ENTRE O TREM E A PLATAFORMA Lucimar

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ENTRE O TREM E A PLATAFORMA Lucimar
ENTRE O TREM E A PLATAFORMA Lucimar Mutarelli e Vana Medeiros Personagens LAURA a SOMBRA a MÃE a SUPERVISORA a TERAPEUTA Para Sabrina Greve Michelle Ferreira Isabel Teixeira Baseado no livro “Entre o trem e a plataforma” Lucimar Mutarelli Editora Prumo PRIMEIRO VAGÃO ­ PRÓLOGO (Laura e a Sombra estão sentadas no vagão da vida de Laurinha, que se sente um tanto desconfortável. A Sombra repara, mas resolve não comentar. As duas estão em lados opostos do vagão, sozinhas. O barulho do trem é alto, ensurdecedor.) Laura odeia se perder, embora raramente tome a direção certa. Mamãe tentou ensinar, mas mamãe não manda porra nenhuma aqui. VOZ EM OFF Atenção para a próxima parada, Laura. A próxima parada é… A próxima parada é… Laura, você sabe para onde estamos indo? O que você quer com a sua vida, Laura? Por favor, deposite uma resposta convincente até o meio­dia na caixa de sugestões. (Laura escreve em um de seus cadernos, mas se sente observada pela Sombra, que de fato a encara. Laura levanta a cabeça e pega a Sombra no flagra, o que a obriga a desviar seu olhar. Laura retoma mais uma vez sua escrita, mas logo em seguida pega a Sombra novamente observando­a, fazendo com que seja quase impossível para esta disfarçar. Um jogo.) LAURA (gritando, como se estivesse do outro lado de uma grande avenida) A SENHORA PRECISA DE ALGUMA COISA? SOMBRA O QUÊ?! LAURA (pausadamente) A SENHORA. PRECISA. DE. ALGUMA. COISA? 1 SOMBRA NÃO, MINHA QUERIDA. E VOCÊ? LAURA (pega de surpresa) ACHO QUE NÃO. QUER DIZER. EU… NÃO SEI. (decidindo) NÃO! EU NÃO PRECISO DE NADA, OUVIU? NADA! SOMBRA O QUE VOCÊ TANTO ESCREVE? LAURA A SENHORA SEMPRE SE METE NO ASSUNTOS DOS OUTROS? SOMBRA EU SÓ FIQUEI CURIOSA. LAURA (cedendo, meio a contragosto) É SOBRE A MINHA VIDA. SOMBRA SOBRE O QUÊ? LAURA A SENHORA SABE. A VIDA! SOMBRA AH, SEI. E AQUELE MOÇO? LAURA MOÇO? SOMBRA 2 O MOÇO QUE VOCÊ FICA ENCARANDO NO METRÔ. LAURA A SENHORA SABE SOBRE O MOÇO? SOMBRA EU SEI. LAURA EU NÃO ESCREVO SOBRE ELE TANTO ASSIM. SOMBRA LÊ PRA MIM ALGUMA DESSAS COISAS QUE VOCÊ ESCREVE. VOZ EM OFF Atenção para o capítulo de hoje das regras do código de conduta. É proibido brincar na faixa amarela, desviar a atenção do motorista, deixar seus pertences com outro passageiro, gritar em lugares públicos, ouvir a conversa dos vizinhos, esperar o elevador sem sorrir, acreditar em todo livro que lê. Deve­se evitar ainda concordar com a cabeça, assoviar ou batucar no transporte público e desviar os olhos. Favor emitir opinião, assim que possível, sobre qualquer fato que ocorra ao seu redor ou durante o trajeto. Nunca diga nunca. (Sombra se aproxima de Laura. Aos poucos, elas não gritam mais.) SOMBRA Foi você que escreveu? LAURA Não, elas não me deixam escrever as regras. Eu só copio. SOMBRA 3 Mas me fala mais sobre aquele moço. LAURA A senhora é curiosa demais. Nunca leu o código? É proibido. SOMBRA É que você não para de pensar nisso. LAURA Ele é bem bonito. SOMBRA Que mais? LAURA E ele sempre entra no mesmo vagão só pra me ver. SOMBRA É mesmo? E o que ele disse? LAURA Nada. A gente nunca se falou. Ele é tímido. (Pausa) LAURA Mas a gente vai. É questão de tempo. SOMBRA Ele te ama? LAURA 4 Você só fala nisso. SOMBRA Você só pensa nisso. LAURA Eu penso em um monte de coisa. SOMBRA Sua mãe não vale. Odeio aquela maldita. LAURA Ai meu Deus! Eu esqueci de entregar os cadernos! SOMBRA Ela não merece uma filha boa. LAURA Será que ela vai chorar? SOMBRA Quando? LAURA No meu velório. SOMBRA Ninguém mais chora em velório, Laurinha. LAURA Eu choraria se me chamassem pra um. É falta de educação ficar feliz no velório dos outros. 5 SOMBRA Você quer que eu chore? LAURA Chora? Promete? SOMBRA Prometo! (Barulho do trem é retomado. Laura e Sombra voltam a gritar.) SOMBRA ACHO QUE EU DESÇO NA PRÓXIMA. LAURA (um pouco decepcionada) AH! TÁ! SOMBRA CUIDADO COM O VÃO ENTRE TREM E A PLATAFORMA! LAURA O QUE TEM O VÃO? SOMBRA NINGUÉM SABE. LAURA EU ODEIO CHARADAS! SOMBRA É A VIDA, LAURA. 6 LAURA NÃO É, NÃO. EU SEI TUDO SOBRE A VIDA. JÁ CANSEI DELA. 7 PLATAFORMA 1 (Laura vive dentro de um quadrado​
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Em uma semana ele vai ficar tão apertado que vai saturar a nossa menina​
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Laura vai implodir. Está sentada na cama e a mãe tenta pentear seu cabelo.​
) MÃE Fica quieta, Laura. Que coisa! LAURA Me conta de quando eu nasci? MÃE Você foi um presente de Deus. Eu sofri muito antes de ter você. Perdi dois bebês. LAURA Menino ou menina? Por que eles morreram? MÃE Porque Deus quis, filha. (A mãe termina a trança de Laura e levanta arrumando a prateleira.) MÃE Porque Deus quis. Tudo que acontece de bom, tem que falar Graças a Deus e tudo que acontece de ruim você fala Deus Quis Assim. A vida fica mais fácil quando a gente põe a culpa em alguém. (A mãe vai saindo e Laura mexe no guarda roupa. Vai tirando peça por peça. Analisa. Coloca na frente do corpo enquanto se olha no espelho.) LAURA Mãe! Mãe! Me empresta a sua saia? MÃE Credo, Laura. Precisa gritar? Gente educada fala baixo. 