Império da Constituição e atividade judicial: ecos do Caso Lüth

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Império da Constituição e atividade judicial: ecos do Caso Lüth
BOLETIM CEDES – OUTUBRO/DEZEMBRO 2011 – ISSN 1982-1522
Império da Constituição e atividade judicial:
ecos do Caso Lüth sobre o novo constitucionalismo brasileiro
Joana de Souza Machado
1 – Introdução
Este artigo propõe uma reflexão sobre as conexões que podem ser estabelecidas
entre o (Neo) Constitucionalismo brasileiro, latente ao tempo em que se totalizam duas
décadas de experiência da Constituição brasileira de 1988; e o Caso Lüth,
paradigmático episódio da jurisprudência constitucional alemã, cujos parâmetros foram
fixados há mais de meio século atrás (1950-1958). O artigo trabalha com a hipótese de
que há uma influência tardia e pouco deliberada desses parâmetros sobre o Direito
Constitucional brasileiro contemporâneo, na maneira de compreender a atividade
judicial face à supremacia da Constituição.
Para tanto, foram analisados elementos do discurso judicial desenvolvido na
ocasião do Caso Lüth, sintetizados no item 2; e elementos do discurso
neoconstitucionalista, que tem se difundido no pensamento constitucional brasileiro,
sintetizados no item 3. No quarto e último item desse artigo, são expostas as conclusões
obtidas em torno da hipótese formulada.
2 – Há mais de 50 anos, o caso Lüth
No
dia
15
de
janeiro
de
1958,
a
Corte
Constitucional
alemã,
Bundesverfassungsgericht, proferiu uma decisão acerca de um caso que se tornaria
mundialmente conhecido como o “Caso Lüth” (SCHWAB, 2006: 381-395)1. Tratava-se
de atribuir solução jurídica definitiva a uma longa disputa na Alemanha entre dois
atores privados: (1) Erich Lüth, Diretor do Clube de Imprensa de Hamburgo; e (2) Veit
Harlan, famoso cineasta alemão.

Professora Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre e
Doutoranda em Direito pela PUC-Rio.
1
Na obra referida, encontra-se o inteiro teor da decisão, em português.
1
A disputa teve início em 1950, quando Erich Lüth, na condição de crítico de
cinema e diretor do Clube de Imprensa na cidade de Hamburgo, resolveu fazer
manifestações públicas incentivando a realização de um boicote ao filme “Unsterbliche
Geliebte” (A Amante Imortal), dirigido naquele ano por Veit Harlan. Em verdade, as
manifestações não atacavam propriamente o filme, um romance inofensivo; mas, sim, o
histórico do cineasta, intimamente ligado ao movimento nazista.
Veit Harlan havia produzido, durante o 3º Reich, o filme “Jud Süβ” (1941), que
ficou conhecido como aquele que mais teria contribuído, na Alemanha, para a difusão
do ideal nazista, do ódio ao povo judeu. Em razão desse fato, quando foi sinalizado o
retorno de Harlan às telas do cinema alemão, por meio do já referido romance, houve
reação enfurecida de algumas personalidades da imprensa, as quais passaram, então, a
articular, em fóruns públicos, a necessidade de se promover um boicote a esse filme, ou,
mais exatamente, à tentativa de retorno do cineasta. O movimento encontrou liderança
em Erich Lüth que, na Semana do Filme Alemão, na condição de presidente do Clube
de Imprensa de Hamburgo, disparou duras críticas ao cineasta, especialmente em carta
aberta entregue à imprensa no dia 27 de outubro de 1950.
[...] com efeito, a volta de Harlan irá abrir feridas que ainda não puderam
sequer cicatrizar e provocar de novo uma terrível desconfiança de que se
reverterá em prejuízo da reconstrução da Alemanha. Por causa de todos esses
motivos, não corresponde somente ao direito do alemão honesto, mas até
mesmo à sua obrigação, na luta contra este representante indigno do filme
alemão, além do protesto, mostrar-se disposto também ao debate (SCHWAB,
2006: 384).
Em seguida a esse episódio, produtores e distribuidores do filme “Unsterbliche
Geliebte” (A Amante Imortal), com base em dispositivo do Código Civil alemão, § 826,
BGB2, acionaram o Tribunal Estadual de Hamburgo, por meio de uma ação cautelar,
com pedido de liminar, a fim de que Erich Lüth fosse obrigado a se abster
imediatamente de conclamar o boicote ao filme.
