universidade federal de rondônia - Revista Presença

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universidade federal de rondônia - Revista Presença
PRESENÇA
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
CENTRO DO IMAGI NÁRIO SOCIAL
LABORATÓRIO DE GEOGRAFIA HUMANA E PLANEJAMENTO AMBIENTAL
PRESENÇA - ISSN 14131413 -6902
Ano V n° 11 – Mar. – 1998 – Publicação Trimestral
Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente
APROVADO PELO CONSEPE/UFRO RESOLUÇÃO N° 0122/1994
Editor:
JOSUÉ COSTA
CONSELHO EDITORIAL:
Sílvio Sanches Gamboa
UNICAMP
Miguel Nenevé
UFRO
Clodomir Santos de Morais
UFRO
Nídia Nacib Pontuschka
USP
Mário Alberto Cozzuol
UFRO
Arneide Badeira Cemin
UFRO
As matérias encaminhadas deverão ter entre três e quinze laudas (tamanho A4), espaço 1.0, fonte arial 12, em
disquete 3 ½ pol., formatados em “Word for Windows”. Os trabalhos deverão conter a data de elaboração e o
endereço completo do autor.
PRESENÇA, Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente. Porto
Velho, Fundação Universidade Federal de Rondônia. V.1, 1993.
Trimestral
1.
Educação - Periódico
2.
Meio ambiente - Periódico
CDU 37(05)
Foto: Lavagem de Louça - Beradão, Rondônia - Josué da Costa
Leiaute e Diagramação: Sheila Castro dos Santos
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
SUMÁRIO
EDITORIAL.......................................................................................................04
REFLEXÕES SOBRE O FRACASSO ESCOLAR.............................................05
LUÍS ALBERTO LOURENÇO DE MATOS
MITO E LUGAR - PARTE V.............................................................................13
JOSUÉ COSTA*
COLONIZAÇÃO, TRABALHO E NATUREZA...............................................21
JANUÁRIO AMARAL*
OS NARRADORES DA PRAÇA DA REPÚBLICA E DA CIDADE DAS
LEIS.....................................................................................................................24
VALDEMIR MIOTELLO
DIFERENCIAÇÃO CULTURAL E CONFLITO.............................................28
CARLOS CORRÊA TEIXEIRA
UMA ABORDAGEM JURÍDICA DOS PRINCÍPIOS SOCIAIS DA
VIOLÊNCIA.......................................................................................................44
ANTÔNIO GUIMARÃES BRITO*
REGIÃO E HISTÓRIA, UM PROBLEMA DE CONCEITO: O CASO DA
COLONIZAÇÃO DO MADEIRA DURANTE O SÉCULO XIX.....................50
DANTE RIBEIRO DA FONSECA
O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES NA
EDUCAÇÃO........................................................................................................65
JOSÉ MARIA LEITE BOTELHO*
O COMÉRCIO E AS ROTAS FLUVIAIS NA SOCIEDADE GUAPOREANA.
COLONIAL.........................................................................................................78
MARCO ANTÔNIO DOMINGUES TEIXEIRA
FUNÇÕES DA LINGUAGEM: UMA REAVALIAÇÃO DAS IDÉIAS DE
ROMAN JAKOBSON.........................................................................................93
CELSO FERRAREZI JUNIOR
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
EDITORIAL
A Revista Presença em seu 13º número reafirma o compromisso
com a liberdade criativa e sua conseqüente exposição à crítica
científica e o incentivo à divulgação do conhecimento pensado e
produzido no seio acadêmico, advindo, especialmente, da atividade
de pesquisa.
A Universidade brasileira passa por sérios problemas. Os seus
professores são desvalorizados, instalações insuficientes,
laboratórios sucateados, bolsas reduzidas e poucas perspectivas
de fomento. Na UFRO, uma universidade nova, que busca suas
características próprias, não apresenta um cenário diferente .
É preciso caminhar. Buscar novos caminhos é preciso.
Este número conta com dez artigos que expressam
absoluta coerência com os objetivos propostos pelo periódico
desde sua concepção, uma vez que abordam temas instigantes ao
pensamento social brasileiro: das relações homem - ambiente História aos elementos teóricos que contribuem pa ra perceb er
o ser humano em suas habilidades para expressar-se desde
as relações educativas aos preceitos jurídicos , permitindo
reentrâncias no ambiente desafiador da interdisciplinaridade.
A Comissão Editorial.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
REFLEXÕES SOBRE O FRACASSO
ESCOLAR
Luís Alberto Lourenço de Matos*
Matos*
Resumo : O fracasso escolar tem sido objeto de muitos
estudos há muito tempo e, apesar dos avanços na busca da
compreensão do mesmo, ainda há um longo caminho a ser
trilhado até que se possa efetivamente reverter a situação
que assola as escolas públicas. Para uma melhor
compreensão do fracasso escolar e das dificuldades de
aprendizagem torna-se necessária uma revisão histórica
acerca dos mesmos. O fracasso escolar tem sido definido
"como uma resposta insuficiente do aluno a uma
exigência ou demanda da escola" (Weiss, apud
Almeida e colaboradores, 1995).
Palavras – Chave : Aprendizagem, Compreensão, Escolas,
Estudos e Fracasso.
Abstract : School failure has been the object of many
studies long ago and, despite advances in search of
understanding, there is still a long way to be followed until
they can effectively reverse the situation that raged in the
public schools. For a better understanding of school failure
and of the difficulties of learning becomes historical review
about them. School failure "has been defined as an
insufficient response to a student or school demand
requirement" (Weiss, apud Almeida and collaborators, 1995).
Keyword : Learning, Understanding, Schools, Studies and
failure.
INTRODUÇÃO
O fracasso escolar tem sido objeto de muitos estudos há muito tempo e, apesar dos
avanços na busca da compreensão do mesmo, ainda há um longo caminho a ser trilhado até
que se possa efetivamente reverter a situação que assola as escolas públicas.
Para uma melhor compreensão do fracasso escolar e das dificuldades de
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
aprendizagem torna-se necessária uma revisão histórica acerca dos mesmos.
O fracasso escolar tem sido definido "como uma resposta insuficiente do aluno a
uma exigência ou demanda da escola" (Weiss, apud Almeida e colaboradores,
1995). A própria definição já traz em si a concepção de que o único protagonista desse
fracasso é o aluno.
A análise da repetência e da exclusão escolar verificados no Brasil demonstra a
necessidade de aprofundar os estudos e, principalmente, trazer à tona os aspectos
ideológicos subjacentes às concepções sobre o fracasso escolar e às dificuldades de
aprendizagem, além de atentarmos para as condições institucionais e pedagógicas
inerentes à prática educativa.
A partir do período republicano assiste-se a uma intensificação do ideário liberal e as
suas idéias irão se fizer presente na Educação, principalmente através do movimento da
Escola Nova. A ótica da análise do fracasso escolar está centrada nos aspectos extraescolares, principalmente no aluno e na família. Segundo Almeida e colaboradores (1995,
p.119), "o discurso do Estado liberal individualiza as desigualdades e diferenças
estabelecendo, assim, uma inversão: o que seria desigualdade social passa, então, a ser
desigualdade pessoal". A contrapartida científica do ideário político liberal é representada
pela psicologia das diferenças individuais (Psicologia Diferencial e Psicometria), que terá
como preocupação a mensuração dessas diferenças, uma vez que se postula que os
alunos diferem entre si quanto à capacidade para aprender, cabendo à psicologia e ao
sistema educacional separar o joio do trigo, o ruim do bom, o incapaz do capaz. Segundo
Patto (1996, p.63), a "pedagogia nova e a psicologia científica nasceram imbuídas do
espírito liberal e propuseram-se, desde o início, a identificar e promover os mais
capazes, independentemente de origem étnica e social", o que era praticamente impossível
dada a seletividade social que operava na escola.
Portanto, de acordo com essa concepção, o fracasso escolar é explicado pela
"meritocracia", ou seja, o sucesso depende única e exclusivamente do aluno, sendo o
mesmo "livre" para buscar o sucesso ou o fracasso.
Nesta mesma linha a "teoria do dom" tenta justificar as causas do fracasso escolar nas
características individuais do aluno (Souza, 1994). Cada um de nós nasceríamos com os
nossos dons e habilidades e, o fracasso decorrente da incapacidade da criança em
apresentar as c a r a c t e r í s t i c a s
necess ár ias
ao bom rendimento escolar. De
acordo com Souza (1994, p. 126):
As influências dessa teoria para a prática escolar possibilitaram uma reorganização do
pedagógico a t r a v é s d a d i v i s ã o d a s crianças em grupos homogêneos, a
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
seleção entre os que aprendem com facilidade e o s q u e a p r e s e n t a m
d i f i c u l d a d e s , c o m o s e n c a m i n h a m e n t o s d o s menos ap tos para o
a tendi men to psi c ológi c o e peda gógi c o.
Conv iv endo co m a s idé ias libera is e p osteriorme nte incorpora das, as
teorias
racis tas
propugnav am
a
inferio rida de
racial
do
não-branco,
principalmente do negro e do mestiço, cabendo ao cientificismo dar um caráter de
credibilidade a estas teorias.
Nos anos 70 assiste-se a uma mudança na explicação do fracasso escolar, d a
ó t ic a b io l ó g ic a p a ra a c u lt u r a l, in f l u e n c ia d o p e l a s id é ia s p r o d u zid a s n o s
Estados Unidos nos anos 60. A Teoria da Carência ou Privação Cultural
procurava explicar as desigualdades educacionais pelas diferenças de ambiente cultural
entre as crianças dos diversos segmentos sócio-econômicos.
Esta teoria acabou sendo dividida em duas: a teoria do déficit ou deficiência
e a teoria da diferença, sendo que a segunda acabou subjugada pela primeira. A
primeira formulação (déficit ou deficiência) desta teoria postula que a pobreza do
ambie nte e m que v ivem as class es baixas gera d eficiênc ias no desenvolvimento
psicológico da cria n ça (motoras, perceptivas, afetivas, emoc ionais, linguag em,
cognitivas e tc.), sendo estas causas de suas dificuldades de aprendizagem e de
adaptação à escola. A pobreza de estímulos a que estariam sujeitos em seu ambiente
desprivilegiado dificultaria o seu ingresso no sistema educacional e também a sua
manutenção. A segunda formulação (diferença) propõe que em virtude de uma
predominância de valores e padrões de classes sociais privilegiadas, em detrimento dos
valores e padrões de classes sociais privadas psicossocialmente, acabaria resultando
numa cultura diferente, que acabaria sendo margina lizada pelas instituições como
um todo e principalmente pela escola. Nesta perspectiva a escola seria inadequada e
despreparada para receber essa criança que vem de e com uma cultura diferente. Quando
se faz uma análise mais profunda destas duas formulações, percebe-se, na verdade, que
não há diferenças significativas entre ambas, uma vez que ao se falar de culturas
diferentes acaba-se falando das condições ambientais propiciadoras das deficiências
psíquicas das crianças.
As diferenças anteriormente consideradas pelas teorias racistas (físicas ou
genéticas) deram lugar às diferenças cultural e psicológica ou às deficiências cultural e
psicológica, eximindo uma vez mais a escola da responsabilidade pelo fracasso escolar ao
culpabilizar o meio sócio-cultural da família e da criança.
Segundo Almeida e colaboradores (1995, p. 117), justificar o fracasso escolar pela
deficiência, "é mais uma mística ideológica que mascara e omite, no interior da escola,
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
as relações sócio-histórico-culturais da vida concreta dos indivíduos e de seu grupo
familiar".
Pela influência da teoria da carência ou privação cultural, o Estado liberal criou os
programas de educação compensatória, onde a escola passou a ocupar o lugar da
redentora, que levaria aos pobres a cura de suas deficiências psicológicas e culturais
responsáveis pelo lugar que ocupam na estrutura social (Patto, 1996). Segundo Souza
(1994), o objetivo dos Programas de Educação Compensatória era adequar as
crianças advindas de famílias pobres às demandas da escola, buscando suprir os
elementos culturais ausentes nas mesmas, desenvolvendo hábitos de pensamento,
habilidades, estilos de linguagem necessários ao sucesso na escola pública.
E importante destacar que o discurso pedagóg ico subjac ente à adequação
da escola às crianças pobres, concentrou-se unicamente nos aspectos pedagógicos, sem
fazer referência ao sistema educacional e aos aspectos ideológicos que estariam
envolvidos.
Nos anos 70 também se fez presente no meio educacional à teoria do sistema
de ensino de Pierre Bourdieu e J.C. Passeron, que levaram às discussões sobre o
papel da escola numa sociedade de classes, sendo esta percebida como instituição
social na qual se pratica a dominação cultural, isto é, a escola veicu laria
conteú dos impositivos de uma classe social dominante para a manutenção de
seus privilégios. No entanto, devido as distorções conceituais dessa concepção
crítico-reprodutivista do papel da escola na sociedade de classes a mesma acabou
ficando mais no nível teórico do que propriamente no domínio da pesquisa do fracasso
escolar.
Mais recentemente, através da Psicologia Institucional, a psicanálise adentra
a escola, passando a ser vista como uma instituição social dentro de uma sociedade
capitalista e que exerce um papel. E inegável os avanços que propiciou, sendo o
objetivo do psicólogo no campo institucional "um objetivo de psicohigiene: conseguir
a melhor organização e as condições que tendem a promover saúde e bem-estar dos
integrantes da instituição" (Eleger, 1984, p.43). No entanto, é necessário salientar
que apesar da ampliação da leitura individual para a institucional, o modelo adota do
(psicanalítico) é individual, a partir do momento que a preocupação irá centrar-se
nas ansiedades e defesas que estão dificultando a realização e o enriquecimento da
tarefa, isto é, as ansiedades e defesas que estão dificultando o sucesso escolar.
Sara
Paín (1986)
no livro
"Diagnóstico e tratamento dos
problemas
de
a pr en di za g e m" a bor da as pe r tur baç ões da a pre nd i za ge m, i s t o é, a
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
patologia da aprendizagem que pode ser entendida de duas formas: num sentido
mais amplo ou num sentido mais restrito. Em sua primeira forma, a perturbação de
aprendizagem
seria
resultante
de
uma
disfunção
intelectual,
envolvendo,
provavelmente, uma alteração do sistema nervoso central.
A segunda forma se caracterizaria por um pequeno desvio na capacidade normal de
aprender e, segundo a autora, seria algo "aceitável” e que "responde às expectativas
relativas a um sujeito que aprende" (Paia. 1985. p.27). Nesta concepção o problema de
aprendizagem pode ser considerado como um sintoma, isto é, o não-aprender pode ser visto
como uma situação temporária, ou seja, uma resposta que o indivíduo encontra internamente
e, talvez a única, para atender às demandas externas, visando-se em última instância uma
integração ao meio. Esta perturbação da aprendizagem - o não-aprender - pode estar
cumprindo uma função positiva, conforme demonstram Paín (1985) e Fernández (1990),
sendo uma decorrência da tentativa de reequilibração do indivíduo. Desta maneira, o nãoaprender e o aprender devem ser vistos como funções integradoras. De acordo com este
modelo clínico - psicanálise - a compreensão da perturbação da aprendizagem deve
englobar o seu significado latente e a sua função na dinâmica psíquica do indivíduo.
Para Paín (1985), há quatro fatores fundamentais que necessitam ser considerados
no diagnóstico de um problema de aprendizagem: fatores orgânicos, específicos,
psicógenos e ambientais.
Os trabalhos da psicopedagoga argentina - Alicia Fernández (1990, p.39)demonstram que,
Não existe nem uma única causa, nem situações determinantes do problema de
aprendizagem. Não o encontraremos nem no orgânico, nem n os quad ro s
p si qui á tri cos , n em n as e tapas da e vol uç ã o psicossexual, nem na estrutura da
inteli gência. O que tentamos encontrar é a relação particular do sujeito com o
conhecimento e o significado do aprender.
Para ela, o fracasso escolar pode ser compreendido sob duas ordens de causas:
externas à estrutura familiar e individual do que fracassa em aprender e internas à estrutura
familiar e individual. No primeiro caso a autora denomina "problema de aprendizagem
reativo" e, no segundo, "problema de aprendizagem-sintoma ou inibição" (Fernández, 1990).
Segundo esta, o problema de aprendizagem reativo "afeta o aprender do sujeito em
suas manifestações, sem chegar a atrapar a inteligência: geralmente surge a partir do
choque entre o aprendente e a instituição educativa que funciona expulsivamente"
(Fernández, 1990, p.82). Desse modo, o fracasso escolar é conseqüência de uma ação
educativa inadequada por parte da instituição educativa e a intervenção do
psicopedagogo deveria ser voltada para os aspectos ideológicos, métodos de ensino,
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
linguagem e vínculo professor-aluno através do estabelecimento de ações preventivas nas
escolas.
O problema de aprendizagem-sintoma ou inibição afeta "a dinâmica de articulação entre os
níveis de inteligência, o desejo, o organismo e o corpo, redundando em um aprisionamento
da inteligência e da corporeidade por parte da estrutura simbólica inconsciente" (Fernández,
1990, p.82). Portanto, será necessária uma intervenção psicopedagógica especializada
voltada para a criança e sua família, buscando-se descobrir a função do sintoma.
De acordo com a autora, o problema de aprendizagem pode-se manifestar de três
formas: sintoma, inibição cognitiva e dificuldade de aprendizagem reativa.
U m a s pec to imp o r t an t e d est a c onc epç ã o é a r elaç ã o pr o fesso r- a lu no
n o processo de aprendizagem, pois, para que haja aprendizagem é necessária a
existência do ensinante e do aprendente, assim como o estabelecimento de um
vínculo entre ambos.
Paín e Fernández apresentam em comum a crítica ao funcionamento da escola,
cujo funcionamento estaria contribuindo para o surgimento de uma "fábrica de
neuroses". Diante desse contexto o aluno produz um sintoma que é visto e tratado
como uma queixa escolar, sendo necessário, portanto, buscar-se uma explicação
para a queixa apresentada e, geralmente, esta explicação será buscada na criança e
na dinâmica familiar. Percebe-se uma ambiguidade no discurso, ao observarmos
que há uma crítica à escola, porém, ainda se fala em adaptação e desadaptação.
Ble ger,
Pa ín
e
Ferná n de z
rea liza m
a
leitura
dos
prob le mas
de
aprendizagem a partir da psicanálise, principalmente através do inconsciente, onde a
escola
é
vista
apenas
como
pan o
de
fundo,
não
sendo
levados
em
consideração aspectos fundamentais do seu funcionamento, podendo-se falar
num certo reducionismo da proposta destes autores.
Ezpeleta e Rockwell (1986), preocupadas com a busca de um maior
conhecimento da escola passaram a dar ênfase à "positividade" da escola, passando a vêla em si mesma, aquilo que existe na escola. Partem da idéia de construção social
da escola, onde a escola é vista sempre na sua versão local e particular, ou
segundo, as autoras, "a necessidade de olhar com particular interesse o movimento
social a partir de situações e dos sujeitos que realizam anonimamente a história" (p. 11).
Utilizando a metodologia de "analisar a existência cotidiana atual da escola
como história acumulada e buscar, no presente, os elementos estatais e civis com os
quais a escola se construiu" (p. 13), partem da história não-documentada. O
referencial teórico adotado para compreender a vida cotidiana foi o trabalho de
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Agnes Heller, onde a escola é reconstruída a partir do constitutivo histórico de sua
realidade cotidiana, a partir dos sujeitos individuais que vivenciam diariamente a
instituição escolar.
Após a revisão de algumas concepções sobre o fracasso escolar, observa-se que
apesar dos avanços registrados, há muito para se fazer.
Segun do
Patto
( 1996),
aind a
hoje,
três
afir maç ões
pode m
ser
freqüentemente encontradas.
1. "As dificuldades de aprendizagem escolar da criança pobre decorrem de suas
condições de vida" (p. 121). Esta afirmação remete-nos aos anos 70, quando da circulação
no meio educacional brasileiro da teoria da carência cultural na sua versão da teoria da
deficiência. Postula-se que a pobreza material produz uma pobreza psíquica, física e
cultural, sendo estas pobrezas as responsáveis pela incapacidade de aprendizagem da
criança. Esse tipo de concepção traz cm seu bojo uma forte carga de preconceito em relação à
criança pobre.
2. "A escola pública é uma escola adequada às crianças de classe média e o professor
tende a agir em sala de aula, tendo em mente um aluno ideal" (p. 123). Uma vez mais a teoria
da carência cultural se faz presente agora na sua versão da diferença. Parte-se do ponto de
vista que a escola é concebida para um aluno de classe média e que a mesma, incluindo-se
o professor não está preparada para receber e ensinar um aluno que não atenda esse perfil,
ou seja, haveria um grande distanciamento entre a escola e a sua clientela concreta.
Assiste-se aqui um processo de culpabilização do professor por desconhecer os padrões
culturais da criança pobre. A solução a ser implantada para a resolução desse distanciamento
é a criação de escolas especiais para as crianças de classes populares e, que certamente
serão menos exigentes, uma vez que esta clientela é vista como menos capaz. Este tipo de
solução só vem a criar uma maior divisão de classes e acentuar o caráter preconceituoso para
com as crianças das classes populares.
3. "Os professores não entendem ou discriminam seus alunos de classe baixa por terem
pouca sensibilidade e grande falta de conhecimento a respeito dos padrões culturais dos alunos
pobres em função de sua condição de classe média" (p. 125). Esta afirmação faz pressupor a
existência sistematizada e científica de que há uni grande conhecimento a respeito das
crianças das classes populares, o que, na prática, mostra-se improcedente. E necessário
lembrar também que o forte preconceito existente certamente dificulta um maior
conhecimento da realidade dessas crianças, o que torna mais difícil resolver tal
desconhecimento.
Do exposto acima se torna fundamental e urgente que essas concepções
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
preconceituosas a respeito do fracasso escolar sejam revistas, deslocando-se a visão para o
contexto onde as dificuldades de aprendizagem são efetivamente produzidas (fatores intraescolares), para a inadequação da escola em função de sua má qualidade, reflexão sobre os
processos e práticas educativas que se desenvolvem na instituição escolar, as relações
cotidianas que se estabelecem entre as pessoas nas escolas, principalmente as relações
professor-aluno as relações hierárquicas de poder, a burocratização do trabalho pedagógico
e, que, geralmente, se apresenta estanque dos outros contextos, o desconhecimento dos
padrões culturais das crianças das classes populares e a política educacional vigente. Não
se pretende, no entanto, negar os fatores externos à escola na produção do fracasso
escolar, mas questionar idéias que se cristalizaram na explicação do mesmo. Como diz
Quijano, apud Patto (1996), “as idéias são prisões duradouras, mas não precisamos
permanecer nelas para sempre”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA et al. Concepções e práticas de psicólogos escolares acerca das dificuldades de
aprendizagem. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v. 11, n.2, maio - ago, p.117-134,
1995.
BLEGER, J. Psicohigiene e psicologia institucional. Trad. Emília de Oliveira Diehl. Porto
Alegre, Artes Médicas, 1984.
EZPELETA, J. & ROCKWELL, E. Pesquisa participante. Trad. Francisco Salatiel de Alencar
Barbosa. São Paulo, Cortez, Autores Associados, 1986.
FERNÁNDEZ, A. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança
e sua família. Trad. Iara Rodrigues, Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.
PAIN, S. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Trad. Ana Maria Neto
Machado. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986.
PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São
Paulo, T. A. Queiroz, 1996.
SOUZA, M. P. R. et al. A questão do rendimento escolar: mitos e preconceitos. In:
CONCEIÇÃO, J. A. N. Saúde escolar: a criança, a vida e a escola. Sarvier, 1994.
*Luís Alberto Lourenço de Matos
*Professor do Depto de Psicologia / UNIR, mestrando em Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo/USP.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
MITO E LUGAR - PARTE V
Josué Costa *
Resumo: As manifestações do universo da mata que são representadas
através do curupira, mãe da seringueira, tincuã o pássaro invisível, os
macacos prego e barrigudo, os cipós titica e ambé e outras. Como exemplo
da riqueza deste proce sso de codifi cação, d emo nstraremos
al guma s das representações simbólicas colhidas em campo. Uma
das mais interessantes é a do curupi ra, caboclinho da mata, indivíduo
pequeno com cabelos de fogo, pés virados para trás e montado em um
porco selvagem. Esse personagem é o protetor das caças, não admite
desperdícios e agressões aos animais, ensina ao homem alguns dos
segredos da mata.
Palavras – Chave: Animais, Universo, Mata, Selvagem, Simbólicas, Riqueza.
Abstract : There are also manifestations of the universe of woods that are
represented by curupira, mother of rubber tappers, tincuã invisible bird, the
monkeys and potbellied, tactic and ambé vines and others. As an example of
the wealth of this encoding process, we'll demonstrate some symbolic
representations of harvested in field. One of the most interesting is the
curupira, caboclinho da mata, little guy with hair, feet facing backwards and
mounted on a wild pig. This character is the protector of the fighters, you can't
afford to waste and damage to animals, teaches man to some of the secrets of
the forest.
Keyword: Animals, Universe, Forest, wilderness, symbolic Wealth.
A Ma t a
Há, ainda, as manifestações do universo da mata que são representadas
através do curupira, mãe da seringueira, tincuã o pássaro invisível, os macacos prego
e barrigudo, os cipós titica e ambé e outras. Como exemplo da riqueza deste processo de
codific ação, demonstraremos algu mas das represe ntações simbólicas colhidas
em campo. Uma das mais interessantes é a do curupira, caboclinho da mata,
indivíduo pequeno com cabelos de fogo, pés virados para trás e montado em um
porco selvagem. Esse personagem é o protetor das caças, não admite desperdícios e
agressões aos animais, ensina ao homem alguns dos segredos da mata.
Relata um ex-seringueiro que certo dia foi caçar para ter o alimento da semana,
para ele e a esposa. Então, saindo para caçar avistou no alto de uma árvore dois
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
macacos grandes. Somente um era o suficiente para a alimentação da família. Atirou e
acertou o primeiro, preparou a arma e derrubou o segundo macaco, colocou os dois
animais no jamaxim, cesto tecido com cipó, e quando quis voltar, não encontrou mais o
caminho. Andou por algumas horas e vendo que realmente estava perdido, retornou ao
local onde havia abatido os animais e colocou um no tronco da árvore em que se
encontravam. Voltou a caminhar e só saiu da mata dois dias depois porque sua esposa
pediu para um amigo procurá-lo e o encontrou muito próximo das estradas de seringa
onde sempre trabalhava. Indagado como havia se perdido em um local em que nasceu e
sempre viveu, o ex-seringueiro respondeu que o curupira o havia deixado "doido", e que
a partir de então nunca mais teve sorte para a caça, a pesca e a seringa. O curupira o
havia castigado e ele era vítima da panema.
A transgressão de um código simples que é não matar além do que se precisa,
evitando o desperdício para não acabarem as espécies, provocou um conflito interno
no indivíduo anulando todos os referenciais que o mesmo tinha sobre a mata, que é o
seu espaço conhecido. Esse é um dos aspectos da atuação do curupira. Entretanto, há o
depoimento de um agricultor que quando chegou ao Cuniã, procurou fazer urna roça
de mandioca. Para isso, preparou as manivas (caule da mandioca pelo qual é feito o
plantio), fez as covas, e começou a enterrar as manivas em uma posição. Quando
terminou, as manivas encontravam-se todas em outra posição. Ele voltava e colocava
novamente as manivas na posição que queria, e o resultado era o mesmo. O agricultor
atribuiu esse fato às "marmotas do curupira". Perguntado sobre o que ele fez, disse
que deixou como o curupira queria, e o resultado da produção foi melhor. Passou
então a fazer o plantio da maniva de outra maneira. À maneira do curupira.
O relato de um agricultor, que ao sair para caçar matou um macaco. Mudou o
cartucho da espingarda e apontou-a para outro. Ficou apontando e pensando se atirava ou
não, sabia que não precisava de mais. Resolveu não atirar. Quando baixou a espingarda,
estava de frente com a onça. Atirou no rumo, mas não acertou o animal. O informante afirma
que estava convicto de que atirasse no segundo macaco, não escaparia da onça e que ela
era o curupira disfarçado. O curupira não só castiga, mas ensina o homem a trabalhar, traz
consigo as regras de uso dos recursos da mata obedecendo as características locais. As
manifestações míticas são os meios pelos quais esta população se comunica. O
conhecimento adquirido nas atividades cotidianas cria uma lógica que resolve os seus
problemas imediatos, tendo como resultado ações que as maneiras exteriores àquele meio
têm dificuldades de compreender.
14
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
É o exemplo registrado no depoimento de um agricultor de Araçá que dizia que seu
terreno tinha muitas formigas que cortavam toda a plantação. Ele resolveu o problema
fazendo um “acordo” com as formigas. Nesse acordo, ele se comprometia em fazer um
plantio só para as formigas e elas não cortariam sua plantação. Nas diversas caminhadas
feitas na Mata enumerei as diversas denominações de madeira que fomos encontrando. A
denominação dada pelos moradores incluía o uso que fazia de cada madeira:
Madeira
Utilidade
Madeira
Utilidade
01 cedro
Nobre, const. casa, móveis
16 muiratinga
Mad. branca, leve, caixarias
p/ frutas
02 muiracatiara
Nobre, const. casa, móveis
17 itaúba amarela
Nobre,
canoas,
esteios, dormentes
barcos,
03 bandarra
Laminado, tábuas, caibros,
peças
18 itaúba preta
Nobre,
canoas,
esteios, dormentes
barcos,
04 cupiúba
Nobre,
tábuas,
móveis
madeirame em geral
05 cuiarana
Tábuas, peças
19 ipê
Mourões, esteios, tabuados,
tacos
06 cedrorana
Tábuas, peças
07 Angelim
Nobre de
madeirame
2ª,
móveis,
20 roxinho
Madeirame em geral
08 Angelim-fava
Nobre de
madeirame
2ª,
móveis,
21 pau d’arco
Mourões, esteios
09 faveiro
Madeira de 2ª, peças,
estacas, vigas, caibros
22 coração de negro
Estacas
10 feveiro-ferro
Madeira de 2ª
23 cucupira preta
Tacos p/ piso, longarina de
caminhão
11 copaíba
Óleo, móveis,
em geral
25 louro
Móveis madeirame
12 copaibarana
Madeirame
13 jitó
Madeirame
26 jacareúba
Madeirame
14 sacaca
Madeirame
27 louro pimenta
Móveis, madeirame
15 murapiranga
Madeirame
28 louro amarelo
Móveis, madeirame
29 louro caju
Móveis, madeirame
42 acariúba
Esteios, postes
estacas p/ pontes
30 caju-açu
Madeirame
43 biorana
Estacas p/ cerca
31 castanharana
Madeirame
32 jacaré
Madeirame
33 preciosa
Chá,
esteios,
estacas
madeirame
mourões,
de
luz,
44 cedro-mara
Móveis, madeirame
45 pequi
Longarina,
estacas
pontes, frutos
p/
15
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
34 mututi
Madeirame
46 pequirana
madeirame
35 virola
Laminados, madeirame
47 pequiá
Estacas p/ ponte, longarina,
frutos
36 samaúma
Laminado, madeirame
48 pajurá
Estacas
37 garapeira
Estacas p/ pontes
49 angelim-copaíba
Óleo, móveis, madeirame
38 churu
Madeirame
50 ingarana
Madeirame de 2ª
39 jequitibá-rosa
Móveis madeirame
51 ponã
Tabuados, madeirame
40 pau-rosa
Óleo
52 mulateiro
Forro, tábuas, madeirame
41 quariquara
Esteios, postes
estacas p/ pontes
53 peroba
Móveis e madeirame
54 sucuba
madeirame
de
luz,
Os elementos míticos contêm uma ordem de classificação das espécies e os códigos
sociais estabelecidos. Essa classificação contém a lógica que as criou e com isso,
determinados elementos podem pertencer ao reino animal vegetal simultaneamente, como
por exemplo, o “cipó titica” (figura 2) e o “cipó ambé”, utilizados para a confecção de
inúmeros artefatos manipulados cotidianamente. Porém, esses cipós têm sua origem no
reino animal, sendo que o primeiro nasce com a morte de uma formiga preta chamada
“tucandeira” e o segundo, da aranha “caranguejeira”.
