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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 1 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Editorial Combatendo as Causas dessa Inaceitável Infelicidade Das Razões de Ser da Revista GIS Roberto Bartholo Apresentar uma revista é explicitar seu compromisso, seu pacto fundamental. E fazemos isso mediante a referência a um "velho" testemunho de D. Helder Câmara (1987:128-129): ".... Lembro-me de certa vez que me convidaram para a inauguração de uma grande empresa. Era um dia de intenso calor, mas os escritórios dos diretores tinham o conforto dos aparelhos de ar condicionado. Os garçons passavam travessas e mais travessas com garrafas de uísque. Uma, duas, muitas vezes. Eu tomava apenas refrigerantes - não por virtude excessiva, pois até gosto de um pouco de vinho, o que não me causa nenhum problema de ordem moral - e sim porque o álcool parece não gostar de mim... Em dado momento um dos convidados se aproxima e, grosseiramente, me diz: ´ora, ora Dom Hélder! Como é que vai sua demagogia? O senhor ainda tem coragem de dizer que vivemos cercados de fome e miséria aqui em Recife?´ Outras pessoas juntaram-se a nós encorajadas por aquela provocação e querendo prossegui-la. Eu respondi a todos em alto e bom som: ´vejam só! Eu estava tranqüilo no meu canto, mas vocês preferiram provocar-me... Pois eu lhes garanto que se sairmos todos nos belos carros que vocês têm, em poucos minutos eu os mergulharei num ambiente da mais terrível fome e miséria... Para surpresa minha aceitaram o desafio. Em não mais que dez minutos chegamos a uma sapucaia, um desses lugares onde os serviços públicos despejam e depois incineram, o lixo da cidade. Eu conhecia bem o local... Chamei um conhecido, que é funcionário da prefeitura e por ali trabalha. Ele tem, a propósito o apelido de Doutor Lixeira... Longa experiência lhe ensinou a ver, no meio daquele lixo todo o que ainda pode ser aproveitado como alimento. É ele quem estabelece a classificação: comida de primeira classe, que funcionários da prefeitura reservam para si mesmos; comida de segunda classe, boa ainda para as pessoas que nada têm do que viver e se alojam por ali, disputando o refugo com os urubus que ciscam como galinhas pretas; comida de terceira classe, que se coleta e guarda para vendê-la depois nas tendinhas de quarta ou quinta classe, onde qualquer coisa serve para encher a barriga dos que vivem encharcados de álcool... O Doutor Lixeira explicou tudo isso muito direitinho às dezenas de chefes de empresa que me haviam acompanhado até ali. Tive a impressão de que marcara profundamente o meu ponto, ensinando-lhes uma dura lição... Mas qual! No dia seguinte, um deles me chama ao telefone, e diz: ´Dom Hélder, que sujeito formidável aquele Doutor Lixeira! Ele tem muita iniciativa! Bem que poderíamos empregá-lo...´ Nosso compromisso com a atualidade do testemunho de Dom Hélder pode encontrar abrigo na afirmativa de um dos mais importantes economistas contemporâneos, A. O. Hirschman (1996: 257): "... o progresso político e o econômico não estão ligados entre si de modo fácil, direto, funcional". Essas conexões são construídas situacionalmente. E nesse sentido os estudos de Amartya Sen (2000, 2001) são exemplares para apontar como a igualdade formal de oportunidades deve necessariamente ser referida a um contexto situacional concreto. 2ii Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 A proposição fundamental da antropologia filosófica de Martin Buber (Bartholo, 2001) pode vir a nosso auxílio ao confrontarmos essa questão. Ela nos afirma que antes de ser um ente político ou econômico o ser humano é um ser relacional. As formas políticas e econômicas correspondem a padrões historicamente construídos de institucionalização. Percebida desde essa perspectiva, como bem aponta Hassan Zaoual (2003): "... a pobreza é irredutível a uma simples insuficiência de renda. Todo o contexto da pessoa deve ser tomado em consideração, em particular sua capacidade de ser livre de mudar, de agir sobre a situação, de participar da vida social etc. Os espaços da desigualdade são, então, múltiplos e interativos; utilidades, bens de primeira necessidade, renda, liberdade, entre outros. Todos esses espaços nem sempre estão adequadamente relacionados uns com os outros. Ao se dar privilégio a um deles, pode-se produzir efeitos contrários sobre os outros". Nos contextos situacionais concretos somos chamados a responder a apelos diversos. E a dimensão ética da resposta é a responsabilidade. Responsabilidade situada, isto é, concreta, pessoal e rigorosamente intransferível. Não apenas a retórica de uma responsabilização formal. E nesse ponto podemos retomar o compromisso de Dom Hélder (Câmara, 1987: 129): "... lutar por meios pacíficos, mas corajosos, contra as estruturas impiedosas que esmagam e fazem sofrer a humanidade. Pois não basta socorrer as vítimas. É necessário atacar vigorosamente, antes de mais nada, as causas dessa inaceitável infelicidade". Para a Revista GIS, falar de iniciativas de interesse social é afirmar esse empenho e compromisso. Referências bibliográficas Bartholo Jr., Roberto S. (2001) Você e eu: Martin Buber, Presença, Palavra. Rio de Janeiro, Garamond. Câmara, Hélder (1987). O Evangelho com Dom Hélder. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. Hirschman, Albert O. (1996). Autosubversão. São Paulo, Companhia das Letras. Sen, Amartya (2000). Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras. Sen, Amartya (2001). Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro, Record. Zaoual, Hassan (2003). Globalização e Diversidade Cultural. São Paulo, Cortez. iii3 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Expediente Informações básicas A Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais é uma publicação científica gratuita, de periodicidade quadrimestral, do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ). Dedica-se a divulgar trabalhos voltados para a apresentação e análise de propostas e experiências ligadas à gestão social. Pretende manter uma atitude prospectiva, apontando possíveis tendências nesse campo. Como seções fixas, reúne artigos, reportagens, entrevistas, apresentação de casos e resenhas críticas. Procura utilizar ao máximo os recursos oferecidos pelo formato de periódico on-line, explorando as possibilidades do meio eletrônico para oferecer e trocar informações, em particular o recurso do hipertexto e oferecendo sempre que possível indicação de fontes de informação complementar disponíveis na web. O título abreviado da revista é Revista Virtual GIS, forma a ser utilizada em bibliografias, notas e referências. Copyright Os conceitos emitidos em artigos são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não refletindo, necessariamente, a opinião da redação. Permite-se a reprodução total ou parcial dos trabalhos, desde que seja indicada explicitamente a sua fonte. Financiador A Revista recebe apoio do SESI. CORPO EDITORIAL Editor responsável Roberto dos Santos Bartholo Jr. - Professor do Programa Engenharia de Produção - COPPE/UFRJ e Coordenador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social iv 4 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Comitê editorial Carlos Renato Mota - professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ Arminda Eugenia Marques Campos - pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ Conselho Editorial Geraldo de Souza Ferreira - DEGEO/UFOP, Ouro Preto, MG Marcel Bursztyn - CDS/UnB, Brasília, DF Maurício Cesar Delamaro - FEG/UNESP, Guaratinguetá, SP Michel Thiollent - COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ Paulo Márcio Melo - UERJ, Rio de Janeiro, RJ Susana Finquelievich - Fac. Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires, Argentina Equipe de redação Andreia Ribeiro Ayres Secretaria Maria Joselina de Barros Revisão Arminda Eugenia Marques Campos Concepção do projeto gráfico Ivan Bursztyn Webdesign Marcos Lins Langenbach v5 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Apresentação O presente número da Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais tem como tema o desenvolvimento local. Uma série de metodologias e programas de apoio recentes visam promover o desenvolvimento no âmbito local, com diferentes abordagens e ênfases. Procuramos trazer para este debate a perspectiva proposta pelo professor marroquino Hassan Zauoal, que trabalha com a teoria dos sítios. A resenha deste número trata de um livro recém lançado que reúne a tradução de alguns dos trabalhos desse pensador. Além disso, pudemos contar com alguns artigos que narram experiências recentes. Enviem seus comentários a respeito da Revista como um todo e sobre os temas escolhidos. Procuramos considerar as observações de nossos leitores para melhorar aspectos técnicos ou de conteúdo desta publicação. Enviem suas contribuições - artigos, resenhas ou estudos de caso - para o próximo número, para serem analisados por nosso Comitê Editorial. Procurem na seção “Instruções aos autores” as informações necessárias para preparar os textos que deseja apresentar. Boa leitura! 6vi Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Sumário Resenha Crítica Nova economia das iniciativas locais - Uma introdução ao pensamento pós-global, ZAOUAL, Hassan. - Por Marcos Lins Langenbach e Sérgio Sergio Saltoun ....................................................08 Artigos Valorização dos produtos do setor sucroalcooleiro artesanal no contexto de um processo de desenvolvimento local: o caso do brejo paraibano Leiliam Cruz Dantas.............................................................................................................................11 A importância dos métodos participativos para a promoção da cidadania: Desenvolvimento Local e Pesquisa-Ação Felipe Addor.......................................................................................................................................18 A Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé: O envolvimento dos atores para a construção de um projeto de desenvolvimento local Sidney Lianza, Felipe Addor, Vera de Fátima Maciel e Vicente Nepomuceno de Oliveira.............................25 Catadores de papel: trabalho, significado e gestão de négocios - Uma experiência com os catadores de papel e resíduos sólidos da APARES – Juiz de fora/MG Sônia Regina C. Lages, Esther Lopes Karlburger e Renata Delgado..........................................................32 7vii Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Resenha Crítica Anti-racismo e seus paradoxos reflexões sobre cota racial, raça e racismo AZEVEDO, Célia M.M. de São Paulo: Annablume, 2004. José Henrique de Oliveira Santos* Os Hassan Zaoual, marroquino, residente na França, professor de economia e diretor do Groupe de Recherche sur lês Économies Locales (GREL), na Univesité du Littoral (França), tem em seu original Nouvelle économie des initiatives locales, traduzido por Michel Thiollent, uma discussão sobre desenvolvimento local que propõe que a centralidade da reflexão econômica seja apoiada no Homem, em sua universalidade e sua diversidade. Nova economia das iniciativas locais:uma introdução ao pensamento pós-global é uma coletânea de nove ensaios, apresentados como capítulos, que aborda de modo crítico o modelo neoliberal, questionando os rígidos pressupostos da ciência econômica e o mimetismo cultural e aponta para necessidade de se construir um novo paradigma de desenvolvimento capaz de responder à diversidade e a singularidade de cada contexto local. Não há dúvida de que o processo de globalização, pautado pelo ideário neoliberal da eficiência do mercado, considerado um fenômeno universal, hegemônico e inclusivo, capaz de corrigir desigualdades entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como resolver, por meio das forças ativas do mercado, os problemas de desemprego, subemprego, exclusão e desigualdade social, fracassou. É neste contexto de fracasso da mão invisível do mercado e de pósdesilusão global que vemos emergir novas formas de economia, tanto no Norte como no Sul, que não cabem na racionalidade hegemônica do paradigma economicista, e que estão muito mais vinculadas às especificidades locais, aos sítios, em suas várias dimensões (crenças comuns, religiões, identidades, redes, solidariedade, reciprocidade, pertencimento, convenções, normas). Zaoual aborda, com especial atenção, nos diversos ensaios do seu livro, a teoria dos sítios, que deve ser pensada a partir da falência de um pretensioso modelo único de modernidade e de desenvolvimento e do questionamento sobre a prevalência do reducionismo econômico. Sua tese fundamental se constrói sob a afirmação de que é impossível transpor modelos de economia e administração de um contexto para outro, de cima para baixo, sem que seja pensada uma forma que respeite as especificidades do sítio onde será Marcos Lins Langenbach é Bacharel em Desenho Industrial pela PUC-Rio e mestrando em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ; Sergio Saltoun é Bacharel em Economia pela UERJ e mestrando em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ. * 8 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 estruturado o projeto, sob pena de configurá-lo como um projétil. Zaoual traz à tona a tensão existente entre o universal e o singular suscitada pela discussão em torno do desenvolvimento local. Para o autor, o equilíbrio entre estas duas dimensões tem sido sacrificado ao se privilegiar o universal no transplante de projetos, os quais transferem conceitos e instituições como uma extensão de crenças científicas e sociais desenraizadas, desprezando o saber fazer local. Ou seja, implantando de cima para baixo modelos que, na prática, se rebelam por estarem totalmente separados das crenças e histórias de um determinado sítio. Desde esta perspectiva, o local reinterpretaria o global, corroborando para idéia de que a análise econômica requer uma abertura fundamentada nas outras ciências para que possam contemplar “(..)fatos incompatíveis com a concepção restritiva” (p. 81) da economia pura e reducionista. A teoria dos sítios abre a possibilidade de diálogo com as outras ciências procurando contribuir para a construção de um novo paradigma plural que possa responder às singularidades da nova economia das iniciativas locais. O conceito de sítio simbólico de pertencimento traz um modo de decifrar os arranjos locais partindo de baixo; do imaginário social moldado pela situação, pela contingência e pela trajetória de vida comum dos atores. Os sítios seriam dotados de uma lógica própria e pragmática; mais pragmática que a lógica do mercado, implicando, para seu trato, em prudência e tolerância por parte dos técnicos que pretendem transpor técnicas e tecnologias de forma acrítica de um contexto para o outro, ou de pesquisadores que pretendem entender a lógica do sítio para além da perspectiva reducionista da ciência econômica. São os fatos da vida do homem concreto situado que apontam para necessidade de uma abordagem trans-disciplinar e intercultural que abarque as diversas dimensões da vida vivida (ecologia, ética, espiritualidade, cultura, identidades, aflições, território, localidades etc.), evitando a abstração das categorias da teoria econômica hegemônica e o descolamento da teoria para com as ações cotidianas. Publicada em Outubro de 2006 A plasticidade requerida do novo paradigma implica a necessidade de uma racionalidade situada, expressa na emergência do homo situs, que engloba e enriquece o tipo-ideal do homo oeconomicus. A racionalidade situada é moldada continuamente para se ajustar aos dados do lugar, à sua dinâmica e situação. Na racionalidade situada está implícita a necessidade de uma relação vinculante entre teoria e realidade. Cabe destacar que, tendo por base a teria dos sítios, o autor pensa o desenvolvimento não numa perspectiva meramente econômica, mas sim como uma possibilidade de melhora na qualidade de vida, considerada as condições ambientais, a comunidade e o seu caráter simbólico e a importância do compartilhamento dos saberes e da criatividade para se escapar da dominação pelo conceito transplantado, isto é, o direito de se definir e de definir o entorno, de saber se situar. Até por que, segundo o próprio, “um saber voltado para o ter não garante o saber ser”(p. 97). A Nova economia das iniciativas locais:uma introdução ao pensamento pós-global, é, às vezes, cansativo em função da linguagem mais próxima dos economistas e, talvez por ser uma coletânea de ensaios, torne-se repetitivo. Entretanto, apresenta elementos interessantes, normalmente ignorados pela concepção abstrata e reducionista da ciência econômica, para se pensar em um novo paradigma que dê conta das singularidades das economias dissidentes ou a nova economia das iniciativas locais. negro pobre, permanecendo no sistema de cotas a discriminação social. Como ressalta a historiadora, não podemos esquecer que os baixos níveis de escolaridade da população brasileira são altamente críticos: “não seria o caso de concentrar forças na recuperação das escolas públicas de ensino fundamental, bem como na sua expansão para toda a população brasileira?”