8 LAURA Desculpa. MÃE Para de mexer que você vai fazer a maior bagunça aí. O que você tá procurando? LAURA Aquela saia que o papai gosta. Comprida, de flores. MÃE Não tenho mais, faz tempo. LAURA Você deu? Jogou fora? Não acredito. Ai que ódio. MÃE (Começa a ordenar as peças. Separar por modelo, cor e tamanho.) O que é isso, menina? Que faniquito é esse? Você acha que eu jogo roupa fora? Parece louca. Dei na igreja. LAURA Eu amava aquela saia. MÃE Deixa de ser egoísta. Olha quanta roupa. Tem tanta que não dá nem pra arrumar. Sábado eu te ajudo. A gente separa e dá metade pra doação. (A mãe tenta organizar as roupas que Laura bagunçou e escolhe um conjunto muito parecido com o que ela está usando. Coloca na frente do corpo e mostra pra menina.) MÃE Olha esse. Que graça. Quer? Te dou. Fica de presente de aniversário. LAURA Cinza, de novo? 9 MÃE Você tá ficando chata. Não pediu a minha ajuda? Nem quero saber como vai ser pra organizar a sua festa. Você não vai dar palpite em nada, ouviu bem? LAURA Mãe, eu queria falar sobre isso. MÃE Não falei? Você já vai começar a dar uma de enxerida. LAURA Não, não é nada disso. MÃE Eu já vi, planejei tudo. A decoração vai ser toda roxa. Você não gosta de roxo? É mais perto do lilás com uns tons de cinza prateado. LAURA Mãe, eu não quero festa de aniversário. MÃE Como não quer, Laura? Quer o quê no lugar, então? A gente precisa comemorar o seu aniversário. Ainda mais numa idade importante que nem essa. LAURA Mas nem tem o que comemorar, mãe. Eu já decidi que não quero. Cancela tudo, esquece os planos todos. MÃE Não vou esquecer de nada, não. Faço a festa e ponto final. Você não tem nada que dar palpite. LAURA Eu não quero festa nenhuma. 10 MÃE A gente não tem tudo que quer na vida. LAURA Eu não vou aparecer. MÃE Ah, mas é claro que vai! Você acha que vai me fazer passar vergonha na frente de todo mundo? Vai aparecer, sim, senhora. LAURA Você que sabe. Ou você cancela ou eu não apareço. (Pausa) LAURA (como se nada tivesse acontecido) Finge que eu era uma boneca e você coloca a roupa em mim? MÃE Tá bom mas cala a boca então porque eu só gosto de boneca que não fala. LAURA Mas... MÃE Vaca amarela cagou na panela! (Laura faz um x sobre a boca. A mãe sorri, beija as mãos da filha, troca a roupa de Laura e termina de arrumar o cabelo dela.) 11 PLATAFORMA 2 (No escritório 29 mesas pequenas com máquinas de datilografia. A bandeira do país, um grande mural com o alfabeto completo e ilustrado. Um grande relógio de ponteiros mais lentos do que o habitual. Uma mesa antiga de mogno, escura com um vaso de flores de plástico ou prestes a morrer, flores secas. Um quadro de avisos informa os passeios permitidos no próximo fim de semana. Uma máquina de café e um galão de água. Copos de plástico. Adoçante apenas. Açúcar faz mal pra pele. A supervisora não gosta. Um grande pote de vidro com barrinhas de cereal. Ou nada disso. Só a sensação disso.) LAURA (em voz alta, enquanto datilografa) Segundo a cláusula terceira do código de conduta, todos os funcionários devem entrar no mesmo horário, punindo­se atrasos com restrições severas de cafeína nos dias posteriores à falta cometida. Com exceção das sextas­feiras, em que o funcionário supracitado deve obrigatoriamente se atrasar em 20 minutos para provar que consegue ser espontâneo. SUPERVISORA Laura, você gosta do trabalho que faz aqui com a gente? LAURA (sem parar de copiar) Eu não sei, senhora. LAURA Ah, senhora. A mamãe se chatearia muito se eu não dissesse que sim, senhora. SUPERVISORA Então porque você não faz seu trabalho como as outras meninas? LAURA Eu estou tentando, senhora! Essa já é a folha de número 576 durante o expediente de hoje. Acabei de completar a meta do dia. 12 SUPERVISORA Grande bosta. LAURA Eu copio tudo, palavra por palavra. Eu até respiro junto nas vírgulas, pra dar uma força pra elas. SUPERVISORA (explodindo, fora de hora) Não me chame de senhora! LAURA Mas eu não chamei, não, senhora! SUPERVISORA Olha aí, foi exatamente isso que você fez, me desobedeceu bem na minha cara. LAURA Desculpe, desculpe. Eu só quero ir pra casa. SUPERVISORA Agora, não! LAURA Senhora, eu preciso fazer um pedido. SUPERVISORA Faz o que você quiser, Laura. Você não vai durar muito tempo aqui mesmo. LAURA É que eu queria tirar a minha folga no dia 21. SUPERVISORA 21 quando? LAURA 21! De junho! Semana que vem... 13 SUPERVISORA Não, não pode. LAURA Mas a senhora disse que eu podia escolher. SUPERVISORA Pode escolher. Qualquer dia, menos esse. LAURA Mas eu preciso desse. SUPERVISORA (sem dar muita importância) Não precisa, não. Escolhe outro. (olha pela primeira vez pra Laura) O seu vestido é muito bonito, Laura. LAURA Ah, obrigada. SUPERVISORA Onde você comprou esse vestido? LAURA Na loja perto da minha casa. A mamãe me disse que eu estava muito mulambenta. Então foi ela que comprou. SUPERVISORA Eu tenho um igual. LAURA Ah, é? SUPERVISORA É, vim com ele na semana passada. LAURA Nossa. 14 SUPERVISORA Você não reparou? LAURA Não... SUPERVISORA Você comentou. LAURA Foi? SUPERVISORA Você disse que ele era vistoso. LAURA Vistoso? SUPERVISORA Vistoso. Você usou essa palavra: vistoso. LAURA Eu não me lembro de ter falado isso. SUPERVISORA Você falou. LAURA É um amarelo? SUPERVISORA Não, é vermelho. LAURA Ah. SUPERVISORA Laura, você está sempre tão sozinha. Ninguém nunca veio te buscar no 15 escritório. Às vezes eu fico com uma dó de você, sabia? Uma dó que não cabe no meu peito. Não é pena, longe de mim! Quem sou eu pra ter pena de alguém? Mas eu sinto uma dó. Você não tem vontade de casar, ter filhos? LAURA Já. SUPERVISORA Segundo o código, se você se casar, pode usufruir dos benefícios de uma vida adulta normal. LAURA Eu sei, senhora. SUPERVISORA Pode atravessar a rua sozinha, falar da vida dos outros e até se inscrever nas colônias de férias obrigatórias aos finais de semana. LAURA Sim, senhora, eu sei. SUPERVISORA Então porque está aí? Solteira? LAURA Eu não sei, senhora. Ainda não encontrei ninguém. SUPERVISORA Ninguém? Mas não era você que ficava se gabando daquele pateta que te seguia pra cima e pra baixo? Como era o nome dele? LAURA O Felipe? SUPERVISORA É, cadê o Felipe? 