Para os moradores, o cipó é do reino animal e os animais que os originam são vegetais
em potencial.
Outro exemplo da simultaneidade dos universos, é quando a vegetação de capim
canarana invade as águas para isolar o acesso dos homens às áreas onde corre a
reprodução de várias espécies de peixes. O capim torna-se um manto espesso e impede a
passagem de canoas e voadeiras.
Esse isolamento é obedecido pelos moradores como maneira de assegurar a
alimentação futura. É então o universo da mata agindo diretamente sobre as águas.
As árvores como as águas possuem protetores, a seringueira possui uma mãe que se
apresenta como uma velhinha de cabelos brancos e rosto enrugado (cheio de barrocas), é
ela quem permite que o seringueiro tire leite ou não:
P: e a mãe da seringueira?
F: a mãe da seringueira é uma velhinha cheia de barroca. P: o que é barroca?
F: a cara engilhada, o rosto engilhado tem dia que ela sai batendo as canecas na
frente e o cara nesse dia não tira leite não, eu cansei de cortar e ouvir o caboco
batendo assim, tau, tau, tau... era ela.
P: mas por que ela não quer que tire leite?
F: ela não quer, ela é a dona da seringueira e depois de ela não ir com a cara do
freguês, é besteira. Vai um tira oito litro, ou nove, ou dez, ou quinze e se eu ir e
16
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
cortar a mesma estrada que o cara cortou, se eu tirar cinco litro, ou seis, tou
tirando muito. Ela não foi com a minha cara não, é que o bicho é feio mesmo.
Não dá, não tem uni pé de árvore que dé leite, só sôva já tirei muita sova, mas
nunca cheguei a tirar lema lata de leite na soveira pode ser na grossura que seja.
(trecho de uma conversa com um morador, ex-seringueiro, 1992).
As referências à mãe das seringueiras são sempre remetidas ao tempo dos
antigos, tempo dos primeiros seringueiros, tempo em que se usava uma
machadinha para realizar o corte no caule da seringueira. Esses cortes geralmente
atingiam o caule e deixavam as árvores estéreis. A mãe da seringueira ensina o
homem a realizar o corte correto. É o tempo de amansamento, de aprendizagem e de
aproximação com a seringueira, ou com a mãe da seringueira. É o tempo para o
homem estabelecer contatos, de realizar o ritual de aproximação. A zanga da mãe da
seringueira irá afastá-lo e negar-lhe os conhecimentos e o caminho da fartura, dos
segredos do látex. Esse contato e essa aprendizagem estão registrados nas
narrações míticas.
Seja por "ajuda do curupira", seja por acordos feitos, esse modo de vida demonstra
que tem uni ritmo de atividade que conhece os ciclos da natureza. Há uma procura de
equilíbrio entre as espécies e o Homem. Há um equilíbrio necessário entre o tirar e o
repor. O curupira, a mãe da seringueira, a mãe d'água surgem quando há ameaças de se
instaurar o desequilíbrio. E encontra no mito a linguagem adequada para "lembrar" aos
homens o perigo eminente e relatar suas experiências e os resultados obtidos.
Dessa maneira, esses elementos agem conjuntamente com o universo das águas, a
separação aqui demonstrada é apenas didática. Na medida em que a população atribui
valores, renova e reinterpreta as representações simbólicas, es tã o a greg ando e
codific ando os seus conhecimentos acu mulados historicamente e transmitindo-os às
novas gerações, que irão fazer os mesmos processos de reinterpretação.
Tais representações míticas são relevantes para a compreensão da cultura do
homem ribeirinho e da sua organização espacial. A criação do conjunto das representações
míticas está vinculada ao conhecimento espacial que a comunidade possui.
Esse espaço está carregado de significado e marcado pelas r e p r e s e n t a ç õ e s . A s s i m ,
o
espaço passa a
incor porar
as
perce pções
que
os
moradores vão
adquirindo, vindo a ter um sentido de proximidade. E é a formação do lugar.
Essa categoria espacial é o ponto de referência da existência da
comunidade embutindo em si os seus códigos de localização, classificação,
formulações de regras sociais etc. Em muitos casos, o fato de infringir tais códigos
provoca nos indivíduos uma descodificação que pode ser temporária ou não. A
organização dada ao lugar incorpora essas codificações e o mito as transmite.
17
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
As
reflexões
contidas
neste
trabalho
estão
voltadas
a
uma
abordagem
interdisciplinar, pois a Geografia isoladamente não daria conta dos aspectos
cognitivos, (formas de classificação, e as representações simbólicas da terra), dos
aspectos sociais e políticos que o tema exige. Desta maneira, nos utilizamos para
compreensão dos estudos, das diversas contribuições dadas pela Antropologia na
anális e das representações simbólicas e c ognitivas, as contribuições da
Sociologia, na compreensão dos micros grupos sociais e das relações desses
grupos com a sociedade dominante. Entendemos que para a compreensão desse
estudo todas as ciências sociais são necessárias, não há como fragmentar a
realidade analisada. Para que a Geografia possa compreender como o espaço foi
construído, é imprescindível uma visão de conjunto, nos utilizamos dos
instrumentos de trabalho das outras ciências.
O
conflito
v ivenciado
pelos
moradores
expôs
suas
estratégias
de
sobrev ivência. Foram buscar das mais diferentes formas , os argumentos
necessários à s ua p ermanência em Cuniã. Cons truiu-s e um dis curso de
preservação do meio ambiente. Discurso criado em seu cotidiano. A cultura
indígena é resgatada e ajuda a provar sua temporalidade. Assemelham seu modo de
vida ao dos índio s. Procuram de monstrar q ue to das suas aç ões desenvolvidas
em defesa do meio ambiente são mais efetiv as do que os planejamentos
governamentais.
O tempo de vivência desses moradores co m o meio ambiente v ai
transformar o espaço, incorporando às suas experiências os experimentos, suas
emoções ficam gravadas na terra, nas árvores, nas águas. Esse espaço deixa de ser
uma mera localização, passa a constituir-se de elementos sagrados. É onde se
encontram com seus antepassados e suas marcas.
O espaço vai sendo construído e transforma-se em algo que oferece o
aconchego, a segurança, a fartura, a bondade. É o lar, é o seu lugar. Repleto de
significados e quando dizem: "aqui é o meu lugar", falam com a intensidade que inclui
todos esses fatores. Com isso, transformam a natureza, humanizando-a.
O pensamento apaziguador é criado, o ritual de convivência é executado e os
acordos com o boto, o curupira, a mãe da seringueira, a mãe d'água são
estabelecidos. Sair desse lugar é abandonar todas essas construções. O SEMA, o
IBAMA, jamais compreenderia que os moradores travaram uma luta, não apenas pela
posse da terra, mas pela manutenção e preservação de seus códigos.
Não estamos falando de uma comunidade harmônica, perfeita e que trava relações
18
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
exemplares com o seu meio ambiente. Como toda comunidade humana, há desavenças em
seu meio. A disputa pela hegemonia política é acirrada como em qualquer outro lugar. O
que se ressalta é que apesar de suas diferenças, esse grupo apresenta o seu modo de vida
e seu projeto de defesa do meio ambiente. Não que esse modo de vida e proposta ambiental
sirva como regra geral, é o modo de vida dessa comunidade, para o seu meio ambiente.
Aprendemos com o exemplo da riqueza cultural que apresentam, da defesa de seus
valores e da organização de seu espaço a partir do imaginário e das histórias de vida, que
em conjunto, vão alicerçar a luta de resistência local.
As narrativas míticas exigem uma lógica interna e uma racionalidade que acrescenta,
adiciona ao conhecimento científico, não o exclui.
Através da derrubada da capela da padroeira eles denunciaram que houve surtos
de doenças que não existiam no local. A lógica desses moradores não é a de que apenas
a reza afasta a doença, mas a profanação de um lugar santo rompeu sua ligação com as
divindades. Com a presença de elementos estranhos ao lugar, quebrou-se o
equilíbrio que eles mantinham. A sacralização do lugar foi profanada. O lugar corre
perigo e seus corpos reagem, adoecem. O tratamento de suas doenças não é feito
somente pelos curadores. Se forem acometidos pela malária ou hepatite, eles procuram o
curador e o hospital na cidade. Eles rezam e tomam o remédio do médico. Um
tratamento não elimina o outro, pelo contrário, se complementam. Na visão desses
moradores, não há incoerência em sua ação, seu pensamento não dicotomiza e nem elimina
o que é diferente.
O mítico denuncia a violência e o padecimento do grupo. Nesse caso, ocorre a
desacralização do lugar onde a padroeira o representava simbolicamente.
Nas modificações das histórias, são utilizados elementos semelhantes. Se fore m
estranhos, as histórias perdem a coerência, os indivíduos não se identificam
com as mesmas. E imprescindível nas histórias ou narrativas a permanência do
senso comum. Esse senso comum é o conhecimento tácito, é o saber que "se fizer de tal
forma" dá certo. Os elementos estranhos incorporados às histórias as fazem perder a
coerência, as pessoas não se identificam com a narrativa. É como se o boto
deixasse de lado sua roupa branca, seu chapéu de folha de embaúba e chegasse com
uma roupa de seda multicolorida e convidasse a donzela para ir assistir a ultima novidade
hollywoodiana no cinema ou a um teatro. Nenhum ribeirinho se reconheceria nessa
história. A presença de elementos estranhos nas narrativas provoca a ruptura. As
histórias de encantamentos aqui relatadas possuem todos os elementos que as tornam
vividas e acreditadas pela população. O que vem reforçar esta condição é o fato de
19
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
que a população irá contar e recontar esse episódio. Alguns irão contá-los com
julgamento de valores, onde está presente na coragem e no heroísmo de uma mãe, a
falta de fé de outra, o reconhecimento da culpa daquele por ter caçado além dos
limites estabelecidos e o conseqüente castigo: a perda dos pontos de referência, o
ficar doido, e o panema.
O sistema de classificação usado por esta cultura não tem o mesmo referencial de
categorias do pensamento científico: a formiga e/ou a aranha vão dar origem a um cipó que
tem um uso fundamental em seu dia-a-dia; o boto pode metamorfosear-se e resolver
problemas de relacionamento familiar ou aliviar os sofrimentos de um paciente, "se todos os
bichinhos têm mãe, por que a água também não teria?"
Ao manter-se a situação do despejo ou não dos moradores eles ficam aguardando o
resultado final para fazerem suas plantações, a reforma de suas casas, ao cuidarem do
quintal, o queimar da capoeira. Esperam que suas vidas possam seguir o seu curso normal,
como as águas do rio.
_______________________
"Mito e Lugar" é o trabalho que apresentamos para a obtenção do título de Mestre em
Ciências pela Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. José William
Vesentini, defendido em 1994. As primeiras partes foram publicadas da Revista Presença
nos números 09, 10, 11 e 12
Professor Ms. do Depto., De Geografia/UFRO, Pesquisador Associado do Laboratório de
Geografia Humana e Planejamento Ambiental, Doutorando em Geografia Humana pela
Universidade de São Paulo.
20
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
COLONIZAÇÃO, TRABALHO E NATUREZA
Januário Amaral *
Resumo: A imposição, nas décadas anteriores, dos órgãos
governamentais de induzir os colonos a destruírem a floresta sob o pretexto
de transformar Rondônia em um novo cenário de modernização agrícola no
estilo do Centro-Sul do País, também deveria ser o principal alicerce de uma
sociedade rural próspera. Hoje, acima de tudo, esta natureza é vista como
degradada por práticas inadequadas ao ambiente amazônico. E o melhor
exemplo dessa trajetória é a mata.
Palavras – Chave: Ambiente, Colonos, Sociedade rural, Natureza e mata.
Abstract: The imposition, in previous decades, Governments to induce the
settlers destroy the forest under the pretext to transform Rondônia in a new
agricultural modernization scenario in the style of the Center-South of Brazil,
also should be the main foundation for a prosperous rural society. Today,
above all, this nature is seen as degraded by inappropriate practices to
Amazonian environment. And the best example of this trajectory is the kills.
Keyword : Environment, Settlers, rural Society, Nature and kills.
A imposição, nas décadas anteriores, dos órgãos governamentais de induzir os
colonos a destruírem a floresta sob o pretexto de transformar Rondônia em um novo cenário
de modernização agrícola no estilo do Centro-Sul do País, também deveria ser o principal
alicerce de uma sociedade rural próspera. Hoje, acima de tudo, esta natureza é vista como
degradada por práticas inadequadas ao ambiente amazônico. E o melhor exemplo dessa
trajetória é a mata. De um total de 24.305.926 ha, no Estado de Rondônia, segundo Mapa
de Ação Antrópica - PLANAFORO foram desmatados 4.824.790 ha de floresta, ou seja,
20,4% do território estadual até 1986.
Apontamos três motivos principais para explicar a situação de degradação
em que se encontram as áreas agricultáveis, que antes eram repletas de enormes
castanheiras,
seringueiras,
e
muitas
outras
espécies
extremamente
variadas.
Primeiramente, um de procedência econômica (uma relativa "valorização" da terra)
21
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
e, outro, de caráter tecnológico (tecnologia inadequada à disposição dos colonos). E por
último, o de caráter simbólico, mediante o qual o colono se tornaria proprietário de um lote
de terra com a derrubada da floresta (Amaral, 1994).
A modernização da agricultura de Rondônia constitui fator determinante para que se
tenha a melhoria das condições de vida, de trabalho e renda do homem do campo. Pensa-se
numa modernização que parta de uma redistribuição de terras e manutenção das pequenas
propriedades, e que tenha impacto sobre a produção e também sobre a distribuição de renda.
TAB.01 - PRODUÇÃO AGRÍCOLA DE RONDÔNIA 1991/1995
Produto
Área
Produção (t) Área
Produção (t)
1991
1995
arroz (casca)
86.651
104.300
148.545
262.436
milho
127.649
218.431
198.785
370.179
feijão
139.254
77.436
123.682
81.007
mandioca
30.097
496.784
41.755
708.605
banana (1.000
19.204
18.085
30.963
25.889
cachos)
43.343
22.781
34.591
15.871
cacau
135.709
149.309
137.739
171.233
café (coco)
2.400
5.000
-
-
soja
15.500
24.800
19.091
27.059
algodão
FONTE: GCE/IBGE/SEAGRI/EMATER
Logo, a retomada de seu dinamismo e o efetivo início de um processo de
mo d e r n i za ç ã o
do
setor
a g r í c o la
c o n s ti t u i
desenvolvimento sustentado da agricultura.
o
fator
e s s e n c ia l
para
o
E essa modernização passa pela
recuperação das áreas que hoje não são mais utilizadas, como por exemplo, as
capoeiras.
No PA Vista Alegre, um colono d isse: "já ouv i falar numa tal de assistência
técnica, mas nunca fui apresentado para ela. eu acho que isso é invenção de
americano ou de político. não deve ser coisa tento boa, e se não é boa, ainda vai
chegar aqui, não é verdade." Diante desse quadro como é possível recuperar áreas
degradadas, se o suporte técnico do Estado é incompetente para tal atividade? Existe
projeto de assentamento que tem terras produtivas, contudo n ã o t e m e s t r a d a s
v ic in a is , o u v ic e -v e rs a , e o u t r o s , n e m e s t r a d a s n e m t e rr a s produtivas.
Segundo
p ro bl e ma
nos
Am a r a l
e
projetos
Cos ta
de
S i lv a 1 1 9 9 1
as s en ta me n tos ,
a
a s s is t ê n c i a
toando
t é c n ic a
crucial
o
é
seu
desenvolvimentos. O uso desse serviço poderia implicar em três elementos fundamentais
para os assentados: o uso r a c i o n a l do solo, buscando uma relação compatível
com o suporte da terra; a produtiv idade do solo e a qua lida de da p r o d u ção .
22
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Co mb in a n d o ess es e le me n t o s , e n t e nd e -s e qu e hav e r á me lh o r a n as condições
gerais dos projetos de assentamento. Os colonos trabalham a terra da maneira mais
simples
possível; usam apenas enxadas
e facões, e, associado a
estes
instrumentos, u t i l i z a m a t é c n i c a d a s q u e i m a d a s .
Segundo c o m e n t a v a um informante da região de Vilhena, “'uma realidade
dos pro jetos novos do INCRA é que o assentame nto de famílias é feito e m
terras não produtivas. No projeto Nova Conquista, por exemplo, mais de 60% de
suas terras são arenosas e só produzem a b a c a x i ; essa questão deve ter alguma
importância e deveria ser revista pelo INCRA, antes de assentar os colonos. Afinal
nem só de abacaxi vive o homem”.
Consideramos fundamental o saber que os colonos já possuem; um saber
transmitido de geração em geração de pai para filho. Contudo esse saber precisaria
ser auxiliado pela ciência e pela técnica. Todos poderiam se envolver, por exemplo,
no
"d e s e nv o lv i me n t o
sustentado”
para
a
reg iã o,
como
explorar
racionalmente o lote de terra, discutindo alternativas para o desmatamento, as
queimadas, a erosão . Assim co mo p od eria m a u mentar a r enda, lev an do-s e e m
consideraç ão o princípio da sustentabilidade.
Bibliografia
AMARAL, J. de O., Terra virgem terra prostituta: O processo de colonização em Rondônia. São
Paulo, FFLCH/USP. 1994
AMARAL, J. J. O & COSTA SILVA, R. G. Relatório de Campo. UNIR, 1997
*Januário Amaral. Professor do Departamento de Geografia UFRO, PesquisadorAssociado do LABOGEOH-PA, doutorando em Geografia Humana pela Universidade
de São Paulo-USP.
23
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
OS NARRADORES DA PRAÇA DA
REPÚBLICA E DA CIDADE DAS LEIS
Valdemir Miotello*
Resumo: Ao tratar de analisar narrativas orais deve-se levar em conta que
ela é primitiva, no sentido de que vem junto com a história humana há
séculos, tendo sido o gênero que não só acompanhou o homem, como foi a
marca da primeira onda civilizatória, quando o gênero humano, ao
descobrir os princípios da agricultura, se sedentarizou, formou os
pequenos ajuntamentos humanos, organizou normas, leis, fez cultura,
memorizou fatos, guardou a história do grupo, e foi constituindo um baú
de tradições, lendas, crenças, fatos, rezas, cantos, nomes, lugares, datas,
conhecimentos, que fixaram o desenvolvimento humano.
Palavras – Chave: Agricultura, Conhecimentos, Narrativas, Tradições e
Desenvolvimento.
Abstract: Efforts to analyze oral narratives should take into account that it is
primitive, in the sense that comes along with human history for centuries,
having been the genre that not only accompanied the man, as was the mark
of the first wave civilizatória, when the human race, to discover the principles
of agriculture, if sedentarizou, formed small gatherings organized human
standards, laws, culture, memorized facts, saved the history of the group, and
was a treasure chest of traditions, legends, beliefs, facts, prayers, songs,
names, places, dates, knowledge, that fixed the human development.
Keyword: Agriculture, Knowledge, Narratives, Traditions and Development.
Ao tratar de analisar narrativas orais deve-se levar em conta que ela é primitiva, no
sentido de que vem junto com a história humana há séculos, tendo sido o gênero que não só
acompanhou o homem, como foi a marca da primeira onda civilizatória, quando o gênero
humano, ao descobrir os princípios da agricultura, se sedentarizou, formou os
pequenos ajuntamentos humanos, organizou normas, leis, fez cultura, memorizou
fatos, guardou a história do grupo, e foi constituindo um baú de tradições, lendas,
crenças, fatos, rezas, cantos, nomes, lugares, datas, conhecimentos, que fixaram o
desenvolvimento humano.
Quando a escrita foi inventada e divulgada, ela serviu para recuperar e cristalizar as
narrativas que, manuseadas pela aristocracia justificava seu poder e seu modo de vida,
percorriam as bocas populares e legitimavam o dito e o feito dos dominantes. O caráter
ideológico do mito, das lendas, dos causos, das histórias, das narrativas é fantástico, já
que ele tanto garante a divulgação e a permanência entre as classes populares, que os
24
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
repetem e perpetuam, das idéias que fundamentam o poder dos dominadores, justificando-o,
quanto mantém e arrastam pelos tempos a fora os conteúdos libertadores dos excluídos.
Platão, em A República, discute as condições de transmissão do mito e atribui ao
Estado a legitima aplicação de um dispositivo de vigilância, uma vez que a cidade está
infestada de “fabricantes de narrativas", a começar pelas mães e amas, seguidas pelos
velhos e velhas, tagarelas inesgotáveis, que se debruçam sobre os recém-nascidos, e
reunindo crianças de pouca idade ao seu redor e "derramando em seus ouvidos discursos
sedutores", apresentando ficções faladas, e que "transformam-se em caráter e em
natureza, através do corpo, da voz e do pensamento (Platão, A República, Ill, 377-395).
Ainda segundo ele, cabe aos filósofos modelar os tipos de narrativas que interessam ao
Estado, em conformidade com as leis, para formarem "cidadãos de ouro". Os narradores
ambulantes e os mitólogos vadios não poderiam freqüentar as praças d'A República.
O envelhecido Platão, no entanto, em Leis destrói sua praça inútil e o espaço social
da vigilância do Estado, e convoca o povo para dirigir o rumor, organizar seu curso e fazê-lo
circular por milhares de canais,
"conservando todos os belos discursos que enunciamos e sempre enunciaremos, mas insistindo no
essencial: afirmaremos que, aos olhos dos deuses, a vida mais agradável é também a melhor, e assim
todos juntos diremos a verdade pura, e melhor do que qualquer outra forma de exprimi-la, persuadiremos
aqueles a quem queremos persuadir" (Platão, Leis,Il).
Era a convocação para que o bom rumor irrigasse em profundidade todos os membros
do corpo social e os convencesse com a verdade. E ele reservou aos velhos o papel de
administrar a memória comum e a eles está reservado o lugar social de contador de histórias,
e direcionadas diretamente às crianças. São eles, afinal, que alcançam o tempo mais longe e
estão alheios à vida política, podendo, dessa forma, educar os "incompletos" com narrativas
sedutoras (paramúthia) e com palavras de encantamento (epoidaí), transformando tudo em
divertimento (paidiá), voltadas para a melhor educação (paideía) (Platão. Leis-11. 659).
Marcel Detienne, em seu livro A Invenção da Mitologia, usa do testemunho de Platão
para afirmar que na Grécia há recusa de recorrer à escrita entre os homens que têm mais
poder na cidade. Péricles teria sido o primeiro, num tempo de grandes oradores, a ler um
discurso em público. A escrita, na cidade, era mais para ser vista nos decretos pregados nos
muros que para ser lida. Aos poucos seu uso vai ocupando vários campos de atividade e
se transformando em "memória escrita" que convive com a "memória social", cuja
transmissão continua a se fazer de forma oral e auditiva.
Ao se colocar o problema da manutenção da tradição e da modificação que se
processa na história transmitida oralmente. Detienne reconhece um "equilíbrio dinâmico entre
mudanças e sobrevivência, onde a triagem entre as informações novas e antigas, se
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
efetivamente realizada pela memória de cada um, se faz em função e sob o controle da vida
social" (Detienne, 1992:76). Ele relembra o etnólogo Marcel Maus repetindo a seus alunos:
"novo procurem o texto original, porque ele não existe" e afirma que "é no ensaio que ela
(literatura oral) se fabrica, tomando forma a partir do que chamamos as variantes da narrativa
ou as diferentes versões de uma mesma história" (ld.:77), e é no ensaio que a variante
aparece, pois a repetição proporciona a possibilidade da variação, e só é percebida mais
profundamente a partir do fixismo da narrativa ou na escrita ou na gravação.
Ao afirmar que a narrativa tem que sair da boca e ir diretamente ao ouvido, caso
contrário ela estará condenada ao silêncio e ao desaparecimento imediato, Detienne afirma:
"Para poder penetrar e tomar seu lugar na tradição aural, uma narrativa, uma história ou
qualquer obra falada deve ser entendida, isto é, deve ser aceita pela comunidade ou pelo
auditório a que se destina" (Id.:82)
Angel Rama, crítico uruguaio, ao escrever A Cidade das Letras, apresenta esta
diferença pondo de um lado a "cidade real" que abarca a sociedade como um todo, e de outro
lado a "cidade letrada" que contempla seu elenco intelectual, sua classe dirigente.
“Enquanto a cidade letrada atua preferencialmente no campo das significações e inclusive as
autonomiza em um sistema, a cidade real trabalha mais comodamente no campo dos significantes e
inclusive os afasta dos encadeamentos lógico-gramaticais"
(Rama, 1985:52). Ainda apresenta a cidade física que "o visitante percorre até perder-se" e a
cidade simbólica "que a ordena e a interpreta, ainda que somente para aqueles espíritos afins, capazes
de ler como significações o que não são nada mais que significantes sensíveis para os demais, e,
graças a essa leitura, reconstruir a ordem" (Id: 53).
Essas diferentes leituras de uma mesma realidade dada devolviam diferentes
exercícios de poder aos usuários, e não só realizam leituras diferentes, mas necessitavam
delas para manter do mesmo jeito as outras leituras. Era o exercício de velar os olhos e
vendar, ocultar uma forma de ver o real de outro lugar social. Rama também defende que "a
escritura dos letrados é uma sepultura onde é imobilizada, fixada e detida para sempre a
produção oral" (Id: 90), ao mesmo tempo em que ela tem poder para estabelecer a
submissão da multidão.
Lévi-Strauss, já no final de seu Mithologiques IV- L'home nu introduz em sua obra o
conceito de "mitismo" e sugere uma distinção entre os níveis estruturados e estáveis do
mito e os níveis de probabilidade que poderão manifestar uma extrema variabilidade
em função da personalidade dos sucessivos narradores: "As obras individuais são todas
mitos em potencial, mas é sua adoção coletiva que atualiza, se for o caso, seu mitismo"
(Lévi-Strauss, 1971:560). A escuta partilhada é o lugar da fundamentação das
palavras transmitidas e das narrativas conhecidas, que passam pela prova da
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
escuta, não importando como distribuam os ditos da tradição.
Quanto à objetivação da obra, na literatura oral ela não é independente do recitante,
pois que ela se apresenta como um potencial de normas e tradições que o narrador deve
atualizar. O dado não é sua obra, mas apenas um corpus literário, um mote criativo, um baú
de tradições recolhidas pelo tempo sobre o qual ele vai trabalhar na sua fala. O narrador não
só é o transportador do passado para o presente deste baú de tradições, mas também o leitor
das realidades novas e atuais que ele pode inserir neste baú, além de selecionar e
organizar todos estes elementos que serão usados nesta sua presente ação e por causa
destes ouvintes.
Paul Zumthor, em A Letra e A Voz, ao se referir aos "intérpretes" medievais os
coloca como letrados, mesmo que nem sempre lessem os textos, recitando-os de forma
decorada:
"tinha antes aprendido de cor o numero dos capítulos que compunham a obra, as grandes linhas da
ação, os nomes dos lugares e dos personagens; depois, recitando-os, acrescentava,
condensava, suprimia, sem tocar no essencial da história e empregando a 'linguagem dos livros"
(Zumthor, 1987:62).
Independente de sua origem, situação econômica ou sexo, os intérpretes medievais "não
foram, naquele mundo, marginais", mesmo que se vestissem com roupas chamativas ou
excêntricas e se tratassem a si próprios de loucos. Sua presença se dá em todo o espaço
social, da mendicância à corte, da existência errante à propriedade de um feudo, da
recitação de jograis em festas às viagens diplomáticas (Id.:63-67). "Pela garganta de todos
esses homens (...) pronunciava-se tema palavra necessária à manutenção do laço
social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos" (Id.:67).
Finalmente, o poder real pode estar na palavra, esta "palavra fundadora" de que fala
Zumthor, mas que é continuamente recriada pela voz que vai ocupando seu lugar
social na corte, no quarto das damas, na praça da cidade, na borda dos poços, no pátio das
igrejas, nas casas de família.
Bibliografia:
DETTIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Rio de Janeiro, José Olympio. Brasília,
UnB, 1992.
LEVI-STRAUSS, Claude. Mithologiques IV: L'homme nu- Paris, Plon. 1971
MIOTELLO, Valdemir. Um mito amazônico em narrativas de roda - repetição e mudança nos
processos enunciativos. Dissertação de mestrado, Campinas, UNICAMMP. 1996.
PLATAO. Obras completas. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1963.
RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo. Brasiliense. 1985.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz - a "literatura" medieval. SP, Companhia das Letras. 1993.
*Valdemir Miotello. Professor do Departamento de Filosofia, Antropologia e Sociologia da
UFRO.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
DIFERENCIAÇÃO CULTURAL E CONFLITO:
A colonização em Rondônia
Carlos Corrêa Teixeira*
Resumo: Retomando os argumentos de outras comunicações, ressalto
mais uma vez que a região que corresponde a Amazônia brasileira tem
experimentado nestas duas últimas décadas aquilo que pode ser
considerado sua transformação mais radical, ou seja, a substituição de urna
base econômica fundamentalmente extrativa por outra em que prevalecem
novos empreendimentos agrícolas e industriais. Poder-se-ia mesmo dizer
que ocorre ali a passagem de uma ordem em que o homem vivia em
maior harmonia com a natureza- uma espécie de "economia
excedente" - para outra em que domina a lógica da acumulação
capitalista.
Palavras – Chave: Comunicações, Base Econômica, Radical e Lógica.
Abstract: Resuming the arguments of other communications, bounce again
that region that corresponds to the Brazilian Amazon has experienced these
last two decades what can be considered his most radical transformation, i.e.
replacing urna fundamentally economic base extraction by another prevail new
agricultural and industrial enterprises. One could even say that occurs there
passing an order where the man lived in greater harmony with nature – a sort
of "surplus"-economy to another in which dominates the logic of capitalist
accumulation.
Keyword: Communications, economic base, Radical and logic.
Retomando os argumentos de outras comunicações, ressalto mais uma vez que a
região que corresponde a Amazônia brasileira tem experimentado nestas duas últimas
décadas aquilo que pode ser considerado sua transformação mais radical, ou seja, a
substituição de urna base econômica fundamentalmente extrativa por outra em que
prevalecem novos empreendimentos agrícolas e industriais. Poder-se-ia mesmo dizer que
ocorre ali a passagem de uma ordem em que o homem v ivia em maior harmonia com a
natureza- uma espécie de "economia excedente" - para outra em que domina a lógica
da acumulação capitalista. Num certo sentido essa transformação implica em que o rio e a
floresta vêem enfraquecida a força de sua representação, enquanto a terra como um bem
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
produtivo passa a ocupar na mente dos homens um lugar de realizações
incomparáveis. Os efeitos dessa transformação valem dizer, se estendem a todos os campos
da vida social, incluindo a economia, a demografia, a política, a cultura etc.