Ao longo da batalha judicial travada, as razões invocadas pelos autores,
inspiradas no Código Civil, tiveram acolhida em todas as instâncias3, com exceção
apenas do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht),
acionado pela via de uma reclamação constitucional impetrada por Erick Lüth. O
2
§ 826 BGB – “Quem, de forma atentatória aos bons costumes, infligir dano a outrem, está obrigado a
reparar os danos causados” (SCHWAB, 2006: 385).
3
O tribunal Estadual de Hamburgo deferiu o pedido dos autores da ação, avalizado depois pelo Superior
Tribunal Estadual de Hamburgo, tanto em sede cautelar quanto na ação principal.
2
reclamante argüiu que a decisão favorável a Harlan violava seu direito fundamental à
livre expressão do pensamento, previsto na Constituição alemã (art. 5 I 1 GG), e alegou
que “os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos com dignidade
constitucional, seriam para o direito civil ‘causas [normativas] superiores de
justificação’” (SCHWAB, 2006: 386).
O que até o momento não passava de uma disputa entre atores privados, a ser ou
não encaixada em tipo previsto na legislação civil alemã, transformou-se, com a
compreensão que lhe conferiu o Tribunal Constitucional Federal, no paradigmático
“Caso Lüth”, no qual, como sugerido pelo apelido, foram acolhidas as alegações de
Erich Lüth de ofensa a seu direito fundamental.
A importância do caso, porém, não se deve às partes envolvidas; mas à linha de
argumentação desenvolvida pela Corte Constitucional alemã para atribuir razão a Erich
Lüth. De acordo com a Corte, para se afirmar que uma decisão judicial ofende um
direito sediado na Constituição, é necessário antes afirmar a existência de um dever de
observância desse direito quando da formação da convicção judicial. Como, no caso, a
decisão judicial amparou-se em norma do direito civil, seria necessário, ainda,
considerar que a norma de direito fundamental em alguma medida determinasse uma
compreensão diferente do dispositivo do Código Civil alemão, de tal forma que este não
mais servisse de justificativa para a decisão judicial questionada.
Contra essa lógica, há o entendimento comum, fundado na construção histórica
dos direitos fundamentais, de que os direitos previstos em uma Constituição constituem
instrumentos de resistência do cidadão contra o Estado, a serem, portanto, invocados
exclusivamente na hipótese de um conflito envolvendo o poder público. Nesta esteira,
lembrou a Corte, a própria Reclamação Constitucional foi moldada pela legislação
alemã como um remédio jurídico de proteção dos direitos fundamentais tão somente
contra atos do poder público.
No Caso Lüth, entretanto, a Corte Constitucional alemã, sem propriamente
afastar essa concepção tradicional dos direitos fundamentais, construiu outra dimensão
para esses direitos, fundada, sobretudo, na ideia de que a Constituição alemã, não tendo
a pretensão de se fazer neutra, “estabeleceu também, em seu capítulo dos direitos
fundamentais, um ordenamento axiológico objetivo” (SCHWAB, 2006: 387).
Em outras palavras, ao lado da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, a
qual tradicionalmente ilumina a posição jurídica do titular do direito frente ao poder
público; a Corte Constitucional alemã situou uma nova perspectiva, uma dimensão
3
objetiva, que, por sua vez, transparece a carga axiológica do direito, o sistema de
valores que influencia na formação de todo o sistema jurídico e que, portanto, constitui
parâmetro para todos os ramos do Direito, entre os quais se inclui o Direito Civil.
Segundo a argumentação do Tribunal Constitucional alemão, a irradiação dessa
carga axiológica dos direitos fundamentais para o direito privado é tanto mais visível na
presença de normas de linguagem mais aberta no Direito Civil, ou “cláusulas gerais”,
espécies de “porta de entrada” desses valores para o direito privado, as quais “remetem
para o julgamento do comportamento humano a critérios extra-cíveis ou até critérios
extrajurídicos, como os ‘bons costumes’” (SCHWAB, 2006: 388).