16 LAURA Ele não é nada, não. SUPERVISORA Essa mania das meninas da sua idade de acharem que são grande coisa! Ainda vai acabar com sua vida! Vocês precisam aprender que não dá pra ficar escolhendo. Ainda mais quando não se tem grandes atrativos... Na minha época a gente era muito mais esperta. Quando eu me casei... LAURA (interrompendo) Ele é tão bobo. Tem um outro moço que eu estou seguindo no metrô, ele é a cara do Leonardo DiCaprio. SUPERVISORA É. Porque, então, quando eu me casei... LAURA (interrompendo mais uma vez) Se bem que eu talvez ficasse feliz com um filho. E tem a colônia de férias! Eu queria tanto poder ir nas colônias de férias! Elas ficam perto da praia e daquelas sorveterias que só tem lá. E vai que eu me arrependo de não ter um filho. SUPERVISORA Por isso que eu disse! Quando eu tinha a sua idade já estava grávida dos gêmeos. Eles nasceram logo depois de... LAURA (sem prestar atenção) Dizem que a gente precisa ter o primeiro filho até os 35. Eu tenho uma irmã, mas não é a mesma coisa. Ela tem 14 anos. Às vezes eu sinto que ela é minha. SUPERVISORA Ela não é. LAURA Eu sei. 17 SUPERVISORA É diferente. LAURA Minha mãe diz a mesma coisa. SUPERVISORA Quando você for mãe, você vai entender. LAURA Eu decidi, não quero ter filhos. SUPERVISORA Você quer. É claro que você quer. Você só está falando assim porque vai demorar, isso SE acontecer. Você vai ficar velha, e quem vai te fazer companhia? LAURA Minha mãe… meu marido... SUPERVISORA (irônica) Ah, que ótimo! E como é o nome dele? LAURA (em dúvida) Ele não tem nome ainda. (Telefone toca. As duas param abruptamente.) SUPERVISORA Alô. Oi, amor, tudo bem. Só mais um pouquinho. Pega eles primeiro então e vem me buscar depois. Tive um problema. Não. Bobagem. Funcionário que não presta. Depois te explico. Tá bom. Beijo. Te amo. Te amo. (Laura a encara) SUPERVISORA 18 Anda, lesma. Acha que a gente tem a noite inteira? O que é isso? Não pode, lindinha. Paciência, viu? (olha uma das folhas) Tá uma bosta. Uma bela duma bosta. Será que eu tenho que fazer tudo? Bosta. (Laura volta para sua cadeira. Encara a máquina de escrever.) SUPERVISORA Escreve, idiota. LAURA Mas, senhora, acabou o trabalho de hoje. SUPERVISORA Você ainda tem 20 minutos de expediente. LAURA Eu sei. Só não tenho o que fazer. SUPERVISORA Invente! LAURA Eu não sei inventar, não, senhora. SUPERVISORA Todo mundo sabe inventar, sua mentirosa. Escreve aí qualquer coisa, seus pensamentos... LAURA Meus pensamentos? SUPERVISORA Laura, até uma criatura insignificante como você deve pensar. O que você faz na maior parte do dia, enquanto copia esses textos? Você não pensa em nada? Você não pensa em mim? 19 LAURA Eu não penso em você. SUPERVISORA Mentirosa. Põe aí no papel, as suas mentiras. LAURA (baixinho) Vadia. SUPERVISORA O quê? LAURA Nada, não, senhora. SUPERVISORA Você não escreve em um diário? LAURA Escrevo, mas é só pra mim. SUPERVISORA E onde está esse diário? LAURA Em casa. SUPERVISORA Então copia. LAURA Mas eles não estão aqui comigo. SUPERVISORA São seus pensamentos, menina, copia. LAURA A médica falou pra minha mãe que isso ia consertar a minha cabeça. Colocar 20 tudo na ordem certa. O código diz que precisamos pensar uma coisa de cada vez. Foco. (Laura tira a folha que acabou de escrever e entrega pra Supervisora. Coloca outra folha na máquina. Finge que obedece.) SUPERVISORA Hoje é sexta, minha filha. Só porque você é sozinha não quer dizer que eu vou ter pena de você. Quem mandou ficar aí indecisa sem saber o que fazer com a própria vida? Não sai enquanto não terminar. Aqui quem manda sou eu. (A Supervisora senta em uma das mesas e retoca o batom.) LAURA Você pode ditar pra mim? Ditando é mais rápido. SUPERVISORA Claro, querida. Quanto antes acabarmos, antes saímos daqui, não é mesmo? LAURA Sim, senhora. SUPERVISORA Não me chama de senhora, sua vagabunda. LAURA (Pausa. Laura se ajeita na máquina) Pronto. O que a senhora acha que eu estou pensando? (A Supervisora dita todos os pensamentos de Laura, enquanto esta datilografa calmamente, e o som das teclas vira melodia, a música dos pesadelos de Laura, uma música que não podemos ouvir. Se pudéssemos, detestaríamos) SUPERVISORA (ditando) Essa mulher não para de me encher o saco. Comprei o vestido mesmo, e daí? Eu comprei um igualzinho ao seu, filha da puta invejosa. (Pausa. As duas se olham, Laura se constrange) 21 LAURA Desculpa. SUPERVISORA Continua. Tá bom assim ou quer que eu vá mais devagar? LAURA Pode ir mais rápido se quiser. SUPERVISORA Ok. (recomeça. Laura digita muito rápido.) Se ela não quer me dar minha folga, não tem problema, eu não vou aparecer mesmo. E depois quando ela descobrir tudo ainda vai passar o resto da vida com culpa na consciência. Vou só fingir que obedeço pra essa maldita ficar contente. Ela acha que eu tenho que viver que nem ela e que nem todas as outras, mas eu não tenho. Eu odeio você, eu odeio você, eu odeio você. Vagabunda, puta, vaca, nojenta, piranha vadia. LAURA (sem saber o que dizer) Eu… Eu… Desculpa. SUPERVISORA (a ignora, e continua a ditar) A minha cabeça dói porque eu escrevo errado. Escrevo com o lado central do cérebro. O lado do meio. Só tenho mais um caderno. A mamãe sabe que está chegando o fim. SUPERVISORA Laura, para de repetir esse sorriso! Faz uma coisa diferente. LAURA (escrevendo) A minha mãe ficava muito irritada quando eu era criança. Ela não gostava de me ver sentada no colo do meu pai. Hoje eu sei que era tudo ciúme. Tudo isso porque o meu pai colocou uma boneca dentro mim. SUPERVISORA (ditando) O meu pai estragou a boneca da minha mãe. Fui internada de novo e antes de 22 sair eles levaram a minha boneca. Entregaram as minhas roupas pra ela. Ela parece uma mini de mim. LAURA (escrevendo) A gente senta e assiste todos os desenhos da tarde. Mês que vem ela faz 14 anos. Está quase na hora de ela ganhar uma boneca também. SUPERVISORA (ditando) Toda menina precisa cuidar de uma boneca pra parar de falar sozinha. LAURA (escrevendo) A boneca é tipo uma amiga imaginária. SUPERVISORA (ditando) Você vai adorar ser mãe. LAURA (escrevendo) Eu já sou mãe. O papai disse que a boneca que ele fez em mim faz a gente crescer mais rápido. (A supervisora confere e arruma as páginas entregues por Laura.) 