. E com relação a isso, imputa responsabilidade para a própria universidade (na tentativa de sensibilizar tanto o corpo docente quanto o discente), salientando o seu compromisso com a sociedade por meio de atividades de extensão universitária que pudessem pensar em projetos com o objetivo de recuperar a credibilidade da escola pública e 9 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 permitir que num futuro não muito distante o aluno oriundo do ensino público pudesse ter uma formação equivalente ao que cursou uma escola de ensino privado. Outra questão apontada por Azevedo é o embate travado pelas duas correntes de atuação nas políticas anti-racistas – uma possui um “paradigma” universalista centrado no conceito de “humanidade” e a outra caracterizada por uma postura diferencialista em que privilegia o conceito de “identidade”, seja ela racial, étnica ou de gênero. E sua proposta aqui é a busca de uma integração dos pontos positivos de cada uma das duas vertentes a fim de contribuir para uma política anti-racista mais consistente. Em linhas gerais, o que se pretende com isso é acabar com a rigidez de ambas as correntes, garantindo aos Publicada em Outubro de 2006 grupos discriminados de uma forma geral (e aqui também se inclui a população de origem negra) apossibilidade de acesso às oportunidades de emprego e educação, “sem, no entanto perder o sentido universal de humanidade”. Este texto tem o mérito de tocar em questões por vezes bastante controversas sem, contudo se posicionar ao lado de qualquer tipo de bandeira (mesmo as que costumam empunhar diversos movimentos negros), fazendo análises contundentes e sem preocupação com críticas que em muitos momentos possam vir surgir. Trabalhos que hoje em dia são cada vez mais escassos. Sua crítica em relação ao sistema de cotas não enfraquece seu posicionamento a favor do anti-racismo, desde que conduzido de forma a também favorecer políticas de inclusão social para todas parcelas da população. 10 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Artigo Valorização dos produtos do setor sucroalcooleiro artesanal no contexto de um processo de desenvolvimento local: o caso do brejo paraibano Leiliam Cruz Dantas * Resumo O objetivo deste artigo é enfatizar estratégias de valorização dos produtos dos engenhos de cana-deaçúcar da microrregião do Brejo Paraibano, baseada no território. Tais estratégias estão inseridas em um processo de desenvolvimento local integrado e participativo e têm como ponto de partida uma iniciativa de um órgão governamental, incluindo-se, neste contexto, os atores sociais locais, algumas instituições públicas e privadas e membros da sociedade civil. Tomou-se como referência o enfoque teórico-metodológico denominado “sites symboliques d’appartenance” que enfatiza aspectos como tradição, história, cultura, saber-fazer acumulado, entre outros aspectos imateriais. Palavras-chave: Desenvolvimento local, Valorização de produtos, Engenhos de cana-de-açúcar. Abstract This article’s aim is to highlight product valorization strategies, based in the territory, of sugar cane mills’ products, produced in the Brejo Paraibano region. Such strategies, inserted in an integrated and participative local development process, have, as a departure point a government initiative which includes, in this context, the local social actors, some public and private organizations and members of civil society. It took as reference the theoretical-methodological approach called “sites symboliques d’appartenance” that emphasizes aspects such as tradition, history, culture, accumulated know-how, among other immaterial aspects. Key words: Local development, Products value recognition, Sugar cane mills. Introdução A Os objetivos propostos no presente trabalho guiam-se no sentido de promover a construção de estratégias de valorização dos produtos dos engenhos de cana-de-açúcar da microrregião do Brejo Paraibano 1 – Nordeste do Brasil, no contexto de um processo de desenvolvimento local integrado e participativo. Tais estratégias enfatizam os aspectos históricos, culturais e simbólicos do território. O caso aqui examinado volta-se para a pequena produção artesanal de *Leiliam Cruz Dantas é Graduada em Ciências Econômicas e Mestre em Economia Rural pela UFPB-Campus II. Doutora em Engenharia de Produção pela COPPE/ UFRJ. Professora da Unidade Acadêmica de Economia da Universidade Federal de Campina Grande – PB. Universidade Federal de Campina Grande Unidade Acadêmica de Economia Av. Aprígio Veloso, 882 – Bodocongó – Campina Grande-PB 58.109-970 E-mail: [email protected] 11 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 derivados da cana-de-açúcar – rapadura e cachaça – e se inserem no contexto da promoção do desenvolvimento local da referida microrregião. Tal ramo produtivo apresenta-se como a maior vocação do território, consolidada por sua existência há quase dois séculos e meio. Para subsidiar a tarefa a que se propõe este trabalho, buscou-se apoio teóricometodológico na abordagem dos sites symboliques d’appartenance, no âmbito do desenvolvimento local. Com base neste enfoque, foram enfatizados os aspectos imateriais relativos aos engenhos de cachaça e rapadura do Brejo com vistas à valorização dos seus produtos, dos próprios engenhos e do território em si. Tal abordagem mostra-se bastante pertinente em relação aos projetos de desenvolvimento local, uma vez que explora aspectos raramente privilegiados pelas teorias mais ortodoxas do desenvolvimento sócio-econômico. 2. OS ENGENHOS DE CANA-DEAÇÚCAR NO NORDESTE E NO BREJO PARAIBANO Nos antigos engenhos, a cana-de-açúcar era transformada principalmente em açúcar, mas também em cachaça e rapadura. Tais unidades de produção são consideradas as primeiras “agroindústrias” do Brasil, implantadas no país devido às inconveniências de transporte da matéria-prima até a metrópole para seu posterior processamento (Furtado, 1982). A civilização dos engenhos do Nordeste brasileiro deixou raízes profundas. A atividade sucroalcooleira representou a riqueza da região nordestina na época da colonização brasileira. A produção de açúcar na colônia marcou o início do importante ciclo da cana-de-açúcar, no começo do século XVI. Consta em Andrade (1986) que os primeiros registros de envio de açúcar do Brasil para Portugal datam de 1526. A partir de então, o número de engenhos cresceu e concentrou-se, principalmente, no Nordeste do país. Resquícios de antigas técnicas produtivas de açúcar nos engenhos do Brasil Colonial ainda permanecem até hoje, ressaltando os costumes, Publicada em Outubro de 2006 os hábitos, as práticas, enfim, o saber-fazer desenvolvido no contexto da fabricação dos seus produtos. O conjunto desses conhecimentos representa uma herança cultural que foi construída ao longo da existência destas unidades produtivas artesanais. Assim, os aspectos técnicos, históricos e culturais reafirmam a força da tradição desta atividade, sobretudo em territórios nordestinos. Os engenhos de açúcar do litoral nordestino iniciaram sua trajetória de decadência a partir da tentativa de implantação dos engenhos centrais, na década de 1870 (Gomes, 1994). O declínio absoluto veio com o advento das usinas, no final do século XIX, que vieram consolidar a modernização pretendida pelos engenhos centrais. (Ramos, 1999). Com o estabelecimento das usinas, os engenhos entraram em franca decadência. Os antigos senhores de engenho, antes mergulhados em abastança, passam a se afogar em dívidas. (Pires, 1994). A microrregião do Brejo Paraibano encontra-se inserida na história da civilização do açúcar no Brasil. Porém, com engenhos de porte inferior aos do litoral. Desde os primórdios deste território, no limiar do século XVIII, registra-se a propensão natural de suas terras para o plantio da cana. Os engenhos de cachaça e rapadura do Brejo representam os verdadeiros símbolos deste passado histórico e culturalmente rico. Conseqüentemente, seus produtos também carregam esta característica distintiva. As usinas que se instalaram no Brejo foram decisivas para levar boa parte dos engenhos da região à condição de “fogo morto”, principalmente a partir da década de 1950. Com o advento do Programa Nacional do Álcool, em 1975, as usinas locais aumentaram sua capacidade de produção, exercendo uma forte pressão sobre as propriedades rurais que cultivavam cana-de-açúcar, arrendando-as ou, até mesmo, comprando-as. (Almeida, 1994). No início da década de 1990, as usinas do Brejo fecharam, provocando uma nova crise na economia canavieira da região. Depois disso, gradativamente, os poucos engenhos que produziam rapadura e cachaça no Brejo retomaram suas atividades. 12 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Desde o início da atividade, chegou-se a registrar, na referida microrregião, a existência de 294 engenhos (Almeida, 1994). Em 1998, constatou-se a existência de 52 engenhos no Brejo Paraibano, que funcionam de maneira precária devido ao atraso tecnológico decorrente da baixa capacidade de investimento dos produtores de cachaça e rapadura. (Paraíba, 1998). Diante disso, buscou-se implantar algumas estratégias de desenvolvimento local baseadas na valorização dos produtos e serviços relacionados a este pequeno setor produtivo que, por sua vez, apresenta-se como a principal vocação produtiva do território em foco. 3. VALORIZAÇÃO TERRITORIAL DOS PRODUTOS DOS ENGENHOS À LUZ DA ABORDAGEM DOS SITES SYMBOLIQUES D’APPARTENANCE 3.1 – Aspectos teórico-metodológicos Tomando como base as ações realizadas pelo Programa de Apoio à Modernização e Competitividade dos Setores Econômicos Tradicionais – COMPET Sucroalcooleiro (CNPq/Secretaria da Indústria, Comércio, Turismo, Ciência e Tecnologia do Estado da Paraíba), buscou-se investigar acerca das iniciativas voltadas para os engenhos do Brejo Paraibano, viabilizadas por este programa e pelos atores locais visando promover o desenvolvimento territorial. Assim, procedeu-se no sentido de enfatizar os aspectos metodológicos relacionados a estas ações, bem como em termos da pretensão de construir, conjuntamente com os atores locais, numa perspectiva de pesquisaação, algumas estratégias complementares às já viabilizadas no território em questão. O método da pesquisa-ação associa a pesquisa à ação, através de um processo em que há a participação ativa dos pesquisadores, juntamente com os atores da situação. Assim, de maneira interativa, estes atores buscam identificar seus problemas e viabilizar suas soluções, uma vez que a intenção é a realização de uma ação. (Thiollent, 1997). Diante de tal propósito, recorreu-se, em termos teórico-metodológicos, à abordagem dos Publicada em Outubro de 2006 sites symboliques d’appartenance2, uma vez que tal enfoque ressalta os aspectos imateriais do território, no contexto de um processo de desenvolvimento local, bem como o próprio território e suas especificidades. Esta abordagem parte da idéia de território e da ênfase posta sobre as interações entre os seus atores, que formam suas crenças, seus valores, suas tradições, seus costumes etc. Entretanto, essas interações não são apenas endógenas, uma vez que o local encontra-se aberto ao exterior. (Zaoual, 1999; Pavot et al, 199-; Zaoual, 1998). No âmbito de um processo de desenvolvimento local, a consideração das particularidades do território é essencial, diante da ampla diversidade que cerca a sua existência. A singularidade de cada local está intimamente relacionada com a sua identidade. Sob este aspecto, para Zaoual (1998), todo sistema de atores é único e nenhum lugar é idêntico a outro. Por isso, muitas vezes, os projetos econômicos direcionados a um determinado território baseiam-se em preceitos científicos cuja natureza pode diferir da natureza dos valores dos atores do local em questão. Cada lugar tem suas próprias percepções e estas influenciam as que vêm “de fora para dentro”, podendo até modificálas e adaptá-las à realidade local. (Zaoual, 1999). Cabe lembrar que o conceito de site symbolique evidencia dois princípios essenciais: primeiro, o princípio de que a atividade econômica é inseparável da dimensão simbólica, portanto, do conjunto das representações dos atores, dos seus valores e de suas crenças; segundo, o princípio de que os principais atores do desenvolvimento são os micro-espaços locais (Nohra, 1999). Diante do exposto, percebe-se que a idéia de micro-território apresenta-se, no método dos sites, com toda sua profundidade, intensidade e complexidade. Os aspectos singulares que caracterizam a individualidade de um local exercem forte influência sobre uma iniciativa de desenvolvimento local. Isto desmonta a concepção de que um modelo de desenvolvimento econômico pode ser aplicado em qualquer local a qualquer momento. 