desta edição - Escola Paulista de Magistratura
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E S C O L A PA U L I S TA D A M A G I S T R AT U R A Órgão d o Tr i b u n a l d e J u s t i ç a d o E s t a d o d e São Pau l o há muito trabalho no sumário Diretor Desembargador Carlos A. Guimarães e Souza Júnior Vice-diretor Desembargador Octávio Roberto Cruz Stucchi diálogos&debates Diretores Des. Demóstenes M. Braga e Juiz Régis Rodrigues Bonvicino Conselho editorial Ministro Antonio Cezar Peluso, Ministro Helio Quaglia Barbosa, Prof. Antonio Angarita, Dalmo do Vale Nogueira Filho, Prof. José Eduardo Faria, Luiz Antonio G. Marrey (Proc. de Justiça), Hubert Alquéres (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), Juiz Antonio Carlos Villen, Dep. Sidney Beraldo e Arnaldo Madeira, Jaime de Castro Júnior (Banco Nossa Caixa S/A), Luis Francisco da Silva Carvalho Filho (advogado), Rolf Kuntz (jornalista) Editor Carlos Costa Editor de arte Ricardo Assis Repórter Sérgio Praça Colaboraram neste número: Carlos Fernández, Edson Vismona, Eliane Cantanhêde, Fábio Fujita, Glauco Sabino, Henrique Kipper (ilustrações), José Batista de Carvalho (revisão), Luthero Maynard, Maísa Infante, Marcello Simão Branco, Marco Antonio Scarpassa, Patricia Moterani, Sergio Conrado Cacozza Garcia, Tiana Chinelli, Vanessa Ruiz. Editoração eletrônica Negrito Design Editorial Coordenação editorial César Lacerda Projeto gráfico Ricardo Assis • Negrito Design Editorial Arte Tomás Martins • Ana Paula Fujita Jornalista responsável Carlos Roberto da Costa (reg. 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Envie seus comentários, críticas e sugestões sobre a revista para o e-mail [email protected] ou para a revista Diálogos&Debates, Escola Paulista da Magistratura, Rua da Consolação 1483, 2o andar, CEP 01310-100, São Paulo, SP, tel. 3256 6781, fax. 3258 5912. 4 diálogos&debates setembro 2004 Hoje, a fronteira do Brasil é o mundo 6 caminho para a excelência Entrevista Horácio Lafer Piva A “democracia” de Chávez 14 por Marcello Simão Branco A Justiça em obras: reformar o quê? 18 por Edson Vismona Os labirínticos caminhos da legislação brasileira 20 por Sérgio Praça e Patricia Moterani Governo PT: o liberal e o nem tanto 24 por Eliane Cantanhêde A medicina como missão 26 Entrevista Maria do Patrocínio Tenório Nunes Um jogo de empurra 34 por Sergio Conrado Cacozza Garcia Acervos de música online 36 por Maísa Infante Poder e fraqueza dos legislativos municipais 40 por Sérgio Praça Um direito a ser regulamentado 46 por Marco Antonio Scarpassa As saudades do século XX 50 por Fábio Fujita Um jurista nos tempos da Colônia 54 por Luthero Maynard O olhar agudo de uma crítica 58 Entrevista Beatriz Sarlo Um ensaio moral sobre a fotografia por Carlos Costa O ponto de partida da construção da identidade coletiva é uma visão compartilhada do interesse comum”, ensina o professor Gilberto Dupas. Se a nação nasce de um postulado e de uma invenção, ela só vive pela adesão coletiva a essa invenção, por obra da interiorização daquilo que é considerado repertório comum. No caso do Brasil, parece nos custar muito chegar a essa visão compartilhada e, depois, trilhar os caminhos que levem à competência e à excelência. E esse é o eixo das reflexões propostas por alguns dos temas reunidos nesse número. Deixando a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo após oito anos à frente da entidade, o empresário Horácio Lafer Piva fala, na primeira das entrevistas, de sua aposta no Brasil a médio prazo, isso se os atropelos e falhas do presente forem encarados de frente. Da grande fazenda que éramos nos anos 20 ao país que constrói aviões a jato, muito se andou, mas há ainda muito trabalho a realizar, diz ele. Pois se a fronteira do Brasil é o mundo, e o país aceitou o desafio da inserção global, é preciso sair do círculo vicioso do “pára e segue”, buscando um crescimento sustentável que traga benefício para todos. Mas para isso será necessário finalizar a reforma trabalhista, atacar a revisão do sistema tributário, e investir na modernização da infra-estrutura e, sobretudo, cuidar muito da educação. A médica Maria do Patrocínio Tenório Nunes, professora da Universidade de São Paulo e membro do Conselho Regional de Medicina, também aposta na necessidade de recuperar a qualidade do ensino como o caminho para a excelência. Ela discorre, numa corajosa entrevista, sobre a complexidade da formação dos profissionais da saúde hoje, chama a atenção para o perigo da proliferação de escolas “ 66 A P R E S E N TA Ç Ã O médicas e da mercantilização do ensino, alerta para o grande negócio dos laboratórios, que se aproveitam da situação de desamparo da população. Mas se indigna, mesmo, com o descuido a que foi relegada a educação. Há muito trabalho pela frente, na tarefa de mudar o país, sem dúvida. É o que mostra o trabalho do jornalista Sérgio Praça, ao analisar os labirintos da legislação brasileira, que deixam o país numa das piores posições em uma pesquisa realizada pelo Banco Mundial em 130 países, para medir quanto tempo se leva, em cada um, para abrir uma empresa. Há muitos entraves, e são muitas as propostas para mudar, basta escolher e compartilhar o caminho e pôr-se à marcha. Isso também fica claro quando o foco de análise é o velho clientelismo, tema de outra reportagem, “O poder e fraqueza dos legislativos municipais”. Mas não se resume a essa discussão os textos reunidos nesse número. Há ainda uma entrevista com a crítica argentina Beatriz Sarlo, que já deixou o brilho de suas análises em cursos e palestras em diversas universidades americanas e européias, de Berkeley a Cambridge. Na conversa com nossa reportagem, Sarlo pontua temas da cultura e fala da problemática que hoje aflige seu país. Há ainda um panorâmico artigo de Marcelo Branco com uma visão sobre o que acontece com outro país vizinho, a Venezuela e sua intensa polarização política sob o governo de Chávez. Edson Vismona, ex-secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania, escreve sobre o Judiciário e o cidadão. E o crítico Luthero Maynard analisa o trabalho do historiador Álvaro de Araújo Antunes, que ao recuperar a história do jurista mineiro José Pereira Ribeiro, nas Minas dos setecentos, traz à luz algumas mazelas que nos ficaram de herança. Uma boa leitura e até dezembro. Carlos Costa setembro 2004 diálogos&debates 5 hoje, a fronteira do brasil é o mundo “Essa é a nossa arena, o país aceitou o desafio da inserção global competitiva. Precisa sair do velho círculo vicioso do stop and go e buscar o crescimento sustentável.” S e Horácio Lafer Piva fosse um investidor estrangeiro, provavelmente esperaria alguns meses para injetar seu dinheiro no Brasil. Otimista a médiolongo prazo e cauteloso no curto prazo, Piva saiu, em agosto deste ano, de um mandato de seis anos à frente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Formado em economia e pós-graduado em administração de empresas, ocupa uma cadeira do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República e é presidente do Conselho de Política Econômica da Confederação Nacional da Indústria. Nesta conversa com Diálogos&Debates, Piva discorre sobre a inserção nacional do país, a relação da Fiesp com o governo e explica por que não devemos nos contentar com um crescimento econômico de 3% ao ano. diálogos&debates O Brasil já foi a 8a ou a 9a economia do mundo e atualmente nem sabemos sua posição em relação às principais potências. Como o senhor enxerga esse momento? horácio lafer piva Eu vejo isso com um misto de aborrecimento e de confusão. O Brasil era uma grande fazenda nas décadas de 20 e 30, conseguiu se tornar a 8a economia do mundo e ensinou o resto da América Latina a ser industrial. É o país que fabrica de parafusos a aviões a jato e conseguiu, após a década perdida de 80 e a década desperdiçada 6 diálogos&debates setembro 2004 E N T R E V I S TA E N T R E V I S TA ENTREVISTA HORÁCIO LAFER PIVA POR CARLOS COSTA FOTOS TIANA CHINELLI de 90, reduzir o seu crescimento para um nível baixíssimo, média de 2% ao ano. Totalmente na contramão dos 6%, 7% que teve durante muitas décadas. Em função de sua composição etária, o país tem de criar 1 milhão e meio de empregos por ano. Não pode pensar num crescimento abaixo de 5% mas parece se contentar com os 3% de que estamos falando agora. diálogos&debates Os jornais acabam de noticiar que o país caiu 7 pontos no Índice de Desenvolvimento Humano... horácio lafer piva Sim, e além de tudo tem apresentado esses fraquíssimos índices de desenvolvimento humano. Fico confuso porque, quando se faz um destaque entre o resultado, pelo menos do ponto de vista da competitividade, do país e de suas empresas – país a país, empresa a empresa –, você vê que na verdade o Brasil está puxando a iniciativa privada para baixo. As empresas brasileiras já têm um grau de produtividade bastante significativo, mas que se perde quando se inclui o famoso “custo Brasil”. Temos empresas que, da porta da fábrica para dentro, seriam competitivas em qualquer lugar do mundo, mas, ao sair porta afora, encontram uma carga tributária absolutamente enlouquecida, setembro 2004 diálogos&debates 7 assimétrica, assim como a elevada taxa de juros, em relação aos países com quem hoje negociam. Estradas muitas vezes de má qualidade, portos inoperantes, um cenário meio desanimador. Com isso, as empresas perdem completamente sua condição de competição. Então, precisamos fazer uma reflexão muito séria sobre qual é de fato o projeto brasileiro. O que queremos para o Brasil. Se a questão do crescimento volta a ser uma meta síntese deste país, como nós vamos fazer para chegar lá? diálogos&debates Um dos grandes diferenciais do Brasil era ter um mercado interno de 170 milhões de habitantes, o que colocaria o país numa situação diferente da Argentina, que tem 30 milhões. Esse potencial é desperdiçado? horácio lafer piva Esse é um potencial maravilhoso, uma demanda reprimida enorme que poderia estar consumindo muitos produtos, mas, devido a um processo de distribuição de renda micro e por uma questão de massa salarial baixa, não tem conseguido apresentar resultados. A sensação que tenho é de um certo desperdício, são as oportunidades escapando pelos vãos dos dedos. Somos um país que não tem problemas de fronteiras, um país sem contenções hegemônicas, um país com essa área agriculturável de enorme proporção, com essa extensão territorial, com essa população. Além disso, não temos crises ou catástrofes naturais, e mesmo assim não conseguimos superar os problemas que nós mesmos criamos e vivemos ainda muito aquém daquilo que poderíamos. Você pode falar: “Mas o Brasil vai ter um crescimento acima de 3%, 3,5%...” Tudo bem, 3%, 3,5%, 4%. Mas, em primeiro lugar, é um crescimento em cima de uma base fraca. Em segundo lugar, é preciso não nos acostumarmos com esse nível de crescimento, pois é se conformar com pouco. diálogos&debates Esse crescimento está muito aquém do suficiente? horácio lafer piva Sim. O Brasil precisa claramente adensar ainda mais a sua obsessão exportadora, até para se livrar dos constrangimentos externos. É necessário remover obstáculos ao investimento, porque é a única forma que nós temos de crescimento sustentável, fugindo dessas ciclotimias, dessa volatilidade que tem sido a economia brasileira, o famoso stop and go. O Brasil precisa de alguma maneira também enfrentar esse drama de ser um país que gasta mais do que arrecada. Nós precisamos reduzir nossos gastos correntes para conseguir ter um pouco mais de alívio na área fiscal e para que o governo possa ser um parceiro nesse proces- 8 diálogos&debates setembro 2004 so de investimento, principalmente na infra-estrutura. Por quê? Porque o Brasil tem tido um resultado expressivo na exportação, mas isso tem um limite. O limite vai ser dado pela questão da logística e da infra-estrutura: pela questão dos portos que não escoam, pela questão dos containeres que inexistem, enfim, uma série de gargalos que nós ainda temos, as famosas ineficiências sistêmicas da economia brasileira. Nós temos um diagnóstico bom e bastante consensual, mas ainda não conseguimos desenhar com nitidez qual é a nossa curva de prioridades. Embora tenhamos um governo que sem dúvida gosta do Brasil, há uma desarticulação que tem nos amarrado. diálogos&debates A respeito dessa desarticulação, às vezes passa a impressão de que o Partido dos Trabalhadores não tinha e não tem um programa claro. horácio lafer piva Concordo. O PT tinha um diagnóstico bom e se mostrou disposto à interlocução. Porém, ainda não mostrou um projeto que de alguma maneira pudesse, enfim, se tornar uma agenda de ação. Nós sabemos quais são os pontos que precisam ser trabalhados, mas ainda há muito conflito. Elabora-se um projeto inteligente como o da Parceria Público-Privada (PPP), que é um projeto muito bemfeito, mas se não se conseguir definir a questão dos marcos regulatórios haverá dificuldade para atrair investimentos. Nós ainda sentimos uma resistência na área de meio ambiente, com a questão dos licenciamentos, que afasta ou que adia muito os investimentos no Brasil. É óbvio que somos defensores do crescimento sustentado, é óbvio que o tema do meio ambiente é absolutamente fundamental, mas é preciso encontrar uma intersecção entre isso e a questão da defesa do meio ambiente. Existem alguns conflitos, dentro do próprio governo, na área da produção e da agricultura com a área do meio ambiente. diálogos&debates O senhor sabe quantos dias se leva para abrir uma empresa no Brasil? horácio lafer piva São 155 dias para abrir e dez anos para fechar. Alguém já disse, e concordo, que nós nos livramos da ditadura política, mas ainda temos a ditadura dos carimbos, da burocracia. Todos acabam sendo culpados até prova em contrário e você precisa de uma enorme burocracia para tentar provar sua inocência. Há algumas reformas que, na minha opinião, são fundamentais. Nós temos uma reforma trabalhista que precisa ser finalizada, porque não é possível ter um país com tantas leis e mais da metade da população não tem direito a lei nenhuma. A Justiça do Trabalho está E N T R E V I S TA completamente atolada em demandas que não serão julgadas jamais. O empresário paga muito, o trabalhador ganha pouco e os benefícios são de péssima qualidade. Já há consenso e maturidade na relação capital-trabalho para que possamos avançar nessa questão. diálogos&debates O senhor considera a reforma tributária uma das mais importantes? horácio lafer piva Ela é nossa derrota recorrente. É fundamental, nos afeta diretamente, mas não avança. Conseguese um passo importante na retirada da cumulatividade do PIS e do Cofins e, por outro lado, temos uma alíquota hipercalibrada – isso já está sendo demonstrado pelo aumento da arrecadação do governo – que acaba significando um aumento da carga. Esse aumento acaba gerando uma situação de muito constrangimento para vários segmentos, empurrando empresas para a informalidade. Há segmentos onde o teto de preço do produto é dado pelo segmento informal e não pelo segmento formal, obrigando o seg- diálogos&debates Como o senhor avalia o impacto da Lei de Responsabilidade Fiscal, implementada em 2000? horácio lafer piva É uma lei extraordinária. Atualmente temos um controle financeiro bastante diferenciado em relação àquele que existia há alguns anos. O Brasil consegue saber no dia qual é seu volume de exportação. Existe um sistema de medição de gastos dos Estados e municípios que é bastante sofisticado, mas é um Estado que custa muito caro. Nunca se arrecadou tanto como agora, mas também temos um Estado que talvez nunca tenha custado tanto como agora. É um Estado que hoje carrega uma dívida de quase 60%, que tem uma carga tributária da ordem de 38% e mais um déficit da ordem de 4%, ou seja, é um Estado que custa 42% de toda a renda nacional. diálogos&debates Qual é a saída para isso? horácio lafer piva Eu continuo afirmando que a saída não é uma só. Mas passa, em primeiro lugar, pelo crescimento. O país não vai resolver seus problemas nos tristes atalhos da “A grande empresa brasileira hoje olha para outros mercados, está estudando como faz para se multinacionalizar” mento formal a escorregar para a informalidade ou a perder a sua margem – o que, em última instância, é a sua capacidade de investimento. Esse tema da reforma tributária não tem avançado, não temos conseguido resolver os nossos conflitos estaduais de tal maneira que se possa acabar de uma vez com a guerra fiscal. Essas reformas precisam ser enfrentadas, é preciso haver vontade política do presidente, consenso no Congresso e também entre os próprios agentes econômicos para definir um projeto e seguir em frente com ele. Nesse ponto, faço uma mea-culpa. O próprio empresariado muitas vezes consegue concordar nas grandes linhas, mas o diabo mora nos detalhes. As intenções são boas, porém, quando se desce para a discussão da legislação, setores se posicionam e com isso acabam criando também um desequilíbrio relativo dentro do próprio projeto, o que o torna inegociável. E N T R E V I S TA recessão, vai ter que ser pelos virtuosos caminhos da produção e o crescimento vai acontecer a partir do momento em que consigamos fazer algumas dessas reformas, a partir do momento em que as taxas de juros forem reduzidas – principalmente no que se refere ao custo de capital, para que as empresas sintam que é mais vantajoso aplicar na produção do que aplicar no mercado financeiro. diálogos&debates O governo tem sido muito conservador em sua política monetária. Tamanha ortodoxia é necessária? horácio lafer piva Não. No início, certamente o governo tinha que fazer um ajuste, até porque havia o fantasma da inflação, mas a partir de junho do ano passado nós poderíamos ter começado a revisar a taxa de juros. Porque isso não tem um efeito só direto, né? Mais de 50% da dívida pública está atrelada à Selic. Isso tem um efeito psicológico, setembro 2004 diálogos&debates 9 mexe com a percepção do investidor. Perceber que o Banco Central tem confiança no país motiva o empresariado privado a investir. diálogos&debates Mas a Febraban, a Federação Brasileira das Associações de Bancos, não tem se queixado disso... horácio lafer piva O sistema financeiro tem sido um grande ganhador nos últimos anos. O sistema financeiro brasileiro é certamente um dos mais competentes do mundo do ponto de vista de eletrônica embarcada, de operação, mas o fato é que ganhou uma fortuna nos últimos anos. E isso gerou um desequilíbrio absoluto entre a atividade produtiva e a atividade financeira. diálogos&debates Chama a atenção o fato de um banco espanhol, o BBV-Banco Bilbao Vizcaya, ter saído sem pena nem glória. Não estava preparado para operar no país? horácio lafer piva Olha, a economia brasileira é para profissionais, como já se disse, não é fácil. Imaginar que aqui pode-se operar baseado na experiência que teve em outros países não é verdade, ou seja, temos um nível de informalidade, temos uma enorme quantidade de pessoas querendo tomar recursos sem ter carteira assinada, temos uma economia complexa, bastante complexa. O BBV chegou baseado na sua experiência de crédito num país com uma renda per capita e com uma estabilidade completamente diferente. diálogos&debates Nesses seis anos em que o senhor esteve à frente da Fiesp, o que mudou na sua percepção em relação a esse prédio que concentra, digamos assim, o grosso do PIB deste país? horácio lafer piva Do ponto de vista de entidade, ela passou por um processo de readequação administrativa de tal maneira que pudesse se tornar mais parecida com as empresas que são suas associadas. Ela é uma entidade muito ágil e mais tecnicamente preparada para a ação política. Em segundo lugar, ela fez um trabalho de reposicionamento político, colocando-se como entidade de pressão e não como 10 diálogos&debates setembro 2004 uma entidade de adesão. A pressão é propositiva, construtiva, mas é pressão. diálogos&debates A Fiesp parece inclusive pautar, por vezes, a agenda do governo. horácio lafer piva Sem dúvida. Mas também é uma entidade que vive hoje em um ambiente diferente daquele ambiente que vivia há muitos anos, quando tínhamos como atores relevantes, ou como protagonistas neste país, o Lula, as Forças Armadas e a Fiesp. Hoje temos uma multiplicidade de representações com que é preciso conviver e que, de alguma maneira, são a própria expressão da força da sociedade quando elas conseguem operar juntas. Em terceiro lugar, a realidade das empresas mudou. A fronteira do Brasil não é mais o Oiapoque, não é mais o Chuí. A fronteira do Brasil é o mundo. Essa é a nossa arena, o Brasil aceitou o desafio da inserção global competitiva. Dessa maneira, a grande empresa brasileira hoje olha para outros mercados, está estudando como faz para se multinacionalizar. E a empresa média, que muitas vezes fica comprimida entre a escala da grande e a informalidade da pequena, está vendo como se transforma em grande. Hoje a Fiesp é uma entidade que tem ramificações e está ligada com muitos mais mercados. As empresas pequenas vêm aqui para saber como operar, como conseguir vender não só para os mercados tradicionais da Alca, da União Européia, mas também para China, Índia, Rússia, África, enfim, novos nichos. E são empresas que até pouco tempo atrás nem sequer queriam pensar em sair daqui. diálogos&debates E a Fiesp dá suporte para essas empresas? horácio lafer piva Claro. Existe um centro internacional de negócios, um departamento de comércio exterior, de negociações internacionais... A Fiesp liderou uma missão para o Japão agora há três semanas, levando mais de 40 empresas para lá, que procuram exatamente criar essas ramificações, seja pela venda pura e simples, seja pela consolidação de joint ventures. E N T R E V I S TA diálogos&debates Quem viaja vê alguns produtos brasileiros nos lugares menos esperados. Por exemplo, facas Tramontina na Espanha, frango brasileiro em Hong Kong. Isso também acontecia nos anos 70. Via-se o VW Brasília no México, Passat no Iraque, aparelhos Gradiente no México. Por que o Brasil se retraiu? horácio lafer piva O Brasil já teve 1% do comércio mundial. Porém, o comércio mundial cresceu e o Brasil caiu para 0,8%, agora está voltando a 1%. Temos produtos colocados, mas ainda de muito poucas empresas e com um problema adicional: não conseguimos criar marcas internacionais. Temos um pouco de Sadia, Embraer, Petrobrás, Brahma, Raider, mas não se tem ainda uma grande quantidade de marcas internacionais. E marca é poderosa. Veja o caso da Nike, que não precisa mais nem escrever o nome. Só aquele símbolo já a identifica. Então o Brasil vai ter que trabalhar também essa questão da criação de marcas internacionais. diálogos&debates Esses seis anos foram marcados, também, pelo movimento da globalização e a desnacionalização de algumas empresas, por exemplo, Arno, Metal Leve, Kasinski, empresas tradicionais que foram compradas por estrangeiros. A própria Volkswagen tinha um centro de desenho importante que atualmente não tem mais. horácio lafer piva Quanta coisa não se foi. Estamos tentando atrair isso agora, um pouco por meio da nossa pesquisa, desenvolvimento, da nossa lei de inovação, e tentando atrair os centros de pesquisa de grandes empresas multinacionais para o nosso país. É um ambiente muito mais competitivo. Teria sido mais fácil se nós tivéssemos prestado mais atenção nisso naquele momento. O governo Fernando Henrique teve avanços importantes. Só o fato de haver acabado com a inflação, que era o mais perverso dos impostos, já foi uma vitória fantástica. Mas temos uma taxa de juros altíssima, uma dívida altíssima, e lidar com isso não é uma coisa trivial no Brasil. Estamos pagando um preço por talvez não ter tomado a decisão do realinhamento cambial no momento em que deveríamos, ou seja, não deveríamos ter insistido E N T R E V I S TA tanto naquele câmbio populista do “um por um” que fazia a alegria das pessoas, mas destruía a empresa brasileira. diálogos&debates Mas por outro lado se retomou o fluxo de exportações. horácio lafer piva As exportações, o que elas têm? Elas têm um pouco de decisão do empresário de ir lá para fora, têm um tanto de produtividade, que é uma questão que vem sendo trabalhada há muito tempo, e elas têm um bom bocado de câmbio, esse empurrão. Porque o empresário reage ao resultado e esse resultado conseguido na exportação é fundamental. Em primeiro lugar, ele nos livra das fragilidades externas e em segundo lugar, no momento em que o Brasil tem um mercado interno mais fraco, de alguma forma ela contamina positivamente quem está pior, não na velocidade em que ela poderia, mas contamina. Então a exportação é fundamental, nós já poderíamos ter entrado nessa frente há muito tempo. diálogos&debates Dá a impressão de que o senhor tem uma visão bastante otimista do nosso quadro atual. horácio lafer piva Não. Sou otimista com relação ao Brasil a médio e a longo prazo, diferentemente de algumas pessoas que são otimistas no curto prazo e têm preocupações com o médio e longo prazo. Acredito que o Brasil resolverá seus problemas no médio e no longo prazo, mas no curto prazo tem de se mostrar mais ágil, ousar mais. O mercado interno tem muito potencial, porém está muito fragilizado e, se nós não conseguirmos ativar melhor esse mercado interno, vamos perder oportunidades. Não vamos conseguir gerar empregos de boa qualidade para toda essa gente. Falta ao governo maior organicidade. Não tenho uma visão pessimista, mas não posso dizer que estou otimista e que garanto que o país vai continuar crescendo. Se você não tiver investimento, não haverá crescimento sustentável. O crescimento sustentado a longo prazo é a única coisa que vai fazer com que nós consigamos superar as barreiras que até agora tivemos, sobe um degrau, desce dois, sobe dois, desce setembro 2004 diálogos&debates 11 um. Nós ficamos sempre mais ou menos ali, mas para superar vai necessitar de muito investimento e muito crescimento sustentado. diálogos&debates O senhor participa como conselheiro de uma série de entidades. O senhor disse que é otimista no médio-longo prazo. O senhor acha que o país investe o suficiente em educação? A Coréia é um caso gritante de um país que investiu na formação e hoje colhe resultados disso. E educação tem, sim, a ver com o médio-longo prazo. horácio lafer piva Me parece que a sociedade brasileira tem um grau de complacência além daquilo que seria adequado e uma auto-estima baixa. Muito disso está ligado ao tema da educação. Educação é indubitavelmente o melhor, o mais importante investimento que qualquer país pode fazer. Porque obtém resultados em tudo. O país tem resultados no comportamento da sociedade, na qualidade da mão-deobra, no grau de democracia, na produtividade da empresa, no vigor do seu capitalismo. É extremamente prioritária, mas no Brasil ainda é um tema que patina. diálogos&debates O senhor usou aquela expressão de que, nos anos 70, os protagonistas eram o Lula e os sindicatos, as Forças Armadas e a Fiesp. Hoje em dia a sociedade conta com uma série de outros organismos e associações que intervêm. O senhor inclusive participa de muitas delas. O senhor acredita que está se criando um caldo de cultura, digamos assim, de exigir mais, de cobrar mais, essa consciência crítica está sendo gerada? horácio lafer piva Acredito que conseguimos avançar na medida em que muitas dessas associações de caráter setorial começaram a trabalhar dentro de um lobby legítimo, transparente, a explicitar as suas necessidades. Isso permitiu que a sociedade, pelo menos no caso específico da produção, se tornasse mais ativa e cobrasse mais. O nosso próximo salto, absolutamente fundamental, é criar um sistema de esforços cooperativos. É conseguir de fato fazer com que essa multiplicidade continue existindo, mas que ela busque pontos de consenso, linhas comuns de trabalho. Evitar um pouco a duplicidade e que elas possam, sim, trabalhar nas suas questões específicas, setoriais, mas que nas grandes questões trabalhem juntas. Temos 129 sindicatos patronais aqui na Fiesp e 10 mil empresas associadas. É complicado arbitrar as diferenças, mas o nosso esforço é exatamente o de tentar buscar vetores comuns, porque os vetores comuns de alguma maneira aproximam. diálogos&debates Agora em julho houve a diatribe com a Argentina com a discussão da colocação de barreiras para a importação de eletrodomésticos brasileiros. O Estado de S. Paulo publicou um editorial dizendo que o Mercosul não faz muito sentido. Qual a sua opinião em relação a isso? horácio lafer piva É um debate com o qual temos que ter certa paciência e cuidado. Nós precisamos avaliar os vários aspectos, os impactos, o que perdemos e o que ganhamos. Não estou dizendo isso como Brasil, não, mas como Mercosul, como Brasil e como Argentina. O Brasil, enquanto a Argentina era superavitária, era o melhor amigo dos portenhos. Agora que a balança virou, somos os maiores inimigos. Isso não é correto, uma relação de parceria