Fasci-Tech - Fatec São Caetano do Sul

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Fasci-Tech
FRAGMENTAÇÃO DA IDENTIDADE E COMPORTAMENTO
NARCISISTA NO MUNDO DAS NOVAS TECNOLOGIAS
Maria Márcia Matos Pinto1
Resumo:
Este artigo pretende discutir como o narcisismo adquiriu novas configurações a
partir do desenvolvimento das novas tecnologias, que permitiram a
intensificação das relações virtuais. Neste nosso mundo pós-moderno, onde as
transformações ocorrem diariamente, as imagens veiculadas pela internet têm
exercido papel fundamental na definição das identidades. Assim, ao estabelecer
interações no âmbito do ciberespaço, o indivíduo é estimulado a moldar formas
físicas e comportamento segundo modelos com os quais ele vai tomando contato
através das múltiplas imagens disponíveis no ambiente virtual. Essa
reconfiguração leva-o a fragmentar-se em identidades várias, de forma a adotar
comportamentos cada vez mais individualizados, que podem levá-lo a fixar-se
numa autocontemplação narcisista.
Palavras-chave: comportamento narcisista; relações no ciberespaço;
reconfiguração do sujeito; identidades fragmentadas; transformações na pósmodernidade.
Abstract:
This paper aims to discuss how narcissism has been reconfigured since the
development of new technologies, through which virtual relationships were
intensified. In our postmodern world, where transformation occurs daily, images
exposed by internet have exercised a fundamental role in the definition of
identities. Therefore, as an individual interacts with others in the cyberspace, he
is encouraged to shape physical forms and behavior according to models which
he has contact with through the multiple images available in the virtual
environment. This reconfiguration makes him fragment in several identities, in a
way he ends up adopting kinds of individualized behavior, which may lead him
to fix himself on a narcissistic self-admiration.
Key-words: narcissistic behavior; relationships in the cyberspace;
reconfiguration of the subject; fragmented identities, transformations in
postmodernity.
1
Doutora pela USP, Profa. Associada da FATEC-São Caetano do Sul.
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Identidades: fragmentação e descentramento
Boa parte das mudanças que têm ocorrido nas formas de interação entre os
indivíduos e entre estes e o mundo que os cerca se deve aos avanços ocorridos na área
da tecnologia da informação. Essas mudanças atingem de modo contundente a
configuração das identidades que, particularmente quando consideramos os novos tipos
de relacionamentos que têm se estabelecido no âmbito da Web 2.0, levam-nos a refletir
a respeito de questões como simulação, descentramento e fragmentação. Temos, assim,
novas condições de convívio às quais os seres humanos veem-se submetidos, condições
estas que têm chamado a atenção de estudiosos ligados às mais diversas áreas do
conhecimento, como a sociologia, a psicologia, a filosofia, os estudos da linguagem,
entre outras, que têm buscado delinear os contornos das novas identidades nacionais e
individuais que se configuram a partir das interações no plano do ciberespaço.
Tratar da questão da identidade no mundo pós-moderno implica o uso de termos
como fragmentação, deslocamento, descentramento (Hall, 1998), fragilidade, condição
precária e provisória, inconclusão (Bauman, 2005). Para Hall, “a identidade é formada
na „interação‟ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência
interior que é o „eu real‟, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com
os mundos culturais „exteriores‟ e as identidades que esses mundos oferecem.” (1998, p.
11).
A visão finissicular que permeou a passagem do século XX para o XXI – fim
também do milênio – quando houve um repensar das condições do eu no mundo,
repensar este cercado pela ideia de finitude e de morte, nada mais natural do que a
reconsideração sobre o conceito de identidade e do papel que o sujeito assume nas
novas configurações sociais. Como aponta Hall (ibidem, p. 9), para os teóricos que
acreditam que as identidades caminham para seu fim, as transformações que vêm
ocorrendo causaram um abalo na “idéia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados”, o que teria levado à “perda de um „sentido de si‟ estável”, provocando o
“deslocamento ou descentração do sujeito”. Para Bauman (2005, p. 21), a identidade
“nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto”. Ela é uma construção que
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demanda esforço, mesmo que este leve apenas à “verdade sobre [sua] condição precária
e eternamente inconclusa” (ibidem, p. 22).
Considerando, pois, as ideias propostas pelos teóricos mencionados, a questão
sobre a qual desejamos lançar luz é a de que alguns dos traços da personalidade dos
seres humanos definidores das identidades individuais estão passando por profundas
alterações diante das novas condições tecnológicas de acesso e troca de informações.
