação das graphic novels no ambiente quadrinístico norte-americano. Já faz parte do folclore da área a narrativa de Will Eisner sobre a publicação de sua primeira contribuição nessa área, tantas vezes ele se encarregou de contála e re-contá-la em entrevistas, palestras e eventos de quadrinhos. Esse episódio é narrado da seguinte forma por Bob Andelman (2005, p. 290): Eisner telefonou para Oscar Dystel, então presidente da Bantam Books, e jogou o conceito. Dystel não somente conhecia Eisner mas se dizia que era um fã de seu trabalho em The Spirit. Dystel lembrou-se dele, mas era um homem ocupado, como editores normalmente são, e estava impaciente. Ele queria saber o que era que Eisner tinha, exatamente. Eisner olhou para o seu boneco, e um instinto lhe disse, Não diga a Dystel que é uma revista em quadrinhos ou ele baterá o telefone na sua cara. Assim Eisner pensou por um momento, e disse: “É uma graphic novel.” “Oh,” Dystel disse, “isto parece interessante; eu nunca tinha ouvido falar disso antes.” Por convite de Dystel, Eisner levou o boneco a seu escritório. Dystel olhou o boneco, olhou para Eisner em descrença, e então olhou de volta para o boneco. Então Dystel balançou sua cabeça. “Chame isso do que você quiser,” ele disse tristemente, “mas isto é ainda uma revista em quadrinhos! Nós não vendemos revistas em quadrinhos na Bantam. Eu estou surpreso com você, Will. Vá em busca de um pequeno editor.” 24 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado Na realidade, Eisner não havia criado nada novo, por mais que afirmasse que a idéia lhe viera repentinamente. Ele não havia absolutamente inventado a expressão graphic novel, pois não se tratava da primeira vez que ela era utilizada em relação especificamente a um produto quadrinístico. Antes de Eisner, o termo já havia sido utilizado pelo crítico de quadrinhos norteamericano Richard Kyle, em 1964, e também por Henry Steele na revista Fantasy illustrated, em 1966. Da mesma forma, o trabalho que Eisner então oferecia ao editor – Um contrato com Deus -, tampouco poderia ser considerado de fato a primeira graphic novel a ser publicada no ambiente de quadrinhos norte-americano, com diversas obras podendo ser apontadas como suas antecessoras (destacando-se, neste aspecto, Jungle book, the Harvey Kurtzman, e Beyond time and again, de George Metzger, para apenas citar dois exemplos). Por outro lado, a própria idéia compreendida pela expressão graphic novel pode ser facilmente contextualizada em outros países, com destaque para os álbuns encadernados de histórias em quadrinhos, já naquela época correntemente publicados no ambiente europeu, em geral trazendo histórias completas de personagens consagrados, anteriormente publicadas na forma de capítulos em revistas como Tintin, Spirou ou Pilote. Foi a partir desses álbuns que o crítico Richard Kyle, já mencionado, cunhou inicialmente o termo graphic story, que rapidamente substituiria por graphic novel, visando inspirar os autores norteamericanos a adotarem o mesmo nível de sofisticação das publicações européias (GRAVETT, 2005, p. 8). No entanto, polêmicas à parte, é preciso reconhecer que Will Eisner, com seu prestígio como criador da área e inteligente atuação mercadológica, foi de capital importância para a popularização do termo e ampliação do mercado para esse tipo de publicação. Após algumas rejeições, ele finalmente conseguiu publicar Um contrato com Deus pela Baronet Books, em 1978 (Fig. 4). Tratava-se de uma coletânea de quatro histórias sobre pessoas que Eisner havia conhecido durante sua infância e adolescência no Bronx; na obra, o autor fugia do formato original dos quadrinhos, evitando contar a trama quadro a quadro e às vezes utilizando a página inteira para uma única ilustração. 25 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Figura 4 – Um contrato com Deus, de Will Eisner, considerada por muitos como a primeira graphic A obra não atingiu um sucesso imediato, mas aos poucos sua qualidade foi se impondo e a reação a ela se solidificando de forma calorosa e encorajadora, a partir de sua difusão entre o público adulto. Isso lhe garantiu sucessivas reimpressões. De uma certa forma, a aceitação do trabalho representava o apoio dos leitores às idéias de Will Eisner e à sua proposta de modificar os estereótipos que existiam em relação às publicações de histórias em quadrinhos. Por mais que a expressão graphic novel represente um termo com diferentes acepções, é possível dizer que ela veio a influir positivamente no ambiente dos quadrinhos no mundo inteiro, predispondo leitores e críticos não só a uma nova forma de publicação de histórias em quadrinhos, mas, também, a uma nova formulação artística para o gênero. Tratava-se de uma nova maneira de viabilizar e disseminar os quadrinhos, um novo pacote, no dizer de Charles Hatfield (2005), que viria a somar aos já existentes. Segundo esse autor, 26 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado A história a arte dos quadrinhos se formou nas histórias de certos pacotes ou formatos. Nos Estados Unidos, o mais dominante desses pacotes foi a página de jornal e a “revista em quadrinhos.” O primeiro consiste de uma miscelânea de traços e gêneros, a maioria contida pelas rígidas barreiras da tira diária ou da dominical; ele aparece no interior da mais ampla miscelânea dos jornais, e quadrinhos produzidos para ele são vistos no máximo como tipos secundários. A chamada revista em quadrinhos, por outro lado, é uma revista pequena e autocontida ou panfleto (mais ou menos de tamanho meio tablóide). Nos primeiros dias da indústria, esta revista incorporava uma miscelânea de gêneros, tanto narrativos como não-narrativos; mais recentemente, no entanto, ele veio a se concentrar em um único personagem ou grupo de personagens e, mais freqüentemente, em uma única história (tipicamente entre dezoito ou vinte e quatro páginas de extensão). Desde o final dos anos 1980, uma terceira forma de empacotamento de quadrinhos ganhou espaço na cultura impressa Americana: a “graphic novel”, o que no jargão da indústria significa qualquer narrativa quadrinística em tamanho de livro ou um compêndio de tais narrativas (excetuando volumes de reimpressão de tiras de jornal, que compõem um gênero longevo, ainda que criticamente invisível em si mesmo). Cada um desses três pacotes, a página de quadrinhos, a revista em quadrinhos, e a graphic novel, tem seus próprios horizontes em termos de conteúdo, audiência e aporte cultural. A nova denominação ajudou a abrir as portas de outros espaços de comercialização e exposição para as produções quadrinísticas, elevando-as a um novo patamar no espectro das criações artísticas no último quarto do século 20 e início do século 21. Mais que isso: como formato de produção, as graphic novels tornaram possível quebrar a barreira entre os quadrinhos industrializados e os alternativos, criando condições para um mercado diferenciado, em que a qualidade artística, o aprofundamento psicológico, a ousadia do design e a complexidade temática passaram a ter seu valor melhor equacionado. Pode-se dizer que, a partir delas, as histórias em quadrinhos se firmaram como a 9ª Arte ou como Arte Seqüencial. 27 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Os caminhos da Arte Seqüencial A partir da década de 1980, as histórias em quadrinhos passaram a ser referenciadas como a 9a Arte. Nisso, completavam um conjunto formado por artes mais tradicionais (as seis primeiras: música, dança, pintura, escultura, literatura e teatro), acrescidas de duas outras de criação mais recente, o cinema e a fotografia (embora não fique muito claro porque o cinema, posterior à fotografia, mereceu a 7a colocação...). Quase que paralelamente, as histórias em quadrinhos passaram a ser também mencionadas como Arte Seqüencial, uma denominação pouco satisfatória, uma vez que, a rigor, poderia se referir não apenas às histórias em quadrinhos, mas também a outras artes com as mesmas características, como o cinema e a animação (razão pela qual, este autor prefere utilizar a expressão arte gráfica seqüencial para fazer referência às histórias em quadrinhos...). Isto, no entanto, talvez não tenha tanta importância, mas sim a proposição das histórias em quadrinhos como arte, objetivo que a expressão parece atender satisfatoriamente. De qualquer forma, já no início da década de 1980 intensificou-se o uso desse termo por pesquisadores e artistas. Mais uma vez, foram liderados por Will Eisner, que o utilizou em um curso sobre quadrinhos que ministrou na School of Visual Arts da cidade de Nova Iorque e posteriormente como título de seu primeiro livro teórico na área (EISNER, 2001 [1985]). Tal como ele, outros artistas trataram de divulgar essa denominação em eventos e publicações da área. Tratou-se de mais um passo na busca da legitimação cultural da linguagem. Nesse sentido, Thierry Groensteen, analisando a realidade dos quadrinhos a partir da situação européia, também identifica dois momentos na história recente, bem semelhantes ao que se passou no ambiente norte-americano: em primeiro lugar, a reconquista do leitor adulto, ocorrida a partir de 1972, com o lançamento da publicação L´Echo de Savanes, considerada por ele como a primeira revista “somente para adultos”; em segundo lugar, o crescimento da publicação de álbuns na França, ocorrida quase que em paralelo com o desaparecimento das revistas tradicionais de quadrinhos 28 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado do país, Tintin, Pif, Pilote, Charlie, Metal Hurlant. Nesse sentido, Didier Pasamonik (2008, p. 15) complementa o pensamento de Groensteen, afirmando que [...] Do início dos anos 90 e em um crescendo nos anos seguintes, não houve um grande editor de literatura que não tenha buscado publicar histórias em quadrinhos: Albin Michel, Gallimard, Grasset, Le Seuil, Flammarion, Hachette, Denoël, Fayard, Le Diable Vauvert, Buchet-Chastel, La Martinière[...] Ao mesmo tempo, do outro lado do mundo, grupos de artistas que poderiam ser considerados como sucessores do movimento underground norte-americano passaram a ter maior destaque no universo dos quadrinhos norte-americanos. Colaborou fortemente para isso a proeminência obtida por Art Spiegelman e sua obra Maus. Com pretensões nitidamente biográficas, Maus trazia a história dos pais do autor, que haviam sido prisioneiros em um campo de concentração alemão durante a Segunda Grande Guerra. Utilizando uma narrativa em primeira pessoa, na qual ele próprio contracena com seu pai e o faz recordar os momentos terríveis da perseguição aos judeus durante o conflito mundial, com todas as conseqüências psicológicas e pessoais que o período de confinamento havia trazido, Spiegelman utiliza um recurso característico das fábulas e das histórias em quadrinhos infantis: retrata os personagens como animais, individuaFigura 5 – Maus, de Art Spiegelman, lizando as diversas nações por tipologias sucesso junto à crítica norte-americana zoológicas – os judeus como rato, os alemães como gatos, os ingleses como cães, os poloneses como porcos, etc. (Fig. 5) Tendo sido inicialmente publicado em capítulos na revista Raw, fanzine sofisticado de histórias em quadrinhos de vanguarda, editada por Spiegelman e Françoise Mouly de 1980 a 1991, Maus, após sua publicação em formato graphic novel, re- 29 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G cebeu em 1992 um prêmio Pulitzer especial. Desta forma, com ele, escancarava-se para o mercado norte-americano e para o mundo em geral o potencial do novo formato de disseminação de quadrinhos, que não mais precisava ficar vinculado a narrativas nos gêneros tradicionais – super-heróis, policiais, aventuras, etc. – mas podia ser explorado para incursões no campo da história, da memória social e do jornalismo. Criavam-se – ou, melhor dizendo, solidificavam-se – assim novas expectativas em relação ao meio. Na realidade, pode-se dizer que com ele se quebrava também um preconceito, o de que histórias em quadrinhos não se prestam à retratação episódios históricos especialmente problemáticos, como o Holocausto dos judeus na 2a. Guerra Mundial. Como menciona Rocco Versaci (2007 , p. 82) Um meio que parece mesmo menos equipado para comunicar esta particular história seria o da revista em quadrinhos. De fato, em termos de concepções populares, seria difícil encontrar dois assuntos mais discrepantes que o Holocausto e as revistas em quadrinhos, pois a última é comumente encarada como uma diversão imatura enquanto o primeiro, por contraste, se tornou congelado na maioria das mentes como uma metáfora para o mal absoluto, tão amplos são seus horrores. Ambas as percepções são infortunadas, pois nem o Holocausto nem as revistas em quadrinhos são bem servidas por essas generalizações. Apesar da aparente incongruência entre quadrinhos e o Holocausto, entretanto, Art Spiegelman ousadamente une os dois em suas graphic novels Maus I (1986) e Maus II (1991). O reconhecimento obtido por Spiegelman chamou a atenção do público em geral, que de repente se viu defronte a uma realidade já familiar aos admiradores do gênero, a muitos artistas atuantes na indústria de quadrinhos e àqueles que se haviam aventurado na produção de quadrinhos underground. Face a essa nova realidade, pode-se dizer que o cabedal social das histórias em quadrinhos foi objeto de forte valorização, passando elas a terem um novo tipo de recepção. A este movimento veio se somar a entrada no mercado ocidental das produções de quadrinhos japonesas – os mangás –, que propunham uma estética diferenciada em relação aos quadrinhos mainstream, com obras que se colocavam, em princípio, como buscando ho- 30 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado rizontes mais ambiciosos que a produção tradicional ocidental. E esta invasão nipônica se fez inicialmente por obras que se destacavam em termos de qualidade Gen Pés Descalços, de Keiji Nakazawa, que transitava pelo mesmo espaço memorialístico de Maus (Fig. 6). Nele, em uma narrativa emocionante, o autor relembra sua trágica experiência de vida, quando, ainda menino, esteve presente na cidade de Hiroshima durante o lançamento da primeira bomba atômica pelos Estados Unidos, perdendo parte de sua família durante o conflito e sofrendo danos psicológicos irreparáveis. Face à invasão japonesa e à boa acolhida da obra de Spiegelman, os grandes editores comerciais intensificaram a produção não apenas de graphic novels, mas também de miniséries em sua linha normal de produção. Assim, um movimen- Figura 6 – Gen Pés Descalços, de Keiji Nakazawa, uma comovente história sobre to que havia começado em 1986 as agruras da guerra e o sofrimento com o objetivo de revitalizar um causado pela bomba de Hiroshima dos ícones da editora DC, o personagem Batman – com Batman: O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller e Klaus Janson (Fig. 7) –, passou a ter um ritmo muito mais rápido de lançamentos, muitas vezes representando obras especialmente criadas para o novo formato, outras vezes coletando histórias ou arcos de histórias aparecidos nas edições normais, ou seja, em revistas de linha. Nesse espírito ocorreu o aparecimento de obras que depois se revelariam de capital importância na revitalização do gênero dos quadrinhos de superheróis, como Watchmen (1986), de Alan Moore e Dave Gibbons; Demolidor: A queda de Murdoch (1986), de Frank Miller e David Mazzuchelli; Batman: Ano Um (1987), de Frank Miller e David Mazzuchelli; Batman: a piada mortal (1988), de Alan Moore e Brian Bolland; Batman: Asilo Arkham (1989), de Grant 31 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Morrison e Dave McKean; Marvels (1991), de Kurt Busiek e Alex Ross; Astro City (1995), de Kurt Busiek e Brent Anderson; e O Reino do Amanhã (1996), de Mark Waid e Alex Ross, entre outros (KANNENBERG, 2008). Figura 7 – Batman: O Cavaleiro das Trevas, obra significativa de um novo momento dos quadrinhos de super-heróis Além das histórias protagonizadas por super-heróis, outras obras surgiram no mercado mainstream buscando a excelência artística e atingir um público mais adulto, muitas delas sendo extremamente bem sucedidas em ambos objetivos. Entre elas, deve-se destacar a contribuição de Neil Gaiman e Dave McKean em Violent Cases (1987), publicada originalmente na Inglaterra, dois anos antes de Gaiman dar início à obra pela qual ficou mais conhecido, Sandman (1989-1996), que realizou com diversos desenhistas. Outro trabalho semelhante que esse escritor realizou no gênero fantasia foi Os Livros da Magia (1990), também com diversos autores e com a mesma qualidade estética e literária de Sandman, mas sem atingir o mesmo sucesso. 32 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado Outro autor que também enveredou pelo universo das graphic novels foi o inglês Alan Moore, com diversas obras de grande sucesso lançadas pela editora que fundou, a American Best Comics, posteriormente transformadas em graphic novels. Dirigidas ao público mais adulto, todas essas obras brincam com elementos fantasiosos e revisitam os diversos gêneros dos quadrinhos, como o de super-heróis (Top Ten, Supremo), fantasia (Prometea), drama (A small killing, Lost girls), humor (D. R. and Quinch), aventura (A Liga Extraordinária) e ficção científica (V de Vingança, A balada de Halo Jones, Skizz). No entanto, mais do que salientar esses e outros incríveis autores e suas obras maravilhosas, talvez seja mais produtivo encara-los, em seu conjunto, como um testemunho vivo do avanço qualitativo da arte seqüencial mesmo no mercado mainstream. Além disso, é importante também destacar que o crescimento da oferta de graphic novels permitiu a utilização da linguagem dos quadrinhos para a exploração de diversos gêneros que haviam sido tratados apenas marginalmente por ela. E isso ocorreu de tal maneira que uma nova classificação temática foi gerada na área, com trabalhos que jogaram por terra todas as idéias pré-concebidas sobre as limitações da linguagem quadrinística para ir além de propostas ficcionais. Nessa linha, um dos pontos altos da área na última década foi o surgimento do gênero atualmente conhecido como jornalismo em quadrinhos, voltado para a documentação de acontecimentos e fatos reais. O destaque nessa área é o jornalista e artista de quadrinhos Joe Sacco, cujas obras se transformaram em modelos para todos aqueles que intentam enveredar pelas mesmas veredas criativas. Palestina: uma nação ocupada (Fig. 8), sua primeira obra nessa linha, publicada originalmente em 1993, é um relato de sua viagem aos territórios ocupados da Palestina, retratando com muita sensibilidade a rotina dos moradores e dando voz a um povo que convive cotidianamente com a privação em um país militarmente ocupado. Seus desenhos, em estilo underground, evidenciam um autor comprometido com aquilo que está retratando, nitidamente tomando o partido daqueles que entrevista, participando de demonstrações, assistindo a funerais e até mesmo dividindo suas provisões e acomodações com membros da comunidade palestina. 33 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Figura 8 – Palestina, de Joe Sacco, a ponta de lança de um novo gênero quadrinhístico, o jornalismo em quadrinhos Sacco publicou várias obras com o mesmo objetivo de Palestina, assentando as bases em que outros autores também trabalharam ou continuam a trabalhar. Desta forma, alinhadas com o chamado Novo Jornalismo, essas obras quadrinísticas se impuseram por uma narrativa pessoal e relatos de eventos da vida real. A importância desse trabalho não pode ser subestimada. Segundo Rocco Versaci (2007, p. 111), esses [...] quadrinistas jornalistas aproveitaram ao máximo a linguagem gráfica do meio para reanimar a mais distintiva característica do Novo Jornalismo: o aprofundamento da perspectiva do indivíduo como um organizador da consciência. Além disso, os quadrinistas jornalistas atingem camadas de significado inacessíveis ao jornalismo em prosa sozinho devido à linguagem gráfica dos quadrinhos que agrega palavras e imagens. E ainda mais, como os Novos Jornalistas, os quadrinistas jornalistas abraçam uma destacada atitude anti“oficial”, anticorporação. Entretanto, diferentemente da absorção do Novo Jornalismo pela indústria e a resultante diluição de sua mensagem radical, os quadrinistas jornalistas retêm, paradoxalmente, um poderoso status marginal que dificultará que esses trabalhos sejam totalmente “co-optados.” Quando alguém fala sobre a literatura do jornalismo, trabalhos de quadrinistas jornalistas devem ser incluídos, pois eles proporcionam histórias e levantam importantes questões de representação e verdade de maneiras que não estão disponíveis ao jornalismo estritamente em prosa, “Novo” ou de outro modo. 34 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado Além do jornalismo em quadrinhos, outro gênero que adquire força nesse novo momento de legimitação das histórias em quadrinhos é a narrativa pessoal, enfocando relatos de vida e memórias. É um gênero que tem suas raízes no quadrinhos underground, principalmente com o trabalho de Robert Crumb, e que posteriormente, com seus sucessores no âmbito do hoje denominado quadrinho alternativo, atingiu níveis de qualidade antes pouco vislumbrados, mesmo pelos admiradores do gênero. Ele já aparece claramente nas já mencionadas obras de Art Spiegelman e Keiji Nakazawa, mas se aprofunda de forma significativa nos trabalhos de autores como o norte-americano Charles Burns e o japonês Kazuichi Hanawa. Figura 9 e 10 – Black Hole e Na Prisão, obras que dão continuidade ao gênero biografia em quadrinhos, com grande profundidade artística 35 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G O primeiro retrata em Black Hole (Fig. 9), uma extensa graphic novel elaborada em imagens luxuriantes, ousadas e bastante perturbadoras, que levou dez anos para ser concluída, a época da sua juventude, na década de 1970, e a convivência diária com drogas e sexo, colocando a nu momentos de fragilidade e indecisão frente a um mundo que parecia não lhe oferecer as respostas que buscava. O segundo expõe em Na Prisão (Fig. 10) a época em que seu autor esteve confinado em uma prisão japonesa, devido a uma acusação de porte ilegal de armas, descrevendo o dia-a-dia de seu confinamento. Outros gêneros mais tradicionais dos quadrinhos também tiveram grande desenvolvimento nos últimos anos. Sem querer esgotar o assunto, é possível destacar Sincity, de Frank Miller, Cidade de Vidro, de Paul Auster e David Mazzucchelli, Estrada para a Perdição, de Max Alan Collins e Richard Piers Rayner, nos quadrinhos policiais; Moonshadow, de J. M. DeMatteis e Jon J. Muth, no gênero fantasia; Birdland e Crônicas de Palomar, de Gilbert Hernandez, Ghost World, de Daniel Clowes, Strangers in Paradise, de Terry Moore, Jimmy Corrigan, the smartest kid in the world, de Chris Ware, em histórias do cotidiano; Hellboy, de Mike Mignola, nas histórias de terror; Os Invisíveis, de Grant Morrison, Akira, de Kathuhiro Otomo, Hard Boiled, de Frank Miller e Geoff Darrow, Give me Liberty, de Frank Miller e Dave Gibbons, The Originals, de Dave Gibbons, na ficção científica; Pussey!, de Daniel Clowes, Buddy does Seattle, de Peter Bagge, Quimby the Mouse, de Chris Ware, no humor (KANNENBERG, 2008). Em todos os títulos acima mencionados – e em muitos outros que não foram incluídos por absoluta falta de espaço –, pode-se observar a preocupação com a elaboração de histórias que fujam do comum e tenham a marca do seu autor. Algumas apresentam uma visão acerba e crua da sociedade, em desenhos aparentemente grotescos e mesmo horripilantes. Outras buscam proporcionar deleite estético em níveis similares aos proporcionados pelas outras artes, inspirando-se abertamente em grandes obras da representação pictórica universal. 36 Waldomiro Vergueiro As histórias em quadrinhos no limiar de novos tempos: em busca de sua legitimação como produto artístico e intelectualmente valorizado Conclusão Em sua obra Reading comics: how graphic novels work and what they mean, Douglas Wolk (2007, pag. 10) argumenta, em relação à evolução das histórias em quadrinhos, que “se existe tal coisa como uma idade de ouro dos quadrinhos, ela está acontecendo exatamente agora.” Analisando a produção atual e o nível de qualidade de imagens e roteiros encontrados em muitas produções quadrinísticas, não se pode deixar de concordar com esse autor. Estamos, sim, vivendo uma grande época para os quadrinhos. Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que a produção industrializada continua massiva e massificante: tolhida em limites mais amplos do que os de vinte ou trinta anos atrás, é certo, mas, ainda assim, com evidentes limitações. A oferta de quadrinhos como um todo, considerada a produção industrial, continua disponibilizando, em proporções bastante exageradas – cerca de 80 ou 90 por cento, dependendo do ponto de vista -, daquilo que poderia ser denominado como lixo, ou seja, quadrinhos padronizados e presos a um modelo industrializado de produção, voltados para a reprodução das mesmas histórias a serem consumidas pelas mesmas massas de leitores invisíveis e não-identificados. Apenas uma pequena parcela da produção continua a ser composta por obras que realmente colaboram para o avanço da linguagem dos quadrinhos e sua evolução artística, enquanto todo o restante da produção busca perpetuar o interesse da sociedade em geral por esse meio de comunicação de massa. Mas nisso as histórias em quadrinhos não se diferenciam de todas as outras artes, pois fato semelhante pode ser encontrado no cinema, no teatro, na literatura, etc. Ambas as tipologias de produção – o lixo, por um lado, e a arte, por outro –, cumprem muito bem o seu papel. A boa notícia é que as obras que fazem avançar a linguagem quadrinística já não se situam mais somente no âmbito do quadrinho alternativo. Cada vez mais, é possível encontrar no contexto de quadrinhos mainstream obras que, embora tratando de temáticas aparentemente padronizadas, re-elabo37 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G ram a linguagem e influem significativamente em seu aprimoramento. E isso ocorre com freqüência cada vez maior. Existem motivos para otimismo em relação à legitimação das histórias em quadrinhos na sociedade. Embora algumas portas de instituições culturais ainda permaneçam estupidamente fechadas para acesso e valorização das produções quadrinísticas, outras já se abrem e algumas até mesmo se escancaram para elas. Bibliotecas, que antes sequer cogitavam em armazenar quadrinhos, já as oferecem abertamente. Livrarias criam seções especiais para comercialização de graphic novels, álbuns e mini-séries. Escolas são tomadas por professores e alunos ávidos pela utilização de histórias em quadrinhos em sala de aula. São novos tempos. Exercícios de futurologia são sempre arriscados. Assim, seria provavelmente arriscado fazer qualquer tipo de prognóstico em relação ao futuro da arte gráfica seqüencial. Existe um caminho a ser percorrido, talvez ainda com algumas dificuldades. Autores e leitores, no entanto, parecem cada vez menos temerosos em relação a ele e o vêem como uma grande promessa. E talvez realmente o seja. Notas 1. Informação oral, prestada informalmente em junho de 2008. 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Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Butantã, São Paulo, Rua Jorge Tibiriçá, 266, Vila Mariana, São Paulo, SP, 04126-000, Tel. 3091-4076, ramais 27 e 34; e-mail: [email protected] 41 Comics are imagetic literature, that allows input and understanding, resulting in a different way that acts inside the two hemispheres of the human brain. The image operates into right side of brain, while phonetical rational information acts on left side. Those aspects help in education of human values in a sistemic way, integrative, considerating interdisciplinary on education. Beyond, comics can also be authoral, distint from the pattern way, when something is elaborated by a group, intenting exclusively commercial finality. In both of cases, comics must be reknowned as art, as any other human expressions like visual arts, plastic arts, movies, literature and others. Keywords: Comics, Authorship, Art. abstrac t A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional Gazy Andraus resumo A história em quadrinhos (ou HQ) é uma arte literárioimagética, permitindo uma atuação e entendimento que incide de forma diferenciada nos hemisférios cerebrais. A imagem recai no hemisfério direito do cérebro, enquanto que a informação escrita fonética racional atua no esquerdo. Tais aspectos auxiliam na educação dos valores humanos de forma sistêmica, integrativa, considerando-se a interdisciplinaridade no ensino. Além disso, a história em quadrinhos pode ser também autoral, distintamente daquela padronizada como fruto de uma equipe para finalidade estritamente comercial. Em ambos os casos, a história em quadrinhos deve receber o estatuto de arte, como quaisquer outras das expressões humanas que são assim classificadas, tais como as artes visuais, plásticas, cinema, literatura e outras. Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos, Autoria, Arte. V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G 1. Histórias em quadrinhos (HQs) e informação sistêmica As histórias em quadrinhos não servem apenas ao auxílio interdisciplinar ou às aulas de literatura, mas principalmente como agentes artísticos auto-suficientes literário-imagéticos apresentados de uma maneira própria, independentemente. Isto se dá, sobretudo, devido à relação intrínseca das HQs como uma literatura imagética (ou panvisual) e a importância delas como imprescindível e necessário objeto de estruturação cultural aos povos: objeto este que auxilia em uma melhor interface dos dois hemisférios cerebrais: esquerdo: racional (fonético) e direito: intuitivo (imagético). Assim, as HQs somente agora estão se tornando melhor reconhecidas no mundo e principalmente no Brasil, ganhando espaço em setores de mídia impressa e televisiva, que lhes concede cada vez mais prestígio, haja vista que os quadrinhos estão migrando para formatos similares a livros e álbuns destinados a livrarias, bem como têm sido indicados ao ensino pelos PCNs, e adquiridos pelo governo a fim de figurarem nas bibliotecas escolares. Porém, isto nem sempre foi assim, graças a um desconhecimento acerca do potencial relativo às artes, no auxílio mental à formação humana. 1.1 A expansão neuroplástica Embora a história da humanidade pressuponha a manifestação expressiva gestual, sonora (gutural) e garatujada, a necessidade gregária de compartilhamento de informações foi o deflagrador de toda essa epopéia criativa, tanto artística, como científica. A escrita evoluiu da vontade de se registrar a informação, facilitando assim a comunicação, tornando-a fluida e mediadora para o entendimento prático, principalmente, apesar de abarcar possibilidades abstratas de pensamento. Mas isso não significa que os desenhos (que originaram a escrita ideográfica e fonética), sejam de somenos importância, ou que 44 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional induzam a “erros”, múltiplas interpretações ou que sejam limitados. Nem que, se esses fossem os casos, o desenho pudesse ser tido como informação “infantilizada” e menos complexa nos quadrinhos, como parece ter sido assim percebido, inclusive pela ciência cartesiana. Ao contrário: o desenho, como expressão direta de uma mente que elabora racional e criativamente, expressa os anseios, temores, alegrias e outros humores da pessoa que busca representar graficamente seus estados de ânimo. Morin (2000) já explicou que o ser humano é complexo, e não apenas um ser racional, pois sente, pensa, teme, se alegra, expressa, assim, manifestando uma complexidade de sentimentos que não se restringem a um padrão único e formatável. De Gregori (1999), com sua teoria do cérebro triuno (fig. 1), argumenta que o cérebro humano contém todas as outras versões de cérebros anteriores, até a inteligência básica da vida. Assim, expõe que aliado aos dois hemisférios (direito e esquerdo), repousa internamente o cérebro central, réptil, que responde pelo pragmatismo. Dessa forma, De Gregori diz que deve haver uma utilização proporcional entre esta porção central (ação decidida), o hemisfério esquerdo (racionalidade) e o direito (criatividade). Sem uma utilização comum proporcional a esses três módulos conjugados, o ser humano acaba por pender, ora para uma parte, ora para outra, desenvolvendo mais Figura 1 DE GREGORI, Waldemar. Os poderes dos seus três cérebros. São algumas áreas e menos ouPaulo: Pancast, 1999 tras. Ainda assim, ressalte-se que é de conhecimento científico que o funcionamento cerebral cognitivo resulta da atividade integrada dos hemisférios, e em rede. Porém, tal desproporcionalidade apontada por De Gregori explicaria, em parte, porque o ensino cartesiano, cuja 45 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G modalidade exclusivista e dominante atinente ao hemisfério esquerdo, deveria já estar totalmente reformulado, incluindo a inserção de modalidades novas de pensamento, como a atividade criadora (a criatividade, atinente ao hemisfério direito cerebral). A mudança de paradigma na ciência, por exemplo, da clássica para a quântica, teve uma repercussão total na relação entre sujeito e objeto: o cientista não poderia mais, agora na visão quântica, deixar de afetar sua pesquisa, ainda que fosse como uma espécie de “demiurgo”, cuja observação participante proporcionaria a medição e localização no tempo-espaço da micropartícula atômica. Pois, embora ele possa continuar suas medições, o fator “observação” altera a posição no tempo e espaço da micropartícula, que tanto poderia ser um corpúsculo material, como também uma possibilidade ondulatória que figurasse potencialmente em qualquer lugar, o qual se define mediante a Figura 2 CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1990 escolha momentânea do físico (fig. 2). Neste último caso, coloca-se em pauta a possibilidade existencial no tempo-espaço da partícula, cuja posição que seria eleita dependeria realmente do fator, agora subjetivo, da ponderação do homem (do pesquisador). Em outras palavras: a possibilidade de algo estar em algum lugar, depende da mente humana eleger tal realidade e “estagná-la”, posicioná-la, definitivamente, co-realizando a “realidade” tridimensional. Os cientistas ainda não compreendem como isso se dá, 46 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional nem como uma partícula possa ser dual ao mesmo tempo (matéria/onda), porém, sua mente se “reformatou” como que para aceitar um estado natural da existência, que não condiz com o que a concepção da lógica linear anterior, na visão de um mundo newtoniano em que todo o universo parecia ser uma máquina funcional, cuja manutenção independia do homem, em que este seria apenas um mero observador sem poder alterar algo. No entanto, na nova física que vai além do mero efeito ação/reação, culminaram os cientistas por aceitar a facticidade dual da micropartícula ser/estar e onda/matéria ao mesmo tempo, como real e plausível, a despeito de uma lógica simples e cartesiana não poder abarcar tal premissa. A mente destes pesquisadores, então, principiou a adentrar num novo paradigma, mais complexo e absolutamente inóspito ao modo de pensar habitual, remodelando a si mesma (a mente), tornando-se propícia a aceitar este “novo”, esta dualidade atômica, como bem afirmou Capra (1999). Além disso, devido a estudos atuais da neurociência, sabe-se que a mente é neuroplástica, bem como não cessa jamais de se ampliar (e regenerar), desde que seja estimulada para tal, e não com um ensino que contemple apenas a chamada inteligência racional, pois falho e manco, já que insuficiente para atuar nos hemisférios cerebrais de modo satisfatoriamente equilibrado. Experimentos com tomografias computadorizadas têm sido utilizados para ilustrar novas descobertas do funcionamento cerebral, que apontam para repensar tais questões. Constatou-se assim que (...) experimentos de laboratório e estudos clínicos indicam claramente que a leitura do chinês requer, para a identificação de seus morfemas–caracteres, uma alocação de funções cerebrais, localizadas entre os hemisférios cerebrais direito e esquerdo, um tanto diferente daquela que os leitores da Europa Ocidental e os leitores de alfabetos fonéticos orientais usam para a identificação de palavras. (SAENGER, 1995). 47 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Dessa maneira, à mesma forma que os ideogramas, os desenhos das histórias em quadrinhos podem incidir em áreas distintas do cérebro, ativando-as, diferentemente do que faz uma leitura da escrita cartesiana. Como se percebe, ainda há muito que se pesquisar e deduzir, mas claro está que, longe de serem empecilhos à educação, os quadrinhos são potentes informações imagéticas que podem ser utilizadas como literatura diferenciada, aliada à literatura convencional escrita (e também aos textos acadêmicos) como forma de melhorar a interação dos hemisférios cerebrais, promovendo fontes de conhecimento e deflagrações criativas que auxiliariam na transformação do ensino em algo não somente sistêmico e informacional, como também indispensavelmente lúdico. Os quadrinhos, além de servirem informação imagética de forma diferenciada, também divertem, mas é de salientar a influência que podem trazer ao psiquismo humano (como os noticiários de televisão, os filmes etc). Esta influência, inclusive, foi pressentida e vivenciada (até de forma exagerada), na década de 1950, quando os Estados Unidos viviam uma crise sem precedentes, o que resultou em expressões artísticas de temáticas mais fortes e de tons “negativos”, como nas histórias de terror que pululavam nas revistas de HQs (comics). Infelizmente, isso bastou para que psiquiatras, psicólogos, pedagogos e educadores sem muita reflexão acusassem os quadrinhos como pérfidos à educação da juventude. O problema, realmente, é que muitas das histórias não eram para crianças, e faltou visualizar tal fato, como é feito atualmente nos cinemas, com classificações etárias. A mesma síndrome correu mundo afora e no Brasil. Seu resgate só veio a partir da década de 1960 e 1970, com o advento de teóricos europeus e de estudos culturais, percebendo o valor real dos quadrinhos, retirando-os aos poucos do limbo a que foram submetidos. Aqui, conjecturo baseado em minha tese de doutorado (Andraus, 2006), que a razão principal de as HQs terem sido desvalorizadas no processo cultural foi realmente a performance da assim e então chamada “mente dominante” (hemisfério esquerdo), já que, por atuar de forma incisiva no racional, desvalorizou, como na ciência clássica, o subjetivismo, a expressão 48 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional artística, pois que esta era (e é) entranhada e deflagrada pelo hemisfério direito. Dessa forma, tal cisão permitiu desconsiderarse o valor da arte dos desenhos e dos quadrinhos por extensão, superestimando a escrita racional do pensamento estritamente cartesiano. Advirto que durante um grande período, a ciência que estuda o cérebro, considerou o hemisfério esquerdo como “dominante”, relegando a um segundo plano o lado direito. Também foi percebido que os homens, em seu início desde a pré-história, por algum motivo ainda não esclarecido, utilizavam mais a mão direita para a execução de ferramentas e outros afazeres (Facure, 2003). Ora, os hemisférios cerebrais comandam de forma inversa os lados do corpo. Destarte, o hemisfério esquerdo acabou por ter uma maior ampliação, já que a mão direita trabalhava mais. Porém, foi a partir da década de 1950 que o cérebro passou a ser melhor conhecido, e somente depois é que se entendeu que a falta de clareza quanto ao potencial do hemisfério direito não o classificava como de somenos importância: se é o esquerdo que diagnostica, nomeia, calcula, classifica tudo, é o direito que visualiza, cria, conceitua, abstrai. Assim, a questão de o fonema ter se sobressaído e soberanamente valorizado conquanto a seu conteúdo intrínseco, encontra eco e respaldo no que apontam as pesquisas com tomografias computadorizadas do cérebro. Um fato que comprova a desatenção em relação à importância da informação imagética, logo, do desenho – e conseqüente supervalorização da escrita fonética –, se deu no grande mercado norte-americano, ao final da década de 1960 para início da de 1970. O artista norte-americano de histórias em quadrinhos, Jim Steranko, quando roteirizava e desenhava a revista Nick Fury para a editora Marvel Comics (Casey, 2004), introduziu uma história contendo suas três páginas iniciais completamente mudas (Fig. 3), cuja tônica informacional se dava exclusivamente pelas imagens desenhadas, com total ausência de textos escritos (excetuando-se pelo título da história e do personagem como acontece em narrativas de filmes, em que, em muitos momentos desenrolam-se ações sem falas). Porém, o estigma no qual o texto descritivo fonético seria preponderante como elemento 49 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Figura 3 STERANKO, Jim. Quem será Scorpio. Nick Fury. Heróis da TV. N. 17. São Paulo: Abril, nov. 1980, p. 4-5 necessário às histórias em quadrinhos, e sua ausência nas páginas elaboradas pelo desenhista, causou estranheza ao editor, que temia que os jornaleiros pensassem se tratar de erro de impressão, e devolvessem a edição. Na verdade, a questão se torna muito mais complexa, à medida que o valor à escrita fonética se torna desmesurado, dirimindo a importância da informação imagética, conforme se pode asseverar por mais este fato pontual, corroborando um sintomático analfabetismo icônico, já aventado por Groensteen (2004). O pesquisador francês reforça a questão de que as pessoas não sabem ler imagens, nem desenhos, tornando-se analfabetas em reconhecer tais artes, o que propicia uma padronização por parte das editoras, excluindo do rol de suas publicações trabalhos diferentes, vanguardistas, já que crêem ser difíceis de serem lidos e aceitos pelos leitores. Porém, o que diz Groensteen, em realidade, é que a estultícia em se nivelar por igual a todas as coisas da sociedade, acaba por sacrificar a riqueza e diversidade cultural, no caso, o leque de estilos de desenhos diferentes, contribuindo para uma uniformização empobrecedora no quesito cultural ati- 50 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional nente à variedade nos desenhos de quadrinhos, e conseqüente falta de apreciação por parte dos leitores. Enfim, há de se preocupar e atentar com o que o pesquisador europeu diz, já que a teoria da neuroplasticidade cerebral, atualmente em voga com fundamentos científicos comprovados, explica que a inteligência humana se amplia se estimulada. Por esse prisma, caso os estímulos sejam padronizados e não requeiram esforços em novos reconhecimentos, há o perigo de um uso menos qualitativo do potencial mental. É fácil se compreender isso, quando se reporta à questão diferencial entre a física clássica e a quântica, conforme se comentou: atualmente, não há dúvidas entre os físicos que não se pode teorizar e nem praticar tal ciência apenas com a visão mecanicista, que pode e deve ser usada cotidianamente, mas necessita de apoio e ampliação com a física quântica, a qual propiciou os raios lasers e toda a tecnologia computacional e de chips da atualidade. Caso, se caia na mesmice em se aceitar apenas a física anterior, deve-se eliminar toda a tecnologia atual baseada em noções e cálculos quânticos (inclusive os computadores quânticos que estão sendo testados atualmente). O mesmo caminho e raciocínio pode ser transposto para as artes, e no caso, para os quadrinhos. 