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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Outubro de 2006
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Outubro de 2006
Editorial
Combatendo as Causas dessa Inaceitável
Infelicidade
Das Razões de Ser da Revista GIS
Roberto Bartholo
Apresentar uma revista é explicitar seu compromisso, seu pacto fundamental. E fazemos isso mediante
a referência a um "velho" testemunho de D. Helder Câmara (1987:128-129):
".... Lembro-me de certa vez que me convidaram para a inauguração de uma grande empresa. Era um dia de
intenso calor, mas os escritórios dos diretores tinham o conforto dos aparelhos de ar condicionado. Os garçons
passavam travessas e mais travessas com garrafas de uísque. Uma, duas, muitas vezes. Eu tomava apenas refrigerantes
- não por virtude excessiva, pois até gosto de um pouco de vinho, o que não me causa nenhum problema de ordem
moral - e sim porque o álcool parece não gostar de mim... Em dado momento um dos convidados se aproxima e,
grosseiramente, me diz: ´ora, ora Dom Hélder! Como é que vai sua demagogia? O senhor ainda tem coragem de
dizer que vivemos cercados de fome e miséria aqui em Recife?´ Outras pessoas juntaram-se a nós encorajadas por
aquela provocação e querendo prossegui-la. Eu respondi a todos em alto e bom som: ´vejam só! Eu estava tranqüilo
no meu canto, mas vocês preferiram provocar-me... Pois eu lhes garanto que se sairmos todos nos belos carros que
vocês têm, em poucos minutos eu os mergulharei num ambiente da mais terrível fome e miséria...
Para surpresa minha aceitaram o desafio. Em não mais que dez minutos chegamos a uma sapucaia, um desses
lugares onde os serviços públicos despejam e depois incineram, o lixo da cidade. Eu conhecia bem o local... Chamei
um conhecido, que é funcionário da prefeitura e por ali trabalha. Ele tem, a propósito o apelido de Doutor Lixeira...
Longa experiência lhe ensinou a ver, no meio daquele lixo todo o que ainda pode ser aproveitado como alimento. É
ele quem estabelece a classificação: comida de primeira classe, que funcionários da prefeitura reservam para si
mesmos; comida de segunda classe, boa ainda para as pessoas que nada têm do que viver e se alojam por ali,
disputando o refugo com os urubus que ciscam como galinhas pretas; comida de terceira classe, que se coleta e guarda
para vendê-la depois nas tendinhas de quarta ou quinta classe, onde qualquer coisa serve para encher a barriga dos
que vivem encharcados de álcool...
O Doutor Lixeira explicou tudo isso muito direitinho às dezenas de chefes de empresa que me haviam acompanhado
até ali. Tive a impressão de que marcara profundamente o meu ponto, ensinando-lhes uma dura lição... Mas qual!
No dia seguinte, um deles me chama ao telefone, e diz: ´Dom Hélder, que sujeito formidável aquele Doutor
Lixeira! Ele tem muita iniciativa! Bem que poderíamos empregá-lo...´
Nosso compromisso com a atualidade do testemunho de Dom Hélder pode encontrar abrigo na
afirmativa de um dos mais importantes economistas contemporâneos, A. O. Hirschman (1996: 257):
"... o progresso político e o econômico não estão ligados entre si de modo fácil, direto, funcional".
Essas conexões são construídas situacionalmente. E nesse sentido os estudos de Amartya Sen (2000,
2001) são exemplares para apontar como a igualdade formal de oportunidades deve necessariamente
ser referida a um contexto situacional concreto.
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A proposição fundamental da antropologia filosófica de Martin Buber (Bartholo, 2001) pode vir a
nosso auxílio ao confrontarmos essa questão. Ela nos afirma que antes de ser um ente político ou
econômico o ser humano é um ser relacional. As formas políticas e econômicas correspondem a
padrões historicamente construídos de institucionalização. Percebida desde essa perspectiva, como
bem aponta Hassan Zaoual (2003): "... a pobreza é irredutível a uma simples insuficiência de renda.
Todo o contexto da pessoa deve ser tomado em consideração, em particular sua capacidade de ser
livre de mudar, de agir sobre a situação, de participar da vida social etc. Os espaços da desigualdade
são, então, múltiplos e interativos; utilidades, bens de primeira necessidade, renda, liberdade, entre
outros. Todos esses espaços nem sempre estão adequadamente relacionados uns com os outros. Ao se
dar privilégio a um deles, pode-se produzir efeitos contrários sobre os outros".
Nos contextos situacionais concretos somos chamados a responder a apelos diversos. E a dimensão
ética da resposta é a responsabilidade. Responsabilidade situada, isto é, concreta, pessoal e rigorosamente
intransferível. Não apenas a retórica de uma responsabilização formal. E nesse ponto podemos retomar
o compromisso de Dom Hélder (Câmara, 1987: 129): "... lutar por meios pacíficos, mas corajosos,
contra as estruturas impiedosas que esmagam e fazem sofrer a humanidade. Pois não basta socorrer as
vítimas. É necessário atacar vigorosamente, antes de mais nada, as causas dessa inaceitável infelicidade".
Para a Revista GIS, falar de iniciativas de interesse social é afirmar esse empenho e compromisso.
Referências bibliográficas
Bartholo Jr., Roberto S. (2001) Você e eu: Martin Buber, Presença, Palavra. Rio de Janeiro, Garamond.
Câmara, Hélder (1987). O Evangelho com Dom Hélder. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
Hirschman, Albert O. (1996). Autosubversão. São Paulo, Companhia das Letras.
Sen, Amartya (2000). Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras.
Sen, Amartya (2001). Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro, Record.
Zaoual, Hassan (2003). Globalização e Diversidade Cultural. São Paulo, Cortez.
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Expediente
Informações básicas
A Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais é uma publicação científica gratuita, de periodicidade
quadrimestral, do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (Programa de Engenharia de
Produção da COPPE/UFRJ).
Dedica-se a divulgar trabalhos voltados para a apresentação e análise de propostas e experiências
ligadas à gestão social. Pretende manter uma atitude prospectiva, apontando possíveis tendências nesse
campo.
Como seções fixas, reúne artigos, reportagens, entrevistas, apresentação de casos e resenhas críticas.
Procura utilizar ao máximo os recursos oferecidos pelo formato de periódico on-line, explorando as
possibilidades do meio eletrônico para oferecer e trocar informações, em particular o recurso do
hipertexto e oferecendo sempre que possível indicação de fontes de informação complementar
disponíveis na web.
O título abreviado da revista é Revista Virtual GIS, forma a ser utilizada em bibliografias, notas e
referências.
Copyright
Os conceitos emitidos em artigos são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não refletindo,
necessariamente, a opinião da redação.
Permite-se a reprodução total ou parcial dos trabalhos, desde que seja indicada explicitamente a sua
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Financiador
A Revista recebe apoio do SESI.
CORPO EDITORIAL
Editor responsável
Roberto dos Santos Bartholo Jr. - Professor do Programa Engenharia de Produção - COPPE/UFRJ
e Coordenador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social
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Comitê editorial
Carlos Renato Mota - professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Laboratório de
Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ
Arminda Eugenia Marques Campos - pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento
Social da COPPE/UFRJ
Conselho Editorial
Geraldo de Souza Ferreira - DEGEO/UFOP, Ouro Preto, MG
Marcel Bursztyn - CDS/UnB, Brasília, DF
Maurício Cesar Delamaro - FEG/UNESP, Guaratinguetá, SP
Michel Thiollent - COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ
Paulo Márcio Melo - UERJ, Rio de Janeiro, RJ
Susana Finquelievich - Fac. Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires, Argentina
Equipe de redação
Andreia Ribeiro Ayres
Secretaria
Maria Joselina de Barros
Revisão
Arminda Eugenia Marques Campos
Concepção do projeto gráfico
Ivan Bursztyn
Webdesign
Marcos Lins Langenbach
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Apresentação
O presente número da Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais tem como tema o
desenvolvimento local.
Uma série de metodologias e programas de apoio recentes visam promover o desenvolvimento no
âmbito local, com diferentes abordagens e ênfases. Procuramos trazer para este debate a
perspectiva proposta pelo professor marroquino Hassan Zauoal, que trabalha com a teoria dos
sítios. A resenha deste número trata de um livro recém lançado que reúne a tradução de alguns
dos trabalhos desse pensador. Além disso, pudemos contar com alguns artigos que narram
experiências recentes.
Enviem seus comentários a respeito da Revista como um todo e sobre os temas escolhidos.
Procuramos considerar as observações de nossos leitores para melhorar aspectos técnicos ou de
conteúdo desta publicação.
Enviem suas contribuições - artigos, resenhas ou estudos de caso - para o próximo número, para
serem analisados por nosso Comitê Editorial. Procurem na seção “Instruções aos autores” as
informações necessárias para preparar os textos que deseja apresentar.
Boa leitura!
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Sumário
Resenha Crítica
Nova economia das iniciativas locais - Uma introdução ao pensamento pós-global,
ZAOUAL, Hassan. - Por Marcos Lins Langenbach e Sérgio Sergio Saltoun ....................................................08
Artigos
Valorização dos produtos do setor sucroalcooleiro artesanal no contexto de um processo de
desenvolvimento local: o caso do brejo paraibano
Leiliam Cruz Dantas.............................................................................................................................11
A importância dos métodos participativos para a promoção da cidadania: Desenvolvimento Local e
Pesquisa-Ação
Felipe Addor.......................................................................................................................................18
A Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé: O envolvimento dos atores para a
construção de um projeto de desenvolvimento local
Sidney Lianza, Felipe Addor, Vera de Fátima Maciel e Vicente Nepomuceno de Oliveira.............................25
Catadores de papel: trabalho, significado e gestão de négocios - Uma experiência com os catadores de papel
e resíduos sólidos da APARES – Juiz de fora/MG
Sônia Regina C. Lages, Esther Lopes Karlburger e Renata Delgado..........................................................32
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Resenha Crítica
Anti-racismo e seus paradoxos reflexões sobre cota racial,
raça e racismo
AZEVEDO, Célia M.M. de
São Paulo: Annablume, 2004.
José Henrique de Oliveira Santos*
Os Hassan Zaoual, marroquino,
residente na França, professor de
economia e diretor do Groupe de
Recherche sur lês Économies Locales
(GREL), na Univesité du Littoral
(França), tem em seu original
Nouvelle économie des initiatives locales,
traduzido por Michel Thiollent,
uma
discussão
sobre
desenvolvimento local que propõe
que a centralidade da reflexão
econômica seja apoiada no
Homem, em sua universalidade e
sua diversidade.
Nova economia das iniciativas locais:uma introdução
ao pensamento pós-global é uma coletânea de nove
ensaios, apresentados como capítulos, que aborda
de modo crítico o modelo neoliberal,
questionando os rígidos pressupostos da ciência
econômica e o mimetismo cultural e aponta para
necessidade de se construir um novo paradigma
de desenvolvimento capaz de responder à
diversidade e a singularidade de cada contexto
local.
Não há dúvida de que o processo de globalização,
pautado pelo ideário neoliberal da eficiência do
mercado, considerado um fenômeno universal,
hegemônico e inclusivo, capaz de corrigir
desigualdades entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento, assim como resolver, por meio
das forças ativas do mercado, os problemas de
desemprego, subemprego, exclusão e
desigualdade social, fracassou.
É neste contexto de fracasso da mão
invisível do mercado e de pósdesilusão global que vemos emergir
novas formas de economia, tanto no
Norte como no Sul, que não cabem
na racionalidade hegemônica do
paradigma economicista, e que estão
muito mais vinculadas às
especificidades locais, aos sítios, em
suas várias dimensões (crenças
comuns, religiões, identidades, redes,
solidariedade, reciprocidade, pertencimento,
convenções, normas).
Zaoual aborda, com especial atenção, nos
diversos ensaios do seu livro, a teoria dos sítios,
que deve ser pensada a partir da falência de um
pretensioso modelo único de modernidade e de
desenvolvimento e do questionamento sobre a
prevalência do reducionismo econômico. Sua tese
fundamental se constrói sob a afirmação de que
é impossível transpor modelos de economia e
administração de um contexto para outro, de cima
para baixo, sem que seja pensada uma forma que
respeite as especificidades do sítio onde será
Marcos Lins Langenbach é Bacharel em Desenho Industrial pela PUC-Rio e
mestrando em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ; Sergio Saltoun é
Bacharel em Economia pela UERJ e mestrando em Engenharia de Produção pela
COPPE/UFRJ.
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estruturado o projeto, sob pena de configurá-lo
como um projétil.
Zaoual traz à tona a tensão existente entre o
universal e o singular suscitada pela discussão em
torno do desenvolvimento local. Para o autor, o
equilíbrio entre estas duas dimensões tem sido
sacrificado ao se privilegiar o universal no
transplante de projetos, os quais transferem
conceitos e instituições como uma extensão de
crenças científicas e sociais desenraizadas,
desprezando o saber fazer local. Ou seja,
implantando de cima para baixo modelos que, na
prática, se rebelam por estarem totalmente
separados das crenças e histórias de um
determinado sítio. Desde esta perspectiva, o local
reinterpretaria o global, corroborando para idéia
de que a análise econômica requer uma abertura
fundamentada nas outras ciências para que
possam contemplar “(..)fatos incompatíveis com
a concepção restritiva” (p. 81) da economia pura
e reducionista.
A teoria dos sítios abre a possibilidade de diálogo
com as outras ciências procurando contribuir para
a construção de um novo paradigma plural que
possa responder às singularidades da nova
economia das iniciativas locais. O conceito de
sítio simbólico de pertencimento traz um modo de
decifrar os arranjos locais partindo de baixo; do
imaginário social moldado pela situação, pela
contingência e pela trajetória de vida comum dos
atores. Os sítios seriam dotados de uma lógica
própria e pragmática; mais pragmática que a
lógica do mercado, implicando, para seu trato,
em prudência e tolerância por parte dos técnicos
que pretendem transpor técnicas e tecnologias de
forma acrítica de um contexto para o outro, ou
de pesquisadores que pretendem entender a lógica
do sítio para além da perspectiva reducionista da
ciência econômica.
São os fatos da vida do homem concreto situado
que apontam para necessidade de uma abordagem
trans-disciplinar e intercultural que abarque as
diversas dimensões da vida vivida (ecologia, ética,
espiritualidade, cultura, identidades, aflições,
território, localidades etc.), evitando a abstração
das categorias da teoria econômica hegemônica
e o descolamento da teoria para com as ações
cotidianas.
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A plasticidade requerida do novo paradigma
implica a necessidade de uma racionalidade
situada, expressa na emergência do homo situs,
que engloba e enriquece o tipo-ideal do homo
oeconomicus. A racionalidade situada é moldada
continuamente para se ajustar aos dados do lugar,
à sua dinâmica e situação. Na racionalidade
situada está implícita a necessidade de uma
relação vinculante entre teoria e realidade.
Cabe destacar que, tendo por base a teria dos
sítios, o autor pensa o desenvolvimento não numa
perspectiva meramente econômica, mas sim
como uma possibilidade de melhora na qualidade
de vida, considerada as condições ambientais, a
comunidade e o seu caráter simbólico e a
importância do compartilhamento dos saberes e
da criatividade para se escapar da dominação pelo
conceito transplantado, isto é, o direito de se
definir e de definir o entorno, de saber se situar.