23 SEGUNDO VAGÃO (Laura precisa sonhar. Na cama, ela se agita. Revira­se algumas vezes e senta. Se atrapalha para fazer o sinal da cruz. Refaz com a mão esquerda e junta as duas mãos. A Sombra entra e para na cabeceira da cama onde Laura está deitada.) LAURA Com Deus me deito, com Deus me levanto. Com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo. (Laura se levanta e ajoelha ao lado da cama. Puxa uma boneca que estava escondida. Fala com a boneca.) LAURA Laurinha, Laurinha. Quando é que você vai parar de fingir que está doente, menina? Eu que sou a filhinha do meu pai. Não liga pra mamãe, não. Ela só fica tentando se intrometer mas ele gosta mesmo é de mim. (Senta no tapete com a boneca e finge brincar de casinha. Dá comida para a boneca.) LAURA Come só mais um pouquinho. Se não comer tudo, papai não vai mais brincar com você. Quer deixar a mamãe nervosa? Quer ver a mamãe triste? (Pausa) Tão magrinha, Laurinha. Olha o mingau que a mamãe fez pra você. Come, lindinha! (Laura e sua boneca só fingem que obedecem. O tempo todo.) LAURA (agora sou ela, sua mãe e sua boneca) 24 Mãe, tira aquela lagartixa do quarto. Deixa de ser boba, menina. Um bichinho tão pequeno, não faz mal pra ninguém. Eu tenho medo, mãe. O medo é psicológico. Esquece. A lagartixa come as moscas. Vou te levar na terapia. Você não tem doença nenhuma. É tudo invenção da sua cabeça. E a cabeça não é minha? É só a cabeça que tá doente, então? Repete pra você, Laurinha. O problema está na sua cabeça, não em você. Pensa positivo que fica boa logo. Deixa eu faltar na escola, mãezinha. Não, não pode. A escola vai garantir o seu futuro. Não tem nada lá pra mim. E eu já sei fazer tudo que eles mandam. Anda, Laura, levanta. O seu pai não tá aqui pra aguentar suas frescuras. A senhora me ajuda? Não. Hoje você vai se arrumar sozinha. Anda. Você já é uma mocinha. E para de mancar que o médico falou que não tem mais nada no seu joelho. Arruma essa postura, menina. Endireita. Para de ser torta. E para de fingir pros outros ficarem com pena de você. (Laura passa a usar a boneca para imitar suas amigas da escola. A sombra atravessa o quarto três vezes: horizontal, vertical e diagonal.) Foi isso que eu aprendi na aula do dia. Tudo vem em trios: o pai, o filho e o espírito santo. LAURA Olha o sinal da cruz, ela fez invertido. A Laurinha anda de trás pra frente. É toda invertida. Invertida! Invertida! Vou ficar quietinha e esperar meu pai. Vou contar tudo pro meu pai. Invertida! Invertida! Olha a sombra que segue a Laurinha! Ela já percebeu. Tem mais medo das crianças que da sombra. Vai, Laurinha, dá sua boneca pra ela. Se você der sua boneca pra ela, a boneca não morre nunca mais. (Laura tira a boneca debaixo da cama, arrasta a coitada pelos cabelos) LAURA 25 Você não é muito boa, Laurinha. Você não fez toda a lição de casa. Agora, eu vou te jogar no lixo. Cansei de brincar de ser você. (Levanta e segura o corpo da boneca com raiva, dá uns safanões e finalmente um chute. Pega o brinquedo pelos cabelos e arrasta em direção à Sombra. Se ajoelha e coloca a boneca deitada aos pés da Sombra. Pacto.) LAURA Cuida bem dela. (A sombra não responde. Coloca a mão esquerda sobre a cabeça da menina) LAURA Eu te abençôo. (Antes de a cena acabar, lembre­se de que a faixa amarela é a sua segurança. Hoje eu vou avançar duas casas. Foda­se a minha segurança.) 26 PLATAFORMA 3 (Laura e a Mãe estão à mesa de um restaurante, as duas esperando o prato. A Mãe tenta ensinar para Laura o sinal da cruz.) MÃE Você é idiota mesmo ou se faz de idiota? Mão direita, imbecil. Levanta a mão direita. Olha. Não vou explicar mais. (A mãe faz o sinal da cruz.) MÃE Em nome do pai... (Laura imita a mãe usando a mão esquerda.) MÃE Laura, meu Deus. A outra mão. Filha, você quer me deixar louca? LAURA Com essa é mais fácil, mãe. (Pausa) Mãe, eu preciso te perguntar umas coisas. MÃE Jesus, o que eu fiz pra ter uma filha retardada assim? Levanta a mão que você escreve. (Laura levanta as duas.) LAURA Mãe, você está me ouvindo? MÃE Ahn? Estou, filha. Olha só, com essa mão. Assim, entendeu? LAURA (enquanto faz o sinal da cruz ao contrário mais uma vez) Você acha que doi demais levar um tiro? 27 MÃE Cadê o chinelo? Vou ter que te bater? Você só aprende apanhando. Meu Deus, me ajuda, Senhor. LAURA Mãe, me ouve! MÃE AIi, fala logo! Do que você tava falando mesmo? Aquele menino de novo? LAURA Mãe, ele é tão lindo. Muito lindo. Não. É mais que lindo, é fabuloso. Glorioso. Parece o Leonardo DiCaprio. MÃE Ai, Laura. Fala mais baixo, por favor. Como você é exagerada. LAURA Ontem ele pegou o mesmo vagão que eu e isso quer dizer que... MÃE (interrompendo) Tá, tá bom. E o trabalho? Tá tudo bem? Parou de receber advertências? LAURA O que? Essa semana ainda não. Deixa eu te contar, mãe... MÃE Chega, filha. Tá na hora de crescer. O seu pai não está mais aqui pra passar a mãe. Mãe. Olha que engraçado o que eu falei. Eu ia falar mão e falei mãe. Não é engraçado, Laura? (Laura faz sim com a cabeça. A mãe continua.) MÃE Trabalha direitinho, filha. Você viu o Henrique do Tio Francisco? Já é gerente no banco, Laura. Com ele sim você ficaria bem pro resto da vida. Você precisa se esforçar mais. 28 LAURA Eu tenho dificuldade com as rimas. (Pausa) Mãe, você já pensou em se jogar de um prédio? MÃE Que besteira, Laurinha. É tão fácil rimar lé com crê. Até eu que nunca fiz o seu trabalho já sei. Olha o seu cabelo. Vai deixar crescer de novo? E as suas unhas? Dá aqui, deixa eu ver. Você é uma datilógrafa, todo mundo repara nas suas mãos. LAURA Olha, mãe. Aquela camisa. MÃE Não aponta. Pelo amor de deus não aponta pros outros. LAURA Outro dia o Leo foi trabalhar com uma camisa igual aquela… (aponta de novo) MÃE Laura de Deus! O homem está acompanhado da família. (Pausa) MÃE Acho que o mocinho esqueceu da gente. Esse lugar já foi melhor. Olha quanta gente misturada. Semana que