13 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 3.2 – Ações de desenvolvimento local no Brejo Paraibano – os atores sociais locais rumo à participação, à integração e ao associativismo A valorização dos produtos dos engenhos no contexto de um processo de desenvolvimento local foi marcada pela integração e participação dos atores sociais do território. Entretanto, a iniciativa desencadeante foi o Programa COMPET Sucroalcooleiro, coordenado pelo governo do estado da Paraíba. Este programa foi concebido e executado com vistas a promover a revitalização do pequeno setor produtivo artesanal, com ênfase na qualidade de seus produtos. Para que este processo fosse posto em andamento, fez-se necessária a formação de parcerias com os atores locais, membros da sociedade civil organizada ou não, bem como com atores institucionais. Esta participação representou um dos mais surpreendentes resultados da pesquisa empírica realizada na microrregião, visto que se trata de uma localidade do Nordeste brasileiro, onde tal procedimento não é comum3. O referido programa contou com a colaboração das seguintes instituições: Associação de Plantadores de Cana-de-Açúcar da Paraíba – ASPLAN, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE-PB, Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal da Paraíba – CCA/UFPB; Prefeitura Municipal de Areia; Fundação Parque Tecnológico da Paraíba – PaqTc/PB; Banco do Nordeste; Companhia de Desenvolvimento da Paraíba – CINEP, entre outras. No contexto deste espírito de participação e integração, criou-se uma nova associação dos pequenos produtores de cachaça e rapadura no Brejo: a Associação dos Produtores de Aguardente e Rapadura de Qualidade ASPARQ. No decorrer da pesquisa, percebeu-se uma mudança de atitude por parte dos atores locais: em um lugar marcado pelo individualismo e pelo autoritarismo, operou-se uma tendência à associação e à cooperação. Publicada em Outubro de 2006 Para Bordenave (1994), a participação é algo que se aprende e se aperfeiçoa, pois se trata de uma necessidade natural do ser humano e, por conseguinte, um direito dos indivíduos. Além disso, as pessoas tornam-se participativas porque esta prática envolve a satisfação de necessidades. O desenvolvimento participativo é uma tentativa de compensar ou superar as limitações do enfoque de desenvolvimento “de cima para baixo”, ao adotar um enfoque “de baixo para cima”. Este último considera tanto as opiniões quanto as necessidades dos residentes locais na formulação e implantação de políticas de desenvolvimento. (JICA, 1995). Porém, mesmo diante da surpreendente tendência participativa e associativa dos atores sociais do Brejo, em busca de seu desenvolvimento, constatou-se que estes necessitavam bastante da presença das instâncias governamentais. O desenvolvimento sustentável e autoconfiante não pode ser alcançado apenas através da substituição dos programas de desenvolvimento conduzidos pelo governo por programas gerenciados pela comunidade local. Além da indispensável participação dos outros segmentos da comunidade, o governo exerce um importante papel na coordenação, planejamento e implantação dos programas de desenvolvimento. O desenvolvimento participativo permite que se conheçam as necessidades e os desejos das pessoas e introduzam um enfoque participativo à formação política e aos processos administrativos de desenvolvimento conduzidos pelo governo. Sob este aspecto, o enfoque participativo funciona como um complemento aos programas concebidos e gerenciados pelo governo. (JICA, 1995). Essa concepção da JICA pode ser ajustada à atuação do Programa COMPET Sucroalcooleiro no Brejo Paraibano. Diante disso, as estratégias de valorização dos produtos dos engenhos do Brejo Paraibano, baseadas nas especificidades do próprio território, construídas pelos principais atores sociais locais, assumiram um caráter de complementaridade ante as ações 14 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 que já vinham sendo desenvolvidas pelo referido programa governamental. 3.3 – Estratégias de valorização dos produtos dos engenhos pela qualidade e pela tradição O que se fez, com vistas à valorização dos produtos dos engenhos do Brejo Paraibano, perpassou as ações do COMPET Sucroalcooleiro, em primeiro lugar. Estas ações visaram promover a valorização dos produtos através da mudança de aspectos produtivos com vistas à elevação da sua qualidade. As mudanças nos processos produtivos guiaram-se no sentido de melhorá-los, sobretudo em termos das condições higiênicas de produção. Por outro lado, planejou-se a realização de mudanças técnicas nos processos produtivos, diante da obsolescência que permeia as atividades, bem como pelas exigências por um produto de qualidade. Entretanto, não se cogitou a perda da identidade do território no que concerne à tradição em produzir cachaça e rapadura, bem como o seu caráter artesanal. De maneira bastante geral, merecem destaque algumas iniciativas voltadas para a viabilização destas mudanças: montagem de uma unidade piloto de produção de cachaça e de rapadura; realização de cursos de capacitação, baseados nas melhores práticas de produção de cachaça; missões técnicas em outros estados produtores e seminários. Além disso, o processo produtivo de cachaça nos engenhos foi monitorado pelos técnicos e pesquisadores do programa. Além da qualidade, outro fator fundamental relativo à valorização de produtos de caráter artesanal é a tradição em produzi-los, baseada em fatores como: o saber-fazer acumulado, transmitido de geração a geração, e os aspectos históricos e culturais que envolvem a fabricação dos produtos, principalmente relacionados à sua procedência. Os aspectos culturais são evocados pelos autores da abordagem dos sites symboliques d’appartenance como necessários no contexto do desenvolvimento local. O papel dos aspectos Publicada em Outubro de 2006 culturais é central, pois, segundo Nohra (1999), é a partir deles que se pode compreender a dinâmica do desenvolvimento econômico, ou seja, são as crenças e as motivações dos atores locais que se constituem nos motores simbólicos mobilizadores da economia e da técnica produtiva. Tem havido, no Brasil, um aumento da demanda por produtos influenciados por critérios de nutrição e saúde, em que se destacam os produtos naturais, sem aditivos químicos (Bonin, 1993). Atualmente, o apelo por alimentos saudáveis e de qualidade une-se à elevação das características tradicionais e históricas do local de produção. Assim, a partir da atuação conjunta dos diversos atores sociais da microrregião em foco, os produtos dos engenhos estão sendo melhorados em termos de qualidade e, simultaneamente, tendo exaltado o seu caráter de produto artesanal. Os produtos tradicionais estão ocupando um lugar privilegiado no mercado de alimentos, valorizando uma imagem tradicional vinculada à origem geográfica. Por um lado, as indústrias recorrem a aspectos relacionados à tradição, dando aos produtos uma aparência artesanal e, por outro lado, a produção artesanal busca incorporar características modernas através da melhoria da higiene, da apresentação do produto e da sua praticidade. (Coutinho, 2001). No contexto do processo de valorização dos produtos dos engenhos do Brejo, insere-se também a atividade turística, ressaltando os aspectos históricos relacionados à cana-de-açúcar na região e a tradição na transformação da cachaça e rapadura. Pavot et al (199-) procederam à aplicação desta abordagem nas atividades turísticas. Na sua percepção, o turismo passou a ser visto como “pós-fordista”, um turismo novo, considerado um turismo de patrimônio, verde, rural e cultural. Este ramo de atividade ilustra bem o fato de que os indivíduos, hoje, demandam não só serviços de qualidade quanto relações de sentido. Com isto, há a necessidade de se partir de uma perspectiva endógena ao território para a promoção do seu desenvolvimento econômico. 15 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 A nova tendência turística tem suas raízes ligadas aos seus locais de pertencimento. É exatamente a busca de sentido, de significação simbólica que estes locais representam para os demandantes desse serviço, o que modifica a dinâmica deste novo turismo. Assim, as novas necessidades dos consumidores de serviços turísticos podem coadunar-se com as práticas locais dos atores. Para estimular o desenvolvimento local, a revitalização ou até mesmo a descoberta de filões turísticos no local ocorreriam tomando como base suas raízes históricas, culturais, suas tradições, suas crenças, seus valores herdados ao longo de sua existência e perpetuados às novas gerações. À luz do raciocínio acima, toma-se o caso dos engenhos do Brejo em que, por um lado, o turismo rural e histórico, abrangendo estas antigas unidades produtivas, é considerado uma via alternativa para a valorização do território e de seus produtos artesanais. Por outro lado, a própria existência secular dos engenhos é o fator que impulsiona a atividade turística. Assim, há um movimento interativo, marcado pela ação recíproca entre estas duas atividades econômicas, convergindo na promoção da valorização do território. Isto deve-se à manutenção dos aspectos simbólicos do lugar. Os produtos do Brejo Paraibano diferenciam-se dos mesmos produtos oriundos de outras localidades devido às suas raízes históricas e culturais ligadas à especificidade do lugar. Por isto, considera-se aqui o Brejo como um local simbólico de pertencimento. Os atores locais buscam preservar e difundir suas características peculiares através de seus produtos, estigmatizados por um saber secular, bem como pelos roteiros turísticos que contam a história do açúcar e do território, inextricavelmente entrelaçadas. Assim, estes atores estão trilhando no sentido de absorver, crescentemente, a visão da abordagem dos sites symboliques d’appartenance, com as ações que vêm sendo empreendidas. No âmbito de um cenário participativo, efetuou-se a construção, juntamente com os principais atores sociais do Brejo, de estratégias de valorização dos produtos dos engenhos, quais sejam: a criação de uma estrutura cooperativa; o Publicada em Outubro de 2006 fortalecimento das estruturas associativas, sobretudo a ASPARQ; a realização de novos eventos de divulgação do território e dos seus produtos e a participação nos eventos afins em nível nacional; a diversificação dos produtos dos engenhos e dos serviços turísticos (rural, histórico e cultural); o maior aproveitamento dos recursos humanos locais no desenvolvimento das atividades do território, permitindo o aumento do emprego dos habitantes do lugar e sua fixação no mesmo. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O caso do Brejo Paraibano ilustra a busca por promover o desenvolvimento local, tomando como base a valorização de produtos que representam a mais antiga vocação do território. A existência dos engenhos na microrregião foi marcante, em suas épocas áureas, ressaltando todo um contexto econômico, social, político e cultural em que os mesmos estavam inseridos. Outrora, símbolo de poder econômico e supremacia; atualmente, símbolo de um passado histórico rico, de uma tradição em saber-fazer e da cultura de um território. Antes, sinônimo de riqueza e opulência, baseado em uma capacidade produtiva superior; hoje, caracterizados como pequenas unidades produtivas que buscam sobreviver no âmbito da economia altamente competitiva dos tempos da globalização. Por isto, necessita de mudanças para subsistir, mas sem jamais perder a identidade. No contexto destas mudanças, destacouse a atuação de um programa governamental, evidenciando a necessidade da inserção destas entidades em um novo paradigma de desenvolvimento. A intenção deste programa foi promover o desenvolvimento de um setor tradicional tomando como base na articulação de atores institucionais e na participação dos atores sociais locais. A valorização dos produtos dos engenhos do Brejo Paraibano, tanto em termos da qualidade, mas, sobretudo, no que tange à tradição, baseouse a identidade do lugar, de modo que os produtos fossem valorizados pelo fato de serem produzidos neste território. Isto foi corroborado pelas 16 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 atividades ligadas ao turismo rural e histórico local, em que se buscou valorizar o rico passado histórico e cultural imortalizado no conjunto arquitetônico dos engenhos. Estas estratégias buscaram realçar os elementos imateriais que giram em torno dos engenhos: a história, a tradição, a cultura, os costumes, as práticas, o saber-fazer acumulado nas atividades de produção de cachaça e rapadura. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, A. A. 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Territoires et dynamiques économiques: au-delà de la penseé unique. Paris: L’Harmattan, pp.27-90. (Footnotes) 1 A microrregião do Brejo Paraibano é composta por oito municípios: Alagoa Grande, Alagoa 17 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Nova, Areia, Bananeiras, Borborema, Matinhas, Pilões e Serraria. Dentre estes, destaca-se o de Areia, em termos históricos, econômicos e populacionais. 2 O termo “ sites symboliques d ’appartenance “ foi traduzido, por Thiollent (2003), como “sítios simbólicos de pertencimento”, em que a noção de sítio é posta como um local tanto em sentido geográfico quanto em sentido simbólico. Este conceito é devido a Hassan Zaoual. 3 Segundo Bandeira (1999), algumas regiões do país apresentam características culturais mais propícias à associação e à cooperação, como é o caso da Região Sul. Nos estados nordestinos, a tradição associativa é mais fraca, dificultando a organização e mobilização para iniciativas de caráter participativo. 18 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Artigo A importância dos métodos participativos para a promoção da cidadania: Desenvolvimento Local e Pesquisa-Ação Felipe Addor * Resumo Os Este artigo pretende ressaltar a importância da utilização de metodologias participativas para projetos de desenvolvimento local. Iniciamos apresentando o contexto histórico das últimas décadas de construção de um espaço de maior necessidade da participação cidadã no Estado. Em seguida, procuramos mostrar como o modelo de desenvolvimento local surge como uma alternativa às estratégias centralizadoras antes presentes, ressaltando suas características e as diversas abordagens que este pode ter. Por último, defendemos a importância da utilização de métodos participativos, com ênfase na Pesquisa-Ação, para a consolidação de um desenvolvimento local com cidadania. Palavras-Chave: Cidadania, Desenvolvimento Local, Metodologias Participativas, Pesquisa-Ação Abstract Abstract: This article pretends to detach the importance of the use of participatory methodologies on the implementation of local development projects. Initially, we present the last decades historic context, showing the enhance of the necessity of citizen participation on the Government. After that, we try to show how the local development model emerges as an alternative to the centralizing strategies, detailing its characteristics and the different principles that can orientate it. Finally, we defend the importance of the utilization of participatory methods, mainly Action-Research, for the consolidation of local development with citizenship. Key-Words: Citizenship, Local Development, Participatory Methodologies, Action-Research CLAMA-SE POR CIDADANIA Em fins da década de 1970 e início da seguinte, alguns movimentos sociais se voltaram, com mais ênfase, para a reivindicação de uma maior democratização do Estado (Moroni, 2005; Ribeiro, 2005). Era ressaltada a questão “Que mecanismos são necessários criar para democratizar o Estado e torná-lo realmente público?”, com uma crítica direta à “democracia representativa” vigente, por meio de partidos políticos e processo eleitoral, que não seria suficiente para atender à “complexidade da sociedade moderna” (Moroni, *Felipe Addor é Mestre em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ. Fundador, Pesquisador e Co-Gestor do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ). Rua João Afonso, 39/201. Humaitá, Rio de Janeiro, RJ. CEP 22261-040. [email protected] 19 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 2005:1). Baquero (2003:29) afirmou que “a solidez democrática de um país depende de uma sociedade civil dinâmica e participativa e orientada para a valorização das normas democráticas”. Caminhando nessa direção, a Constituição Federal de 1988 