2. Histórias em quadrinhos: conceituações e arteautoral literário-imagética As histórias em quadrinhos, assim, começaram desde a pintura rupestre, antes da escrita, e culminaram nas artes sacras medievais, difundindo-se e estruturando-se como linguagem graças à prensa de Gutemberg e aos jornais. Depois, impressas em revistas ganharam um novo nicho. Mister se faz lembrar que elas, as HQs, em seu início, realizado nos jornais, eram de humor, porém para o público adulto. Somente depois é que vieram as HQs de temática infantis. No Brasil, uma das revistas que passaram a publicar HQs foi intitulada de “Gibi” (meninote negro) e acabou sendo sinônimo de todas as outras que vieram depois. 51 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G As HQs têm várias outras denominações pelo orbe, como Comics nos EUA, Fumetti (alusão aos balões de fala e pensamento) na Itália, Historieta na Espanha e América latina, Mangá no Japão, Bande Dessinées e Bandas Desenhadas na França e Portugal respectivamente etc. Além disso, outras classificações importantes, mas pouco percebidas, são possíveis às histórias em quadrinhos: • HQs de autor (ou de arte): Asterix, por exemplo, na França e Como qualquer outro veículo de expressão humana, seja a literatura convencional, o cinema, as artes em geral, as histórias em quadrinhos possuem autonomia própria e linguagem específica (nem sempre precisam ser lidas de forma linear, conforme se vê na (fig. 4), carregando em sua forma a autoria, e não só o processo industrial. Torna-se fácil compreender isso, ao se remeter ao cinema: os diretores seriam o equivalente aos escritores literários, devido à sua função peculiar e pessoal, inFigura 4 CRUMB, Robert. Bobobolinski jetando seu estilo e marca em (fotocópia de página da minha coleção particular) suas produções. Da mesma forma que os livros, muitos filmes são produzidos também de forma autoral pulverizada, com personagens como carro-chefe, imprescindindo da importância do nome do diretor (autor), configurando uma diferenciação entre o filme autoral e o industrial, comercial, de autorias pulverizadas. Porém, a diferença entre um filme autoral e outro “industrial”, é o mote que irá atrair platéias específicas: há pessoas que se locomovem aos cinemas apenas para ver determi- 52 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional nadas obras, dependendo do nome dos diretores, por detrás da produção. Como exemplo, filmes de Akira Kurosawa, ou Ridley Scott, ou ainda mesmo Mel Gibson, cuja autoria se impõe como marca em cada uma de suas últimas produções (Paixão de Cristo e Apocalypto, dois de seus recentes filmes, como exemplo. São filmes que, apesar da violência e da produção milionária, possuem uma simbologia do sacrifício, do expurgo “heroístico” religioso – diga-se espiritualista, apresentando-se de forma contundente, como no herói sacrificial do filme “Coração Valente”. Ao que tudo indica, uma sintomática marca de seu diretor Gibson). Na literatura, o mesmo se repete: Jorge Luis Borges, José Saramago ou Clarice Lispector irão servir de leitura para seus fãs, enquanto nas histórias em quadrinhos, semelhante fato se configura, embora tal faceta seja pouco observada pela mídia em geral: os autores de HQs têm público leitor cativo, que buscam obras de Neil Gaiman, Alan Moore, Moebius, Frank Miller, e no Brasil, Lourenço Mutarelli, Edgar Franco (Fig. 5), Laerte e outros, distinguindo seus trabalhos da grande massa de revisFigura 5 FRANCO, Edgar. O redescobrimento. tas de quadrinhos que se mosQuadreca. N. 14. São Paulo: Comarte, 2005, p. 30 tram vendáveis apenas graças a seus personagens (como as de super-heróis e mangás). Além disso, o mercado livreiro mundial (em especial, finalmente, o brasileiro) tem crescido de forma exponencial, abarcando quadrinhos no formato de livros, com distribuição semelhante ao comércio livreiro, o que auxilia numa valorização crítica crescente por parte da mídia especializada, enaltecendo as virtudes da arte quadrinhística, e auxiliando-a na solidificação de um status de autoria e autoridade (como nos livros). 53 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Há outros “diagnósticos” à Literatura da Imagem ou Nona Arte (como também são chamadas as histórias em quadrinhos na Europa), além do quadrinho de autor e quadrinho comercial, como se verifica; • Quadrinho infantil, infanto/juvenil e adulto: Asterix, por exemplo, na França e países de língua francófona servem como leitura às três faixas etárias. Os super-heróis norte-americanos, em geral, são mais endereçados aos jovens adolescentes, enquanto personagens como Magali e Mônica têm como alvo crianças (excetuando-se o recente lançamento “Mônica Jovem” no estilo mangá, produzido pelos Estúdios Maurício de Sousa, para o público adolescente). Também as histórias do personagem Horácio (único que é elaborado de forma autoral por Maurício) se assemelham às de Asterix, já que podem ser lidas e entendidas distintamente tanto por crianças, como jovens e até adultos, assim como as tiras (formatos específicos para jornais principalmente) da Série Fala Menino de autoria de Luis Augusto, servem a adolescentes (Fig. 6). Este item, da diferenciação de faixa etária do público leitor, é necessário salientar, quase nunca é levado em conta na área dos quadrinhos, no Brasil; Figura 6 AUGUSTO, Luis. Inocente, até que se prove o contrário. Col. Menino! Vol. 7. Fig. 1: Salvador: BA: Fala Menino Produções, 2007, p. 71 • Há diferenças entre HQs, Charges e Cartuns e Caricaturas: basicamente, as histórias em quadrinhos são formadas de imagens desenhadas que se seqüencializam, independente de seus temas serem ou não de humor. Já a caricatura tem como base o exagero na expressão gráfica (não somente no desenho, 54 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional mas também nas imitações, nas atuações em filmes, por exemplo, que podem igualmente ser caricaturais). As charges e cartuns são quase sinônimos, embora no Brasil se diferenciem da seguinte maneira: charges são desenhos de humor geralmente políticos e temporais, enquanto os cartuns seriam desenhos engraçados de entendimento universal. Deve ser lembrado que a caricatura é um termo que provém do latim (caricare) e significa “exagero”, aplicando-se a quaisquer desenhos expressivos de humor, estejam nas charges, cartuns ou HQs. No exterior, em geral, o termo caricature é usado para as charges e até cartuns; • Gêneros literário-imagéticos: neste ponto, assim como na literatura convencional existem diversos gêneros narrativos nas histórias em quadrinhos, como humor, ação/aventura (ficcional), terror (Fig. 7), crítico social, romântico, poético, filosófico, erótico, super-herói, documental, underground etc; • Estilos da Arte nos quadrinhos: pode-se perceber na literatura imagética seqüencial uma gama estilística de desenhos e narrativas que se igualam ao existente na arte em geral e no cinema: Art Nouveau, Figura 7 CORTEZ, Jayme. O Retrato do mal. Saga de Surrealismo, Realismo, Noir (ciTerror. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 37 nema), Pop Art, Expressionismo, Grafite; • Estudos de caso de autor: Há muitos autores de HQs espalhados pelos países (como EUA, Europa, Brasil, Líbano). Aqui se desfila uma gama variada da literatura imagética, apenas para se ter como referência o quão agigantado e versátil é seu universo autoral. Por exemplo: Winsor McKay: quadrinhista, 55 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G criador de Little Nemo e um dos primeiros autores de desenho animado com a obra Gertie, o dinossauro; Alan Moore (Inglaterra) e suas HQs poético-científicas, imbricando em conceitos de ecologia e ciência quântica e filosófica; Frank Miller e a opressão psicológica do herói e sua dualidade psíquica: o confronto entre o desejo pessoal e o senso de dever nas imagens fortes de Batman e Demolidor; a série clássicos ilustrados nas HQs com Bill Sienkewicz e seus quadrinhos expressionistasnouveau e as HQs de Neil Gaiman, com Sandman e o universo onírico visual; as HQs jornalísticas ou documentais como as de Joe Sacco com Palestina, ou Maus de Art Spiegelman; bem como artistas da HQs Figura 8 CAZA. Arkhé. Les Humanoides Associés: contemporâneos do Líbano Tournai/Belgique, 1991 e sua visão no meio da guerra, como no caso da autora Lina; Will Eisner e suas Graphic Novels (outro nome para um formato melhor na publicação de quadrinhos, do que simplesmente as revistas tradicionais) de estética pessoal e que exploram a sensibilidade humana dentro das cidades; Passageiros do Vento de Bourgeon mostrando a África na escravidão com uma pesquisa textual e visual apurada; Caza (França) (Fig. 8) e suas HQs nas 4 fases: psicodélica; urbano-crítica-social; cósmica e por fim a atual, tendo várias referências literárias, como Dante Aleghieri e Gibran khalil Gibran, por exemplo; a plasticidade na arte das HQs do personagem Surfista Prateado dos norteamericanos Stan Lee e John Buscema e suas HQs de cunho existencialista; Feif fer e seu quadrinho caricatural crítico e social; Peter Kuper demonstrando na HQs “grafitada” muda O 56 A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional Sistema como se dá a inter-relação no tecido social e a influência que cada ser humano tem na teia da vida; Grant Morrison trazendo em seus roteiros de ficção científica conceitos atuais da ciência; Henfil (Brasil) e seus traços soltos, e sua crítica ainda atual; autores de HQ Brasileiros do gênero terror, como Flávio Colin e Shimamoto e seus traços “nervosos”; Edgar Franco (Brasil) e sua arte bio-cibermística, discutindo os rumos futuros da humanidade e pós-humanidade, Calazans com esquetes filosóficas; Gazy Andraus e a arte fantástico-filosófica, Antônio Amaral e seus quadrinhos dadaístas (Fig. 9) etc; • Fanzines ou revistas alternativas: Há ainda que mencionar tais produções artesanais e seu tremendo potencial criativo e de design e conteúdo Figura 9 AMARAL, Antonio. Hipocampo — A 3 a. vanguardista, promovendo a auocorrência. Teresina: Edição do Autor, s/data, p. 11 to-editoração e confraternização (aproximação) social universal. Na verdade, fanzines (neologismo que aglutinam duas palavras inglesas: fanatic e magazines) se distinguem de revistas alternativas, conforme classificação feita por Magalhães (1993): os primeiros trazem artigos de determinados assuntos, enquanto que os segundos trazem as próprias criações artísticas (HQs, poesias, contos etc), embora já seja habitual considerar ambos como fanzines. Em geral, os fanzines (ou simplesmente zines) são edições em que os autores amadores e/ou profissionais divulgam suas artes (Fig. 10). No caso em questão das HQs, seus autores tentam confrontar e achar brecha no mercado capitalista que de outra forma não lhes daria chance. Muitos são trabalhos ousados e de vanguarda que só enriquecem a criatividade da linguagem dos quadrinhos. No exterior, como na Fran- 57 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G ça, por exemplo, os fanzineiros são sondados pelos editores, e muitos acabam por serem chamados para fazerem trabalhos profissionais: deve-se salientar que as histórias em quadrinhos na França são tidas e editadas como livros, tanto no formato (grande e quase em sua totaliFigura 10 MAGALHÃES, Henrique. Top! Top!. N. 18. João Pessoa: dade com capa dura), Marca de Fantasia, junho de 2005 como na intenção de JOZZ. Zine Royale. N. 3. São Paulo: independente, inverno de 2008 serem lidos, relidos e IDEGO. 3 quilo e meio. N. 1. independente. Maio de 2008 poderem integrar bibliotecas. Como um exemplo de fanzine brasileiro de temática ousada, existiu a revista Mandala (antiga Tyli-Tyli), composta por quadrinhos filosóficos e arte underground, editada pela Marca de Fantasia, editora da Paraíba que tem como idealizador Henrique Magalhães, doutor pela Sorbonne, quadrinhista, fanzineiro e professor universitário. • A literatura imagética dos quadrinhos também alcançou a Internet, tornando-se uma nova linguagem híbrida, pois alia som e movimento, tendo sido rebatizada no Brasil como HQtrônicas (Fig. 11) pelo artista e pesquisador Edgar Franco (2004). Nesse 58 Gazy Andraus Figura 11 FRANCO, Edgar Silveira. HQTrônicas: do suporte de papel à rede Internet. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004 A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional caso, a Internet se configura como um novo campo pleno de estudo e descoberta das HQs, mas que, como qualquer outra mídia, não deve ser pré-julgada sem uma análise pormenorizada, para que não se incorra no mesmo erro que houve aos quadrinhos: saber o alcance que as HQtrônicas podem oferecer e quais as influências decorrentes dessas experiências no cérebro e mente neuroplásticas humanas requer mais pesquisas. Assim, há a possibilidade de se estar descortinando paulatinamente uma nova literatura nesse universo virtualizado, em que coexistirá com as versões impressas. Como se verifica, há uma gama de classificações dentro do universo artístico das histórias em quadrinhos, que somente na atualidade está sendo verificado de forma ampla. A questão da linguagem quadrinhística também ter uma qualidade intrínseca de arte, também deve ser mais apuradamente pesquisada e notificada. Pois a própria área das artes se contaminou com a racionalização em excesso, tornando-se igualmente preconceituosa, excluindo outras manifestações e expressões humanas artísticas, de seu próprio conjunto, perdendo inclusive seu significado essencial, como se verá a seguir. 3. A arte em xeque Figura 12 MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 122 O paradoxo da expressão artística nomeada de História em Quadrinhos é que esta se instaura, não apenas como uma manifestação humana possível, mas sim como uma necessidade premente de fornecer narrativas imagéticas e simbólicas (Fig. 12). Cristina Costa (2002, p. 9) defende a ne- 59 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G cessidade das narrativas (contações de histórias, contos, folhetins, novelas etc) alertando que para “filósofos como JeanPaul Sartre e Merleau-Ponty, psicólogos como Jacques Lacan e antropólogos como Lévi-Strauss, o homem teria, em algum momento da sua história, vivenciado um processo único de ruptura com a natureza.”. Assim, este processo abriria um precedente, em que tal separação desconfortável, tem sido traduzida até hoje em mitos que repetem esta cisão, como uma busca de algo que permanece na estrutura interna humana como uma ruptura, um afastamento de um “paraíso” olvidado: esse desligamento de uma situação primordial na qual estivera imerso foi sentido pelos primeiros hominídeos como uma grande perda, associada contraditoriamente a idéias do nascimento, condenação e desterro. Há milênios o homem relembra em seus ritos esse momento em que, ao deixar o paraíso, rompe com a natureza generosa e abundante, com a reprodução indolor e com a imortalidade. (COSTA, 2002, p. 9) Dessa forma, elaborar narrativas, e assim, expressões artísticas em quadrinhos, se torna condição sine qua non para a existência humana. Tais elaborações e narrativas fornecem combustível para uma busca de retorno a este paraíso que se foi. E os quadrinhos, como possibilidades criativas aliadas à premência do imagético, se tornam veículos pelos quais o ser humano possibilita tais realizações e compartilhamentos, apesar de todo o preconceito que grassou acerca de sua importância social e cultural. Outro motivo, e mais específico, para um não reconhecimento dos quadrinhos como arte, embora não perceptível facilmente, pode estar vinculado a todo o envolvimento que o ser humano teve com o despertar do racionalismo cartesiano e a diminuição do valor dado às imagens desenhadas, como já se mencionou. Mas, além disso, uma elitização da vida burguesa, buscando distanciar-se da plebe, como asseverou Costa (2002), pode ter motivado tal preconceito, num processo iniciado no Renascimento e que se estendeu até a Modernidade, aproximando-se das maneiras da nobreza. Isto 60 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional se deflagrou por novas atitudes, novos modos de se vestir e falar, elitizando-se, assim, e excluindo as outras modalidades da cultura popular. Nesse sentido, Costa (2002) reflete que a Modernidade expôs a burguesia a uma forma de ser e pensar calcada essencialmente na escrita individual e silenciosa, tornando o racionalismo a prática mais aceita e legitimada, que era acessível apenas aos que desfrutavam de uma posição social que permitia a educação letrada, excluindo-se artesãos, camponeses, comerciantes e mulheres, que continuavam numa cultura oral e proletária, vivenciando as crenças, fábulas, lendas e demais narrativas ficcionais. Por tudo isso, é provável que as histórias em quadrinhos, apesar de na atualidade estarem sendo em igual monta editadas em formatos de livros para o mercado livreiro, por terem sido muito próximas da cultura popular em forma e conteúdo - revistas impressas em tiragens grandes e de valor acessível, bem como conteúdos de imagens aliadas a textos coloquiais na maioria das vezes -, configuraram-se num prato cheio para a desculpa “burguesa” de que são materiais de qualidade baixa. Também o estabelecimento de uma arte atrelada apenas ao fazer artístico, ou apenas ao que se institucionalizou chamar de belas-artes, como bem advertiu Shusterman (1998), além de limitar os conteúdos, impediu que outras formas de expressão mais recentes pudessem ser vistas como arte, como no caso das histórias em quadrinhos autorais. Mas o conceito de arte vem do latim: ars, artis que significa maneira de ser ou de agir (HOUAISS), e conforme Rohden (1985), deriva do verbo latino ágere, agir. E Shusterman (1998) alerta que as designações gregas anteriores referiam-se à arte como techné (de onde derivou o termo técnica) e poiésis, significando basicamente criação. Para ele, a definição de arte foi preponderante para a história da humanidade, e afetou o começo da filosofia ocidental, surgida na cultura antiga de Atenas, na Grécia. Dessa forma, um princípio da divisão racional começou a se estabelecer naquela época, desde que a filosofia foi tida como fonte superior de sabedoria, opondo-se assim à arte. A filosofia se ergueu então, com Platão e Sócrates, como uma supremacia 61 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G intelectual dirigida, contrária aos sofistas e retóricos e também aos poetas, já que, segundo Shusterman (1998) eram estes que melhor retransmitiam as tradições sagradas. Dessa forma, Platão condenou a arte como sendo ilusória e afeita ao irrealismo, temendo que ela prejudicasse a ação humana. O filósofo concebia que o artista se ligava ao público numa corrente de “possessão divinizada”, cuja fonte eram as musas. Aristóteles, por sua vez, separou o fazer artístico da ação concreta, apresentando a arte como uma atividade racional de fabricação externa, a poiésis. Tal atividade concebia um objeto por meio de uma habilidade técnica (techné), diferenciando-se da atividade prática (práxis: ação, logo, arte). Porém, a experiência estética e a fruição contemplativa da arte não se limitam ao que se convencionou historicamente chamar de arte. Shusterman adverte que a estética e a fruição são encontradas em várias atividades, tais como nos esportes, nos rituais, na ornamentação doméstica e corporal, na decoração, na mídia popular etc. Os argumentos em defesa de uma arte per si, cuja estética está limitada às convenções artísticas, preza que a experiência estética não seria possível sem a prática artística. Assim, Shusterman crê que o termo “estética” - de raiz grega - foi concebido no século XVIII como parte da diferenciação cultural entre ciência, práxis e arte, originando o conceito moderno de arte apenas atrelado às belas-artes. Porém, segundo o mesmo autor, são proposições falsas, pois, a fruição e a estética preexistem a uma questão prática e também a um conceito: já não havia a estética nos sentimentos humanos antes que se tenha sido criado o termo “estética”? Assim, não se pode limitar e definir a arte apenas atrelada ao conceito de belas-artes: separar a arte dos outros envolvimentos e concepções não ligadas diretamente ao que se convencionou como belas-artes e ainda pretender que os artistas elaborem obras fora de um contexto da realidade intrínseca da vida, foi uma falha do processo fragmentário da ilusão cartesiana (racional), que serviu apenas para isolar a arte da ação social e política do cidadão que faz parte de uma polis (cidade), e que nela influi em todos os sentidos. Alguns estudos e teses atuais põem em cheque esta deliberação dogmática que a arte tem sido referenciada, inclusive pelo meio acadêmico. Arslan (2008) destrincha essa questão, abordando que 62 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional A concepção do estético na contemporaneidade, segundo a ideologia dominante, distante de qualquer pragmatismo, prefere discutir a arte a partir da própria história e não a partir das práticas artísticas, esquecendo a tensão necessária (entre experiência e pensamento) para a reflexão cultural. Na mesma tese de doutorado, Arslan se baseia em vários autores como Bordieu, Canclini, Hernández e mesmo Shusterman, para desmascarar este preconceito que foi crescendo em volta ao fazer artístico, à concepção de arte, e que culminou em segregar a maioria dos cursos de arte (não acadêmicos) e alunos que, desejosos apenas de extravasar e se permitir trabalhar com suas próprias expressões, aprendendo e apreendendo a vivenciar a arte, são escorraçados e marginalizados por uma “arte oficial” que existe compulsoriamente em nossas sociedades. Porém, é interessante que na tese da pesquisadora desfilam momentos teóricos explicitando facetas contra uma relação distanciada com a arte: arte como expressão (ou manifestação dos sentimentos), arte como técnica (ou como fazer) e arte como conhecimento: todas possibilidades no rol artístico, sem que apenas uma das modalidades seja considerada como arte-mor. Além disso, com base na teoria multicultural e híbrida da Cultura Visual, traz em alguns momentos, dentro de seus capítulos na tese referida, as “narrativas visuais”, que são seqüências em fotos narrando algumas considerações abordadas textualmente (e cartesianamente), modificando o aspecto da leitura, fazendo com que o leitor experimente além da narrativa habitual textual e fonético-cartesiana, um pouco da narrativa imagética, pura, em que seja obrigado a utilizar o potencial latente de seu hemisfério direito. Tais tentativas vêm ao encontro de um pensamento mais expandido acerca da arte, como fez Shusterman (1998), em que define que o papel da arte é oferecer uma expressão integrada às dimensões corporais e intelectuais humanas que foram separadas durante a condensação do racionalismo fragmentário (hemisfério esquerdo dominando o direito). Isto faz refletir acerca de uma fruição artística em que a estética seja parte integrante e natural do processo. Ademais, os símbolos usados pela arte afetam a alma humana diretamente, tocando-a e comovendo-a, 63 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G enquanto as expressões racionais não têm participação tão ampla nesse processo (Grassi). Neste ponto, a reintegração da arte também vem ao encontro desta reformulação paradigmática de uma mente sistêmica, já explicada por De Gregori (1999) acerca do cérebro triádico (ou triuno), a uma melhor culturalização e crescimento ético e estético do homem. E pensar as histórias em quadrinhos como arte, é resgatar esta qualidade que foi erroneamente relegada e banida do rol das artes. Considerações A arte, portanto, tem sido colocada como uma forma de expressão separada do fazer científico e social. Além disso, ainda se estabeleceram diferenças entre arte popular e erudita, bem como gêneros que seriam artísticos e outros não. Todas estas divisões remetem a um pensar fragmentário, retomando De Gregori (1999) e seu conceito de cérebro triuno, em que a mente central se divide da racional, que igualmente confronta, ou obscurece, a intuitiva. Em outras palavras, a ciência isolou a arte; e esta, em si mesma, isolou seus conteúdos mantendo alguns e expulsando outros (como fez às histórias em quadrinhos). O que se percebe são atitudes entronizadas por uma mente cindida, fragmentária e que não consegue operar de modo sistêmico, conforme atuava durante o predomínio de um pensamento embasado em leis físicas clássicas ou newtonianas. Apenas com a mudança paradigmática advinda da descoberta da física quântica, em que as estruturas microatômicas se apresentam dualmente (como partícula corpuscular e/ou onda intangível), tem sido possível uma reorientação mental, diminuição de preconceitos e até ruptura com uma maneira retrógrada de se pensar. Além disso, novas teorias cognitivas, embasadas pela neuroplasticidade cerebral e seus hemisférios, propõem que a educação deve ser ampla, unindo à ciência as artes, para um profícuo elaborar neuroplástico e amplo. Assim, nesta esteira de mudanças, a arte dos quadrinhos, com suas variadas facetas de gêneros, afinal, está sendo redirecionada de forma distinta na atualidade e ofertada, em muitos 64 Gazy Andraus A autoria artística das histórias em quadrinhos (HQs) e seu potencial imagético informacional países, para o público adulto, como se verificou, no formato de álbuns, em contrapartida a um arrefecimento de revistas para o leitor infantil. Este quadro pode estar contribuindo para uma mudança decisiva na aceitação deste tipo de leitura adulta panvisual, principalmente por parte de teóricos que anteriormente jamais viram nas histórias em quadrinhos qualquer valor informacional, e por artistas que sequer lembravam-se da arte dos quadrinhos; ou quando o faziam, ignoravam-nos quase que totalmente, como um subproduto minimamente indigno de reflexão. Portanto, tal literatura imagética, longe de ser apenas um adendo ou anexo da literatura escrita, é, ao contrário, a base e essência dessa última, e uma arte autoral própria, com estrutura e linguagem específicas, que auxilia na melhora performática do cérebro neuroplástico, no que concerne ao hemisfério direito, atinente às imagens e artes em geral, num salutar equilíbrio ao esquerdo (racional), operacionalizado pela porção central (pragmática), contribuindo largamente à formação artística cultural e educacional humana, de forma íntegra e sistêmica, conforme se necessita na atualidade. Referências ANDRAUS, Gazy. As histórias em quadrinhos como informação imagética integrada ao ensino universitário. Tese de doutorado. São Paulo: ECA-USP, 2006. ARSLAN, Luciana Mourão. Amadores da Arte: Práticas artísticas em cursos livres de pintura da cidade de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo: Faculdade de Educação, 2008. CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1990. CASEY, Todd. 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E-mail: [email protected] 67 The text begins presenting the arisen of he philosophical-poetic comics in Brazil. Next it shows de different expressions which have been used to define the type, at the same time that it sets the discussion about the construction of its identity. From the contribuition of artists, scholars and researchers it bulids a definition of philosophical-poetic comics and it tries to identify its main features. In conclusion it suggests that philosophical-poetic comics can participate in the art-communication-education dialogue in the buliding process of answers to the problems experienced by the contemporary society. Keywords: philosophical-poetic comics, Revista Mandala, Revista Tyli-Tyli. abstrac t O que são histórias em quadrinhos poéticofilosóficas? Um olhar brasileiro Elydio dos Santos NETO resumo O texto inicia apresentando o surgimento dos quadrinhos poético-filosóficos no Brasil. Em seguida mostra as diferentes expressões que têm sido utilizadas para definir o gênero, ao mesmo tempo em que explicita a discussão em torno da construção de sua identidade. A partir das contribuições de artistas, estudiosos e pesquisadores constrói uma definição de quadrinhos poético-filosóficos e procura identificar suas características principais. Conclui sugerindo que as histórias em quadrinhos poético-filosóficas podem participar, no diálogo arte-comunicação-educação, dos processos de construção de respostas aos problemas vivenciados na sociedade contemporânea. Palavras-chave: Quadrinhos poético-filosóficos, Revista Mandala, Revista Tyli-Tyli. V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Um convite à leitura... Convido o leitor ou leitora deste artigo a fazer uma pequena “transgressão” e iniciar a leitura deste trabalho pela história em quadrinhos, intitulada “Parto”, de autoria de Edgar Franco, publicada no ensaio visual deste número da Visualidades. Ao terminar de ler procure responder a si mesmo/mesma a seguinte pergunta: Esta história que acabo de ler é, de fato, uma história em quadrinhos? Mas onde estão os tão famosos balões? E os diversos e diferentes requadros que existem em uma página? É possível que em uma HQ possam existir páginas com um único requadro que se identifica com a própria página? E quanto à temática? Há público para uma temática de reflexão tão séria, envolvendo aspectos filosóficos e éticos da existência humana, numa linguagem que é considerada quase sempre como de entretenimento? Não é uma HQ muito curta para o tamanho do problema que se propõe a refletir? Assim como Edgar Franco outros artistas têm criado HQs com estas mesmas características e tais histórias vêm sendo definidas de forma diferente pelos vários autores que sobre ela se debruçam: HQs poéticas, HQs filosóficas, HQs de fantasia filosófica ou HQs poético-filosóficas. O objetivo deste trabalho é examinar a origem deste gênero de HQs no Brasil, definir suas características principais e apontar para as implicações de sua produção nos limites das artes, da comunicação e da educação. Optei, mesmo correndo certos riscos, em transcrever citações, ainda que longas, sempre que julguei importante registrar um depoimento ou então fragmentos de artigos que foram publicados em revistas de histórias em quadrinhos e outros materiais bibliográficos que não são de fácil acesso. Compreendo que esta é uma maneira de recolher de forma mais sistematizada um rico material que se encontra atualmente disperso. 1. Quando e com quem surgiram os quadrinhos poético-filosóficos no Brasil 70 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. Desde o final da década de 1980 um grupo de artistas no Brasil vem elaborando uma produção no campo dos quadrinhos chamada por alguns de “quadrinhos poéticos”, por outros de “quadrinhos poético-filosóficos” e, por outros ainda de “fantasia filosófica” ou “quadrinhos fantástico-filosóficos”. São representantes conhecidos e significativos deste grupo de artistas: Flávio Calazans, Edgar Franco, Gazy Andraus, Henry e Maria Jaepelt, Wally Viana, Joacy Jamys, Luciano Irrthum, Eduardo Manzano e Antonio Amaral. Figura1 - Capa do Barata 8 F i g u r a 2 - C a p a Ty l i - Ty l i 1 De acordo com Franco (1997) Calazans pode ser considerado como um dos precursores no Brasil deste quadrinho de fundo filosófico. Foi por muitos anos editor do fanzine Barata e está na origem de produções editoriais que abriram espaço para os quadrinhos filosóficos. O fanzine Barata (figura 1) e a revista Tyli-Tyli (figura 2) são dois exemplos expressivos. No Barata possibilitou que autores como Gazy Andraus (figura 3) 71 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G F i g u ra 3 - H o m e n s A r m P a z - G a z y A n d ra u s Figura 4 - Anomalia - Edgar Franco e Edgar Franco (figura 4) pudessem não apenas mostrar sua produção, mas também se conhecer e construir novos caminhos no campo dos fanzines e dos quadrinhos. Em depoimento a mim concedido, Gazy Andraus revela que conheceu Flávio Calazans entre o final de 1986 e início de 1987, e que este encontro foi importante para sua constituição como desenhista de tendência poético-filosófica. Nas palavras do próprio Andraus (2007a, p. 2): Desenhei bastante também em Goiânia, durante um ano e meio, período em que fiquei lá, mas quase não fazia histórias em quadrinhos, tendo voltado depois ao Estado de São Paulo, reiniciando o curso de Artes na FAAP. Pouco antes disso, no final de 1986 para o início de 1987, retomei os quadrinhos. Aconteceu dessa forma: eu estava desestimulado com o curso (em Goiânia) porque havia muita greve, e também estava meio sem vontade de fazer HQs 72 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. com super-heróis. Então, num dos retornos a São Vicente (cidade onde resido), conheci o Flávio Calazans num sebo de Santos. Ele se apresentou e me convidou para participar do fanzine “Barata” que editava em cooperativa com seus amigos do curso de publicidade da UNISANTOS. As HQs do Barata eram bem diferentes do mainstream. Foi com esse estímulo que reiniciei a fazer histórias em quadrinhos, e logo na terceira HQ que fiz, meu estilo que misturava poesia e espiritualidade numa estética diferente, já principiou a aparecer. Ao lado da história de sua produção pessoal, que tomou novos rumos e ampliou-se a partir de suas publicações no Barata em 1987, Gazy Andraus (2008c), em seu conjunto de textos sobre sua memória de vida sob o enfoque visual, relembra como foi seu encontro com Edgar Franco por meio do mesmo fanzine editado por Calazans: Em 1992, logo após o término de minha faculdade, minha mãe falecera de ataque cardíaco, corroborado pelo exagero do fumo de cigarros. Pouco depois desse período, um fato curioso se deu: encontrei uma HQ no número 17 do “Barata”, muito similar a meu estilo. Ela se chamava “Progéria Interior” e era assinada por alguém que eu não conhecia: Edgar Franco. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com o endereço do autor: ele indicava a cidade de Ituiutaba, em Minas Gerais, a mesma que eu nasci. Quando escrevi para ele, descobri que morava em Brasília cursando arquitetura na UNB, mas nas férias sempre voltava à sua cidade natal, coincidentemente, a minha. Pois marcamos de nos conhecer numa das férias, o que acabou por angariar uma sólida amizade, em que nos tratamos até como “irmãos”. Edgar, apesar de ser 5 anos mais novo que eu, e nunca ter visto meu trabalho antes, elaborava HQs similares a mim, de conteúdo complexo, filosófico, mas de número de páginas reduzido. Nosso estilo acabou, depois, sendo reconhecido por Fantasia Filosófica. Isto se deu da seguinte forma: resolvemos criar um fanzine único em dupla, chamado “Irmãos Siameses”. Fizemos o lançamento, inclusive, no mês de junho de 1994 na Gibiteca de Santos. Tiramos umas 50 cópias xerocadas do zine, e depois dividimos o que restou, após o lançamento. Ele continha várias histórias nossas: a primeira era dele, e a última minha, sendo que as do miolo se alternavam em roteiros meus com desenhos dele e vice-versa. A coincidência é que tanto 73 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G a primeira como a última HQs tinham um enfoque temático e estrutural muito similar: é como se cada um de nós, sem termos conhecimento prévio, tivéssemos realizado uma HQ igual, cada qual com seu estilo! Isto me chamou tanto a atenção que lhe disse que ambas as histórias tinham que iniciar e finalizar o fanzine. Depois, mandamos uma cópia para o evento realizado anualmente em Ourense, na Espanha galega. Lá, seu organizador, Henrique Torreiro nomeou nosso trabalho de “fantasia filosófica autêntica”, de onde acabamos por utilizar tal nomenclatura como o estilo por nós realizado: roteiros curtos, condensados como hai-kais, e arte vanguardista1. Calazans é, pois, um nome importante para a constituição do gênero poético-filosófico no Brasil, seja por seu trabalho como editor no fanzine Barata ou pelas HQs filosóficas que ele próprio escreveu e desenhou (figura 5). Henrique Magalhães (2004, p. 46-49) confirma esta afirmação em texto de sua autoria sobre os vários grupos que publicavam fanzines entre as décadas de 1980 e 1990: Figura 5 - Calazans Desses grupos, um que muito se sobressaiu foi a Cooperativa Barata, capitaneada por Flávio Calazans, editor da revista Barata. Com coerência e sempre reunindo um bom time de participantes, a Barata – que, lembramos está mais para uma revista independente que para um fanzine – manteve-se firme em sua proposta durante quase todo o percurso. Apenas no final da década de 1990 os membros da Cooperativa Barata deram sinal de saturação e perderam um pouco do prumo. (...) Enfim, o grupo encerrou suas atividades com o número 26 da revista Barata, de outubro de 2000, após 21 anos de produção. Apesar desse desfecho melancólico, a experiência da Cooperativa Barata pode servir de exemplo a outros grupos que desejem fazer um trabalho dentro do espírito coletivo e bem mais estrutura74 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. do. (...) Com espírito crítico e irrequieto, por vezes polêmico, Calazans notabilizou-se, também, pela edição de álbuns. No início dos anos 1990, lançou com Paula Prata, Absurdos: quadrinhos sob hipnose, uma obra que marcaria seu processo espontâneo de criação. Calazans radicalizou na concepção da obra, realizando-a sob hipnose. (...) Outro trabalho não menos significativo foi o álbum Guerra das Idéias. Nesta obra já clássica da produção independente brasileira, temos um verdadeiro tratado libertário que conta de forma sintética e provocadora a história das lutas da humanidade, confrontando as idéias revolucionárias aos sistemas estabelecidos. Ainda, dentro da produção calazanista – como ele mesmo denominou sua obra –, temos A Hora da Horta, um libreto que reconta os primórdios da história do Brasil, por ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento. As HQs poético-filosóficas, por seu caráter autoral e não-comercial, encontraram seu espaço mais adequado de publicação nos fanzines, editados e publicados pelos próprios autores, mas chegaram a ter também revistas independentes. É o caso da revista Tyli-Tyli 2 que posFigura 6 - Mandala teriormente, a partir do número 9, passou a chamar-se Mandala (figura 6). Ambas foram publicadas pela Editora Marca de Fantasia, tendo como editor Henrique Magalhães 3 (2004, p. 57-58), que explica porque aconteceu a mudança da revista: A revista Tyli-Tyli congregou toda uma nova geração de quadrinhistas, que inspirados nos “quadrinhos poéticos” passaram a produzir suas histórias de forma muito pessoal e experimentando uma estética diferenciada dos quadrinhos convencionais. Com o afluxo de novos autores e diversidade de expressão, a revista deslocou-se de sua inspiração original vinculada à obra de Calazans e mudou de nome para Mandala, tornando-se mais abrangente. Esta revista trouxe uma auto-reflexão sobre o conceito de “quadrinhos poéticos”, procurando definir suas diretrizes. 75 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G O caráter não popular dos trabalhos poético-filosóficos, a exigir também um leitor diferenciado, criou dificuldades para a continuidade da revista Mandala, como explica Henrique Magalhães em entrevista a mim concedida (2007): Com o tempo os quadrinhos poéticos passaram a ser muito herméticos, a representar uma viagem muito interiorizada dos autores. Ao mesmo tempo, vinham embasados cada vez mais numa bibliografia centrada nas novas tecnologias. Alguns quadrinhos, para serem entendidos, tinham que trazer um texto explicativo sobre cada referência. Isto complicou demais e até tirou a força comunicativa da linguagem dos quadrinhos, que é contar uma história em seqüência. Os leitores se afastaram ou perderam interesse pelo gênero, restando um círculo de alguns autoresleitores. Apesar de minha insistência em continuar produzindo a revista, a procura foi diminuindo na medida em que aumentava o número de autores-colaboradores, o que me levou a crer que a publicação não estava saindo de seu restrito círculo. A última edição, número 13, não teve compradores, o que fez perder o sentido a continuidade de sua produção. Outro fator foi a falta de periodicidade. Como a Mandala era uma produção independente, voltada para o meio dos leitores de fanzines, a distância de uma edição a outra fez com que os leitores perdesse o interesse pela publicação. Creio que isto ocorre com todas as publicações seriadas no meio independente. Preferi partir para a edição de livros e álbuns, que são trabalhos fechados em uma edição e não dependem de periodicidade. Além das revistas Tyli-Tyli e Mandala a Editora Marca de Fantasia publicou também álbuns contendo especialmente trabalhos poéticos ou filosóficos: Guerra das Idéias, de Flávio Calazans, foi publicado em 1997 e em 2001; Ternário M.E.N., de Gazy Andraus, em 2001; Agartha, de Edgar Franco, em 2002; Guerra dos Golfinhos, de Calazans, em 2002; Transessência: transcendendo a essência, de Edgar Franco, em 2003 e Elegia, também de Edgar Franco, em 2005. Acompanha Elegia um CD com a leitura musical da HQ criada por Edgar Franco, sendo as composições de autoria de Grim e Naberius, músicos da Banda de Black Metal Sinfônico “Eternal Sacrifice”. É importante lembrar que além destes artistas acima desta76 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. cados há outros, menos conhecidos talvez, mas também com produção no gênero e que tiveram espaço para apresentação de seus trabalhos junto às publicações da Editora Marca de Fantasia. Entre outros, podem ser citados Érika Saheki, Ivânia Cristina, Jefferson Camargo, Al Greco, Rosemário, Michel, Nuno Nisa Reis, Rafael Lopes, Manoel Macedo, Norival Bottos Júnior, Lavoisier, Caique, Whisner, Soter Bentes, André Marron Gavazza, Flávio Rafael, Fabio Mor, Murilo Rufião e André Marron. A Comix Book Shop publicou, em 1996, a Brasilian Heavy Metal e nela tiveram espaço para publicação alguns autores de quadrinhos poético-filosóficos: Antônio Amaral, Flávio Calazans, Gazy Andraus, Edgar Franco e Luciano Irrthum. Wellington Srbek publicou em 2001, com a Lei de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte, o álbum Quantum, com texto de sua autoria e desenhos de Fernando Cypriano, Leonardo Muniz e Luciano Irrthum. O trabalho, de modo especial pela temática reflexiva e filosófica, e também pela narrativa curta e criativa (embora mais longa do que aquilo que habitualmente se vê no gênero), pode ser considerado como sendo do gênero poético-filosófico. A Opera Graphica Editora publicou no ano de 2003, com texto de Edgar Franco e arte de Mozart Couto, o álbum BioCyberDrama (figura 7), na coleção Opera Brasil, no qual Franco, como roteiFigura 7 - biocyberdrama rista, apresenta com maiores detalhes, inclusive em texto introdutório à HQ, seu universo ficcional da aurora pós-humana. A mesma editora, em parceria com Edições Pulsar, publicou também Hipocampo: 3a. Ocorrência (s/d), de Francisco Amaral (figura 8). Também Edgard Guimarães4 deu uma contribuição 77 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G importante para a divulgação do novo gênero no campo dos quadrinhos, de acordo com o relato de Andraus5 , que publicou com ele o seu importante trabalho Homo Eternus (1993a, b,c,d): Porém, antes mesmo de conhecer o trabalho de quadrinhistas que faziam HQs similares, como Edgar Franco, eu fui motivado por Calazans a produzir uma auto-edição, para ser co-editada e publicada pelo Edgard Guimarães, (não confundir com Edgar Franco, e nem com Henrique Magalhães) em seu, então IQI – Informativo de Quadrinhos Independentes.