Contato e conflito
Ao analisar a colonização em Rondônia no início dos anos setenta um autor
observa cone otimismo que estaria ocorrendo ali certa troca de experiências criadas
através do contato entre populações de origens diversas que ocupavam o mesmo espaço no
interior da floresta - os naturais da Amazônia e os colonos vindos do Sul do país. "Junto
aos imigrantes do Sul (o seringueiro) aprende a fazer urna derrubada, tocar uma
lavoura, cozinhar uma carne... (enquanto) o colono do Sul também aprende junto ao
amazonense: vê como aproveitar as árvores e as plantas da floresta, ou como tirar o
leite das seringueiras." Tais considerações, vale salientar, constam da pesquisa que
esse autor faz na região da BR-364 entre 1972 e 1975. Desgraçadamente não demorou
muito para que essa situação se modificasse para pior pois em 1985 quando me dirigi pela
primeira vez a essa mesma área o que vi foi um, quadro desolador de devastação ao lado
de uma situação de conflito generalizado. Em 1989 e início de 1990 estive durante três
meses nessa mesma área - a região de Ariquemes - e constatei que essa situação ainda
prevalece agora agravada pela retomada da exploração dos garimpos.
Ariquemes
A escolha que fiz da região de Ariquemes para a realização de minha pesquisa se deu por
ser ali um lugar privilegiado em que duas situações, a do seringueiro e a do colono,
mostravam-se de forma bastante exemplar. Na verdade eu pude encontrar núcleos de
populações antigas em outras áreas da BR-364, mas Ariquemes era a única que possuía
em seu território um contingente dessa população bem caracterizado, que
sobreviveu à ocupação dos projetos de colonização. Trata-se dos habitantes da Vila
Velha - Antigo Ariquemes - que está situada à margem direita do Rio Jamari.
Comentava-se, aliás, que com o surgimento de novas cidades ao longo da BR-364
não existia mais populações antigas habitando os velhos núcleos originários do
extrativismo. Tais populações teriam desaparecido por completo? Se isso fosse verdade
onde e como estariam vivendo? Eu estava seguro de que encontraria por ali ao menos
alguns seringueiros que pudessem me contar o que havia acontecido. Pois em Vila
Velha, quando lá estive em 1985, encontrei trezentas famílias que de um modo ou de
outro estavam ligadas ao extrativismo da borracha. Este lugar estava, pois ali, bem ao lado
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
do novo Ariquemes, este todo habitado por migrante vindo do Sul e Sudeste.
Vila velha
Nas duas viagens recentes que fiz à região - ago out. 89 e jan/fev/90 - pude ver
que o antigo povoado se expandiu, embora a antiga vila ainda se conservasse, com
suas casas feitas de madeira e cobertas com zinco ou palha. A SUCAM - órgão federal de
combate à malária - calcula que em torno da antiga vila existam 533 casas com 2.398
moradores - 500/o a mais que em 1985. Mas se a área da vila for ampliada incluindo-se
nela todo o bairro Marechal Rondon tem-se mais... 277 casas com 1.246 moradores,
perfazendo assim um total de 3.644 moradores.
Pouca coisa mudou na vila desde a época em que estive lá pela primeira vez. O
lugar dispõe agora de uma extensão da rede elétrica de Ariquemes, embora ainda não
tenham sido iniciados os serviços de iluminação pública e apenas alguns moradores
tenham feito ligações para o interior de suas residências. O abastecimento de
água ainda é feito de modo artesanal - os moradores retiram-na diretamente do rio,
transportando-a até suas casas em latas de cinco galões ou em panelas que acomodam em
suas cabeças.
Durante o tempo em que permaneci em Ariquemes deslocava-me com frequência à
tardinha para organizar minhas anotações e dormir. Procedia desse modo porque queria
aproximar-me mais de seus moradores e tanto quanto possível registrar novos
acontecimentos; mas nada acontecia de novo. As pessoas e a rotina do lugar eram
as mesmas. Todos os dias mulheres e crianças eram atendidos no posto de saúde.
Outras mulheres carregavam trouxas de roupa à cabeça, após terem sido lavadas no rio,
lá mesmo onde tomavam banho. Crianças brincavam em pequenos grupos com carrinhos de
madeira e bonecas de aspecto encardido, enquanto velhos conversavam ou realizavam
dentro de suas casas pequenos serviços. Um ou outro morador chegava de uma
pescaria trazendo alguns peixes - pacu, jatuarana - enquanto outro vendia palmas de
banana numa espécie de quitanda improvisada num canto da casa. Cães vadios circulavam
pelo descampado que limita o quadrilátero em torno do qual se erguem as casas. Lá adiante
eu via passar Eleutério, o único índio sobrevivente que alguém me dizia ser descendente
dos Ariquemes. A vila parecia mesmo ter parado no tempo tal a lentidão que eu sentia
naquelas tardes úmidas e quentes.
Mas eu pude observar que há por parte dos moradores um forte sentimento que os
prende ao lugar. Aliás, eu havia posto isso em dúvida logo que cheguei, pois nesses
quatro anos em que me ausentara pareceu-me que a vila havia sido transformada em
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
mais um bairro do novo Ariquemes. Não era assim. Pois aqueles moradores com quem
conversei só fizeram reafirmar esse sentimento de identificação com o lugar, sempre
lembrando que tiveram que lutar para defendê-lo contra as investidas da prefeitura que
insistia em destruí-lo usando até meios violentos, por isso o lugar parecia ser mesmo uma
espécie de refúgio daquela população que ali se juntava numa tentativa quase
desesperada de preservar seu passado. "ali me disse um velho morador - estão fundadas
nossas raízes. O nosso amor (está) dedicado todo naquele bairro; porque foram nossas
coincidências primeiras, de nossos primeiros passos quando chegamos do nordeste".
Vila Velha alinha-se assim a saga do seringueiro; simboliza a tradição; juntamente ali onde o
tempo está, por assim dizer, distendido no seio da nova ordem que dilacera os sentimentos
e espolia a memória.
Aspectos metodológicos
Convém notar desde logo que não estou interessado em, analisar aqui o quadro mais
amplo em que se dá o processo de colonização em Rondônia, nele incluída sua dimensão
econômica. De modo que as ocorrências observadas nesse nível possuem neste trabalho
apenas o valor relativo, pois se destinam a elucidar fenômenos de outra ordem. Assim,
quando recorro, por exemplo, à tentativa de quantificar a produção de borracha do
colono da região do MassanganaAriquemes, torna-se menos relevante o índice que
caracteriza tal produção do que a significação que essa, prática adquire para alguém,
como o colono do Sul, oriundo de urna cultura estranha à essa experiência. O mesmo
pode-se admitir com relação ao seringueiro - que embora mantenha sua atividade
tradicional - dedica-se hoje à produção de leite ou requeijão, além de naturalmente ter que
lidar com a criação de bois e vacas.
De sorte que meu interesse aqui se volta para o esforço de tentar compreender
a dinâmica do contato entre diferentes segmentos da sociedade nacional subordinada a um
enfoque de natureza mais ideológica. O contato entre essas populações estabelecidas
em "áreas de fronteira" compreenderá naturalmente as relações sociais que se dão
entre os diferentes grupos, mas a análise que devo realizar recairá especialmente na
dimensão ideológica dessas relações, ou seja, nas representações e na simbologia que
as acompanham (Cardoso de Oliveira, 1976:14).
A noção de fronteira que pretendo aqui recuperar ajuda-me a compreender, por
outro lado, a natureza do movimento populacional no âmbito da sociedade brasileira e, por
consequência, a própria dinâmica do contato a que me referi. Para tanto a fronteira será
concebida como um lugar essencialmente simbólico para onde se dirigem os homens a
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
fim de realizar seus projetos. Portanto, mais do que um mero espaço geográfico. a fronteira
seria por excelência o lugar privilegiado das novas construções sociais quando não se
converte em palco de conflagrações e tragédias. Como assinala Pierre Bourdier a fronteira
não é apenas produto de um ato jurídico de delimitação, mas ela "produz a diferença cultural
do mesmo modo que é produto desta" (1989:115). Ele diz ainda que fenômenos como a
"desertificação" - e conviria lembrar tantos outros semelhantes - estariam assim
submetidas à contribuição de fatores sociais, ao invés de constituirem meras "paisagens",
tão a gosto dos naturalistas (ibidem, pág. 115). Menos ainda, como ocorre em nosso País,
existiram os chamados vazios demográficos, recorrentes no discurso oficial que a pretexto
de realizar projetos destinados a acomodar populações ou a garantir nossa soberania, ao
contrário têm resultado no extermínio ou abandono de populações que de fato os ocupam.
O estudo de contato envolvendo diferentes culturas parece exigir assim emprego de
procedimentos bastante complexos, sobretudo se pretende considerar o sistema cultural
como um todo. "A focalização da cultura como objeto substantivo da investigação - diz
Cardoso de Oliveira - resulta na impossibilidade de estudar o "sistema intercultural" como
urna unidade com um grau relativo de autonomia, pois seria sempre difícil identificar no
exercício da pesquisa um sistema cultural "sincrético" porquanto originário da integração das
duas (ou mais) culturas em conjunção" (1978:84).
A meu ver este problema se agrava quando não ocorre de não estar lidando diretamente
com as chamadas culturas primitivas em contato com os segmentos da sociedade nacional.
Se nesse caso, como assinala o autor, corre-se o risco de fracionar a sociedade nacional
envolvente e a estudar as diferentes comunidades não-indígenas como se estivesse
estudando culturas singulares, mais difíceis se torna estabelecer uma metodologia que dê
conta de explicitar o contato entre segmentos pertencentes à mesma nacionalidade. Afinal,
no caso que temos em vista caberia indagar: o quê de fato constituiria o assim chamado
segmento "migrante" vis a vis os seringueiros? Estaríamos diante de evidências étnicas que
pudessem melhor caracterizá-los? Ora. os assim chamados "colonos do Sul", em sua maioria
descendente de alemães e italianos, como é sabido, provêm de diferentes áreas
geográficas e, culturalmente. são herdeiros de tradições que vieram da Europa no século
XIX, enquanto outros - também numerosos - a exemplo dos mineiros e capixabas, encontramse mais arraigados ao universo da assim chamada cultura brasileira. Portanto já nesse ponto
caberia esclarecer de quê colonos está se falando. Mas isso não se torna a meu ver
relevante. Vale dizer que temos que proceder a uma elaboração detalhada de culturas
particulares, o que mais me interessa aqui é observar o impacto que a colonização tem
produzido no âmbito das culturas locais, nelas incluída a do seringueiro. Nesse caso a
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
hipótese que tenho em vista apoia-se no pressuposto de que os seringueiros constituem
um segmento relativamente autônomo que através de gerações sucessivas vêm
desenvolvendo no interior da floresta uma experiência mais ou menos comum.
Assim constatamos a mesma dificuldade - já apontada por Cardoso Oliveira - de
tratar essas diferentes culturas como conjuntos globais ou "sistemas sincréticos". Mesmo
assim considero que a contribuição desse autor muito me ajuda a compreender essa
situação particular de diferenciação cultural. "Do mesmo modo - diz ele que, por exemplo,
a sociedade nacional é um sistema social suscetível de ser analisada através de sua
estrutura de classe, a situação de contato (...) pode ser analisada mediante o que denominei
fricção interétnica - o que seria o equivalente lógico do que os sociólogos chamam de luta de
classes." (1978:85). O pressuposto é que via de regra, as relações presentes nessas
situações são acompanhadas de conflitos decorrentes da exploração econômica e do
domínio político que um grupo exerce sobre o outro, ainda que tal processo não se coadune
com o parâmetro das relações de classe. Assim, embora não se trate em nosso caso de
verificar o envolvimento de sociedades indígenas frente a segmentos da sociedade nacional
- situação para a qual aquele autor dirige sua reflexão - sabe-se que a presença maciça de
populações migrantes nas chamadas áreas de fronteira tem criado tantas e tão graves
situações de conflito envolvendo grupos nacionais locais, que em muitos aspectos se
assemelham àquelas em que comunidades indígenas são atingidas. De sorte que,
mesmo reconhecendo-se serem os seringueiros um segmento nacional, o fato de terem
sido encontrados no interior da floresta onde justamente foram instalados os projetos de
colonização, trouxe-lhes tão sérias dificuldades quanto as tiveram as populações
indígenas - ainda mais se consideramos que a antiga estrutura fundiária regional não lhes
reserva quaisquer garantias, expondo-os assim aos interesses da empresa colonizadora.
Como veremos em outro lugar, há por parte dos migrantes um reconhecimento de que o
seringueiro constitui um obstáculo aos seus objetivos, fato este que transparece tanto
ao nível econômico em que, por exemplo, pretende-se privá-lo da posse da terra, como ao
nível ideológico em que certos estereótipos o comparam negativamente ao índio ou o
têm como um ser inferior.
"Esse povo que vem do Sul é querido aqui no Jaru. Agora quem vive aqui, que é filho
natural daqui eles desprezam. Faz de conta que não existe. O que vêm de Minas, do
Paraná, do Espírito Santo, é querido; têm tudo. E se tiver dinheiro então, aí é que eles
(autoridades) gostam mesmo. Agora os daqui, como não têm dinheiro eles desprezam; f az
de co nt a qu e é b ich o do ma t o, on ça, ve ado, ma cac o. O q ue el e s f azem é isso.
"(E36,18).
Aliás, como tem sido afirmada, a estigmatizarão sempre surge nessas ocasiões como
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
um instrumento eficaz no sentido de remover as minorias dos caminhos da competição.
Desta maneira a ocupação que os seringueiros têm feito de um determinado
território há mais de um século acabou assim expondo-os de maneira ostensiva aos olhos
do colono, nas circunstâncias em que se deu o processo de ocupação. Isso talvez já se
constitua numa razão para justificar a necessidade de se estudar o contato que envolve
essas populações nacionais. Esta me parece ser, aliás, uma tarefa teórica que se impõe
para se entender a própria dinâmica da sociedade nacional. Em termos práticos
naturalmente para efeito de análise, eu incluiria num "sistema", de um lado os
seringueiros e do outro os colonos, apesar das diferenciações que possam existir no
interior dessas categorias sociais. Torna-se assim secundário, por exemplo, se as
técnicas produzidas no cultivo do solo foram introduzidas por colonos paranaenses ou
gaúchos, pois o que desejo investigar é em que medida a agricultura como um modo de vida
tem afetado aqueles padrões locais em que se mesclam elementos da tradição sertaneja
nordestina com os que foram adquiridos no convívio com a natureza mais primitiva da
Amazônia.
Em busca dos seringueiros
Depois de esperar alguns dias em Ariquemes consegui enfim transporte e fui até à
linha C-40 do Projeto Marechal Dutra. Para isso utilizei-me na viagem - 40 km de Ariquemes
- de um pequeno veículo adaptado de uma pick-up acionada por um motor da marca
Tobatta, de um cilindro de 11 lota de força. Por andar vagarosamente - cerca de 12 km por
hora - e ser utilizado na roça o pessoal quase como um ser vivo, chamando-o de "jerico" ou
"Jerico-agrico". O seringueiro em cuja casa permaneci alguns dias afirmou que "aquela
invenção" já teria vindo prontinha de Santa Catarina! E apesar de demonstrar certo desdém
por essa inovação ele não deixa de reconhecer sua grande utilidade. Diz assim que quando
o te m par ado e m c as a ta l peç a fa z fu nc ionar u m ger ador c apa z d e
f o r n e c e r l u z o u captar água do poço. Observou então que o comprou com o dinheiro
de 10 alqueires de terra que vendeu do seu lote de 42 alqueires. Eu notei assim que tal
"Jerico" se inclui na nova estratégia de sobrevivência que o seringueiro traçara para si
próprio em decorrência da colonização.
Devo designar o seringueiro de quem estou falando. Ele se chama Valdemar
Andrade de Almeida. Tem 42 anos e nasceu ali mesmo na região do antigo seringal São
Sebastião, onde mora até hoje numa casinha de madeira com sua mulher e três filhos.
A gleba de terra na qual possui hoje um lote de 100 ha fazia parte dos antigos
seringais Guarani e São Sebastião e, com a instalação do projeto implantado pelo
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
INCRA, sua antiga casa ficou incluída nos limites de outro lote. Esses fatos como verão mais
adiante, só lhe trouxe prejuízos e aborrecimentos, além, de expressar bem as dificuldades
que os seringueiros enfrentam. Hoje Valdemar procura conciliar o trabalho da seringa com o
da agricultura e com sua colaboração, procurei fazer um levantamento das atividades
que desenvolve nessas duas áreas.
Projeto Marechal Dutra - C-40 Gleba no. 34 - Lote nº 33 Valdemar Andrade de
Almeida Produção de Janeiro a Outubro de 1989
Agricultura
PRODUTO
Feijão
PLANTIO
-
PRODUÇÃO
80 Kg
Arroz
15 Litros
15 sacos de 60 Kg
Milho
Mandioca
16 Litros
5.000 Covas
16 sacos de 60 Kg
160 sacos de 60 Kg
Amendoim
6 Litros
6 sacos de 60 Kg
Café
Cana-de-açúcar
1.000 pés
100 Covas
-
Cacau
50 pés
-
Banana
1.000 Covas
600 Cortes
Nota: Vendeu-se uma parte maior da produção de farinha e de banana.
Antes de relacionar a produção de borracha podemos de fato notar que suas
atividades se estendem a outros gêneros, incluindo a criação de aves e animais, be m
como uma produção doméstica de frutas. Indiquemos estas primeiramente e em
seguida os animais e as aves.
FRUTAS
Laranja
QUANT. DE PÉS
30
Tangerina
Goiaba
25
10
Beribá
10
Abacate
08
Jaca
08
Cupuaçu
Limão
05
05
Azeitona
03
Pupunha
Coco
Ingá
TOTAL
02
06
03
115
Vale notar que algumas dessas frutas, como o cupuaçu, a pupunha e a Ingá são nativas da
região, mas que o seringueiro planta em seu novo sítio por apreciá-las em seu consumo já
tradicional.
35
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
ANIMAIS
Gado
Touros
Vacas
Novilhos
TOTAL
QTD. DE CABEÇAS
01
03
03
07
Obs.: As vacas produzem em média oito (08) litros de leite por dia. Parte desse leite - como me informou - é empregada
para fazer requeijão, cuja técnica diz ter aprendido com seus vizinhos mineiros.
OUTROS ANIMAIS E AVES
QUANTIDADE
Porcos
Galináceos
Cães (caçadores)
07
13
06
Obs.: Possuía na verdade 100 galinhas, mas a maior parte havia sido atingida por doença.
Vejam-se os nomes dos cães caçadores: Jaime, Campeiro, Campino, Tupã, Bicó
e Pretinha. Eles aparecem sempre com destaque nas ocasiões em que contam
casos de caçadas perigosas ou aventuras praticadas no interior da mata. Além disso,
esses animais reforçam os aspectos de intimidade que se faz notar em torno do ambiente
da casa do seringueiro, tal é o envolvimento que se tem com eles.
Borracha - (Lugares onde excede a atividade lucrativa
LOCAL
Nº DE ÁRVORES
Lote nº 33 (Próprio)
30
Lote do Sr. Vitório Amaral
80
Lote do Paulo “Alemão”
90
Total de Árvores
200
Deve-se notar que Valdemar corta seringa três ou quatro dias por semana e produz
em média 70 Kg de borracha por mês no período de abril a novembro/ Acrescente-se ainda
que o quilo da borracha em outubro de 1989 estava cotado em Ncr$ 4,50. Seu preço em
maio de 1990 era Cr$ 55,00.
Numa ocasião tive a oportunidade de observar o desenvolvimento do seu trabalho. Assim,
mostrando-me uma árvore de seringa, ele explicou-me que para extrair o látex precisa fazer
quatro incisões ("traços") na árvore, utilizando-se de uma faca apropriada - tipo sabong
- consumindo nesta tarefa de um a dois minutos. Explicou-me ainda que haja
alguns anos atrás ele fazia apenas uma incisão em cada árvore e hoje procede dessa
forma porque o látex tomou-se mais fraco devido ao esgotamento das árvores. Por isso
ele afirma que com, quatro traços - que na árvore forma um desenho parecido com
uma espinha de peixe, nome dado a este tipo de corte - a seringueira acaba sendo
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
maltratada. Como ele mes mo diz "a seringa hoje vive esbagaçada (pois) não tem
regulamento", lembrando assim as exigências feitas nos seringais antigos. De modo que
a única forma que encontra para contornar esse problema é explorar durante algum tempo
só um lado da árvore, deixando o outro, como ele diz. "descansando", até que se recupere
cinco ou seis anos. Essa situação, aliás, é comum nessa área, como pude ver mais à
frente na Colocação Coelho, onde o Sr. João Lolô precisa utilizar-se de uma escada para
cortar a parte mais alta das árvores, devido à mesma causa relacionada com seu
esgotamento.
É fácil notar que a atividade que Valdemar exerce como seringueiro foi substancialmente
reduzida. Pois as 200 árvores que ele hoje consegue explorar no seu próprio lote e em lotes
vizinhos corresponde a pouco mais de uma estrada de seringa. De modo que se ele fosse
se ocupar apenas em cortar seringa precisaria dispor de pelo menos 450 árvores, que
corresponderiam a três estradas que exploraria alternadamente durante a semana. Se
fôssemos assim proceder ao cálculo dessa produção certamente concluiríamos que a
borracha hoje constitui para ele uma atividade apenas acessória - embora sua colocação no
mercado seja mais fácil propiciando-lhe assim dispor de algum dinheiro. Seu preço,
pelo menos quando lá estive - possuía maior garantia do que os produtos agrícolas. Esse
fato, aliás, vinha estimulando a que colonos se dedicassem cada vez mais a cortar seringa.
Cabe observar, porém, que malgrado essa atividade tenha deteriorado nesses
últimos anos, Valdemar continua a identificar-se como seringueiro. Assim durante a semana
ele sai de casa quase todos os dias muito cedo, com sua roupa característica de
seringueiro, toda respingada de látex coagulado, formando manchas escuras, poronga à
cabeça, a faca de um lado e a espingarda do outro, em direção às estradas onde vai repetir
sua faina costumeira.
Os colonos vizinhos
Nu ma
das
oc asiões
em
que
estiv e
c onv ersando
com
Valde mar,
acompanhava-nos dois jovens irmãos mineiros, seus vizinhos, sempre muito afáveis
e, ao mesmo tempo, interessados nos assuntos que desenvolvíamos. Assim, nu m certo
mo mento da conversa em que Valdemar dis corria sobre o desmatamento que
atinge aquela área, um deles pôs-se a interpretar o que o seringueiro dizia com
tristeza: "Eu acharia bom se tivesse um lugar aqui que eu só mexesse coro seringa. Um
lugar assim que não fosse desmatado, onde tivesse muito peixe, muita caça e muita
seringa pra eu+cortar". E o colono logo observou dirigindo-se a mim: "Eu acho qu'eles
num acha bom por causa desses cara mais chegado que vêm de fora; que vai
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
derrubando tudo, a seringueira, a castanheira, (e) aí vai ficando ruim pra eles e pra
nóis também". Demonstrava assim solidário para com o vizinho seringueiro ao mesmo
tempo em que revelava dedicar-se ele mesmo ao trabalho de cortar seringa. Por isso
ousei lhe indagar se não desejaria tornar-se seringueiro de uma vez. "Pode até virar,
né?", ponderou. E logo observou: "(Se) já tão cortando seringa, já são seringueiro.
Agora, só cortar seringa num tem jeito, porque já tão ficando pouca seringa".
Pode-se ver assim que há por parte do colono um claro reconhecimento do novo
trabalho que executa além de manifestar inequívoca simpatia pelo seringueiro.
Evidentemente este fato é um sinal de que melhoram a cada dia as relações entre
eles; talvez por viver ali um destino comum tão próximo da pobreza e do sofrimento
que os igualam. Naquelas circunstâncias, aliás, o colono parece até enfrentar um
sofrimento maior devido a sua desadaptação ao meio ambiente que o torna presa fácil de
doenças. Mas as coisas nem sempre foram assim. Valdemar não esquece a história de
uma colocação de seringa que possuía na beira do rio, com sua casinha bem construída, o
pomar em volta, os animais no terreiro, e que a perdeu quando o INCRA chegou ali
fazendo demarcações. "Eu tinha uma casinha lá de oito metros de comprimento por cinco
de largura, coberta de palha, mas uma cobertura bem feitinha assoalha bem feita, toda
cercada de paxiúba e açaí... Então quando "Seo" Zé (irmão Gentil) comprou o lote, aí nós
fomos bater a lateral e ficou prá eles". Ele lamenta também ter perdido o pomar e outras
benfeitorias que lhe exigiram tanto trabalho e sacrifício. Ouvindo-o, tem-se a impressão de
que foi ele arrancado do lugar em que vivia há tantos anos. Para ele a causa de tudo prendese ao fato de que "naquele tempo num tinha projeto de linha aqui; de cada qual ter o seu
lote. " E continua sua narrativa, lembrando o esforço que ele e seu irmão (João), também
seringueiro, fizeram em vão para permanecerem próximos em lotes vizinhos.
Na verdade a colonização não só produziu situações absurdas como essa,
desorganizando o espaço em que vivia o homem local, mas chegou mesmo a subverter o
significado que dava a sua relação com as coisas que o rodeavam: a terra, os rios, as
plantas, os animais etc. Tratava-se de uma significação que desenvolveu com seus pais e
que foi sendo elaborada passo a passo, ao longo dos anos, desde o tempo em que foram
deslocados do Nordeste para a Amazônia para produzir a borracha. Havia os patrões e o
barracão, é verdade, mas isso não impedia que fossem construindo nos espaços
intersticiais das relações, uma experiência de liberdade e de uso pelo da natureza_ Assim.,
somente através dessa compreensão, será possível o entendimento da reflexão que o
seringueiro desenvolve:
"Nóis nunca pensava em ser dono de terra. Aonde a gente cortava seringa, agente falava assim: por onde
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
tinha aquelas estradas de seringa tudo era da gente” (V. A.).
Essa é enfim a memória sofrida - e ainda muito recente - que se desenrola em torno do
que vem ocorrendo ali. Em alguns momentos o seu lado mais doloroso é substituído
cedendo lugar à amizade e à cooperação; em outros o inconformismo torna-se indisfarçável:
"... a gente tem aquela confiança de mexer com a seringa... acha que tá liberado ainda pra gente; (mas) aí os
cabra vão e carrega a borracha da gente. Já aconteceu de eu ir juntar minha borrachinha e chegar lá
nem as lata num tava.”' (V. A.)
Pouco depois de ouvir denúncia tão contundente - quando então os dois rapazes já
haviam se retirado - chega alguém procurando Valdemar. Era uma filha do seu vizinho Gentil,
pais dos jovens, que lhe trazia um pedaço de carne de paca. Só então soube que eles
costumam trocar alimentos desse gênero, sobretudo naquelas condições de desmatamento
em que cada dia se torna mais difícil obtê-los em caçadas. Assim, eu pus-me a especular
que urna coisa é a história mais larga que continua a lhes preparar armadilhas perigosas, e
outra é esse dia-a-dia que em certas ocasiões lhes impõe o exercício de reciprocidade.
Embora se saiba que unia fração dos colonos explore borracha em seus sítios, torna-se
difícil avaliara situação em que se desenvolve essa atividade entre eles. Mesmo assim,
através de contatos com compradores de borracha de Ariquemes, pude considerar
que essa produção é pequena, não devendo ultrapassar a faixa de 10% do que os
seringueiros produzem. Baseado nas informações que colhi vejamos a produção global
de uma área do município de Ariquemes.
MUNICÍPIO DE ARIQUEMES - 1989 PRODUÇÃO (PARCIAL) DE BORRACHA
ÁREA
No. DE SERINGUEIROS
PROD.
Machadinho
Campo Novo
Massangana e Candeias
300
80
100
24.000
6.400
8.000
MENS.-
Fonte: dados de campo. Ariquemes, out./1.989
Observações: 1) A produtividade varia naturalmente de uma para outra área,
salientando-se que cada seringueiro produz em média 80 kg de borracha por mês, de abril a
novembro; 2) Meus informantes observam ainda que cada colono deve produzir de 10 a 20
kg de borracha por mês, embora não saibam dizer quantos se dedicam a essa atividade
no período correspondente ao fábrico; 3) Embora precários, julgamos que esses dados
nos dão uma idéia desse novo campo de trabalho para o qual se contam pessoas que até
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
bem pouco tempo ignoravam e não o incluíam em suas estratégias de sobrevivência; ao
mesmo tempo em que aponta para a transformação operada pelo colono em seu contato
com o novo meio.
Aliás, é interessante observar como vem se dando entre colonos
-
especialmente entre os mais jovens - o aprendizado da seringa. Disse-me assim este
rapaz de 20 anos:
"Nóis pensava que eles cortava seringa na mata era com facão ou faca de cozinha; mas depois que
nóis cheguemo o filho do Valdemar chamou nóis pra cortar uma seringueira ali. Aí nóis foi aprender
com ele." (On.).
Deve-se ressaltar que esse aprendizado não se restringe apenas ao corte da
seringa. Pois na verdade se realiza juntamente com outras atividades que fazem parte
da prática tradicional do seringueiro, como por exemplo; caça e pesca:
"Aprender a pescar sóis aprendeu foi com eles também. Nóis ia no rio e num pegava peixe; agora se
nóis foi; nóis já pega! Aprendemo a caçar e fachiar. "(On.).
O seringueiro como se vê, vai pouco a pouco introduzindo o recém chegado naquele
novo meio, ensinando-lhe o manuseio de instrumentos e o domínio de técnicas com os
quais deve retirar da natureza os recursos que necessita. Mas não é só. O seringueiro
ensina-lhe também a linguagem local, ou, em outros termos, insere-o na cultura em que ele
mesmo foi criado. Assim no instante em que o colono se referia ao modo de caçar à noite
com fachiadeira, ele logo se apressou em explicar:
"Fachiar é caçar de noite sem cachorro; só com a lanterna e a espingarda. A palavra fachiar
nóis conhecia do jeito como poronga... A poronga que a gente fala é uma lamparina, dentro de uma
latinha, com um espelho fazendo sombra pra clarear só na frente... Então a gente andava assim com
aquilo na cabeça e a espingarda na mão... Hora que a gente visse qualquer bicho, a gente já via os olhos
dele brilhar no reflexo da luz. Aí a gente ia devagarinho até chegar na posição de dar o tiro!" (VA.)
Conclusão
Avaliando-se o resultado geral desse trabalho é possível verificar que a
atividade em Rondônia persiste, apesar de todas as dificuldades decorrentes da
colonização que se instalou ali nesses últimos vinte anos.
Aliás, segundo dados da SUDHEVEA, a produção de borracha em Rondônia
cresceu nesses últimos anos, passando de 5.042 t em 1978 para 10.612 t em 1985;
sendo que tal produção corresponde ao período em que triplicou o número de
migrantes, ind ican do des se modo sua res istência face aos investimentos
agrícolas mais consentâneos com os objetivos da colonização (1980=49.205
migrantes/ 1986=165.899 migrantes. Fonte: SEPLAN - Governo do Estado de
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Rondônia).
Essa
permanência,
contudo,
vem
se
dando
aos
atropelos,
devido
principalmente aos transtornos da desorganização espacial e o grau de violência que
acompanham a instalação dos projetos de colonização.
Ressalva-se ainda que algumas dificuldades tem se interposto a essa
continuidade, pois, como pude observar, a manutenção da atividade extrativista se
sustenta, grosso modo, no esforço de seringueiros mais velhos - 35 a 45 anos.
Percebe-se desse modo que a geração mais jovem que constitui os descendentes
desses atuais seringueiros reluta em seguir o aprendizado de seus pais,
inclinando-se a procurar novas ocupações nas cidades que hoje são ali atingidas mais
facilmente.