vem vou ter que procurar um lugar novo pra gente ir. Caiu muito o nível aqui. Mas, fala. Fala do trabalho que ainda faltam uns 15 minutos pra eu mostrar interesse na sua vida profissional. LAURA Tá tudo bem. A supervisora gosta muito de mim. Me convidou pro aniversário dos gêmeos. Eu tenho só dificuldade com o tempo. Não é todo dia que eu consigo terminar as cópias. Aumentaram as metas. MÃE De novo, Laurinha? Treina em casa, filha. Quer que eu compre uma máquina 29 pra você? Eu não vou te arrumar mais trabalho. Foi uma luta pra conseguir essa vaga. Se você for demitida eu te mando pra clínica de novo. Não ri. É sério. Presta atenção. LAURA Eu não vou. MÃE Não vai! Quem paga seu aluguel? LAURA Ou então eu vou e tomo um monte de comprimidos de uma vez pra você se arrepender pra sempre. MÃE Tá louca, é? Não vai! Até parece! Enquanto você precisar do meu dinheiro, quem manda sou eu! Espera aqui que é a minha vez de ir ao banheiro. Vai ficar duas rodadas sem jogar. Pra você tudo é fácil. LAURA A gente pode vir de novo amanhã? MÃE Não. Amanhã é terça e às terças eu saio com as minhas amigas. LAURA Deixa eu ir com vocês? MÃE Não, de jeito nenhum. São as minhas amigas. Eu falei pra você arrumar amigos pra você. E chega. Já deu nosso tempo juntas por hoje. Podemos ir? Olha a bolsa. A blusa. Cadê a sombrinha? LAURA Tá na bolsa. 30 MÃE Vai. Anda. Chega por hoje. Essa história de fazer papel de mãe me deixa exausta. LAURA Se a senhora quiser eu posso me virar sozinha de vez em quando. MÃE Chega. Por favor. Não fala mais nada hoje. Eu não aguento mais ouvir. 31 PLATAFORMA 4 (Este caderno que a Laura segura foi presente da mamãe. Já este aqui, ela comprou sozinha. No primeiro, anota a redação que vai mostrar pra médica. No segundo, escreve tudo que quer. Confusões que atormentam sua cabecinha.) Laura não sabe ficar parada. LAURA Eu acordei tão feliz hoje, doutora! TERAPEUTA Você está bem? LAURA Estou, você não ouviu? TERAPEUTA Ouvi, Laura, mas eu quero saber com mais detalhes. É pra isso que você está aqui. LAURA Eu estou com fome. TERAPEUTA Quer uma bolacha, um café? LAURA Não, eu estou com fome de pipoca. A minha mãe disse que pipoca é pra gente comer só quando está no sofá vendo filme, mas ela disse também que quem vê muito filme cria rabo. Eu não quero criar rabo. 32 TERAPEUTA (rindo) Cria rabo por quê? LAURA Eu não sei, mas prefiro as corujas. TERAPEUTA Tá, mas me fala mais da sua felicidade hoje, então. LAURA Eu acordei feliz, eu estava tão.. tão.. cheia de energia! Às vezes eu não consigo parar, doutora. Parece que tem alguma coisa andando no meu sangue como se fosse um bichinho, uma daquelas minhoquinhas, que entrou no meu braço e não para de andar pelo meu corpo inteiro. TERAPEUTA Isso é ótimo! É uma melhora e tanto depois das últimas sessões. LAURA É? Que bom, então. TERAPEUTA E agora? O que você está sentindo agora? LAURA Fome. TERAPEUTA Fora a fome. LAURA 33 Vontade de pipoca. Você está sentindo um cheiro de pipoca, doutora? Ou é de queimado? É um cheiro de pipoca queimada, eu acho. TERAPEUTA Estranho, eu não estou sentindo nada. LAURA Então deve ser AVC. Eu li que quando a gente tem um AVC sente cheiro de pipoca queimada. Ou era só de queimado? TERAPEUTA Você não está tendo um AVC, Laura. LAURA A senhora não sabe. TERAPEUTA Por que você acha que está tendo um AVC? LAURA A pipoca, eu já falei. Mas não tem problema, a gente vai ficar sabendo daqui a pouco. Se eu não morrer nos próximos dois ou três minutos, estou bem. TERAPEUTA Isso não te assusta? LAURA Não, eu gosto de saber. Dá uma segurança. TERAPEUTA Precisamos falar mais sobre esse seu medo da morte. 34 LAURA Eu não quero falar disso. TERAPEUTA Você tem sentido mais isso? LAURA A mamãe disse que depois da morte a gente vai pra um lugar muito bonito, e que eu vou ficar lá esperando por ela. Eu gosto disso. TERAPEUTA Eu tenho uma filha, da sua idade. LAURA Qual o nome dela? TERAPEUTA Você tem 30 anos, não tem? LAURA Vou fazer daqui a um mês. TERAPEUTA Clara. O nome dela é Clara. LAURA Ah. (Pausa) LAURA Eu sonhei que eu tinha uma filha de novo. 35 TERAPEUTA Foi? E como foi esse sonho? LAURA Nada demais. Ela era pequena, e eu tinha ela. E aí ela abria a boca e tinha um monte de pedacinhos de vidro lá dentro. TERAPEUTA Ela se machucou? LAURA Eu não lembro. TERAPEUTA Você está escrevendo nos seus cadernos? LAURA Todos os dias. TERAPEUTA Na ordem certa? LAURA Às vezes eu escrevo de todo jeito. Quer dizer, de trás pra frente. Quer dizer, da direita pra esquerda. Da direita de quem vê. Eu não sei escrever de outro jeito. (Silêncio. Terapeuta começa a sentir um desconforto no peito.) TERAPEUTA Você não tem mesmo medo de morrer, Laura? 36 LAURA Às vezes eu tenho. Mas eu queria falar mais da minha filha. TERAPEUTA Qual era o nome dela? No sonho? LAURA Eu não sei, ela não me disse. Acho que por causa dos pedaços de vidro na boca. Ficava difícil falar. Engraçado. Minha filha nunca fala comigo nos sonhos. Ela só acena. E cospe. Mas eu queria nome de santo. Tem pouco santo menina. Não me deixa com muitas opções. (Sem conseguir se conter) A senhora não está sentindo mesmo esse cheiro de pipoca? TERAPEUTA Não, mas é estranho. Desculpa, Laura, mas estou com uma dorzinha aqui, bem no meio do peito. LAURA Ih, embolia pulmonar. TERAPEUTA Como? LAURA É, batata. TERAPEUTA Mas é bem aqui. (aponta mais) LAURA Pois é, bem aí. É um coágulo que dá no sangue e aí ele fica viajando seu corpo inteiro até que chega no pulmão. 