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Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec)
Recife, Pernambuco
Militante
de corpo
e alma
Stéfany Heleno dos Santos, de 17 anos, assistia à TV em casa, ao lado
da mãe, quando descobriu um segredo de família. Um programa
jornalístico explicava que não era necessário haver contato entre um
adulto e uma criança para configurar violência sexual – bastava que o
adulto conversasse sobre sexo com a criança ou tocasse seus órgãos
genitais diante dela para estar estabelecida a violação.
“Minha mãe ficou estarrecida, sem movimentos. E revelou que uma
situação assim aconteceu com ela”, conta a jovem. “O marido de uma
prima mostrava seu sexo à minha mãe e lhe dizia coisas como ‘a
vagina é feita de plástico, ela estica e não quebra’, quando ela ainda
era menina”. A história termina com contornos dramáticos: quando
soube, o avô de Stéfany resolveu tirar satisfações. Foi à casa do abusador armado com uma peixeira, pronto para brigar. Ao chegar lá, foi
recebido por um tiro de bacamarte, um tipo de arma de fogo, e acabou
sendo assassinado.
“Felizmente, minha mãe não ficou com sequelas psicológicas, tanto
é que eu só fiquei sabendo dessa história há pouco tempo”, diz Stéfany.
“Isso me fez ter vontade de conhecer o problema da violência sexual
contra crianças”, conta a adolescente, que foi recrutada pelo Centro
Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (CENDHEC), do Recife,
para estudar a questão. Apaixonou-se pelo tema, tornou-se uma
engajada militante e usa todas as ferramentas que sua geração aprendeu a manejar tão bem para combater o problema. “É muito bom fazer
parte do projeto e aprender a defender nossos direitos”, diz.
17anos
Stéfany Heleno
dos Santos
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Redes sociais
Nosso papo
E-mail. Blog. Twitter. Orkut. Facebook. MySpace. MSN.
A atividade desenrolou-se de março de 2009 a feve-
Skype. Qualquer indivíduo da chamada “geração Y”,
reiro de 2010. Quando chegou ao fim, os jovens resolve-
formada por adolescentes e jovens adultos que
ram manter o assunto em pauta e criaram um blog, o
nasceram em uma sociedade plugada à internet e ao
Nosso Papo – mesmo nome do boletim que escreviam.
telefone celular, sabe o que significa cada uma destas
“Para atender à demanda deles, criamos um perfil do
palavras e para que serve cada uma das ferramentas.
CENDHEC no Orkut”, conta Karla. A fim de atingir quem
Mesmo que não soubesse, jamais pensaria em procurar
não tem acesso à web, o grupo vai às escolas públicas
isso nos volumes encadernados de uma enciclopédia.
para apresentar nas salas de aulas o tema que vem
Recorreria ao Google. Foi pensando assim que um grupo
sendo estudado e debatido em profundidade. É a
de jovens do Recife, do qual Stéfany faz parte, resolveu
chamada comunicação interpares, que ganha força
encarar o espinhoso tema da violência sexual contra
entre jovens em todo o mundo justamente por sua
crianças e adolescentes: buscando informação e espa-
eficácia. Os jovens “traduzem o mundo” para as pessoas
lhando mensagens nas redes sociais.
da sua faixa etária, usando linguagem adequada.
Com o apoio do Criança Esperança, o CENDHEC
“A linguagem do Plano Municipal de Combate à
formou uma tropa de 25 adolescentes para analisar e
Violência Sexual é bastante formal. Para os adoles-
fiscalizar as políticas públicas de enfrentamento da
centes, o palavreado deveria ser mais informal, mais
violência sexual, com base no Plano Municipal de
acessível”, avalia Stéfany. Isso não significa, obviamente,
Combate à Violência Sexual e Doméstica. Eles passaram
que o próximo plano, em fase de elaboração com a
um ano analisando o plano, monitorando as ações e
ajuda do grupo, será recheado de gírias ou expressões
propondo soluções. Escreveram boletins eletrônicos e
inapropriadas.
enviaram-nos para mais de 1.500 pessoas envolvidas
com o tema – conselheiros tutelares, vereadores, funcio-
Desconhecimento
nários de secretarias de governo, deputados estaduais.
