Quando os 20 anos da Constituição brasileira cruzam

Transcrição

Quando os 20 anos da Constituição brasileira cruzam
Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery
http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377
Curso de Direito - N. 5, JUL/DEZ 2008
Quando os 20 anos da Constituição brasileira cruzam-se com os 50 anos do caso
Lüth
Joana de Souza Machado∗
RESUMO
Este artigo propõe uma reflexão sobre as conexões que se estabelecem entre a Constituição brasileira de
1988 e o Caso Lüth, no ano em que completam, respectivamente, 20 e 50 anos. O artigo trabalha com a
hipótese de que há uma influência tardia e pouco deliberada dos parâmetros fixados no Caso Lüth sobre o
Direito Constitucional brasileiro contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição brasileira, Caso Lüth, (Neo) Constitucionalismo.
ABSTRACT
This article considers a reflection on the connections established between the Brazilian Constitution of
1988 and the Lüth Case, in the year in which they complete, respectively, 20 and 50 years. The article
works with the hypothesis of that there is a delayed and little deliberate influence of the parameters settled
in the Lüth Case on the contemporary Brazilian Constitutional Law.
KEY-WORDS: Brazilian Constitution, Lüth Case, (New) Constitutionalism.
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-RJ), Professora de Teoria da Constituição,
Direito Constitucional e de Direito Financeiro da Faculdade Metodista Granbery (JF/MG).
∗
2
1- INTRODUÇÃO
“Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou
a
esperança,
fazendo-a
funcionar
no
limite da exaustão” (Carlos Drummond).
Aniversários, assim como as viradas de ano, acabam constituindo bons pretextos
para balanços, reflexões, e outras espécies do gênero. Talvez haja uma dose de
artificialidade nessa lógica. Dois amigos passam meses sem se falar, mas no dia do
aniversário de um deles, o outro não economiza palavras de felicitações, demonstrações
de cumplicidade, elogios. Esse processo é mesmo curioso, havendo até quem,
empolgado com o contexto comemorativo, passe a invocar razões transcendentais para
os laços de amizade.
Da mesma forma, o aniversário de um documento do porte de uma Constituição
parece estimular uma onda de otimismo, ou mesmo um olhar mais generoso sobre o
texto que se torna mais velho. Possivelmente haverá aqui também aquele que,
empolgado com o contexto comemorativo, passe a atribuir ao presente ano alguma
especialidade na história constitucional brasileira.
A tentação é grande. Este ano, de 2008, acomoda importantes marcos temporais,
como o centenário de nascimento de João Guimarães Rosa (27/05/1908); e o de morte
de Machado de Assis (29/09/1908); 30 anos de revogação do AI-5; 200 anos da vinda
da Família Real ao Brasil; 50 anos da primeira vez em que este país ganhou uma Copa
do Mundo; no plano jurídico, 20 anos da Constituição brasileira; 50 anos do célebre
Caso Lüth na Alemanha, 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos; entre
outros eventos que possam contribuir para a sensação de que se trata mesmo de um ano
peculiar.
Os chineses possivelmente responsabilizariam o número oito, contido neste ano
de 2008, por toda a convergência de acontecimentos, já que, como divulgado ao mundo,
pela ocasião da abertura dos jogos olímpicos – às 8h, do dia 8/8/2008 –, o número oito
lhes desperta um significado especial, ligado à idéia de prosperidade, fortuna, alegria1.
1
Conforme divulgado pelos principais meios de comunicação do mundo. Conferir, a título de exemplo,
artigo divulgado por meio do jornal Folha de São Paulo, no dia 07 de agosto de 2008, intitulado
“Superstição, segurança e tecnologia se misturam na abertura de Pequim-2008”, no site:
<<http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u430877.shtml>>.
3
Antes que um eventual leitor amante do esoterismo já se empolgue, ou que o
mais cético desista do empreendimento da leitura, importante esclarecer que, apesar do
título que leva, e da introdução feita até o momento, o presente ensaio não tem como
objetivo identificar alguma relação cósmica entre o ano de 2008, a comemoração dos 20
anos da Constituição brasileira e a dos 50 anos de Caso Lüth. Não exatamente por
objeção à tese chinesa da especialidade do número oito, conveniente a quem, como a
autora desse ensaio, tenha nascido exatamente no dia 08/08; mas porque outra
investigação, em que o elemento temporal adquire também algum relevo, apresentou-se
mais palpável à proposta desse trabalho.
Entre tantos eventos comemorados no ano de 2008, a escolha de se refletir
conjuntamente sobre os 20 anos de Constituição brasileira e os 50 anos de Caso Lüth
não é propriamente aleatória. Pretende-se, com o ensaio, sinalizar a incorporação –
tardia e pouco discutida – dos parâmetros fixados no Caso Lüth pelo
Constitucionalismo brasileiro moldado sob a vigência da Constituição de 1988, mais
especificamente, à época do seu aniversário de 20 anos.
2 – HÁ 50 ANOS ATRÁS, O CASO LÜTH
No
dia
15
de
janeiro
de
1958,
a
Corte
Constitucional
alemã,
Bundesverfassungsgericht, proferiu uma decisão acerca de um caso que se tornaria
mundialmente conhecido como o “Caso Lüth”2.
Tratava-se de atribuir solução jurídica definitiva a uma longa disputa na
Alemanha entre dois atores privados: (1) Erich Lüth, Diretor do Clube de Imprensa de
Hamburgo; e (2) Veit Harlan, famoso cineasta alemão. A disputa teve início em 1950,
quando Erich Lüth, na condição de crítico de cinema e diretor do Clube de Imprensa na
cidade de Hamburgo, resolveu fazer manifestações públicas incentivando a realização
de um boicote ao filme “Unsterbliche Geliebte” (A Amante Imortal), dirigido naquele
ano por Veit Harlan. Em verdade, as manifestações não atacavam propriamente o filme,
um romance inofensivo; mas, sim, o histórico do cineasta, intimamente ligado ao
movimento nazista3.