No plano das interações virtuais, o indivíduo cria e recria imagens de si, refletindo as
múltiplas identidades que ele deve assumir no seu convívio com o outro ou simulando
aquelas que desejaria incorporar. Tomamos, pois, como ponto para discussão da
fragmentação e do deslocamento das identidades pós-modernas as práticas narcisistas
encontradas na internet via sites de relacionamento, blogs e fotoblogs, nos quais as
pessoas querem tanto ser vistas como se ver, se autocontemplar. Isto pode ser revelador
tanto de uma existência cada vez mais centrada no eu como da necessidade que os
indivíduos apresentam na atualidade de se reconhecer e de se identificar com os valores
da sociedade de consumo, que estimula a exposição de corpos com formas que, se não
são perfeitas, podem ser aperfeiçoadas com as técnicas e produtos oferecidos pelas
indústrias médica, farmacêutica e cosmética. Segundo Santos, o hedonismo
(condicionado unicamente ao prazer pessoal) é uma espécie de “filosofia portátil” do
indivíduo pós-moderno. Nesse sentido, “a paixão por si mesmo, a glamurização da sua
auto-imagem [...] o entregam a um narcisismo militante” (2006, p. 87). Ou seja, a busca
incondicional do prazer estimulada pelos valores consumistas do mundo pós-moderno,
que fazem os indivíduos desejarem a aparência perfeita a partir de uma concepção de
beleza pré-formulada pela indústria cosmética e da moda, acaba se tornando uma prática
ritualística marcada pelas atitudes narcisistas. Essas atitudes encontram um meio ideal
de expressão nos esquemas interativos da Web 2.0.
Antes de aprofundarmos a relação entre narcisismo, identidade e interações
informatizadas, consideremos alguns dos significados que o termo narcisismo
incorporou.
Alguns elementos da definição do narcisismo
A mitologia greco-romana legou à humanidade o mito de Narciso, um jovem
extremamente belo, que, segundo as profecias, só viveria enquanto não contemplasse a
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própria imagem. No entanto, certo dia, andando por um bosque, sentiu sede e debruçouse para beber de uma fonte. Ao perceber a imagem que ali se formou, apaixonou-se por
ela imediatamente, sem se dar conta de que era o seu corpo ali representado. O encanto
foi tal que Narciso deixou-se ficar à beira d‟água perdido em contemplação até perecer
de fome e sede.
No final do século XVI, o pintor italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio
realizou uma belíssima representação desse mito, que contribuiu para dar-lhe contornos
mais concretos:
Figura 1. Narciso de Caravaggio (1597-1599)
Fonte: Images.Google.
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O quadro de Caravaggio é uma construção que revela os elementos estéticos
característicos de sua época, quando vigorava a concepção de arte barroca. Assim, a
pintura é marcada pelo jogo de claro/escuro, pelo qual o objeto se define. A luz recai
principalmente sobre as partes do corpo do Narciso “real”, enquanto o Narciso “virtual”,
o do reflexo na água, está encoberto pela sombra. Desse modo, a representação do
Narciso real é iluminação, vida, existência de fato; ela é reconhecível e tem contornos
palpáveis. O reflexo na água, por sua vez, é indefinido, obscuro, sombrio; remete ao
impalpável, ao insólito, àquele lado do ser humano que está além da nossa capacidade
de compreensão.
Esse quadro também coloca em causa a dualidade que permeia os indivíduos, já
que temos um ser cindido: acima, o real, abaixo, a imagem, isto é, de um lado o que
realmente somos e de outro aquilo que vemos, ou como nos vemos. Há na obra, ainda,
um jogo entre o conhecido e o desconhecido, que é um tema condizente com a
atmosfera espiritual da época, um momento em que o homem começava a se dividir
entre o conhecimento advindo da crença religiosa e aquele produzido pelo pensamento
científico que ia tomando forma através do racionalismo e do empirismo.
A pintura do artista italiano foi concebida séculos antes do desenvolvimento da
psicanálise. Porém, nela, já se anunciam certos elementos posteriormente definidos
nesse campo de estudos na busca de desvendar os meandros do inconsciente humano.