(...) Este “Homo Eternus”, como uma quadrilogia, tinha também uma capa especial para a edição encadernada, caso o leitor preferisse depois, em lugar de adquirir os volumes em separado. O IQI trazia divulgado um volume a cada bimestre e o encadernado após a divulgação dos 4 volumes. Para o prefácio convidei Guimarães e CaFigura 8 - Hipocampo lazans, e fechando cada volume, inseri dois textos meus que sintetizavam os objetivos do “Homo Eternus”. A receptividade foi boa, pois aos poucos os leitores amantes de HQs e fanzineiros foram começando a reconhecer meu trabalho e estilo, que mescla a linguagem das HQs à uma poeticidade haikaizada e condensada. Cada vez mais era convidado a participar com trabalhos meus em outros zines, como “Barata”, “Bifa”, “Ideário”, “Phobus”, “Tchê” etc. Hoje a SM Editora, cujo editor é José Salles, que tem sua sede em Jaú (SP), vem abrindo espaço para os quadrinhos poético-filosóficos. Edgar Franco já publicou dois números da revista Arlectos e Pós-Humanos por esta editora nos anos de 2006 e 2007. 78 O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. Distante do grupo de autores que vem publicando os quadrinhos poético-filosóficos, mas muito próximo da proposta poética e filosófica do grupo, Marcelo Campos6 publicou no ano de 2007, pela Editora Casa 21 do Rio de Janeiro, o álbum de tiras Talvez Isso... (figura 9), que sem explicitar a intencionalidade de uma reflexão filosófica a permite abundantemente ao longo das 70 tiras nas quais colocou a criatividade e a competência técnica de um desenhista experiente. Gazy Andraus concorda que este trabalho de Campos pode ser considerado do gênero poético-filosófico (Andraus, 2008). As HQs poético-filosóficas ainda são pouco conhecidas no Brasil, embora em 2007, a revista Língua Portuguesa, de São Pau- Figura 9 - Talvez isso lo, em trabalho assinado por seu editor Luiz Costa Pereira Junior, tenha dedicado uma extensa matéria, intitulada “Poesia em quadrinhos”, ao estudo deste gênero fazendo referências ao trabalho de Henrique Magalhães como editor, e aos trabalhos dos artistas Edgar Franco, Antonio Amaral, Flávio Calazans e Gazy Andraus. 2. As diferentes formas de expressão para definir o gênero Entre os artistas, estudiosos e pesquisadores do gênero poético-filosófico não há uma unanimidade quanto à expressão mais adequada para a caracterização do mesmo. Em fevereiro de 1995, no número 01 da revista Tyli-Tyli, seu editor, Henri79 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G que Magalhães (1995, p. 2), no editorial utiliza as expressões quadrinhos esotéricos, filosóficos ou poéticos para referir-se ao gênero que aquela revista começava a publicar: Os quadrinhos brasileiros são ricos em seu universo criativo. Dos quadrinhos infantis, tão difundidos, ao terror, do humor debochado aos super-heróis. Desta forma, tem surgido já há alguns anos um gênero de quadrinhos que não encontra espaço para publicação que nos fanzines e revistas alternativas ou independentes: são os quadrinhos esotéricos, ou filosóficos, ou poéticos, tão bem representados pelo trabalho de Flávio Calazans, Gazy Andraus, Edgar Franco, Joacy Jamys e tantos outros. Com a revista Tyli-Tyli (dedicada à personagem homônima de Calazans) estamos criando um espaço onde todos estes novos autores poderão dar vazão a seus quadrinhos reflexivos. No artigo da revista Mandala, nº 13, de Junho de 2001, Magalhães utiliza a expressão “Quadrinhos Poéticos” para referir-se ao gênero em questão: Os quadrinhos ditos poéticos têm como princípio a liberdade de expressão incondicional visto que fluem da subjetividade mais intrínseca do autor. Mais que qualquer outro gênero de quadrinhos, os poéticos, procuram produzir as reflexões, os questionamentos, as inquietações do artista de uma forma muito pessoal e diferenciada do senso comum. Isto é o que torna o poeta por vezes um visionário, um sujeito que enxerga outras nuanças da realidade. (2001a, p. 19). Em entrevista a mim concedida (2007) explicou porque optou por utilizar esta expressão: Elydio: Por que você prefere a expressão quadrinhos poéticos e não quadrinhos poético-filosóficos? Henrique Magalhães: No início, quando ainda não tínhamos uma definição para o gênero, eu costumava chamá-los de quadrinhos poético-filosóficos, porque no geral eles tratavam de questões metafísicas, introspectivas e oníricas. Mas sempre achei o termo meio vago e muito abrangente. A filosofia requer um pensamento mais estruturado, quando a maioria dos quadrinhos me parecia muito subjetivos, como expressão de uma visão mais para o devaneio que para o rigor filosófico. Desse modo, dada a liberdade expressiva textual e gráfica dos autores, considerei que eles estavam 80 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. mais próximos da linguagem poética que filosófica. Considerá-los apenas quadrinhos poéticos não diminui sua importância, apenas lhes dão uma dimensão mais impressionista, mais pessoal. Esta é também a expressão utilizada por Edgard Guimarães em seu artigo “Reflexões sobre Quadrinhos Poéticos” (2001, p. 17): Diversas considerações devem ser feitas inicialmente sobre os “quadrinhos poéticos”, ou seja, sobre essa “mistura” de histórias em quadrinhos e poesia. Henrique Torreiro, organizador da Xornadas de Banda Deseñada de Ourense (Espanha) e da Expofanzines, catálogo de 1997, p. 15, utiliza a expressão “fantasia filosófica” para referir-se ao fanzine Irmãos Siameses, de Edgar Franco e Gazy Andraus. Este mesmo catálogo, quando se refere ao trabalho Homo Eternus, de Gazy Andraus, adjetiva-o de cómics filosóficos. Na mesma direção de Torreiro, Gazy Andraus prefere utilizar a expressão quadrinhos fantástico-filosóficos como explicita em entrevista a mim concedida no ano de 2007: ELYDIO: São utilizadas várias terminologias aparentemente sinônimas: quadrinhos poéticos (Henrique Magalhães), quadrinhos poético-filosóficos (Edgar Franco), quadrinhos de fantasia filosófica (Catálogo da Expo Fanzines de Ourense, Espanha). Qual você considera mais adequada ao tipo de quadrinhos que você produz? GAZY: Talvez HQs Fantástico-filosóficas, mesmo. Acho que revela a fantasia, mas ao mesmo tempo a seriedade, a busca da sabedoria, e a espiritualidade inerente. E abrange mais do que se fosse HQ espiritualista, só por causa dos preconceitos concernentes às questões de ordens espirituais. A abordagem do termo “filosofia” evita tal preconceito, e pode atingir mais pessoas. As evidências das publicações mostram que foi Edgar Franco, em seu artigo no livro “As histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e Prática”, de 1997, organizado por Flávio Calazans, que utilizou pela primeira vez a expressão poético-filosófico ao denominar uma das linhas do que chamava de quadrinhos subterrâneos no Brasil como “linha poético-filosófica” (Franco, 1997, p. 54). Em correspondência eletrônica trocada comigo, 81 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G quando indagado sobre a criação do termo poético-filosófico, Franco (2008) respondeu o seguinte: Na verdade o termo quadrinhos “Poético-filosóficos” foi criado por mim para o artigo que saiu no livro “As histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e Prática”, de 1997 - defini a linha “poéticofilosófica” lá. Detalhe importante é que o artigo foi escrito em 1995 para um número do zine DROWNED que não foi lançado. Então eu reformulei para o formato que está no livro e apresentei no Intercom de 1996 em Londrina, Calazans reuniu os artigos apresentados no GT de quadrinhos de 96 no livro que foi lançado em 1997. Franco utiliza a mesma expressão em artigo intitulado “História em Quadrinhos Redondos”, publicado na revista Mandala, número 13, de Junho de 2001, quando apresenta sua visão sobre o que sejam os quadrinhos poético-filosóficos: A primeira maneira encontrada para tentar classificar esses trabalhos foi chamá-los de poéticos, pois foi feito um paralelo com a literatura, ou seja, os quadrinhos tradicionais estariam para a prosa assim como os quadrinhos ‘poéticos’ estariam para a poesia, como todo rótulo, esse certamente foi insuficiente para classificar a abundância e diversidade dessas manifestações que não passariam despercebidas até ao mais desatento leitor que acompanhe o cenário de quadrinhos alternativos brasileiros. (...) Todos estes quadrinhistas possuem suas singularidades, mas algumas das características de seus trabalhos podem reuní-los num grupo que como disse anteriormente convencionou-se chamar de quadrinhistas poético-filosóficos, anexando a palavra filosófica ao rótulo por verificar que a maioria deles também apresentava trabalhos com a pretensão filosófica de levar o leitor a refletir sobre alguma questão existencial, citando inclusive filósofos, além de poetas. (p. 14). Como os textos anteriores sugerem, Edgar Franco prefere a expressão quadrinhos poético-filosóficos e na mesma correspondência acima citada (2008) explica porque a considera mais adequada que os termos fantasia filosófica ou quadrinhos poéticos: Sobre “fantasia filosófica” É um termo que gosto muito também, mas ele é menos abrangen- 82 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. te ao meu ver. O meu trabalho e o de Gazy se encaixam perfeitamente nessa terminologia, mas algumas HQs de Calazans, Joacy e mesmo de Amaral não podem ser consideradas HQs de “fantasia” então acredito que HQs poético-filosóficas é mais abrangente. Em uma classificação eu diria que a “fantasia filosófica” é um dos sub-gêneros das HQs “poético-filosóficas”. Sobre a expressão “quadrinhos poéticos” É mais abrangente ainda, no entanto ampla demais. O aspecto “filosófico”, questionador fica de fora, a principal característica das HQs poético-filosóficas é sua pretensão filosófica, levar o leitor a refletir sobre temas específicos, não são simples exercícios líricos de poesia quadrinhizada (é claro que existem casos assim, mas...). E ainda, no mesmo texto (2008), explicita sua compreensão do termo poético: Sobre o termo “poética” Vejo a poética mais no aspecto aristotélico, de “devir” (diretamente conectada ao aspecto filosófico) - de possibilidades de vir a ser, mas no sentido de poíesis também é interessante: o ato criativo!!!! Então, para mim, a somatória de devir e criação = poética. Uso em minha tese de doutorado também o termo poética (para definir as poéticas prospectivas das ciberartes) e lá eu defendo o meu ponto de vista assim (trecho da tese página 110 - capítulo III): Aristóteles, em sua Poética, ao definir o ofício do poeta, enfatiza o devir que envolve a atividade poética, destacando a universalidade da arte e seu valor filosófico superior ao dos relatos históricos. Sua visão da função poética-artística nos remete ao caráter antecipatório da FC explicado pelo “deslocamento conceitual” proposto por P.K. Dick e relatado no capítulo II: Não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer, o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (...) diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular (ARISTÓTELES, 1987, p. 209). No contexto de minha definição das poéticas ciberartísticas prospectivas, utilizo o termo “poética” para referir-me aos métodos 83 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G operacionais utilizados pelos ciberartistas, que envolvem sempre o ferramental das novas tecnologias, sobretudo: telemática, robótica, biogenética e nanoengenharia; mas também no sentido aristotélico de poética, segundo o qual a poesia é universal e envolve o devir, aquilo que pode “vir a ser”. Pessoalmente prefiro a denominação quadrinhos poético-filosóficos e considero a fundamentação de Edgar Franco, no que diz respeito à poética e à filosofia, bastante pertinente, motivo pelo qual é o termo por mim escolhido para referir-me ao gênero que aqui está sendo estudado. Cabe, no entanto, uma melhor explicitação do que entendo por filosofia ou reflexão filosófica. Compreendo a reflexão filosófica como uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas da realidade que ameaçam nossa existência (SAVIANI, 1983), mas que não precisa, entretanto, ser construída necessariamente segundo o viés acadêmico. Há os que acreditam que somente é possível fazer filosofia na academia. Sem dúvida a academia é um espaço favorável à elaboração filosófica, mas não o único e nem necessariamente o melhor. Claro está que quem se dispõe a fazer filosofia na academia terá que estar atento aos padrões deste contexto que, em alguns casos e infelizmente, chegam a ser dificultadores para a reflexão filosófica. No entanto, é necessário lembrar que é possível construir a reflexão filosófica fora de tal contexto. De acordo com Palácios (1997, p. 33): Há outras condições para fazermos filosofia: ter espírito crítico, imaginação e poder argumentativo. Espírito crítico para não aceitar de mãos beijadas tudo o que nos é dito ou tudo o que lemos; imaginação para estar em condições de achar soluções saídas do labirinto em que nos encontramos e poder argumentativo para fundamentar racionalmente nossas intuições. Em outras palavras, nos comportarmos na filosofia como o fazemos como seres normais: avaliar o que escutamos ou vemos ou lemos, pensar se concordamos, avaliar, refletir e decidir as coisas por nós mesmos, como pessoas adultas que não precisam ser conduzidas pelas mãos de outros adultos. Podemos, portanto, estar em condições de filosofar mesmo antes de saber que o fazemos. Palácios (1997, p. 63) sugere ainda que este exercício de 84 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. reflexão exige a expressão daquilo que está dentro de nós: ‘Procurei a mim mesmo’, diz Heráclito. Pois façamos isto. Procuremos a nós mesmos, escrevamos o que está dentro de nós, o que nós mesmos pensamos. (...) Temos as condições intelectuais para isso, não temos? Usemo-las e ousemos. Que diferente ir a um congresso de filosofia no qual só se falasse o que cada um pensa, que expusesse o fruto das próprias pesquisas, do próprio trabalho, sem comentários, sem enésimas leituras; um congresso em que cada um tivesse a coragem de se expor e de dizer quem está certo e quem está errado e porque; dizer, também, porque o próprio expositor está certo. Assim o exercício da reflexão filosófica, exercido com radicalidade, dentro ou fora da academia, pode contribuir com a formação de seres humanos com capacidade de autonomia e de autoria. Se pensarmos que estamos num país que precisa que seus cidadãos se assumam como autores de sua própria história, então teremos clareza da urgência da tarefa filosófica, como na perspectiva aqui sugerida. Penso que as histórias em quadrinhos poético-filosóficas podem provocar este tipo mais aberto de reflexão filosófica e desta forma contribuir com o processo de constituição do modo de ser humano e brasileiro diante das exigências problemáticas do mundo contemporâneo. 3. O que são histórias em quadrinhos poéticofilosóficas? A seguir apresento uma tentativa de definição de alguns aspectos que definam as histórias em quadrinhos poético-filosóficas considerando, de modo especial, as visões de alguns artistas, estudiosos e pesquisadores das mesmas. É importante frisar que o empenho por definir apropriadamente o gênero manifestou-se, pela primeira vez, nas páginas da revista Mandala em pequenos estudos coordenados por Henrique Magalhães a partir de uma correspondência enviada por João Antônio Buhrer D’Almeida, em 04 de junho de 1998, conforme relata o próprio editor (Magalhães, 2000), e na qual João Antônio fala85 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G va da necessidade de uma discussão mais ampla sobre o tema. A seguir recolho, entre outros, algumas das contribuições que foram publicadas nas páginas daquela revista. 3.1. O que dizem artistas, estudiosos e pesquisadores? Edgar Franco, artista e pesquisador, assim define o que chamou, em 1997, de linha poético-filosófica dos quadrinhos subterrâneos no Brasil: Quadrinhistas que passam mensagens filosóficas e questionamentos existenciais em seus trabalhos, muitas vezes lançam mão de textos poéticos de sua autoria ou de outrem como roteiro para suas HQs. Nem sempre têm compromisso com a linearidade da narrativa, além disso, são caracterizados por muito experimentalismo no enquadramento e no traço. (1997, p. 54) Para Franco, portanto, dois aspectos basicamente definem as histórias em quadrinhos poético-filosóficas: 1. O fato de apresentarem uma intencionalidade filosófica ou reflexiva e também poética; 2. O trabalho diferenciado com a linguagem quadrinhística, expresso na quebra da linearidade narrativa e no experimentalismo do traço e do enquadramento. Gazy Andraus, igualmente artista e pesquisador, em seu artigo “HQs fantástico-filosóficas: gênero único no Brasil”, também identifica as duas características explicitadas por Edgar Franco e acrescenta uma terceira. Para ele (2008a, p.6 – 7) as histórias em quadrinhos poético-filosóficas tendem a ser curtas, isto é, apresentam poucas páginas e, às vezes, uma única página, o que pede uma leitura diferenciada do apreciador, ou seja, uma leitura e uma interpretação menos convencional, menos cartesiana: O que os autores de HQs poéticas, ou então, fantástico-filosóficas fazem, é ir direto à essência de tais buscas humanas, “filtrandoas”, ou canalizando-as diretamente em uma arte “condensada”, sintetizada, similar à forma dos hai-kais, que torna muitas vezes difícil o entendimento racionalizado instantâneo do leitor. Um Hai-Kai tem uma estrutura própria, em que a poesia, métrica, 86 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. rítmica a torna direta, sem que aparente o ser: faz com que a mente do leitor se torne focada, pense mais rapidamente, e conclua de uma forma muitas vezes “inconclusa”. (...) Reafirmo, porém, exclusivamente, que a dita “Fantasia-filosófica” tem as características de um koan e/ou hai-kai: uma história de poucas páginas, de mensagem condensada, em que aparentemente não há uma narrativa que contemple começo, meio e fim tradicionais, em que não aconteçam situações dramáticas comuns e sim, mensagens oriundas de um autor cujo pensar se torna “condensado” e atinge da mesma forma o leitor. Geralmente são HQs que precisam de uma preparação melhor dos leitores, pois que estão acostumados com as narrativas tradicionais com muitos quadrinhos e páginas, que têm uma linearidade mais clara e abrangente...o cérebro em sua atividade racional se compraz em tais narrativas já que acostumamo-nos a usar cotidianamente o processamento da razão muito mais do que o da intuição criativa. E sente dificuldade em “entender” outros tipos de narrativas, de “lógicas”. Em entrevista a mim concedida Gazy Andraus (2007) não nega, mas relativiza a influência de autores europeus – autores de HQs fantásticas como Caza, Moebius e Druillet – no processo de criação das HQs poético-filosóficas brasileiras, e aponta o caráter “condensado” dos quadrinhos brasileiros como uma diferença muito importante em relação aos quadrinhos europeus: Elydio: Você concorda com a afirmação de que as HQss poéticofilosóficas brasileiras sofreram forte influência da fantasia poética européia, de modo especial por meio dos trabalhos de Caza, Druillet e Moebius? Gazy: Sim, mas não consciente, e nem total. Já fazíamos assim aqui. Uma de minhas primeiras HQs foi “Vil Existência”, que trazia um estilo artístico similar aos das HQs com um viés narrativo europeu. Isso sem que eu conhecesse o quadrinho europeu direito. (...) Porém, há uma diferença básica das HQs de lá e as daqui: aqui fazemos HQs curtas, “nervosas” e mais condensadas, e lá, não. Aqui, isso acontece, acredito eu, devido às idiossincrasias de nosso povo, afeito à influência mais direta e espiritual do que noutros lugares. (...) Mas acho que aqui elas são mais incisivas e mais diretas ao hemisfério direito do cérebro, do que as de lá. Na França, as HQs non-sense de Moebius têm essa conotação, e algumas antigas de Caza também. Atualmente, não sei dizer, mas parece que se rende- 87 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G ram todos ao mercado, fazendo HQs longas, de epopéias, como os norte-americanos. A obra de Caza se diluiu e perdeu muito a força atualmente. Eu vejo as HQs fantástico-filosóficas (assim alcunhadas por Henrique Torreiro) como a contra-parte dos haikais, na forma de HQs: mensagens condensadas, visuais-literárias, para quebrar a mente racional, tal como os koans zen-budistas são utilizados pelos mestres para trazerem a mente cósmica a seus discípulos. Henrique Magalhães – pesquisador, editor e desenhista – assim expressa sua maneira de compreender as HQs poético-filosóficas, apontando também para as características da reflexão e do rompimento com a formalidade dos quadrinhos comerciais como importantes para a identificação do gênero: Quando comecei a observar mais atentamente os quadrinhos poéticos vi-os pelo prisma da contestação política, por meio do trabalho de tendência anarquista de Flávio Calazans. Gazy Andraus e Edgar Franco já me tinham chamado a atenção pela forte expressão visual inconfundível e incomparável nas HQs brasileiras. Além dos três autores chaves citados, acrescentaria Wally Viana e Henry e Maria Jaepelt (...). O ponto comum desses autores é a produção de quadrinhos de caráter muito pessoal, que poderemos considerar como sendo poéticos e filosóficos, pois aludem às questões mais interiorizadas de cada um. Outro elemento marcante é o rompimento com a formalidade dos quadrinhos comerciais, com a freqüente eliminação do quadro como limite espacial e pelo fluxo atípico de narrativa. Como exemplo, cito os quadrinhos de Calazans que inúmeras vezes formam páginas sem hierarquização do texto, podendo ser lidas sob os mais diversos ângulos. (...) É certo que os quadrinhos podem prescindir do texto, mas não o contrário: não se concebe uma história em quadrinhos sem imagens. Portanto, o texto deve estar vinculado à imagem, complementando-a ou reforçando-a, sem descrevê-la literalmente. (...) Nesta categoria encaixo as histórias em quadrinhos ‘poéticas’. O texto divide com a imagem a função da comunicação, tornando-se inseparáveis e complementares. Como ocorre, aliás, com as melhores histórias em quadrinhos, de qualquer gênero. Não resta dúvida, portanto, que os ‘poemas ilustrados’ são histórias em quadrinhos e formam um gênero à parte, os “Quadrinhos Poéticos”. Nele, o autor trabalha sua subjetividade, aguçando a percepção do leitor e propondo novas formas de leitura. Uma leitura centrada na imagem que eventualmente é complementada pelo texto, que por sua vez apresenta-se repleto de subjetividade (2000, p. 17-18). Para Edgard Guimarães (2001, p. 18) a principal caracterís88 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. tica das HQs poético-filosóficas parece estar principalmente na temática poética e reflexiva: O ponto principal, no entanto, sobre os quadrinhos poéticos diz respeito ao conceito mais amplo do que seja poesia. (...) Poesia é a expressão que toca “a alma” do ser humano, mesmo que não se possa definir com precisão o que seja “tocar a alma”. Assim o poeta pode se expressar usando a palavra escrita, tanto em versos como em prosa, ou usando imagens como o desenho e a fotografia, e obviamente a história em quadrinhos não ficaria de fora como forma de expressão poética. (...) Os quadrinhos poéticos incluem, portanto os trabalhos que aparentam ser HQss normais, mas cujos temas ou desenvolvimentos “toquem a alma”, como Gaiman em “Sandman”, Hugo Pratt em “A Balada do Mar Salgado” ou Jim Starlin em “A morte do Capitão Marvel7” . Também eu, em trabalho anterior, localizei na reflexão filosófica uma das principais características do gênero poéticofilosófico: É importante, pois, deixar claro que as HQs poético-filosóficas têm como uma de suas marcas principais provocar a reflexão filosófica, não no sentido de gerar, necessariamente, textos rigorosos como na academia, mas no sentido de convocar uma reflexão mais aprofundada, na perspectiva das subjetividades de seus autores, sobre alguns aspectos da condição humana (SANTOS NETO, 2007, p. 4). 3.2. Definição e caracterização das histórias em quadrinhos poético-filosóficas: um esforço de síntese A partir do quanto foi trazido aqui, como contribuição dos vários artistas e estudiosos do tema, é possível afirmar que histórias em quadrinhos poético-filosóficas são aquelas que apresentam, de maneira explícita em sua arte, a intenção de que seja feita uma reflexão poética, enquanto aberta criativamente ao contínuo movimento da vida, e filosófica, enquanto provocação a um pensar aprofundado sobre a condição humana. As histórias em quadrinhos poético-filosóficas tendem a ser apresentadas em histórias curtas que, muitas vezes, rompem com 89 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G a linearidade convencional das narrativas em quadrinhos usando, para tanto, de criativos recursos seja no traço do artista seja em novas propostas de utilização dos requadros. São, portanto, três as características que principalmente definem uma história em quadrinhos poético-filosófica: 1. A intencionalidade poética e filosófica; 2. Histórias curtas que exigem uma leitura diferente da convencional; 3. Inovação na linguagem quadrinhística em relação aos padrões de narrativas tradicionais nas histórias em quadrinhos. Quando se fala da intencionalidade poética aqui é no sentido sugerido por Edgar Franco, que se referenciou no pensamento de Aristóteles, isto é, um olhar que, sem perder completamente o pé do chão presente e estando aberto aos influxos criativos da imaginação, consegue vislumbrar as coisas que ainda não são e trazê-las para a fruição e reflexão do leitor ou leitora. Da mesma forma, quando se fala na intencionalidade filosófica não se está pensando aqui na filosofia que está presente necessariamente em qualquer obra de arte, mesmo naquela que se destina a fazer rir ou a ajudar a passar o tempo. Nem se está pensando naqueles autores que, como Alan Moore8 , por exemplo, conseguem construir reflexões filosóficas em quadrinhos já consolidados no mercado formal. E muito menos se está pensando naqueles trabalhos que usam a linguagem das histórias em quadrinhos para introduzir ao pensamento de filósofos já consagrados, seja do pensamento ocidental ou oriental. Quando se fala de intencionalidade filosófica a referência é ao desejo, que explicitam os autores poético-filosóficos, de provocar uma reflexão mais profunda sobre a condição humana em seus leitores e leitoras e, para isso, compartilham suas visões sociais, oníricas, subjetivas, cósmicas, políticas e espirituais por meio da linguagem dos quadrinhos. A inovação da linguagem, as histórias curtas e condensadas e, com certeza, o apelo à reflexão pedem um leitor diferenciado em relação aos padrões habituais. A construção do sentido da história e sua interpretação passam, em grande parte, pela experiência que o mesmo fez com a leitura. O sentido não é imediatamente dado e nem é fruto de uma lógica detetivesca, mas depende muito mais dos estados de consci- 90 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. ência percebidos e refletidos pelo leitor ao longo da narrativa imagética. E, sob um certo ângulo, portanto, é possível falar numa co-autoria do leitor naquilo que diz respeito à construção de sentido, isto é, os quadrinhos poético-filosóficos, em certa medida, contribuem para o processo de construção de autoria, de autoconhecimento e de autonomia daqueles que os lêem. Isto é tarefa bastante exigente para um leitor e os leitores do gênero poético-filosófico, certamente, ainda existem em número restrito se comparados com a grande maioria dos leitores brasileiros. 4. Histórias em quadrinhos poético-filosóficas: o diálogo arte-comunicação-educação para ajudar a pensar a condição humana As duas últimas décadas do século XX trouxeram mudanças significativas tanto no cenário internacional como nacional. Vimos o avanço radical do neoliberalismo e da globalização econômica; a crise e o desmoronamento do socialismo real expresso, de modo simbólico, na queda do muro de Berlim; a crise dos paradigmas tradicionais para a produção de conhecimento e a emergência de um discurso, de caráter pós-moderno, que afirma a impotência da condição humana para a construção de utopias de igualdade e transformação da sociedade; os estupendos avanços da tecnologia favorecendo, por um lado, o aumento de benefícios em termos de saúde, educação e comunicação, mas, por outro, permitindo a sofisticação do consumo e o conseqüente aumento da exclusão e do fosso entre ricos e pobres; a emergência econômica de países do oriente; os conflitos bélicos entre nações do ocidente e do oriente com conseqüências e implicações imediatas para os demais países do planeta, principalmente aqueles com condições econômicas mais consolidadas; e, ainda, a agonia do planeta, de modo especial em seus aspectos ambientais, sob o forte caráter predatório das relações exploratórias estabelecidas pelos seres humanos. Este contexto nos faz perguntar: Que mundo estamos 91 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G construindo? Para onde estamos caminhando? A história acabou mesmo? Não há saídas? Não será possível justiça e solidariedade sobre o planeta Terra? E nós brasileiros estamos fadados a simplesmente repetir o sucesso e a imposição de outras culturas? Temos uma contribuição a dar neste momento de construção/desconstrução da civilização planetária? É neste quadro de perguntas e dúvidas que compreendo a importância dos quadrinhos poético-filosóficos. Eles são uma criação cultural que dialoga com as questões existenciais do homem contemporâneo com um grande repertório de temas – existenciais, espirituais e filosóficos – como: o sofrimento humano, a morte, a esperança, o destino, o ego encapsulado em si mesmo, a mente humana, o feminino materno, a consciência planetária, a consciência cósmica, o imediatismo e o consumismo, a ciência, a religião, as instituições sociais, o autoconhecimento, a tensão entre as polaridades masculina e feminina do ser, a sexualidade, o poder, as lutas e contradições internas do ser humano, a fraternidade, a fratricidade, a evolução dos homens e dos animais, a espiritualidade, o inacabamento humano e a construção da liberdade. Vejo, assim, que as histórias em quadrinhos poético-filosóficas poderão auxiliar a compreender como a educação, a arte e a comunicação estão imbricadas na cultura contemporânea e quais problemas e possibilidades de respostas criativas estão presentes neste universo no atual momento histórico de nossa cultura. É importante que tais artistas continuem, portanto a produzir e a dialogar com o nosso tempo. Finalizando... A HQ “Parto”, de Edgar Franco, que consta na íntegra no ensaio visual desta revista, e que pedi ao leitor ou leitora que examinasse antes de iniciar a leitura deste trabalho, é um bom exemplo de uma história em quadrinhos poético-filosófica. É uma história de apenas cinco páginas em que não há os requadros tradicionais das HQs. Cada página, por assim dizer, confunde-se com um grande quadrinho. O traço estilizado e 92 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. sofisticado de Edgar Franco destaca-se e o leitor atento poderá observar detalhes simbólicos preciosos na construção de cada imagem. Nelas sente-se a tensão entre os humanos que éramos/somos e os humanos (pós-humanos?) que podemos vir a ser. A HQ começa com uma referência aos úteros artificiais entendidos como eletrodomésticos acessíveis. Eles substituem a antiquada reprodução sexuada: sofrida, desgastante, perigosa, mas também prazerosa. Certamente está presente aqui o tema da tecnologia no processo humano de desenvolvimento. Qual o lugar da tecnologia no projeto ético que nós humanos queremos desenvolver? A narrativa assume, pois, como problema central de sua reflexão, o projeto ético que estamos construindo como humanidade, de modo especial com a presença das tecnologias avançadas. “Poucos insistem na ancestral técnica biológica, que desgasta o corpo e está sujeita a erros do acaso...” diz o texto da HQ. Será possível termos o controle absoluto de tudo? Será sadio termos o controle de tudo? O que nos assusta em não termos o controle sobre todas as coisas? São as imperfeições? As deficiências? O que são as imperfeições e as deficiências na ordem das coisas? Haverá perfectibilidade nas imperfeições e nos erros? Primeiro Otto Rank e depois Stanislav Grof nos ensinaram que o trauma do parto tem sido um momento importante para constituição do ser humano. Nele aprendemos o processo doloroso de morte e renascimento. A vida é um permanente movimento que supõe saber morrer para o que já passou e saber nascer para o novo que está nascendo ou renascendo. Este aprendizado, contudo, é feito na dor. Será possível abolir este processo? Será possível eliminar a dor? Será desejável? Qual o limite aceitável da dor? Eliminar a dor seria eliminar nosso aprendizado para enfrentar a construção da existência? A HQ provoca a pensar que tipo de seres “humanos” estamos ajudando a se constituir com as nossas tecnologias. No mundo futuro talvez não seja mais característica dos partos o choro das crianças, que morreram para a vida do útero e nasceram para a vida nas culturas e sociedades humanas. Talvez elas nasçam sorrindo uma vez chegadas à maturação. Talvez 93 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G não corram mais os riscos de um “berço ruim” como no útero antigo. Mas haverá para elas a possibilidade de conhecer a alegria e a serenidade da vitória de quem trilhou o caminho entre a morte e o renascimento? Ou haverá “uma profunda tristeza enigmática em seus semblantes”? O que queremos? O que estamos fazendo? Com certeza trabalhos deste tipo, se utilizados, por exemplo, como provocações em trabalhos educativos, na educação formal e não-formal, poderão auxiliar o estabelecimento de diálogos e experiências que favoreçam o trato compreensivo com os desafios da condição humana (e pós-humana?). Isto é bastante desejável, mas será possível? Tive a oportunidade de perguntar a Henrique Magalhães (2007), um dos primeiros editores a abrir-se com entusiasmo ao gênero poético-filosófico, o que ele pensava sobre o futuro deste gênero em terras brasileiras e ele me respondeu o seguinte: No Brasil não há a menor chance de uma cultura como essa vingar nos meios comerciais. O que resta é o entusiasmo dos autores com suas auto-edições. Isto não é pouco, mas não garante a profissionalização. De todo modo, acredito que os quadrinhos poéticos são uma das expressões mais fortes do que se pode chamar de quadrinho autoral e não devem ser abandonados de vez. De minha parte vejo, claramente, as dificuldades que aponta Henrique Magalhães e comungo com ele da vontade de ver o gênero prosseguir, pois fico fortemente tocado pelo seu potencial reflexivo, transformador, político, estético, educativo e desejo que os artistas continuem a produzir sua obra, ainda que seja numa cultura cujo mercado oferece muitos obstáculos para acolhê-la e divulgá-la. Que consigam manter vivo o entusiasmo pelas HQ poético-filosóficas, pois está aí um trabalho capaz de provocar transformações na direção de uma cultura com mais alegria, beleza e, por que não, na direção da “criação de um mundo em que seja menos difícil amar” (PAULO FREIRE, 1982, p. 218). Notas 94 Elydio dos Santos Neto O que são histórias de quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. 1. Conferir o relato em: http://www.ibacbr.com.br/?dir=artigos&pag=013&opc=0086. Acesso em 14 de setembro de 2008. 2. O nome da revista é uma homenagem a uma das principais personagens de Flávio Calazans. 3. Foi o editor que lançou, no Brasil, as primeiras revistas dedicadas exclusivamente aos quadrinhos poético-filosóficos. Natural de João Pessoa, Paraíba, onde criou, em 1975, a personagem de HQs “Maria”, publicada em tiras diárias em diversos veículos no Brasil e em Portugal. Fez Mestrado na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e Doutorado na Universidade de Paris VII, ambos com estudos dirigidos aos fanzines de histórias em quadrinhos. Atualmente é professor do Curso de Comunicação Social na UFPB. Dirige a editora Marca de Fantasia (nome que tem origem no fanzine homônimo e que foi criado por Magalhães; www.marcadefantasia.com.br), lançando o fanzine Top! Top!, as revistas Mandala, Quiosque, Maria Magazine e a coleção Corisco, além de álbuns e livros sobre quadrinhos e cultura alternativa. 4. Quadrinhista e Editor Independente. Mestre em Ciências pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica. Participou do livro “História em Quadrinhos – Teoria e Prática” organizado por Flávio Calazans. Publicou os livros “Fanzine”, um estudo sobre publicações independentes, “Algumas Leituras sobre Príncipe Valente” e organizou a publicação do livro “O que é Histórias em Quadrinhos Brasileira”, todos pela Editora Marca de Fantasia. 5. Conferir o relato em: http://www.ibacbr.com.br/?dir=artigos&pag=013&opc=0082. Acesso em 14 de setembro de 2008. 6. Marcelo Campos é desenhista de quadrinhos e diretor da Quanta Academia de Artes. Trabalhou em diferentes campos das artes visuais e ficou conhecido por ter sido o primeiro brasileiro da nova geração a publicar seus trabalhos nos Estados Unidos. Hoje divide seu tempo entre dirigir sua escola de artes e partilhar, pela docência, a grande experiência que tem com as histórias em quadrinhos. 7. Neste artigo estou preocupado em identificar e explicitar os traços do que sejam as histórias em quadrinhos poético-filosóficas no Brasil. Por certo é possível, guardadas as devidas distâncias, encontrar trabalhos próximos em outros países e culturas, como sugerem Edgard Guimarães e também algumas produções européias, mas não é meu objetivo, neste momento, realizar este estudo e nem mesmo fazer uma aproximação críticocomparativa. 8. Roteirista de origem inglesa que ficou conhecido por escrever textos para as histórias em quadrinhos de forma criativa e usando largamente motivos e referências filosóficas e literárias. Também escreveu histórias de super-heróis, como Super-Homem e Batman, que se tornaram muito conhecidas. Alguns de seus trabalhos significativos são: “Do Inferno”, “Wathcmen” e “V de Vingança”. 95 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Referências bibliográficas ANDRAUS, G. Homo Eternus (1 de 4). São Vicente: Fanzine/Edição do Autor, 1993 a. ____________. Homo Eternus (2 de 4). 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Pós-doutorando no Instituto de Artes da UNESP com a pesquisa “As Histórias em Quadrinhos poéticofilosóficas no Brasil: Contextualização histórica e estudo das interfaces educação, arte e comunicação”. 99 The fanzines, publications of fans, directed at other fans of a certain artistic expression, have achieved a great progress in recent years, thanks in part to advance technological, but also by the maturity of the public and authors, encouraged by the fanzines. As a vehicle for groups that produce the fringes of the cultural industry, the fanzines can be considered as an event that falls within the field of study of folkcomunicação. The wealth of fanzines is in the testing of artistic languages and encouraging the production and delivery of new authors. Keywords: Fanzine, comics, communication abstrac t Fanzine: comunicação popular e resistência cultural Henrique magalhães resumo Os fanzines, publicações de fãs, ou aficionados, dirigidas a outros fãs de determinada expressão artística, têm alcançado uma evolução enorme nos últimos anos, em parte graças ao avanço tecnológico, mas também pelo amadurecimento do público e autores, fomentados pelos próprios fanzines. Como veículo de grupos que produzem à margem da indústria cultural, os fanzines podem ser considerados como uma manifestação que se insere no campo de estudo da folkcomunicação. A riqueza dos fanzines está na experimentação de linguagens artísticas e no fomento à produção e veiculação dos novos autores. Palavras-chave: Fanzine, quadrinhos, comunicação V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Publicações amadoras produzidas por fãs e dirigida a fãs de expressões artísticas, os fanzines surgiram nos Estados Unidos na década de 1930 com os autores de ficção científica. Esse tipo de revista artesanal ou semiprofissional representava a única possibilidade para os jovens autores veicularem seus trabalhos, que se tratavam de um gênero ainda considerado como subliteratura. Foi com esse caráter de resistência e inovação que os fanzines se firmaram e se difundiram pelo mundo. De pequenas revistas baratas que serviram de suporte a experimentações artísticas, os fanzines se transformaram em publicações reflexivas, analisando os diversos aspectos das artes de forma crítica e independente. No Brasil os fanzines surgiram em outubro de 1965, sendo, então, chamados de boletins. O primeiro fanzine brasileiro foi editado em Piracicaba, São Paulo, por Edson Rontani, chamou-se Boletim Ciência-Ficção Alex Raymond e era dedicado às histórias em quadrinhos. Foi só em meados da década de 1970 que se começou a utilizar o termo “fanzine”, quando essa denominação passou a ser difundida de forma mais freqüente pelas revistas especializadas francesas e pelas publicações ligadas ao movimento punk inglês. O caráter de “marginalidade”, por serem publicações produzidas à margem do mercado, sem fins lucrativos e com forte motivação comunitária, habilita os fanzines a se inserir na categoria de folkcomunicação, pois são porta-vozes de setores e expressões artísticas menosprezadas pela grande imprensa. Os fanzines representam o pensamento de indivíduos, associações e grupos de aficionados que produzem seus próprios veículos como forma de interação, troca de informações e opiniões. No tocante aos fanzines dedicados aos quadrinhos, que formam uma das mais representantes vertentes desse gênero de publicações no país, eles representam a resistência dos autores frente ao descaso das editoras, a afirmação dos quadrinhos locais e contraposição aos quadrinhos estrangeiros. Nesse contexto, a importância dos fanzines reside não só na difusão e renovação dos quadrinhos no Brasil, mas também por contribuírem para a criação de um espaço essencial de discussão e avaliação dos quadrinhos como expressão artística. 