desta edição - Escola Paulista de Magistratura

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desta edição - Escola Paulista de Magistratura
diálogos&debates
Revista trimestral ano 4 n. 4
ed. 16 junho 2004 R$ 4,50
DA ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
O TERROR NO MUNDO:
O INIMIGO SEM ROSTO
O Federalismo Europeu
em busca de uma
Constituição comum
Carlos Guilherme Mota
enumera os motivos
para sermos otimistas
Demétrio Magnoli,
Alcir Pécora, Celso
Limongi e António Cluny
E S C O L A PA U L I S TA D A M A G I S T R AT U R A
Órgão d o Tr i b u n a l d e J u s t i ç a d o E s t a d o d e
São Pau l o
um encontro para
sumário
Diretor Desembargador Carlos A. Guimarães e Souza Júnior
Vice-diretor Desembargador Octávio Roberto Cruz Stucchi
discutir idéias
diálogos&debates
Diretores Des. Demóstenes M. Braga e Juiz Régis Rodrigues Bonvicino
Conselho editorial
Ministro Antonio Cezar Peluso, Desembargador Helio Quaglia Barbosa,
Prof. Antonio Angarita, Dalmo do Vale Nogueira Filho, Prof. José
Eduardo Faria, Luiz Antonio G. Marrey, Hubert Alquéres (Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo), Juiz Antonio Carlos Villen, Dep.
Sidney Beraldo e Arnaldo Madeira, Jaime de Castro Júnior (Banco
Nossa Caixa S/A), Luis Francisco da Silva Carvalho Filho (advogado),
Rolf Kuntz (jornalista)
Editor Carlos Costa
Editor de arte Ricardo Assis
Repórter Sérgio Praça
É preciso estar atento e forte
6
entrevista António Francisco de Araújo Lima Cluny
Ainda há lugar para o otimismo
14
por Carlos Guilherme Mota
Libelo contra o pensamento único
21
por Pilar Rahola
Terror global, o inimigo sem rosto
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S
CEP 01310-100, São Paulo, SP, tel. 3256 6781, fax. 3258 5912.
er um espaço que privilegie o diálogo e o debate
é o que esta publicação se propõe, a partir de seu
próprio nome. E este número procurou seguir à
risca essa missão. Há esse tom da abertura para
novas idéias e de busca de contrastes nas entrevistas, nos depoimentos, ensaios, reportagens e artigos que
aqui reunimos. São textos que trazem visões diferentes e,
por isso, ricas sobre temas diversos – como se a revista se
apresentasse como um ponto de encontro para essa troca.
Há diálogos de peso, como os estabelecidos com o jurista
António Cluny, com o desembargador Celso Limongi e com
o professor Alcir Pécora. Procurador-geral adjunto do Tribunal de Contas de Portugal, Cluny fala sobre o atual momento do Judiciário em seu país, os efeitos dos movimentos do mundo globalizado na concepção dos direitos do cidadão e dos esforços que se realizam hoje em Portugal para
a consolidação de uma visão comum da Justiça. Presidente
da Apamagis, o desembargador Limongi aponta o desvio
de foco provocado pelo Executivo na reforma do Judiciário e nas pressões exercidas para que se aprove rapidamente a proposta, mesmo perdendo-se a oportunidade de conseguir o melhor. E Alcir Pécora, crítico literário e professor
da Universidade de Campinas, um dos maiores especialistas
na obra do padre Antônio Vieira, fala por que vale a pena
resgatar e ler hoje o autor dos Sermões, descobrindo novas
propostas na “geografia” desse mestre do idioma.
Há também debates que se propõem aprofundar análises, com destaque para as colaborações do historiador Carlos Guilherme Mota, do geógrafo Demétrio Magnoli e da
ex-deputada espanhola Pilar Rahola. Mota analisa o mo-
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A P R E S E N TA Ç Ã O
Colaboraram neste número: Adriana Tintori, Carlos Guilherme Mota, Débora
Mismetti, Demétrio Magnoli, Fábio Fujita, Fernão Ketelhuth, Henrique Kipper,
Marcello Simão Branco, Patricia Moterani, Paula Barrozo, Pilar Rahola, Ricardo
Arnt, Tiana Chinelli, Vanessa Barbara.
Editoração eletrônica Negrito Design Editorial
Coordenação editorial César Lacerda
Projeto gráfico Ricardo Assis • Negrito Design Editorial
Arte Tomás Martins • Ana Paula Fujita
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D E S Ã O PA U L O
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A revista diálogos&debates é uma publicação trimestral da Escola Paulista da Magistratura, órgão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Números atrasados podem ser solicitados (de acordo com disponibilidade de estoque) à Assessoria de Imprensa, a/c de César Lacerda, Escola Paulista da Magistratura, Rua da Consolação, 1483,
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diálogos&debates junho 2004
por Demétrio Magnoli
Ministério Público, o quarto poder?
31
por Sérgio Praça e Patricia Moterani
Reforma: o Executivo precisa desviar o foco
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entrevista Des. Celso Luiz Limongi
Um desenvolvimento possível na Amazônia
42
por Ricardo Arnt
Uma Constituição para a Europa
46
por Marcello Simão Branco
São Paulo na prateleira, os livros dos 450 anos
50
por Fernão Ketelhuth
Juizado itinerante
53
por Vanessa Barbara
Documentário: quando a ficção não dá conta de tudo 56
por Fábio Fujita
Por que ler o padre Vieira hoje
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entrevista Alcir Pécora
A lógica dos paulos nogueiras
por Sérgio Praça
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mento atual brasileiro, com o país sob a “nova direção” petista – e se define um otimista. É preciso tempo, diz ele, para
mudar mentalidades. E o novo governo começa a dar sinais
de que está encontrando caminhos, acredita. Uma corajosa atitude, a do professor, de remar contra a onda de ceticismo que parece se abater no país após 18 meses da nova
governança. Magnoli escreve um ensaio sobre o grande fenômeno de nosso tempo de tensões difusas. Em Terror global, o inimigo sem rosto, aprofunda conceitos como o fundamentalismo e o terror desterritorializado, desconstruindo o
discurso da “guerra ao terror”. A ex-deputada Pilar Rahola,
chamada de Joana D’Arc catalã, enviou um polêmico artigo, Um libelo contra o pensamento único, em que, no estilo
do famoso “eu acuso”, de Émile Zola, investe contra o que
considera a hipocrisia da esquerda européia, tachada por
ela de anti-semita.
O Ministério Público está se constituindo em um quarto
poder? Essa pergunta é respondida por Sérgio Praça e Patricia Moterani, numa reportagem que aborda as acusações de
partidarismo e de manipulador da mídia, feitas ao MP, e as
às vezes tensas relações que mantém com o mundo político. O cientista político Marcello Simão Branco comenta as
marchas e contramarchas da nova Constituição européia. O
jornalista Ricardo Arnt, um especialista em desenvolvimento sustentável, escreve sobre alternativas de desenvolvimento para a Amazônia. Há ainda ótima leitura sobre livros publicados pela ocasião dos 450 anos da cidade de São Paulo,
a onda de documentários no cinema e como funcionam os
juizados itinerantes. Boa leitura e até setembro.
Carlos Costa
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é preciso estar atento e forte
ENTREVISTA ANTÓNIO CLUNY
POR CARLOS COSTA
O procurador-geral do Tribunal de Contas de Portugal fala sobre os caminhos do
Judiciário em seu país, os efeitos da globalização na concepção dos direitos do
cidadão e o trabalho de consolidação de uma visão comum da Justiça
O
jurista António Francisco de Araújo Lima Cluny,
procurador-geral adjunto do Tribunal de Contas português, exibe longa folha corrida. Começou na careira como estagiário logo após o curso
na Faculdade de Lisboa, no final de 1977, indo a
seguir para a promotoria em Grândola e assumindo depois
o cargo de procurador (promotor) substituto da República
nos Açores. Dali foi promovido para Cascais, antes de ser
nomeado procurador da República na Corte Criminal de
Lisboa. Nos anos 90, passa a procurador da República em
Sintra e depois Cascais, chegando a procurador-geral adjunto na Corte Suprema e no Tribunal de Contas, onde trabalha atualmente. Presidente por quatro vezes do Sindicato
dos Magistrados do Ministério Público, António Cluny foi
diretor da Revista do Ministério Público, faz parte do conselho editorial da Revista do Tribunal de Contas e é membro da direção de Civitas, associação de proteção de direitos dos cidadãos. Foi em seu gabinete no Tribunal de Contas que recebeu a reportagem de Diálogos&Debates para esta
entrevista. Coordenador dos estudos portugueses pela busca de uma cultura jurídica comum e autor do livro Pensar o
Ministério Público hoje, Cluny falou sobre o atual momen-
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to do Judiciário em Portugal, os efeitos dos movimentos do
mundo globalizado na concepção dos direitos do cidadão e
sobre a consolidação de uma visão comum da Justiça. A seguir, alguns momentos da conversa.
diálogos&debates Qual foi, historicamente, sua área de maior
atuação?
antónio cluny Estive sempre mais ligado às questões da organização do Judiciário e ao papel do Ministério Público
na organização da Justiça em Portugal, especificamente as
relações entre o Ministério Público e o Poder Judiciário. É
bom lembrar que em Portugal, diferentemente de Espanha,
o Ministério Público é pensado e concebido na Constituição
como um instrumento do Poder Judiciário. Não é um poder
exterior ao Judiciário, como na Constituição brasileira.
diálogos&debates E nem está ligado ao Executivo?
antónio cluny Ele é autônomo em relação ao Executivo, é
considerado um órgão do Judiciário. A concepção que se
tem é de que o Judiciário, para ser poder, precisa de um órgão de iniciativa, só é poder se tiver, de fato, capacidade de
exercer sua função por meio de um órgão próprio. A fun-
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tivo para punir. Ele antecipou o que isso significaria como
perda da independência para o Judiciário e para a igualdade da lei. Depois veio o desenvolvimento do processo revolucionário francês, passou-se ao sistema napoleônico, em
que o MP se transformou, de fato, num braço armado do
Executivo, junto ao Judiciário. Essa questão foi discutida no
passado recente, mas a imagem do Judiciário estava muito
degradada por causa do seu comportamento durante o regime do Vichy e De Gaulle quis manter algum instrumento,
de fato forte, de controle. Nos últimos tempos do governo
Mitterand e, depois, na Presidência de Chirac, discutiu-se a
questão da autonomia do Judiciário, com promessas de uma
maior autonomia, mas na prática isso não ocorreu.
“Um país não é só composto por
maiorias e minorias. É composto por
um povo inteiro, que se revê num
pacto que é a Constituição”
diálogos&debates Até porque não é do interesse de nenhum
Executivo...
antónio cluny Penso que não é. Mas houve a tentação de dar
uma idéia maior de autoridade e de independência ao Judiciário francês.
ção de julgar é, por natureza, neutra. Ora bem, para o Judiciário ser um poder soberano, precisa de um motor que
lhe permita funcionar independentemente da vontade das
partes. O Ministério Público é esse instrumento operacional do Judiciário, que permite tentar que a lei se aplique por
igual a todos, viabilizando o Judiciário como um poder. Não
é como na França, onde o Judiciário não é um poder, mas
uma autoridade. Exatamente porque, na França, o Ministério Público é um órgão de ligação entre o Executivo e o Judiciário, mas depende do Executivo.
diálogos&debates Em Portugal, como se gestou esse modelo do MP associado ao Judiciário? Vem da Constituição de 1976?
antónio cluny Sim, embora a Constituição de 76 ainda não
dissesse claramente que o MP é autônomo, está nos termos da lei. Mas na primeira revisão da Constituição já se
fala em sua autonomia, nas seguintes se dá corpo, dizendo
em que consiste essa autonomia e, portanto, há um processo lento, de 1976 até agora, de concretização desse modelo.
Há alguns ziguezagues, mas mantendo sempre essa idéia
de que a autonomia do Ministério Público era fundamental para o bom desempenho e a independência do Judiciário. Hoje penso que é relativamente unânime no seio dos
juristas portugueses, mesmo daqueles que eram contra, que
um Ministério Público autônomo é fundamental, até para
categorizar o sistema de Justiça.
diálogos&debates Aliás, é curioso como a França, o berço da cultura moderna da divisão dos três poderes, com
Montesquieu, acabou não mantendo essa separação dos
três poderes.
antónio cluny Essa questão foi sempre controversa, mesmo
com a Revolução Francesa. Na altura da Assembléia Nacional Constituinte (1789-1791) francesa, ouret, jurista e deputado, já discutia a ligação do Ministério Público com o
Executivo. Contrário a essa idéia, ele dizia que seria terrível
entregar ao Executivo a “vara da acusação”, armar o Execu-
diálogos&debates No Brasil há uma discussão, provocada
pelo Executivo, sobre um controle externo do Judiciário.
antónio cluny Bom, uma coisa é o Judiciário ser autônomo
e independente. Outra é efetivamente haver um sistema de
auditoria, de verificação da atuação do Judiciário. Em Portugal resolvemos isso introduzindo, no Conselho Superior
da Magistratura do Judiciário e no Conselho do Ministério
Público, elementos do poder político, em posição paritária
com os membros eleitos pelos magistrados. Aqui, a designação “magistrado” serve tanto para os promotores como
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para os juízes. No Conselho Superior do Ministério Público há cinco membros designados pelo Parlamento e dois
membros designados pelo Executivo. E sete procuradores
eleitos pelos seus pares. E o mesmo ocorre com o Conselho Superior do Judiciário: cinco membros designados pelo
Legislativo e dois indicados pelo presidente da República. E
os juízes escolhem seus sete representantes.
diálogos&debates Sete e sete?
antónio cluny Sete e sete, um órgão autônomo. Embora escolhidas pelo Parlamento e pelo governo, essas pessoas externas à Magistratura não estão ali em representação dos
órgãos que as escolheram, mas com sua própria autonomia
para participar em pé de igualdade. Isso dá uma certa garantia de que as magistraturas não funcionam sem controle.
Discute-se se essa composição não deveria ser alterada, há
quem pense que os membros designados pelo poder político
deveriam ser majoritários, mas há o consenso de que é importante manter esse paralelismo e equilíbrio, para uma autonomia efetiva das magistraturas. Até agora tem dado bons
resultados. Poder-se-ia desenvolver mais a técnica de auditoria no seio das magistraturas para ver se as coisas funcionam bem ou mal. Esse é ainda um trabalho longo.
diálogos&debates Não há aqui a impressão de que não agrada ao Executivo um Judiciário muito independente?
antónio cluny Às vezes os partidos têm essa tendência, varia
de acordo com quem está no poder. Há partidos que ainda têm uma certa tradição jacobina, não é? É curioso notar,
aqui em Portugal, que depois do 25 de Abril era a esquerda que não estava disposta a dar autonomia ao Judiciário.
E foi a direita que efetivamente mais pugnou por essa autonomia. Mas, com a mudança sucessiva dos governos, ocorreu o contrário: a esquerda passou a defender mais a autonomia, e a direita a opor-se. E qualquer dia isso vira outra
vez. Mas no final existe um consenso de que a independência do Judiciário é necessária. Porque com o juiz sendo uma
figura neutra do sistema, se o Ministério Público for dominado por uma política concreta de determinado governo
ou partido, não se operacionaliza a igualdade. A aplicação
da Justiça tem de ser referenciada e legitima-se em função
dos valores constitucionais, não em função de uma determinada maioria política. Afinal, um país não é só composto
por maiorias e minorias. É composto por um povo inteiro,
que se revê num pacto que é a Constituição. E esse consenso está, hoje, relativamente consolidado em nossa sociedade, embora com limites e com variantes.
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“Os governos hoje são mais agências
de competitividade econômica do que
instrumentos para promover o
bem-estar e fazer cumprir a lei”
diálogos&debates Sobre essa influência de quem detém o
Executivo, o que ocorre na Itália é exemplar. É o país europeu onde o Judiciário ganhou maior expressão e, no entanto,
com o governo Berlusconi, há pressões de todos os lados para
engessar essa independência. Algumas afirmações do chefe
do Executivo à magistratura são abertamente ofensivas.
antónio cluny De fato, não há país nenhum na Europa com
um Judiciário tão autônomo como o da Itália. O próprio
Ministério Público ali segue um modelo não hierarquizado. Não há uma cadeia hierárquica centralizada, como há,
por exemplo, em Portugal, na Espanha ou na França. Apesar de o Ministério Público em Portugal ser autônomo e o
espanhol e o francês não o serem, o modelo de organização
nesses países é construído da base para o topo. Há um procurador-geral, portanto há uma cadeia hierárquica formal.
Na Itália não há sequer a figura do procurador-geral, tudo se
resolve em âmbito local. Há um procurador junto à Corte di
Casazione, que é o Supremo Tribunal, mas ele não tem poder hierárquico sobre as procuradorias dos outros tribunais.
Funciona, de fato, um sistema descentralizado e autônomo, o
que permitiu o florescimento de ricos processos, como o das
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“mãos limpas”. Agora, é claro que as pessoas e os grupos econômicos atingidos estão retaliando de maneira direta. Há aí
outro problema, que não é da magistratura, mas do próprio
Estado de Direito. No fundo, o respeito pela Lei, pela idéia
do Estado de Direito, é uma aposta na utopia, desenvolvida
no mundo ocidental como contraposição à utopia do socialismo do outro lado do muro de Berlim.
diálogos&debates E com a queda do muro de Berlim a utopia perdeu vigência?
antónio cluny Com ela, caíram duas utopias, não apenas a do
socialismo, mas também a utopia do Estado de Direito, que
eram os dois contrafortes do mesmo muro. Hoje os que defendiam o Estado de Direito como modelo a seguir já lidam
mal com essa idéia. O processo de globalização, sobrepondo
a idéia da competitividade das economias nacionais, interferiu no âmbito da ação governativa. Hoje os governos nacionais são mais agências de competitividade econômica do que
instrumentos para promover o bem-estar e fazer cumprir a
lei ou as Constituições. Os valores hoje estão dispersos, pondo em causa a própria idéia de uma Constituição e leis baseadas em valores, como a busca do bem-estar social. Pois essa
busca, agora, contraria interesses – mais do que isso, se choca
com os interesses das grandes corporações. E isso se reflete
na Itália, na Europa em geral, na América, em todo o mundo.
A idéia de que somos todos iguais perante a lei começa a tornar-se pouco cômoda. Somos todos iguais, mas há uns mais
iguais que outros. E, portanto, não é difícil ver como todo o
edifício, toda a construção do estado social vem sendo destruída sucessivamente nesse processo de uma globalização
fundamentalmente capitalista.
diálogos&debates Os Estados Unidos invadindo o Iraque à
margem de resoluções da ONU é tradução disso?
antónio cluny É um exemplo claro de que a idéia do estado de direito em âmbito nacional e internacional deixou
de ser uma necessidade e uma aposta na utopia. Mas há
outros exemplos mais. Quando se mudam os códigos de
trabalho em Portugal, tentando reduzir direitos dos trabalhadores, se está mostrando que hoje o valor que interessa preservar não são os direitos sociais, mas a competitividade da economia – e de uma economia que nem mais
é a “nossa”. Outro exemplo é a desarticulação do sistema
nacional de saúde, entregue a setores privados, em detrimento da atenção às pessoas mais desfavorecidas. Aquela
idéia que tínhamos de um estado social de direito deixou
de fazer parte de uma realidade consistente. Isso se reflete claramente na própria idéia do poder das magistraturas. No mundo atual, ninguém precisa ou quer que apareça um juiz dizendo: “Aqui está uma lei que precisa ser
aplicada igualmente a todos”. Isso é coisa de outros tempos, dirão, hoje não é mais assim, as coisas mudaram. A
idéia dos valores constitucionais, da igualdade, começa a
ser questionada. Aqui mesmo, em Portugal, um partido da
atual coligação governista pretendia num projeto de revisão constitucional substituir o conceito de igualdade pelo
de “eqüidade”, que já não seria bem a igualdade do cidadão perante a lei. A própria idéia da igualdade repúblicana começa a ser posta em causa por partidos, organizações ligadas às megacorporações.
diálogos&debates No jornal O Público de hoje uma deputada protesta contra uma lei que está em votação, permitindo que uma empresa seja fechada em 15 dias, num processo relâmpago. Na contramão de tudo o que foi a luta social
dos séculos XIX e XX.
antónio cluny Toda a idéia do trabalho como uma força estruturante da vida das pessoas tende a desaparecer. O con-
“A idéia de que somos todos iguais perante a lei começa a tornar-se pouco
cômoda. Somos todos iguais, mas há uns mais iguais que outros”
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“O conceito de trabalho como valor que permite a construção da pessoa
humana está sendo posto em causa de maneira brutal: ele é apenas
mercadoria, e mercadoria negligenciável”
ceito de que o trabalho não é só um direito, mas um valor
moral que permite a construção da própria pessoa humana,
está sendo posto em causa de uma maneira brutal, radical
e desumana. O trabalho é visto apenas como mercadoria, e
mercadoria negligenciável.
diálogos&debates O que chama a atenção é que as pessoas
afetadas por isso parecem preocupadas apenas com o novo
modelo de telefone celular. Há uma alienação por um consumo conspícuo?
antónio cluny Sem dúvida. Por um lado, os chamados novos meios de comunicação isolam cada vez mais as pessoas. Há alguns anos elas conviviam, saíam do trabalho e iam
tomar um copo de vinho juntas. Hoje isso se perdeu em
Portugal. Agora saem direto para casa, para ver a telenovela. Isolam-se. Nas residências mais abastadas, há um aparelho de TV em cada quarto: a própria família nem sequer
se reúne para ver um filme na televisão. Com uma tecnologia cada vez mais avançada na área das comunicações, nos
isolamos mais. Mesmo a internet, meio de comunicação e
participação com importante papel em algumas movimentações sociais, acaba isolando ainda mais as pessoas. Elas
perderam a idéia de que o local de trabalho é também um
espaço de camaradagem e não percebem que a estratégia
tem sido colocá-las sozinhas perante si, com a consciência
de que têm uma grande comunicação, que realmente não
têm. Isso leva a uma alienação e uma falta de consciência
coletiva dos direitos. O cidadão não percebe que mesmo os
direitos individuais que tem são resultado de lutas coletivas. Para alcançar os direitos mais simples que temos hoje,
consagrados na Constituição, foram precisos anos de luta
para serem coletivamente conquistados. E agora têm de ser
coletivamente defendidos. Pessoas cada vez mais isoladas,
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segmentadas e despolitizadas: essa é a grande vitória do capitalismo nos últimos anos.
diálogos&debates A própria “democracia midiática” tem sido
outra tática. Deixa-se de recorrer à Justiça e se vai pedir a
intermediação de apresentadores de televisão, para casos de
reconhecimento de paternidade, por exemplo.
antónio cluny Aqui também já houve programas desses. Há
um filósofo francês, o François Evald, que num artigo tratava disso de maneira curiosa. Diz ele que, havendo um litígio, as pessoas hoje querem, mais do que um reparo ou
uma punição, que o outro assuma publicamente sua responsabilidade. As punições tradicionais (prisão, multa) perderam o significado em confronto com a idéia de “assumir
a culpa em público”, como se a vida fosse um reality show.
Isso transforma os meios de comunicação social: já não se
trata da competição entre os meios e o aparelho judiciário,
no sentido de ver quem descobre antes a verdade – e isso já
causou muitos transtornos aqui. Às vezes ocorreram casos
dramáticos, pois os meios de comunicação social não estão
sujeitos aos mesmos mecanismos e rituais que os órgãos judiciais na procura da verdade. Agora a questão é mais complexa: é que efetivamente, a exposição do “outro” à televisão produz, já por si, um sistema de punição e de expiação
de culpa, já não é a sentença que o sistema judicial produz.
Portanto, a esse nível também, assiste-se a uma deslegitimação da função do aparelho judicial.
diálogos&debates O senhor é um dos coordenadores dos estudos pela busca de uma “cultura jurídica comum”, em Portugal. De onde vem isso?
antónio cluny Isso vem exatamente de muitos dos problemas
que estivemos até agora conversando. Em Portugal, o siste-
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ma fragmentou-se de tal forma em juízes, promotores, advogados, com culturas cada vez mais fechadas e corporativas, chegando a um ponto em que cada corpo profissional
produz um discurso que começa a ser ininteligível para os
outros corpos profissionais. Ora, o sistema judicial tem de
adotar um discurso comum para socialmente se legitimar
e produzir resultados úteis. Durante muitos anos, a formação dos advogados e dos magistrados era comum, pois era
preciso começar pelo Ministério Público para chegar mais
tarde ao posto de juiz. A formação era feita nas barras dos
Tribunais, onde estagiavam os jovens advogados e promotores, todos se conheciam. Afinal, havia apenas duas faculdades de direito, a de Coimbra e a de Lisboa. Criava-se um
respeito pelo conhecimento técnico do outro, pela profissão, pela arte do outro. E o sistema funcionava nesse respeito mútuo. Com a criação das escolas das magistraturas, no
final dos anos 70, apenas os advogados continuaram com o
estágio tradicional. Os promotores e juízes eram formados
por suas respectivas escolas. E começaram a desenvolver linhas de pensamento diferentes.
diálogos&debates Quantas escolas de Direito há hoje em
Portugal?
antónio cluny Umas 60. Nascem como cogumelos. Há cerca
de 30 mil advogados no país! Há boas faculdades, algumas
“Os meios de comunicação isolam
cada vez mais as pessoas: elas
estão segmentadas e despolitizadas
– e essa é uma vitória do capitalismo”
estatais, poucas privadas, e das outras muitas têm dificuldades. Com essa proliferação, foram-se criando culturas distintas. A advocacia pensando-se a si própria, a magistratura com seu discurso interno, fechado em função do próprio
desempenho profissional. Cada um defendendo os interesses que deve defender, mas sem perceber o papel que o outro desempenha – como naquele filme do Fellini, O ensaio
de orquestra, com os instrumentistas tocando sozinhos, não
percebendo que a Justiça não é isso. A necessidade de reencontrar uma cultura judiciária comum é a única forma de
evitar essa cacofonia que hoje ocorre em nosso sistema judiciário, e que veio à tona no clamoroso escândalo da Casa
Pia, um caso de pedofilia envolvendo personalidades e que
mobilizou a sociedade portuguesa. Quem ouvia as entrevistas de advogados, juízes e promotores pensava que se tratavam de histórias diferentes, realidades diferentes, processos e
leis diferentes. Buscar uma cultura jurídica comum é a única
forma de voltar a dar alguma coerência e funcionalidade ao
sistema, tornando-o respeitável perante a sociedade.
diálogos&debates Em que se traduz essa busca da cultura
jurídica comum?
antónio cluny Primeiro, em uma formação inicial conjunta
para advogados, promotores e juízes. O candidato deveria
saber, antes de decidir a carreira a seguir, como funciona
um escritório de advocacia, como é a ética profissional do
advogado, por que ele deve se comportar; e como funciona um tribunal por dentro, como um juiz trabalha, saber o
que faz o promotor. Essa compreensão total do sistema, da
cultura dos outros corpos, é fundamental para evitar a falta
de sintonia que ocorre agora entre nós. Os advogados, pela
sua própria posição no mercado de trabalho, têm uma proximidade muito maior com a realidade do que os magistrados. Eles lidam com a realidade pura e crua, trabalham nas
empresas, nos sindicatos, fazem os contratos, sabem como
a economia funciona. Os magistrados, ao terminar os cursos de Direito, concorrem às escolas de Magistratura sem
contato com os trâmites da vida real, acabam funcionando
como “em seminários”. Falta-lhes, no mais das vezes, uma
visão da realidade, que conhecem por meio das folhas de
processo. É necessário reinventar o sistema de formação,
criando um tronco comum de formação e um sistema que
permita ao magistrado conhecer a realidade tal qual ela
existe, sem ser nas folhas do processo, e aos advogados saber como é o cotidiano do juiz.
diálogos&debates E a prática não proporciona isso.