como aquela que nós procuramos estabelecer pressupõe que em determinados momentos a balança está melhor para um ou melhor para outro. Ter agora da Argentina essa imposição de barreiras ou de cotas é quebrar as regras do jogo. Por outro lado, nós colocamos muito dinheiro no Mercosul nos últimos anos, muito dinheiro e tempo, nós investimos muito discurso, discussão, inteligência. O nosso mandato negociador com a União Européia é com o Mercosul. O Mercosul garante, pelos menos para o Brasil e para a Argentina, uma posição de domínio geopolítico aqui no hemisfério sul, que é uma questão também significativa no momento em que cada vez mais o mundo negocia por bloco. Eu digo que a inexorabilidade da globalização é absoluta. A Argentina precisa tomar muito cuidado para, pensando no curto prazo, não destruir uma relação que lhe pode ser muito útil. O Brasil hoje tem condições melhores, não acredito que esse crescimento da Argentina seja um crescimento que se sustente. A Argentina tem um parque industrial sucateado, tem dificuldades enormes... diálogos&debates A Alca foi um tema, também, muito discutido há dois anos e atualmente não se fala mais nisso. “O empresário paga muito, o trabalhador ganha pouco, e os benefícios são de péssima qualidade. Já há consenso e maturidade na relação capital-trabalho para que possamos avançar nessa questão” 12 diálogos&debates setembro 2004 E N T R E V I S TA horácio lafer piva A Alca é um problema. É um projeto que não foi comprado pela sociedade brasileira, que não foi comprado pela sociedade americana. É um projeto que, de alguma maneira, sofre as influências das eleições nos Estados Unidos. É um projeto de grande dificuldade porque os EUA, muitas vezes, têm uma prática que se sobrepõe à retórica, ao discurso, a prática de não usar as barreiras tarifarias, mas usar as barreiras não-tarifárias muitas vezes, não é? São as exigências fitossanitárias e essa questão toda de não ter nenhum constrangimento em impor medidas tarifárias quando precisa. Basta ver o que acontece com a celulose, a siderurgia, o suco de laranja e outros produtos. diálogos&debates O ministério tem alguém ligado à Fiesp? horácio lafer piva O Furlan é nosso segundo vice-presidente aqui, iria ser o candidato à sucessão. Roberto Rodrigues era membro do meu conselho superior aqui na Fiesp, está conosco aqui o tempo todo. Junto com o Furlan foi o Juan Quiróz, que hoje é o presidente da Apex. Foi o Mario Munhaini, que era o meu diretor executivo geral aqui da Fiesp, que hoje é o presidente da Camex. Recentemente, Walter Cover, que era meu superintendente geral, foi contratado para ser responsável pela sala de investimento que está sendo montada no Palácio do Planalto. Nós temos uma relação bastante próxima. diálogos&debates E essa não é uma característica americana. Os franceses e os europeus em geral não têm o mínimo pudor em defender os produtos locais. horácio lafer piva Devemos também fugir dessa demonização dos Estados Unidos. Exportamos quase 25% da nossa produção para os EUA, é um mercado importantíssimo. Nós temos todo o interesse em nos aproximar e as discussões devem acontecer. A Alca vai ser aquilo que sair da mesa de negociação. É claro que precisamos ser muito assertivos e lutar na defesa de nossos pontos, mas não podemos deixar isso de lado, assim como não devemos deixar de lado a União Européia. A União Européia está num momento melhor agora, mas com a União Européia acabamos sempre esbarrando na questão dos subsídios agrícolas. A agroindústria brasileira é das mais competitivas do mundo, por que não vamos usar a nosso favor isso que nós temos? Vamos usar. Então, vamos forçar a mão com a União Européia para que ela diminua os seus subsídios e a gente possa vender para aqueles países. diálogos&debates A Fiesp tem feito o possível para alavancar algumas mudanças no sentido de melhorar a economia brasileira? horácio lafer piva A Fiesp tem pressionado muito e feito uma enorme quantidade de conversas embasadas em estudos técnicos. Acabamos de discutir aqui a questão do desenvolvimento, com trabalhos contratados por pessoas como o professor Mendonça de Barros, como o professor José Guilherme dos Reis, enfim, que são de escolas diferentes, mostrando essas linhas todas que nós achamos que têm de ser implementadas no país. A Fiesp acaba de criar cooperativas de crédito, três projetos pilotos que podem se tornar o embrião de uma coisa maior. Não que queiramos competir com os bancos, mas queremos, por meio dessas cooperativas, dar apoio e condições para determinadas empresas que não têm acesso a eles. Estamos discutindo fundos, carteira de previdência. Temos diversos trabalhos voltados para a pequena e média empresa, temos o Sesi, o Senai, um dando educação fundamental, outro educação profissionalizante. Há setores que fazem um trabalho muito significativo, como agora, procurando trazer cada vez mais empresas aqui para dentro para discutir com essas missões internacionais oportunidades no mercado externo. diálogos&debates Nesse ponto, parece que o Itamaraty está muito bem preparado. horácio lafer piva Sim, o Itamaraty tem gente da melhor qualidade, talentos da melhor estirpe. O que temos pedido ao Itamaraty é que ele tenha uma agenda de interlocução mais profunda com a iniciativa privada. Que nós de alguma maneira estejamos mais perto do que estamos. Durante muito tempo os empresários não eram sequer ouvidos pelo Itamaraty... Depois começaram a ser ouvidos os empresários, essa relação avançou, nosso relacionamento com o ministro Celso Lafer foi boa, agora com o Celso Amorim também. Mas em determinados momentos o assunto passa ao largo e acho que precisamos de alguma forma buscar de novo o entendimento. E N T R E V I S TA diálogos&debates Em que aspectos o senhor considera que o Judiciário poderia estar ajudando? horácio lafer piva Judiciário? Essa é uma questão delicadíssima [risos]... Não tenho tido muito constrangimento em muitas vezes me valer do Judiciário na solicitação de liminares para determinadas questões que achamos importantes. E o Judiciário muitas vezes responde bem. Nós precisamos, como brasileiros, mostrar confiança nesse poder e achamos que a melhor maneira de fazê-lo adequar-se aos tempos modernos é exigindo dele respostas. setembro 2004 diálogos&debates 13 Judiciário sem autonomia, Legislativo submisso, escolhas por referendos e intensa polarização política. É assim que funciona a “democracia” de chávez POR MARCELLO SIMÃO BRANCO A tradicional instabilidade política da América Latina tem sempre o país da vez. Atualmente a nação em destaque é a Venezuela. Sob grande tensão política interna e atenção internacional, os venezuelanos realizaram em agosto um referendo para decidir a permanência do presidente Hugo Chávez. Mesmo com o resultado da consulta sendo favorável ao polêmico dirigente, a situação ainda permanece incerta quanto às perspectivas políticas e econômicas do país para os próximos anos. Chávez venceu seu teste mais decisivo por 58,25% dos votos, com uma boa margem de 16% em relação aos que queriam que ele saísse do poder. Os grupos opositores não deixaram, porém, de acusar a consulta de fraudulenta. Uma hipótese como essa não deve ser descartada. Mas a utilização de urnas eletrônicas, a ampla distância a favor de sua permanência e a chancela de organismos internacionais para a legitimidade do pleito, como a Organização dos Es- 14 diálogos&debates setembro 2004 tados Americanos (OEA) e o Carter Centre – dirigido pelo ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter –, são fatores que tornam muito difícil questionar a vitória do presidente. Que agora segue seu mandato até janeiro de 2007. E com planos de se eleger para um terceiro período. Esse ambiente politicamente polarizado se arrasta desde a primeira eleição de Chávez para a Presidência, em 1998, com o país passando por um processo radical de transformação política. Mesmo em seus momentos iniciais, quando gozava de grande apoio popular, o caminho político que o governo eleito trilhava provocava temores. Foi estabelecido um novo quadro institucional de grande suporte inicial ao governo e enfraquecimento da oposição. Mas, a partir do momento em que se aprofundou uma crise socioeconômica, o apoio popular começou a diminuir e o presidente Chávez aumentou suas medidas demagógicas e sua verborragia contra os opositores, colocando a Venezuela em um quadro de muita incerteza política. I N T E R N A C I O N A L Mas se voltarmos um pouco no tempo, poderíamos até ficar surpresos com esta situação atual, pois o país passou incólume pelos “anos de chumbo” das décadas de 60 e 70 e ainda prosperou economicamente, enquanto quase toda a região buscava um modelo de desenvolvimento sob ditaduras militares. Mas, se a análise se centrar a partir dos anos 90, não ficaremos nem um pouco surpresos com o atual quadro político do país. Esta crise do governo Chávez se insinua não propriamente quando ele ascende ao poder, mas quando o regime democrático estabelecido em fins dos anos 50 e seu modelo econômico entram em crise profunda, em fins dos anos 80. É importante entender as características principais desse processo, tendo uma compreensão contextualizada da crise política atual e as perspectivas do país para os próximos anos. tróleo propiciaram o aparecimento de novas lideranças no país, questionando os pressupostos do antigo regime”. Estabilidade e prosperidade Contudo, a principal característica da democracia que emerge em 1958 não é uma maior pluralidade dos atores políticos, e sim uma nova elitização do sistema político. Os principais partidos negociam o Pacto de Punto Fijo com os militares que deixam o poder, com os empresários e a Igreja. É priorizada a estabilidade do regime e sua mediação entre esses setores do país. Alija-se qualquer força política ou modelo econômico alternativo, gerando uma alternância no poder entre a AD e o Copei. Há um custo: a Venezuela enfrenta o maior movimento guerrilheiro de esquerda da região durante os anos 60. Ainda assim, a prosperidade econômica gerada pelo petróleo garante a eficácia desse pacto O binômio petróleo e militares político, com uma distribuição de renda virtuosa em comA formação do Estado venezuelano tem dois fatos de- paração com os outros países sul-americanos, sustentando finidores: a relação do Estado com os militares e a relação a democracia venezuelana por 40 anos. do Estado com o petróleo. O país só conhece seu primeiro Mas há o outro lado da moeda. Para Rafael Duarte Villa, momento de democracia em meados dos anos 40. Até então, cientista político da Universidade de São Paulo, “se por um era dominado por líderes militares. O petróleo fundamen- lado o petróleo transformou o país numa espécie de novota a concentração de poder, num pacto com as elites eco- rico, ele pouco soube o que fazer com os imensos recursos nômicas beneficiárias da riqueza petrolífera e ainda forte- que lhe chegaram. Se garantiu a democracia por um bom mente apoiada por investidores estrangeiros, especialmen- tempo, por outro lado a má administração e a falta de um te dos Estados Unidos. Essa verdadeira economia de en- plano estratégico de desenvolvimento inibiram a possibiclave, no qual a abundância do petróleo inibe a agropecu- lidade de o país construir um parque industrial diversifiária e a diversificação industrial – pois ocorre uma impor- cado”, pondera. tação enorme de produtos –, tem o seu momento de crise E essa excessiva dependência do petróleo leva o país a quando o poder militar é questionado por uma ascenden- mais um momento de crise, primeiramente econômica e te classe média urbanizada. Naquele momento surgiram os depois política. O modelo econômico entra em decadência primeiros partidos políticos do país, com destaque para a durante os anos 80. O país gasta muito e tem sua dívida exAção Democrática (social-democrata) e o Comitê Eleito- terna aumentada, dentro do quadro econômico de estagnaral Partidário Independente (Copei), de orientação demo- ção vivida por toda a América Latina nessa época, agravado, crata-cristã. em seu caso, pela queda internacioÉ curioso notar que, se o petrónal do preço do petróleo. A lição era leo consolidou uma aliança bem-suamarga: passada a prosperidade vinA Venezuela passou incólume cedida entre os militares e os empreda do petróleo, o país teve de investir pelos “anos de chumbo” sários, também foi responsável pela na diversificação de sua economia em decadência dessa aliança, como exmomento desfavorável. Villa arredas décadas de 60 e 70 e um plica Terry Lynn Karl, cientista polímata: “Este foi o preço a ser pago pela prosperou economicamente, falta de visão das elites, que suborditico da Stanford University: “O petróleo é o fator decisivo para a derrubaenquanto o resto da região naram o modelo de desenvolvimenda do autoritarismo militar e a subto à estabilidade negociada do sistebuscava desenvolvimento seqüente persistência da democracia. ma político”. A organização econômica peculiar e a E a crise passa a ser política quansob ditaduras mudança social promovidas pelo pedo, claramente, os termos do pac- I N T E R N A C I O N A L setembro 2004 diálogos&debates 15 to fundador da democracia venezuelana deixam de fazer sentido. O momento é outro e a elite política, por meio dos dois partidos que se revezaram no poder, AD e Copei, passa a enfrentar um sentimento de rejeição por parte do eleitorado. Neste contexto, emerge a figura populista de Hugo Chávez. Tenente-coronel do Exército, ele lidera um golpe de Estado em 1992. Fracassa, é preso por dois anos e anistiado, mas anuncia aos seus partidários que a “derrota é temporária”. Parecia fanfarronice, mas o fato é que ele tinha razão. a representação de tendências diferentes do ambiente político, concentrando o poder para si e reduzindo a força da oposição. Até o nome do país é mudado e passa a se chamar República Bolivariana da Venezuela, simbolizando o que o próprio Chávez denomina de “revolución bolivariana”. É possível interpretar que com essas medidas de impacto subjaz a introdução do elemento do conflito na política de um país acostumado com uma cultura do consenso e da moderação. Além disso, Chávez usa e abusa de um discurso simbólico, procurando vincular fatos históricos e líderes do ‘Refundação’ e conflito passado às próprias instituições políticas do país. Chávez é eleito presidente em 1998 e a Venezuela entra E há também, dentro desse novo quadro, uma redefiniem um novo e marcante momento histórico. Ele é normal- ção do papel das Forças Armadas. Elas estão mais presenmente visto como mais um líder populista, numa região tes na administração pública, dirigindo, inclusive, empresas tão pródiga de políticos desse perfil. Não deixa de ser cor- estatais, além de participarem ativamente de programas soreto, pois, sim, há uma identificação do ciais. Ou seja: estamos diante de uma povo com a liderança de Chávez. Mas, militarização das estruturas do Estado se olharmos detidamente, notaremos e sua relação com a sociedade. A nova Constituição foi que a dinâmica política que o leva ao Mas se Chávez apostou alto no poder e o tem sustentado até aqui é conflito e obteve vitórias corresponpromulgada por meio de muito mais complexa. “Chávez não dentes no início, vem pagando um referendo popular, dando chega ao poder simplesmente por ser preço equivalente há pelo menos três amplos e inéditos poderes anos, em um processo que está levanpopulista. Chega também porque foi o melhor intérprete do desejo popudo o país a um rumo ainda desconhepara o presidente Hugo lar de mudança da classe política tracido, mesmo com sua vitória no refeChávez, dissolvendo o dicional, o que necessariamente não rendo de agosto. significa um desejo de ruptura proSe é óbvio que essa “refundação” alsistema partidário que funda”, argumenta Villa. terou de forma radical as forças polítivigorava desde 1958 Basicamente, o programa políticas do país, gerando o que poderíamos co por meio do qual Chávez é eleito chamar de uma “circulação de elites”, em 1998 pode ser resumido em dois numa referência ao termo consagrapontos: destruir a base dos partidos políticos tradicionais e do pelo sociólogo italiano Vilfredo Pareto, é fato também convocar uma nova Constituição que substitua a de 1961, que essa modificação tornou a política mais centralizada e baseada nos termos do pacto político de então. Tratava-se, autocrática, mesmo com esse desenho constitucional apacomo se disse então, de “refundar” a República em bases to- rentemente mais participativo. Não apenas a alteração do talmente diferentes. sistema político trouxe tensão, como também a conjuntuA nova Constituição foi promulgada por meio de refe- ra de crise econômica. rendo popular, dando amplos e inéditos poderes ao presiPara Rafael Villa, o ponto fraco do projeto chavista é exadente. O sistema partidário anterior foi praticamente dis- tamente sua debilidade em implantar um projeto socioesolvido, pois o índice de votos dos antigos “bichos-papões” conômico novo para o país. Chávez insiste fortemente em AD e Copei havia sido pequeno. E em seu lugar entrava programas assistencialistas de transferência de renda para um amálgama de pequenos partidos políticos representa- os pobres. Mas, na prática, essa iniciativa é paliativa, porque dos por uma frente chamada Pólo Patriótico, no qual o par- o país em seu conjunto continua a depender excessivamente tido criado por Chávez, o Movimento V República, é o lí- da riqueza proporcionada pelo petróleo. E, ao contrário de der. O recurso de plebiscitos torna-se quase rotineiro, com outras épocas, o petróleo não garante mais, sozinho, a proso presidente dialogando, por fora do sistema político ins- peridade de que a nação precisa. “Chávez teve a agenda de tituído, diretamente com o eleitorado. Mina, dessa forma, mudanças aprovada por 90% da população, mas é preciso 16 diálogos&debates setembro 2004 I N T E R N A C I O N A L governar, gerir, trabalhar. Em vez disso, dá-se no país um processo de responsabilizar os outros”, critica seu ex-aliado, o diplomata Milos Alcalay, ex-embaixador da Venezuela na Organização das Nações Unidas (ONU). Essas e outras questões angustiam a oposição. Mesmo porque ela também tem os seus problemas. Sendo uma frente, é muito heterogênea, composta tanto por democratas sinceros como por conservadores de direita, ávidos em se livrar de Chávez. Pois com a desestruturação do sistema Crise e indefinição partidário, historicamente estabelecido, somada a atitudes e E Chávez vem enfrentando desafios sérios ao seu projeto retórica radical por parte do presidente, incentivou-se uma pelo menos desde abril de 2002, quando sofreu uma tentati- cultura golpista entre setores da elite venezuelana – espeva malsucedida de remoção do poder. A partir desse even- cialmente entre os empresários e a classe média. Que, não to, o país se polarizou radicalmente entre os apoiadores e os por coincidência, estiveram entre os protagonistas da tenopositores do governo. Ao invés de negociar uma calma dos tativa frustrada de golpe de 2002. ânimos com a oposição política e de amplos setores da ecoAlém disso, falta um líder que a torne homogênea e fanomia e da classe média, Chávez, bem ao seu estilo fanfar- cilmente reconhecida pela população, que também a tem rão, endureceu as ações e o discurso, tornando difícil uma rejeitado por vinculá-la aos partidos tradicionais dos temconvivência pacífica no interior do país. pos anteriores a Chávez. Contudo, há um aspecto positivo Isso só tornou a situação da Vena opinião de Alcalay. “A reação ao nezuela dramática. Uma ampla greve governo está criando algo que a Vegeral e na estatal de petróleo PDVA, nezuela nunca teve com tanto vigor: “Chávez transformou entre dezembro de 2002 e fevereiro de uma sociedade civil organizada e ver2003, levou o país a diminuir sua rendadeiramente pronta a trabalhar dea Venezuela de uma da per capita a patamares próximos pois da saída de Chávez”, argumenta democracia para uma aos anos 50 do século passado. E eno diplomata. Resta indagar se essa soautocracia, pois não é frentou agora, próximo à metade do ciedade civil está disposta a trabalhar seu segundo mandato, seu mais sério com a permanência de Chápossível imaginar um Estado mesmo desafio. Curiosamente, por meio de vez, agora consumada. de direito sem um Judiciário um mecanismo que ele mesmo instiIsso porque, com a situação defituiu: o referendo. A oposição, lideranida do ponto de vista eleitoral, a Veautônomo”, afirma um juiz da por uma frente de vários partidos, nezuela não resolverá tão facilmente da Suprema Corte a Coordenação Democrática, conseseus problemas. O quinto maior exguiu 3 milhões de votos favoráveis portador mundial de petróleo precià votação do referendo – com folga, sa, possivelmente, de um novo pacpois precisava de 2,4 milhões. to nacional que possa reestruturar as instituições políticas, Chávez tentou várias formas de prejudicar a intenção permitir maior extensão e segurança dos direitos civis tão dos seus opositores, além de fortalecer o seu poder. Se já aviltados nos últimos anos e implantar para valer um novo existe um Legislativo obediente, o Judiciário vai na mes- projeto de desenvolvimento econômico, menos dependenma direção. Nestes últimos meses, fez uma profunda mu- te de seu maná subterrâneo. dança na Suprema Corte, com a inclusão de mais 12 juízes, E medidas como essas não se conseguem no curto praque escolheu para compor a Corte, que passa dos atuais 20 zo. Precisam menos de demagogia e mais de transparência, para 32 juízes. E a Assembléia Nacional (o Congresso do amadurecimento e participação das diferentes forças polípaís), dominada por Chávez, pode dispensar ou contratar ticas. Resta saber se serão possíveis com um dirigente tão um novo juiz por voto de maioria simples, em vez de dois personalista como Chávez e uma oposição tão indefinida terços, como era anteriormente. Para Miguel Angel Luna, e enfraquecida. Em todo caso, esses problemas políticos e juiz demitido da Suprema Corte por não votar favoravel- econômicos não são exclusividade dos venezuelanos. Atinmente ao governo uma medida, “Chávez transformou a Ve- gem também alguns outros países sul-americanos, em um nezuela de uma democracia para uma autocracia, pois não contexto de instituições fracas e de legitimidade contestaé possível imaginar um Estado de direito sem um Judiciá- da, além de aumento da desigualdade social e dependência rio autônomo”. econômica externa. I N T E R N A C I O N A L setembro 2004 diálogos&debates 17 a justiça em obras: reformar o quê? O desafio é conseguir aproximar o Poder Judiciário do cidadão, com respostas mais rápidas. É isso que todos esperamos POR EDSON VISMONA H á anos encontra-se em pauta a reforma do Judiciário, que ora recebe tratamento de absoluta prioridade nacional, ora deixa de ser tão importante. O fato é que se trata de uma proposta, no mínimo, polêmica. A idéia que o Poder Judiciário tem não é a mesma do Executivo, que por sua vez não coincide com a do Legislativo e tampouco com o Ministério Público e a Ordem dos Advogados. Os últimos movimentos apontam para um entendimento alinhavado por cima, a cúpula do Poder Judiciário, representado pelo atual presidente do Supremo Tribunal Federal, está mais sintonizada com as propostas defendidas pelo Executivo, dando a impressão de que, desta vez, a reforma sai. O problema maior, neste emaranhado – alguns diriam “imbróglio” –, é responder a uma pergunta mais simples e, acredito, a mais importante. O que deseja a sociedade? Abstraindo os chamados operadores do direito, muitos com visão corporativista, o que almeja a sociedade, esse ente abstrato de tão difícil compreensão? O que deseja o chamado “qualquer do povo”? 18 diálogos&debates setembro 2004 Ouso tentar responder. O cidadão espera um Judiciário que consiga entregar o produto que lhe é solicitado. Parece simples, mas sabemos o quão difícil é. Afinal, a Justiça não pode ser entendida dessa forma simplista, como produto. Se o fato social, já ensinava Durkheim, é coisa, a Justiça não o é. Justiça está mais para um ideal, para a utopia, um sentido mais elevado dos atos humanos. Agora, vai o advogado utilizar este argumento junto ao cliente, explicar que não consegue receber o que lhe é devido por causa do cálculo do contador que não é definido, após mais de ano de idas e vindas. Ou que, depois de anos para ser distribuída, a apelação já perdeu o sentido. Diante da concretude dos fatos da vida, o que temos é a absoluta necessidade de enfrentar não só a discussão, de todo pertinente, sobre se o controle do Judiciário é um ato que valoriza a República e a democracia. O desafio é conseguir aproximar o Poder Judiciário do cidadão, com respostas mais rápidas, superando um sentimento péssimo para todos de que a Justiça está cada vez mais distante e que a sua estrutura está voltada para si mesma. J U D I C I Á R I O Nesse contexto, a reforma de que precisamos não é for- rio brasileiro como um óbice aos investimentos estrangeimal. Vai muito além da questão tormentosa do controle ex- ros. Achava eu que as questões relacionadas à infra-estruterno. O que precisamos é de uma reforma de conteúdo. tura, os juros, a indecente carga tributária, a esdrúxula disMudar leis processuais que engessam o Poder Judiciário e tribuição de renda fossem os fatores que com certeza mais que já deixaram de ser garantidoras do chamado direito de chamariam a atenção dos investidores estrangeiros. Assim, defesa, tornando-se atos claramente protelatórios. Informa- não foi fácil constatar que nós estamos incluídos no chatizar decisivamente os nossos tribunais, incorporando to- mado “risco Brasil”. dos os avanços da era digital. Simplificar os atos e os ritos Os juízes foram acusados de “fazer leis” e não “simplesprocessuais, eliminando aqueles que não forem tendentes mente julgá-las”; de serem parciais e apoiarem os devedopara a decisão. Aplicar um programa da qualidade para o res, assumindo uma certa culpa que teriam as classes domiJudiciário, não apenas para os funcionários, mas incluin- nantes pelo alto nível de miséria do nosso povo. Não obsdo os juízes. Definir uma carreira marcadamente gerencial, tante essas inúmeras teses – muitas totalmente discutíveis, com a tarefa de administrar as necessidades do Poder Judi- e que não enfrentaram, por exemplo, o vai-e-vem de Mediciário, assumindo metas e otimizando recursos, permitindo das Provisórias como fator de instabilidade jurídica –, em aos juízes total dedicação à missão que devem honrar e que verdade, não podemos deixar de encarar o fato de que o Ponão é de administrar os gastos com xeder Judiciário e todos os que nele aturox ou a conta de luz dos fóruns, entre am estão inseridos na discussão que outras mais árduas (basta ver a tarefa envolve o crescimento e a viabilidaA reforma de que que é administrar o Complexo do Fóde do futuro do nosso país. Por conseprecisamos para o rum Criminal Mário Guimarães, em qüência, temos a obrigação de superar São Paulo). eventuais divergências para fortalecer Judiciário não é formal, Evidente que são propostas que poatividade jurisdicional como função mas de conteúdo. Vai além aessencial dem causar resistências, porém o que do Estado. Com esse grau de da questão tormentosa está em jogo é saber qual o papel que o importância, os investimentos devem Poder Judiciário quer assumir perante ser viabilizados, e uma nova estrutura do controle externo a sociedade. Manter a sua função esdesenvolvida para aprimorarmos a efisencial e de absoluto respeito, ou deiciência e eficácia. xar que seja entendida como uma estrutura que deve ser O lado positivo de todo esse debate é que devemos enevitada, marcada pela ineficiência e lentidão. O certo é que, carar esta crítica como um repto que nos impulsione para por vezes, as soluções são até muito simples, não envolven- as necessárias soluções, que dependem de investimentos, é do recursos materiais expressivos. Assim foi com o proto- certo, mas que começam por afastarmos antigos e superacolo “drive-thru” que o Tribunal de Justiça de São Paulo im- dos conceitos. Afinal, se a Justiça não é coisa nem produto, plantou há um ano e que vem facilitando a vida dos advo- isso não invalida o fato de que podemos avançar para algados que atuam junto ao fórum central. cançar, como serviço público que é, um maior grau de saA mim causa repulsa ter no Poder Judiciário o sím- tisfação do usuário, por exemplo, utilizando ferramentas bolo do arcaico. Por conhecer o esforço da grande maio- acessíveis de programas da qualidade e reformulando a esria dos servidores e de magistrados de todas as instân- trutura administrativa do Judiciário. Desse processo devem cias, que muitas vezes arcam, inclusive, com o ônus de in- participar não apenas os juízes, advogados e promotores, formatizar as próprias atividades, identifico a vontade e mas também os Poderes Executivo e Legislativo, que têm o empenho para a melhoria e agilização dos serviços que grande contribuição a oferecer