102 Henrique Magalhães Fanzine: comunicação popular e resitência cultural Inicialmente os fanzines não passavam de boletins rudimentares, impressos em mimeógrafos. Com o desenvolvimento tecnológico das últimas décadas do século 20, o barateamento e popularização dos meios de impressão, foram surgindo fanzines cada vez mais sofisticados, aproximando-se do acabamento e requinte gráfico das publicações do mercado. Os fanzines e a folkcomunicação Como boletins produzidos por indivíduos, fã-clubes ou associações, os fanzines (de fanatic magazine, ou magazine do fã), são publicações amadoras, sem fins lucrativos, que visam a troca de idéias, investigação ou promoção de um objeto de culto. A frágil estrutura dos fanzines, que se caracteriza por pequenas tiragens, difusão restrita para um público dirigido e temática especializada, condiciona sua concepção gráfica, seu alcance e sua periodicidade. Esse tipo de publicação destina-se a um público interessado e que já tem alguma referência sobre o assunto enfocado, ou seja, ao fã. O termo “fã”, mesmo estando na etimologia da palavra fanzine, talvez não represente de forma precisa os editores dessas publicações. Fruto de uma ação entusiasta de simpatizantes de determinada atividade artística, seus protagonistas poderiam ser mais considerados como aficionados. Mais que uma postura de passividade e contemplação do objeto de culto, própria do fã, o que caracteriza o editor de fanzine é sua atitude proativa, sua necessidade de interação e investigação. Numa referência ao culto dos astros da indústria cultural, Edgar Morin (1972) atribui ao fã uma adoração quase religiosa. Para ele, o amor do fã não pode possuir, seja no sentido sociológico ou no senso físico do termo. A estrela escapa à apropriação privada. O amor pela estrela não tem ciúmes, é sem desejo, é compartilhado, pouco sexualizado, o que quer dizer, é um amor de veneração. Em seu anonimato, o fã se resigna a reunir todas as coisas que representem a materialização do objeto amado, como se 103 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G dele pudesse se apropriar pelo consumismo. Para Morin, o fã desejaria ser amado, mas com humildade. “É esta desigualdade que caracteriza o amor religioso, adoração não recíproca, mas eventualmente recompensada” (Morin, 1972, p.69). Podemos pensar numa dessas recompensas como o acesso à vida privada do mito graças às informações publicadas pelas revistas profissionais. A impossibilidade do contato direto de forma permanente com o ídolo leva o fã a participar de um fã-clube, cuja direção pode chegar a manter relações de proximidade com o objeto de culto. Já para o editor de fanzine, não basta essa atitude contemplativa, de veneração. Ele quer algo mais que um certo conhecimento sobre o assunto enfocado. O caráter desse tipo aficionado requer, em princípio, uma motivação impregnada de inquietude, uma curiosidade sobre os bastidores da arte. Para o editor de fanzine, mais que ser fã, é preciso deixar-se levar pelo desejo de participar ativamente do meio que é objeto de admiração e estar disposto a interferir, usando para isso a produção dessas pequenas publicações. No campo das artes, não há limite temático para os editores de fanzines. Alguns se dedicam às estrelas da música pop, aos ídolos do rock, às bandas do momento, a um gênero musical; outros procuram investigar os astros do cinema e os gêneros cinematográficos. Literatura, televisão, comportamento, moda, rádio, tudo o que estiver ligado a expressões artísticas e à indústria cultural pode ser objeto de estudo dos fanzines. Mas, sem dúvida, os quadrinhos são o tema mais apreciado pelos editores e leitores de fanzines. Contribui para isso, certamente, o fato de o suporte dos fanzines, a revista impressa, ser o mesmo dos quadrinhos, tornando o fanzine ao mesmo tempo veículo para a reflexão sobre a arte e para a publicação dos experimentos artísticos. Dentro dessa categoria de fanzines encontram-se várias divisões, com publicações dedicadas a personagens e autores, a estúdios e grupos de produção, a gêneros e épocas. São notórios os fanzines dedicados ao universo dos super-heróis; os de nostalgia dos quadrinhos, voltados aos personagens clássicos da “época de ouro” dos quadrinhos; os de ficção científica; de faroeste, além dos que promovem o lançamento dos jovens quadrinistas. 104 Henrique Magalhães Fanzine: comunicação popular e resitência cultural Roberto Benjamin (2000, p.17), ao abordar a Folkcomunicação no contexto da comunicação de massa, realça “a importância da comunicação interpessoal e grupal – inclusive pelos seus aspectos de mediação – tanto entre a população de cultura folk, como nos demais segmentos da sociedade”. Essa comunicação interpessoal é, sem dúvida, uma das maiores motivações dos fanzines, que privilegiam a troca de informações entre os fãs, seja por intermédio da seção de cartas e colaborações com artigos, críticas, resenhas e quadrinhos, seja pelo contato direto com outros fãs. Nos fanzines, os fãs se identificam num universo comum, saem do isolamento, encontram o terreno adequado para expressar suas paixões, se fortalecem como participantes de um grupo. Não só pelo aspecto de comunhão comunitária, nessas pequenas publicações os leitores e editores estimulam o olhar investigativo e crítico enquanto exercitam sua liberdade de expressão. Grandes debates e polêmicas acontecem nos fanzines, acrescentando elementos cognitivos e promovendo análises construtivas para o resgate e desenvolvimento de sua arte. Dentro da perspectiva de comunicação de grupo, os editores e leitores dos fanzines desenvolvem linguagens comuns próprias ao grupo do qual procedem. Dessa forma, os fãs de quadrinhos possuem uma linguagem que se coaduna com seu grupo, assim como os fãs de rock utilizam jargões próprios dos apreciadores desse gênero musical. Essa linguagem comum vai além da expressão textual, chegando a demarcar de forma inconfundível o aspecto gráfico dos fanzines. Numa classificação genérica, é comum a utilização de certos termos que unificam os vários grupos em torno da produção dos fanzines. O próprio termo fanzine é um neologismo formado pela contração de fanatic e magazine, do inglês, de onde derivaram zine, como abreviatura do termo; zinar, para a ação de se fazer o fanzine; zineiro ou fanzineiro, para o sujeito da ação; fanzinagem e fanedição, como a atividade de edição dos fanzines. Por analogia, uma fanzinoteca vem a ser uma biblioteca de fanzines. Esses termos que permeiam os grupos de fãs aproximam-se das gírias, próprias de uma linguagem tribal e de uma expressão folclórica, ou seja, de identidade e manifestação espontânea de determinado meio cultural. Por pertencer a grupos relativamente 105 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G isolados da sociedade, todos esses neologismos são reconhecidos de forma familiar por seus membros, mas não são imediatamente absorvidos pela cultura oficial. Apesar de o termo fanzine ter se difundido nos últimos anos particularmente na mídia, ele só agora começa a figurar em alguns dicionários e enciclopédias. Numa aproximação com a produção de imprensa popular e outros gêneros de publicações, a exemplo dos folhetos de cordel, podemos afirmar que os fanzines fazem parte do que denominamos de Folkcomunicação, como o define Luiz Beltrão: “é o processo de intercâmbio de informações e manifestações de opiniões, idéias e atitudes de massa através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore” (Beltrão apus Benjamin, 2000, p.12). É certo que os fanzines, com suas pequenas tiragens quase confidenciais, que muitas vezes não ultrapassam os 50 exemplares, não podem ser considerados um meio de massa, mas identificamos com clareza nesses veículos um forte processo de intercâmbio de informações, com destaque para a expressão da crítica e da opinião. Os fanzines têm na reflexão sua força, gerando debates entre os leitores e mesmo, em seu conjunto, interferindo nas publicações do mercado. Por outro lado, o próprio Beltrão viria ampliar o conceito de Folkcomunicação para além das amarras da definição de folclore adotada de forma oficiosa no país. Inicialmente, ele identificava a Folkcomunicação como sendo a expressão apenas de grupos marginalizados cultural e geograficamente: “Hoje pensamos que as pesquisas se devem estender a outros setores excluídos, sem acesso aos mass media, pela sua posição filosófica e ideológica contrária as normas culturais dominantes, setores que se poderiam classificar de contraculturais” (BELTRÃO, 2000, p.13). Essa nova definição, mais abrangente, afinal contempla os fanzines em vários aspectos de sua produção. Os fanzines são não só veículos de aficionados, mas também de grupos que não possuem acesso à grande imprensa. A divulgação das novas bandas de rock é feita particularmente por intermédio dos fanzines. Os novos autores de poesias e histórias em quadrinhos têm nos fanzines o espaço para publicação de sua obra, visto que não se tem veículos do mercado que contemplem de forma adequada o fluxo da produção dos autores nacionais, muito menos as obras dos novos artistas. 106 Henrique Magalhães Fanzine: comunicação popular e resitência cultural A concentração da indústria cultural, em particular das grandes editoras no eixo Rio de Janeiro/São Paulo é mais um agravante para a veiculação de expressões regionais. Os fanzines são, pois, um produto de grupos marginalizados cultural e geograficamente, bem como porta-vozes de um tipo de cultura que denominamos genericamente de underground, contracultural ou independente. A tecnologia a favor dos fanzines Até o final da década de 1980 o fanzine foi concebido para ser um veículo impresso, ocupando um espaço paralelo às publicações do mercado. Talvez não fosse o caso de se falar numa imprensa alternativa, como observa Edgard Guimarães (2005), editor do fanzine QI, visto que o fanzine não se configura como uma alternativa mercadológica. Pelo seu caráter amador, o fanzine estaria mais para uma cultura independente, livre das amarras do mercado, da imposição das grandes tiragens, da linguagem consensual para um público genérico. O fanzine é um veículo de comunicação dirigida, que tem as dimensões do universo de seu público. Como na maioria das vezes os fanzines se identificam nas especificidades, é comum lidar-se com públicos reduzidos da mesma forma que proliferam indefinidamente os títulos e abordagens dessas publicações. Figura 1 - Ficção, o primeiNo início, para a edição dos fanzines, ro fanzine brasileiro foram utilizados os meio rudimentares de reprodução que viabilizassem as pequenas tiragens, tendo em vista a adequação dos custos. O mimeógrafo a álcool e à tinta foram os instrumentos para as primeiras publicações, a exemplo de Ficção, o primeiro fanzine brasileiro, lançado por Edson Rontani em Piracicaba, em outubro de 1965. Com o desenvolvimento das fotocopiadoras e o barateamento das cópias, tornou-se viável a edição de fanzine por esse processo, desde a produção, com reduções e ampliações de originais 107 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G datilografados e imagens, até a reprodução, com as cópias. Este instrumento trouxe um grande desenvolvimento aos fanzines pela qualidade de reprodução gráfica, incluindo amplamente as ilustrações. O salto tecnológico com a popularização das fotocopiadoras favoreceu a propagação dos fanzines de quadrinhos, que faziam as vezes de revistas/portfólios e revistas especializadas no gênero, com ensaios, críticas e matérias noticiosas. A possibilidade de reprodução das artes gráficas, a exemplo dos quadrinhos, estimulou o surgimento de inúmeros autores por todo o país e com eles vieram seus fanzines. Ainda que o objetivo da maioria dos quadrinistas fosse chegar ao mercado editorial, não era mais necessário esperar uma chance remota para mostrar o trabalho. Os fanzines ocuparam o espaço, relegado pelas editoras comerciais, de veículo promotor dos novos talentos, estimulando o aparecimento de sucessivas gerações de quadrinistas. A importância dos fanzines dá-se também pelo papel de vanguarda cultural que eles engendram. É nos fanzines onde são experimentadas as novas linguagens, o padrão gráfico inovador, as ousadias conceituais. Não raro, o meio empresarial vai buscar nos fanzines a renovação estética para certos públicos identificados com novas linguagens. Os fanzines, enquanto manifestação espontânea e democrática de grupos, muitas vezes formados por jovens, trazem a legitimação das linguagens populares nem sempre facilmente percebidas pelos meios empresariais. O melhor exemplo para ilustrar essa postura, é a difusão maciça de alguns nomes dos cartuns nacionais. Os maiores autores de tiras, charges e cartuns veiculados nos jornais de circulação nacional da atualidade vieram do meio dos fanzines e publicações alternativas. Uma quantidade enorme de novos quadrinistas é influenciada por Henfil, Angeli, Ziraldo, Laerte, Paulo Caruso e Jaguar, para citar apenas alguns dos autores consagrados. Dessa forma, começamos a assistir o reconhecimento do trabalho de Marcatti, Edgar Franco, Wellington Srbek e Cedraz como autores de obras personalizadas, além de jovens autores de nossa arte seqüencial (os quadrinhos). Do mesmo modo que os fanzines podem servir como alavanca para a profissionalização, eles têm favorecido o surgimento de pequenas editoras independentes. O público dessas editoras é o mesmo dos fanzines, acrescido de outras camadas simpáticas 108 Henrique Magalhães Fanzine: comunicação popular e resitência cultural a produtos diferenciados do mercado. Um dos fatores que tem contribuído para o surgimento dessas editoras e para a concepção de um produto cultural bem mais acabado é, sem dúvida, a revolução tecnológica trazida pela informática. O folclore e a cultura popular não devem ser encarados como uma cultura estática, imutável. Ela vem se adaptando às transformações da sociedade, incorporando elementos da mitologia urbana, das mídias e das novas tecnologias. Numa alusão à produção dos folhetos de cordel, Luiz Beltrão, citado por Roberto Benjamin, afirma que justamente a mais nova apropriação tecnológica ocorreu com relação à informática. F i g u r a 2 - F a n z i n e To p ! t o p ! O poeta popular José Honório produz seus versos em um computador. A sua opção pela informática nada tem de romântica. Foi uma escolha tecnológica e econômica. As gráficas existentes na cidade onde reside (TimbaúbaPE), desde as primitivas de caixas de tipo, às que operam off-set, somente recebem encomendas de tiragens acima das possibilidades de mercado, para os cordéis do poeta. Utilizando o computador, José Honório imprime o número de folhetos que considera possível vender de imediato e guarda os mesmos na memória eletrônica, realizando novas tiragens na medida em que Figura 3 - Fanzine Mandala as pequenas edições se esgotam (BENJAMIN, 2000, p.19-20). De forma coincidente, esta é a mesma estratégia adotada pela editora Marca de Fantasia, de João Pessoa, PB. Por esta editora independente são feitas edições seqüenciais de fanzines, revistas e livros de tiras (Top! Top!; Mandala, Quiosque; e a coleção “Das 109 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Figura 4 - Fanzine Guerra das Idéias de Flávio Calazans F i g u r a 5 - Fa n z i n e K a tita: tiras sem preconceito de Anita C. Prado e Ronaldo Mendes Figura 5 - Fanzine Maria de Henrique Magalhães tiras, coração”, respectivamente), além de álbuns de histórias em quadrinhos e livros teóricos sobre cultura pop. Cada publicação tem tiragem inicial de 50 exemplares, para uma projeção de 200 exemplares; ao esgotar-se essa primeira edição, outra tiragem é produzida, dando seqüência à difusão da obra. Dessa forma, o álbum Guerra das Idéias, de Flávio Calazans, que está na quarta edição ampliada, conta já com 360 exemplares, o álbum de tiras Katita: tiras sem preconceito, de Anita Costa Prado e Ronaldo Mendes já teve a primeira tiragem esgotada e Maria, de Henrique Magalhães, foi publicado com 800 exemplares. Sem dúvida, o avanço dos recursos tecnológicos transformou alguns fanzines em publicações compatíveis com boa parte das publicações do mercado. Com o computador, o visual dos fanzines tornou-se mais limpo, livre das imperfeições dos tipos datilográficos, dos riscos de canetas e colagens de originais. É certo que essas transformações não foram aceitas com tranqüilidade por uma parte dos editores, que viam no acesso fácil à tecnologia o fim da pureza artesanal dos fanzines. Para eles, a verdadeira linguagem dos fanzines deveria ser aquela suja, que atestasse o labor artesanal, a presença da alma e do suor do editor, com suas imperfeições e máculas, próprias da expressão humana mais autêntica. Mas o canto sedutor da tecnologia soou mais alto e de forma irreversível. Atualmente já podemos ver fanzines com qualidade 110 Henrique Magalhães Fanzine: comunicação popular e resitência cultural gráfica excepcional, com utilização de cores nas capas impressas em offset ou impressão à laser, e com os requintes dos melhores programas gráficos, acessíveis em qualquer computador. Essa evolução dos fanzines e demais publicações independentes (revistas, álbuns, livros), faz-nos pensar na possibilidade da formação de um mercado paralelo, criando um filão até então inexistente no meio editorial. Já existem alguns núcleos de produção que têm utilizado as novas tecnologias bem como as leis de incentivo à cultura estaduais e municipais para a edição de excelentes publicações. Podemos citar a editora Nona Arte, de André Diniz, do Rio de Janeiro, que vem desenvolvendo um trabalho excepcional na edição de revistas independentes, abrindo espaço não só para sua produção como para a de outros autores Figura 6 - Revista Subversivos representativos dos quadrinhos brasileiros. A série Subversivos, editada por ele, reconta a história recente do Brasil sob o regime militar a partir da visão dos reprimidos, das organizações clandestinas que visavam uma transformação radical do país. Esta é uma visão dos perdedores, que em geral não entra nos anais da história. Da mesma forma, Wellington Srbek, em Belo Horizonte, tem aproveitado o incentivo estatal para a publicação de revistas e álbuns com acabamento gráfico profissional e conteúdo também F i g u r a 6 - E s t ó r i a s G e voltado para elementos da cultura r a i s d e W e l l i n g t o n S r b e k brasileira. São visões de histórias e lendas e mesmo da ficção extraordinária dos super-heróis que fazem uma ligação entre a cultura popular e a erudita. As revistas e álbuns são produzidos dentro do circuito dos fanzines, mas estão abertos a outros públicos, que venham somar à valorização de uma arte genuinamente brasileira. 111 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Curioso é que trabalhos tão criativos e autorais não tenham espaço nas editoras comerciais. A busca do lucro fácil, das fórmulas feitas, da importação de modelos estrangeiros da cultura de massa como diretrizes do mercado fazem com que as expressões mais autênticas de nosso povo sejam menosprezadas, cabendo à resistência de seus criadores, nesse caso à auto-edição ou o estabelecimento de circuitos independentes, o registro de uma cultura com caráter nacional. Conclusão Os fanzines de quadrinhos no Brasil representam a resistência dos quadrinhos brasileiros frente ao descaso das grandes editoras e a invasão dos quadrinhos estrangeiros. A importância dos fanzines se configura não só pela difusão e renovação dos quadrinhos no Brasil, mas também por contribuírem para a formação do público e criação de um espaço essencial de discussão e avaliação dos quadrinhos como expressão artística. A partir da década de 1960, com o surgimento do primeiro fanzine brasileiro, é possível notar uma sensível evolução da visão crítica dos leitores e do posicionamento proativo dos novos autores. Foi nos fanzines que esses agentes culturais e o público recolheram elementos para a formação de uma visão mais ampla sobre os quadrinhos como fruto da indústria cultural, mas também como veículo extraordinário de reflexão, que extrapola o universo de seus renomados heróis. Inicialmente como boletins rudimentares (mimeografados) de fãs-clubes ou aficionados, os fanzines tornaram-se, com o desenvolvimento tecnológico e popularização dos meios de impressão, publicações cada vez mais sofisticadas, aproximando-se do requinte das publicações do mercado. No entanto, mantêm seu caráter contestador e veículo de integração de grupos culturalmente marginalizados. Essas novas publicações independentes têm tomado fôlego nos últimos anos, conquistando um público curioso e exigente, que vai buscar nas livrarias especializadas e não nas bancas de revistas o produto para sua apreciação. A resposta a esse público encontra- 112 Henrique Magalhães Fanzine: comunicação popular e resitência cultural se na evolução gráfica das publicações e no aprimoramento do conteúdo, onde se procura refinar a elaboração dos argumentos e uma concepção mais sólida dos personagens. Referências Beltrão, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980. Benjamin, Roberto. Folkcomunicação no contexto de massa. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2000, p. 17. Bibe-Luyten, Sonia M. (organizadora). Histórias em Quadrinhos: Leitura crítica. 2ª ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. Bibe-Luyten, Sonia M. Coleção Primeiros Passos, 144. O que é História em Quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, 1985. Calazans, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria e prática. Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: 1997. Guimarães, Edgard. Fanzine. Coleção Quiosque n°2, 3ª ed. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2005. Magalhães, Henrique. O que é fanzine. Coleção Primeiros Passos, 283. São Paulo: Brasiliense, 1993. Magalhães, Henrique. O rebuliço apaixonante dos fanzines. João Pessoa: Marca de Fantasia/Ed. Universitária UFPB, 2003. Morin, Edgar. Les stars. France: Editions du Seuil, 1972, p. 68. Pinheiro, Helder & Lúcio, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala de aula. Coleção literatura e ensino, 2. São Paulo: Duas Cidades, 2001. Ribeiro, Maria de Lourdes Borges. Folclore. Biblioteca Educação é Cultura. Rio de Janeiro: Bloch: Fename, 1980. Semião, Antônio Éder et alli. Tudo que você sempre quis saber sobre quadrinhos mas sua mamãe relutava em lhe responder Curitiba: Edição do autor, abril de 1996. 113 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Artigos Andraus, Gazy. Tyli-Tyli: A revista de quadrinhos filosóficos do Brasil. In Calazans, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria e prática. Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: 1997, p. 81-91. Franco, Edgar. Panorama dos quadrinhos subterrâneos no Brasil. In Calazans, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria e prática. Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: 1997, p.51-65. Guimarães, Edgard. A questão da produção, divulgação e distribuição de edições independentes. In Calazans, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria e prática. Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: 1997, p.66-80. 114 Henrique Magalhães Fanzine: comunicação popular e resitência cultural Henrique Magalhães Professor Dr. da Universidade Federal da Paraíba, UFPB Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Doutor em Sociologia pela Universidade Paris 7, França. Professor do Departamento de Comunicação e Turismo e do Mestrado em Comunicação da UFPB. Faz pesquisa e extensão na área de cultura e imprensa alternativa. Criador e editor da editora Marca de Fantasia e da Gibiteca Henfil, de João Pessoa. [email protected] 115 Ensaio Visual Vislumbres Pós-humanos V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G 134 Edgar Franco Edgar Franco é artista multimídia com mestrado em multimeios na Unicamp onde estudou as histórias em quadrinhos (HQs) na Internet, batizando essa linguagem híbrida de quadrinhos e hipermídia de HQtrônicas (histórias em quadrinhos eletrônicas), pesquisa que serviu como base para o livro “HQtrônicas: Do Suporte Papel à Rede Internet” (Annablume/ FAPESP, 2008, 2ª Edição). Sua tese de doutorado em artes, “Perspectivas PósHumanas nas Ciberartes” (ECA/USP), foi premiada no programa “Rumos Pesquisa” do Centro Itaú Cultural em São Paulo. É professor adjunto da FAV/UFG - Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, e do mestrado em Cultura Visual da mesma universidade, em Goiânia. As histórias em quadrinhos que compõem o ensaio visual fazem parte da série de trabalhos em múltiplas mídias ambientados no universo ficcional da “Aurora Pós-humana”, criado pelo artista inspirado nas perspectivas póshumanas da tecnociência e nos aspectos tecnognósticos que impregnam as novas tecnologias. Além de dezenas de HQs, outros trabalhos como a HQtrônica premiada “Neomaso Prometeu”, o site de bioarte “O Mito Ômega”, e o projeto musical multimídia “Posthuman Tantra” integram o conjunto de obras ambientados na “Aurora Pós-humana”. 135 Artigos Graffiti and pichação are contemporary urban interventions that include divergent discourses about their manifestations. It was the objective of this research, starting with the interviews from six graffitists, to discuss the discourses that were produced about difference between graffiti and pichação, searching to reflect about the relations between art, aesthetic, intervention and constitution of the individuals in the urban contexts. It was observed that the discourses of the graffitists enhanced the aesthetic differences from the products of these activities and showed clearly that they are languages that keep moving among them. The two activities make possible that the subjects apprehend another possibility of living and express themselves in the city, establishing other norms, other ethic, and other symbolic order. Key-Words: Graffiti; pichação; aesthetic; abstrac t Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas Janaína R. Furtado Andréa Vieira zanella resumo Graffiti e pichação são intervenções urbanas contemporâneas que implicam discursos divergentes acerca destas manifestações. Objetivou-se, a partir de entrevistas com seis grafiteiros, debater os discursos produzidos acerca da diferença entre graffiti e pichação, buscando refletir sobre as relações entre arte, estética, intervenção e constituição dos sujeitos em contextos urbanos. Observou-se que os discursos dos grafiteiros ressaltam as diferenças estéticas existentes entre as atividades. Ambas as atividades permitem que os sujeitos apreendam outras possibilidades de habitar e se expressar na cidade, impondo-lhes outras regras, outra ética e outra ordem simbólica. Palavras-chaves: graffiti, pichação, estética; V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Pouco a pouco a psicologia brasileira vem ocupando espaço nas discussões e debates sobre arte, embora saibamos que não é recente a aproximação entre essas áreas. O diálogo é fundamental para o desenvolvimento da ciência psicológico, pois, afinal, quem produz arte e quem se relaciona com o mundo sensivelmente são seres humanos que, por meio destas atividades, transformam a realidade, criam novas possibilidades de existência, criando-se e recriando a si mesmos neste processo. Não obstante as diversas possibilidades de criação e expressão estética, pretende-se aprofundar, neste momento, estas reflexões a partir do graffiti e da pichação urbana, consideradas manifestações estéticas emergentes nas cidades do mundo todo e também como intervenções que irrompem uma dada ordem urbana. Os grafiteiros e pichadores fazem falar para/no/ao urbano de outro lugar, geralmente da margem dos discursos que oficialmente ali são veiculados. Orlandi (2004), ao analisar a produção de sentidos da/ na cidade por meio do graffiti e da pichação, reitera-os como vestígios de novas posições-sujeito possíveis, outros sujeitos simbólicos, outros sujeitos sócio-políticos e cidadãos outros que reelaboram os signos na sua relação com a realidade, face ao modo como esta mesma sociedade o significa. Transgressores da lógica racional moderna a partir da qual as cidades frequentemente são construídas (HARVEY, 1990), o graffiti e a pichação entram na cena urbana e ali ora se amalgamam ou se diferenciam de suas variadas manifestações, conforme os grafiteiros e/ou pichadores significam o seu fazer e a relação desse fazer com o modo como essas mesmas atividades foram se constituindo no contexto específico do Brasil. Enquanto o graffiti vem sendo considerado arte urbana e pouco a pouco cooptado pelo sistema econômico-social vigente (SCHLECHT, 1995), tirado das ruas, ou financiado por diversas agências, proprietários de estabelecimentos comerciais, exposto em museus e galerias; a pichação continua sendo compreendida como a sujeira das cidades. No encalço desta distinção vigoram as concepções de arte, estética e vandalismo. Se, por um lado, algumas vezes o graffiti é veiculado como arte urbana e/ou expressão estética por meio da qual alguns grupos almejam transformar a realidade social, sendo, portanto, considerado mensagem, arte, 140 Janaína R. Furtado Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas. bem como uma ferramenta conveniente para tirar alguns jovens das ruas; a pichação, por outro lado, é ratificada como lixo urbano e os pichadores como meros marginais em busca de adrenalina. Eis que na produção dessa diferença, ou na discussão sobre a diferença, encontramos o ensejo para dialogar sobre psicologia e arte, relações estéticas e intervenções urbanas. Nossa conversa se fundamenta nos discursos de grafiteiros sobre a diferenciação enunciada entre graffiti e pichação, diferença marcadamente brasileira e que possibilita aprofundar os debates acerca dos modos de constituição dos sujeitos em contextos urbanos. Nos diálogos com os grafiteiros se entretecem reflexões de alguns autores que se dedicam ao debate, caracterizando-se, portanto, este texto como tecitura plural. Reflexões estéticas, graffiti e pichação Graffiti e pichação são palavras comuns para os cidadãos brasileiros, acostumados a se deparar com estas práticas nos muros, paredes, portas, ônibus, etc. No entanto, a palavra pichação não existe em outros lugares do mundo para os quais toda escrita urbana e muralismos são denominados como graffitis. Pichação como conceito é um produto brasileiro e designa as escritas urbanas compostas por letras estilizadas, com poucas cores e de rápida reprodução. Ramos (1994) coloca que, embora o graffiti e a pichação sejam práticas que possuem uma mesma raiz e que, muitas vezes, busquem lugares não autorizados para expor os trabalhos e compartilhem riscos comuns e perseguições, a diferença entre graffiti e pichação está na linguagem empregada. Embora a autora entenda que entre estas duas formas de intervenção haja muitas similaridades, uma vez que se caracterizam como transgressão do espaço urbano, na pichação não há, necessariamente, uma preocupação estética na ação. Os pichadores preferem lugares valorizados socialmente, como museus, igrejas, escolas, instituições, para criticarem e contestarem diversos valores sociais. “Aos pichadores interessa mais o ato, o rito, o aparecer, o transgredir e menos o processo criador” (RAMOS, 1994, p.48). 141 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Estes sujeitos ou grupos, marginalizados pela suas condições sociais, respondem a esta marginalização por meio da pichação urbana, enfocando o ato e não o trabalho final, que do rabisco ao sujo, das frases pornográficas às de amor, procura falar ao urbano. Os grafiteiros, diferentemente, “não pretendem agredir o espaço urbano, do qual eles mesmos fazem parte, mas sim desmistificar os símbolos de dominação cultural deste espaço, e evidenciar as desimportâncias urbanísticas” (RAMOS, 1994, p.50). Gitahy (1999) destaca ainda que o graffiti procura entrar na dinâmica urbana de forma interativa, privilegiando as imagens em decorrência da sua origem nas artes plásticas, enquanto que na pichação o primordial é a palavra ou escrita pela qual se dá vazão ao descontentamento social e à falta de expectativas de certas camadas sociais urbanas. Para o autor, as posturas destas duas formas de intervenção urbanas são diferentes, sendo preciso considerar estas diferenças para não ser arbitrário em relação ao aparecimento e desenvolvimento destas duas linguagens no Brasil. Entretanto, tanto grafiteiros como os pichadores têm como suporte para suas atividades a cidade como um todo, diferenciando-se de outras manifestações artísticas urbanas. Outros autores que se debruçaram sobre o graffiti falam da diferença existente entre graffiti e pichação no Brasil (LARA, 1996; LODI, 2003; ORLANDI, 2004). De modo geral, ressaltam que as diferenças na elaboração das formas, implicando uma distinção na percepção estética das mesmas, constituem os fundamentos comumente utilizados para diferenciar o graffiti da pichação. Orlandi (2004) faz uma reflexão acerca da diferença promulgada entre estas práticas e evidencia a pichação como discurso no urbano, no qual e pelo qual, nos limites do indecifrável, os sujeitos se apresentam como sujeitos de vontade, na luta por espaços de significação. Para além do debate sobre o fato dessas práticas serem consideradas arte ou não, o que foge ao escopo deste trabalho, destaca-se a sua dimensão constitutiva tanto de seus artifícios quanto das pessoas que com o graffiti e/ ou pichação se relacionam seja negando, acolhendo, se opondo, contrapondo aos traços e cores objetivados nos espaços urbanos. Mas o que isso significa? Para a Psicologia Histórico-Cultural um ser humano tornar-se sujeito singular mediado pelas diversas relações que institui com o mundo e 142 Janaína R. Furtado Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas. com sua própria existência. Dentre elas, ressaltamos a importância das relações estéticas, relações estas que exigem outra postura do sujeito frente aos objetos, os quais são tomados mais por sua forma e significado do que por sua função utilitária, mesmo que esta coexista no momento em que a relação se firma (VÁSQUEZ, 1999). Por relações estéticas entende-se uma forma de apropriação do mundo, pautada pela sensibilidade e na qual sujeito e objeto se descolam do imediato, da experiência física e concreta e se constituem, ambos, enquanto estéticos (ZANELLA, 2004). Na relação estética o mundo é re-criado e uma nova compreensão da realidade se constitui na produção de outros sentidos, construídos a partir do olhar que se lança mais aberto às coisas, para além delas. Este olhar mais amplo corteja o mundo seduzido pela possibilidade de forjar novas relações, novas visibilidades, forjando ao mesmo tempo a existência do sujeito que olha e que, olhando, se re-cria. O olhar estético, historicamente produzido na ininterrupta dialética entre modos coletivos e singulares de se perceber o mundo, estranha o unicamente visível e do visível desliza ao imaginável, objetivando-se no ato criador, ato no qual o estético para mim torna-se possibilidade de ser estético para outro. Toda criação de algo novo, sendo arte ou não, parte de e engendra outra forma de relação com os objetos do mundo e com as próprias emoções, os quais ganham novos sentidos a partir dessa nova configuração onde se combina o antigo com o novo, superase a reprodução do vivido e criam-se a novas possibilidades para a existência singular e coletiva (VIGOSTKI, 2001). Relações estéticas, por sua vez, são o fundamento da elaboração criadora da realidade, pois “relação estética é relação sensível que, no prazer/desprazer, no deleite ou repulsa, forja a própria sensibilidade e se objetiva na atividade criadora” (ZANELLA, 2004, p.139). Não passam, portanto, sem deixar vestígios no psiquismo humano, configurando-se material de base para a elaboração criadora e possibilitando a síntese das emoções implicadas neste processo tão complexo. Método O presente artigo resulta de uma pesquisa de mestrado que objetivou compreender os processos de criação no graffiti e suas 143 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G implicações no contexto urbano de Florianópolis/SC (FURTADO, 2007). Neste período, pesquisadora entrou em contato com grafiteiros por meio de uma loja de roupas que estava localizada no centro da cidade e que era ponto de encontro de muitos grafiteiros da região. Os donos da loja, também grafiteiros, foram os primeiros interlocutores da pesquisadora e lhes apresentaram vários grafiteiros da cidade, sendo que com alguns deles foram realizadas entrevistas. Seis grafiteiros da cidade de Florianópolis foram sujeitos de pesquisa, todos do sexo masculinos, com idades entre 20 a 29 anos de idade, e pertencentes a diversos grupos (crews) de graffiti da cidade. Todos eles nasceram e viveram parte de suas vidas em outros municípios ou estados e, na época, estavam residindo em Florianópolis há alguns anos. Grafitavam em diversas localidades da cidade, geralmente no centro, mas também em outros bairros, inclusive nos quais moravam. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas com a devida autorização dos participantes1. Foram marcadas por telefone ou pessoalmente no momento em que a pesquisadora foi apresentada ao grafiteiro. Estas entrevistas ocorreram em diferentes lugares, conforme a escolha dos sujeitos entrevistados, mas geralmente na própria rua onde eles realizavam suas intervenções. A análise das entrevistas fundamentou-se nas teorias de Bakhtin (1990) e Vigotski (2000). Buscou-se, a partir de regularidades e diferenças nos discursos dos sujeitos, identificar temas, relações e dimensões, configurando unidades de análises que permitiram descrever e compreender os sentidos que os grafiteiros atribuíam ao graffiti e à pichação. Entende-se que o discurso se produz como ato num contexto singular e irrepetível que possibilita e impossibilita a emergência de certos enunciados, entendidos como unidades reais da comunicação discursiva (BAKHTIN, 1990). Em uma mesma enunciação, enunciados concretos dialogam retrospectivamente e prospectivamente com outros enunciados, produzindo e fazendo circular discursos (BRAIT & MELO, 2005). Toda enunciação constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta mais ampla, que não pode ser separada do curso histórico das enunciações e na qual estão as marcas da subjetividade, intersubjetividade, alteridade que caracterizam a linguagem em uso. 144 Janaína R. Furtado Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas. Nestes enunciados transversalizam-se diversas vozes que se deixam ouvir e não se deixam ouvir no texto, caracterizando o discurso como dialógico e polifônico. O aspecto polifônico do discurso dos sujeitos, ou seja, a multiplicidade de vozes que aparecem no mesmo texto, deve-se justamente pelo fato do discurso ser dialógico e nele o sujeito carregar o tom de outras vozes, refletindo a realidade de seu grupo e a materialidade histórica e social em que está inserido. Em uma entrevista, por exemplo, o sujeito se expressa, mas ocupa o lugar de autor apenas por um ponto de vista que trabalha o texto, está em todo lugar e lugar nenhum, na intersecção entre a forma e o conteúdo (AMORIM, 2002). Por meio dos processos de significação engendradas na situação da entrevista pôde-se recompor o contexto das atividades e seus sentidos para os grafiteiros, localizando os sujeitos, as histórias e as transformações dos processos investigados. Entre o graffiti e a pichação, um vão? Longe de querer discutir se uma ou outra atividade se adéqua ou não ao campo das artes, ressalta-se que a diferença entre graffiti e pichação localiza-se no Brasil, o que não ocorre em outros países nos quais os dois tipos de intervenção urbana são consideradas graffitis, produções estéticas em um lugar de fronteira, boardline no espaço urbano. Observou-se que no cerne do debate sobre a diferença, configura-se outro debate: estética, o vandalismo e intervenção urbana. Alguns grafiteiros entrevistados são, de certa forma, também pichadores e costumam colocar seus tags em diversos locais da cidade, mesclando as duas atividades. As tags são assinaturas em spray de grafiteiros ou suas crews que caracterizam o tipo de intervenção realizada na pichação, cujos grafismos foram, a princípio, influenciados pelo movimento de graffiti norte-americano. Aos poucos os pichadores brasileiros desenvolveram estilos de letras e modos de atuação na cidade extremamente diversificados, tornando a estética própria da pichação no Brasil reconhecida no mundo inteiro (MANCO, 2005). 145 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Por vezes, antes ou depois de uma produção em graffiti, os grafiteiros aplicam algumas tags nas paredes, muros, latas, portas, etc. Segundo Japão (entrevistado para esse artigo) a atividade ilegal, rápida e com pouca elaboração, como o bomb2 ou os tags, ação típica de pichadores, apresentam-se como uma espécie de recompensa de uma produção de graffiti, na qual houve um planejamento e maior tempo de execução. Ou seja, antes ou depois de fazer uma produção em graffiti mais elaborada, alguns grafiteiros gostam de aplicar os tags ou fazer uns bombs para se divertir. Outras vezes é uma forma de mostrar pra cidade que a cidade não pára e que se alguém disser “aqui neste muro não cabe um graffiti”, o grafiteiro vai lá e bombardeia o muro só pra poder mostrar que não adianta frear o movimento, que ele acontece. De certa forma, os grafiteiros também se reconhecem no reconhecimento que a pichação feita no Brasil tem pelo mundo a fora. Ner, 20 anos, por exemplo, ao responder sobre a diferença entre graffiti e pichação, conta: São coisas distintas porque muita gente não sabe, mas assim como o carnaval, o samba, a pichação é um negócio nosso, nacional. Tu vai para os Estados Unidos e tu não vê o que tu vê no Brasil. Tu não vê prédio de quarenta andares ser pichado no último andar. É um negócio totalmente nacional, é nosso, é brasileiro e é bem distinto do graffiti (NER, 2006). Ao mesmo tempo em que Ner denota um reconhecimento da pichação como um produto nacional, singular, característica da cultura urbana brasileira, também identifica a diferença entre graffiti e pichação, embora não afirme claramente qual a diferença entre essas atividades. Se em um primeiro momento Ner apresenta um discurso que evidencia existir uma diferença entre graffiti e pichação, ao me falar de sua preferência, da sua prática no graffiti, Ner parece se posicionar exatamente em um dos pontos no qual essas atividades se imbricam, mas não as diferencia de todo: a intervenção ilegal, rápida, na qual não há tempo para maiores elaborações da imagem que se faz e que, portanto, possibilita que o produto do seu trabalho se assemelhe ao produto das pichações. Tanto o graffiti quanto à pichação podem se caracterizar como formas de 146 Janaína R. Furtado Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas. intervenção urbana ilegal, aquelas que não pedem para passar e acabam, muitas vezes, estando relacionadas ao vandalismo. Neste sentido, o grafiteiro e o pichador querem assinar sua crew, colocar seu nome, ou fazer valer a sua escrita, o seu estilo, tornando-se visíveis no mundo das impessoalidades urbanas. Dos seis grafiteiros entrevistados, Lai foi o que mais atuou como pichador e por mais tempo em São Paulo, onde as gangues de pichação são muitas e em suas disputas querem ser reconhecidas, estar em todos os lugares, em mais lugares possíveis, e nos mais diversos. Lá, participou de uma crew de pichadores chamada “Nada Somos”, autodenominavam-se alpinistas urbanos, pois buscavam sempre os lugares mais altos da cidade. Diz: “Antes eu fazia mais vandalismo como eu já te falei. A gente gostava bastante de pichar no alto que era meio que uma disputa a pichação, né? (....) O importante, o foco do pichador é o ibope” (LAI, 2006). Perguntamo-nos se não seriam os objetivos implicados nestas atividades que os sujeitos realizam na cidade um dos aspectos que distingue o graffiti da pichação. A formação de grandes grupos de pichadores, almejando um reconhecimento advindo da quantidade e qualidade de lugares em que inserem os nomes de seus grupos, e uma outra forma de expressão estética, parece se diferenciar dos modos como os grafiteiros atuam nos contextos urbanos e se relacionam com eles e entre si. Dentro da disputa, a procura do reconhecimento da crew por outros grupos e pelos pichadores que inovam ao procurar os lugares, não só mais altos, mas também os mais perigosos, leva Lai a afirmar que “(....) eu considero o movimento mais underground que existe na face da terra, a pichação”. Underground significaria, então, a pintura no subterrâneo, no suburbano, nos lugares ocultos da cidade, no silêncio da noite. Para Lyn e Ner, o graffiti também pode ser underground quando realizado nos becos, valas, túneis, muros destruídos, portas de ferro, o que depende da atitude do grafiteiro, suas formas de expressão. Segundo Lyn, Atitude e expressão. Cada um tem a sua atitude. Como eu te falei, tem gente que só grafita produção, autorizado, com bastante tinta, com tema ou sem tema. Tem gente que só grafita na rua. Tem gente que grafita os dois. Tem gente que só picha, daí mais vandalismo. 