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antónio cluny Por isso é necessário encontrar fórmulas novas que permitam essa compreensão da realidade pois, senão, a justiça cai num formalismo, não correspondendo aos
anseios atuais, entendendo a realidade de um ponto de vista estritamente normativo. Precisamos de um sistema efetivo e eficaz.
diálogos&debates Há hoje um bom número de ações fora
do tribunal, composições feitas em escritórios de advocacia, para fugir ao ritual do Direito, um viés do certo modelo americano. Como o senhor vê isso?
antónio cluny Eu não tenho dúvida que esse movimento
de informalização da Justiça comporta, por um lado, um
aspecto positivo no que diz respeito à pequena criminalidade, até por tirar a carga pesada que o tribunal tem. Desde que não se retire do cidadão o direito a recorrer a um
tribunal estatal. Mas a tendência hoje, no fundo, principalmente na área do trabalho, na área do consumo, e até
em outras áreas, como a ambiental, é de fugir à garantia
judiciária, ao direito que o cidadão tem de ver o seu caso
apreciado por um tribunal independente. E isso é perigoso: em nome da eficácia, acaba-se por destruir também a
efetividade da Justiça. Pois, perante esses meios informais
de justiça, quem tem mais poder tem mais condições para
negociar. Não é por acaso que no sistema criminal dos
EUA, por meio da prática do “plea bargaining”, é raríssimo que se condenem pessoas ricas e poderosas. Elas conseguem negociar bem. Os condenados quase sempre são
os pobres e as minorias desfavorecidas. Por isso é preciso cuidado com a informalização, para não correr o risco
de ficar para a Justiça apenas o papel de castigar e reprimir, ou de ter a Justiça ou a educação ou a saúde provida
pelo Estado apenas para os desgraçados, os que não têm
onde cair mortos.
uma situação difícil. Uma África cada vez mais pobre, uma
desterritorialização das empresas, num sistema de globalização econômica cruel, pois não impõe a contrapartida de
uma globalização dos direitos sociais. As empresas vão para
os lugares onde enfrentem menos garantias sociais e possam pagar salários mais baixos. A tendência será um agravamento desse quadro e é preciso insistir e estar preparado
para uma luta que será dura.
diálogos&debates Mesmo em Portugal, com todo o suporte
da Comunidade Européia?
antónio cluny Portugal pode ser um dos bons exemplos: quase não se chegou a construir um Estado social e já está tudo
sendo desmontado. A globalização foi uma miragem. No
fundo, com a queda do muro de Berlim e o desaparecimento do comunismo, viu-se que a idéia de um capitalismo reformável, com um rosto humano e social, o que se chamou
de a “terceira via”, se desmanchou no ar. Talvez com mais
dificuldade na Europa, mas caminhando em ritmo assustador para uma igualização de modelos. Por isso digo que
Portugal é um exemplo: o esforço de reconstruir o país depois da Revolução, de mudar mentalidades, nem chegou a
dar frutos e está sendo desmantelado. Mas isso é algo que
todos teremos de pensar, por que aconteceu... Agora, o trabalho para conter isso é complicado. 
“A globalização foi uma miragem e
Portugal é um bom exemplo: não
chegou a construir um Estado social
e já está tudo sendo desmontado”
diálogos&debates No contexto de tudo o que se falou, o senhor se sente otimista, cético ou pessimista?
antónio cluny Bem, nós que participamos da Revolução de
Abril tínhamos a sensação de que não ia ser fácil. Mudar
mentalidades é uma tarefa difícil e quem pensou que era
fácil agora está do outro lado da trincheira, pois é preciso
força moral para se manter fiel a um ideário. Não é questão
de otimismo, mas de persistência. É preciso insistir, quer se
esteja mais otimista, quer se esteja menos otimista, porque
o caminho se faz ao caminhar. Portanto, é não parar, não desistir, é tentar ir agarrando as pontas quando possível, pois o
mundo seguirá seu caminho. Mas é certo que atravessamos
E N T R E V I S TA
junho 2004 diálogos&debates
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ainda há lugar para o
otimismo
Já se fez muita coisa, mas falta ao novo governo medidas
fortes que sinalizem soluções efetivas para problemas
que se acumulam há século e meio
POR CARLOS GUILHERME MOTA
Ilustração Kipper
S
14
diálogos&debates junho 2004
im, continuo otimista, meu otimismo permanece. Quando dei a entrevista para a revista
Diálogos&Debates, em setembro de 2002, disse que tínhamos, pela primeira vez, uma trinca
de bons candidatos. E, de fato, um dos três bons
candidatos levou, ganhou... e veio com uma proposta nova,
tentando romper o que denominamos de modelo autocrático-burguês. O teste histórico era e permanece sendo este.
Mas convém desde logo não esquecer que o modelo autocrático, como bem detectou o professor Florestan Fernandes, tem raízes histórico-estruturais profundas. Não é simplesmente algo que se formou do governo de Medici ou Ernesto Geisel para cá, como apontou recentemente o cientista político Bolívar Lamounier, numa entrevista ao jornal
O Estado de S. Paulo.
Ampliando uma análise do presente, ele foi buscar, não
agora, no período recente, no governo de Fernando Henrique Cardoso, as raízes dos problemas que a administração do presidente Luis Inácio da Silva Lula vem enfrentando. Lamounier foi buscar na época de Geisel, ampliando
em 30 anos o quadro. Mas eu iria ainda mais longe, pois
D E P O I M E N TO
(DEPOIMENTO A CARLOS COSTA)
esse modelo autocrático deita suas raízes na tradição estamental-escravista da Colônia e do Império. Então, esse modelo é um modelo histórico pesado, sobretudo quando se
leva em conta que vivemos quase 400 anos de regime escravista, e isso tem a ver com a permanência desse modelo
de dominação. Assim, nada mudará tão facilmente, como
num passe de mágica. E os quadros mentais mudam mais
lentamente ainda.
O governo de Fernando Henrique Cardoso conseguiu,
de certa maneira, dar um passo adiante, na medida em que
procurou alguma transparência para os processos econômicos e sociais, apesar das composições amargas que se foram fazendo. Intelectual preparado, ele foi sentindo que o
tal modelo não se desmonta pela via liberal-democrática
tradicional. Ele próprio teve de dar uma série de golpes de
mão, sobretudo pelas Medidas Provisórias, para poder chegar com relativo sucesso ao final de seu mandato. Já agora, o governo Lula tenta controlar esse processo e também
percebe o quanto esse modelo é historicamente estrutural,
que não se reinventa a história, não se quebra facilmente
essa história, não se faz ruptura só por querer. O novo pre-
junho 2004 diálogos&debates
15
sidente percebeu isso desde a entrada, ao incluir em sua equipe de governo figuras como o presidente do
Banco Central, Henrique Meirelles,
ou como o ministro do Planejamento, Guido Mantega. Mantega é um dos
petistas da linha mais suave, mais so,
do grupo que se deu conta de que há
uma inserção complicada do Brasil em um contexto mundial. Que o
problema da dívida externa, para ficar num exemplo, não se resolve com uma decisão unilateral – e há uma dívida imensa ainda a pagar. E isso não veio
só do governo Fernando Henrique, mas se ampliou no governo Fernando Henrique. Como a dívida interna também.
Meu otimismo, mesmo o da época da entrevista, qualquer
que fosse o candidato eleito, era já um otimismo relativo,
porque não existem receitas mágicas para resolver problemas que vêm de longe.
Qual é a razão para manter ainda hoje um certo traço de
otimismo? É no sentido de que mesmo aquela meia transparência do período Fernando Henrique Cardoso não criou
condições de se manter, porque os conflitos sociais se agravaram muito, foram ampliadas frentes daquilo que denominávamos “a nova sociedade civil”, motivo principal do
nosso otimismo às vésperas das eleições. Estávamos diante
dos tais “novos paradigmas” de que fala o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos.
A diferença é que tem mais gente agora empenhada em
buscar outros paradigmas e tem mais gente fazendo e entrando na história. O professor Paul Singer me contava, recentemente, suas surpresas: “Estou sendo obrigado a lidar,
lá em Brasília, com coisas muito novas que não sei ainda
como classificar”, dizia. Movimentos sociais novos como,
por exemplo, os quilombolas. Quilombolas que não têm
exatamente uma atitude de enfrentamento e contestação,
como o MST, mas têm, sim, uma atitude de fixar posições e
consolidá-las. De inserir suas teses e propostas no contexto
de reivindicações que são novas. E o professor Singer falava disso de maneira otimista, como encantado com a existência de novos grupos sociais operando.
Dou esse exemplo dos quilombolas, que para mim, como
historiador, é até algo surpreendente. E o Paul Singer diz:
“Olha, temos de reconceituar o que é movimento social.
Não bate muito com aquilo que estudávamos nos anos 50
e 60, do que era movimento social: as ligas camponesas, os
movimentos urbanos, sociedades de amigos de bairro. Ago-
ra estou tratando com quilombolas,
quer dizer, algumas partes dessa história, que estavam silenciadas, apareceram e estão mostrando suas faces”.
E isso está mudando. Quando se fala
hoje em sem-terra, essa é uma expressão ou designação nova para uma população que já estava presente nos livros de Caio Prado Jr. nos anos 30 e
40. Essa imensa massa de “desqualificados”, no sentido histórico: pessoas que, não sendo escravas, não podiam ser senhores, não
eram agentes de sua história. Mas estavam lá. A diferença é
que agora essa massa começa a se expressar, como os quilombolas e as populações indígenas.
Hoje, relendo os clássicos, a gente vê que essa população
estava lá, o tempo todo. E não apenas a elite dominante, de
recorte estamental-escravista. O Florestan Fernandes dizia
que a nossa visão de cultura permanecia estamental ainda
hoje, uma visão de elite que não tem um viés moderno de
ver os conflitos sociais em sua dimensão própria. Ainda enxerga esses conflitos do alto das cátedras, aquele olhar da
varanda, distante, das assessorias, experts e cientistas políticos que interpretam, como se não fizessem parte dessa realidade que analisam.
Nesse sentido, meu otimismo não existe em relação às
elites. Não sou otimista quanto à avassaladora expansão da
mediocridade, seja nas esferas política, universitária e empresarial, seja na vida jornalística, sindical e religiosa. Vivemos um momento de vacuidade preocupante, padecendo
daquilo que Karl Mannheim chamava de degenerescência
mental (e logo depois veio o colapso da República de Weimar, como se sabe). Por isso meu otimismo não se estende
às elites. Ao contrário, fico cada vez mais cético, sobretudo
quando converso, por exemplo, com lideranças do PFL ou
com o professor Claudio Lembo. Ou quando escuto o dr.
Olavo Setúbal.
Mesmo o governador Alckmin ainda não decolou. Veja o
que ocorre na esfera da Cultura e da Educação, com os secretários Cláudia Costin e Gabriel Chalita: provincianismo
total. Mas algum otimismo persiste em relação às possibilidades desse novo governo. Porque a elite, bem, ainda opera em termos de “costura política pelo alto”. Por isso ela se
prende a essas coisas pequenas, como eventuais atrasos do
presidente, as flores plantadas pela primeira-dama nos jardins do Palácio. Como se dona Marisa Letícia não pudesse
carregar consigo um certo padrão de classe média kitsch…
O prof. Paul Singer me
contava de suas surpresas
em Brasília: “Sou obrigado
a lidar com coisas
muito novas que não sei
como classificar”
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diálogos&debates junho 2004
D E P O I M E N TO
Agora, francamente, perder tempo
com isso é uma visão comezinha.
O próprio “caso Waldomiro”, que
poderia ter sido reduzido a uma
questão de polícia, acabou se transformando, por artes de nossa “elite
estamental”, num vetor paralisante
da burocracia. Quantos Waldomiros
houve em períodos anteriores? Basta
pensar no caso do Joaquim Roriz, que
esteve novamente para ser cassado...
E Roriz, com tudo o que representa, foi apoiado pelos tucanos em Brasília. A oposição tem sido perversa também. E,
diga-se, também a imprensa. A imprensa continua reacionária e macambúzia. Ela é depressiva, porque só faz o que
seu dono mandar. Não se encontra na mídia uma visão um
pouco mais panorâmica sobre o processo que estamos vivendo. Talvez a única exceção seja a TV Cultura. Claro que
Lula escorrega quando não atenta para o rigor do cargo,
para a solenidade e horários, e vem com essa troca infernal
de bonés. São embates de uma democracia, ninguém imaginava que fôssemos passar de Fernando Henrique Cardoso para um modelo sueco, dinamarquês de paz.
Mas a Presidência de Lula não é apenas isso. Tem a contrapartida internacional. O Fernando Henrique já havia
melhorado muito a percepção e o lugar do Brasil, colocou
o país na agenda mundial. Agora, com o aprofundamento
da questão social, essa agenda se explicitou muito mais com
o presidente Lula.
O fato é que tais processos de mudança levam tempo.
Governar exige um treino e um ano é muito pouco para entender toda a máquina estatal e pô-la para operar de modo
satisfatório com um novo modelo e ritmo. É uma mudança
de padrão civilizatório mesmo. E os problemas não ficam
em compasso de espera, dando um tempo para o novo governo se acostumar. Basta ver o caso do banditismo urbano do Rio de Janeiro.
Agora, o quanto tudo isso vai refletir na apreciação externa dos investidores, nesses discutíveis índices de risco
país, já é outra coisa, não sei avaliar. Creio que as pessoas
estão relativamente tranqüilas com o governo Lula. Algumas avaliações de publicações internacionais antes mais otimistas começam a dar sinais menos positivos, o que é normal. O jornal espanhol El País, um entusiasta da idéia de
um operário que chegou à Presidência, já começou a falar
no “declive de Lula”, e publicou há pouco tempo uma matéria mais forte, acusando um começo de desencanto.
Mas o que temos de concreto?
De modo geral, uma equipe nova,
se (de)testando no governo. E aos
poucos os ajustes vão sendo feitos.
Já estamos com uma segunda equipe, mais técnica, operando. Inclusive no Palácio do Planalto. Além daquela primeira chamada da montagem do governo, já houve agora, do
fim do ano passado até fevereiro, um
reaparelhamento e uma aceleração de
alguns programas, como a bolsa-família, bolsa-escola, que
estão operando melhor.
Qualquer mudança implica um processo de aprendizado
até entender-se a situação e começar a pôr a máquina em
ação. Não dá para evitar a lembrança da Revolução Francesa, por ser um exemplo bem conhecido e por mostrar um
processo mais explícito. Nos primeiros momentos da passagem do Antigo Regime, da Monarquia Absolutista, para
o novo modelo, houve grandes problemas.
Primeiro, os girondinos encontraram dificuldades para
dominar a máquina, pois tinham de criá-la e ao mesmo
tempo dirigi-la, e para isso precisaram usar alguns instrumentos do antigo regime. No segundo momento, o dos jacobinos e dos sans-cullottes, talvez o período mais interessante da Revolução, de 1793 a 1794, o período curtíssimo
do Grande Terror, houve esse aprendizado rápido, para terem a máquina sob controle e começar a operar as mudanças. Foram sensacionais aqueles jacobinos, como analisou
Eric Hobsbawm.
O caso do Brasil é um tanto mais complicado, porquanto
essa máquina é extremamente mais complexa – essa imensa
estrutura de poder, que vai do presidente até o último servente de um posto de saúde, passando por ministros, chefes de gabinete, secretários gerais, chefes de seção, auxiliares de escritório. Sem falar do capitalismo internacional pujante e treinado na repressão a movimentos sociais. Renovar esses quadros, mudar diretrizes e procedimentos, e sobretudo mentalidades, em um ano apenas, convenhamos,
é um período muito curto para qualquer avaliação. Acho,
não obstante, que o Lula está mostrando, sim, sinais de fadiga – e isso tem a ver com a complexidade da máquina e
o reacionarismo da imprensa, mais do que com os problemas sociais.
O que se descobriu também foi que o Partido dos Trabalhadores tem menos quadros do que se pensava. Menos
quadros preparados, inclusive para entender a máquina do
Lula escorrega ao não
atentar para o rigor do
cargo e horários, e vem
com essa troca infernal
de bonés. Mas sua
Presidência não é só isso
D E P O I M E N TO
junho 2004 diálogos&debates
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Estado em toda a sua complexidade.
Um exemplo foi a remontagem do
Ministério da Educação. Houve uma
série de impasses, agora no começo
do ano, com a saída do ministro Cristovam Buarque e a entrada de Tarso
Genro. E com a conseqüente descontinuidade na indicação de postoschave, como, por exemplo, a presidência da Capes, órgão fundamental para
a avaliação das universidades. Finalmente, agora temos o prof. Renato Janine Ribeiro na avaliação, o que é um enorme ganho. Então, tem gente sendo
recrutada agora, no segundo momento, que está assumindo, e de maneira muito competente. Mas ainda há autoritarismos inomináveis, como esse de mandar, no Itamaraty,
os diplomatas lerem três livros obrigatórios.
Mas essa falta geral de quadros não é um problema exclusivo do Partido dos Trabalhadores, abrange todos os partidos e a própria máquina administrativa. Veja o que acontece com os tucanos. Quais são as lideranças emergentes do
PSDB, quem são seus candidatos? Que novos nomes estão
surgindo no cenário desse partido? Tirando Fernando Henrique Cardoso, um personagem de alto nível, que começa a
costurar pelas bordas, quais são hoje os nomes de impacto
entre o tucanato? Quais são os seus quadros? O nível não
é alto. O próprio Tasso Jereissati baixou bastante sua imagem. O bem-formado José Serra, em seu estado depressivo
contumaz, parece que cultiva o “anticarisma”. Em São Paulo,
na disputa deste ano para a Prefeitura, com exceção de José
Serra, sobram nomes de peso no PSDB? Não. Esse avanço
atual do PMDB se deve muito – embora não apenas – à ineficiência dos petistas, mas também à dos tucanos em âmbito nacional. E esse avanço do PMDB é algo preocupante.
O PMDB teve sua origem na esquerda como MDB e hoje é
um partido de centro-direita, do tipo fisiológico, e vem ganhando o espaço deixado vazio pelo PSDB.
A falta de uma escola de formação de quadros, de administradores com competência para gerenciar a coisa pública, é um problema grave. Com a exceção do Itamaraty, que
com o Instituto Rio Branco tem um centro de formação de
alto padrão, não existe essa preocupação com a formação de
quadros, de funcionários de carreira. E o Itamaraty, apesar
do citado autoritarismo, vem melhorando sensivelmente,
atento à formação de diplomatas antenados com os desafios
do mundo atual. As poucas tentativas de formação de escolas de estadistas, mesmo as oriundas da universidade, como
é a Escola de Governo, do prof. Fábio Konder Comparato, são esboços
tímidos face ao tamanho do problema. Talvez a Edesp, a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, aqui
em São Paulo, criada pelos professores Ary Oswaldo Mattos Filho e Antonio Angarita, esteja mais direcionada e preocupada em formar bacharéis, advogados e até diplomatas com
uma visão de Estado, com uma visão
atualizada do capitalismo e do mundo dos negócios, com
uma nova dimensão das Relações Internacionais.
Não há uma ênfase, na universidade brasileira de modo
geral, nessa questão. Não se estuda a China, por exemplo.
Nem na universidade nem em outros setores. Poderia ser
o próprio meio empresarial que devesse começar a cuidar
disso, criando uma escola mais voltada a formar quadros,
como é o caso da ENA francesa, a tradicional École Nationale d’Administration. Praticamente todos os ministros e
altos funcionários da administração pública francesa passaram por seus bancos, falam uma linguagem comum, sabem como conduzir a máquina. Não temos nada disso aqui,
a cada troca de governo reina a improvisação, completandose cargos com apadrinhados quase sempre despreparados
– o critério é político, o de “moeda de troca”, não a provisão
com técnicos e o critério da competência. Alguém saberia
dizer o que Paes de Andrade está fazendo como embaixador em Portugal?
Esse improviso faz lembrar a crônica do João Ubaldo
Ribeiro, em que ele perguntava: “E a incompetência, onde
fica?” Porque a incompetência não é só uma questão do
governo do PT. Aliás, esse governo vai fazendo muita coisa
boa. Basta uma análise por setores. O Roberto Rodrigues
vem fazendo uma boa gestão à frente do Ministério da Agricultura. Não se pode negar que o empresário Luiz Fernando Furlan é um homem preparado e leva com competência o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior. Embora eu não concorde com muitos aspectos –
e não sendo um economista tenho pouca possibilidade de
uma avaliação crítica responsável –, o Antonio Palocci se
revela um bom ministro da Fazenda. São pessoas que entendem. Não podemos falar de incompetência nesses casos.
Nesse sentido, o que se pode criticar é a ausência da proposta socialista, que esteve presente no discurso do primeiro
ou do segundo Lula. Porque não sei se o atual já é o terceiro ou o quarto Lula, vamos dizer assim [risos].
Com exceção do Itamaraty,
que tem no Instituto
Rio Branco um centro
de alta excelência, não
existe preocupação com a
formação de quadros
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diálogos&debates junho 2004
D E P O I M E N TO
Agora, continuando a análise, a política externa melhorou, melhorou bastante, de Celso a Celso. Se o Lafer deixara um trabalho consistente, na sua busca pelas “simetrias”, o
Celso Amorim parece ter uma visão mais terceiro-mundista
e pragmática, e não menos capitalista por isso, diversamente
do que pensa Fernando Henrique. Está direcionando a área
de atuação do Itamaraty para a China, onde esteve agora, já
foi à Índia, numa operação oportuna de remapeamento do
mundo. São contatos e alianças estratégicas – e a vitória do
Brasil contra os Estados Unidos, na Organização Mundial
do Comércio, na pendência sobre os subsídios do algodão,
é resultado dessa competência dos quadros formados pelo
Instituto Rio Branco, no Itamaraty. Mesmo em relação ao
conflito Iraque e Estados Unidos e Inglaterra, o Itamaraty
teve uma posição muito lúcida.
E há medidas fortes sendo tomadas. Na área da Cultura, por exemplo. Lula acertou com a indicação de Gilberto Gil: com todas as críticas que foram feitas, está se saindo
muito bem, soube cortar na carne quando precisou. E conduz uma política cultural coerente. Ou seja, há razões para
o otimismo, como se vê. A questão é que os problemas dessa história não resolvida avultam. Seria ingênuo esperar resultados concretos em um ano e meio, quando oito anos de
governo de Fernando Henrique Cardoso não trouxeram as
soluções todas que se esperavam. Talvez o mais grave dessa história seja que o modelo autocrático que carregamos
há século e meio nas costas não se desmonta tendo como
lideranças velhos nomes do mandarinato nacional, como
são José Sarney, Antônio Carlos Magalhães, Renan Calheiros, Jorge Bornhausen, atuantes no cenário com a força que
têm. E a lista é muito maior, imensa.
Por outro lado, sou menos otimista... como professor de
arquitetura e urbanismo aqui no Programa de Pós-Graduação do Mackenzie, acompanho atentamente a atuação do
novo Ministério das Cidades, e noto que o Olívio Dutra
ainda não disse a que veio. Na área da Justiça, penso que
o dia-a-dia do ministro Márcio omas Bastos deve ser uma coisa louca,
porque o que pipoca de problemas ali
não é fácil, do descontrole que ocorre
no Rio de Janeiro a essa greve impune
dos funcionários da Polícia Federal.
Está faltando, ao governo Lula, um
traço do jacobinismo de ação, ação
fulminante, de ação direta e imediata. Se nesse primeiro ano avançou em
muitas coisas, vejo que perdeu real-
mente em outras. Isso dá para ver nesse exemplo do caos
na segurança pública do Rio de Janeiro, que é uma questão
de intervenção. Aquilo que o Fernando Henrique não fez
com o Espírito Santo, e custou a demissão do Miguel Reale
Jr., está acontecendo [agora] no Rio de Janeiro. Por isso digo
que falta uma forte dose de jacobinismo, pois para avançar
no processo histórico-social tem de se tomar uma série de
medidas contundentes.
A única maneira para haver transformação, mudança
de modelos, está na sistemática intervenção do poder legitimamente estabelecido. No caso, falta à Presidência pulso
para uma série de medidas que sinalizem soluções efetivas.
É o caso da intervenção no Rio de Janeiro, de se tomar pulso sobre a Polícia Federal, de pôr o Ministério das Cidades
em ação. A questão urbana está posta aí e não se sente nenhum vigor no sentido de polarizar para decisões, para a
construção da cidade nova prometida. Estamos ainda no
ramerrão das políticas urbanas tradicionais, com pequenas exceções. Nesse sentido, a Marta Suplicy aparece como
uma exceção. Sua governança da maior cidade do país não
vai mal não, dada a enormidade dos problemas e das máfias de São Paulo. Ela tem se cercado de gente de alta competência, como a professora Naid Somekh, para ficar apenas num exemplo.
A prefeita está provocando intervenções na periferia. É
uma coisa que a gente não vê, mas acontece. Chegam-me
informações por pessoas que trabalham na periferia, como
grupos de arquitetos envolvidos em projetos de construção de casas populares. Há um engajamento desses arquitetos, com muito idealismo. Na área da política educacional, a atual administração tem revigorado o sistema de escolas da prefeitura, com resultados que começam a aparecer. A EMURB está realizando um trabalho firme. A redefinição do conceito de centro saiu um pouco daquela coisa
que era pautada pelo Bank Boston – nada contra o banco,
claro. Marta Suplicy, como prefeita, está tomando atitudes
que levam à reconceituação do que
seja cidade, dando um sentido maior
para o que antes, no caso do centro,
era apenas a atuação benemérita de
uma instituição bancária. E São Paulo
está melhorando, diga-se. Claro que
se podem apontar muitas falhas, mas
isso é inerente ao tamanho do problema, é outra vez a realidade Brasil, com a imensa massa da população com carências fundamentais. Há
Marta Suplicy aparece
como uma exceção. Sua
governança da maior
cidade do País não vai
mal, dada a enormidade
dos problemas
D E P O I M E N TO
junho 2004 diálogos&debates
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semanas, percorri a Avenida 9 de julho, da Praça das Bandeiras à Avenida Brasil, e realmente o que se está fazendo
é muito inteligente em termos de tráfego de coletivos, que
começa a funcionar e rolar bem. Houve uma melhoria nisso. Então, há um saldo positivo aí também.
E o que passa a imprensa? Ela não anda longe do padrão da revista Caras. A imagem que passa é a de uma imprensa burguesa ressentida, contra alguém que está pondo
a mão na massa. Cito o caso do enfrentamento da atual administração contra a máfia dos ônibus, coisa que nenhum
homem, nenhum prefeito antes fez, com esse vigor, consistência e continuidade. Ninguém elogiou a postura da prefeita, pelo contrário. A imprensa, de modo geral, a começar
pelos jornais e o noticiário de televisão – a mídia eletrônica – se aburguesou no pior sentido da palavra. A TV joga
num modelo antiquado, retrô.
Numa tentativa de conclusão dessas muitas visões, eu diria que ainda nos movemos no paradigma do modelo autocrático-burguês, montado ao longo de um século e meio. Vamos colocar com ponto de partida o ano de
1850, o ano da Lei de Terras e da abolição do tráfico de escravos. Eu discutia com o prof. Paul Singer como esse
ano de 1850 é uma data importante,
por delimitar esse período da consolidação do Império, que é quando surge a Lei de Terras, o final do tráfico de
escravos. De 1850 a 2000, temos 150
anos de autocracia estamental burguesa que se consolidou.
Sempre em condição periférica, passamos do capitalismo liberal para o capitalismo monopolista, mas o modelo prosseguiu, permaneceu nossa condição periférica. Desmontar
essa máquina rapidamente, só se for pela via revolucionária… o que não parece viável. Então, nesse sentido, vale a
pena ser otimista e apostar, até por falta de alternativa, na
via reformista. O reformismo conservador do presidente
Cardoso não chegou tão longe, exceto com o plano de estabilização, o que já é algo numa economia desse tipo.
Agora, é preciso tocar nas questões que vêm sendo levantadas desde 1850, como o problema da reforma agrária.
Todos os países que alcançaram um patamar mais elevado
no capitalismo tiveram de passar por uma reforma agrária
“pra valer”. Não estou falando de panacéias, estou falando
de uma reforma agrária efetiva, com políticas como as adotadas pela Inglaterra, França e os próprios Estados Unidos.