Nessas hipóteses, para que o aplicador da norma identifique o que é exigível, a
partir das cláusulas gerais, em um caso concreto, faz-se necessário que tome por
parâmetro o “conjunto de concepções axiológicas, as quais um povo alcançou numa
certa época de seu desenvolvimento cultural e que foram fixadas em sua Constituição”
(SCHWAB, 2006: 388).
No Caso Lüth, portanto, consagrou-se o entendimento de que se um juiz, em sua
decisão, deixa de observar a influência da Constituição sobre as normas de direito
privado, ofende, a um só tempo, a dimensão objetiva do direito fundamental e,
porquanto manifestação do poder público, a dimensão subjetiva do direito. A dimensão
objetiva não substitui, mas, sim, reforça a dimensão subjetiva, contribuindo para um
verdadeiro império da Constituição sobre as relações jurídicas.
Por conseguinte, fixou-se a ideia de que compete a uma Corte Constitucional
avaliar se o “conteúdo axiológico” das prescrições constitucionais é observado nos mais
diversos ramos jurídicos; de que uma Reclamação Constitucional pode levar à discussão
de um Tribunal Constitucional uma decisão que não tenha, no caso concreto, ponderado
corretamente o significado de um direito fundamental em face do valor do bem jurídico
protegido pela lei geral aplicada.
Aplicando essas premissas ao próprio caso em que foram elaboradas, o Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha entendeu que a decisão da instância ordinária, que
enquadrou as manifestações de Lüth como ofensivas aos bons costumes, desconheceu o
especial significado do direito fundamental à livre expressão do pensamento, também
aplicável na situação em que entra em conflito com interesse privado, posicionando-se,
derradeiramente, pela procedência da Reclamação impetrada por Erich Lüth.
Os principais parâmetros fixados, há mais de cinqüenta anos, na oportunidade do
Caso Lüth, podem ser, portanto, sintetizados da seguinte maneira: (1) é necessário
4
conceber a Constituição como uma ordem objetiva de valores; (2) dessa concepção,
decorre a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, por meio da qual se pode chegar
a uma eficácia desses direitos nas relações privadas; (3) novos métodos de interpretação
constitucional se fazem necessários, como o da ponderação de direitos, tomados em seu
aspecto axiológico ou como princípios, na hipótese de colisão.
Com essa linha de raciocínio, o Caso Lüth se insurge como importante
afirmação da influência da principiologia constitucional sobre as variadas esferas
jurídicas, mediada por uma atividade judicial que tende, então, a necessário alargamento
e centralidade (GRIMM, 2004: 21-23).
3 – Neoconstitucionalismo brasileiro e o caso Lüth
Nesta terceira parte, como já anunciado, busca-se compreender a proposta de um
novo constitucionalismo, seus principais elementos discursivos, a fim de se apurar a
hipótese de que essa tendência, intensificada ao término da segunda década da
Constituição brasileira de 1988, mantém conexões estreitas com os parâmetros fixados
pelo Caso Lüth.
O constitucionalismo, sem o prefixo “neo”, é comumente associado à noção de
liberalismo moderno, de uma teoria que se coloca na trilha da limitação do poder do
Estado. Essa perspectiva funda-se na suposição da capacidade de autopromoção da
sociedade, em decorrência da qual reservam-se ao Estado tão-somente as tarefas que a
sociedade não seja capaz de realizar por si só, isto é, a segurança externa e interna,
como forma de garantir a liberdade individual.
A liberdade, dentro desse modelo, adquire uma perspectiva negativa, que
compreende a ausência de interferência na esfera de decisão do indivíduo (PETIT,
1999: 40). Dentro dessa lógica, preservada a autonomia individual, as eventuais
desigualdades sociais que surjam serão frutos do exclusivo fracasso individual, e, assim,
não poderão ser qualificadas como injustas. A função estatal restrita a atividades de
defesa frente às ameaças à liberdade individual forja a separação entre Estado e
sociedade.
A Constituição assume especial significado neste modelo, pois cabe-lhe
exatamente a tarefa de delimitar o âmbito dentro do qual a sociedade desfruta de sua
autonomia, por meio da fixação de direitos fundamentais como elementos limitadores
da atuação estatal (GRIMM, 2006: 183).