147 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Eu, pra mim, vejo a pichação como “street art”, dependendo do lugar. Eu, por exemplo, não picho na casa da tiazinha. Eu já procuro uma coisa mais “underground”. Lyn não somente reconhece distintas posturas dos grafiteiros em relação ao trabalho no graffiti, como qualifica a pichação como uma forma de arte de rua, se feita em determinados lugares. Enuncia-se, também, como pichador, porém, um pichador, ao contrário do que socialmente se afirma sobre a pichação, pois não picha em qualquer lugar e prefere aqueles denominados por ele como underground. Segundo Ramos (1994), os grafiteiros costumam se preocupar com o lugar no qual intervém, diferentemente dos pichadores para os quais importa o protesto e a transgressão, o que Lyn denota ao falar em um momento da entrevista que não picha, por exemplo, na casa da “tiazinha”. Outros grafiteiros, durante as entrevistas, mesmo quando estavam falando dos momentos em que pichavam, fizeram algumas ressalvas acerca dos seus lugares de atuação. Estes, geralmente, não picham muros ou paredes recém pintados pelos proprietários ou monumentos públicos, a não ser que tenham um objetivo de protesto preciso que inclua esses lugares, tornando-os alvos da pichação. Compreende-se que entre graffiti e pichação há um vão, um abismo no qual sentidos múltiplos podem se fazer ecoar pelas vozes que se expressam pelos mais variados discursos visuais na cidade. Certamente, para iniciarmos o debate acerca da fronteira entre vandalismo ou protesto, arte ou rabiscos desimportantes, legalidades e ilegalidades no graffiti e na pichação, teríamos que esclarecer as tramas articuladas entre os discursos, as ideologias e os contextos sociais. Os grafiteiros, neste caso, falam como grafiteiros que também picham para um ouvinte/pesquisadora que quer ouvir sobre graffiti e pergunta sobre as diferenças entre graffiti e pichação. Graffiti e pichação se apresentam, portanto, intrincados, hibridizados. O grafiteiro/pichador que grafita aqui, mas não picha ali. Outros pichadores, por sua vez, ocupariam outras posições nos discursos e, portanto, sentidos outros bailariam no ritmo dos sentidos engendrados por estas práticas. Para um urbanista metódico talvez a pichação seja apenas sujeira urbana, sem técnica ou estética; 148 Janaína R. Furtado Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas. e o graffiti só técnica sem ética. Nós perguntamos pelo modo como estes sujeitos grafiteiros pesquisados se constituem sujeitos urbanos, grafiteiros/pichadores, que por meio de sua práxis urbana protestam, vandalizam, criam objetos estéticos, arte ou não-arte, num contínuo e descontínuo processo de reinventar a si mesmos. Estilos e essências: (re) pensando as relações estéticas e intervenções urbanas Segundo Lyn, a pichação e o graffiti partem da mesma essência, a intervenção ilegal. Quando é perguntado sobre a diferença entre as duas, afirma: Na essência, no começo, é a mesma coisa porque a pichação e o graffiti ilegal, vai muito disso aí, da ilegalidade porque a pichação é ilegal, é intervenção urbana. Se você fizer um graffiti ou uma pichação num lugar ilegal eles ficam muito parecidos não no estilo, mas na intervenção social. O fato de o graffiti e a pichação utilizarem o mesmo suporte para suas atividades – a cidade – de dialogarem com o espaço como forma de intervenção social e urbana, geralmente ilegal, dificulta a intenção de diferenciá-las e possibilita hibridizações e semelhanças diversas, bem como que os próprios grafiteiros se apreendam como grafiteiros que também fazem pichações. No entanto, Lyn enuncia uma diferença que se respalda no estilo. Pergunto-me se o discurso de Lyn vai ao encontro do que Ramos (1994) afirma ser um dos elementos que distingue a pichação do graffiti, a linguagem utilizada. O estilo o qual Lyn faz menção é o da elaboração das letras, o tempo exigido para o trabalho e rebuscamento da pintura, ou seja, o modo como o sujeito se insere nos espaços urbanos e intervém neles, assim como o estilo mesmo das letras. No graffiti parece haver uma preocupação estética com o resultado do trabalho e com o espaço. Não por acaso o tempo exigido para um graffiti, que usa variadas cores e atenta para os contornos, o que não é comum na pichação, é maior. Isso não quer dizer que no graffiti só há imagens com ilustrações e desenhos figurativos e na pichação mais as letras. No decorrer das entrevistas, os jovens esclareceram que no graffiti há letras e personagens, 149 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G letras que ganham uma forma singular, passam por um processo criador específico. Porém, na pichação não se faz qualquer letra, são igualmente letras estilizadas, criadas para possibilitar o reconhecimento da crew. Como afirma Orlandi (2004), as letras na pichação são sinais gráficos que representam uma vontade social e comunicam-se entre si fora da ideologia da informação e da comunicação convencionalmente aceitas nas cidades, como os outdoors por exemplo. Neste sentido, se na pichação parece não haver preocupação com os rebuscamentos, contornos, fundos e cores da imagem, a imagem produzida também passa por um processo criador singular, envolvendo uma percepção estética por parte de quem as cria e de quem as contempla, impondo, na mesma medida, uma estética outra aos contextos urbanos e para seus transeuntes, que muitas vezes as percebem como letras sem significado, rabiscos na parede. O aparentemente sem significado significa o urbano, impõese como signo urbano, ideológico, irrompendo com as formas cristalizadas de se comunicar e se expressar nestes espaços. Para os pichadores, que passam por um processo de iniciação no próprio movimento, aprendendo a fazer as letras e decodificá-las, essas palavras também significam, referem-se às suas crews, à sua existência, às suas escolhas, enfim, a tudo que a ordem simbólica dominante na cidade não viabiliza, renega, esconde, oculta. A discussão estética no urbano implica, fundamentalmente, em uma discussão ética em relação aos modos como os espaços da cidade podem ser utilizados e por quem. Da mesma maneira, dizer que no processo de criação na pichação não há preocupação estética com o resultado do trabalho ou com o espaço no qual a pichação é colocada, pois o espaço também não é qualquer um e sim aquele que faz sentido ao pichador e aos seus objetivos, é produzir efeitos de sentido, portanto, ideológicos, que vão de encontro com a estética-ética dominante nos contextos urbanos. No graffiti, por sua vez, há uma elaboração que tange a clareza e a mensagem que transmite, aproximando-se da arte por meio de sua linguagem. Qualquer busca de uma diferenciação estética entre graffiti e pichação não pode significar a pichação como uma atividade onde se faz qualquer coisa. Afinal, as letras passam por um processo singular, único, de invenção. Estilizadas, possibilitam a 150 Janaína R. Furtado Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas. diferenciação de um e outro pichador e vem qualificando a atividade no Brasil. E se o lugar, aparentemente, é qualquer um, está ao juízo do pichador, o lugar é justamente aquele capaz de causar impacto, de produzir efeitos a quem passa e a quem se considera proprietário do espaço. Neste sentido, a pichação e o graffiti desprivatizam, tornando públicos alguns espaços da cidade. Lyn e Ner contextualizam a pichação como uma atividade nacional que começou com a intenção de protesto por volta da década de 60. Deste protesto, a escrita de rua teria passado, segundo Lai, por um processo de evolução. Japão e Pablo também consideram o graffiti como a evolução da pichação e sua decorrência, a evolução da escrita de rua. Neste movimento, o graffiti tornou-se algo mais elaborado, exigindo outras técnicas. Para Japão, os procedimentos do graffiti – sombreamento, preenchimento da imagem, uso de diversas cores, detalhamento do fundo e da forma – provocam uma diferença estética clara: Esteticamente a diferença é clara né. Na pichação é só risco, traço, usando uma única cor e no graffiti é mais colorido e mais elaborado, mas hoje já está surgindo o“grapicho”, que é junção dos dois.(...) Os graffitis mesmos estão vindo influenciados pela pichação, por isso que eu te digo que a diferença é mais estética (JAPÃO, 2007). Japão afirma que a diferença entre graffiti e pichação é estética e se refere a alguns novos graffitis, os “grapichos”, que mesclam as duas atividades. Considera, contudo, que a pichação, tipo tag reto, é um produto nacional e que os graffitis são influenciados pelas inovações da pichação. De certa forma, o que Japão possibilita problematizar em seu discurso é que essas duas formas de intervenção urbana se hibridizam e se constituem mutuamente. A partir da entrevistas com os grafiteiros, percebe-se que, ao mesmo tempo em que afirmam haver uma diferença entre graffiti e pichação, constituem-se como grafiteiros na interlocução com os diversos sentidos apropriados acerca da pichação, muitas vezes atuando também como pichadores ou em uma prática de graffiti que muito se assemelha à pichação. Mesmo que a diferença esteja explícita no discurso, não significa que seja simples estabelecela partindo do produto destas atividades ou do modo como os grafiteiros intervêm nos espaços urbanos. 151 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Entretanto, entendemos que os grafiteiros denotam uma distinção em relação à linguagem utilizada no graffiti e na pichação, que produzem produtos estéticos diferentes. Decorre disso que os processos de criação envolvidos nestas atividades também se apresentam diversificados, na medida em que os grafiteiros procuram criar imagens usando variados elementos para sua elaboração. Por sua vez, são o foco o graffiti e a pichação de valorizações particulares, muitas vezes díspares por parte da sociedade, cujos produtos materiais estão, enquanto signos urbanos, inseridos no campo de disputas ideológicas. Considerações finais Embora graffiti e pichação sejam formas de intervenção urbana e a cidade seja o seu suporte, os objetivos destas práticas igualmente se diferem, bem como as relações tecidas entre os sujeitos, deles com esses objetivos e com a cidade. Por vezes, a linha tênue que pode separar o graffiti da pichação perpassa pela legalidade e ilegalidade do trabalho ou, mais precisamente, pelo tipo de intervenção realizada. Dificilmente uma obra mais elaborada, com cores diversificadas, contornos e fundos é confundida com a pichação, no entanto, o movimento de graffiti não se qualifica apenas por produções ou atividades autorizadas. Neste sentido, muitos grafiteiros seriam também pichadores se considerarmos apenas o produto da atividade e não todo o contexto no qual o próprio sujeito está inserido. Sabe-se que, por um lado, muitos grafiteiros aprenderam sozinhos e entre eles técnicas e procedimentos mais elaborados de graffiti. Por outro, as pichações de hoje são produções extremamente precisas e as suas letras estilizadas podem ser compreendidas como expressões estéticas no urbano. Se os grafiteiros designam diferenças entre graffiti e pichação, elas são, contudo, linguagens inter-cambiantes e se desenvolveram e ainda se desenvolvem de maneira interdependente. Entre graffiti e pichação evidenciam-se diferenças estéticas e diferenças na maneira de apropriação dos espaços urbanos. Diferenças que não suprimem as possibilidades de seus artífices, como grafiteiros, por vezes atuarem como pichadores ou 1 5 2 Janaína R. Furtado Graffiti e Pichação: Relações estéticas e intervenções urbanas. valorizarem a pichação como atividade por cujo intermédio podem protestar em relação às tensas dinâmicas sociais entre público e privado. Ademais, entre o autorizado e não autorizado, legal e ilegal, o graffiti e a pichação muitas vezes se assemelham e são compreendidos como práticas marginais, de vandalismo. Se no graffiti os sujeitos utilizam variados elementos para a elaboração da imagem no espaço, configurando diferenças em relação à pichação, na pichação também ocorrem processos de criação e seus produtos também implicam uma outra ética-estética no urbano. Notas 1 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres Humanos da UFSC em dezembro de 2005. Todos os entrevistados, devidamente esclarecidos quanto aos objetivos da pesquisa, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, contendo os objetivos da pesquisa, e autorizaram a utilização de seus nomes e imagens. 2 Bomb é um estilo de pintura que se assemelha muito à pichação porque é elaborado de forma rápida, sem muito refinamento de desenho e utilizando no máximo três cores de spray e um rolinho para contornos. Referências bibliográficas AMORIM, Marilia. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. Cadernos de Pesquisa, n.16, p.7-19. 2002. BAKHTIN, Michael. 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Janaína Rocha Fur tado Mestre em psicologia social pela Universidade Federal De Santa CatarinaUFSC. Email: [email protected] Co-autora: Andréa Vieira Zanella Professora do departamento de graduação e pós-graduação de psicologia da Universidade Federal De Santa Catarina-UFSC. Email: [email protected] 155 From the symbolic hermeneutics developed by the Circle of Eranos, and concepts like myth and symbol, this article aim to reflect about the artist’s myth as an extension of Hero’s myth. To identify the heroic myth as a point of reference in the artistic identity construction, I introduce mythcritic as methodology. Key-Words: symbol, myth, artist’s figure abstrac t O mito do artista como extensão do mito do herói Francielly Rocha Dossin resumo A partir da hermenêutica simbólica desenvolvida pelo Círculo de Eranos e de conceitos como mito e símbolo, este artigo visa refletir sobre o mito do artista como extensão do mito do herói. Para podermos identificar o mito heróico como ponto de referência na construção da identidade artística, apresenta a mitocrítica como metodologia. Palavras-chaves: símbolo, mito, figura do artista V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Mito e símbolo Toda fala da experiência artística é mito, todo mito é poesia1. Intelectualizar a arte é sempre uma tarefa árdua e intangível em sua completude. Podemos, ao invés de imbuir-nos de uma missão que de antemão se mostra frustrada, ser conscientes de que tangemos apenas partes do objeto em questão, o alcançamos apenas por uma aproximação, tão plena de interstícios e fendas quanto à própria arte. Se toda fala da experiência artística é poesia, devemos retê-la também na construção de um texto que se propõe a pensar a arte. Especula-se que a arte tenha surgido a partir de práticas rituais e mágicas. Pinturas e esculturas de períodos da chamada “pré-história” sobreviveram ao tempo, possibilitando especulações científicas, como dos arqueólogos. Naturalmente, expressões artísticas como a dança e o teatro não proporcionam tais formas de registro, fazendo com que a verdade em torno da origem da arte permaneça na ordem do inefável. No entanto, a hipótese da ligação entre a arte e práticas mágicas é bastante crível, principalmente quando nos atemos ao desenvolvimento da arte na história, em sua forma linear como estamos habituados. A partir do momento em que o homem teve consciência de sua “situação” no mundo, a questão que o atormenta desde então é sobre sua brevidade e possível posteridade. A morte é a grande impulsionadora, pois se constitui no fato mais transtornador da vida. Para poder suportá-la o homem cria, acontecimento esse onde pode projetar a transcendência. Na arte vemos e vivenciamos metáforas da existência e alegorias da morte. Toda prática humana se constitui como forma de buscar sentido para sua existência, mas a arte, como uma forma de linguagem, é então o lugar de excelência para a expressão dessa falta na busca de preenchê-la. Segundo o filósofo Théodore Jouffroy, “somente o invisível nos comove” (apud MANGUEL, 2003, p. 222), é este vácuo presente numa obra de arte que nos “atinge”, da mesma maneira que é justamente esse vazio que conduz a obra de arte e nossa relação com ela a um caráter de transcendência, e também, 158 Francielly Rocha Dossin O mito do artista como extensão do mito do herói porque não dizer, mágica. Afinal, nossa relação com a arte não se dá apenas através recognição da qualidade estética ou sua relevância histórico-social. É o que nos explica Vargas (2005, p. 19), “[...] O reconhecimento da qualidade da obra de arte não se limita a reconhecer o conhecimento da linguagem ou da história da linguagem, mas também é o reconhecimento de uma revelação, de um mistério”. A ciência no período da construção de seu discurso fundador precisou negar o que a precedeu para poder, enfim, conquistar seu posto que hoje ocupa de forma privilegiada e quase hegemônica em nossa sociedade. Como resultado disso, o discurso científico criou certos preconceitos vinculados a termos como magia, transcendência, mitologia e mito. Esses foram, e são vistos como superstições, histórias falsas, “coisas do homem primitivo e ignorante”, e são situados em oposição ao racional e à ciência. Desconsiderando, assim, as duas formas de pensamento como relacionais e igualmente inerentes ao homem. Apesar de negar a validade daqueles, podemos notar a presença do mito em toda nossa fala e comportamento. Dessa forma, o mito e a mitologia são boas fontes/formas para pensarmos modelos de comportamento e seus significados, principalmente em relação à permanência de modelos artísticos, é o que se propõe a mitocrítica. Mesmo não se oferecendo a ser de fato uma metodologia para análise e leitura de obras artísticas e críticas, a hermenêutica simbólica se constitui como base para uma reflexão epistemológica sobre os elementos que nos conduzem a relação dessas. A hermenêutica simbólica do Círculo de Eranos2 (Eranoskreis) nasceu na Europa no período entre guerras, mais especificamente na década de 30, na forma de um grupo interdisciplinar, com o objetivo de trazer diferentes concepções filosóficas e confrontálas com a concepção predominante no ocidente. Sabe-se que esse período histórico foi marcado pela desilusão acerca do pensamento econômico, científico e tecnológico, que sob a égide “civilizacional”, não pode conter crises como a de 1929, nos EUA, e a implosão da Primeira Grande Guerra Mundial que culminou ainda na Segunda Grande Guerra Mundial3, as quais o historiador Eric Hobsbawn, por exemplo, chama de “Guerras Totais”. Segundo ele, “para os que cresceram antes de 1914, o contraste foi tão impressionante 159 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G que muitos [...] se recusaram a ver qualquer continuidade com o passado” (HOBSBAWN, 1995, p. 30). Essas experiências impulsionaram o esforço para encontrar formas alternativas para o pensamento ocidental que se mostrava então tão desastroso. A inspiração teórica do Círculo de Eranos foi Carl G. Jung, o que justifica a direção junguiana que o grupo toma desde o início. Muitos reconhecidos pensadores fizeram parte do grupo, dentre eles, o mitólogo Joseph Campbell que se dedicou principalmente ao estudo do mito do herói, o romeno Mircea Eliade já bastante conhecido dos acadêmicos brasileiros, e o antropólogo Gilbert Durand que desenvolve a mitocrítica, metodologia para análise de obras literárias, infelizmente ainda pouco conhecido e estudado no Brasil. O conteúdo conceitual erosiano centra-se no estudo da mitologia e do mito que é o veículo no símbolo. O conceito de símbolo é o que difere o pensamento do Círculo de Eranos de outras correntes do pensamento como, por exemplo, o estruturalismo. Difere também da hermenêutica filosófica, na qual Gadamer é um dos maiores representantes. Nesta o homem é marcado pela tradição e cultura. Para Gadamer (1985), estamos imersos na história e não há possibilidade de nos situarmos fora dela. Já sob o ponto de vista da hermenêutica simbólica o mito antecede a história, logo, qualquer consciência histórica é, em verdade, precedida de uma inconsciência mítica. Sobre a questão o pesquisador, professor e artista Antônio Vargas (2006, p. 26) diz, “Durand esclarece que sem o funcionamento das estruturas míticas não há inteligência histórica possível, já que é a existência de uma mitologia ‘mãe’ que permite que os acontecimentos históricos sejam ‘inscritos’ em uma narrativa com sentido coletivo”. Não obstante, esse entendimento se dá também pela negação do conceito de história como linearidade e evolução. O símbolo, principal conceito, assim como os outros conceitoschave da tradição erosiana, é bastante complexo, ambíguo e inesgotável. Defini-lo é uma tarefa escorregadia, até porque estamos na ordem do simbólico o que dificulta sua identificação, mas mesmo assim é sempre uma manifestação concreta. O símbolo aqui apresentado não corresponde ao símbolo/signo 160 Francielly Rocha Dossin O mito do artista como extensão do mito do herói semiótico, pois ele é uno, sendo ao mesmo tempo significante e significado, não tem objetividade em si, também não contém apenas subjetividade. Ele é conduzido através do mito (narrativa), e seu sentido se constrói através das redundâncias sincrônicas. O símbolo é também relação, não permitindo distanciamento e exigindo afetividade, por isso algo é símbolo para uma pessoa quando esse algo existe nela e para ela, lembrando que o substancial nesta instância é menos os pólos desta relação do que a própria relação. Portanto, o símbolo foge à ordem da razão e se instaura na ordem do transcendental. As grandes imagens inseridas na história da arte, por exemplo, nos pertencem como símbolos. Assim, a atividade artística e até mesmo a própria idéia de arte podem também ser entendidas como símbolos. Em toda relação há um pré-conceito, ou concepção que a antecede. Essa concepção para Gadamer é histórica, enquanto a hermenêutica simbólica não se detém na história e na realidade como expressão dialética, pois há sempre o elemento de poesia, de elevação que não se deixa reduzir. Para a hermenêutica simbólica, antes da história há o mito, que seria então pré-conceito. O que explica o símbolo é esse conceito prévio não racionalizável. Quando o símbolo necessita de explicação ele deixa de ser, se instaura uma crise e perde seu sentido gerando outra significação, talvez menos rica. Ele é o que desencadeia na pessoa, uma espécie de epifania. O símbolo está presente no mito, que por sua vez, tenta dar conta da singularidade simbólica, ligando o homem ao mundo. O mito do herói e o mito do artista Vários mitos atuam numa sociedade, uns emergem e outros submergem. Um mito, como o do herói, pode ser visto por um olhar histórico e social no sentido de que dentre suas diversas características, algumas são mais ou menos enfatizadas dependendo de seu contexto. Um dos maiores símbolos é o mito do herói. Carregado de tragicidade, o heroísmo não é moral, lembrai-nos que o mito não é histórico nem cultural, e qualquer ato do herói, circunscrito num 161 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G espaço-tempo, que poderia ser moralmente julgado, é justificado pelo fim que visa sempre o bem da coletividade. Segundo Vargas (2006, p. 27), O herói é um dos símbolos mais importantes existentes. Nos emocionamos com sua trajetória porque, embora sua origem seja parcialmente divina e seus feitos estejam além do humano, ele também é humano, sofre como nós, possui uma existência finita e um fim trágico. E o mais importante: o motivo da existência do herói é a realização de uma ação que beneficiará a coletividade. É seu destino. Podemos claramente notar a forma como o mito do herói é vivenciado quando nos deparamos com o mito do artista. Ao submeter os discursos de especialistas em arte, como críticos, historiadores e mesmo artistas, à análise mitocrítica podemos claramente notar que a mitologia artística está fortemente presente na obra de arte e, principalmente, na construção da identidade artística. Vargas nos relata que os estudos de Ernst Kris, Otto Kurz e Eckhard Neumann, “apontam um redobramento do mito do herói em mito de artista. As mesmas características heróicas são encontradas nas biografias de artistas assim como, nas análises e declarações da crítica sobre os artistas e suas obras”. E continua, “O mito do artista atua como um fio invisível que une sincronicamente observadorobra-artista, logo permite a vinculação de um determinado artista como outros de diferentes épocas” (VARGAS, Ibid, p. 27). Podemos verificar nas biografias dos artistas, em suas próprias falas ou as da crítica, a repetição de alguns mitemas, com variações, é claro, de um relato para outro, mas mantendo certa regularidade em sua estrutura. Mesmo atualmente, apesar de artistas e críticos negando qualquer tônica mitológica, encontramos mitemas que coincidem com a trajetória do herói. Por isso pode ser interessante no estudo sobre identidade artística considerar a influência do mito e da mitologia em sua construção simbólica coletiva. A mitocrítica é uma metodologia criada por Durand, para obras literárias que Antonio Vargas adapta para as artes plásticas, e nos relata (Ibid., p. 152), “[...] propus uma via alternativa cruzando os pressupostos epistemológicos e metodológicos apresentados por Durand com outros oriundos dos estudos sobre a mitologia 162 Francielly Rocha Dossin O mito do artista como extensão do mito do herói artística.” E ainda, “O resultado preserva os três pilares e assegura o lugar da obra como lugar central da discussão, mas substitui a identificação dos mitemas nas obras para localizá-los nos discursos da crítica sobre as obras e o autor e do autor sobre sua obra e seus conceitos de ser artista” (VARGAS, p 152). Em seus estudos, Durand pôde notar que uma obra só resiste ao tempo quando se mitifica. É com o objetivo de auxiliar a identificar a mitologia nos discursos referentes às obras que surge a mitocrítica. Tal método considera a estrutura, o autor (e sua biografia) e o contexto sócio-histórico da época, que são os três pilares citados acima por Vargas. O caminho que a mitocrítica propõe é a procura da redundância nos conjuntos de mitemas. O mitema é a menor unidade com sentido dentro da narrativa do mito, e os mitologemas são mitemas maiores, como capítulos. Por exemplo, o mitologema de origem contém mitemas como o de ascendência nobre, proteção divina, profecia, nascimento difícil e precocidade. Mas não podemos pensar em entender o mito como algo retilíneo, em partes, mas sim, em sua integralidade, é o que nos alerta Levi-Strauss (1979, p. 67-68), “[...] devemos estar conscientes de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja, linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito, porque temos de apreender como uma totalidade [...]”. Pensemos ainda sobre a figura do artista. Ele não constrói sua identidade do nada, mas sim de idéias precedentes sobre o que é ser um artista. O primeiro título oficial concedido a artistas foi o de “familiar”, referentes aos artistas que trabalhavam para uma determinada corte, na época o título os elevava ao status de membro da corte. Daí até antes do romantismo, os artistas conviveram relativamente bem com os que criavam a demanda por arte, os nobres e a igreja. No romantismo, período de desencantamento com a revolução industrial e com a burguesia, começamos a notar uma abundância em relação a biografias dramáticas, narrando as infinitas faltas e necessidades passadas por determinados artistas. A influência do romantismo é contundente, visto que o modelo de artista transformador nasce nesse período, apesar de muitos pensarem que esse modelo tenha surgido com as vanguardas modernas. 163 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Como escreve Peter Gay (1999, p. 11), é nesse momento em que a burguesia (incluindo artistas, médicos, historiadores, etc.) começa a se deliciar e se angustiar com uma certa introspecção, visando uma busca maior do “eu”, da individualidade. Essa herança romântica é um paradoxo para o artista que busca a aproximação da arte com a vida, pois o artista romântico é o desajustado. Em Goya, por exemplo, podemos notar em sua biografia que a maior redundância se dá em torno da valorização do marginal. Também herança do romantismo é o que se refere à degradação dos corpos, ao martírio que demonstra os limites da consciência humana, está presente então, o artista criador de consciência e de verdade. As principais características do herói é visar o bem da coletividade, como já citado, e o de transitar entre mundos, afinal, “o herói [é] a união das forças celestes e terrestres” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1989, p. 488). Isso se mostrará de diferentes formas na trajetória do artista. Podemos facilmente notar isso quando o mito do herói se estende para o mito da celebridade, talvez o herói mais em voga em nosso tempo. É comum relato de celebridades que depois de viverem períodos turbulentos (como a experiência com drogas) voltam para compartilhar sua experiência com a coletividade, ou em relato próprio ou de tablóides narrando como tais celebridades fazem ou pensam “qualquer coisa” própria do “mortal”. Quando o mito do herói se estende no mito do artista, podemos notar dois modelos principais: O artista guerreiro, de natureza externa tendo como principal característica anexar territórios, ou seja, ampliar o campo de atuação, e o artista asceta, de natureza interna cujo traço marcante é o de lutar com seus próprios limites, de psicopompo. Uma parte da narrativa que para o modelo guerreiro pode ser um importante mitema, para o artista de natureza interior pode nada ser, ou ainda, ser sua ruína. Um bom exemplo é o filme que narra a vida de Jackson Pollock, artista de natureza interior. O filme nos mostra que quando surge o mitema de potência sexual é exatamente no momento de sua derrocada. Já o mesmo mitema presente na narrativa biográfica de um artista de natureza exterior se mostra como algo positivo até mesmo fator constituinte de seu ato criador, como por exemplo, no filme biográfico de Pablo Picasso. 164 Francielly Rocha Dossin O mito do artista como extensão do mito do herói Um mitema bastante freqüente é o da precocidade, dificilmente se lê alguma biografia ou texto crítico que não relate o belo desenho que o grande artista em questão fez na infância, ou como cantava aquela criança que agora se tornara um famoso tenor, mesmo sabendo que toda criança pode desenhar e cantar de forma graciosa a obter aplausos da família. Podemos notar na crítica de Donald Kuspit (1992), que mesmo quando tentamos de alguma forma ‘nos livrar’ do mito do artista, acabamos por reafirmá-lo. No texto, Kaspit fala do mito do artista de vanguarda (que na verdade é bem anterior ao período dos ‘ismos’), onde identifica dois modelos, o artista educador (equivalente ao guerreiro, de natureza exterior) e o artista personalista (equivalente ao asceta, de natureza interior). O primeiro, é aquele que procura revolucionar, ou seja, mudar o mundo herdado; o segundo, é aquele que entende a arte como sofrimento, sentimento que se constitui como via para um “Eu” elevado. Cansado desses modelos pretensiosos, o autor clama pelo “artista suficientemente bom”. O modelo proposto é o de um artista que se apóia na sua exclusividade, menos interessado em lutar com o mundo e mais propenso a viver em harmonia com o mundo. Este artista aceita o fato de que é parte da sociedade, pois sem a sociedade não há o “Eu”. Ainda, aqui, sua sugestão parece bastante coerente, mas ao finalizar o texto onde tece sua nova proposta, mostra o quanto o mito do artista continua claramente presente ao dizer que através do novo modelo de artista suficiente bom talvez consigamos, enfim, mudar o mundo. O mito do herói parece ser prioritariamente masculino, essa é uma questão que deixo, neste momento, em aberto. Tal fato pode ser compreensível ao entender que nossa história da arte se baseia na historiografia ocidental, eurocêntrica. Mas seria correto pensar o mito como algo que precede a história e o social e se instala no inconsciente? Se a resposta é afirmativa, como entender a falta da mulher nestas narrativas entendidas como o mito do herói? Para entender o mito do herói que se desdobra no mito do artista, teremos de, para uma futura pesquisa, analisar, se é que possível, o mito de uma heroína e achar sua estrutura nas imagens de artistas mulheres. Uma pesquisa sobre a figura da artista mulher é bastante interessante e relevante. Fica aqui lançado o desafio. 165 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Notas 1 Fala do professor Dr. Antônio Vargas durante as aulas do seminário temático “mito e imagem do artista” ministrado em 2007/2 no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina. Aproveito a ocasião para observar que as digressões aqui expostas são frutos de reflexões a partir das aulas deste seminário. 2 Fundado por Olga Fröbe-Kaptein e tendo como padrinho o fenomenólogo Rudolf Otto. 3 Entre elas a guerra civil espanhola, que se mostrou um conflito não só espanhol, mas europeu, quando todas as concepções políticas se materializaram nas guerrilhas. Referências CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1993. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 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Florianópolis: UFSC, 2005. 166 Francielly Rocha Dossin O mito do artista como extensão do mito do herói Filmes POLLOCK. Direção: Ed Harris. Produção: Brant-Allen, Fred Berner Films, Pollock Films, Zeke Productions. Roteiro: Steven Naifeh, Gregory White Smith, Barbara Turner, Susan J. Emshwiller. Intérpretes: Ed Harris , Marcia Gay Harden, Tom Bower, Jennifer Connellye outros. [E.U.A: California filmes], 2000. 1 fita de vídeo (122 min). OS AMORES DE PICASSO. Direção: James Ivory. Produção: Ismail Merchant e David L. Wolper. Roteiro: Ruth Prawer Jhabvala, baseado em livro de Arianna Stassinopoulos Hoffington. Intérpretes: Anthony Hopkins, Natascha McElhone, Julianne Moore, Joss Ackland e outros. [E.U.A: Warner Bros], 1996. 1 fita de vídeo (125 min). Apoio GARAGALZA, Luis. Filosofía e historia en la Escuela de Eranos. In: Anthopos – Revista de documentación científica de la cultura. Barcelona: Anthropos, n.153, 1994. ORTIZ-OSÉS, Andrés. El círculo eranos: origem y sentido. 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R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G 168 Francielly Rocha Dossin O mito do artista como extensão do mito do herói Francielly Rocha Dossin Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – PPGAV, Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – CEART/UDESC. E-mail: [email protected] 169 Divided in three parts, this text begins with a short presentation of American photographer Cindy Sherman. The second part of the text introduces the series of photographs: “Untitled Film Stills “, through which the artist gained notoriety in the contemporary art world. Sherman’s auto-portraits are analysed as a staged criticism of femininity represented in television and cinema. The last part of the text discusses a photograph from the series “Untitled Film Stills”; the artist gazing at a mirror. Through Roland Barthe’s considerations in: “Camera Lucida” self-portraits and mechanisms of representation of the artist are discussed. Key words: Cindy Sherman, identity, self portrait. abstrac t Auto-Retratos Da Pós-Modernidade: Cindy Sherman Em “Untitled Film Stills” Ângela Prada resumo Dividido em três partes, este texto inicia-se com uma breve apresentação do trabalho da fotógrafa americana Cindy Sherman. A segunda parte do texto trata do seu primeiro trabalho, considerado uma referência na arte contemporânea: “Untitled Film Stills” (Fotografias de Cena sem título). Desenvolvido durante o final da década de 70 nos Estados Unidos, o trabalho representa e questiona imagens da feminilidade, construídas ao longo dos anos pelo cinema e televisão, em forma de auto-retrato. A última parte do texto analisa uma fotografia deste trabalho. Sob a ótica da obra “A câmara clara” de Roland Barthes são traçadas análises sobre a questão do autoretrato e mecanismos de representação da artista. Palavras-chaves: Cindy Sherman, identidade, auto-retrato. V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Esclarecimentos iniciais sobre Cindy Sherman Nascida em Glen Ridge, no Estado de Nova Jersey, a artista americana Cindy Sherman cresceu no subúrbio de Nova Iorque. Quando criança um de seus passatempos favoritos era brincar com roupas. A pequena Cindy gostava de se vestir com roupas de adultos. Seu pai, um engenheiro e sua mãe, professora, se divertiam fotografando a pequena garota vestida com as roupas velhas da avó: “com meias dentro de um sutiã que pendia na cintura” (SHERMAN apud SMALL, 1987, p. 157). Sem preocupações em se vestir para parecer bonita, mas interessada em encarnar outros personagens, Cindy Sherman se lembra de uma foto que tirou junto com sua amiga quando pequena; as duas se vestiram de velhinhas e andaram pelo quarteirão, encontrando um vizinho que fingiu acreditar naquela simulação1. Durante a década de 70, Sherman foi aluna de graduação do curso de Artes Plásticas do “State University College em Buffalo”, Nova Iorque. Inicialmente se envolveu com pintura: “algo para fazer enquanto eu assistia à tv” (SHERMAN apud SMALL, 1987, p. 157) e gostava de copiar exatamente o que observava em revistas ou em seu reflexo no espelho. Inserida na tradição do auto-retrato, Sherman pesquisava seu próprio rosto. Formada em Artes Plásticas em 1976, Sherman se mudou no próximo ano para Nova Iorque. Suas inocentes brincadeiras de criança iam adquirindo contornos cada vez mais sofisticados: a artista continuava a se produzir, elaborando cuidadosamente um teatro da superfície sobre seu suporte favorito - ela mesma. Ao se caracterizar como diferentes personagens, Sherman se concentrava somente na aparência, sua atitude não sofria transformações; suas simulações eram cuidadosamente elaboradas com visitas freqüentes a brechós, bazares2 e empréstimos de amigos. Para Sherman as personagens pareciam surgir dos objetos e roupas que ela ia adquirindo: “... e de repente os personagens surgiam, só porque eu tinha tantos detritos deles.” (SHERMAN apud HOWELL, 1995, p. 7) Se auto-definindo como “reservada”3, para a artista, o sentido de se vestir de formas diferentes era: “[...] mais uma questão de me esconder, estar disfarçada, ir de for172 Ângela Prada Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills” ma subversiva para uma abertura de exposição onde as pessoas não saberiam que eu estava lá. Eu não estava representando um papel; eu nunca me vesti e depois me comportei como uma pessoa bizarra; era mais uma questão de subversão me mim mesma” (SHERMAN, 2003, p. 5). Seu primeiro grande trabalho fotográfico, através do qual a artista ganhou notoriedade no disputado universo da arte contemporânea foi realizado durante os primeiros anos em que se mudou para Nova Iorque. Esta série de 70 fotografias é denominada: “Untitled Film Stills” (Fotografias de Cena sem título) e objeto de estudo deste texto. Vejamos algumas imagens desta série: Figura 1 - Imagens da série Untitled Film Stills” (Fotografias de Cena sem título) Depois deste primeiro trabalho, Sherman, prosseguiu suas pesquisas artísticas utilizando seu corpo como uma tela para diferentes simulações. Suas fotografias são agrupadas em séries e cada imagem é tão diferente, que rosto verdadeiro por trás de tantos disfarces parece cada vez mais impossível de ser localizado. 173 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Após um início de carreira com dificuldades financeiras, as múltiplas telas corporais de Sherman logo se tornariam um negócio extremamente rentável: a primeira série de fotografias de Cindy Sherman – “Untitled Film Stills” (Fotografias de Cena, sem título), foram adquiridas pelo MOMA (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque), vinte anos depois da sua mudança para Nova Iorque, por um milhão de dólares. Uma exposição de toda a série foi realizada no MOMA em 1997 e patrocinada pela cantora Madonna4. Hoje, as fotografias de Sherman alcançam preços consideráveis em leilões de arte de prestígio tais como Sotheby’s e Christie’s. Segundo de poimento de David Ross, seu trabalho mudou a idéia do que a fotografia poderia ser5. Já, John Waters6 nos oferece o seguinte depoimento: “as pessoas não falam mais em fotografia, mas sim em arte, por causa do seu trabalho” A popularidade de Cindy Sherman é crescente no universo da arte contemporânea. Não são apenas ávidos colecionadores que procuram suas imagens, Sherman parece ter se estruturado como uma artista ícone da representação fotográfica pós-moderna. Seu trabalho é considerado referência para muitos outros artistas jovens. Artigos e comentários sobre sua obra são abundantes na Internet. Controvérsias e diferentes interpretações sobre suas diversas séries vêm sendo traçadas ao longo dos anos por inúmeros especialistas e teóricos de diferentes áreas como: semiótica, fenomenologia, feminismo e psicanálise. Interessante salientar que o trabalho da artista gera tantas polêmicas teóricas que Arthur Danto (1990,p. 65), de forma jocosa aponta que: “...deve haver programas de estudo inteiros em instituições de estudos avançados onde pode-se formar e até conseguir um título de doutor em 'Estudos sobre Sherman'7 Untitled film stills O primeiro trabalho de Cindy Sherman: “Untitled Film Stills” (Fotografias de Cena, sem título), é considerado uma referência na história da arte contemporânea. Ao nos debruçarmos sobre estas fotografias, encontramos elementos para a discussão sobre formas de representação da figura feminina na arte. Em “Untitled 174 Ângela Prada Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills” Film Stills”, Sherman representa e questiona ícones da feminilidade, construídos ao longo dos anos pelo cinema e televisão, em forma de auto-retratos. Este trabalho, realizado entre 1977 e 1980, é inteiramente feito em formato 35mm, preto e branco. Em uma primeira observação, nas 70 fotografias de cenas apresentadas por Sherman, temos a impressão de observar mulheres diferentes retratadas em situações extremamente ambíguas, que nos remetem a um universo ficcional de imagens de filmes, anúncios, revistas de moda e televisão. Porém, em uma análise mais atenta e acurada, percebemos que todas as mulheres representadas são na verdade, versões cuidadosamente construídas de uma mesma mulher: a fotógrafa Cindy Sherman. Nesta série, a artista trabalha simultaneamente como diretora, maquiadora, cenógrafa, figurinista, atriz e fotógrafa de cena. O autor David Harvey em sua obra: Condição Pós Moderna (1992, p. 18) se confundiu com a ambigüidade das imagens apresentadas por Sherman. Ele nos relata uma visita à exposição da artista e relata que demorou para perceber que todas aquelas fotografias eram de uma mesma mulher. Ora, o trabalho de Cindy Sherman, em “Untitled Film Stills” é inteiramente construído sobre um jogo de aparências. Uma hábil manipuladora e construtora de aparências, Sherman utiliza cenografia, maquiagem, figurino e iluminação como um pintor utilizaria um pincel. Esta hábil manipulação dos estereótipos femininos que Sherman representa em uma performance orientada com o seu próprio corpo, nos aponta para o jogo de aparências que nós, participantes e consumidores destas imagens também parecemos experienciar. Sherman parece totalmente consciente das simulações estabelecidas pelo seu jogo de aparências, quando ela nos diz: “...as pessoas vão buscar por debaixo da maquiagem e das perucas por um denominador comum, o reconhecível” (SHERMAN apud FELIX, 1996, p. 15). Isto é, ao olharmos para estas fotografias, tentamos desesperadamente reencontrar a Cindy Sherman real por trás de todas as aparências que ela habilmente constrói (grifo nosso). Mas nossa autora não será tão facilmente reencontrada. Ela continua seu jogo de simulações dizendo: “...quero fazer as pessoas 175 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G reconhecerem algo sobre elas, ao invés de mim” (SHERMAN apud FELIX, 1996,p. 15). Permeadas por ambigüidades e por um jogo que nos deixa suspensos esperando uma próxima ação que parece prestes a acontecer (em um espaço extra-quadro, ou em uma seqüência cinematográfica sugerida), as fotografias de cenas apresentadas por Sherman, nos dão a impressão de vermos mulheres totalmente diferentes, pegas de surpresa em meio a cenas enigmáticas. Ao lidarmos com clichês e um imaginário visual claramente sedimentado em nossas mentes sobre papéis da feminilidade, a performance fotográfica particular que Sherman nos oferece, manipula habilmente nosso olhar. Todas estas fotografias parecem ter um valor conotativo subjacente, questionando mecanismos de representação da figura feminina na mídia. Nosso olhar divaga confuso, atento e maravilhado: o jogo de simulação da imagem feminina proposto por Sherman é construído habilmente e brinca com nossa memória visual dos estereótipos. A artista nos intriga de forma contundente, pois o que parece estar em jogo aqui, é também a nossa consciência de auto-imagem. Vamos tentar desvendar uma fotografia deste trabalho para também compreendermos mais sobre nós mesmos. Nosso reflexo no espelho de Cindy Sherman Com uma escrita em tom confessional, Roland Barthes, o autor de “A câmara clara” discorre sobre o seu desejo em descobrir o que é a “fotografia em si” (BARTHES, 1984, p. 12). Com um discurso metodológico que aborda semiologia, psicanálise e filosofia o autor procura desvendar os mistérios de fotografias que o ferem como lanças pontiagudas. Um realista ferrenho dividido entre o desejo e o seu objeto; Barthes somente concebe a dualidade da fotografia em termos teóricos. As duas faces: referente e representação estão coladas; os grãos de prata atestam a emanação luminosa do sujeito, do “isso foi”8. O que Barthes observa está ali: o seu reencontro com sua mãe já falecida em uma fotografia antiga é a maior prova disto. 