para atender a mais fundasão prestados. mental das necessidades de um estado democrático de diRecentemente, em um seminário que tive a oportunida- reito: a Justiça. de de participar da organização e cujo enfoque era a competitividade das empresas brasileiras no enfrentamento da Edson Vismona é advogado. Foi secretário da Justiça e da Defesa da Cidadaconcorrência internacional, fiquei surpreso e, como advo- nia no governo Covas/Alckmin; secretário Nacional da Reforma Agrária do gogado, um tanto ou quanto aborrecido, quando economistas verno Fernando Henrique Cardoso. Atual presidente da Associação Brasileira e analistas financeiros – todos – incluíam o Poder Judiciá- de Ouvidores/Ombudsman. J U D I C I Á R I O setembro 2004 diálogos&debates 19 os labirínticos caminhos da legislação brasileira O país é um dos lanternas na pesquisa realizada pelo Banco Mundial entre 130 países para medir o quanto a burocracia pode atrapalhar os negócios Ilustração Kipper O 20 diálogos&debates setembro 2004 B U R O C R A C I A roteiro é longo. Passar pela SRF do MF, obter um CNPJ, registrar empregados no INSS, preencher o formulário AIDF na SFDE, pagar a TFE, obter licença Cetesb, abrir o FGTS e pagá-lo na CEF, PIS, MT. Dezessete procedimentos básicos. Cerca de R$ 968 gastos. No total, 155 dias. Esses são os passos necessários para abrir uma empresa no Brasil, diz a pesquisa “Doing Business in 2004”, coordenada pelo Banco Mundial. O intuito do levantamento é medir, em 130 países, os procedimentos burocráticos que dificultam (ou facilitam) os negócios e investimentos. Foram analisados quatro temas: procedimentos e tempo necessário para abrir uma empresa; flexibilidade da legislação trabalhista para contratar e demitir funcionários; incentivos para recuperar empresas endividadas e tempo necessário para decretar a falência de um negócio; e, finalmente, o envolvimento do Judiciário em todo esse processo. O Brasil, como se sabe, costuma figurar nos últimos lugares em pesquisas desse tipo. Diálogos&Debates entrevistou quatro advogados cujos escritórios foram contratados pelo Banco Mundial para realizar a pesquisa de campo no Brasil. Para Fabiano Milani, da área de direito societário do escritório Goulart Penteado, Iervolino e Lefosse Advogados, a metodologia utilizada para calcular a burocracia de abertura de uma empresa foi bastante rigorosa e, por isso, pode ter desfavorecido o Brasil face a outros países. Em nos- B U R O C R A C I A POR SÉRGIO PRAÇA E PATRICIA MOTERANI so país, não custa lembrar, são necessários 17 procedimentos – seis a mais do que a média dos países latino-americanos. Nos 30 países que pertencem à OECD (Organization for Economic Cooperation and Development, organização pela cooperação e desenvolvimento econômico), e representam o mundo “desenvolvido”, são necessários, em média, seis procedimentos para abrir um negócio. “Alguns passos que funcionam quase simultaneamente foram analisados em separado. Se uma certidão demora 30 dias para ser obtida e outra demora 45 dias, mesmo que o processo de obtenção das duas aconteça simultaneamente, o que daria um total de 45 dias para as duas, nós consideramos 75 dias”, ressalva Milani. “Talvez em outros países isso não tenha sido feito do mesmo jeito e, então, o Brasil saiu desfavorecido, mesmo com procedimentos burocráticos parecidos.” Apesar disso, dificilmente podemos nos equiparar aos Estados Unidos nesse aspecto. Ali, de acordo com o Banco Mundial, são necessários cinco dias para abrir uma empresa. O processo de contratar e demitir omas Felsberg, ex-professor da Faculdade do Largo São Francisco, aponta que fundar uma empresa no Brasil não é exatamente um processo complicado. “Para abrir um negócio, é preciso fazer um contrato social e arquivar esses dados na junta comercial. A função da junta comer- setembro 2004 diálogos&debates 21 cial é arquivar esses dados e checar se está tudo conforme as formalidades, o que, a olho nu, parece ser coisa simples”, afirma. Porém... “o problema é que algumas juntas comerciais criam todo um processo em que são pedidos vários carimbos. Se houver algum erro que prejudique alguém, esse alguém que reclame na Justiça depois. O que as juntas têm que fazer é arquivar os processos e deixar à disposição para eventual e futura consulta. Esse controle excessivo da junta, em São Paulo, retarda em até três semanas o trâmite do processo”. Isso pode até impedir que o segundo tema analisado pelo Banco Mundial, referente à legislação trabalhista, entre em cena. “Há uma falta de informatização de todos os órgãos pelos quais o interessado em abrir uma empresa tem de passar. Esse processo é muito demorado e muitas vezes isso acaba estimulando a informalidade. Quando há esse estímulo, o prejuízo é do próprio Estado, porque deixa de recolher impostos”, afirma Gustavo Castro, mestrando no curso de Direito do Mercado Financeiro no IBMEC e assessor do Tribunal de Ética e Disciplina IV da OAB/SP. “Se qualquer estrangeiro quiser montar uma empresa aqui no Brasil, demora de três a seis meses para conseguir um visto de trabalho, desde que esteja nas condições exigidas pela lei. Enquanto isso, ele não pode operar a empresa.” Em português claro: não pode contratar. A pesquisa do Banco Mundial elaborou um índice de 0 a 100 para medir o processo de admissão/demissão de funcionários nos 130 países analisado. Nota 0 para o país com as leis trabalhistas que mais estimulam o emprego e a produtividade, nota 100 para o país com a legislação mais atrasada e engessadora. O Brasil, com 78 pontos, empatou com Angola e só perdeu para Portugal (79) e Panamá (79). Continuamos atrás da média dos países da América Latina, cujo índice é 61. Os países-membros da OECD ganharam nota 45 e Cingapura, um dos tigres asiáticos, é o paraíso para empresários, com nota 20. O fechamento de empresas Outro aspecto utilizado para comparar os incentivos para negócios nos países ao redor do mundo foi a facilidade (ou dificuldade) encontrada para fechar uma empresa que não funcionou ou reorganizar negócios que ainda podem ser viáveis. Dois índices foram elaborados pelo Banco Mundial. O primeiro atribui nota 0 ao sistema mais lento e burocrático e nota 100 ao sistema mais célere. Angola e Burundi podem invejar o Brasil: receberam nota 8, enquanto ficamos com 24. omas Felsberg defende uma mudança 22 diálogos&debates setembro 2004 na legislação para melhorar nosso desempenho: “Uma flexibilização das leis trabalhistas poderia ser realizada para admitir a possibilidade do acordo coletivo entre empregado e empregador. Esse acordo se sobreporia à lei. É simples, basta apenas uma cláusula para isso. Hoje a lei não permite que os salários diminuam, mas então é melhor que uma empresa quebre? Se os empregados toparem manter seus empregos com menor salário, o acordo coletivo serviria para isso”. O segundo índice mede o envolvimento da Justiça durante o processo de fechamento das empresas. Quanto maior o envolvimento de juízes, pior para todo o processo – pior, ao menos, para sua celeridade. Nota 0 para o país mais livre de amarras judiciais e nota 100 para os que mais recorrem à Justiça, gerando processos desnecessários. Nesse aspecto, o Brasil não ficou longe da média regional: 67 para nós, contra 63 para as demais nações latino-americanas. Fabiano Milani comenta que, “para encerrar uma empresa no Brasil, é possível que em alguns casos seja necessário entrar com um processo judicial para efetivar o processo, pois a obtenção de todas as certidões necessárias demora muito por causa dos eventuais débitos fiscais existentes e em processo. Na legislação de constituição de empresas não há nenhuma medida descabida ou gritante. O maior entrave burocrático que enxergo é a lentidão da máquina do Estado. Essa é a maior diferença entre o Brasil e os demais países. As exigências formuladas pela legislação não são ruins, mas a obtenção das certidões é o que leva muito tempo”. Nova lei de falências Recém-aprovado pelo Congresso, o projeto de lei 4.376/ 1993 – estudado e debatido durante onze anos, portanto – tem sido comemorado como algo que pode acelerar o processo final da vida das empresas. Trata-se da nova lei de falências. Para Gustavo Castro, “a atual lei de falências acaba sendo utilizada como uma espécie de procedimento executivo até por culpa dos advogados, porque a pessoa entra com um pedido de falência contra determinada empresa apenas para apavorá-la e poder receber o que lhe devem. E não é assim, porque o pedido de falência pressupõe que essa empresa tem uma dívida maior do que o que consegue operar atualmente. O grande benefício que essa lei pode trazer é canalizar a questão da falência para o caminho natural. Aquela empresa que realmente não tem condições de continuar será liquidada. Seu patrimônio será apurado e dividido entre os credores de modo a obedecer a uma ordem legal. Essa nova lei deixará de ser utilizada como um instrumento de cobrança forçada”. B U R O C R A C I A omas Felsberg concorda com a análise positiva dessa nova peça legislativa: “A nova lei de falências irá estimular a participação dos credores no processo de falência de uma empresa. Então, na medida em que o eixo de decisão passa a ser entre o credor e o devedor, e não mais entre juiz, procuradoria, promotoria e cartório, a tendência é diminuir a burocracia. Hoje tudo é centralizado no juiz e passa por uma burocracia imensa e o credor é impotente. Na nova lei, não. As decisões principais cabem aos credores junto com os devedores”. O economista José Paulo Guedes Pinto, do núcleo de economia solidária da FEA-USP, diz que a proposta inova ao colocar os credores, que são em teoria os maiores interessados na recuperação da empresa, em posição de influenciar a própria recuperação. Porém, o mesmo projeto estabelece que o voto na assembléia dos credores seja proporcional ao valor do crédito. Assim, esse dispositivo irá favorecer os trabalhadores apenas nos casos em que os maiores credores das empresas forem os próprios empregados. Caio Bolina, advogado na área de direito comercial do escritório Bolina Lazzreschi Advogados, afirma que, “em termos de encerramento voluntário, a nova lei de falências não beneficia em nada. Encerramento voluntário é quando o dono constitui uma empresa, mas acha que não está tendo o resultado devido e resolve encerrar essa atividade. Esse encerramento é demorado e complicado porque a baixa do encerramento perante os órgãos de fiscalização é demorada. Como o controle dos impostos não é seguro, a fiscalização que é realizada na ocasião do encerramento é muito demorada”. Uma instituição, portanto, tem de buscar compensar as falhas de outra. Outras mudanças Bolina acredita que a lei de falências terá conseqüências macroeconômicas: “Ela irá instalar uma nova ordem de pagamentos, o que garante que os empréstimos bancários sejam pagos e, conseqüentemente, os bancos emprestarão mais”. Guedes discorda: “Alguns economistas e representantes do setor financeiro alegam que uma maior garantia de retorno do crédito bancário reduziria o spread bancário – ou seja, a diferença entre o que os bancos pagam e o quanto eles recebem. E isso, segundo eles, estimularia o crescimento econômico via uma conseqüente expansão do crédito bancário. Essa tese é altamente discutível, já que o impacto no spread seria ínfimo, uma vez que este é composto também por outros elementos, como o lucro dos bancos, e não apenas pela garantia de retorno do crédito”. B U R O C R A C I A Como se vê, a nova lei de falências avança, mas talvez não seja suficiente. O mesmo governo que acelerou sua tramitação e aprovação no Congresso tem um Ministério da Fazenda que parece trabalhar contra a celeridade do processo empresarial. Embora tenha sido um dos promotores do “Workshop de simplificação e racionalização do registro e legalização de empresas”, realizado em maio, a Fazenda anunciou, via Receita Federal, a incorporação de 34 novas fontes de informação ao fisco – que já conta com cerca de 46 dados em sua base de declarações. É um retrocesso. Diversas propostas para minimizar a burocracia, no entanto, têm sido discutidas. Uma delas é a criação de um cadastro único nacional das pessoas jurídicas, integrando os órgãos da União, Estados e Municípios, como o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e a Vigilância Sanitária. Outra importante alteração seria a substituição de certidões por termos de responsabilidade. Como o titular ou os sócios de uma empresa são responsáveis por suas dívidas, no caso de alterações e baixas o processo poderia se realizar mediante a apresentação de um termo de responsabilidade. Esse termo substituiria as certidões negativas, pois as juntas comerciais são órgãos de registro e não de fiscalização. Caio Bolina aponta ainda que “algumas mudanças na legislação podem alterar esse quadro de extrema burocratização, na medida em que alguns recursos possam não ter o chamado efeito suspensivo. Assim, as decisões começariam a produzir efeito mesmo que a parte tenha recorrido. Isso pode ajudar bastante a diminuir as demandas”, afirma. “Outra modificação que pode ocorrer em termos de cobrança, pois estamos falando da pesquisa do Banco Mundial, é que na execução, a penhora pudesse ser feita imediatamente no momento da citação e a intimação pudesse ser feita por carta ou pela imprensa. Ela não precisaria mais ser pessoal, como ocorre no processo de conhecimento. Isso tornaria o processo mais rápido, evitando que o devedor fique fugindo.” A reforma do Judiciário, para Gustavo Castro, também pode dar passos nesse sentido – por meio, por exemplo, da instituição da súmula vinculante. “Essa súmula é um ponto positivo porque pode diminuir a quantidade de recursos que atrapalham e retardam demais os processos com os quais uma empresa se envolve”, diz Castro. Mas ressalva: “Se uma resolução do STJ ou STF não for a adequada, pode-se abrir um precedente perigoso. De todo modo, é uma iniciativa saudável”. Só a pesquisa “Doing Business in 2005” poderá afirmar a pertinência de mudanças legislativas para diminuir a burocracia brasileira. setembro 2004 diálogos&debates 23 governo pt: o liberal e o nem tanto Num governo que mostra duas faces, resta saber se as decisões serão tomadas de olhos no curto prazo ou no longo – que é como a história o vai julgar POR ELIANE CANTANHÊDE O governo Luiz Inácio Lula da Silva parece ir bem em áreas e políticas que não são típicas do PT e parece ir mal justamente no que é mais característico do partido, de sua história e de sua gente. Apesar das críticas quase generalizadas à política econômica, que segue o receituário global adotado rigidamente pelo governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, é daí que o novo governo consegue arrancar algumas boas notícias e muitos suspiros de alívio. A ortodoxia dos juros altos, altíssimos, e do superávit primário alto, altíssimo também, foi apresentada desde o início do governo e começa agora a ser comemorada. Nem tanto pelos investimentos externos, que continuam patinando em patamares de segurança (segurança para os investidores, claro!), mas por sinais de recuperação: melhores perspectivas para o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), com índices animadores de aumento da produção industrial, das vendas do comércio e dos empregos. Pode ainda ser pouco, mas é melhor do que nada e bem melhor do que o “crescimento negativo” de 2003, quando o PIB recuou 0,2%. E também bem oportuno para o PT num ano eleitoral. As expectativas para os candidatos petistas nas principais cidades melhoraram proporcionalmente na medida em que começou essa sensação de que a economia “agora, vai”. Resta saber como o governo Lula vai compatibilizar a ortodoxia da política econômica com a heterodoxia das eleições. Em miúdos: há pesadas discussões, dentro e fora 24 diálogos&debates setembro 2004 do governo, sobre a necessidade de aumentar juros e subir o preço da gasolina. Com os sinais de reaquecimento na economia, o perigo que ronda o país é a volta da inflação, e inflação – pelo modelo adotado – se combate com juros. Quanto à gasolina, os preços internacionais bateram nas alturas, quase US$ 50 o barril, e ficou evidente que haverá “adaptações” internas. A dúvida é: antes ou depois das eleições de 3 de outubro? Ou seja: o cronograma será técnico ou político? O ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, mentor e executor da continuidade da política econômica, defende um calendário técnico: se for necessário, que se aumentem juros e gasolina já. Mas o chefe da Casa Civil, José Dirceu, pode ter uma “cabeça mais política” e pedir um adiamento estratégico para além do primeiro e do segundo turnos. A decisão, grosso modo, passa pelo curto prazo (o interesse dos candidatos aliados) e pelo longo prazo (que é o viés pelo qual a história vai registrar o comportamento do governo). Com a palavra o presidente Lula. Um viés autoritário? Se o governo parece suportar bem a pressão para dar um tranco e mudar a política econômica e tem colhido resultados tranqüilizadores, a grande discussão passa da economia para a política. E não se pára de debater se há ou não um “viés autoritário” no governo Lula. O segundo ano de governo presenteou o país com algumas surpresas, até agora mal explicadas por Lula e sua equipe, ou mal enten- P O L Í T I C A didas por quem está de fora. Princio mesmo jornalismo que, em essência, palmente pela oposição. São questões não deve ser atrelado a nenhum Poder. É esdrúxulo atrelar o que, isoladas, podem ser interpretaAo contrário, quanto mais indepresidente do BC ao das como meros “erros”, “equívocos”, pendente e menos “orientado”, melhor Planalto, como “ministro”, para os jornalistas, a própria imprenmas, no conjunto, parecem seguir uma linha mestra em que ao Estado sa, o governo e o país. Estranha, tamjustamente quando se confere tudo. Ao cidadão restam a bém, a primeira composição prevista se discute a autonomia lei e as regras. para o conselho, com possibilidade de A CPI (Comissão Parlamentar de prorrogação. Seria toda ela formada do banco Inquérito) do Banestado é um bom por membros da Federação Nacional exemplo. Seu relator é o deputado dos Jornalistas (Fenaj), uma entidade José Mentor, do PT e tido e havido como “homem do Pla- que é respeitável e tem tido diretorias respeitáveis, mas eleinalto” – o que, nestes novos tempos, significa ser da con- tas com apoio e embalo de partidos políticos. As últimas difiança do ministro José Dirceu. Daí por que o que já seria retorias, em muitos anos, eram todas simpáticas ao PT de estranho em qualquer circunstância passou a ser estranhís- Lula. Seria um conselho proposto pelo governo do PT e insimo: a quebra de sigilos bancários não apenas às dúzias, tegrada por uma entidade que tem sido ligada ao PT para mas às muitas centenas. Entrou de tudo um pouco: de ban- “orientar, disciplinar e fiscalizar” os jornalistas. Daí a resvaqueiros, executivos e outros financiadores de campanha a lar para uma censura ideológica seria um passo. Perigoso. famílias inteiras de oposicionistas, como a do senador TasO governo ainda engrenou segunda marcha e anunciou so Jereissati, do PSDB do Ceará e de boa estirpe empresa- um outro de teor ainda mais polêmico: o que proíbe os funrial. Até a mãe dele entrou no meio e teve o sigilo quebra- cionários de darem entrevistas e informações a jornalistas. do. Por que será? É surpreendente. Afinal, foram funcionários com alto espíO governo diz que não tem nada a ver com isso e Mentor rito público, muitos deles ligados ao próprio PT, que vazaexplica que é em defesa da transparência e da causa pública, ram informações preciosas nos últimos anos para depurar mas os oposicionistas desconfiam. Desconfiam, sobretudo, as instituições e as práticas governamentais. A pergunta que da possibilidade de Dirceu ter usado a CPI para fazer um não quer calar: o que tanto o novo governo teme? Na mesbom banco de dados de mil e uma utilidades no presente e ma linha controversa, o Planalto passou a defender ostensino futuro. Nesse caso, o chefe da Casa Civil estaria entrando vamente a “lei da mordaça”, para conter os ímpetos dos mesnos mais profundos segredos financeiros de potenciais ami- mos procuradores que se aliaram decisivamente aos petisgos e de atuais adversários. Uns, para pedir favores? Outros tas na oposição, contra os governos passados. para fazer algum tipo de pressão? Não se sabe. Há apenas as E também não ficou muito clara a Medida Provisória suspeitas – frise-se – por parte da oposição. transformando o presidente do Banco Central em “minisQuase que simultaneamente, o presidente Lula enviou tro”, para lhe conferir foro especial na eventualidade de proao Congresso um projeto criando o Conselho Federal do cessos judiciais. Em primeiro lugar, porque MPs são para Jornalismo (CFJ), com o objetivo mais do que abrangente emergências e não há, até onde se saiba, nenhuma emergênde “orientar, disciplinar e fiscalizar” o exercício da profis- cia no caso. Em segundo lugar, é esdrúxulo atrelar o presão, prevendo penas que chegam à suspensão e até à cas- sidente do banco ao Planalto, como “ministro”, justamente sação do registro profissional. Há muito o que discutir so- quando se discute a “autonomia do BC”. bre os excessos da imprensa, que faz o que quer, como quer Enfim, o governo Lula tem duas caras. Uma é de Antoe contra quem quer, sujeita apenas à Justiça e à crítica e ao nio Palocci, que apontou um rumo, não arredou pé dele e filtro da sociedade, estes sim, bastante efetivos. Talvez seja começa a ser reconhecido pelo “bom senso”. A outra é a de pouco. Talvez seja preciso um “olhar externo” sobre as ré- José Dirceu, que passou anos em Cuba durante a ditadura deas soltas. militar e, aparentemente, gostou muito dos métodos de FiO que estranha no projeto do CFJ não é a até salutar del Castro. A diferença é que a imprensa no Brasil é livre e discussão sobre a imprensa e seus limites. São várias ou- o Estado tem limites. Pelo menos por enquanto. tras coisas, a começar pelo modelo: uma autarquia proposta pelo presidente da República para orientar o jornalismo – Eliane Cantanhêde é jornalista, colunista da Folha de S.Paulo e Folha Online. P O L Í T I C A setembro 2004 diálogos&debates 25 a medicina como missão A professora da USP e membro do CRM fala sobre a complexidade da formação dos profissionais da saúde e alerta para o perigo da proliferação de escolas médicas ENTREVISTA MARIA DO PATROCÍNIO TENÓRIO NUNES P rofessora de Medicina da USP, na disciplina de Clínica Geral e Propedêutica do Departamento de Clínica Médica, Maria do Patrocínio Tenório Nunes poderia ter sua clínica particular e ser uma bem-sucedida profissional liberal, com direito a foto nas colunas sociais. No entanto, essa não foi a vocação e proposta de vida dessa alagoana de Taquarana que chegou, ainda menina, a uma São Paulo que dispunha ainda de boas escolas públicas. “Nasci em uma família simples, com poucos recursos materiais, mas com uma grande bagagem emocional. Somos os famosos migrantes nordestinos”, conta ela. Membro do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, representante das escolas médicas na Comissão Nacional de Residência Médica do Ministério da Educação, Maria do Patrocínio, a “Patrô”, como é chamada pelos alunos, tem a agenda lotada. Divide-se entre as aulas na graduação e a orientação aos alunos de pós-graduação, a assistência a pacientes no ambulatório do SUS e no Hospital das Clínicas, seus estudos acadêmicos – como a tese de livre-docência que prepara – e a atenção à casa e a dois filhos. Foi entre a orientação a um aluno, a revisão de 26 diálogos&debates setembro 2004 E N T R E V I S TA E N T R E V I S TA POR CARLOS COSTA FOTOS TIANA CHINELLI um diagnóstico com um residente e a conversa telefônica com um colega em Brasília que ela recebeu a reportagem de Diálogos&Debates para esta entrevista. diálogos&debates É difícil circular por essa região das Clínicas sem se lembrar da imagem bíblica do “pátio dos milagres”. Parece que, no imaginário popular, o Hospital das Clínicas é um local de salvação. maria do patrocínio nunes É isso mesmo, pois o povo faz inferências a partir de suas observações. Então, por ser um dos hospitais públicos ligados a uma escola médica, num Estado do país que tem boa condição econômica, o HC conta com uma infra-estrutura que permite resolver grande parte dos casos que aqui chegam. E se transforma, no imaginário popular, num lugar meio mágico, como nos primórdios da humanidade, quando a medicina surge ao redor dos templos. E quem ia a esses templos? Quem as sacerdotisas atendiam? As pessoas sem muita esperança, os que não tinham cura. Elas buscavam o conforto, quem sabe o milagre... O HC representa isso de certo modo, mas com um atendimento concreto, pelo fato de ser um centro de excelência. setembro 2004 diálogos&debates 27 vida, a maioria dos casos serão simples, por isso é fundamental que faça atendimento na rede do SUS, nos postos de saúde. Formar um médico, não sei como é em outras áreas, é tarefa extremamente complexa. “O Hospital das Clínicas realiza cerca de 3 mil consultas por dia e 30 mil cirurgias por mês. São números expressivos” diálogos&debates Quantos médicos e alunos fazem seu aprendizado, atendendo aqui? patrocínio Alunos de graduação são 1080, considerando os seis anos de Medicina. Os alunos de pós-graduação são em torno de 1600 e mil os de residência médica. Ou seja, quase 4 mil médicos em treinamento. Além dos alunos de outras áreas da saúde: enfermagem, nutrição, psicologia, serviço social, fisioterapia, terapia ocupacional. É um universo. Seguramente serão mais de 5 mil profissionais em treinamento e dando atendimento. nível terciário: atende pacientes de alta complexidade, ou seja, com diagnósticos complexos, que demandam abordagem aprofundada, com procedimentos mais caros. Mas precisamos, para melhorar o atendimento médico no país, ainda deficiente, treinar os alunos na atenção primária e secundária. O atendimento secundário é realizado no Hospital Universitário, no campus da USP na Cidade Universitária. E a atenção primária deve ser realizada, sob supervisão, nas unidades básicas de saúde, nos hospitais e postos de saúde. diálogos&debates E o número de pessoas que passam diariamente por este complexo? patrocínio Só neste prédio, que é o dos ambulatórios, são cerca de 3 mil consultas por dia, 30 mil cirurgias por mês. São números expressivos. O HC depende de recursos do Estado, é ligado à Secretaria da Saúde, recebendo verbas que, mesmo inferiores às necessidades, ainda o transformam em uma unidade que presta adequadamente os serviços. Tem ainda outra fonte, que é a USP – que está no organograma da Ciência e Tecnologia. O HC é este símbolo da esperança, ou “pátio dos milagres”, como se colocou, por estar num contexto apropriado: tem verba própria e está ligado a uma universidade pública. Assim, ao mesmo tempo que se pesquisa, se atende e se tenta transformar esse ensino em atendimento à população. É um cenário apropriado. Estamos, diante da realidade paupérrima do país, numa situação acima da média. diálogos&debates O que são esses níveis? patrocínio No secundário atendem-se pacientes que não requerem investigações complexas e, no primário, as rotinas de postos de saúde. Uma atenção primária bem administrada, como é a proposta do SUS, resolve 85% da demanda de saúde da população. No nível secundário, já na rede de hospitais, a demanda seria de 15% a 20%. Sobraria de 5% a 10% para o atendimento terciário, de alta complexidade. O que acontece é que a rede primária não é adequadamente administrada, o secundário não dá conta do que precisa e há uma inversão de valores, e muitos casos são deslocados para o terciário. Neste momento, aqui no HC, começamos a falar, embora isso não esteja na nomenclatura do Ministério da Saúde, em um nível quaternário de atenção. diálogos&debates Mas há um movimento de estender esse trabalho de atendimento aos postos municipais de outros bairros, não? patrocínio Sim, até para atender às diretrizes curriculares de graduação em residência médica, precisamos treinar os alunos nos três níveis de assistência: primário, secundário e terciário. O HC é um centro essencialmente de 28 diálogos&debates setembro 2004 diálogos&debates O que viria a ser esse nível? patrocínio São situações mais complexas, como um transplante, para ficar num exemplo simples. Cirurgias cardíacas, neurocirurgias, tratamentos de ponta, com células-tronco. Isso seria outro patamar. O fato de atendermos tudo em um mesmo local é ruim. Pois a formação dos alunos é desviada. Podem sentir-se seguros para atender adequadamente apenas se estiverem em um hospital com recursos de alta complexidade, e não sabem diagnosticar um caso simples de diarréia. Ele acaba enxergando a pirâmide invertida: na E N T R E V I S TA diálogos&debates Há escassez de médico no país ou o problema é de distribuição dos profissionais, quase todos querendo ficar nas grandes capitais? patrocínio Temos cerca de 