Quando se fala em narcisismo, é praticamente impossível não associá-lo aos
estudos da psicanálise. O comportamento narcisista passou a ser alvo de estudos no
final do século XIX, antes mesmo de Freud apresentar suas teorias sobre o assunto no
texto “À guisa de introdução do narcisismo”, que apareceu em 1914. Nesse ensaio,
Freud define o narcisismo como parte da libido, representando “um importante papel no
desenvolvimento sexual do ser humano” (2004, p. 97). Para Freud, o amor que se
devota ao próprio eu, isto é o narcisismo, está presente em algumas fases do
desenvolvimento do indivíduo, não representando um problema a não ser quando este se
torna incapaz de transferir o amor por si para os outros.
Não é o objetivo deste artigo discutir a questão do narcisismo sob o ângulo da
psicanálise, mas não é possível abordar as práticas narcisistas contemporâneas sem
mencionar os estudos freudianos a seu respeito, já que foi através deles que o
narcisismo passou a receber a atenção de estudiosos do comportamento humano. A
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importância crescente dos estudos da cultura, a partir da segunda metade do século XX,
e as mudanças sociais e culturais ocorridas desde então colocaram também o narcisismo
no centro de uma questão: seria esse tipo de comportamento advindo do
desenvolvimento psíquico do indivíduo ou um fator cultural gerado pela valorização do
corpo e do culto da própria imagem, elementos estes ligados às formas de
relacionamento estabelecidas no nosso tempo? Ao que parece, os dois aspectos se unem
na definição dos seres humanos na atualidade.
Redefinição das identidades no mundo pós-moderno
Os reais efeitos das transformações ocorridas no mundo desde o fim da Segunda
Guerra Mundial são ainda difíceis de se calcular, devido à profundidade dessas
mudanças em tantas áreas diferentes da atuação humana. Dentre elas, citamos algumas
das mais impactantes: as explorações cósmicas, que levaram o homem à Lua e à
exploração de outros planetas, por meio de máquinas extremamente sofisticadas, que
conseguem enviar imagens espaciais precisas mesmo a anos-luz de distância; as
investigações microscópicas, que levaram à descoberta do genoma, possibilitando aos
seres humanos conhecer em detalhes a sua constituição biológica, oferecendo-lhe a
oportunidade de saber antecipadamente algumas das doenças a que poderá estar sujeito
no futuro ou aquelas que seus filhos possam vir a ter; a utilização pela indústria de
maquinário altamente complexo, a automação e a robótica, que substituíram milhares de
trabalhadores e deram à produção uma velocidade que não poderia ser imaginada pelos
criadores das linhas de produção no começo do século XX; e ainda, entre tantas outras,
a difusão do uso dos computadores, que, de máquinas gigantescas usadas para cálculos
complexos no início do século XX, passaram a aparelhos de uso individual os PC‟s
(personal computers) para a realização de tarefas cotidianas.
Sem dúvida alguma, a partir dos anos 70, os computadores, que antes eram
máquinas de uso restrito às indústrias públicas e privadas e às instituições acadêmicas,
foram gradualmente invadindo a casa das pessoas e consequentemente suas vidas
pessoais. Particularmente o desenvolvimento da internet e os avanços que ela sofreu,
avanços estes que aprimoraram as formas de interatividade, fizeram que os
computadores se tornassem cada vez mais indispensáveis para as atividades
corriqueiras: troca de mensagens, bate-papo, compras, pagamento de contas, leitura de
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jornais, envio de convites e felicitações, busca de como fazer o prato ideal para um
almoço ou jantar. Obviamente, há aqui uma redução do uso que pode ser feito do
computador, mas, com a democratização do acesso, que permitiu a sua aquisição por
membros de praticamente todas as classes sociais, os PC‟s, para grande parte dos
usuários, é um meio de entretenimento e um aparelho que facilita suas vidas, já que
várias tarefas do dia a dia podem ser feitas a partir de casa ou do escritório. Isso se
estende também às outras tecnologias que acompanham a mesma ideia de
interatividade, como celulares, palmtops, notebooks etc.
Essas condições de interatividade, naturalmente, criaram novos tipos de relação
entre as pessoas e novas formas de comportamento individual. Um exemplo é o e-mail,
que mudou o modelo de interação anteriormente estabelecido através das cartas, como
aponta Santaella (2008, p. 118):
[o e-mail] É uma forma de comunicação escrita, versão contemporânea do gênero
epistolar. Diferentemente da carta tradicional, entretanto, além do surgimento de novos
registros de linguagem que elas ensejam, que se situam entre o registro escrito e a
informalidade do registro oral, além ainda do fato de que são emitidas e recebidas online quase em tempo real, as mensagens por e-mail adquiriram uma mobilidade antes
inexistente. Uma mesma mensagem pode ser remetida para mais do que um destinatário.