176 Ângela Prada Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills” Ora, a concepção da fotografia como um objeto duplo, onde não podemos separar o que é representado da sua imagem, é extremamente pertinente para iniciarmos esta análise sobre uma imagem de Cindy Sherman. Salientamos a fotografia n. 56, da série “Untitled Film Stills” em que Sherman se olha no espelho: Figura 2 - fotografia n. 56, da série “Untitled Film Stills” Diante das imagens de Cindy Sherman, a busca pelo referente; ou seja, pela real identidade da artista, por trás de toda a máscara de maquiagem, figurino e encenação, é uma constante. Em busca pela figura autêntica, pela Cindy Sherman real, por trás de todos os simulacros cuidadosamente construídos, autores interpretam esta e todas as outras 69 fotografias da série, como se fossem emanações da personalidade da própria artista, que estaria representada de forma múltipla em toda a série “Untitled Film Stills”. Esta busca é uma constante em trabalhos teóricos, claramente reforçada pelo fato da artista utilizar seu corpo como suporte para os múltiplos personagens camaleônicos que cria. A analogia com as observações de Barthes são claras: se a fotografia ou a imagem constitui-se enquanto emanação do seu referen- 177 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G te, as imagens de Sherman também se desdobrariam em representações da própria autora: personagem e artista estariam espelhadas em forma de auto-retratos. Mas Cindy Sherman faz auto-retratos? As palavras de Sherman são reveladoras neste sentido: inicialmente ela nega estar produzindo auto-retratos, mas refletindo um pouco sobre a sua forma de caracterização ela nos diz: “[...] sempre tento me distanciar o máximo possível de minhas fotografias. Talvez por isso mesmo eu crie auto-retratos [...]” (SHERMAN apud BROFEN, 1996, p. 14). Ora, percebemos uma contradição em suas palavras; ao mesmo tempo em que se sente distanciada dos personagens que cria, Sherman também se sente próxima, pelo seu próprio distanciamento. Vejamos as palavras de Whitney Chadwick9 sobre a artista: “O trabalho da fotógrafa norte americana Cindy Sherman representa o fim do auto-retrato porque não revela absolutamente nada sobre a personalidade da artista”. Se distanciando das concepções correntes de auto-retrato enquanto espelhos da identidade, da alma, da subjetividade e da autoimagem do retratado, o trabalho de Sherman propõe um desvio. Interessante salientar aqui também, os comentários de Michelle Maryanne (2005, p. 142) em sua tese de doutorado sobre a artista. Ela aponta que estes auto-retratos, ao invés de revelarem um ser mítico; isto é a própria criadora por trás da máscara, na verdade se estruturam enquanto uma representação onde a identidade (ou no caso o referente de Roland Barthes) é oferecida para o outro. O receptor, espectador cinematográfico, público voyeurista, críticos, fãs e jovens seguidores da estética da pose possuem um papel fundamental na atribuição de sentido às imagens da artista. O referente que Cindy Sherman representa é devolvido em forma de reflexo para aqueles que a observam. Além das máscaras artificialmente construídas; a peruca, a maquiagem, a luz, a artista questiona um sistema de representação construído sobre a aparência. Neste sentido, Laura Mulvey (1983, p. 442) a célebre autora do texto: “Prazer visual e cinema narrativo”, nos esclarece que o ato de observar personagens no cinema retoma para os espectadores, um momento na constituição da personalidade humana que Lacan 178 Ângela Prada Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills” denomina de: “a fase do espelho”. É durante esta fase que a criança reconhece sua imagem refletida no espelho. Mas esta imagem reconhecida é vista como um corpo refletido do ser, uma imagem no espelho mais perfeita do que a experiência de nosso próprio corpo. Analogamente, este tipo de operação parece estar em pleno funcionamento quando os espectadores de cinema assistem a um filme: sensações de reconhecimento com a imagem projetada na tela, operam a todo o momento. A tela cinematográfica converte-se em espelho da nossa auto-imagem projetada. Ora, ao olharmos para a imagem de Sherman frente ao espelho é natural que rememoremos nossa própria imagem refletida e que também, ao mesmo tempo, esta nos escape; de alguma forma continuamos buscando emanações do referente. Mulvey nos diz: uma super-instência na superfície pode estar mascarando algo que não está sendo visto. Narciso mergulha no lago apaixonado pela sua própria imagem; inútil procurar algo atrás do espelho, a máscara de Sherman é o auto-retrato da superfície. As superfícies do papel fotográfico e do espelho são planas: impossível mergulhar e se afogar tentando desesperadamente encontrar aquela que se revela sobre papel. O jogo da fotógrafa brinca com o reflexo: aparências estereotipadas; uma ilusão onde viver não ultrapassa a superfície do espelho. Para onde fugiu o referente de Roland Barthes? O “isso foi” dificilmente será reencontrado. Alguns entrevistadores falam da decepção ao se depararem com a verdadeira artista: um rosto branco inexpressivo. Uma mulher comum, vestida de calça jeans e moletom, uma expressão vaga, um olhar desprovido de significado. Por mais que tentemos encontrar a Cindy Sherman real em nossa análise teórica, buscando referências para tentar compreender quem é a mulher mascarada que se olha; ao nos depararmos com uma imagem onde ela se observa no espelho, caímos novamente em seu jogo de simulações. A mulher que observa sua imagem refletida é também mais uma personagem. Cuidadosamente construída, com maquiagem, peruca loira e uma poderosa contra-luz, Cindy Sherman observa mais uma de suas poses artificialmente construídas frente ao espelho. Sobrará 179 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G espaço nesta imagem para um pedaço de nosso reflexo? A cabeça mutante de Sherman é muito maior do que a nossa cabeça pensante e desmorona sobre a superfície do espelho. Ao buscarmos a nossa imagem parecemos nos dissolver na imagemespelho da artista. Em meio a tantas outras encenações, a referente e a sua representação, agora inevitavelmente cindidas, parecem precisar de uma pequena pausa para ver o que está refletido na tela fotográfica. Sherman se converte em caleidoscópio de nós mesmos. Notas 1 “Eu me tornava um monstro, ou algo parecido – era muito mais divertido do que ficar parecida com a Barbie.” (SHERMAN, 1997 apud FUKU, 1997) 2 Sherman relata que compunha seus personagens comprando roupas em brechós, pois não gostava de lojas convencionais e também não dispunha de muito dinheiro. Porém, o hábito de comprar artigos usados parece ter acompanhado Sherman, mesmo depois de ter tido muito sucesso financeiro com as suas obras. Freqüentadora assídua dos chamados “yard sales” (vendas de artigos usados por famílias nos Estados Unidos) Sherman não resiste a mais uma compra: “Eu incremento minhas sucatas”. (SHERMAN, 2001 apud SCOTT, 2001). 3 Sherman relata ter tido um pouco de dificuldade em morar no Hallwalls – um espaço coletivo. Seu quarto era no final do corredor. (SHERMAN, 2003, p. 5). 4 Para maiores informações sobre esta exposição, consultar: http://www.moma.org/ exhibitions/1997/sherman/index.html 5 Ross (diretor de importantes museus nos EUA), assim como várias personalidades do mundo das artes plásticas nos EUA oferecem seu depoimento a respeito do trabalho da artista no vídeo: “Guest of Cindy Sherman” que narra o envolvimento da artista com o seu namorado Paul H-O produtor de um programa sobre exposições denominado “Gallery beat”. O trailer em formato de vídeo digital, está acessível em: http://www.youtube.com/ watch?v=CeRu2t84SWE. 6 John Waters, diretor de comédias transgressoras nos EUA na década de 70, também oferece seu depoimento sobre Sherman neste vídeo. Acreditamos que a distinção entre as duas palavras acaba por denegrir a concepção da fotografia enquanto obra de arte, desta maneira optamos por utilizar tanto a designação fotógrafa quanto artista ao nos referirmos à Cindy Sherman. 7 Danto, apesar de ser um grande entusiasta do trabalho da artista dirige sua crítica ao que chama de: “radicais feministas neo-estruturalistas, marxistas da escola de Frankfurt e hermenêuticas semiológicas”. (DANTO, 1990,p.65) 180 Ângela Prada Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills” 8 Barthes utiliza especificiamente esta expressão para se referir à singularidadade da imagem fotográfica: “...na fotografia jamis posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla relação conjunta: de realidade e de passado. ...O noema da fotografia será então: ‘isso foi’...”. (BARTHES, 1984, p.15). 9 A este respeito ver: Chadwick, Whitney. The self portrait: seduction and betrayal the difficulty of reading self portraits. Disponível em: http//www.npg.org.uk/live/mirrconf.asp. Referências Livros BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução: Júlio Castanon Guimarães, 3. ed, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. FELIX, Zednik. Cindy 1975 -1995. Hamburg: Sherman Schimer Photographic Art Books, Work, 1996. HARVEY, David. A condição pós moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 5. ed, São Paulo: Edições Loyola, 1992. MARYANNE, Maryanne. Framing the artist: Cultural Analysis and the myths of Cindy Sherman. 1 ed. Fairfax: Pro quest Information and Learning Company, 2005. PHILLIPS, Lisa Photoplay: obras da The Chase Manhattan Collection. New York: The Chase Manhattan Collection, 1994. SHERMAN, Cindy. The complete Untitled Film Stills: Cindy Sherman. 1 ed.New York: The museum of Modern Art, 2003. XAVIER, I (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. 181 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Periódicos DANTO, Arthur. C. The state of the art world: the Nineties begin. The Nation, New York, v. 251, n. 2, p. 65, July 9, 1990. FUKU, Noriko. A woman of parts. Art in America. New York., v85, n6, p74, jun. 1997. HOWELL, Greg. Anatomy of the artist. Art Papers, 19, n. 4, july/august, 1995. MULLINS, Charlotte. Living doll Photographer Cindy Sherman tells Charlotte Mullins about artifice as image. The Financial Times, New York, 31 maio 2003. Weekend Magazine – The arts, p. 28, may, 2003. SCOTT, Stefanie. Rummage Sale Enthusiast in Wisconsin Shares Shopping Strategy. The Post-Crescent. Appleton, abr. 26, 2001. SMALL, Michael. Photographer Cindy Sherman shoots her best model – herself. People Weekly, v. 28, n. 22, p. 157, nov. 1987. Documentos eletrônicos <http://www.moma.org/exhibitions/1997/sherman/index.html> Acesso em: 03/06/2005. CHADWICK, Whitney. The self portrait: seduction and betrayal (the difficulty of reading self portraits. Disponível em: <http://www. npg.org.uk/live/mirrconf.asp. Acesso em: 14/10/2005. WATERS, John. <http://www.youtube.com/ watch?v=CeRu2t84SWE> 182 Ângela Prada Auto-Retratos da Pós-Modernidade: Cindy Sherman em “Untitled Film Stills” Ângela Prada Doutoranda em Multimeios – UNICAMP. Mestre em Artes Visuais – UFRJ Especialista em Jornalismo Cultural – PUC – SP. Professora Universitária – fotografia, vídeo, história da arte, fotojornalismo. Trabalhou sete anos como fotógrafa profissional. Seus trabalhos foram publicados nos seguintes veículos: “The New York Times”, Folha de São Paulo, Revista Playboy, entre outros. Email: [email protected], [email protected] 183 The present thematic test focuses its tie attention on different from the Latin American conservation and the patrimony. Aspects of historical type consider here, like also reflections around the evolution of the patrimonialista legislation in the continent, the creation and trajectory of institutions of patrimony, restoration and study, the revaluation of the Historical Centers and the concept of “cultural surroundings”, or the increasing interest by the small towns. It is also approached from a critical perspective, becoming emphasis in several of the problems that must confront the patrimony in Latin America, like the loss of the “urban memory”, the political interventions destroying the patrimony (monumental or natural) in entailment to private real estate businesses, or the errors in the interventions of restoration or rehabilitation. Keywords: Latin America. Conservation. Patrimony abstrac t La Conservacion Y El Patrimonio En America Latina. Algunos Temas De Debate Rodrigo Gutiérrez Viñuales resumo El presente ensayo centra su atención en diferentes temáticas vinculadas a la conservación y el patrimonio latinoamericanos. Se tienen aquí en cuenta aspectos de tipo histórico, como asimismo reflexiones en torno a la evolución de la legislación patrimonialista en el continente, la creación y trayectoria de instituciones de patrimonio, restauración y estudio, la revalorización de los Centros Históricos y del concepto de “entorno cultural”, o el creciente interés por los pequeños poblados. Se aborda también desde una perspectiva crítica, haciéndose hincapié en varios de los problemas que debe afrontar el patrimonio en América Latina, como la pérdida de la “memoria urbana”, las intervenciones políticas destruyendo el patrimonio (monumental o natural) en vinculación a negocios inmobiliarios privados, o los errores en las intervenciones de restauración o rehabilitación. Palabras clave: Latinoamérica. Conservación. Patrimonio V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G 1. Introducción La historia de América Latina ha estado marcada desde hace quinientos años por la influencia de la cultura europea. Los españoles, sobre todo, han dejado su huella artística la cual, combinándose con las formas y manifestaciones locales, engendró un nuevo modelo de civilización. Por esta razón, y a pesar de la importancia de este contacto EuropaAmérica, la historia del Nuevo Continente ha seguido su propio camino, siendo su situación y su realidad distintas a las europeas. Estas diferencias deben de tenerse en cuenta si se quiere realizar un estudio adecuado sobre la conservación y el patrimonio americanos. Es más, inclusive entre los propios países americanos existen tales singularidades; no es el mismo caso el del Perú o el de México, con su fuerte tradición cultural indígena y colonial, que el de países más modernos como Brasil o Argentina en donde el patrimonio decimonónico acapara la mayor atención. Existen también otras diferencias de carácter histórico con respecto a Europa. Se han producido en América ciertos procesos con anterioridad a sus similares en el Viejo Continente. Este es el caso de la desamortización de los bienes de los conventos e iglesias, hecho que España sufre hacia mediados de la década de los treinta del XIX y que en Argentina ya se había producido con el presidente Bernardino Rivadavia en 1822. Este suceso nos permite pasar a analizar algunos aspectos de la evolución del tratamiento del patrimonio cultural americano durante el siglo XIX. 2. El patrimonio en América durante el siglo XIX La desamortización de bienes en la Argentina durante el gobierno de Rivadavia trajo consigo consecuencias nefastas que dejaron cicatrices durante muchos años. Los conventos y las órdenes religiosas fueron eliminados legalmente pasando los edificios a formar parte del patrimonio nacional bajo la apariencia de que iban a transferirse al clero secular. Este manejo del poder político determinó entre otros aspectos que las ciudades de Buenos Aires, Córdoba y Salta permanecieran sin obispos por largo tiempo. 1 8 6 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate En cuanto a los conventos algunos se convirtieron en hospitales, otros en cuadras de tropas y en general quedaron destrozados perdiéndose irremediablemente el patrimonio. El viejo Colegio de los jesuitas en la capital argentina quedó en manos del clero secular pasando luego al Estado quien lo convirtió en el histórico Colegio Nacional de Buenos Aires. He aquí un caso aislado de reaprovechamiento adecuado de un edificio. En Perú se produjo la desamortización poco después que en la Argentina y ejemplo claro de lo allí ocurrido es la actual situación del convento de San Agustín en el Cuzco que desde aquel momento está en ruinas, las cuales hoy pueden verse justamente en la calle “Ruinas” de la capital cuzqueña. Otro convento peruano, el de San Francisco de Lima, fue sufriendo una degradación paulatina a través de los años posteriores a aquella desamortización. Era esta, originalmente, una construcción que abarcaba tres o cuatro manzanas, y que fue derribándose por partes para ir abriendo calles. Tal tratamiento llegó al culmen de la destrucción con la apertura de la avenida Abancay hacia principio de los años sesenta de nuestro siglo. Estos atravesamientos sufridos por San Francisco no solamente terminaron con su antigua situación física sino que también afectaron la idea de conjunto monumental con que había sido planeado y terminaron con su carácter de convento como centro del barrio. En México la desamortización también trajo efectos negativos. Inclusive el Estado y la Iglesia permanecieron divididos por casi un siglo y medio, produciéndose la ansiada reconciliación recién en la década de los ochenta de la presente centuria. El poder político, entonces, tomó la decisión de devolver a la Iglesia muchos de los bienes apropiados en el siglo pasado. 3. La evolución de la legislación y el patrimonio en Latinoamérica durante el siglo XX y sus problemas 3.1. Leyes, generalidades y casos En el transcurso del siglo XX la conservación y la salvaguarda fueron alcanzando distintas connotaciones en cada país americano, 187 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G dadas aquellas diferencias acotadas en nuestra introducción y la variedad de posibilidades de intervenir en el patrimonio. Mientras unos dieron mayor importancia al tema de los monumentos históricos otros centraron sus esfuerzos en el estudio de los poblados típicos y otros -los menos- en el problema del paisaje urbano, el entorno o el ambiente natural. De todas formas existieron denominadores comunes dignos de destacarse por ejemplo la concientización respecto de la primordial necesidad de resguardar los testimonios precolombinos. Esto se dio especialmente a fines del siglo XIX y principios del XX, cuando comienzan a valorizarse los ejemplos artísticos coloniales y mucho más adelante, tras la Carta de Quito de 1967, se empieza a tomar en cuenta el patrimonio de los siglos XIX y XX. En los años treinta, juntamente con la señalada importancia que se da a lo colonial, se dieron diversas normas, leyes y fundaciones tendentes a la conservación del patrimonio. En Brasil en 1927 se creó la Inspectoría de Monumentos del Estado de Bahía a la que siguieron ejemplos similares en otros países como México -leyes de 1930 y 1934 que mencionaban las “poblaciones y bellezas típicas”- y Guatemala -creación del Parque Nacional de Tikal en 1955 que incluía la conservación de este centro cultural maya-. En el aspecto de la legislación también son destacables las leyes de Brasil en 1937 y de Argentina en 1940, claros productos de la VII Conferencia Interamericana celebrada en Montevideo en 1937, en la que se propuso la cooperación entre los países, y el Congreso de Historia de América llevado a cabo en Buenos Aires en el mismo año, en el que se recomendó hacer el inventario de los patrimonios y legislar sobre él. Brasil, a partir de su ley de 1937, centró su interés en las obras de arte, al contrario que la Argentina que se interesó más por los monumentos. En aquel país fue creado el Servicio de Patrimonio Histórico Artístico Nacional (SPHAN) el cual se dedicó también a la organización de congresos y a la publicación de estudios y trabajos, convirtiéndose en un sistema armado desde arriba hacia abajo, de gran carácter federal. La labor de SPHAN en Brasil fue intensificándose con el tiempo, adaptándose notablemente a los cambios sociales y culturales, no sin graves contratiempos. El presidente Collor de Melo llegó a deshacer prácticamente al SPHAN creando comisiones de 1 8 8 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate cultura locales las que puso en manos de funcionarios públicos y burócratas. Esta decisión interrumpió en su momento un positivo proceso de más de medio siglo, poniendo fin a una acertada tarea federativa y evidenciando nuevamente la triste realidad de la negativa intervención política en asuntos de Patrimonio que en diversas épocas tuvieron los gobiernos. La ley de 1940 en la Argentina basó sus artículos en los de las leyes de Francia, Inglaterra, Bélgica e Italia. La Comisión Nacional que se creó a partir de ella habría de encargarse de realizar los inventarios, restauraciones, publicaciones, declarar los monumentos nacionales y organizar museos. Los problemas de fondo, los directos, se quedaron, no obstante, sin resolver. La evolución de la legislación del Patrimonio en la Argentina a partir de 1940 ha conducido a la situación actual en que las leyes son insuficientes. En varios municipios existen reglamentaciones generales y otras de casos más particulares. Muchas de ellas están redactadas con un lenguaje romántico tendiendo más a una expresión de deseos que a otra cosa. A nivel provincial hay en Argentina otras leyes de carácter general pero que presentan notables falencias. De todas maneras se han producido ciertos avances como el de Tucumán, provincia que tras el advenimiento de la democracia en 1983 aprobó una nueva Constitución Provincial en la cual fue introducido el tema de la Conservación del Patrimonio. En ese mismo año se aprobó a nivel nacional una ley en la que se establecía que todo edificio de más de cincuenta años perteneciente al Estado -aunque también sugiere que se haga lo mismo con los de propiedad privada- no puede ser alterado en su estructura sin la vista y autorización de la Comisión Nacional de Monumentos. Lamentablemente esta regla no se aplicó en la realidad y así los argentinos vimos caer, entre otros ejemplos, parte del convento de Santa Catalina de Buenos Aires, construcción de principios del siglo XVII, para dar lugar a edificios nuevos. Otro ejemplo en la capital argentina es el de la conocida como Manzana de San Juan, centro de las monjas clarisas, en la convergencia de las calles Alsina y Chacabuco, que se demolió para dar cabida a un moderno hotel. 189 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Durante los años cuarenta hubieron otros países latinoamericanos que legislaron sobre su patrimonio, tales los casos de Venezuela (1945) y Guatemala (1947). El de este último país puede considerarse el ejemplo más completo de legislación a lo largo del siglo con la creación de la Comisión Nacional para Antigua de Guatemala (CNPAG) en 1969 la cual controla entre otros aspectos las acciones de los ayuntamientos, indicándoles donde deben colocar un cartel, donde poner una escultura, etc. Para llevar a cabo su tarea CNPAG ha hecho hincapié en la necesidad de concientizar a la propia población, siguiendo de esta manera con una de las ideas ya esbozadas en el Convenio Italiano de Gubbio de 1960. La conservación y restauración del patrimonio, que en un primer momento se había reducido a la preservación e intervención en sitios relacionados con la vida o hechos de próceres, cambiaron su sentido durante los años cuarenta, momentos en que pasó a tener mayor importancia el patrimonio artístico. A partir de aquí puede hablarse de un cambio fundamental en ciertos conceptos como el de “patrimonio histórico” reemplazado ahora por esa idea de “patrimonio artístico”. Un nuevo cambio de pensamiento habría de producirse en los setenta. En ese momento quedó ya en evidencia que el patrimonio estaba más allá de un prócer o de un monumento artístico: a este debía considerárselo como parte de un proceso histórico. Aquí podemos señalar como ejemplo la importancia que tomó en la Argentina Virasoro, máximo representante del movimiento Art Decó en ese país, cuyas obras fueron discutidas pero a la vez fue reconocida su validez como testimonio histórico. Como corolario podemos afirmar que la legislación en América es en general insuficiente y con muchos baches lo que permite a las “aves de presa” de la construcción y la política accionar casi libremente sobre el patrimonio, por lo cual es constante el peligro en que este se encuentra. 3.2. Uno de los problemas: la pérdida de la “memoria urbana” En numerosas ocasiones se ha procedido lamentablemente a deshacer las obras que marcaron los rasgos artístico-arquitectónicos 190 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate de una época, ya sea porque estas “estaban pasadas de moda”, ya sea por la “fiebre” de construir o por la de “destruir” todo testimonio de regímenes políticos pasados. Otra manera muy habitual en América de pérdida de la memoria urbana es el constante cambio, en muchas ciudades, del nombre de las calles. En Resistencia (Argentina) sucedió, entre otros casos, con la actual calle Arturo Illia. En diversos períodos de su corta historia -apenas sobrepasa el siglo de existencia- se llamó Edison, en honor al sabio; Uruguay, como homenaje a nuestros hermanos orientales; Eva Perón, cuando la mujer del presidente era el personaje más carismático del país; Antártida Argentina, poco después de la revolución que derrocó a Perón; y, finalmente, desde hace poco más de diez años, ya recuperada la democracia luego del Proceso militar, se llama Arturo Illia. En esos años el bloque de concejales peronistas del Municipio de Resistencia había cambiado el nombre de la calle Tucumán, la continuación de Antártida Argentina, por el de Juan D. Perón (otro caso de pérdida de la memoria urbana). Sus grandes rivales de la Unión Cívica Radical no querían quedar en “inferioridad de condiciones” y comenzaron a buscar un nombre para cambiar el “añejo” de Antártida Argentina, la otra calle comercial junto a la nueva Juan D. Perón- de Resistencia. En ningún momento repararon ni unos ni otros en el hecho de que quienes habían colocado aquellos nombres, Antártida Argentina y Tucumán, lo habían hecho con alguna razón -ni hablar de los anteriores nombres-. El hecho es que los radicales buscaron recuperar alguna de sus figuras e “inmortalizarlas” en el asfalto. Las dos más grandes, Hipólito Yrigoyen y Marcelo T. de Alvear ya tenían sus calles; el ex-presidente que les quedaba era Arturo Illia y a él eligieron. Además del cambio del nombre de las calles, otra de las maneras de ir borrando la memoria urbana es la de los proyectos llevados a la práctica que arrasan con lo existente y tergiversan el sentido urbano. En Caracas encontramos el caso quizá más grave del continente con la construcción de grandes autopistas y el entubamiento de los ríos, acciones que han cambiado la antigua fisonomía de la capital venezolana. Otro caso, aunque este fue ya más lejos pues se trató lisa y llanamente de un cambio en la propia topografía del lugar, es el que ocurrió en Río de Janeiro en la época del gobernante Pereira Pasos a fines del siglo XIX y principios del XX, quien ordenó que dos de los morros que se 191 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G encontraban en la bahía fueran eliminados mediante una “tajada” en diagonal. 3.3. Cambios producidos a partir de la Carta de Venecia (1964) y las Normas de Quito (1967) Durante la década del sesenta vieron la luz los dos documentos fundamentales que sentaron las bases para el cambio del status quo de la legislación y el patrimonio en América Latina: la Carta de Venecia de 1964 y las Normas de Quito de 1967. La primera de ellas fue rubricada por dos jóvenes latinoamericanos que se hallaban estudiando en Italia, el peruano Víctor Pimentel y el mexicano Carlos Flores Marini. Ciertas recomendaciones que allí se hicieron representaban toda una novedad para América: la documentación histórica, el turismo cultural, el respeto por todas las etapas de la obra, el tratamiento conservacionista y no reproductor, etc. En cuanto al documento de Quito es más amplio en su articulado respecto al de Venecia y en el se detallan problemas específicos de Latinoamérica. Participaron de las reuniones en la capital ecuatoriana especialistas americanos y españoles quienes se plantearon la necesidad de vincular nuevamente a los países del Nuevo Mundo con España y Portugal, de valorar el Patrimonio de los siglos XIX y XX y de accionar en el aspecto técnico. Las Normas de Quito tendieron más a una cuestión de tipo urbanístico y de manejo político del patrimonio. Su alcance es de mayor escala -sin ser completamente específica de América- que la Carta de Venecia cuyo hincapié fue mayor en temas de patrimonio y conservación. Hasta estos momentos no se había tenido demasiado en cuenta el concepto de “monumento histórico” comprendiendo “la creación histórica aislada así como el conjunto urbano o rural” (Carta de Venecia, art. 1). Esta valorización del entorno se dio tardíamente, cuando ya habían sucedido casos como el de San Diego de Bogotá: el pequeño convento se preservó pero no se cuidó el espacio que lo rodeaba y hoy apenas se puede ver entre grandes autopistas y hoteles. Un ejemplo similar es el de Villa Hortensia en el Barrio Alberdi de Rosario (Argentina), una quinta de verano de principios de siglo, al estilo de las de Mar del Plata, edificio que en los años ochenta 1 9 2 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate de nuestro siglo se declaró Patrimonio Histórico. Lamentablemente la manzana que lo rodeaba se loteó y esta construcción que había dado origen al barrio y que sus dueños habían armado a la manera de un pequeño pueblo, en la actualidad ya se halla unida a la ciudad, “aprisionada” entre modernas muestras de arquitectura. Volviendo a las Normas de Quito, este documento hará que países como Brasil, Cuba, Chile, México y Guatemala pongan al día sus legislaciones. Se reiniciaron las tareas inventariales y se dio impulso para la formación de técnicos intervencionistas y la organización de talleres y laboratorios. No obstante este ímpetu inicial varios países del continente continuarán con legislaciones anacrónicas, especialmente los centroamericanos. Otras naciones aprobaron leyes sobre el patrimonio pero sin llegara a aplicarla. En este sentido el caso más evidente es el de Perú, y en menor medida el del ya señalado México. 3.4. El caso de los “Centros Históricos” En Perú los casos de los centros históricos como Lima, Cuzco, Arequipa y Trujillo son patéticos. Esta última ciudad posee una estructura de manzanas cuadradas que en la época colonial estaban ubicadas dentro de una muralla de tapia -típica de regiones secas, de poca lluvia- de forma octogonal y alargada. Esta muralla no fue respetada en el siglo XX; parte de ella se tiró para dar cabida a edificios modernos y otra se utilizó como basamento para los mismos. Lo que más sorprende en este caso es que el autor de tal aberración fue un arquitecto de la propia Trujillo relacionado con el INC (Instituto Nacional de Cultura). En definitiva, las leyes de protección existen pero no son respetadas. Lo mismo ocurre, como vimos, con el concepto de “Centros Históricos” respecto de que son tanto “patrimonio cultural de la humanidad” como que “pertenecen en forma particular a todos aquellos sectores sociales que los habitan” y con ellos se debe procurar “una política de conservación integral”, tal como se especificó en las conclusiones del “Coloquio sobre la preservación de los Centros Históricos ante el crecimiento de las ciudades contemporáneas”, celebrado en Quito, en marzo de 1977. 193 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G 3.5. El problema de la intervención política en asuntos de patrimonio Otro de los males que han sufrido varios países americanos es el de la derogación de artículos por conveniencia política. Como casos de esta realidad se pueden señalar: 1) los Monumentos declarados “históricos” a los que se les priva luego de tal condición para poder alterarlos en parte o demolerlos. Ejemplo de ello es el ocurrido durante los últimos gobiernos militares en Uruguay donde numerosos edificios públicos, escuelas antiguas -que se derribaron para hacer edificios nuevos- y otros monumentos fueron intervenidos con el único fin de hacer negocios; 2) las leyes que se derogan en partes. Este es el caso de lo ocurrido en el Centro Histórico de Corrientes (Argentina). Desde 1977 -ya en época de gobierno militar- existía una “Ordenanza Histórica” que en diversas ocasiones fue modificada -a veces solo por un día !- para que pudieran realizarse obras nuevas, las que encontraban en los monumentos antiguos un estorbo. Así un día se presentaba un proyecto; al comprobarse su inviabilidad por “culpa” de la “Ordenanza Histórica”, se anulaban las normas de esta que imposibilitaba la realización de aquel; una vez que el proyecto se encontraba dentro de la legalidad, sin el condicionamiento de la “Ordenanza”, era aprobado y al siguiente día se reinstauraban las antes anuladas reglas de la “Ordenanza”. Lamentablemente, por lo visto en numerosos lugares y épocas de América el concepto de “Bien Común” no tuvo ni tiene ningún valor. La política del liberalismo consistente en que “el que tiene dinero hace lo que quiere” arrasa con tal concepto. A veces los americanos agradecemos el que no haya habido dinero en el continente porque con él se habrían podido llevar a cabo muchos de los proyectos que se presentaron a lo largo del siglo y la historia de nuestro patrimonio artístico probablemente sería más dolorosa. En este sentido es de lamentar el caso de Venezuela, país que tradicionalmente ha contado con dinero y que ha intervenido en sus monumentos históricos con muy mal tino, perdiendo en las últimas décadas gran parte de su patrimonio. 194 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate 4. Problemas de intervención en el patrimonio de América Latina 4.1. La búsqueda mal entendida de “nuestras raíces”. La pérdida del patrimonio americano durante el siglo XX En América y especialmente en los países del sur como Argentina o Uruguay, de menor tradición colonial y más influídos por las inmigraciones y por lo tanto por la cultura europea de fines del siglo XIX y principios del XX, siempre se pensó como modelo a una Europa a la que se veía como culta, como una unidad. El gran desconcierto surgió al producirse el estallido de la primera Guerra Mundial; con gran incredulidad se vio en América la lucha entre países cuya imagen era justamente aquella, de que estaban unidos. Esta situación aceleró el proceso de ver los distintos aspectos de la vida desde un punto de vista más americano. Con la guerra quedaron también interrumpidas las importaciones de los países americanos respecto de los productos que recibían de Europa; esto produjo un repunte de las industrias nacionales. Dentro de este proceso de “americanización” comenzado en aquella época y que hoy continúa, algunos países comprendieron como necesidad, respecto de lo urbano, el “llegar a lo original”. Aquí volvemos sobre el tema de la memoria urbana. Se atentó y se sigue atentando contra una de las normas de la Carta de Venecia consistente en que “las aportaciones de todas las épocas patentes en la edificación de un monumento, deben ser respetadas, dado que la unidad de estilo no es el fin que se pretende alcanzar” (art. 11), a menos, agrega, que los elementos que quieren eliminarse “ofrezcan poco interés”. Entre los ejemplos de vejación a estas ideas podemos señalar el de la República Dominicana. En los años setenta surgió en Santo Domingo la obsesión de que había que recomponer la “cara” del siglo XVI en el centro histórico. A una de las casas de esa centuria comprendidas en este perímetro se le habían añadido distintos “ropajes” a lo largo de los siglos y su coronación definitiva era el último ejemplo que quedaba en la capital dominicana del art nouveau. La idea de regresar al XVI terminó por ser más fuerte y tal art nouveau se perdió irreparablemente. 195 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Cosas similares se hicieron muchas veces en sitios arqueológicos. Recién en los años setenta los arqueólogos fueron formados como “cuidadores de ruinas” sobre todo en México y Perú. Anteriormente estos profesionales se limitaban a excavar pero no a consolidar, a “asegurar las condiciones de conservación” (Carta de Venecia, art. 15), a proteger los hallazgos que se iban produciendo en las tareas de campo. La consolidación en ejemplos arquitectónicos data de los años posteriores a la primera guerra mundial. En lugares como las misiones franciscanas de California, cuyo ejemplo se siguió en otras zonas de América, se dio una suerte de romanticismo, consolidándose las ruinas pero con el carácter de ruinas, es decir se consolidaron las roturas, las caídas de revestimiento, la falta de revoques en la punta de los dinteles, etc. 4.2. El caso de los “templetes” y los “cambios de clima” Otra de las actitudes fue la de no tocar las obras protegiéndolas mediante un templete para que no se deterioraran más el cual alteró el ambiente que rodeaba el monumento. De esto podemos señalar numerosos ejemplos pero citaremos tres en la Argentina: 1) el templete de hierro y vidrio erigido a fines del siglo XIX para proteger la habitación de la Casa Histórica de Tucumán, lugar de la Declaración de la Independencia Nacional en 1816, y que fue derribado durante los años cuarenta por Mario J. Buschiazzo al emprender la reconstrucción del monumento en casi su totalidad; 2) el templete construído en la época del art decó que protege la casa natal de Fray Mamerto Esquiú en la provincia de Catamarca; 3) el templete que protege la mal atribuída casa natal del General don José de San Martín en Yapeyú (Corrientes) y que fue construído en los mismos años en que Buschiazzo derribaba el de Tucumán. Con obras como las señaladas el monumento queda desvirtuado en cuanto al espacio y al entorno. Esta mal entendida protección atenta además contra el microclima de la obra, con los materiales originales los cuales fueron utilizados pensándose en la acción directa del sol, los vientos, las lluvias, etc. En el caso de la Casa de 196 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate Yapeyú, los insectos, ya sin estos “problemas” del clima, han ido degradando las piedras de las ruinas. Estos “cambios de clima” hechos por el hombre no son privativos de nuestro siglo. Ya en el siglo XVI, cuando los españoles convirtieron a Lima en capital del Perú en detrimento del Cuzco, antigua capital del imperio incaico, trasladaron desde el templo cuzqueño de Coricancha a Lima las momias de los 14 incas que se habían conservado allí desde hacía años. En Lima, con un clima distinto al de Cuzco, las momias alcanzaron un grado de putrefacción en menos de una década perdiéndose de manera definitiva tales testimonios. 4.3. El agregado de partes nuevas y la incorporación de elementos acordes con el “gusto actual” El tema de las partes agregadas, tanto en lo que se refiere a su inclusión como a la forma de añadirlas, ha dado lugar durante años a numerosas polémicas debido a que existieron y existen diversas visiones sobre cómo encarar este tipo de problemas. No obstante las opiniones encontradas en general los especialistas coinciden en la necesidad, para una correcta adecuación, de utilizar avances modernos como los acondicionadores, los sanitarios o la electricidad. En los años setenta surgió el concepto de que ese agregado de partes nuevas debía hacerse “en estilo”, es decir copiándose las formas del resto del edificio en intervención, tratando a la vez de que se notaran lo menos posible los fragmentos nuevos. Aquí podemos señalar los trabajos llevados a cabo en Arequipa (Perú) durante esa década en donde se rehicieron edificios imitando lo antiguo, como en el caso del patio de la Compañía de Jesús. A pesar de las buenas intenciones que se tengan en este sentido es fundamental que se dejen también, discreción mediante, las señas de los nuevos tiempos, tal como hemos señalado en el primer párrafo de este punto. En España podemos señalar un caso notorio de esta imitación de lo antiguo y que es la Sagrada Familia de Barcelona, la cual fue planteada por Gaudí de manera tal que todas sus partes y detalles 197 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G fueran artesanales. Luego de su muerte la construcción se continuó copiando literalmente las partes ya existentes, siguiéndose un erróneo concepto simétrico, alejado de la idea original de Gaudí. Derivado de los aspectos de restauración y tecnología surge también un problema de notoria actualidad: la incorporación a los monumentos de elementos acordes con el gusto actual. Este tema que se ha planteado en España sobre casos como el de las ruinas del Teatro romano en Sagunto, está signado por el afán de ciertos profesionales de imitar formas consagradas por los medios de comunicación quienes demuestran una total falta de identificación con el patrimonio y no han entendido que la tarea del restaurador ha de ser, en buena medida, anónima. 4.4. El deseo de resaltar los materiales naturales y las texturas Otra de las equivocaciones en las que se cayó a la hora de restaurar fue la de quitar a los edificios antiguos los revoques y estofados para resaltar los materiales naturales y las texturas. Con ello no solo se perdieron pinturas murales y molduras sino que también se evitó que partes que originalmente sí habían sido preparadas para estar al descubierto pudieran distinguirse del resto del conjunto. Esto fue lo que ocurrió con varias portadas de cantería en el Cuzco en la época de reconstrucción que siguió al terremoto de 1950. Tales portadas que debían resaltarse sobre el muro blanqueado hoy se confunden con la tosca mampostería de piedra que ha quedado a la vista a su alrededor. Como casos podemos señalar los de la puerta de San Antonio Abad y la iglesia de Santa Clara, en donde por esa búsqueda del “material a la vista” se perdieron varias de las pinturas murales que cubrían las paredes del templo. Distinto fue el tratamiento que se siguió en las obras coloniales de lugares como Salvador de Bahía (Brasil), en donde se respetaron las fachadas de los edificios pero se reconstruyeron totalmente los interiores. Las fachadas se convirtieron así en meros telones ornamentales detrás de los cuales pueden encontrarse cosas inverosímiles. 