Talvez por causa da linguagem técnica, o plano era
Alguns destes, por sua vez, reenviaram os textos para as
totalmente desconhecido. Essa foi a segunda impor-
próprias redes de contatos. “Era uma forma de pressio-
tante conclusão dos jovens. “Fizemos uma pesquisa em
nar e cobrar. Isso motivou o Conselho Municipal da
escolas, postos de saúde e associações de moradores.
Criança e do Adolescente a rever seu plano de atuação”,
Centenas de pessoas foram consultadas, e absoluta-
diz Karla Adriano Ribeiro de Araújo, coordenadora do
mente ninguém o conhecia”, conta Dálet Regina dos
projeto.
Santos Costa, de 15 anos. “Foi frustrante”, lembra Manuela
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da Silva Santos, que também fez o trabalho de campo. “Algumas secretarias municipais responsáveis por partes
do plano simplesmente desconheciam a sua existência”, completa Stéfany.
Além do ambiente virtual, o grupo discute o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) nas escolas, com foco na
violência sexual. “É preciso que as crianças saibam que o desconforto e o constrangimento que sofrem em casa têm
nome: violência sexual, ainda que muitas vezes seja cometida pelo pai, pelos irmãos ou pelo padrasto”, diz Stéfany.
Durante o projeto, Stéfany e seus amigos recebiam uma bolsa de estudos. Agora, tocam a iniciativa por conta
própria, sem patrocínio. Batizaram a ação de Guia – Grupo Unido e Integrado por Adolescentes.
“Ganhamos a satisfação de passar para os outros o que a gente aprendeu”, afirma a garota, que pretende ser
educadora social. “Depois de descobrir este caminho, não saio mais”, afirma. “A multiplicação da informação é o
maior legado do projeto”, avalia Karla.
Justiça
Paralelamente ao trabalho dos 25 jovens, o CENDHEC atuou também em outras frentes, como o acesso à
Justiça. Quarenta casos de abuso foram acompanhados no período e transformaram-se em inquéritos policiais,
mas nenhum foi a julgamento. “Há casos que demoram nove, dez anos. Por isso, a morosidade dos processos está
na nossa pauta”, diz Karla. O Centro acompanha cerca de 350 casos.
O CENDHEC foi criado em 1989, com aval do próprio Dom Helder Câmara, quando era arcebispo de Olinda e
Recife. A instituição começou por discutir políticas públicas municipais. Em 1991, depois da aprovação do ECA,
incluiu a defesa dos direitos da infância e da adolescência em sua linha de ação. Desde então, em alguns processos
judiciais, os técnicos da ONG atuam como assistentes da acusação.
Os laudos psicológicos, por exemplo, podem virar peças dos processos, embora não sejam reconhecidos como
provas. “Quando a violência se revela, os agentes da agressão acabam fugindo. E normalmente este agente é o
provedor da família. É aí que entra o acompanhamento social, que dimensiona as demandas da família e aciona
as instituições da rede de proteção social”, explica Karla.
Violência sexual é um problema que está longe de se resolver com um clique de mouse, mas que se pode
enfrentar com base na democratização das informações, como vêm mostrando Stéfany e seus amigos.
Adolescentes usam redes sociais, reuniões, e corpo a corpo para combater a violência sexual. “Traduziram” o Plano Municipal
de Combate à Violência Sexual do Recife para uma linguagem mais atual para que pudesse ser melhor compreendido.
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CONTEXTO
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2002
Homicídio entre jovens cresce 88,6%
em nove anos, diz UNESCO; ONU aprova
agenda para Infância e Juventude
Espaço Criança Esperança de Belo Horizonte é inaugurado;
show é realizado na capital mineira com participação
inédita do jornalismo da TV Globo
Este foi um ano em que a violência letal,
envolvendo os jovens, foi comprovada de
forma mais contundente pela UNESCO. O
“Mapa da Violência IV”, publicado pela Organização, apontava novamente a tendência de
aumento dos homicídios entre a população
brasileira de 15 a 24 anos. A sequência dessa
publicação não mais deixava dúvida: os jovens
eram os maiores vitimados pela violência na
condição de vítimas ou de agentes. Para se
ter ideia, no Brasil, eles morriam mais por
armas de fogo do que em muitos países em
estado de guerra.