abre novas portas para a discussão da cidadania (Moroni, 2005; Fedozzi, 2001). A Constituição Cidadã1 inovou: por um lado, na determinação da gestão das políticas governamentais, seguindo o princípio da descentralização político-administrativa (Moroni, 2005:2), promovendo a “revigoração do papel do poder local” (Fedozzi, 2001:21); por outro, pelos novos espaços democráticos criados, com a introdução de instrumentos de democracia direta e a abertura à criação de “mecanismos de democracia participativa, como, por exemplo, os conselhos” e as conferências2, aumentando o “estímulo à maior participação das coletividades locais – sociedade civil organizada –, criando mecanismos de controle social” (Moroni, 2005:2); “O direito à participação foi elevado a princípio constitucional em 1988.” (Teixeira, 2005:7). No entanto, a abertura legal de um espaço para os cidadãos participarem da coisa pública (res publica) não é o suficiente para que haja, realmente, uma participação cidadã, um poder decisório real para o cidadão (Arnstein, 1969:216). Como alertou Fedozzi (2001:15): “uma das lições importantes que os brasileiros estão aprendendo, desde o fim do regime militar em 1985, é que não basta instaurar os princípios gerais da liberdade e dos direitos civis para que a ordem democrática se estabeleça de forma plena. Os sistemas políticos democráticos supõem formatos institucionais e mecanismos de participação Publicada em Outubro de 2006 que não são triviais, e nem nascem de forma espontânea”. Assim, o que se percebe é que, apesar de terem sido criados, desde 1988, mecanismos de maior participação popular, há pouca representação efetiva da opinião dos cidadãos nas decisões públicas, isto é, há uma “ausência histórica do setor popular, como sujeito sócio-político autônomo” (Fedozzi, 2001:83). Como já havia alertado Fedozzi (2001:83), “seria equivocado supor que a participação social per se significa mais democracia e mais cidadania”. No processo histórico de construção do Estado brasileiro, a população se apresenta distante dos espaços de decisões públicas, o que construiu na maioria do povo uma conduta política passiva, em que as elites dirigentes tomam as iniciativas e definem a direção das políticas governamentais (Fedozzi, 2001:89; Moroni, 2005:4)3. Um dos motivos centrais para esse posicionamento, segundo Fedozzi (2001:62), é a herança patrimonialista inserida na nossa cultura, que bloqueia iniciativas para democratizar o acesso a espaços públicos: “A inexistência de cidadania, como se sabe, é uma decorrência da forte tradição patrimonialista ainda vigente na cultura política brasileira, a qual, como foi visto, constitui um obstáculo estrutural a seu desenvolvimento”. Raymundo Faoro, em sua obra Os Donos do Poder, de 1958, comentou que aquela herança constrói um ideal de Estado em que este é o “pai do povo” e tem a função de representar “a fonte de todas as esperanças” (apud Fedozzi, 2001:79). Segundo Moroni (2005), a falta de interesse do Estado de ter a população ativamente participando das decisões públicas levou à criação de diversos mitos que hoje vão de encontro ao movimento de democratização do Estado. O autor cita três mitos: 20 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 1. “A sociedade não está preparada para participar,(...), das políticas públicas”: mito que coloca o político como detentor do saber e deve ter o aval para decidir; 2. “a sociedade não pode compartilhar da (...) construção das condições políticas para tomar e implementar decisões, porque o momento de participação (...) é o momento do voto”: que coloca o partido e o político como “donos” do Estado quando eleitos; 3. “a sociedade é vista como um elemento que dificulta as tomadas de decisões”; seja pelo tempo ou pelo “posicionamento crítico”. O que fica cada vez mais claro é que os instrumentos participativos vigentes no sistema democrático atual, basicamente da democracia representativa das representações partidárias, não são suficientes para atender aos mais diversos setores e às variadas demandas da população brasileira: “As modalidades tradicionais do direito de participação política, como o direito de votar e ser votado, filiação partidária, entre outros, não são suficientes para a cidadania de hoje” (Moroni, 2005:4). São necessárias novas formas de participação em que haja real redistribuição de poder para as populações, com o intuito de promover o desenvolvimento de cidadãos que tenham maior atuação nas políticas públicas, pois, apenas assim, como defendeu Arnstein (1969:216), torna-se possível que “os cidadãos desassistidos, atualmente excluídos dos processos políticos e econômicos, sejam deliberadamente incluídos no futuro”. É preciso construir a esfera pública, “o espaço social onde ocorreria a interação” entre primeiro (Estado), segundo (capital) e terceiro setores (organizações não-governamentais ou nãoeconômicas e movimentos sociais) para “identificar, compreender, problematizar e propor as soluções dos problemas da sociedade, ao ponto destas serem assumidas como políticas públicas Publicada em Outubro de 2006 pelo contexto parlamentar e executadas pelo aparato administrativo de governo”. E a sociedade civil faz o importante papel de dar a “substância” das discussões e decisões nesse espaço, visto que é quem está “apoiada no mundo da vida e, portanto, apresenta uma maior proximidade com os problemas e demandas do cidadão” (TENÓRIO, 2005:155). FLORESCE O DESENVOLVIMENTO LOCAL O contexto de descentralização políticoadministrativa e de reformulação da democracia participativa coloca condições estruturais que favorecem o desabrochar de outras formas de pensar o desenvolvimento (Silveira, s/d:6). Entre elas está o conceito de desenvolvimento local, que aparece “como um novo lócus de esperanças de alcance da modernidade e de superação do imobilismo econômico” (Ribeiro, 2005:109). Segundo Jesus (2003:72), desenvolvimento local representa: “um esforço localizado e concertado, isto é, são lideranças, instituições, empresas e habitantes de um determinado lugar que se articulam com vistas a encontrar atividades que favoreçam mudanças nas condições de produção e comercialização de bens e serviços, de forma a proporcionar melhores condições de vida aos cidadãos e cidadãs, partindo da valorização e ativação das potencialidades e efetivos recursos locais”. Esse movimento é fruto a uma recusa aos modelos de desenvolvimento que desconhecem as especificidades, demandas e potencialidades de cada localidade. No entanto, Ribeiro (2005:112) citou Gramsci para ressaltar o fato de que a “crítica uníssona” ao planejamento centralizado não representa uma concordância de valores e princípios para o desenvolvimento: “(...) sob o mesmo chapéu podem estar diversas cabeças”. 21 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Há diversas estratégias “sob o chapéu” do desenvolvimento local que divergem sobre o modo como serão pensadas as estratégias de ação. Jesus (2003:73) as diferenciou em três abordagens: · · · Centralizadora, em que é o governo que define as políticas públicas, a utilização dos recursos, a partir de técnicos do aparelho estatal, sem haver consulta à comunidade local; De mercado, onde os empresários têm pleno domínio sobre o poder público, e as políticas são definidas centralmente para garantir o melhor desempenho das companhias privadas; Comunitária, que tem como base a mobilização e participação da comunidade, desde a definição das prioridades até o monitoramento das ações. Essa terceira abordagem, por considerar a participação da comunidade em sua construção, parece se assemelhar mais com o que Tenório (2005:167) classificou de “desenvolvimento local com cidadania”, em que “pessoas individualmente ou por meio de g rupos organizados da sociedade civil, bem como do empresariado local (do capital) em interação com o poder público municipal (executivo e legislativo), decidem sob uma esfera pública, o bem-estar de uma comunidade”. O PAPEL DA PARTICIPATIVA METODOLOGIA Quando se procura desenvolver políticas públicas e realizar projetos de desenvolvimento local com cidadania, deparamo-nos com o desafio de criar espaços de interação entre os diversos atores locais, na discussão dos problemas e construção das políticas públicas. Faz-se necessária utilizar métodos que possibilitem uma troca democrática e profícua. Urge, portanto, o aprofundamento no campo da metodologia participativa, que possibilite a articulação dos diversos atores e o diálogo entre o conhecimento científico e o saber popular. Como relatou Thiollent (2005), o método da pesquisa participante já foi muito utilizado na época da redemocratização do país como Publicada em Outubro de 2006 estratégia de tornar as pessoas mais conscientes e atuantes. No entanto, esse método não prevê como objetivo a realização de uma ação entre os atores envolvidos para mudar a realidade (Thiollent, 1997:22). Uma estratégia metodológica que vem sendo relacionada com esse tipo de atuação ultimamente é a Pesquisa-Ação. Essa estratégia não se limita a investigar e desenvolver conhecimento. Ao contrário, ela pressupõe uma abordagem colaborativa para pesquisa, que fornece às pessoas envolvidas os meios para realizarem ações sistemáticas para resolução de problemas (Stringer, 1999:17). Como definiu Thiollent (1996:14): “a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo”. Os princípios participativos democratizantes e seu direcionamento para a ação fazem com que o método da pesquisa-ação possa contribuir para a implementação de estratégias de desenvolvimento local com cidadania. Ele pode ser qualificado como um “método cientifico contemporâneo para intermediar o diálogo do conhecimento técnico com os conhecimentos dos lugares, internos aos empreendimentos ou no território onde se encontra a comunidade, abrindo espaço para o surgimento de inovações sociais que propiciem a incorporação tecnológica incremental ou radical consensuada” (Lianza e Addor, 2005:256). Analisando autores que trabalham com desenvolvimento local (Eid e Pimentel, 2005; Ribeiro, 2005; Jesus, 2003; Frederico-Sabaté, 2004), identificamos três aspectos que devem estar inseridos em projetos de desenvolvimento local com cidadania e que dialogam diretamente com os princípios da pesquisa-ação: 22 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais · · · · ISSN: 1808-6535 O conhecimento das necessidades e potencialidades locais (Pesquisa); O envolvimento de pessoas e instituições locais (Participação); A melhoria das condições de vida para a população local (Ação); A valorização da cultura e potencialidades locais (Conhecimento Técnico + conhecimento empírico). Além disso, diversos teóricos da pesquisa-ação a vinculam a projetos de desenvolvimento local: Greenwood e Levin (1998); Stringer (1999); Thiollent (1996 e 2005). Segundo Thiollent (2005: 183), projetos de desenvolvimento local requerem “a participação e envolvimento de muitas pessoas e grupos. Isso representa um novo potencial para a aplicação de métodos participativos e de pesquisa-ação”. No entanto, vale enfatizar que esse vínculo do desenvolvimento local com a pesquisa-ação refere-se apenas ao que chamamos de desenvolvimento local com cidadania, pois, como alertou o próprio autor, a pesquisa-ação perde sua função quando “o desenvolvimento local é concebido a partir de uma visão centrada no individualismo e na competitividade” (Thiollent, 2005:183). CONCLUSÃO A descentralização político-administrativa do Estado demanda, constantemente, discussões sobre as novas formas de se pensar o desenvolvimento. A maior possibilidade de inserção das demandas e potencialidades locais e de participação direta da população na definição das políticas públicas levanta a necessidade do debate sobre o meio de se soerguer a democracia, tornando-a de representativa para participativa. Longe de querer chegar a soluções ou elencar certezas, buscamos aqui ressaltar a importância da teoria e da prática dos métodos participativos que vem sendo construídas há décadas para contribuir para o desenvolvimento de meios de estímulo à cidadania plena. A pesquisa-ação não é o único, Publicada em Outubro de 2006 mas aparece como um dos possíveis métodos que podem contribuir nesse sentido, por ter como premissa a participação dos atores e como objetivo a transformação da realidade. Esperamos que este artigo contribua para que consigamos construir modelos de desenvolvimento cada vez mais justos e equânimes. BIBLIOGRAFIA ADDOR, Felipe, 2006. A “Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé”: Uma Análise do Percurso Metodológico. Dissertação de Mestrado, PEP/COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro. ARNSTEIN, Sherry R., 1969, “Ladder of Citizen Participation”, Journal of the American Institute of Planners, July, pp. 216-224. BAQUERO, Marcello, 2003, “Capital Social”. 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(Emir Sader apud Tenório, 2005:151) 2 Atualmente, há vários desses espaços democráticos: Conselhos de Saúde, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Conferência Nacional de Aqüicultura e Pesca, entre outros. 3 Moroni (2005:4) contou das origens da democracia: “Na tradição ocidental, são conhecidas as origens da democracia, da cidadania, e do direito, que têm como referência a polis grega e as cidades-Estado romanas (os romanos traduziram polis por civitas, palavra da qual surgem cidade, cidadania e cidadãos). Em virtude da idéia elitista de democracia presente nessas culturas, apenas os homens livres participavam da vida pública e eram, conseqüentemente, considerados cidadãos.Além de ser machista e elitista, isto é, ser uma ‘democracia’ apenas para alguns homens, trata-se de uma concepção exclusivamente política de democracia, negligenciando a liberdade individual na vida privada e a questão social e econômica. Eram excluídos da cidadania as mulheres, os estrangeiros e os escravos. Também eram excluídos os comerciantes e os artesãos, porque supostamente não teriam tempo para participar da vida pública, pois precisavam trabalhar para seu sustento. A participação estava condicionada ao tempo disponível, e isso era para os homens 24 de posses.” (4) Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Artigo A Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé: O envolvimento dos atores para a construção de um projeto de desenvolvimento local Sidney Lianza, Felipe Addor, Vera de Fátima Maciel e Vicente Nepomuceno de Oliveira* Resumo Este artigo apresenta a experiência de mobilização de atores sociais locais de Macaé para o projeto Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé (PAPESCA/Macaé). O projeto, coordenado pelo SOLTEC/UFRJ, busca o desenvolvimento da atividade pesqueira do município, por meio da mobilização social. Relatamos o caminho metodológico desenvolvido no projeto para a identificação dos principais entraves para a sustentabilidade da cadeia produtiva da pesca e a elaboração de propostas de projetos que contribuam para combatê-los. Por fim, apresentamos os resultados obtidos com esse processo e o estágio atual da PAPESCA/Macaé. Palavras-Chave: Pesquisa-Ação, Desenvolvimento Local, Pesca, Cadeia Produtiva. Abstract: This article presents the experience of social mobilization within the project “PesquisaAção na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé “ (PAPESCA/Macaé). The project, coordinated by SOLTEC/UFRJ, aims to develop the local fishing activity through the workers participation. We detail the methodological path elaborated to identify the main problems of the fishing productive chain and to build the directions for the development of projects to diminish them. At last, we show PAPESCA/Macaé results and in which stage the projects is. Key-Words: Action-Research, Local Development, Fishing, Productive Chain. Introdução NO Projeto de Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé iniciou-se em abril de 2004, a partir da parceria entre o Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ), o Pólo Náutico/UFRJ e o Núcleo de Pesquisa Ecológica de Macaé (NUPEM/UFRJ). Seu objetivo maior é contribuir para a sustentabilidade da cadeia produtiva da pesca, visando ao desenvolvimento local social e solidário de Macaé. A atuação da UFRJ em alguns projetos em Macaé, como a Escola de Pescadores, a levou a ficar mais próxima da realidade da região. Deste *Sidney Lianza é Professor do DEI/POLI/UFRJ. Coordenador Geral do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ); Felipe Addor é Mestre em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ. Pesquisador e Co-Gestor do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ); Vera de Fátima Maciel é Mestre em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ. Pesquisadora e Co-Gestora do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ); e Vicente Nepomuceno de Oliveira é Graduando de Engenharia Mecânica da POLI/UFRJ. Pesquisador e Co-Gestor do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ). 