198 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate Entre tantos inconvenientes no deben dejar de señalarse aspectos positivos como las buenas actitudes entre ellas la humildad de los viejos arquitectos que intentaron ponerse al día con los nuevos postulados y la conciencia que se fue tomando respecto del valor de los monumentos antiguos, especialmente de los coloniales. 5. Temas derivados de las Cartas de Venecia y Quito 5.1. El panorama general del patrimonio americano a partir de la Carta de Venecia de 1964 El hecho de que dos latinoamericanos hubieran rubricado la Carta de Venecia en 1964 no significaba que sus postulados fueran los que hasta ese momento seguían los arquitectos restauradores en el continente, cuyas características se acercaban más a la de los “amantes de lo antiguo” y a la de los historiadores. Las ideas que aun primaban en América Latina tendían más bien a considerar que el único patrimonio rescatable era el anterior a la época de la Independencia; se seguía pensando en el monumento aislado y no en el entorno (salvo excepciones como alguna misión religiosa o sitio precolombino), etc. La Carta de Venecia tuvo su difusión en América a través de revistas como los Anales del Instituto de Arte Americano de Buenos Aires o el Boletín del Centro de Investigaciones Históricas y Estéticas de Caracas. En Perú fue difundida por Pimentel quien hizo un glosario de artículos de la Carta para ser aplicados en el país, el cual encontró oposición en un arquitecto que escribió la titulada “Mi Carta de Lima”. Quien escribió “Mi Carta de Lima” era un neocolonialista que entendía el manejo del patrimonio desde su particular punto de vista. Fue el constructor del Hotel de Turistas del Cuzco en los años treinta, un edificio neocolonial para cuyo levantamiento fue necesario derribar un edificio auténticamente colonial. 199 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G 5.2. Las Normas de Quito y la importancia del entorno La concientización del valor del patrimonio tomó otro matiz en 1967 con el surgimiento de las Normas de Quito. Se cambió el viejo concepto de que el carácter histórico de un lugar estaba dado por si allí se había producido algún hecho de relevancia (el nacimiento de un prócer, la firma de algún tratado, el libramiento de una batalla, etc.). A partir de ese momento tomó importancia la idea de lo estético independientemente de lo histórico; se comenzó a valorar el monumento como obra de arte y el monumento y su entorno, no como edificio aislado. Para esta entonces muchos entornos ya habían sido cambiados en su fisonomía, generalmente de dos maneras, o variándose el tamaño de los edificios -la mayoría de más tamaño que los existentes- o alterando las características físicas de los mismos afectando así el sentido estético original. Inclusive en la actualidad continúan haciéndose desastres en este sentido. Hay sectores urbanos cuyas fisonomía y arquitectura son coloniales, y en donde antiguamente se planearon calles angostas para permitir que la sombra cobijara tales arterias y en las cuales pudiera correr el aire. Con el advenimiento de las “modernidades” se ha visto desaparecer edificios reemplazándoselos por antejardines modificando toda aquella concepción. Como ejemplo podemos señalar el Banco construído en la calle Leandro N. Alem de Buenos Aires que cuenta con un amplio antejardín y por lo tanto está sometido a una acción mucho más directa del sol, primitivamente no planeada. Además de esta manera se atenta contra una normativa existente que manda que las casas de la vereda oeste de la calle Alem deben poseer soportales (galerías o recovas) a la manera antigua. Finalmente el prestigioso arquitecto constructor del Banco, casi con carácter de “intocable” entre sus colegas, debió dar marcha atrás y colocar unos soportales que actualmente cubren la vereda, la cual de esta manera se encuentra siempre bajo techo. 200 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate 5.3. La revalorización de los Centros Históricos y el interés por los pequeños poblados Este movimiento de revalorización de los Centros Históricos se produjo justamente después de la Carta de Venecia; antes solamente se tenían en cuenta las ciudades antiguas como Cuzco o Antigua. A partir de Venecia se valorizaron centros como los de México, el Barrio de San Telmo en Buenos Aires, la Lima “cuadrada” -la colonial, trazada en cuadrícula-, etc. Luego de Venecia surgió también el interés por los pequeños poblados históricos. Se empezaron a estudiar problemas como el de la incidencia del turismo sobre ellos y la necesidad de no verse absorbidos por este. También se presentó el problema de la tugurización de los centros antiguos, tema en el que durante los setenta la propia Unesco llegó a tener injerencia al enviar a hacer trabajos en Cuzco, Quito y Salvador (Bahía). Posteriormente se fue pasando a otras ciudades de menor tradición pero poseedoras también de un rico patrimonio como Montevideo, Catamarca (Argentina), Bogotá, etc. El tema de los pequeños poblados no ha sido hasta hoy estudiado con profundidad. La Unesco, no obstante, ha mostrado su interés en ellos a través de publicaciones como las del programa que Sylvio Mutal condujo en Lima, el cual ha editado una obra titulada justamente “Pequeños poblados” en donde se hace un estudio de los mismos en el Perú. Más allá de los logros aislados en el plano práctico que se fueron produciendo en América Latina después de Venecia, debe tomarse como una conquista el hecho de que estos temas se convirtieran en objetos de análisis. 5.4. La conservación del patrimonio, la restauración y las tecnologías Nuevas investigaciones sobre el patrimonio y su conservación fueron iniciadas a partir de Venecia. Se puso en evidencia la preocupación de profesionales de áreas distintas a la de la restauración directa (economistas, abogados, etc.) respecto de 201 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G lo mismo y los equipos de planificación urbana fueron de a poco incorporando a sus labores estos temas. El propio monumento empezó a ser tratado de otro modo, teniéndose en cuenta todas sus etapas de construcción. Se estudiaron los materiales y las tecnologías tradicionales además de otros problemas que antes no se habían abordado. Se comenzaron a diferenciar la restauración de la conservación y de la reconstrucción. Esto obviamente no fue practicado en su totalidad ni en todas las zonas. En varios lugares se utilizaron materiales actuales para la restauración sin tenerse en cuenta los originales, por ejemplo en la iglesia de Molinos en Salta (Argentina), que construída primeramente en adobes sufrió una restauración con hormigón armado. También es el caso de la casa de Nicolás Avellaneda en Tucumán cuya estructura original era de madera y fue restaurada con estructuras metálicas. La restauración de arquitecturas de tierra con cemento se ha vuelto algo habitual y generalmente negativo en América Latina. Otro caso es el de las pinturas inadecuadas que se utilizan en las intervenciones. Las paredes de tapia del Capitolio de Caracas hoy se encuentran “enmascaradas” con materiales sintéticos lo cual hace necesarias continuas restauraciones. En el campo de la tecnología la realidad muestra un descenso marcado de intervenciones con uso indiscriminado de los nuevos materiales teniéndose más en cuenta las soluciones tradicionales a base de adobe, piedra, madera o caña, ahora recuperados para la construcción. Más allá de cierto romanticismo se han sabido ver su utilidad y menores costos. Lo mismo ha ocurrido con el correcto uso que no contados profesionales han dado al ladrillo. Finalmente debe señalarse otro aspecto de imperiosa importancia como es el del uso posterior del edificio o monumento y su manutención. Las restauraciones deben hacerse teniendo en cuenta cual será el uso posterior que se dará al edificio. Debe organizarse además el mantenimiento, designándose responsabilidades, de tal manera que no ocurran casos como el del Fuerte de Cobos en Salta (Argentina) que tuvo que ser restaurado tres veces en los últimos cuarenta años por carecer de una utilización práctica y del cuidado necesario. Justamente el fomento de la conservación y el mantenimiento fue uno de los temas en que puso especial énfasis 202 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate la Campaña Europea para el Renacimiento de la Ciudad de 1981 en su apartado sobre Rehabilitación de inmuebles y barrios antiguos. 5.5. Las intervenciones en pintura y escultura Además de la restauración y conservación de los edificios comenzaron a tenerse en cuenta a partir de Venecia y Quito elementos complementarios de los monumentos especialmente las obras de arte pictóricas y escultóricas. América Latina es rica en cuanto a testimonios coloniales de pinturas de caballete y la talla de imaginería y retablos. Habitualmente se piensa que por ser estos objetos de arte móviles pueden cambiarse de lugar sin alterar la arquitectura; las evidencias han demostrado lo contrario. En los últimos años la tendencia ha marcado que las tareas de conservación y restauración se acometieron de forma paralela, gracias a lo cual se han abandonado en gran medida estos cambios de sitio y hasta inclusive las mutilaciones, como ocurriera en el XIX con las tallas de las vírgenes en Buenos Aires que se recortaron para poder ser vestidas a la manera neoclásica o las columnas barrocas de Paucartambo en el departamento de Cuzco que fueron alisadas y pintadas. Las pinturas murales son merecedoras de un tratamiento preferente y más cuidadoso que las de caballete por el hecho de que son parte de la misma arquitectura. Para su restauración se hace necesario el reacondicionamiento previo de los muros que la soportan. El criterio a seguir debe ser el mismo que en la arquitectura, es decir la conservación de las distintas etapas de la obra. En las dos últimas décadas el descubrimiento de este tipo de pinturas se ha multiplicado asombrosamente en Latinoamérica, ya no solo de la época colonial sino también del siglo actual hasta nuestros días, sobre todo en zonas semirrurales. A este tema de las pinturas murales ha de agregarse el de las tallas en piedra o madera adosadas a la arquitectura, muy comunes en América; valiosas piezas de este tipo han sido sustraídas de sus lugares originales mutilando el sentido de conjunto. 203 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G 5.6. Los centros de restauración y estudio Una de las premisas de la Carta de Venecia y que fue luego reafirmada en las Normas de Quito fue la necesidad de crear centros que cubriesen las necesidades técnicas a fin de llevar a cabo las tareas de conservación. A estos centros podemos dividirlos en tres grandes grupos: los talleres y laboratorios, los cursos de formación y los centros de inventario. En cuanto a los talleres y laboratorios podemos destacar en América Latina el trabajo del Consejo Nacional para la Protección de la Antigua Guatemala que desde 1969 viene trabajando en restauración, complementando las tareas directas con otras menores pero no menos importantes como la labor de estudiantes a través de los cuales se llega a una concientización de las familias, la realización de estudios ecológicos botánicos y sísmicos, etc. El Proyecto PER 71/539 en Perú fue una muestra de la ayuda dispensada por la Unesco a países latinoamericanos durante los años setenta, en este caso uno de los dos con mayor raigambre hispánica. El trabajo consistía en un estudio a realizarse durante siete años sobre 27 monumentos tanto precolombinos como coloniales. Para los primeros eran necesarias las tareas arqueológicas. El PER 71/539 organizó durante su existencia un sistema de talleres y laboratorios que luego siguieron su labor bajo la dirección del Instituto Nacional de Cultura. Mientras el taller de objetos muebles trabajaba sobre imágenes y pinturas, otros especialistas lo hacían sobre pinturas murales. Era este un lógico complemento a los trabajos de arquitectura y arqueología. A su vez el PER 71/539 estaba relacionado con el Plan COPESCO surgido también a mediados de los años setenta, y cuyo objetivo estaba centrado en los departamentos de Cuzco y Puno. COPESCO puede señalarse como una idea derivada de la Carta de Quito de 1967 ya que su finalidad primordial era la de promover el turismo cultural, consistiendo el trabajo en obtener y reinvertir dinero en el patrimonio. Esta “explosión” turístico-cultural en el Cuzco trajo consigo varios inconvenientes no previstos en un principio, tal como ocurre en las muy visitadas ruinas de Machu Picchu en donde se ve constantemente a la gente caminando libremente por los andenes 2 0 4 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate incaicos, cuya estructura no está preparada para soportar el peso de tanta humanidad. Inclusive los propios organizadores del “boom” atentaron contra el patrimonio en su afán ilimitado de erigir una infraestructura hotelera adecuada y de abrir carreteras en zonas localizadas, entre otros menesteres. Concretamente, al trazar en el terreno la ruta SicuaniPuno no tuvieron compasión con sitios arqueológicos a los que, en comparación con otros más importantes, consideraron en aquel entonces de segundo o tercer nivel. En lo que a los cursos de formación respecta, es tema que puede ir enlazado con los referidos anteriormente sobre el Proyecto PER 71/539, plan en el que se incluyeron cursos de formación técnica con el apoyo de la Unesco y la OEA. A nivel universitario pocas son las facultades en Latinoamérica que actualmente incluyen materias sobre patrimonio y conservación. No obstante en los últimos años se ha ido incrementando la oferta de cursos de posgrado como los de las universidades de Bahía (Brasil) -quizá los más prestigiosos-, la de México y la Universidad Católica de Córdoba (Argentina). Fuera del ámbito universitario existen centros de trabajos que también han organizado cursos de formación. Caben señalar los organizados por el Centro Paul Coremans en México. De él han salido en los últimos treinta años numerosos especialistas de América. Un problema más grave aun que la limitada oferta de cursos de formación en Latinoamérica es el hecho de que un gran número de estos profesionales que gozan de la posibilidad de perfeccionarse en el exterior al regresar a sus respectivos países no obtienen una conveniente reinserción en el mundo laboral. De esta manera estos nuevos especialistas en conservación e intervención en pintura, escultura y arquitectura se ven relegados en las responsabilidades de primer nivel por funcionarios públicos y otros “aficionados” a las antigüedades. Como se puede apreciar también en América Latina existen problemas y conflictos similares a los planteados en el programa de “Legislación y Patrimonio” en el capítulo referido a “La redefinición de la oferta cultural en la España de los ochenta”, como ser este de la formación de personal técnico en el ámbito de la conservación. 205 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Pueden señalarse también aquí la insuficiencia de los programas de rehabilitación, el estado entre la terciarización y el abandono de los centros históricos y el problema de los espacios públicos y las periferias, sobre algunos de los cuales hemos hablado. Pasando al tema de los centros de inventario, indicar que el trabajo de inventariado se inició en Latinoamérica a principios del siglo XX y ya para los años veinte tenemos conocimiento de diversas publicaciones al respecto. En los tres últimos decenios de la centuria estas tareas se acrecentaron, catalogándose edificios y zonas urbanas de manera sintética y orgánica en todo el continente. El tema de los inventarios es de suma importancia ya que cumplen la función, previa a la intervención, de ver lo que existe. Los inventarios pueden ser de enumeración (simple cómputo de lo existente) o razonados (calificando el estado de los monumentos u objetos, incluyendo los problemas que puedan llegar a sufrir). El modelo utilizado para las labores de inventariado han sido las fichas del Consejo de Europa. Luego de una etapa inicial de primeras experiencias y reuniones en Colombia, México, Chile y Costa Rica en las cuales se trató el tema, se fueron paulatinamente aunando los criterios respecto de la ejecución de aquellas tareas. En el primero de esos países se montó un importante Centro de Inventario que sirvió de ejemplos a otros que vinieron después en Sudamérica. Además de los monumentos comenzaron a tenerse en cuenta los objetos de arte, las partituras musicales, los documentos y libros antiguos y otras manifestaciones de propiedad pública y privada que quedaron registradas en la institución. En Brasil se han hecho tareas similares, incluyendo publicaciones en los estados de Bahía y Minas Gerais. Lo mismo México, cuyas tareas hoy se sistematizan a través del Instituto Nacional de Bellas Artes (INBA). En ese país se han realizado catálogos sistemáticos de monumentos nacionales, estado por estado, estudios que continúan publicándose en la actualidad. La otra cara de la moneda es la mostrada por Argentina donde el Comité Nacional del Icomos ha perdido tiempo y recursos sin aprovechar la oportunidad de inventariar, manteniendo prácticamente sin uso varios equipos de máquinas procesadoras. Esto es un indicativo de la técnica sola es insuficiente y que el trabajo de base -más lento y menos espectacular- también es necesario. 2 0 6 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate Por último cabe señalar que además de los inventarios de obras muebles e inmuebles señaladas, últimamente se están encarando los de materiales y sistemas tradicionales de construcción, es decir las estructuras de piedra, madera, caña, tierra, etc. Esto se ha vuelto de imperiosa necesidad para la rehabilitación de edificios y para la mayor conservación de los ámbitos urbanos. 6. La intervención en el patrimonio latinoamericano. Temas actuales de debate El tema de los inventarios, que ya fue incluido en el capítulo anterior al ser tratados los diferentes tipos de centros de formación surgidos tras la Carta de Venecia por lo cual no volveremos sobre las mismas consideraciones, debe incluirse también aquí como una de las formas de intervención de actual necesidad en el continente americano. A dichos trabajos de inventariado podemos sumar otras dos tareas de vital interés como son la de las obras de conjunto y la recuperación integral del patrimonio. En lo que respecta a las obras de conjunto debemos señalar como importantes las numerosas tareas de este tipo desarrolladas en Quito luego del terremoto de 1980. Las mismas contaron con el apoyo de España y más concretamente de “Cooperación Española”, cuyos técnicos supieron respetar los conocimientos de los especialistas locales. Así, mientras estos se dedicaron sobre todo a los trabajos arqueológicos, los españoles intervinieron más en las obras de arte. Tal fue el caso de las obras realizadas en San Francisco de Quito, quizá la más importante intervención de las que se concretaron durante los ochenta en la capital ecuatoriana. Con el asesoramiento de “Cooperación Española” se creó también la “Escuela Taller Angostura” de Ciudad Bolívar (Venezuela), cuyo objetivo fundamental es la formación de artesanos de la construcción. Los nuevos especialistas que van surgiendo trabajan en la rehabilitación de edificios de esa ciudad practicando en las propias obras lo aprendido. El tema de la recuperación integral en América Latina se desarrolla en un plano mucho más modesto que en Europa donde 207 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G las posibilidades económicas son notoriamente superiores. Como ejemplo en nuestro continente podemos tomar el del Servicio Nacional de Arquitectura que interviene en el patrimonio histórico-artístico del Noroeste argentino, zona en donde se reparte labores juntamente con la Fundación Tarea, la cual cuenta sobre todo con especialistas en restauración de objetos de arte. Se da así una incidencia mixta de capitales, por un lado los públicos (el Servicio) y por otro los privados (Tarea). A ellos se van sumando los apoyos de los municipios de la región, en lo económico, pero fundamentalmente en la mano de obra y en el apoyo moral (cofradías, feligreses, etc. que preparan fiestas y otras celebraciones). El municipio toma también la responsabilidad del mantenimiento posterior a las obras. Entre otros lugares intervenidos se hallan Uquía, Casabindo y Huacalera. 7. Los pasos posteriores a la restauración Tres son los temas que tendremos en cuenta en este capítulo: el mantenimiento continuo, la revisación de lo restaurado y por último los aspectos de actual consideración en América Latina y que serán continuos objetos de análisis en los próximos años en lo que respecta a la restauración. Sobre el tema del mantenimiento algo hemos dicho en capítulos anteriores. Hemos centrado nuestra atención sobre el hecho de que, previamente a la restauración de un monumento, debe quedar en claro quién se hará cargo del mantenimiento del mismo en el futuro. Debe diferenciarse lo que es una obra privada -donde de por sí el propietario asumirá la mayor parte de la responsabilidad- de lo que es una pública -en donde hay que dejar bien definido quién se adjudicará tales compromisos-. Es imprescindible, ya durante la restauración, utilizar soluciones técnicas que favorezcan tales mantenimientos en el porvenir, colocando materiales adecuados y que posean un fácil escurrimiento de las aguas en el caso de los edificios, o protegiendo debidamente las salas de los museos cuando se trata de objetos de arte. Se considera actualmente indispensable -más allá de si se cumple o no- una revisión periódica de las intervenciones en restauración, cada 2 0 8 Rodrigo Gutiérrez Viñuales La conservacion y el patrimonio en america latina. Algunos temas de debate cinco, diez o quince años según el caso. Esto surge de la necesidad de verificar el acierto o no en las técnicas utilizadas. Esta propuesta fue presentada por el arquitecto brasileño Ciro Correia Lima en el Cuarto Congreso Nacional de Preservación realizado en Corrientes (Argentina) en octubre de 1988. Los interventores deben entender que las soluciones no son definitivas, que existen materiales que a primera vista parecen buenos pero que los años demuestran su incompatibilidad con los componentes originales de los edificios. Ejemplo de lo dicho pueden ser las obras de restauración en las que se utilizó el hierro, sustancia que con los años fue oxidándose dañando los monumentos más de lo que estaban. Otro caso es el del silicato de etilo, consolidante que se emplea a través de un rociado y que ha sido utilizado en varios sitios arqueológicos del Perú, por ejemplo en Chan-Chan desde 1975. Al cabo de diez años el químico encargado de estos trabajos volvió al lugar y reparó en que el componente no había surtido efecto. Decidió entonces tomar una muestra para experimentar, comprobando entonces que el silicato se había evaporado por completo. La vigilancia y la readecuación, entonces, es fundamental; por ello es también importante que todas las intervenciones, como la señalada en el párrafo anterior, sean reversibles, es decir que si se comprueban errores en los trabajos sea posible repetir el proceso hasta lograr el punto conveniente. En la actualidad otros dos problemas fundamentales se están debatiendo en Latinoamérica en el plano de la restauración. Ellos, comunes en gran medida a Europa, son el arreglo de las restauraciones mal hechas y el problema del deterioro de las obras de hormigón armado. En el caso del primero, es problema que se está verificando especialmente en los edificios de finales del siglo XIX y principios del XX. Para ello es necesario no solo estudiar la obra sino también su “historia material”, analizando los documentos que han quedado de la época de la construcción primera y de las sucesivas etapas de agregados si es que las hubiera. En lo que atañe al problema del deterioro de las obras de hormigón armado, los daños que están mostrando numerosas obras realizadas en ese material se deben a alteraciones químicas que anteriormente eran desconocidas y que se están comprobando en la actualidad. Estas 209 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G verificaciones no solo se están produciendo en las obras nuevas sino también en las obras restauradas con dicho material. Existe además un alto porcentaje de probabilidad de que estas averías se constaten también en obras de ingeniería como puentes, presas hidroeléctricas, etc. Referências AA.VV. La comunicación global del patrimonio Cultural. Gijón,: Trea, 2008. AA.VV. Patrimonio Cultural y medios de comunicación. Sevilla, Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, 2007. AA.VV. Patrimonio inmaterial y gestión de la diversidad. Sevilla, Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, 2005. AA.VV. 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Ha impartido cursos de doctorado en las universidades de Granada, Zaragoza y Pablo de Olavide (España) y en las nacionales de Misiones y del Nordeste (Argentina). Ha dictado clases y dado conferencias por invitación en las citadas universidades y en las de Sevilla, La Laguna, Jaime I de Castellón y Complutense de Madrid (España), Federal de Goiás (Brasil), La Habana (Cuba) y Politécnica (Puerto Rico), además de hacerlo en numerosas instituciones públicas y privadas de España, Italia, México, Cuba, Puerto Rico, Colombia, Ecuador, Brasil, Paraguay, Argentina, Chile y Uruguay. Coordinador de la Biblioteca y del Archivo de Arte Latinoamericano del Centro de Documentación de Arquitectura Latinoamericana (CEDODAL), Buenos Aires (Argentina). Coordinador de Iberoamérica y miembro del Comité Internacional de la Revista de Museología, Madrid, desde 1998. Especializado en arte iberoamericano de los siglos XIX y XX, ha publicado un centenar de estudios sobre estos temas, destacando entre sus últimos libros: Monumento conmemorativo y espacio público en Iberoamérica (Madrid, Cátedra, 2004), Arte Latinoamericano del siglo XX. Otras historias de la Historia (Zaragoza, Prensas Universitarias, 2005), América y España, imágenes para una historia. Independencias e identidad 18051925. (Madrid, Fundación MAPFRE, 2006). Comisario de varias exposiciones, siendo las más recientes: “Cultura funeraria y expresión artística en Iberoamérica” (Biblioteca de Andalucía, noviembre de 2006 y Funermostra-Feria de Muestras, Valencia, mayo de 2007), “Ecuador. Tradición y modernidad” (Biblioteca Nacional, Madrid, abril-agosto de 2007), “Arte Latinoamericano en la colección BBVA” (Palacio del Marqués de Salamanca, Madrid, septiembre-diciembre 2007), “Buenos Aires. Los escenarios de Luis Seoane” (octubre-diciembre de 2007) y “El reencuentro entre España y Argentina en 1910. Camino al Bicentenario” (Banco Provincia, Buenos Aires, 2007). 213 In the searching of bringing new meanings to personal biography, some people affected by the broken up of a cesium-137 teletherapy unit, in Goiânia, became the disaster memory-guardian. Among the private archives established, Luiza Odete ´s files are a case in point due to a postcards collection of urban landscapes, gathered when she was as a secluded patient at Naval Marcilio Dias Hospital, in Rio de Janeiro. Based upon the analysis of this collection and on the data from interviews made with the collection owner, this paper addresses the following questions: in the context of segregation, which place/es a person builds when looking at Rio de Janeiro tourist images? Why collect postcards as a disaster radiation victim? Key-Words: post-cards; traumatic memory; radiation disaster abstrac t Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos Em Contexto De Isolamento Telma Camargo da Silva resumo Na procura da re-significação da biografia pessoal, algumas pessoas atingidas pela radiação decorrente da ruptura de um aparelho de radioterapia, contendo césio137, em Goiânia, se tornaram guarda-memória do desastre. Entre os arquivos pessoais assim construídos, o acervo de Luiza Odete se destaca por conter uma coleção de cartões postais de paisagens urbanas, reunida em 1987, quando ela estava isolada no Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. A partir da análise desta coleção e de entrevistas orais com a colecionadora, este texto discute as seguintes questões: que lugar/es se constrói, em contexto de segregação, o olhar pousado sobre uma coleção de imagens turísticas do Rio de Janeiro? Por que colecionar cartões postais enquanto vítima de um desastre radioativo? Palavras-chave: cartões-postais; memória traumática; desastre radioativo. V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Introdução Durante o meu trabalho de campo (1996 – 1997)1, para a redação da minha tese de doutorado sobre as representações de saúde e de doença e sobre a produção da memória no contexto do desastre radioativo de Goiânia, um fato me chamou a atenção: a constituição de acervos pessoais por parte das pessoas impactadas pela catástrofe. No processo de coleta de dados, que compreendeu o registro sonoro e visual de narrativas de múltiplos atores sociais, a construção de histórias de vida e a consulta a arquivos públicos, eu me deparei com estes acervos pessoais compostos por documentos escritos, iconográficos e sonoros. Para alguns, como no caso dos policiais militares, que na época reivindicavam uma relação de causa e efeito entre sofrimento e trabalho realizado durante a emergência radioativa, colecionar documentos remetia à constituição de uma identidade de vítima da radiação. O pertencimento à rede social do desastre carecia de comprovação e neste contexto, os acervos pessoais se configuravam como suportes da memória testemunhal (SILVA, 1998, p. 117-138). Eram estas coleções de documentos que constituiam o elemento fundamental da performance desses indivíduos nos espaços públicos onde os relatos dos dramas sociais vivenciados em 1987 eram revividos: as reuniões da Associação de Cabos e Soldados, os encontros no Hospital da Polícia Militar do Estado de Goiás (HPM- Goiânia) e nas Audiências Públicas, no Congresso Nacional, em Brasília. Para outros, colecionar documentos, como recortes de jornais onde a notícia era o próprio colecionador, indicava que o curso ‘normal’ da vida havia sido interrompido, como já expresso através do processo de narrativização do desastre, e que a trajetória da catástrofe estava imbricada na história de vida do indivíduo afetado (SILVA, 2002). Contudo, o arquivo construído por Luiza Odete2 se diferenciava dos outros. Entre os vários tipos de documentos guardados havia uma coleção de cartões postais com imagens da cidade do Rio de Janeiro, formada por ela quando estava internada, enquanto paciente contaminada pela radiação, no Hospital Naval Marcílio Dias, localizado no Rio de Janeiro. Estas imagens do Rio turístico representado nos cartões postais e guardadas ao longo dos anos por uma pessoa vitimada pela exposição à radiação suscitou 216 Telma Camargo da Silva Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento alguns questionamentos: 1) em contexto de isolamento, que lugar/ lugares, o olhar constrói quando pousado sobre uma coleção de paisagens urbanas? 2) Se, como aponta Ecléia Bosi, “a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a escola, com a Igreja, com a profissão, enfim com os grupos de convivência e os grupos de referência peculiares a cada indivíduo” (apud SA, 2007, p. 45), que memória do Rio de Janeiro se constrói através da sociabilidade vivenciada como paciente do Hospital Marcílio Dias? 3) Por que colecionar cartões postais de cenas urbanas enquanto vítima de um desastre radioativo? Assim, este texto se propõe discutir e analisar a interligação entre o ato de colecionar cartões postais, a representação das imagens guardadas e a instituição da pessoa social, em contexto de desastre radioativo. A constituição da coleção de cartões postais: a biografia cultural dos objetos guardados e a narrativa da segregação Ao discutir o uso de fontes visuais, Meneses enfatiza a necessidade de examiná-las “mais do que como documentos, (vêlas) como ingredientes do próprio jogo social, na sua complexidade e heterogeneidade” (2005, p. 44). Nesta perspectiva, e ele acrescenta, as imagens têm uma dimensão de objeto, de artefato, que junto com a possibilidade aberta de identificar e interpretar os sentidos da linguagem visual contida na fotografia, faz-se necessário refletir sobre os contextos em que, nesse caso os cartões postais, se integram à vida social de quem os coleciona. É o levantamento da constituição do acervo que nos dará elementos para significálo na história de vida de um indivíduo: como, quando e porquê um conjunto de documentos se constitue como um acervo a ser guardado e conservado? Antes de falarmos sobre os documentos guardados por Odete, vamos situá-la na rede social engendrada pelo desastre de Goiânia. Luiza Odete foi uma das primeiras pessoas a ter contato com a fonte radioativa. O material chegou até ela porque sua família morava no Ferro Velho do Ivo, seu primo e irmão de Devair, a pessoa que comprou 217 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G a cápsula e a levou para o seu Ferro Velho. Nesse mesmo local, ficava a casa em que Devair morava e foi em sua residência e em seu local de trabalho que ele distribuiu partes do pó radioativo para membros de sua rede familiar e de amizade. Luiza Odete faz parte do grupo de pessoas que fascinada com o brilho de purpurina azul do césio-137 à noite, usou o material no corpo. Em conseqüência, ela não só foi irradiada e contaminada pela radiação, como também teve todas as partes do corpo que anteriormente haviam sido cobertas pelo brilho do césio, transformadas em radiodermites. O lado esquerdo do seu pescoço se transformou em uma grande ferida, com lesões perto da artéria. Foi nestas condições que alguns dias após o reconhecimento pela Comissão Nacional de Eneriga Nuclear (CNEN) do desastre de Goiânia como um desastre radioativo, o que aconteceu em 29 de setembro de 1987, ela integrou o segundo grupo de pessoas3 que foi transferido do isolamento no Hospital Geral de Goiânia (HGG) para o isolamento no Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD)4, no Rio de Janeiro, onde ficou até início de dezembro de 1987. Este hospital militar era, segundo relatos, a única instituição hospitalar preparada, naquela época, para receber pacientes vítimas da síndrome aguda da radiação. Isto porque ele fazia parte do projeto secreto de construção do submarino atômico brasileiro, pelos militares. Ou seja, ele havia sido equipado e re-estruturado com a construção de espaços projetados para atender uma possível emergência decorrente de catástrofes relacionadas ao projeto de construção do submarino nuclear brasileiro – “Projeto Remo” –, parte do chamado programa nuclear paralelo brasileiro, patrocinado pelas Forças Armadas5. Uma equipe de profissionais altamente qualificada em termos de medicina nuclear também fazia parte dos quadros do HNMD. É pois no contexto do Hospital Naval Marcílio Dias, que o arquivo pessoal de Odete começou a ser constituído. Dessa época e enquanto paciente, ela guarda um conjunto composto de textos impressos de orações dadas pelo capelão do HNMD e a coleção de dezessete postais da cidade do Rio de Janeiro. Também fazem parte do seu acervo, vários recortes de jornais e documentos relacionados à presença dos filhos em Cuba, em 1992, quando se deslocaram para este país para receberem tratamento médico. A coleção de cartões postais6, objeto de análise deste texto, retratam: 218 Telma Camargo da Silva Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento • Ponte Rio - Niterói (“Ponte Presidente Costa e Silva): um cartão; • Vista aérea do Cristo Redentor: dois postais; • Vista em contre-plogée do Cristo Redentor tendo à frente o Bondinho de Santa Theresa: um postal ; • Teatro Municipal: um postal; • Bondinho do Pão de Açúcar: um postal; • Vista noturna do Rio: dois postais; • Vista parcial do Pão de Açúcar e do Morro da Urca: um postal; • Praia de Copabana com vista diurna e com banhistas: dois postais; • Vista noturna da Baia de Guanabara, do Pão de Açúcar e do Morro da Urca um postal; • Vista noturna de um velejador tendo ao fundo o Cristo Redentor: um postal; • Vista noturna do mar, tendo ao fundo vista parcial da cidade do Rio: um postal; • Vista diurna da orla da Zona Sul do Rio: dois postais; • Vista do entardecer nos calçadões de Copacabana: um postal; Dos dezessete cartões da coleção, onze postais não trazem nenhum texto no verso. Segundo Luiza Odete, eles lhe foram dados no HNMD por duas integrantes do grupo de atendimento: Daise e Luiza. A primeira, funcionária do Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD), assina duas das seis mensagens textuais. Estas duas mensagens são datadas (12/12/87) e, ao contrário dos cartões sem escrita no verso, indicam que foram enviados quando Luiza Odete já havia retornado a Goiânia. Uma dessas mensagens indica que Luiza Odete embora tenha passado três meses no Rio de Janeiro não visitou a cidade: “Luíza (Odete), esta é uma das paisagens lindas da minha cidade. Infelizmente você não pode conhecer” (Imagem 1). A outra mensagem associa a iconografia do Cristo Redentor de braços abertos – representado em quatro postais da coleção – ao acolhimento de todos que acreditam e têm fé: “Luíza (Odete), tenha fé neste Cristo que está aberto para todos que crêem nele” (Imagem 2). 219 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Figura 1 - Verso do cartão “Ponte Presidente Costa e Silva (Rio – Niterói)” Figura 2 - Verso do cartão “Vista Aeréa do Cristo Redentor com Jóquei Clube , ao fundo” Os outros quatro textos são assinados por Luiza. A data impressa em dois dos cartões – 25/11/87 – confirma que Luiza Odete se encontrava ainda hospitalizada no Marcílio Dias quando os recebeu. As mensagens expressam: 1) laços de amizade: “com 2 2 0 Telma Camargo da Silva Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento muita amizade e carinho da amiga Luiza”; 2) assinalam a passagem pela cidade: “Lembranças do Rio de Janeiro, Luiza” (Imagem 3) ; 3) votos relativos a data comemorativa: “Feliz Natal e Próspero Ano Novo com muito carinho da amiga Luiza”; “Kardec Feliz Natal e um bom Ano Novo com muito carinho, Luiza”. IFigura 3 – Verso do cartão “Vista Noturna – Barra da Tijuca” Os cartões postais segundo Luíza Odete lhe foram dados como “uma recordação, uma demonstração de afeto pelo fato de ter passado um longo tempo no Rio e nunca ter tido a oportunidade de conhecer a cidade”. Ela acha também que as pessoas tinham este carinho porque acreditavam que ela não fosse viver. De fato, a percepção dela não estava equivocada. Um dos médicos, integrantes da equipe do HNMD, descreve a forma como ela chegou no Rio de Janeiro e foi posteriormente transferida para uma enfermaria isolada e blindada, onde permaneceu por mais de dois meses: Uma paciente como a L. Odete, a irradiação incorporada que ela possuía era tão alta ... Mas que veio (para o Marcílio Dias) com os dados de Goiânia errados. De início nós julgamos que ela não tivesse uma incorporação tão grande, entendeu? Então colocamos numa enfermaria especial, também, 221 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G mas numa enfermaria que não tem blindagem de parede, são paredes como essa. Do lado de fora, o monitor começou a disparar. Todo mundo pensou que fosse defeito do monitor. Não, não foi defeito não, tem alguma coisa aqui dentro. Era ela. Aí ela foi transferida para uma enfermaria blindada. (...) Pela primeira vez para uma enfermaria blindada. (COSTA, Lenine Fenelon. 1996). As imagens da cidade do Rio de Janeiro _ cidade recortada na perspectiva de construção de uma paisagem turística, convidativa ao passeio e ao prazer _ chegaram até Luíza Odete no momento em que ela se encontrava segregada. O espaço vivenciado naquele momento estava fisicamente blindado e até o piso era revestido por uma lona de plástico para que os fluídos corporais, por exemplo o suor, veículo de contaminação radioativa, não chegassem a outras áreas do hospital. O lugar simbólico também indicava o momento do isolamento e da ruptura. Por um lado porque os laços familiares estavam rompidos _ em suspenso _ pois os filhos haviam ficado em Goiânia e ela tinha o sentimento de que nunca mais poderia reencontrá-los. Por outro lado, os contatos pessoais estavam restritos à equipe interdisciplinar que atuava no Marcílio Dias e o mundo de fora da instituição era mediado por estes profissionais. O HNMD representou para ela uma prisão e esta percepção acompanhou toda a sua permanência no Rio de Janeiro mesmo nos momentos finais de seu tratamento quando, segundo ela diz em entrevista, podia chegar até o quintal do hospital e de lá ver a Rocinha e ouvir o som de tiros que ecoavam de lá. Ou, mesmo quando de ambulância, saía do Marcílio Dias para fazer alguns exames. Nessas ocasiões, ela relembra os trechos da cidade vislumbrados pela janela do carro: as imagens da Barra da Tijuca. É nesta temporalidade e nesse contexto que a coleção de cartões postais se constitui e enquanto objeto físico, como um artefato, se integra à história pessoal de Luiza Odete. Mas que significados se processam através do ato de guardar esta coleção ao longo de vinte anos (1987-2007)? Como pensar a relação entre a constituição da identidade social de vítima do desastre e a constituição e manutenção do arquivo pessoal? Os cartões postais como objetos de conhecimento 222 Telma Camargo da Silva Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento Os cartões postais surgem por volta de 1870, quando Emamnuel Hermman, economista austro-húngaro, produziu uma coleção propalada como “um novo meio de correspondência postal” (SOUZA, 2006, p. 2), onde a correspondência era postada sem invólucro protetor. No Brasil, os postais começam a ser veiculados a partir de 1904 (VELLOSO, 2000, p. 114). No início, as imagens impressas se constituíam de gravuras. Com a incorporação da fotografia e das técnicas de reprodução fotomecânica, em 1891, a produção e o consumo de postais foram ampliados (MACHADO, 2002, p. 5). Esta incorporação da fotografia no objeto cartão-postal acabou interferindo no tamanho das reproduções fotográficas, com o surgimento do formato 9 x 14 cm ou 14 cm x 9 cm. (VELLOSO, Op. Cit., p. 114). Os primeiros anos do século XX representam o que os estudiosos desse tema chamam de “anos dourados” ou “idade de ouro” do cartão-postal e o “hábito de colecionar postais depois de utilizá-los como correspondência tornou-se uma prática comum entre as mulheres de famílias das elites e dos setores médios urbanos no Brasil, como uma forma de se conectar com as novidades do mundo da chamada belle époque” (Ibid., p.114). A relação que se estabelece entre o consumidor e o receptor do cartão-postal aponta para a construção de temáticas que posteriormente se constituirão em objeto de estudo de diferentes campos disciplinares. Por um lado, os cartões-postais, enquanto iconografia, são enviados para marcar a experiência vivida em algum lugar distante. No início do século XX, o hábito de viajar era incentivado entre as elites brasileiras e emergia em decorrência do surgimento dos novos meios de transporte, como estradas de ferro e os navios a vapor. Os postais, nesse contexto, indicavam uma distinção de classe através da comprovação visual do ‘estive lá”. Fontes de recordação de momentos vividos em outros lugares, fora do espaço da vivência cotidiana. Mas eles também permitiam, do lado do destinatário, as viagens da imaginação, as “viagens sem sair do lugar”. Ou como diz Velloso (Op.Cit., p. 120): Os postais, através de suas imagens de cidades e paisagens, permitiam muitas vezes a realização destas viagens apenas no campo da imaginação, já que nem sempre era possível concretizá-las no mundo real; eles democratizavam o desejo de viagem pelo mundo desconhecido, por parte de seus remetentes e destinatários. 