E a nossa reforma agrária ainda está em pauta, não está se-
quer equacionada, apesar de advertências que Caio Prado
e Furtado faziam há 40 anos. Essa é uma dívida forte do
atual governo que deve ser priorizada, para que se consiga
um salto de qualidade do governo Cardoso para o governo Lula. E o modelo autocrático é particularmente vigoroso na questão das terras. É um núcleo duro. Será preciso
agir com muito vigor.
A outra questão é a reformulação das mentalidades,
a reformulação das elites. Estamos na estaca zero quando se trata da rede universitária nacional. A universidade
ainda não avançou nada no período Lula. Nada. Zero, em
termos de reforma, atualização, abertura, capacitação de
quadros. Ela está ainda no compasso anterior. É urgente
tratar da requalificação das lideranças, de lideranças intelectuais e científicas. O atual modelo de administração
e gestão da universidade continua preso a velhos conceitos do que seja departamento, do que seja a valorização
da produção, a avaliação da qualidade dos cursos. Nós entramos num tecnoburocratismo que
nos aprisiona e afoga, sem identificar e aprimorar novos talentos. Entramos num timing tecnocrático: a
toda hora temos de fazer um relatório, atualizar currículos, provar uma
produção frutuosa que nem sempre
existe. É uma avalanche de avaliações, baseada num conceito de que
mais vale a quantidade. Nesse sentido, um Wittgenstein, que escreveu
dois livros na vida, aqui no Brasil perderia o emprego, seria mais um desempregado no meio universitário, por causa da pouca “produção científica”.
Há coisas dessa natureza, e nisso o Brasil não mudou.
Ficamos com os ranços do autoritarismo, um modelo, de
fato, desmobilizador. As lideranças intelectuais universitárias raramente são as lideranças intelectuais. Esperemos que
o Tarso Genro consiga quebrar o corporativismo, que é ainda muito forte na universidade. Eu acho um belo desafio. O
Renato Janine, que está lá, conhece bem a Revolução Francesa e os perigos da reação do Termidor… [risos]. Espero
que ele saiba como operar a máquina, até no sentido de demoli-la. Não dá para construir uma nova ordem sem destruir a anterior. Agora, essa destruição num país cheio de
corporativismos, como o nosso, essa destruição é penosa,
difícil e não tem contado com o apoio da burguesia esclarecida nem da imprensa. E nem da maioria dos próprios professores. Isso precisa mudar. 
A imprensa, a começar
pelos jornais e noticiário
da TV, se aburguesou no
pior sentido da palavra.
A TV joga no modelo
antiquado
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diálogos&debates junho 2004
D E P O I M E N TO
A polêmica ex-deputada espanhola
acusa a esquerda de anti-semitismo e
de compactuar com ações terroristas
libelo contra o
pensamento único
“
H
á três coisas que Alá não devia ter criado: os persas, os judeus e as moscas.” Lida assim, a frase
que Saddam Hussein obrigava os meninos do
Iraque a repetir, soa grotesca e, é claro, beira o
barbarismo. Em nossa civilizada e arrogante Europa, nunca diríamos algo assim: não temos nada contra os
persas nem contra as moscas. Direi mais: as moscas são irritantes, mas são de tal maneira parte da paisagem mediterrânea que terminaram sendo aceitas.
Então podemos respirar tranqüilos: a Saddam Hussein
só nos une o ódio aos judeus.Teria sido esse o ódio que levou tantos manifestantes a queimar bandeiras com a estrela de David, enquanto gritavam slogans a favor de Saddam?
Será a judeufobia o lugar simbólico comum onde árabes e
europeus nos encontramos, nos reconhecemos e nos gostamos? E é essa mesma judeufobia a que converte um déspota corrupto e violento como Arafat num romântico resistente? Ou que transforma o niilismo palestino terrorista
numa espécie de novo épico libertador?
Para desgraça do nosso continente dualista – capaz de
criar para o mundo as bases da democracia e, ao mesmo
tempo, alimentar os cupins mais ativos que tentam destruíla, o stalinismo e o fascismo –, estamos nos voltando em
direção aos nossos próprios demônios. Dia a dia, sobre as
bases do velho anti-semitismo exterminador que moldou
nosso pensamento coletivo mais profundo, estamos construindo um novo, ativo e perverso anti-semitismo. “Um
P O L Ê M I C A
POR PILAR RAHOLA
anti-semitismo sem judeus”, como diria Paul Lendvaï. O
fenômeno está sendo elaborado paralelamente a duas atitudes complementares às dos suicidas: o antiamericanismo e a indiferença face à aparição e à consolidação de um
novo totalitarismo, o fundamentalismo islâmico. Três são,
pois, as flechas que disparam na mesma e preocupante direção: a conformação do pensamento único europeu; a capacidade de mobilizar as ruas e as consciências da Europa;
e a fundamentação em bases destrutivas. O mais grave, do
meu ponto de vista e da minha própria militância progressista, é que esse pensamento único é das esquerdas. Das esquerdas é o novo anti-semitismo europeu, disfarçado de
anti-sionismo; das esquerdas é o pan-arabismo romântico que leva à minimização do terrorismo; e compartilhado
com certa direita, das esquerdas é que vem o antiamericanismo feroz do qual estamos padecendo. Se estivermos de
acordo que é a esquerda quem configura as idéias de prestígio em nossa sociedade, e que intelectuais da esquerda são
os reconhecidos como defensores do progresso, então estaremos de acordo que temos um problema sério. Falemos
dele, do novo anti-semitismo e das duas patas peludas que
acompanham o monstro.
Os novos anti-semitas não se reconhecem como tais. O
anti-semitismo é uma clássica expressão da extrema direita
e, por isso, a esquerda se transtorna e a nega. O guarda-chuva do anti-sionismo, ou falando diretamente, do antiisraelismo, é muito fácil de carregar, retém bem a chuva da crítica
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e permite um disfarce intelectualmente digerível. De Martin Luther King é
esta frase pronunciada em 1967, em
sua Carta a um amigo anti-sionista:
“Os tempos converteram em impopular a manifestação aberta de ódio
aos judeus. Sendo este o caso, o antisemita procura novas formas e foros
onde infiltrar seu veneno. Agora, se esconde atrás de uma nova máscara: não
odeia judeus, só é anti-sionista!” Essa
frase continua mais efetiva agora, 36
anos depois, pois o anti-sionismo e a
demonização feroz de Israel se converteram numa obrigação do pensamento moral das esquerdas.
Eu mesma, em meu país, sou expulsa do paraíso esquerdista, por parte de alguns gurus do dogma, toda vez que
não pratico o tiro intelectual ao judeu. Perdão, ao sionista.
Perdão, ao israelense. Ou não é tudo o mesmo na gramática anti-semita? O resultado é o que estamos vendo. Israel
é, dia a dia, uma autêntica obsessão da esquerda européia e
o exemplo mais importante dos cacoetes fascistas que a esquerda apresenta. Estas são minhas acusações: manipulação informativa, criminalização da legitimidade do Estado
de Israel, minimização das vítimas judias, a banalização da
Shoá, e indiferença – quando não aplauso – frente à destruição terrorista provocada pelo fundamentalismo.
Primeiro: acuso a esquerda de matar a informação a
golpes de propaganda. A manipulação informativa do que
ocorre no Oriente Médio é tão grosseira e exagerada que
passará aos anais do jornalismo como exemplo de intoxicação de massas. Quantos princípios do jornalismo foram quebrados na informação que a maior parte da mídia européia veiculou? Fontes sem controle, tergiversação e manipulação de dados, burla da objetividade, indiferença em vez do que teria de ser o foco de todo informador: a verdade.
Já sei que me dirão que a objetividade não existe, e menos ainda no jornalismo. Mas, entre a objetividade pura e a
subjetividade militante, há uma longa distância que o jornalismo sério poderia percorrer. E que, no caso do Oriente Médio, não percorre. A gramática desse novo jornalismo
molda cotidianamente a influente imprensa da Europa e é
tão poderosa que dela não se salva nem mesmo a mitificada BBC. É uma gramática com regras precisas: não existem terroristas, senão milicianos; nunca existem vítimas judias; toda a ação palestina é boa por natureza e, por conse-
guinte, defensiva; toda ação israelense
é suspeita de criminosa; não existem
os carrascos palestinos; não existe a
ingerência internacional; não existe a
corrupção de Arafat; e, por não existir,
não existe nem seu passado violento.
Segundo: acuso a esquerda de banalizar a Shoá – o Holocausto. Tema
que não é, em absoluto, menor. Permanecerá escrito nos murais da vergonha européia a atitude de numerosos grupos de ativistas e intelectuais de esquerda que usaram a tragédia do Holocausto como arma lançada contra Israel. O
ponto culminante desse desprezo profundamente cruel,
lançar contra as vítimas da Shoá seu próprio martírio, é
uma forma de voltar a matá-las; assim foram as declarações de José Saramago em Jenin. [Nota da redação: em visita a esse campo de refugiados na Cisjordânia, em abril de
2002, o escritor português disse, numa comparação desproporcional, que “O que está acontecendo aqui é um crime
que pode ser comparado com Auschwitz”.] A esse respeito,
digo: Saramago foi o exemplo mais relevante de uma afirmação inapelável: “Alguns podem escrever como anjos e
pensar como demônios”.
A Shoá, o Holocausto, como disse o cineasta Claude
Lanzmann, é “a morte da alma humana”. Ante sua recordação, nenhum cidadão do mundo pode ser indiferente. Mas,
sobretudo, nenhum europeu pode ser alienado. A Europa
criou esse pensamento único e totalitário do cristianismo
que converteu todo um povo em deicida (por certo, depois
de ouvir as sandices de Mel Gibson, suponho que não irão
vê-lo nunca mais no cinema). A Europa foi a Inquisição espanhola, foi Lutero assegurando que os judeus “eram uma
praga no coração da terra”. A Europa foi a demonização, a
perseguição, a culpabilização e a morte do melhor de seu
próprio corpo, sua alma judia. A Europa foi o Vaticano e sua
colaboração com os nazistas. Auschwitz não é uma contingência trágica da história, espécie de erro perverso. Auschwitz é a estação final de um grande processo de destruição. Por esse erro, não é exagerado assegurar que, sendo a
Europa tão profundamente judia, com a Shoá se destruiu a
si mesma. O que permanece hoje da Europa são restos do
naufrágio. Um continente que, seqüestrado por seus próprios demônios, perdeu a dignidade.
Banalizar o Holocausto é algo brutal e perverso. Fazê-lo,
ademais, a partir da esquerda, a que teria de ser a sentine-
A esquerda perdoa as
bombas do Hamas e
se manifesta contra a
intervenção no Iraque,
mas nunca se manifestou
contra o fundamentalismo
que matou mais de 4.000
pessoas em Nova York
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diálogos&debates junho 2004
P O L Ê M I C A
la mais correta da justiça e da liberdade, é um ato de traição. De traição à memória trágica da Europa. Minimizando o Holocausto, se reduz a dimensão da tragédia, se relativiza a culpa européia e o judeu volta a ser suspeito. Já não
existe a vítima judia, existe o soldado israelense que mata
meninos em Belém, metáfora moderna do judeu medieval
que bebia o sangue de meninos cristãos. Essa relação entre
o judeu medieval malvado e o malvado soldado israelense
resulta prazerosa para a culpa européia.
A esquerda européia tem uma memória muito má. E,
com o esquecimento assentado na ideologia, esquece também as causas da criação do Estado de Israel, converte sua
legitimidade em algo suspeito e incrimina seus atos. Israel
é, talvez, um dos Estados cuja criação tenha mais base moral entre tantos Estados que existem. E é o único Estado do
mundo que a cada dia tem de pedir perdão por existir.
Terceiro: acuso a esquerda de minimizar e justificar o
novo totalitarismo que ameaça a liberdade, o niilismo terrorista islâmico. Os exemplos são escandalosos: indiferença frente a ataques graves, como a explosão da Associação
Mútua Israelense Argentina, em Buenos Aires, e o atentado contra as Torres Gêmeas, considerados, por parte de esquerda, quase como responsabilidade americana por causa de sua política externa. A exaltação do terrorismo palestino como fórmula de luta legítima chega ao ponto de
considerar aceitável inculcar uma cultura fatalista de ódio
e de morte.
Enquanto perdoa as bombas do Hamas ou se manifesta contra a intervenção americana no Iraque, essa mesma
esquerda nunca se manifestou contra o fundamentalismo
que matou mais de 4.000 pessoas em Nova York, ou contra o que já resultou em 1 milhão de mortos na guerra do
Sudão. Tampouco vi uma ONG que queira enviar escudos humanos para proteger os cafés de Telaviv. Há uma
solidariedade seletiva, derivada de um maniqueísmo perverso que converte os terroristas em vítimas, e as vítimas
em culpadas.
Acuso, pois, a esquerda de trair a democracia perdoando o niilismo terrorista. Nada de novo, portanto, sob o sol
de uma esquerda que foi se enamorando de muitos dos ditadores que a história nos deu: Stalin, Pot Pol, Fidel e, agora, Arafat. Órfã da própria história e desconcertada com a
bagagem de seus sonhos desvanecidos, a esquerda aponta
em direção ao mundo árabe procurando ressonâncias à Lawrence da Arábia. E se apaixona pelas guerras totais, pelos
cantos tribais da revolução, talvez convencida de que entre
a “revolução ou morte” do Che e o “viva a morte” do Hamas
P O L Ê M I C A
não há muita diferença. Procura por Lawrence da Arábia
e, para a desgraça de todos, ainda não descobriu que quem
encontrou foi Bin Laden.
Como entender a atitude cega do Parlamento Europeu,
indiferente ao uso que a Autoridade Nacional Palestina faz
do dinheiro público europeu? Como é possível que seja o
dinheiro europeu que financie as escolas do ódio onde meninos palestinos são doutrinados para o fatalismo suicida?
Sendo indiferentes, somos, inequivocamente, responsáveis
por seqüestrar a tolerância e a modernidade e por permitir
que se encadeiem numa espiral de ódio, impotência e vingança gerações inteiras de palestinos.
Concluo com esta convicção: o quebra-cabeça do antisemitismo está sendo novamente armado. Estas são as peças: a) primeira peça: o subconsciente europeu, resistente
às lições da história e imune às vacinas que tentam matar
definitivamente o vírus anti-semita. A Europa livrou-se de
sua pele judia, mas não fez o mesmo com seu velho ódio; b)
segunda peça: um neocatolicismo populista mais ou menos
extremista também assenta hoje bases em uma atitude de
fobia ao judeu; c) terceira peça: um pensamento de esquerda que, sem haver feito as pazes com seu passado totalitário,
se apaixona por novos cenários também totalitários. Assenta, assim, as bases do anti-semitismo mais perigoso, porque
a esquerda lhe dá prestígio, lhe dá cobertura intelectual e o
arma ideologicamente; d) quarta peça: o subconsciente europeu é derivado do duplo complexo que arrasta a Europa.
Um grande complexo de superioridade, pois não em vão é o
berço da modernidade, e um enorme complexo de inferioridade, posto que é incapaz de resolver uma só de suas próprias tragédias. Por extensão o anti-americanismo é uma
face do anti-sionismo; e) quinta peça: o fundamentalismo
islâmico, ideologia totalitária e niilista, inimiga da modernidade, cuja base se fundamenta no anti-semitismo. O fato de
que milhões de muçulmanos vivam em tiranias teocráticas
não facilita em nada a luta contra a judeufobia.
Hoje, aqui, diante da Unesco, acuso a esquerda européia – a minha esquerda – de ser a cobertura intelectual do
novo anti-semitismo que existe na Europa. Uma esquerda
que trai a si mesma, traindo a democracia. Nossa tendência ao suicídio é, desgraçadamente, patológica. Eu denuncio porque sou européia. E, como tal, me sinto judia diante
do anti-semitismo, única posição moral que redime o europeu de um passado de vergonha. 
Pilar Rahola, ex-deputada espanhola, foi membro do Parlamento Europeu. Este
artigo é baseado em conferência que proferiu na sede da Unesco, em Paris.
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terror global,
o inimigo sem rosto
Uma análise do discurso sobre esse fenômeno de nosso tempo e
da novidade que ele representa hoje: o alcance globalizado e a
desterritorialização de sua atuação
POR DEMÉTRIO MAGNOLI
Ilustração Kipper
O
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diálogos&debates junho 2004
discurso sobre a “guerra ao terror” entrou na
agenda dos meios de comunicação de todo o
mundo, introduzido pelo presidente americano George W. Bush. Essa “doutrina Bush” da
“guerra ao terror” acabou ganhando livre trânsito, sendo utilizada por atores tão diversos quanto os regimes da Rússia, da China, de Israel ou de Cuba. Todos agradecem a Bush pelo pretexto oferecido para reprimir seus
próprios dissidentes.
Mas quando se fala no terror difuso, do inimigo sem
rosto, se está falando de um terror que não é o do Estado.
Quando Bush declarou guerra ao terror, essa guerra não se
enquadra no que era até então a definição clássica de guerra
– conceituada como o conflito entre unidades políticas soberanas. E a Al Qaeda, no entanto, não é uma unidade po-
E N S A I O
lítica soberana. Nem sequer tem um sentido jurídico claro,
portanto, declarar guerra ao terror.
Resistência armada e terror de Estado
Esse tema do terrorismo envolve a discussão da linguagem introduzida pela Doutrina Bush. E essa doutrina
da guerra ao terror passa uma borracha sobre a definição
clássica de terrorismo. O que é terrorismo? Existe a definição: terror é a luta contra o poder estabelecido que utiliza
a violência dirigida contra civis, líderes políticos ou militares não combatentes. Isso tem um significado. Quando a Al
Qaeda pratica os atentados contra as torres gêmeas ou explode os trens em Madri, pratica o terror. Quando um homem-bomba palestino destrói um café em Jerusalém ou um
supermercado em Telaviv, isso é terror. Quando o IRA ex-
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plode bombas contra civis ou a ETA seqüestra e mata um
político no País Basco, isso é terror. Mas quando no Tibet
se fazem manifestações contra o governo chinês, isso não é
terror. E quando iraquianos explodem bombas contra soldados das forças de ocupação americanas ou aliadas no Iraque ou contra civis da administração iraquiana, subordinados às forças de ocupação, isso não é terror, mas resistência armada. Aliás, algumas dessas manifestações, como as
do Tibet, nem sequer são violentas. Então, a linguagem da
doutrina Bush, ao usar indiscriminadamente a palavra terror, produz uma degeneração na linguagem política e isso
se manifesta na imprensa hoje. É comum ler nos jornais a
palavra terrorismo aplicada a atos violentos de iraquianos
contra os soldados americanos. Esse ato não é terrorismo,
mas uma manifestação de resistência armada. Assim como
houve resistência armada em praticamente todas as guerras de libertação nacional contra as potências colonialistas
ao longo do século XX.
A resistência armada contra a opressão, contra a ocupação ou o colonialismo é reconhecida por todo o pensamento político contemporâneo, desde John Locke até os
pais fundadores dos Estados Unidos. Reconhecida explicitamente. O direito à resistência armada faz parte da filosofia
política clássica. O perigo da linguagem da doutrina Bush é
fornecer uma arma ideológica de grande valor para os Estados que podem ou que se sentem à vontade para classificar
como terroristas todos os dissidentes de seus regimes, violentos ou não. Assim, a China qualifica hoje como terroristas os pacíficos independentistas tibetanos. Ou os que lutam
pela independência do Turquestão chinês. Cuba processou,
sob a acusação de terrorismo, os indivíduos que seqüestraram uma balsa, no ano passado. Seqüestraram a balsa, sem
violência, sem ferir ninguém, para usá-la na fuga para a
Flórida. Foram processados sob a acusação de terrorismo.
E condenados à morte e fuzilados como tais. Fidel Castro
agradece a Bush pela linguagem emprestada. Na Chechênia, a maior parte da resistência não é terrorista, embora
existam terroristas chechenos. É, essencialmente, um movimento nacionalista checheno. Moscou usa a linguagem
de Bush, por permitir classificar toda a resistência chechena como terrorista.
Com isso, os Estados passam a empregar o conceito de
terror como sendo qualquer resistência ou contestação à
ordem estabelecida, e como pretexto para intensificar a repressão e para se eximir da necessidade de negociar politicamente com as dissidências internas. O conceito da “guerra
ao terror” é grave por circunscrever a um espaço cada vez
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diálogos&debates junho 2004
mais estreito o campo do exercício da política e ampliar o
campo da repressão para quase todos os conflitos, legitimando a repressão onde caberia a negociação.
Com sua doutrina, Bush rompe ou elimina a fronteira
entre o que é terror e o que não é terror. E é grave borrar
essa fronteira por ser ela indispensável para que se possa
discutir junto à opinião pública o sentido e a legitimidade
de diferentes movimentos. Pois não é verdade que apenas
movimentos pacíficos são legítimos. Movimentos que usam
métodos violentos para resistir à violência podem ser legítimos. Não são legítimos métodos de terror, condenáveis moralmente e politicamente – pois normalmente têm o efeito
oposto ao que buscam. O terrorista basco que lança bombas
fortalece o inimigo que diz combater, produz conseqüências que atinge a população civil, matando inocentes indefesos, provoca a militarização da sociedade e a expansão dos
aparatos repressivos. Então, o terror é contraproducente do
ponto de vista político e condenável do ponto de vista moral. Mas o terror não deve ser confundido com a resistência
armada em geral, com a resistência violenta em geral.
Essa confusão foi introduzida, e propositalmente, pela
doutrina Bush e é por isso que regimes como o da Rússia, o
da China, o de Israel, o de Cuba, apóiam fundamentalmente
a “guerra ao terror”, por se sentirem confortáveis com a condição de acusar os seus oponentes de terroristas. Eles com
isso legitimam a repressão junto à opinião pública internacional e isolam os opositores junto à opinião pública interna. É por isso que Bush faz um grande favor, por exemplo,
a Fidel Castro ao declarar sua “guerra ao terror”.
Terror global e terror de Estado
Nos tempos globalizados em que vivemos, seria possível
até buscar um paralelo entre o terror difuso e o capitalismo
desterritorializado das empresas transnacionais. Mas, por
mais que procurem a condição de supranacionais, os estudos mostram que essas empresas têm pátria, têm uma sede
num determinado país e, sobretudo, a direção do capital, o
perfil de seus investidores mostra claros laços com uma elite econômica local e uma política nacional. Ninguém tem
dúvida sobre a origem da Microso, General Motors, Toyota ou Renault.
O caráter global do terror é a novidade, hoje. Ao contrário dos conglomerados econômicos, ele hoje não tem pátria.
Porque o terror em si não é novidade. Na Rússia do século
XIX, os anarquistas narodniks russos praticavam o terror
contra a família do Czar. Nos anos 1930 e 1940, os sionistas do Irgum praticavam o terror contra os administradores
E N S A I O
britânicos do Mandato da Palestina, criado em 1920. Quer
dizer, o terror já era um fenômeno típico nos séculos XIX e
XX, não é algo recente. O que é recente é a desterritorialização do terror, que se torna global. Ou seja, não está ligado a nenhum nacionalismo, a nenhum território em particular: esse é o terror de Osama bin Laden. E esse é o dado
que surpreende: o terror global que não se confunde com o
terror nacional e por isso é o inimigo sem rosto.
A rede de Osama bin Laden tem um núcleo saudita, porque ele é saudita, mas é uma rede islâmica. Dela participam
afegãos, marroquinos, egípcios, argelinos, muçulmanos em
geral, com alguma pequena ramificação na Indonésia – o
mais populoso país islâmico do mundo – e nas Filipinas.
A Al Qaeda tem financiamento saudita, e continua a tê-lo,
só que esse financiamento não passa mais pela monarquia,
passa por setores da elite econômica e religiosa saudita, próximos à Casa Real mas hoje em conflito com ela. A rede de
Bin Laden, então, é global em sua composição e em seu ob-
Sharon na Palestina ameaçam – como fica claro no caso do
assassinato do fundador do Hamas, Ahmed Yassin – criar
uma ponte, que não existia, entre o terror nacional da Palestina e o terror global da Al Qaeda. Pois caso o Hamas
comece a atacar no futuro alvos americanos, fora de Israel,
ele se conectaria à Al Qaeda. E esse é um grande risco, o de
conectar movimentos terroristas nacionais ao terror global,
criando uma “internacional do terror”.
Mas o discurso do presidente americano muitas vezes
parece apontar para isso. E não apenas o de Bush, mas também o do candidato John Kerry. Após o assassinato do Abdel Aziz Rantissi, o sucessor de Ahmed Yassin, Kerry declarou que Israel tem todo o direito de se proteger contra o terror. Quando seria de se esperar que falasse que Israel, como
um Estado, não pode agir como um grupo terrorista.
Um Estado tem de agir de acordo com leis, não pode
assassinar extrajudicialmente. Precisa prender e processar
quem comete a violência. E não, como Israel, agindo como
jetivo político, a instalação da era do islã. Essa é a singularidade do terror global, a novidade da nossa época.
Já o Hamas palestino, para ficar em um exemplo, é um
grupo terrorista nacional, por mais que o seu núcleo seja
islâmico e fundamentalista. Sua meta nacional é a libertação da Palestina, e é essa busca de um espaço nacional que
define seu limite de atuação. Não é a derrubada do predomínio do Ocidente no mundo – essa é a meta da Al Qaeda. Ou seja, o Hamas atua no espaço territorial da Palestina, ou o que foi a Palestina histórica, hoje Israel e os territórios ocupados.
Quando Israel assassinou “seletivamente” o xeque Ahmed Yassin, num claro exemplo de terrorismo de Estado, a
primeira reação do Hamas foi declarar que, a partir desse
fato, a guerra seria total e os americanos, em qualquer lugar do mundo, porque os EUA apóiam Israel, seriam alvos
do Hamas. Mas no dia seguinte o grupo recuou, admitindo
que não atingiria alvos fora da Palestina – circunscrevendo
sua ação ao território, delimitando seu campo de operações
e reafirmando seu caráter nacional.
Esse é o terror localizado que se conhecia, até o surgimento do terrorismo fundamentalista islâmico, trazendo a
novidade do terror sem fronteiras, global. E a política dos
Estados Unidos e a do primeiro-ministro israelense Ariel
um grupo terrorista – e foi exatamente isso o que fez, lançando, desde helicópteros de fabricação americana, mísseis
contra Ahmed Yassin, em 22 de março de 2004, e contra Abdel Aziz Rantissi, pouco mais de duas semanas depois, em
17 de abril. Procedendo assim, Israel age como um grupo
terrorista, exerce o terror de Estado.
Essa política de Israel, de assassinatos seletivos, não é
nova. Ela foi explicitada, votada no Gabinete, há muitos
anos. É terror de Estado, em outro grau, mandar derrubar
casas de parentes de homens-bomba – não importa a posição ou ideologia do atingido. A casa do parente será derrubada, com tanques, aparato do Exército ocupando o povoado, seja na Cisjordânia ou em Gaza. Isso é terror de Estado.
E N S A I O
Os neoconservadores entram em cena
Ao contrário de outros presidentes, que contavam com assessores e especialistas de peso dando suporte à sua política
internacional – como foi o caso de Zbigniew Brzesinski no
governo Jimmy Carter ou de Henry Kissinger no governo Richard Nixon –, agora no governo George Bush não se trata de
um grande estratega, mas de uma corrente. No final da década de 70, surgia no interior do Partido Republicano, nos Estados Unidos, essa corrente nova, aquela a que hoje em dia se
chama de neoconservadora. No final da década de 70, os ne-
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oconservadores se insurgiam contra a orientação de política
externa da “détente” promovida por Richard Nixon.
Eram os tempos de aproximação com a União Soviética e com a China, de distensão nas relações internacionais.
A ideologia passava a ocupar, na política de Nixon, um lugar secundário: a idéia de que os Estados Unidos estavam
destinados a difundir a democracia pelo mundo passava a
ser irrelevante na política formulada por Henry Kissinger.
O que contava eram relações baseadas nos interesses e nos
negócios nacionais, dentro de uma certa visão geopolítica
do mundo, a chamada “realpolitik”. Os neoconservadores
se insurgiam contra essa formulação, considerando-a um
abandono da missão histórica dos EUA de levar a democracia para o mundo.