A situação que relatei envolv endo o Proje to Marechal Dutra em Ariquemes
mostra, por outro lado, as possibilidades e os limites do extrativismo em Rondônia. Pois,
como vimos, os seringueiros
tratam de estabelecer estratégias
habilidosas
de
sobrevivência, buscando o convívio com os que vêem de fora. Assim, em
circunstâncias em que se vêem praticamente encurralados, decide-se a não opor
qualquer resistência, utilizando-se de mecanismos que favoreça a aproximação com os
colonos.
Paralelamente, ao lado de motivações que se encaminham nessa direção, pode-se ver
ali entre seringueiros e colonos oriundos de diversas procedências a manifestação de uma
clara diferenciação cultural; E isto torna possível discernir com segurança a
particularidade dos campos simbólicos em que se movem os agentes sociais.
Destarte, as representações que elabore, acercado mundo em que vivem guardam,
entre si, discrepâncias essenciais. Assim, se tomarmos como referência, por exemplo,
a linguagem observou que a que mais se identifica com a do colono penetra com maior
densidade no espaço da comunicação, algumas vezes competindo com a linguagem local,
outras sufocando-a ou até mesmo suprimindo-a. Um exemplo curioso dessa disputa pode
ser dado através da utilização do termo Quiçaça, introduzido pelos colonos e que hoje
os seringueiros empregam-no corretamente substituindo a costumeira expressão Capoeira,
embora a palavra "quiçaça" não pareça ter para eles o mesmo sentido que os colonos
lhe atribuem. Pois enquanto parecem empregá-la mais como um signo relacionado com as
condições físicas do lugar, os seringueiros manipulam-na como um símbolo ligado à
violência que se abate sobre os homens e sobre a natureza. Como diz Bourdier: “As lutas
a respeito da identidade étnica ou regional (...) são um caso particular da luta das
classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e crer, de dar a conhecer e de fazer
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
conhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por meio, de fazer
e desfazer os grupos" (1989:113). De qualquer modo, a palavra Quiçaça pode ser utilizada
como categoria linguística de transição, capaz de tornar compreensível o processo de
transformação que ali se desenrola.
Outro exemplo, ainda referindo à linguagem, refere-se à denominação Luís
Caxeiro, que a mim mesmo causou embaraço. Eu havia chegado numa segunda viagem à
casa do seringueiro Valdemar (de quem muito tenho falado neste trabalho) e, não o
encontrando nem a sua mulher, acabei sendo recebido por seu filho menor de oito anos, que
muito loquaz logo começou a me ressaltar sobre a morte de um tal Luís Caxeiro. Assim,
enquanto eu me barbeava assustado num canto da casa, ele ia explicando ter sido tal
"indivíduo" morto a golpes de facão, tendo o matador lhe cortado a cabeça e lançando-a
ao mato! Eu não podia imaginar cena mais violenta. Indaguei-lhe então se sabia dos
motivos que levaram o "assassino" a agir daquela forma, desejando desse modo inteirarme melhor dos acontecimentos. De sorte que depois de alguma insistência - pois ele não
entendia o que eu lhe perguntava - obtive do menino uma resposta titubeante. "É - disse-me o
menino - eu acho que ele queria comer e foi comido". Acreditei assim que a tragédia fora
mesmo consumada. Um pouco mais tarde, quando então seus pais já haviam chegado da
roça, eu lhe perguntei sobre o que realmente acontecera com o tal Luís Caxeiro, deixandoos surpresos com a revelação que lhes fazia. Tão logo, porém, pronunciei esse
nome, percebi o alívio e a descontração que lhes acompanhava o sorriso. Pois só então
vim, a saber, que Luís Caxeiro é o termo que se emprega hoje ali para aquilo que antes
conhecia como Porco-espinho!
Em outra ocasião vimos como os colonos utilizam termos locais como "fachiar", com
o qual descreviam as caçadas que realizam durante a noite, mostrando assim a
emergência de uma linguagem nativa que ao mesmo tempo assinala um intercâmbio de
relações. Mas a linguagem para o seringueiro parece denunciar o limite de suas
resistências. “Veja-se, por exemplo, o que nos diz Valdemar acerca de uma planta
nativa conhecida tradicionalmente como açaí, cujas amêndoas produzem um delicioso
vinho e que o colono a abate para extrair-lhe o caule para ser usado em outro tipo de
alimentação.”... quando eles chegaram aqui tinha um negócio de chamar palmito! Palmito!
Mas nóis num sabia o que era palmito!... O palmito que eles fala é o açaí que nóis falava...
E uma comida boa para eles o palmito... eles derrubam, tiram a cabeça e comem no lugar
da carne; é uma mistura."
De sorte o que há ali entre os colonos e seringueiros não é uma simples adequação
de palavras, ou como diria Wittgeinstein. "jogos de linguagem" (1984: 15), mas as
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
palavras como as coisas indicariam claramente o sentido da continuidade ou da
mudança.
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WOORTMANN, Klaas. "Trabalho Assalariado, Família e Reciprocidade”. Mime o . S/d.
*Carlos Corrêa Teixeira. Profº. de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
UMA ABORDAGEM JURÍDICA DOS
PRINCÍPIOS SOCIAIS DA VIOLÊNCIA
Antônio Guimarães Brito *
Resumo: O homem é um ser de relação, condição básica de
sobrevivência para uma espécie frágil, sob o ponto de vista natural. Em
um mundo de transformações e constantes ameaças, o ser humano
garantiu sua sobrevivência na força social de seu grupo primitivo.
Assim não podemos discutir o homem sem considerarmos a sociedade,
pois é inevitável a inteiração profunda de um e outro. A violência é um
problema social e sob esse ponto de vista é que deve ser abordada, ou
seja, a violência deve ser estudada a partir da condição social do ser
humano.
Palavras – Chave: Sobrevivência, Transformações, Primitivo, Violência
e Humano.
Abstract: The man is a relationship, basic survival condition for a fragile
species, as far as natural. In a world of transformations and constant
threats, the human being ensured their survival in the strength of its
primitive social group. So we cannot discuss the man without
considering the society, it is inevitable to inteiração deep one and
another. Violence is a social problem and in this respect is that must be
addressed, i.e. the violence must be studied from the social condition of
the human being.
Keyword: Survival, Transformations, Primitive, Violence and human.
O homem é um ser de relação, condição básica de sobrevivência para uma espécie
frágil, sob o ponto de vista natural. Em um mundo de transformações e constantes ameaças,
o ser humano garantiu sua sobrevivência na força social de seu grupo primitivo. Assim não
podemos discutir o homem sem considerarmos a sociedade, pois é inevitável a inteiração
profunda de um e outro.
A violência é um problema social e sob esse ponto de vista é que deve ser abordada,
ou seja, a violência deve ser estudada a partir da condição social do ser humano.
Na sociedade há um jogo de forças (pressões, tensões e rupturas) e, nessa realidade
da mobilização social é que vamos encontrar as raízes da violência. O princípio social da
violência, como fator na sociedade, se faz na percepção do homem como agente social
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
de manifestação social. O princípio social da violência interage no movimento das
forças sociais, permitindo estendermos a violência, sem sombra de dúvidas, como fato
social.
A conduta violenta é resultado de determinada pressão exterior sobre o agente. A
motivação é essencial para o desencadeamento da violência. A violência é uma
questão de relação entre o indivíduo com o mundo. O indivíduo contrariado em sua
relação com o mundo, e sentindo-se pressionado por circunstância indesejada,
desencadeia determinada descarga abrupta, mediante, sempre motivação exterior. Há, na
violência, um desejo de resolução, mesmo de libertação.
Quando a violência como fato social desencadeia a ruptura da coesão social, a
sociedade se sente ameaçada
A violência social nasce das diferenças sociais. As diferenças, quando agudas,
ameaçam a coesão do grupo, motivando na própria sociedade o desencadeamento da
violência como resposta a essa ruptura indesejada. A violência social é a descarga
desse descontentamento, quando a sociedade sente-se ameaçada em sua coesão pela
presença das desigualdades. Então, se a violência é fato social, sua origem está na
desigualdade social.
Uma sociedade se autodestrói quando perde a coesão social de seu grupo. Essa
coesão é medida por valores, inteirações e mobilidades. O homem está seguro em uma
sociedade coesa, recordando que, sem a sociedade, o homem está ameaçado em sua
condição transformadora.
Quan do as forças soc iais em mov imento nã o encontram u m relacionamento capaz
de interagir os discursos entre si, a mobilidade social se dissolve em direção ao caos. Isso
acontece quando as diferenças entre os agentes sociais assumem a forma de barreira
intransponível, quebrando a corrente de relacionamento social.
A desigualdade pode assumir várias faces, como a racial, a econômica, religiosa,
entre outras. Algumas diferenças, incorporadas nas relações sociais, dependendo do grupo,
são digeridas, fazendo com que se auto-regule, dentro do contexto social. Por exemplo: Há
determinados grupos cujas desigualdades religiosas não ameaçam a sua coesão social,
pois convivem harmoniosamente entre si, tolerando-se mutuamente. Outros, porém,
são incompatíveis, como palestinos e judeus, hindus e muçulmanos.
Quanto menor a desigualdade, maior a coesão social e mais pacífica as relações
entre os seus agentes; sendo o inverso verdadeiro; a maior densidade de desigualdade,
mais violenta a sociedade.
A formação da sociedade brasileira, levando em consideração seu processo
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
formativo, está sustentada em duas colunas muito bem plantadas na construção histórica: o
latifúndio e a mão-de-obra escrava.
Os 400 anos de escravismo e os primórdios das capitanias hereditárias e sesmarias
criaram um retrato mais ou menos definido, refletindo nas estruturas de formação social.
O trabalho escravo, a apropriação sobre o esforço alheio, o servilismo e o favoritismo
estão estreitamente vinculados aos traços colonialistas de uma sociedade sustentada
quatro séculos sobre o escravismo. A história, mesmo aberta às transformações, é
redundante em suas manifestações sociológicas.
A multiracialização da sociedade brasileira adaptou-se desveladamente no
comportamento do brasileiro, encontrando suas próprias condições de sobrevivência social.
As desigualdades raciais não ameaçam a coesão social brasileira, graças a uma relação
aceita no entrosamento mesmo, sexual, entre seus agentes. A mulata brasileira,
exportada como símbolo sexual da sociedade brasileira, é um alto significado
sociológico do resultado dessa adaptação multiracial.
Se a violência é fato social e a origem da violência social está nas desigualdades
agudas entre seus agentes, a violência na sociedade brasileira tem como responsável as
desigualdades econômicas, ranço histórico de conotação escravocrata.
Nos extremos mundos da desigualdade econômica brasileira se encontra a origem da
violência social generalizada. Insustentável é a sociedade que vive pressionada por
extremos sociais. A desigualdade econômica, quando chega a medidas terminais, ameaça a
própria coesão social. O Brasil está dividido em Estados antagônicos e esta relação oposta
em sua lógica de reprodução vai transformando o meio social em acirrado campo de
confronto entre as entidades dispersas da sociedade.
A diferenciação econômica é inevitável em uma sociedade de classe, sustentada em um
modelo capitalista de produção, porém, a desigualdade econômica, quando se projeta em
uma distância larga de penetração, põe em risco a perpetuidade dos laços sociais. A miséria
de milhões é insuportável violência social. O organismo social não resiste a pressões tão
intensas.
Todas as camadas sociais se tornam vulneráveis quando a sociedade se encontra
em estado convulsivo e a violência social está como um sinalizador desse estado
doentio.
O primeiro sinal perceptível da dissolvição da coesão social é a desproteção
da família, levando as famílias às ruas e estas àquelas.
A família, guardiã das identidades e reprodutora dos valores, é invadida pelo calor
desassossegado das ruas, desagregando a peça essencial de formação social. A violência
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
se estende das ruas aos lares porque a realidade de ambas se aproxima, tornando-se uma,
continuidade da outra.
De que forma o Direito, organizador formal da sociedade e regulador dos diálogos
sociais, deverá se manifestar diante da disseminação da violência na sociedade? Como
punir a violência e quais as políticas preventivas a serem adotadas em nosso sistema
jurídico?
Em tempos de violência pensamos em justiça. Nesse diálogo entre violência
social e a prestação jurisdicional do Estado, é preciso evocar o juízo de justiça, para que
não se perca esforços e nem se alimente mais violência na sociedade.
Meramente punir, castigar e reprimir tornou-se insuficiente em uma prática de
justiça. O Direito pós-moderno está muito mais preocupado em uma teoria de riscos do que
de culpa, em uma maior prática preventiva do que punitiva. É nessa perspectiva de Direito
Societário que discutimos a violência.
Justiça é incompatível com miséria. Enquanto houver desigualdades extremas,
qualquer pretensão de justiça é o livre exercício da injustiça. Considerando as
insuportáveis condições de sobrevivência, de uma multidão de miseráveis, o braço da justiça
se transforma num gesto único de maldade de uns sobre outros. A sociedade vive em
mundos distantes e as regras de sobrevivência não obedecem aos mes mos padrões.
Nesse panorama de desigualdades existenciais, como aplicar a justiça em condições
injustas?
Justiça é condição de vida decente para todos. O Direito, corno principal articulador
das relações sociais, deve participar decisivamente nesse processo de pacificação social.
O Direito está para a violência como a medicina para a doença e, nesse sentido, é
redobrada a função pacificadora do Direito. A violência social é campo de operação do
Direito, pois a precípua missão da ciência jurídica é tornar a convivência social possível, em
suas relações.
Injusto punir o delinqüente e silenciar quanto as raízes da delinqüência. O bom
Direito ensina que em tempos de violência as regras jurídicas devem intervir nos
processos geradores da violência. Precisamos do cumprimento de regras jurídicas
mitigadoras das tensões sociais.
É essencial aos operadores do Direito a visão social da violência, pois somente nesta
perspectiva é que encontraremos uma prática justa do Direito, criando condições favoráveis
ao combate da violência.
Políticas geradoras de emprego, combate ao analfabetismo, melhora das condições
de saúde, são preocupações ativas do Direito. O Direito, em uma acepção de justiça
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
social, deve intervir nas diversas políticas sociais, tendo como finalidade resguardar a paz na
sociedade.
A ciência jurídica, em sua prática de justiça, precisa ir além da tarefa punitiva,
reformulando as próprias direções políticas em um sentido de bem comum. Conceitos
jurídicos, se antes definidos, não asseguram as condições esperadas de pacificação social.
As mudanças na sociedade exigem princípios publicistas, na órbita de um Direito
societário. A sociedade para sobreviver precisa s er tratada como u m todo,
revogando n oções utilita ristas e individualistas.
A
violência
atinge
todas
as
camadas
sociais,
considerando
que
as
possibilidades econômicas já não conseguem apartar uns dos outros. Poderíamos
acrescentar que a violência, como um fato social, trata-se de um mecanismo de
autodestruição da sociedade, quando as condições de sobrevivência tornaram-se escassas
para uma quantidade significativa de seus agentes sociais.
A mais nefasta injustiça para o bom Direito é a justiça para alguns. Justiça é para
todos. Quanto mais injustas as relações sociais, maiores a violência entre seus agregados,
pois como já afirmamos, a violência encontra suas origens nas desigualdades extremas de
seus agentes. Naturalmente, as diferenças sociais existem e m si, decorrentes de uma
tradição histórica desigual. Essas diferenciações não são necessariamente injustas
quando respeitadas as condições de decência. Tornam-se, porém, injustas quando
assumem desigualdades extremas, rompendo qualquer possibilidade de diálogo social.
Bem esclarece Pegoraro (1995: 107):
"Cabe ao princípio de justiça social administrar as desigualdades históricas. Mas, in lime, a justiça Pião
admite que as desigualdades sejam injustas. Injustiça social consiste: a) Em negar a alguém a oportunidade
progredir em sua vida; b) Em criar estruturas de exclusão; c) Em evitar a criação de estruturas de promoção
das pessoas. Numa palavra, é suma injustiça reprimir os talentos das pessoas"
Qua ndo discutimo s jus tiça, em prática do Direito, fazemo s considerações
éticas. A relação social, como necessidade humana, está posta à maneira de um contrato,
entre direitos e deveres sociais.
Os deveres existem dentro da sociedade com a finalidade de garantir direitos, pois o
objetivo da relação social em si é satisfazer o destino humano. A ordem social justa é
aquela que distribui eqüitativamente a relação de direitos e deveres. Somente nesse sentido
o Contrato Social se cumpre e a prática de justiça acontece. A violência social, nesse aspecto
contratualista, é a conseqüência do descumprimento do Contrato Social, na política injusta
de exclusão de direitos.
Leite Tavares opus Kant define (1996: 75):
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
A verdadeira relação jurídica consiste na relação entre homens com direitos e deveres. Quando alguns
homens só possuem deveres, tornam-se sem personalidade, como servos e escravos. Disso deflui que a
relação jurídica constitui uma reciprocidade entre o dever como cumprimento da lei e o direito como
faculdade de obrigar ao cumprimento.
A violência enfraquece os laços sociais, ameaçando a sobrevivência da sociedade.
Considerando o fato incontestável de que o homem vive em sociedade, sempre
viveu e só nela pode viver em sociedade e que a própria existência da sociedade é um
fato primitivo e humano, a dissolvição da relação social agride o homem em suas
estruturas mais profundas, daí a gravidade da violência, em sua ameaça de destruição.
Importante a lição de Duguit (1996:25):
"O homem vive em sociedade e só pode assim viver A sociedade mantém-se apenas pela solidariedade
que une seus indivíduos. Assim puna regra de conduta impõe-se ao homem social, pelas próprias
contingências contextuais, e esta regra pode formular-se do seguinte modo: não praticar irada que
possa atentar contra a solidariedade social sob qualquer das suas, formas."
A
soc iedade
so men te
estará
sa lv a
da
v iolên cia
qu ando
su as
desigualdades diminuírem, a prática da justiça se cumprir e a relação de direitos e deveres
forem distribuídas eqüitativamente. Enquanto prevalecer a miséria, políticas de exclusão,
práticas injustas na defesa de interesses, todos os indivíduos da sociedade estarão
incessantemente ameaçados e a tensão social atingirá forças incontroláveis. Para sermos
salvos é necessário que todos atinjam condições mínimas de decência. Aí está o desafio
jurídico do novo milênio: humanizar o próprio homem.
Bibliografia:
ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito, SP. Ed. Saraiva, 1996
ARISTOTELES. Obra Jurídica, SP. Ed. Ícone, 1997
CARVALHO, Amilton Bueno. Magistratura e Direito Alternativo, 4ª edição, RJ, Ed. Luam,
1997 DILTHEY, Wilhem. Sistema da Ética, SP, Ed. Ícone, 1994
DUGUIT, León. Fundamentos do Direito, SP, Ed. Ícone, 1996
HEGEL. Princípios da Filosofia do Direito, SP, Ed. Ícone, 1997
LEITE, Flamarion Tavares. O Conceito de Direito em Kant, SP, Ed. Ícone, 1996
NETO. A. L. Machado. Sociologia Jurídica, SP. Ed. Saraiva 6ª edição, 1987
PEGORARO, Olinto. Ética é Justiça. RJ, Ed. Vozes, 1995
*Antõnio Guimarães Brito. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação
Cientifica PIBIC/ CNPq/UNIR, aluno do Curso de Direito.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
REGIÃO E HISTÓRIA, UM PROBLEMA DE
CONCEITO:O
CONCEITO:O caso da colonização do
madeira durante o século XIX.
Dante Ribeiro da Fonseca *
Resumo : As pesquisas recentes sobre a história de Rondônia
têm revelado fenômenos até a pouco desconhecida, pouco
conhecidos ou mesmo desprezados que se apresentam hoje como
importantes no sentido de colocar em discussão determinados
pressupostos da história regional. Entre eles o próprio conceito de
região, que tem sido tratado de forma intuitiva, adotando-se
esquematicamente a divisão políti co-administrativa tal como se
apresenta hoje, ou mesmo apropriando-se de determinados
conceitos da geografia. Tais esquemas têm se revelado, face às
pesquisas recentes, teórica e metodologicamente problemáticos
induzindo a algumas conclusões de todo questionáveis, pois não dão
conta da mobilidade histórica do próprio objeto do conceito.
Palavras – Chave : Fenômenos, desconhecida, Metodologicamente e
Histórica.
Abstract : The recent research on the history of Rondônia have
revealed unknown phenomena even little, little known or even despised
that arise today as important to put under discussion certain
assumptions of regional history. Among them the very concept of a
region that has been handled intuitively, schematically the politicaladministrative division as it stands today, or even appropriating certain
concepts of geography. Such schemes have proven to be the face of
the recent research, theoretical and methodologically problematical
inducing some conclusions of questionable, because not all realize
historical mobility concept object itself.
Keyword : Unknown Phenomena, methodologically and Historic.
As pesquisas recentes sobre a história de Rondônia têm revelado fenômenos
até a pouco desconhecida, pouco conhecidos ou mesmo desprezados que se apresentam
hoje como importantes no sentido de colocar em discussão determinados pressupostos da
história regional. Entre eles o próprio conceito de região, que tem sido tratado de forma
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
intuitiva, adotando-se esquematicamente a divisão político-administrativa tal como se
apresenta hoje, ou mesmo apropriando-se de determinados conceitos da geografia. Tais
esquemas têm se revelado, face às pesquisas recentes, teórica e metodologicamente
problemáticos induzindo a algumas conclusões de todo questionáveis, pois não dão conta
da mobilidade histórica do próprio objeto do conceito. Dessa forma, uma das tarefas que se
apresentam aos historiadores é colocar em discussão o tema, contribuindo para enriquecer
a própria visão de história regional. Ë possível mesmo que venha a colocar em dúvida
apreensões comumente aceitas a longo tempo e levantar novas questões sobre um
passado que se revela tão rico naquilo que poderíamos chama r, provisoria mente, de
intercâmbios populacionais, culturais e econômicos, de tal forma que a própria idéia
de intercâmbio poderá se diluir em uma forma mais abrangente de eventos interelacionados.
Se assim o for, pode-se supor que futuramente consideremos parte de uma única
história àqueles fenômenos que hoje consideramos como participantes de histórias
distintas.
Uma incipiente proposição nos leva a crer que o conceito de região em história deve
necessariamente, que tomar como base fenômenos próprios ao trabalho do historiador
para que se possa aceitá-lo como dotado de conteúdo lógico. Deve-se, p oré m
esclarecer qu e esta proposição não descarta a possibilidade de sua variação de
acordo com ou período ou fenômeno que se queira pesquisar e ainda a utilização e/ou
transformação crítica dos conceitos similares já elaborados por outras ciências. A título de
ilustração da proposição anterior colocamos em te la uma série de pressupostos
encontrados na historiografia brasileira e da América Hispânica, relativos ao primeiro ciclo
da borracha, para demonstrar que a falta de clareza no conceito de região orientou esses
trabalhos inclusive no sentido de selecionar inadequadamente seu material empírico
tornando possível hoje questioná-las. Primeiramente a idéia de fragmentação do
espaço amazônico', parte do princípio de que a Amazônia, na época do ciclo da borracha
constituía-se em uma série de espaços vinculados aos grandes centros de comércio
internacional, porém isolados entre si. Além de uma idéia obscura de região que a hipótese
comporta, um aspecto deve, mesmo que de passagem, ser destacado aqui, um substrato de
atemporalidade que trazem essas análises. Particularmente no ciclo da borracha não se leva
em conta os seus períodos iniciais o que conduz à utilização do sistema de aviamento e
barracão como instrumento de análise das relações sociais de produção na região desde o
princípio do século XIX até a segunda metade do século XX. Da mesma forma trata-se a
questão do desabastecimento regional, intimamente ligada à forma de apropriação do
excedente dos trabalhadores regionais.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Por outro lado, a impressão que se tem é que a região somente é percebida como área
de fronteira quando se estudam as questões comerciais e de limites. Novamente aqui o
conceito dever ser dotado de maior sofisticação e complexidade para que a análise
possa adquirir significados reais. Sem dúvida se limites e fronteiras interferem de certa forma
nos fenômenos regionais, tornando-os distintos em determinados aspectos, particularmente
naqueles relativos às estruturas jurídicas e políticas, porém são dotados de historicidade
justamente porque são móveis. As fronteiras internas do país mudaram de lugar várias vezes
restando portanto questionar se os fenômenos ocorridos em algumas áreas que são hoje
objetos da história regional possuíram uma dimensão supranacional. Particularmente na
Amazônia, onde até o início do presente século as fronteiras eram incertas, determinados
eventos necessariamente terão que ser apreendidos pelo historiador a partir dessa
dinamicidade, que resultava não somente da incerteza quanto às lindes, mas também quanto
à pluralidade do próprio cotidiano do viver fronteiriço.
Por outro lado a população indígena que habitava a Amazônia, que a rigor possuía
seu próprio território interpenetrado e diferente daqueles supostos pelo colonizador, ficou
sujeita a um tratamento ambíguo, tratada como população colonial para fins de constatação
do uti-possidetis. O nome do rio Madeira ilustra bem essa idéia difusa de território Caiari
pertence ao tronco lingüístico Pano, Caribe ou Arawak; Cuyari é originário do quechúa;
Caricari de origem Pacahuara; Irury em referência aos índios Irury que habitavam suas
margens. A questão que se coloca quanto ao problema indígena é: como tratar a história de
uma população que possuía idéias singulares de território em relação ao europeu, a partir de
conceitos diversos de sua cultura?'
O presente trabalho pretende esboçar essas questões à luz de pesquisas empíricas
que nos conduziram a esses questionamentos, tomando como base para essa finalidade a
região do rio Madeira no século XIX. O leitor deverá encará-lo muito mais como um
instrumento de instigação ao debate e ao aprofundamento da pesquisa que propriamente um
resultado acabado, se é que qualquer pesquisa acadêmica possa ser assim considerada.
Sobre o Guaporé, também uma região cuja história é rica em sugestões quando se trata
desse tema, é indicada particularmente a leitura dos estudos de Luíza Volpato. Marcos
Teixeira e Denise Meireles que dão interessantes informações sobre a interpenetração dos
espaços sociais na fronteira guaporeana durante os séculos XVIII e XIX iii.
Primeiramente, quanto às fronteiras, a questão central é dar conta da interpenetração
de fenômenos que embora ocorridos em espaços nacionais diferentes exerçam sua
influência sobre uma área comum. A resposta a essa questão apontaria para uma
reformulação da delimitação regional com vistas à pesquisa histórica. Apesar do
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
secular processo de conquista européia na região e dos vários tratados entre os
antigos
senhores
coloniais
restava ainda,
no
século
XIX,
u ma
t r e me n d a
in d e f in iç ã o de f ro n t e iras e n tr e os p a ís es r ec é m independentes da América do Sul,
que resultava, entre outras coisas, da p resu nção d a poss e que , c ont ud o, nã o
est av a b asead a n o conh ec ime nt o d o
território iv. Tal situação resultou no
dinamismo dessas fronteiras, como bem o demonstrou a questão do Acre e o
processo de ocupação do Madeira, onde as lindes entre Brasil e Bolívia foram
modificadas por duas vezes, em 1867 e em 1903.
Até 1867 a fronteira, ao entrar rio Madeira, seguia ao seu ponto médio,
aproximadamente onde hoje é a cidade de Humaitá (Amazonas) de onde
continuava através de linha geodésica às nascentes do Javarí, a margem esquerda
pertencia à Bolívia e a direita ao Brasil. O Tratado de Ayacucho, firmado entre os dois
países naquele ano fez recuar este limite até a nascente do Madeira donde, da mesma
maneira, seguiria para a nascente do Javarí. Independentemente desses tratados
havia a dificuldade em estabelecerem-se os marcos, pois até 1901 não era conhecida
a nascente daquele rio. Essa indefinição permitiu certa liberdade que se trad uzia na
transferência e no estabelec imento de grupamentos significativos em ambos os
lados da desconhecida fronteira. Esse processo ocorreu em duas regiões da
Amazônia Ocidental, na região do Acre que foi objeto da ocupação brasileira v a partir
dos anos de 1860 e na região do alto Madeira objeto da colonização boliviana vi , na
mesma
época vi i .
Em ambos
os
casos
a
migração partiu
de dois
pontos
simultaneamente, da foz do rio Amazonas e das faldas dos Andes, nas províncias
adjace ntes na fronteira com o Brasil, constituindo no Acre uma população
predominantemente brasileira em território boliviano e no alto Madeira uma população
predominantemente boliviana em território brasileiro.
Embora o impulso colonizador definitivo seja do século XIX desde o século XVIII
havia essa bipolaridade no que se refere à ocupação colonial do Madeiraviii. No Brasil,
por volta dos anos de 1860 as áreas iniciais de produção de borracha encontravam-se
esgotadas pela exploração predatória. Intensificou-se então a migração em busca
dos seringais nativos do Madeira, porém, essa ocupação não passou, com
sucesso, até o último quartel do século, do ponto médio daquele rio ix. A colonização
mais volumosa provinda da foz do Amazonas dirigiu-se ao Purus e seus afluentes
(região acreana). O impulso colonizador no alto Madeira provinha do Território de
Colônias x, composto atualmente pelos departamentos bolivianos do Beni e Pando, de
onde uma onda migratória ocupou aquela parte do rio e abriu seringais, estendendo
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
influência por todo aquele curso de águ a. A imp or tânc ia do e mp re en d ime nt o
b oliv ian o no Ma de ira se estendeu até o início do presente século, quando além dos
seringais dominava no comércio a moeda e na comunicação o idioma boliviano
representado pelo espanhol e línguas dos nativos benianos para ali transplantados como
mão de obraxii. Enquanto que naquele rio bolivianos já exploravam a seringa, a quina
explorada na Província de Santa Cruz era através dele escoada a produção vinda da
província de Caupolicán através de Reyes e Santa Cruz de Yacuma em batelões
impulsionados por indígenas bolivianos até Santo Antônio do Madeira,
xiii
. Eram também os
seringais desse rio abastecidos de gêneros e mão de obra provinda do interior da Bolíviaxiv.
Ressalte-se também que seringais pertencentes a bolivianos estendiam-se até as enseadas
próximas da foz do Madeira, como era o caso das propriedades Vitória, São Carlos e
Itapirema xv. Nessa época, a maior e mais próspera povoação boliviana do Madeira era
Jumas, um aldeamento localizado entre Crato e Humaitá que possuía aproximadamente
180 homens e 90 mulheres que falavam dialeto que não era nem o português nem o
espanhol, provavelmente algum dialeto dos indígenas mojenhos xvi
Com a queda do preço da quina a seringa tornou-se um substituto imediato para o
setor extrativista crucenho, sendo encontrada em vários rios, inclusive no próprio Beni, na
região do delta do Madeira que passou a pertencer ao Brasil pelo tratado de 1867xvii. O
sistema de aviamento, ou habilito como é chamado na Bolívia, foi o arranjo que permitiu o
acesso ao capital inicial com que os seringalistas pioneiros naquele rio iniciaram o corte da
hévea. A partir dessa descoberta alguns seringalistas bolivianos retornaram ao Beni e ali
continuaram sua atividade extrativistaxviii. Apesar desse processo, é interessante
observar que ainda no final do século XIX seringalistas bolivianos continuavam a se
estabelecer no Madeiraxix, mas possivelmente seja esse o período do declínio da
hegemonia boliviana naquele rio. A expulsão dos extratores bolivianos do Madeira, a
que se referem vários historiadores daquele país, poderia ser o resultado de uma ação
política do governo brasileiro, da descoberta da hévea no Benixx e em alguns casos, do
endividamento junto às casas aviadoras xxi de Belém e Manaus. Ao final do século
influência boliviana declinou no Madeira, as povoações mais movimentadas daquele
rio eram aquelas fundadas pelos portugueses ou brasileiros: Borba, do século XVIII,
Manicoré e Humaitá xxii, ambas fundadas nos anos 60 do século XIX. Humaitá era o grande
entreposto daquele rio com significativa produção de borracha e abastecedor de lenha para
os vapores xxiii. Esse retorno dos seringalistas ao território boliviano durou alguns anos
deixando como marca do pioneirismo, em território brasileiro, o nome de várias localidades
do rio Madeiraxxiv.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
No final do século XIX já se tem notícias de povoamento brasileiro rio acima, além das
cachoeiras dos Madeira. Jose Coimbra, que passou pelo Mamoré e Madeira nos anos 90
daquele século se refere ao povoado de Vila Murtinho situado no rio Mamoré quase em
sua junção com o Beni, em frente ao povoado boliviano de Villa Bella, que contava com a
população de 800 habitantes, muito significativa para a época. A então nascente povoação
abastecia-se na Bolívia e, segundo o mesmo autor, apesar de existirem estradas de goma
naquela localidade por essa época os habitantes dedicavam-se mais à caça e à pesca.