Até por que, segundo o próprio, “um saber
voltado para o ter não garante o saber ser”(p. 97).
A Nova economia das iniciativas locais:uma introdução
ao pensamento pós-global, é, às vezes, cansativo em
função da linguagem mais próxima dos
economistas e, talvez por ser uma coletânea de
ensaios, torne-se repetitivo. Entretanto, apresenta
elementos interessantes, normalmente ignorados
pela concepção abstrata e reducionista da ciência
econômica, para se pensar em um novo paradigma
que dê conta das singularidades das economias
dissidentes ou a nova economia das iniciativas
locais.
negro pobre, permanecendo no sistema de cotas
a discriminação social. Como ressalta a
historiadora, não podemos esquecer que os baixos
níveis de escolaridade da população brasileira são
altamente críticos: “não seria o caso de concentrar
forças na recuperação das escolas públicas de
ensino fundamental, bem como na sua expansão
para toda a população brasileira?”. E com relação
a isso, imputa responsabilidade para a própria
universidade (na tentativa de sensibilizar tanto o
corpo docente quanto o discente), salientando o
seu compromisso com a sociedade por meio de
atividades de extensão universitária que
pudessem pensar em projetos com o objetivo de
recuperar a credibilidade da escola pública e
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permitir que num futuro não muito distante o
aluno oriundo do ensino público pudesse ter uma
formação equivalente ao que cursou uma escola
de ensino privado.
Outra questão apontada por Azevedo é o
embate travado pelas duas correntes de atuação
nas políticas anti-racistas – uma possui um
“paradigma” universalista centrado no conceito
de “humanidade” e a outra caracterizada por uma
postura diferencialista em que privilegia o
conceito de “identidade”, seja ela racial, étnica
ou de gênero. E sua proposta aqui é a busca de
uma integração dos pontos positivos de cada uma
das duas vertentes a fim de contribuir para uma
política anti-racista mais consistente. Em linhas
gerais, o que se pretende com isso é acabar com
a rigidez de ambas as correntes, garantindo aos
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grupos discriminados de uma forma geral (e aqui
também se inclui a população de origem negra)
apossibilidade de acesso às oportunidades de
emprego e educação, “sem, no entanto perder o
sentido universal de humanidade”.
Este texto tem o mérito de tocar em
questões por vezes bastante controversas sem,
contudo se posicionar ao lado de qualquer tipo
de bandeira (mesmo as que costumam empunhar
diversos movimentos negros), fazendo análises
contundentes e sem preocupação com críticas que
em muitos momentos possam vir surgir.
Trabalhos que hoje em dia são cada vez mais
escassos. Sua crítica em relação ao sistema de
cotas não enfraquece seu posicionamento a favor
do anti-racismo, desde que conduzido de forma
a também favorecer políticas de inclusão social
para todas parcelas da população.
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Artigo
Valorização dos produtos do setor sucroalcooleiro
artesanal no contexto de um processo de desenvolvimento
local: o caso do brejo paraibano
Leiliam Cruz Dantas *
Resumo
O objetivo deste artigo é enfatizar estratégias de valorização dos produtos dos engenhos de cana-deaçúcar da microrregião do Brejo Paraibano, baseada no território. Tais estratégias estão inseridas em
um processo de desenvolvimento local integrado e participativo e têm como ponto de partida uma
iniciativa de um órgão governamental, incluindo-se, neste contexto, os atores sociais locais, algumas
instituições públicas e privadas e membros da sociedade civil. Tomou-se como referência o enfoque
teórico-metodológico denominado “sites symboliques d’appartenance” que enfatiza aspectos como
tradição, história, cultura, saber-fazer acumulado, entre outros aspectos imateriais.
Palavras-chave: Desenvolvimento local, Valorização de produtos, Engenhos de cana-de-açúcar.
Abstract
This article’s aim is to highlight product valorization strategies, based in the territory, of sugar cane
mills’ products, produced in the Brejo Paraibano region. Such strategies, inserted in an integrated
and participative local development process, have, as a departure point a government initiative
which includes, in this context, the local social actors, some public and private organizations and
members of civil society. It took as reference the theoretical-methodological approach called “sites
symboliques d’appartenance” that emphasizes aspects such as tradition, history, culture, accumulated
know-how, among other immaterial aspects.
Key words: Local development, Products value recognition, Sugar cane mills.
Introdução
A Os objetivos propostos no presente trabalho
guiam-se no sentido de promover a construção
de estratégias de valorização dos produtos dos
engenhos de cana-de-açúcar da microrregião do
Brejo Paraibano 1 – Nordeste do Brasil, no
contexto de um processo de desenvolvimento
local integrado e participativo. Tais estratégias
enfatizam os aspectos históricos, culturais e
simbólicos do território. O caso aqui examinado
volta-se para a pequena produção artesanal de
*Leiliam Cruz Dantas é Graduada em Ciências Econômicas e Mestre em Economia
Rural pela UFPB-Campus II. Doutora em Engenharia de Produção pela COPPE/
UFRJ. Professora da Unidade Acadêmica de Economia da Universidade Federal
de Campina Grande – PB.
Universidade Federal de Campina Grande
Unidade Acadêmica de Economia
Av. Aprígio Veloso, 882 – Bodocongó – Campina Grande-PB 58.109-970
E-mail: [email protected]
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derivados da cana-de-açúcar – rapadura e
cachaça – e se inserem no contexto da promoção
do desenvolvimento local da referida
microrregião. Tal ramo produtivo apresenta-se
como a maior vocação do território, consolidada
por sua existência há quase dois séculos e meio.
Para subsidiar a tarefa a que se propõe
este trabalho, buscou-se apoio teóricometodológico na abordagem dos sites symboliques
d’appartenance, no âmbito do desenvolvimento
local. Com base neste enfoque, foram
enfatizados os aspectos imateriais relativos aos
engenhos de cachaça e rapadura do Brejo com
vistas à valorização dos seus produtos, dos
próprios engenhos e do território em si. Tal
abordagem mostra-se bastante pertinente em
relação aos projetos de desenvolvimento local,
uma vez que explora aspectos raramente
privilegiados pelas teorias mais ortodoxas do
desenvolvimento sócio-econômico.
2. OS ENGENHOS DE CANA-DEAÇÚCAR NO NORDESTE E NO
BREJO PARAIBANO
Nos antigos engenhos, a cana-de-açúcar
era transformada principalmente em açúcar, mas
também em cachaça e rapadura. Tais unidades
de produção são consideradas as primeiras
“agroindústrias” do Brasil, implantadas no país
devido às inconveniências de transporte da
matéria-prima até a metrópole para seu posterior
processamento (Furtado, 1982).
A civilização dos engenhos do Nordeste
brasileiro deixou raízes profundas. A atividade
sucroalcooleira representou a riqueza da região
nordestina na época da colonização brasileira.
A produção de açúcar na colônia marcou o início
do importante ciclo da cana-de-açúcar, no
começo do século XVI. Consta em Andrade
(1986) que os primeiros registros de envio de
açúcar do Brasil para Portugal datam de 1526.
A partir de então, o número de engenhos cresceu
e concentrou-se, principalmente, no Nordeste
do país.
Resquícios de antigas técnicas produtivas
de açúcar nos engenhos do Brasil Colonial ainda
permanecem até hoje, ressaltando os costumes,
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os hábitos, as práticas, enfim, o saber-fazer
desenvolvido no contexto da fabricação dos seus
produtos. O conjunto desses conhecimentos
representa uma herança cultural que foi
construída ao longo da existência destas unidades
produtivas artesanais. Assim, os aspectos
técnicos, históricos e culturais reafirmam a força
da tradição desta atividade, sobretudo em
territórios nordestinos.
Os engenhos de açúcar do litoral
nordestino iniciaram sua trajetória de decadência
a partir da tentativa de implantação dos
engenhos centrais, na década de 1870 (Gomes,
1994). O declínio absoluto veio com o advento
das usinas, no final do século XIX, que vieram
consolidar a modernização pretendida pelos
engenhos centrais. (Ramos, 1999). Com o
estabelecimento das usinas, os engenhos
entraram em franca decadência. Os antigos
senhores de engenho, antes mergulhados em
abastança, passam a se afogar em dívidas. (Pires,
1994).
A microrregião do Brejo Paraibano
encontra-se inserida na história da civilização do
açúcar no Brasil. Porém, com engenhos de porte
inferior aos do litoral. Desde os primórdios deste
território, no limiar do século XVIII, registra-se
a propensão natural de suas terras para o plantio
da cana. Os engenhos de cachaça e rapadura do
Brejo representam os verdadeiros símbolos deste
passado histórico e culturalmente rico.
Conseqüentemente, seus produtos também
carregam esta característica distintiva.
As usinas que se instalaram no Brejo
foram decisivas para levar boa parte dos
engenhos da região à condição de “fogo morto”,
principalmente a partir da década de 1950. Com
o advento do Programa Nacional do Álcool, em
1975, as usinas locais aumentaram sua
capacidade de produção, exercendo uma forte
pressão sobre as propriedades rurais que
cultivavam cana-de-açúcar, arrendando-as ou,
até mesmo, comprando-as. (Almeida, 1994). No
início da década de 1990, as usinas do Brejo
fecharam, provocando uma nova crise na
economia canavieira da região. Depois disso,
gradativamente, os poucos engenhos que
produziam rapadura e cachaça no Brejo
retomaram suas atividades.
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Desde o início da atividade, chegou-se a
registrar, na referida microrregião, a existência de
294 engenhos (Almeida, 1994). Em 1998,
constatou-se a existência de 52 engenhos no Brejo
Paraibano, que funcionam de maneira precária
devido ao atraso tecnológico decorrente da baixa
capacidade de investimento dos produtores de
cachaça e rapadura. (Paraíba, 1998).
Diante disso, buscou-se implantar algumas
estratégias de desenvolvimento local baseadas na
valorização dos produtos e serviços relacionados
a este pequeno setor produtivo que, por sua vez,
apresenta-se como a principal vocação produtiva
do território em foco.
3. VALORIZAÇÃO TERRITORIAL DOS
PRODUTOS DOS ENGENHOS À LUZ
DA ABORDAGEM DOS SITES
SYMBOLIQUES D’APPARTENANCE
3.1 – Aspectos teórico-metodológicos
Tomando como base as ações realizadas
pelo Programa de Apoio à Modernização e
Competitividade dos Setores Econômicos
Tradicionais – COMPET Sucroalcooleiro
(CNPq/Secretaria da Indústria, Comércio,
Turismo, Ciência e Tecnologia do Estado da
Paraíba), buscou-se investigar acerca das
iniciativas voltadas para os engenhos do Brejo
Paraibano, viabilizadas por este programa e pelos
atores locais visando promover o
desenvolvimento territorial. Assim, procedeu-se
no sentido de enfatizar os aspectos metodológicos
relacionados a estas ações, bem como em termos
da pretensão de construir, conjuntamente com
os atores locais, numa perspectiva de pesquisaação, algumas estratégias complementares às já
viabilizadas no território em questão.
O método da pesquisa-ação associa a
pesquisa à ação, através de um processo em que
há a participação ativa dos pesquisadores,
juntamente com os atores da situação. Assim, de
maneira interativa, estes atores buscam
identificar seus problemas e viabilizar suas
soluções, uma vez que a intenção é a realização
de uma ação. (Thiollent, 1997).
Diante de tal propósito, recorreu-se, em
termos teórico-metodológicos, à abordagem dos
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sites symboliques d’appartenance2, uma vez que tal
enfoque ressalta os aspectos imateriais do
território, no contexto de um processo de
desenvolvimento local, bem como o próprio
território e suas especificidades.
Esta abordagem parte da idéia de
território e da ênfase posta sobre as interações
entre os seus atores, que formam suas crenças,
seus valores, suas tradições, seus costumes etc.
Entretanto, essas interações não são apenas
endógenas, uma vez que o local encontra-se
aberto ao exterior. (Zaoual, 1999; Pavot et al,
199-; Zaoual, 1998). No âmbito de um processo
de desenvolvimento local, a consideração das
particularidades do território é essencial, diante
da ampla diversidade que cerca a sua existência.
A singularidade de cada local está intimamente
relacionada com a sua identidade. Sob este
aspecto, para Zaoual (1998), todo sistema de
atores é único e nenhum lugar é idêntico a outro.
Por isso, muitas vezes, os projetos
econômicos direcionados a um determinado
território baseiam-se em preceitos científicos cuja
natureza pode diferir da natureza dos valores dos
atores do local em questão. Cada lugar tem suas
próprias percepções e estas influenciam as que
vêm “de fora para dentro”, podendo até modificálas e adaptá-las à realidade local. (Zaoual, 1999).
Cabe lembrar que o conceito de site
symbolique evidencia dois princípios essenciais:
primeiro, o princípio de que a atividade econômica
é inseparável da dimensão simbólica, portanto,
do conjunto das representações dos atores, dos
seus valores e de suas crenças; segundo, o
princípio de que os principais atores do
desenvolvimento são os micro-espaços locais
(Nohra, 1999).
Diante do exposto, percebe-se que a idéia
de micro-território apresenta-se, no método dos
sites, com toda sua profundidade, intensidade e
complexidade. Os aspectos singulares que
caracterizam a individualidade de um local
exercem forte influência sobre uma iniciativa de
desenvolvimento local. Isto desmonta a
concepção de que um modelo de
desenvolvimento econômico pode ser aplicado
em qualquer local a qualquer momento.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
3.2 – Ações de desenvolvimento local no Brejo
Paraibano – os atores sociais locais
rumo à participação, à integração e ao
associativismo
A valorização dos produtos dos engenhos
no contexto de um processo de desenvolvimento
local foi marcada pela integração e participação
dos atores sociais do território. Entretanto, a
iniciativa desencadeante foi o Programa
COMPET Sucroalcooleiro, coordenado pelo
governo do estado da Paraíba. Este programa foi
concebido e executado com vistas a promover a
revitalização do pequeno setor produtivo
artesanal, com ênfase na qualidade de seus
produtos.
Para que este processo fosse posto em
andamento, fez-se necessária a formação de
parcerias com os atores locais, membros da
sociedade civil organizada ou não, bem como com
atores institucionais. Esta participação
representou um dos mais surpreendentes
resultados da pesquisa empírica realizada na
microrregião, visto que se trata de uma localidade
do Nordeste brasileiro, onde tal procedimento não
é comum3.
O referido programa contou com a
colaboração das seguintes instituições:
Associação de Plantadores de Cana-de-Açúcar da
Paraíba – ASPLAN, Serviço Brasileiro de Apoio
às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE-PB,
Centro de Ciências Agrárias da Universidade
Federal da Paraíba – CCA/UFPB; Prefeitura
Municipal de Areia; Fundação Parque
Tecnológico da Paraíba – PaqTc/PB; Banco do
Nordeste; Companhia de Desenvolvimento da
Paraíba – CINEP, entre outras.
No contexto deste espírito de
participação e integração, criou-se uma nova
associação dos pequenos produtores de cachaça
e rapadura no Brejo: a Associação dos Produtores
de Aguardente e Rapadura de Qualidade ASPARQ. No decorrer da pesquisa, percebeu-se
uma mudança de atitude por parte dos atores
locais: em um lugar marcado pelo individualismo
e pelo autoritarismo, operou-se uma tendência à
associação e à cooperação.