25 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 contato, emergiu a proposta de se realizar um projeto que contribuísse para a melhoria da renda e das condições de trabalho dos envolvidos diretamente com a pesca e a construção de embarcações em Macaé. Depois de algumas visitas da equipe do SOLTEC/UFRJ ao município, foi elaborada a proposta de um projeto de Pesquisa-Ação, no qual pudéssemos identificar os entraves à sustentabilidade da cadeia produtiva da pesca, com o intuito de desenvolver projetos que melhorassem as condições de vida e trabalho dos envolvidos nessa cadeia. A atividade pesqueira envolve diretamente cerca de 15.000 pessoas, isto é, 10% da população1, e enfrenta diversas dificuldades em conseqüência do crescimento econômico e demográfico do município e dos impactos ambientais da crescente industria petrolífera presente desde finais dos anos 1970. METODOLOGIA Para o desenvolvimento do projeto de desenvolvimento local, optamos pela utilização de uma metodologia participativa, no campo de estudos definido como Participatory and Action Research (PAR) (THIOLLENT, 1996; MORIN, 2004), tanto no diagnóstico e na definição de problemas quanto na elaboração e gerenciamento dos projetos de intervenção. Essa metodologia não apenas tem um forte poder mobilizador e emancipador se realizada com precisão, como ainda possui métodos que preparam o contexto para a ação posterior à pesquisa, colocando, inclusive os pesquisadores inseridos como atores no processo: “a pesquisaação, com objetivo emancipatório e transformador do discurso, das condutas e das relações sociais, vai mais longe que a abordagem Lewiniana [essencialmente democrática e tendo a mudança como finalidade] e exige que os pesquisadores se impliquem como atores” (MORIN, 2004:55) (parênteses nossos). * Jornalista, repórter da TV Senado, mestre em Comunicação e doutor em Lingüística pela Universidade de Brasília. Professor da Unieuro em Brasília. Membro do Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade, Nelis, da UnB, da Associação Brasileira de Lingüística, da SBPC e do GT-Práticas Identitárias em Lingüística Aplicada, ligado à Anpoll. End.: SQN 211 Bl. H Ap. 607 70863-080. E-mail: [email protected] Publicada em Outubro de 2006 Buscando desenvolver um projeto de pesquisaação procurando envolver todos os atores interessados, foi necessária, inicialmente, uma ida a campo para ambientação dos integrantes da equipe: conhecer a cidade de Macaé; conversar com habitantes do local ou com pesquisadores que já desenvolvem outros projetos na região; conhecer a unidade de pesquisa da UFRJ em Macaé (NUPEM). Após algumas visitas e muitas discussões, foi desenvolvida uma estratégica metodológica que prezasse pela interação com os atores sociais locais, sendo esse um fator indispensável para o sucesso de um projeto participativo de desenvolvimento local. Foram definidas as seguintes etapas: 1. Levantamento de Dados Secundários e Identificação dos atores locais; 2. Entrevistas Individuais com os atores; 3. Entrevistas Coletivas; 4. Reuniões Gerais. Levantamento de Dados Secundários e Identificação dos atores Foi realizada, inicialmente, uma pesquisa de dados secundários, para que pudéssemos começar a delinear os primeiros passos da pesquisa. Definindo algumas palavras-chave que estivessem ligadas ao tema do projeto e à região (pesca, Macaé, Petrobras, embarcações, etc), o grupo pesquisou estatísticas, dados, características sócio-econômicas, leis, organizações, instituições, relações sóciopolíticas e econômicas da região. Além de diversas fontes bibliográficas, acessadas centralmente pela internet, realizamos conversas informais com algumas pessoas que pudessem contribuir para uma visão panorâmica da situação das atividades de pesca e comercialização de embarcações na região e dos principais atores que interferiam no processo. Definimos, então, os primeiros atores a serem entrevistados. Links interessantes: www.dieese.org.br (Estudos e pesquisas/População Negra) www.pnud.org.br (Raça) 1 O artigo tem por referência a pesquisa que empreendemos para tese de nossa autoria (ainda inédita) defendida no Doutorado em Lingüística da Universidade de Brasília, em dezembro de 2004. 26 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 É importante ficar claro que em nenhum momento fechamos a lista de atores a serem abordados. Ao longo do processo de pesquisa, a melhor compreensão do contexto e a visualização da grande complexidade da atividade da pesca e da produção de embarcações nos levaram a adicionar diversos atores cuja compreensão se mostrava importante para o entendimento do todo. Além disso, a cada visita a campo são analisados os relatórios produzidos para que sejam levantadas as informações que devem ser pesquisadas em dados secundários para complementar a construção de conhecimento da pesquisa. Entrevistas individuais com os atores Estabelecemos uma estratégia para priorização dos atores que deveriam ser contatados. Procuramos primeiro entrevistar pessoas diretamente envolvidas na cadeia produtiva da pesca, isto é, os pescadores, as descascadeiras de camarão, os construtores de barco. Em seguida, fomos aumentando a abrangência, conversando com atores não diretamente inseridos na cadeia, mas que exerciam, ou que tinham potencial de exercer, alguma influência sobre esta. Essa estratégia pode ser comparada graficamente a uma espiral, na qual a pesca e a construção de embarcações estão no centro, pois são o primeiro foco das entrevistas, e em seguida vamos abrindo o campo de abrangência para cada vez melhor compreender o todo, com uma visão holística, mas sempre voltando aos primeiros atores para dar um retorno sobre a pesquisa. Conversamos numa primeira visita com pescadores representantes da Colônia e da Cooperativa e com construtores. Na seguinte, com pessoas envolvidas na comercialização do pescado, atores ligados ao seu beneficiamento, mulheres trabalhadoras da pesca, bancos ligados ao financiamento de embarcações, instituições de ensino (que pudessem ter cursos voltados para pesca ou até mesmo que pudessem colaborar na alfabetização), o poder público, entidades de fiscalização, entre outros. Para cada entrevista é elaborado um roteiro que guia o pesquisador. São roteiros semiestruturados, nos quais as perguntas não são Publicada em Outubro de 2006 fechadas, mas servem para ajudar o entrevistador a seguir uma linha de raciocínio previamente definida. As entrevistas são agendadas antes da ida a campo, para procurar aproveitar ao máximo o tempo de estadia na região. Os roteiros são iniciados pela apresentação do projeto e seguem com grandes tópicos que são comuns a todos os atores, mudando apenas as perguntas referentes a cada um dos tópicos. Estes são: histórico (da pessoa e/ou da entidade); o papel da entidade (se for o caso) na região; o funcionamento da entidade/atividade (no caso de pessoa diretamente envolvida); relacionamento com outros atores locais; Dificuldades enfrentadas pela entidade e pela pesca e construção de embarcações. Dois membros da equipe são escalados por entrevista. Enquanto um fica responsável por direcionar a conversa, o outro se responsabiliza por monitorá-la e registrá-la. Terminadas as entrevistas de cada etapa, um dos pesquisadores de cada dupla se encarrega de elaborar uma proposta de Relatório, a ser aprovada primeiramente pelo seu companheiro. Esses relatórios servem para registro e socialização das informações obtidas. A apreensão das conversas com os atores e das dificuldades enfrentadas capacita o pesquisador a realizar entrevistas com maior qualidade e conhecimento do contexto. Possibilita a ele aprofundar mais cada tema discutido e procurar triangular as diferentes informações. Porém, um cuidado que sempre devemos ter é o da confidencialidade das declarações, nunca abrindo as palavras de outros atores. Adotamos uma prática de sempre dar um retorno das entrevistas realizadas para os atores diretamente envolvidos na cadeia e que são o público-alvo do projeto. Nesse retorno, primeiro procuramos confirmar com o entrevistado se as conclusões que tiramos do relatório da entrevista refletem realmente suas exposições, além de apresentarmos os entraves levantados por outros atores para possíveis reflexões. Com isso, evitamos quaisquer mal-entendidos ou confusões advindas de uma interpretação errada. Esse método do retorno tem sido muito positivo, principalmente na obtenção da confiança das 27 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 pessoas. Ao ver que suas respostas realmente serviram para uma análise, elas se mostram mais abertas e mais confiantes nos objetivos do projeto. Entrevistas Coletivas Foi realizado pelo grupo de pesquisadores um trabalho de sistematização dos entraves levantados nas entrevistas individuais que teve como objetivos apresentar uma visão integrada das dificuldades enfrentadas pelas atividades pesqueiras e de construção de embarcações e subsidiar as entrevistas/reuniões coletivas para a discussão dos problemas. Foram criados cinco eixos de problemas: Meio-ambiente, Comercialização, Crédito/Legalização, Infraestrutura, Educação/Cultura. Para continuar a discussão decidimos colocar numa mesma reunião atores que possuem interesses e objetivos semelhantes. Deste modo, três grupos foram divididos: atores sociais locais diretamente envolvidos na temática; representantes do poder público municipal; representantes de outras entidades, de Macaé ou não, que interferem ou possuem capacidade de interferência na realidade local (atores intervenientes). Um aspecto fundamental para a realização desses encontros coletivos é a linguagem a ser utilizada. Deve ser uma linguagem imparcial, que seja compreendida por todos os presentes, de semianalfabetos a doutores, de macaenses a pessoas que estão apenas indo à cidade para as reuniões. Para tanto, foram feitas as sistematizações dos entraves apresentadas anteriormente e, para os encontros, foram preparados cartazes que representavam cada um dos problemas, com sua descrição escrita e uma imagem associada a ele, método denominado pela equipe de “Cartelas Coloridas”, como pode ser visto na Figura 1. Esse modo de apresentação foi utilizado em todas as reuniões coletivas, não só pela clareza que ele proporciona, mas como forma de consolidar uma única linguagem para a reunião geral. Figura 1 – Utilização do método “Cartelas Coloridas” para as reuniões Como foco do projeto, a primeira reunião realizada foi com os trabalhadores. Participaram da reunião 12 pessoas, entre pescadores, representantes da Colônia e da Cooperativa, construtores de embarcações e mulheres trabalhadoras da pesca. Esse encontro foi essencial na revisão do diagnóstico realizado, e na definição dos principais problemas entre os identificados. Depois de apresentado o diagnóstico feito com base nas entrevistas individuais, houve um espaço para discussão dos problemas. Esse momento serviu para tornar equânime o conhecimento de todos sobre os entraves e também para confirmar em grupo a existência deles e se não havia nenhuma grande outra dificuldade não abordada. Surgiram aí, inclusive, novos problemas como a dificuldade e demora de recebimento do benefício do defeso e a poluição nas lagoas de Macaé. Após o debate, foi adotada uma dinâmica na qual cada participante da reunião votava nos principais problemas para cada eixo. Assim, foram definidos entre dois e três problemas centrais em cada temática; o resultado pode ser visto na tabela abaixo. E, em seguida, pedimos para eles definirem quais seriam os dois eixos temáticos de maior importância e foram selecionados, por unanimidade os eixos de Meio-ambiente e de Comercialização com maior prioridade de intervenção. Tabela 1 – Votação dos Entraves da Cadeia Produtiva da Pesca (ver anexo) 28 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 O frutífero debate ocorrido nessa reunião e o curto espaço de integração e de reflexão sobre os entraves, levou à proposta de uma nova reunião do mesmo grupo, antes da geral, para serem melhor aprofundados os problemas que foram definidos como centrais e para iniciar a discussão sobre os caminhos para superá-los. Na nova reunião, realizada uma semana depois, percebeu-se um aumento do número de participantes por iniciativa dos próprios atores locais, chegando a um total de 20. As propostas que surgiram no dia foram levadas para dar subsídio às discussões temáticas da Reunião Geral. Nas outras duas reuniões coletivas (com o poder público municipal, com 10 presentes, e os atores intervenientes, com cinco) foi apresentado o diagnóstico para apreciação, já incorporado do resultado das votações da primeira reunião coletiva. Abriu-se debate no qual foram colocadas as diferentes visões de cada instituição sobre os problemas e a situação da pesca e da construção de barcos. Além disso, diversos novos fatores relacionados aos problemas existentes foram colocados que qualificaram ainda mais os debates. A partir daí, foi organizada a primeira Reunião Geral, na qual tentaríamos proporcionar a maior interação entre os diversos atores com discussões orientadas para cada temática. Pegamos como foco apenas os problemas identificados como principais, buscando a objetividade que necessitávamos para a elaboração dos projetos de ação. Os entraves principais do eixo Infra-Estrutura estavam basicamente ligados a questões de comercialização e crédito, então redistribuímos seus problemas pelo outros eixos, excluindo este. Reuniões Gerais A proposta para essa reunião foi que os participantes se dividissem em grupos temáticos, de acordo com suas preferências, para debater os principais entraves de cada eixo (Meio-ambiente, Comercialização, Crédito/Legalização e Educação/Cultura). Sugerimos algumas divisões lógicas como, por exemplo, que a Cooperativa estivesse presente na discussão da Comercialização, o Banco do Brasil participasse do grupo de Publicada em Outubro de 2006 Crédito, e as Secretarias Municipais de Meioambiente e de Educação fossem para os seus respectivos temas. Portanto, depois de apresentarmos os principais problemas de cada eixo e de estimularmos as reflexões com os subsídios dados nas reuniões coletivas, os participantes (em número de 27) se direcionaram para o grupo de discussão que mais os interessava. Percebeu-se uma forte concentração no eixo de Meio-ambiente, uma significativa participação na Comercialização, e pouca atratividade dos outros dois eixos; confirmando o resultado da votação da primeira reunião coletiva. Cada grupo procurou aprofundar os entraves levantados e começar a discutir possíveis ações para combatê-los, levantando potenciais responsáveis e parceiros. Depois da discussão cada grupo apresentou sugestões de eixos centrais que deveriam ser seguidos para buscar a resolução de problemas de cada temática. Uma sugestão, surgida em uma das reuniões coletiva e ratificada na geral, foi a criação de um Conselho Municipal da Pesca, que representaria um momento no qual diversas entidades ligadas à atividade estariam debatendo periodicamente a situação da atividade pesqueira, procurando sempre construir soluções para os problemas encontrados. RESULTADOS E ESTÁGIO ATUAL Mais quatro reuniões gerais foram realizadas até chegarmos a uma definição estratégica das diretrizes para o desenvolvimento da pesca. Para tanto, foi necessário que todas as prioridades definidas pelos atores fossem levadas em conta e que se fizesse um esforço de refleti-las em ações que pudessem amenizar diversos problemas, afinal seria impensável um projeto diferente para resolver cada problema. Cada argumento colocado por cada ator, independente se parecesse de origem científica ou da cultura local foi considerado e procurou ser entendida sua argumentação lógica. Procuramos entender a lógica (ou a sócio-lógica) de cada grupo para captarmos o máximo da complexidade da situação sobre a qual estamos nos debruçando. 