Essa corrente forneceu depois vários jovens assessores
para o governo Ronald Reagan, já na década de 80. O apoio
de Reagan a grupos guerrilheiros que se posicionavam contra regimes de esquerda no Terceiro Mundo foi orientado
pelos neoconservadores. Foi assim com o apoio aos contras
na Nicarágua, à Unita, em Angola, aos guerrilheiros afegãos
na luta contra a ocupação soviética do Afeganistão. Essas
ações foram orientadas pelos neoconservadores, que se indignaram depois com a postura de George H. Bush na primeira Guerra do Golfo, em 1991. Não perdoavam que ele
não houvesse marchado sobre Bagdá, extraindo Saddam
Hussein do poder e completando o escopo da guerra.
Ironicamente George W. Bush, o filho, vai se cercar dessa corrente de neoconservadores, que se torna uma corrente influente, embora não preponderante, no primeiro momento de seu mandato. Os neoconservadores adquirem um
lugar de destaque depois dos atentados contra as torres gêmeas e o Pentágono: então eles tomam de assalto a política
externa dos Estados Unidos. Até o 11 de setembro de 2001,
tinham de se contrapor a Collin Powell, representante de
uma visão mais realista e tradicional das relações internacionais. Ou seja, da idéia de que os Estados Unidos devem
ser multilateralistas, procurando apoio dos aliados tradicionais às suas ações.
Depois do 11 de setembro, os neoconservadores, com
destaque Paul Wolfowitz, subsecretário de Defesa, o vice de
Donald Rumsfeld, passam a dominar a cena. E Colin Powell
ocupa cada vez mais uma posição marginal.
Visto como possível candidato a presidente nas eleições
de 2000, quando Bush se elege o convida para ser o secretário de Estado, sinalizando a possibilidade de vir a sucedê-lo
no cargo. Mas como secretário de Estado Powell acabou se
revelando uma grande decepção. Quis ser fiel a Bush e à sua
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diálogos&debates junho 2004
política externa, e por isso não manifestou suas discordâncias em público. Mas queria também ser visto como homem
sábio, prevendo que a invasão do Iraque era um erro e produziria a situação que desencadeou. Essas duas “personas”
não eram compatíveis e geraram um secretário de Estado
que perdeu a credibilidade. O momento-chave desse desgaste foi quando, em sua fidelidade canina a Bush, aceitou
ir à ONU e discursar sobre as supostas armas de destruição
em massa no Iraque. Discurso completamente mentiroso,
hoje se sabe. Mas, na época, Powell tinha condições de entender que sua fala era recheada de mentiras – e isso destruiu sua credibilidade. Hoje é figura sem futuro político.
O fundamentalismo islâmico
É bom deixar de lado imagens pré-fabricadas sobre “o
árabe”, porque são idéias socialmente construídas, como são
algumas visões sobre “o judeu”. Existem imagens fabricadas
sobre o Oriente, como bem mostrou Edward Said em seu livro Orientalismo, que mostrava como o Ocidente produziu
uma visão de Oriente, com imagens exóticas de negociantes cínicos, mulheres sensuais. Construções que traduziam
um momento em que a Europa estabeleceu seu domínio
no mundo, e os intelectuais buscavam explicações para o
mundo não europeu. O islã, como religião e como cultura,
apresenta na sua origem elementos fundamentalistas – fundamentalismo que está na lógica das três grandes religiões
monoteístas: do cristianismo, do judaísmo e do islã.
Com certa freqüência se diz que o islã que é uma religião agressiva, em função de uma interpretação errônea do
conceito da jihad. Assim como os cristãos tiveram as suas
cruzadas, a jihad seria a guerra religiosa dos muçulmanos.
Mas o conceito de jihad surge quando Maomé reúne seus
seguidores e marcha sobre Meca, para tomar o poder dos
chefes tribais que a controlavam e aí estabelecer sua base. É
nesse momento que surge a idéia de jihad, um instrumento de Maomé para a formação de um império unificado na
Península Arábica. Mas, na doutrina islâmica, a jihad tem
dois significados, até em parte contraditórios. É a luta contra o infiel, destinada a defender a terra e os direitos dos
muçulmanos – uma idéia defensiva, não de conquista do
mundo. E, de outro lado, jihad é a luta interior, a luta do seguidor para se manter fiel – como a luta do fiel, na mística
cristã, contra a tentação.
O islã tem uma complexidade histórica que não comporta uma análise neste curto espaço, mas é importante deixar
claro que o fundamentalismo islâmico, tal como existe hoje,
é fenômeno contemporâneo. Não é, ao contrário do que se
E N S A I O
pode pensar, algo que se “arrasta através dos séculos” na
luta pela conquista do mundo. O fundamentalismo islâmico surge como reação ao nacionalismo pan-árabe de Gamal
Abdel Nasser, no Egito dos anos 1950. Quando esse estadista lança a ideologia do nacionalismo pan-árabe, ameaçava
os poderes em outros Estados islâmicos, as monarquias tradicionais. Monarquias tribais que se fundamentam na legitimidade religiosa. E a ideologia de Nasser não era religiosa, era laica e nacionalista. Não era muçulmana, era árabe,
coisa diferente, pois o mundo muçulmano é bem maior do
que o mundo árabe – e mesmo no mundo árabe existem os
grupos não-muçulmanos.
O fundamentalismo islâmico contemporâneo surge
como uma reação ao pan-arabismo e aparece em primeiro lugar no Egito, com a Irmandade Muçulmana. Os “irmãos muçulmanos” combatem as reformas propostas por
Nasser e são reprimidos por ele, que manda enforcar Sayd
Kutb, o líder dos “irmãos”. Sayd Kutb
escreveu o manifesto do fundamentalismo islâmico Sinalizações na Estrada, publicado no Cairo em 1964.
Esse manifesto dizia ter chegado o
fim da era do domínio do Ocidente
no mundo, porque os valores do Ocidente haviam entrado em degeneração. A revolução científica e os valores do iluminismo já teriam dado todos os seus frutos; teria chegado a vez
de o “homem ocidental” ser substituído no mundo pelo islã.
Os militantes da irmandade que não foram presos ou
fuzilados por Nasser se exilaram na Arábia Saudita, que os
recebeu por sentir-se diretamente ameaçada pela revolução nacionalista de Nasser. Essa revolução conduziu à derrubada da monarquia na Síria, minou a monarquia no Iraque e ameaçava outras monarquias do mundo árabe, como
a saudita.
Ali haverá uma fusão entre a ideologia política dos “irmãos muçulmanos” e o fundamentalismo religioso tradicional saudita, ligado à seita wahabita, a corrente puritana
que representa o islã na Arábia Saudita. Eles se consideram os únicos verdadeiros muçulmanos, são extremamente ortodoxos e fanáticos do ponto de vista religioso. A seita wahabita faz parte do Estado saudita, controla a escola, a
religião e as comunicações. Esse entrelaçamento das idéias
políticas dos “irmãos muçulmanos” egípcios com o fundamentalismo religioso da Arábia Saudita dará origem aos
vários grupos islâmicos – o mais famoso deles é a Al Qaeda. E Osama bin Laden é originário de uma família wahabita saudita.
A escalada do fundamentalismo
É assim que surge o fundamentalismo islâmico contemporâneo e ele cresce com o firme apoio do Ocidente – concretamente dos Estados Unidos, o que vem a ser a parte
irônica da história.
Existem três momentos que marcam o crescimento do
fundamentalismo islâmico, e é importante percorrer essa
trajetória. O primeiro ocorre durante a invasão soviética
do Afeganistão, em 1979. Osama bin Laden, financiado
pela Arábia Saudita e armado pela CIA, vai para o cenário afegão, combater os soviéticos, ao lado dos guerrilheiros mujadhins e dos “jihadistas” sauditas. Por dez anos,
dezenas de milhares de sauditas e árabes de outros países combateram no Afeganistão sob
a bandeira da jihad, até o recuo dos
soviéticos.
O segundo momento desse crescimento, e aí está outra ironia, é patrocinado por Israel, que estimula, mais ou
menos na mesma época, o surgimento do Hamas. Esse movimento nasce como uma rede de ajuda mútua e
solidariedade, com hospitais, creches,
escolas, nos territórios palestinos ocupados. Israel estimula e financia o Hamas, na segunda metade dos anos 80, acreditando que os
líderes fundamentalistas religiosos poderiam ser mais moderados e exercer uma liderança mais maleável que a de
Yasser Arafat e os nacionalistas da OLP. Israel tirava da garrafa um gênio que não conseguiria nunca mais recolocar.
Hoje o Hamas está prestes a substituir Arafat na liderança
palestina na região.
O terceiro momento desse crescimento ocorreu durante a guerra na Bósnia, nos anos 90. Sob ataque dos sérvios,
o governo muçulmano da Bósnia apela à ajuda internacional, e parte dessa ajuda será fornecida pelos “jihadistas” sauditas, os homens que lutaram e foram vitoriosos no Afeganistão com a retirada soviética em 1989. Eles se transferem
aos poucos para a Bósnia e ali, novamente armados pelos
Estados Unidos, combatem os sérvios.
Hoje o fundamentalismo islâmico é uma ameaça séria.
Sobretudo pela possibilidade de desestabilização da monarquia saudita liderada pelo rei Fahd.
Com o Hamas, Israel tirou
da garrafa um gênio que
não conseguiria nunca
mais recolocar. Hoje o
Hamas está substituindo
Arafat na região
E N S A I O
junho 2004 diálogos&debates
29
Conjeturas sobre um futuro
O panorama atual contém o risco de que uma das mais
recentes e estapafúrdias profecias políticas se torne realidade. E a profecia a que me refiro é a do “choque de civilizações”. Quando Samuel Huntington profetiza, em 1993, esse
confronto, aquilo era algo improvável pois não havia, em
princípio, fundamentos políticos reais para um conflito entre o Ocidente e o islã. E esse era o núcleo daquela idéia do
“choque de civilizações”. Entretanto, a política seguida pela
“doutrina Bush” parece criar condições para esse conflito, ao
iniciar uma política neo-imperial dos EUA no mundo árabe, e isso se manifesta claramente na ocupação do Iraque,
com todos os desdobramentos que num primeiro momento
ninguém imaginava. Da resistência armada dos iraquianos
e alianças entre grupos tradicionalmente rivais ao choque
das descobertas do horror e das obscenidades perpetradas
por soldados das forças de ocupação. Um capítulo vergonhoso na história dos paladinos da democracia.
Deixo de lado certas visões conspiratórias da história
e simplificações economicistas, como as que dão conta de
que Bush invade o Iraque pressionado pelas companhias
petroleiras texanas, para se apropriar das reservas de óleo.
Sem dúvida, a indústria do petróleo está interessada nos
negócios iraquianos, mas não é verdade que a política externa dos Estados Unidos, nem mesmo sob Bush, que é do
Texas, seja controlada pelas petroleiras. A política externa
dos EUA é bem mais ampla do que isso. O interesse dos
EUA é assegurar que o mercado mundial seja abastecido
em quantidade abundante de maneira a impedir grandes
choques de oferta de petróleo. E isso está, é claro, ligado à
invasão do Iraque.
Mas o medo real dos Estados Unidos era – e é – a desestabilização política na Arábia Saudita. O governo saudita, aliado dos Estados Unidos, vive hoje uma crise séria por
ser obrigado a cortar seus laços com os fundamentalistas
islâmicos. E esses grupos fundamentalistas da Arábia declararam guerra à dinastia do rei Fahd. É um grave problema
interno de repercussão direta nos negócios internacionais,
pois os sauditas têm a chave dos preços do petróleo: donos
de 24% das reservas do planeta, o nível de sua produção determina a cotação do petróleo no mundo. A invasão do Iraque está ligada ao risco de desestabilização saudita.
A invasão do Iraque foi um golpe profundo na legitimidade da ONU. Os Estados Unidos procuraram conduzir o Conselho de Segurança a uma resolução autorizando
a intervenção e foram obrigados a retirar a proposta antes
do voto, pois perderiam. A crise aparece quando os Esta-
30
diálogos&debates junho 2004
dos Unidos, apesar e contra a posição da ONU, decidem ir
à frente com a invasão e a ocupação do Iraque. Potencialmente, o germe da destruição da ONU está inscrito nessa
atitude, que deixava clara a irrelevância do organismo para
a potência hegemônica.
Mas os problemas e a crise que enfrentam na ocupação
do Iraque têm mostrado aos próprios EUA que eles não
podem viver sem a ONU. Hoje o governo Bush se dirige à
ONU, pedindo a ela que assuma as responsabilidades. Mas
os EUA não estão dispostos a transferir o poder real para
ONU, e as outras potências não estão dispostas a sofrer os
ônus sem os bônus da ocupação. Por isso, a crise da ONU
prossegue – uma das tantas que afetam hoje o sistema internacional. A ONU foi funcional durante a bipolaridade
da guerra fria, enquanto existiam duas superpotências com
armas nucleares, com direito a veto e que precisavam dela
como canal de diálogo. Hoje ela aparece como algo disfuncional para os neoconservadores americanos.
A crise se aprofunda. Sintomaticamente, quando Bush
diz que não há a menor possibilidade de se falar em um fracasso no caso da ocupação do Iraque, algo está passando.
O candidato John Kerry também afasta a hipótese de falar
em fracasso. Quando a palavra fracasso passa a participar
do discurso político dos líderes, é porque o fracasso está na
perspectiva. Esse tipo de declaração aparecera muitas vezes na boca de Lyndon Johnson, na época do Vietnã, antes
de os Estados Unidos admitirem o fracasso e baterem em
retirada. Então, quando se diz que o fracasso é impensável,
é porque está se pensando nele.
Basta ver o que as forças de ocupação estão sendo obrigadas a fazer. Basta analisar o resultado do confronto de
Fallujah, do lado sunita, e do confronto de Najaf, do lado
xiita. O que acalmou provisoriamente, ali, o clima belicista
do levante? Acordos. Os Estados Unidos foram obrigados a
negociar com os líderes locais de Fallujah e a fazer acordos,
por meio de intermediários religiosos, com o líder religioso xiita que se estabeleceu em Najaf. E teve de abrir mão de
prender os rebeldes de Najaf e o líder xiita Moqtada al Sadr,
ali instalado. Ao negociar e fazer concessões, reconhecem
atores políticos no Iraque que não são os seus aliados. Isso
é o começo do fracasso. O plano dos Estados Unidos era estabelecer um governo títere no Iraque – é isso que chamam
de democracia, um governo subordinado às ordens de Washington. E tudo indica que está se criando uma liderança
política nacional e antiamericana, reunindo líderes xiitas e
sunitas, no Iraque ocupado. Não era esse o cenário previsto
pelos neoconservadores às vésperas da guerra. 
E N S A I O
Acusado de partidarismo, o Ministério Público e o mundo
político têm relações delicadas. Controles são defendidos.
Mas como o MP se tornou, discutivelmente, o nosso
quarto
O
poder?
procurador da República Luiz Francisco de Souza se tornou figura pública nacional quando, em
2000, capitaneou as investigações sobre Eduardo Jorge Caldas Pereira, secretário-geral da Presidência durante boa parte do mandato de Fernando Henrique Cardoso. Junto com colegas do Ministério Público federal, Souza acusou o assessor de participar
do desvio de verbas do TRT paulista, de praticar indevida
ingerência nos fundos de pensão, de exercer tráfico de influência em procedimento licitatório no Ministério da Justiça para favorecer a empresa Montreal, de fazer parte de
falcatruas no DNER e, finalmente, de promover a falência
R E P O R TA G E M
POR SÉRGIO PRAÇA E PATRICIA MOTERANI
da construtora Encol em proveito próprio. Eduardo Jorge
ficou conhecido na mídia como “EJ”. Parlamentares petistas
se basearam nessas acusações para pedir uma “CPI da corrupção”, não instalada. E o Ministério Público foi acusado
de partidarismo por políticos do PSDB.
Quatro anos depois, o presidente é outro. As investigações do Ministério Público continuam. O subprocurador
da República José Roberto Santoro foi flagrado pedindo ao
bicheiro Carlos Cachoeira que lhe entregasse uma fita em
que o “empresário” conversa com Waldomiro Diniz, assessor de José Dirceu. Santoro afirmou que essa fita poderia
“ferrar o chefe da Casa Civil”, José Dirceu, e até mesmo “der-
junho 2004 diálogos&debates
31
rubar o governo Lula”. Parlamentares petistas, inflamados,
acusaram o Ministério Público de agir partidariamente. O
ministro Márcio omaz Bastos enxergou uma “conspiração” e se disse a favor da “lei da mordaça”.
Iniciativas a favor da justiça ou interferência indevida
em assuntos da seara política? Não cabe aqui julgar. Mas o
fato é que esse Ministério Público “agressivo”, “defensor da
sociedade”, tem suas bases – de acordo com o cientista político Rogério Arantes – em duas medidas que datam do período de ditadura militar no país.
A primeira foi a atribuição ao Ministério Público, no Código de Processo Civil em 1973, da função de defesa do interesse público. Segundo o artigo 82 desse Código, “compete ao Ministério Público intervir em todas as demais causas
em que há interesse público, evidenciado pela natureza da
lide ou qualidade da parte”. A segunda medida foi a publicação da primeira lei orgânica nacional do Ministério Público,
que, entre diversos outros pontos, uniformizou a organização e a competência dos ministérios públicos estaduais
– além de retirar dos governadores o
direito de indicar um leigo para o cargo de procurador-geral da Justiça.
São dois pontos que permitiram ao
Ministério Público se distanciar de sua
função exclusiva original como braço
auxiliar do Judiciário, encarregado de
acionar esse poder com vistas à aplicação da pena nos crimes codificados
pela legislação. Em outras palavras, antes cabia apenas aos
promotores e procuradores acusar e aos juízes julgar um
processo criminal. Obviamente, essa continua sendo uma
das principais atribuições do Ministério Público. Mas atualmente a instituição trabalha tão próxima da sociedade
quanto do Estado, se não mais – muitas vezes age até contra determinados suspeitos de corrupção dentro do sistema
político. Isso só se tornou possível após as duas medidas já
mencionadas, acolhidas pela ordem constitucional de 1988
depois de intenso lobby dos promotores.
É importante destacar também outra lei antiga que alterou o ordenamento jurídico e conferiu mais poderes ao Ministério Público: a lei 6.938, de 1981, que instituiu a Política
Nacional do Meio Ambiente. Foi a primeira a formalizar a
existência de um direito difuso – no caso, o meio ambiente – que poderia ser defendido em juízo por meio de um
novo instrumento processual: a ação civil pública. No ano
seguinte, o Ministério Público paulista, em sua lei orgânica,
aumentou o leque de direitos difusos que poderiam ser defendidos pelos promotores: o meio ambiente, o interesse do
consumidor e o patrimônio cultural e natural do Estado.
Desde então, diversas outras leis têm ampliado as competências do Ministério Público. Talvez a mais pertinente,
e de maior impacto, seja a lei 8.249/1992, que institui as
sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública. É a lei da improbidade administrativa. De acordo com especialistas no
tema, essa lei segue uma sistematização muito próxima à
da técnica legislativa penal, apesar de atribuir sanções de
natureza civil.
Com essa lei, os promotores e procuradores ganharam
mais poder para investigar os agentes políticos, que eles
consideram os grandes responsáveis pela crise brasileira.
Segundo uma pesquisa coordenada por Maria Teresa Sadek e Rogério Arantes em 1996 com
membros do Ministério Público de
sete Estados, 70% dos entrevistados
reprovam o desempenho do Congresso e 80% consideram esse órgão
o principal causador da crise da Justiça brasileira. A mesma pesquisa mostra que 87% dos membros do Ministério Público concordam total ou parcialmente com a seguinte afirmação:
“cabe obrigatoriamente ao MP exigir
da administração pública que assegure
os direitos previstos na Constituição federal, nas leis e nas
promessas de campanha eleitoral”.
Membros do Ministério Público federal levaram isso a
sério em abril de 2000 e moveram uma ação civil pública
sobre o salário mínimo contra o governo federal e o INSS
(Instituto Nacional do Seguro Social). Segundo o artigo 7
da Constituição, o salário mínimo deveria ser suficiente
para atender às necessidades do indivíduo e de sua família,
com moradia, alimentação, saúde, educação etc., devendo
ser reajustado periodicamente de maneira a preservar o poder aquisitivo da população. Em sua ação, o MP pediu que
a União fosse obrigada a elaborar um plano de adequação
do salário mínimo ao que dispõe esse trecho do texto constitucional em até 12 anos, sob pena de multa a ser revertida em favor de fundos voltados para o trabalhador, saúde,
assistência social e educação.
Essa ação do MP tem por objetivo, portanto, obrigar o
Executivo federal a adotar determinada política pública, já
O MP pediu que a
União fosse obrigada a
elaborar um plano de
adequação do salário
mínimo ao que dispõe
a Constituição
32
diálogos&debates junho 2004
R E P O R TA G E M
que o salário mínimo é uma lei. Impossível uma ação mais
política do que essa.
A polêmica da “mordaça”
Talvez a maneira mais eficaz de o Ministério Público agir
na esfera política – já que dificilmente ações como a que se
acaba de mencionar serão deferidas pela Justiça – é a de se
associar aos meios de comunicação para que determinadas
investigações se mantenham na agenda pública, transformando-se em notícias. Promotores investigam, os jornalistas “denunciam”, suspeitos se tornam culpados e, quando
absolvidos, dificilmente os jornais admitem ter se precipitado. Mesmo quando o fazem, é tarde demais.
Alguns possíveis excessos praticados pelo Ministério Público em 1997, em investigações que tiveram muita repercussão nos meios de comunicação, se traduziram
na primeira (mas não definitiva) vitória daqueles que querem reduzir os poderes dos promotores, com a votação pela Câmara dos
Deputados, em dezembro de 1999, da
chamada “lei da mordaça”. É o projeto de lei 2.961, de abril de 1997. Entre outras medidas, esse projeto proíbe explicitamente juízes, integrantes
do Ministério Público e outras autoridades públicas de “revelar ou permitir
indevidamente que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios
de comunicação fatos ou informações
que tenham ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas”. As punições possíveis para os transgressores seriam: pagamento de multa, perda do cargo, a inabilitação para o exercício de função pública e até detenção de
seis meses a dois anos.
Não é incomum observar, nos programas policiais exibidos durante a tarde em algumas emissoras de televisão, reportagens sobre casos criminais nas quais o promotor (acusador) fala, o advogado de defesa do acusado responde e ao
promotor é dada a oportunidade de treplicar, seguido por
algum comentário demagógico do apresentador. A “lei da
mordaça” inibiria, entre outras, reportagens como essas. É
uma medida que tem dividido juristas e só tem reprovação
unânime dos membros do MP e de jornalistas preocupados em manter fontes importantes.
De acordo com Rodrigo Pinho, procurador-geral de
Justiça do Ministério Público paulista, “essa lei viola o di-
reito de informação jornalística, viola o direito do cidadão de ser devidamente informado, assim como viola a
liberdade do jornalista de buscar os meios. Além de nociva, a lei será contraproducente. Ela privilegiará o off, ou
seja, a reputação, o abalo das pessoas mencionadas será
ainda mais grave porque não terá o nome da autoridade mencionada”. Vale lembrar que praticamente todas as
cerca de 300 reportagens do episódio Watergate, nos Estados Unidos da era Nixon, se valeram de fontes em off,
não identificadas.
Pinho lembra que “o PT, historicamente, sempre foi contra a ‘lei da mordaça’, Em votações anteriores, o partido se
posicionou abertamente contra, com manifestações expressas de José Genoíno. Nós esperamos que o partido mantenha a coerência com o período em que estava na oposição,
sabendo que a atuação do Ministério Público não está a
serviço de partidos, e sim busca promover a defesa da ordem jurídica e a serviço da busca pela
verdade”.
Mauricio Zanoide de Moraes, vice-presidente do Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais (IBCCRIM) e
professor de Direito Processual Penal
da USP, não acredita que a “lei da mordaça” prejudicaria a livre circulação de
informação: “Talvez com essa lei a sociedade civil não soubesse de muitas
investigações que são feitas, que estão
sendo conduzidas, de acusações que
são propostas. Mas se posteriormente o acusado é absolvido, essa informação não chega à sociedade. Nunca pode
haver esse desequilíbrio. A sociedade tem direito de saber
o que acontece, e os órgãos públicos devem trabalhar exatamente para isso. Porém, dentro dos limites legais de não
violação da integridade moral da pessoa, em que a culpa ou
condenação ainda não esteja cristalizada”.
Promotores investigam,
conversam com jornalistas
que “denunciam” e
suspeitos se tornam
culpados antes de
julgamento
R E P O R TA G E M
Um controle externo para o MP?
Tanto a “lei da mordaça” quanto uma forma de controle externo do Ministério Público estão previstos no texto
da reforma do Judiciário que, até o fechamento desta edição, encontrava-se em tramitação no Senado Federal sob
responsabilidade do senador José Jorge (PFL/PE). Essa segunda medida é um tanto menos polêmica do que a primeira, sendo defendida pelo ministro da Justiça, Márcio
omaz Bastos, e por algumas associações estaduais de
promotores.
junho 2004 diálogos&debates
33
O que muitos questionam é o timing dessa proposta. Assim como o
controle externo do Judiciário é visto como parte de uma tática diversionista do Executivo, a busca de instituir
um controle para o Ministério Público
é tida como algo ligado ao caso Waldomiro Diniz, e também ao caso Santo André – onde o prefeito Celso Daniel, do PT, foi assassinado em 2002 e
há fortes suspeitas de ligação do crime com o financiamento irregular de
campanhas petistas.
Não se sabe como seria composto um órgão de controle
externo do Ministério Público. Um dos pontos polêmicos
da proposta, já derrubado no relatório de José Jorge, seria
a possibilidade de esse órgão de controle decretar a perda
do cargo de procuradores e promotores. Em nota oficial, a Associação Nacional dos Procuradores da República elogiou o senador, afirmando que
a decisão final sobre perda do cargo
deve ser restrita ao Judiciário como
decorrência direta da garantia da vitaliciedade, não podendo ser um mero
ato administrativo.
De acordo com a já citada pesquisada da professora Maria Teresa
Sadek com membros do Ministério
Público em sete Estados da Federação, realizada em 1996, 52% dos entrevistados se disseram a favor de um órgão externo de controle do MP. Apenas 35% foram radicalmente contra. Pesquisa semelhante mostra que 80% dos magistrados são contra um con-
52% dos membros
do MP são a favor de
um órgão externo de
controle. Apenas 35% são
radicalmente contra. 80%
dos juízes não querem
instituição semelhante
para o Judiciário
selho que controle externamente o Judiciário. Na opinião
de Maurício Zanoide de Moraes, da USP, o controle externo do Ministério Público não irá interferir na maneira
como cada promotor investiga. “É impossível que não haja
nenhum tipo de conotação política em qualquer agrupamento de pessoas, mas, se esse órgão de controle for composto de maneira plural, as forças políticas irão se equilibrar”, afirma.
Para Rodrigo Pinho, “o importante é que esse controle externo seja exercido sem ferir a autonomia funcional
e sem ferir a independência da instituição. Nos moldes
em que esse projeto está sendo aprovado, pelo que se sabe
até agora, o controle externo não interferiria em nada na
atuação e na independência do Ministério. O texto ainda
passará por outras votações e nós esperamos que não haja
acréscimos que interfiram na autonomia da instituição ou
na independência funcional do órgão, como a possibili-
dade de o conselho decretar a perda de cargo de membros da instituição”.