Mesmo em Vila Murtinho existia uma propriedade de boliviano chamada Gran Cruz,
pertencente a D. Perez de Velasco, que viria a se o primeiro vice-presidente da Bolívia
durante o conflito no Acre. Em 1881 a firma Suárez fundou a povoação de Cachuela
Esperanza xxv , matriz de seus negócios no Beni. A partir desse ano Suárez
Hermanos vai se constituirá na mais poderosa empresa de capital regional a operar no
ramo do extrativismo do látex, dominando, ao longo do tempo, 16 milhões de acre de
seringais xxvi, estendendo suas filiais até as praças de Belém, Manaus e Londres, controlando
o circuito da importação dos aviamentos para sua área de influência e, mais espantoso,
conseguindo burlar o monopólio das companhias européias e norte-americanas,
exportando diretamente para aqueles paísesxxvii.
Por volta de 1896, não existia o povoado brasileiro de Guajará Mirim, no rio Mamoré,
cercanias da cachoeira de mesmo nome, embora já houvesse seringais pertencentes
aos brasileiros naquele local. Contudo, na margem oposta existia a povoação boliviana de
Guayaramerím habitada pelos seringalistas bolivianos D. Manuel e Memesio Jordán e
Leonor de Castroxxviii. Na povoação propriamente dita a população estimada, em 1903, era
de 20 habitantes ocupados nas atividades de transporte de mercadorias entre
Trinidad, Villa Bella e Riberaltaxxix.
A ocupação do Madeira exigiu desde o princípio a implacável perseguição do
indígena. Para se obter o ouro negro era necessário antes submeter o ouro vermelho. Assim
o processo de apresamento que já vinha sendo praticado a séculos continuou abastecendo
os seringais em toda a Amazônia. Nativos do Madeira e de outras regiões amazônicas como
o Território de Colônias foram a grande fonte de mão de obra para esses seringais, em uma
região onde os Estado Nacionais não possuíam nenhum controlexxx. Uma das explicações
da opção dos seringalistas bolivianos do Madeira em recrutar mão de obra de
indígenas mojenhos é de ordem cultural. Essas populações estavam, desde o período précolombiano, habituadas a produzir excedentesxxxi e a pagar tributo sobre a terra
comunitária, tinham, portanto uma história muito diferente dos grupos sobreviventes
de indígenas da Amazônia Brasileira, cujos povos que possuíam estruturas sociais mais
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
complexas foram destruídos ainda no século XVIIxxxii. É, portanto principalmente o indígena
"domesticado", e seus descendentes, que compõem a larga base da pirâmide social na
Amazônia do século XIX, é ele que compõe a maioria esmagadora da população para a qual
o governo imperial e republicano reclama de seus vizinhos o uti possidetis.
O apresamento e o recrutamento dos indígenas por parte do colonizador não respeitava as
fronteiras móveis e mal definidas, manipulando o indígena e impondo-lhe novos sentidos de
identidade à luz do interesse do dominadorxxxiii. Do Madeira avançavam os seringalistas,
brasileiros ou não para além dos limites nacionais. Esse era um fenômeno comum a
toda a Amazônia em todo o século XIX. Em 1866 Tavares Bastos denuncia a ação de
brasileiros na captura dos indígenas miranhas que viviam nos rios Japurá e Içá, no
território de Nova Granada. Dentro de nosso território o aparelho estatal, contribuía ainda
como nos tempos coloniais para a exploração do indígena, através da Diretoria dos Índios,
compostas por corruptos agentes do Estado. Com sua nomeação para Diretor dos
Índios, o funcionário solicitava ao negociante o adiantamento de mercadorias
necessárias ao início das atividades do extrativismo da borracha, salsa e castanha.
Colocando o indígena sob sua responsabilidade para trabalhar remunerava-os com
mercadorias em troca dos produtos extraídos da floresta xxxiv . Na virada do século XIX
para o século XX, informava o Barão de Marajó que no Madeira já se encontravam alguns
confortos e segurança, os índios ou haviam recuado para pontos distantes dos
núcleos de colonização ou estavam amansados inseridos ao mundo d o colono x x xv .
Além do indígena brasileiro o ciclo da borracha consumiu no Madeira, grande
quantidade de indígenas bolivianos. Conforme a análise de Heráclito Bonilha a
exploração da mão de obra indígena resultou da ação de motores distantes da
região gomífera onde havia o agravante do pequeno controle dos Estados xxxvi
nacionais. A intensificação do processo de exploração da mão de obra indígena
boliviana, como no Brasil, ocorreu nesse momento pari passu com a ocupação de seus
territórios. Contudo, a história do processo de ocupação das terras e exploração do
trabalho indígena na Bolívia no século XIX contém, em relação ao Brasil, algumas
peculiaridades. Durante o período colonial todos os indígenas do sexo masculino com
idade entre 18 e 50 anos eram obrigados a pagar um tributo, esses tributos chegavam
a participar em 25% da renda da coroa. Durante o processo de independência da
Bolívia, Simon Bolívar promulgou entre 1824 e 1825 decretos que aboliam o
recolhimento de tributos sobre os indígenas. A assembléia nacional da Bolívia ratificou
esses decretos, mas, imediatamente após percebeu que a aceitação dessa nova
norma colocaria em dificuldades a fazenda nacional restabelecendo de pronto o tributo
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
que passou a representar 60% do recolhimento fiscal na Bolívia. Apesar de representar um
pesado fardo a carga tributária contribuiu para a conservação da terra em posse do
indígena contra a ameaça dos brancos e cholos. A decadente atividade mineradora não
satisfazia às necessidades de ingressos fiscais e assim, também contrariando os
decretos de Bolívar que colocavam em dúvida o direito do indígena sobre sua terra
ancestral, a assembléia nacional ratificou como legítimo o governo comunal dos
indígenas e seus títulos de propriedade da terra. Tratava-se portanto de garantir a atividade
agropastoril importante fonte de ingressos fiscais para a manutenção do governo
boliviano naquele momento xxxv ii . Em 1831, durante o governo de Andrés de Santa
Cruz foram restabelecidos os direitos às terras comunais dos indígenas bolivianos,
contudo esses direitos não valiam para as terras de Mojos, Yucararés e Chiquitos, abertas
à colonização de todo aquele que desejasse estabelecer fazendas ou explorar a
indústria extrativista. No entendimento do governo aquelas terras não possuíam
proprietários e, portanto pertenciam ao governo o direito de dispor delas,
desconhecia assim o direito às terras pelos grupos indígenas do noroeste
bolivianoxxxvii.
Em 1851 foi abolida a obrigação de todo indígena estar submisso a um patrãoxxxix, essa
instituição remanescente dos direitos dos adelantados, primevos colonizadores brancos
na América Espanhola, chamada na época colonial de encomienda subordinava o
trabalho indígena ao colonizador em troca de sua "educação" e "proteção". A partir dos
anos 60 do século XIX, com o aumento da produção mineral na região andina e o
conseqüente crescimento dos mercados urbanos decresceu a importância dos tributos
indígenas como fonte de ingressos governamentais. Com a ascensão ao poder do
gal. Mariano Melgarejo em 1864 a elite mineradora andina tomou o poder no país
estabelecendo o domínio das políticas livre cambistas. O decreto de 1866
novamente colocou em risco a propriedad e comunal da s terras intensifican do-se
então a ocupação da propriedade indígena por grupos de imigrantes brancos
(karayanas) que se dirigiram ao Beni para desenvolver a agricultura comercialxl.
Estima-se que já em 1858 somente no Alto Madeira havia uma população de cinco
mil pessoas, essa população, como se viu anteriormente, cresceu muito após os anos
60. Certamente o contribuiu para o crescimento dessa população o elemento indígena
boliviano. Além dos indígenas de Moxos, a mão-de-obra de indígenas bolivianos era
també m recrutada nas províncias de Santa Cruz, Yungas. Keller, que participou de
uma expedição no Madeira em 1882 calculava que entre 1862 a 1872 foram
recrutados em média 1.000 indígenas por ano e migrados do departamento do Beni
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
para o Madeira xl i. Seringalistas como D. “ Pa s to r Oyo la x l i i e D . An g e l C h a v e s x l i i i
q u a n d o n e c e ss it av a m d e m a is trabalhadores dirigiam-se ao Beni para recrutá-los,
já os empresários de maior porte contratavam a empreitada de recrutadores que
entregavam o indígena no local de trabalho estabelecido no contratoxliv.
Esse mov i me nto popu lacion al t ão int enso to rno u-se mo tiv o de
preocupações. Denúncias contra o abuso do transporte indiscriminado de
indígenas para os seringais do Madeira foram levadas ao público pela imprensa,
causando certa comoção. O governo de La Paz, ciente do problema, preocupou-se,
não com as crueldades cometidas, mas com o despovoamento da região, emitindo,
em 1882, uma ordem de governo enviada ao prefeito do Beni mandando impedir
o tráfico sob o risco de ser despovoada aquela região, já então a menos povoada da
Bolívia.
Esse processo de recrutamento despertou mesmo o interesse brasileiro, tratava-se de
uma forma de abastecimento de mão de obra barata para os trabalhos necessários ao
fomento da produção gomífera do oeste amazônico. Na Bolívia havia um mercado
fornecedor braços indígenas cujo potencial era avaliado, por volta de 1866 em
750.000
pessoas.
Somente
nos
departamentos
bolivianos
de
Santa
Cruz,
Cochabamba e Beni, aos quais interessava de perto o comércio como o Madeira, havia
uma população estimada em 622.000 pessoas, excluído desse número os grupos do
Beni compostos por aproximadamente 30.000 indígenas amansados e domesticados
para o trabalho, sem contar os grupos errantes xl v Essas províncias possuíam o dobro
da população das províncias do Amazonas e Pará, que desenvolviam uma forte atividade
agrícola e pecuária sem paralelo no Amazonas xI vi. Tendo já iniciado o processo de
recrutamento desses indígenas para trabalhar na região do Madeira como seringueiros, ou
remeiros que nos intervalos das viagens trabalhavam nas obras públicas de Manaus, a
possibilidade de sua utilização para a construção do canal ou estrada que contornaria o
trecho encachoeirado do Madeira foi logo posta em questão. Os administradores
públicos do Beni tinham autoridade para recrutar esses indígenas e enviá-los ao Madeira, a
remuneração era irrisória, um pequeno salário ou o pagamento em tecidos, roupas e armas.
Apesar de a Bolívia exportar a maior parte de sua produção pelo oceano Pacífico, a
via do Madeira era de fundamental importância para o comércio do noroeste boliviano, pois
o Atlântico estava mais próximo. Adicione-se que o acesso fluvial pelos grandes rios do
Beni é mais fácil para esse rio do que para outros, aumentando ainda sua preferência pelas
condições de navegabilidadexlvii. O porto mais próximo onde se encontrava linha regular de
vapor era o de Serpa (Itacoatiara), na foz do Madeira. Além da quina produzida em
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Caupolícan, descia pelo Madeira a produção extrativa e agropecuária do Beni. Os
batelões de transporte retornavam do Madeira com produtos industrializados, vergalhões,
ferramentas, armas e munições, bebidas, atavios. Serpa era a ponta de lança desse
comércio, os produtos ali desembarcados eram enviados para Borba e Crato de onde
partiam rumo à Bolívia. O comércio do Madeira cresceu com as exportações e importações
necessárias ao fomento da indústria extrativa e da agropecuária do noroeste boliviano de tal
maneira que já em 1862 o porto de Borba respondia por 30,70% do valor das exportações
da província do Alto Amazonas. O movimento de importação e exportação, até essa
época apresentava até um pequeno desequilíbrio favorável, entre 1864 e 1865 o porto de
Serpa importou 44,20% e exportou 55,80% do montante em dinheiro de suas operações,
revelador da importância desse porto no abastecimento dos produtos necessários à industria
extrativa.
Ainda em 1866 a navegação a remo era o recurso para o escoamento da produção e
do abastecimento de produtos industrializados para os nos do oeste da Amazônia, inclusive
do Beni. De Borba ou Crato era necessário remar contra a correnteza do rio em
embarcações com tripulação variando de 13 a 20 remeiros e carregamento de 3000 até
5000 quilos de mercadorias, até Santo Antônio do Madeira. Nesse ponto iniciava a parte
mais difícil da viagem, nas cachoeiras, por algumas centenas de quilômetros era necessário,
a cada acidente, descarregar a embarcação e atravessar por terra as mercadorias e a
embarcação até superar o obstáculo natural, daí a canoa era novamente colocada no
rio e carregada, reiniciando o trabalho de remar xlvii i. A passagem por esse trecho
acidentado poderia durar 18 diasxlix ou seis meses, dependendo de condições diversas, por
exemplo, a morte por doenças epidêmicas ou ataques de indígenas e a fuga dos
remadores'.
A questão do abastecimento nos seringais da Amazônia merece um estudo mais
aprofundado que permita esclarecer algumas questões. Não se trata aqui de uma minúcia
de um preciosismo de historiador factualmente detalhista pois essa questão está
intimamente ligada ao processo de exploração da mão de obra nos seringais. Há
evidências de que o fenômeno do desabastecimento durante o ciclo da borracha foi a
culminância do crescimento, ao longo de décadas, do aumento da demanda de matéria
prima, fenômeno típico das regiões monocultoras e de extrativismo intensivo.
A dialética do fenômeno pode ser simplificada da seguinte forma: um motor externo à
região, o aumento da demanda de matéria prima, faz cone que o seringalista exija que o
seringueiro dedique cada vez mais seu tempo na extração; o seringueiro gradualmente vai
abandonando a lavoura de subsistência e passa a adquirir cada vez mais produtos no
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
barracão do seringalista; a produção aumenta e o seringalista, face a crescente
dependência do seringueiro em abastecer-se no barracão majora os preços provocando o
endividamento pois, face à majoração a produção do seringueiro nunca é suficiente para
liquidar as dívidas, a resultante final é que o produtor direto fica preso ao seringalista
pela dívida, prisão evidentemente garantida não pela honra ao compromisso mas por
mecanismos de coerção física.
Dois pressupostos necessários ao esquema da borracha estão satisfeitos, aumentouse a produção e garantiu-se a continuidade do processo de extração. Urna terceira
conseqüência, não menos importante é que se garantiu também pelo mesmo processo o
aumento do excedente apropriado pelo seringalista. Contudo a dinâmica desse
processo
ainda
não
foi
devidamente
estudada,
permitindo-se
então
alguns
questionamentos: Como ele se desenvolveu? Quando atingiu sua maturidade? Foi igual ao
longo do tempo em toda a Amazônia? Foi o mes mo nas v árias áreas extrativis tas da
região? Provoc ou de fa to o desabastecimento regional? No caso do Madeira, essa
última questão poderá ser respondida de várias maneiras, dependendo a resposta do
conceito de região adotado.
Uma abordagem inicial do tema torna possível a hipótese que a Amazônia apesar
de ter sido uma região de economia extrativista, predominante até o século XX, os
estabelecimentos rurais produziram durante determinado período alguns gêneros
necessários ao próprio consumo. Estabelecimentos dedicados à colheita do cacau no
Madeira, na primeira metade do século XIX, possuíam lavouras de milho, arroz e mandiocali
além de produtos basicamente destinados à comercialização. Indígenas amansados
plantavam lavouras para subsistência e comercialização. Ainda no último quartel do século
XIX os estabelecimentos do Madeira, embora dedicados à produção da goma elástica,
continuavam produzindo alimentos como: milho, arroz, mandioca, bananas, ou seja, parte do
tempo de trabalho do seringueiro era dedicada à agriculturalii. Não eram exceções esses
seringais, o Gal. Severiano da Fonseca, em sua viagem de 1878, refere-se a inúmeros
seringais ou colocações pertencentes ao um mesmo seringalista do Alto Madeira que
produziam gêneros alimentícios, cereais, tubérculos e mesmo cana de açúcarliii, o
mesmo acontecia nas povoações do Madeira, inclusive Juma.
Contudo, em 1866 Tavares Bastos afirmava que as áreas extrativistas pouco
produziam para a alimentação, vindo tudo do exterior pelo porto do Pará ou eram vendidas
nessas regiões interiores produtos da lavoura Paraense como a farinha. A literatura
consultada revela que as estratégias de abastecimento das regiões produtoras da
borracha vinculavam-se a diversos fatores econômicos e geográficos e ainda, que o
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
abastecimento, ao contrário do conhecimento comum, não provinha todo do exterior, mas
havia um mercado interno de produção de alimentos. Primeiramente, é possível que
nas regiões do alto dos rios o abastecimento externo, de produtos do Pará e do
exterior, fosse mais precário entre 1866 e 1880, por causa das distâncias e particularmente
no Alto Madeira em função do seu trecho acidentado. O fenômeno do desabastecimento
observado por Tavares Bastos seria então localizado nas áreas de produção mais próximas
de Manaus.
Como se viu anteriormente as áreas iniciais de extrativismo da borracha, mais
próximas de Belém, estavam já esgotadas em meados do século XIX pelo extrativismo
predatório o que fez com que os estabelecimentos rurais direcionassem sua
atividade para a produção de alimentos. O depoimento de um proprietário de fazenda no
Pará não se refere ao látex, mas à produção de farinha de mandioca e cana de
açúc ar l i v . Essa produção interna de alimentos provavelmente destinava-se às novas
regiões extrativistas. O problema, contudo reside em conhecer a dimensão dessa produção e
seu peso no abastecimento intra-regional.
Nas regiões mais afastadas, no alto dos rios, procurava-se a região produtora
de alimentos mais próxima, não necessariamente dentro do país. Assim é que, o
abastecimento do trecho encachoeirado, e talvez de boa parte do alto e Médio Madeira, por
volta de 1868, era feito com gêneros produzidos nos Departamentos bolivianos de Pando e
Beni, produtos da agricultura e pecuária: queijos, couros, aguardente, gado daquela regiãolv,
pobre em hévea mas rica em planícies, eram comprados ou até mesmo trocados por
indígenas escravizados pelos brasileiros que atravessavam a fronteira para esse fimlvi.
Por volta de 1895 a situação havia mudado, o Barão de Marajó naquela época
informava que no Madeira a alimentação provinha quase toda, exceto peixe fresco e
salgado (pirarucu) e tartarugas, de Manaus e do Pará carne seca, bacalhau, bolacha, pão
torrado, conservas, feijões, farinha e bebidas diversas lvii. O consumo de alimentos e
bebidas importados é tratado na literatura como parte de um processo de ostentação e
desperdício da elite econômica do extrativismo, contudo no auge do ciclo da borracha não
somente essa elite consumia gêneros importados, também a população em geral. O
comércio com a Europa e Estados Unidos era mais próximo do que com o sul do Brasil, os
navios vinham buscar a borracha e traziam com eles produtos, estabelecendo assim uma
prática de intercâmbio desigual que, de certo modo, reproduz a lógica do desabastecimento
e do barracãolviii.
Com base nas questões inicialmente colocadas, poderíamos sugerir que no
século XIX certas regiões, especialmente aquelas situadas mais próximas a fronteira
61
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
da Amazônia, não estavam fragmentadas como supõe a literatura, mas integravam-se e m
um grande mercado produtor e consumidor de gênero , matérias primas, capitais e
força de trabalho, dessa forma podemos apreendê-las como um todo. Parece ser esse
o caso das regiões do Madeira e do Beni. Se a problemática fronteiriça é necessária
ao entendimento dessa hipótese torna-se, tomada isoladamente, insuficiente para o
entendimento do processo, pois a complementaridade de uma multiplicidade de
interesses intra-regionais resistiu e sobreviveu à definição demarcatória. É essa mesma
complementaridade que nos permite questionar a visão do desabastecimento regional ao
focalizar a região do Madeira/Beni e o estudo desse processo sincrético, pois
resultante da ação de povos que tanto sob o aspecto cultural quanto aos processos de
desenvolvimento político comportam suas singularidades, determinou o processo
histórico em uma única região durante uni período secular.
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NOTAS
xxxvii
Herbert Klein, História de Bolívia. La Paz, Editorial Juventud, 1994, pp. 119-20.
Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 28.
xxxix
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 274.
xl
Herbert Klein, obra citada, pp. 149-53.
xli
Franz Keller, The Amazon and Madeira River. Citado por Antonio Carvalho Urey, obra citada, p.55.
xlii
Nevile Craig, obra citada, p. 222.
xliii
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 305.
xliv
Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 73, nota 30.
xlv
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 274-5.
xlvi
Beni, Santa Cruz e Cochabamba: "... os três departamentos citados que contem o duplo de
população das duas províncias brazileiras ribeirinhas (...) a agricultura vai-se desenvolviendo
nos mesmos departamentos, e é industria mais exercida ali que no Alto-Amazonas." Aureliano
Tavares Bastos, obra citada, p. 276-7.
xlvii
Lobato Filho, obra citada, p. 27.
xlviii
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 222-3, 274-5, 270-1, 316-7
XXXViii
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
xlix
Juan B. Coimbra, obra citada, p. 137.
João Severiano da Fonseca, obra citada, pp. 275-99.
li
Leonardi, p. 70.
lii
Nevile Craig, obra citada, p. 230.
liii
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 299.
liv
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 358 e 370.
lv
Emanuel Pontes Pinto, obra citada, p. 88.
Ivi
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 235.
lvii
Marajó (Barão de), obra citada, p. 132.
lviii
Anthony Smith, Os conquistadores do Amazonas: quatro séculos de exploração e aventura no
maior rio do mundo. São Paulo, Editora Best Seller, s/d, p. 357.
l
*Dante ribeiro da Fonseca. Prof. Ms. do Departamento de História da UFRO
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO E SUAS
IMPLICAÇÕES NAEDUCAÇÃO
José Maria Leite Botelho*
Resumo : Este trabalho busca lançar bases para novas
discussões a respeito do neoliberalismo e suas implicações no
setor educacional ao mesmo tempo em que, procura discutir o atual
processo educacional dentro das políticas públicas.O trabalho está
divido em três partes: a primeira, "O Processo de G l o b a l i z a ç ã o d a
E conomia"
desenvolve
em
torno
das
questões
h i s t ó r i c a s e sociais desse processo; a segunda “a globalização e
suas implicações no processo educativo” se desenvolve a partir de
questões educacionais relacionadas ao tema. A terceira e última
parte, "O Processo de Globalização na Educação Brasileira"
desenvolvida em torno das questões históricas e atuais da educação
brasileira.
Palavras – Chave : Educacional, Implicações, Neoliberalismo e
educação Brasileira.
Abstract : This work seeks to lay foundations for new discussions
about neoliberalism and their implications for educational sector while,
current demand discuss the educational process within the public policy
work is divided into three parts: the first, "the process of economic
globalisation" develops around the historical and social issues of this
process; the second "globalization and its implications in the educational
process" develops from educational issues related to the theme. The
third and last part, "the process of Globalisation in Brazilian education"
developed around the historical and current issues of Brazilian
education.
Keyword : Educational Implications, Neoliberalism and Brazilian
education.
O contexto mundial vem sofrendo nas últimas décadas, profundas e rápidas
mudanças no campo econômico, cujas conseqüências se fazem sentir em todos os
setores da vida social. A década de 1980 assistiu estupefata às transformações
econômicas,
ideológicas,
estratégicas,
culturais
e
sociais
que
redesenharam
geopoliticamente o panorama do mundo atual.
65
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
O fim do regime socialista fez o mundo curvar-se diante da supremacia capitalista
frente às novas formas estratégicas, idealizadas para a perpetuação do grande ca pital
na tentativ a de p reencher "todos" os espaços d as área s anteriormente ocupadas
pelo regime socialista e, como forma de estender os seus domínios nesses territórios.
A
reorganização
econômica
iniciada
nos
limites
transitórios
entre
o
liberalismo e o neoliberalismo, transformou-se em processo globalizador da economia
mundia l,
trans nacional,
na cional,
loc al,
tran sportando-se
em
"velocidade
eletrônica" para todos os setores da vida nacional, transnacional, local e finalment e,
global. As e xigências bás icas como flex ibilidade, participação, trabalho de
equipe, produtividade e competência fazem parte dos novos requisitos para a
manutenção das organizações produtivas e para a formação do cidadão, cuja competência e
responsabilidades na produção desses novos padrões são destinadas à Educação.
Este trabalho busca lançar bases para novas discussões a respeito do
neoliberalismo e suas implicações no setor educacional ao mesmo tempo em que,
procura discutir o atual processo educacional dentro das políticas públicas.
O trabalho está divido em três partes: a primeira, "O Processo de G l o b a l i z a ç ã o d a
E c o n o m i a " d e s e n v o l v e e m t o r n o d a s q u e s t õ e s h i s t ó r i c a s e sociais desse
processo; a segunda “a globalização e suas implicações no processo educativo” se
desenvolve a partir de questões educacionais relacionadas ao tema. A terceira e última
parte, "O Processo de Globalização na Educação Brasileira" desenvolvida em torno das
questões históricas e atuais da educação brasileira.
O fim da "guerra fria" não significou apenas o desaparecimento do bloco socialista liderado
pela ex-URSS, significou, sobretudo, o surgimento de uma nova ordem econômica
mundial, liderada pela supremacia dos EUA como potência "consolidada" no
panorama mundial nos campos econômico, militar e cultural. O fim do socialismo como
sistema político e econômico, desencadeia o fim da bipolarização obrigando o mundo a
passar para uma forma tripolarizada: o pólo europeu, o pólo asiático e o pólo
americano. Essa tripolaridade econômica pode, grosso modo, ser comparada a uma
hipotética balança provida de três pratos. Se em cada prato da balança fosse colocado
cada um desses pólos, ver-se- ia a supremacia americana, solidificada pelos poderes
políticos, econômicos e do conhecimento.
Faundez (1978) relata que com o objetivo de impor a globalização, os EUA e seus
aliados criaram organismos econômicos tais como o FMI e o Banco Mundial ou utilizaramse de outros já existentes, entre eles a UNESCO e a UNICEF com o sentido de
reorientar seus objetivos iniciais ou manipulá-los segundo os interesses dessa
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
globalização. O processo de globalização da economia põe em choque as economias
dos países pobres, sua bagagem cultural e a "soberania" nacional corroendo pelas bases
a legitimidade e a eficácia dos Estados Nacionais. É um processo de reorganização
política, econômica e cultural liderado pelos EUA e seus aliados, como supremacia de um
capitalismo que parece ter alcançado em definitivo as dimensões de um mercado mundial. A
Racionalização da economia mundial desencadeia conseqüências gravíssimas em todos
os setores sociais, inclusive, no setor educacional e cultural dos países p er if é r ic os . Es te s
n o a f ã d e ig u a lar -s e a os pa ís es p ro mo t o r es d o "desenvolvimento" buscam a custa
de certos "atropelos" educacionais e culturais, impor a seus povos a cultura e a educação
que interessa aos países centrais.
Verificam-se nas últimas décadas, mudanças expressivas no contexto de todos os
países periféricos, e principalmente, no contexto latino americano, no modo de vestir, na
alimentação, e na cultura, e que se traduzem em verdadeiro processo de aculturação em
pleno alvorecer do século XXI. As mudanças pretendidas pelo processo de
globalização são, em sua maioria, mudanças simples e apenas ligeiramente
perceptíveis, mas, que trazem em seu bojo, verdadeiras fórmulas capazes de operar
rápidas e radicais transformações em todo o sistema econômico e sócio-cultural a nível
mundial, como forma de fincar de vez os tentáculos do capitalismo e dominar, cultural,
científica e tecnológica os países periféricos.
No Plano Educacional, o processo de globalização da economia avança de forma
certeira e voraz sobre os sistemas de ensino público dos países "alinhados". Oferecer
aos governos subsídios, que de per si, se encarregam do enfraquecimento do ensino público
e do fortalecimento do ensino oferecido pelo setor privado, é apenas, uma das metas
implementadas pelo poder globalizador.
Para o capitalismo, não é suficiente uma mudança que aconteça apenas no campo
econômico, é necessário uma mudança completa, radical, o que só poderá acontecer se
for atacada a pedra angular do foco de resistência: só poderá acontecer se o sistema
educacional for modificado para atender as necessidades do modelo emergente, e isso,
vem sendo promovido pelos milhões de dólares gastos em marketing, propagandas e
publicidades que "gratuitamente" invadem diariamente os lares, via televisão. As grandes
redes de televisão despejam diuturnamente dezenas de dezenas de comerciais com os mais
variados produtos destinados ao consumo, principalmente, do público infantil, clientela
vulnerável a todos os tipos de transformações.
As recomendações do Banco Mundial para os governos de que é mais rentável e
econômico o treinamento em serviço do que o que é gasto com a formação inicial,
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
fornecem subsídios para implementar novas discussões sobre o atual papel da
educação em todos os níveis de ensino. É necessário, pois, abrir novos espaços de
luta no campo do conhecimento e da educação, de modo a impedir a capitulação do
setor educativo frente às novas propostas oriundas dos organismos encarregados de
"socorrer" a educação e os serviços sociais oferecidos pelos governos dos países
periféricos.
O Processo de Globalização na Economia
O sistema capitalista vem marcando com os seus ciclos a história de toda a
sociedade mundial. Baseado no sistema da livre iniciativa, na lei da procura e da oferta, o
modo capitalista de produção cria obrigatoriamente, a falsa ilusão de que em seu bojo o
crescimento econômico é permitido a todos fomentando uma luta, que a cada dia superase a si mesmo. Dessa forma, verificam-se através dos tempos, constantes modificações na
vida econômica e social.
Da primeira Revolução Industrial e posteriormente em todas as outras que a
sucederam o sistema capitalista vem criando novas formas de superação e perpetuação
por meio de estratégias variadas e eficazes. Da universalização do comérc io
internacio nal, da instalação de multinacio nais, em países em "desenvolvimento",
de filiais de grandes empresas industriais e de serviços, até o atual processo de
globalização, a economia mundial foi gradativamente sendo modificada, culminando no
processo de racionalização da economia atual.
As empresas multinacionais além de dominar os mercados nacionais e internacionais
bloqueiam o crescimento econômico e científico dos países onde s e ins ta l a m. Ta nt o
a t ra v és da s mu lt in ac io na is q u a n to das "zo n as de liv re comércio" implantadas
em pontos geoestrategicamente corretos, o capital impõe formas, cria estratégias de
dominação e sujeição dos povos dos países periféricos.
Nos países desenvolvidos o acirramento da luta pela supremacia dos
mercados vem promovendo a criação de associações para comandar o comércio
internacional. O nascimento do Mercado Comum Europeu, do BENELUX, do NAFTA,
da atual União Européia, do Bloco Asiático, do MERCOSUL, são apenas recentes
formas de preparação para a expansão do capitalismo em escala mundial como forma
de superação do liberalismo e do apare cimento do neoliberalismo.