Publicada em Outubro de 2006
Para Bordenave (1994), a participação é
algo que se aprende e se aperfeiçoa, pois se trata
de uma necessidade natural do ser humano e, por
conseguinte, um direito dos indivíduos. Além
disso, as pessoas tornam-se participativas porque
esta prática envolve a satisfação de necessidades.
O desenvolvimento participativo é uma
tentativa de compensar ou superar as limitações
do enfoque de desenvolvimento “de cima para
baixo”, ao adotar um enfoque “de baixo para
cima”. Este último considera tanto as opiniões
quanto as necessidades dos residentes locais na
formulação e implantação de políticas de
desenvolvimento. (JICA, 1995). Porém, mesmo
diante da surpreendente tendência participativa
e associativa dos atores sociais do Brejo, em
busca de seu desenvolvimento, constatou-se que
estes necessitavam bastante da presença das
instâncias governamentais.
O desenvolvimento sustentável e autoconfiante não pode ser alcançado apenas através
da substituição dos programas de
desenvolvimento conduzidos pelo governo por
programas gerenciados pela comunidade local.
Além da indispensável participação dos outros
segmentos da comunidade, o governo exerce um
importante papel na coordenação, planejamento
e
implantação
dos
programas
de
desenvolvimento. O desenvolvimento
participativo permite que se conheçam as
necessidades e os desejos das pessoas e
introduzam um enfoque participativo à formação
política e aos processos administrativos de
desenvolvimento conduzidos pelo governo. Sob
este aspecto, o enfoque participativo funciona
como um complemento aos programas
concebidos e gerenciados pelo governo. (JICA,
1995).
Essa concepção da JICA pode ser
ajustada à atuação do Programa COMPET
Sucroalcooleiro no Brejo Paraibano. Diante disso,
as estratégias de valorização dos produtos dos
engenhos do Brejo Paraibano, baseadas nas
especificidades do próprio território, construídas
pelos principais atores sociais locais, assumiram
um caráter de complementaridade ante as ações
14
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
que já vinham sendo desenvolvidas pelo referido
programa governamental.
3.3 – Estratégias de valorização dos produtos
dos engenhos pela qualidade e pela
tradição
O que se fez, com vistas à valorização
dos produtos dos engenhos do Brejo Paraibano,
perpassou as ações do COMPET Sucroalcooleiro,
em primeiro lugar. Estas ações visaram promover
a valorização dos produtos através da mudança
de aspectos produtivos com vistas à elevação da
sua qualidade. As mudanças nos processos
produtivos guiaram-se no sentido de melhorá-los,
sobretudo em termos das condições higiênicas de
produção. Por outro lado, planejou-se a realização
de mudanças técnicas nos processos produtivos,
diante da obsolescência que permeia as
atividades, bem como pelas exigências por um
produto de qualidade. Entretanto, não se cogitou
a perda da identidade do território no que
concerne à tradição em produzir cachaça e
rapadura, bem como o seu caráter artesanal.
De maneira bastante geral, merecem
destaque algumas iniciativas voltadas para a
viabilização destas mudanças: montagem de uma
unidade piloto de produção de cachaça e de
rapadura; realização de cursos de capacitação,
baseados nas melhores práticas de produção de
cachaça; missões técnicas em outros estados
produtores e seminários. Além disso, o processo
produtivo de cachaça nos engenhos foi
monitorado pelos técnicos e pesquisadores do
programa.
Além da qualidade, outro fator
fundamental relativo à valorização de produtos
de caráter artesanal é a tradição em produzi-los,
baseada em fatores como: o saber-fazer
acumulado, transmitido de geração a geração, e
os aspectos históricos e culturais que envolvem
a fabricação dos produtos, principalmente
relacionados à sua procedência.
Os aspectos culturais são evocados pelos
autores da abordagem dos sites symboliques
d’appartenance como necessários no contexto do
desenvolvimento local. O papel dos aspectos
Publicada em Outubro de 2006
culturais é central, pois, segundo Nohra (1999),
é a partir deles que se pode compreender a
dinâmica do desenvolvimento econômico, ou
seja, são as crenças e as motivações dos atores
locais que se constituem nos motores simbólicos
mobilizadores da economia e da técnica
produtiva.
Tem havido, no Brasil, um aumento da
demanda por produtos influenciados por critérios
de nutrição e saúde, em que se destacam os
produtos naturais, sem aditivos químicos (Bonin,
1993). Atualmente, o apelo por alimentos
saudáveis e de qualidade une-se à elevação das
características tradicionais e históricas do local
de produção. Assim, a partir da atuação conjunta
dos diversos atores sociais da microrregião em
foco, os produtos dos engenhos estão sendo
melhorados em termos de qualidade e,
simultaneamente, tendo exaltado o seu caráter
de produto artesanal.
Os produtos tradicionais estão ocupando
um lugar privilegiado no mercado de alimentos,
valorizando uma imagem tradicional vinculada à
origem geográfica. Por um lado, as indústrias
recorrem a aspectos relacionados à tradição,
dando aos produtos uma aparência artesanal e,
por outro lado, a produção artesanal busca
incorporar características modernas através da
melhoria da higiene, da apresentação do produto
e da sua praticidade. (Coutinho, 2001).
No contexto do processo de valorização
dos produtos dos engenhos do Brejo, insere-se
também a atividade turística, ressaltando os
aspectos históricos relacionados à cana-de-açúcar
na região e a tradição na transformação da
cachaça e rapadura.
Pavot et al (199-) procederam à aplicação
desta abordagem nas atividades turísticas. Na sua
percepção, o turismo passou a ser visto como
“pós-fordista”, um turismo novo, considerado um
turismo de patrimônio, verde, rural e cultural.
Este ramo de atividade ilustra bem o fato de que
os indivíduos, hoje, demandam não só serviços
de qualidade quanto relações de sentido. Com
isto, há a necessidade de se partir de uma
perspectiva endógena ao território para a
promoção do seu desenvolvimento econômico.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
A nova tendência turística tem suas raízes ligadas
aos seus locais de pertencimento. É exatamente
a busca de sentido, de significação simbólica que
estes locais representam para os demandantes
desse serviço, o que modifica a dinâmica deste
novo turismo.
Assim, as novas necessidades dos
consumidores de serviços turísticos podem
coadunar-se com as práticas locais dos atores.
Para estimular o desenvolvimento local, a
revitalização ou até mesmo a descoberta de filões
turísticos no local ocorreriam tomando como base
suas raízes históricas, culturais, suas tradições,
suas crenças, seus valores herdados ao longo de
sua existência e perpetuados às novas gerações.
À luz do raciocínio acima, toma-se o caso
dos engenhos do Brejo em que, por um lado, o
turismo rural e histórico, abrangendo estas antigas
unidades produtivas, é considerado uma via
alternativa para a valorização do território e de
seus produtos artesanais. Por outro lado, a própria
existência secular dos engenhos é o fator que
impulsiona a atividade turística. Assim, há um
movimento interativo, marcado pela ação
recíproca entre estas duas atividades econômicas,
convergindo na promoção da valorização do
território. Isto deve-se à manutenção dos aspectos
simbólicos do lugar.
Os produtos do Brejo Paraibano
diferenciam-se dos mesmos produtos oriundos de
outras localidades devido às suas raízes históricas
e culturais ligadas à especificidade do lugar. Por
isto, considera-se aqui o Brejo como um local
simbólico de pertencimento. Os atores locais
buscam preservar e difundir suas características
peculiares através de seus produtos,
estigmatizados por um saber secular, bem como
pelos roteiros turísticos que contam a história do
açúcar e do território, inextricavelmente
entrelaçadas. Assim, estes atores estão trilhando
no sentido de absorver, crescentemente, a visão
da abordagem dos sites symboliques d’appartenance,
com as ações que vêm sendo empreendidas.
No âmbito de um cenário participativo,
efetuou-se a construção, juntamente com os
principais atores sociais do Brejo, de estratégias
de valorização dos produtos dos engenhos, quais
sejam: a criação de uma estrutura cooperativa; o
Publicada em Outubro de 2006
fortalecimento das estruturas associativas,
sobretudo a ASPARQ; a realização de novos
eventos de divulgação do território e dos seus
produtos e a participação nos eventos afins em
nível nacional; a diversificação dos produtos dos
engenhos e dos serviços turísticos (rural, histórico
e cultural); o maior aproveitamento dos recursos
humanos locais no desenvolvimento das
atividades do território, permitindo o aumento
do emprego dos habitantes do lugar e sua fixação
no mesmo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caso do Brejo Paraibano ilustra a busca
por promover o desenvolvimento local, tomando
como base a valorização de produtos que
representam a mais antiga vocação do território.
A existência dos engenhos na microrregião foi
marcante, em suas épocas áureas, ressaltando
todo um contexto econômico, social, político e
cultural em que os mesmos estavam inseridos.
Outrora, símbolo de poder econômico e
supremacia; atualmente, símbolo de um passado
histórico rico, de uma tradição em saber-fazer e
da cultura de um território. Antes, sinônimo de
riqueza e opulência, baseado em uma capacidade
produtiva superior; hoje, caracterizados como
pequenas unidades produtivas que buscam
sobreviver no âmbito da economia altamente
competitiva dos tempos da globalização. Por isto,
necessita de mudanças para subsistir, mas sem
jamais perder a identidade.
No contexto destas mudanças, destacouse a atuação de um programa governamental,
evidenciando a necessidade da inserção destas
entidades em um novo paradigma de
desenvolvimento. A intenção deste programa foi
promover o desenvolvimento de um setor
tradicional tomando como base na articulação de
atores institucionais e na participação dos atores
sociais locais.
A valorização dos produtos dos engenhos
do Brejo Paraibano, tanto em termos da qualidade,
mas, sobretudo, no que tange à tradição, baseouse a identidade do lugar, de modo que os produtos
fossem valorizados pelo fato de serem produzidos
neste território. Isto foi corroborado pelas
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ISSN: 1808-6535
atividades ligadas ao turismo rural e histórico
local, em que se buscou valorizar o rico passado
histórico e cultural imortalizado no conjunto
arquitetônico dos engenhos. Estas estratégias
buscaram realçar os elementos imateriais que
giram em torno dos engenhos: a história, a
tradição, a cultura, os costumes, as práticas, o
saber-fazer acumulado nas atividades de
produção de cachaça e rapadura.
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la penseé unique. Paris: L’Harmattan, pp.27-90.
(Footnotes)
1
A microrregião do Brejo Paraibano é composta
por oito municípios: Alagoa Grande, Alagoa
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Nova, Areia, Bananeiras, Borborema, Matinhas,
Pilões e Serraria. Dentre estes, destaca-se o de
Areia, em termos históricos, econômicos e
populacionais.
2
O termo “
sites symboliques d
’appartenance
“ foi traduzido, por Thiollent (2003), como “sítios
simbólicos de pertencimento”, em que a noção
de sítio é posta como um local tanto em sentido
geográfico quanto em sentido simbólico. Este
conceito é devido a Hassan Zaoual.
3
Segundo Bandeira (1999), algumas regiões do
país apresentam características culturais mais
propícias à associação e à cooperação, como é
o caso da Região Sul. Nos estados nordestinos,
a tradição associativa é mais fraca, dificultando
a organização e mobilização para iniciativas de
caráter participativo.
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Artigo
A importância dos métodos participativos para a promoção da
cidadania: Desenvolvimento Local e Pesquisa-Ação
Felipe Addor *
Resumo
Os Este artigo pretende ressaltar a importância da utilização de metodologias participativas para
projetos de desenvolvimento local. Iniciamos apresentando o contexto histórico das últimas décadas
de construção de um espaço de maior necessidade da participação cidadã no Estado. Em seguida,
procuramos mostrar como o modelo de desenvolvimento local surge como uma alternativa às
estratégias centralizadoras antes presentes, ressaltando suas características e as diversas abordagens
que este pode ter. Por último, defendemos a importância da utilização de métodos participativos,
com ênfase na Pesquisa-Ação, para a consolidação de um desenvolvimento local com cidadania.
Palavras-Chave: Cidadania, Desenvolvimento Local, Metodologias Participativas, Pesquisa-Ação
Abstract
Abstract: This article pretends to detach the importance of the use of participatory methodologies
on the implementation of local development projects. Initially, we present the last decades historic
context, showing the enhance of the necessity of citizen participation on the Government. After
that, we try to show how the local development model emerges as an alternative to the centralizing
strategies, detailing its characteristics and the different principles that can orientate it. Finally, we
defend the importance of the utilization of participatory methods, mainly Action-Research, for the
consolidation of local development with citizenship.
Key-Words: Citizenship, Local Development, Participatory Methodologies, Action-Research
CLAMA-SE POR CIDADANIA
Em fins da década de 1970 e início da seguinte,
alguns movimentos sociais se voltaram, com mais
ênfase, para a reivindicação de uma maior
democratização do Estado (Moroni, 2005;
Ribeiro, 2005). Era ressaltada a questão “Que
mecanismos são necessários criar para democratizar o
Estado e torná-lo realmente público?”, com uma crítica
direta à “democracia representativa” vigente, por
meio de partidos políticos e processo eleitoral,
que não seria suficiente para atender à
“complexidade da sociedade moderna” (Moroni,
*Felipe Addor é Mestre em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ.
Fundador, Pesquisador e Co-Gestor do Núcleo de Solidariedade Técnica
(SOLTEC/UFRJ).
Rua João Afonso, 39/201. Humaitá, Rio de Janeiro, RJ. CEP 22261-040.
[email protected]
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2005:1). Baquero (2003:29) afirmou que “a
solidez democrática de um país depende de uma
sociedade civil dinâmica e participativa e
orientada para a valorização das normas
democráticas”.
Caminhando nessa direção, a Constituição
Federal de 1988 abre novas portas para a
discussão da cidadania (Moroni, 2005; Fedozzi,
2001). A Constituição Cidadã1 inovou: por um lado,
na determinação da gestão das políticas
governamentais, seguindo o princípio da
descentralização político-administrativa (Moroni,
2005:2), promovendo a “revigoração do papel do
poder local” (Fedozzi, 2001:21); por outro, pelos
novos espaços democráticos criados, com a
introdução de instrumentos de democracia direta e
a abertura à criação de “mecanismos de democracia
participativa, como, por exemplo, os conselhos” e
as conferências2, aumentando o “estímulo à maior
participação das coletividades locais – sociedade
civil organizada –, criando mecanismos de
controle social” (Moroni, 2005:2); “O direito à
participação foi elevado a princípio constitucional
em 1988.” (Teixeira, 2005:7).
No entanto, a abertura legal de um espaço para
os cidadãos participarem da coisa pública (res
publica) não é o suficiente para que haja,
realmente, uma participação cidadã, um poder
decisório real para o cidadão (Arnstein,
1969:216). Como alertou Fedozzi (2001:15):
“uma das lições importantes que os brasileiros
estão aprendendo, desde o fim do regime
militar em 1985, é que não basta instaurar
os princípios gerais da liberdade e dos direitos
civis para que a ordem democrática se
estabeleça de forma plena. Os sistemas
políticos democráticos supõem formatos
institucionais e mecanismos de participação
Publicada em Outubro de 2006
que não são triviais, e nem nascem de forma
espontânea”.