O procurador-geral de Justiça do Ministério Público de
São Paulo também afirma que a corregedoria interna da
instituição já exerce o controle de atos internos, mas nem
por isso um conselho externo se torna indesejado. Mauricio Zanoide discorda: “A corregedoria não tem condições
de controlar a atuação de todos os integrantes de uma instituição inteira. Obviamente a corregedoria não está aparelhada e estruturada para acompanhar cada membro do
Ministério Público no seu atuar. A corregedoria investiga
denúncias de desvio de comportamento ou de corrupção,
não tem como acompanhar a atuação de cada membro da
instituição”. Um conselho externo também não conseguiria,
mas seria um indício de que o Ministério Público procura
se aperfeiçoar para ser mais democrático e mais aberto ao
controle da sociedade. 
diálogos&debates Há a necessidade de um controle externo para
o Ministério Público?
rogério arantes Um dos princípios do estado de direito é que
deve haver mecanismos de controle recíproco e proporcional
entre as instituições estatais. Controle interno raramente é suficiente e o Ministério Público não é exceção. Recentemente, o
corregedor-geral do Ministério Público Federal afirmou que, em
dez anos de Lei Orgânica do MPU, nenhuma sanção interna foi
aplicada a membro da instituição. Por outro lado, alega-se que
no caso do Ministério Público o Judiciário seria o responsável
por, em última análise, confirmar ou rejeitar as acusações produzidas pelo Ministério Público. Entretanto, sabe-se que a resposta do Judiciário é lenta e tarda a ser definitiva, e ações e
recursos podem se arrastar por muitos anos. O próprio Ministério Público se ressente disso e costuma fazer uso de estratégias heterodoxas para atingir seus fins por outros meios, como
recorrer à mídia e à opinião pública ou fazer uso do inquérito
civil para chegar a termos de ajustamento de conduta sem ter
de levar as questões ao Judiciário. Nesses casos, a busca por
resultados efetivos pode levar o Ministério Público a exorbitar
e um Conselho responsável por fiscalizar a instituição poderia
reparar eventuais desvios.
diálogos&debates A possível implementação da chamada “lei da
mordaça” fere o acesso à informação?
rogério arantes Retórica por retórica, pode-se dizer que “amordaçaram a proposta de lei da mordaça”, isto é, com esse rótulo
pejorativo estamos deixando de fazer uma discussão realmente
necessária sobre os limites e as prerrogativas de juízes e promotores no exercício de suas funções e sobre as relações do
Ministério Público com a imprensa e com a opinião pública. A
questão é delicada e requer cautela, de todos os lados. Há vários aspectos envolvidos, desde a independência dos agentes
da justiça até as garantias do devido processo legal e do direito de defesa, mas gostaria de ressaltar um aspecto ainda não
mencionado no debate público: não podemos comparar o recurso à opinião pública por parte do Ministério Público com o
que fazem outros atores sociais, dentre eles os políticos. Quando políticos lançam acusações ou denúncias, deles não se espera neutralidade e a opinião pública levará na devida conta o
lugar partidário de onde ele fala. Em relação ao Ministério Público existe, ao contrário, uma presunção de legitimidade e de
neutralidade e, para a opinião pública, promotores e procuradores falam de um lugar não político, suas falas provêm do
campo da Justiça.
A S O C I E D A D E E S P E R A N E U T R A L I D A D E D O M P Entrevista: Rogério Bastos Arantes
R
ogério Bastos Arantes, doutor em Ciência Política pela USP
e professor da PUC-SP, é um dos maiores especialistas no
país sobre a relação entre o Ministério Público e o campo político. Nesta entrevista a Diálogos&Debates, Arantes comenta alguns dos pontos da reforma do Judiciário que envolvem o Ministério Público. A seguir, os principais trechos de sua fala:
diálogos&debates Como ocorrem a “judicialização da política”
e a “politização da Justiça”, termos que o senhor costuma utilizar em seus estudos?
rogério arantes A expressão “judicialização da política” tem
gerado certa controvérsia entre os analistas, por sugerir um
caráter negativo ao processo de expansão da Justiça sobre a esfera política, com o Judiciário e o Ministério Público atuando em áreas que antes eram exclusivas dos agentes políticos stricto sensu. O fato é que o Brasil é um importante exemplo de um arranjo institucional que potencializa a atuação das instituições de justiça no campo político e dos conflitos sociais e coletivos. São três as principais
causas desse fenômeno no Brasil: primeira, nosso amplo e
descentralizado sistema de controle constitucional das leis,
que transforma o Judiciário como um todo e o Supremo Tri-
34
diálogos&debates junho 2004
bunal Federal em particular em instâncias de recurso contra decisões da maioria política governante; segunda, o desenvolvimento da legislação sobre direitos difusos e coletivos ocorrido nos últimos 20 anos, que operou uma verdadeira “revolução processual” no ordenamento jurídico e no
acesso ao Judiciário; e, terceira, a condição de quase quarto poder assumida pelo Ministério Público, que se transformou em principal defensor desses direitos difusos e coletivos porque a legislação que os introduziu está inspirada
pelos princípios da indisponibilidade dos direitos e das necessidades da sociedade civil.
diálogos&debates E quanto à “politização da Justiça”?
rogério arantes Ocorre “politização da Justiça” quando juízes
e integrantes do Ministério Público ultrapassam seus papéis
convencionais e passam a agir deliberadamente para controlar ou mesmo desestabilizar agentes políticos. Na sua pior forma, corre-se o risco de uma politização em sentido partidário
ou faccioso, acobertada pelo manto da independência judicial.
Felizmente, no Brasil, não chegamos a esse ponto, mas o risco representado por esse tipo de politização exige uma vigilância diuturna.
R E P O R TA G E M
R E P O R TA G E M
junho 2004 diálogos&debates
35
“o executivo precisa
desviar o foco”
ENTREVISTA DESEMBARGADOR CELSO LIMONGI
POR CARLOS COSTA E SÉRGIO PRAÇA
FOTOS TIANA CHINELLI
O
diálogos&debates junho 2004
Acabou-se criando um clima emocional para se fazer essa
reforma. Deveria haver uma reforma científica, técnica, fruto
de discussões amadurecidas, que buscasse arredondar arestas, renovar procedimentos, atualizar o que era preciso. Com
mais espaço de discussão por notáveis, pessoas que compreendem bem o que estão fazendo. Não esse rolo compressor
que se montou, com essa pressa como para mostrar resultados. Muita coisa boa pode acabar sendo atropelada.
diálogos&debates O senhor conhece algum país onde um
controle externo do Judiciário atuou com eficiência?
celso limongi Na França ele atuou pessimamente, tanto que
já não conta mais com pessoas estranhas à magistratura no
tocante à punição de juízes. Aliás, o Judiciário francês não
é exatamente um poder. Existe uma autoridade judiciária
que recebe a proteção do presidente da República. Na Itália existe também um conselho externo muito complicado, com muitos membros em sua composição. Na Espanha também. Não vejo nenhum deles como modelo. Até
“Nós sabemos que os juízes de primeiro grau são bem fiscalizados pelas
corregedorias de todos os Estados, mas a cúpula do Judiciário não recebe
essa mesma fiscalização e acompanhamento”
clima de otimismo, quase euforia, que seguiu a
última troca de comando no Governo Federal,
dá sinais de ter chegado ao fim. Há no ar, neste
ano de eleições municipais, um clima de desassossego e de frustração. A agenda do Executivo
Federal para 2004 tem sido desastrada. O caso Waldomiro Diniz, o ‘abril vermelho’ do MST, os índices recordes de
desemprego, a assanhada onda de criminalidade e falta de
segurança... Não faltam preocupações para o presidente e
sua equipe. O país assiste, atônito, a uma inesperada reversão de expectativas: investiu-se muita esperança, o retorno
é pífio. Uma das maneiras de desviar a atenção da população para longe desses problemas concretos, defende o desembargador Celso Luiz Limongi, foi dar continuidade à
reforma do Judiciário. Presidente da Apamagis (Associação Paulista dos Magistrados) e membro da Associação Juízes para a Democracia, Limongi manteve seguidos contatos com membros do Congresso Nacional em 2003, durante a discussão e votação da reforma da Previdência, que, em
suas palavras, acabou provocando um clamor da sociedade
contra os funcionários públicos. Clamor parecido ocorre
agora, orquestrado contra os juízes, e por isso o Executivo,
nesse movimento diversionista, apressa uma possivelmente
nociva e certamente desnecessária reforma do Poder Judiciário. Para discorrer sobre esses e outros temas polêmicos,
o presidente da Apamagis manteve com Diálogos&Debates
a seguinte conversa:
36
diálogos&debates Uma reforma do Judiciário se impunha
como urgente e necessária?
celso limongi A reforma é, de certo modo, necessária para
acertar alguns pontos no Judiciário. Por exemplo, nós sabemos que os juízes de primeiro grau são bem fiscalizados
pelas corregedorias de todos os Estados, mas a cúpula do
Judiciário não recebe essa mesma fiscalização e acompanhamento. Não há um controle perfeito, por exemplo, de
processos que deveriam ter sido devolvidos pelos juízes de
segundo grau mas não o foram. Há certo atraso, que não é
necessariamente devido à negligência do juiz. Mas há um
serviço acumulado, por causa do atraso, e é preciso pôr fim
a isso, criar uma outra dinâmica. Em suma: é necessária e
oportuna uma fiscalização na segunda instância. Para isso,
pode ser criado esse Conselho Nacional de Justiça, proposto
na reforma do Judiciário que está em tramitação. Mas desde
que seja um conselho integrado por membros do Judiciário,
e não por pessoas estranhas à magistratura. Com a criação
desse conselho nacional, nós afastaríamos a regionalização
da fiscalização. Agora, dizer que essa reforma era algo urgente, não é o que nos parece. Acertos pontuais eram necessários, mas não existe esse clamor todo que se criou.
diálogos&debates Mas a reforma que está praticamente votada diz o que sobre o conselho externo?
celso limongi A reforma que está sendo votada prevê um
Conselho Nacional integrado por duas pessoas estranhas à
magistratura. Contra isso é que nos colocamos. Um desses
integrantes seria indicado pela Câmara dos Deputados e o
outro pelo Senado Federal. São 16 membros no total: dois
cidadãos, dois advogados, dois promotores e dez juízes. Essa
composição contraria o princípio da hierarquia, porque há
um juiz de primeiro grau que vai ser escolhido pelo Supremo. É muito estranho que um juiz de primeiro grau, sujeito
à corregedoria estadual, passe a ser um membro de um conselho nacional, e portanto fiscalizando toda a cúpula do seu
próprio tribunal. Seria quase como ter o soldado investigando o seu general. Isso já está praticamente certo. Por quê? No
Senado, não se quer alterar o relatório, que já foi aprovado
na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), para não voltar para a Câmara dos Deputados. A única razão é a pressa.
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porque, no mais das vezes, são regimes parlamentaristas.
Jamais pode haver o conselho externo em um regime presidencialista, que segue o modelo americano de separação
profunda de poderes, e é a harmonia dessa independência
dos três poderes que dá o tom.
diálogos&debates Um controle externo, qualquer que seja
sua composição, inibe o civismo do magistrado?
celso limongi A função de julgar não é uma função matemática. Posso julgar em favor do Estado, em determinada
causa, e mesmo posso julgar contra o Estado nessa mesma
causa, dependendo da minha postura. Há argumentos razoáveis tanto para um lado como para outro. Se eu me sentir pressionado, sentir medo de perder o cargo, de ser considerado um juiz arbitrário, vou ter medo de julgar em desfavor do Estado, mesmo indo contra a minha consciência.
Ninguém vai poder reclamar, porque terá sido uma decisão razoável. Mas no meu íntimo eu posso sentir que aquela
decisão é injusta. Portanto, no melhor dos cenários, é sempre desejável que o juiz não seja pressionado por interferências externas e tenha a maior independência para emitir seus julgamentos.
junho 2004 diálogos&debates
37
“O governo provocou um clamor público contra o Judiciário. Isso tem sido
mais acentuado por Lula, que se referiu à caixa-preta do Judiciário”
diálogos&debates Por que não houve espaço suficiente para
uma discussão sobre a reforma, envolvendo juristas e pessoas do ramo? Esse projeto e essa proposta de uma reforma do
Judiciário vêm de longa data: em 1992 o dr. Hélio Bicudo já
havia apresentado uma proposta de emenda constitucional
(PEC 69/92). O Judiciário não gritou a tempo?
celso limongi O Judiciário, como de costume, não intervém
tanto, não cabe a ele criar leis. É uma vontade do Legislativo, não se deve interferir. O Judiciário é zeloso da divisão
dos poderes. Acho que houve algum excesso de confiança
por parte do Judiciário no Legislativo, e o projeto foi passando. O fato novo foi essa urgência do Executivo, que precisa sempre culpar alguém, e o Judiciário tem sido o grande
bode expiatório, culpado por tudo que acontece de errado
no Brasil. Então, o governo provocou um clamor público
contra o Judiciário. Isso tem sido mais acentuado pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, que se referiu à “caixa-preta” do Judiciário, provocou os funcionários públicos, como
se eles fossem também outra das razões dos problemas do
país, incitou a sociedade contra os funcionários públicos
para justificar uma apressada reforma da Previdência. E isso
já nos primeiros meses de governo. Uma vez aprovada a reforma da Previdência sem a necessária discussão nas bases,
continuou esse mesmo clima emocional, o governo passou
à reforma do Judiciário, a nova bola da vez. Isso serviu até
mesmo como manobra diversionista, por ter surgido o escândalo do Waldomiro Diniz. E o Executivo, mais do que
nunca, precisava desviar o foco das atenções. Que tipo de
reforma pode ser conseguida nesse clima?
diálogos&debates O senhor já teve alguma atuação em Brasília, durante a discussão da reforma da Previdência, na
época na condição de vice-presidente da Apamagis. Houve
contatos com grupos de parlamentares no sentido de negociar a reforma da Previdência. Por que essa pressa em fazer a reforma sem ter havido discussão e aprofundamen-
38
diálogos&debates junho 2004
to dos temas? Também a reforma da Previdência foi meio
de afogadilho.
celso limongi Foi completamente de afogadilho. Não foi uma
reforma discutida com a sociedade, pesando prós e contras,
analisando o impacto de algumas medidas. Projeções alarmistas dos custos da Previdência careciam de fundamento
técnico. O projeto veio pronto do Executivo. Os próprios
petistas não aceitavam esse projeto. Tanto é que quatro deles foram expulsos por votarem contra e oito, que se abstiveram, foram suspensos. Não houve espaço para uma discussão técnica. Pelo que se está percebendo, cada vez mais
claramente, o governo não tem projetos concretos para o
país e aproveita para fazer reformas como a da Previdência e a do Judiciário. Conseguirá fazer essas reformas que
ninguém conseguiu ao longo desses anos todos. Seria uma
grande coisa para apresentar à sociedade.
diálogos&debates Se essa reforma do Judiciário vier a ser
aprovada do modo como está, ela não padece de alguns vícios de inconstitucionalidade capazes de retirar o próprio
propósito reformista da reforma?
celso limongi Acho que há inconstitucionalidade, violando
uma cláusula pétrea da Constituição, no que se refere à separação dos poderes. Todos nós sabemos que no Brasil temos três poderes autônomos, independentes e harmoniosos
entre si, mas o Executivo é hipertrofiado. Deveria haver um
Legislativo que legisla, um Executivo que cumpre as leis e
administra e um Judiciário que julga de acordo com as leis.
Mas o Executivo legisla, pondo de joelhos o Congresso Nacional. E agora também quer para si o papel de julgar, porque, se ele tem um conselho externo composto por pessoas
estranhas à magistratura e se impõe a súmula vinculante e
se o STF edita uma súmula vinculante cedendo a pressões
vindas de conglomerados econômico-financeiros poderosíssimos, o Judiciário não será mais do que um braço do
Executivo. Cumprirá o pacote que já vem pronto. Porque
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o governo pressiona, as empresas globalizadas pressionam,
não se sabe obviamente quais pessoas comporão o STF no
futuro, pessoas estranhas à magistratura. Se o Supremo ceder a essas pressões, o que acontecerá? Ele vai editar uma
súmula vinculante que atenderá aos interesses dessas empresas e vincula sua decisão a toda a magistratura nacional! O papel do juiz cessa quando uma súmula lhe diz que
decisão deve tomar em cada caso. Então o Executivo acaba
também julgando, porque pressiona o Supremo. É exatamente isso o que o governo, o Banco Mundial e as empresas querem. Por isso são perigosos tanto a súmula vinculante quanto um Conselho Nacional da Magistratura, com
integrantes indicados pelas áreas políticas.
diálogos&debates Pelo que o senhor observa, não há nada
de positivo nessa reforma?
celso limongi Alguns pontos podem ser positivos, como a
proibição do nepotismo. Mas isso para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não é nenhuma novidade. Nós já
temos uma lei estadual que proíbe o nepotismo. É interessante pontuar que isso é proibido somente para o Judiciário, não para os demais poderes, sob o argumento de que a
reforma é só do Judiciário. Tudo bem. Mas não se poderia
também estender isso ao Legislativo e ao Executivo? Vamos
esperar que um dia se faça uma reforma deles para também
proibir o nepotismo. A distribuição imediata de processos
também é um outro ponto positivo. É preciso resolver, de
uma vez por todas, o represamento de processos que existe
principalmente no Estado de São Paulo. É o único Estado
que está com uma sobrecarga de processos. É verdade que
existe uma explosão de processos em São Paulo. É algo incomparável com os demais Estados da Federação. Não temos estrutura para isso. E isso não é culpa do Judiciário. É
importante distinguir que temos um poder Judiciário e temos, dentro do poder, juízes. O Judiciário é uma estrutura
arcaica, lenta, pesada, que não se desenvolve. E temos os juízes, que se matam de trabalhar, desde o juiz-substituto até
o ministro do STF. Todos trabalham muito, mas não se tem
culpa desse atraso todo. É como um médico que vai trabalhar em um hospital sem equipamentos, remédios etc.
diálogos&debates A reforma não contempla alguns elementos que combateriam o excesso de recursos às decisões judiciais, um dos causadores do trabalho acumulado?
celso limongi Não, isso continua como está. Pode haver uma
súmula impeditiva de recursos, que talvez fosse uma melhor solução do que a súmula vinculante. Ela impede o re-
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curso quando a decisão do juiz é coincidente com a súmula.
Isso também significa que não se está violentando a consciência do juiz. Que seria a situação em que o juiz poderia
ter uma determinada opinião, mas é obrigado a decidir de
outra forma porque o Supremo editou uma súmula vinculante. Ele nem precisa julgar, nesse caso, apenas aplicaria a
súmula. Mas a súmula impeditiva de recursos é diferente:
o juiz pode decidir de outra forma. Ele não tem sua consciência violentada.
diálogos&debates O senhor não considera que essa reforma
poderia se preocupar em propiciar uma estrutura mais eficiente para o trabalho dos distintos judiciários? Por exemplo, alocando novas fontes de receita, com um conselho externo que se encarregasse da administração?
celso limongi Fico apreensivo com a idéia de um conselho
externo que tenha a finalidade de apenas administrar. Pode
administrar para o bem ou para o mal. Não é difícil que um
conselho externo que teria uma atribuição só de administração pudesse sufocar o Judiciário, até de propósito. Acho
que o Judiciário precisa de apoio técnico, porque o Judiciário não pode mais ser amador. E ele ainda o é. Este prédio
em que estamos só tem um aparelho de fax, para atender a
todos os gabinetes. A informatização do tribunal é calamitosa. Haveria um ganho enorme caso o Judiciário ganhasse essa atenção.
diálogos&debates Em Santa Catarina, para dar apenas um
exemplo, o Judiciário parece estar muito mais atualizado,
com a possibilidade de consultas de andamento de processo online, pela internet ou por intranet. Por que essa discrepância?
celso limongi O nosso Judiciário em São Paulo tem uma tremenda falta de estrutura. O volume de processos em São
Paulo é 20 vezes maior do que a média nacional. São Paulo
tem cerca de 40 milhões de habitantes e concentra boa parte
das causas nacionais, pelo volume de empresas, direitos autorais, conflitos de ordens diversas. Não se é impunemente
o maior Estado da Federação. Isso provoca uma demanda
em nosso Judiciário que é impossível satisfazer plenamente.
Há ainda o impedimento da Lei de Responsabilidade Fiscal,
que proíbe a despesa acima de 6% do orçamento líquido.
Mas o Judiciário não grita, não reclama, não tem força para
obrigar o cumprimento de um orçamento razoável, então
fica na mão do Executivo, dependendo da boa vontade do
chefe do governo. O Judiciário não é quem arrecada. No final das contas, apenas recebe os repasses.
junho 2004 diálogos&debates
39
diálogos&debates Quais são os grandes problemas do Judiciário que a reforma não está contemplando?
celso limongi Uma das coisas mais importantes seria a reformulação de leis processuais: o Código de Processo Civil
e o Código de Processo Penal. Sem isso não há como dar
celeridade aos julgamentos. E essa mudança depende do
Congresso. É o ponto mais fundamental. A multiplicidade de recursos propicia o atravancamento do Judiciário. O
juiz chega a julgar o mesmo processo diversas vezes, com
visível paralisia no andamento de seu trabalho. A título de
embargos de declaração, a parte quer que ele aprecie novamente. Outro aspecto muitíssimo importante é o calote dos
Executivos. Porque o Executivo é um poder gerador de demanda. Se a Prefeitura Municipal de São Paulo, a Fazenda
do Estado e o INSS e a União no campo do Estado de São
Paulo, se fossem cumpridas todas as obrigações por parte
dessas entidades públicas, nós teríamos uma redução considerável de processos, sobretudo no STF. Sobraria 20% do
que tem hoje.
diálogos&debates Mas é um bom argumento para o Executivo: não paga agora, deixa para pagar depois de um processo que demora... São 20 anos que ele ganha para pagar
a dívida.
celso limongi O governo posterga o pagamento para o futuro mais longínquo possível. Isso sem contar com as diversas
moratórias. Na vigência da Constituição de 88, o Legislativo já contemplou o Executivo com duas moratórias, uma
de oito anos e outra de dez, retardando o cumprimento das
obrigações pelo Estado. Isso descarrega mais processos em
cima do Judiciário. É um calote oficial. Se nós tivéssemos
Executivos que cumprissem as obrigações, não teríamos
atrasos nos processos, esse volume tão grande, principalmente em São Paulo. No STF, cerca de 75% dos processos
são oriundos do Estado de São Paulo. Se houvesse a súmula vinculante contra o poder público, eu estaria de acordo.
Pelo menos o direito individual estaria garantido. Seria uma
forma de impedir o abuso de recorrer ao Judiciário, estabelecendo um dispositivo que impedisse os Executivos de
recorrerem das decisões, mesmo sabendo de antemão qual
era a orientação pacificada do Supremo. É necessário um
dispositivo dessa natureza.
diálogos&debates O senhor considera que nessa reforma o
Judiciário recebeu a devida atenção do Congresso?
celso limongi Não. Primeiro porque o clima foi sempre passional. Não há absolutamente uma visão técnica nessa refor-
40
diálogos&debates junho 2004
ma. Mas, como já disse, seria necessária uma ação política
qualquer, um golpe de cena, já que o governo federal é paupérrimo em termos de ação social. Esse é um dos ângulos.
Em segundo lugar existe a vontade perversa de pressionar
os juízes. Essa é a verdadeira intenção da reforma.
diálogos&debates O senhor não estaria sendo muito corporativista?
celso limongi Eu seria se não estivéssemos pagando tantos
juros para o FMI e se não existissem as pressões do Banco
Mundial. São realidades que estão aí, não é sentimento de
espírito de corpo.
diálogos&debates O senhor toca num ponto muito sério,
na medida em que o Banco Mundial está por trás de todo
o processo de “modernização” dos Judiciários da América Latina.
celso limongi Sim, eles querem a modernização, uma modernização para eles, seguindo um modelo cômodo. Querem a domesticação. A situação ideal para essas entidades
seria que seus contratos padronizados fossem cumpridos
por todos os Judiciários. Veja, nossas empresas são compradas por empresas estrangeiras e toda sua direção é substituída. Isso não acontece na Itália, por exemplo. Eles têm
leis protetoras das empresas italianas. Nossas empresas já
desapareceram.
diálogos&debates Em síntese, é necessário uma reforma, mas
não necessariamente essa que se está votando.
celso limongi Registro minha frustração em relação à reforma do Judiciário. Fico desalentado. Perde-se uma grande
oportunidade de fazer um trabalho bom. Mais uma vez, a
sociedade é enganada porque o Executivo passa a idéia de
que a reforma é necessária. Não precisamos de uma reforma de muitos pontos, mas uma reforma pontual, pequena.
diálogos&debates A mudança do Código de Processo Civil
não é algo que o Legislativo podia fazer?
celso limongi Sim, mas isso não está dentro da alteração da
Constituição Federal. Não é uma reforma do Judiciário.
Nós precisamos de instrumentos para o Judiciário atuar,
mas isso não implica a mudança da estrutura do Judiciário. Essa matéria para instrumentalizar o direito é processual, não constitucional. Não precisaria muita coisa dentro da reforma do Judiciário. A própria súmula impeditiva de recursos é uma inovação. A quarentena para a entrada na magistratura seria boa, mas não veio, porque não
interessa aos políticos. Precisamos de três anos, sim, para
que pessoas que sejam ligadas ao governo federal pudessem ingressar nos tribunais superiores. É necessário, mas
caiu no relatório. Porque não interessava nem ao governo
nem à classe política.
diálogos&debates Há um diagnóstico de que um juiz não é
preparado para cuidar das muitas tarefas administrativas
que lhe cabe acompanhar em seu dia-a-dia. Como se equaciona esse problema?
celso limongi Poderia haver uma carreira administrativa
dentro do Judiciário. A Ordem dos Advogados do Brasil
preconiza isso. Mas eles querem trabalhadores autônomos,
e eu acho que tem que haver alguma fiscalização por parte
dos juízes. Seria bom se houvesse uma administração profissional dentro de um cartório, por exemplo. O Judiciário
pode contratar técnicos e aceitar seus pareceres. Isso deve
ser feito. Não faz porque não é a tradição. O Judiciário não
tem plano de gestão. Daqui a três anos, não sabemos o que
vai acontecer. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem
presidentes que cumprem um planejamento qüinqüenal,
de longo prazo. A reforma do Judiciário poderia estipular
um mandato de três anos para o presidente do Tribunal,
por exemplo.
diálogos&debates O senhor tem alguma mensagem final
para os magistrados de São Paulo?
celso limongi Gostaria de frisar a necessidade de haver autonomia orçamentária para o Judiciário. Deveria baixar em
Brasília o discernimento para que a reforma do Judiciário
fosse mínima. Não é amarrando homens e instituições, ferindo princípios constitucionais, que se faz uma reforma.
Deve ser algo que se vislumbre bom, que seja eficaz. Com a
autonomia orçamentária, o Judiciário seria muito mais independente e capaz de atender às demandas da sociedade.
Sou otimista quanto à eficácia do sistema judicial se essa
mudança for consolidada. 
“A distribuição imediata dos processos é outro ponto positivo. É preciso
resolver o represamento de processos que existe em São Paulo”
diálogos&debates Mas o Judiciário não precisa se pôr em dia
com um mundo que evoluiu?
celso limongi Isso vem acontecendo através de alguns remédios jurídicos muito importantes: a ação civil pública, a ação
popular, os mandados de segurança. São instrumentos que
são dados ao cidadão e à própria administração. O Ministério Público funciona fiscalizando a administração. Então
há uma evolução do Judiciário. O Ministério Público hoje
é um defensor da sociedade revitalizado pela Constituição
de 88. Mas é verdade também que houve um avanço tecnológico que o Judiciário não tem acompanhado.
E N T R E V I S TA
junho 2004 diálogos&debates
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um desenvolvimento
possível
na amazônia
Ilustração Kipper
4 trilhões de dólares – seis vezes o
PIB brasileiro – é o valor dos serviços
prestados pela floresta amazônica na
regulação do fluxo d’água, retenção
de nutrientes para a atmosfera,
regulagem climática, polinização,
diminuição do efeito estufa...
42
diálogos&debates junho 2004
M E I O A M B I E N T E
T
POR RICARDO ARNT
odo ano a cena se repete. O ministro reúne a imprensa e anuncia um número fatídico que aparece
estampado no dia seguinte nos jornais. Em abril, o
governo anunciou que a taxa de desmatamento na
Amazônia para o período 2002-2003 foi a segunda
maior já registrada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais: 23 mil km², 2% a mais do que em 2000-2001.