O neoliberalismo, termo usado para designar uma nova maneira de
organização do capital mundial, em oposição à política intervencionista e de bemestar social empreendida pelo Estado Liberal, traduz-se numa primeira forma de limitar o
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
poder do Estado sobre a economia.
A onda neoliberal iniciada e levada a termo pelos países ricos com Margareth
Thatcher, na Inglaterra, Ronald Reagan, nos EUA, Brian Mulrony no C a n a d á e se
ex p an d id o p ost er ior me n t e pa ra o s cha ma d o s p aís es e m "desenvolvimento" tais
como o México, a Argentina, o Chile e o Brasil, opera como uma faca de dupla serventia.
Nos países ricos, detentores do poder, o que se tem presenciado são políticas protecionistas
e o nacionalismo exacerbado pelos seus interesses, num "bem educado" fechamento do
mercado à entrada de produtos dos países periféricos. Contrariamente, os países pobres
ou "em desenvolvimento", abrem sob pressão econômica, as suas portas para a entrada de
capitais e tecnologias estrangeiras, tendo-se a falsa ilusão de estar participando
massivamente do comércio internacional. O aprofundamento da onda neoliberal carrega
consigo prejuízos econômicos que se refletem diretamente no setor social exemplificados
pela recessão, pelo desemprego, pela fome, pela miséria, e pela falta de investimentos
em infra-estrutura, na falta e na deterioração dos serviços essenciais prestados à
população, nos preços, no crescimento da economia informal, e na diminuição nos
padrões da qualidade de vida.
Segundo Fiori (1996), o projeto de globalização pode ser definido como:
"a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal
maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de
distancia e vice-versa ou um processo dialético onde a transformação local é tanto uma parte da
globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e espaço”.
Para Fiori (1996i), os anos 90 emergiram como a era liderada pelo complexo
eletrônico, envolvendo profundas mudanças no modo de produção, nas formas de gestão, de
concorrência e de relacionamento entre o capital e o trabalho. Entretanto, o
relacionamento entre o capital e o trabalho, vem sobrecarregado de uma forte onda de
desestruturação da economia, seja ela, mundial, nacional, local, social, familiar, cujas
conseqüências intensificam o processo de aumento da pobreza mundial.
Misse (1996) caracteriza o processo de globalização como o:
"aprofundamento radical da internalização de empresas (...) baseada nos serviços lógicos, pelo
aumento da competitividade, pela aceleração da produção em grande escala e pelo enfraquecimento
das barreiras protecionistas nacionais"
dos países pobres e pelo fortalecimento das mesmas barreiras nos países centrais. O
enfraquecimento das barreiras nacionais para a entrada de bens estrangeiros favorece a
desestruturação econômica e industrial dos países periféricos ao mesmo tempo em que
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
estabelece a explicitação dos objetivos do projeto neoliberal.
O acirramento pela competitividade no mercado trará impactos negativos
sobre o sistema de empregos, na estrutura ocupacional, nas redes de sociabilidade, e,
sobretudo, contribuirá para diminuir ainda mais a injusta distribuição de renda e a
estrutura política dos Estados atingidos.
O crescimento do setor da economia informal indica o destino dos cidadãos afetados
pelo desemprego, vítimas da globalização, e indica, sobretudo, uma nova reacomodação
dos novos fatores sociais frente à expansão competitiva e excludente do mercado. Cria-se,
por outro lado, instituições para fomentar o incremento da instalação das chamadas
micro-empresas, como forma de desestimular o sistema de empregos e, criar a
pretensa ilusão de que todo o cidadão é capaz de sobreviver como pequeno
proprietário num mundo econômico onde a cada dia, se agigantam as grandes empresas
em detrimento dos micros. No setor de fomento a instalação das micro-empresas o
SEBRAE vem contribuindo de forma decisiva e se firmando no mercado terciário
como prestador de serviços especializados.
O Brasil experimenta os efeitos negativos da globalização. A onda de privatizações e
o crescimento do desemprego iniciada no governo Collor e levada a cabo pelo governo
de Fernando Henrique Cardoso têm sentido como bons exemplos para se discutir
os problemas soc iais c ausados pelo processo globalizador.
O Brasil, país de muitas facetas e o nde se misturam o moderno,
industrializado, rico, de classe média, com trabalhadores de carteira assinada, o
agrário moderno; mescla-se com o pobre de classe social indo de "média a baixa", sem
carteira assinada, o agrário paupérrimo, o trabalhador de economia informal, entre
outros, o miserável, há muito excluído da possibilidade de ascender em escala social.
Em todas essas faces, explicita-se um Brasil que não conseguiu, no amanhecer do século
XXI, resolver seus problemas sociais mais contundentes, de dar à população melhor
qualidade de vida, melhorar a distribuição de renda, erradicar a pobreza, a fome, o
analfabetismo, empreender uma reforma agrária justa, em fim, se estruturar dentro
do modelo anterior, que condições terá de enfrentar esses e os novos problemas
surgidos nesse período reorganizador do mercado?
No processo de inserção da globalização da economia do mercado
brasileiro
no
processo
global
verifica-se,
o
crescente
intervencionismo
estrangeiro a que o país vem sendo submetido. A onda de privatizações que vem
ocorrendo -até com as estatais tidas corno as mais rentáveis- não encontra
precedentes na história. Alardear aos quatro cantos do país que as empresas
70
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
estatais são perdulárias e inadimplentes pode ser apenas um meio de burlar a
confiança da população do país, ao mesmo tempo em que tais propagandas põe a
descoberto a que se presta o neoliberalismo econômico. Enquanto são vendidas as
estatais, por serem "prejudiciais" ao bom andamento do setor econômico, essas empresas,
ao passarem para a iniciativa privada recebem bônus fiscais que lhes permitem operar
no mercado. Por outro lado, são mandados para a reserva de trabalho milhares de
operários, ao mesmo tempo em que se deteriora o padrão de vida nacional.
A situação atual coloca o Brasil como um país do futuro? De qual futuro? O processo de
"modernização" pelo qual o país vem passando, tem sido processado à custa da
importação de tecnologia e de equipamentos que além de impedir o crescimento da
produção nacional, compete com qualidade superior e preço baixo dentro do próprio
mercado brasileiro contribuindo, para a desqualificação e para o rebaixamento dos
produtos nacionais ao mesmo tempo em que, obriga dezenas de empresas a deixar o
mercado fomentando dessa forma. O crescimento do desemprego. A configuração e o
comportamento neoliberal do setor terciário apontam para o crescimento e para a
diversificação de uma economia competitiva formal, que manda milhares de trabalhadores
para a economia informal como única saída para fugir ao desemprego, à fome e à
miséria, não pode ser considerado como fator modernizador para a economia
nacional.
Deluiz (1994), ao analisar a questão da modernização, enfatizando o
crescimento dos serviços de automação no setor terciário brasileiro, aponta a busca
de maior produtividade como fator que levou bancos a aprofundar a especialização
do trabalho dos caixas, levando funcionários da retaguarda a uma atividade mais
autônoma, tais como a dedicação à parte comercial dos bancos. Com essa situação,
o setor bancário introduz os fatores básicos exigidos no processo de especialização
dentro da atual economia globalizada: flexibilidade, abstração, versatilidade, liderança,
comunicação, habilidade de discernimento, equilíbrio físico-emocional e capacidade de
decisão. Essas mudanças, essenciais no início no processo neoliberal, tomam-se
drásticas após a implantação desses serviços, não apenas no setor bancário, mas,
em todos os setores da vida econômica, pois causam desemprego e desemprego
causa fome, desnutrição, favorece a delinqüência, a prostituição e a desestruturação
familiar.
Influência da Globalização na Educação
A era da modernidade - entendida como a era das grandes transformações
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
tecnológicas- produzidas nos grandes centros hegemônicos se remete à periferia como
um con junto de bondosas criações c ientíficas, acompanhad as de determinações
ideológicas sobre a modernização, capazes de remodelar toda a sociedade política e
cultural dos países periféricos. Assim, são modernos apenas os padrões econômicos,
sociais e culturais surgidos e desenvolvidos nos centros do poder. A transferência
dessa modernidade para a periferia em forma de transferência de tecnologia e
ideologia vem com um único objetivo: sustentar a hegemonia dos centros do poder,
garantindo através da ideologia a perpetuação desses centros, de forma que a
modernidade possa ser algo apenas almejado pelos países periféricos.
A história tem mostrando que só os países desenvolvidos transitam pelo mundo
moderno do poder, subjugando sob os domínios econômicos e políticos os países
periféricos, tendo estes, jamais adentrado como parte integrante do cobiçado
círculo dos países dominadores.
O sistema taylorista que separou em nome do aumento e do controle de produção, o
trabalhador operário do trabalhador intelectual, separou também a concepção do
todo. Numa forma de juntar novamente as partes no todo, o processo de
globalização propõe uma nova forma de concepção desse todo, porém, carregada de
uma enorme seletividade profissional, fato que de per si, é suficiente para despachar para
o mercado de reserva milhões de trabalhadores. Dessa forma, o mercado mundial
globalizado ensaia uma nova fórmula taylorista, observadas nas segmentações cada
vez mais nítidas das classes sociais dentro do atual modelo.
O avanço de tecnologias sofisticadas exige do trabalhador maior aprimoramento na busca
da perfeita harmonia com o processo produtivo. Concomitantemente, a inserção de novas
tecnologias no mercado de trabalho, manda para a reserva um exército de trabalhadores
cuja mão-de-obra tornou-se desnecessária frente aos processos de modernização e
automação implantados nos setores de produção, numa clara visão de que:
"a qualificação para o trabal ho diante das inovações tecnológi cas adquire um caráter
dinâmico, no sentido de que a competência especializada para dado conjunto tecnológico pode
r
to nar-se obsoleto e inadequado para outro aparato tecnológico. A própria lógica qualifica e
desqualifica o trabalho"(Kawamura, 1990:14)
Assim, a modernizaçã o implica nu m tipo de reorg anizaçã o administrativa de
mecanismos que garantem o controle social e político, correspondentes aos pressupostos da
modernização. Nesse contexto, a educação é pensada numa determinada visão de
sociedade, para e a partir dessa visão estabelecer os valores, as normas, os conteúdos, as
pautas de conduta, as técnicas e os métodos de ensino, com os quais irá direcionar a
sociedade para atender as perspectivas dessa sociedade que a idealiza. Dessa forma, a
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
educação parece estar a serviço, apenas da formação de mão-de-obra para atender as
demandas do grande capital. De outra forma, o capitalismo globalizado impõe à educação a
produção de um profissional altamente qualificado, dinâmico e com capacidade de decisão
para ocupar os lugares criados pela nova ideologia do capital.
O enfraquecimento dos Estados Nacionais de forma rápida e eficaz pelo
neoliberalismo, busca no componente educação a sua principal via de acesso. O
financiamento da educação pelos organismos internacionais traz consigo um conjunto de
regras e estratégias que põe a descoberto o foco de resistência centrado no setor
educacional. A utilização dos meios de comunicação de massa não são apenas postos ao
comando do capital, servem antes, para a promoção do controle das massas dentro de um
objetivo que visa atingir o dia-a-dia da escola, a fim de utilizá-la como centro divulgador das
idéias neoliberais.
Aceitar que os subsídios oferecidos à educação determinem as regras para a
educação, é, concordar com o jogo dos países centrais, fato que vem ocorrendo nas
últimas décadas onde os governos dos países periféricos, sobretudo, os da América
Latiria têm contribuído para a vitória de algumas batalhas nesse jogo de cartas marcadas
pelas idéias capitalistas.
A parceria entre o Brasil os Estados Unidos na formulação da Lei n. 5.692/71 é um
exemplo claro da visão educacional pretendida para a educação brasileira. Ao implantar
oficialmente a reforma do ensino de 1° e 20 graus o governo brasileiro assinou a
deterioração da qualidade do ensino. Pretender naquele momento que, no ensino de 2°
grau, a educação profissional não fosse trabalhada em maior intensidade que à educação
geral era, sem dúvida, a maior expressão de hipocrisia. Quem no momento dessa reforma,
se não a pequena parcela da população abastada estaria interessada em educação geral?
Por outro lado, não podemos negar que numa época de profundas mudanças, aquela não
tenha sido organizada com a "melhor" das intenções. Entretanto, se por um lado o crescimento
econômico necessitava de urgente mão-de-obra "especializada", o setor educacional
necessitava manter um padrão mínimo de qualidade nesse ensino, fato que, com raras
exceções foi possível verificar. No momento em que todos os recursos foram direcionados
para a educação técnico-profissional, o sistema educacional brasileiro permitiu a queda
brusca na qualidade da educação. A falta de investimentos determinou a deficiência na
qualidade da educação oferecida pelo sistema público, passando a existir, dessa forma,
uma relação inversa: enquanto cresce a cada ano o número de crianças em idade
escolar decrescem gradualmente os investimentos no setor educacional. Dados da década
de 80 mostram que a redução dos gastos com a educação caiu de 24,4% para 18,1% em
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
toda a América Latina, enquanto cresciam as cifras com o pagamento dos juros da dívida
externa, em detrimento da alocação de recursos para os setores sociais contribuindo ainda
mais para a queda na qualidade do ensino público.
Tratar da qualidade da educação requer compromissos por parte de toda a sociedade e
não apenas, por parte dos educadores. Proporcionar ao ser humano condições de
preparação para a vida cotidiana requer além da valorização das condições implícitas no
indivíduo, condições materiais externas que possam permitir o patrocínio do crescimento
das habilidades, indispensáveis a uma boa formação.
Os constantes ataques dirigidos pelo sistema capitalista à educação pública
buscam confundir o papel social da educação com o fito de substituir seus fins sociais em
objetivos empresariais. Entre os mais freqüentes ataques, estão os que dizem ser a
educação mal administrada e por isso perdulária: que os principais responsáveis pelo
fracasso da educação são os professores e que a educação não se ajusta ao mercado,
visam unicamente inserir na população o descrédito na educação pública, promovendo em
contra partida a ideologia de que o sistema privado de ensino é sempre superior a aquele.
Gastar mal, pode não ser a causa determinante e nem regra geral para o problema da crise
educacional, que, aliás, seria crise educacional ou seria crise ideológica do capital? O
cerne do problema enfrentado atualmente pela educação pode estar diretamente
vinculado aos baixos salários pago aos professores da rede oficial de ensino (em todos
os níveis de governo), à falta de investimentos no setor podem ser visto como estratégias do
capital para o enfraquecimento no setor educacional público. O baixo salário pago aos
professores transforma-os em verdadeiros maratonistas escolares, fato que impede, em
nome da própria sobrevivência na maioria dos casos, um verdadeiro comprometimento com
a educação. Culpar os professores e educadores pelo distanciamento cada vez mais
acentuado entre o ensino e sua qualidade, é apenas uma forma capitalista de tentar tomar
as rédeas do poder no setor educacional, não com o objetivo de melhorá-la, mas, no
sentido de torná-la privada, empresarial, lucrativa para o mercado e totalmente vinculada
aos ditames dos governos neoliberais. Dessa forma, a adequação da educação ao
mercado viria de certa forma, muito mais rápida. A automação globalizada transformaria
mais rapidamente homens em máquinas, enquanto se deterioraria a capacidade de se
pensar socialmente o futuro da humanidade.
Influência da Globalização na Educação Brasileira
A introdução desenvolvimentista da educação no Brasil remonta as teorias da
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
modernização, surgidas sob a influência da Escola Nova e que se fez representar por
nomes como os de Fernando Azevedo e Anísio Teixeira (partidários do
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova-1932) cuja compreensão, era de que a
escola deveria se constituir no centro modernizador da Educação através do conhecimento
científico. O pensamento escolanovista vai se enfraquecendo nos vinte anos posteriores,
cedendo lugar ao pensamento de que a ducação deveria ser transformada em educação
profissional.
Na década de 1960, se articulam no Brasil novas condições de adequação do
sistema de e nsino à modernização econômica que paulatina mente é implantada
no país. Essas condições favorecem o surgimento de cursos técnico-profis sionais de
nív el méd io (secu ndário) qu e for talece m a ocupaç ão economicista da educação
ao mesmo tempo em que, em 1964 se iniciam os fortes mecanismos repressivos dos
"aparelhos ideológicos de Estado" (Althusser, 1970), para assegurar os interesses
capitalistas representados pela ordem constituída dos governos militares sob a tutela
dos governos dos países centrais.
No Brasil, é preparado um aparato de Estado para atuar como elemento
regulador e ao mesmo tempo impulsionador do processo de desenvolvimento
empreendido (pelo governo JK) como forma de implementação da modernização da
"sociedade política" a fim de possibilitar a internalização do capital.
Com o novo regime implantado, a educação brasileira passa a ser apenas, um
componente
destinado
a
produção
de
mão-de-obra,
fundamental
para
o
suprimento das necessidades criadas pelo capital, cuja finalidade seria a
"integração do país" ao capitalismo internacional.
A política adotada pelo governo pós-68 avança flagrantemente sobre o sistema
educacional do país. A Lei n° 5.692/71 reformula todo o sistema de ensino, deitando
clara a tônica que iria reger os novos rumos da educação no Brasil: formar recursos
huma nos técnicos e científicos, de nível médio e especialista de nível superior,
para atuar na expansão educacional capitalista brasileira. A Lei n° 5.692/71 decreta
compulsoriamente a supremacia do ensino técnico nas escolas oficiais, proliferando
em todo o país as escolas técnicas federais.
Embora, nesse período o país tenha conseguido uma industrialização plausível, esta
não foi suficientemente forte para elevar o país à categoria de moderno e
desenvolvido, como pretendiam os governantes. Ao contrário, acelerou-se a
dependência externa. No âmbito educacional, a política de desenvolvimento
implementada pelos sucessivos governos, dão conta de que a qualidade ria
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
educação vem despencando vertiginosamente, ao mesmo tempo em que aumenta o número
de analfabetos no país. Se a atual política desenvolvimentista persistir a educação corre o
risco de se transformar em mera forma de atender as demandas do capital no sentido de
que "reduzir a qualidade do ensino ao paradigma tecnológico é retroceder no tempo, atrelar a escola ao
setor produtivo e renunciar sua missão fundamental que é a formação integral do homem"(Costa/Silva.
apud Saviani. 1996).
Enquanto o projeto neoliberal condena toda e qualquer participação do Estado na
economia, as multinacionais se implantam nos países periféricos, obtêm isenção fiscal e
outros subsídios estatais. E importante atentar para a dupla subserviência a que servem
nossos
governantes.
Enquanto
permitem
ataque
ao
poder
econômico
nacional,
transformam as multinacionais em vitrine para as suas compras. Para essas empresas,
vencer as concorrências se torna presa fácil: abrem caminhos para o diálogo entre o
governo e matriz da empresa sediada longe dos limites geográficos do país, ao
mesmo tempo em que impedem o crescimento das empresas nacionais.
Outros freqüentes ataques disparados pelo projeto neoliberal, contra o governo e,
conseqüentemente contra o sistema educativo (brasileiro) são enfocados pelos
meios de comunicação de massa (TV, Jornais, rádio) responsabilizando o sistema
governamental pela corrupção ineficiência administrativa, desperdício, mau uso do erário
público, entre outras. Desnudam o sistema anterior, agora suplantada pela mais nova forma
de reorganização econômica-política mundial. Esses ataques buscam enaltecer a iniciativa
privada em detrimento do setor público.
A produção das famosas "apostilas," usadas em quase todos os cursos, elaboradas
em sua grande maioria sem qualquer procedimento didático-metodológico, se
transformam em guias práticos a direcionar as atividades dos docentes e dos discentes,
numa forma clara, de tomada da posição dianteira pelo setor privado sobre o sistema público
de educação. Além de nada proporcionarem de inovação em matéria de ensino, as apostilas
arranjam um jeitinho de tornar seu uso obrigatório em detrimento dos livros didático
considerados em maior profundidade de conteúdos, e da própria criatividade do professor,
passando este a mero cumpridor de tarefas escolares.
A Lei n°' 9.131 /95, que criou o exame nacional de cursos, sistematizada pela Portaria
249/96, são formas claras e definidas da imposição neoliberal, no sentido de adequar todo
sistema educacional brasileiro às regras do capital. A preferência inicial pela verificação do
ensino superior (cursos técnico-liberais) apontam para a aproximação gradual e rápida sobre
os cursos de formação de professores. Daí, chagar até as dimensões do ensino médio
demandará apenas ligeiros ajustes no projeto e no objetivo central.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Os novos estudos que foram e estão sendo gestados desde o início da década de 90,
apontam para novos ajustes da educação frente às necessidades do capital. Adequar os
currículos
escolares
para
o
oferecimento
de
habilidades
cognitivas
mínimas,
escamoteando habilidades básicas próprias do crescimento integral do indivíduo, será a
tônica que regerá a educação dentro do sistema neoliberal.
Bibliografia
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José de Moura Ramos, Lisboa: Editora Presença, LDA, 1970.
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Universitária: la perspectiva mexicana. In: MORSINI, Marília Costa (org) Universidade no
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de alienação? Educação e Filosofia, Uberlândia: jan/jun, 1995.
*Jose Maria Leite Botelho. Professor do DEGEO/UFRO, Mestre em Educação pela
UFRJ.
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
O COMÉRCIO E AS ROTAS FLUVIAIS NA
SOCIEDADEGUAPOREANA COLONIAL
Marco Antonio Domingues Teixeira.
Resumo: O comércio constituiu-se como principal fonte de
abastecimento para o vale do Guaporé no período colonial.
Internamente a produção agrícola de subsistência abastecia a região
de gêneros de necessidade imediata como o milho, a mandioca, feijão
e hortaliças. No entanto os demais produtos vinham de fora, através de
rotas estabelecidas entre São Paulo-Cuiabá-Vila Bela, Bahia-Vila Boa
de Goiás-Cuiabá-Vila Bela e finalmente Belém do Pará-Vila Bela,
através do roteiro fluvial do Amazonas-Madeira-Mamoré e Guaporé.
Entre os produtos trazidos por terra, através das rotas sertanistas, ou
pelos rios, através das rotas monçoeiras estavam: escravos, tecidos,
utensílios domésticos, armas e munições, gêneros alimentícios como
sal, açúcar, vinhos, queijos e carnes, papel, materiais para
construção, objetos para culto e celebrações religiosas, objetos
para mineração e muitos outros.
Palavras – Chave: Produção agrícola, Sertanistas, Gêneros
Alimentícios e Mineração.
Abstract: Trade is the main source of supply for the Valley of the
Guaporé in the colonial period. Internally the subsistence agricultural
production supplied the region of immediate necessities such as maize,
cassava, beans and vegetables. However the rest came from outside,
through routes established between São Paulo-Cuiabá-Vila Bela, BahiaVila Boa de Goiás-Cuiabá-Vila Bela and finally Belém do Pará-Vila Bela
River through the roadmap of Amazonas-Madeira-Mamoré and
Guaporé. Among the products brought by land, through the routes
sertanistas, or by rivers, through the routes monçoeiras were: slaves,
fabrics, household items, weapons and ammunition, groceries as salt,
sugar, wine, cheeses and meats, paper, construction materials, objects
for worship and religious celebrations, objects for mining and many
others.
Keyword: Agricultural production, Sertanistas, groceries and mining.
O comércio constituiu-se como principal fonte de abastecimento para o vale do
Guaporé no período colonial. Internamente a produção agrícola de subsistência abastecia a
região de gêneros de necessidade imediata como o milho, a mandioca, feijão e hortaliças.
No entanto os demais produtos vinham de fora, através de rotas estabelecidas entre São
Paulo-Cuiabá-Vila Bela, Bahia-Vila Boa de Goiás-Cuiabá-Vila Bela e finalmente Belém do
Pará-Vila Bela, através do roteiro fluvial do Amazonas-Madeira-Mamoré e Guaporé. Entre
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
os produtos trazidos por terra, através das rotas sertanistas, ou pelos rios, através das rotas
monçoeiras estavam: escravos, tecidos, utensílios domésticos, armas e munições, gêneros
alimentícios como sal, açúcar, vinhos, queijos e carnes, papel, materiais para construção,
objetos para culto e celebrações religiosas, objetos para mineração e muitos outros. A
característica maior desse comércio foi sempre a interdependência com a produção de ouro.
As rotas comerciais foram tanto mais ativas quanto maior foi a produção de ouro, e decaíram
na medida em que o ouro se tornou escasso. No entanto outro fator determinante para o
abastecimento local através do comércio monçoeiro e sertanista foi a questão da
política fronteiriça, que requisitava a franquia de um roteiro fluvial suficientemente
estruturado para garantir o abastecimento bélico, de gêneros alimentícios, medicinais
e recursos humanos para os trabalhos e defesa local. Assim ao se estruturarem os roteiros
comerciais do vale do Guaporé com o restante da colônia teve-se em mente a importância
da manutenção da produção aurífera como elemento indispensável para garantir o
abastecimento local que garantiria por sua vez a guarda eficiente das fronteiras.
Nos primeiros anos após a descoberta das minas do Mato Grosso o comércio se
realizava sempre pelas rotas que ligavam a região guaporeana a Cuiabá e esta a São
Paulo e Rio de Janeiro. A primeira constatação que se faz neste caso é a precariedade do
abastecimento. A falta de gêneros, mesmo os de primeira necessidade era uma
possibilidade muito real. Aos curtos períodos de euforia correspondentes à chegada de uma
monção ou de uma tropa sertanista sucediam-se longos períodos de crise e
desabastecimento, com catástrofes como a fome e o conseqüente aumento das epidemias.
A inconstância do abastecimento era motivada por fatores diversos como ataques indígenas,
naufrágios, excesso de chuvas, secas, epidemias, crise na produção aurífera ou mesmo
práticas de especulação. Assim o cronista Barbosa de Sá registra que devido a um ataque
dos índios Paiaguás: "naó chegou neste ano fazenda alguma de povoado que a que escapou
do gentio em outras Canoas que vieraó atras chegou podre pello que houve falta de tudo; e
chegouse a dar por um frasco de sal meya libra * de ouro e por falta delle senaó
admenistrava o Baptismo. “O Barão de Melgaço refere-se a 1732 como outro período de
desabastecimento que foi provocado pela” visível decadência (das minas de Cuiabá) segundo
uma extensa petição dirigida ao provedor pelo capitão-mor Luís Vilares e outros. A dita
petição foi feita em conseqüência dos estragos que havia feito o gentio e pela notória falta de
ouro nas faisqueiras, carência de gêneros de consumo e de víveres. Dizem que chegara a se
vender o prato de sal por 10 oitavas, camisas de linho por 12 e a libra de pólvora também por
12 oitavas e nos anos anteriores o milho foi vendido a razão de 12 oitavas e o feijão 24 a
30. lx O desabastecimento de gêneros como o sal implicavam na falta de outros ainda
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
mais importantes como a carne. uma vez que o único modo para sua conservação e
distribuição para os destacamentos militares fronteiriços era através de seu salgamento. A
falta constante de todo tipo de gêneros também é constatada pelo governo e Rolim de Moura
escreveu que faltavam "as coisas mais precisas para o comum contento, além das doenças a
que se vive sujeito... Por falta de vinho estamos quase a ficar sem missa nem sacramentoIxi.
Justificando-se a partir do elevado custo de todo tipo de gêneros, o governador Rolim
de Moura passou a pleitear a abertura da rota tal Guaporé-Mamoré-Madeira e Amazonas,
que ligaria Vila Bela da Santíssima Trindade a Belém do Pará, em carta dirigida a Diogo
Mendonça Corte Real em 28 de maio de 1752 o governador afirma:
“Não haver outro meio para o aumento desta terra mais do que buscar modo, por que se elimina a
grande carestia dela. O ú n i c o q u e m e o c o r r e é franquear Sua Majestade o comércio com o
Pará, pois só por esta via podem vir às fazendas por preços que façam conta aos seus moradores...
A experiência o mostrou já, por que na ocasião em que aqui chegaram as primeiras canoas do Pará
se venderam os gêneros todos por preços inferiores, que os de Cuiabá...”lxii
A seguir apresentamos uma relação de objetos e gêneros e seus preços praticados
em Cuiabá e no vale do Guaporé (Vila Bela). Esta relação elaborada pelo próprio Rolim de
Moura foi um dos instrumentos por ele utilizados para solicitar a D. José I a abertura da rota
do Madeira, que até então tinha sua navegação interditada por motivos de estratégia
política, militar e econômica.
TABELA N°01
lxiii
2- CUSTOS DE GÊNEROS, OBJETOS E MERCADORIAS EM CUIABÁ E VILA BELA
Objeto
Alavanca
Libra de Aço
Libra de Pólvora
1 alqueire de sal
2
Baetas*
Custo em Cuiabá
2 Oitavas
½ Pataca de ouro
1 ½ oitava
9 a 10 oitavas
3
1 Cruzado * de ouro ¾
Custo em Vila Bela
6 Oitavas
1
12 Vinténs* e meia oitava
2 ½ a 3 oitavas
24 oitavas
1 oitava e ¼
Ao pretenderem a ligação comercial com o Pará através da rota fluvial do GuaporéMadeira e Amazonas, as autoridades coloniais e metropolitanas tinham e m mente não só
aliviar o auto custo de manutenção do abastecimento praticado até então através
de Cuiabá, mas, sobretudo facilitar o escoamento do ouro por um roteiro mais seguro,
reduzindo as possibilidades de seu contrabando pelas rotas terrestres para São
Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, Mesmo enquanto esteve legalmente proibida, a
prática clandestina desse roteiro era de conhecimento e anuência das autoridades
coloniais. O próprio governador Rolim de Moura não obstruía monções de alguns que
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pediam para vir buscar gêneros na capital paraense:
“Esta consideração foi causa de que eu não negasse a licença a alguns que a
pediram para ir buscar fazendas àquele porto, e que ainda me atrevesse escrever ao
Governador daquela Capitania para que me permita a alguns, ou destes ou dos que lá
estão já tornarem com as suas carregaçõeslxiv.”
Além do que procurava manter contatos com o governador do Pará, O CapitãoGeneral Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal. Em
seus contatos com o governador do Pará Rolim de Moura apresenta as vantagens
tanto para Mato Grosso quanto para Belém da abertura da rota fluvial do Madeira,
ressaltando ainda a maior rapidez das comunicações com a Metrópole através dessa
via.
A abertura da rota das monções do norte foi fruto da permanente insistência
das autoridades coloniais do Pará e, sobretudo de Mato Grosso. Assim, pela Provisão de
14 de novembro de 1752, conhecida em Mato Grosso somente em 1754 ficava
permitida e franqueada a navegação pelos vales do Guaporé, Madeira e Amazonas,
estabelecendo-se ligação comercial entre Vila Bela e Belém do Pará, proibindo-se a
comunicação entre as duas capitanias por qualquer outro caminho fluvial que não fosse
a rota do Madeira (conforme evidencia o Barão de Melgaço, essa interdição perdurou
até 27/04/1791 quando se abriu a navegação pelo Xingu e Tocantins)lxv. A rota do
Madeira até então interditada por temor de uma expansão castelhana por territórios
coloniais portugueses era agora franqueada entre outros motivos para que se
inviabilizassem tentativas de contrabando de ouro de Mato Grosso com a colônia
castelhana, bem como suas ações expansionistas e o comércio clandestino
realizados entre os colonos de Mato Grosso e as Missões da margem esquerda do
Guaporé. A abertura da rota fluvial do Madeira deveria ser consolidada com a fundação de
arraiais ao longo de alguns pontos estratégicos que garantiriam apoio aos comboieiros
bem como a fiscalização de suas cargas. As medidas de prevenção ao contrabando e
proteção d a s f ro nt e ir as e ro tas f luv ia is s e ria m c o mp le ta d as c o m a cr iaçã o de
destacamentos militares e fortificações. Baseando-se nestas premissas surgiram os
arraiais de Santo Antônio das Cachoeiras do Rio Madeira, a partir de uma missão
jesuítica; o povoado de Nossa Senhora da Boa Viagem do Salto Grande, fundado pelo
Juiz de Fora Teotônio Gusmão, na cachoeira que hoje leva o seu nome e o arraial do
Balsemão, localizado na cachoeira do Giraulxvi.