Assim, o que se percebe é que, apesar de terem
sido criados, desde 1988, mecanismos de maior
participação popular, há pouca representação
efetiva da opinião dos cidadãos nas decisões
públicas, isto é, há uma “ausência histórica do
setor popular, como sujeito sócio-político
autônomo” (Fedozzi, 2001:83). Como já havia
alertado Fedozzi (2001:83), “seria equivocado
supor que a participação social per se significa mais
democracia e mais cidadania”.
No processo histórico de construção do Estado
brasileiro, a população se apresenta distante dos
espaços de decisões públicas, o que construiu na
maioria do povo uma conduta política passiva,
em que as elites dirigentes tomam as iniciativas e
definem a direção das políticas governamentais
(Fedozzi, 2001:89; Moroni, 2005:4)3. Um dos
motivos centrais para esse posicionamento,
segundo Fedozzi (2001:62), é a herança
patrimonialista inserida na nossa cultura, que
bloqueia iniciativas para democratizar o acesso a
espaços públicos: “A inexistência de cidadania,
como se sabe, é uma decorrência da forte tradição
patrimonialista ainda vigente na cultura política
brasileira, a qual, como foi visto, constitui um
obstáculo estrutural a seu desenvolvimento”.
Raymundo Faoro, em sua obra Os Donos do Poder,
de 1958, comentou que aquela herança constrói
um ideal de Estado em que este é o “pai do povo”
e tem a função de representar “a fonte de todas
as esperanças” (apud Fedozzi, 2001:79).
Segundo Moroni (2005), a falta de interesse do
Estado de ter a população ativamente
participando das decisões públicas levou à
criação de diversos mitos que hoje vão de
encontro ao movimento de democratização do
Estado. O autor cita três mitos:
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1. “A sociedade não está preparada para
participar,(...), das políticas públicas”:
mito que coloca o político como
detentor do saber e deve ter o aval para
decidir;
2. “a sociedade não pode compartilhar da
(...) construção das condições políticas
para tomar e implementar decisões,
porque o momento de participação (...)
é o momento do voto”: que coloca o
partido e o político como “donos” do
Estado quando eleitos;
3. “a sociedade é vista como um elemento
que dificulta as tomadas de decisões”;
seja
pelo
tempo
ou
pelo
“posicionamento crítico”.
O que fica cada vez mais claro é que os
instrumentos participativos vigentes no sistema
democrático atual, basicamente da democracia
representativa das representações partidárias, não
são suficientes para atender aos mais diversos
setores e às variadas demandas da população
brasileira: “As modalidades tradicionais do direito
de participação política, como o direito de votar
e ser votado, filiação partidária, entre outros, não
são suficientes para a cidadania de hoje” (Moroni,
2005:4). São necessárias novas formas de
participação em que haja real redistribuição de
poder para as populações, com o intuito de
promover o desenvolvimento de cidadãos que
tenham maior atuação nas políticas públicas, pois,
apenas assim, como defendeu Arnstein
(1969:216), torna-se possível que “os cidadãos
desassistidos, atualmente excluídos dos processos
políticos e econômicos, sejam deliberadamente
incluídos no futuro”.
É preciso construir a esfera pública, “o espaço social
onde ocorreria a interação” entre primeiro
(Estado), segundo (capital) e terceiro setores
(organizações não-governamentais ou nãoeconômicas e movimentos sociais) para
“identificar, compreender, problematizar e propor
as soluções dos problemas da sociedade, ao ponto
destas serem assumidas como políticas públicas
Publicada em Outubro de 2006
pelo contexto parlamentar e executadas pelo
aparato administrativo de governo”. E a
sociedade civil faz o importante papel de dar a
“substância” das discussões e decisões nesse
espaço, visto que é quem está “apoiada no mundo
da vida e, portanto, apresenta uma maior
proximidade com os problemas e demandas do
cidadão” (TENÓRIO, 2005:155).
FLORESCE O DESENVOLVIMENTO
LOCAL
O contexto de descentralização políticoadministrativa e de reformulação da democracia
participativa coloca condições estruturais que
favorecem o desabrochar de outras formas de
pensar o desenvolvimento (Silveira, s/d:6). Entre
elas está o conceito de desenvolvimento local,
que aparece “como um novo lócus de esperanças
de alcance da modernidade e de superação do
imobilismo econômico” (Ribeiro, 2005:109).
Segundo Jesus (2003:72), desenvolvimento local
representa:
“um esforço localizado e concertado, isto é,
são lideranças, instituições, empresas e
habitantes de um determinado lugar que se
articulam com vistas a encontrar atividades
que favoreçam mudanças nas condições de
produção e comercialização de bens e serviços,
de forma a proporcionar melhores condições
de vida aos cidadãos e cidadãs, partindo da
valorização e ativação das potencialidades e
efetivos recursos locais”.
Esse movimento é fruto a uma recusa aos
modelos de desenvolvimento que desconhecem
as especificidades, demandas e potencialidades
de cada localidade. No entanto, Ribeiro
(2005:112) citou Gramsci para ressaltar o fato
de que a “crítica uníssona” ao planejamento
centralizado não representa uma concordância de
valores e princípios para o desenvolvimento: “(...)
sob o mesmo chapéu podem estar diversas
cabeças”.
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Há diversas estratégias “sob o chapéu” do
desenvolvimento local que divergem sobre o
modo como serão pensadas as estratégias de ação.
Jesus (2003:73) as diferenciou em três abordagens:
·
·
·
Centralizadora, em que é o governo que define
as políticas públicas, a utilização dos
recursos, a partir de técnicos do aparelho
estatal, sem haver consulta à comunidade
local;
De mercado, onde os empresários têm pleno
domínio sobre o poder público, e as políticas
são definidas centralmente para garantir o
melhor desempenho das companhias
privadas;
Comunitária, que tem como base a
mobilização e participação da comunidade,
desde a definição das prioridades até o
monitoramento das ações.
Essa terceira abordagem, por considerar a
participação da comunidade em sua construção,
parece se assemelhar mais com o que Tenório
(2005:167) classificou de “desenvolvimento local
com cidadania”, em que “pessoas
individualmente ou por meio de g rupos
organizados da sociedade civil, bem como do
empresariado local (do capital) em interação com
o poder público municipal (executivo e legislativo),
decidem sob uma esfera pública, o bem-estar de
uma comunidade”.
O
PAPEL
DA
PARTICIPATIVA
METODOLOGIA
Quando se procura desenvolver políticas públicas
e realizar projetos de desenvolvimento local com
cidadania, deparamo-nos com o desafio de criar
espaços de interação entre os diversos atores
locais, na discussão dos problemas e construção
das políticas públicas. Faz-se necessária utilizar
métodos que possibilitem uma troca democrática
e profícua. Urge, portanto, o aprofundamento no
campo da metodologia participativa, que
possibilite a articulação dos diversos atores e o
diálogo entre o conhecimento científico e o saber
popular.
Como relatou Thiollent (2005), o método da
pesquisa participante já foi muito utilizado na
época da redemocratização do país como
Publicada em Outubro de 2006
estratégia de tornar as pessoas mais conscientes
e atuantes. No entanto, esse método não prevê
como objetivo a realização de uma ação entre os
atores envolvidos para mudar a realidade
(Thiollent, 1997:22).
Uma estratégia metodológica que vem sendo
relacionada com esse tipo de atuação ultimamente
é a Pesquisa-Ação. Essa estratégia não se limita
a investigar e desenvolver conhecimento. Ao
contrário, ela pressupõe uma abordagem
colaborativa para pesquisa, que fornece às
pessoas envolvidas os meios para realizarem
ações sistemáticas para resolução de problemas
(Stringer, 1999:17). Como definiu Thiollent
(1996:14):
“a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social
com base empírica que é concebida e realizada
em estreita associação com uma ação ou com a
resolução de um problema coletivo e no qual
os pesquisadores e os participantes
representativos da situação ou do problema
estão envolvidos de modo cooperativo ou
participativo”.
Os princípios participativos democratizantes e
seu direcionamento para a ação fazem com que
o método da pesquisa-ação possa contribuir para
a implementação de estratégias de
desenvolvimento local com cidadania. Ele pode
ser qualificado como um “método cientifico
contemporâneo para intermediar o diálogo do
conhecimento técnico com os conhecimentos dos
lugares, internos aos empreendimentos ou no
território onde se encontra a comunidade, abrindo
espaço para o surgimento de inovações sociais
que propiciem a incorporação tecnológica
incremental ou radical consensuada” (Lianza e
Addor, 2005:256).
Analisando autores que trabalham com
desenvolvimento local (Eid e Pimentel, 2005;
Ribeiro, 2005; Jesus, 2003; Frederico-Sabaté,
2004), identificamos três aspectos que devem
estar inseridos em projetos de desenvolvimento local
com cidadania e que dialogam diretamente com os
princípios da pesquisa-ação:
22
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
·
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ISSN: 1808-6535
O conhecimento das necessidades e
potencialidades locais (Pesquisa);
O envolvimento de pessoas e instituições
locais (Participação);
A melhoria das condições de vida para a
população local (Ação);
A valorização da cultura e potencialidades
locais (Conhecimento Técnico +
conhecimento empírico).
Além disso, diversos teóricos da pesquisa-ação a
vinculam a projetos de desenvolvimento local:
Greenwood e Levin (1998); Stringer (1999);
Thiollent (1996 e 2005). Segundo Thiollent
(2005: 183), projetos de desenvolvimento local
requerem “a participação e envolvimento de
muitas pessoas e grupos. Isso representa um novo
potencial para a aplicação de métodos
participativos e de pesquisa-ação”.
No entanto, vale enfatizar que esse vínculo do
desenvolvimento local com a pesquisa-ação
refere-se apenas ao que chamamos de
desenvolvimento local com cidadania, pois, como
alertou o próprio autor, a pesquisa-ação perde sua
função quando “o desenvolvimento local é
concebido a partir de uma visão centrada no
individualismo e na competitividade” (Thiollent,
2005:183).
CONCLUSÃO
A descentralização político-administrativa do
Estado demanda, constantemente, discussões
sobre as novas formas de se pensar o
desenvolvimento. A maior possibilidade de
inserção das demandas e potencialidades locais
e de participação direta da população na
definição das políticas públicas levanta a
necessidade do debate sobre o meio de se
soerguer a democracia, tornando-a de
representativa para participativa. Longe de querer
chegar a soluções ou elencar certezas, buscamos
aqui ressaltar a importância da teoria e da prática
dos métodos participativos que vem sendo
construídas há décadas para contribuir para o
desenvolvimento de meios de estímulo à
cidadania plena. A pesquisa-ação não é o único,
Publicada em Outubro de 2006
mas aparece como um dos possíveis métodos que
podem contribuir nesse sentido, por ter como
premissa a participação dos atores e como
objetivo a transformação da realidade.
Esperamos que este artigo contribua para que
consigamos
construir
modelos
de
desenvolvimento cada vez mais justos e
equânimes.
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SITE SUGERIDOS
www.rededlis.org.br/
www.desenvolvimentolocal.org.br
www.poli.org.br
(Footnotes)
1
Ela foi assim chamada pelo presidente da
Constituinte, Ulisses Guimarães. (Emir Sader
apud
Tenório, 2005:151)
2
Atualmente, há vários desses espaços
democráticos: Conselhos de Saúde, Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional,
Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, Conferência Nacional de Aqüicultura e
Pesca, entre outros.
3
Moroni (2005:4) contou das origens da
democracia: “Na tradição ocidental, são
conhecidas as origens da democracia, da
cidadania, e do direito, que têm como referência
a polis grega e as cidades-Estado romanas (os
romanos traduziram polis por civitas, palavra da
qual surgem cidade, cidadania e cidadãos). Em
virtude da idéia elitista de democracia presente
nessas culturas, apenas os homens livres
participavam da vida pública e eram,
conseqüentemente, considerados cidadãos.Além
de ser machista e elitista, isto é, ser uma ‘democracia’
apenas para alguns homens, trata-se de uma
concepção exclusivamente política de
democracia, negligenciando a liberdade individual
na vida privada e a questão social e econômica.
Eram excluídos da cidadania as mulheres, os
estrangeiros e os escravos. Também eram
excluídos os comerciantes e os artesãos, porque
supostamente não teriam tempo para participar
da vida pública, pois precisavam trabalhar para
seu sustento. A participação estava condicionada
ao tempo disponível, e isso era para os homens
24
de posses.” (4)
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Outubro de 2006
Artigo
A Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé:
O envolvimento dos atores para a construção de um projeto de
desenvolvimento local
Sidney Lianza, Felipe Addor, Vera de Fátima Maciel
e Vicente Nepomuceno de Oliveira*
Resumo
Este artigo apresenta a experiência de mobilização de atores sociais locais de Macaé para o projeto
Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé (PAPESCA/Macaé). O projeto, coordenado
pelo SOLTEC/UFRJ, busca o desenvolvimento da atividade pesqueira do município, por meio da
mobilização social. Relatamos o caminho metodológico desenvolvido no projeto para a identificação
dos principais entraves para a sustentabilidade da cadeia produtiva da pesca e a elaboração de propostas
de projetos que contribuam para combatê-los. Por fim, apresentamos os resultados obtidos com esse
processo e o estágio atual da PAPESCA/Macaé.
Palavras-Chave: Pesquisa-Ação, Desenvolvimento Local, Pesca, Cadeia Produtiva.
Abstract: This article presents the experience of social mobilization within the project “PesquisaAção na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé “ (PAPESCA/Macaé). The project, coordinated by
SOLTEC/UFRJ, aims to develop the local fishing activity through the workers participation. We
detail the methodological path elaborated to identify the main problems of the fishing productive
chain and to build the directions for the development of projects to diminish them. At last, we show
PAPESCA/Macaé results and in which stage the projects is.
Key-Words: Action-Research, Local Development, Fishing, Productive Chain.
Introdução
NO Projeto de Pesquisa-Ação na Cadeia
Produtiva da Pesca em Macaé iniciou-se em abril
de 2004, a partir da parceria entre o Núcleo de
Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ), o Pólo
Náutico/UFRJ e o Núcleo de Pesquisa Ecológica
de Macaé (NUPEM/UFRJ). Seu objetivo maior
é contribuir para a sustentabilidade da cadeia
produtiva da pesca, visando ao desenvolvimento
local social e solidário de Macaé.
A atuação da UFRJ em alguns projetos em
Macaé, como a Escola de Pescadores, a levou a
ficar mais próxima da realidade da região. Deste
*Sidney Lianza é Professor do DEI/POLI/UFRJ. Coordenador Geral do Núcleo
de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ); Felipe Addor é Mestre em Engenharia
de Produção pela COPPE/UFRJ. Pesquisador e Co-Gestor do Núcleo de
Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ); Vera de Fátima Maciel é Mestre em
Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ. Pesquisadora e Co-Gestora do Núcleo
de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ); e Vicente Nepomuceno de Oliveira é
Graduando de Engenharia Mecânica da POLI/UFRJ. Pesquisador e Co-Gestor do
Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ).
25
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
contato, emergiu a proposta de se realizar um
projeto que contribuísse para a melhoria da renda
e das condições de trabalho dos envolvidos
diretamente com a pesca e a construção de
embarcações em Macaé.