Há 20 anos o desmatamento acumula proporções catastróficas. O ritmo se arrefece ocasionalmente, mas não pára
de avançar. Os índices mais moderados foram os de 19901991, 11 mil km², e o recorde, os de 1994-1995, 29 mil km²,
durante o Plano Real. Não é preciso ser especialista para
perceber que, quando a taxa de investimentos aumenta na
economia, o desmatamento se acelera. Se a derrubada aumentou no ano passado, quando o país estava em recessão,
foi porque o agrobusiness não seguiu esse ritmo.
Quando o Brasil voltar a crescer, deverá haver mais aumento de desmatamento na Amazônia. Cerca de 16% da
floresta original (653 mil km², uma área do tamanho da
junho 2004 diálogos&debates
43
França e de Portugal juntos) já foram derrubados. Até o final desta década, é provável que cheguemos a 20%. Os vetores do desmatamento são bem conhecidos: exploração
madeireira, grilagem de terras, pecuária extensiva, expansão agrícola, falta de governabilidade. As queimadas concentram-se onde já se concentravam, nos limites da fronteira econômica, no “arco do desmatamento” que cinge a Amazônia pelo
leste e pelo sul, do Maranhão ao Acre.
Em 2003, 25 municípios no Mato
Grosso, Pará e Rondônia concentraram 50% das queimadas novas. Só
no Mato Grosso o desmatamento aumentou 133%. O sistema de fiscalização da Fundação Estadual do Meio
Ambiente permitiu precisar, pela primeira vez, que, dos 18 mil km² desmatados no Estado, apenas 5 mil km² tinham autorização legal – ou seja, cerca de 73% do desmatamento foi ilegal.
baixos custos de manutenção. A economista Susanna Hecht, da Universidade da Califórnia, ressaltou que a pecuária, além de requerer mão-de-obra pouco qualificada para a
remoção da floresta, “permite que os animais sigam andando para o mercado, mesmo se pontes caírem ou se as vias se
tornarem intransitáveis”. O que predomina no interior da
Amazônia são os instrumentos econômicos mais baratos e toscos: a motoserra, o fogo, o boi e o garimpo.
A teoria do valor afirma que a utilidade de uma coisa é o seu valor de uso.
Portanto, não se valoriza o que se tem
em excesso. Percebidas como infindáveis e excessivas, as florestas brasileiras têm sido tratadas como obstáculo
à expansão econômica, sendo pouco
ou nada valorizadas como fonte renovável de recursos. Culturalmente, esperar dos brasileiros a preservação de florestas é como esperar dos esquimós a preservação do gelo ou dos beduínos
o cuidado com a areia. No entanto, a floresta pode ser o
Banco Central de uma economia baseada no conhecimento. O Brasil detém a terceira maior área florestal do mundo, depois da Rússia e do Canadá, mas as nossas florestas
tropicais são muito mais ricas em biodiversidade do que as
temperadas ou frias.
Nos últimos dez anos o
país criou uma extensa
legislação ambiental
tão rigorosa quanto
desobedecida, e investiu
na fiscalização
Uma saga de turbulências
Nos últimos dez anos o país criou uma extensa legislação ambiental tão rigorosa quanto desobedecida, e investiu na fiscalização, mas não conseguiu reverter o quadro.
Diante das evidências e da tendência reiterada, o futuro da
Amazônia gera inquietação. A manter-se a série histórica, a
região será gradualmente desmatada, mais ou menos rapidamente, talvez como a Mata Atlântica foi. A continuidade
do avanço do desmatamento sugere que o país não consegue fazer diferente. Mas também há progresso e empenho
para alterar esse curso e equilibrar desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Entre os agentes econômicos responsáveis há consenso a favor de um desenvolvimento sustentável, sensível às características da região e
adequado à sua vocação. A questão é que a sustentabilidade custa mais caro.
Tal como o movimento para o oeste nos Estados Unidos
no século XIX ou a expansão russa para a Sibéria no começo do século XX, o desenvolvimento da Amazônia é uma
saga turbulenta. Os agentes econômicos dispersos pelo vasto território desenvolvem suas atividades com os recursos
de que dispõem, enfrentando carências e falta de infra-estrutura e de serviços. Trata-se do desenvolvimento possível. Um estudo recente do economista Sergio Margulies, do
Banco Mundial, mostra que a alta lucratividade da pecuária
na Amazônia repousa na abundância de terra barata e nos
44
diálogos&debates junho 2004
Queimadas e a riqueza da biodiversidade
A biodiversidade é uma fonte da diversidade genética capaz de renovar a ciência e a economia. No ano 2000,
o mercado de produtos biotecnológicos movimentou 700
bilhões de dólares. No Brasil, o setor ainda é pequeno (500
milhões de dólares por ano), mas cresce a cada ano. Os biólogos são o maior contingente profissional entre os 5 mil
doutores que o país forma anualmente. A extinção gradual
da floresta mediante sua conversão em pasto elimina a possibilidade de novos medicamentos, produtos agrícolas, enzimas industriais, fermentos, fertilizantes, pesticidas, plásticos, lubrificantes, adesivos, óleos industriais, madeira, celulose, fibras, polpas e têxteis. Uma miríade de recursos some
antes de serem conhecidos. A cada queimada que se faz, um
mundo de novos negócios se esvai.
A biotecnologia polariza a cisão entre os fornecedores de matéria-prima e os fornecedores de tecnologia, entre os países possuidores de genes mas desprovidos de capacidade para explorá-los e os países detentores de tecnologia e de recursos para manipulá-los. Sem capital para in-
M E I O A M B I E N T E
vestir e tecnologia para transformar, a biodiversidade vale
muito pouco.
Até recentemente inexistia um projeto brasileiro conseqüente para explorar os recursos da biodiversidade amazônica. Este ano o país vai inaugurar um pólo importante, o
Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), que a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) construiu em Manaus. O CBA desenvolverá pesquisas e produtos da biodiversidade aproveitando e preservando os recursos da floresta em pé. Apenas 2% do Estado do Amazonas foi desmatado.
Preservar largas extensões florestais intactas na Amazônia implica planejar o desenvolvimento e agir preventivamente. Trata-se, ao mesmo tempo, de aprimorar os mercados existentes e investir em mercados futuros. O Banco da
Amazônia (Basa), por exemplo, só recentemente passou a
oferecer linhas de crédito para o fomento do manejo florestal. Ao contrário do que muitos supõem, são as empresas
maiores as que investem em práticas sustentáveis, como a
Juruá Florestal e a Cikel, do Pará. Costumam ser as pequenas empresas descapitalizadas que se arriscam em empreendimentos ilegais e predatórios.
No agrobusiness, os grupos maiores
preferem investir em fazendas já desmatadas, pois é mais barato converter pastagem em lavoura do que derrubar floresta, uma vez que o Código
Florestal estipula que as propriedades
em área florestal mantenham 80% de
reserva legal. Na maioria das vezes, são
os pequenos fazendeiros e os colonos
pobres que compram e queimam áreas de mata fechada, significativamente
mais baratas, na esperança de poder exceder impunemente
o limite de 20% de desmate. O pesquisador Judson Valentin,
da Embrapa do Acre, é taxativo: “São os pequenos que desmatam para comer e para plantar milho, arroz e feijão, e depois transformam as áreas em pastagem”.
Diante da recente expansão do cultivo da soja, há dois
cenários possíveis. Se a lavoura mecanizada aproveitar as
extensas pastagens degradadas do “arco do desmatamento”
haverá muita terra para ocupar e poderá trazer benefícios
ao ambiente. Os pecuaristas costumam desmatar até a beira d’água dos rios para o gado beber, violando a lei e gerando erosão e assoreamento, enquanto os agricultores tendem
a preservar as matas ciliares e garantir o abastecimento de
água. Entretanto, se a ilegalidade a varejo continuar predo-
minando, a destruição avançará sobre áreas florestais, como
acontece no vale do Rio Araguaia, onde os municípios de
Querência e Porto dos Gaúchos figuram entre os dez mais
concentradores de queimadas em 2003.
Um serviço de 4 trilhões de dólares
Agir preventivamente significa planejar a sustentabilidade e antecipar-se aos impactos ambientais previsíveis
das obras de infra-estrutura projetadas para a Amazônia.
Entre as principais, destacam-se a pavimentação da estrada Cuiabá–Santarém no trecho paraense, a construção de
hidrelétricas como a de Belo Monte, no Rio Xingu, e Jirau e
Santo Antônio, no Rio Madeira, ou o gasoduto Urucu-Porto Velho, do Amazonas até Rondônia. Recentemente o governo antecipou a obtenção de Licença Ambiental Prévia
para projetos de infra-estrutura, colocando-a como pré-requisito para a licitação, antes do início das obras. Os investimentos em infra-estrutura, tão necessários em uma região
carente como a Amazônia, desandam uma lógica perversa
de valorização fundiária e grilagem de terras tão logo são
anunciados. Madeireiros, grileiros e posseiros surgem antes dos tratores. A regularização fundiária é o primeiro passo para mitigar
o desmatamento e controlar a ocupação irregular.
Promover o desenvolvimento sustentável não interessa só a empresários. O economista americano Robert Constanza estima em 4 trilhões
de dólares – seis vezes o PIB brasileiro
– o valor dos serviços globais prestados pela floresta amazônica ao planeta: regulação do fluxo d’água, retenção
e bombeamento de nutrientes para a atmosfera, regulagem
microclimática, polinização, absorção de carbono da atmosfera, diminuição do efeito estufa etc. Nesse total não foi incluído o valor das eventuais patentes e novas tecnologias
desenvolvidas a partir da biodiversidade. Embora o Brasil
detenha entre 10% e 20% do total de espécies do planeta,
até hoje não foi capaz de desenvolver um medicamento derivado da sua biodiversidade. Mas pode vir a ser. Um país
que figura entre os dez do mundo que foram capazes de seqüenciar o genoma de um ser vivo também pode fomentar
o desenvolvimento sustentável na Amazônia. 
As florestas brasileiras
têm sido tratadas como
obstáculo à expansão
econômica, sendo pouco
ou nada valorizadas como
fonte de recursos
M E I O A M B I E N T E
Ricardo Arnt é jornalista, autor de Um Artifício Orgânico: Transição na Amazônia e Ambientalismo (Rocco, 1992).
junho 2004 diálogos&debates
45
uma constituição
para a europa
Projeto de uma Carta constitucional para os países da União
Européia é mais um passo ambicioso do processo de integração.
Complexidade dos temas e interesses contraditórios, contudo,
podem dificultar sua aprovação e seu funcionamento
O
ano de 2004 poderá entrar para a história recente
da Europa por dois motivos. O primeiro deles, já
atingido, foi a entrada festiva de dez novos países
para a União Européia em 1o de maio. O segundo é que os europeus, depois de 18 meses de debates, começarão a decidir se adotam uma Constituição.
Esse é mais um esforço de engenharia institucional sui
generis dentro do ordenamento jurídico e econômico internacional. Depois do Parlamento, do Supremo Tribunal
de Justiça, do Banco Central e da moeda única – o euro –,
a formulação de uma Constituição mostra que a União Européia é muito mais do que um amplo mercado compartilhado por mais de 450 milhões de pessoas, distribuídos em
dezenas de línguas, por 25 países.
E o que mais chama a atenção é exatamente a possibilidade de criar uma Constituição para tantos países (e povos), com suas diferenças e interesses quase sempre de difícil harmonização. Pois, para início de conversa, de qual
Europa estamos falando? Existe realmente uma Europa, no
sentido de uma comunidade de nações que compartilham
uma mesma identidade? Ainda mais em um continente tão
46
diálogos&debates junho 2004
POR MARCELLO SIMÃO BRANCO
marcado por guerras e divisões ao longo dos séculos? Essas
perguntas são pertinentes, porém escorregadias, pois correse o risco de adentrarmos em discussões intermináveis. Se é
preciso um parâmetro pragmático, podemos responder que
sim, que há uma Europa, ao menos no que concerne ao seus
marcos delimitados no interior de sua comunidade econômica e política de países, a União Européia.
Mesmo assim, ainda é possível questionar: como se
constrói uma Constituição sem o amparo de um Estado
concreto, de uma só nação ou povo? Essa é a pergunta do
professor Miguel Angel Herrera, catedrático de Direito Internacional da Universidade do País Basco, na Espanha. “É
um problema terminológico, mas que nos situa na dificuldade de entender o conjunto de leis que está sendo gestado. Em todo caso, o caráter constitucional se fundamenta
no aspecto legitimador de uma mesma comunidade, associado à existência de um poder de origem democrática, que
adota decisões políticas conscientes para regular alguns aspectos centrais dessa sociedade”, argumenta.
Nesse sentido, o atual projeto constitucional congrega
vários temas, todos eles passíveis de controvérsia, mas que
P O L Í T I C A
permite um conjunto de normas teoricamente mais equilibrado para uma melhor relação entre seus membros, do
ponto de vista político, econômico e jurídico.
O documento foi escrito pela Convenção sobre o Futuro da Europa – criada em dezembro de 2001 –, e integrado por parlamentares europeus e de países-membros,
além de pessoas ‘notáveis’, como políticos, juristas e intelectuais. Presidida por Valéry Giscard d’Estaing, ex-presidente da França (1975-1981), a Carta para ser oficialmente válida precisa da aceitação de todos os 25 países-membros, num processo que se inicia agora em junho e pode
se estender até 2006.
Quais são os principais pontos da Constituição, suas virtudes, seus defeitos, suas dificuldades de aplicação e conseqüências práticas que poderá trazer a cada um dos integrantes da ‘grande família européia’ (recentemente ampliada com a adesão de mais dez países,
a maioria vinda do antigo leste socialista do continente)?
Do ponto de vista da estrutura de
poder executivo, haverá três órgãos
centrais. O primeiro deles é o Conselho Europeu, composto por chefes de
Estado e de governo de cada país, que
terá um presidente eleito por dois
anos e meio, com mandato renovável uma vez, no lugar da atual presidência rotativa a cada seis meses. Já a
Comissão Européia, uma espécie de
secretariado, consistirá de um presidente e doze comissários. Tem por tarefas principais assegurar o respeito e funcionamento das leis da União, antes
de eventualmente cada caso chegar ao Tribunal de Justiça.
E será criado também um cargo de Ministro das Relações
Exteriores. Esse triunvirato ainda não se encerra, pois há o
Conselho de Ministros, que irá votar em maioria qualificada as decisões com alcance para todos os países integrantes da união.
Como se percebe, é uma estrutura complexa de poder.
E ela já está sendo criticada mesmo por fervorosos partidários do projeto de integração, como o francês Jean-Louis Bourlanges, deputado europeu desde 1989. “O aspecto
mais negativo dos artigos da Constituição está nesse desmantelamento do poder Executivo, dividido em três líderes distintos e concorrentes: um presidente do Conselho
Europeu, sem poder efetivo, um presidente da Comissão
– que é quem de fato comanda a burocracia cotidiana – e
um Ministro das Relações Exteriores, uma figura ainda de
difícil compreensão.”
Porém, a idéia de se escolher um presidente permanente para o Conselho Europeu, defendida pelos grandes países, como Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha,
vem da crítica do sistema atual de rodízio, além de trazer,
em tese, uma maior soma de responsabilidade e legitimidade ao mandatário do órgão. Já os países menores suspeitam
que essa mudança visa apenas a fortalecer os países mais
fortes nas tomadas de decisão.
Federalismo?
Também há quem veja nessa Constituição um passo
importante para a criação de um Estado federal europeu. É
fato que um ordenamento jurídico supranacional, em tese
com prevalência sobre os textos constitucionais dos paísesmembros, aliado a toda a estrutura
econômica, burocrática e política já
em vigor, traz argumentos ao federalismo em construção entre os países
europeus. Mas aspectos fundamentais ainda estão ausentes como, por
exemplo, a independência de cada
país para arrecadar os seus impostos
e a decisão de ir a uma guerra. Além
disso, a própria Constituição assegura o direito de um país retirar-se da
União, o que, claramente, vai contra
uma idéia de estado federal centralizado. Temos, sim, uma confederação
de Estados, pois “não há um Exército, a Justiça é de uma
aplicação delimitada, com assuntos de competência reservada a cada Estado, além de o Parlamento europeu não ser
comparável em termos legislativos aos de cada país-membro”, pondera o professor Herrera.
Ainda assim, uma crescente interdependência jurídica
e econômica é vista com temor ou oportunismo político,
como no caso de alguns deputados do Partido Conservador do Reino Unido, como o seu líder Michael Howard, que
afirma que “se a Constituição for adotada, o presidente do
Conselho Europeu é que será convidado à Casa Branca e
não o premiê britânico”. Certamente um exagero sem sustentação legal, apenas uma frase de efeito para se posicionar contra o projeto de integração européia.
Mas as dificuldades de acordo não param por aí.
Outra das questões mais sensíveis se relaciona com o
projeto de criação de uma política externa comum, tal qual
Aspectos fundamentais
estão ausentes do projeto
de Constituição como, por
exemplo, a independência
de cada país para
arrecadar impostos e a
decisão de ir à guerra
P O L Í T I C A
junho 2004 diálogos&debates
47
está embrionariamente exposta na Carta constitucional, por
meio da figura do Ministro das Relações Exteriores. Como
será possível, na prática, convergir interesses tão distintos?
Como conciliar visões às vezes antagônicas? Um exemplo
recente como o do apoio ou não à invasão norte-americana
do Iraque nos mostra como é difícil se chegar a um consenso. “É muito difícil harmonizar posições numa área ligada
à soberania nacional. A defesa e a política externa são dois
pilares de qualquer Estado independente”, observa o cientista político Michael Kreile, da Universidade Humboldt,
de Berlim, Alemanha.
Já existe a Comissão para a Política Externa e de Segurança Comum da União Européia (Pesc), mas é um passo mais distante no processo de consolidação da integração européia. Depois da adoção da Constituição, poderá se
constituir no próximo passo de construção da integração
do continente. Para Kreile, a principal dificuldade está na
relação da Europa com os Estados Unidos, pois os europeus
ainda não são capazes de agir sozinhos por causa do investimento pequeno nessa área, além do
comprometimento europeu em sua
aliança estratégica de defesa com os
Estados Unidos, por meio da Otan
(Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Trazendo novamente a discussão
para um plano mais imediato, o que
é possível afirmar é que essa Constituição terá impacto concreto nas leis
de imigração e no combate aos crimes policiais no interior dos paísesmembros. Cada país ainda tem uma legislação própria sobre as leis de imigração e de asilo político, mas será possível decidir pelo voto da maioria dos membros uma determinada medida com aplicação em todos os países. Ou seja:
na falta de consenso sobre uma única norma legal, aplicarse-á uma regra da maioria. Os efeitos práticos de tal decisão deverão ser vistos após as eventuais tomadas de decisão. A Constituição também estabelece uma harmonização
para alguns tipos de crime com implicações além das fronteiras nacionais, como casos de corrupção, tráfico de drogas e terrorismo.
Algumas questões de fundo mais cultural e metafísico
tiveram lugar, como a religião e o tipo de laicismo, além da
escolha de uma língua oficial para a União. Ambas foram
objeto de acaloradas discussões, umas das poucas com ressonância efetiva entre a opinião pública européia.
Foi decidido que o alemão, o francês e o inglês são as
línguas mais importantes, do ponto de vista da burocracia
e do ordenamento econômico. Predominou o bom senso
após uma discussão algo insana e romântica sobre a ressurreição do latim.
Quanto à questão religiosa foi decidido que deve haver
uma referência aos valores cristãos, mas sem a menção explícita de Deus. A França foi o país que mais se opôs a referências religiosas na Carta. Irlanda, Itália e Polônia – com
o apoio do Vaticano – defenderam o papel cristão do texto.
O que pode parecer como uma questão menor ou mesmo
uma curiosidade, na verdade pode ter conseqüências políticas e econômicas importantes. Isso porque a menção ao
cristianismo deve ser mais um fator de dificuldade para a
entrada da Turquia, país muçulmano de quase 70 milhões
de habitantes.
diálogos&debates junho 2004
Votos no
Conselho da UE
Membros
População
(milhões)
PIB per
capita
(US$ Mil)
Alemanha
82,4
26,2
29
França
61,7
26,0
29
Reino Unido
59,2
25,5
29
Itália
57,0
25,1
29
Espanha
40,4
21,2
27
Polônia *
38,6
9,7
27
Holanda
16,0
27,2
13
Quem manda mais?
Grécia
10,6
19,1
12
No que se refere à divisão da estrutura de poder dos países-membros da União Européia, uma
das questões mais polêmicas e ainda
abertas a uma decisão final concerne ao peso dos votos no Conselho de
Ministros da União Européia, que é o
órgão de tomada de decisão máximo
da instituição. Como se pode observar na tabela, dos 25 países, seis têm
um peso muito maior que os outros:
Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Espanha e a recém-chegada Polônia. Juntos eles representam 53% dos
votos, baseado na população de cada país. Não se pode dizer que esse critério seja injusto, mesmo que a Alemanha
questione firmemente que ela está sub-representada, pois,
com o dobro da população da Espanha e da Polônia, tem
apenas dois votos a mais.
Contudo, este não é o maior dos problemas, pois numa
reunião para se discutir aspectos da Constituição em outubro do ano passado, foi apresentada uma outra proposta
para esse sistema. Nele, o Conselho de Ministros passaria
a votar em maioria qualificada, e as decisões poderiam ser
adotadas se aprovadas por uma maioria de Estados representativos de 60% da população. Isso daria um peso muito
maior à Alemanha, justamente o país mais rico e populoso
da Europa. De 9,2% de poder de voto do sistema atual, ela
passaria para 18,2% com o novo sistema, praticamente dobrando seu poder de voto. Os muitos países pequenos e es-
Portugal
10,3
19,4
12
Bélgica
10,3
29,2
12
República Tcheca *
10,2
15,3
12
Hungria *
10,2
13,3
12
Suécia
8,9
26,0
10
Áustria
8,1
27,9
10
Eslováquia *
5,4
12,4
7
Dinamarca
5,4
28,9
7
Finlândia
5,2
25,8
7
Irlanda
3,9
29,3
7
Lituânia *
3,6
8,4
7
Letônia *
2,4
8,9
4
Eslovênia *
2,0
19,2
4
Estônia *
1,4
11,0
4
Chipre *
0,76
15,0
4
Luxemburgo
0,45
48,9
4
Malta *
0,39
17,2
3
Os partidários da
Constituição temem
referendos, mesmo
sabendo que é um
mecanismo democrático
para legitimar o texto
48
A EUROPA DOS 25 PAÍSES-MEMBROS
P O L Í T I C A
(a partir de novembro
de 2004)
* Novos integrantes da União Européia a partir de 1 o de maio de 2004.
Fonte: Folha de S. Paulo, 2 de maio de 2004, a partir de dados do Graphic News, CIA World
Factbook e Wikipedia Encyclopedia.
P O L Í T I C A
pecialmente Espanha e Polônia estrilaram a ponto de levar
a reunião a um impasse. O tema deverá ser retomado em
novembro deste ano.
Promulgação
Para entrar em vigor, a Constituição deve ser referendada por todos os países-membros. Em princípio, a análise e
decisão final será feita no interior dos Parlamentos nacionais. Mas aos poucos os países estão propondo referendos
para a decisão definitiva, por causa, especialmente, do custo político que tal decisão deve acarretar. E aí reside o temor dos partidários da Constituição, mesmo reconhecendo
que esse mecanismo é o mais democrático e legítimo para
a aceitação do texto. Irlanda e Dinamarca são constitucionalmente obrigadas a deixar a decisão para os seus cidadãos. Mas também a Holanda, República Tcheca, Luxemburgo, França, Portugal, Espanha e o Reino Unido deverão
realizar referendos.
A probabilidade de rejeição sempre existe quando há a
consulta popular, especialmente se existe uma divisão política na sociedade entre uma maior ou menor adesão, como
no caso de um país tradicionalmente ‘cético’, como o Reino Unido. E como define um dos constitucionalistas: “Se,
por exemplo, 22 países disserem sim e três não, então teremos um problema. Legalmente nós não podemos proceder
com a ratificação da Carta; politicamente nós não podemos
pará-la.” Se só um par de países não a ratificarem, os outros
poderão concordar em dissolver os tratados anteriores e
formar uma nova União sob as leis dessa nova Constituição, com um efeito que forçará os opositores definitivamente para fora da União. Uma medida teoricamente possível,
mas radical demais para ser levada adiante. Já se um grupo maior se recusar a se inscrever na Constituição, o documento poderia ser simplesmente abandonado. Uma alternativa seria a divisão da União Européia em dois grupos,
os que ratificam e os que rejeitam a Constituição, criando
uma outra situação jurídica passível de contestação, embora não tão radical.
Melhor seria se essa Constituição fosse encarada como
um primeiro passo na construção de uma Carta realmente constitucional, vista mais como um projeto, um conjunto
de tratados para uma ordenação jurídica mais transparente e justa e uma melhor funcionalidade burocrática. Muitas
das questões em debate poderiam ter lugar mais adiante, e a
concentração se daria em tópicos mais pragmáticos e de efetiva utilidade para o complexo concerto de 25 países componentes da chamada ‘família européia’. 
junho 2004 diálogos&debates
49
são paulo
na prateleira
No ano em que comemora seu 450º aniversário,
a metrópole é redescoberta por editoras
S
ão Paulo atrai os holofotes do mercado editorial:
segundo previsão do Comitê Municipal São Paulo 450 Anos, criado em abril de 2003 pela prefeita Marta Suplicy, cerca de 100 títulos comemorativos do aniversário da cidade serão lançados até
dezembro deste ano. No balaio, amontoam-se obras oportunistas, com o intuito de aproveitar o apelo comercial da
efeméride, e outras que visam a resgatar a formação da capital paulista.
A coleção “Paulicéia” faz parte do segundo segmento.
Lançada pela editora Boitempo, conta atualmente com
nove volumes e pelo menos duas preciosidades: Adoniran,
se o senhor não tá lembrado e Semana de 22: entre vaias e
aplausos. O primeiro, escrito pelos jornalistas Flávio Moura e André Nigri, traça um cuidadoso perfil do compositor de Saudosa maloca, Trem das onze e Samba do Ernesto.
O último, da doutora em história social Marcia Camargos,
utiliza detalhada pesquisa para expor as ambigüidades da
famosa revolução estética, encabeçada por intelectuais da
ainda emergente metrópole.
50
diálogos&debates junho 2004
POR FERNÃO KETELHUTH
“A idéia da coleção veio da síntese de que São Paulo é o
melhor retrato do Brasil. A cidade reúne o que há de melhor
e pior no país. É uma espécie de carteira de identidade brasileira”, observa Ivana Maria Jinkings, editora da Boitempo.
“A coleção não pretende dar conta de todas as caras da cidade. Mas selecionamos autores, fenômenos e espaços que
permitam ao nosso olhar cruzar o extenso leque do qual a
capital é feita. Trata-se do lugar mais dinâmico, mutante e
instigante do país”, opina.
Seis livros da coleção da Boitempo já se encontram em
segunda edição e, até dezembro, mais seis títulos devem
ser lançados. O próximo, Um dândi na Cafelândia, amealha
contos e crônicas de João do Rio sobre São Paulo.
Paulistanos ilustres
Quem também apostou no formato coleção para homenagear a maior cidade do Brasil foi a Ediouro. A editora
carioca lançou a série “Avenida Paulista”, por meio da qual
rememora a vida de personalidades atreladas à metrópole
– não necessariamente paulistanas. Dos quatro títulos dis-
L I T E R AT U R A
poníveis em catálogo, três se referem a esportistas: Ayrton
Senna – o eleito; Canhoteiro – o homem que driblou a glória
e Pelé – os dez corações do rei. A exceção, por enquanto, é o
livro Jânio Quadros – Prometeu de Vila Maria, do jornalista
Ricardo Arnt, que desenha a trajetória do controverso exprefeito de São Paulo.