260 mil médicos no país. A Organização Mundial da Saúde recomenda um médico para cada mil habitantes. Ultrapassamos em muito esse 1/1000, estamos com 1/650. Mas aí vem o paradoxo: esse número é variável, depende de regiões e zonas. Na região Norte, é possível que se tenha 1/2000. Na capital de São Paulo, temos 1/260. Entretanto, há municípios paulistas que não conseguem ter um médico. São regiões de difícil provimento e não precisa ir muito longe. Na própria capital há bairros sem médico. Mas, apenas a título de formulação teórica, procuramos onde está a base científica para esse número da OMS e não foi encontrada. E alguns especialistas, como o prof. Milton de Arruda Martins, titular da Clínica Médica, ou o dr. Gonzalo Vecina Neto, secretário de Saúde do Município de São Paulo, acreditam, baseados em outros indicadores, que a relação mais apropriada seria a de um médico para 300 habitantes. diálogos&debates O que temos de ver é de que tipo de médico se está falando, não? patrocínio Exatamente, pois tem de ser um médico que dê conta da demanda mais freqüente da região em que estiver atuando. Mas o fato é que formar um médico é complexo e passa necessariamente pelo modelo pedagógico, de pessoas, de docentes que ele encontra ao longo da sua formação. Há uma impropriedade nas políticas de saúde entre nós. Para ficar apenas num exemplo, o SUS, no papel, é um dos melhores sistemas de saúde, extremamente adequado. Porém, não foi de fato, até hoje, implementado. O que observamos, no caso da formação médica, é a realidade de um mercado de trabalho confuso, pois não existe uma política de saúde bem estabelecida ou, se ela existe, não é executada. Por uma série de fatores, mas principalmente pela não valorização do médico nesse modelo de assistência à saúde. Para começar, a baixa remuneração. No sistema vigente, o médico não é valorizado e ele também não valoriza o sistema. diálogos&debates A senhora poderia explicitar um pouco mais? E N T R E V I S TA patrocínio A medicina nasce no Brasil como uma profissão liberal, mas ela se transformou nas últimas décadas. Os médicos continuam achando que são profissionais liberais e, pior, continuamos formando médicos nessa concepção. Somos agora uma categoria de profissionais – com todo zelo que se tem pela palavra, somos operários da saúde. Hoje não é possível conceber um médico como um profissional liberal, com um consultório onde as pessoas o procuram. Estamos ligados ao sistema público e privado de saúde. E esse sistema é caótico porque o público e o privado são vasos comunicantes, um interfere nas relações do outro. E as pessoas, ou seja, as escolas médicas, as entidades médicas, secretarias de governo, empresas de medicina privada, em vez de se sentarem desarmadas a uma mesa e discutirem à exaustão a maneira de encontrar uma solução, o que fazem? Perdem tempo se atacando e colocando a culpa no outro. diálogos&debates Isso é próprio do ser humano, parece. patrocínio Um médico no sistema público ganha um salário irrisório pela atribuição e responsabilidade que tem. Portanto, a saída são os vários empregos, e ele não se dedica, não tem o seu centro emocional focalizado, não se dedica a nenhum dos locais, ao menos não da maneira apropriada, por sentir-se desestimulado, desvalorizado. Os planos de saúde pagam de maneira equivocada aos médicos. E, pior, falamos isto há anos: qualquer demanda de saúde é gerada por uma conversa, a famosa relação entre médico e paciente, o conhecimento da história pessoal, o exame físico apropriado. Aqui na escola insistimos à exaustão nesse ponto. Agora, como é possível esse contato em consultas de cinco minutos? E no sistema privado são muito mais valorizados os procedimentos e os métodos diagnósticos do que propriamente a consulta. Como se fosse possível solicitar exames ou determinar procedimentos sem uma história médica adequada. diálogos&debates Há quem peça exame de laboratório sem examinar os olhos ou a língua do paciente, sem conversar sobre os sintomas. patrocínio Para sobreviver, o médico vai encontrando saídas, a maior parte delas antiéticas. Começa a reduzir o tempo de consulta, solicita mais exames. E ele acaba incorporando: “Não, eu não estou fazendo errado, é assim mesmo que tem de ser”. Precisamos resgatar, na medicina, a auto-estima do médico, nessa situação de quase descrédito com a saúde. Mas é preciso que ele aprenda a ter uma atitude médica, a não atuar como se não fosse com ele. setembro 2004 diálogos&debates 29 diálogos&debates Há até uma outra visão social da medicina, com o resgate da figura das parteiras, que podem atuar na atenção à saúde. Houve uma época em que o governo usava paramédicos que iam de bicicleta, de casa em casa. patrocínio É preciso cuidado com esse tipo de proposta porque ela é, muitas vezes, mal entendida e executada. Pois é óbvio que se posso pagar R$ 400,00 para um ajudante executar uma tarefa e teria de desembolsar R$ 4 mil para um profissional fazer o mesmo, a resposta é clara, mas elas são apenas atividades próximas, não iguais. O médico trabalha em equipe e é evidente que a população será tanto mais assistida quanto melhor for o entrosamento dessa equipe. Mas não dá para falar em atendimento a uma gestante feito apenas por enfermeiras, pois, se grande parte das gestantes terá um parto normal, o que ocorrerá com aquelas que dependem de outra abordagem? Então, é necessário, sim, que o médico, a enfermeira, o agente comunitário trabalhem em equipe e que elaborem, no conjunto, um plano de assistência à população. Mas não dá para falar de atendimento populacional sem um profissional médico na equipe. Falo isso porque, hoje, existe certa guerra entre os profissionais da saúde. De novo, não querem abordar o foco, a origem de tudo isso. diálogos&debates Que está onde? patrocínio Por exemplo, na proliferação de escolas que formam médicos, enfermeiras e profissionais da saúde, sem a responsabilidade com a qualidade dessa formação. Esse número excessivo de profissionais acaba gerando, de novo, subterfúgios, saídas para que eu me coloque nesse mercado. Aí eu começo a dizer que isso é atributo exclusivo do profissional da fisioterapia, aquilo é exclusivo do profissional da enfermagem quando, na verdade, indivíduos bem formados, com uma boa noção do que é adequado à saúde, conseguem conviver muito bem. diálogos&debates Falemos sobre a qualidade da formação. Algumas universidades particulares abrem escolas de Medicina para dar prestígio à instituição. patrocínio Eu digo até que essa é uma questão de interesse público. Precisamos nos mobilizar, como população, para cobrar das autoridades um controle e responsabilidade quanto à formação médica. É até interessante a proximidade com o Judiciário, pois temos de ser parceiros, com o Ministério Público e a própria mídia, pois a imprensa tem o papel de divulgar esses dados. Mas que dados? Estamos falando de um país que não faz avaliação responsável e cons- 30 diálogos&debates setembro 2004 trutiva em nenhum nível. Há muito lobby, jogo de influências políticas, quando algumas áreas não podem estar sob esse critério. Entendo, talvez porque este seja o meu restrito universo, que saúde e educação não podem atender a critérios políticos. Têm de ater-se às demandas da sociedade. E para isso devem seguir critérios técnicos, pois somos nós, cidadãos, que sustentamos essa estrutura. Mas não temos critérios técnicos de demanda de saúde no país. Então, abrem escolas de medicina com o único critério, como sua pergunta já antecipou, do prestígio. Colocam, antes de qualquer coisa, interesses comerciais e financeiros. diálogos&debates E mercadológicos. patrocínio E econômicos. A escola médica traz prestígio e dinheiro para aquela instituição. Não por meio da escola médica em si, mas pelo que ela representa e atrai. É como se fosse um atestado de confiança que a instituição recebe e, a partir daí, consegue amealhar mais alunos para outros cursos que têm custo menor. Isso tem de ser combatido. Quero estar viva para ver essas coisas acontecerem: sermos sérios na área de educação e saúde, estabelecendo critérios técnicos, e não seguindo jogos de interesses. diálogos&debates O resultado dessa falta de critério é que são colocados no mercado médicos despreparados. patrocínio Algo duplamente irresponsável. Primeiro com esses alunos que se formam e que têm de pagar fortunas por um diploma: foram enganados. Temos 128 escolas médicas no país. Os Estados Unidos têm 126, com a economia que têm e quase o dobro da população. O Canadá, com população cinco vezes menor, tem 16 escolas médicas, o que viria a ser a metade, proporcionalmente falando. Eles tomam a atitude que entendo necessária, a da restrição de abertura, obedecendo a critérios técnicos. Agora, das nossas 128 escolas, menos de 30% são públicas. E mais uma vez o paradoxo brasileiro: embora minoria, são elas que melhor formam seus egressos. Há muita irresponsabilidade na abertura de cursos de medicina. É irresponsável com quem cursa, como disse, porque paga muito caro e não recebe formação. Em segundo lugar, prejudica a população, que ficará à mercê de médicos que não têm formação adequada. O problema é mais grave do que parece. diálogos&debates E chegam muitos casos de erro médico ao Conselho? patrocínio Muitos. Uma estatística do CRM aponta em torno de 15 mil denúncias por ano, o que não significa que se- E N T R E V I S TA “A Organização Mundial da Saúde recomenda um médico para cada mil habitantes. Temos 1 para cada 650, mas isso varia muito dentro do país” jam todas comprovadas. Desses casos, 18% se configuram como eventuais erros. Mas 18% é um número altíssimo. Posso arriscar, sabendo que erro por pouco, que 90% das situações que avaliamos no CRM provêm de ignorância no sentido mais próprio do dicionário: por desconhecimento, porque o médico não foi exposto àquela situação de forma adequada durante o período de aprendizagem. É constrangedor para um professor de medicina viver as situações que vivemos no Conselho. diálogos&debates O Conselho é considerado corporativista. A voz corrente diz que nenhum médico censura outro médico. patrocínio Esse é um fato que não se comprova e posso falar, de novo, quase como observadora externa. Eu me formei aqui na USP, estou dentro da Universidade, dedico-me exclusivamente, passo mais de 12 horas por dia entre a Faculdade de Medicina e no HC, de segunda a sexta-feira. Gosto do que faço, isso não é reclamação. Estou no Conselho e o que observo é o contrário do que se diz. O processo de verificação das denúncias me dá a certeza de que o CRM-SP sindica as denúncias de modo responsável e longe, muito longe desse espírito corporativo. Existem ali diferentes níveis de discussão, não é uma decisão isolada. Um grupo de médicos discute caso a caso. Passamos noites de sexta-feira e dias de sábado analisando os casos apresentados. Depois é dada ampla oportunidade tanto para denunciantes quanto para denunciados se explicarem ou se defenderem. Depois é feito um juízo. Nessas etapas, conselheiros diferentes estão presentes, de maneira que é quase impossível que se faça um julgamento de fachada. E N T R E V I S TA diálogos&debates As penalidades são aplicadas? Alguma vez mandaram um médico refazer um curso, por exemplo? patrocínio É interessante essa colocação, pois existe a cassação do registro, mas realmente deveríamos começar a propor que haja essa recuperação. Discute-se a entrada das escolas médicas no processo, como responsáveis. Se nós, da USP, formamos um médico com deficiência, uma vez caracterizada essa falha da escola, do programa pedagógico, quem deve ser responsabilizado pela reabilitação do profissional é a instituição que o formou. diálogos&debates Qual sua posição sobre a proliferação dos cursinhos preparatórios para o exame de ingresso na residência médica? patrocínio Esse é outro dado lamentável da realidade. Muitos alunos deixam de estudar nos últimos anos da graduação para fazer esses cursinhos. Nós, a sociedade, não cuidamos do que é nosso e as coisas vão degringolando. O Ensino Fundamental é hoje uma piada: os alunos não sabem ler e quando lêem não compreendem, não sabem fazer as operações básicas. Na seqüência, o ensino médio também se esfacelou. Vejo em casa, tenho dois filhos estudando. No meu tempo, estudava-se em colégio público, com excelentes professores, ótima formação. Depois, passou-se a estudar em função da corrida para o vestibular, não se estuda para a vida. Agora, com a abertura indiscriminada de escolas médicas, muitas sem critério de qualidade, também vamos aguardar seis anos para, então, tentar recuperar lá na residência médica aquilo que não se conseguiu fazer durante a graduação. Mas a residência médica não serve para corrigir desvios na trajetória da graduação. Ela está coloca- setembro 2004 diálogos&debates 31 da para aperfeiçoar aquilo que foi estudado na graduação. Vários estudantes falam: “Não, professora, eu entrei em tal escola, mas depois vou tentar a residência médica em um lugar bom”. Não pode ser assim. ria com a medicina neste mundo de economia globalizada e do Estado mínimo. A medicina existe para servir a sociedade na manutenção e na recuperação da saúde e não para atingir cifras por meio da exploração de um estado de fragilidade do ser humano. diálogos&debates O sistema empurra o problema para a etapa seguinte. patrocínio Cada etapa da nossa vida, no Ensino Fundamental, no Médio, na faculdade, na residência médica, na pósgraduação, tem objetivo a cumprir e eles são complementares, um não pode suprir o outro. A residência médica é um período particular e exclusivo da categoria em que se aprende e se pratica sob supervisão. Isso forma um médico mais seguro em seus diagnósticos. É claro – e isso é um parêntese – que nem todas as residências médicas atendem a esse pré-requisito da supervisão adequada e algumas se configuram mais como cooptação de mão-de-obra barata para dar conta da demanda da população. Existem instituições privados que exploram a mão-de-obra dos residentes. Como há ainda os médicos espertos, que descobriram essa carência e abriram os tais cursinhos preparatórios para a residência. Não pode ser assim! É muito sério formar um médico! Despreparado, ele pode cometer desde um retardo de diagnóstico até um equívoco de medicação e comprometer a sua vida! E fica difícil brigar pela qualidade das escolas, porque não temos o apoio de quem deveria dar. O Ministério da Educação não cumpre seu papel de vigilante da qualidade do ensino deste país, em nenhum nível. diálogos&debates Digamos que a indústria farmacêutica bem poderia usar o símbolo de Hermes. patrocínio Não sou contra que alguém ganhe dinheiro, mas penso que tudo deve ter um limite, inclusive os interesses econômicos. Diria que há excesso de volúpia financeira por parte de alguns laboratórios. E laboratórios não só de medicamentos, mas os de diagnóstico também. Claro que exames clínicos são necessários, como o são os remédios. Mas nada substitui a presença e o contato entre o médico e o paciente, a conversa e o acompanhamento. A qualidade do diagnóstico tem muito a ver com o olho do médico, e nenhum exame vai substituir esse contato. Vejo em alguns contextos que a relação médico-paciente é tratada como qualquer produto de consumo, pelo que se paga e há a contrapartida de um serviço. Mas o atendimento médico, que extrapola a consulta, não é um produto de consumo qualquer, como vê o Código do Consumidor. Isso é um equívoco, banaliza essa relação médico-paciente. Isso é absolutamente incoerente e contraproducente. Tenho uma visão mais sacralizada disso tudo. Talvez por isso tenha um lado até combativo, de ir à luta, pegar o telefone e ligar para o governador Geraldo Alckmin... diálogos&debates Fica claro o antagonismo entre o interesse político e econômico e a busca do melhor para a população, não? patrocínio Lembra um pouco a confusão entre o símbolo da medicina e o do comércio, a história de Júpiter e de Hermes. O símbolo da medicina é um bastão de madeira com uma cobra em volta. O símbolo do comércio é um caduceu, duas cobras que se envolvem em uma haste. Um simboliza a medicina e sua ética, a cobra enrolada no bastão; o outro simboliza o comércio, mas são deuses com simbolismo diferente. Mas as Forças Armadas americanas, na década de 50, por um equívoco, usaram o caduceu de Hermes e não o bastão de Júpiter como símbolo da medicina. De algum modo, esse equívoco foi quase uma premonição do que acontece- diálogos&debates E ele atende? patrocínio Na realidade mandei um e-mail [risos]. Estava dizendo isso no sentido da minha terceira vocação, a de ser, além de médica e professora, advogada, de defender o outro. Sei que não tenho perfil para o Direito, mas advogo para os meus pacientes. Eu não consigo, sei que às vezes extrapolo, mas não consigo ver que as coisas não acontecem sem recorrer a quem pode resolver. Se tivéssemos mais essa atitude, como brasileiros, as coisas não estariam como estão. É preciso ser mais combativo, ir à luta, incomodar, se for o caso. “Como você vai incomodar o governador? Vai mandar e-mail para ele e ele não responderá”. Não é verdade! O Alckmin responde os e-mails. No caso, era uma situação de gravidade, diante de pessoas com doenças hematológi- “90% das situações que avaliamos no Conselho Regional provêm de ignorância no sentido mais próprio do dicionário” 32 diálogos&debates setembro 2004 E N T R E V I S TA cas graves, escrevi e o governador respondeu. E resolveu. O fato é que não vejo mais pacientes com leucemia e linfomas sem ter para onde ir, com a angústia de já conhecerem o diagnóstico há meses e sem ter para onde ir. diálogos&debates O Geraldo Alckmin é médico anestesista, não? patrocínio Sim, e tem o seu CRM ativo, de maneira que é um parceiro nas discussões sobre formação médica, sobre a qualidade da residência, pois teve essa formação. É claro que a qualquer um é dado o direito de ter sensibilidade para os problemas da população, mas ele tem mais ainda por haver passado por todo o processo. Mas eu estava falando sobre esse viés de advogar em favor das pessoas, pois entendo que temos essa responsabilidade. Depois de a sociedade nos formar e investir tanto em nós, temos de dar algo em troca. Muitas vezes penso no privilégio de ser médico, quando saio daqui, no final do dia. Muitas vezes me pego pensando que estou, de certa maneira, deixando de lado muitas coisas da minha vida pessoal, meus dois filhos, de 12 e 15 anos, me dedicando demais ao trabalho, à atenção dos pacientes e tantos excluídos da sorte. Imagino que o que eu faço servirá também como modelo para meus filhos. Deus me deu tanta oportunidade de formar médicos, de atender pessoas, de colaborar em diferentes instâncias. Até essa tarefa de correção de trajetória, agora no CRM. São oportunidades de contribuir para aquilo que entendo como uma sociedade melhor. À medida que você trabalha para ajudar as pessoas, você é o maior beneficiado. Então, muitas vezes me perguntam, aqui pelos corredores, de onde vem tanta força, “Como é que você consegue estar sempre tão animada?” Costumo cantar a música do Tom Jobim para a Gabriela: “Eu nasci assim, eu cresci assim” [risos], mas eu acho que cresci numa casa... diálogos&debates Como foi sua infância? patrocínio Cresci numa casa onde a gente era amado e incentivado, da maneira que meus pais podiam. Meu pai tinha uma pequena mercearia e sempre nos estimulou a ler. Ele e minha mãe trabalhavam das 4 da manhã até 10 da noite. E N T R E V I S TA E tiveram a inteligência de nos deixar estudar. Somos oito filhos, sendo seis formados pela USP. Na verdade, foram sete egressos da USP, porque uma irmã fez USP duas vezes. Entre nós tem a jornalista, a arquiteta, a pedagoga, a agrônoma... Estudei sempre em escola pública e tenho orgulho disso, além de me sentir devedora da sociedade. Tive professores que deixaram marcas. Como Francisca Pereira dos Santos, hoje aposentada pelo Estado, que me ensinou muito além das letras. Ela organizava, lá no Capão Redondo, atividades criativas, nos levava ao Museu de Arte Moderna para conversar sobre a Semana de Arte Moderna. Ela é um símbolo do que é um professor neste país. diálogos&debates E como se cristalizou a vocação para a medicina e para a docência médica? patrocínio Na realidade, o sonho de criança era ser bailarina, fazer balé clássico [risos]. Mas meu pai podia pagar? Em sério: desde pequena falava que ia ser médica, professora e advogada. Hoje consigo ser médica, ser professora e, de certa maneira, advogo pelos meus pacientes. Na graduação pensava em ir para o interior, atender à população, devolvendo a ela o que contribuiu para a minha formação, pois nunca perco de vista que é o povo que paga para nos formarmos em uma escola pública. É pública, mas não é gratuita, costumo apontar essa diferença. Estava fazendo residência, tentando aprender o máximo e no meio do segundo ano vem o dr. Antonino dos Santos Rocha, professor de Clínica Médica, e me diz: “Olha, você tem uma enorme vocação docente. Seria interessante que permanecesse e seguisse a carreira”, e eu dei risada. Ele insistia que eu tinha vocação para o ensino. Alguns anos depois ele faleceu e eu tenho o maior orgulho de dizer que ele estava certo, porque sou muito feliz como docente. Ele revolucionou, sem dúvida nenhuma, o ensino aqui da escola. Sabe, às vezes um amigo vem e fala, meio como os psicólogos: “Ah, você tem de parar com essa mania de missão”. Eu não sei por que tenho que parar com essa mania de missão! Quando tenho um desafio, penso assim: “Bom, será que estou preparada para ele?” E vou em frente. Desafios, para mim, são extremamente instigantes [risos]. Adoro desafios. setembro 2004 diálogos&debates 33 um jogo de empurra Na hora da prestação dos serviços contratados, alguns planos de saúde oferecem apenas pretextos. Afinal, como fica esse direito do usuário? POR SERGIO CONRADO CACOZZA GARCIA P lano, no sentido figurado, significa um projeto elaborado que comporta uma série de operações ou meios e que se destina a uma determinada finalidade. No caso que nos propomos discutir aqui, essa finalidade é a da saúde, no sentido amplo, profilática e reparadora. Seguindo esse mesmo sentido, plano também poderia ser tomado como um conjunto de ações com o objetivo de prejudicar alguém – mas sinceramente não quero acreditar na concomitância dessa definição com a situação que nós, brasileiros, estamos vivenciando com a prestação de serviço dos planos de saúde. Não deixa de configurar, no entanto, um momento delicado, bastante complicado e grave a que os usuários desses planos têm passado, e sobre isso falaremos. Comecemos com a ressalva de que buscar definir a prestação de saúde como um serviço simplesmente já incita muita controvérsia, sendo esse assunto para uma outra ocasião, apesar de tratá-lo assim a seguir. O que pretendo expressar nestas insuficientes linhas, pois esse é um tema muito complexo, se restringirá a uma opinião sobre a situação em que se encontra a relação en- 34 diálogos&debates setembro 2004 tre plano de saúde, cidadão e Justiça, no ponto de vista do advogado. Advogado que acredita no sentido de Justiça de uma sociedade organizada e que no exercício de sua profissão tem buscado ajudar cidadãos a exercer seus direitos com relação a esse bem tão precioso que é a saúde, e que inúmeras vezes tem visto tal ajuda ser negada, ora por decisões judiciais tímidas, ora por completa ausência de instrumentos coercitivos do Estado. Ocorre que esse problema existe e tem tomado uma dimensão bastante perigosa, para todas as partes. Basta ler os jornais ou assistir aos noticiosos da televisão: medidas judiciais contra planos de saúde, médicos se recusando a atender pelos planos, seguros se esquivando de indenizações e cobertura em brechas contratuais etc. Da mesma forma que outros déficits estruturais, típicos de uma sociedade em crescimento, surgiram em décadas anteriores (como o enorme déficit da educação ou dos transportes), os planos de saúde vieram de algum modo preencher a ausência de eficiência do Estado. E, óbvio, buscam a contrapartida dessa prestação, como qualquer investidor de qualquer parte deste planeta: as empresas almejam S A Ú D E o lucro – e que me perdoem os esquerdistas de carteirinha, que a esta altura já estarão exaltados, lembrando os exemplos de Cuba ou da China (são apenas estes, não?). Ou seja, na ausência de um serviço de saúde satisfatório prestado pelo Estado, o cidadão busca no contrato de um plano de saúde uma garantia efetiva para essa sua necessidade – vital, diga-se de passagem. Caberia uma longa discussão sobre o papel do Estado em garantir e dar a prestação desse direito fundamental do cidadão, mesmo nos tempos do Estado mínimo, tão ao gosto da globalização liberalizante. Mas não é essa a nossa proposta agora. Do lado da Justiça, ela está para ser provocada e responder aos anseios de uma sociedade que historicamente tem visto seus direitos serem prejudicados. Com o agravante da ignorância da população em não saber como fazer isso, nem ter condição de contratar um defensor privado. O que de resto não é exclusividade nenhuma do nosso país, e isso se pode ilustrar rapidamente com o exemplo das filas de até três meses, para uma consulta a especialista, que o cidadão tem de enfrentar no Canadá, para ficar num país de primeiro mundo. O problema é que o cliente que optou por um plano de saúde cumpre sua parte a duras penas de seu minguado orçamento e a contrapartida nem sempre acontece como ele espera. Como advogado atuante na área da saúde, tenho acompanhado todo tipo de prejuízo ao cidadão. Para citar alguns exemplos: coberturas que são alteradas no decorrer do contrato, aumentos abusivos do valor da prestação, especialidades que não são cobertas, discussão sobre doenças pré-existentes, falta de medicamentos de última geração, discriminação de cobertura para dependentes e um largo etc. A “garantia” dos contratos É fato que as empresas privadas prestadoras desse serviço alegam estar operando no vermelho, ou seja, a atividade tem causado mais prejuízo do que lucro, sem um mínimo de transparência em seus números. No entanto, em questões de minutos navegando em páginas dessas empresas na internet, se tem uma dimensão do volume arrecadado na simples conta de multiplicação do número de associados pelas mensalidades, que, todos nós sabemos, não é barata. Os planos custam caro. S A Ú D E São milhões de cidadãos que pagam todo mês seus planos de saúde e esperam ser correspondidos pela garantia prometida naquele contrato que assinaram, lembram-se? E é aí, naquele contrato, que começa um dos tantos problemas da nossa discussão. O contrato. O cidadão não se lembra, não se lembra de ler, de perguntar o que significam certas palavras, muitas vezes ele nem consegue se lembrar de onde guardou o tal contrato. O contrato é uma “peça” (no sentido jurídico e cultural) que já vem pronta, apresentada por aquele vendedor simpático (nem sempre), ávido por seu percentual da venda, com a caneta à disposição. Do outro lado, o cidadão esperançoso crê ter finalmente conseguido uma garantia de ajuda caso fique doente – já que o Estado, como se disse, não cumpre seu papel de provedor e nem sequer garante desse direito. (Agora, tem garantia). E isso infelizmente ocorre com mais freqüência do que gostaríamos. A garantia? Não! Ficar doente. Precisar de um médico, de um hospital, de remédios, de exames de alta complexidade, enfim buscar a cura do mal que nos aflige. É então, nesse momento em que está mais fragilizado, que o cidadão descobre outro problema. Ou melhor, uma série de outros problemas. Para começar, para ser atendido a mensalidade deve estar paga, rigorosamente paga em dia. Alguém poderá alegar: “O Código do Consumidor determina tolerância no atraso das mensalidades, ou ainda a comunicação por escrito da inadimplência e o aviso da interrupção do serviço com antecedência”. Na prática não é bem assim, ou melhor, não é nada assim. O cidadão sofre prejuízos e constrangimento desde o primeiro momento em que liga para o atendimento do plano de saúde, suportando o custo da ligação (relevante lembrar aquelas musiquinhas e propagandas que é obrigado a ouvir enquanto espera). Passa por inúmeras alternativas de discagem ditadas por uma voz macia, que a essa altura o contratante tem Há coberturas que são vontade, se pudesse, de desligar, mas... Finalmente é atendido por um ser hualteradas no decorrer mano (ás vezes se tem a impressão de do contrato, aumentos que alguns atendentes não o são) e é bombardeado com inúmeras pergunabusivos do valor da tas (por motivo de segurança, alegam). prestação, especialidades Claro que a primeira pergunta é impreterivelmente quando foi paga sua últique não são cobertas, ma mensalidade, para depois conseguir falta de medicamentos a informação desejada. A existência de especialista, enderede última geração... ço mais viável, necessidade de guias de setembro 2004 diálogos&debates 35 autorização, limite de utilização, são inúmeras