Depois de algumas visitas da equipe do
SOLTEC/UFRJ ao município, foi elaborada a
proposta de um projeto de Pesquisa-Ação, no qual
pudéssemos identificar os entraves à
sustentabilidade da cadeia produtiva da pesca,
com o intuito de desenvolver projetos que
melhorassem as condições de vida e trabalho dos
envolvidos nessa cadeia.
A atividade pesqueira envolve diretamente cerca
de 15.000 pessoas, isto é, 10% da população1, e
enfrenta diversas dificuldades em conseqüência
do crescimento econômico e demográfico do
município e dos impactos ambientais da crescente
industria petrolífera presente desde finais dos
anos 1970.
METODOLOGIA
Para o desenvolvimento do projeto de
desenvolvimento local, optamos pela utilização
de uma metodologia participativa, no campo de
estudos definido como Participatory and Action
Research (PAR) (THIOLLENT, 1996; MORIN,
2004), tanto no diagnóstico e na definição de
problemas quanto na elaboração e gerenciamento
dos projetos de intervenção.
Essa metodologia não apenas tem um forte poder
mobilizador e emancipador se realizada com
precisão, como ainda possui métodos que
preparam o contexto para a ação posterior à
pesquisa, colocando, inclusive os pesquisadores
inseridos como atores no processo: “a pesquisaação, com objetivo emancipatório e
transformador do discurso, das condutas e das
relações sociais, vai mais longe que a abordagem
Lewiniana [essencialmente democrática e tendo
a mudança como finalidade] e exige que os
pesquisadores se impliquem como atores”
(MORIN, 2004:55) (parênteses nossos).
* Jornalista, repórter da TV Senado, mestre em Comunicação e doutor em Lingüística
pela Universidade de Brasília. Professor da Unieuro em Brasília. Membro do Núcleo
de Estudos de Linguagem e Sociedade, Nelis, da UnB, da Associação Brasileira de
Lingüística, da SBPC e do GT-Práticas Identitárias em Lingüística Aplicada, ligado à
Anpoll. End.: SQN 211 Bl. H Ap. 607 70863-080. E-mail: [email protected]
Publicada em Outubro de 2006
Buscando desenvolver um projeto de pesquisaação procurando envolver todos os atores
interessados, foi necessária, inicialmente, uma ida
a campo para ambientação dos integrantes da
equipe: conhecer a cidade de Macaé; conversar
com habitantes do local ou com pesquisadores
que já desenvolvem outros projetos na região;
conhecer a unidade de pesquisa da UFRJ em
Macaé (NUPEM).
Após algumas visitas e muitas discussões, foi
desenvolvida uma estratégica metodológica que
prezasse pela interação com os atores sociais
locais, sendo esse um fator indispensável para o
sucesso de um projeto participativo de
desenvolvimento local. Foram definidas as
seguintes etapas:
1. Levantamento de Dados Secundários e
Identificação dos atores locais;
2. Entrevistas Individuais com os atores;
3. Entrevistas Coletivas;
4. Reuniões Gerais.
Levantamento de Dados Secundários e
Identificação dos atores
Foi realizada, inicialmente, uma pesquisa de dados
secundários, para que pudéssemos começar a
delinear os primeiros passos da pesquisa.
Definindo algumas palavras-chave que
estivessem ligadas ao tema do projeto e à região
(pesca, Macaé, Petrobras, embarcações, etc), o
grupo pesquisou estatísticas, dados,
características sócio-econômicas, leis,
organizações, instituições, relações sóciopolíticas e econômicas da região.
Além de diversas fontes bibliográficas, acessadas
centralmente pela internet, realizamos conversas
informais com algumas pessoas que pudessem
contribuir para uma visão panorâmica da situação
das atividades de pesca e comercialização de
embarcações na região e dos principais atores que
interferiam no processo. Definimos, então, os
primeiros atores a serem entrevistados.
Links interessantes: www.dieese.org.br (Estudos e pesquisas/População Negra)
www.pnud.org.br (Raça)
1 O artigo tem por referência a pesquisa que empreendemos para tese de nossa
autoria (ainda inédita) defendida no Doutorado em Lingüística da Universidade de
Brasília, em dezembro de 2004.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
É importante ficar claro que em nenhum
momento fechamos a lista de atores a serem
abordados. Ao longo do processo de pesquisa, a
melhor compreensão do contexto e a visualização
da grande complexidade da atividade da pesca e
da produção de embarcações nos levaram a
adicionar diversos atores cuja compreensão se
mostrava importante para o entendimento do
todo. Além disso, a cada visita a campo são
analisados os relatórios produzidos para que sejam
levantadas as informações que devem ser
pesquisadas em dados secundários para
complementar a construção de conhecimento da
pesquisa.
Entrevistas individuais com os atores
Estabelecemos uma estratégia para priorização
dos atores que deveriam ser contatados.
Procuramos primeiro entrevistar pessoas
diretamente envolvidas na cadeia produtiva da
pesca, isto é, os pescadores, as descascadeiras de
camarão, os construtores de barco. Em seguida,
fomos aumentando a abrangência, conversando
com atores não diretamente inseridos na cadeia,
mas que exerciam, ou que tinham potencial de
exercer, alguma influência sobre esta.
Essa estratégia pode ser comparada graficamente
a uma espiral, na qual a pesca e a construção de
embarcações estão no centro, pois são o primeiro
foco das entrevistas, e em seguida vamos abrindo
o campo de abrangência para cada vez melhor
compreender o todo, com uma visão holística,
mas sempre voltando aos primeiros atores para
dar um retorno sobre a pesquisa.
Conversamos numa primeira visita com
pescadores representantes da Colônia e da
Cooperativa e com construtores. Na seguinte,
com pessoas envolvidas na comercialização do
pescado, atores ligados ao seu beneficiamento,
mulheres trabalhadoras da pesca, bancos ligados
ao financiamento de embarcações, instituições de
ensino (que pudessem ter cursos voltados para
pesca ou até mesmo que pudessem colaborar na
alfabetização), o poder público, entidades de
fiscalização, entre outros.
Para cada entrevista é elaborado um roteiro que
guia o pesquisador. São roteiros semiestruturados, nos quais as perguntas não são
Publicada em Outubro de 2006
fechadas, mas servem para ajudar o entrevistador
a seguir uma linha de raciocínio previamente
definida. As entrevistas são agendadas antes da
ida a campo, para procurar aproveitar ao máximo
o tempo de estadia na região.
Os roteiros são iniciados pela apresentação do
projeto e seguem com grandes tópicos que são
comuns a todos os atores, mudando apenas as
perguntas referentes a cada um dos tópicos. Estes
são: histórico (da pessoa e/ou da entidade); o
papel da entidade (se for o caso) na região; o
funcionamento da entidade/atividade (no caso
de
pessoa
diretamente
envolvida);
relacionamento com outros atores locais;
Dificuldades enfrentadas pela entidade e pela
pesca e construção de embarcações.
Dois membros da equipe são escalados por
entrevista. Enquanto um fica responsável por
direcionar a conversa, o outro se responsabiliza
por monitorá-la e registrá-la. Terminadas as
entrevistas de cada etapa, um dos pesquisadores
de cada dupla se encarrega de elaborar uma
proposta de Relatório, a ser aprovada
primeiramente pelo seu companheiro. Esses
relatórios servem para registro e socialização das
informações obtidas.
A apreensão das conversas com os atores e das
dificuldades enfrentadas capacita o pesquisador
a realizar entrevistas com maior qualidade e
conhecimento do contexto. Possibilita a ele
aprofundar mais cada tema discutido e procurar
triangular as diferentes informações. Porém, um
cuidado que sempre devemos ter é o da
confidencialidade das declarações, nunca abrindo
as palavras de outros atores.
Adotamos uma prática de sempre dar um retorno
das entrevistas realizadas para os atores
diretamente envolvidos na cadeia e que são o
público-alvo do projeto. Nesse retorno, primeiro
procuramos confirmar com o entrevistado se as
conclusões que tiramos do relatório da entrevista
refletem realmente suas exposições, além de
apresentarmos os entraves levantados por outros
atores para possíveis reflexões. Com isso,
evitamos quaisquer mal-entendidos ou confusões
advindas de uma interpretação errada.
Esse método do retorno tem sido muito positivo,
principalmente na obtenção da confiança das
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Publicada em Outubro de 2006
pessoas. Ao ver que suas respostas realmente
serviram para uma análise, elas se mostram mais
abertas e mais confiantes nos objetivos do
projeto.
Entrevistas Coletivas
Foi realizado pelo grupo de pesquisadores um
trabalho de sistematização dos entraves
levantados nas entrevistas individuais que teve
como objetivos apresentar uma visão integrada
das dificuldades enfrentadas pelas atividades
pesqueiras e de construção de embarcações e
subsidiar as entrevistas/reuniões coletivas para
a discussão dos problemas. Foram criados cinco
eixos de problemas: Meio-ambiente,
Comercialização, Crédito/Legalização, Infraestrutura, Educação/Cultura.
Para continuar a discussão decidimos colocar
numa mesma reunião atores que possuem
interesses e objetivos semelhantes. Deste modo,
três grupos foram divididos: atores sociais locais
diretamente envolvidos na temática;
representantes do poder público municipal;
representantes de outras entidades, de Macaé ou
não, que interferem ou possuem capacidade de
interferência na realidade local (atores
intervenientes).
Um aspecto fundamental para a realização desses
encontros coletivos é a linguagem a ser utilizada.
Deve ser uma linguagem imparcial, que seja
compreendida por todos os presentes, de semianalfabetos a doutores, de macaenses a pessoas
que estão apenas indo à cidade para as reuniões.
Para tanto, foram feitas as sistematizações dos
entraves apresentadas anteriormente e, para os
encontros, foram preparados cartazes que
representavam cada um dos problemas, com sua
descrição escrita e uma imagem associada a ele,
método denominado pela equipe de “Cartelas
Coloridas”, como pode ser visto na Figura 1. Esse
modo de apresentação foi utilizado em todas as
reuniões coletivas, não só pela clareza que ele
proporciona, mas como forma de consolidar uma
única linguagem para a reunião geral.
Figura 1 – Utilização do método “Cartelas
Coloridas” para as reuniões
Como foco do projeto, a primeira reunião
realizada foi com os trabalhadores. Participaram
da reunião 12 pessoas, entre pescadores,
representantes da Colônia e da Cooperativa,
construtores de embarcações e mulheres
trabalhadoras da pesca. Esse encontro foi
essencial na revisão do diagnóstico realizado, e
na definição dos principais problemas entre os
identificados.
Depois de apresentado o diagnóstico feito com
base nas entrevistas individuais, houve um espaço
para discussão dos problemas. Esse momento
serviu para tornar equânime o conhecimento de
todos sobre os entraves e também para confirmar
em grupo a existência deles e se não havia
nenhuma grande outra dificuldade não abordada.
Surgiram aí, inclusive, novos problemas como a
dificuldade e demora de recebimento do benefício
do defeso e a poluição nas lagoas de Macaé.
Após o debate, foi adotada uma dinâmica na qual
cada participante da reunião votava nos principais
problemas para cada eixo. Assim, foram definidos
entre dois e três problemas centrais em cada
temática; o resultado pode ser visto na tabela
abaixo. E, em seguida, pedimos para eles
definirem quais seriam os dois eixos temáticos
de maior importância e foram selecionados, por
unanimidade os eixos de Meio-ambiente e de
Comercialização com maior prioridade de
intervenção.
Tabela 1 – Votação dos Entraves da
Cadeia Produtiva da Pesca (ver anexo)
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
O frutífero debate ocorrido nessa reunião e o
curto espaço de integração e de reflexão sobre os
entraves, levou à proposta de uma nova reunião
do mesmo grupo, antes da geral, para serem
melhor aprofundados os problemas que foram
definidos como centrais e para iniciar a discussão
sobre os caminhos para superá-los.
Na nova reunião, realizada uma semana depois,
percebeu-se um aumento do número de
participantes por iniciativa dos próprios atores
locais, chegando a um total de 20. As propostas
que surgiram no dia foram levadas para dar
subsídio às discussões temáticas da Reunião
Geral.
Nas outras duas reuniões coletivas (com o poder
público municipal, com 10 presentes, e os atores
intervenientes, com cinco) foi apresentado o
diagnóstico para apreciação, já incorporado do
resultado das votações da primeira reunião
coletiva. Abriu-se debate no qual foram colocadas
as diferentes visões de cada instituição sobre os
problemas e a situação da pesca e da construção
de barcos. Além disso, diversos novos fatores
relacionados aos problemas existentes foram
colocados que qualificaram ainda mais os debates.
A partir daí, foi organizada a primeira Reunião
Geral, na qual tentaríamos proporcionar a maior
interação entre os diversos atores com discussões
orientadas para cada temática. Pegamos como
foco apenas os problemas identificados como
principais, buscando a objetividade que
necessitávamos para a elaboração dos projetos
de ação.
Os entraves principais do eixo Infra-Estrutura
estavam basicamente ligados a questões de
comercialização e crédito, então redistribuímos
seus problemas pelo outros eixos, excluindo este.
Reuniões Gerais
A proposta para essa reunião foi que os
participantes se dividissem em grupos temáticos,
de acordo com suas preferências, para debater os
principais entraves de cada eixo (Meio-ambiente,
Comercialização, Crédito/Legalização e
Educação/Cultura). Sugerimos algumas divisões
lógicas como, por exemplo, que a Cooperativa
estivesse presente na discussão da Comercialização,
o Banco do Brasil participasse do grupo de
Publicada em Outubro de 2006
Crédito, e as Secretarias Municipais de Meioambiente e de Educação fossem para os seus
respectivos temas.
Portanto, depois de apresentarmos os principais
problemas de cada eixo e de estimularmos as
reflexões com os subsídios dados nas reuniões
coletivas, os participantes (em número de 27) se
direcionaram para o grupo de discussão que mais
os interessava. Percebeu-se uma forte
concentração no eixo de Meio-ambiente, uma
significativa participação na Comercialização, e
pouca atratividade dos outros dois eixos;
confirmando o resultado da votação da primeira
reunião coletiva.
Cada grupo procurou aprofundar os entraves
levantados e começar a discutir possíveis ações
para combatê-los, levantando potenciais
responsáveis e parceiros.
Depois da discussão cada grupo apresentou
sugestões de eixos centrais que deveriam ser
seguidos para buscar a resolução de problemas
de cada temática. Uma sugestão, surgida em uma
das reuniões coletiva e ratificada na geral, foi a
criação de um Conselho Municipal da Pesca, que
representaria um momento no qual diversas
entidades ligadas à atividade estariam debatendo
periodicamente a situação da atividade pesqueira,
procurando sempre construir soluções para os
problemas encontrados.
RESULTADOS E ESTÁGIO ATUAL
Mais quatro reuniões gerais foram realizadas até
chegarmos a uma definição estratégica das
diretrizes para o desenvolvimento da pesca. Para
tanto, foi necessário que todas as prioridades
definidas pelos atores fossem levadas em conta e
que se fizesse um esforço de refleti-las em ações
que pudessem amenizar diversos problemas,
afinal seria impensável um projeto diferente para
resolver cada problema.
Cada argumento colocado por cada ator,
independente se parecesse de origem científica
ou da cultura local foi considerado e procurou
ser entendida sua argumentação lógica.
Procuramos entender a lógica (ou a sócio-lógica)
de cada grupo para captarmos o máximo da
complexidade da situação sobre a qual estamos
nos debruçando.