37 TERAPEUTA Imagina, não é nada demais. Já vai passar. LAURA É a mesma coisa do AVC, só que no pulmão. (empolgada) Imagina se a gente morre do mesmo jeito, aqui, nós duas. Eu da cabeça e você do pulmão. TERAPEUTA (explodindo, sem conter a dor) Laura, fica quieta só um minuto! Já vai passar! LAURA Calma, doutora! Aproveita pra respira fundo enquanto dá. Eu vou tentar pensar um pouco. (Terapeuta respira fundo) LAURA É bom saber dessas coisas pra gente poder correr pro hospital. TERAPEUTA (a dor piora) Laura, não quero te assustar, mas acho melhor nós irmos mesmo. LAURA Ah, não, não precisa. TERAPEUTA Mas tá doendo muito. LAURA 38 Geralmente, quando a gente tem essa dor aí no peito, bem no meio do ossinho, quer dizer que o coágulo já atingiu o pulmão e aí não tem mais o que fazer. TERAPEUTA (geme de dor) LAURA É. Mas não se preocupe. Se a senhora não morrer de dois a três minutos, então está tudo bem. Vou começar a contar, peraí. 1, 2, 3, já! (Terapeuta e Laura esperam dois ou três minutos. Terapeuta não morre.) LAURA (olha o relógio; faz sinal de que acabou o tempo) Pronto. TERAPEUTA (visivelmente aliviada) Ufa. Nossa, foi por pouco! (as duas riem um riso nervoso) Laura, você aceita alguma coisa? Água, café? LAURA Não, obrigada. TERAPEUTA Você trouxe os cadernos? LAURA Trouxe, sim. (Pegando um caderno vermelho da mochila) Você sabia que as corujas comem as almas dos moribundos? TERAPEUTA Você viu como esfriou de repente? 39 LAURA Hoje vai chover o dia todo. TERAPEUTA Nosso sistema funciona mesmo. LAURA Os cadernos me ajudaram muito. TERAPEUTA Do jeito que vai só tende a melhorar. LAURA Eu queria o rosa, mas na editora está esgotado. TERAPEUTA Tente rechear dos dois lados pra amaciar a carne. LAURA Com tanta gente no mundo, meu pai me levava pro quarto dele e me deixava brincar. Eu adorava brincar assim com o meu pai. TERAPEUTA Não, obrigada, fones machucam meus ouvidos. LAURA Tem a trombose também. A trombose é quando coágulo não vai pra lugar nenhum, mas aí você pode ter que amputar algum membro. TERAPEUTA Ocasionalmente. 40 LAURA Eu não queria falar disso. PODEMOS FALAR DE OUTRA COISA? TERAPEUTA Do que? LAURA Às vezes eu estou em casa e escuto bem baixinho um soluço no andar de baixo. Ou talvez seja no prédio da frente. Eu queria dar o nome desse soluço pra minha filha. Alguém que soluça bem baixinho. Se ela nascesse com nome seria com nome de choro. Um, dois, três. LAURA Você sabia que as corujas comem as almas dos moribundos? Elas descem do céu quando a gente morre e comem as nossas almas. Você já viu aquele jeito de olhar que elas têm? Menos as das crianças. Quem come as almas das crianças são as borboletas. (silêncio. Laura guarda o caderno.) Estou com fome. TERAPEUTA Não foge do assunto, Laura. LAURA Eu não estou fugindo. TERAPEUTA Como anda a relação com a sua mãe? 41 LAURA Está bem. Ela cuida de mim, ela me deu o apartamento, disse que eu posso morar lá quanto tempo eu quiser. Eu disse pra sempre e a gente se abraçou. TERAPEUTA Ela te visita sempre? LAURA De vez em quando. Sempre me leva os chinelos na cama pra eu não pisar no chão. Friagem. Pode ser garganta. TERAPEUTA E você gosta desses cuidados que ela tem com você? LAURA Ela também me leva os cadernos. Em pacotinhos de três, fechados, com plástico, daqueles que a gente tem que abrir com faca ou com a ponta da chave mesmo. TERAPEUTA Você gosta desses momentos de escrever no caderno? LAURA Não sei. Escrevo porque a senhora mandou. TERAPEUTA Mas não te distrai? Não te faz bem? LAURA Tira as coisas da minha cabeça. Eu uso e as coisas saem daqui pra lá mas elas nunca entram. A mamãe vive falando isso. 42 TERAPEUTA Vocês se dão bem? LAURA Muito bem! Outro dia ela disse que eu posso morar no apartamento até quando eu quiser. Eu disse pra sempre e ela me beijou. TERAPEUTA E no trabalho, como vão as coisas? LAURA Vão bem. (Pausa. Como se estivesse excitada por partilhar o segredo) Minha chefe morre de inveja de mim. TERAPEUTA Mesmo? Por que você acha isso? LAURA Ela usa roupas iguais às minhas. É eu comprar uma roupa que, na semana seguinte, batata!, ela está com outra igualzinha. TERAPEUTA Ela falou alguma coisa? LAURA Claro que não! É inveja, uma invejosa. Ninguém gosta dela. Ninguém nunca fez um pedido pra cuidar da vida dela. TERAPEUTA E pra sua? LAURA 43 Como? TERAPEUTA Alguém já entrou com pedido pra cuidar da sua? LAURA (explicativa) Já, a mamãe colocou um moço atrás de mim. O nome dele é Felipe, mas ele é sem graça. Eu mereço coisa melhor. TERAPEUTA Sua mãe entrou com o pedido? LAURA Ela acha que eu não sei, mas eu sei. TERAPEUTA E você não se importa? LAURA Não, eu até gosto. Dá um friozinho na barriga escrever quando tem alguém observando. Parece que a gente tá fazendo um show, que se acendem umas luzes, sabe? TERAPEUTA (ri) Sei. LAURA Eu acordei feliz hoje de manhã. Quando eu dormi ontem à noite tinha certeza que ia morrer de madrugada. Eu passei a noite inteira sem sonhar com nada. De vez em quando eu dava uma acordada, no meio da noite, e ficava surpresa. Olhava pra minha mão, pro meu braço, levantava o rosto do travesseiro e pensava: ah, que bom, estou viva. 44 TERAPEUTA Laura, quantos anos você tem mesmo? LAURA 29. Mas idade não importa, doutora. A gente pode morrer a qualquer momento. TERAPEUTA E você se sente assustada com isso? LAURA Não. TERAPEUTA Triste? LAURA Não. TERAPEUTA Preocupada? Carente? Solitária? Cansada? Solta? Tranquila? Feliz? Calma? Doce? Estarrecida? Morta? LAURA Não. Não.Não.Não.Não.Não.Não.Não.Não.Não.Não.Não.Não.Não.Não. TERAPEUTA Como você se sente, Laura? LAURA Eu me sinto um pouco como uma coruja. 45 TERCEIRO VAGÃO (A Sombra está agora deitada no colo de Laura, e esta lhe faz cafunés na cabeça.) LAURA Me conta uma história. SOMBRA Que história! LAURA Uma história, aquela história que você queria me contar. SOMBRA Eu nem sei de história nenhuma. Eu detesto histórias. Depois de tudo que a gente passou, você ainda quer saber de histórias? LAURA Mas é só uma, conta, vai! O tempo ia passar muito mais rápido se você me contasse uma história. SOMBRA Não existem mais histórias. (Pausa) Você já falou com a sua mãe? LAURA Sobre o quê? SOMBRA Sobre qualquer coisa. Vocês precisam conversar. 