Considerado ainda hoje um herói
em muitos bairros de periferia, Jânio
talvez tenha sido o político que mais
ofereceu esperança e descrença aos
brasileiros. Após uma ascensão meteórica, que o içou em apenas 13 anos à
Presidência da República, o líder populista desencantou milhões ao renunciar ao cargo em 1961. Como castigo, caiu em desgraça junto àqueles
que o tinham como salvador e se tornou a encarnação do
homem público oportunista e desprovido de convicções.
Ainda assim, 20 anos depois, disputou a eleição para governador do Estado e, em 1985, elegeu-se novamente prefeito.
Ao se deparar com uma figura naturalmente contraditória,
Arnt tentou se desvencilhar dos maniqueísmos que tendem
a satanizar o perfilado.
“Jânio foi um prestidigitador, mas não uma fraude. Só
uma crítica ressentida pode atribuir sua complexa popularidade à manipulação demagógica ou à vitória da forma sobre o conteúdo. Ninguém chega a presidente da República
sem levar-se e ser levado a sério”, escreve o autor no prefácio do livro, ao qual se refere como “uma síntese de leituras
acrescida de uma pesquisa em fontes secundárias (jornais,
revistas, vídeos) e temperada por consultas a pessoas que
viveram os acontecimentos ou os estudaram”.
A Ediouro informa que outros seis livros da coleção
estão a caminho da gráfica. Um deles conta a história de
Gino Meneghetti, anarquista italiano que adquiriu notoriedade ao roubar mansões da Avenida Brigadeiro Luís Antônio durante a década de
20. Também serão biografados Monteiro Lobato, José Simão, José Hamilton Ribeiro, Hebe Camargo e Mário
de Andrade.
Cerca de 100 títulos
comemorativos do
aniversário da cidade
serão lançados até
dezembro deste ano
L I T E R AT U R A
A Bienal dos 450 anos
O cume das homenagens à capital
paulista foi alcançado em abril, durante a 18ª Bienal do Livro de São Paulo, intitulada “A Bienal dos 450 anos”. Embora a organização não possua dados precisos, pelo menos 80 títulos sobre a cidade-sede, entre inéditos e relançamentos, foram exibidos na feira. No balcão de algumas
editoras, a metrópole sobressaía nas prateleiras, como no
caso da Senac-SP.
Além de promover acalorados debates, a editora procurou entender os problemas de São Paulo redescobrindo
suas origens. Em meados de abril, lançou São Paulo, metrópole em trânsito: percursos urbanos e culturais, com a análise de 40 autores sobre a evolução urbanística do município. Na mesma época, publicou também São Paulo – 450
junho 2004 diálogos&debates
51
juizado itinerante
Desde que o Tribunal de Justiça criou
o atendimento itinerante, em 1998,
mais de 10.500 processos foram
solucionados, 80% deles por conciliação
bairros, 450 anos, que contém histórias e curiosidades de
bairros resgatadas pelo jornalista Levino Ponciano. Também está nas livrarias desde abril De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade (1920-1921), com comentários
da professora Telê Ancona Lopez sobre a produção jornalística do escritor que batizou a cidade como “Paulicéia desvairada”.
A obra recupera textos escritos
por Mário para a extinta revista carioca Ilustração Brasileira, meses antes da Semana de 22. Além de inéditas em livro, as crônicas marcam o começo da militância liderada pelo poeta contra as manifestações artísticas da
época e prestam uma homenagem à cidade. “É intuito meu
explicar a enigmática cidade que a todos os que não a observem amorosamente ou lhe queiram bem guarda-se num
mutismo de desdém ou se entreabre num gesto de agressão”, escreveu Mário.
No mesmo caminho trilhado pelo Senac-SP caminhou a
Paz e Terra. Na metade de 2003, a editora inaugurou a coleção São Paulo, cujo objetivo, pelo menos a priori, era reeditar clássicos sobre a história da cidade, como São Paulo nos
primeiros anos, São Paulo no século 16 ou São Paulo de meus
amores. No entanto, devido à insistente busca de leitores por
uma obra completa, a organizadora da coleção, Paula Porta, decidiu mudar a estratégia: pretende publicar ainda este
ano História da cidade de São Paulo, uma série de três volumes totalizando 1.800 páginas, com textos de especialistas,
pesquisadores e historiadores. “A idéia é fazer uma síntese
do conhecimento acumulado sobre a cidade e atualizar essas informações”, diz Paula, que atualmente coordena a área de cultura do
Comitê São Paulo 450 Anos.
Para aqueles que pretendem conhecer um pouco melhor os meandros de São Paulo, livros de fotografia
em homenagem à cidade podem ajudar. É o caso de Cenas urbanas, do alemão Hildegard Rosenthal, publicado
pelo Instituto Moreira Sales. O trabalho, iniciado pelo fotógrafo na chegada ao Brasil, em 1937, transforma-se em uma obra de história ao passo que retrata a capital paulista dos anos 40. O
registro não se limita a paisagens da cidade, mas abrange os
tipos humanos que compunham a área à qual se convencionou chamar por Centro Velho.
Se essa região é hoje conhecida como exemplo de degradação urbana, coube ao fotógrafo Eduardo Castanho a
árdua missão de recuperar os dias de glória do centro. No
livro São Paulo – Cores e sentimentos, Castanho convida o
leitor a um passeio imaginário pela cidade em que reside
desde os 10 anos. Na lente do fotógrafo, hoje com 51, paisagens desgastadas como a Praça da República ganham contornos otimistas. 
Jânio Quadros, um dos
paulistas biografados,
não é tratado com
maniqueísmos que
o satanizam
52
diálogos&debates junho 2004
L I T E R AT U R A
“
POR VANESSA BARBARA
N
ão tem como dar uma força, gente fina?” – assim
começa a quarta-feira no trailer do Juizado Itinerante. O homem, funcionário público, aproxima-se do escrevente e fala em voz baixa. “É que
eu quero suspender a pensão da minha filha,
que já é de maior, e sabe como é. Tudo tão lento, complic...”
Ligeiro, o escrevente Antonio Lima de Freitas interrompe
e diz, com jeito de advogado: “O senhor está me pedindo
para cometer o crime de pre-va-ri-ca-ção, que é conceder
benefícios a terceiros contra a disposição da lei, praticando
indevidamente a minha função; o senhor me desculpe mas
posso ser preso por isso”. Sem jeito, o homem muda de assunto, ensaia um sorriso desconfortável e vai embora. Fica
o comentário de um dos escreventes: “Ééé, cada uma...”
Pedidos como esse não são raros no trailer de atendimento inicial do Juizado Itinerante Permanente do Tribunal de Justiça do Estado, que circula pelos bairros da capital
atendendo causas de pequena complexidade (até 40 salários
mínimos). Diariamente, cerca de 20 pessoas dão entrada a
processos e 80 recebem orientação jurídica – na Estação da
Luz, chegaram a ser registrados 350 atendimentos em um só
dia. Já na Freguesia do Ó, onde a Justiça sobre rodas estacionou na primeira semana de dezembro, menos de 20 cidadãos foram pedir informações à equipe do Tribunal.
“O problema, doutor, é que eu tô desempregado”, diz um
A C E S S O
À
J U S T I Ç A
senhor de chinelo de dedo, quase aos sussurros. “Daí não
posso pagar os 250 reais do aluguel. Tem como negociar
na Justiça?” O agente de fiscalização Wanderley responde
que não: a negociação é feita diretamente com o proprietário. “E o senhor vê”, o outro continua, “ele também precisa
do dinheiro”. Calado, Wanderley procura telefones úteis em
uma prancheta cheia de coisas (endereços de órgãos públicos, ONGs, Procon, setores da OAB) e ouve a história do
homem. Mulher, cinco filhos, alimentam-se com o leite em
pó recebido na escola das crianças. Pergunta se ele chegou a
se inscrever nos programas da Prefeitura. “Tudo, tudo, Renda Mínima, Força-Trabalho, fui no Poupatempo. Não temos
nem móvel, mas pelo menos a gente tem casa, um chão pra
dormir sossegado. Tinha, né? Agora não sei”. O funcionário
tenta confortar o homem, mas não há muito a fazer. Antes
de ir embora, o cidadão completa: “O senhor vê, eu podia tá
roubando. Mas a gente é honesto, né, excelência”.
Uma equipe bem treinada
No trailer de atendimento inicial trabalham um policial militar, o motorista do veículo e mais três pessoas. São
dois escreventes técnicos judiciários e um oficial de fiscalização, verdadeiros “doutores” e “excelências” que atendem
o público em mesas de plástico sob a sombra de um trailer
que mais parece vendinha de cachorro-quente.
junho 2004 diálogos&debates
53
Naquela tarde, em frente à subprefeitura da Freguesia do
Ó, o sol fritava as cadeiras e ninguém vinha procurar a Justiça. Sentado em frente ao trailer, Toninho contava piadas e
vendia purificadores de água para a colega Fabiana, por falta
do que fazer. “Você sabe que a água consumida em sua casa
possui mercúrio e mais uma dezena de metais pesados que
fazem mal à saúde da sua família?”, brinca o ex-vendedor. “E
não é só isso!”, exclama, antes de ser interrompido por um
rapaz que queria cancelar um plano de previdência privada
e um casal tímido que pedia orientação para abrir processo
contra a Caixa Econômica Federal (órgãos públicos estão
fora da competência dos Juizados Especiais Cíveis, explica
a escrevente Alcione Rocha da Cruz, fornecendo em seguida uma série de informações). “Não atende esses aí, não!”,
grita um amigo maldoso, do outro lado do estacionamento,
ao ver o casal cercado de oficiais de justiça. “Iiiiih seu juiz,
o caso desses dois... Só em cana, mesmo!”
Dadas as orientações necessárias, o casal agradece e mais
algumas horas se passam. O atendimento do Itinerante é
das 10 às 16h; e, enquanto o expediente não acaba, Toninho
conta sua saga como gerente de uma franquia de panquecas
e Fabiana confessa que naquele dia – 2 de dezembro – era
seu aniversário de 30 anos. As congratulações e previsões
astrológicas de Toninho são interrompidas com a chegada
de uma moça que pretendia abrir ação contra uma companhia telefônica. “Já tirei xerox de tudo, só tem um problema:
não consegui o endereço da firma”. O escrevente dá risada
e recita – de um fôlego só – o nome da rua, número, CEP
e razão social da empresa, completando: “Imagina quantos
processos a empresa tem nas costas.”
Quando o problema rende a abertura de ação, a pessoa
é convidada a entrar no veículo com as cópias dos documentos necessários. Vai se esgueirando pelo corredor apertado, dá dois passos (miúdos) e chega à sala onde trabalham
os dois escreventes em meio a notebooks, pilhas de papéis,
guias telefônicos e impressoras. Os cidadãos são orientados a não abrir os braços com muito ânimo, sob o risco de
esbarrar em alguém ou se enroscar nos fios, dada a exigüidade do espaço.
João, morador do Imirim, entrou no trailer para abrir
um processo contra certo motorista que bateu em seu carro e não queria ressarcir os danos. Tenta se ajeitar na cadeira, vira pra cá, bota mais pra lá, olha pra trás, mas não
adianta – tudo é grudado no chão, para não sair do lugar
quando o veículo se move. Assim espremido, vai contando
o caso para Alcione, que digita cuidadosamente os dados
no notebook – o carro do sujeito foi reto na maior velocidade, direto, e bateu com tudo no Uno de seu filho. “Nossa, sem noção”, murmura um dos escreventes, distraído.
Na mesma sala, naquele instante, outro senhor abria ação
contra uma empresa de alarmes. O aparelho foi instalado na parede da garagem mas é temperamental (às vezes
funciona, às vezes não). “Dependendo da posição em que
você entra em casa, ele toca. Se você passar assim, meio
de ladinho, ou então agachado, ele nem se manifesta”. Todos dão risada; o alarme está há meses enfeitando a parede, como um quadro. Mesmo após semanas de insistência,
o técnico sempre fica de ir consertá-lo mas nunca aparece. “Hoje em dia, ninguém faz nada se não for obrigado
pela Justiça”, observa João, enquanto organiza os papéis e
agradece a Alcione.
Acesso rápido à justiça
Quarenta minutos é o tempo máximo que se leva para
dar entrada no processo, embora 15 minutos seja a duração média (“não tem muito que enfeitar o pavão”, explica
o escrevente Ricardo Nepomuceno sobre a redação do pedido). O cidadão já sai do veículo com a data da audiência
Antonio Lima de Freitas (esq.) e Alcione Rocha da Cruz, funcionários do Juizado Itinerante, tentam resolver problemas judiciais de dois cidadãos
54
diálogos&debates junho 2004
A C E S S O
À
J U S T I Ç A
marcada, em geral dali a três ou quatro meses – quando um
segundo trailer retorna à região para efetuar as audiências.
O juiz Marcos Blank Gonçalves explica que, desde o início
deste ano, as audiências são bipartidas: a primeira de conciliação (realizada por serventuários ou conciliadores) e a
segunda, no caso da impossibilidade de acordo, de instrução e julgamento (presidida por Juízes de Direito).
Desde que o Tribunal de Justiça criou o Itinerante, em
1998, mais de 10.500 processos foram solucionados, 80%
deles por conciliação; ou seja, bastava um mediador imparcial para que a questão fosse solucionada. Os números
parecem confirmar a eficiência do serviço em atender um
de seus objetivos: o de resolver causas menos complexas
de forma mais simples e rápida, sem sobrecarregar os demais juizados.
Em entrevista para a edição de março de 2004 desta revista, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Luiz
Elias Tâmbara, falou sobre o anseio da população por uma
resposta rápida do Judiciário e destacou a importância da
informalidade e da rapidez na resolução de conflitos. “Devemos descomplicar, simplificar ao máximo”, declarou o presidente, alegando estar empenhado em “levar a Justiça aonde
o cidadão está, lá na periferia, e não fazer o cidadão subir as
escadarias do Palácio da Justiça”.
O presidente do Judiciário se refere a outra importante
característica do Juizado Itinerante: a escolha dos bairros
para onde se realiza o deslocamento do Poder Judiciário,
em geral localidades carentes de serviços e com a população sem conhecimento quanto a seus direitos de cidadão.
Dessa maneira, o serviço pretende conscientizar a população e possibilitar “a efetiva prestação da tutela jurisdicional
a demandas que antes ficavam à margem do Estado-Juiz”,
como afirma o dr. Marcos Blank. “A proximidade com os jurisdicionados facilita a solução dos conflitos e o alcance da
paz social, permitindo o amplo acesso à Justiça”.
Apesar de seus tantos pontos positivos, não se pode
aceitar os Juizados Itinerantes como algo definitivo, observa o dr. José Eduardo Faria, professor de Sociologia Jurídica da Universidade de São Paulo. De acordo com Faria, os Itinerantes são fruto da criatividade de alguns setores da magistratura, diante da escassez generalizada de
recursos e da disciplina fiscal a que o poder público foi
submetido. “Eles servem não apenas para neutralizar parte da demanda reprimida de soluções judiciais, por parte da sociedade, como também para dar a idéia de que o
Estado, por meio de um de seus braços, está presente em
todas as regiões do país. Ora, todos nós sabemos que isso
A C E S S O
À
J U S T I Ç A
não é verdade: as periferias metropolitanas permanecem
sendo tratadas a pão e água e continuam aumentando, inchando e explodindo, com a proliferação de conflitos corriqueiros, por um lado, e o advento de novos tipos de litígio.” Para ele, os Juizados Itinerantes só abarcam pequena
parte dessa rede de conflitos.
Não há como negar o papel pedagógico do serviço. Faria, no entanto, aponta um paradoxo: se é certo que os juizados ajudam a despertar a consciência cívica dos cidadãos,
levando-os a tomar consciência de seus direitos mais elementares, também é verdade que, quando esses cidadãos
assumem a iniciativa de defender o que é seu, acabam encontrando um aparato judicial ineficiente, sobrecarregado
e moroso. Ou seja, percebem que o serviço é uma solução
improvisada para a defesa de seus direitos.
Também a pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo, concorda que os Itinerantes são um arranjo provisório à insuficiência de recursos para ampliar as representações geográficas do Poder Judiciário, ou seja, uma maneira de estender
serviços mínimos a regiões que não estão incluídas entre as
prioridades de alocação de recursos. “A existência do Juizado Itinerante é um testemunho da desigualdade de acesso à
Justiça, em que as populações e áreas geográficas estão separadas hierarquicamente”, declara.
Sinhoretto considera que o Juizado Itinerante só poderia vir a significar um incremento da cidadania na medida em que fosse pensado no âmbito de um projeto muito
maior de garantia da igualdade de acesso à Justiça – independentemente da condição econômica, cultural ou local
de residência. “Por enquanto, é indicativo da existência de
uma desigualdade jurídica, contribuindo inclusive para a
deslegitimação dos mecanismos estatais de administração
de conflitos, favorecendo soluções extralegais.
Segundo o prof. José Eduardo Faria, em hipótese nenhuma a Justiça Estadual deve deixar de lado a política de descentralização adotada há tempos, ainda que não tenha recursos suficientes para desenvolvê-la. Para ele, a responsabilidade tem de ser repartida com o Poder Executivo, que
deveria investir muito mais na expansão e descentralização
das defensorias públicas e da assistência judiciária. Caso
contrário, a população de baixa renda se afastará cada vez
mais, apelando para pseudodefensores do consumidor, recorrendo a líderes comunitários, submetendo-se à lei do
mais forte, caindo no conformismo ou descobrindo mecanismos de autocomposição de interesses. 
Colaborou: Solange Cavalcante
junho 2004 diálogos&debates
55
documentário
Na Linha da Morte simboliza com propriedade esse bom
momento vivido pelo cinema documental, que se fez presente nas telas brasileiras, no primeiro quadrimestre deste
ano, de uma forma pouco vista antes, dado o ecletismo temático das produções exibidas. Além do fato de o diretordetetive de Na Linha da Morte ser Errol Morris, o mesmo
que, em fevereiro, arrebatou o Oscar 2004 de Melhor Documentário, por Sob a Névoa da Guerra (Fog of War). Na
Linha da Morte virou um marco do cinema de não-ficção,
pela capacidade de ter transformado a realidade, fato festejado por João Moreira Salles, um dos nossos principais
realizadores no gênero, como “o sonho de todo documentarista”.
Esse apego ao real reflete, por sua vez, uma certa saturação do cinema convencional – de narrativa ficcional – de se
reinventar, de escapar da mesmice, o que dificilmente ocorre com o documentário, porque, aqui, não é possível estabelecer, a priori, como as coisas irão se desenrolar. A realidade muitas vezes escapa de um roteiro.
Dinâmico na forma, divertido no conteúdo
Cena de O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento
quando a ficção não dá conta de tudo
Cresce a visibilidade do gênero de não-ficção nas salas
dos cinemas – e há uma nova safra de boas produções
POR FÁBIO FUJITA
O
sujeito sai de sua casa no Texas, pega uma carona, vai para um boteco, retorna, dorme e, no
meio da noite, é acordado pela polícia com a
notícia de que será preso. Poucos meses depois,
Randall Adams, o potencial criminoso, já aguardava no corredor da morte por sua execução, ainda que alegasse inocência. A malfadada trajetória de Adams começa,
então, a ser registrada pelas câmeras de um documentarista ocasional, que, outrora, trabalhara como detetive. O que
56
diálogos&debates junho 2004
era para ser o registro de um condenado à morte começa
a mudar de rumo quando o documentarista vai montando
as pistas que comprovam não a culpa, mas a inocência de
Adams. Conversa com investigadores, advogados, policiais
e testemunhas. A cada nova versão dos fatos, fica ainda mais
evidente o quão rasas são as acusações. O documentário
chama-se Na Linha da Morte (e in Blue Line, 1988) e
foi o responsável por colocar em liberdade um homem inocente prestes a ser executado.
C I N E M A
A atenção recente dada a esse gênero teve um momento crucial com a repercussão do cáustico Tiros em Columbine (Bowling for Columbine), de Michael Moore, referência de irreverência e engajamento político contra sua América-pátria, que ele tanto questiona. Ao se tornar um xiíta
do bem, tratando da esquizofrenia da sociedade americana
em se armar contra inimigos não muito evidentes, Moore
mostrou que nem só de tamanduás albinos mostrados no
Discovery Channel vivem os documentários. Seu trabalho
é cinema de alta qualidade: dinâmico e inventivo na forma,
divertido e inteligente no conteúdo. Virou polêmico quando começou a ser acusado de manipular as situações apresentadas – e surge aqui um maniqueísmo que os próprios
documentaristas não conseguem resolver: deve-se esperar
do documentário uma função jornalística? “Enquanto o documentarismo se assume como discurso, o relato jornalístico simula a própria realidade, pois acredita que tudo vê e
tudo entende”, arrisca Paulo Sacramento, diretor de O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos). “O jornalismo
tem uma função acrítica, pois acredita que a verdade é una.
Seria inocência, se não fosse perversão”.
Na esteira de Columbine, tratando similarmente de histeria coletiva, veio o não menos interessante Na Captura dos
Friedmans (Capturing the Friedmans), de Andrew Jarecki,
que recebeu o Grande Prêmio do Júri do Festival de Sundance, além da indicação ao Oscar da categoria, em 2004. O
C I N E M A
tema é perturbador: a implosão de uma típica família americana, residente num subúrbio de classe média alta de Long
Island, quando o patriarca, Arnold, é acusado, juntamente
com o filho Jesse, de abusar sexualmente dos meninos que
assistem às aulas de computador dadas na casa da família.
Um documentário “tradicional” sobre o assunto já renderia um filme portentoso pela temática, mas Jarecki utiliza
imagens de vídeos caseiros, feitas pelos próprios Friedmans,
para revelar a destruição estrutural de um lar. Mais do que
isso, as imagens mostram o maniqueísmo decorrente do
apego sentimental: ainda que as evidências apontem a culpa do pai, os filhos não conseguem esconder a grande ternura que sentem pelo velho. Na Captura dos Friedmans não
escolhe a quem defender: deixa ao espectador as mesmas
ambigüidades sentidas pela família retratada.
E ambigüidades são o que não falta em Sob a Névoa da
Guerra, o último trabalho de Errol Morris, que joga luz sobre a persona pública de um dos políticos mais controvertidos dos EUA, o ex-secretário de Defesa Robert S. McNamara, figura-chave da participação norte-americana na Guerra
do Vietnam. Como não poderia deixar de ser, Sob a Névoa
da Guerra também causou polêmica pela abordagem escolhida por Morris. Para uns, trata-se de uma tentativa de humanizar um dos algozes do mais polêmico dos conflitos da
história americana. Para outros, a revelação do lado desconhecido de um político que tinha o poder nas mãos e que,
portanto, estaria incondicionalmente condenado a desagradar gregos ou troianos, em cada atitude que tomasse. O documentário desconstrói o mito: midiaticamente rotulado de
“computador vivo”, o McNamara que se vê no documentário não é a autoridade linha-dura de antes, mas o homem
maturado pelo tempo, que reavalia sua participação nas decisões sobre o conflito, ponderando culpas, reconhecendo
erros, apontando possibilidades.
A valorização do gênero
A importância, hoje, do documentário pode ser medida pelo tratamento que festivais de cinema vêm dando
ao gênero. Se ainda não dividem em oferta de títulos o leque de variedades da ficção, ao menos os documentários
já conseguem galgar espaços antes improváveis. Na edição 2002 do Festival de Berlim, por exemplo, o vencedor
do Urso de Ouro, a principal premiação do evento, ficou
com o ultraengajado Domingo Sangrento (Bloody Sunday),
de Paul Greengrass (dividido com a animação japonesa
A Viagem de Chihiro), sobre o histórico assassinato de 13
pessoas na Irlanda pelas milícias britânicas, marco do iní-
junho 2004 diálogos&debates
57
cio do conflito que culminaria em guerra civil e terrorismo. Neste ano, a desistência de Walter Salles de participar
com seu Diários de Motocicleta do mesmo Festival de Berlim foi “compensada” com a inclusão do filme-making-of
de Diários, Traveling with Che Guevara, do italiano Gianni Miná. Ou seja: um filme de Walter Salles já pode, em alguma medida, ser substituído por um filme sobre o filme
de Walter Salles, com quase o mesmo tratamento, o que
dá uma idéia da valorização pela qual passa hoje o cinema de não-ficção.
A safra recente das produções brasileiras – de qualidade
– também explica o boom dos documentários no circuito
de cinemas do país. “O ano do documentário” havia sido o
Muitas curiosidades são reveladas, como a paixão de Paulinho pelas artes de marceneiro (ele chega a dizer que sente ciúme de um determinado martelo), sem deixar de detalhar as
origens de alguns clássicos de seu repertório, como Foi um
Rio Que Passou em Minha Vida, samba-homenagem à sua escola de samba, Portela. Outro cine-perfil daquele ano foi o de
Nélson Freire, realizado por João Moreira Salles.
Um painel de muitas opções
O fortalecimento da produção brasileira pode ser avaliado pela variedade de assuntos documentados na tela, envolvendo tanto os grandes temas da agenda pública quanto jornadas mais intimistas, além de recortes sobre temas
consulados quanto à facilidade/dificuldade que a diretora
terá para alcançar seu objetivo. Já 33, de Kiko Goifman, é a
aventura do diretor, um filho adotivo, em busca de sua mãe
biológica. Filmado por pequenas câmeras digitais, o documentário se aproxima da idéia tão em voga de reality show,
ao imprimir um tom noir à narrativa, colhendo dicas de detetives particulares e aventurando-se pelos mais improváveis lugares em busca de pistas. Se não chega a um resultado tão satisfatório quanto o argumento do roteiro, ao menos atesta um tipo de realização simples e barata que pode
vir a se popularizar num médio prazo.
Glauber Rocha e Sérgio Buarque de Hollanda, figuras
emblemáticas da inteligência brasileira, também viraram
chão, superando, assim, o filme-sensação daquele ano, Lavoura Arcaica. Seria natural imaginar que, com um prêmio
desses no currículo, não faltariam distribuidoras interessadas em lançar Samba Riachão comercialmente. Mas não foi
o que aconteceu: então um gênero “estranho” aos estúdios,
o documentário sobre a simpaticíssima figura do sambista Riachão, um músico respeitado (e gravado) por artistas
como Caetano Veloso e Cássia Eller, ficou na gaveta, tendo
sido exibido somente em Salvador, em uma meia dúzia de
salas. A ironia é que, em Brasília, Samba Riachão fora coroado com o Prêmio Projeta Brasil da Cinemark – um cheque de R$ 62 mil. “Não seria melhor que o prêmio fosse a
exibição do meu filme nas salas da rede por todo o Brasil?”,
Na seqüência, imagens de Raízes do Brasil, Samba Riachão, Paulinho da Viola - Meu Tempo É Hoje, Gláuber, o Filme e Passaporte Húngaro
Gláuber, o Filme, Pelé Eterno, 33, Sob a Névoa e O Prisioneiro da Grade de Ferro: até o Festival de Cannes confirmou a atualidade do documentário
de 2002, quando pelo menos dois títulos viraram cult nas
salas do Rio e de São Paulo: o delicado Janela da Alma, de
João Jardim e Walter Carvalho; e Edifício Master, do documentarista por definição Eduardo Coutinho. O primeiro
era um tratado sobre o olhar, com depoimentos de personalidades conhecidas por problemas de visão, como o escritor José Saramago (autor de Ensaio sobre a Cegueira), o
músico Hermeto Paschoal e o cineasta Wim Wenders. O
segundo mostrava os habitantes anônimos de um prédio
de classe média baixa do Rio de Janeiro, com suas peculiaridades, manias, obsessões, dramas e amores, ocultos sob o
manto da solidão cosmopolita. Outro documentário bemsucedido daquele ano foi o despretensioso Surf Adventures
– O Filme, de Arthur Fontes, com imagens e depoimentos
dos melhores surfistas do país e do mundo.