2
O inteiro teor da decisão pode ser conferido, em português, na obra: SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos
de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Trad: Leonardo Martins e outros. Montevideo:
Konrad Adenauer Stiftung, 2006 - BVERFGE 7, 198 (LÜTH-URTEIL) – p. 381-395.
3
SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 383.
4
Veit Harlan havia produzido, durante o 3º Reich, o filme “Jud Süβ” (1941), que
ficou conhecido como aquele que mais teria contribuído, na Alemanha, para a difusão
do ideal nazista, do ódio ao povo judeu. Em razão desse fato, quando foi sinalizado o
retorno do Harlan às telas do cinema alemão, por meio do já referido romance, houve
reação enfurecida de alguns alemães, que passaram, então, a articular, em fóruns
públicos, a necessidade de se promover um boicote a esse filme, ou, mais exatamente, à
tentativa de retorno do cineasta. O movimento encontrou liderança em Erich Lüth que,
na Semana do Filme Alemão, na condição de presidente do Clube de Imprensa de
Hamburgo, disparou duras críticas ao cineasta.
Depois que a cinematografia alemã no terceiro Reich perdeu sua
reputação moral, um certo homem é com certeza o menos apto de
todos a recuperar esta reputação: trata-se do roteirista do filme “Jud
Süβ” [...] sua absolvição em Hamburgo foi tão somente uma
absolvição formal. A fundamentação daquela decisão (já) foi uma
condenação moral. Neste momento, exigimos dos distribuidores e
proprietários de salas de cinema uma conduta que não é tão barata
assim, mas cujos custos deveriam ser assumidos: caráter [...]4
Após essa polêmica manifestação, a firma que estava a cargo da produção do
novo filme de Harlan contestou a autoridade de Lüth para proferir aquelas declarações,
exigindo explicações do crítico de cinema. A iniciativa alimentou ainda mais a fúria de
Lüth, que, em carta aberta entregue à imprensa no dia 27 de outubro de 1950, deixou
mais clara a sua motivação, bem como o seu propósito.
“[...] com efeito, a volta de Harlan irá abrir feridas que ainda não
puderam sequer cicatrizar e provocar de novo uma terrível
desconfiança de que se reverterá em prejuízo da reconstrução da
Alemanha. Por causa de todos esses motivos, não corresponde
somente ao direito do alemão honesto, mas até mesmo à sua
obrigação, na luta contra este representante indigno do filme alemão,
além do protesto, mostrar-se disposto também ao debate”5.
Em seguida a este episódio, produtores e distribuidores do filme “Unsterbliche
Geliebte” (A Amante Imortal), com base em dispositivo do Código Civil alemão, § 826
4
5
SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2., p. 383.
Ibid., p. 384.
5
BGB6, acionaram o Tribunal Estadual de Hamburgo, por meio de uma ação cautelar,
com pedido de liminar, a fim de que Erich Lüth fosse obrigado a se abster
imediatamente de conclamar o boicote ao filme. O pedido foi deferido. Erich Lüth
recorreu da decisão para o Superior Tribunal Estadual de Hamburgo, que negou
provimento à apelação, mantendo assim a decisão favorável a Veit Harlan e demais
interessados na exibição de “A Amante Imortal”7.
Finalizada a discussão em sede da ação cautelar, houve o ajuizamento da ação
principal também perante o Tribunal Estadual de Hamburgo, que proferiu, no dia 22 de
novembro de 1951, decisão novamente desfavorável a Erich Lüth, condenando-o à
abstenção de manifestações daquela natureza, ao argumento de que feriam os bons
costumes, tal como alegado pelos autores da ação.
Inconformado, Lüth atacou a decisão por duas frentes: a um só tempo apelou
para o Superior Tribunal Estadual de Hamburgo e impetrou uma Reclamação
Constitucional
perante
o
Tribunal
Constitucional
Federal
da
Alemanha
(Bundesverfassungsgericht), argüindo que a decisão contestada violava seu direito
fundamental à livre expressão do pensamento, previsto na Constituição alemã (art. 5 I 1
GG). Aduziu o reclamante que “os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos
com dignidade constitucional, seriam para o direito civil ‘causas [normativas]
superiores de justificação’”8.
O que até o momento não passava de uma disputa entre atores privados, a ser ou
não encaixada em tipo previsto na legislação civil alemã, transformou-se, com a
compreensão que lhe conferiu o Tribunal Constitucional Federal, no paradigmático
“Caso Lüth”, no qual, como sugerido pelo apelido, foram acolhidas as alegações de
Erich Lüth de ofensa a seu direito fundamental.
A importância do caso, porém, não se deve às partes envolvidas; mas à linha de
argumentação desenvolvida pela Corte Constitucional alemã para atribuir razão a Erich
Lüth.
De acordo com a Corte, para se afirmar que uma decisão judicial ofende um
direito sediado na Constituição, é necessário antes afirmar a existência de um dever de
observância desse direito quando da formação da convicção judicial. Como, no caso, a
6
§ 826 BGB – “Quem, de forma atentatória aos bons costumes, infligir dano a outrem, está obrigado a
reparar os danos causados” (tradução colhida na obra de SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e
Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 141).
7
SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 384.
8
SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 386.
6
decisão judicial amparou-se em norma do direito civil, seria necessário, ainda,
considerar que a norma de direito fundamental em alguma medida determinasse uma
compreensão diferente do dispositivo do Código Civil alemão, de tal forma que este não
mais servisse de justificativa para a decisão judicial questionada9.