46 LAURA A gente se fala de vez em quando. SOMBRA Não fala, não, que eu já vi. Aquilo não é falar. LAURA Você consegue me explicar o que está acontecendo? SOMBRA Se você não sabe, Laura, não sou eu que vou te dizer. LAURA Me diz pelo menos o que eu tenho que fazer. SOMBRA Você não TEM que fazer nada. As pessoas fazem o que elas querem fazer. LAURA Eu não! Eu faço as coisas porque eu preciso fazer! Eu saio de casa, vou trabalhar pra uma mulher, mesmo que ela seja invejosa e me odeie, e depois volto pra casa pra conversar com a minha mãe, já que eu não tenho um gato, ou com o meu gato, se eu não tivesse mãe. E aí a gente tem que sair de vez em quando pra arejar a cabeça, e ter amigos, e ir no médico pra cuidar da cabeça também, pra ter certeza que ela está arejada. SOMBRA Sei. LAURA Não era isso? 47 SOMBRA Era. Está dando certo? LAURA Está. Quer dizer, não sei. Às vezes eu acho que não. É difícil saber. Eu não consigo entender em que parte de tudo isso é que fica a história. Ai, que raiva. Eu vou perguntar pra minha mãe se já está na hora de eu parar. SOMBRA Parar com o quê, menina? LAURA A mamãe me prometeu que quando eu fizer 30 anos ela me conta pra que que eu sirvo. SOMBRA Não serve pra nada. E ela é uma vagabunda. Você é muito melhor do que ela. LAURA Eu acho que serve pra vida continuar e só. E é isso. (Pausa) Mas eu nem sei quando é que a minha começou. SOMBRA Laura, você vai fazer 30 anos. A sua vida já começou há muito tempo. LAURA Pra você é fácil falar. E nem adianta eu ligar pra mamãe porque ela já me disse que nisso não tem como dar jeito. Ela disse que se eu não teimasse em viver com a cabeça na lua, eu ia conseguir colocar os pés no chão. Os meus pés estão aqui, no chão. (aponta) Viu? (ressentida) Eu não quero ser uma coruja. Eu quero ser uma borboleta. 48 SOMBRA Laura, eu tenho uma história pra te contar. LAURA (aliviada) Ah, ufa! SOMBRA Não se empolgue, não é uma grande história. LAURA Mas ela começa? SOMBRA Começa. LAURA Ela termina? SOMBRA Às vezes. LAURA E alguma coisa acontece dentro dela? SOMBRA Podemos dizer que sim. LAURA (dá um berro de felicidade) NÃO ACREDITO, É UMA HISTÓRIA! SOMBRA Está preparada? 49 LAURA Estou. SOMBRA Mesmo? LAURA FALA LOGO! SOMBRA Ok. (limpando a garganta) Atenção. Era uma vez, as lagartas. Uma delas disse: "Só as lagartas fortes conseguem romper seu casulo. As fracas morrem. Mas as fortes viram lindas borboletas." LAURA (visivelmente decepcionada) Isso é uma história? SOMBRA Isso é uma história. LAURA Mas o que acontece com as lagartas fracas? SOMBRA Elas morrem. LAURA Elas não se casam? SOMBRA Não, elas morrem. 50 LAURA Elas não têm filhos? SOMBRA Não, Laura, elas morrem. LAURA Elas não vão pras colônias de férias e assistem suas mães morrerem e depois enterram elas nas colônias de férias? SOMBRA Não, eu já disse. As lagartas fracas não estão preparadas pra vida. LAURA E isso foi uma história? SOMBRA Não, Laura, as histórias não existem. LAURA Mamãe disse que se eu não encontrar um propósito na vida logo eu vou ficar pra titia. Eu não sei o que isso significa, mas eu acho que titia é toda pessoa que não tem uma história só pra ela. SOMBRA Laura, histórias não existem. Só existem as lagartas fortes e as borboletas. E você está mais pra uma coruja. 51 PLATAFORMA 5 (A mãe arruma o quarto da filha. Laura, deitada na cama, escreve no caderno.) LAURA Mãe, você trouxe os comprimidos que eu pedi? MÃE Claro que não, Laura! Aqueles são os meus remédios, você que arranje os seus. LAURA Você falou que ia trazer. MÃE Falei coisa nenhuma. E eu não sei pra que você precisa deles. Tão jovem, tem muito pra viver ainda. LAURA Eu preciso e ponto! Traz amanhã? MÃE Você foi uma semente ruim, Laura. Não precisa fazer um drama por causa disso. (A mãe continua, arruma gavetas também.) MÃE Você tem uma raça ruim, Laura. É a família do seu pai. O sangue delas não presta. Família de ateus. Quem não tem Deus no coração, não vale nada. Não presta pra coisa nenhuma. (A Mãe se arruma diante do espelho. Treina melhores formas de descansar as mãos diante do corpo.) MÃE Eu não fiz você sozinha. Tem seu pai também. É uma pena que ele nunca está 52 aqui pra ver a capeta que você é. (Pausa) Você acha que eu contratei alguém pra cuidar da sua vida por que? LAURA (Enquanto a mãe está distraída com seu reflexo no espelho, vira o conteúdo da bolsa da mãe na cama pra procurar os remédios. Rouba dois vidros enormes.) MÃE Eu tenho a minha vida também, sabia? Se você parasse de olhar um minuto para o seu umbigo saberia. Você fez as unhas? Vou marcar uma hora pra você. Me dá a agenda. LAURA Eu perdi, mãe. MÃE Jesus amado! Você adora tomar uma advertência! Vai perder 3 pontos e ficar uma semana sem jogar. LAURA Foda­se! MÃE Tá bom. É assim que você vai ficar agora? Vai mandar o mundo se foder e pronto? Tá certo. Você não precisa de ninguém. Vive tão bem sozinha. Eu já vou. Depois peço pra menina da loja trazer seus carnês do aluguel, da terapeuta e dos cadernos... LAURA Não, mãezinha. Mãezinha. Desculpa. MÃE Tá. Chega. Deu a hora já. LAURA Passou rápido. 