5
Em relação a esse sentido moderno de constitucionalismo, qual seria a
particularidade do pensamento constitucional contemporâneo que avoca para si o rótulo
de “neoconstitucionalismo”? Os estudos que procuram sistematizar esse discurso
reconhecem que ainda se trata de um rótulo impreciso, eclético, ou em fase de
construção (CARBONELL, 2007: 258).
Começam a convergir, contudo, para a compreensão de que a novidade sugerida
pelo título e a própria unidade do movimento está na adoção conjunta de pelo menos
três fatores: (1) objeto de estudo diferenciado  Constituições contemporâneas,
marcadas por uma grande e detalhada pauta material, como a brasileira de 1988; (2)
pressuposição da necessidade de uma decorrente prática jurisprudencial diferenciada 
fundada em parâmetros interpretativos de ordens distintas, como os valores ou
princípios, e em novos métodos de interpretação, como a ponderação, a
proporcionalidade, a máxima efetividade, a Constitucionalização do Direito, a eficácia
dos direitos fundamentais em relações privadas; (3) defesa de uma postura científica
menos contemplativa e mais engajada (BARROSO, 2006:45; CARBONELL, 2007:
258; FERRAJOLI, 2006:33).
De acordo com Carbonell (2007:11), as propostas de Dworkin, Alexy, Nino,
Ferrajoli, Sanchís e Zagrebelsky têm cumprido esta missão epistemológica do
neoconstitucionalismo, não se limitando à mera contemplação das novas Constituições
ou práticas constitucionais, mas verdadeiramente instigando a própria existência dessa
prática diferenciada.
Como visto, os próprios neoconstitucionalistas explicam que para a invocação
do rótulo que vestem não basta tomar os textos constitucionais mais recentes como
objeto de estudo, em valorização do seu conteúdo. De outro lado, o desenvolvimento
teórico menos contemplativo está presente em diversas áreas de produção do saber, não
sendo nem de longe característica exclusiva do movimento em estudo.
Entre
os
três
fatores
apontados
como
componentes
do
discurso
neoconstitucionalista, parece mais determinante para a sua identificação a ideia de que,
em face dos textos constitucionais contemporâneos, como a Constituição brasileira de
1988, seja necessária uma prática jurisprudencial diferenciada, fundada em parâmetros
interpretativos de ordens distintas, orientada por valores extraídos a partir dos textos
constitucionais, a serem ponderados em casos concretos.
Nesse
exato
fator,
determinante
para
a
identificação
do
discurso
neoconstitucionalista, reside a notória zona de contato com os argumentos fixados há
6
mais de cinquenta anos pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, no já
analisado Caso Lüth.
O Neoconstitucionalismo propõe que a Constituição seja concebida como fonte
de parâmetros interpretativos de ordens distintas, a exemplo dos valores e dos
princípios, tal como proposto no Caso Lüth (CRUZ, 2005: 09). Para lidar com esses
novos parâmetros, o Neoconstitucionalismo propõe algumas técnicas mais sofisticadas
de aplicação do Direito, entre elas, a ponderação, a incidência de direitos fundamentais
em relações privadas, interpretação das leis conforme a Constituição – todas utilizadas
na decisão do Caso Lüth, em 1958.
O discurso neoconstitucionalista, cujas linhas principais já foram explicadas
nesse trabalho, recebeu uma versão brasileira, que vem se difundindo a passos largos,
com o trabalho de divulgação de seus adeptos. Nesse ponto, merece destaque o estudo
de Barroso, “Neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito” (2006), pela
ampla divulgação editorial que teve, determinante para a difusão do discurso
neoconstitucionalista no Brasil4.
Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção
aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas
no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser
assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional
de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século
XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos
direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como
marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da
Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de
uma nova dogmática da interpretação constitucional (BARROSO, 2006:57).
A Constituição brasileira de 1988 é adotada como marco histórico do
Neoconstitucionalismo no Brasil, justamente por corresponder a esse objeto de estudo
diferenciado, com pauta material dilatada, tal como postulado pelo movimento, como
visto no item anterior. A partir desse texto constitucional é que o sistema jurídico
brasileiro teria se curvado a uma espécie de império da Constituição (BARROSO,
2006:47).