O “Mapa da Violência IV” revelou que,
entre 1993 e 2002, os homicídios entre jovens
de 15 a 24 anos cresceram 88,6%, a uma velocidade de 5,5% ao ano – mais do que a economia naquela ocasião. A pesquisa demonstrou, também, que o percentual de jovens cuja
morte foi causada por assassinato, saltou de
30% para 54,4% entre 1980 e 2002. Entre os
quase 49 mil jovens mortos neste ano, 15 mil
foram vitimados por armas de fogo.
Ainda em 2002, a UNESCO lançou a pesquisa “Drogas nas escolas”, um levantamento
feito em escolas públicas de ensino fundamental e médio em 14 capitais brasileiras.
O trabalho indicou que, dos alunos que possuíam arma de fogo, 70% admitiram já terem
levado seus revólveres para a escola. Entre
os professores, 50% em São Paulo e 51% em
Porto Alegre relataram haverem sofrido algum
tipo de agressão. Quatro de cada dez professores ouvidos pelos pesquisadores atribuíram a
violência ao envolvimento dos alunos com
drogas.
Durante alguns meses do ano, a ficção
deu um choque de realidade no Brasil e
no mundo. O filme “Cidade de Deus”, dirigido
por Fernando Meirelles, mostrou aos que
não acompanhavam o noticiário o cotidiano
de crianças e adolescentes das comunidades
localizadas em áreas de risco social no país.
Em 2002, o Fórum Social Mundial foi realizado pela segunda vez em Porto Alegre, e uma
oficina especial chamou a atenção: o Forunzinho Social Mundial, voltado para crianças e
adolescentes de 6 a 14 anos, que discutiu
temas como ecologia, direito da infância, inclusão social e solidariedade entre os povos.
Compromisso mundial
Em janeiro, entrou em vigor em todo o
mundo o Protocolo Facultativo à Convenção
sobre os Direitos da Criança relativo à Venda
de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia
Infantil. Os Estados-membros da Organização
das Nações Unidas ratificaram o protocolo,
comprometendo-se a combater a exploração
de crianças. No Brasil, foi criado pelo Fórum
Nacional da Criança e do Adolescente, com representação em todos os estados, um comitê
nacional para enfrentar o problema.
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No documento, ratificado em 2004 pelo
Brasil, os Estados-membros da ONU afirmam
serem necessárias medidas de sensibilização
pública para reduzir a demanda desse tipo de
exploração.
Ainda em 2002, foi inaugurado o Espaço
Criança Esperança de Belo Horizonte, no
Aglomerado da Serra, a maior concentração
de favelas da região metropolitana da capital
mineira, onde vivem cerca de 60 mil habitantes, divididos em sete comunidades. Para celebrar a chegada do projeto, que atualmente
atende dois mil jovens e crianças, a 17ª edição
do Criança Esperança foi realizada na capital
mineira, no Estádio do Mineirinho, tendo
como temas a violência e o trabalho infantil.
Pela primeira vez, uma equipe de jornalistas
da Rede Globo participou do show, apresentando reportagens sobre a situação da infância e da juventude brasileiras.
A emissora disponibilizou letreiros em
closed caption, para facilitar o acompanhamento do evento pelos deficientes auditivos.
Ao longo da campanha, o site do Criança Esperança promoveu um leilão de camisas autografadas dos jogadores de futebol Ronaldo
“Fenômeno” e Ronaldinho Gaúcho, e dos capacetes dos pilotos de F-1 Ayrton Senna e Rubens
Barrichello. O leilão contou também com uma
relíquia internacional: o compositor Roger
Waters, um dos fundadores do grupo de rock
Pink Floyd, doou um violão autografado.
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Foto: Márcio Madeira
Oskar Metsavaht
Vice-presidente da Associação de
Empreendedores Amigos da UNESCO
“Colaboro com o Criança Esperança não apenas como empresário mas, acima de tudo, como cidadão.
Sempre acreditei no poder transformador da educação e da cultura, e é por isso que apoio esta
importante iniciativa desde 2004 – quando fui convidado a participar, pela primeira vez, junto com a
minha equipe de criação da Osklen e com os técnicos da ONG que presido, o Instituto e. Já éramos
parceiros da UNESCO, e virar parceiros de uma iniciativa que já proporcionou algum tipo de perspectiva
a mais de quatro milhões de jovens em todo o país era um desdobramento mais do que natural. E, desde
então, motivo de orgulho.”
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