as necessidades do consumidor que podem não estar cobertas pelo plano contratado, mas que infelizmente o usuário só vai descobrir quando precisou do serviço que agora é negado ou dificultado. O cidadão, doente, necessitando de cuidados especiais, e além de tudo frustrado na expectativa que construiu com o plano de saúde que contratou, se vê mais uma vez à mercê da proteção do Estado. Ele mesmo, o Estado que deveria ter previsto e cuidado para que isso não tivesse ocorrido. Agora, a busca do socorro é na figura do Judiciário. As leis brasileiras são boas, são copiadas por outros países, são muitas, porém sua aplicação é uma outra história (e tema para uma outra discussão). Dividindo a responsabilidade, também não se pode admitir que o Estado autorize tal prestação de serviço sem a devida cautela em regulamentar e prever a maior quantidade possível de situações que o setor da saúde merece, buscando garantias de preservação do mínimo necessário ao cidadão. Por último, atolado com o mar de ações à espera de decisões, o Judiciário, que deveria estar pronto para satisfazer o desejo de Justiça da sociedade, se encontrou paralisado, na prática, com a greve de São Paulo – iniciada em junho e ainda sem definição em meados de setembro. São problemas que se acumulam. Solução? Não tenho a pretensão nem a arrogância de achar que a tenho. Mas me atrevo a sugerir alguns camiA interferência do Judiciário nhos. O Estado deve se prestar ao papel que tem e exiÉ sabido que a discussão da prestação de serviço de saú- gir que tais empresas cumpram com suas responsabilidade pelo setor privado já atingiu as esferas superiores em to- des, assumidas nesse setor de tamanha importância que é dos os cantos do país. Ou seja, as decia saúde de uma sociedade. Ele deve sões de primeira instância estão sendo ter uma presença assertiva, exigindo questionadas por ambas as partes nos As agências fiscalizadoras que, caso contrário, esses empresários Tribunais. Ninguém está satisfeito. mudem de ramo. O Estado deve fordevem ter o poder efetivo A insatisfação e desconformidade necer instrumentos de regulamentade cobrança e de com decisões dos juízes de primeição e fiscalização para que a sociero grau estão longe de ser unânimes. seja respaldada na situação de aplicação de penalidades, dade Existem aquelas cautelosas, as extrecontrovérsia generalizada. Ou seja, com autonomia e isenção as agências fiscalizadoras devem ter mistas, as temerosas, mas na grande maioria são justas, levando em conpolítica. E o consumidor, o poder efetivo de cobrança e de aplisideração os limites que têm nossos cação de penalidades, com autonomia é claro, deve procurar julgadores, resultado das lacunas na e isenção política. legislação regulamentadora e instruPor outro lado, o consumidor deve seus direitos mentalizadora de fiscalização. Somaprocurar seus direitos, preferencialdo a todos os outros problemas exposmente de forma preventiva. Ou seja, tos, a Justiça se encontra abarrotada de processos discutin- antes de contratar o serviço, consultar um advogado, endo essa relação entre plano de saúde e o consumidor. Como tender aquilo que está assinando e se comprometendo, com agravante, a greve do Judiciário paulista há meses leva pre- conhecimento claro daquilo que a outra parte está lhe projuízos irreparáveis a milhares de necessitados. metendo. No entanto, se o prejuízo já estiver ocorrendo, que Concluo que o problema é grave. Se as empresas estão, procure a Justiça, particular ou a oferecida pelo Estado. como alegam, com problema de caixa, para ser simplista e O advogado deve ter em mente aquele ideal insurgido ir ao cerne da discussão, trata-se de uma questão de admi- no seu juramento de propagação de defesa na mais ampla nistração. Por causa do déficit de uma sociedade na atenção e irrestrita forma de Justiça. E por último, como brasileiros, à saúde de seus cidadãos, não é admissível que empresários todos devem lutar pelo efetivo exercício do direito de todo incompetentes se aventurem em um negócio que não do- cidadão e fazer jus à fama que tem, um povo forte que suminam. Ou, olhando para o lado positivo, eles que arquem pera obstáculos na busca de seus sonhos. com as conseqüências de serem empresários sem uma percepção de futuro para, com resultados bons ou maus, ter o Sergio Conrado Cacozza Garcia, advogado atuante na área de indenização cuidado mínimo de se resguardar das oscilações de merca- cível e da família, é especialista em Direito Internacional pela Universidade do. Afinal de contas, não estamos na Suíça. de Bolonha. 36 diálogos&debates setembro 2004 S A Ú D E acervos de música online Digitalizadas e recuperadas pelo Instituto Moreira Salles, jóias do cancioneiro estão à disposição de pesquisadores na internet POR MAISA INFANTE H á mais de 100 anos, desde 1902, o Brasil grava músicas em disco. De lá para cá, surgiram centenas de ritmos que formam a diversidade musical brasileira. Do rock ao frevo, do pagode ao maxixe, o Brasil é considerado um dos países mais ricos musicalmente – e admirado por isso. Apesar de toda essa riqueza, a memória dessa música ainda engatinha no que diz respeito a preservação. Muitos acervos estão abandonados, muitos discos se perderam, mas ainda há esperança de que esse quadro seja revertido. Uma das iniciativas louváveis e pioneiras nesse sentido é a do Instituto Moreira Salles. Mantida pelo Unibanco, a instituição adquiriu acervos importantes e começou, neste ano, a pôr músicas à disposição para audição na internet. Canções que foram gravadas nos antigos discos 78 rotações, inclusive as primeiras gravações feitas no Brasil, chegaram à web com uma qualidade impressionante. Quem quiser ouvir gravações originais de Pixinguinha, Noel Rosa, Vadico, Orestes Barbosa, Carmem Miranda ou Lamartine Babo, basta acessar o site do Instituto (www.ims.com.br). É nessa página que estão disponíveis 12 mil fonogramas gravados entre 1902 e 1950. Há também alguns registros inusitados, como duas canções gravadas por Bibi Ferreira em 1941. C U LT U R A José Ramos Tinhorão, pesquisador e crítico de música que vendeu seu acervo de livros, discos, partituras e outros documentos para o IMS. setembro 2004 diálogos&debates 37 O pesquisador Humberto Franceschi, com Pixinguinha e seu grupo ao fundo. À direita, acervo do IMS com as mesas usadas pelos pesquisadores. As gravações fazem parte do acervo do pesquisador ca- Pau), do violonista paulistano Antônio D’Áuria e do piarioca Humberto Franceschi, que durante 40 anos guardou nista Ernesto Nazareth. O próximo a entrar na rede será discos e registros sonoros do início do século. Em 2000, o acervo de Tinhorão: a meta é que isso aconteça até o fiFranceschi entregou seu acervo para a guarda do Instituto nal de 2005. Moreira Salles. Os fonogramas foram digitalizados e passaA parte musical do acervo de Tinhorão é composta por ram por um tratamento de som antes de chegarem à inter- 6 mil LPs e 8 mil discos 78 e 76 rpm, que completam a colenet. Para quem não tem acesso à rede, existe a oportunida- ção de Humberto Franceschi por abranger um período que de de consultar as músicas na sede carioca do Instituto, na esta última não contempla. Tinhorão tem, por exemplo, Gávea. Ali foi montado o Centro Petrobrás de Referência muito material referente à bossa nova, gênero musical do da Música Brasileira, que começou a funcionar muito an- qual é o maior crítico. De acordo com José Luís Herência, tes da web, com terminais de computador dos quais é pos- coordenador do setor de música do IMS, 20 mil músicas já sível acessar as mesmas canções que hoje estão na internet. estão digitalizadas e faltam ainda 60 mil. Mas o acervo do Para Franceschi, que possui outras raridades em sua casa, pesquisador não tem apenas discos. Também há partituras, ter seu acervo à disposição de consulta na web é uma ma- livros e recortes de jornais. Essa parte ainda vai levar mais neira de desfazer o preconceito que existe com a música tempo para poder ser consultada. A idéia do IMS é criar antiga. Ele acredita que esse é o melhor um espaço ao qual as pessoas possam canal para a divulgação da música brair para realizar consultas, como se fosVinte mil músicas já sileira. “Foram gravadas 70 mil músicas se uma biblioteca. “Mas isso ainda está entre 1902 e 1950. Se você classifica peno começo. Nem é possível prever”, diz foram digitalizadas dagogicamente 5% disso, muda a cabeJosé Luís Herência. pelo Instituto Moreira ça das pessoas”, diz. Quando o programado se concretiE a intenção do IMS é pôr mais mazar, será um avanço em termos de pesSalles, mas ainda terial (fotos e músicas) à disposição. A quisa. No acervo de Tinhorão é possífaltam 60 mil. O próximo vel encontrar, por exemplo, partituras instituição também tem sob sua guarda o acervo pessoal do pesquisador e críde compositores como Assis Valenacervo a entrar na tico de música José Ramos Tinhorão, te, Mário Lago, Luiz Gonzaga, Marceinternet é o de José do compositor Pixinguinha, da cantolo Tupinambá, João de Barro ou Raul ra Elizeth Cardoso, do produtor musiTorres, entre outros. Há também aqueRamos Tinhorão cal de bossa nova Walter Silva (o Picalas separadas por tema, como músicas 38 diálogos&debates setembro 2004 C U LT U R A sobre rádio, músicas de teatro de revissérie de revistas. Tem a coleção quata, músicas de sala de espera de cinese completa das publicações de atualiO IMS disponibilizará, ma. “Isso é importante porque é possídades O Malho (desde 1902), A Careem breve, 2 mil horas vel recuperar o espírito de uma época. ta, Fon-Fon, Seleta, Revista da Semana, Se alguém quiser fazer um filme daqui Ilustração Brasileira, Carioca e Cine-Ráde gravações que a 50 anos, com a história se ambientandio-Jornal, todas de grande importância incluem o registro do do no Rio de Janeiro da década de 1920, em sua época. histórico e polêmico e tem uma cena que se passa na sala de espera do cinema, é só pegar as partituPixinguinha, Nazareth e Elizeth show da bossa nova ras da época e pôr a banda para tocar”, Depois que o trabalho com o acervo no Carnegie Hall afirma Tinhorão. de Tinhorão estiver encerrado, o IMS O Carnaval é um capítulo à parte começará a digitalizar imagens, partituno acervo do pesquisador. Tinhorão guarda partituras dos ras e fonogramas de outros acervos que estão sob sua guargrandes sucessos de carnaval desde a década de 30. Os re- da. Por enquanto, esse material passa pelo processo de cacortes de jornal sobre o assunto estão em pastas organiza- talogação. Mas são acervos formados por documentos de das de 1969 até 2002. Na parte fonográfica, ele tem os discos qualidade. com os sucessos carnavalescos desde o início do século XX No de Walter Silva, por exemplo, um dos nomes mais imaté o aparecimento dos LPs, em meados da década de 50. portantes da produção de bossa nova em São Paulo, há fiNa parte de livros, existem mais de 8 mil obras que in- tas magnéticas de 1⁄4 de polegadas que contêm, além de grateressam ao estudo da música popular. São livros de litera- vação de shows, registros inéditos de bastidores de artistas tura, contos, crônicas, memórias, teatro, poesia, cordel, ar- como Elis Regina, Toquinho e Chico Buarque. Há também tes, biografias, entre outros. Tinhorão guarda também uma entrevistas feitas por ele para o programa Pick-up do PicaPau. São cerca de 2 mil horas de gravações que incluem o registro do histórico e polêmico show da bossa nova no Carnegie Hall. Já a parte principal do acervo de Pixinguinha, também sob a tutela do IMS, é composta por fotos de família, partituras e grades de arranjos. Há, por exemplo, partes de músicas que não foram incorporadas na versão de sucessos, como um trecho de Carinhoso (meu coração/não sei por que/bate feliz/quando te vê) que ninguém conhecia até agora. Há também objetos pessoais, como a flauta que pertenceu ao músico. Do pianista Ernesto Nazareth o IMS possui os originais das únicas imagens conhecidas dele, manuscritos e mais de mil partituras do repertório pianístico tocado nos salões da elite do início do século XX, corrigidos pelo próprio. Fotos, vídeos e fitas com ensaios compõem o acervo de Elizeth Cardoso. Contém arranjos para apresentações e gravações da cantora assinados por maestros como Guerra Peixe, Radamés Gnatalli e Lindolfo Gaya. Para fechar a coleção do IMS, o acervo do violonista Antônio D’Áuria possui fitas com as gravações que ele fazia em sua casa, no bairro do Bixiga, em São Paulo, quando recebia visitas ilustres como Tia Amélia e Pixinguinha. Sem o advento da internet, registros como esses provavelmente não sairiam da obscuridade. A partitura é de Ernesto Nazareth. C U LT U R A setembro 2004 diálogos&debates 39 A redução do número de vereadores terá algum efeito sobre o clientelismo? Possivelmente não, dizem dois diagnósticos divergentes sobre o poder e fraqueza dos legislativos municipais P Ilustração Kipper olíticos só estão interessados em atender sua clientela. São coronéis sem terras. Mandões sem necessariamente usar a violência ou ameaça dela. Essas são algumas das principais crenças com relação à política brasileira: o coronelismo e/ou clientelismo são mazelas do sistema, altamente disseminadas, permeando todas as relações entre políticos e eleitores. Seriam fenômenos principalmente visíveis nos pequenos municípios, longe do escrutínio de uma forte opinião pública e de meios de comunicação independentes – como se sabe, os pequenos jornais, as emissoras de rádio e repetidoras de televisão do interior do país estão sob comando de políticos. A redução do número de vereadores nas Câmaras Municipais, decisão tomada em abril pelo Tribunal Superior Eleitoral, com base em uma norma do Supremo Tribunal Federal, foi comemorada como um grande passo contra o clientelismo. Para entender se isso de fato pode ser verdade, primeiro é necessário saber o que é coronelismo e o que é clientelismo. Também é preciso investigar como funcionam os legislativos municipais. Assim saberemos se essa redução do número de parlamentares será uma medida eficaz contra o clientelismo e a corrupção ou se é apenas um C L I E N T E L I S M O POR SÉRGIO PRAÇA entre outros tantos projetos que fingem avançar, mas continuam preservando privilégios. A expressão “coronelismo” foi consolidada na Academia Brasileira quando o jurista Victor Nunes Leal publicou Coronelismo, Enxada e Voto, em 1949. Nunes Leal estudou o compromisso coronelista existente nos municípios brasileiros durante a Primeira República (1889-1930): os chefes políticos locais apoiavam incondicionalmente os candidatos governistas nas eleições estaduais e federais e, em troca, o governo estadual fornecia carta branca a eles em todos os assuntos relativos ao município. Essa situação só ocorreu porque, com o advento do sufrágio amplo inaugurado pela República, o poder público passou a depender do eleitorado rural – este subordinado aos senhores das terras, os coronéis. O fenômeno coronelista se baseava, assim, em um fato político e em uma conjuntura econômica próprios da Primeira República. O fato político foi o federalismo, que criou uma nova figura pública com amplos poderes: o governador do Estado. A conjuntura econômica era a da decadência dos grandes fazendeiros, o que acarretava o enfraquecimento do poder político dos coronéis em face a seus dependentes e rivais. A manutenção desse poder passou, então, a exigir setembro 2004 diálogos&debates 41 a presença do Estado, que expandia sua influencia na pro- sas do Rio de Janeiro (Iuperj), em sua tese de doutorado porção em que diminuía a dos donos da terra. pela mesma instituição, analisou as leis aprovadas no pePode-se dizer, então, que o coronelismo se baseava em ríodo 1959-1963 pela Câmara dos Deputados. Considerou quatro fraquezas: a do poder público federal e estadual, clientelistas aquelas que transferiam recursos, de maneira que não alcançavam o eleitorado rural sem passar pelos concentrada, para algum grupo social (professores, agricoronéis; a fraqueza do município, à época pouco autôno- cultores etc.) ou grupo territorialmente definido. Concluiu mo em relação ao poder estadual; a da situação econômi- que cerca de 70% das leis aprovadas naquela legislatura tica dos senhores de terras, os coronéis; e, finalmente, a fra- nham essa natureza, comprovando empiricamente a crenqueza da população rural, que dependia dos coronéis para ça segundo a qual nossos parlamentares estão mais preocusobreviver. pados em atender os interesses de suas bases do que os inA obra de Nunes Leal foi extensamente comentada e seu teresses do país. Mas algo poderia estar mudando: um traconceito de “coronelismo” foi apropriado por colegas aca- balho mais recente de Paolo Ricci, doutorando em ciência dêmicos, de diversas áreas, e pelo senso comum – raramen- política pela USP, chega a conclusão contrária: 63% das leis te da maneira como ele o concebeu no livro. O historiador aprovadas entre 1991 e 2001 tratam de temas nacionais, enJosé Murilo de Carvalho se propôs a clarificar as diferenças quanto apenas 26% seriam clientelistas (embora o autor não entre os termos “mandonismo”, “corouse essa expressão). nelismo” e “clientelismo”. Segundo ele, Mas esses são dois estudos que leo mandonismo não é um sistema, mas vam em conta a esfera federal. Já o obClientelismo é um tipo sim uma característica, presente quanjeto de Victor Nunes Leal em sua obra de relação entre atores do o chefe local exerce sobre a popupioneira sobre o coronelismo havia lação um domínio pessoal e arbitrásido o município. Com a facilidade políticos que envolve a rio que a impede de ter livre acesso criação permitida pela Constituiconcessão de empregos, de ao mercado e à sociedade política. ção de 1988, o número de municípios Não necessariamente o chefe local no hoje está em torno de 5.600. Como vantagens fiscais etc., mandonismo, ao contrário do coroneescreveu José Murilo de Carvalho, o em troca de apoio lismo, depende de outras forcas políticlientelismo se dá quando políticos cas para exercer sua dominação. com influência junto ao Executivo Clientelismo, segundo Carvalho, é um tipo de relação se aproveitam dessa posição para distribuir benesses para entre atores políticos que envolve a concessão de benefí- seus eleitores. Nos municípios, quem seriam esses políticios públicos na forma de empregos, vantagens fiscais, isen- cos? Os vereadores. ções, em troca de apoio político, sobretudo na forma de As câmaras municipais talvez tenham sido os órgãos povoto. Para o historiador, os autores que vêem coronelismo líticos brasileiros que mais mudaram de atribuições constino meio urbano e no Brasil pós-1930 estão falando simples- tucionais ao longo da história. No período colonial, eram o mente de clientelismo. A figura do coronel não é necessária. único órgão de administração local, concentrando funções Deputados trocam votos por empregos e serviços públicos, executivas, legislativas e judiciárias. Com o advento do Imque conseguem graças a sua capacidade de influir sobre o pério e a Constituição de 1824, o poder judiciário foi tiraExecutivo. De acordo com Carvalho, é possível mesmo di- do dos legislativos. A partir da proclamação da República, zer que o clientelismo se ampliou com o fim do coronelis- as câmaras foram transformadas em conselhos de intenmo e aumentou com o decréscimo do mandonismo. Pode- dência e cada vereador passou a ter funções específicas, esmos aferir que o clientelismo é o primo mais “democráti- pecializadas. Foi um primeiro passo rumo à profissionalico” do coronelismo. zação na política como entendida por Max Weber. No Estado de São Paulo, uma lei estadual estabeleceu, em 1908, Como funcionam as câmaras municipais: a figura do prefeito – escolhido entre os vereadores eleitos. duas visões conflitantes Apenas em 1934 o prefeito deixou de ser vereador e pasComo seria possível medir a existência desse fenômeno sou a ser eleito indiretamente pela câmara ou diretamendo coronelismo/clientelismo no Brasil hoje? Fabiano San- te pela população. tos, diretor-presidente do Instituto Universitário de PesquiPodemos afirmar que as câmaras serão tanto mais clien- 42 diálogos&debates setembro 2004 C L I E N T E L I S M O telistas quanto mais abdicarem de suas principais funções: ele já chegou ao fim, sim. Mas se nos referimos ao mandolegislar sobre assuntos locais e fiscalizar o Executivo. Por nismo, no qual o poder está concentrado na mão de uma quê? Porque, se o vereador legisla pouco e fiscaliza pouco, pessoa só, isso está muito longe de acontecer. Em nenhum deixa o prefeito livre para aprovar as leis que lhe interes- momento da minha pesquisa eu vi algo que apontasse para sam e gastar o dinheiro do município como lhe for mais esse fim. A maioria das cassações de prefeito ocorre quanconveniente, sem a contrapartida de outro poder político, do ele afronta a Câmara, e não porque é corrupto, não como ferindo o ideal constitucional de equilíbrio e harmonia en- reação ao mandonismo”, disse Neto em entrevista a Patritre os poderes. cia Moterani. Alguns dados permitem dizer que os legislativos muniQuem estudou cassações de prefeito, no entanto, não foi cipais são fraquíssimos frente ao Executivo. Joffre Neto, ve- Joffre Neto, mas o cientista político Rui Tavares Maluf, doureador em Taubaté pelo PT (ex-PHS), defendeu disserta- torando na USP, em seu livro Prefeitos na Mira (São Paução de mestrado na Fundação Getúlio Vargas sobre o tema. lo, Ed. Biruta, 2001), onde trata do processo de cassação de Com base em 391 questionários respondidos por verea- 44 prefeitos em 41 municípios do Estado de São Paulo endores, de um total de 1.187 enviados para municípios em tre 1997 e 2000. De acordo com Tavares Maluf, 25 desses todo o Brasil, Joffre Neto elenca dados interessantes. O pri- processos ocorreram por motivos ligados exclusivamente à meiro: 61% dos vereadores brasileiros corrupção ou ao mau uso do dinheientendem que sua principal função ro publico dos prefeitos envolvidos; 7 é dar ao eleitor algum tipo de assisprocessos tiveram como motivo em61% dos vereadores tência, chamada pelo autor de clienbates entre o Executivo e o Legislativo, brasileiros entendem que a maioria deles quando o prefeito deitelista. Em outras palavras, enquanto o Executivo legisla e gasta sem uma sua principal função é dar xou de repassar a verba do orçameninstância fiscalizadora, os parlamento da Câmara; 7 processos ocorreram ao eleitor algum tipo de tares preferem gastar seu tempo conpor uma mistura de corrupção e contatando diretamente o eleitorado. Para assistência clientelista, em fronto direto com as câmaras e 2 deles Neto, o sistema é bastante simples: o foram por motivos alheios. vez de legislar e fiscalizar prefeito precisa de votos para aprovar Assim, aquela opinião de Joffre seus projetos e quer se ver livre de fisNeto não se sustenta empiricamencalização; o vereador precisa de ações diretas junto à popu- te, ao menos em São Paulo, permitindo que Tavares Maluf lação. Então os parlamentares trocam facilmente votações trace seu próprio diagnóstico acerca do poder dos legislaencomendadas e um tratamento ameno com o prefeito pe- tivos municipais. “Não podemos mais recorrer ao conceito los recursos administrativos de que necessitam para aten- de coronelismo para tentar explicar a dominação política, der seu eleitorado. especialmente se considerarmos os municípios mais urbaTambém de acordo com o trabalho de Joffre Neto, 74% nizados. Podemos continuar usando o termo clientelismo, das câmaras municipais no Brasil têm sessões noturnas; que cai melhor para explicar uma série de coisas, mas é bem 57% dos vereadores se dedicam exclusivamente ao manda- diferente do coronelismo. Não deixa de ser uma forma de to; 34% das câmaras funcionam em meio expediente; 17% dominação política, mas está longe de ser como o coronedas câmaras têm reuniões regulares de comissões de finan- lismo, que é um enquadramento político-social muito mais ças e de comissões de justiça; 14% das câmaras permitem forte em que a pessoa realmente sujeita as instituições políque o prefeito gaste livremente entre 50% a 100% do orça- ticas às suas vontades.” mento da cidade; 13% dos legislativos municipais possuem assessoria técnica e 9% dos vereadores têm gabinete indivi- Os diagnósticos e a redução do número de vereadores dual. Essa pletora de estatísticas permite que Joffre Neto dê Esses dois especialistas concordam, enfim, que existe seu diagnóstico pouco animador: as câmaras são meramen- uma forma de dominação política vigente nos municípios, te um órgão decorativo na democracia brasileira. embora não seja um sistema de dominação como era o coE com isso poderíamos dizer que o coronelismo ain- ronelismo. Joffre Neto diz que é mandonismo do prefeito, da existe? “Se estivermos falando daquele coronelismo ba- Tavares Maluf fala em clientelismo. O papel das câmaras seado fortemente em estruturas rurais, pode-se dizer que municipais nesses dois tipos de dominação é central. Ora, C L I E N T E L I S M O setembro 2004 diálogos&debates 43 o certo então seria reduzir o numero de vereadores. Assim gastaríamos menos dinheiro com parlamentares ineficientes ou corruptos. Certo? O Tribunal Superior Eleitoral parece concordar que sim, e o Congresso Nacional não conseguiu coordenar suas ações de maneira a evitar isso. As mudanças no número de vereadores começaram quando o TSE, em 1º de abril, decidiu estender a todo o país decisão anterior do Supremo Tribunal Federal, que criou um critério de proporcionalidade entre vereadores e população ao julgar processos envolvendo dez cidades do Estado de São Paulo. Pelo cálculo do TSE, cada grupo de 47.619 habitantes terá um novo vereador, nas eleições de outubro, respeitado o mínimo de nove. Antes dessa proposta do TSE, a Constituição, no inciso IV do artigo 29, delimitava o mínimo de 9 e máximo de 21 vereadores nas cidades com até 1 milhão de habitantes; mínimo de 33 e máximo de 41 nas cidades com mais de 1 e menos que 5 milhões de habitantes; mínimo de 42 e máximo de 55 vereadores nos municípios com mais de 5 milhões de habitantes. A distorção é nítida. Pela Constituição, a cidade de Borá (SP), com 795 cidadãos, pode ter o mesmo número de vereadores que São José dos Campos (SP), com 539 mil habitantes. Isso só não acontece porque cabe às câmaras legislarem sobre o número de vereadores dentro dessa faixa. Mas há distorções suficientes para que, a partir dessa medida do TSE, o Brasil tenha 8.528 vereadores a menos – um corte de 14,1%. Essa decisão do TSE responde mais a uma demanda pela proporcionalidade entre habitantes e representantes do que pela simples redução de cargos em si. Tanto é assim que a proposta do Tribunal nem sequer considerou o tema de repasses de verbas das prefeituras às câmaras, enquanto a proposta do Congresso diminui esses repasses. Porém, no fim de junho, o Senado Federal não conseguiu atingir o quorum mínimo de 49 senadores a favor de um projeto de emenda constitucional, oriundo da Câmara dos Deputados, que eliminaria 5.062 vagas nos legislativos municipais – 8,4% do total. Essa proposta também reduzia o mínimo de nove para sete vereadores. Senadores como Heloisa Helena (PSOL) e Tião Viana (PT) foram decisivos para a falta do quorum, convencendo colegas a retirar-se do plenário. Segundo os jornais, foi um modo de o governo retaliar a oposição pela derrota na medida provisória do salário mínimo. A estimativa é que a resolução do TSE representará economia de R$ 550 milhões anuais, com base na redução do gasto com salários de vereadores e assessores. Essa economia, no entanto, depende de negociação entre prefeituras e câmaras. Se é possível louvar o Judiciário por ter tomado uma decisão que parece bastante correta do ponto de vista da proporcionalidade da representação no sistema brasileiro – vale lembrar, proporcionalidade violentada se considerarmos a representação dos Estados na Câmara dos Deputados –, é necessário atentar para o fato de o TSE estar, na prática, legislando. Ainda que a decisão tenha sido passível de reversão pelos senadores, que não formaram consenso suficiente em torno de uma proposta alternativa para derrubá-la, o processo não foi inteiramente legítimo. De acordo com Joffre Neto, o que orientou a decisão do TSE foi “a sensação de que as câmaras municipais são inúteis, que os vereadores são vagabundos. É uma questão cultural, mas isso vem de um sistema artificial que esvaziou as câmaras de significado. A câmara não atende ao que a população precisa e então essa mesma população vê esse órgão como inútil. Ou seja, a população procura o vereador para aquilo que ele não pode mais oferecer e o vereador promete aquilo que não pode mais cumprir”. Para Tavares Maluf, a medida de redução do numero de vereadores “fere frontalmente o princípio federativo e de autonomia dos municípios sem ter qualquer conseqüência na qualidade de vida do município. O que nós queremos efetivamente coibir, e talvez isso tenha norteado os ministros quando tomaram essa decisão, é o mau uso do dinheiro público. Um dos instrumentos que mais