29 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Todo esse esforço contribuiu para que pudéssemos, depois de todos esses encontros com os atores, realizar um minucioso trabalho analítico-reflexivo para chegar mos a uma proposta do Projeto Pesquisa-Ação para o Desenvolvimento Sustentável da Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé. Esse projeto de Pesquisa-ação é dividido em três grandes programas, e cada um desses possui diversos projetos. Os programas e projetos são: ü Programa Preservação do Meio Ambiente e Pesca Responsável: o Projeto de mapeamento/ levantamento da atividade pesqueira; o Projeto de Recuperação do Rio Macaé e do Manguezal. ü Programa Fortalecimento do Comercio Solidário e do Crédito Popular: o Projeto de Legalização dos Pescadores e dos Barcos; o Projeto para Organizar os Pescadores e os Construtores de Embarcações para Viabilizar Acesso ao Crédito; o Projeto de Criação de Empreendimento Econômico Solidário de Beneficiamento de Pescado; o Projeto de Estimulo à Cooperação na Produção e na Comercialização do Pescado. ü Programa Educação e Gestão Social: o Projeto de Ensino Politécnico, Fundamental e Médio; o Projeto de Alfabetização e Qualificação de Jovens e Adultos. Atualmente, o eixo principal de atuação da PAPESCA é o projeto de Incubação de um Empreendimento Solidário de Beneficiamento de Pescado, que foi aprovado pela FINEP/MCT. Além disso, continuamos o Programa de Educação e Gestão Social, com a realização periódica de Encontros de Formação para a Gestão Social da Pesca de Macaé. Numa parceria com a Colônia de Pescadores da Ilha do Governador, Z-10, estamos procurando promover o diálogo entre o Banco do Brasil e os pescadores para facilitar o acesso ao crédito. Publicada em Outubro de 2006 Além disso, uma vitória obtida foi a inserção do produto de todo esse processo participativo no Plano Diretor de Macaé, no qual está previsto a criação do Pólo da Pesca, que terá infra-estrutura para buscar diminuir os diversos problemas levantados. Por último, com base na PAPESCA está sendo articulada, pelo SOLTEC/UFRJ, uma Rede Internacional de Estudos e Projetos sobre a Sustentabilidade da Pesca Artesanal Profissional, que já possui diversos parceiros no país e no exterior. CONCLUSÕES O projeto apresentado é um exemplo da nova movimentação da UFRJ de procurar desenvolver o Estado do Rio de Janeiro através da interiorização. Por meio da presença do NUPEM, da Escola Municipal de Pescadores e do projeto Pesquisa-Ação na Cadeia Produtiva da Pesca em Macaé a Universidade se estabelece no município buscando contribuir para o seu desenvolvimento social. Com a PAPESCA, esperamos contribuir para soerguer a atividade pesqueira e valorizar sua cultura e seus trabalhadores. Baseados numa estratégia de desenvolvimento local com cidadania, estimulando a emancipação e a participação popular no desenvolvimento de políticas públicas, lutamos junto com a população para reinserir a pesca como atividade econômica de primeira importância em Macaé. BIBLIOGRAFIA ADDOR, Felipe, 2006. “A Pesquisa-Ação na Cadeia produtiva da Pesca em Macaé”: Uma análise do percurso metodológico. Dissertação de Mestrado, PEP/COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro. 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SITES SUGERIDOS www.soltec.poli.ufrj.br (Footnotes) 1 Informações retiradas do sítio da Prefeitura de Macaé: www.macae.rj.gov.br . 31 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Anexo: tabela 1 – Votação dos Entraves da Cadeia Produtiva da Pesca Eixos Entraves Meio Ambiente Pesca Predatória Inconsistência no Período do Defeso Poluição do Rio Macaé Poluição do Mar Falta de Conscientização Ambiental Poluição das Lagoas Sobre-Pesca Votos 5 5 4 4 3 2 0 Educação/Cultura Desorganização dos pescadores Analfabetismo Desunião das instituições Falta de Visão de negócios Falta de habilidade no uso de equipamentos Falta de profissionais para trabalhar com fibra de vidro 7 6 4 0 0 0 Crédito/Legalização Problemas no Recebimento do benefício do Defeso Difícil acesso ao crédito Barcos/estaleiros irregulares Barcos industriais grandes pescando na costa Falta de Carteira da Pesca 8 6 3 3 1 Infra-Estrutura Falta de Fábrica de Gelo Não beneficiamento do pescado Sem boa infra-estrutura para construção de barcos Falta de estrutura para estocagem de Madeira Falta de um Frigorífico para os pescadores Falta de um transporte refrigerado para pescado Cais impróprio para atividade 9 6 4 2 2 0 0 Comercialização/Fornecimento Alto custo de óleo, rede, e outros insumos Desarticulação dos compradores Pouco serviço aos construtores Dificuldade de compra de madeira Alto custo para venda de pescado CEASA Número excessivo de pescadores 9 6 3 2 2 0 32 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 Artigo Catadores de papel: trabalho, significado e gestão de négocios - Uma experiência com os catadores de papel e resíduos sólidos da APARES – Juiz de fora/MG Sônia Regina C. Lages, Esther Lopes Karlburger e Renata Delgado* Resumo O presente trabalho parte de uma pesquisa desenvolvida por professores e alunos da Faculdade Estácio de Sá em Juiz Fora, há dois anos, com os catadores de papel da APARES - Associação dos Catadores de Papel e Resíduos Sólidos de Juiz de Fora, subsidiada pela AMAC - Associação de Apoio Comunitário da Prefeitura Municipal. Nosso trabalho consistiu em buscar junto àqueles atores, o significado que a atividade que realizavam tinha em suas vidas, os obstáculos que impediam o crescimento da associação e o desenvolvimento de ações que os preparassem para a gestão de seu negócio. A nossa intenção foi de trazer à tona o problema da exclusão social, os mecanismos capitalistas perversos que impedem os catadores de se emanciparem economicamente e socialmente, e através da pesquisa-ação, alerta-los para a necessidade de conhecer e praticar os novos modelos de gestão de negócios, como forma de garantir sua inclusão social e permanência do mercado de trabalho. Palavras-chave: Catador de papel, Associação, significado do trabalho, gestão de negócios Abstract The present study arises from a research developed by professors and students of the Faculdade Estácio de Sá, from Juiz de Fora, along the last two years, whose subject was the paper gatherers of APARES - Associação dos Catadores de Papel e Resíduos Sólidos de Juiz de Fora -, subsidized by the municipality through AMAC - Associação de Apoio Comunitário da Prefeitura Municipal. Our work was to search, among those people, the meaning which the activity thy did had in their lives, the obstacles which impeded the associations growth and the development of actions which would prepare them for their business management. Our goal was to manifest the problem of social exclusion, the perverted capitalist mechanisms which hinder the economic and social emancipation of the gatherers, and, throwgh action-research, warn them about the necessity of knowing and practicing new business management models, as a way to assure their social inclusion and their continuation in the work market. Key-words: Paper gatherer, association, meaning of work, business, management 1. INTRODUÇÃO O trabalho constitui e explica grande parte da sociedade capitalista. Os processos de socialização, a construção de identidades, as formas de dominação e resistências, os mecanismos de inclusão e exclusão, seja na área da educação, da política, da economia, ou quanto à discriminação das minorias étnicas e da desigualdade dos direitos entre os homens e as mulheres, têm origem nas situações 33 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 laborais e nas relações sociais estruturadas na atividade produtiva. Assim, o trabalho, como ato concreto, individual ou coletivo, é por definição, uma experiência social. Seja ele opressivo ou emancipador, tripalium (tortura) ou prazer, alienação ou criação, salutar ou doentio, em todas as suas ambivalências, ele não se limita à jornada laboral, mas repercute sobre a totalidade da vida em sociedade (CATTANI, 1996), engendrando significados e sentidos de existência. A trajetória desses significados tem um conteúdo bastante perverso quando o olhar se dirige para os países que foram colonizados de forma predatória pelo empreendimento mercantilista europeu, como os da América Latina. Inicialmente, a cultura indígena foi considerada como incapaz de produzir, sendo associada à preguiça, ao pecado e ao atraso, e por isso, sob o peso das armas e da ideologia euroetnocentrica, foi em sua grande totalidade, destruída. A seguir, o problema da falta de braços levou à nódoa da escravidão e ao concurso dos migrantes, durante mais de quatro séculos e meio. Especificando o caso brasileiro, as conseqüências desse tipo de colonização deixaram marcas profundas, claras e visíveis nos dias de hoje – a marginalização dos negros e dos seus descendentes, os colocam fora do mercado de trabalho, ou ganhando salários menores, ou desempenhando atividades de mais baixo status social. (GAMBINI, 1998). No caso do Brasil, a partir de 1980, o país, já industrializado e urbanizado passou a viver um problema inverso. Em vez de faltarem braços, a questão passou a ser a falta de emprego para os que queriam trabalhar. A partir da década seguinte, anos e anos de baixo desempenho econômico foram aumentado, progressivamente, o número de pessoas que não conseguem emprego. Além desse baixo desempenho econômico, surge uma grande transformação na estrutura administrativa e tecnológica das empresas: é nula a criação de empregos industriais; modifica-se profundamente a organização dos processos Publicada em Outubro de 2006 fabris; altera-se o perfil de habilidades, educação e qualificação dos trabalhadores; enfraquece-se a base sindical organizada; aprofunda-se a automação on-line, flexível e abrangente; poupa-se o capital de giro com a minimização dos estoques; enxuga-se o sistema de administração das empresas, com a supressão de níveis hieráquicos e com as terceirizações; articulam-se redes eletrônicas de suprimento com fornecedores e distribuidores. (BARELLI, 2003). As conseqüências em relação ao número de empregos são evidentes. Enquanto no paradgma da Segunda Revolução Industrial a maior produção significava empregar maior número de trabalhadores, inaugura-se agora a época do crescimento sem emprego. No caso do Brasil, lembra Barelli, ficamos só com o “desemprego”, porque também não houve crescimento. O desemprego amarga a vida de muitos brasileiros, e tanto pior quando se trata daqueles literalmente excluídos do sistema: os sem educação e qualificação profissional, os sem teto, os sem condições mínimas de sobrevivência, os sem assistência médica, os sem proteção do Estado. A falta de vínculo empregatício gera salários menores, falta de proteção legal e a ausência da contagem do tempo de aposentadoria. Inseridos neste espaço de segregação social, é que se encontram as pessoas que exercem a atividade de catar papel nas ruas, objeto do presente estudo. Assim, a pobreza e a necessidade de manutenção da dignidade na miséria, levam à *Sônia Regina C. Lages: psicóloga, especialista, mestre e doutoranda em Psicossociologia pela Univiversidade Federal Rio de Janeiro. Docente na Faculdade Estácio de Sá e em outras instituições privadas de ensino superior, em Juiz de Fora/MG. O presente artigo faz parte de um projeto maior que é de montar um Planejamento Estratégico para a Associação de Catadores de Papel da Cidade, que enfrenta sérios obstáculos, colocando em risco sua sobrevivência. Essa etapa já está sendo desenvolvida esse ano, com a parceria da Faculdade Estácio de Sá/Juiz de Fora, SEBRAE/JF, AMAC (Associação Municipal do Cidadão de Rua e de outras empresa da cidade). Esther Lopes Karlburger: discente, aluna do 8. período do curso de Administração da Faculdade Estácio de Sá/Juiz de Fora Renata Delgado: discente, aluna do 8. período do curso de Administração da Faculdade Estácio de Sá/Juiz de Fora Professores (s) Colaboradores (as): Adriana Viscardi, Daniela Borges L Souza, Francisco de Assis Araújo, Luciana Lima Lusi Campos, Marcelo Rother de Souza,Walter Tadeu Ribeiro e Isabela M. Veloso. Correspondência deverá ser enviada para: Sônia Regina C. Lages, Rua do Imperador, 342 – Condomínio Bosque Imperial – Bairro São Pedro. Juiz de Fora/MG Telefone: (32) 3214.3931 e-mail: [email protected] 34 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 construção de estratégias de sobrevivência, fazendo com que o individuo ou o coletivo procurem formas de inserção social. Mas, por mais maciça que seja a realidade dos poderes e das instituições e sem alimentar ilusões sobre seu funcionamento, De Certeau (1990) sempre discerne um movimento de resistências, as quais fundam por sua vez microliberdades, que utilizando recursos insuspeitos, deslocam a fronteira da dominação dos poderes sobre a multidão anônima. O autor dá atenção à liberdade interior dos que não se conformam com o que é organizado e instituído. Ele acredita na criatividade do mais fraco, que através de táticas é capaz de escapulir do poderes vigentes. Esses atos de resistência se concretizam através de uma prática no cotidiano de pessoas comuns, a que De Certeau dá o nome de artes de fazer. Arte no sentido de burlar, de cambiar, de ser capaz de viver em áreas fronteiriças, em lugares transitórios. São as astúcias das pessoas comuns que invertem a ordem a seu favor, que De Certeau irá estudar. Interessa a ele as redes de uma antidisciplina que vão sendo tecidas no dia-a-dia. Segundo o autor, o racionalismo ocidental não se dá conta que as pessoas ainda hoje podem agir através de um modelo que se remonta às astúcias milenares dos peixes disfarçados