53 MÃE No meu tempo uma hora durava exatamente 60 minutos e a gente não tinha essa obrigação de ficar com os filhos. Cada um cuidava da própria vida. LAURA Fala mais baixo porque pode ter alguém cuidando da sua. MÃE (vaidosa) Jura, filha? Imagina! Eu acho que não corro mais esse risco. Você acha? LAURA Eu acho. Você ainda é uma mulher linda e interessante. MÃE Ainda? Você não sabe elogiar as pessoas? Deve ter perdido essa aula. Achou seu Código? Pega aí pra gente repassar esse parágrafo. (Laura se abaixa e esconde o livro embaixo da cama.) LAURA Acho que ficou no escritório. MÃE Então deixa pra semana que vem. A gente lê junto e eu te ajudo, ok? Fica bem. Beijos. Tem mais alguma bolacha recheada escondida? LAURA Não. MÃE Não mente pra mãe que é feio. Deus castiga. Fala. LAURA Tem mais dois pacotes embaixo da cama. MÃE Vou levar então. Beijos. Fica com Deus. 54 (A mãe se ajoelha para procurar as bolachas embaixo da cama. Laura ajoelhada na cama faz uma mímica de carregar um rifle e brinca de atirar na mãe. A mãe acha o Código e mostra pra filha.) MÃE Olha, Laurinha. Tava aqui, filha! Tá cheio de pó. Precisa limpar embaixo da cama também. LAURA Desculpa. MÃE Claro, filha. Tá tudo bem. Deita um pouco e fica com Deus. Aproveita que é sábado e copia mais algumas páginas, tá bom? LAURA Eu não posso mesmo ir com você e suas amigas? MÃE Não, querida. Melhor não misturar as coisas. Não dá certo. Eu faço o papel da mãe e você o da filha. Cada amiga é uma pessoa diferente. Se a gente começar a misturar tudo vai virar uma bagunça, tá bom? Deita um pouco e descansa. Terça a gente almoça juntas. Te amo. (A mãe beija a testa da filha.) LAURA Eu gosto tanto quando a gente fica assim junta... MÃE Você já reparou quantas vezes você fala eu? Fica parecendo muito egoísta. Tenta falar do outro de vez em quando. LAURA Você é minha melhor amiga! 55 MÃE Melhor não confundir as coisas. Eu sou a sua mãe porque fui ensinada a cumprir este papel. Eu tenho os meus amigos e você tem os seus. Não mistura os papeis. LAURA Desculpa, mãe. MÃE Troca esta blusa porque já tem mais de duas horas que você está com ela. LAURA Para, mãe. É a minha vez de jogar. MÃE Para você de viver se fazendo de vítima. LAURA Mãe… MÃE Laura, cala a boca! Eu não aguento mais ouvir a sua voz! LAURA Se você não me deixar jogar, eu vou fazer o quê? MÃE Você faz o que você quiser. Desde que fique muda, você consegue ficar muda? LAURA Pode deixar que você não vai ter mais filha nenhuma pra atormentar. Antes do meu aniversário eu tomo uma decisão. MÃE Tá me ameaçando? Você não enjoa com essa história repetida? É crime, sua 56 ignorante. Crime pra família. Se você se matar eu que vou pra cadeia. Pensa bem, filha. Deus tá vendo. LAURA Eu desisti de Deus. Eu peço, peço e ele não me dá porra nenhuma. MÃE Olha a boca, Dona Laura! LAURA (se desesperando) É uma porra de bosta de vida. Chega dessa merda, tá bom? Você ganhou. MÃE Laura, filha, calma. É muito cedo pra se entregar assim, filha. Calma. Senta aqui um pouquinho. (A mãe vai ajeitando a filha na cama, aos poucos, com muito cuidado e quase um carinho.) MÃE Senta aqui. Olha a bolacha recheada. Mamãe trouxe. (A luz vai baixando e não enxergamos nada além de Laura, nítida, e vultos ao seu redor.) MÃE Vem, Felipe. Pode entrar. Deixa eu te apresentar a minha filha. Senta. Isso. Deita, lindinha. Quer mais um travesseiro? Espera aqui. Era pra ser uma surpresa. Olha a velinha que a mamãe comprou. Não é essa que você gosta? Quantas estrelinhas. Linda. Canta com a mamãe. Parabéns pra você... (Enquanto isso, a Mãe vai imobilizando todos os movimentos de Laura e prendendo a menina na cama. Fitas coloridas. Amarelas para os pés. Rosas para os pulsos e tons de verde no tronco.) 57 MÃE Descansa, Laurinha. Vai passar. Mamãe vai rezar por você. Com Deus me deito com Deus me levanto. Com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo. (A mãe faz o sinal da cruz sobre o corpo imobilizado de Laura que tem o olhar longe e perdido.) LAURA Belém, Belém, nunca mais fico de bem. (Laura vai repetindo até a frase começar a perder o sentindo e ela começar a dizer de trás pra frente.) LAURA Meb Ed ocif siam acnun. Meléb, meléb... 58 DESTINO FINAL ­ O VÃO OU UM EPÍLOGO Laura precisa respirar, mas a gente vai fazer isso por ela. (Diante e através do espelho, o caminho sem volta.) Inspira. Expira. LAURA Olha, mamãezinha, o que eu faço com o meu cabelo. Não gosta das minhas unhas curtas e sem esmalte, Dona Supervisora? Vou resolver aqui, sem a sua ajuda. Cheguei onde eu queria. É hoje, minha gente. É a porra do dia do meu nascimento. E eu não tenho marido, não tenho filho e nem anel de diamante. Inspira. Expira. Alice quer dizer Laura ao contrário. De verdade. Vocês me acompanharam até aqui e precisam saber o que acontece no final. Ninguém entende o que eu digo. Ninguém gosta de mim. Ninguém é meu amigo. Por isso que eu só ando com ninguém. Vem, ninguém, pode entrar! É a sua vez de brincar. Será que isso é uma história? (Inspira. Expira.) Hoje apareceu uma mancha nova no meu olho. Pode ser de um tombo, pode ser de um dos homens que vêm aqui, pode ser a minha mãe que me bateu com o ferro. Ninguém precisa saber de tudo que acontece. Tá me ouvindo, ninguém? VOZ EM OFF Só de juros você pagará o dobro do que devia. LAURA Ouviu? Ouviu agora? É a mesma voz do metrô. Ouviu? VOZ EM OFF 59 Se a senhora preferir eu realizo a transação no seu nome. LAURA É essa voz. A mesma do metrô. Só que aqui ela foi dublada. VOZ EM OFF Verifique o código de barras. LAURA Essas palavras não são minhas. VOZ EM OFF (junto com Laura) O médico disse que eu precisava escrever, usar óculos e parar de mancar. O médico sabe tudo. Ele contou pra mamãe. Minhas pernas doem. (Inspira.) LAURA Eu tento ser boazinha e fazer tudo que seu mestre mandar. Mas errei o caminho. Mamãe mandou ir pelo caminho mais longo. Hoje eu não obedeço. Acordei com a boca cheia de pecado. Minha mãe lavou a minha boca com sabão. Roubaram todas as minhas canetinhas. Mamãe deixou a cinza. Cinza não é cor. (Expira.) Hoje eu prendi meu pé no vão entre o trem e a plataforma. Eu tenho medo do vão. Três trens passaram e ele não veio. Três trens tristes. Balança caixão. Vamos de novo? Do começo? Se eu me perder aqui, eu vou ficar perdida pra sempre. (Inspira.) Deixa eu cuidar um pouco da sua vida? Minha mãe falou que depois dos 30 a mulher não pode soltar o cabelo ou passar batom vermelho. Minha mãe sabe 60 tudo. Mamãe maravilha. Hoje a mamãe vai ter uma surpresa. Vai chegar aqui e a Laurinha já vai estar dormindo. Dorme, Laurinha, que a cuca vem pegar e o boi da cara preta nunca mais vai me acordar. (Expira. Expira. Expira.) Hoje eu não quero sorrir sozinha. Hoje eu quero sorrir pra trás. (Black out.) 61