pode ajudar nessa questão é a Lei de Responsabilidade Fiscal. Poderíamos obter mais resultados positivos para o desenvolvimento político-administrativo do município preocupando-nos com um controle forte dos gastos do que quando entramos na vida do município para dizer se ele tem que ter 3, 5 ou 10 vereadores. Isso nem de longe mexe com as formas de dominação e mau uso do dinheiro público. Nada mais é do que uma intromissão na autonomia dos municípios”. estar atenta: histórico das autoridades eleitas; falta de transparência nos atos administrativos; ausência de controles administrativos e financeiros; subserviência do Legislativo e dos Conselhos Municipais; baixo nível de capacitação técnica dos funcionários da Prefeitura; e alheamento da comunidade em relação ao processo orçamentário. A verificação das notas fiscais emitidas por empresas que prestam serviços à Prefeitura é um bom exercício. Notas com valores iguais ou próximos de R$ 8 mil podem ser indício de favorecimento de empresas, já que as prefeituras podem contratar serviços e realizar compras sem licitação tendo esse valor como limite. Resta facilitar o acesso da população a essas notas. Se considerarmos que nem no maior município do país a prefeita permite que a execução orçamentária seja detalhada no website do Executivo, por meio de relatórios mensais de gastos, o que podemos esperar nos municípios menores? Bem, podemos esperar, de acordo com Joffre Neto, que apenas 30% dos legislativos municipais formem comissões parlamentares de inquérito para investigar possíveis desmandos das prefeituras, mesmo que em 80% desses parlamentos algum membro do Executivo seja convocado para prestar esclarecimentos. O autor lembra da famosa CPI da Máfia dos Fiscais, ocorrida em 1999 em São Paulo, que provocou a cassação do mandato de três parlamentares. “A prefeitura distribuía recursos administrativos sob a forma do controle de administrações regionais. Como isso não tinha e não tem um controle público, foi muito fácil descambar para a corrupção. Desmascarar um esquema desse porte é muito importante para elevar a consciência política da população, mas creio que isso não aconteceu.” A não-reeleição de 14 dos 19 candidatos eleitos pelo PPB em 1996, partido que ocupava o Executivo, prova que o ceticismo de Neto encontra menos suporte no município de São Paulo. U M A C A R T I L H A PARA CHECAR SE O PREFEITO É CORRETO D esde abril de 2003, a Controladoria Geral da União (CGU), comandada por Waldir Pires, envia todos os meses emissários a cerca de 50 municípios do país para fiscalizar a aplicação do repasse de verbas federais para as cidades. A dependência financeira dos municípios em relação aos Estados e ao governo federal é uma das quatro fraquezas em que se baseia Victor Nunes Leal em Coronelismo, Enxada e Voto. Os fiscalizadores da CGU auditaram contas de 281 prefeituras, envolvendo cerca de R$ 2 bilhões. Encontraram indícios de irregularidades em 139 municípios e falhas formais em mais 54. Nenhum problema administrativo foi encontrado em 7 dos municípios investigados. Vale lembrar que esses auditores não consideram outro tipo de irregularidades que não aquelas que envolvem recursos federais. As distorções ocorrem em diversas áreas. O Fundef (Fundo de Manutenção e de Desenvolvimento do Ensino Fundamental 44 diálogos&debates setembro 2004 e de Valorização do Magistério) é a origem de grande parte dos recursos desviados. Em Maiquinique (Bahia), o prefeito, apoiado por diversos funcionários do Executivo, utilizava notas fiscais frias de empresas inexistentes para desviar algo em torno de 40% do Fundef – cerca de R$ 88.800,00. Um trator e uma carreta adquiridos com R$ 221 mil repassados pelo Ministério da Agricultura estavam sendo utilizados para trabalhos na fazenda do presidente da Câmara Municipal de Nova Crixás (Goiás). Os exemplos são tão numerosos quanto escandalosos. O universo de municípios fiscalizado pela CGU continua pequeno. É necessário que a população fiscalize melhor seus representantes. Para que isso aconteça, a Amigos Associados de Ribeirão Bonito (Amarribo), em São Paulo, editou uma cartilha, distribuída em 4.600 municípios, com dicas para orientar cidadãos a como perceber que há corrupção e com quem se aliar para combatê-la. Listam alguns fatores aos quais a população deve C L I E N T E L I S M O C L I E N T E L I S M O setembro 2004 diálogos&debates 45 um direito a ser regulamentado É oportuna uma chamada ao legislador, para que – passados 15 anos da aprovação da Constituição Federal de 1988 – proceda à regulamentação desse que é um direito do servidor público POR MARCO ANTONIO SCARPASSA O direito de greve foi alçado à condição de direito social consagrado pela Constituição Federal de 1988, que prevê, no artigo 9º, ser “assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. Com o advento da Lei Federal nº 7.783/89, o exercício do direito de greve dos trabalhadores da iniciativa privada restou devidamente regulamentado, sendo inquestionável que essa lei aplica-se somente ao setor privado, eis que nos termos de seu artigo 16, “para os fins previstos no art. 37, inciso VII da Constituição, lei complementar definirá os termos e limites em que o direito de greve poderá ser exercido”. Porém, no que tange aos funcionários da administração pública direta e indireta, embora o direito à greve também tenha sido assegurado pela Constituição Federal, temos uma situação um tanto ou quanto peculiar. Com efeito, dispõe o artigo 37, VII, da Carta Magna que “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”; no entanto, até o presente momento o Legis- 46 diálogos&debates setembro 2004 lador não cuidou de elaborar a tão esperada lei específica e os funcionários públicos, diante disso, estariam de certo modo impedidos de exercer o direito de greve. O que se vê na prática, todavia, é uma situação diferente, haja vista os inúmeros movimentos grevistas, ou paredistas, encabeçados pelos funcionários do setor público. O resgate da história recente nos fornece um valioso exemplo dos problemas advindos dessas paralisações. Os funcionários da Polícia Federal deram início no dia 9 de março deste ano a uma greve que se estendeu por nada menos que 61 dias, cujos efeitos culminaram na supressão de atividades imprescindíveis à continuidade de qualquer Estado democrático de direito, conforme se verá mais adiante. Naquela oportunidade, agentes, escrivães e papiloscopistas reivindicavam um suposto direito que lhes teria sido assegurado pela Lei nº 9.266/96, qual seja, a elevação da remuneração correspondente ao nível médio de escolaridade que por eles era recebida para o patamar da remuneração de nível superior, tendo em vista que o artigo 2º dessa Lei prevê que o “ingresso nos cargos da Carreira Policial Fede- G R E V E D O F U N C I O N A L I S M O ral far-se-á mediante concurso público, exigido o 3º grau nhum ter equiparados seus salários entre si ou com outros de escolaridade (...)”. servidores. Essa reivindicação era intentada por funcionários (agenO fundamento para a greve, assim, mostrava-se descates, escrivães e papiloscopistas) que haviam ingressado nos bido e impertinente, além de que o movimento paredista, quadros da Polícia Federal antes do advento da Lei nº 9.266/ por si só, já careceria de legalidade. 96 e, por isso, a remuneração anterior seria de nível médio Isso porque, como já se viu acima, a Carta Magna carece (escolaridade mínima então exigida para o ingresso e exer- de regulamentação legal no que tange ao exercício do direicício das atividades acima indicadas). to de greve dos servidores públicos, razão pela qual apreEntendia a classe reivindicante, todavia, que a referida senta-se ilegal o movimento grevista dos servidores públiLei teria efeitos retroativos e por isso seus salários deve- co, conforme entendimento que advém do Supremo Tririam ser reajustados para os patamares da nova legislação. bunal Federal. Ou seja, o salário-base dos policiais em greve era, à época, Referido entendimento foi fixado na oportunidade de R$ 250,00 podendo chegar a R$ 4.199,00 com as grati- do julgamento do Mandado de Injunção n° 20 (Relator ficações, enquanto o salário de peritos e delegados (ocu- Min. Celso de Mello), cujo acórdão está assim ementapações que antes da Lei nº 9.266 já eram de nível superior) do: “Mandado de injunção coletivo – Direito de greve de era de R$ 378,00 com a possibilidade servidor público civil [...] O preceito de chegar a R$ 7.788,00 com as graconstitucional que reconheceu o ditificações. Caso o reajuste pleiteado A Constituição carece de reito de greve ao servidor público cipelos grevistas fosse concedido, amvil constitui norma de eficácia meraregulamentação legal no bas as carreiras teriam o mesmo samente limitada, desprovida, em conlário inicial. seqüência, de auto-aplicabilidade, raque tange ao exercício zão pela qual, para atuar plenamendo direito de greve dos Uma reivindicação ilegal te, depende da edição da lei compleOcorre que a equiparação entre mentar exigida pelo próprio texto da servidores públicos, o agentes, escrivães e papiloscopistas Constituição. que torna ilegal esse tipo com os delegados e peritos federais “A mera outorga constitucional do apresenta-se ilegítima e ilegal. Com direito de greve ao servidor público cide paralisação. Uma lei efeito, a Lei nº 9.266/96 não estabevil não basta – ante a ausência de autocomplementar é urgente lece isonomia de salários, na medida aplicabilidade da norma constante do em que seu artigo 3º prevê que “o venart. 37, VII, da Constituição – para juscimento básico dos cargos da Carreira da Polícia Federal tificar o seu imediato exercício. O exercício do direito púé o constante do Anexo II e será revisto na mesma data e blico subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só no mesmo percentual aplicado aos demais servidores pú- se revelará possível depois da edição da lei complementar blicos civis da União”, isto é, a aplicação de valores dife- reclamada pela Carta Política. renciados dos salários para os diversos cargos da carreira “A lei complementar referida – que vai definir os terpolicial é uma determinação da própria Lei acima men- mos e os limites do exercício do direito de greve no serviço cionada. Além disso, a equiparação salarial é também in- público – constitui requisito de aplicabilidade e de operaconstitucional. tividade da norma inscrita no art. 37, VII, do texto constiCom efeito, a Constituição Federal, ao tratar dos servi- tucional. Essa situação de lacuna técnica, precisamente por dores públicos, prevê no artigo 39, § 1º, incisos I a III, que inviabilizar o exercício do direito de greve, justifica a uti“a fixação dos padrões de vencimento e dos demais com- lização e o deferimento do mandado de injunção. A inérponentes do sistema remuneratório observará: I – a natu- cia estatal configura-se, objetivamente, quando o excessivo reza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos car- e irrazoável retardamento na efetivação da prestação legisgos componentes de cada carreira; II – os requisitos para a lativa – não obstante a ausência, na Constituição, de prazo investidura; III – as peculiaridades do cargo”. pré-fixado para a edição da necessária norma regulamenDiante disso, é inquestionável que agentes, escrivães, pa- tadora – vem a comprometer e a nulificar a situação subjepiloscopistas, peritos e delegados não podem de modo ne- tiva de vantagem criada pelo texto constitucional em favor G R E V E D O F U N C I O N A L I S M O setembro 2004 diálogos&debates 47 dos seus beneficiários. : multo injustificável para os passageiros de vôos doméstiA jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se cos e internacionais. no sentido de admitir a utilização, pelos organismos sindiAlém da “operação-padrão”, a greve da Polícia Federal cais e pelas entidades de classe, do mandado de injunção causou prejuízos ao patrimônio público e à ordem pública coletivo, com a finalidade de viabilizar, em favor dos mem- e administrativa, ao prejudicar a emissão de passaportes, a bros ou associados dessas instituições, o exercício de direi- custódia de presos, o controle imigratório nos portos, aetos assegurados pela Constituição. Precedentes e doutrina” roportos e postos de fronteira, a proteção de testemunhas (MI 20, Pleno, j. 19.5.94, DJ 22.11.96, p. 45690). e de pessoas ameaçadas, entre outros serviços consideraDesse modo, aos servidores públicos é vedada a ade- dos essenciais. são aos movimentos paredistas, sob pena de descumpriA greve da Polícia Federal terminou, mas o povo conmento da Constituição Federal e inobservância dos deve- tinua sofrendo as conseqüências de outras paralisações, res preconizados no artigo 116 da Lei 8.112/90, entre os como o das universidades estaduais, atingindo em parte o quais se destacam o exercício com zelo e dedicação das atendimento de alguns hospitais públicos ligados à área acaatribuições do cargo (inciso I), a observância às normas dêmica – com a conseqüente mazela para a população. legais e regulamentares (inciso III), o cumprimento às ordens superiores (inciso IV), o atendimento com presteza A paralisação do Judiciário paulista ao público em geral (inciso V, “a”), tratar com urbanidaUm dos mais recentes desses movimentos grevistas, e de as pessoas (inciso XI), a assiduidade e pontualidade ao que até o momento de redigir estas considerações ainda serviço (inciso X). persiste, iniciou-se em 29 de junho deste ano com a paraAlém disso, impera no país o princípio da estrita legali- lisação dos funcionários do Poder Judiciário de São Paulo. dade para a Administração Pública, nos termos dos artigos No que tange à análise da legalidade desse movimento, a ele 5º, II, 37 e 84, IV, da Constituição Federal e, conforme nos se aplicam as mesmas considerações acima tecidas. Cumpre lembra Celso Antonio Bandeira de Mello, em seu Curso de destacar, então, os prejuízos sociais que advêm dessa paraDireito Administrativo, “O princípio da legalidade, no Bra- lisação numa época em que se prima pelo acesso à Justiça sil, significa que a Administração nada pode fazer senão o e pela defesa dos direitos e interesses sociais. que a lei determina (...). Ao contrário dos particulares, os Com efeito, a Constituição Federal de 1988 assegurou a quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Adminis- todos o acesso à Justiça, nos termos do artigo 5º, XXXV. No tração só pode fazer o que a lei antecipadamente autori- entanto, esta garantia constitucional vem sendo descumprize. Donde, administrar é prover aos interesses públicos, as- da, na medida em que a paralisação tolhe dos jurisdiciosim caracterizados em lei fazendo-o na conformidade dos nados o direito da apreciação judicial das pretensões por meios e formas nela estabelecidos ou particularizados se- eles aduzidas, tendo em vista que as audiências vêm sengundo suas disposições”. do adiadas, os prazos processuais suspensos (por determiEsses deveres e princípios, no entanto, não foram leva- nação do Conselho Superior da Magistratura, mediante a dos em conta por funcionários grepublicação do provimento nº 877/04), vistas, tal como se verificou com a decisões judiciais de grande relevância Com a greve do Judiciário e urgência deixaram de ser proferidas, intitulada “operação-padrão” realizada nos aeroportos de todo país. A pois os autos processuais encontrampaulista, as audiências referida “operação-padrão”, vale desse nas estantes e prateleiras dos cartóforam adiadas, os prazos rios, os serviços de protocolo e recebitacar, não só potencializou o retardo do fluxo normal de pessoas nos aemento de novas petições operam com processuais suspensos, roportos, como também dificultou o precariedade. decisões judiciais de exercício das atividades dos servidoAlém desses problemas, que aferes da Infraero que diariamente opetam diretamente os jurisdicionados, a grande relevância e ram serviços de inspeção de bagagem greve afeta o trabalho de outros opeurgência deixaram de manual de passageiros (raio x) e conradores da Justiça. Com efeito, a Orferência das passagens e documentadem dos Advogado do Brasil, Secser proferidas ção dos usuários, de modo a gerar tução de São Paulo, em nota divulgada 48 diálogos&debates setembro 2004 G R E V E D O F U N C I O N A L I S M O em 29 de junho por seu presidente, A necessidade de nova legislação Luiz Flávio Borges D’Urso, manifesConvém lembrar, como fez a Os líderes dos movimentos tou seu posicionamento contrário à OAB-SP, que os prejuízos causados grevistas deveriam esgotar pela greve incluem fatos como o de paralisação: “A OAB-SP considera justo e legíti“ficarem os advogados impedidos de todas as instâncias de mo o pleito dos serventuários da Justiver seus processos solucionados e de negociação, numa postura receber os respectivos honorários, neça pela reposição salarial da categoria e melhores condições de trabalho. Na cessários à sobrevivência deste grude maior maleabilidade, tentativa de manter aberto o diálogo, po profissional. Os advogados e espara evitar o rol de a Ordem participou de reuniões com critórios de advocacia com atuação prejuízos para a população na área contenciosa junto à Justiça as partes envolvidas, buscando um entendimento entre os servidores da Jusestadual estão sofrendo grave redue os mais necessitados tiça, que estiveram reunidos em audição em sua receita, mas grande parte ência na sede da Seccional no dia 16/ de suas despesas fixas é mantida. É o 6, através de representantes das Associações dos Servidores caso dos aluguéis pagos, IPTU, luz, salários de seus fundo Poder Judiciário do Estado de São Paulo e da Associação cionários, custos de informática etc.” dos Oficiais de Justiça do Estado de São Paulo, com o TribuEssa situação demonstra claramente que os líderes de nal de Justiça e com representante do governo do Estado. movimentos reivindicatórios deveriam buscar esgotar to“Embora o Tribunal de Justiça tenha oferecido o per- das as instâncias de negociação, numa postura de maior centual de 26,39% de reajuste aos servidores no último dia maleabilidade, para evitar o rol de prejuízos para a popula2/6, que seria encaminhado através de projeto de lei à As- ção e sobretudo os mais necessitados da administração da sembléia, tal fato não se concretizou. Nota-se, também, a Justiça – para que a busca do direito de uns, no caso o de dificuldade na concessão do índice pelo fato de estar mui- uma remuneração mais justa, não provoque perdas de direito próximo ao limite de risco da Lei de Responsabilida- tos dos outros. Convém lembrar que, ao contrário das grede Fiscal, o que comprometeria o orçamento do Judiciário ves do setor privado, quase sempre resolvida em questão de Paulista. A negociação com o governo do Estado não re- dias, os movimentos paredistas do setor público costumam gistrou evolução, o que pode levar a um perigoso impasse, se arrastar por meses. Outra especificidade da situação em já que os serventuários voltaram a reivindicar o índice ori- que se dão as reivindicações do funcionalismo público são ginal de 39,19%. as severas limitações, em termos orçamentários, a que estão “Diante da decisão pela greve por tempo indetermina- sujeitos pela Lei da Responsabilidade Fiscal. do, a OAB-SP manifesta-se radicalmente contra a paralisaJustamente por isso, é oportuna uma chamada ao legisção dos serventuários da Justiça, pelos danos irreparáveis lador, para que – passados 15 anos da aprovação da Consque gera ao andamento dos processos, ao direito dos bra- tituição Federal de 1988 – proceda à regulamentação desse sileiros e ao exercício da Advocacia, uma vez que os profis- que é um direito do servidor público, definindo os termos sionais ficam impedidos de trabalhar. Até hoje, em cidades e os limites em lei específica, como já dispunha o artigo 37, do interior, sentimos o efeito da greve de 81 dias, de 2002, VII, da Carta Magna. Pondo fim, desse modo, à prepondedecorrente da qual só este ano a pauta está sendo colocada rância da ilegalidade sobre a legalidade, da irracionalidade em dia. As paralisações anteriores dos serventuários da Jus- sobre a razoabilidade, do interesse particular sobre o intetiça tiveram efeitos danosos sobre a Justiça paulista, com o resse público, em manifesta afronta aos primados básicos emperramento de cerca de 10 milhões de processos, can- do aclamado estado democrático de direito. A sociedade celamento de cerca de 12 mil audiências e o prejuízo de 3 agradecerá diante do fim do que é um verdadeiro açoite milhões de pessoas, que tiveram de esperar para ver seus de substanciosa parcela dos direitos e garantias duramente direitos reconhecidos. Se, durante as atividades normais, já conquistados nas últimas décadas. são registradas deficiências decorrentes da morosidade da Justiça, geradas, principalmente, pelo seu desaparelhamen- Marco Antonio Scarpassa é advogado em São Paulo, pós-graduando em Dito, com a greve em andamento estaremos nos avizinhando reito Processual Civil pela PUC e colaborador do Instituto Brasileiro de Direia uma crise sem precedentes”. to do Seguro-IBDS. G R E V E D O F U N C I O N A L I S M O setembro 2004 diálogos&debates 49 as saudades do século xx E “ le morreu jovem porque seria incapaz de viver num mundo medíocre”, diz Arnaldo Jabor, num certo momento do documentário Glauber – O Filme, Labirinto do Brasil, de Silvio Tendler. Um dos personagens entrevistados, Jabor faz essa apreciação sobre a morte do diretor de Terra em Transe, o mais inquieto de nossos cineastas, Glauber Rocha. Uma maneira de dizer sem falar que não se fazem mais heróis como Glauber, contestadores, que saíam da vida para entrar para a história. É certo que se as convulsões políticas pelas quais o mundo passava entre os anos 60 e 70 faziam do mero viver um constante e inevitável desafio, a imposição no cenário atual de um modelo político-social único – ou de polaridades mínimas – tende mesmo a minimizar a aparição de novos heróis redentores. Não é à toa a recorrência no cinema a determinados temas e personagens que, de um ou ou- 50 diálogos&debates setembro 2004 Vistos pela ótica das utopias transformadoras e da generosidade, personagens de um passado recente são exorcizados na grande tela POR FÁBIO FUJITA tro modo, nos fazem crer que os bons, os melhores tempos eram mesmo aqueles, os de Glauber e seus contemporâneos, e não estes da materialização do Big Brother orwelliano e suas celebridades alienantes. Saudades do século XX. Porque foi, afinal, um século de utopias transformadoras, de generosidades concedidas a troco do bem-estar social, nada mais, e é por isso que um filme como o de Walter Salles Diários de Motocicleta cala tão fundo. Lembra-nos que o guerrilheiro que virou estampa de camiseta na imagem eternizada por Alberto Korda fora, antes, um jovem como qualquer outro, e cuja veia revolucionária só vingaria na incompreensão (e conseqüente indignação) da miséria legada a populações sertanejas de Argentina, Chile, Peru, Venezue- C I N E M A la. Diários não é exatamente um filme sobre Che Guevara, o líder da Revolução Cubana esmagado pelas milícias bolivianas em 1967, mas sobre esse encontro de um jovem com a penosa realidade de sua gente, a partir de uma viagem empreendida de moto com o amigo Alberto Granado (Rodrigo de la Serna). É em função da percepção dessa unidade latina de descaso social que a empreitada da dupla costuma ser rotulada de “iniciática”. Walter Salles evita o uso de frases feitas e a caracterização óbvia, que seria, por exemplo, a boina na cabeça de Ernesto. O próprio Alberto Granado acompanhou pessoalmente a carreira do filme pelo mundo, inclusive no Brasil, o que atesta a propriedade com que Salles tratou da mítica figura de Guevara, numa passagem especialmente pouco conhecida de sua vida. Já um outro momento emblemático do século passado, o fim da Guerra Fria simbolizada na queda do Muro de Berlim, em 1989, ganhou do diretor alemão Wolfgang Becker um filme que teve calorosa recepção de público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro do ano passado – e pouco depois no circuito comercial. A trama de Adeus, Lênin! é singela: uma mulher comunista (Katrin Sass), abandonada pelo marido, faz da construção do socialismo na Alemanha Oriental a motivação que resta para sua vida. Certo dia, ao ver o próprio filho (Daniel Brühl) numa barricada de contestação ao regime, entra em choque, caindo num coma de dez meses. É o intervalo em que acontece a queda do Muro e a conseqüente possibilidade, não-desperdiçada, de os alemães do Oriente se esbaldarem com as delícias materiais proporcionadas pelo capitalismo. Temeroso da reação da mãe sobre as novas orientações políticas do país, o jovem resolve “poupá-la” da verdade, criando um microcosmo do antigo regime: o noticiário político dos programas da TV que a velha assiste são falsos, gravados em VHS pelo filho e um amigo. É interessante observar que Becker não se utiliza de maniqueísmos para contar sua história, de modo a condenar um ou outro regime. Ao contrário: a política em Adeus, Lênin! não é imposta, mas implícita, indissociável, como pano de fundo para a história de uma relação familiar. É a mesma premissa que norteia a também comédia dramática As Invasões Bárbaras, do canadense Denys Arcand, que virou cult nas salas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Filme que dá seqüência a O Declínio do Império Americano, de 1986, embora tenham tramas independentes, As Invasões Bárbaras também é permeado de carinhosa nostalgia: fala de um tempo que ficou para trás, ironizando os novos rumos, sim, mas, de certo modo, fazendo um acerto de contas com as transformações. O tempo que ficou são os idos anos 60, e os personagens, centrados na figura de Rémy (Rémy Girard) – um professor que viu ruir todos os seus sonhos por um mundo menos ordinário – trazem consigo o espírito libertário do Maio de 68, expresso na verborragia das conversas e discussões. O filme é um duplo ritual de despedida porque, além do espírito ideológico que está virando matéria de memória, Rémy está morrendo de câncer. A ironia é que Rémy mantém uma relação tumultuada com o filho Sébastien (Stéphane Rousseau), que acusa de se vender ao sistema – Sébastien trabalha em Londres, tem muito dinheiro mas, na ironia do pai, “nunca leu um livro”, o que o torna um ser humano condenável. No entanto, é graças ao dinheiro alienado do filho que Rémy pode viver seus últimos dias em conforto, recebendo, por exemplo, a visita de alunos “alugados” por Sébastien. Muito do sucesso de As Invasões Bárbaras – que reuniu mais de 400 mil espectadores entre São Paulo e Rio, um marco para um filme independente – deve ser creditado ao fascínio desencadeado pelos diálogos, carregados de ironia, humor e até perversão. O que não deixa de ser uma metáfora do conceito da vida: todos nós morreremos, mas, até Na página anterior, Camila Morgado interpreta Olga . Abaixo, da esquerda para a direita: Diários de Motocicleta , Adeus, Lênin! e As Invasões Bárbaras C I N E M A setembro 2004 diálogos&debates 51 lá, precisamos nos divertir um pouco. As Invasões Bárbaras se situa nessa fronteira contraditória entre um passado que poderia ter sido e a constatação de que não poderá mais sêlo nunca, porque “aquela” geração está indo – e a iminência da morte de Rémy é o melhor atestado. Há quem condene justamente a empáfia daqueles que “viveram a História”, como se estes dissessem que foram muito, muito melhores que os jovens consumistas de hoje. Mas Arcand não cai na armadilha panfletária: dá ênfase às relações humanas – pai, filho, amigos –, numa impecável construção narrativa cujo desfecho joga para segundo plano os benefícios e malefícios da sociedade contemporânea. Bebendo na música e no esporte Outro fenômeno crescente no cinema é o de enfocar grandes personalidades do passado recente. Se por um lado tais docudramas e cinebiografias vêm muito mais no sentido de atentar para círculos de fãs em função do apelo sentimental que costumam carregar, por outro nem sempre satisfazem – quando não desagradam em cheio – personagens que conviveram com os cinebiografados. Por lidarem basicamente com a emoção, essas tentativas de registrar vidas e carreiras – invariavelmente complexas – impedem a compreensão de um pressuposto básico do cinema: nenhum filme de duas horas conseguirá dar conta, o mínimo que seja, de tudo que diga respeito ao protagonista em questão. Além disso, qualquer história pessoal contada na película nunca deixará de ser uma versão dos fatos, mesmo que seu argumento seja baseado em livros ou biografias textuais – que já são, por sua vez, também versões. Essas reconstruções fictícias deveriam, assim, ser encaradas como homenagem, como retratos afetivos. Mas nem sempre é assim. Ocorre ainda o fato de problemas de natureza externa atravancarem um relato fiel: em Pelé Eterno, por exemplo, nota-se a ausência de Gérson, que fez um gol na final da Copa do Mundo de 1970. Tudo porque o próprio Gérson não chegou a um acordo de direitos autorais para a liberação de suas imagens. Já a reconstrução ficcional da vida e da carreira do cantor Cazuza por Sandra Werneck e Walter Carvalho, em Cazuza – O Tempo Não Pára, desbancou Xuxa do posto de maior bilheteria do ano no cinema brasileiro. O filme é livremente inspirado no livro Só as Mães São Felizes, escrito pela mãe do cantor, Lucinha Araújo. “Livremente” porque, como não poderia ser diferente, a linguagem cinematográfica é muito específica – nem sempre um determinado diálogo, tirado de um livro, encaixa-se no relato audiovisual. 