ou dos insetos camuflados. Escondida sob o rótulo de consumidores, de dominados, a gente ordinária vai construindo, nas práticas do cotidiano, mil maneiras de empregar o produto que é imposto pelas classes dominantes. Na fila dos que lutam pela sobrevivência, a partir da construção de táticas, que como disse De Certeau, conseguem transformar a própria realidade, e, aqui, literalmente, a partir do que as classes consumidoras descartam, encontra-se o catador de papel que apesar de inserido na atividade da coleta de lixo urbana, são freqüentemente explorados. Sem informação, desprovidos de representação legal, sem reconhecimento de categoria profissional, sem financiamento das empresas de crédito, vendem sua mercadoria para intermediários que os vendem às indústrias de reciclagem (GROSSI, 1998). Publicada em Outubro de 2006 Na contra-mão dessa situação, iniciativas da sociedade civil organizada e do poder público apoiam o trabalho dos catadores de papel, como é o caso da APARES, que recebe o apoio da AMAC – Associação Municipal de Apoio à Comunidade, órgão do governo municipal. O desafio de construir e consolidar direitos de cidadania e particularmente os direitos sociais, para uma população que vivendo abaixo da linha da pobreza, encontra-se hoje frente às perversas ameaças da modernidade capitalista tardia e da globalização, que cada vez mais a desloca para a periferia do sistema, gerando uma dura realidade que exige reflexões e muitas ações. Assim, o cooperativismo, o associativismo, surgem como iniciativas solidárias que se apresentam como um espaço de vivência e valores não hegemônicos, bem como, apresentando a capacidade de gerar efeitos equivalenciais, se tornando, dessa forma, uma ação estratégia contra a miséria e a pobreza. (CORTIZO, OLIVEIRA, 2004). O que no entanto se percebe, é que dentro de pouco tempo, obstáculos vão se configurando e dificultando o avanço, o crescimento e desenvolvimento dessas iniciativas, o que é compreensível e natural já que elas estão inseridas dentro de um modelo econômico, que hoje, como em nenhum momento da história, tem como palavra de ordem, a competição, como forma de sobreviver num mercado extremamente mutante. Tal situação foi observada na APARES. Se por um lado, a associação possibilita a organização um espaço que dá conteúdo prático à luta dos catadores que sobrevivem do que é descartado pela sociedade (LAGES, 2005), possibilitando inclusão a social e a elaboração de novos sentidos de subjetividade e de identidade social, por outro lado, as dificuldades encontradas colocam em cheque sua sobrevivência. 2 PERFIL E ESTRUTURAÇÃO DA APARES Com o objetivo de organizar os catadores de papel da cidade de Juiz de Fora, em torno de uma Associação, maneira essa de proporcionarlhes maior autonomia, melhores condições de 35 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 trabalho e inserção social, a AMAC Associação Municipal de Apoio Comunitário de Juiz de Fora apoiou a formação da APARES, em 1998. Coube à AMACJF: ceder as instalações, o galpão, que possui em torno de 600 m2, onde os catadores fazem a triagem do lixo; a responsabilidade pelo pagamento dos salários de um contador, de um auxiliar administrativo e de um prensista; a cessão de equipamentos – prensa e balança; a doação de uma cota de alimentos básicos utilizados no almoço dos associados; e, ainda, a doação de uma cesta básica mensal a cada catador. A AMAC também garante creche para os filhos dos catadores e encaminha os adolescentes para os programas a eles destinados, por esse órgão. Segundo Regina Caeli de Souza Cunha, responsável pela desenvolvimento do programa, a idéia inicial era que dentro de algum tempo a APARES se tornasse autosustentável, desatrelando-se da AMAC. Mas isto não aconteceu. A APARES é totalmente depende daquele órgão público. O valor gerado pela atividade dos catadores não é suficiente para arcar com as despesas. Além disso existem sérios problemas de infraestrutura no galpão, o que já propiciou um incêndio no local (o gasto com a restauração foi feita pela AMAC) e o mobiliário é bastante precário. E, ainda, o produto disponível para a coleta dos associados tem diminuído devido à competição ser hoje bem forte, uma vez que outras classes sociais mais favorecidas disputam com o catador a coleta do papel na cidade, fato esse que denuncia o empobrecimento das pessoas de forma geral. No entanto, o fato mais agravante é que os associados não possuem condições de se tornarem os próprios gestores do seu negócio. Tal situação é conseqüência do baixo índice de escolaridade e da dificuldade dos coletores na adoção de novos comportamentos, no que se refere à falta de coesão do grupo devido a lideranças negativas que acaba por dificultar a internalização de valores éticos e de um Publicada em Outubro de 2006 efetivo trabalho de equipe em prol de uma meta única - o trabalho cooperativo. A falta de registro da Associação é também um impedimento de crescimento. Segundo G., 32 anos, sete anos coletando papel nas ruas: Nós temos muitas dificuldades porque a Associação não é registrada, e se a APARES fosse registrada, para nós seria melhor, porque muitas pessoas deixam de doar o material por ela não ter o registro. Igual à Caixa Econômica Federal, nós já conversamos com o pessoal de lá, eles tentaram fazer um convênio com a gente para doar o papel. Ta escrito e tudo, mas eles estão esperando o registro da APARES. Assim também, outras empresas para fazer a doação precisam desse registro, e nós não temos. O cooperativismo pressupõe igualdade, prudência ecológica e solidariedade, mediado por princípios de justiça, democracia e autogestão. É dessa forma que o cooperativismo se caracteriza como uma possibilidade de inclusão no mercado de trabalho, mas principalmente como um espaço de politização, de aprendizado e de construção coletiva de cidadania. (CORTIZO, M. Del Carmem, OLIVEIRA, Adriana L., 2004). Mas essa consciência cooperativista é difícil de ser construída, uma vez que a cultura do “jeitinho brasileiro”, que preconiza a esperteza, a malandragem, a ação através de estratégias que fogem aos padrões morais foi fortemente internalizada no decorrer de mais de quinhentos anos. A APARES conta hoje com quarenta catadores capacitados para a atividade, mas somente dezessete freqüentam a associação sistematicamente. Essa capacitação é um prérequisito para que o catador possa se associar. Ela consiste num curso de quarenta horas em 36 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 que são abordados temas que envolvem habilidades básicas, específicas e de gestão. viria de uma infraestrutura que permita a venda dos resíduos diretamente às fábricas, sem a mediação dos depósitos. A Associação segue os princípios do cooperativismo, se organizando em cinco comissões: a de coordenação, a de fiscalização, a de cultura e lazer, a de meio ambiente o conselho fiscal, cargos esses que são ocupados pelos catadores. 3 METODOLOGIA A pesquisa foi realizada através de duas etapas. Na primeira, o método empregado foi o etnográfico, realizado durante os meses de agosto a dezembro de 2005, e utilizou a entrevista aberta, com o uso de uma câmara de vídeo. O objetivo geral era de detectar o significado do trabalho para os associados, considerando a atividade que realizavam e seus reflexos em suas vidas pessoais e pública: a reação das pessoas da rua quanto à sua presença; dos motoristas; do comércio local, buscando, ainda, compreender o sentido dos diferentes significados que os associados internalizavam a partir do discurso ecológico, promovidos pela Amac, e de que forma a atividade contribuía com a melhoria da autoestima. Dentre os dezessete associados, com faixa etária entre dezoito a sessenta anos e na sua quase totalidade, analfabetos, a maioria são homens. Com o trabalho chegam a ganhar, em média, de meio a um salário mínimo. Esse valor sofre variações devido à dinâmica sazonal influenciada pela oscilação do consumo da população. Em épocas do ano marcadas por um comércio mais intenso ele aumenta, no entanto a produção diminui consideravelmente no período de chuvas, quando a atividade não é desenvolvida, pois não se pode vender o papelão molhado. Nesses períodos, a situação dos catadores se agrava, pois se não coletam o papel nas ruas, eles não têm o que vender, e assim não ganham nada. A segunda etapa, realizada de dezembro de 2004 a dezembro de 2005, teve como método a pesquisa-ação, que objetivou levantar os dificultadores relacionados à administração da Associação, e a partir daí, desenvolver treinamentos focados em tais dificuldades. Os treinamentos foram realizados por alunos e professores do curso de Administração da Faculdade Estácio de Sá, que receberam os treinamentos adequados para que pudessem estar ministrando os cursos a um público, que como já foi dito, é na sua grande maioria analfabeto. A APARES sofre a concorrência dos outros coletores que não são associados e que vendem os produtos direto para os depósitos de papel; a concorrência da própria população que também separa e vende o material selecionado (latinhas, papelão, pet); a concorrência do DEMLURB – Departamento de Limpeza Urbana do Municípo, que com seus caminhões recolhem o lixo que foi separado e o encaminha para a Usina de Triagem do município; e principalmente a falta de consciência ecológica da população que ainda não se habituou a separar o lixo doméstico em resíduos secos e os úmidos. A falta de um transporte próprio, a máfia dos donos de depósito da cidade que além de explorar o trabalho dos catadores, contribuem de forma pontual para o com o alcoolismo de muitos coletores e para a manutenção de uma cultura perversa em que a trapaça media a relação que deveria ser profissional, são outros sérios problemas que aquelas instituições enfrentam. A solução para tantos problemas Publicada em Outubro de 2006 A seguir, então, estaremos relatando o desenvolvimento da pesquisa. 3 A DINÂMICA DO TRABALHO, A ROTINA E O SIGNIFICADO SOCIAL DO LIXO Diz Roberto DaMatta (1987) que “casa” e “rua” designam entidades morais, esferas de 37 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 ação social, províncias éticas dotadas de positividades, domínios culturais institucionalizados, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e estéticas. Contrapondo a rua à casa, o autor nos diz que na rua passamos por indivíduos anônimos e desgarrados, quase sempre maltratado, sem voz. Somos na rua “subcidadãos”, e por isso nosso comportamento é sempre negativo. Assim, joga-se lixo na rua, desrespeita-se o sinal de trânsito, depreda-se a coisa comum, não se tem vergonha da desordem. A rua é lugar do povo, da massa, da prostituição, da malandragem, da anomia. E é nesse espaço que as pessoas são ninguém, que o excluído circula e deixa à mostra uma ferida social: o Brasil progrediu dos excluídos necessários (que o capitalismo dizia ser temporário e em prol de um futuro que seria bom para todos) aos excluídos desnecessários, forjando atores incômodos politicamente, ameaçantes socialmente e d e s n e c e s s á r i o s economicamente.(NASCIMENTO, 1995). Se no Brasil colônia, índios e negros se constituíam como mercadoria disponível e necessária, o modelo de desenvolvimento adotado pelo país acabou por concentrar os níveis de carência e privação cada vez mais aos bens imprescindíveis à sobrevivência física, como salienta Denise Juncá (2004, p.108). Mas se os excluídos que perambulam à procura de sobrevivência, são vistos, como disse DaMatta sobre a lógica da rua, como entes perigosos, um bando de gente suja com propensão ao alcoolismo, à vagabundagem, candidatos ao banditismo, o que se verifica é a reapropriação, pelos catadores de papel, desse espaço de anomia, conferindo-lhe significados de dignidade e honestidade através do trabalho que realizam. As associações a que pertencem são em grande parte responsáveis por essa inversão de significados, quando através da conscientização da importância da preservação e do cuidado com o meio ambiente, engrandece Publicada em Outubro de 2006 e dá sentido ao trabalho do catador de papel. Como diz BM., 24 anos: Muitas pessoas critica a gente, fala que tipo assim: que pessoa porca, fica mexendo no lixo, mas mal ele sabe que se não fosse a gente era arriscado já ter cortado mais de não sei quantas árvores, e que hoje em dia não é preciso de cortar porque tem a reciclagem, entendeu? Igual a gente fez um curso aqui e eles levou a gente pra ver a importância que é nosso serviço, porque se não for a latinha amassada vendida pra eles derreter e fazer outra, pra mandar para o comércio de novo, eles iam gastam muito o dobro de energia, eles economizam com o nosso serviço. O discurso da consciência ecológica, promovido pelas associações de catadores, é internalizado pelos associados, assim como possibilita uma nova linguagem, mais conectada com o mundo do capital: o lixo é um produto, que catado e reciclado, faz a empresa economizar e ter mais lucro. Z., 44 anos, também inverte sua posição social através de seu trabalho com o lixo: Eu sinto muito orgulhosa do que eu faço, você não trabalha com reportagem, você não se sente orgulhosa do que você faz? Uma dentista não sente orgulhosa de ser dentista? Assim a mesma coisa é eu. Fico muito orgulhosa de catar papel, porque primeiro é o meu sustento, sustento dos meus filhos, porque eu não tenho pensão, não tenho salário, não tenho nada, eu vivo disso, eu vivo 38 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Outubro de 2006 de papel. Segundo é uma experiência de vida, porque hoje o catador de papel é o último serviço na lista de escala do mundo, mas se o brasileiro reparar na sociedade, no meio ambiente, ele é o primeiro serviço. Porque sem o ar você não respira, sem uma árvore, sem um rio, sem uma cachoeira, sem a chuva. E para que a chuva? A chuva tem que ter o rio, o rio tem que ter rede de esgoto. E se você deixar o lixo todo ir para a enchurrada, para a rede de esgoto, pras mata, como você vai poder amanhã ser um cidadão brasileiro? (...) Então eu me sinto muito orgulhosa de passar na sua casa para catar o seu lixo. Coletar resíduos sólidos é uma profissão, que gera o sustento da família. Ainda nas palavras de G.: A APARES participa efetivamente da individuação dos catadores de resíduos sólidos. Eles se vêem diferentes dos demais. São treinados, qualificados para essa atividade: Assim como o trabalho dos catadores oferece o sustento da família, orgulho por ser trabalhador e estar inserido no mercado de trabalho, ele também é fonte de discriminação social. Ainda na fala de G.: A Associação é diferentes dos outros depósitos aí em que os catadores vão pra rua, e aí chega lá e rasgam o lixo todinho, aí o pessoal fica assim com o pé atrás com o catador. Por isso é que nós temos trainamento. A gente aprende e ensina a não rasgar o saco de lixo, a espalhar o lixo, a não beber. A gente aqui não aceita que o catador beba na hora do serviço, não aceita que ele saia fazendo sujeira por aí. Aqui mesmo na frente da Associação. Quando a gente vê que a porta ta suja, nós vai e limpa. (G, 32 anos). (...) o jeito que as pessoas me olham... Às vezes você está indo com o carrinho, as pessoas atravessam para o outro lado da rua, isso eu já passei muito. (...) é muito difícil você criar seus filhos, entendeu? Se você fica em casa, você não tem como dar uma alimentação pra eles direito. Eu não tenho. Eu não dou tudo pra eles, tudo que eles quer, mas pelo menos eu não deixo faltar pra eles o leite, o pão de manhã. Às vezes meus filhos pedem iogurte, eu dou eles.Catar papel é uma profissão honesta. Você está trabalhando, não está tirando nada de ninguém. Só disso aí já fico orgulhos, saber que estou tirando meu sustento do meu próprio suor. Ou, ainda, como fala NN, 44 anos, três anos da rua coletando papel: Ainda tem certas pessoas que tratam a gente com descaso, né? Ainda não tem o respeito que o catador de papel deveria ter. Eles acham que o catador de papel é a mesma coisa que o lixo. Mas se sentem na pele a discriminação que sofrem por uma parcela da sociedade, uma 39 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 outra já enxerga o catador de papel como cidadão, trabalhador: Mas tem muita gente que respeita, que já separa o papel pra gente, já chama e entrega o papel pra gente. Tem muita gente hoje que já se conscientizaram, que o trabalho do catador de papel é um serviço pra sociedade. Publicada em Outubro de 2006 redes tão apertadas que é impossível sair fora delas, mas que a partir das referidas táticas, o vencido da história pode construir um campo em que ele possa sobreviver. Podemos pensar, a partir das falas dos catadores, e a partir de De Certeau, que o cooperativismo é também uma maneiras de colocar na agenda a reivindicação de seu status de cidadão, e em suas vidas, a esperança. 