Contra essa lógica, há o entendimento comum, fundado na construção histórica
dos direitos fundamentais, de que os direitos previstos em uma Constituição constituem
instrumentos de resistência do cidadão contra o Estado, a serem, portanto, invocados
exclusivamente na hipótese de um conflito envolvendo o poder público. Nesta esteira,
lembrou a Corte, a própria Reclamação Constitucional foi moldada pela legislação
alemã como um remédio jurídico de proteção dos direitos fundamentais tão somente
contra atos do poder público10.
No Caso Lüth, entretanto, a Corte Constitucional alemã, sem propriamente
afastar essa concepção tradicional dos direitos fundamentais, construiu outra dimensão
para esses direitos, fundada, sobretudo, na idéia de que a Constituição alemã, não tendo
a pretensão de se fazer neutra, “estabeleceu também, em seu capítulo dos direitos
fundamentais, um ordenamento axiológico objetivo”11.
Em outras palavras, ao lado da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, a
qual tradicionalmente ilumina a posição jurídica do titular do direito frente ao poder
público; a Corte Constitucional alemã situou uma nova perspectiva, uma dimensão
objetiva, que, por sua vez, transparece a carga axiológica do direito, o sistema de
valores que influencia na formação de todo o sistema jurídico e que, portanto, constitui
parâmetro para todos os ramos do Direito, entre os quais se inclui o Direito Civil.
Segundo a argumentação do Tribunal Constitucional alemão, a irradiação dessa
carga axiológica dos direitos fundamentais para o direito privado é tanto mais visível na
presença de normas de linguagem mais aberta no direito civil, ou “cláusulas gerais”,
espécies de “porta de entrada” desses valores no direito privado, as quais “remetem para
o julgamento do comportamento humano a critérios extra-cíveis ou até critérios extrajurídicos, como os ‘bons costumes’”12.
Nessas hipóteses, para que o aplicador da norma identifique o que é exigível, a
partir das cláusulas gerais, em um caso concreto, faz-se necessário que tome por
parâmetro o “conjunto de concepções axiológicas, as quais um povo alcançou numa
9
Ibid., p. 387.
SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 387.
11
Ibid., p. 387-388.
12
Ibid., p. 388.
10
7
certa época de seu desenvolvimento cultural e que foram fixadas em sua
Constituição”13.
No Caso Lüth, portanto, consagrou-se o entendimento de que se um juiz, em sua
decisão, deixa de observar a influência da Constituição sobre as normas de direito
privado, ofende, a um só tempo, a dimensão objetiva do direito fundamental e,
porquanto manifestação do poder público, a dimensão subjetiva do direito. A dimensão
objetiva não substitui, mas, sim, reforça a dimensão subjetiva14.
Por conseguinte, fixou-se a idéia de que compete a uma Corte Constitucional
avaliar se o “conteúdo axiológico” das prescrições constitucionais sé observado nos
mais diversos ramos jurídicos; de que uma Reclamação Constitucional pode levar à
discussão de um Tribunal Constitucional uma decisão que não tenha, no caso concreto,
ponderado corretamente o significado de um direito fundamental em face do valor do
bem jurídico protegido pela lei geral aplicada15.
Aplicando essas premissas ao próprio caso em que foram elaboradas, o Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha entendeu que a decisão da instância ordinária que
enquadrou as manifestações de Lüth como ofensivas aos bons costumes desconheceu o
especial significado do direito fundamental à livre expressão do pensamento, também
aplicável na situação em que entra em conflito com interesse privado, posicionando-se,
derradeiramente, pela procedência da Reclamação impetrada por Erich Lüth16.
Neste ano de 2008, comemoram-se exatos 50 anos do caso em que basicamente
três importantes parâmetros, relativos à Constituição e forma de tratá-la, foram fixados
pela jurisprudência alemã: (1) a necessidade de conceber a Constituição como uma
ordem objetiva de valores; (2) a decorrente dimensão objetiva dos direitos fundamentais
por meio da qual pode-se chegar a uma eficácia desses direitos nas relações privadas;
(3) necessidade de ponderação de direitos, tomados em seu aspecto axiológico ou como
princípios, na hipótese de colisão.
3– NEOCONSTITUCIONALISMO E O CASO LÜTH
13
Ibid., p. 388.
Daniel Sarmento fornece uma boa justificativa para essa relação complementar – e não sucessiva ou
substitutiva – entre as dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, articulada no Caso Lüth:
“se a pessoa humana não se identifica com o indivíduo isolado do liberalismo burguês, mas também não
se deixa absorver completamente pelo grupo social, mantendo seu reduto inexpurgável de individualidade
– a sua zona de exclusividade –, torna-se flagrante que não é a qualidade pública ou privada de um
interesse que o fará prevalecer incondicionalmente sobre o que com ele concorrer” (op. cit., nota 6).
15
SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 393.
16
Ibid., p. 395.
14
8
Nesta terceira parte, como já anunciado, busca-se compreender a proposta de um
novo constitucionalismo, de conexões estreitas com os parâmetros fixados pelo Caso
Lüth, uma proposta anunciada por diversos e renomados autores no mundo e
incorporada pelo Direito Constitucional brasileiro, ao tempo em que se completam os
20 anos da Constituição de 1988.
O constitucionalismo, sem o prefixo “neo”, é comumente associado à idéia de
liberalismo moderno, de uma teoria que se coloca na trilha da limitação do poder do
Estado. John Locke, considerado, por muitos, como pai do liberalismo político, é, por
esta razão, também identificado por alguns autores, a exemplo de Celso Lafer17, como o
principal percussor do constitucionalismo18.
Essa perspectiva de Constitucionalismo, próxima ao liberalismo da Idade
Moderna, funda-se na suposição da capacidade de autopromoção da sociedade, em
decorrência da qual reservam-se ao Estado tão-somente as tarefas que a sociedade não
seja capaz de realizar por si só, isto é, a segurança externa e interna, como forma de
garantir a liberdade individual.