52 diálogos&debates setembro 2004 Um dos roteiristas, Fernando Bonassi, reconheceu na ocasião do lançamento do filme uma frase que Frejat, um dos parceiros de Cazuza na banda Barão Vermelho, nunca disse, mas que poderia ter dito, como é mostrado no filme. A frase é sobre a resistência em incorporar um samba no repertório do Barão, uma banda de rock. Nome de primeira linha entre os ídolos da geração anos 80, Cazuza tinha o carpe diem como lema e, por isso, levou uma vida intensa e, sobretudo, inconseqüente. O filme enfoca bem esse lado hormonal de Cazuza, com uma construção dramática muito bem montada. Impossível não se emocionar quando explodem na tela os hinos eternizados por Cazuza – Exagerado, Ideologia, Faz Parte do Meu Show e outros –, decifrados no filme justamente pela busca incessante do prazer, que, por outro lado, o levaria a contrair o vírus da Aids, responsável por sua morte precoce. Esse apelo sentimental acaba por atenuar os pequenos deslizes do filme, como a ausência de Ney Matogrosso, parceiro de Cazuza até seus últimos dias de vida, e a suposta bissexualidade do cantor – pessoas do círculo de convivência dele, como o próprio Frejat, se manifestaram dizendo que os envolvimentos com mulheres só ocorreram quando Cazuza ainda não tinha definido sua orientação sexual – o que caracterizaria sua homossexualidade. Personalidade mais conhecida do planeta, cuja simples menção do nome é capaz de facilitar certas sociabilidades em países exóticos, Pelé, o rei do futebol, ganhou de Anibal Massaini não um docudrama como o de Cazuza, mas um documentário ao nível de sua relevância para o esporte. Pelé Eterno é um registro para a posteridade, verdadeira relíquia para os amantes do futebol. Não foi fácil a missão de Massaini, que teve de resumir em duas horas uma carreira de cinco títulos mundiais (três com a seleção, e dois com seu clube, o Santos), mais de mil gols e uma infinidade de dribles e jogadas desconcertantes, das quais muitas mostradas no filme eram até então inéditas para o público brasileiro. Pelé Eterno não fala tanto de sua vida pessoal, até porque o projeto não era mesmo esse. “Nós tínhamos como proposta criar o mais amplo painel sobre a vida profissional de Édson Arantes do Nascimento – Pelé. Alguns aspectos da vida pessoal podem ficar até para outro trabalho, porque não procuramos enveredar, na mesma proporção, entre sua vida pessoal e profissional”, diz Massaini à Diálogos&Debates. “A intenção era a de evidenciar o que Pelé significou para o futebol, para que as novas gerações pudessem ter uma avaliação real do que ele fez”. C I N E M A Na seqüência, cenas do filme Cazuza – O Tempo Não Pára Apesar de o próprio rei considerar a fita como sendo a mais completa sobre sua carreira, ele não meteu o bedelho na realização propriamente dita, aponta Massaini. “Ele tinha curiosidade de assistir às várias etapas, mas não interferiu nunca, só fez comentários, o que é natural. É como o roteirista falando da edição, porque, afinal, são pessoas envolvidas no processo”, conta o diretor. Pelé Eterno teve cerca de 234 mil espectadores em seis semanas de exibição. Se não chega a ser um número excepcional, já o torna, no entanto, o documentário brasileiro mais visto de todos os tempos. Quem gostou que se prepare: a edição em DVD deve trazer cenas não-utilizadas no cinema. Fernando Morais & Ruy Castro Outros filmes que estavam previstos para chegar ao circuito entre o final de agosto e o início de setembro eram Olga e Garrincha – Estrela Solitária, baseados, respectivamente, nos livros dos jornalistas Fernando Morais e Ruy Castro. A mais cinematográfica das biografias escritas por Morais ganhou direção de um estreante em cinema, o diretor de TV Jayme Monjardim. Coube à também iniciante Camila Morgado (A Casa das Sete Mulheres) a difícil porém honrosa missão de levar a cabo o papel da guerrilheira judia e comunista Olga Benário, fadada a morrer num campo de concentração nazista, deixando órfã uma filha, fruto de seu envolvimento com Luiz Carlos Prestes – este encarnado por Caco Ciocler (Bicho de Sete Cabeças). Olga, o filme, foi inteiramente rodado no Brasil, não somente em função da redução de custos (o orçamento total foi de R$ 8 milhões). No início, tentou-se uma co-produção com a Alemanha, mas, com a condição de o filme ser dirigido por um alemão, os produtores brasileiros recuaram. O projeto de Olga tinha desde sua concepção o simbolismo de ilustrar como vão bem os setores da criação cinematográfica made in Brazil: produção, cenografia, finalização. Não C I N E M A é à toa que até o campo de concentração por onde circula Olga foi recriado em estúdio. Outro biografado de Morais aguarda sua versão em cinema. Chatô – O Rei do Brasil arrasta-se por quase uma década – desde 1995 – para conseguir que chegue ao circuito. Será, se vier, a visão de Guilherme Fontes para a fantástica trajetória de Assis Chateaubriand (vivido por Marco Ricca), considerado uma espécie de Cidadão Kane do Brasil, pelo império de comunicações que detinha em meados do século passado. O que houve foi que Chatô, o filme, passou por uma série de problemas na prestação de contas quanto à aplicação dos recursos oriundos de incentivos do governo e, como ainda falta verba para a finalização, o lançamento permanece mais incerto do que nunca. Com ares de superprodução, o filme já consumiu cerca de R$ 8,5 milhões. Inspirado na obra de Ruy Castro, Garrincha – Estrela Solitária, vem com direção de Milton Alencar (O Circo das Qualidades Humanas). A folclórica figura do atacante de pernas tortas, que expressou como poucos a idéia da alegria no futebol, por seus dribles irreverentes, é encarnado na versão cinematográfica por André Gonçalves. Gonçalves não precisou de dublês nas cenas em que aparece com a bola nos pés, apesar do defeito físico de Garrincha (tinha 6 centímetros de diferença entre uma perna e outra). O filme repassa a vida e a carreira de Garrincha: suas duas conquistas mundiais pela seleção brasileira, nas Copas de 1958 e 1962; seus treze filhos (reconhecidos); o amor turbulento com Elza Soares (vivida por aís Araújo); e a derrocada no esporte, em passagens discretas por Corinthians e Flamengo, em função do seu vício pelo álcool – que o levaria precocemente à morte, aos 49 anos, em 1983. Além disso, atração a mais para quem foi fã do jogador ou quer conhecer um pouco mais sobre a arte desse futebolista, há oito minutos de cenas documentais inéditas, trazendo as estripulias de “Mané” diante de seus “Joões” (a forma como o próprio Garrincha chamava seus adversários). setembro 2004 diálogos&debates 53 um jurista nos tempos da colônia O livro Espelho de Cem Faces mostra um vigoroso e extraordinário painel da cultura e da prática jurídica nas Minas Gerais dos setecentos POR LUTHERO MAYNARD O bacharel mineiro José Pereira Ribeiro, nascido em 1765 na Freguesia de Congonhas do Campo e morto em 1798, em Mariana, em cuja catedral foi sepultado, com as devidas honras e os usuais ofícios religiosos, é o personagem escolhido pelo historiador Álvaro de Araújo Antunes para analisar, compreender e explicar a ação dos juristas nas Minas Gerais dos setecentos em Espelho de Cem Faces – O universo relacional de um advogado setecentista (AnnaBlume & Pós-Graduação História UFMG, 2004). José Pereira Ribeiro advogou em Mariana, entre 1788 e 1798, e nada leva a crer que sua atividade profissional ou sua vida pessoal se distinguisse das de outros de seu meio, ofício e condição social. Do ponto de vista político, foi interrogado duas vezes pela Devassa da Inconfidência Mineira, em 1789, mas sem maiores conseqüências – nada viu, nada sabia, não conhecia os envolvidos. Na verdade, quando estudante em Coimbra, pôde ter contato mais estreito com grupos empenhados na independência do Brasil ou, pelo menos, participara de dis- 54 diálogos&debates setembro 2004 cussões em encontros mais ou menos secretos em bodegas escuras de vinho barato. Mas nada ficou provado, e as autoridades responsáveis pela Devassa não chegaram a considerar esses antecedentes. Nos dois interrogatórios a que foi submetido, Pereira Ribeiro resguardou-se de qualquer acusação mais substantiva com negativas e silêncios. A artimanha funcionou e ele foi considerado inocente. Entretanto, tinha relações de amizade e compadrio com vários dos acusados e com alguns dos condenados. Filho do major Jacinto Pereira Ribeiro, poderoso membro da elite de Congonhas do Campo, José Pereira Ribeiro teve o destino dos jovens de sua condição social: foi estudar Direito em Coimbra. Afinal, a profissão de advogado era o instrumento por excelência para a ascensão social no Brasil Colônia. De volta ao país, casou-se com Rita Caetana Maria de São José, órfã exposta em casa de família conhecida da sua. Morreu jovem, mesmo para a época, depois de exercer a profissão por cerca de dez anos em Mariana. O enterro na catedral revela o status de que gozava na R E S E N H A sociedade local. Status que, para ser concretizado, custou à viúva a não desprezível quantia de 24$600 réis por uma cova em lugar privilegiado no interior da igreja. Ou seja, nas proximidades do altar-mor, garantia aceita por todos de que a alma do defunto encontraria maiores facilidades nos trâmites além-túmulo e conviveria com almas de elevado coturno, como santos, beatos, mártires e outros expoentes do Paraíso. lidade e de redes de relação para dissecar as interações do bacharel no interior da sociedade mineira. “Como advogado, Ribeiro tinha a incumbência, delegada pelo soberano, de zelar pela Justiça, contribuindo, assim, com o ordenamento social e com o Estado português. Ribeiro encontrava-se, portanto, instituído do poder de fazer valer as leis, o que, somado a seu conhecimento, notabilizava-o socialmente. Entre seus iguais, o bacharel Ribeiro cuidou de firmar laços de sociabilidade, constituindo uma rede O viés da sociologia da ação de relações que lhe auxiliou em seu ofício”, narra o autor. A intenção do historiador Álvaro de Araújo Antunes, no São esses laços de sociabilidade e essa rede de relações que entanto, não é escrever a biografia do bacharel Pereira Ri- irão desnudar, entre outros fenômenos, o clientelismo que beiro – talvez nem houvesse material interessante para tan- dominava a vida pública brasileira colonial e o bacharelisto –, mas sim radiografar um segmento geográfico, históri- mo como decorrência antagônica ao privatismo familiar, e co, cultural e profissional do Brasil Colônia, por intermédio dar forma e significado ao universo do advogado Ribeiro e da análise das relações pessoais e profissionais do persona- da Minas setecentista. gem. Intenção que concretiza com brilho, em estilo eleganOs títulos dos livros que integravam a biblioteca do bate e fundado em ótimo arsenal teóricharel Ribeiro constituem objeto de co e extenso trabalho de pesquisa dofina análise – o bacharel mineiro é cumental. Araújo Antunes, nos passos A cultura do bacharel era visto como leitor e como dono de resde Anthony Giddens, inter-relaciona a peitável acervo. Antunes examina a bitípica da intelectualidade atividade pessoal e profissional de Peblioteca sob diferentes prismas – tereira Ribeiro com o sistema social a mas tratados nos livros, idiomas que de sua época: um pé na que pertenceu e com o qual interagiu, dominaria, áreas do conheciigreja (a biblioteca possuía Ribeiro para mostrar a estrutura construída mento abarcadas pelos títulos, etc. Nalivros sacros) e o outro no turalmente, a maioria dos volumes dipelo bacharel com o material fornecido pela vida social em um dado mozia respeito à profissão do pesquisado, iluminismo francês mento histórico. Apoiado em Roger manuais de uso corrente na prática juChartier, o autor partiu de uma exisrídica setecentista. A cultura do persotência particular – que estaria relegada a respeitável anoni- nagem era, de alguma forma, típica de certo extrato da inmato não fosse esse trabalho – para analisar como “os indi- telectualidade brasileira colonial e republicana – um pé na víduos produzem o mundo social, por meio de suas alian- Igreja (a biblioteca possuía livros sacros) e outro no ilumiças e seus confrontos, através dos conflitos que os ligam ou nismo francês, com obras de Voltaire e Holbach, por exemdos que os opõem”, dentro dos instrumentos teóricos for- plo. Enfim, a face “moderna”, laica, progressista, crítica, connecidos pela chamada “sociologia da ação”. vivia em doce harmonia com a face “retrógrada”, católica, Araújo Antunes acredita que “explicar um fenômeno so- clerical e ultramontana. cial consiste, em todos os casos, em remontar às ações indiA comparação entre os livros pertencentes a Ribeiro e os viduais elementares que o compõem, tome esse fenômeno encontrados nas estantes de outros advogados revela os paa forma, por exemplo, de um acontecimento, de um dado drões da cultura literária nos meios jurídicos de Mariana à singular, de uma distribuição ou de uma regularidade es- época. Esta análise ganha importância quando se sabe que tatística, ou qualquer outra”. Assim, a sociologia da ação – Ribeiro foi acusado da posse de duas obras proibidas pecuja origem remonta a Émile Durkheim, Max Weber e Ge- las autoridades portuguesas: a História Filosófica, do abade org Simmel e chega a Raymond Boudon e François Bour- Reynal, e a Coleção de Leis dos Estados Unidos da América ricaud – inspirou o autor a recriar uma sociedade a partir (ambos em versão francesa). de uma perspectiva atomista e de interação, centrada na fiÁlvaro de Araújo Antunes recupera o perfil de José Pegura do doutor Ribeiro. Seguindo esses parâmetros, Araú- reira Ribeiro em quatro capítulos. No primeiro, “Registros jo Antunes manipula com talento os conceitos de sociabi- e relações”, procura destrinchar a rede de relacionamen- R E S E N H A setembro 2004 diálogos&debates 55 tos sociais mantidos pelo dr. Ribeiro sistema judicial, cobiçado pelo prestíe também localizar o lugar do advoAlém de tecer uma crônica gio e pelo salário”. gado na sociedade mineira da época. Este primeiro capítulo examina as o Brasil Colônia, ajuda a Como acentua Antunes, no exercício fontes de informações fornecidas pela da profissão, “os advogados tinham a compreender a gênese de documentação civil e clerical de Maatribuição, delegada pelo Rei, de fazer para iluminar as relações do banossa sociedade, sobretudo riana Justiça, de julgar e de resolver embates. charel com o poder. Entre os docude certas mazelas que A distribuição desse poder era fundamentos estão os que indicam certa mental, pois o poder da Coroa fazia-se aproximação do bacharel com alguns ainda nos atormentam sentir através da administração da Jusinconfidentes. Ouvido pela Devassa, o tiça e da guarda do direito dos povos. Dr. Ribeiro negou conhecer os impliNessa posição privilegiada, os advogados, juízes e magistra- cados e nada saber sobre os planos da Conjuração – na verdos adquiriam destaque frente à sociedade e condensavam dade, esta foi a tônica das declarações de todos os envolviuma profusão de relações sociais, o que equivalia, de certa dos na trama, com exceção de Tiradentes. forma, a uma espécie de ‘capital’. Ao mesmo tempo necessitavam do respaldo de seus iguais e de interagir com eles, Os estudos e o espírito de Coimbra seja para ingressar na máquina administrativa ou para ser No segundo capítulo, “Os livros e os ânimos”, Antunes favorecido em algum julgamento. Na carreira da magistra- examina os livros do personagem, cuja biblioteca “é investura, apoios políticos e familiares influentes poderiam en- tigada como resquício de ânimos, motivações, necessidades curtar as distâncias que separavam um advogado como o variadas que impulsionaram o bacharel a adquirir os livros dr. Ribeiro do Desembargo do Paço, o ápice da carreira no que possuía ou que um dia chegou a possuir”. É a maior das bibliotecas registradas em Mariana entre 1714 e 1822. A livraria – como as bibliotecas eram chamadas – do bacharel era composta de 204 títulos e 475 volumes e oferece preciosas indicações sobre o histórico profissional, ideológico e cultural do proprietário. O autor estuda o incipiente mercado editorial da época, os mecanismos empregados para importar livros e o controle exercido pela Coroa portuguesa e pela Igreja sobre a circulação de obras na Colônia. Antunes finaliza o capítulo com um estudo comparativo entre as bibliotecas mineiras da época e, em particular, entre a biblioteca do bacharel e a do inconfidente cônego Vieira da Silva. O capítulo terceiro, “Alma mater”, focaliza a formação do bacharel em Coimbra, tanto na universidade como na vida de estudante, participante das rodas intelectuais típicas dos jovens universitários portugueses e brasileiros no período. Ribeiro estudou na Universidade de Coimbra logo após a saída do reitor Francisco de Lemos, que havia implantado um espírito iluminista na vetusta instituição, e a ascensão de José Francisco Miguel Antônio de Mendonça à reitoria, um retrógrado cuja direção manteria de 1780 a 1785. A histó- ria da Universidade de Coimbra enfocada pelo autor desenha os contornos da cultura na qual Ribeiro – que foi para lá com 16 anos de idade – imergiu. Mas parte mais significativa de Espelho de cem faces está no quarto capítulo, “Nos pleitos: usos das leituras e práticas judiciais”, que une todas as pontas levantadas nos capítulos anteriores para investigar as práticas judiciais no final do século XVIII. Com clareza, Araújo Antunes flagra as concordâncias e contradições presentes no universo dos advogados da época. Contradições fincadas em formações intelectuais e profissionais de diferentes padrões e natureza, e que intervinham diretamente na administração da Justiça, acabando por comprometê-la. Dissecando a vida cotidiana e o universo de relações de Ribeiro, Álvaro de Araújo Antunes monta um vigoroso painel da cultura e da prática jurídica nas Minas Gerais dos setecentos, além de tecer saborosa crônica sobre os usos e costumes do Brasil Colônia. Espelho de cem faces é um belo livro para a compreensão da gênese da sociedade brasileira atual. E sobretudo de certas mazelas que ainda atormentam o brasileiro do terceiro milênio. E S TA N T E Memória literária paulistana Pornografia também é cultura Razões do atraso das nações Um aspecto pouco lembrado da cidade de São Paulo nas comemorações de seus 450 anos foi seu lado literário. O lançamento de São Paulo 450 anos – A cidade literária, de Mauro Rosso (Editora Expressão e Cultura, 336 págs) vem suprir essa lacuna. Rosso organiza um vasto panorama memorialístico, histórico e bibliográfico de São Paulo, e aborda o pioneirismo da cidade na literatura brasileira, com resenhas de importantes autores, textos e fragmentos, de Anchieta ao nosso crítico maior, Antônio Cândido. O escritor e ex-presidente José Sarney assina o artigo Garoa do meu São Paulo. O poeta Alexei Bueno organizou uma coletânea com poemas clandestinos, escabrosos e pornográficos da língua portuguesa, do século XVII ao XXI: Antologia Pornográfica – De Gregório de Mattos a Glauco Mattoso (Nova Fronteira 272 págs). Trata-se de reunião de obras-primas do gênero, de significado depravado, obsceno, que dizem respeito principalmente ao ato sexual de forma chula e propositadamente cafajeste. Entre os autores, nomes de primeira linha da literatura de língua portuguesa, como Gregório de Mattos, Bocage, Guerra Junqueiro, Manuel Bandeira, Bráulio Tavares e Glauco Matoso. As diferenças gritantes entre os níveis de desenvolvimento das nações do globo já foram explicadas das mais diferentes formas. No caso da América Latina, por exemplo, criou-se uma vitimologia cujos algozes seriam, dependendo da época, a “fraqueza de certas raças” (o velho racismo de sempre), a atitude predatória dos países ricos, o imperialismo ianque, o FMI e por aí vai. No estimulante, polêmico e brilhante A Cultura Importa – Os valores que definem o progresso humano, organizado por Lawrence E. Harrison & Samuel P. Huntington (Record, 462 págs.), 22 intelectuais afirmam a certeza das teorias que indicam os valores culturais como responsáveis por determinados povos encontrar-se em estágio superior a outros. O mal-estar do Século XX Organizada por Francisco Carlos Teixeira da Silva para a Editora Campus (1.008 págs., R$ 189,00), a Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX – As grandes transformações do mundo contemporâneo, pretende reunir, na forma de verbetes, as guerras e demais conflitos ocorridos no século passado no planeta, inclusive as revoluções de caráter político e comporta- 56 diálogos&debates setembro 2004 R E S E N H A R E S E N H A mental. Além do organizador, participam grandes nomes da historiografia nacional e de outras especialidades, como Alberto da Costa e Silva, Ciro Flamarion Cardoso, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Francisco Salzano, Leandro Konder, Maria Guimarães, Maria Yedda Linhares, Reginaldo Reis, Ricardo Cravo Alvin, Rodrigo Capaz, Rubin de Aquino. A televisão antes da Globo Inaugurada em julho de 1960, em São Paulo, a TV Excelsior desempenhou um dos grandes momentos da televisão no Brasil antes do advento da Rede Globo. Um desses pioneiros, Álvaro de Moya, jornalista, especialista em histórias em quadrinhos e professor aposentado da USP, conta a história emocionante desse empreendimento no ótimo Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira (Imprensa Oficial, 416 págs, R$ 18,00). Moya recupera a gênese de programas como Teatro Nove, Vigilante Rodoviário (o primeiro seriado filmado nacional), e Caminhos da Medicina, entre dezenas de outros. Uma bela recuperação de nosso passado televisivo. setembro 2004 diálogos&debates 57 P rofessora de Literatura Argentina na Universidade de Buenos Aires até o ano passado – quando se aposentou após entender que encerrara um ciclo –, Beatriz Sarlo está hoje no time dos grandes nomes dos “estudos culturais”. Bolsista de universidades inglesas (ela se reconhece discípula da vertente inglesa dos estudos culturais, de Raymond Williams e Richard Howen, mas é notável a influência do francês Roland Barthes, também reconhecida por ela), professora visitante de importantes universidades americanas, Sarlo trouxe seu ferramental de crítica literária para as análises que realiza sobre cinema, teatro e as “cenas da vida pós-moderna”. Com uma invejável capacidade de observação, desvenda as realidades ocultas por trás das muitas encenações da cultura – seja no comentário agudo que faz de filmes como A Lista de Schindler e A Vida É Bela, seja sobre as brigas de vizinhos por causa da presença de travestis na rua. Autora de quase uma dezena de livros – deles foram publicados no Brasil Cenas da Vida Pós-Moderna e Paisagens Imaginárias –, Beatriz Sarlo recebeu Diálogos&Debates para uma longa conversa. A seguir, alguns dos melhores momentos. Intelectual de prestígio internacional, a pesquisadora argentina se especializou em mostrar as realidades por trás das máscaras da modernidade o olhar agudo de uma crítica ENTREVISTA BEATRIZ SARLO TEXTO E FOTOS POR CARLOS COSTA 58 diálogos&debates setembro 2004 E N T R E V I S TA diálogos&debates Atualmente, além de editar a revista Punto de Vista e das colunas que publica em jornais, a senhora trabalha em algum projeto específico? beatriz sarlo Eu me formara no começo dos anos 60, uma época de grande efervescência cultural e política, e com a ditadura, a de 1966, fui expulsa e só retornei à universidade em 1984. Desde então, praticamente vou saindo de um diálogos&debates É um trabalho de requintes de descrição, como quando a senhora descreve as características físicas de Eva Perón, a mão, a cútis... beatriz sarlo Foi um mergulho profundo, consultando revistas, exemplares que não se pode fotocopiar, em muitos casos tive de copiar a mão trechos inteiros, estabeleci uma relação intensa, sobretudo com a dimensão iconográfica. E isso tudo resultou no livro. Agora trabalho numa pesquisa que tem a ver com os dilemas que a noção de memória coloca, sobretudo após as ditaduras da América Latina nos anos 60, em particular a Argentina. Entendo que hoje há uma inflação de memória, que se confia que a construção da verdade é uma construção no sujeito e é preciso revisar esse ponto. Creio que a memória não tem uma força tão grande como parece ganhar nos discursos contemporâneos. diálogos&debates Falando em memória, em julho cumpriram-se 30 anos da morte de Perón, e em agosto 50 anos da morte de Vargas. Como a senhora, que foi peronista, se posiciona perante o fenômeno Perón na história da Argentina? beatriz sarlo Sim, efetivamente fui peronista nos anos 60. Independentemente disso, é um fato: o peronismo marcou a geração dos meus pais, marcou a minha e as que vieram depois. Ou seja, para o bem ou para o mal, e essa valoração fica a cargo de cada um, o peronismo marca e define a história argentina a partir da década dos 40 do século passado. E ainda hoje se pode dizer que na Argentina a questão peronista se converte rapidamente em tema central. Basta ler os jornais para dar-se conta de que os conflitos no interior do peronismo convertem-se em contendas que de- “Os conflitos no interior do peronismo se transformaram em contendas que definem a cena política nacional, com reflexos no interior do governo” projeto e entrando em outro e publicando os livros que refletem essa busca. No ano passado publiquei La pasión y la excepción, que é um ensaio sobre as paixões. Encontrei em meu caminho algumas configurações culturais e políticas que li a partir da teoria da paixão: Eva Perón e, sobretudo, a construção de seu corpo, o assassinato do general Aramburu pelos militantes montoneros, que marca uma reviravolta na história política argentina dos últimos 40 anos, e finalmente emendo isso com alguns relatos de Jorge Luis Borges. É um trabalho de muitos anos de pesquisa, com consulta a revistas e jornais de época, análise de textos e sobretudo de fotografias. E N T R E V I S TA finem a cena política nacional, com reflexos no interior do governo e do Estado. E isso é o que esse movimento tem de espetacular, essa capacidade de continuar governando tanto de fora como de dentro do poder. Várias ditaduras militares tentaram liquidar o peronismo, apagar seus rastros, e isso se demonstrou impossível. diálogos&debates Como quiseram até dar um sumiço no corpo de Evita... beatriz sarlo Essa ditadura se apresentava como uma espécie de cruzada purificadora e cometeu todos os erros que uma ditadura pode cometer, agravados pelo fato de considerar- setembro 2004 diálogos&debates 59 “A transição para a democracia foi difícil porque a Argentina foi o único dos países latino-americanos a submeter os militares a um juízo” se dotados de uma missão “purificadora”. Mas outros movimentos militares surgiram por conflitos que tinham a ver com o peronismo, por exemplo, para impedir que um político peronista ganhasse as eleições, ou, no caso da última ditadura, porque o peronismo havia levado seus próprios conflitos para o interior do Estado. Ou seja, não é possível analisar a história política da Argentina sem levar em conta o peronismo. Penso que o peronismo incrementou e estendeu os direitos da cidadania, com um olhar social, e, por outro lado, sempre foi um movimento político com pouca vocação republicana e institucional. diálogos&debates Carlos Altamirano, num suplemento publicado pelo jornal Clarín na passagem dos 30 anos da morte de Perón, analisou bem esse viés voluntarista do peronismo, como se a Argentina fosse propriedade de Perón. beatriz sarlo Sem dúvida, Perón pensava que ele era o Estado. E a dificuldade que o movimento teve para encontrar um sucessor vem desse voluntarismo. Perón sabia que ia morrer, pela idade e pelas enfermidades, mas não conseguiu articular sua sucessão. E sabemos que os carismas são intransferíveis. Perón não poderia transferir os seus para nenhum outro político, mas deveria, sim, ter articulado uma continuidade. Mas naquele momento a idéia de que tudo se resumia à sua pessoa foi mais forte. Por outra parte, Perón teve a desgraça de encontrar, ao retornar à Argentina em 1973, o movimento profundamente dividido entre o grupo de direita e o de esquerda, com os dois lados militarizados – fosso que ele ajudou a fomentar durante os anos de exílio. Mas o que importa é que o movimento é ainda hoje decisivo na Argentina. Se o peronismo encontra formas de governo, as encontra para o país. E se quiser impedir que se governe, como fez na década de 80, com o presidente