4 ADMINISTRANDO A APARES E, como diz G., 32 anos: Mas tem muitas pessoas que passam perto de você e te dá mais orgulho ainda de você estar catando seu material, porque às vezes uma pessoa chique, importante, passa ali e pára, te dá atenção, ou então de cumprimenta. Só isso daí faz você se sentir mais feliz de estar trabalhando, e você vê que aquela pessoa está se importando. Laços de solidariedade e união são construídos, o sentido de família é reconstituído, através das cooperativas. Diz W. 22 anos que saia para ajudar a mãe a catar papel quando tinha oito anos de idade: Aqui é uma casa, cheio de irmão, ora cê briga com um, cê briga com outro. Tem hora que cê ta bem com um, num tá bem com o outro, mas se um passar mal lá fora, todo mundo vai atrás dele pra ajudar. (NN, 44 anos) Como foi visto anteriormente, De Certeau (1994) afirma que a cultura popular encontra táticas para desfazer a ordem estabelecida, e aqui no caso, a da miséria e da exclusão social e econômica. E, ainda, que o sistema constrói Apesar de realizar negócios comerciais, não tendo como finalidade principal a obtenção do lucro, as organizações associativistas que integram o emergente terceiro setor têm como objetivo apresentar respostas e alternativas ao problemas de nossa época, sobretudo àqueles decorrentes das rápidas mudanças sociais e tecnológicas (DOMINGUES, CRISTOFOLI, 2004), que acarretam para as populações mais pobres o alto risco de sobrevivência, e o abismo social. Os novos paradgmas da globalização e todas as suas conseqüências, aterradoras para grupos sociais desfavorecidos sócioeconomicamente, colocam na ordem do dia uma série de novos comportamentos necessários para fazer frente às novas tecnologias, à aceleração do tempo, à desfragmentação do espaço e das coletividades, ao crescimento do individualismo, provocados pelas novas formas de comunicação, transporte e produção. (BAUMANN, 1998). No entanto, o que se observou na APARES foi o total despreparo dos seus associados para essa nova visão: de que o trabalho que realizam é um negócio que precisa ser gerido de acordo com alguns pressupostos mercadológicos e de gestão de empresas, sem a perda do seu caráter solidário e cooperativista. Dentre as dificuldades levantadas, destacamos algumas delas, que foram objeto de nossa pesquisa-ação, que se refere à baixa 40 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 produtividade decorrente, devido a vários fatores: falta de tecnologia e informação; falta de um planejamento estratégico; significativa deficiência na gestão de pessoas; modelo paternalista de gestão administrativa; lideranças desmotivadas; desconhecimento total dos processos contábeis; inexistência de espírito empreendedor; forte expectativa quanto ao apoio do poder público; falta de controle de qualidade. A partir de tal diagnóstico, foi realizado uma série de treinamentos de curta duração, que se desdobraram em quatorze módulos, na forma de mini-cursos, cada um com carga horária específica, variando entre quatro a oito horas/ aula cada curso. Os treinamentos foram ministrados pelos professores da Faculdade Estácio de Sá e pelos discentes, participantes da pesquisa. A maior parte dos mini-cursos foram realizados nas dependências da Faculdade Estácio de Sá, e outros, no próprio espaço da APARES. Face à pouca quantidade de horas destinadas a cada módulo, queremos enfatizar que os treinamentos oferecidos, tiveram o objetivo de abrir um espaço de discussão para os associados da APARES, através de mediadores (monitores e professores), que pudessem contribuir de forma positiva com a construção e ampliação de uma consciência crítica e pela busca de soluções para as questões levantadas. Os mini-cursos se organizaram da forma que segue, e ao final dos mesmos, todos os membros participantes receberam Certificado de Conclusão de Curso, emitido pela Faculdade Estácio de Sá: Cultura Brasileira; Globalização; Liderança e Formação de Equipes; Ética; Marketing Pessoal; Relacionamento Interpessoal; Português através de imagens; Técnicas de compra e venda; Meio Ambiente; Gestão de Negócios; Noções de Informática; Noções de Contabilidade; Planejamento Estratégico; Noções de Marketing. Os dificultadores que se apresentaram foram mais constantes nos cursos técnicos, como o de Contabilidade e de Informática. Foi visível a dificuldade da grande maioria dos associados de compreender a linguagem contábil e virtual. Muitos dos membros tinham dificuldades em lidar com as mãos e os dedos no manuseio do mouse, demonstrando dificuldades bastante primárias referentes à educação, no que se refere ao Publicada em Outubro de 2006 movimento de pinça que habilita a criança a segurar um lápis. A Contabilidade, apesar de ter sido considerada “difícil”, conseguiram compreender que muitos dos processos contábeis que se faz hoje na APARES, não estão corretos, precisando serem revistos. Os cursos relacionados ao Marketing, à Vendas, ao Meio Ambiente, à Gestão de Negócios, à Cultura Brasileira à Globalização, e ao Português através das imagens, deixaram os professores e monitores surpresos, pela compreensão que demonstraram sobre os assuntos. Tal fato tem lógica, uma vez que sem saber nomear conceitos e teorias administrativas, eles têm a prática, no seu cotidiano. Demonstraram estar sintonizados com o processo histórico, econômico e cultural que colocaram a grande maioria da população brasileira às margens do sistema. A questão considerada mais grave foram as relativas ao comportamento organizacional – questões referentes à liderança, ao trabalho em equipe, e, principalmente à ética. Verificou-se que uma percepção bastante paternalista da associação, em que alguns grupos tentam se beneficiar, inclusive alterando o peso dos produtos na balança, para mais, quando se trata dos membros que são considerados “de dentro” do grupo. Existe também desconfianças quanto às lideranças do grupo, que apoiam tal situação e nada faz para modifica-la, até mesmo porque elas se beneficiam desse esquema. As equipes trabalham sem metas, sem objetivos, sem qualquer tipo de cobrança. O ambiente organizacional é mantido sob uma certa tensão, que apesar de haver um discurso de igualdade, ele não acontece na prática. A comunicação é feita através da “rádio peão”, ou seja, um permanente clima de fofoca predomina no ambiente de trabalho. Mais recentemente, foi necessário que a AMAC colocasse um funcionário da Prefeitura para fiscalizar o processo de pesagem dos produtos, fato decorrente dos enormes desvios que estavam ocorrendo. Tais atitudes são compreensíveis, face à miséria em que vivem, mas é também um forte impedimento para que a Associação mantenha seu caráter cooperativista e para que ela possa crescer e se tornar auto-sustentável. 41 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 O curso de Planejamento Estratégico foi recebido com grande entusiasmo, pois os associados vislumbraram a possibilidade, de a partir da própria Associação, se movimentarem em busca de sua ampliação e desenvolvimento, uma vez que até então sempre aguardaram a iniciativa da AMAC e da Prefeitura Municipal para mantê-los. CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos que a globalização e o acelerado avanço tecnológico, trouxeram consigo uma série de transformações, quanto à natureza do trabalho, exigindo adaptação do mundo – tanto nos países ricos como nos países pobres. No entanto, este último foi mais gravemente atingido por essa nova fase do capitalismo, que sofre com a falta de emprego e proteção do Estado, vendo crescer vertiginosamente o trabalho informal, o que significa falta de seguridade e proteção social e queda na renda. Mediante esse quadro, o cooperativismo surge como prática de resistência, seja à exclusão do mercado de trabalho, seja à exclusão cultural e social. No entanto, como foi visto, as dificuldades de manutenção da APARES são muitas. Elas se reúnem num conjunto de entraves que se referem à falta de consciência da população que ainda não se habituou a separar o lixo orgânico do lixo seco, reduzindo a coleta seletiva; à falta de um espaço físico maior que permitiria a inclusão de novos associados; à concorrência desleal dos depósitos de papel da cidade e a concorrência de outros catadores de papel da cidade; à falta de vontade política do governo municipal em investir naquelas entidades, tornando-as parceiras do órgão de limpeza urbana da cidade, dentre outros. Por outro, como transparece na fala dos catadores, a realidade é apropriada com novos significados, a partir de sua integração à associação. O discurso de conscientização política, de cidadania, o discurso ecológico, veiculados através daquelas instituições, assim como os cursos de capacitação oferecidos aos associados, e, ainda, as redes de solidariedade tecidas entre os mesmos, acabam por construir um novo cenário em que os catadores de papel Publicada em Outubro de 2006 retomam seu lugar no mundo da produção capitalista. Mais que isso, apesar de sofrerem restrições da sociedade, os catadores interagindo com os valores sociais do meio em que circulam, se colocam como atores de uma linguagem que se direciona à defesa dos seus direitos; ao encorajamento que propicia o desafio às regras estabelecidas; à ampliação de uma visão individualista para uma visão coletivista do trabalho; à explicitação das relações de poder econômico e social; às práticas de solidariedade e apoio emocional. Tais ações, apesar de não terem intenção de substituir o Estado, se configuram como iniciativas que, articulando parcerias com a sociedade civil tira da anomia e da fome, pessoas antes destinadas a desaparecerem dos espaços oficiais do sistema, restituindo-lhes dignidade e identidade humana. Vimos também, que no sistema associativista, como o da APARES, é possível inserir pequenas economias no sistema produtivo, desde que elas estejam conscientizadas de que a sustentabilidade da Associação depende de que seus associados desenvolvam uma visão de que são gestores de um negócio, e que esse negócio, gerador do produto que vendem para o mercado, precisa estar sintonizado com as políticas desse mercado. No entanto, os associados da APARES, para que possam vir a desenvolver a visão acima colocada, precisam de um grande investimento que consiste na realização de parcerias que envolvam o poder público, empresas privadas, comunidade e Ong’s. Tal necessidade advém de uma série de dificultadores que têm como gênese: o processo histórico da economia e da cultura brasileira fundada no escravismo; o descaso do Estado pelos desfiliados do sistema; o analfabetismo; o lixo como cultura do descartável; a falta de consciência coletiva e o crescente individualismo, marcas da cultura de massa e da sociedade de consumo, presentes hoje na sociedade. A resposta dos associados da APARES aos cursos ministrados, foram surpreendentes para os monitores, face à facilidade que a maioria deles apresentou na compreensão dos conhecimentos 42 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 que estavam sendo transferidos. Apesar de possuírem baixíssima escolaridade, eles possuem uma grande experiência no mundo do trabalho. E foi essa experiência, que serviu de instrumento para que os fundamentos e conteúdos pudessem ser mais facilmente absorvidos. Acreditamos que a maior conquista dos treinamentos realizados se refere à visão e à conscientização que os membros da APARES passaram a ter. Perceber a Associação como um negócio, que deve ser bem administrado, tanto em termos de recursos materiais como de recursos humanos. Consciência de que a falta dessa visão compromete a ética da Associação colocando em risco sua sobrevivência no mercado e o respeito da comunidade. Um fruto concreto dos treinamentos foi a realização de um churrasco que os associados organizaram para levantar recursos para a APARES. O valor arrecadado foi destinado à concertos nas instalações do depósito, onde funciona a associação. O projeto continua no ano de 2006 e tem como ação a realização do Planejamento Estratégico para desenvolvimento e crescimento da APARES. Ele já foi iniciado e conta agora com a parceria da Faculdade Estácio de Sá, do SEBRAE, da AMAC, da APARES e de outras empresas da cidade. Os depoimentos dos participantes dos mini-cursos foram altamente positivos. Para a maioria, a importância maior foi a nova visão que conseguiram ter sobre a Associação: uma micro empresa que tem que ser administrada com eficiência, ser auto-sustentável, que precisa aumentar a produtividade através da diversificação de novos produtos, que precisa se manter no mercado buscando novas parcerias. Acrescentaram, no entanto, que as horas de curso foram muito poucas, que precisavam de mais. Mas foram dois depoimentos que mais nos afetou. O de uma mulher catadora de papel há oito anos, S.(52 anos): Eu nunca pensei que um dia em minha vida eu fosse entrar numa Faculdade, e sentar numa cadeira assim, numa sala assim, poder ir a um banheiro igual ao daqui, conversar com professores que dão aula. E o depoimento de J. (58 anos): Publicada em Outubro de 2006 Sempre ouvia o pessoal falando da tal informática e quando eu cheguei aqui e fui mexer no computador eu pensei: é ele ou eu. Nunca vi coisa mais difícil no mundo. Mas não dá vontade agora de largar. Eu queria continuar aprendendo. Bem, cidadania tem muitos significados! REFERÊNCIAS BLBILIOGRÁFICAS 1. BARELLI, Walter. Trabalho e renda: revitalizando o mercado de trabalho, quebrando o ciclo da pobreza e gerando riqueza na base da pirâmide. IN: BOOG, Gustavo e outros. Tempo de Convergir. São Paulo: Editora Gente, 2003. 2. BAUMAN, Zygmund. Globalização – as conseqüências humanas. Rio de janeiro: Jorge Zaahar,1998. 3. BRIDGES,William. Um Mundo Sem Empregos. São Paulo: Makron Books, 1995. 4. CATTANI, Antonio (org.). Trabalho e Tecnologia: Dicionário Crítico. Rio de Janeiro:Vozes, 1997 5. DA MATTA, Roberto. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987 6. DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1990 7. DOMINGUES, José Calos Felício, CRISTOFOLI Fulvio. Constituição Legal das cooperativas de trabalho e aspectos contraditórios da legislação tributária. 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