No que se refere ao “marco filosófico”, o neoconstitucionalismo brasileiro situase como “pós-positivista”, no sentido de procurar uma síntese entre o que chama de
pensamento positivista e o jusnaturalismo, nos seguintes termos: “busca ir além da
4
O texto foi reproduzido em sete revistas brasileiras entre 2005 e 2007, além de sua publicação em dois
volumes coletivos e em vários sites da internet. Conferir, a título de exemplo:
<http://biblioteca.senado.gov.br:8991/F/LI3XJGU261X1QHJ6PCL7X1RKNL6GPFYHBQRHKX1AN9
RXPI7Y74-01194?func=full-setset&set_number=015629&set_entry=000030&format=999>.
7
legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura
moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas” (BARROSO, 2006:47)5.
Por fim, quanto ao “marco teórico”, são apontados três grandes diferenciais do
Neoconstitucionalismo brasileiro: (1) consolidação da ideia de força normativa da
Constituição; (2) superação da supremacia do Poder Legislativo em prol de uma
supremacia
da Constituição,
via
proteção da jurisdição
constitucional; (3)
reconhecimento da necessidade de uma nova interpretação constitucional (BARROSO,
2006: 50-52).
Essa leitura encontra adesão na obra de outros autores e vai se colocando como
uma espécie de voz uníssona no pensamento constitucional brasileiro6. A circunstância
se deve principalmente à inexistência de um contra-discurso sistematizado na doutrina
brasileira.
Os
autores
que
por
ventura
se
oponham
às
premissas
do
Neoconstitucionalismo ou estão silentes ou se manifestam de modo tão disperso que a
aparente homogeneidade do discurso neoconstitucionalista não chega a se abalar 7.
4 – Conclusão
O discurso neoconstitucionalista, na concepção que tem recebido no Brasil,
pretende se individualizar, como já abordado, a partir do seu objeto de estudo, ou
“marco histórico” (as constituições oriundas do segundo pós-guerra); do seu “marco
filosófico” (póspositivismo); e de suas propostas teóricas (valorização da Constituição
enquanto norma, nova interpretação constitucional e papel alargado da jurisdição
constitucional).
No que tange ao objeto de estudo, já foi reconhecido, até mesmo por alguns
neoconstitucionalistas, que a adoção das Constituições oriundas do segundo pós-guerra
como objeto de estudo não é característica exclusiva dos autores que invocam para si o
rótulo de neoconstitucionalistas (CARBONELL, 2007:11).
Quanto ao “marco filosófico” do Neoconstitucionalismo, o caminho seguido por
Barroso (2006:47) para explicar a ideia de pós-positivismo mostra-se, por vezes,
5
Barroso insere, assim, como característica do Neoconstitucionalismo, uma postura teórica que supera a
positivista; mas há neoconstitucionalistas, como Carbonell, Ariza e Comanducci que se opõem apenas à
postura positivista epistemológica. Essa observação se faz importante para comentários que virão após a
exposição do estudo de Barroso.
6
A título indicativo: MOREIRA (2008); BARCELLOS (2007).
7
Conferir as críticas elaboradas à nova interpretação constitucional por Silva (2005: 116) e uma possível
resposta de Barroso (2006: 53).
8
delicado. O autor não retrata a distinção importante que positivistas, como Kelsen
(2003:89), realizam entre Direito e Ciência do Direito. Assim, ao articular frases como
“em busca da objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o
da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça [...]” (BARROSO, 2006:47), dá
ensejo a leituras caricatas do pensamento que pretende superar.
O Neoconstitucionalismo de Carbonell (2007), por exemplo, afasta-se de uma
rejeição mais rápida ao deixar claro que a postura positivista que pretende superar é a
metodológica, pretensamente neutra, contemplativa; e não a teórica, tendo em vista que
os positivistas incorporam uma noção bem alargada de criação do Direito, da conexão
entre Direito, Moral e Política.
A despeito dos reparos acima efetuados, a preocupação que esse trabalho
pretende compartilhar sobre a rápida e recente difusão do Neoconstitucionalismo no
Brasil não é propriamente relativa ao possível exagero em torno da construção do
prefixo “neo”.