Alfonsín, também o fará. Alfonsín foi praticamente impedido de governar por um Congresso com hegemonia peronista. diálogos&debates Mas dava certa impressão de que Alfonsín não se esforçou muito para impor-se, não? beatriz sarlo Não é tão simples. Veja, nossa transição foi mais difícil. Não foi pactuada como a chilena. De um dia para o outro, o Exército perde a guerra das Malvinas, e a sucessão é acelerada, o partido político que chegava ao governo não sabia o que era a máquina estatal. Desde 1966, os partidos 60 diálogos&debates setembro 2004 não tinham idéia de como estava a administração estatal. O pensamento desses políticos ainda tinha resquícios da década de 60. E nesse meio tempo o mundo havia mudado, já estávamos vivendo os primeiros passos do processo de globalização e, sobretudo, a Argentina ocupava um lugar muito mais secundário no mundo do que lhe tocara até os anos 60. O país perdera posições de maneira acelerada, devido à estupidez das ditaduras militares e das elites locais. A Argentina, apesar do tamanho médio e da pouca população, havia sido um país interessante, agora deixara de sêlo. E os políticos locais demoraram a dar-se conta disso. Quando Alfonsín assume o governo, pensava que se trataria de levantar as persianas das fábricas, como se fosse possível voltar ao modelo de industrialização dos 60. Outros países haviam encontrado novos caminhos, como o Brasil e o México, e agora, no conceito mundial, países importantes eram os grandes, com extensão e grande mercado consumidor interno, com alta capacidade de produção. Interessante agora não era a Argentina, mas o Brasil, o país mais importante da América Latina. diálogos&debates A Argentina vem passando por um processo de despovoamento de seu interior, com alta concentração da população na região de Buenos Aires. Esse é um dos problemas? beatriz sarlo Sem dúvida há um processo de pequenas cidades que desaparecem, mas não diria que o problema maior seja a concentração da população na capital federal e na província de Buenos Aires, em Rosario e Córdoba. O problema foi ter demorado tanto em dar-se conta das mudanças no panorama mundial e de perceber que as mercadorias que a Argentina produz em condições favoráveis não são as que o comércio mundial está buscando. Foi dar-se conta muito tarde de que temos uma burguesia que não está disposta a investir e, conseqüentemente, será preciso apelar para o investimento dos capitais globalizados. A transição foi difícil também porque a Argentina foi o único dos países latino-americanos a submeter os comandantes militares a um juízo, condenando-os como responsáveis pelo terrorismo de Estado e crimes de lesa-humanidade. Depois houve leis atenuando essas condenações, mas esse julgamento teve um caráter fundador, e criou problemas para a classe política, para o governo, e também consumiu tempo e energia. E N T R E V I S TA diálogos&debates Como a senhora avalia o tema dos piqueteiros, que fecham o trânsito arbitrariamente, com suas reivindicações, e esse jogo de cena entre o presidente Kirchner e o antecessor, Duhalde? beatriz sarlo Tenho duas reações. A primeira é pessimista, quando penso que a história se repete, que as contradições no interior do peronismo se convertem em contradições políticas de toda a nação. Repetimos histórias que não nos conduziram a políticas mais justas nem mais democráticas ou estáveis. Por outro lado, teria, combinado com isso, uma posição mais otimista, de ver que os atuais conflitos no interior do peronismo se dão entre atores políticos que tiveram a experiência do passado e talvez não queiram repeti-la. Por outro lado, diria que no caso do uso político do movimento dos piqueteiros se está “brincando com fogo”, por usar um movimento social que de algum modo independe da política. Agora, pensando do ponto de vista dos piqueteiros, esse movimento reflete que a Argentina mudou, que hoje há 50% da população que vive abaixo da linha da pobreza. A Argentina da classe média não existe mais e essa é uma experiência inédita: ao longo de 30 anos, um país acostumado ao emprego pleno se converta num país com mais de 23% de desempregados, com gente pedindo esmola nas ruas. Eu diria que há uma mudança de identidade. Éramos um país e hoje somos outro, partido em duas metades. diálogos&debates Durante certa época, a Argentina foi o primeiro mundo encravado no atraso da América Latina... beatriz sarlo E em que se sentiam os argentinos diferentes do resto da América Latina, muitas vezes com uma espécie de petulância intolerável? Éramos um país com baixa taxa de mortalidade infantil, quase totalmente alfabetizado, onde se entrava e se saía facilmente do mercado de trabalho, com uma boa rede de assistência social, com seus defeitos, mas que existia. Quando tudo isso colapsa, o que fica como marca de nossa identidade? Esse pode ser o momento de mudança, em que todos os que se salvaram busquem se adequar à nova realidade e buscar saídas. E N T R E V I S TA diálogos&debates Que perspectivas a senhora aponta, nesse panorama? beatriz sarlo Em termos regionais, a perspectiva para a Argentina está no Mercosul. Não há outra – e creio que os políticos, todo o sistema está convencido disso. O reconhecimento de uma nova relação de forças regional e mundial. A Argentina não é mais um país economicamente importante, como já disse, então lhe cabe buscar alianças e integração regional. E isso fica completamente subordinado ao que ocorrer no Brasil: o que acontecer no Brasil é decisivo para a Argentina e para todos os países da região. diálogos&debates Não obstante, a integração do Mercosul se dá a passos de tartaruga, há pouco era o Uruguai não querendo equiparar seu sistema de ensino com o paraguaio... Na Europa, de um golpe ampliaram o grupo com uma dezena de novos sócios. beatriz sarlo E nisso a União Européia marca como se podem fazer as coisas no primeiro mundo. A Europa tem a base de países poderosos, que desde De Gaulle e Adenauer estão construindo as perspectivas de um futuro. O Mercosul se faz ao modo “criollo”, com países, com a exceção do Brasil, que vão construindo suas linhas de relações exteriores ao sabor de cada novo governante. Brasil sempre teve uma coerência e persistência em suas políticas de Estado, com um corpo administrativo forte, que as leva em frente. Não é o caso da Argentina. Mas não se pode comparar o Mercosul com a União Européia, como não se pode comparar as democracias da Europa com a qualidade das democracias da América Latina, ou a previdência social de lá com as nossas. Hoje se discute na França e na Alemanha a queda do orçamento da previdência e dos programas sociais, mas isso ocorre num quadro de bem-estar social garantido. Às vezes dá uma certa sensação de que a democracia é um luxo para países ricos e que os países pobres têm de realizar uma tarefa de mergulho profundo e dispor de uma vontade política brutal para chegar a isso. Claro que há exceções, o Chile, por exemplo, é um país periférico que pôde construir uma transição bem-sucedida. setembro 2004 diálogos&debates 61 diálogos&debates Mas o Chile não serve de parâmetro, pois, como comparou certa vez o prof. José Eduardo Faria, a economia chilena é comparável à da região de Ribeirão Preto. Não tem complexidades, como a de uma Colômbia, por exemplo. beatriz sarlo Bom, a Colômbia em si já seria outro capítulo. É certo que o Chile é pequeno, mas devo reconhecer que o Chile desperta em mim reações contraditórias. De um lado, o desgosto que produz um país estruturado fortemente nas diferenças de suas elites e setores populares. Elites muito fechadas, mas ao mesmo tempo capazes de costurar pactos de governabilidade e cumpri-los. A Argentina viveu os últimos 20 anos da transição vendo se alterarem constituições para que os presidentes continuem sendo presidentes, os governadores sigam como governadores. O Chile fez um pacto de alternância eleitoral e cumpre o acerto. Frey se foi, Alwyn também, e Lagos irá quando terminar seu mandato, pois os pactos ali são sólidos. diálogos&debates E que sentimentos lhe desperta o Brasil? Tem vindo dar cursos aqui recentemente? beatriz sarlo Coincidentemente, não depois da posse de Lula. Mas conheço bem o país e tenho relações intelectuais intensas com o Brasil, com gente de Belo Horizonte, por exemplo. Me interesso pelo campo intelectual brasileiro, leio a edição online da Folha de S.Paulo. Vi a vitória de Lula, como tantos intelectuais da esquerda latino-americana, com uma enorme expectativa. Sei que a expectativa pode gerar desapontamentos, pois veja, Kischner chegou ao poder na Argentina sem prometer nada e mantém um discurso mais à esquerda que o de Lula. De todo modo, continuo interessada no fenômeno Lula, seu lado de líder carismático e da capacidade que demonstrou de construir um partido coerente, que não fosse apenas uma proposta midiática, mas uma agremiação implantada territorialmente, integrando setores sociais com interesses às vezes discordantes. Nos últimos 20 anos, participei de quase todos os projetos de construção política de um partido de esquerda e todos fracassaram. Por isso, em Lula me interessa muito a construção política, mas não tenho hipóteses ou juízos sobre seu governo em concreto. diálogos&debates A Europa, que a fez lembrar que democracia é quase exclusividade de países ricos, não teve pruridos em proteger sua agricultura, mesmo no auge da liberalização. Já a Argentina foi sedenta ao pote das privatizações. Como a senhora vê a globalização no terreno cultural? 62 diálogos&debates setembro 2004 beatriz sarlo Veja, durante 30 anos a Argentina viu como se destruía sua escola pública, que fora um dos fundamentos de sua identidade. E não me refiro à identidade no sentido do ser nacional, mas a identidade como aquilo que se sabe fazer e que se aprende, como as habilidades democraticamente distribuídas pela escola. A escola pública fora extremamente eficaz na Argentina ao incorporar ao circuito da cidadania um contingente migratório enorme, desde 1890 até 1940 – período em que o fluxo migratório foi intenso – distribuindo-lhe destreza e construindo uma força de trabalho muito qualificada, que de resto hoje já não existe. As discussões culturais têm de partir desse centro: o que aconteceu com a escola pública, pois o país foi o que foi por conta dessa escola, e hoje está onde se encontra porque ela foi sistematicamente destruída. Os países que hoje formam o centro da cultura são os que defendem sua escola. Pensemos na França, que defende um tipo de escola... diálogos&debates Não defende apenas a escola, mas seu cinema. beatriz sarlo Sim, mas me refiro a algo anterior, pois não se pode falar em política cultural se antes não houver uma sólida política de educação. Eu poderia dizer que a cidade de Buenos Aires tem extraordinárias políticas culturais, como um festival de cinema independente-experimental fantástico, entre os melhores do mundo, uma bienal de teatro internacional, e uma programação de alto nível. Mas isso é significativo para a classe média que vive aqui e para os turistas que visitam a cidade. Agora, a política cultural decisiva é aquela que parte da meta de estabelecer igualdade de oportunidades. E esse objetivo só pode ser atingido por meio da escola, e essa é a política cultural decisiva do ponto de vista igualitário. Que algumas outras políticas me permitam ver filmes de vanguarda ou assistir a obras experimentais de teatro, é fantástico e faz parte do caráter cosmopolita que Buenos Aires conserva, mas não é o decisivo. Veja, do ponto de vista da pesquisa e da universidade, a Argentina investe pouco, caso se olhe para o Brasil. Não se pode comparar o que temos aqui com o dinheiro de que dispõe a universidade brasileira, e conheço bem, por contrastar minha experiência acadêmica com a vivência universitária brasileira. No Brasil a universidade teve continuidade durante a ditadura, poucos professores foram expulsos, se comparados com a verdadeira limpeza que se procedeu aqui. diálogos&debates E um desses professores expulsos voltou e foi o presidente Fernando Henrique Cardoso... E N T R E V I S TA beatriz sarlo Mas a lista foi curta. Aqui curta foi a lista dos que continuaram na universidade. Ela foi desmantelada e não houve nem há hoje uma política de investir na universidade, na pesquisa, como no Brasil. E isso é uma das bases de uma política cultural séria. Só depois vamos sentar e discutir o que fazer com o cinema, com o teatro. O fato de a Argentina ter retrocedido não quer dizer que não haja bons filmes ou teatro experimental, mas importa o reflexo que isso tem sobre o que as crianças aprendem na escola. De fato, é provável que o movimento teatral argentino seja dos mais interessantes do mundo, hoje. Os diretores de teatro reclamam da falta de orçamento, mas não há crise na experimentação. A crise se vê nas crianças que ficam fora da escola, ou na escola que não pode educar os alunos que tem sob seus cuidados. Aí é que está a urgência que pede uma forte intervenção. Fora disso há muita diálogos&debates E como está a televisão? beatriz sarlo Não creio que exista uma TV aberta pior que a argentina. Isso justamente numa área que deveria interessar profundamente ao governo, que até possui um canal: não é possível encontrar um programa jornalístico em que se receba uma idéia mínima do que está acontecendo no continente ou no mundo. A TV aberta é uma catástrofe. O canal estatal é como um barco sem rumo, sobrevivendo a sucessivos naufrágios. E deixar isso assim é desistir da possibilidade de uma distribuição cultural mais eqüitativa, a que me referia. Afinal, a TV é o grande entretenimento de quem mais precisa desses valores culturais. diálogos&debates A senhora tem alguns ensaios muito citados sobre TV, como os reunidos no livro publicado no Brasil com o título de Paisagens Imaginárias. Como anali- “Não creio que exista uma tevê aberta pior que a argentina. O canal estatal é como um barco sem rumo, sobrevivendo a sucessivos naufrágios” estupidez. Que a Argentina não possa resolver o problema de sua Biblioteca Nacional é simplesmente estupidez, não é problema da crise econômica, mas da falta de bons administradores culturais. diálogos&debates E qual é o problema da Biblioteca Nacional? beatriz sarlo É um problema que se arrasta há 40 anos. O tesouro da Biblioteca Nacional, livros raros, incunábulos e primeiras edições, ninguém sabe ao certo quantos e quais são, pois foram desaparecendo, não foram digitalizados nem fichados. Quer dizer, é impossível ter acesso ao conjunto de obras da Biblioteca, demorou quase 30 anos para mudar-se de um edifício para o outro... Isso se você contar a um brasileiro ele não vai acreditar, pois vocês são capazes de fundar uma cidade em dez anos e a Argentina leva 30 para construir uma biblioteca. E N T R E V I S TA sa o fenômeno da escola e dos alunos que vêem o mundo por uma tela de TV? beatriz sarlo Há um agravante nesse cenário de televidentes, que é a franca e paulatina redução dos leitores de jornal. A Argentina era, há 20 anos, o país em que mais se lia jornal na América Latina, com níveis de leitura comparáveis aos de países europeus. Com isso, o que vinha da televisão, para construir a esfera pública, se cruzava com o que o cidadão havia lido nos meios impressos, numa espécie de contaminação produtiva. Afinal, a comunicação escrita sempre foi mais efetiva que a dos meios audiovisuais. Hoje isso está desaparecendo, com a queda da leitura de jornais. Tanto Clarín quanto La Nación tiveram de fazer redesenhos, mudar o visual, inventar promoções e brindes para segurar os leitores, que há dez anos estão em debandada. Com isso a TV passa a não ter contrastes, e parece-me que é importante que o campo audiovisual seja contextualizado com os meios setembro 2004 diálogos&debates 63 de comunicação escritos. Fica ainda pior quando o campo televisivo é degradado como o nosso, com péssimos canais abertos. Se combinarmos isso com a convicção de alguns políticos de que a política se constrói apenas com os meios de comunicação, sobretudo a televisiva, estaríamos no limite do empobrecimento da discussão pública. Veja, uma das experiências políticas mais interessantes da Argentina nos últimos 15 anos, que poderia ter sido a alternativa de Chacho Álvares e o Frepaso, deu em nada porque acreditavam que a política só se construía nos meios de comunicação ou fundamentalmente neles. diálogos&debates Talvez a experiência brasileira com Collor de Mello tenha sido um pouco isso. Também ele acreditou que não precisava do suporte de um partido e de acordos políticos, bastava gerar imagens para a TV. beatriz sarlo O fato é que parece que a TV aberta toca os limites e o Estado parece ter resignado, pois não existe legislação para a TV pública. Ela é dirigida por funcionários ção em que a denúncia é visível e audível. Dado que a Justiça é lenta e a TV parece resolver tudo na hora... Então, esse é realmente o impacto que a TV tem causado na sociedade, o de ser percebido como um lugar de visibilidade, que coloca os problemas em agenda. diálogos&debates Em seu livro, a senhora diz que o espectador atua de acordo com as regras da TV. Ele aprendeu a lidar com ela? beatriz sarlo Ele não apenas conhece as regras do jogo, conhece as regras técnicas, sabe como olhar a câmara, conhece a linguagem concisa, repete expressões que ouviu nos programas da TV – e a TV toma emprestado o linguajar das pessoas, produzindo uma unificação de linguagens. Há uma série de saberes, que são técnicos e lingüísticos, que foram incorporados pelo espectador. Estudo esses vieses porque são de longo alcance, duradouros, como é o fenômeno do zapping. Outro tema: por que a TV acentua certa zona vinculada com o proibido e com o íntimo? Ou, num outro viés, “O ministro do Interior disse que tinha os telefones dos juízes do Supremo anotados num guardanapo, e os chamava para ditar as sentenças” designados diretamente pelo presidente da República ou pelo Secretário das Comunicações, sem nenhuma política específica, como a de alguns países onde a TV estatal dá o tom e é o termo de comparação para as emissoras privadas. Não existe nada disso aqui. A TV estatal compete diretamente com as privadas, e o resultado não poderia ser pior, pois compete sem os meios de que dispõem as emissoras privadas. diálogos&debates Estaria o espectador se tornando mais sádico, ao ligar para as emissoras TV e punir os participantes dos reality shows? beatriz sarlo Eu talvez seja um pouco cética quanto a analisar detalhes ou programas de TV que têm êxito durante uma temporada, como foi o caso das muitas versões locais do Big Brother, pois a teoria corre o risco de ficar defasada assim que esses programas saem de moda. Prefiro analisar a TV sob a perspectiva do impacto cultural e político. E uma das idéias perenes desse enfoque é que toda mobilização social hoje tem de passar pela televisão para ganhar visibilidade, e esse é um aprendizado. E é algo que acontece há anos e continua vigente. As pessoas vão até a televisão para fazer denúncias por considerar que a TV é a institui- 64 diálogos&debates setembro 2004 com o obsceno? Esse parece ser um caminho sem retorno da televisão, pois parece difícil que ela volte a criar um tipo de regulamentação, uma vez que se legalizou a “mostração” do obsceno – e penso que isso é um viés meio permanente, e não é um fenômeno local, mas mundial, pois se trata daquilo que as sociedades consideram mostrável ou não. No entanto, isso não ocorre em todas as TVs, não sei como é na TV americana, extremamente moralista, não aceita piadas sobre mulheres, negros, judeus, digamos que ali há zonas em que a comicidade não pode penetrar. Mas a idéia de que o obsceno ocupa a cena é mundial, combinando em cada país com tensões moralistas ou censuras diversas. Na Argentina, passa a impressão de que se aboliu toda censura e toda tensão e tudo é permitido. diálogos&debates A senhora poderia dar algum exemplo concreto? beatriz sarlo Basta tomar o tema do travesti, fenômeno mais central da TV hoje aqui, com apresentadores travestis, cômicos com um arsenal de personagens travestis, há toda uma estética do travestismo. Então, eu me perguntava num texto, quando houve um escândalo por causa dos travestis que tomavam algumas ruas, com as famílias exigindo pro- E N T R E V I S TA vidências policiais, por que tanto barulho quando a televisão é um templo do travestismo e nenhum pai de família se escandaliza de que seu filho veja tudo isso na tela? diálogos&debates O que há por trás de tudo isso? beatriz sarlo A idéia da máscara é uma idéia que também aparece como elemento central das culturas populares. Tem a ver com o carnaval, com a desaparição ou inversão das relações habituais da sociedade. Creio que a idéia do travestismo toca um pouco isso. diálogos&debates Em seu livro A Televisão Levada a Sério, o pesquisador brasileiro Arlindo Machado estabelece um ranking dos melhores programas de debates da TV mundial. E coloca entre eles um programa em que a senhora debatia sobre o intelectual e a cultura com o jornalista Jorge Lanata. Como foi esse programa? beatriz sarlo Que bela surpresa, vou contar isso ao La Ferla, diretor desse programa, anos atrás, aqui. Esse foi um programa experimental. O diretor, La Ferla, é um teórico do vídeo, professor da Universidade de Cinema, e criou um formato visual não comum na TV, com projeção de imagens ao fundo, que tinham a ver com o que se discutia. O que demandou uma rigorosa preparação dos temas e das imagens a serem projetadas. E os dois roteiristas eram intelectuais de primeira linha, como Alan Pauls e Matilde Sánchez, escritores de alta ficção, com forte enfoque estético e narrativo. Então o programa já era excepcional por juntar na produção três pessoas desse porte. E a proposta foi juntar o jornalista mais antiintelectual da Argentina, Jorge Lanata, com muita consciência de seu lugar, com alguém que poderia ser definido como típica do mundo intelectual, como seria meu caso. Foi uma experiência irrepetível, diria, pois não haveria canal disposto a esse risco estético e ideológico. diálogos&debates E o Judiciário argentino, como a senhora o analisa? beatriz sarlo É preciso verificar o que se passou aqui, sobretudo na década de Carlos Menem, quando o ministro do Interior chegou a dizer que tinha os telefones dos juízes do Supremo anotados num guardanapo, e os chamava para ditar como tinham de ser as sentenças. E isso expressava uma realidade, não era apenas retórica. Era assim que se nomeavam os juízes federais, os que intervêm nas grandes decisões – e muitos ainda continuam ali. Assim foi com a Corte Suprema, que tinha a “maioria automática”, quer dizer, o presidente da República os nomeara a dedo, um dos juí- E N T R E V I S TA zes do supremo era sócio de um irmão de Menem – quem controlava a Corte a seu bel prazer. Claro que o resultado foi um descrédito total, que contaminou toda a instituição. Uma das medidas decisivas de Kischner foi a mudança de dois juízes da Corte Suprema e nomear um Procurador Geral da Nação, com novo procedimento de nomeação, com audiência pública, discussão de antecedentes, apresentação de declaração de impostos... Aos poucos as coisas se assentam, acabou a “maioria automática”, entraram juristas reconhecidos internacionalmente. Mas o processo de descontaminação da imagem será lento. diálogos&debates Uma das candidatas à Corte Suprema está recebendo muitas críticas da igreja, por suas posições sobre o aborto. A igreja é figura importante ainda na Argentina, não? beatriz sarlo A igreja, em todo o mundo, tem um papel duplo. De um lado, alerta e se ocupa da questão social, e nesse sentido foi uma das instituições que mais se empenharam na denúncia de mazelas. E com isso conseguiu penetração forte entre os jovens, há hoje muitos deles em instituições de voluntariado social dirigidas pela igreja. E por outro há o viés reacionário, do ponto de vista ideológico. Como na questão do aborto, que eu não diria que é típica da igreja argentina, mas de todas elas, como a chilena, por exemplo. Há ainda os resquícios do patronato, firmado no século XIX e que estabelecia uma espécie de financiamento da igreja pelo Estado e que continua vigente, e isso me parece péssimo. Por outro lado, assiste-se ao avanço das religiões não-católicas, esse um fenômeno novo aqui, basicamente os “pentecostais”, e que ganham força entre setores mais populares. Diria que esses são os dois processos religiosos mais interessantes, hoje: o da reinserção dos jovens que haviam se afastado da igreja e agora se alistam em grupos de voluntariado social, e o dos pentecostais. diálogos&debates Em seu livro sobre a paixão, a senhora faz uma leitura do movimento montonero sob a ótica do engajamento religioso, certo? beatriz sarlo Sim, essa é a minha hipótese e a de Carlos Altamirano também, de que a radicalização política do grupo montonero tinha a ver com o espírito de radicalização da Igreja Católica, sobretudo depois das grandes encíclicas sociais. Ali se encontraram, diria, dois trens em alta velocidade, a radicalização de setores da igreja e a radicalização política. O cerne dos quadros montoneros vinha dos movimentos católicos, das juventudes católicas. setembro 2004 diálogos&debates 65 um ensaio moral sobre a fotografia POR CARLOS COSTA U m livro de Virginia Wolf (Três Guinéus), publicado em 1938, com reflexões sobre a guerra civil espanhola, é o pretexto para Susan Sontag desfiar seu novelo e tecer um denso ensaio sobre a fotografia de guerra: Diante da Dor dos Outros. Texto de fôlego em suas poucas páginas, escapa dos lugares-comuns dos “estudos culturais” ou das questões sobre técnicas e usos da imagem, para ir direto à medula e discutir os aspectos morais de mostrar a dor do outro (o título da obra, Regarding the Pain of Others, perde, na tradução, a conotação original de respeito e de mirada atenta). Como já escreveu a crítica argentina Beatriz Sarlo, esse é um tratado moral de rara extração. Sontag já havia se debruçado antes sobre a fotografia (por acaso, seu Sobre Fotografia acaba de ser relançado no Brasil), mas aqui sua preocupação é a objetividade do que se pode descobrir ao olhar imagens e as conseqüências dessa mirada sobre o sofrimento do outro. Embora nos Estados Unidos o livro tenha sido – erroneamente – identificado com a condenação da autora à invasão americana do Iraque, o ensaio, publicado lá no início de 2003, não discute essa guerra. Também não comenta as imagens das bárbaras e aviltantes torturas praticadas por soldados americanos e ingleses contra cidadãos do país ocupado, na prisão de Abu Graib, algo que veio a tona apenas agora, neste maio de 2004. O livro é dividido em nove curtos ensaios (no total, 107 páginas). No primeiro, ao comentar as fotos da guerra civil espanhola, a autora deixa o dilema: “Fotos de atrocidade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atordoada consciência, continuamente reabastecida por informações fotográficas, de que coisas terríveis acontecem”. O fotojornalismo e seu reconhecimento ocupam outro en- 66 diálogos&debates setembro 2004 saio: a foto em flerte com a morte. Ela discute a famosa foto de Robert Capa, do soldado atingido na guerra espanhola, e analisa o papel da fotografia na “repercussão” de alguns conflitos. Como pontua, a sangrenta guerra do Chaco, entre Bolívia e Paraguai (1932-1935), ficou no esquecimento justamente por não ter contado com a presença de fotógrafos. As gravuras, com destaque para a série Los desastres de la guerra, de Goya – as 83 águas-fortes que davam conta dos horrores provocados pelas tropas napoleônicas na Espanha – é tema de outro ensaio, com a reflexão sobre os começos do uso da fotografia na cobertura da guerra. A reflexão sobre o espectador das imagens de guerra é assunto de outro capítulo: Sontag relembra a foto de Eddie Adams, de fevereiro de 1968, que mostra o chefe da polícia sul-vietnamita dando um tiro à queima-roupa na cabeça de um suspeito vietcong (imagem que percorreu o mundo em vídeo mostrado pela TV). Ainda hoje, ver essa imagem nos torna co-testemunhas do horror, diz. O mergulho da ensaísta parece não temer profundidades. Corajosa, denuncia até o viés de frivolidade que toma conta, hoje, de alguns acadêmicos franceses: cita o caso do filósofo André Gluksmann, que esteve um par de horas em Sarajevo, durante o sítio da cidade, e voltou dando palestras, dizendo que a guerra seria decidida não pelo que acontecesse ali, mas em função do que acontecesse na mídia. Sobram farpas até para Guy Debord e Jean Baudrillard: “Dizer que a realidade se transforma num espetáculo é de um provincianismo assombroso”, decreta, por universalizar o modo de ver de uma pequena população instruída e bem vivente em Paris, onde as notícias precisam ser transformadas em show. A realidade de quem sofre a guerra é suficientemente real, sem nenhuma necessidade de shows e simulacros. Em resumo: uma reflexão indispensável. Ú LT I M A P Á G I N A
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