A liberdade, dentro desse modelo, adquire uma perspectiva negativa, que
compreende a ausência de interferência na esfera de decisão do indivíduo19. Dentro
dessa lógica, preservada a autonomia individual, as eventuais desigualdades sociais que
surjam serão frutos do exclusivo fracasso individual, e, assim, não poderão ser
qualificadas como injustas. A função estatal restrita a atividades de defesa frente às
ameaças à liberdade individual forja a separação entre Estado e sociedade20.
Como aponta Dieter Grimm21, a Constituição assume especial significado neste
modelo, pois cabe-lhe exatamente a tarefa de delimitar o âmbito dentro do qual a
sociedade desfruta de sua autonomia, através da fixação de direitos fundamentais como
elementos limitadores da atuação estatal.
17
“Existe uma relação direta entre a teoria política de Locke e os princípios que inspiraram a tutela dos
direitos fundamentais do homem no constitucionalismo” (LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos
Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia de Letras, 1998, p.
122).
18
Em outro trabalho, analisamos mais detidamente essa associação. Cf. MACHADO, Joana de Souza.
Constitucionalismo e Soberania Popular: influxos do pensamento moderno nas democracias
contemporâneas. In.: Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery, Curso de Direito, nº. 04,
jan/jun 2008.
19
Cf. leitura feita de Isaiah Berlin por PETIT, Philip. Republicanismo: una teoría sobre la libertad y el
gobierno. Barcelona: Paidós, 1999, p. 40.
20
GRIMM, Dieter. El futuro de la Constitución. In: Constitucionalismo y derechos fundamentales. Trad.
de José Muñoz de Baena Simón. Madrid: Editorial Trota, 2006; p. 180.
21
Ibid., p. 183.
9
É possível, porém, falar de vários constitucionalismos, ou de movimentos
constitucionais,
como
prefere
J.J.
Gomes
Canotilho22,
que
diferencia
o
constitucionalismo inglês, do francês e do americano; assim como admite a
possibilidade
de
se
contrapor,
em
uma
perspectiva
histórico-descritiva,
o
constitucionalismo antigo, baseado em costumes e tradições, ao constitucionalismo
moderno, já mencionado, inaugurado a partir do século XVII e em curso até os dias
atuais com as Constituições contemporâneas.
Afinal, se é possível falar de tantas maneiras em constitucionalismo, extraindose sempre, como denominador, a idéia de limitação do poder do Estado, em que consiste
a proposta hoje tão divulgada de um “Neoconstitucionalismo”?
Os estudos que procuram sistematizar o discurso neoconstitucionalista
reconhecem que ainda se trata de um rótulo impreciso, eclético23 ou em fase de
construção.
Começam a convergir, contudo, para a compreensão de que a novidade sugerida
pelo título e a própria unidade do movimento está na adoção conjunta de pelo menos
três fatores, a seguir explicitados.
a) Objeto de estudo diferenciado - textos constitucionais contemporâneos
O neoconstitucionalismo toma como objeto de estudo as Constituições surgidas
depois da Segunda Guerra Mundial, marcadas por uma grande e detalhada pauta
material, de que é exemplo a Constituição brasileira de 198824.
El neoconstitucionalismo pretende explicar un conjunto de textos
constitucionales que comienzam a surgir después de la segunda guerra
mundial y sobre todo a partir de los años setenta del siglo XX. Se trata
de Constituciones que no se limitan a establecer competencias o a
separar a los poderes públicos, sino que contienen altos niveles de
normas <<materiales> o substantivas que condicionan la actuación del
22
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.Coimbra: Almedina,
2003, p. 183
23
“Pretender conjugar estas dos perspectivas desde las que es posible afrontar o Derecho creo que resulta
un objetivo que explica el núcleo del eclecticismo de las teorias que se agrupan en el movimiento
neoconstitucionalista y también muchas de las críticas que se lê formulan”. (CARBONELL, Miguel, El
neoconstitucionalismo en su laberinto.In: Teoría del neoconstitucionalismo. Madrid: Editorial Trotta,
2007, p. 258).
24
Os adeptos do movimento neoconstitucionalista no Brasil costumam tomar a Constituição de 1988
como marco histórico de um novo Direito Constitucional, cf. BARROSO, Luís Roberto.
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no
Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, nº33, 2006, p. 45.
10
Estado por médio de la ordenación de ciertos fines y objetivos.
Ejemplos representativos de este tipo de Constituciones lo son la
española de 1978, la brasileña de 1988 y la colombiana de 199125.
A pauta substantiva não chega a constituir propriamente uma inovação das
Constituições mais recentes, pois já era verificada na Constituição Mexicana, de 1917, e
na da República de Weimar, de 1919, como admite o próprio Carbonell, um dos
principais difusores do movimento neoconstitucionalista26.
b) Prática jurisprudencial
O neoconstitucionalismo pressupõe, em decorrência dos novos textos
constitucionais, uma prática jurisdicional fundada em parâmetros interpretativos de
ordens distintas, como os valores ou princípios, mediante um raciocínio jurídico mais
complexo. Compõem esse raciocínio específicos métodos de interpretação, como a
ponderação, a proporcionalidade, a razoabilidade, a máxima efetividade, a
Constitucionalização do Direito, a eficácia dos direitos fundamentais em relações
privadas, etc27.
c) Desenvolvimentos teóricos
Como terceira e última exigência mais geral do movimento, encontra-se a
assunção de um papel menos contemplativo pela Ciência do Direito, de tal forma que
constitua, em si mesma, uma meta garantia 28.
De acordo com Carnonell, as propostas de Dworkin, Alexy, Nino, Ferrajoli,
Sanchís
e
Zagrebelsky
têm
cumprido
esta
missão
epistemológica
do
neoconstitucionalismo, não se limitando à mera contemplação das novas Constituições
ou práticas constitucionais, mas verdadeiramente instigando a própria existência dessa
prática diferenciada29.
25
CARBONELL, Miguel. op. cit., nota 23, p. 9-10.