Ela pode ficar arquivada e ser modificada a qualquer momento para ser reenviada para o
mesmo ou para um outro destinatário.
Como se vê, já a partir do uso do e-mail, talvez o modo de interação mais
presente na vida de qualquer pessoa, pois hoje em dia é praticamente obrigatório
possuir-se pelo menos um endereço eletrônico, as formas de se relacionar com o outro
ganharam novos aspectos. A interação através da palavra escrita se transformou para
atender às necessidades de rapidez e atingir o maior número de pessoas possível. Desse
modo, pode-se interagir com parentes e amigos com muito mais frequência, mas
também podem ser estabelecidos contatos com inúmeros desconhecidos, através das
famosas correntes eletrônicas que veiculam mensagens de auto-ajuda, informações de
utilidade pública ou mesmo conteúdos maliciosos, dos quais o usuário raramente
consegue se esquivar. Essa ideia de relacionamento também se estende a outros tipos de
interação virtual, como os chats, os fóruns online, os blogs e mais recentemente os
twitters. Contudo, ao mesmo tempo que parece haver uma rede de relações ampla, em
que as pessoas têm a possibilidade de fazer crescer o seu círculo de amizades, o que
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ocorre de fato é que há um distanciamento das relações reais. Ao se entranhar pelo
mundo virtual, o indivíduo se dispersa na rede infinita de contatos que a internet
oferece, raramente estabelecendo vínculos permanentes.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tem uma visão nada alentadora sobre
esses relacionamentos intermediados pelas redes de informação:
[...] se falamos compulsivamente sobre redes e tentamos obsessivamente evocá-las (ou
pelo menos evocar os seus fantasmas), a partir dos “namoros rápidos” e dos
encantamentos mágicos dos “sistemas de mensagens” dos telefones celulares, é porque
sentimos dolorosamente a falta das redes seguras que as verdadeiras redes de parentesco,
amizade e irmandade de destino costumavam oferecer de maneira trivial, com ou sem os
nossos esforços. As agendas dos celulares ocupam o lugar da comunidade que nos falta,
e a esperança é que substituam a intimidade perdida. Espera-se que agüentem uma carga
de expectativas que lhes é impossível levantar, muito menos sustentar (2005, p. 100101).
Obviamente, isso afeta o modo como o indivíduo se vê, já que nessa
multiplicidade de interações tornadas possíveis no ambiente do ciberespaço ele acaba
por reconfigurar-se sob a influência de imagens, pensamentos, ideologias, doutrinas
políticas e religiosas, propagandas etc. com os quais toma contato. Consequentemente,
esse eu se fragmenta, fazendo surgir uma série de novas identidades que lhe servem
para transitar confortavelmente no ambiente virtual.
Santaella (2008, p. 124), ao comentar as teorias de William J. Mitchell sobre o
ciberespaço, informa-nos que, no seu nível mais alto, o da interface do usuário, “o
ciberespaço reinventa o corpo, a arquitetura e as relações complexas entre ambos
naquilo que chamamos „habitar‟”. Nesse sentido, as condições para os relacionamentos
no mundo virtual permitem a transfiguração do eu ao ponto de ele tornar-se um outro
que atenda não só as necessidades da interação, mas também os seus desejos íntimos de
configuração do corpo e do modo de ser e agir.
Numa interação em que duas pessoas estão frente a frente, é muito mais fácil
perceber as verdadeiras intenções formuladas através dos elementos da linguagem
verbal e não-verbal. Por mais que haja fingimento no ato do diálogo, sempre é possível
captar sentimentos ocultos por meio de um olhar ou gesto. Nas relações virtuais, não se
corre esse risco. Cada um poderá mostrar-se como desejar ao fazer uso dos recursos que
as novas tecnologias lhe dispõem. Nas salas de bate-papo, por exemplo, uma pessoa
poderá assumir uma identidade totalmente diferente da que costuma mostrar nos
contatos reais. Uma foto, anexada a um e-mail ou postada em um blog poderá ser
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alterada até o ponto de o retratado chegar à imagem que mais lhe agrade. Há ainda a
possibilidade da criação de um avatar, uma reinvenção que o eu faz de si mesmo
atribuindo-se novos caracteres físicos e psíquicos para transitar no mundo virtual.