O estabelecimento da rota do Madeira levantou protestos por parte da Alfândega do
Rio de Janeiro que alegava que sofreria graves prejuízos sobre os direitos de entrada dos
81
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
produtos, mercadorias e escravos para São Paulo e daí para o Mato Grosso. Entretanto a
Capitania do Mato Grosso obteve a permissão régia e passou a ser um atraente mercado
consumidor para os comerciantes de Belém do Pará. Após ser franqueada a navegação pelo
Madeira o governo estabeleceu permanentemente sua presença, incluindo em todos os
comboios embarcações da Coroa.
A empreitada das monções eram penosas e marcadas sempre por grandes riscos.
Além das enormes distâncias a serem vencidas os comboios enfrentavam ainda obstáculos
naturais como as 20 cachoeiras do Madeira e Mamoré ataques de nações indígenas hostis
como os Mura e os Mundurucu, que lutavam contra a invasão de suas terras pelos
navegadores, a escassez de alimentos e a fome. Em terra os perigos não eram
menores: cobras, pragas de insetos, animais peçonhentos, formigas, onças e plantas
de espinhos venenosos. Nos banhos de asseio corria-se o risco de ataques de piranhas,
jaús, jacarés, piraíbas, candirus, sucuris e arraias com ferrões venenosos. Na água além do
perigo das cachoeiras havia os gigantescos troncos de árvores (que deram nome ao no
Madeira), cujo choque com as embarcações provocava danos, naufrágios e mortes. Por fim
salientamos ainda o perigo das doenças tropicais típicas da região como a malária, o
tifo, a febre-amarela e a lestimaniose. Além de todos esses perigos reais o desconhecido
povoava de fantasias e seres fantásticos o imaginário dos viajantes reforçando superstições,
mitos e crendices, contribuindo para aumentar o grau de tensão das viagens. Em seu diário
de navegação pelo rio Madeira, Francisco de Mello Palheta retrata a viagem da bandeira por
ele comandada em 1722. Dela retiramos alguns trechos que são particularmente
esclarecedores sobre o alto grau de dificuldades pelos quais passavam os comboieiros:
"... à cachoeira dos Iguarites, aonde chegamos vésperas de São João e nela vimos sem encarecimento
uma figura do inferno (...), pois nenhuma (cachoeira) se iguala, nem tem paridade a esta do rio
Madeira, na sua grandeza e despenhadeiros tão altos que nos pareceu impossível a passagem (...)
foi necessário fazer caminho por terra (...) mais de meia légua.
Daqui continuamos nossa derrota passando por cachoeiras, umas atrás das outras... a que chamam
Mamiu, que gastamos três dias para passar (...) e com tal perseguição de pragas de piuns *-(...) esta
cachoeira(...) é tão terrível, monstruosa e horrível, que mesmo aos naturais de cachoeira mete
horror e faz desanimar.
Depois das frutas do mato acabadas, comíamos que ate carne de lagartos, camaleões e capivaras...
2
Neste lugar deu parte o principal Joseph Aranha ao cabo haver visto uma mui grande aboiada * , que
3
afirmam teria parco menos de 40 passos* de compri mento e de grossura julgaram ter
4,
l x v ii
qui nze a de zessete pés* grandes monstruosid ades tem esse rio... ”
Esse conjunto de fatores de tensão tanto real quanto imaginários mantinha
as tripulações sobressaltadas e inquietas (Levava-se um ano e meio a dois anos e
meio para se realizar uma viagem de ida e volta entre Vila Bela e Belém do Pará). O
trecho encachoeirado requeria o trabalho de 100 a 120 homens p ar a sirg ar as
e mb a rc açõ es o u me s mo a rr as tá -las p o r t erra , o q u e p rov ocav a estragos nos
82
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
cascos e retardamento na viagem interrompida para consertos e reparos. Na maior
parte das vezes as embarcações deveriam ser esvaziadas e sua carga levada pelos
participantes, por picadas e trilhas nas margens dos rios. Das vinte cac hoeiras,
some nte u mas poucas eram atrav essada s a remo. As embarcações utilizadas eram
chamadas igarités e tinham capacidade para o transporte 1000 (de mil) a 2000 (duas
mil) arrobas de cargas, além de possuíre m velame. Para se defender dos perigos,
eram dotadas peças de artilharia na popa e na proa. Rolim de Moura ainda adaptou-lhes
bacamartes, foices e chuços de ferro, para protegê-las das abordagens de indígenas,
quilombolas, castelhanos ou s alteadores.
lxviii
A
despeito
de
todas
essas
dificuld ades observadas , o comérc io que se estabeleceu entre Vila Bela e Belém do
Pará foi enormemente rentável. No período áureo das lavras mato-grossenses, entre
1760 e 1780, registraram-se a chegada de duas monções por ano em Vila Bela. Esse
comércio foi intensificado com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão que
integrou o vale do Guaporé e as minas de Mato Grosso ao mercantilismo colonial. O
comércio organizou-se com base no sistema crédito/dívida e forneceu à região
escravos, tecidos, louças, gêneros alimentícios, munições, materiais de garimpo
e agropecuários.
l xi x
Na composição dos preços entrav a a possibilidade de
insolvência dos devedores, as dificuldades de transporte, os riscos de perda parcial
ou total da carga, a deterioração dos produtos perecíveis, a imobilização do capital e a
instabilidade de extração do ouro nas minas de Mato Grosso. As lavras, a edificação
da vila e as lavouras garantiam um mercado promissor, sempre ansioso por mais
braços cativos. Dessa maneira, formou-se, através da Companhia de Comércio do
Grão Pará e Maranhão, uma rota fluvial constante, que abastecia o vale do Guaporé
de negros e gêneros comercializados em Belém do Pará. Abaixo relacionamos alguns
itens constantes nos carregamentos das Companhias com destino à Praça de Mato
Grosso e seus respectivos valores obtidos de uma Memória dos Preços que no
Mato Grosso São Vendidos os Gêneros Secos e Molhados (1772)lxx.
TAB E L A N °0 2
3 - PRODUTOS E PREÇOS PRATICADOS PELA COMPANHIA DE COMÉRCIO DO
GRÃO-PARÁ E MARANHÃO EM MATO GROSSO
PRODUTOS
Escravo negro "bom
Escravo negro "inferior"
Escravas negras
Sal
Quilo flamengo
Vinho tinto
Vinagre
Azeite
Aguardente
CUSTO
EM
MATO
GROSSO
200 oitavas ou 300.000 réis
160 a 180 oitavas
2 arráteis de ouro ou 384.000
Réis
15 a 30.000 réis / alqueire
3.000 réis / unidade
3.000 réis / frasco
3.000 réis / frasco
3.000 réis / frasco
3.000 réis / frasco
CUSTO EM LISBOA (L) OU
NO PARA (P)
80.000 réis (P)
60.000 réis (P
70.000 réis (P)
81 réis (L)
--6.000 réis i pipa (L)
2.000 réis / barril (L)
44.443 / pipa (L)
83
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Farinha de trigo
Paio
Chá
Café
Manteiga
Baeta encarnada, azul
Pano encarnado, azul ou
Pardo
Chapéus finos
Chapéus grosseiros
Meias de seda
Meias linha
Panos de linho para
Lençóis
Panos de linho para
camisas
Panos de bertanha
Panos de cambraia lisa
Abotoaduras de metal
Veludo encarnado, azul e
preto
Tafetá
Seda lisa
Facas Flamengas
Tesouras
Espelhos pequenos
Pentes de marfim
Pentes de tartaruga
Machados
Foices
Anzóis
Fechaduras
Pratos
Louça (da Índia?)
Pratos (de louça da
Índia?)
Copos de vidro
Frascos de vidro
Ferro em barra (da
Suécia?)
Aço
Cobre ou caldeirão
Pólvora
Estanho
Cera Branca
Alfazema
Sabão
3.000 réis p/ cada 3 arrobas
900 réis cada
6.000 réis / arrátel
750 réis / arrátel
750 réis / arrátel
15 tostões*' / côvado*=
4.500 réis / côvado
--300 réis (L)
-----
10.500 réis/unidade
4.500 réis' unidade
7.500 réis / par
1.500 / unidade
1.500 réis / vara*'
------
2.260 réis / vara
--
9.000 réis / vara
7.500 réis / vara
9.000 réis / par
7.500 réis / côvado
3.000 réis (P)
----
1.500 réis côvado
4.500 réis / côvado
400 réis / unidade
750 réis / unidade
400 réis / unidade
400 réis / unidade
1.500 réis / unidade
3.000 réis / unidade
1.500 réis / unidade
3.000 réis / dez.
2.250 réis' unidade
750 réis / unidade
45.000 réis / aparelho de chá
2.250 réis / unidade
--84 réis (L)
--------10 réis (L)
---
750 réis / unidade
1.200 réis / unidade
400 réis / arrátel
----
750 réis / arrátel
1.500 réis / arrátel
4.500 réis / arrátel
1.500 réis / arrátel
1.500 réis / unid. de vela, '/z
Arrátel
400 réis / arrátel
750 réis arrátel
--------
O lucro obtido pelos mercadores que compravam mercadorias no Pará para
revendê-las em Mato Grosso sofria limitações como as que foram ordenadas pelo
Marquês de Pombal aos governadores do Pará e Mato Grosso a fim de que se
controlassem o lucro entre 10 e 12% sobre o preço das mercadorias no Pará,
considerando-se ainda o custo de costeamento de suas canoas.
Fretes e despesas diversas.............................................18%
Riscos e avarias...............................................................10%
Lucro permitido.................................................................12%
Preço permitido para venda..............................................40%
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Criada pelo Alvará Régio de junho 1775, a Companhia de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão deveria atender às necessidades de desenvolvimento geral da parte norte
da colônia através da atividade comercial e sua integridade territorial. A Companhia
detinha a exclusividade do comércio com as capitanias e monopolizava o abastecimento de
escravos no norte, através dos portos de Belém e São Luís conforme o artigo 30 do
Alvará citado acima. O lucro de suas atividades seria verdadeira mente elevado,
como podemos observar pelo "Memorial dos Preços de Mato Grosso" que
infelizmente não menciona os preços de custo do local de origem. No entanto, é
necessário observar que ao organizar sua estratégia de penetração continental pelas
capitanias do Pará, São José do Rio Negro e Mato Grosso a Companhia promovia mais
do que o mero abastecimento, a canalização de toda a produção de drogas do sertão e
principalmente do ouro retirado das minas do Mato Grosso, pois por ordem da
Secretaria de Estado em Lisboa toda a produção das lavras seria escoada pela rota
do Madeira lxxi i . Dessa forma fortalecia-se a presença do Estado Colonia l na
região fronteiriça, estimulava-se o povoamento e a exploração do ouro através do
abastecimento
mais
barato
e
mais
regular
efetuado
pela
Companhia
e
proporcionar-se-ia maiores lucros à Praça de Belém e à Alfândega Real. Estes itens
são evidenciados na correspondência entre Mendonça Furtado e Corte Real:
"O comércio pelo rio Madeira, com o qual aumentaram as minas, o comércio e o rendimento desta
r
Alfândega. Seguraremos a navegação do Madeira e do Guaporé e ficaremos fa tes naqueles limites nos
lxxiii
quais não tínhamos força alguma com que repelir violência dos vizinhos .”
A consolidação da rota do Madeira provocou uma intensa ligação entre Vila Bela e
Belém, levando a um declínio acentuado o comércio realizado pelas monções do sul
através do Rio de janeiro e São Paulo.
O abastecimento, embora mais barato e regular do que o anteriormente feito pelas
rotas de São Paulo e Rio de Janeiro, sempre foi considerado insuficiente, quer pela
população, quer pelas autoridades de Mato Grosso. Esse fato se agravava sobremaneira
no tocante ao abastecimento de mão-de-obra escrava. Nas correspondências de D.
Antônio Rolim de Moura, encontramos uma longa exposição de motivos pelos quais
padeciam os habitantes do vale do Guaporé do desabastecimento e da carestia:
"Não tem nenhum outro obstáculo que por hora para fazer eleger com preferência os das outras
Praças. Mais do que a maior facilidade que tem de alcançarem fianças ou fazendas, e o maior
número de pretos que acham para seus transportes: cuja carestia e mais que toda grande
esterilidade que encontram nessa cidade os faz: desanimar para prosseguirem um comércio que não
podem sustentar sem estes socorros. Por isso exorto vossa mercê que participando aos
Deputados da Mesa este objeto. Lhe hajam de representar que nas maiores remessas de escravos
85
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
consistia a maior parte do aumento e felicidade não só destas minas mas tão bem deste
lxxiv
estado.”
A demanda comercial era sustentada, principalmente, pelos mineiros e pelos
governos. Ambos os segmentos não conseguia m assegurar seus pagamentos,
premidos por dívidas provenientes de gas tos públicos imprescindíveis (no caso do
governo) ou, no caso dos mineiros, esmagados pelo alto custo dos escravos, sua baixa
produtividade e rápida invalidez e instabilidade das lavras, dessa forma, as dívidas
cresciam e rolavam como mostram os balanços das Companhias do Grão-Pará e
Maranhão. Esse endividamento aumentava a dependência do comércio monçoeiro e
limitava as oportunidades de acúmulos internos, o que, em última análise, impedia o
crescimento da capitania e a diversificação das atividades produtivas.
Com a extinção da Companhia do Grão-Pará e Maranhão em 1778, o fornecimento
de artigos e escravos sofreu uma brusca e repentina redução, obrigando os
comerciantes a rearticularem seus roteiros e elevando ainda mais os já elevadíssimos
preços praticados. Nas primeiras décadas do século XIX, a rota comercial do Madeira já se
encontrava em profunda decadência terminando por extinguir-se em meados desse mesmo
século. O abastecimento cada vez mais precário e esporádico passava a ser feito
novamente através das rotas do Rio de Janeiro e São Paulo e por intermédio de Cuiabá.
O contrabando, no entanto, impulsionou parcialmente a economia regional, tornandose uma estratégia possível numa região fronteiriça onde as severas leis coloniais
inviabilizavam o intercâmbio regular e legalizando entre as duas colônias, conforme
evidencia Luísa Volpatolxvv. Foi justamente através dessa prática e a conseqüente obtenção
da prata que se conseguiu garantir alguma condição de barganha entre a capitania e os
grandes centros de poder colonial, o que não foi suficiente para criar condições de
superação da crise provocada pela decadência da mineração. Esse quadro sombrio
agravou-se sobremaneira ao longo das primeiras décadas do século XIX. A região passou
então por um intenso processo de despovoamento, que se ampliou na medida em que os
focos da tensão fronteiriça deslocaram-se progressivamente para o vale do Paraguai. Aos
poucos, mas ininterruptamente a decadência foi se instalando, até que com a transferência
da capital para Cuiabá o vale do Guaporé passou a ser uma região notoriamente esquecida,
povoada somente pelos negros, descendentes de escravos que ali permaneceram.
A questão da decadência da navegação pela rota do Madeira liga-se primordialmente
ao fato da decadência das próprias minas do Mato Grosso, principalmente as do vale do
Guaporé, o que provocou um crescente endividamento da Capitania, junto à
Companhia de Comércio do Grão-Pará. Em 1769 a Capitania devia 55:885$715 réis;
86
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
em 1770 essa dívida subiu para 280.000$000 réis, em sua maior parte oriunda do
comércio monçoeiro.lxxvi A desativação da Companhia é também a causa fundamental da
decadência da rota cio Madeira, como ressalta Dom Francisco de Souza Coutinho.lxxvii A rota
do Madeira atendeu primordialmente aos interesses da política do Marquês de Pombal,
constituindo-se com as idéias de solidificação do fisco do ouro e do aparelhamento
estratégico-militar para a defesa de fronteiras num dos elementos que garantiu à empresa
mercantilista portuguesa a plena exploração das riquezas produzidas nas capitanias da
Amazônia. A decadência da produção aurífera que gerou urna ampla crise econômica e
financeira na região e a mudança das políticas diplomáticas e fronteiriças sob o reinado
de D. Maria I e D. João VI tiveram, portanto efeitos decisivos sobre o quadro de crise geral
que se instaurava rio vale do Guaporé e em todo o Mato Grosso o que combinado com a
desativação da Companhia terminou por inviabilizar a manutenção da rota comercial
Amazonas-Madeira-Guaporé.
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1988. (Há outra edição: Brasília. Editora da UNB, 1979.
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87
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
NOTAS
i
Delia del Pilar Otero. E1 Acre: un nuevo caso de fragmentación dei espacio amazónico. In: DATA. Revista
dei Instituto de Estudios Andinos e Amazónicos. La Paz, 1993, no. 4.
ii
Vide Emanuel Pontes Pinto. Rondônia, Evolução Histórica: a Criação do Território Federal do
Guaporé. Fator de Integração Nacional. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993, p. 79; Said Zeitum
Lopez. Amazonia boliviana: introducción al estudio de la tematica norteamazonica. La Paz.
Producciones Gráficas Visión, 1991, p. 26; Vítor Hugo, Desbravadores. Rio de Janeiro. Cia. Brasileira de Artes
Gráficas, 1991, p. 21.
iii
Luiza Rios Ricci Volpato. Mato Grosso: ouro e miséria no antemural da colônia 17511819. Dissertação
de Mestrado. FFLCH. São Paulo, 1980.
Marco Antonio Domingues Teixeira, Dos campos d'ouro a cidade das ruínas apogeu e decadênci a do
colonialismo português no vale do Guaporé: séculos XVI II e XIX. Dissertação de Mestrado, UFPe.
Recife, 1997.
iv
Denise Maldi Meireles. Guardiães da fronteira rio Guaporé século XVIII. Petrópolis. Vozes 1978. Vide
Arthur Cézar Ferreira Reis, Limites e demarcações na Amazônia brasileira. 2 vol., Belém, SEJUP, 1993 e
Leandro Tocantins, Formação histórica do Acre. 3 vols., Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1961.
v
Interessante comentário sobre o "imperialismo Brasileiro" e a questão de fronteiras em Victor Leonardi,
Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil, Brasília, Ed. Paralelo/UNB, 1996,
p. 272.
Vi
Vide Said Zeitum Lopez, obra citada e Jose Aguirre Acha, De los Andes ai Amazonas: recuerdos de Ia
campanha dei Acre. La Paz, Imprenta Superei, 1980.
vii
Álvaro Maia, Gente dos seringais. Rio de Janeiro, s/ed., 1956, p.104.
vii i
Estas incursiones Jesuitas que provenían t anto de ias misiones de los Moxos Audiencia de
Charcas como dei Marañón y Gran Pará Brasil..." Said Zeitum Lopez, obra citada, p. 29.
vix
x
Álvaro Maia, obra citada, p.120.
Juan B. Coimbra. Siringa: Memorias de un colonizador dei Beni. La Paz, Libreria Editorial Juventud,
1989. p. 100.
xi
Emanuel Pontes Pinto, obra citada, obra citada, p. 88 e Antonio Carvalho Urey, Sintesis Monografica dei
Beni. Trinidad, Talleres dela Universidad Gral. Jose Ballivian, 1975
xii
Nevill e B. Craig, Estrada de f erro Madeira-Mamoré: históri a trágica de uma expedição. Rio de
Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1947, p. 349.
xiii
Antonio Carvalho Urey, obra citada, p. 55.
xiv
Said Zeitum Lopez, obra citada, p. 29.
xv
Álvaro Maia, obra citada, p. 118.
XVI
Nevile Craig, obra citada, p. 127.
xvii
Antonio Carvalho Urey, obra citada, p. 58.
xviii
Juan B. Coimbra, obra citada, p.88.
xix
xx
Álvaro Maia, obra citada, p.131.
Juan B. Coimbra, obra citada, p.71.
XXI
Álvaro Maia, obra citada, p.131.
xxii
Lobato Filho Avançai para o Jamari: a comissão Rondon nas selvas do Alto Madeira. Rio de Janeiro,
s/ed., 1957, p. 28.
88
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
XXIII
Eduardo Barros Prado, Eu vi o Amazonas. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1952,
p. 195.
xxiv
Manoel Rodrigues Ferreira, A Ferrovia do Diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia. São Paulo,
Ed. Melhoramentos, p. 77.
XXV
Antonio Carvalho Urey, p. 64; Juan B. Coimbra, p. 171; Jose Aguirre Acha, p. 187-9, obras citadas.
xxvi
Richard Colher, The river that God forgot: the dramatic story of the rise and fail of the despotic Amazon
rubber barons. New York, E. P. Dutton & Co., 1968, p. 57.
xxvii
, María dei Pilar María dei Pilar Gamarra, obra citada, La participación estatal en la industria de la
goma eslástica. In: DATA, Revista dei Instituto de Estudios Andinos y Amazónicos. 4, La Paz, 1993, p. 41.
xxviii
xxix
Juan B. Coimbra, obra citada, p.p. 94-5.
Jose Aguirre Acha, obra citada, p. 180.
xxx
Heráclito Bonilla, Estructura y esl abonamientos de la explotación cauchera en Colombia, Perú,
Bolivia y Brasil. In: DATA: Revista dei Instituto de Estudios Andinos Amazónicos. La Paz, 1993, p. 9.
XXXI
".,,existió una intensa comunicación e intercambio de productos entre la savana
mojeña ubicada en la cuenca amazónica y los pueblos andinos vía región boscosa circunscrita entre los
rio Beni e Madre de Dios por los caminos y terraplenes levantados que surcan el espacio norte pampeano, lo
que tenían ai parecer su epicentro en el Lago Roruaguado; caminos que en el sector norte tienen la dirección
inequívoca dei río Beni en ruta hacia un destino que no podia tener fin sinó en el Cuzco incaico." Said Zeitum
Lopez, obra citada, p. 137.
xxxii
Vide PORRO, Antônio. O povo das águas: ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro. Vozes,
1995.
XXXIII
Carlos de Araújo Carlos de Araújo Moreira Neto, obra citada, Índios da Amazônia: de maioria à minoria
(1750-1850). Petrópolis, Ed. Vozes, 1988, p. 81.
xxxiv
Aureliano Tavares Bastos, O vale do Amazonas. Rio de Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1937, pp. 358-66.
xxxv
Marajó (Barão de), obra citada, p. 137.
xxxvi
Heráclito Bonilla, obra citada, p. 9.
XXXVII
xxxviii
xxxix
xl
Herbert Klein, ,Historia de Bolívia. La Paz, Editorial Juventud, 1994, pp. 119-20.
Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 28.
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 274.
Herbert Klein, obra citada, pp. 149-53.
xli
Franz Keller, The Amazon and Madeira River. Citado por Antonio Carvalho Urey, obra citada, p.55.
xlii
Nevile Craig, obra citada. p. 222.
xliii
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 305.
xliv
Maria dei Pilar Gamarra, obra citada, p.73, nota 30.
xlv
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 274-5.
xlvi
Beni, Santa Cruz e Cochabamba: "... os três departamentos citados que contem o duplo de população
das duas províncias brazileiras ribeirinhas (...) a agricultura vai-se desenvolviendo nos mesmos departamentos,
e é indústria mais exercida ali que no Alto-Amazonas." Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 276-7.
xlvii
xlviii
xlix
Lobato Filho, obra citada, p. 27.
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 222-3,274-5, 270-1, 316-7
Juan B. Coimbra, obra citada, p.137.
l
João Severiano da Fonseca, obra citada, pp. 275-99.
li
Leonardi, p. 70.
89
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
lii
Nevile Craig, obra citada, p. 230.
liii
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 299
liv
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 358 e 370.
lv
Emanuel Pontes Pinto, obra citada, p. 88.
lvi
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 235.
lvii
Marajó (Barão de), obra citada, p. 132.
lviii
Anthony Smith, Os conquistadores do Amazonas: quatro séculos de exploração e aventura no maior rio do
mundo. São Paulo, Editora Best Seller, s/d, p. 357.
lixlix
* 1 libra ou 1 arrátel equivaleria a 459 gramas.
lix
Joseph Barbosa de Sá, Relaçáo das povoaçóens do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios thé os
presentes tempos. Cuiabá, UFMT, 1976, p. 18.
Ix
Aug ust o L eve rge r (Barão de M el g aç o), Ap on t am ent o c ronol ógi co s da Província de Mato
Grosso. RIHGB 205 208-385, outubro/dezembro 1949. p.
252.
lxi
Antônio Rolim de Moura (Dom), Correspondências. Apud Maria de Lurdes Bandeira, Território negro
em espaço branco. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 100.
lxii
Rolim de Moura, Op. cit. p. 79.
lxiii
Idem.
lxiv
Ibidem, p. 81.
lxv
Melgaço, Barão de. Op. cit. p. 291.
lxvi
A Povoação do salto Grande foi iniciada em 21/02/179 pelo juiz Teotônio da Silva Gusmão num lugar
descrito por José Gonçalves da Fonsêca como marcado pela presença “... de uma muralha
desmantelada, por cujas ruínas precipitando-se a água do rio com furiosa violência resulta um
espantoso estrondo, que a haver nas margens povoação seria provável padecerem seus habitantes
a surdez.". Melgaço, Barão de. op. cit. In Manoel Rodrigues Ferreira, A ferrovia do diabo, São Paulo,
Ed. Melhoramentos, 1987, p. 36. Atacada pelos Muras a povoação foi abandonada em 1761. Em 1769 Luís
Pinto Sousa Coutinho remeteu um novo projeto de ocupação da região à Secretaria de Estado em Lisboa.
O Povoado do Balsemão foi iniciado por ordem do Capitão-General Luís Pinto de Sousa Coutinho que
navegou pelo Madeira com destino a Vila Bela em 1768. O próprio governador traçou a planta do
povoado, definindo suas ruas, disposição dos prédios residenciais e oficiais e ainda estabeleceu no
local 151 pessoas para ali residirem. Vide João Severiano da Fonseca, Viagem ao redor do Brasil (18751878), Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, 1986, pp. 67 e seguintes.
Quanto a santo Antônio do Madeira é importante explicar que não se localizava às margens da 1" cachoeira
(Santo Antônio), mas há 4 dias de viagem rio abaixo. Vide Manoel Rodrigues Ferreira, op. cit., p. 34.
lxvii
Diário da bandeira de Francisco de Mello Palheta ao rio Madeira em 1722. In Capistrano de Abreu,
Caminhos antigos e povoamento de Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1989, p. 119 e seguintes.
* 1 Piun s = mo sq uit o: q ue at acam em n uvens nas proximi dades dos rio s, principalmente nos
períodos de baixas das águas entre maio e setembro. Causam febre e profundo transtorno, tomando certas
regiões absolutamente inevitáveis.
* 2 Aboiada = serpente aquática do gênero Anacondas. Também chamada Sucuri ou Sucuriju ou ainda
Boiúna. É a maior serpente das Américas, atingindo mais de 10 metros. Povoa o imaginário dos
caboclos e índios da Amazônia, que lhe atribuem poderes sobrenaturais.
3
* Passos = medida antiga, equivale a 0,82 m.
90
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
4
* Pés = medida inglesa que equivale a 0,3060 m.
lxviii
Cf. João Severiano da Fonseca Op. cit. p. 67 e seguintes, também João Vasco Manoel Braum, Roteiro
corographico da viagem que se costuma fazer da Cidade de Belém do Pará a Villa Bella de Matto Grosso.
RIHGB. vol. 23, 1960, p.p. 439 e seguintes, ainda: Melgaço (Barão de), Breve Memória Relativa à Chorografia
da Província de Mato Grosso. RIHGB. t. XXVIII, 1965, p.p. 124 e seguintes.
lxix
Sobre monções, ver: Maria de Lurdes Bandeira, op. cit., p.p. 107 e seguintes; José Roberto do Amaral
Lapa. Economia Colonial. São Paulo, Perspectiva, 1973, p.p. 23 e seguintes; Emanuel Pontes Pinto,
Rondônia Evolução Histórica. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993, p.p. 40 e seguintes; Manuel
Nunes Dias, Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. São Paul o, Col. da Revista de Hi st óri a,
19 71, p. p. 330 e seg ui nt es; Ant ôni o Carreira, As Com pa nhi as Pombalinas do Grão-Pará e
Maranhão / Pernambuco e Paraíba. Lisboa, Editorial Presença, 1982, p.p. 35 e seguintes.
lxx
Fonte: Memória dos preços que no Estado do Mato Grosso são vendidos os gêneros molhados e
secos. A. H. U. C.P. n°33 -1772. In Manuel Nunes Dias, op. cit., p.p.419-420.
*'Tostão = moeda de prata equivalente a 100 réis.
* 2 Côvado = medida de comprimento igual a 66 cm.
3
* Vara = medida antiga igual a 110 cm.
lxxi
CF. Melgaço, Barão de. op. cit. p. 274 e José Roberto do Amaral Lapa, op. cit., p. 97.
lxxii
Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Diogo de Mendonça Corte Real d atada de
26/02/1753. In Correspo ndência dos Go vernadore s com a Metrópole. Códice Manuscrito n°695
(1752-1757), p. 39-40. A.P.P. In Manuel Nunes Dias, op. cit., p. 417.
lxxiii
Idem, p. 418.
lxxiv
Carta aos Administradores da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, 08/01/1760.
In Antônio Rolim de Moura (Dom), op. cit., p. 81.
lxxv
A obtenção da prata feita por agentes da Capitania concorria para um relativo e precário equilíbrio nas
trocas entre a Capitania e o litoral. No entanto, o caráter ilegal dessa prática não permiti a a
regularidade do comércio com a colônia castelhana, além de constituir riscos para os que atuavam
no processo (perda de carga, confisco de bens, prisões, processos). A parte mais vantajosa dos lucros
não permanecia na região, uma vez que a prata contrabandeada era repassada a praças marítimas
como parte do pagamento dos artigos importados por esses agentes para o comércio das minas. Outro
fator que limitava o afluxo de prata via contraban do, eram a s consta nte s ten sõ es f ronteiriças que
f aziam refl uir a penetração do metal e reduziam as possibilidades do contrabando. Deve-se
esclarecer que o contrabando era de conhecimento das autoridades tanto do lado português quanto do lado
castelhano. O comércio clandestino, como escreveu Melgaço (Barão de), op. cit., p. 275, se
realizava sob a velada diligência e os f ingi do s p rot est os da s a ut ori dad es. Me sm o n a M etróp ole
a si t uaç ão e ra estimulada e em suas Instruções Luís de Albuquerque trazia ordens para "animar e
desenvol ver o dito comércio... com tal di sfarce que não pareça que Vossa Senhoria o promove e
menos que tem ordem para assim o fazer Instruções que Levou Luís de Albuquerque. Apud Gilberto
Freyre, Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador
do Mato Grosso no fim do século XVIII. Cuiabá, FCMT, 1978.