Já 2003 não conseguiu acompanhar o ano anterior em títulos de qualidade, com a talvez isolada exceção de Paulinho
da Viola – Meu Tempo É Hoje, dirigido por Izabel Jaguaribe,
com roteiro de Zuenir Ventura. Espécie de cine-perfil musical, Meu Tempo É Hoje faz um retrato afetivo sobre o músico
carioca, não-cronológico, construído, ao que parece, no calor
dos depoimentos, o que imprime veracidade e simpatia à fita.
personagens de realizadores importantes, respectivamente de Silvio Tendler (Glauber, o Filme, Labirinto do Brasil)
e Nélson Pereira dos Santos (Raízes do Brasil). O primeiro teve de esperar 20 anos para que pudesse levar às telas
as tristes imagens do velório e do enterro de Glauber, antes proibidas pela família Rocha. Valeu a espera: os depoimentos recentes, de pessoas que foram próximas a Glauber, ajudam a esclarecer um pouco da personalidade vulcânica do grande gênio do cinema brasileiro. Arnaldo Jabor, por exemplo, diz que Glauber morreu cedo porque simplesmente não agüentaria viver num mundo cada vez mais
medíocre. Já Nélson Pereira esclarece a figura de Sérgio Buarque sob dois pontos de vista: a idéia do brasileiro como
homem cordial, base teórica do livro que dá nome ao documentário; e a cronologia de sua vida, mesclada a depoimentos e leitura de trechos da obra. É fascinante ver o poço
de erudição do retratado, que quando fazia um break nos
estudos pegava algo “leve” para ler, como algum clássico da
literatura russa, porque, afinal, precisava relaxar.
Em 2001, o baiano Jorge Alfredo Guimarães surpreendera a todos no Festival de Brasília, ao arrebatar o prêmio
de melhor filme por seu documentário musical Samba Ria-
58
diálogos&debates junho 2004
específicos. Do rol dos primeiros, o melhor representante é
o trabalho de Paulo Sacramento em O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos), um impressionante mosaico de
imagens realizadas no Carandiru, pouco antes de sua desativação. As imagens foram gravadas pelos próprios detentos, que se submeteram a uma oficina para aprender macetes de filmagem, ministrada pelo próprio Sacramento. Essa
tentativa de intervenção externa mínima gerou um resultado extremamente original. “O documentarista tem como
função tentar se aproximar da realidade, não retratá-la ou
buscar passar-se por ela”, explica Sacramento. “Meu movimento foi nesse sentido, de diminuir a distância entre nosso público e a realidade daquela prisão. Eliminar ou minimizar intermediários foi o primeiro passo; evitar a mediação da palavra falada foi outro. Sempre que possível, preferimos mostrar a descrever”, completa.
Na linha de documentários recentes que abordam trajetórias pessoais, são dois os destaques: Passaporte Húngaro,
de Sandra Kogut, que documenta a dificuldade da diretora
para obter o passaporte, que dá título ao filme – ela é uma
brasileira descendente de húngaros. É interessante por mostrar as orientações contraditórias dadas por burocratas dos
C I N E M A
C I N E M A
questionava Alfredo em 2003, quando ainda mantinha esperanças de comercializar o filme. “É difícil ter um filme
consagrado calorosamente pelo público e premiado pelo
júri em um grande festival. Mas parece que isso não basta,
temos de continuar matando um elefante por dia”, completava. Mas valeu a matança: com a superexposição do gênero, e mesmo com um atraso de três anos, Samba Riachão
está finalmente por ser lançado.
Expectativa também é por Pelé Eterno, o documentário
que o próprio rei do futebol vem classificando como “o definitivo” sobre sua carreira. O documentário é dirigido por
Anibal Massaíni, que realizou intensa pesquisa em arquivos de TVs internacionais, em busca de imagens raras e até
inéditas para o público brasileiro. Num momento em que
o argentino Diego Maradona desperta a atenção do mundo
para os seus problemas com as drogas – e sua quase morte,
em abril, gerou aquele efeito sentimental de solidariedade,
“melhorando” na memória do público a sua arte com a bola
nos pés –, Pelé Eterno deverá colocar os devidos pingos nos
is, para acabar de vez com as eventuais dúvidas sobre a verdadeira realeza. Nada melhor que os registros, ainda mais
se eternizados pela magia do cinema. 
junho 2004 diálogos&debates
59
por que ler o
padre vieira hoje
É tão espetacular seu fraseado que
o próprio Fernando Pessoa disse que
“quando se lê Vieira não se sente um
idioma, sente-se uma geografia”
diálogos&debates Nesse aspecto o senhor diria que a situação de Vieira é parecida com a de Gregório de Mattos?
alcir pécora É pior, de certa maneira. Porque Gregório de
Mattos teve uma espécie de reaparecimento moderno,
com a referência do Tropicalismo. Mesmo sendo relido de
ENTREVISTA ALCIR PÉCORA
POR CARLOS COSTA E DÉBORA MISMETTI
FOTOS DÉBORA MISMETTI
C
diálogos&debates junho 2004
diálogos&debates O próprio Vieira, quando diz que os negros deviam estar agradecidos por serem escravos no Brasil, pois puderam se converter à fé cristã, dá conta de uma
visão de mundo de sua época.
alcir pécora Tanto Vieira como Gregório estão integrados
em sua época. Acho que Vieira tem posições mais ricas ou
complexas, por ser um homem de mais larga erudição, conhecer as principais teses da teologia política importante
do período, bem como as posições da Igreja Católica filiada à tradição dominicana e jesuítica da segunda escolástica. Algumas de suas posições, em determinados momentos, são bastante interessantes, como a de reconhecer a humanidade e o direito de auto-governo do índio, a partir do
que se estabelece um princípio de “direito das gentes”. Houve um grande esforço jurídico da Igreja no sentido de estabelecer algum tipo de ordenação para a conquista – o que
não impediu que uma quantidade imensa de índios fosse
morta: Vieira fala em 2 milhões de índios mortos. Ele fala,
pois, em mortes produzidas em escala de genocídio. Enfim,
penso que Vieira tem nuances mais avançadas que Gregório de Mattos.
diálogos&debates Até porque teve uma exposição maior, circulou no mundo, foi conselheiro do rei, do papa.
alcir pécora Sim, era uma pessoa mais internacional e cos-
“Houve um grande esforço jurídico da Igreja no sentido de estabelecer algum tipo de ordenação para a conquista – o que não impediu que uma quantidade imensa de índios fosse morta: Vieira fala em 2 milhões de dizimados”
rítico literário e professor de literatura na Universidade de Campinas, Alcir Pécora é um verdadeiro operário das letras. Autor de uma obra
multifacetada que vai se tornando caudalosa,
tem em seu currículo desde livros como Teatro do Sacramento: A Unidade Teológico-retórico-política nos Sermões de Antônio Vieira (Edusp/Editora da Unicamp, 1994), Máquina dos Gêneros (Edusp, 2001), As Excelências do Governador (Cia. das Letras, 2002) e Poesia Seiscentista XVII “Fênix renascida” – “Postilhao” (Hedra, 2002)
ao inventivo relato de viagem Rudimentos da Vida Coletiva
(Ateliê Editorial, 2002). Com bom trânsito pela crítica militante, publicada em jornais e periódicos acadêmicos, além
de ilustrar hai-kais de Paulo Franchetti e organizar textos
de Hilda Hilst (Da Morte. Odes Mínimas), Pécora publicou
uma edição crítica dos Sermões, do padre Vieira (Editora
Hedra). É justamente sobre a obra e a escritura de Antônio
Vieira que se desenrolou boa parte da conversa que o acadêmico manteve com a reportagem de Diálogos&Debates.
A seguir, alguns dos melhores trechos dessa fala entusiasmada do professor.
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diálogos&debates A que o senhor atribui o esquecimento em que os escritos do padre Vieira caíram nos últimos
tempos?
alcir pécora A literatura colonial sempre foi tida como secundária no Brasil. A visão que predomina no Brasil e particularmente em São Paulo é a configuração do literário a
partir do nacional. E como na Colônia a questão nacional
não se colocava, pois eram autores que produziam no Brasil mas se consideravam parte do Império Português, não
tinham um sentido de brasilidade. Assim, boa parte dos autores dessa época ficou em segundo plano. Antonio Candido, por exemplo, não considera isso literatura. Ele fala em
“manifestações literárias”, fora de um “sistema” literário que
apenas se configura com um conteúdo nacional. Assim, a
tradição predominante sempre teve pouco interesse em literatura colonial. Vieira foi conhecido sempre e teve muita repercussão sobretudo entre os estudiosos do direito, da
oratória, da política. Como objeto literário sempre ocupou
posição secundária no Brasil.
uma maneira anacrônica, numa chave subversiva, como se
aquele discurso satírico fosse efetivamente libertário, coisa
que verossimilmente nunca foi: Gregório de Mattos aceitava perfeitamente o status quo e estava inserido na mentalidade teológico-política da época. Mas a sua obra foi lida
contemporaneamente como se fosse contrária ao governo,
a Portugal, e a toda ordem. Ora, Gregório critica os excessos, os governos mal conduzidos, como o de Braço de Prata,
que era seu inimigo. Como Vieira, era contra o governador,
fez críticas devastadoras, mas não era absolutamente contra
o rei ou contra o Estado em geral. Hoje se fala no Gregório
libertário, defensor dos negros. Mas o Gregório de Mattos
histórico pensava o negro como gente bestial. Não que ele
fosse mais racista do que a maioria, em sua época, mas certamente usava os lugares-comuns do período.
E N T R E V I S TA
E N T R E V I S TA
mopolita. Viveu em Roma, conheceu Haia, Paris, participou de debates europeus, cruzou o Atlântico várias vezes.
Mas Gregório de Mattos teve recentemente uma divulgação
maior por conta da leitura dos tropicalistas, quando Caetano Veloso musicou um poema seu (“Triste Bahia, oh, quão
dessemelhante estás/ E estou do nosso antigo estado/ Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado/ Rico te vejo eu, já tu
a mim abundante/ Triste Bahia, oh, quão dessemelhante”).
Eu disse que era uma leitura anacrônica, mas com todo direito, pois um criador faz o que quiser, lê como quiser. Gregório teve, pois, essa, digamos, vantagem: ser lido numa versão em que aparecia como progressista, libertário; foi mesmo adotado como signo da crítica ao governo, quando isto
se entendia como resistência à ditadura militar. O texto ganhava uma atualidade nova, muito diversa da que tinha em
junho 2004 diálogos&debates
61
sua época. A prática de uma poesia desbocada, como disse, foi interpretada como efeito de um espírito libertário.
Do ponto de vista histórico, isso não faz sentido, porque
ele simplesmente praticava um gênero tradicional de poesia, a satírica, existente desde a antiguidade greco-latina.
No mundo cristão, mesmo os padres faziam sátira. Padre
Agostinho de Macedo, um autor do século XVIII, contemporâneo do Bocage, com quem entrou em polêmica, escrevia poemas terríveis, numa guerra de poesias baixíssimas,
de uma violência atroz.
diálogos&debates O senhor conhece o filme Palavra e Utopia, sobre a vida do Vieira? Ele contribui para leituras anacrônicas?
alcir pécora É um filme interessante. Até participei de um
debate com o diretor do filme, o português Manoel de Oliveira, na abertura da Mostra de Cinema, quando foi exibido aqui, em 2000. Uma coisa é o que o especialista fala,
buscando interpretar o texto segundo padrões de legibilidade de sua própria época e de acordo com seu sentido propriamente histórico. Outra coisa é o que o criador faz; não
há por que fiscalizar a ação dele. Ele está produzindo uma
obra atual, usando Vieira para criar seu próprio discurso.
Para o último Vieira, interpretado pelo Lima Duarte – pois
são três atores diferentes que atuam como o escritor nas diferentes épocas de sua vida – ele escolhe sermões relativos
à velhice. É interessante, pois Manoel de Oliveira é um homem com 90 anos, e escolhe sermões que falam de uma tópica tradicional, a da senectude. Tópica que está em Cícero,
em Sêneca. Evidente que Manoel de Oliveira, com essa escolha, reflete sobre sua própria condição e o lugar do velho
no mundo. É coisa perfeitamente legítima.
diálogos&debates E em relação à história em si?
alcir pécora Aí existem anacronismos extraordinários.
Quem fez o roteiro para o filme foi um padre português,
João Marques, um especialista em Vieira que conheço
pessoalmente. Ele tem uma visão romântica da participação do Vieira e da Igreja nos acontecimentos. Vou dar um
exemplo, que citei no mencionado debate com o Manoel
de Oliveira só para provocar a discussão, sem querer cobrar o rigor histórico. Quando Vieira é ordenado sacerdote, tem que fazer um juramento, de obedecer à Santa Madre
Igreja. No filme, Vieira olha para o padre e recita a fórmula convencional: “Juro obedecer em todas as minhas ações
à Santa Madre Igreja” ou coisa parecida. Então, baixa a cabeça e diz baixinho, para si mesmo: “E prometo, acima de
62
diálogos&debates junho 2004
tudo, defender o índio contra as injustiças etc.”. Quer dizer,
de um lado, publicamente, jura defender o papel da Igreja, mas no seu íntimo permanecerá fiel sobretudo à defesa do índio. Como se houvesse alguma idéia em Vieira de
defesa do índio fora da inclusão no corpo místico da Igreja! Ele cansou de dizer que não há salvação fora da Igreja. Achava, sim, que o índio tinha que ser trazido à religião
católica para reencontrar seu próprio ser. Sua defesa principal é a das posições da Igreja, muitas vezes em conflito
com a dos colonizadores portugueses, em geral mais brutais e diretamente interessadas na exploração da mão-deobra escrava. Mas, enfim, os jesuítas tinham posições mais
avançadas a respeito.
diálogos&debates A leitura de Vieira pode aprimorar um intelectual, hoje?
alcir pécora O prazeroso na leitura de Vieira é seu domínio
da linguagem. Ele exerce um domínio absoluto sobre ela.
Sentia muito isso na minha própria pele quando eu escrevia minha tese: ia conduzindo o meu texto e, então, colocava uma citação do Vieira. A diferença entre meu discurso
– sempre com a mesma estrutura, sujeito, verbo, predicado, o estilo medíocre da dissertação universitária – e o texto dele era tão extraordinária! Não falo negativamente do
texto da academia, ele deve ser assim, mediano e didático
por excelência, e quem se mete a fazer poesia em tese em
geral faz bobagem. Mas esse tipo de estrutura mais ou menos pobre, repetitiva, informativa, contraposta a uma frase
de Vieira... Que experiência terrível para o ego. Pois Vieira
encadeia a frase de formas surpreendentes e variadas, com
derivações à esquerda, à direita, com aquele colorido inigualável de frases. É tão espetacular o fraseado de Vieira
que Fernando Pessoa chamou-o, como se sabe, “imperador
da língua portuguesa”. Pessoa diz que, quando se lê Vieira,
não se sente apenas um idioma, mas uma geografia palpável. Descobre-se um regato correndo por onde deveria haver declive, etc. É uma concretude de língua, uma precisão
vocabular em todos os aspectos, imagens magníficas. Quando descreve o gosto do caju, ou a caça da tartaruga, quando
nomeia um pássaro, há uma ordenação de raciocínio, um
insuperável exercício de língua. Como diz também Pessoa:
é uma certeza sinfônica.
diálogos&debates Esse domínio corresponde a seu tempo.
Hoje seria anacrônico...
alcir pécora Por isso não se pode tornar uma receita escrever como Vieira. Mas expor-se a esse registro da língua, a
E N T R E V I S TA
“Quando se relêem grandes autores que se estabilizaram, como Drummond,
Manuel Bandeira, descobrimos muita coisa que envelheceu brutalmente”
essa riqueza em todos os níveis, perceber a dimensão em
que ela pode ser exercida, não há dúvida, é um grande
aprendizado.
diálogos&debates É bom aprendizado o que se lê hoje nos
jornais, nos sites?
alcir pécora Houve uma evidente perda desse domínio e
dessa densidade sinfônica de que falávamos. No ensino básico, no secundário, e até na Universidade houve um grande
abandono do ensino de gramática do português. Tem havido muito desleixo. Há alunos nos cursos de Letras, hoje,
que não sabem escrever. Isso não é privilégio de jornalistas
[risos]. Todos temos muito menos domínio sobre a norma
culta da língua. Pela idade das pessoas, pode-se notar a diferença: os mais velhos, que estudaram no período em que
o ensino público era mais forte, mostram um controle muito melhor da frase. Mas esse critério não pode ser absoluto, não há um padrão de língua que possa ser aplicado em
qualquer circunstância. E as gramáticas de hoje já não ado-
E N T R E V I S TA
tam um padrão fixo atemporal, como na tradição do século XVI até o século XX. No Brasil está sendo feita uma gramática cuja base é o português falado pelas pessoas com
curso superior completo na cidade de São Paulo – ou seja,
não é apenas uma gramática prescritiva e atemporal, é um
padrão de uso, portanto mutável. No caso do jornalismo
ocorre isso também.
diálogos&debates Nesse sentido, é preciso voltar a ler Vieira?
alcir pécora Ler um texto como o de Vieira pode ser de grande interesse, mas tiremos o aspecto prescritivo e necessário
da recomendação. A matéria literária toda está viva, embora pareça ser passado. Já disse que boa parte da produção
colonial no Brasil foi desdenhada pelos modernistas, que
fixaram o interesse da literatura a partir da formulação do
nacional, da formação da brasilidade, portanto, a partir do
século XIX. Quando se lêem autores da Colônia, como Vieira, Gregório de Mattos, Anchieta, Nóbrega, Cláudio Mano-
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el, Tomás Antonio Gonzaga, nota-se logo que a quantidade
de texto produzido é notável, e cada vez se descobrem mais
textos. Eu mesmo acabo de editar um texto numa espécie de
portunhol arcaico escrito por Lopes Sierra, autor de quem
ninguém tinha ouvido falar; é mais um que se descobre entre tantos autores antigos desconhecidos. Há um bom número de referências literárias coloniais que começam a aparecer. A literatura, que parecia bem definida pelo marco da
formação do nacional, de repente abre-se para uma imensa
produção que nunca conheceu esse critério. Ler um texto
como esse interfere nos parâmetros e no modo de pensar a
literatura hoje. Nessa perspectiva, voltar a um texto de Vieira não é ler uma coisa acabada nela própria. É uma experiência que permite levantar hipóteses alternativas às predominantes, abrindo novas possibilidades para a literatura
contemporânea. Não gosto da coisa meramente arqueológica. Para mim, a proposta de reler um clássico é a de enriquecer o presente.
diálogos&debates Estamos indo para 20 anos da morte de
Carlos Drummond e parece que seu lugar não foi ocupado. É paralisante isso?
alcir pécora Paralisante é sobretudo a hegemonia de um padrão de escrita. Drummond seria paralisante caso se tornasse um fato hegemônico, no sentido de sua poética ser
o único modelo admissível. Não importa o grau de qualidade do modelo. Colocar Pessoa como padrão de produção é paralisante. Não se pode pensar literatura com modelos únicos. A fixação em um autor é de uma pobreza extraordinária. Ninguém pode ser modelo de todos os gêneros. Nenhum autor dá conta disso. Boa parte dos poetas
mais lidos do Brasil é de extração modernista. Isso foi instigante até certo momento, quando o modernismo ainda
era um movimento rico em possibilidades – como na possibilidade da informalidade da linguagem. Até porque a tradição anterior ao modernismo privilegiava um português
mais rígido, formal. Os modernistas traziam uma riqueza
“Não se pode pensar literatura com modelos únicos. A fixação em um
autor é de uma pobreza extraordinária. Ninguém pode ser modelo de todos
os gêneros e produções”
extraordinária, pela abertura à informalidade, essa dicção
mais prosaica, menos heróica. Esse foi o grande trunfo do
modernismo. Mas quando isso passa a modelo único, passa também a impedir a exploração de outras vertentes da
linguagem. Por exemplo, a de uma literatura não nacional,
não popular, mais erudita, difícil. É evidente que o registro
modernista já não é suficiente, não dá conta de tudo. Hoje
isso está bem nítido.
são imediata do objeto contemporâneo, como se fazia na
imprensa, nem leva a um discurso imediatamente comunicável ao grande público. Então ficou esse hiato um tanto esvaziado no jornalismo cultural. Ademais, os padrões
industriais do impresso conduzem igualmente a uma padronização da linguagem jornalística, de difícil compatibilização com textos letrados. No momento, a situação é
muito ruim.
diálogos&debates Mario de Andrade não dá conta da contemporaneidade?
alcir pécora Seguramente não. E não apenas ele. Quando
relemos grandes autores canônicos do modernismo, como
Drummond, Murilo, Manuel Bandeira, descobrimos, muitas vezes com tristeza e surpresa, que muita coisa envelheceu brutalmente. É preciso reler esses autores sem ranço,
sem apego ao passado como coisa acabada e constituída
de uma vez por todas. Nessa releitura, tanta coisa parece
hoje tão sem graça. Boa parte da obra do Drummond envelheceu.
diálogos&debates Por que grandes corporações jornalísticas
não se interessam pela divulgação literária?
alcir pécora Não se interessam? Não é tão simples assim.
Quem é leitor de jornal no Brasil? Ora, se há um leitor, ele
tem interesse em cultura. Nesse caso, o jornal igualmente
tem de ter interesse nisso. Discutir cultura, produzir polêmicas, discussões candentes, seria um negócio para o jornal.
Eu não vejo contradição necessária entre as corporações e
as práticas culturais. Noto, contudo, um esvaziamento.
diálogos&debates E João Cabral de Melo Neto?
alcir pécora A grande produção dele foi uma poética, isto
é, uma poesia que reflete sobre o modo de produzir poesia, que resulta num modelo construtivista, anti-romântico. Uma poesia negativa, crítica, que se recusa a ser adorno,
e quer ser despojada até o osso. Busca uma confluência de
despojamento formal e consciência política – a imagem do
sertão muitas vezes se associa a esse despojamento. O problema aqui é o seguinte: a força dessa poética contaminou
a opinião dos críticos literários, que muitas vezes repetem
o que ele diz, pautados por ele, o que evidentemente resulta enfraquecedor para o diálogo. As melhores discussões
acontecem quando, como diz um amigo poeta, um grande
poeta encontra um grande crítico, que não está disposto a
abdicar de seus prórpios termos de leler as obras.
diálogos&debates De fato, quase não há crítica na cena cultural brasileira, hoje.
alcir pécora Sim, de fato não existe crítica na TV, é rala no
rádio, ruim nos jornais. E esse é o único lugar onde ainda
há crítica nos meios de comunicação. Mesmo nos sites, não
há nada de especial. Há várias razões. A tradição do Rodapé,
que era feito pessoas cultas da redação, desapareceu paulatinamente, ao mesmo tempo que se firmava a hegemonia
da discussão cultural na universidade. Mas a produção universitária, com alta especialização, não leva a uma discus-
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diálogos&debates junho 2004
E N T R E V I S TA
E N T R E V I S TA
diálogos&debates Como analisa a imprensa atual?
alcir pécora Não acompanho muito, sou um leitor casual.
Leio com mais atenção os suplementos de cultura. E hoje o
panorama não é de grande interesse. Nada como nos tempos do suplemento literário de O Estado de S. Paulo, mais
consistente, de alguns momentos mais vibrantes da Ilustrada, da Folha. Mesmo o caderno Mais! já contou com maior
número de páginas e mais densidade. Tem alguma coisa de
poesia ali, no final, mas sem critério aparente de escolha.
O suplemento literário do Estado desapareceu. Há alguma
coisa interferindo nisso, que não tem a ver entretanto exclusivamente com o jornal. Há a própria dificuldade de estabelecer um parâmetro para a crítica, na crise geral de paradigmas em que vivemos. Não há nenhum modelo crítico,
nenhum denominador minimamente seguro de categorias
intelectuais ou de gosto, então com base em que fazer crítica? Ademais, retorno à idéia de que existem limites industriais, econômicos, que reduzem seriamente as possibilidades do jornalismo cultural. Por exemplo, quando se vêem
alguns dos jornais editados por Mário Faustino, como os
resgatados no belo livro De Anchieta aos Concretos, organizado por Maria Eugênia Boaventura, nos damos conta dessa
mudança. Ele editava páginas inacreditáveis, diagramação
criativa, às vezes um poema em círculo ocupando uma página inteira. Mas essa concepção do design foi abandonada
pelo jornal, que adotou um padrão industrial, medidas curtas, não há muito espaço para a ousadia. E cada vez há menos espaço físico nele para o texto de cultura. 
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a lógica dos
paulos nogueiras
POR SÉRGIO PRAÇA
T
odo plano econômico de grande impacto é idealizado por um gênio (quando bem-sucedido) ou por
um – ou mais – bode expiatório (bem, quando não
dá muito certo). Na história recente do país, temos
diversos exemplos: os bodes Bresser, Zélia etc., e a
“genial” equipe do Plano Real de Fernando Henrique Cardoso. Nosso novo presidente insiste, repete, jura por Deus
que não guarda nas mangas nenhum plano salvador para a
economia do país, que atualmente, segundo ele e seus áulicos, só não está andando muito bem, crescendo a galope,
devido a uma misteriosa crise externa.
Apesar disso, e nisso também o governo Lula é igual a
todos os outros, o presidente e sua equipe econômica precisam legitimar suas escolhas. Os discursos quase diários
do presidente e a bonomia do ministro Palocci não bastam. É necessário convencer as pessoas das boas intenções
da cúpula e culpar pelas adversidades a “burocracia” estatal.
Quem pode servir para legitimar a política econômica do
atual governo? Intelectuais ansiosos não faltam.
Em 6/5/2004, o economista Paulo Nogueira Batista Jr.
publicou, em seu espaço quinzenal no caderno de economia da Folha de S.Paulo, artigo intitulado “O nome da crise” e que nos serve como contra-exemplo. Reproduzo alguns dos principais trechos do texto de Nogueira: “Um dos
meus conhecidos de Brasília, alto funcionário do governo,
(...) contou-me as agruras da administração federal e arrematou, com certa ênfase: ‘O nome da crise é Joaquim Levy”.
“Levy, secretário do Tesouro Nacional, manda mais que o
próprio ministro, segundo algumas versões.” “Ele é um representante típico da ‘ortodoxia de galinheiro’ que predomina no Brasil há muitos anos. Doutorou-se pela Universidade de Chicago, o grande bastião do conservadorismo
econômico nos EUA. (...) Agora corta os gastos e vigia as
contas do governo Lula.”
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diálogos&debates junho 2004
O colunista apresenta, em seguida, sua hipótese: “O Ministério da Fazenda e o Banco Central estão infestados de
joaquins levys. (...) Sabemos que todo governo precisa de
pessoas desse tipo, obcecadas com as contas públicas e os
princípios financeiros. O problema é que no Brasil esses tecnocratas adquiriram um poder desproporcional. (...) Os ministros de Estado e o próprio presidente da República esperneiam, impotentes, enquanto os joaquins levys transmitem,
impávidos, os recados do FMI e dos mercados”.
Não seria injusto inferir que um dos livros de cabeceira
de Nogueira é “Como vencer um debate sem precisar ter razão, em 38 estratagemas” (Rio de Janeiro, Topbooks, 1997),
do filósofo Arthur Schopenhauer. Mas o que Schopenhauer
escreveu como sátira Nogueira parece seguir como manual, com sua lógica intelectualmente desonesta. Deveríamos
todos, segundo ele, culpar os “joaquins levys” pelo destino
econômico do país. Se estivéssemos crescendo a 4% ao ano
– ou então criando 500 mil empregos no primeiro semestre de 2004, como diz o governo, usando outro estratagema de Schopenhauer – deveríamos também creditar esses
resultados aos “joaquins levys”?
Nogueira não oferece a seus leitores a informação mais
básica de todas: o “impotente” presidente da República e seu
“impotente” ministro da Fazenda têm todo o poder para demitir Joaquim Levy e tantos “joaquins levys” quanto quiserem. Por que não o fazem? Não sei. Talvez porque não
tenham quem colocar no lugar, talvez porque o queiram
como bode expiatório. Enquanto isso continuar, seguiremos com “joaquins levys” nos órgãos econômicos. Nos órgãos de propaganda, o governo faria bem em contratar alguns paulos nogueiras. 
Sérgio Praça é mestrando em Ciência Política pela USP e coordenador de comunicação do Movimento Voto Consciente (www.votoconsciente.org.br)
Ú LT I M A
P Á G I N A

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