Na linha que tem sido difundido no Brasil, o discurso neoconstitucionalista
propugna pela presença de uma nova “onda constitucional”, que, além de novas
Constituições, trouxe um novo modelo, centrado na supremacia da Constituição, cuja
proteção se atribui ao Judiciário. O adjetivo “novo” sugere contraposição a um modelo
antigo, que, segundo Barroso (2006:50), corresponde ao modelo de supremacia do
Poder Legislativo (TAVARES, 2008).
O antagonismo articulado entre <<supremacia do Poder Legislativo>> e
<<supremacia da Constituição>>, aliado ao estabelecimento de uma conexão íntima
entre <<supremacia da Constituição>> e Poder Judiciário revela algumas premissas que
precisam ser problematizadas.
Inicialmente, deve-se destacar das relações acima uma visão depreciativa do
Poder Legislativo, cuja supremacia é tida como antagônica à supremacia Constitucional.
Por que atribuir a última palavra a uma Corte Constitucional é fazer imperar a
supremacia constitucional e não a supremacia judicial?
Há, subjacente a essa conexão, a ideia de que o Poder Legislativo está mais
sujeito, em suas deliberações, a comprometer a Constituição do que o Poder Judiciário,
como alerta Waldron (2003:05).
O Brasil está importando de modo acrítico, justamente sob o marco histórico de
sua Constituição Cidadã, um discurso que inspira e naturaliza uma vivência
constitucional deferente à leitura realizada pelo órgão de cúpula do poder Judiciário.
9
Até mesmo no contexto originário desse discurso, o Tribunal Constitucional
Federal da Alemanha, já não se verifica, há longa data, adesão incondicionada ao
arranjo de que a Corte Constitucional deva proceder como principal guardiã de uma
ordem objetiva de valores.
Em 1975, por exemplo, antes da Constituição brasileira de 1988 sequer ser
projetada, o Tribunal que fixou os parâmetros do discurso neconstitucionalista já
questionava a lógica que viria a ser incorporada tão mais tarde no Brasil (CRUZ, 2005:
45).
Não se trata de negar a importância da Jurisdição Constitucional, nem de negarlhe a possibilidade de realizar uma leitura valorativa da Constituição. Afinal de contas,
no caso brasileiro, a própria Constituição, com a sua larga pauta material, abre espaço
para uma atuação mais ampla da Jurisdição Constitucional. O propósito é apenas
sinalizar
que
essa
ordem de
circunstâncias
não
requer,
como
sugere
o
neconstitucionalismo, nem autoriza, a colonização da Constituição pelo código
sofisticado de uma Jurisdição Constitucional.
No Brasil, mesmo fora do contexto das súmulas vinculantes, inaugurado com a
EC 45 de 2004, assiste-se a uma ampla subordinação da comunidade jurídica ao
Supremo Tribunal Federal, por vezes, estimulada pela própria Corte, como na relatoria
do Recurso Extraordinário 203498 – AgR/DF, na qual se afirmou que o monopólio da
última palavra sobre o texto constitucional ao STF garante a supremacia constitucional,
raciocínio também presente na relatoria da Reclamação 2986 MC/SE (BRASIL, STF,
2005).
Sobretudo, constrói-se um ambiente teórico que naturaliza as investidas do STF
em direção a uma espécie de exclusivismo moral, supostamente necessário ao modelo
de supremacia ou mesmo império da Constituição, em detrimento de um malfadado
modelo de supremacia do Poder Legislativo.
Se a linguagem aberta ou substantiva da Constituição permite que um Tribunal
realize uma leitura valorativa desse texto, como sugerido há mais de cinquenta anos no
Caso Lüth, e, agora, pelo Neoconstitucionalismo fortemente presente no Brasil, talvez
fosse o caso de se estender essa leitura a todos os atores políticos de uma sociedade e
não de torná-la monopólio da Jurisdição Constitucional.
10
Referências bibliográficas
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das políticas públicas. In: Revista Diálogo Jurídico, nº 15, 2007. Disponível em:
<<http://www.direitopublico.com.br/form_revista.asp?busca=ana%20paula%20de%20b
arcellos>>.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o
triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, nº33, 2006.
CARBONELL, Miguel, El neoconstitucionalismo en su laberinto.In: Teoría del
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11
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TAVARES, André Ramos. Prefácio. In.: MOREIRA, Eduardo
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WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Trad.: Luís Carlos Borges. São Paulo:
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