A maior parte dos lucros era drenada pela Metrópole. É também verdadeiro o fato oposto. Os
castelhanos empenhavam-se em drenar o ouro das minas do Mato Grosso para o s cof res de
Madri , permi tind o veladame nte e incenti va ndo disfarçadamente a vinda de gêneros (gado,
alimentos, etc.) para os colonos da margem portuguesa. Assim sangravam do Guaporé Português
91
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
recursos em ouro, escravos e manufaturados, enquanto drenava-se para Vila Bela prat a, carne
bovina, montarias (cavalos, mulas). Assim o padre Belchior Roiz propunha ao boticário Domingos
Joseph do Forte Príncipe da Beira a troca de 25 (sic) de prata lavrada por ouro, a 4 oitavas o marco
(APEMT, cx. 1780a), enquanto o Alferes Manoel Joseph da Rocha trouxe dos domínios espanhóis trinta
cavalos e vendeu um moleque (sic) pago em prata (APEMT, cx. 1780a).
O interesse pela prata, explica Volpato, deve-se ao fato de ela ser usada como principal elemento de
troca no mercado internacional. Luíza Rios Rici Volpato, Mato Grosso; Ouro e Miséria no Antemural da
Colônia (1751-1819). Dissertação de Mestrado. São Paulo. F.F.L.C.H.-USP, 1980, p.p. 48,97 e seguintes..
lxxvi
José Roberto do Amaral, op. cit., p. 99.
lxxvii
Francisco de Souza Coutinho, Informações sobre o modo porqu e se ef etua a n avegaç ão do
Pará para Mat o Gro sso e o que se p od e estabelecer para maior vantagem do comércio e do Estado. In
RIHGB. Tomo II. Rio de Janeiro, 1840, p. 298.
92
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
FUNÇÕES DA LINGUAGEM. UMA
REAVALIAÇÃO DAS IDÉIAS DE
ROMAN JAKOBSON1
Dr. Celso Ferrarezi Júnior.
Resumo: Dos teóricos que influenciaram as idéias gerais
sobre o processo de comunicação lingüística e contribuíram na
formulação de unia teoria da comunicação, sem dúvida
alguma, o que mais influenciou a academia brasileira foi
Roman Jakobson. As idéias contidas no clássico "Lingüística e
Comunicação' tomaram-se uma baliza quase obrigatória para
todos os estudantes brasileiros que venham a abordar esse
assunto. Não porque a obra de Jakobson seja tão conhecida. Na
verdade, a maioria dos alunos secundaristas desconhece a
existência do próprio Jakobson.
Palavras – Chave: Comunicação, Existência, Formulação, Lingüística e
Secundaristas.
Abstract : Theorists who have influenced the General ideas about the
linguistic communication process and helped in formulating unia
communication theory, without a doubt, what influenced Brazilian
Academy was Roman Jakobson. The ideas embodied in the classic
"Linguistics and Communication ' took a goal almost obligatory for all
Brazilian students that will address this issue. Not because the work of
Jakobson is so known. In fact, most high school students unaware of
own Jakobson.
Keyword : Communication, Existence, formulation, Linguistics and
Secondary.
Introdução
Dos teóricos que influenciaram as idéias gerais sobre o processo de
comunicação lingüística e contribuíram na formulação de unia teoria da comunicação, sem
dúvida alguma, o que mais influenciou a academia brasileira foi Roman Jakobson. As
idéias contidas no clássico "Lingüística e Comunicação' tomaram-se uma baliza quase
obrigatória para todos os estudantes brasileiros que venham a abordar esse assunto. Não
porque a obra de Jakobson seja tão conhecida. Na verdade, a maioria dos alunos
93
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
secundaristas desconhece a existência do próprio Jakobson. O maior responsável pela
disseminação das idéias do lingüista do Círculo de Praga é um pequeno livro da Profª
Samira Chalhub, denominado "Funções da Linguagem"3, que já se tomou um clássico
nas universidades e escolas de segundo grau. Trata-se de uma reprodução fiel das idéias
de Jakobson sobre a teoria da comunicação e sobre as funções da linguagem. A
influência dessa obra pode ser medida pelo fato de que praticamente todos os
livros didáticos de Língua Portuguesa utilizados nas escolas brasileiras em nível de
segundo grau reproduzem fielmente as mesmas idéias sobre as funções da linguagem.
O fato é que o avanço dos estudos lingüísticos depois de publicada a obra de
Jakobson não permite mais que se aceite passivamente a proposição de teoria da
comunicação feita há várias décadas. A teoria de funções da linguagem proposta por
Jakobson com base em sua teoria da comunicação não se sustenta hoje diante das novas
concepções de comunicação desenvolvidas. Da mesma forma, como a idéia de função de
linguagem depende de uma teoria da comunicação, não podemos mais aceitar sem
ressalvas as proposições defendidas no livro de Chalhub. Este artigo destina-se a mostrar
como os avanços na pesquisa lingüística obrigam a uma modificação na concepção de
funções da linguagem. Ou, em outras palavras, obrigam a uma revisão das idéias de
Roman Jakobson e seus seguidores.
1. A teoria da comunicação
A proposta de teoria da comunicação defendida por Chalhub, com
base em Jakobson, é a seguinte:
"O funcionamento da mensagem ocorre tendo em vista a finalidade de
transmitir - uma vez que participam do processo comunicaci onal: um
emissor que envia a mensagem a um receptor, usando um código para
efetuá-la; esta, por sua vez, refere-se a um contexto. A passagem da emissão
para a recepção faz-se através de um suporte físico que é o canal.
Aí estão, portanto, os fatores que sustentam o modelo de comunicação:
emissor, receptor, canal, código, referente, mensagem." (Chalhub, 1990, p. 5)'
Esta proposta precisa ser revista item a item, em função das muitas impropriedades
já vastamente apresentadas pela Lingüística contemporânea. Primeiramente, é
necessário notar que a proposta de Jakobson parece enfocar apenas a comunicação
lingüística, isto é, aquela feita entre seres humanos através do uso da língua. Nesse
sentido, deveriam definir-se apenas as funções da língua e, não, as funções da
linguagem. Mas, como Chalhub mesma observa,
94
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
"Nem só de mensagens verbais vive o ser humano. A linguagem participa de aspectos mais
amplos que apenas o verbo.
O corpo fala, a fotografia flagra, a arquitetura recorta espaços, a pintura imprime, o teatro encena o
verbal, o visual, o sonoro, a poesia - forma especialmente inédita de linguagem - surpreende, a música
5
irradia sons, a escultura tateia o cinema movimenta, etc." (Chalhub, 1990, p. 6)
Infelizmente, no seu livro, Chalhub só abrange o lingüístico ao abordar o código6,
embora tenha reconhecido, na passagem acima, que a linguagem -mesmo se consideramos
apenas a humana - é muito mais ampla do que apenas a utilização de uma língua. Assim é
que uma teoria que se poderia prestar à explicação da linguagem como um fenômeno
amplo, acaba se tomando uma teoria fragmentária que explica apenas parcialmente o
fenômeno linguagem.
Sabe-se, há muito, que a comunicação não é privilégio dos seres humanos, mas uma
peculiaridade de todos os seres vivos. Plantas, animais inferiores, mesmo os
unicelulares possuem processos muito especializados de comunicação. Obviamente,
só pudemos comprovar a consciência comunicativa no ser humano, e esse seria o principal
diferencial entre nós e os demais seres vivos, no que se refere à linguagem:
comunicamos sabendo que estamos comunicando e tendo consciência do processo.
Sabemos que os animais e a plantas comunicam-se intencionalmente. Uma galinha tem
a intenção explícita de proteger seus pintainhos quando faz soar seu "alarme" e é
prontamente atendida pelos filhotes; uma orquídea tem a intenção explícita de atrair certos
tipos de insetos ao produzir odores chamativos que são, claramente, fatores
promotores de comunicação entre a planta e o inseto, comunicação sem a qual a planta
não se poliniza. O que não pudemos constatar, ainda, é que a planta e a galinha, assim
como os demais seres vivos "inferiores" têm consciência do que estão fazendo. A
intenção, portanto, não é necessariamente coincidente com a consciência do processo.
E, isto em vista poderia dizer que a linguagem da galinha e da orquídea é
desprovida de função? Obviamente que não! Tanto a galinha quanto a orquídea
imprimem uma função à sua linguagem, mesmo que não saibam como fazer para
imprimir novas funções à mesma mensagem, como o homem faz. Assim, urna teoria
das funções da linguagem que despreze a comunicação não lingüística será sempre uma
teoria defasada.
Poderíamos dizer então, que a comunicação é um fator componente da infraestrutura
dos
seres
v ivos.
Mais
elaboradamente,
poderíamos
dizer
que
comunicação é a transmissão de uma mensagem ou conteúdo entre, no mínimo, dois
seres vivos. Dessa forma, deveremos perceber que em qualquer espécie de
comunicação caracteriza-se uma função. Temos, então, no seu sentido mais amplo,
95
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
as funções da linguagem.
Neste artigo, porém, como analiso as proposições de Jakobson repe t ida s
p or Cha lhu b, se re i obr igad o c ircu nstanc ia lme nte a e n foc ar ma is
detalhadamente a comunicação lingüística. Procurarei, porém, sempre que possível,
dar maior abrangência à teoria. Vejamos, portanto, as impropriedades às quais me
referi anteriormente.
2.1. Emissor e receptor
A proposta de Jakobson pressupunha a existência de uma parte ativa e de
uma parte passiva no ato de comunicação: um elemento que emitia, (mais ou menos
nos moldes de uma emissora de rádio, por exemplo) e um elemento que recebia a
mensagem e a decodificava (mais ou menos nos moldes de um rádio receptor). Sabese, hoje, que no processo de comunicação não há parte passiva. Ambos os
interlocutores em uma comunicação estão atuando o tempo todo. Enquanto um se esforça
para produzir urna mensagem coerente com o contexto discursivo, o outro analisa,
verifica todos os elementos contextuais, "adianta" os passos comunicativos do seu
interlocutor, emite mensagens concomitantemente, verbais e não verbais (através de
gestos e feições, por exemplo, dando provas de seu entendimento ou não, prazer ou
desprazer, enfim, de sua interação com o outro). O processo de comunicação não
pode ser entendido, portanto, como uma via de mão única do tipo emissor/ receptor,
mas deve ser compreendido como uma interação do tipo interlocutor/ interlocutor, em
que os interlocutores assumem ora o turno de interlocutor-codificador (ou emissor) da
mensagem lingüística, ora o turno de interlocutor-decodificador (ou receptor). E digo isto
da mensagem lingüística, porque as mensagens concomitantes não verbais 7 são
permanentemente produzidas por ambos os interlocutores.
Fica claro, portanto, que em um ato de comunicação lingüística três fenômenos
relacionados aos interlocutores ocorrem:
A. a ativa participação de ambos os interlocutores;
B. a intenção permanente dos interlocutores em concretizar o ato comunicativo;
C. a coexistência de mensagens formalmente codificadas com mensagens
transmitidas de maneira informal.
Logo, a idéia de Jakobson de que era possível um enfoque da mensagem no receptor
(que caracterizaria a função conativa), ou um enfoque no emissor (que caracterizaria a
96
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
função emotiva), ou um enfoque no código (que caracterizaria a função metalingüística),
ou ainda um enfoque na mensagem (que caracterizaria a função poética) não tem
sustentação factual. Vejamos:
A. sempre que uma mensagem é produzida, é claro o fato que haverá enfoque no
interlocutor-decodificador por parte do interlocutor-codificador. Quando um ser vivo produz
uma mensagem qualquer, é claro que essa mensagem é produzida tendo-se a intenção de
adequá-la ao entendimento do interlocutor, adequação sem a qual a comunicação não se
concretizará. Falaríamos de urna permanente função conativa da mensagem, portanto?
Parece óbvio que não;
B. d a me s m a f o r ma , s e mp r e q u e d o i s s e r e s v iv o s s e interlocucionam, em
ambos haverá permanente enfoque no código e na mensagem. Sem esse enfoque no
código, que permite a sua inteligibilidade', e sem o enfoque no conteúdo expresso, sobre o
qual haverá primordial atenção da parte de ambos os interlocutores (procurando entender a
mensagem em função do código escolhido - "por que ele disse isso dessa forma?" ; do
contexto discursivo - "por que ele disso isso justamente agora?"; dos próprios interlocutores "por que foi ele quem disse isso e não outro?", etc.), não se concretizará a comunicação.
Ora, falaríamos então de uma permanente função metalingüística e de uma
permanente função poética? Também parece improvável;
C. finalmente, percebemos que a transmissão da mensagem lingüística não
depende somente do que é dito ou escrito. O contexto discursivo e a concomitância de
mensagens codificadas informalmente (desde a aparência dos interlocutores até a
complexidade gestual que executam) atuam no entendimento final do que se expressou de
forma realmente decisiva. Deve-se verificar que toda essa verdadeira parafernália
comunicativa atua no sentido de cumprir o objetivo do ato de comunicação, que é definido
pelo interlocutor que assume o turno de codificador, objetivo esse que contará, para sua
consecução, com a cooperação, ou não, do outro interlocutor. Isso em vista, ou seja, o fato
de que não se pode isolar no ato comunicativo um fator de outro, ou seja, sabendo-se que
não se pode atribuir um enfoque em um ou outro fator, como se pode sustentar a idéia de
Jakobson de que é o enfoque nos fatores que define a função da linguagem?
Creio que realmente se trate de uma concepç ão teóric a insustentável.
Continuemos nossa incursão pelo livro de Chalhub.
2.2. Canal
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Como vimos Chalhub 9 define o canal como sendo "o suporte fisico10 de transmissão
da mensagem. Segundo ela "Se a mensagem centrar-se no contato, no suporte físico, no
canal, a função será fática." (Chalhub, 1990, p.28)
Assim, em uma conversa, as expressões do tipo "À? Não é? Sim? Então... Entende?",
etc., seriam definidas como em uso fático, porque seriam formas de confirmação do canal de
comunicação.
Como sabemos o suporte físico para a propagação do som é o ar. Quando conversamos
frente a frente com alguém, usamos o ar como suporte físico para a propagação de nossa
fala. Então, o que Chalhub propõe, com base em Jakobson, é que quando usamos as
expressões "À? Não é? Sim? Então... Entende?" em uma conversa, estamos enfocando o
ar? Estamos verificando se o ar está dando conta de transmitir nossa fala? É isso mesmo o
que Jakobson sugere, mas, parece, trata-se de uma postura teórica equivocada.
É óbvio que, quando usamos tais expressões, não estamos tentando testar o suporte
físico de nossa interlocução, ou canal - para usar a terminologia tradicional. Estamos,
sim, confirmando se nosso interlocutor está entendendo aquilo que estamos tentando
comunicar-lhe; ainda, podemos estar querendo verificar se a atitude cooperativa por parte de
nosso interlocutor permanece.
Poderíamos dizer que, em uma conversa telefônica, quando dizemos "Alô! Você
está me ouvindo?", estamos testando o suporte físico da conversação. Estaríamos
verificando se o aparelho telefônico está funcionando, se a linha não "caiu", etc. Mas, como
justificar o fato de que, mesmo tendo certeza de que tudo está funcionando em nossa
conversa telefônica, continuamos a usar essas expressões? Parece claro que não é porque
queiramos testar se o telefone está funcionando a cada trinta segundos, mas, sim, porque
queremos ter certeza de que nosso interlocutor está realmente entendendo o que estamos
falando, principalmente porque, em uma conversa telefônica, grande parte dos recursos
informais que atuariam na conversação, justamente pelo fato de que os interlocutores não se
estão visualizando, fica prejudicada.
Assim, verificamos que não ocorre normalmente em uma interlocução o
pretendido "teste de canal" sugerido por Jakobson. Não poderíamos, portanto, falar em
uma função fática? Claro que sim, mas em outros moldes teóricos. Decididamente não é a
intenção de verificar a eficácia do canal o que define tal função.
2.3. Código
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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
Como disse anteriormente, podemos crer que Jakobson estava preocupado apenas com
a descrição dos fatos lingüísticos ao elaborar sua teoria da comunicação. Entretanto, como
também vimos a linguagem não subsiste unicamente do código formalmente estruturado que
chamamos língua. A própria interpretação de uma enunciação lingüística dependerá de um
sem-número de fatores discursivos que não podem, simplesmente, ser desconhecidos em
uma teoria dessa natureza.
Assim é que quando uma moça veste-se insinuantemente, maquia-se em tonalidades
sensuais e gesticula de forma flertiva em um primeiro encontro com um rapaz pretendente,
ela "codifica", mesmo que informalmente, um conjunto significativo de informações que
serão extremamente úteis na interpretação, por parte do seu interlocutor, de cada
enunciação por ela produzida.
O código lingüístico, portanto, tem um funcionamento muito mais complexo do que
simplesmente o conjunto de regras que determinam o correto funcionamento
gramatical do sistema. A determinação do significado de cada enunciado passa,
obrigatoriamente, por uma grande quantidade de matrizes interpretativas de ordem cultural
que não são definitivamente previstas no sistema lingüístico.
Este fato obriga a que, muitas vezes, o falante tenha que utilizar a língua para explicitar
a mensagem codificada. Ao fazer isso, ou seja, ao repetir a mensagem de outra forma,
com outras palavras, outra entonação ou ritmo de fala, outros gestos, etc., o falante não leva
seu interlocutor a uma mera reflexão sobre o código, mas o leva a uma nova interpretação
da enunciação anterior, agora com base na segunda enunciação. Não podemos dizer,
então, que estamos falando de metalinguagem. Estamos, sim, falando de recodificação.
Entendemos a recodificação como a reestruturação de uma primeira enunciação, de forma a
clarificar para o interlocutor o conteúdo dessa mesma enunciação. A tradução nada mais é
do que recodificação. As diversas e diferenciadas vezes que um professor explica um
mesmo assunto em classe, para que todos os alunos possam compreendê-lo, também é
recodificação.
A metalinguagem é um processo diferente e não é um mero enfoque ou uma simples
reflexão sobre o código, como sugerem Jakobson e Chalhub11. A metalinguagem, como o
nome sugere, é a utilização da linguagem para explicitar o funcionamento da própria
linguagem. Isso não implica que preciso utilizar um mesmo código. Quando escrevo uma
gramática do português, por exemplo, faço metalinguagem, porque uso a linguagem para
explicitar o funcionamento da própria linguagem, e o faço com o mesmo código. Mas,
quando uso o português para escrever urna gramática latina, por exemplo, faço
metalinguagem
usando
códigos
diferentes.
Da
mesma
forma,
posso
explicar
99
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.
lingüisticamente o funcionamento da linguagem das abelhas, e isso não deixa de ser
metalinguagem. O que parece interessante é o fato de que não é provável a existência de
metalinguagem sem que o uso da linguagem seja referencial. Isso porque, se tomamos a
linguagem como objeto de reflexão, a linguagem utilizada na reflexão sobre esse objeto
estará sendo usada referencialmente, porque descritora de um referente. Assim, o uso
metalingüístico é meramente uma das modalidades do uso referencial. Quando usamos a
linguagem referencialmente sobre um referente qualquer, dizemos haver somente
linguagem referencial; quando esse referente é a própria linguagem, dizemos que o uso é
metalingüístico.
2.4. Referente
O referente, segundo Frege12, de quem Jakobson - e os demais lingüistas - emprestam o
termo, é o objeto factual presente no mundo material ou nos mundos sugeridos, o "ser",
enfim, representado pela linguagem. O referente independe da linguagem, e a linguagem
independe do referente, mesmo porque a linguagem é instrumento eficaz para criar
referentes. Por exemplo, certos tipos determinados de composição com palavras, em
estruturas específicas, criam um referente chamado "poesia", que só possui existência se
produzido lingüisticamente.
A linguagem, entretanto, é um instrumento adequado para a representação de
referentes. Aliás, pode-se crer que a linguagem é um instrumento especificamente criado
com essa finalidade, embora, posteriormente, possa ter assumido outras funções. Essa
vinculação natural da linguagem a representar referentes faz com que ela se tome
eminentemente referencial. Dizemos, porém, que certas construções representam referentes
de forma diferenciada. Assim é que, quando digo pé13 refiro-me a algo, que po de ser u m
pé humano. Crê-se que o sign ificado "pé humano" seja o significado original da
palavra pé, e por isso chamamos o uso dessa palavra com esse significado de denotativo,
ou não-figurado. Originalmente em sua teoria, Jakobson chamou esse uso da linguagem
de uso referencial. Mas, veja-se que quando uso a mesma palavra pé em pé de mesa, pé de
laranja, pé-d'água, etc., continuo usando a palavra para fazer referência a algo. Ou seja, a
linguagem figurada não é destituída de referencialidade, como a terminologia jakobsiana
insinua. Todos os termos acima citados (pé de mesa, pé de laranja, pé-d'água) têm
referentes os quais representam. Trata-se, portanto, de um uso referencial da linguagem. O
fato que se observa, apenas, é que há usos que não são o "original", o denotativo. Esses
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usos podem ser chamados de conotativos, ou seja, usos em que o referente atribuído ao
signo não é aquele que se acredita ser o original. Esse fato parece significativo: há usos da
linguagem que promovem uma alteração na composição original dos signos. E isso não tem
nada a ver com falta de referencialidade. Poderíamos dizer, com mais propriedade,
simplesmente que a linguagem está em uso denotativo ou em uso conotativo, sendo que
ambos pertencem a um uso que é referencial, obviamente. E, é claro, sempre lembrando
que referencialidade não implica materialidade do referente. Palavras como amor e
esperança têm referentes, embora não sejamos capazes de identificá-los materialmente.
Assim, não podemos dizer que é o enfoque sobre o referente que faz da enunciação
um exemplo de linguagem referencial, mesmo porque dificilmente haverá linguagem que
não se refira a referente algum, ou em cujo bojo não se insira a preocupação do
falante com a referencialidade da enunciação. Na verdade, não consigo elaborar um só
exemplo desse tipo de uso sem referentes. Como vimos há pouco, a metalinguagem é
definida como tal por que o referente da enunciação é, de certa forma, especial. Mas,
também podemos concluir que tal diferenciação é inócua quanto à estrutura da
linguagem e de uma teoria da comunicação. Em outras palavras: dificilmente poderíamos
caracterizar uma função da linguagem como referencial por qualquer tipo de característica
que se relacione ao referente. Tanto isso é verdade, que Chalhub teve que recorrer à
diferenciação "didática" entre conotação e denotação para tentar explicitar o que seria o
uso referencial da linguagem14 e chegar à conclusão de que aquilo que Jakobson
chamou de linguagem referencial é exatamente o que, com mais propriedade. podemos
chamar de uso denotativo da linguagem. Entretanto, como o uso conotativo também é
referencial, desisti de manter o termo "referencial" neste artigo, preferindo mesmo os
termos "uso denotativo" e "uso conotativo".
2.5. Mensagem
Finalmente, chegamos ao "enfoque na mensagem". Realmente é difícil crer em uma
enunciação que não tenha enfoque na mensagem! Ora, parece claro que em toda
enunciação os interlocutores estão preocupados com, enfocando a, atentando para a
mensagem. A mensagem (ou conteúdo da enunciação, no sentido que Jakobson atribui ao
termo) é por si só, o cerne do processo de comunicação. O que Jakobson parece querer
enfocar é que a linguagem é construída, certas vezes, de maneira a chamar a atenção
para si, não no sentido metalingüístico, mas no sentido de despertar beleza através de
seus meios peculiares.
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Nesse caso, o uso que se faz da linguagem é mais do que um mero uso que pretende
a comunicação do conteúdo referencial, mas também um uso que seja capaz de despertar a
sensação de beleza no interlocutor. Quando se constrói uma poesia, uma prosa poética ou
até uma simples frase de efeito, mais do que chamar a atenção para o conteúdo, o enunciador
pretende despertar o senso de beleza no seu interlocutor. E o que é beleza? Uma resposta
singela, porém correta, diria que "beleza" é aquilo que a cultura estabeleceu como sendo
"beleza". A Antropologia tem provado largamente que a beleza não se estabelece
universalmente de uma mesma forma; da mesma maneira como muda a linguagem de
cultura para cultura, a beleza muda de cultura para cultura, e de época para época, em uma
mesma cultura. Para os fins desse artigo, poderíamos simplesmente dizer que certos usos
da linguagem (lingüística, musical, corporal, pictórica, etc.) são capazes de despertar
eficazmente a sensação de beleza nos integrantes de uma cultura. Alguns usos, até,
conseguem transcender sua cultura original e despertar beleza em várias culturas
distintas.
Não se trata, portanto, de um enfoque na mensagem o que faz do uso da linguagem um
uso poético, mas a intenção deliberada do enunciador de despertar, no interlocutor, a
sensação de beleza através do uso que faz da linguagem.
2. Funções da Linguagem
Como vimos até aqui, uma concepção equivocada de teoria da comunicação levou
Jakobson e seus seguidores a uma concepção equivocada de funções da linguagem. Diante
do que vimos até aqui, podemos afirmar que:
A. não existe mensagem nas funções da linguagem. A mensagem está na
linguagem, que é linguagem sempre, independentemente do uso que dela se faça;
B. não são enfoques específicos nos fatores integrantes da comunicação que
caracterizam as funções. Diferentemente, a função é determinada pelo uso que os
interlocutores fazem da linguagem;
C. ora, se a função é determinada pelo uso que os falantes fazem da linguagem (e
veja-se claramente: determinada pelo uso, somente; a função não é o uso em si), o que
determina o uso?
Podemos verificar que o uso é determinado, como bem define Chalhub, dessa forma:
“O funcionamento da linguagem ocorre tendo em vista a finalidade de transmitir. Op. cit. p. 6
Jakobson enfoca o perfil da mensagem conforme a meta ou orientação dessa mesma mensagem.
Idem p. 7
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As atribuições de sentido... que se possam deduzir e observar na mensagem estão localizadas
primeiramente na própria direção intencional do fator da comunicação. Ibidem p. 7
A p r o p a g a n d a , p o r e x e m p l o , m a r c a - s e fundament almente pela pers uasão - isto é,
pela intenção de seduzir o receptor. Ibidem p. 7”
Veja-se que tanto Chalhub quanto Jakobson percebem que é a intenção dos
interlocutores no uso da linguagem que define sua construção, logo, suas
características. Talvez por isso mesmo fossem tentados a cometer o equívoco de
acreditar que essa construção definiria a função da linguagem. E justamente o
contrário: a função em que se escolhe usar a linguagem é que define a estrutura
que será montada, a compleição que se dará à enunciação. Isso merece explicação.
Vamos a ela.
Lembremos que a linguagem é um instrumento. A partir dessa idéia simples,
tomemos outro instrumento qualquer como ilustração. Uma chave de fenda serve. Uma
chave de fenda é um instrumento, assim como a linguagem também o é. Trata-se de um
instrumento muito anais simples do que a linguagem é claro, mas se presta
perfeitamente à ilustração que pretendo. Digamos que uma chave de fenda foi
concebida para rosquear parafusos que utilizam o sistema de fenda. Esse seria seu
uso original. Entretanto, posso utilizar essa mesma chave de fenda como um abridor
de latas. Usar o instrumento na função de abridor de latas, embora ele continue sendo
uma chave de fenda. Posso, também, usar a chave de fenda como perfurador de
parede ou de papel, como um formão, para retirar um prego, para matar alguém.
Claro que, independentemente da função que eu atribua à chave de fenda, ela
continuará sendo sempre uma chave de fenda e, obviamente, con tinuará com as
mesmas carac terís ticas de sempre, porque a maleabilidade de urna chave de
fenda não permite as adaptações que a maleabilidade da linguagem permite.
Com a linguagem ocorre "mutatis mutandis" a mesma coisa. Po demos
fazer usos distintos da linguagem, de acordo c om nossos objetivos:
simplesmente fazer referência a algo, fazer referência à própria linguagem, despertar
a sensação de beleza, convencer alguém, ou quaisquer que sejam eles. Esses
objetivos determinarão que tipo de estrutura enunciativ a vamos construir para
permitir a consecução da comunicação. Assim, é o objetivo do enunciador que
determina que recursos sejam usados e de que forma serão usados, e não o
contrário, como concebeu Jakobson.
O que é a função da linguagem, então? A função da linguagem é uma relação
estabelecida entre o uso que se faz e a estrutura que se constrói. O que determina a
estrutura é o objetivo: o que determina a função é o uso que se faz. Pode-se dizer,
então, que a função da linguagem é unia característica que a linguagem assume
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quando em uso, característica essa definida pelos objetivos do enunciador e que
resulta em adaptações na construção da enunciação.
Como se definem então as seis funções apresentadas por Jakobson e repetidas por
Chalhub? Creio que uma forma coerente é a que apresento no quadro abaixo:
Objetivo
Representar um referente qualquer utilizando a
configuração "original" dos signos de um código
qualquer.
Representar um referente qualquer utilizando
variações da configuração "original" dos signos
de um código qualquer.
Despertar no interlocutor a sensação de beleza
através do uso da linguagem.
Convencer o interlocutor, persuadi-lo de algo.
Explicitar o funcionamento da própria linguagem.
Confirmar o entendimento da mensagem pelo
interlocutor ou, ainda, confirmar a manutenção de
uma postura cooperativa na interlocução por parte
do interlocutor.
Expressar sentimentos, emoções.
Função
Denotativa
Conotativa
Poética
Conativa
Metalinguística
Fática
Emotiva
Observa-se que os objetivos de um enunciador podem ser híbridos. Por exemplo,
alguém pode querer convencer alguém de algo através da expressão poética de seus
sentimentos. Parece claro que a estrutura desejada deverá apresentar uma
configuração que se permita a tal uso complexo. Um uso que se definiria pela aplicação da
linguagem, ao mesmo tempo, em função emotiva, conativa e poética, além de se construir
essa enunciação ou conotativa ou denotativamente - porque nem toda poesia é conotativa.
3. Conclusão
A idéia de função da linguagem depende da teoria da comunicação que se concebe.
A crítica que faço nesse artigo é mais à teoria da comunicação de Jakobson do que à
conseqüente construção de uma descrição das funções da linguagem. O problema maior é
que as funções da linguagem recebem uma atenção acadêmica muito maior do que a
própria teoria da comunicação que as fundamenta. Podemos, então, depois do que
apresentei, concluir que:
A.
o que determina a função da linguagem é o uso que efetivamente os
interlocutores fazem da linguagem;
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esse uso é determinado pelos objetivos dos interlocutores. Tais objetivos influenciam a
estruturação.que os falantes darão à enunciação;
B . a função da linguagem, portanto, não existe na linguagem, por causa de
enfoques em certos fatores da comunicação ou, ainda, corno peculiaridade imanente da
enunciação: diferentemente, a função da linguagem é resultante da relação entre o objetivo
do falante e as peculiaridades que ele mesmo imprime na enunciação em função do uso que
pretende fazer desse instrumento;
C. embora Jakobson defina somente seis funções possíveis de linguagem, parece
claro que os objetivos dos falantes podem ser muitos mais, sendo que, conseqüentemente,
haverá muitas funções mais.
NOTAS
1
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2
Roman JAKOB SON. (1969) Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix.
3
Samira CHALHUB (1990) Funções da Linguagem. São Paulo: Ática, (Série Princípios).
4
0p. Cit.
5
Idem.
6
Cf. Ibidem, capítulo 7.
7
Cf. Martha STEINBERG (1988). Os Elementos Não- Verbais da Conversação. São Paulo: Atual.
8
Note-se que falo da inteligibilidade do código, não do conteúdo , Entender o código não garante a concretização
da transmissão inequívoca da mensagem.
9
Op. Cit.
10
Cf. Idem pp. 5; 28-31.
11
Cf. CHALHUB, Op.cit., p. 48 e ss.
12
Cf. Gottlob FREGE (1978) Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Cultrix. (Trata-se da versão
brasileira. A obra original data do final do século passado.)
13
Para manter o mesmo exemplo dado por CHALHUB, op. Cit. P. 9.
14
Cf. CHALHUB, op.cit.p. 9 e ss.
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