29
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Todo esse esforço contribuiu para que
pudéssemos, depois de todos esses encontros com
os atores, realizar um minucioso trabalho
analítico-reflexivo para chegar mos a uma
proposta do Projeto Pesquisa-Ação para o
Desenvolvimento Sustentável da Cadeia
Produtiva da Pesca em Macaé. Esse projeto
de Pesquisa-ação é dividido em três grandes
programas, e cada um desses possui diversos
projetos.
Os programas e projetos são:
ü Programa Preservação do Meio Ambiente
e Pesca Responsável:
o Projeto
de
mapeamento/
levantamento da atividade pesqueira;
o Projeto de Recuperação do Rio
Macaé e do Manguezal.
ü Programa Fortalecimento do Comercio
Solidário e do Crédito Popular:
o Projeto de Legalização dos
Pescadores e dos Barcos;
o Projeto para Organizar os Pescadores
e os Construtores de Embarcações
para Viabilizar Acesso ao Crédito;
o Projeto
de
Criação
de
Empreendimento
Econômico
Solidário de Beneficiamento de
Pescado;
o Projeto de Estimulo à Cooperação na
Produção e na Comercialização do
Pescado.
ü Programa Educação e Gestão Social:
o Projeto de Ensino Politécnico,
Fundamental e Médio;
o Projeto de Alfabetização e
Qualificação de Jovens e Adultos.
Atualmente, o eixo principal de atuação da
PAPESCA é o projeto de Incubação de um
Empreendimento Solidário de Beneficiamento de
Pescado, que foi aprovado pela FINEP/MCT.
Além disso, continuamos o Programa de
Educação e Gestão Social, com a realização
periódica de Encontros de Formação para a
Gestão Social da Pesca de Macaé. Numa parceria
com a Colônia de Pescadores da Ilha do
Governador, Z-10, estamos procurando
promover o diálogo entre o Banco do Brasil e os
pescadores para facilitar o acesso ao crédito.
Publicada em Outubro de 2006
Além disso, uma vitória obtida foi a inserção do
produto de todo esse processo participativo no
Plano Diretor de Macaé, no qual está previsto a
criação do Pólo da Pesca, que terá infra-estrutura
para buscar diminuir os diversos problemas
levantados. Por último, com base na PAPESCA
está sendo articulada, pelo SOLTEC/UFRJ, uma
Rede Internacional de Estudos e Projetos sobre
a Sustentabilidade da Pesca Artesanal
Profissional, que já possui diversos parceiros no
país e no exterior.
CONCLUSÕES
O projeto apresentado é um exemplo da nova
movimentação da UFRJ de procurar desenvolver
o Estado do Rio de Janeiro através da
interiorização. Por meio da presença do NUPEM,
da Escola Municipal de Pescadores e do projeto
Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em
Macaé a Universidade se estabelece no município
buscando contribuir para o seu desenvolvimento
social.
Com a PAPESCA, esperamos contribuir para
soerguer a atividade pesqueira e valorizar sua
cultura e seus trabalhadores. Baseados numa
estratégia de desenvolvimento local com
cidadania, estimulando a emancipação e a
participação popular no desenvolvimento de
políticas públicas, lutamos junto com a população
para reinserir a pesca como atividade econômica
de primeira importância em Macaé.
BIBLIOGRAFIA
ADDOR, Felipe, 2006. “A Pesquisa-Ação na
Cadeia produtiva da Pesca em Macaé”: Uma análise
do percurso metodológico. Dissertação de Mestrado,
PEP/COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro.
LIANZA, Sidney, ADDOR, Felipe, 2005,
Tecnologia e Desenvolvimento Social e Solidário. 1 ed.
Porto Alegre, Editora UFRGS.
LIANZA, Sidney et al. “A Pesquisa-Ação na
Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé”. In:
LIANZA, Sidney; ADDOR, Felipe (Orgs.).
Tecnologia e Desenvolvimento Social e Solidário. Porto
Alegre, Editora URGS, no prelo, 2005.
30
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Outubro de 2006
MORIN, Andre. Pesquisa-ação Integral e Sistêmica –
uma antropopedagogia renovada. THIOLLENT,
Michel Jean-Marie (trad.). DP&A, Rio de Janeiro,
2004.
ROBERT, F. Instrumentos de formulación y evaluación
de emprendimientos de economía social. Documento
metodológico y guías conceptuales para el ciclo
de proyecto. Material elaborado para o projeto
de pesquisa “Los emprendimientos sociales de la
economía del trabajo”, ICO/UNGS, 2004.
SOLTEC/UFRJ, 2006. Relatório Final do Projeto
Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca,
financiado pela Financiadora de Estudos e
Projetos – FINEP/MCT. Disponível em http://
www.soltec.poli.ufrj.br/RelatorioFINEPVFinal.pdf. Acessado em 10/11/2006.
THIOLLENT, Michel, 1996, Metodologia da
pesquisa-ação. 7ª ed. São Paulo, Cortez.
THIOLLENT, Michel Jean-Marie. et al., 2000.
Metodologia e Experiências em Projetos de Extensão.
EdUFF, Niterói.
SITES SUGERIDOS
www.soltec.poli.ufrj.br
(Footnotes)
1
Informações retiradas do sítio da Prefeitura de
Macaé:
www.macae.rj.gov.br
.
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ISSN: 1808-6535
Publicada em Outubro de 2006
Anexo: tabela 1 – Votação dos Entraves da Cadeia Produtiva da Pesca
Eixos Entraves
Meio Ambiente
Pesca Predatória
Inconsistência no Período do Defeso
Poluição do Rio Macaé
Poluição do Mar
Falta de Conscientização Ambiental
Poluição das Lagoas
Sobre-Pesca
Votos
5
5
4
4
3
2
0
Educação/Cultura
Desorganização dos pescadores
Analfabetismo
Desunião das instituições
Falta de Visão de negócios
Falta de habilidade no uso de equipamentos
Falta de profissionais para trabalhar com fibra de vidro
7
6
4
0
0
0
Crédito/Legalização
Problemas no Recebimento do benefício do Defeso
Difícil acesso ao crédito
Barcos/estaleiros irregulares
Barcos industriais grandes pescando na costa
Falta de Carteira da Pesca
8
6
3
3
1
Infra-Estrutura
Falta de Fábrica de Gelo
Não beneficiamento do pescado
Sem boa infra-estrutura para construção de barcos
Falta de estrutura para estocagem de Madeira
Falta de um Frigorífico para os pescadores
Falta de um transporte refrigerado para pescado
Cais impróprio para atividade
9
6
4
2
2
0
0
Comercialização/Fornecimento
Alto custo de óleo, rede, e outros insumos
Desarticulação dos compradores
Pouco serviço aos construtores
Dificuldade de compra de madeira
Alto custo para venda de pescado CEASA
Número excessivo de pescadores
9
6
3
2
2
0
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ISSN: 1808-6535
Publicada em Outubro de 2006
Artigo
Catadores de papel: trabalho, significado e gestão de négocios
- Uma experiência com os catadores de papel e resíduos sólidos da
APARES – Juiz de fora/MG
Sônia Regina C. Lages, Esther Lopes Karlburger e Renata Delgado*
Resumo
O presente trabalho parte de uma pesquisa desenvolvida por professores e alunos da Faculdade
Estácio de Sá em Juiz Fora, há dois anos, com os catadores de papel da APARES - Associação dos
Catadores de Papel e Resíduos Sólidos de Juiz de Fora, subsidiada pela AMAC - Associação de
Apoio Comunitário da Prefeitura Municipal. Nosso trabalho consistiu em buscar junto àqueles atores,
o significado que a atividade que realizavam tinha em suas vidas, os obstáculos que impediam o
crescimento da associação e o desenvolvimento de ações que os preparassem para a gestão de seu
negócio. A nossa intenção foi de trazer à tona o problema da exclusão social, os mecanismos
capitalistas perversos que impedem os catadores de se emanciparem economicamente e socialmente,
e através da pesquisa-ação, alerta-los para a necessidade de conhecer e praticar os novos modelos de
gestão de negócios, como forma de garantir sua inclusão social e permanência do mercado de trabalho.
Palavras-chave: Catador de papel, Associação, significado do trabalho, gestão de negócios
Abstract
The present study arises from a research developed by professors and students of the Faculdade
Estácio de Sá, from Juiz de Fora, along the last two years, whose subject was the paper gatherers of
APARES - Associação dos Catadores de Papel e Resíduos Sólidos de Juiz de Fora -, subsidized by
the municipality through AMAC - Associação de Apoio Comunitário da Prefeitura Municipal. Our
work was to search, among those people, the meaning which the activity thy did had in their lives,
the obstacles which impeded the associations growth and the development of actions which would
prepare them for their business management. Our goal was to manifest the problem of social exclusion,
the perverted capitalist mechanisms which hinder the economic and social emancipation of the
gatherers, and, throwgh action-research, warn them about the necessity of knowing and practicing
new business management models, as a way to assure their social inclusion and their continuation in
the work market.
Key-words: Paper gatherer, association, meaning of work, business, management
1.
INTRODUÇÃO
O trabalho constitui e explica grande parte
da sociedade capitalista. Os processos de
socialização, a construção de identidades, as
formas de dominação e resistências, os
mecanismos de inclusão e exclusão, seja na
área da educação, da política, da economia,
ou quanto à discriminação das minorias étnicas
e da desigualdade dos direitos entre os homens
e as mulheres, têm origem nas situações
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
laborais e nas relações sociais estruturadas na
atividade produtiva.
Assim, o trabalho, como ato concreto,
individual ou coletivo, é por definição, uma
experiência social. Seja ele opressivo ou
emancipador, tripalium (tortura) ou prazer,
alienação ou criação, salutar ou doentio, em
todas as suas ambivalências, ele não se limita
à jornada laboral, mas repercute sobre a
totalidade da vida em sociedade (CATTANI,
1996), engendrando significados e sentidos de
existência.
A trajetória desses significados tem um
conteúdo bastante perverso quando o olhar
se dirige para os países que foram colonizados
de forma predatória pelo empreendimento
mercantilista europeu, como os da América
Latina. Inicialmente, a cultura indígena foi
considerada como incapaz de produzir, sendo
associada à preguiça, ao pecado e ao atraso, e
por isso, sob o peso das armas e da ideologia
euroetnocentrica, foi em sua grande
totalidade, destruída. A seguir, o problema da
falta de braços levou à nódoa da escravidão e
ao concurso dos migrantes, durante mais de
quatro séculos e meio. Especificando o caso
brasileiro, as conseqüências desse tipo de
colonização deixaram marcas profundas, claras
e visíveis nos dias de hoje – a marginalização
dos negros e dos seus descendentes, os
colocam fora do mercado de trabalho, ou
ganhando
salários
menores,
ou
desempenhando atividades de mais baixo
status social. (GAMBINI, 1998).
No caso do Brasil, a partir de 1980, o país, já
industrializado e urbanizado passou a viver um
problema inverso. Em vez de faltarem braços,
a questão passou a ser a falta de emprego para
os que queriam trabalhar. A partir da década
seguinte, anos e anos de baixo desempenho
econômico
foram
aumentado,
progressivamente, o número de pessoas que
não conseguem emprego. Além desse baixo
desempenho econômico, surge uma grande
transformação na estrutura administrativa e
tecnológica das empresas: é nula a criação de
empregos
industriais;
modifica-se
profundamente a organização dos processos
Publicada em Outubro de 2006
fabris; altera-se o perfil de habilidades,
educação e qualificação dos trabalhadores;
enfraquece-se a base sindical organizada;
aprofunda-se a automação on-line, flexível e
abrangente; poupa-se o capital de giro com a
minimização dos estoques; enxuga-se o
sistema de administração das empresas, com
a supressão de níveis hieráquicos e com as
terceirizações; articulam-se redes eletrônicas
de suprimento com fornecedores e
distribuidores. (BARELLI, 2003). As
conseqüências em relação ao número de
empregos são evidentes. Enquanto no
paradgma da Segunda Revolução Industrial a
maior produção significava empregar maior
número de trabalhadores, inaugura-se agora a
época do crescimento sem emprego. No caso
do Brasil, lembra Barelli, ficamos só com o
“desemprego”, porque também não houve
crescimento.
O desemprego amarga a vida de muitos
brasileiros, e tanto pior quando se trata
daqueles literalmente excluídos do sistema: os
sem educação e qualificação profissional, os
sem teto, os sem condições mínimas de
sobrevivência, os sem assistência médica, os
sem proteção do Estado. A falta de vínculo
empregatício gera salários menores, falta de
proteção legal e a ausência da contagem do
tempo de aposentadoria. Inseridos neste
espaço de segregação social, é que se
encontram as pessoas que exercem a atividade
de catar papel nas ruas, objeto do presente
estudo. Assim, a pobreza e a necessidade de
manutenção da dignidade na miséria, levam à
*Sônia Regina C. Lages: psicóloga, especialista, mestre e doutoranda em
Psicossociologia pela Univiversidade Federal Rio de Janeiro. Docente na Faculdade
Estácio de Sá e em outras instituições privadas de ensino superior, em Juiz de
Fora/MG. O presente artigo faz parte de um projeto maior que é de montar um
Planejamento Estratégico para a Associação de Catadores de Papel da Cidade, que
enfrenta sérios obstáculos, colocando em risco sua sobrevivência. Essa etapa já
está sendo desenvolvida esse ano, com a parceria da Faculdade Estácio de Sá/Juiz
de Fora, SEBRAE/JF, AMAC (Associação Municipal do Cidadão de Rua e de
outras empresa da cidade).
Esther Lopes Karlburger: discente, aluna do 8. período do curso de
Administração da Faculdade Estácio de Sá/Juiz de Fora
Renata Delgado: discente, aluna do 8. período do curso de Administração da
Faculdade Estácio de Sá/Juiz de Fora
Professores (s) Colaboradores (as): Adriana Viscardi, Daniela Borges L
Souza, Francisco de Assis Araújo, Luciana Lima Lusi Campos, Marcelo Rother
de Souza,Walter Tadeu Ribeiro e Isabela M. Veloso.
Correspondência deverá ser enviada para:
Sônia Regina C. Lages, Rua do Imperador, 342 – Condomínio Bosque Imperial
– Bairro São Pedro. Juiz de Fora/MG
Telefone: (32) 3214.3931 e-mail: [email protected]
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
construção de estratégias de sobrevivência,
fazendo com que o individuo ou o coletivo
procurem formas de inserção social.
Mas, por mais maciça que seja a realidade
dos poderes e das instituições e sem alimentar
ilusões sobre seu funcionamento, De Certeau
(1990) sempre discerne um movimento de
resistências, as quais fundam por sua vez
microliberdades, que utilizando recursos
insuspeitos, deslocam a fronteira da dominação
dos poderes sobre a multidão anônima. O autor
dá atenção à liberdade interior dos que não se
conformam com o que é organizado e instituído.
Ele acredita na criatividade do mais fraco, que
através de táticas é capaz de escapulir do poderes
vigentes. Esses atos de resistência se concretizam
através de uma prática no cotidiano de pessoas
comuns, a que De Certeau dá o nome de artes de
fazer. Arte no sentido de burlar, de cambiar, de
ser capaz de viver em áreas fronteiriças, em
lugares transitórios. São as astúcias das pessoas
comuns que invertem a ordem a seu favor, que
De Certeau irá estudar. Interessa a ele as redes
de uma antidisciplina que vão sendo tecidas no
dia-a-dia.