Ibid.,, p. 11.
27
CARBONELL, Miguel. op. cit., nota 23, p. 10. No Brasil, fator semelhante é invocado sob o rótulo de
uma nova interpretação constitucional, composta por princípios específicos como o da supremacia da
Constituição; o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público; o da
interpretação conforme a Constituição; o da unidade; o da razoabilidade e o da efetividade. (BARROSO,
Luís Roberto. op. cit., nota 24, p. 52).
28
FERRAJOLI, Luigi.. Derechos e garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 2006, p.33.
29
“Aportaciones como lãs que han hecho en diferentes ámbitos culturales Ronald Dworkin, Robert
Alexy, Gustavo Zagrebelsky, Carlos Nino, Luis Prieto Sanchís o el mismo Luigi Ferrajoli han servido no
26
11
Como visto, os próprios neoconstitucionalistas explicam que para a invocação
do rótulo que vestem não basta tomar os textos constitucionais mais recentes como
objeto de estudo, em valorização do seu conteúdo. De outro lado, o desenvolvimento
teórico menos contemplativo está presente em diversas áreas de produção do saber, não
sendo nem de longe característica exclusiva do movimento em estudo.
Entre
os
três
fatores
apontados
como
componentes
do
discurso
neoconstitucionalista30, parece mais determinante para a sua identificação a idéia de
que, em face dos textos constitucionais contemporâneos, como a Constituição brasileira
de 1988, seja necessária uma prática jurisprudencial diferenciada, fundada em
parâmetros interpretativos de ordens distintas, orientada por valores extraídos a partir
dos textos constitucionais, a serem ponderados em casos concretos31.
Nesse
exato
fator,
determinante
para
a
identificação
do
discurso
neoconstitucionalista, reside a notória zona de contato com os argumentos fixados há 50
anos atrás pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, no já analisado Caso
Lüth.
O Neoconstitucionalismo propõe que a Constituição seja concebida como fonte
de parâmetros interpretativos de ordens distintas, a exemplo dos valores e dos
princípios, tal como originariamente proposto no Caso Lüth32. Para lidar com esses
novos parâmetros, o Neoconstitucionalismo propõe algumas técnicas mais sofisticadas
de aplicação do Direito, entre elas, a ponderação, a incidência de direitos fundamentais
em relações privadas, interpretação das leis conforme a Constituição – todas utilizadas
para a decisão do Caso Lüth, em 1958.
Antes de se aprofundar a análise sobre a proposta neoconstitucionalista, cujas
bases fundaram-se a partir do Caso Lüth, vejamos, neste momento, como esse discurso
vem se difundindo no Brasil à época dos 20 anos da Constituição de 1988.
solamente para comprender las nuevas prácticas jurisprudenciales sino también para ayudar a crearlas”
(CARBONELL, Miguel., op. cit , nota 23, p. 11).
30
Ibid., p. 9.
31
Ibid., p.10.
32
“La concepción de la constitución como orden de valores u orden objetivo axiológico, que conforma la
vida social y demanda su aplicación em todos los âmbitos del Derecho, tiene su ponto de partida em La
primera jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal alemán. El punto culminante lo constituye la
sentencia Lüth, de 1958, donde se establecen los conceptos centrales de valor, de ordenamiento valorativo
[...]” (CRUZ, Luiz M. La Constitución como orden de valores: problemas jurídicos y políticos – um
estúdio sobre los orígenes nel neoconstitucionalismo. Granada: Editorial Comares – Coleción filosofia,
derecho y sociedade, 2005, p. 9).
12
4 – AOS 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, ENCONTRO
MARCADO COM O CASO LÜTH (?)
No dia 05 de outubro deste ano de 2008, serão comemorados 20 anos da data em
que se promulgou, depois de 584 dias de funcionamento da Assembléia Constituinte de
1987-88, a Constituição brasileira em vigor33.
O texto constitucional brasileiro, que atualmente se compõe de 250 artigos, não
computados os 95 especialmente produzidos para orientar a etapa transitória na ordem
constitucional (ADCT), sempre taxado de prolixo quando classificado em relação à sua
extensão, é paradoxalmente fruto de um imenso esforço de síntese. Após o trabalho
concomitante de oito comissões temáticas, isoladas entre si, dividas em 24
subcomissões, foi entregue um anteprojeto da Constituição composto por 501 artigos à
Comissão de Sistematização34.
A votação do texto final foi precedida de um período muito crítico de filtragem
das contribuições mais extravagantes para a formação da nova Constituição brasileira.
Narram-se propostas de emendas realmente bizarras ao anteprojeto, a exemplo da
tentativa de se prescrever a igualdade entre homens e mulheres, “exceto na gravidez, no
parto e no aleitamento”; bem como a de se inserir no texto um artigo segundo o qual
todos os carros oficiais seriam pintados de uma cor só, cabendo à lei complementar a
definição dessa cor35.
De todo modo, a Constituição brasileira de 1988, com os seus atuais 250 artigos,
ainda que possa ter discutida a sua prolixidade, se comparada ao seu inusitado
anteprojeto; é comumente tomada como exemplo de pauta constitucional alargada, por
ter tratado de modo minucioso de assuntos antes regulados apenas pela legislação infraconstitucional.
Essa pauta alargada, para alguns, seria possivelmente reflexo da euforia em se
romper com uma etapa escura da história constitucional brasileira, transpor aquele
estado de exceção permanente à democracia.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela próprio o confessa, ao
admitir reforma. Quanto a ela, discordar sim. Divergir, sim.
33
OLIVEIRA, Mauro Márcio. Fontes de Informações sobre a Assembléia Nacional Constituinte de 1987:
quais são, onde buscá-las e como usá-las. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas,
1993, p. 13
34
OLIVEIRA, Mauro Márcio. op. cit., nota 33, p. 12.
35
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora,
2008, p. 461-462.