223 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G É desta forma que o escritor Mário de Andrade, segundo Moraes (1993)7, viaja ao exterior através das imagens de 110 cartões postais recebidos de oitenta remetentes no período entre 1922-1940. Seria então, o mesmo que dizer que Mário de Andrade fez inúmeras incursões ao exterior através de suas “viagens de gabinete”. Ou de outra forma, pensar sobre as possíveis construções de lugares que o seu olhar elaborou a partir das visões trazidas pelas fotografias dos cartões postais recebidos. Por outro lado, enquanto mensagem textual, os cartões postais reafirmam relações de sociabilidade através de uma escrita resumida. Além de manter o destinatário atualizado sobre a viagem que o autor-remetente está realizando, expressa em notícias breves, a escrita postal também assinala e reafirma laços de amizade, de afetividade. É o que nos revela, por exemplo, os 31 cartões postais trocados no período de 1906 a 1908, entre Monteiro Lobato e sua noiva Purezinha (LOBATO, 2006). Através desta correspondência, o leitor tem acesso não só aos aspectos da vida privada de jovens do início do século XX, como também aos cenários da vida cotidiana do interior paulista, como festas e meios de transportes. Como assinalado por Velloso (Op. Cit., p. 116), a transição do cartão-postal de objeto comercializável a objeto de coleção foi intermediada pela sua utilização como correspondência. Contudo, foram os hábitos de uma determinada época que permitiram a constituição das coleções de cartões postais. Com isto quero enfatizar que o colecionismo de cartões postais8, como uma iniciativa pessoal de constituição de arquivos, se institui como uma prática historicamente situada. Hábito que se fomentou no auge da circulação dos postais, no início do século XX, e praticado na maioria das vezes por mulheres. É desta forma que estes artefatos são guardados e posteriormente publicados e estudados como no caso da coleção de cartões guardados por Purezinha ou por Josephina Cunha Campos9 estudada por VELLOSO(2000). Somente, anos mais tarde, estes artefatos atraem o interesse das instituições museológicas que efetivam em ações a expressão “colecionar cartões-postais é como guardar épocas dentro de um baú” (MASSON; SILVA:1997). E estes arquivos pessoais e estes baús guarda-memórias foram ao longo dos últimos anos abertos por estudiosos vindos de diferentes 2 2 4 Telma Camargo da Silva Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento campos como da História, da Arquitetura, e da Antropologia. Em sua maioria estes estudos focalizam as representações construídas pelas imagens fotográficas reproduzidas nos cartões-postais e privilegiam as análises sobre: 1) as mudanças decorrentes do processo de modernização e as contradições da modernidade a partir da reflexão sobre as paisagens culturais retratadas em cartões-postais do fim do século XIX e início do século XX em São Paulo (FREHSE: 1999; 2000; GERODETTI; CORNEJO, s/d; IMAGENS DA METRÓPOLE, 2004) e no Rio de Janeiro (MACHADO, Op. cit.); 2) as mudanças na socialização das famílias urbanas a partir do projeto modernizador da República (VELLOSO, Op. cit.); 3) o retrato de uma época, como exemplifica o estudo feito por Gilberto Freyre sobre o Ciclo da Borracha em que este estudioso analisou cartõespostais enviados por migrantes (Apud MASSON; SILVA, Op.Cit.). Posteriormente, com a implantação e consolidação dos estudos de pós-gradução em Turismo, surgem trabalhos que analisam as relações estruturantes dos cartões-postais de paisagens com o objeto a ser vendido, no caso as paisagens como lugares “turísticos” (SOUZA, Op. Cit.). Nesta perspectiva, outra linha de pesquisa parte da interpretação das imagens impressas nos cartões postais para analisar as políticas públicas propostas para o setor turístico na cidade do Rio de Janeiro (SIQUEIRA: 2006; MACHADO, Op. cit.). Paralelamente ao interesse na interpretação da iconografia dos cartões-postais e do foco na análise do conteúdo da mensagem textual, um outro campo de estudo analisa os postais como um estilo de correspondência e relaciona a sua guarda às relações de gênero engendradas no século XIX. Nesse sentido, Sacramento (2006) em resenha do livro de Michelle Perrot intitulado As mulheres ou os silêncios da história, ao dizer que na cena histórica a memória do privado coube às mulheres, afirma: Enquanto os homens da burguesia, no século XIX, têm o hábito de colecionar quadros, livros como distinção e sinônimo de suas conquistas econômicas, as mulheres preocupam-se com a roupa branca e os objetos, em uma ânsia de reter sua vidas em ‘mil nadas”: estojos, nos quais guardam “mechas de cabelo, flores secas, jóias de família”, e depois fotografias, croquis e cartões-postais de viagens e outras miudezas. (SACRAMENTO, 2006 , p. 2) 225 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G O colecionamento de cartões-postais se constitui assim, retomando uma expressão de Sacramento (Op. Cit.), como uma das configurações de “espaços de memória” das “mulheres emparedadas”, no caso, as mulheres européias burguesas do século XIX. É neste ponto, após uma revisão da bibliografia disponível sobre o tema, que volto aos postais presenteados a Luiza Odete quando ela era paciente interna no HNMD e posteriormente transformados em uma coleção integrante de um arquivo pessoal conservado ao longo de vinte anos. Emparedamento e evitação: guardando as marcas do sofrimento Foi como emparedada que Luisa Odete vivenciou os meses de tratamento no HNMD e nesse contexto é a destinatária dos cartões-postais que colecionou. Eles assinalam laços de amizade e afetividade demonstrados por membros da equipe de profissionais de saúde para uma paciente em situação aguda de contaminação radioativa. As imagens fotográficas do Rio turístico, das viagens turísticas, foram oferecidas pelos remetentes como uma forma de proporcionar uma “viagem da imaginação”, uma sugestão para conhecer e sentir estando longe. Contudo, no caso de Luiza Odete, a “viagem de gabinete” como empreendida pelos devaneios de Mário de Andrade se transformou na “viagem do isolamento”. O Cristo que abençoa uma expressão de contenção da dor e resignação frente ao sofrimento mais do que uma visita imaginária a um marco turístico da cidade. A coleção de cartões postais, em 1987, configurava um elo entre dois mundos separados pela radiação, pelo medo e pelo risco da contaminação radioativa. Nesse contexto, o mundo da ordem, por um lado, se expressava através do recorte visual feito pelas pessoas que escolheram entre os vários cartões postais disponívies, aquelas imagens que na percepção do remetente/doador representavam a paisagem urbana do Rio. As imagens trazidas pelas fotografias faziam pensar em praia, liberdade, sol no corpo, luz, espaço aberto, corpos bronzeados, brisa soprando no passeio de barco, mar infinito. O mundo da desordem, por outro lado, era aquele 2 2 6 Telma Camargo da Silva Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento evocado pela presença da Luiza Odete: o mundo poluído, o mundo das coisas fora de lugar e por isto entendido como “desastre” e acidente (DOUGLAS, 1966, p. 11-17). Esse corpo “sujo” _ símbolo das consequências decorrentes do risco tecnológico, da pobreza que se nutre das sucatas e da falta de informação _ deveria ser primeiramente higienizado através dos rituais de purificação que aconteciam no HNMD para ser posteriormente re-inserido na sociedade. É esta dualidade entre ordem/desordem; pureza/perigo; confiança/medo; liberdade/segregação que condensa o significado atribuído aos cartões postais como uma dádiva que estabelece a ligação entre dois mundos. É importante assinalar que o “espaço da ordem” naquele contexto remete ao imaginário constituído sobre a cidade do Rio de Janeiro e o “lugar que ela ocupa como cenário propriciador da sexualidaede e da sedução” e “como as praias da Zona Sul foram sendo construídas na imagem da cidade como lugares de beleza” (HEILBRON, 1999, p. 99). Maria Luiza Heilborn continua sua interpretação afirmando: (...) a configuração geográfica e o clima tropical da cidade ocupam um papel proeminente. Às características físicas do espaço associadas às temperaturas elevadas em quase todos os períodos do ano é atribuída uma incitação à exibição dos corpos: os espaços abertos oferecidos pelas praias, parques e praças funcionariam como um convite permanente ao desvelamento dos corpos (Ibid, p. 98). Contudo, enquanto integrada e associada ao “mundo da desordem”, a experiência vivenciada naquele momento e naquele lugar por Luiza Odete se configuram como o oposto das imagens trazidas por este imaginário. No lugar do desvelamento e da beleza corporal ela sente e vê no seu corpo as feridas provocadas pela radiação ao mesmo tempo em que passa pela experiência do enclausuramento e da segregação. A vivência do sofrimento impossibilita a transgressão para o empreendimento da “viagem através da imaginação” como aquela empreendida por Mário de Andrade ao olhar as imagens de sua coleção de cartões postais. Os cartões postais, no caso de Luiza Odete, reafirmam a impossibilidade de saída dos limites do prédio do HNMD porque contaminada pela radiação. Logo, mais do que as imagens/lugares trazidos pelos cartões postais, é a materialidade desses objetos – desses artefatos 227 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G – que integram o jogo social como indicadores de uma sociabilidade construída em situação de emparedamento e que coloca de um lado a paciente contaminada pelo desastre e, do outro, os integrantes da equipe de saúde atuando em contexto de emergência radioativa. No jogo da memória entre o esquecimento e a lembrança, ao longo dos anos o que fica é a memória do sofrimento: a viagem do Rio é a viagem da dor. Nesse sentido, o lugar que se constrói a partir das imagens é o lugar da evitação. Não são as visualidades que são guardadas mas a experiência cotidiana do emparedamento expressa no fato de receber os cartões como objetos sinalizadores da proibição da livre circulação pela cidade. Perguntada se gostaria de visitar o Rio de Janeiro, ela responde que este é a única cidade que não tem vontade de conhecer. Mas aí então a inevitável pergunta: por que colecionar os cartões postais da cidade? Para ela, o significado está em guardar para lembrar do sofrimento e da reclusão. Nesse sentido, o colecionamento, a guarda e manutenção da coleção adquire ao longo de vinte anos a mesma interpretação que ela dá ao fato de ter recusado uma cirurgia plástica para apagar do corpo as cicatrizes deixadas pelas radiodermites em seu pescoço. Emparedada, enquanto mulher, negra, pobre e vítima de um desastre radioativo, estes elementos constituem uma situação de estigma vivida ao longo dos anos pós-abertura da cápsula de césio, em 1987. Carregando na pele as cicatrizes deixadas pela radiação, ela conscientemente guarda a memória corporificada do desastre (SILVA, 2001; 2005). Da mesma forma ela guarda a coleção de cartões postais do Rio de Janeiro como lembrança do lugar que se deve evitar: a dor da radiação. Mais do que guardada _ conservada _, a coleção é “carregada” como as cicatrizes corporais são por ela carrregadas. São pois os cartões-postais como artefatos, mais do que a representação das iconografias que resignificam o Rio de Janeiro como o lugar da evitação. Assim, estes elementos configuram a memória traumática (SILVA, 2007), em que a experiência do desastre ainda não se transformou numa experiência de redenção, e o sofrimento social (KLEINMAN et al.1997, p. IX; SILVA, 2002;2007), através do trauma, continua a se processar. 2 2 8 Telma Camargo da Silva Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento Notas 1 Os dados analisados nesse texto fazem parte do arquivo pessoal da autora e foram coletados com o apoio financeiro da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research (Grant n. 5969 e n. 7046). Uma versão deste trabalho foi apresentada no Simpósio Temático “Histórias, Biografias e Lugares: As narrativas locais e a construção simbólica dos lugares”, coordenado pelas professoreas Cintya Maria Costa Rodrigues e Telma Camargo da Silva, no âmbito do III Simpósio Internacional: Cultura e Identidades, organizado pela Associação Nacional de História (ANPUH), e realizado em Goiânia em setembro de 2007. 2 Não foi usado pseudônimo a pedido da entrevistada. 3 Este segundo grupo foi composto por Kardek (marido da Luiza Odete), Maria Gabriela e Edmilson. 4 O HNMD remonta à casa Marcílio Dias, instituição filantrópica, fundada em 1926, por um grupo de esposas de oficiais da Marinha com o objetivo de prestar assistência social e educacional a filhos de praças. Em 18 de setembro de 1972, dá lugar ao Centro Médico Naval Marcílio Dias criado com o objetivo de prestar assistência médica na região do 1° Distrito Naval e passa a ter função de ensino e pesquisa. Em 8 de fevereiro de 1980 é inaugurado o Hospital Naval Marcílio Dias como Hospital de Base em atendimento às necessidades advindas do Fundo de Saúde da Marinha (FUSMA). Passa então a acumular funções de formação técninca e de aperfeiçoamento dos militares na área de saúde, além de pesquisa médica através de uma Escola de Saúde e de um Instituto de Pesquisas Biomédicas. (Histórico do Hospital Naval Marcílio Dias. Wikipédia. Acesso em: 12 de outubro de 2007). 5 “O programa nuclear paralelo foi impulsionado no Governo do General João Baptista Figueiredo (1979 a 1983), quando a Marinha começou a colocar em prática um plano paralelo para dominar o ciclo do combustível, o “Projeto Ciclone”. Na mesma época, a Aeronáutica trabalhava em duas frentes: intensificava suas pesquisas – iniciadas em 1974, no Governo do general Ernesto Geisel - para enriquecer urânio a laser; e levantava uma base, na Serra do Cachimbo, no Estado do Pará, para testar artefatos nucleares. O Exército, por sua vez, projetava um reator a grafite, para obter plutônio”. (...) O “primeiro sinal visível” sobre a existência de um programa nuclear paralelo, patrocinado pelas Forças Armadas, foi revelado pelo Jornal do Brasil, na edição do dia 4 de setembro de 1986.” (MALHEIROS. T. 1996: 77-78). Esta articulação das Forças Armadas engendrou o Projeto Aramar, base do programa nuclear paralelo, que culminou com a inauguração oficial do Centro Experimental Aramar em março de 1988, em Iperó, no interior do estado de São Paulo. (Ibid. p. 82-84). 6 As imagens reproduzidas nos cartões postais são de propriedade de Colombo Cine Foto Produções Ltda e Edicartd Editora Cultural ltda. Os fotógrafos cujos nomes constam nos cartões são: Carlos O. Sainz e Aldo Colombo. 7 O estudioso Marcos Antonio de Moraes assinala que a única viagem feita por Mário de Andrade ao exterior foi uma escala técnica no Peru. A obra citada, uma edição facsimilar, é uma organização feita por Moraes e apresenta parte do conjunto de postais remanescentes na coleção Mário de Andrade, sob a guarda do IEB-USP. Esta edição apresenta 110 dos 246 postais presentes na coleção. 8 O estudo e colecionismo sistemático de cartões postais se denomina cartofilia. 9 Álbum de postais formado entre os anos de 1905 e 1912. 229 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Referências COSTA, Lenine Fenelon. Projeto – Pesquisa Doutoral de autoria de SILVA, Telma Camargo da. Radiation Illness Representation and Experience: The aftermath of the Goiânia Radiological Disaster. Agência financiadora: Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research (grant n. 5969). Entrevista realizada por Telma Camargo da Silva, em março de 1996, na sede da Fundação Leide das Neves Ferreira, em Goiânia. DOUGLAS, Mary. Introdução. In: Pureza e Perigo. 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Revista Eletrônica do Centro de 230 Telma Camargo da Silva Colecionando Cartões Postais: Os Lugares Constituídos em Contexto de Isolamento Estudos da Metrópole. Número zero, jan./fev./mar. 2004. Disponível em: <http://www.centrodametropole.org.br/zero/divercidade. html>. Acesso em: 13/10/2007. KLEINMAN, A., at. al. Social Suffering. Berkeley: University of California Press: 1997. LOBATO, Monteiro.Quando o Carteiro Chegou... cartões postais a Purezinha. LAJOLO, Marisa (Org.). São Paulo: Editora Moderna, 2006. MASSON, Celso; SILVA, Cândida. Cidades em revista: O museu do Cartão Postal mapeia as mudanças da vida urbana no Brasil. Revista Veja. 22/10.1997. Disponível em: <http://veja.abril.com. br/221097/p_138.html>. Acesso em: 13/10/2007. MACHADO, Marcello de Barros Tomé. Cartões-Postais: A produção do espaço turístico do Rio de Janeiro na modernidade. Revista geopaisagem. Vol. 1, n. 1, jan.-jun., 2002. Disponível em: <http://www. feth.ggf.br/Cart%C3%B5es-Postais.htm>. 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SIQUEIRA, Euler David de. Para uma etnografia do cartão-postal: destaque para a garota carioca. Trabalho apresentado ao GT 10_ “Antropologia, turismo e responsabilidade social: sentidos e sginificados da diferença”, do IV Seminário de Pesquisa em Turismo do MRCOSUL. Caxias do Sul, 7 – 8 de julho de 2006. SILVA, Telma Camargo da. Política da memória: recompondo as lembranças no caso do desastre radiológico de Goiânia. In: FREITAS, Carmelita Brito de. (Org.). Memória. Goiânia: Editora da Universidade Católica de Goiás, 1998 p. 117-138. ______ Bodily Memory and the Politics of Remembrance: the aftermath of Goiânia radiological disaster. High Plains Applied Anthropologist. Special Issue: Understanding Disasters and Catastrophies: An Antrhopological Perspective. Colorado. U.S.A. vol. 21., n. 1 p. 40-52. 2001.Spring. ______ Radiation Illness Representation and Experience: the aftermath of the Goiânia radiological Disaster. Tese de Doutorado em Antropologia. 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Cartões-postais como divulgadores da imagem turística : o caso de Ilhéus , Bahia. Revista Espaço Acadêmico, n. 65, Outubro 2006. Disponível em: <http:// www.espacoacademico.com.br/065/65souza_feliope. htm>. Acesso em: 13/10/2007. VELLOSO, Verônica Pimenta. Cartões-postais: A Família como consumidora-receptora (1905-1912). Anais – Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Vol. 32, 2000, p. 114134. Telma camargo da silva Ph.D. em Antropologia pela City University of New York – CUNY, onde defendeu em 2002 a tese Radiation Illness Representation and Experience the Aftermath of the Goiânia Radiological Disaster. Em 1977, obteve o título de mestre pela École des Hautes Études en Sciences Sociales –EHSS com uma dissertação sobre a a obra de Leandro Gomes de Barros, autor de folhetos de cordel. [email protected], [email protected] 233 Resenha Arte, ciência, tecnologia: experimentação Mar ta M. Kanashiro A revista portuguesa Nada tem se dedicado, desde 2003, a publicar artigos sobre arte, ciência e tecnologia. A reunião desses temas não é nova, mas a proposta dessa publicação diferencia-se de muitas que circulam no mercado editorial, pois almeja ser um espaço de experimentação “indisciplinar”, num movimento que atravessa estética e ciência e é composto pelos mais diferentes encontros. A idéia central de João Urbano (2003), coordenador e editor da revista, é dar visibilidade àquilo que oscila entre produção artística e teórica híbrida, “uma mescla – diz ele - de saberes que produzam acima de tudo acontecimentos”. É uma ruptura, portanto, com concepções que trabalham muito diretamente com categorias já existentes, na tentativa de alcançar ou disparar o novo. Em mais de um editorial (contra os quais o autor sempre reluta ou recusa de alguma forma, a exemplo de seus títulos), Urbano cita a “porética” que o inspira. De Silva Carvalho (1996), a idéia de escrita porética ou porista “é aquela que abre passagem, que abre caminho na aporia, isto é, no lugar sem caminho, na fronteira (frontier), na Wilderness. (...) a escrita porética transforma o impossível em possibilidade de existência, quer isto dizer, e mais uma vez, que a estética porética (...) procura resolver problemas, achar soluções (sempre precárias e provisórias)” (CARVALHO, 1996). Para ele, isso 237 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G significa assumir a contradição e viver a tensão, significa tratar do não linear, do inesperado, dos desvios, do acidental, do divergente, do desconexo. É por esse viés que os temas da publicação, que hoje é distribuída na Espanha e no Brasil, além de Portugal, abarcam de forma irreverente, não disciplinada e instigante, as artes plásticas, a filosofia, a arquitetura, literatura, música, bioarte, infoarte, artes performativas, o design, e também, a inteligência artificial, as biotecnologias, a biologia, neurociências, robótica e toda a sorte de áreas tecnocientíficas, as quais, para Urbano, dão forma a “um novo paradigma aberto ou devir bioinformático, que vem tendo implicações fortíssimas no nosso modo de vida” (Urbano, 2003, p. 6). O número 11 da Nada, de agosto desse ano, foi o primeiro a ser concebido fora de Portugal, sob coordenação de Pedro Peixoto Ferreira e Emerson Freire, membros do grupo CTeMe (Conhecimento, Tecnologia e Mercado), da Unicamp. A novidade, no entanto, não afasta de forma alguma a proposta inicial da revista, pelo contrário, parece retomá-la e reforçá-la por meio das ressonâncias entre a equipe de João Urbano e o grupo de pesquisa CTeMe. Nessa edição, antropólogos, arquitetos, designers, artistas, sociólogos e filósofos estão reunidos em torno do vínculo entre afeccção, sensação e percepção. Este elo, como explicam Ferreira e Freire em seu editorial, não apenas é tema de alguns textos, mas também, o próprio método de trabalho de alguns autores e o efeito intencionado sobre os leitores. Nas palavras de Ferreira (2008): “Trata-se, grosso modo, de um esforço para pensar o impensado do próprio pensamento, i.e., aquilo que não pode ser pensado, mas que se apresenta como a condição de possibilidade de todo e qualquer pensamento. Como alternativa ao pensamento que se limita à recombinação do já pensado (das representações e modelos já construídos), propõe-se um pensamento que se dá sobre, como e no impensado, concebido como afecção, sensação ou percepção”. Sob o título “Informação e Sensação”, o primeiro texto dessa edição traz à tona as idéias do filósofo francês Gilbert Simondon (1924-1989). O autor Emerson Freire, cientista da computação e sociólogo, resgata de forma minuciosa o percurso trilhado 238 Marta M. Kanashiro Arte, ciência, tecnologia: experimentação pelo filósofo para chegar aos conceitos de informação, sensação e percepção. Freire retoma outros autores, como Lev Manovich (professor de artes visuais da Universidade da Califórnia - EUA), para sinalizar o desafio de se levar sempre em conta esse tripé (informação-sensação-percepção), o qual se relaciona com a invenção e, portanto, é o campo problemático com o qual os mais diversos domínios, e também a arte, deverão lidar. É com Simondon que a edição sinaliza o problema e uma espécie de rumo possível, na medida em que também é dele o último texto dessa publicação. O antropólogo da Universidade de Concórdia (Canadá), David Howes, vem logo a seguir para explorar de forma mais direta o eixo afecção, sensação percepção proposto pelos editores. Ele reflete sobre a idéia de sinestesia, ou o cruzamento de diferentes sensações, comumente relacionadas isoladamente aos cinco sentidos do corpo. Em “A mente multidirecional”, Howes defende que os sentidos não podem ser estudados adequadamente quando isolados. Criticando o estudo das sensações pela via congnitivista da antropologia, o autor argumenta a interação ou a conjugação dos sentidos, que ele nomeia “modulação da percepção”. O autor apresenta o caso dos Desana, um grupo indígena Tukano da Amazônia colombiana, para abordar a interconexão dos fenômenos sensoriais e desvelar a necessidade de um diálogo entre neurocientistas cognitivos e antropólogos para uma compreensão mais ampla. “A identidade na era de sua reprodutibilidade” é a entrevista feita com o antropólogo do Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e co-coordenador da Rede Abaeté de Antropologia Simétrica, Eduardo Viveiros de Castro. Nesse texto, que traz fotografias feitas pelo próprio entrevistado, a abordagem recai, em especial, sobre a relação entre fotografia, antropologia e a experiência de pesquisa de campo de Viveiros de Castro. No conjunto de suas respostas, o antropólogo reúne diferentes problemas apontando para a complexidade com a qual nos defrontamos hoje. Dentre eles, esta a incorporação da imagem, do conhecimento e do signo como mercadoria: “(...) o fluxo do capital – argumenta ele – passa a investir a imagem de uma maneira e com uma violência e eficiência inauditas, não há dúvida de que a tecnologia de imagem passa a ser estratégica do ponto de vista político-econômico dos povos indígenas. Não são mais as terras indígenas que são cobiçadas, 239 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G mas também o simulacro fantasmático dessas terras: as imagens que elas projetam, o conhecimento suposto que representam – o imaterial, o incorporal. Na medida em que o incorporal começa a ser maciçamente capitalizado, as tecnologias de produção de imagem se tornam tecnologias cruciais para os índios dominarem (...)” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008). A etnomusicóloga da Universidade Federal de Minas Gerais, Rosângela Pereira de Tugny, apresenta por sua vez, relatos e reflexões acerca de sua experiência etnográfica de registro de cantos dos índios Maxakali, presentes no nordeste de Minas Gerais. Tugny afirma, em “Um fio para înomõxã: em torno de uma estética maxakali”, que sua compreensão do trabalho musical passa não pela invenção de formas, mas pela captação de forças ou pela sonorização de forças que não sonoras a princípio. Como apontado por Ferreira (2008b), trata-se de uma certa estética relacional e trans-humana das aberturas e dos devires entre os Maxakali. Vale ainda destacar que, de certa forma, o texto de Tugny e Howes encontram-se quando a etnomusicologa afirma que é parte desta captação de forças tornar mais densas as sensações de espaço e tempo, e as operações do olhar e da escuta, que se complementam e integram-se. Após o desafio deixado pelos conceitos de Simondon, no texto de abertura de Freire, e das abordagens de Howes, Viveiros de Castro e Tugny, com um caráter mais teórico antropológico e com experiências mais ligadas ao conhecimento tradicional indígena, o texto “Etnografia, cinematografia e cidade”, do arquiteto e urbanista Paulo Tavares, traz um universo um tanto diverso, mais urbano, e que predomina também nos dois textos seguintes da revista. Tavares elabora um percurso teórico no qual retoma importantes autores da antropologia, como Clifford, Malinowski, Margareth Mead, Bateson, e o pensamento perspectivista, dentre outros, para situar e problematizar algumas especificidades da experiência etnográfica, da obtenção de imagens na pesquisa de campo e dos filmes etnográficos. É a partir de Walter Benjamin, que o autor nos mostra uma ponte fundamental da etonografia às máquinas e que emergem questões relativas ao mundo industrial, a produção, o mercado e a experiência urbana e do sujeito contemporâneo. É nesse trajeto que Tavares aponta as mudanças na experiência e na percepção. 240 Marta M. Kanashiro Arte, ciência, tecnologia: experimentação O sensível ensaio fotográfico “Lazar”, por sua vez, do designer e pesquisador Christian Pierre Kasper, focaliza uma habitação de rua e seu morador e construtor (que dá nome ao ensaio) na cidade de São Paulo, para trazer a tona um deslocamento interessante com relação às abundantes teorias que visualizam a situação de rua como ausência e falta, e colocar em primeiro plano a construção, criação, a subjetividade e percepção nesse espaço. Se os dois textos anteriores proporcionavam a entrada num novo território, o do urbano, o texto seguinte nos traz o movimento e imprime uma outra cadência aos textos. Deste momento em diante os textos da revista parecem assumir, um após o outro, uma velocidade cada vez maior até chegar a uma certa vertigem produtiva do novo. Do “Fluxo ao lugar” é a tradução de um capítulo da tese “Go with the Flow. Architecture, Infrastructure, and the Everyday. Experience of Mobility” (2006), de Gilles Delalex – arquiteto da École Nationale des Ponts et Chausséess (França). O arquiteto viajou durante três meses, de carro, pelas estradas européias para realizar sua pesquisa que além da tese também produziu mais de 40 mil fotografias. Nesse texto, Delalex parte dessa experiência, da estética nas estradas, das redes envolvidas no movimento das pessoas, para propor uma leitura menos reducionista da influência dos fluxos globais nos lugares. O texto seguinte, também uma tradução, abre uma problemática mais voltada para a tecnologia, a qual perdura em todos os cinco últimos textos da revista. “Forma, difração e colapso”, traz trechos da entrevista “How like a Leaf” (2000), feita por Thyrza N. Goodeve com a bióloga Donna Haraway. Atualmente, professora da Universidade da Califórnia (Santa Cruz), Haraway publicou inúmeros livros nos quais tematiza transformações sociais e políticas conectadas às mudanças na ciência e na tecnologia, sendo “Manifesto para Ciborgues: Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista no Final do Século XX” (1985) sua obra mais difundida. Em sua conversa com Goodeve, Haraway aborda sua relação com a biologia e a filosofia, expondo seu próprio pensamento, sua ironia, que transita entre fenômenos biológicos e histórias cosmológicas. Os textos e imagens de “Corpos d’água” e “Fluid Geographies: explorando o terreno entre arte visual e mapeamento” são os 241 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G trabalhos da artista Eve André Laramée, que conectam ciência e poder. Laramée tem explorado há mais de 20 anos, as relações entre arte, ciência, natureza, ficção e política em diversas obras e em suas passagens por varias universidades renomadas, nos Estados Unidos. As instalações de “Fluid Geographis” exploram o desenvolvimento de armas atômicas no norte do México, por meio da construção de mapas. Ao mesmo tempo em que esse trabalho constrói e explora uma cartografia, para trazer à tona relações de poder, camadas de estórias, camadas de informações e redes, também se estabelece entre a arte e o mapeamento, apontando colapsos de dualismos (como arte/ciência, natureza/cultura, fato/ ficção), assim como escolhas e critérios de geógrafos, cartógrafos e políticos na elaboração de mapas para reafirmar a idéia de algo construído e negociado. Em “Sobre o futuro do humano”, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos promove o encontro entre uma série de autores, tais como C. S. Lewis, Günther Anders, Konstantino Karachalios, Vernor Vinge, Ray Kurzweil, Hermínio Martins, Peter Sloterdjik, Bárbara Stiegler e Michel Foucault para refletir sobre e problematizar o futuro do humano. O autor sinaliza a importância da politização da biologia, da tecnologia e da tecnociência, numa época em que a política tornou-se vital. Um período em que vige a aceleração da aceleração tecnológica, coloca nas mãos da atual geração escolhas éticas e opções tecnológicas decisivas sobre esse futuro. A cientista social Cecília Diaz-Isenrath, por sua vez, analisa em “In_formação” a vídeo-instalação “Deep play” de Haroun Farocki, e trata de uma questão crucial para a politização da tecnologia, a saber, o controle dos fluxos, imagens e informações, e os dispositivos concretos que operam esses sistemas. “More than meets the eye: os transformers e a vida secreta das máquinas” segue uma trilha semelhante ao partir da operação de transformação de um brinquedo (os robôs transformers em duas versões, de 1984 e 2007) para captar, dentre outros elementos, a nossa postura diante das máquinas. Mas Ferreira (2008) vai além de observar que passamos de operadores ativos a operadores passivos ou espectadores das máquinas, para também refletir sobre o deslocamento da transformação para as formas e sobre as diferenças entre mecânico e maquínico. 242 Marta M. Kanashiro Arte, ciência, tecnologia: experimentação O último texto da revista é “Cultura e técnica”, uma tradução da introdução do livro “Du mode d’existence des objets techniques”, do filósofo Gilbert Simondon, autor resgatado pelo primeiro artigo da revista. Nessa introdução, Simondon propõe uma modificação do olhar sobre a tecnologia, por meio de um afastamento seja da tecnofilia ou da tecnofobia. O ciclo percorrido pelos artigos, que partem e retornam a Simondon, parece sinalizar o quão fundamental é o pensamento desse filósofo, que influenciou Deleuze e Guattari presentes em grande parte das reflexões da revista. O conjunto de textos dessa edição culmina assim nessa espécie de rumo possível que este filósofo e seu pensamento podem proporcionar, mas num trajeto que vai dos grupos indígenas as transformações ligadas a tecnologia, e que pode sinaliza direções (sempre provisórias) para novas passagens que não podem deixar de assumir as contradições que nos constituem e rodeiam. Referencias CARVALHO, S. O poreticismo. In: Silva Carvalho (org). A Linguagem Porética. Brasília Editora: Porto, 1996. disponível em: <http://www.silvacarvalho.com/recensoes.htm#PORETICISMO> Ultima consulta: 03 setembro de 2008. FERREIRA, P. P. e FREIRE, E. Editorial impossível. In: João Urbano (org), Revista Nada, Lisboa: Urbanidade Real, n. 11, 2008a, p. 5. FERREIRA, P. P. Release para lançamento da revista Nada no Brasil, agosto, 2008b, p 1-7 (arquivo pessoal). URBANO, J. Editorial em forma de outra coisa. In: João Urbano (org), Revista Nada,, Lisboa: Urbanidade Real, n. 1 2003, p. 5-9. 243 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G URBANO, J. Editatorial. In: João Urbano (org), Revista Nada, Lisboa: Urbanidade Real, n. 2, 2004, p. 5-11. VIVEIROS DE CASTRO, E.; FERREIRA, P. P. [et al]. A identidade na era de sua reprodutibilidade técnica. Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro. In: João Urbano (org), Revista Nada. Lisboa: Urbanidade Real, n. 11 2008, p. 34-51. 2 4 4 Marta M. Kanashiro Arte, ciência, tecnologia: experimentação Marta M. Kanashiro socióloga e jornalista. Atua como pesquisadora no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e no Grupo de Pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe), ambos da Unicamp 245 Painéis V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Tereza Bicuda: a senhora, a diaba e a louca Rosilandes Cândida Martins Resumo Este projeto de pesquisa pretende explorar a lenda de Tereza Bicuda através da análise do conteúdo das diferentes narrativas (imaginários visuais) encontradas sobre ela. O elemento narrativo é rico para entender essas representações e transformações. Antes de analisar “as estórias” propriamente ditas, será preciso investigar a formação histórica da região, levantar a bibliografia existente e, posteriormente, resgatar os temas e as narrativas. Aproveitarei os resultados da pesquisa de campo já realizada pela historiadora Nei Clara de Lima – “Histórias da gente de Jaraguá”, 2003, (9 versões) e farei a coleta de novas histórias mais ligadas às preocupações da cultura visual. Como o mito Tereza Bicuda confere visibilidade à cultura local. Como as diferentes representações de Bicuda pode nos ensinar sobre as expressões simbólicas de uma cultura e da realidade histórica local. Como os atores da população de Jaraguá vêem sua própria história. Que traços identitários (ou estereotipias) as diferentes narrativas de Tereza revelam. Como diferentes atores da região re-interpretam o seu passado. Como as narrativas fantásticas da tradição oral popular podem ser estudadas na perspectiva da cultura visual. Qual a importância desses estudos para a linha Culturas de Imagem e Processos de Mediação. Uma educação estética popular? Ao longo do processo da pesquisa é minha intenção constituir um banco de dados, reunindo narrativas relativas à apreensão e à reinvenção do mito Tereza Bicuda no tempo e no espaço local para utilização estética pedagógica intertextual entre visualidade e cênica. Palavras-chave: Cultura popular, teatro, Tereza Bicuda, memória. 248 Rosilandes Cândida Martins O Brasil na França pelas lentes de Samuel Costa Marcos André Galdino Morais Resumo A proposta dessa pesquisa é analisar a produção fotográfica de Samuel Costa, goiano, morto precocemente em 1987 aos 33 anos, especificamente as imagens do Brasil que ele veiculou na Europa entre 1980 e 1985, quando viveu na França. O trabalho envolve, num primeiro momento, a identificação, catalogação e digitalização das fotografias produzidas por Samuel Costa nesse período dentro da temática escolhida para estudo, a partir de consulta ao acervo da família. O objetivo principal da pesquisa é investigar a estética documental dominante na fotografia brasileira do período, a partir da análise das fotografias de Samuel Costa. Com isso, pretendemos observar no trabalho produzido pelo fotógrafo a presença, sobretudo, de uma visualidade que evidencia questões de identidade e a criação ou não de processos que apontam para novas sintaxes visuais no contexto da produção fotográfica documental do período. Essa pesquisa pretende ainda contribuir para os estudos referentes à história da fotografia em Goiás, bastante incipientes, resgatando e divulgando a produção fotográfica de Samuel Costa. Palavras-chave: fotografia documental, Samuel Costa, história da fotografia. Marcos André Galdino Morais 249 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G Estéticas da existência: Subjetivações sobre a moda Lorena Pompei Abdala Resumo Como se dariam as propensões e noções de gosto? Pensando nas práticas de si é que se buscará, neste estudo, a transcendência do utilitarismo da moda para uma noção de subjetivação e experiência estética. Entendimento do posicionamento identitário legitimado pelas múltiplas dobras e territórios ocupados pelos sujeitos. Em maior ou menor grau possuímos objetivações e subjetivações de gosto relacionadas às práticas da aparência ou existência. Todos nós vemos e somos vistos, portanto de uma forma ou de outra é pouco provável um absoluto alheamento de si mesmo e dos outros. Somos artefatos visuais e portamos informações imagéticas. Negar a estética de si, no sentido foucaultiano, seria negar a própria existência, já que a constituição do Eu esta ligado à imagem do próprio corpo, segundo o “Estádio do Espelho” de Jacques Lacan. Assim, pensemos em corpos construídos por um discurso, corpos que se projetam pelas experiências estéticas como um meio de comunicação subjetiva com o mundo, corpos percebidos pela poética da obra aberta, que admitem um universo de formas perceptíveis e interpretações plurais que se complementam e geram novas formas de perceptos. Palavras-chave: Moda; Estética; Subjetividade 250 Lorena Pompei Abdala 251 Normas para publicação de trabalhos A Revista Visualidades é uma publicação semestral do Mestrado em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Seu objetivo é a publicação de trabalhos originais e inéditos – em português, espanhol, inglês e francês – dedicados à diversidade de manifestações que articulam o sentido visualmente, tratando-as em relação à cultura e como cultura. Os originais, sob a forma de artigos, ensaios visuais, relatos de pesquisa, entrevistas, resenhas e resumos de dissertações e teses, serão avaliados preliminarmente pelo Conselho Editorial quanto à pertinência à linha editorial da revista. Numa segunda etapa, as contribuições enviadas serão submetidas a pareceristas ad hoc. O Conselho Editorial reserva-se o direito de propor modificações no texto, conforme a necessidade de adequá-lo ao padrão editorial e gráfico da publicação. Artigos e entrevistas deverão ter entre 4.000 e 9.000 palavras. Resenhas: até 2.000 palavras. Resumos de teses e dissertações: até 400 palavras. Relatos de pesquisa: até 3.000 palavras. Serão aceitas resenhas de livros publicados no Brasil há 2 anos, no máximo, e, no exterior, há cinco anos. Serão aceitas também resenhas de filmes e exposições. As imagens para os ensaios visuais devem ser em P&B, com resolução mínima de 300 dpi. O texto deve ser acompanhado de uma biografia acadêmica do(s) autor(es) em, no máximo, 5 linhas, e das seguintes informações complementares: endereço completo do autor principal, instituição à qual está ligado, telefone, fax e e-mail. Essas informações devem ser enviadas separadamente. Os trabalhos devem ser precedidos de um resumo de 5 a 8 linhas e 3 palavras-chave, ambos em inglês e português. As resenhas devem ter título próprio e diferente do título do trabalho resenhado e devem apresentar referências completas do trabalho resenhado. Os textos deverão ser digitados no editor Microsoft Word (Word for Windows 6.0 ou posterior), salvos no formato Rich Text Format (rtf), com página no formato A4, fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinhamento 1,5 e parágrafos justificados. As notas devem ser sucintas, empregadas apenas para informações complementares e não devem conter referências bibliográficas. Devem ser inseridas no final do texto, antes das referências bibliográficas, e numeradas seqüencialmente. Referências bibliográficas: Quando o autor citado integrar o texto, usar o formato: Autor (ano, p.). Em caso de citação ao final dos parágrafos, usar o formato: (SOBRENOME DO AUTOR, ano, p.). Diferentes títulos do mesmo autor publicados no mesmo ano serão identificados por uma letra após a data (SILVA, 1980a), (SILVA, 1980b). As referências bibliográficas completas devem ser informadas apenas no final do texto, em ordem alfabética, de acordo com as normas da ABNT (NBR-6023/2000): SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição, Cidade: Editora, ano, p. ou pp. SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In: SOBRENOME, Nome do organizador (Org.). Título do livro em itálico. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. X-Y. SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. X-Y, mês, ano. Documentos eletrônicos: Para a referência de qualquer tipo de documento obtido em meio eletrônico, deve-se proceder da mesma forma como foi indicado para as obras convencionais, acrescentando o URL completo do documento na Internet, entre os sinais < >, antecedido da expressão Disponível em: e seguido da informação Acesso em: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. X-Y, mês, ano. Disponível em:<http://www> Acesso em: dia mês ano. Os originais devem ser enviados por e-mail e uma cópia em CD-ROM deve ser encaminha pelo correio. O CD-ROM deve conter também as imagens e o currículo resumido do(s) autor(es). As imagens devem ser gravadas no formato TIFF ou JPEG, com 253 V I S U A L I D A D E S . R E V I S TA D O P R O G R A M A D E M E S T R A D O E M C U LT U R A V I S U A L - F AV I U F G resolução mínima de 300 dpi. A permissão para a reprodução das imagens é de inteira responsabilidade do(s) autor(es). Cada autor receberá 3 (três) exemplares do número em que for publicada sua colaboração. Os originais não serão devolvidos aos autores. A revisão ortográfica, gramatical e a adequação às normas da ABNT são de inteira responsabilidade do(s) autor(es). As colaborações para a revista Visualidades devem ser enviadas para o seguinte endereço: FACULDADE DE ARTES VISUAIS / UFG Secretaria de Pós-Graduação Revista Visualidades (A/C: Rosana Horio Monteiro) CAMPUS II – Samambaia – Bairro Itatiaia Caixa Postal 131 74001-970 - Goiânia - GO Telefone: (62) 3521-1440 E-mail: [email protected] 254