Segundo o autor, o racionalismo ocidental não
se dá conta que as pessoas ainda hoje podem
agir através de um modelo que se remonta às
astúcias milenares dos peixes disfarçados ou
dos insetos camuflados. Escondida sob o
rótulo de consumidores, de dominados, a gente
ordinária vai construindo, nas práticas do
cotidiano, mil maneiras de empregar o produto
que é imposto pelas classes dominantes.
Na fila dos que lutam pela sobrevivência,
a partir da construção de táticas, que como disse
De Certeau, conseguem transformar a própria
realidade, e, aqui, literalmente, a partir do que as
classes consumidoras descartam, encontra-se o
catador de papel que apesar de inserido na
atividade da coleta de lixo urbana, são
freqüentemente explorados. Sem informação,
desprovidos de representação legal, sem
reconhecimento de categoria profissional, sem
financiamento das empresas de crédito, vendem
sua mercadoria para intermediários que os
vendem às indústrias de reciclagem (GROSSI,
1998).
Publicada em Outubro de 2006
Na contra-mão dessa situação, iniciativas
da sociedade civil organizada e do poder público
apoiam o trabalho dos catadores de papel, como
é o caso da APARES, que recebe o apoio da
AMAC – Associação Municipal de Apoio à
Comunidade, órgão do governo municipal.
O desafio de construir e consolidar
direitos de cidadania e particularmente os direitos
sociais, para uma população que vivendo abaixo
da linha da pobreza, encontra-se hoje frente às
perversas ameaças da modernidade capitalista
tardia e da globalização, que cada vez mais a
desloca para a periferia do sistema, gerando uma
dura realidade que exige reflexões e muitas ações.
Assim, o cooperativismo, o associativismo,
surgem como iniciativas solidárias que se
apresentam como um espaço de vivência e valores
não hegemônicos, bem como, apresentando a
capacidade de gerar efeitos equivalenciais, se
tornando, dessa forma, uma ação estratégia
contra a miséria e a pobreza. (CORTIZO,
OLIVEIRA, 2004).
O que no entanto se percebe, é que dentro
de pouco tempo, obstáculos vão se configurando
e dificultando o avanço, o crescimento e
desenvolvimento dessas iniciativas, o que é
compreensível e natural já que elas estão inseridas
dentro de um modelo econômico, que hoje, como
em nenhum momento da história, tem como
palavra de ordem, a competição, como forma de
sobreviver num mercado extremamente mutante.
Tal situação foi observada na APARES.
Se por um lado, a associação possibilita a
organização um espaço que dá conteúdo prático
à luta dos catadores que sobrevivem do que é
descartado pela sociedade (LAGES, 2005),
possibilitando inclusão a social e a elaboração de
novos sentidos de subjetividade e de identidade
social, por outro lado, as dificuldades encontradas
colocam em cheque sua sobrevivência.
2 PERFIL E ESTRUTURAÇÃO DA
APARES
Com o objetivo de organizar os catadores de
papel da cidade de Juiz de Fora, em torno de
uma Associação, maneira essa de proporcionarlhes maior autonomia, melhores condições de
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
trabalho e inserção social, a AMAC Associação Municipal de Apoio Comunitário
de Juiz de Fora apoiou a formação da
APARES, em 1998.
Coube à AMACJF: ceder as instalações, o
galpão, que possui em torno de 600 m2, onde
os catadores fazem a triagem do lixo; a
responsabilidade pelo pagamento dos salários
de um contador, de um auxiliar administrativo
e de um prensista; a cessão de equipamentos
– prensa e balança; a doação de uma cota de
alimentos básicos utilizados no almoço dos
associados; e, ainda, a doação de uma cesta
básica mensal a cada catador. A AMAC
também garante creche para os filhos dos
catadores e encaminha os adolescentes para
os programas a eles destinados, por esse órgão.
Segundo Regina Caeli de Souza Cunha,
responsável pela desenvolvimento do
programa, a idéia inicial era que dentro de
algum tempo a APARES se tornasse
autosustentável, desatrelando-se da AMAC.
Mas isto não aconteceu. A APARES é
totalmente depende daquele órgão público. O
valor gerado pela atividade dos catadores não
é suficiente para arcar com as despesas. Além
disso existem sérios problemas de infraestrutura no galpão, o que já propiciou um
incêndio no local (o gasto com a restauração
foi feita pela AMAC) e o mobiliário é bastante
precário. E, ainda, o produto disponível para
a coleta dos associados tem diminuído devido
à competição ser hoje bem forte, uma vez que
outras classes sociais mais favorecidas
disputam com o catador a coleta do papel na
cidade, fato esse que denuncia o
empobrecimento das pessoas de forma geral.
No entanto, o fato mais agravante é que os
associados não possuem condições de se
tornarem os próprios gestores do seu negócio.
Tal situação é conseqüência do baixo índice
de escolaridade e da dificuldade dos coletores
na adoção de novos comportamentos, no que
se refere à falta de coesão do grupo devido a
lideranças negativas que acaba por dificultar
a internalização de valores éticos e de um
Publicada em Outubro de 2006
efetivo trabalho de equipe em prol de uma
meta única - o trabalho cooperativo.
A falta de registro da Associação é também
um impedimento de crescimento. Segundo G.,
32 anos, sete anos coletando papel nas ruas:
Nós temos muitas dificuldades
porque a Associação não é
registrada, e se a APARES fosse
registrada, para nós seria melhor,
porque muitas pessoas deixam de
doar o material por ela não ter o
registro. Igual à Caixa Econômica
Federal, nós já conversamos com
o pessoal de lá, eles tentaram fazer
um convênio com a gente para
doar o papel. Ta escrito e tudo,
mas eles estão esperando o registro
da APARES. Assim também,
outras empresas para fazer a
doação precisam desse registro, e
nós não temos.
O cooperativismo pressupõe igualdade,
prudência ecológica e solidariedade, mediado
por princípios de justiça, democracia e autogestão. É dessa forma que o cooperativismo
se caracteriza como uma possibilidade de
inclusão no mercado de trabalho, mas
principalmente como um espaço de
politização, de aprendizado e de construção
coletiva de cidadania. (CORTIZO, M. Del
Carmem, OLIVEIRA, Adriana L., 2004). Mas
essa consciência cooperativista é difícil de ser
construída, uma vez que a cultura do “jeitinho
brasileiro”, que preconiza a esperteza, a
malandragem, a ação através de estratégias
que fogem aos padrões morais foi fortemente
internalizada no decorrer de mais de quinhentos
anos.
A APARES conta hoje com quarenta catadores
capacitados para a atividade, mas somente
dezessete freqüentam a associação
sistematicamente. Essa capacitação é um prérequisito para que o catador possa se associar.
Ela consiste num curso de quarenta horas em
36
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
que são abordados temas que envolvem
habilidades básicas, específicas e de gestão.
viria de uma infraestrutura que permita a
venda dos resíduos diretamente às fábricas,
sem a mediação dos depósitos.
A Associação segue os princípios do
cooperativismo, se organizando em cinco
comissões: a de coordenação, a de fiscalização,
a de cultura e lazer, a de meio ambiente o
conselho fiscal, cargos esses que são ocupados
pelos catadores.
3 METODOLOGIA
A pesquisa foi realizada através de duas
etapas. Na primeira, o método empregado foi
o etnográfico, realizado durante os meses de
agosto a dezembro de 2005, e utilizou a
entrevista aberta, com o uso de uma câmara
de vídeo. O objetivo geral era de detectar o
significado do trabalho para os associados,
considerando a atividade que realizavam e
seus reflexos em suas vidas pessoais e pública:
a reação das pessoas da rua quanto à sua
presença; dos motoristas; do comércio local,
buscando, ainda, compreender o sentido dos
diferentes significados que os associados
internalizavam a partir do discurso ecológico,
promovidos pela Amac, e de que forma a
atividade contribuía com a melhoria da autoestima.
Dentre os dezessete associados, com faixa
etária entre dezoito a sessenta anos e na sua
quase totalidade, analfabetos, a maioria são
homens. Com o trabalho chegam a ganhar, em
média, de meio a um salário mínimo. Esse
valor sofre variações devido à dinâmica
sazonal influenciada pela oscilação do
consumo da população. Em épocas do ano
marcadas por um comércio mais intenso ele
aumenta, no entanto a produção diminui
consideravelmente no período de chuvas,
quando a atividade não é desenvolvida, pois
não se pode vender o papelão molhado. Nesses
períodos, a situação dos catadores se agrava,
pois se não coletam o papel nas ruas, eles não
têm o que vender, e assim não ganham nada.
A segunda etapa, realizada de dezembro de
2004 a dezembro de 2005, teve como método
a pesquisa-ação, que objetivou levantar os
dificultadores relacionados à administração da
Associação, e a partir daí, desenvolver
treinamentos focados em tais dificuldades. Os
treinamentos foram realizados por alunos e
professores do curso de Administração da
Faculdade Estácio de Sá, que receberam os
treinamentos adequados para que pudessem
estar ministrando os cursos a um público, que
como já foi dito, é na sua grande maioria
analfabeto.
A APARES sofre a concorrência dos outros
coletores que não são associados e que
vendem os produtos direto para os depósitos
de papel; a concorrência da própria população
que também separa e vende o material
selecionado (latinhas, papelão, pet); a
concorrência do DEMLURB – Departamento
de Limpeza Urbana do Municípo, que com
seus caminhões recolhem o lixo que foi
separado e o encaminha para a Usina de
Triagem do município; e principalmente a falta
de consciência ecológica da população que
ainda não se habituou a separar o lixo
doméstico em resíduos secos e os úmidos.
A falta de um transporte próprio, a máfia
dos donos de depósito da cidade que além de
explorar o trabalho dos catadores, contribuem
de forma pontual para o com o alcoolismo de
muitos coletores e para a manutenção de uma
cultura perversa em que a trapaça media a
relação que deveria ser profissional, são outros
sérios problemas que aquelas instituições
enfrentam. A solução para tantos problemas
Publicada em Outubro de 2006
A seguir, então, estaremos relatando o
desenvolvimento da pesquisa.
3
A DINÂMICA DO TRABALHO, A
ROTINA E O SIGNIFICADO
SOCIAL DO LIXO
Diz Roberto DaMatta (1987) que “casa” e
“rua” designam entidades morais, esferas de
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
ação social, províncias éticas dotadas de
positividades,
domínios
culturais
institucionalizados, capazes de despertar
emoções, reações, leis, orações, músicas e
estéticas. Contrapondo a rua à casa, o autor
nos diz que na rua passamos por indivíduos
anônimos e desgarrados, quase sempre
maltratado, sem voz. Somos na rua
“subcidadãos”, e por isso nosso
comportamento é sempre negativo. Assim,
joga-se lixo na rua, desrespeita-se o sinal de
trânsito, depreda-se a coisa comum, não se
tem vergonha da desordem. A rua é lugar do
povo, da massa, da prostituição, da
malandragem, da anomia.
E é nesse espaço que as pessoas são
ninguém, que o excluído circula e deixa à
mostra uma ferida social: o Brasil progrediu
dos excluídos necessários (que o capitalismo
dizia ser temporário e em prol de um futuro
que seria bom para todos) aos excluídos
desnecessários, forjando atores incômodos
politicamente, ameaçantes socialmente e
d e s n e c e s s á r i o s
economicamente.(NASCIMENTO, 1995). Se
no Brasil colônia, índios e negros se
constituíam como mercadoria disponível e
necessária, o modelo de desenvolvimento
adotado pelo país acabou por concentrar os
níveis de carência e privação cada vez mais
aos bens imprescindíveis à sobrevivência física,
como salienta Denise Juncá (2004, p.108).
Mas se os excluídos que perambulam à
procura de sobrevivência, são vistos, como
disse DaMatta sobre a lógica da rua, como
entes perigosos, um bando de gente suja com
propensão ao alcoolismo, à vagabundagem,
candidatos ao banditismo, o que se verifica é
a reapropriação, pelos catadores de papel,
desse espaço de anomia, conferindo-lhe
significados de dignidade e honestidade
através do trabalho que realizam. As
associações a que pertencem são em grande
parte responsáveis por essa inversão de
significados,
quando
através
da
conscientização da importância da preservação
e do cuidado com o meio ambiente, engrandece
Publicada em Outubro de 2006
e dá sentido ao trabalho do catador de papel.
Como diz BM., 24 anos:
Muitas pessoas critica a gente, fala
que tipo assim: que pessoa porca,
fica mexendo no lixo, mas mal ele
sabe que se não fosse a gente era
arriscado já ter cortado mais de
não sei quantas árvores, e que hoje
em dia não é preciso de cortar
porque tem a reciclagem,
entendeu? Igual a gente fez um
curso aqui e eles levou a gente pra
ver a importância que é nosso
serviço, porque se não for a latinha
amassada vendida pra eles derreter
e fazer outra, pra mandar para o
comércio de novo, eles iam
gastam muito
o dobro de energia, eles
economizam com o nosso serviço.
O discurso da consciência ecológica,
promovido pelas associações de catadores, é
internalizado pelos associados, assim como
possibilita uma nova linguagem, mais
conectada com o mundo do capital: o lixo é
um produto, que catado e reciclado, faz a
empresa economizar e ter mais lucro.
Z., 44 anos, também inverte sua posição social
através de seu trabalho com o lixo:
Eu sinto muito orgulhosa do que
eu faço, você não trabalha com
reportagem, você não se sente
orgulhosa do que você faz? Uma
dentista não sente orgulhosa de ser
dentista? Assim a mesma coisa é
eu. Fico muito orgulhosa de catar
papel, porque primeiro é o meu
sustento, sustento dos meus
filhos, porque eu não tenho
pensão, não tenho salário, não
tenho nada, eu vivo disso, eu vivo
38
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Outubro de 2006
de papel. Segundo é uma
experiência de vida, porque hoje
o catador de papel é o último
serviço na lista de escala do
mundo, mas se o brasileiro reparar
na sociedade, no meio ambiente,
ele é o primeiro serviço. Porque
sem o ar você não respira, sem uma
árvore, sem um rio, sem uma
cachoeira, sem a chuva. E para
que a chuva? A chuva tem que ter
o rio, o rio tem que ter rede de
esgoto. E se você deixar o lixo
todo ir para a enchurrada, para a
rede de esgoto, pras mata, como
você vai poder amanhã ser um
cidadão brasileiro? (...) Então eu
me sinto muito orgulhosa de
passar na sua casa para catar o seu
lixo.
Coletar resíduos sólidos é uma profissão,
que gera o sustento da família. Ainda nas
palavras de G.:
A APARES participa efetivamente
da individuação dos catadores de resíduos
sólidos. Eles se vêem diferentes dos demais.
São treinados, qualificados para essa
atividade:
Assim como o trabalho dos catadores
oferece o sustento da família, orgulho por ser
trabalhador e estar inserido no mercado de
trabalho, ele também é fonte de discriminação
social. Ainda na fala de G.:
A Associação é diferentes dos
outros depósitos aí em que os
catadores vão pra rua, e aí chega
lá e rasgam o lixo todinho, aí o
pessoal fica assim com o pé atrás
com o catador. Por isso é que nós
temos trainamento. A gente
aprende e ensina a não rasgar o
saco de lixo, a espalhar o lixo, a
não beber. A gente aqui não aceita
que o catador beba na hora do
serviço, não aceita que ele saia
fazendo sujeira por aí. Aqui
mesmo na frente da Associação.