13
Descumprir,
jamais. Afrontá-la, nunca [...] a persistência da
Constitução é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos
anos de luta e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do homem, da
Liberadde e da Democracia, brandamos por imposição de sua honra:
temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Almodiçoamos a tirania onde quer
que ela desgrace homens e nações, principalmente na América
Latina36.
Para o discurso que vem ganhando força no país, trata-se de uma característica a
ensejar verdadeira revolução no Direito Constitucional brasileiro37. Em outras palavras,
a Constituição de 1988 constitui o marco histórico do Neoconstitucionalismo no Brasil.
O discurso neoconstitucionalista, cujas linhas principais já foram explicadas
nesse trabalho, recebeu, portanto, uma versão brasileira, que vem se difundindo a passos
largos, com o trabalho de divulgação de seus adeptos.
Nesse ponto, merece destaque o estudo do Prof. Luís Roberto Barroso,
“Neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito”, pela ampla divulgação
editorial que teve, determinante para a difusão do discurso neoconstitucionalista no
Brasil38.
Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na
acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de
transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em
meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a
formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu
ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico,
o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a
reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o
conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição,
a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma
nova dogmática da interpretação constitucional39.
No que se refere ao “marco filosófico”, mais um eixo em trono do qual se
constrói o neoconstitucionalismo brasileiro, Barroso afirma cuidar-se do “póspositivismo”. Para o autor, o marco constitui uma síntese entre o que chama de
36
Ibid., p. 913 – trecho do discurso de Ulysses Guimarães, como presidente da Constituinte, em 05 de
outubro de 1988.
37
“Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em
menos de uma geração” (BARROSO, Luís Roberto. op. cit., nota 24, p. 46).
38
BARROSO, Luís Roberto. op. cit., nota 24. O texto foi reproduzido em sete revistas brasileiras entre
2005 e 2007, além de sua publicação em dois volumes coletivos e em vários sites da internet. Conferir, a
título
de
exemplo:
<http://biblioteca.senado.gov.br:8991/F/LI3XJGU261X1QHJ6PCL7X1RKNL6GPFYHBQRHKX1AN9
RXPI7Y74-01194?func=full-set- set&set_number=015629&set_entry=000030&format=999>.
39
” (Ibid., p.57).
14
pensamento positivista e o jusnaturalismo, a qual formula nos seguintes termos: “o póspositivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto;
procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias
metafísicas”40.
Por fim, quanto ao “marco teórico”, Barroso aponta três grandes diferenciais do
pensamento neoconstitucionalista, os quais podem receber a síntese: i- consolidação da
idéia de força normativa da Constituição41; ii- superação da supremacia do Poder
Legislativo em prol de uma supremacia da Constituição, via proteção da jurisdição
constitucional42; iii – reconhecimento da necessidade de uma nova interpretação
constitucional43.
A leitura que Barroso oferece ao Neoconstitucionalismo encontra ecos na obra
de outros autores e vai se colocando como uma espécie de voz uníssona no ambiente
teórico brasileiro44.
A circunstância se deve principalmente à inexistência de um contra-discurso
sistematizado na doutrina brasileira. Os autores que por ventura se oponham às
premissas do Neoconstitucionalismo ou estão silentes ou se manifestam de modo tão
disperso que a aparente homogeneidade do discurso neoconstitucionalista não chega a
se abalar.
Virgílio Afonso da Silva, por exemplo, tece ácidas críticas à idéia de uma nova
interpretação constitucional, uma das marcas do Neoconstitucionalismo brasileiro.
Uma das certezas mais difundidas no direito constitucional brasileiro
atual está ligada à forma de interpretação da constituição. Nesse
campo há uma divisão facilmente perceptível entre o arcaico e o
moderno. Arcaico é crer que a interpretação da constituição deve ser
feita segundo os cânones sistematizados por Savigny ainda na metade
do século XIX. Moderno é condenar os métodos tradicionais e dizer
que eles, por terem caráter exclusivamente privatista, não são as
40
Ibid. p. 47. Barroso insere, assim, como característica do Neoconstitucionalismo, uma postura teórica
que supera a positivista; mas há neoconstitucionalistas, como Carbonell, Ariza e Comanducci que se
opõem apenas à postura positivista epistemológica. Essa observação se faz importante para comentários
que virão após a exposição do estudo de Barroso.
41
“O debate acerca da força normativa da Constituição só chegou ao Brasil, de maneira consistente, ao
longo da década de 80, tendo enfrentado as resistências previsíveis [...] coube à Constituição de 1988,
bem como à doutrina e a jurisprudência que se produziram a partir de sua promulgação, o mérito elevado
de romper com a posição retrógrada” (BARROSO, Luís Roberto. op. cit., nota 24, p. 49).
42
Ibid., p. 50.
43
Ibid. p.51 e ss.
44
A título indicativo: MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo: a invasão da Constituição.
São Paulo: Método, 2008; BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e
controle
das
políticas
públicas.
In:
Revista
Diálogo
Jurídico.
Disponível
em:
<<http://www.direitopublico.com.br/form_revista.asp?busca=ana%20paula%20de%20barcellos>>.
15
ferramentas adequadas para a interpretação da constituição. Ser
moderno é, em suma, falar em métodos e princípios de interpretação
45
exclusivamente constitucional .
A iniciativa do autor é relevante no sentido de contribuir para que se evite, no
seio da Teoria Constitucional brasileira, a formação, no mínimo suspeita, de um “senso
comum teórico” 46. Ademais despertou a necessidade de um incremento argumentativo
do discurso neoconstitucionalista, até então não fomentada pela doutrina brasileira47.
Virgílio, entretanto, ataca apenas o ponto da nova interpretação constitucional,
que não cobre toda a proposta do Neoconstitucionalismo, em alta na Teoria
Constitucional brasileira.