No que tange ao narcisismo, o ciberespaço torna-se o local apropriado para se
dar vazão a esse tipo de comportamento. Hoje em dia, fala-se muito em voyeurismo, um
termo que se popularizou através dos reality shows televisivos, e que se refere à
obtenção de prazer pela contemplação de formas e gestos de outros corpos. Porém, se a
internet tornou-se o palco perfeito para tal comportamento devido à facilidade de
exposição pessoal trazida pelas novas ferramentas da web, as práticas narcisistas talvez
sejam o que estão realmente no cerne da questão. Ao veicular suas imagens, seja por
meio de fotos, vídeos, ou mesmo avatares, o indivíduo parece querer mais se ver do que
ser visto. No nosso mundo contemporâneo, em que cada vez mais o interesse individual
é privilegiado em detrimento do coletivo, o ser humano está sobremaneira focado em si
mesmo, preocupando-se com as formas perfeitas, a aparência perfeita, não exatamente
para satisfazer um outro, mas para contemplar-se como modelo de um padrão ideal
veiculado pelas mídias.
Dessa forma, a tela do computador se abre como espelho de Narciso, um espelho
que refletirá não a imagem de contornos próximos ao real, mas a imagem que o sujeito
deseja ter de si mesmo, tornada possível pelas técnicas reais e virtuais de transformação
do corpo.
Santaella, ao discutir as novas formas que o corpo pode assumir a partir das
transformações tecnológicas, levanta a seguinte reflexão:
Sabe-se, desde Freud, que o subjetivo é uma construção. Não obstante a complexidade
do processo dessa construção, ela se sustentava sobre a ilusão de limites corporais mais
ou menos estáveis. O descarnamento da subjetividade provocado pelas novas tecnologias
tirou o chão dessa ilusão de estabilidade.
O resultado de tudo isso é profundamente perturbador. O corpo humano está, de fato,
sob interrogação. (ibidem, p. 207)
Retomando, então, a representação de Narciso feita por Caravaggio,
encontramos ali esses “limites corporais mais ou menos estáveis”, de que fala Santaella.
Até mais ou menos o início do século XX, quando começam a se aprofundar as
discussões sobre os vários lados de um mesmo eu (ego, id, superego, conforme a
terminologia usada por Freud), o indivíduo tinha essa imagem relativamente estável,
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que lhe fazia confiar numa identidade una perante seus pares na sociedade. As inúmeras
transformações que ocorreram no século XX, quando novas formas de identidade foram
colocadas em foco – por exemplo, a atenção maior voltada às causas das minorias – e
quando o desenvolvimento tecnológico passou a ser mais um elemento da nossa
realidade cotidiana, levaram o ser humano à condição da mutabilidade constante. Isso
fica ainda mais evidente quando observamos as representações humanas que se
configuram no mundo virtual.
Considerações finais
Não há dúvida de que as transformações tecnológicas nos últimos anos têm
ocorrido a uma velocidade impressionante, e isso, obviamente, se reflete na organização
social. As artes, a linguagem, os comportamentos, as relações interpessoais, a cultura,
de maneira geral, bem como a forma como a política e a economia têm sido conduzidas
no âmbito global vêm sofrendo alterações significativas, muitas delas ligadas à
influência que os computadores e outras máquinas de intercomunicação exercem na
vida das pessoas.
Neste texto, procuramos levantar algumas reflexões sobre certo tipo de
comportamento, o narcisista, que se configurou teoricamente com a psicanálise, mas
cujas origens são encontradas no mito. Com as mudanças culturais e tecnológicas das
últimas décadas, o narcisismo também acabou tomando novas configurações, tendo em
vista a valorização do corpo e sua frequente exposição nos meios de comunicação. O
hedonismo pós-moderno levou à busca de corpos cada vez mais perfeitos tanto para o
prazer do outro como de si mesmo. E o ambiente virtual tornou-se o lugar ideal para o
consumo dessas imagens e satisfação desses prazeres. Contudo, ao se autocontemplar,
esse indivíduo não encontra a unidade, mas se vê como um ser fragmentado, que, cada
vez que se mira, se depara com uma imagem diferente.
Cabe dizer que não foi nossa intenção fazer aqui um julgamento de valor,
louvando ou condenando o desenvolvimento tecnológico da atualidade e as mudanças
que dele são fruto. Entretanto, essas mudanças pedem que reflitamos sobre elas,
justamente porque dizem respeito a problemas que estão no íntimo de cada um. É,
portanto, fundamental, pensar sobre essa reconfiguração das identidades provocada
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pelas transformações tecnológicas e culturais de nosso tempo para entendermos quem
somos num mundo que nos apresenta novidades todos os dias.
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