Quando a gente vê que a porta ta
suja, nós vai e limpa. (G, 32 anos).
(...) o jeito que as pessoas me
olham... Às vezes você está indo
com o carrinho, as pessoas
atravessam para o outro lado da
rua, isso eu já passei muito.
(...) é muito difícil você criar seus
filhos, entendeu? Se você fica em
casa, você não tem como dar uma
alimentação pra eles direito. Eu
não tenho. Eu não dou tudo pra
eles, tudo que eles quer, mas pelo
menos eu não deixo faltar pra eles
o leite, o pão de manhã. Às vezes
meus filhos pedem iogurte, eu dou
eles.Catar papel é uma profissão
honesta. Você está trabalhando,
não está tirando nada de ninguém.
Só disso aí já fico orgulhos, saber
que estou tirando meu sustento do
meu próprio suor.
Ou, ainda, como fala NN, 44 anos, três
anos da rua coletando papel:
Ainda tem certas pessoas que
tratam a gente com descaso, né?
Ainda não tem o respeito que o
catador de papel deveria ter. Eles
acham que o catador de papel é a
mesma coisa que o lixo.
Mas se sentem na pele a discriminação que
sofrem por uma parcela da sociedade, uma
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
outra já enxerga o catador de papel como
cidadão, trabalhador:
Mas tem muita gente que respeita,
que já separa o papel pra gente, já
chama e entrega o papel pra gente.
Tem muita gente hoje que já se
conscientizaram, que o trabalho
do catador de papel é um serviço
pra sociedade.
Publicada em Outubro de 2006
redes tão apertadas que é impossível sair fora
delas, mas que a partir das referidas táticas, o
vencido da história pode construir um campo
em que ele possa sobreviver. Podemos pensar,
a partir das falas dos catadores, e a partir de
De Certeau, que o cooperativismo é também
uma maneiras de colocar na agenda a
reivindicação de seu status de cidadão, e em
suas vidas, a esperança.
4 ADMINISTRANDO A APARES
E, como diz G., 32 anos:
Mas tem muitas pessoas que
passam perto de você e te dá mais
orgulho ainda de você estar
catando seu material, porque às
vezes uma pessoa chique,
importante, passa ali e pára, te dá
atenção,
ou
então
de
cumprimenta. Só isso daí faz você
se sentir mais feliz de estar
trabalhando, e você vê que aquela
pessoa está se importando.
Laços de solidariedade e união são
construídos, o sentido de família é
reconstituído, através das cooperativas. Diz
W. 22 anos que saia para ajudar a mãe a catar
papel quando tinha oito anos de idade:
Aqui é uma casa, cheio de irmão,
ora cê briga com um, cê briga com
outro. Tem hora que cê ta bem
com um, num tá bem com o
outro, mas se um passar mal lá
fora, todo mundo vai atrás dele
pra ajudar. (NN, 44 anos)
Como foi visto anteriormente, De Certeau
(1994) afirma que a cultura popular encontra
táticas para desfazer a ordem estabelecida, e
aqui no caso, a da miséria e da exclusão social
e econômica. E, ainda, que o sistema constrói
Apesar de realizar negócios comerciais, não
tendo como finalidade principal a obtenção
do lucro, as organizações associativistas que
integram o emergente terceiro setor têm como
objetivo apresentar respostas e alternativas ao
problemas de nossa época, sobretudo àqueles
decorrentes das rápidas mudanças sociais e
tecnológicas (DOMINGUES, CRISTOFOLI,
2004), que acarretam para as populações mais
pobres o alto risco de sobrevivência, e o
abismo social.
Os novos paradgmas da globalização e
todas as suas conseqüências, aterradoras para
grupos sociais desfavorecidos sócioeconomicamente, colocam na ordem do dia
uma série de novos comportamentos
necessários para fazer frente às novas
tecnologias, à aceleração do tempo, à
desfragmentação do espaço e das
coletividades, ao crescimento do
individualismo, provocados pelas novas
formas de comunicação, transporte e
produção. (BAUMANN, 1998).
No entanto, o que se observou na
APARES foi o total despreparo dos seus
associados para essa nova visão: de que o
trabalho que realizam é um negócio que precisa
ser gerido de acordo com alguns pressupostos
mercadológicos e de gestão de empresas, sem
a perda do seu caráter solidário e
cooperativista.
Dentre as dificuldades levantadas,
destacamos algumas delas, que foram objeto
de nossa pesquisa-ação, que se refere à baixa
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
produtividade decorrente, devido a vários
fatores: falta de tecnologia e informação; falta
de um planejamento estratégico; significativa
deficiência na gestão de pessoas; modelo
paternalista de gestão administrativa;
lideranças desmotivadas; desconhecimento
total dos processos contábeis; inexistência de
espírito empreendedor; forte expectativa
quanto ao apoio do poder público; falta de
controle de qualidade.
A partir de tal diagnóstico, foi realizado
uma série de treinamentos de curta duração, que
se desdobraram em quatorze módulos, na forma
de mini-cursos, cada um com carga horária
específica, variando entre quatro a oito horas/
aula cada curso. Os treinamentos foram
ministrados pelos professores da Faculdade
Estácio de Sá e pelos discentes, participantes da
pesquisa. A maior parte dos mini-cursos foram
realizados nas dependências da Faculdade
Estácio de Sá, e outros, no próprio espaço da
APARES.
Face à pouca quantidade de horas destinadas
a cada módulo, queremos enfatizar que os
treinamentos oferecidos, tiveram o objetivo de
abrir um espaço de discussão para os associados
da APARES, através de mediadores (monitores
e professores), que pudessem contribuir de forma
positiva com a construção e ampliação de uma
consciência crítica e pela busca de soluções para
as questões levantadas. Os mini-cursos se
organizaram da forma que segue, e ao final dos
mesmos, todos os membros participantes
receberam Certificado de Conclusão de Curso,
emitido pela Faculdade Estácio de Sá: Cultura
Brasileira; Globalização; Liderança e Formação
de Equipes; Ética; Marketing Pessoal;
Relacionamento Interpessoal; Português através
de imagens; Técnicas de compra e venda; Meio
Ambiente; Gestão de Negócios; Noções de
Informática; Noções de Contabilidade;
Planejamento Estratégico; Noções de Marketing.
Os dificultadores que se apresentaram foram
mais constantes nos cursos técnicos, como o de
Contabilidade e de Informática. Foi visível a
dificuldade da grande maioria dos associados de
compreender a linguagem contábil e virtual.
Muitos dos membros tinham dificuldades em lidar
com as mãos e os dedos no manuseio do mouse,
demonstrando dificuldades bastante primárias
referentes à educação, no que se refere ao
Publicada em Outubro de 2006
movimento de pinça que habilita a criança a
segurar um lápis.
A Contabilidade, apesar de ter sido
considerada “difícil”, conseguiram compreender
que muitos dos processos contábeis que se faz
hoje na APARES, não estão corretos, precisando
serem revistos.
Os cursos relacionados ao Marketing, à
Vendas, ao Meio Ambiente, à Gestão de
Negócios, à Cultura Brasileira à Globalização, e
ao Português através das imagens, deixaram os
professores e monitores surpresos, pela
compreensão que demonstraram sobre os
assuntos. Tal fato tem lógica, uma vez que sem
saber nomear conceitos e teorias administrativas,
eles têm a prática, no seu cotidiano.
Demonstraram estar sintonizados com o processo
histórico, econômico e cultural que colocaram a
grande maioria da população brasileira às margens
do sistema.
A questão considerada mais grave foram as
relativas ao comportamento organizacional –
questões referentes à liderança, ao trabalho em
equipe, e, principalmente à ética. Verificou-se
que uma percepção bastante paternalista da
associação, em que alguns grupos tentam se
beneficiar, inclusive alterando o peso dos
produtos na balança, para mais, quando se trata
dos membros que são considerados “de dentro”
do grupo. Existe também desconfianças quanto
às lideranças do grupo, que apoiam tal situação e
nada faz para modifica-la, até mesmo porque elas
se beneficiam desse esquema. As equipes
trabalham sem metas, sem objetivos, sem
qualquer tipo de cobrança. O ambiente
organizacional é mantido sob uma certa tensão,
que apesar de haver um discurso de igualdade,
ele não acontece na prática. A comunicação é
feita através da “rádio peão”, ou seja, um
permanente clima de fofoca predomina no
ambiente de trabalho.
Mais recentemente, foi necessário que a
AMAC colocasse um funcionário da Prefeitura
para fiscalizar o processo de pesagem dos
produtos, fato decorrente dos enormes desvios
que estavam ocorrendo.
Tais atitudes são compreensíveis, face à
miséria em que vivem, mas é também um forte
impedimento para que a Associação mantenha
seu caráter cooperativista e para que ela possa
crescer e se tornar auto-sustentável.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
O curso de Planejamento Estratégico foi
recebido com grande entusiasmo, pois os
associados vislumbraram a possibilidade, de a
partir da própria Associação, se movimentarem
em busca de sua ampliação e desenvolvimento,
uma vez que até então sempre aguardaram a
iniciativa da AMAC e da Prefeitura Municipal para
mantê-los.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que a globalização e o acelerado
avanço tecnológico, trouxeram consigo uma série
de transformações, quanto à natureza do
trabalho, exigindo adaptação do mundo – tanto
nos países ricos como nos países pobres. No
entanto, este último foi mais gravemente atingido
por essa nova fase do capitalismo, que sofre com
a falta de emprego e proteção do Estado, vendo
crescer vertiginosamente o trabalho informal, o
que significa falta de seguridade e proteção social
e queda na renda.
Mediante
esse
quadro,
o
cooperativismo surge como prática de resistência,
seja à exclusão do mercado de trabalho, seja à
exclusão cultural e social. No entanto, como foi
visto, as dificuldades de manutenção da
APARES são muitas. Elas se reúnem num
conjunto de entraves que se referem à falta de
consciência da população que ainda não se
habituou a separar o lixo orgânico do lixo seco,
reduzindo a coleta seletiva; à falta de um espaço
físico maior que permitiria a inclusão de novos
associados; à concorrência desleal dos depósitos
de papel da cidade e a concorrência de outros
catadores de papel da cidade; à falta de vontade
política do governo municipal em investir
naquelas entidades, tornando-as parceiras do
órgão de limpeza urbana da cidade, dentre outros.
Por outro, como transparece na fala dos
catadores, a realidade é apropriada com novos
significados, a partir de sua integração à
associação. O discurso de conscientização
política, de cidadania, o discurso ecológico,
veiculados através daquelas instituições, assim
como os cursos de capacitação oferecidos aos
associados, e, ainda, as redes de solidariedade
tecidas entre os mesmos, acabam por construir
um novo cenário em que os catadores de papel
Publicada em Outubro de 2006
retomam seu lugar no mundo da produção
capitalista. Mais que isso, apesar de sofrerem
restrições da sociedade, os catadores interagindo
com os valores sociais do meio em que circulam,
se colocam como atores de uma linguagem que
se direciona à defesa dos seus direitos; ao
encorajamento que propicia o desafio às regras
estabelecidas; à ampliação de uma visão
individualista para uma visão coletivista do
trabalho; à explicitação das relações de poder
econômico e social; às práticas de solidariedade
e apoio emocional.
Tais ações, apesar de não terem intenção
de substituir o Estado, se configuram como
iniciativas que, articulando parcerias com a
sociedade civil tira da anomia e da fome,
pessoas antes destinadas a desaparecerem dos
espaços oficiais do sistema, restituindo-lhes
dignidade e identidade humana.
Vimos também, que no sistema
associativista, como o da APARES, é possível
inserir pequenas economias no sistema produtivo,
desde que elas estejam conscientizadas de que a
sustentabilidade da Associação depende de que
seus associados desenvolvam uma visão de que
são gestores de um negócio, e que esse negócio,
gerador do produto que vendem para o mercado,
precisa estar sintonizado com as políticas desse
mercado.
No entanto, os associados da APARES,
para que possam vir a desenvolver a visão acima
colocada, precisam de um grande investimento
que consiste na realização de parcerias que
envolvam o poder público, empresas privadas,
comunidade e Ong’s.
Tal necessidade advém de uma série de
dificultadores que têm como gênese: o processo
histórico da economia e da cultura brasileira
fundada no escravismo; o descaso do Estado
pelos desfiliados do sistema; o analfabetismo; o
lixo como cultura do descartável; a falta de
consciência coletiva e o crescente individualismo,
marcas da cultura de massa e da sociedade de
consumo, presentes hoje na sociedade.
A resposta dos associados da APARES
aos cursos ministrados, foram surpreendentes para
os monitores, face à facilidade que a maioria deles
apresentou na compreensão dos conhecimentos
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ISSN: 1808-6535
que estavam sendo transferidos. Apesar de
possuírem baixíssima escolaridade, eles possuem
uma grande experiência no mundo do trabalho.
E foi essa experiência, que serviu de instrumento
para que os fundamentos e conteúdos pudessem
ser mais facilmente absorvidos.
Acreditamos que a maior conquista dos
treinamentos realizados se refere à visão e à
conscientização que os membros da APARES
passaram a ter. Perceber a Associação como um
negócio, que deve ser bem administrado, tanto
em termos de recursos materiais como de recursos
humanos. Consciência de que a falta dessa visão
compromete a ética da Associação colocando em
risco sua sobrevivência no mercado e o respeito
da comunidade.
Um fruto concreto dos treinamentos foi
a realização de um churrasco que os associados
organizaram para levantar recursos para a
APARES. O valor arrecadado foi destinado à
concertos nas instalações do depósito, onde
funciona a associação.
O projeto continua no ano de 2006 e tem
como ação a realização do Planejamento
Estratégico para desenvolvimento e crescimento
da APARES. Ele já foi iniciado e conta agora
com a parceria da Faculdade Estácio de Sá, do
SEBRAE, da AMAC, da APARES e de outras
empresas da cidade.
Os depoimentos dos participantes dos
mini-cursos foram altamente positivos. Para a
maioria, a importância maior foi a nova visão que
conseguiram ter sobre a Associação: uma micro
empresa que tem que ser administrada com
eficiência, ser auto-sustentável, que precisa
aumentar a produtividade através da
diversificação de novos produtos, que precisa se
manter no mercado buscando novas parcerias.
Acrescentaram, no entanto, que as horas de curso
foram muito poucas, que precisavam de mais.
Mas foram dois depoimentos que mais nos
afetou. O de uma mulher catadora de papel há
oito anos, S.(52 anos):
Eu nunca pensei que um dia em minha
vida eu fosse entrar numa Faculdade, e
sentar numa cadeira assim, numa sala
assim, poder ir a um banheiro igual ao
daqui, conversar com professores que dão
aula.
E o depoimento de J. (58 anos):
Publicada em Outubro de 2006
Sempre ouvia o pessoal falando da tal
informática e quando eu cheguei aqui e
fui mexer no computador eu pensei: é ele
ou eu. Nunca vi coisa mais difícil no
mundo. Mas não dá vontade agora de
largar. Eu queria continuar aprendendo.
Bem, cidadania tem muitos significados!
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