O discurso neoconstitucionalista, na concepção que tem recebido no Brasil,
pretende se individualizar a partir do seu objeto de estudo, ou “marco histórico” (as
constituições oriundas do segundo pós-guerra); do seu “marco filosófico” (póspositivismo); e de suas propostas teóricas (valorização da Constituição enquanto norma,
nova interpretação constitucional e papel alargado da jurisdição constitucional).
No que tange ao objeto de estudo, já foi reconhecido, até mesmo por alguns
neoconstitucionalistas48, que a adoção das Constituições oriundas do segundo pósguerra como objeto de estudo não é característica exclusiva dos autores que invocam
para si o rótulo de neoconstitucionalistas.
Quanto ao “marco filosófico” do Neoconstitucionalismo, o caminho seguido por
Barroso para explicar a idéia de pós-positivismo mostra-se, por vezes, delicado. O autor
não retrata a distinção importante que positivistas, como Kelsen, realizam entre Direito
e Ciência do Direito49. Assim, ao articular frases como “em busca da objetividade
científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões
45
SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação e sincretismo metodológico. In.: Interpretação
Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116).
46
Sobre a idéia de “senso comum teórico”, cf. WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II.
Epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p. 57-100.
47
Ao descrever a sua proposta de uma nova interpretação constitucional, Barroso já sentiu a necessidade
de justificar as constantes referências estrangeiras e a impossibilidade de construção de um modelo
interpretativo puro, em resposta, exatamente, à crítica de Vírgilio sobre um certo “sincretismo
metodológico” reinante no Brasil. “Nesse ambiente, não é possível utilizar modelos puros, concebidos
alhures, e se esforçar para viver a vida dos outros. O sincretismo – desde que consciente e coerente –
resulta sendo inevitável e desejável. Em visão aparentemente diversa, v. Virgílio Afonso da Silva,
‘Interpretação constitucional e sincretismo metodológico’ [...]” (BARROSO, Luís Roberto. Em nota de
rodapé nº 19. op. cit., nota 24, p. 53).
48
Cf., por todos, CARBONELL, Miguel., op. cit., nota 23, p. 11.
49
“Se bem que a ciência jurídica tenha por objeto normas jurídicas e, portanto, os valores jurídicos
através delas constituídos, as suas proposições são, no entanto – tal como as leis naturais da ciência da
natureza – uma descrição do seu objeto alheia aos valores (wertfreie)” (KELSEN, Hans. Teoria pura do
Direito. Op. Cit., p.89).
16
como legitimidade e justiça [...]”50, dá ensejo a leituras caricatas do pensamento que
pretende superar.
O Neoconstitucionalismo de Carbonell, por exemplo, afasta-se de uma rejeição
mais rápida ao deixar claro que a postura positivista que pretende superar é a
metodológica, pretensamente neutra, contemplativa; e não a teórica, tendo em vista que
os positivistas incorporam uma noção bem alargada de criação do Direito, da conexão
entre Direito, Moral e Política.
A despeito dos reparos acima efetuados, a preocupação que esse trabalho
pretende compartilhar sobre a rápida e recente difusão do Neoconstitucionalismo no
Brasil dirige-se menos a uma possível fraude em torno da construção do prefixo “neo”.
Sobre a questão, basta o rápido lembrete que o “novo” discurso se difunde no Brasil à
distância de 50 anos de suas fundações originárias (50 anos de Caso de Lüth).
O fetiche pelo novo, pelo mais moderno, pode aprontar dessas armadilhas, além
de acompanhar há longa data as trilhas da produção intelectual brasileira, do campo
literário às ciências sociais, provocando a sensação de discussões desambientadas,
impropriamente deslocadas, tardiamente importadas51. A sensação tem mesmo razão de
ser, já que com os olhos voltados para o que há de mais recente, perde-se de vista, por
vezes, a consistência ou da pertinência do que está sendo incorporado52.
Na linha que tem sido difundido no Brasil, o discurso neoconstitucionalista
propugna pela presença de uma nova “onda constitucional”, que, além de novas
Constituições, trouxe um novo modelo, centrado na <<supremacia da Constituição>>,
cuja proteção se atribui ao Judiciário. O adjetivo “novo” sugere contraposição a um
modelo antigo, que, segundo Barroso, corresponde ao modelo de <<supremacia do
Poder Legislativo>>53.
O antagonismo articulado entre <<supremacia do Poder Legislativo>> e
<<supremacia da Constituição>>, aliado ao estabelecimento de uma conexão íntima
50
BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit., nota 24, p. 47.
“Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos,
elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho e
de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra
paisagem” (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p.
15).
52
“Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em
sentido impróprio [...] partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as idéias
estavam fora de seu centro, em relação ao seu uso europeu” (SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do
lugar. In.: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São
Paulo: Duas Cidades Editora 34, 2000, p. 29-30).
53
BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit., nota 23, p. 50.
51
17
entre <<supremacia da Constituição>> e Poder Judiciário revela algumas premissas que
precisam ser problematizadas.
Inicialmente, deve-se destacar das relações acima uma visão depreciativa do
Poder Legislativo, cuja supremacia é tida como antagônica à supremacia Constitucional.
Por que atribuir a última palavra a uma Corte Constitucional é fazer imperar a
supremacia constitucional e não a supremacia judicial?
A tese de uma nova proposta para a compreensão e implementação do
Direito (constitucional) tem ganhado cada vez mais espaço na
discussão literária brasileira e mundial. Sob o rótulo de
‘neoconstitucionalismo’ se têm agrupado correntes e teorias [...] que
conclamam o Judiciário a atuar como protagonista da idéia de Estado
Constitucional Social de Direito [grifo nosso] 54.
Há, subjacente a essa conexão, a idéia de que o Poder Legislativo está mais
sujeito, em suas deliberações, a comprometer a Constituição do que o Poder Judiciário.
O Brasil está importando de modo acrítico, justamente às voltas da
comemoração dos 20 anos da Constituição Cidadã, um discurso que inspira e naturaliza
uma vivência constitucional deferente à leitura realizada pelo órgão de cúpula do poder
Judiciário.
Até mesmo no contexto originário desse discurso, o Tribunal Constitucional
Federal da Alemanha, já não se verifica, há longa data, adesão incondicionada à idéia de
que a Corte Constitucional deva proceder como principal guardiã de uma ordem
objetiva de valores. Em 1975, por exemplo, antes da Constituição brasileira de 1988
sequer ser pensada, o Tribunal que fixou os parâmetros do discurso neconstitucionalista
já questionava a lógica que viria a ser incorporada tão mais tarde no Brasil.
La utilización del concepto de decisión objetiva valorativa por el
Tribunal Constitucional, aplicado a los derechos fundamentales, se
convierte, por tanto, em el médio por el que se transfiere al Tribunal
Constitucional lãs funciones específicamente legislativas para el
desarollo del orden social55.
Não se trata de negar a importância da Jurisdição Constitucional, nem de negarlhe a possibilidade de realizar uma leitura valorativa da Constituição. Afinal de contas,
54
TAVARES, André Ramos. Prefácio. In.: MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo: a
invasão da Constituição. São Paulo: Método, 2008.
55
Posição firmada pelos juízes Rupp-von Brünneck e Simon, na sentença sobre a despenalização do
aborto – BverfGE 39 1 (71-72), em 1975, referida por CRUZ, Luiz M., op. cit., nota 32, p. 45.
18
no caso brasileiro, a própria Constituição, com a sua larga pauta material, abre espaço
para uma atuação mais ampla da Jurisdição Constitucional. Trata-se de sinalizar que
essa ordem de circunstâncias não requer, como sugere o neconstitucionalismo, nem
autoriza, a colonização da Constituição pelo código sofisticado de uma Jurisdição
Constitucional.
As pessoas convenceram-se de que há algo indecoroso em um sistema
no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos políticos e
tomando suas decisões com base no governo da maioria, tem a palavra
final em questões de direito e princípios. Parece que tal fórum é
considerado indigno das questões mais graves e mais sérias dos
direitos humanos que uma sociedade moderna enfrenta. O pensamento
parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus
volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a
política partidária, sejam um local mais adequado para solucionar
questões desse caráter56.
No Brasil, mesmo fora do contexto das súmulas vinculantes, inaugurado com a
EC 45 de 2004, assiste-se a uma ampla subordinação da comunidade jurídica ao
Supremo Tribunal Federal, por vezes, estimulada pela própria Corte.
Cabe destacar, neste ponto, tendo presente o contexto em questão, que
assume papel de fundamental importância a interpretação
constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal, cuja função institucional, de “guarda da
Constituição” (CF, art. 102, “caput”), confere-lhe o monopólio da
última palavra em tema de exegese das normas positivadas no texto da
Lei Fundamental, como tem sido assinalado, com particular ênfase,
pela jurisprudência desta Corte Suprema: “(...) A não-observância da
decisão desta Corte debilita a força normativa da Constituição (RE
203.498-AgR/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES )57
Sobretudo, constrói-se um ambiente teórico que naturaliza as investidas do STF
em direção a uma espécie de exclusivismo moral58, supostamente necessário ao modelo
de supremacia da Constituição, em detrimento de um malfadado modelo de supremacia
do Poder Legislativo.
56
WALDRON, JEREMY. A dignidade da legislação. Trad.: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 5.
57
Citado na Reclamação (Rcl 2986 MC/SE), Rel. Celso Mello, 2005.
58
Análise mais aprofundada sobre a questão na dissertação de mestrado da autora, Ativismo Judicial no
Supremo Tribunal Federal, defendida em 04 de junho de 2008, perante banca composta pela Professora
Orientadora Gisele Cittadino e pelos Professores Francisco de Guimaraens e José Ricardo Cunha, no
prelo.
19
Se a linguagem aberta ou substantiva da Constituição permite que um Tribunal
realize uma leitura valorativa desse texto, como sugerido há 50 anos atrás no Caso Lüth,
e, agora, pelo Neoconstitucionalismo fortemente presente nos 20 anos da Constituição
de 1988, é o caso de se estender essa leitura a todos os atores políticos de uma sociedade
e não de torná-la monopólio da Jurisdição Constitucional.
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Infelizmente,
esse
artigo,
produzido
especialmente
para
uma
edição
comemorativa aos 20 anos da Constituição brasileira, não consegue assumir o tom
eufórico tão comum, como já abordado na introdução desse trabalho, aos eventos
festivos.
Principalmente porque a autora, na condição ainda incipiente de Professora de
Direito Constitucional, nota, em seu contato com o meio acadêmico, como a lógica da
deferência ao Poder Judiciário na compreensão de um documento tão popular como a
Constituição vai se alimentando de novas energias – a dos estudantes.
Os principais concursos públicos realizados no Brasil têm cobrado como
“gabarito” das provas de Direito Constitucional o entendimento, não raro, polêmico, do
Supremo Tribunal Federal sobre a matéria cobrada, mesmo quando amplamente
discutível. Em conseqüência, os estudantes, compreensivelmente preocupados com sua
alocação no mercado de trabalho, rendem-se, por vezes, passivamente, ao pacto eterno
de uma vivência constitucional irrefletida.
Embora o artigo não assuma tom eufórico, carrega a pretensão de que, por meio
das problematizações realizadas, possa contribuir para uma perspectiva constitucional
otimista. Talvez, por não se colocar imune à industrialização da esperança, de que nos
fala Drummond, o presente trabalho conte com a possibilidade de ter despertado alguma
reflexão sobre a Constituição brasileira de 1988 que a tome como um documento em
processo de construção aberto a todos os possíveis interessados.
6 – REFERÊNCIAS
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