universidade federal do amazonas instituto de ciências humanas e

Transcrição

universidade federal do amazonas instituto de ciências humanas e
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZÔNIA
A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM DA DANÇA NA OBRA “RITO DE
PASSAGEM”.
MANAUS - AMAZONAS
2014
1
OLVÍDIA DIAS DE SOUZA CRUZ SOBRINHA
A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM DA DANÇA NA OBRA “RITO DE
PASSAGEM”.
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de PósGraduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da
Universidade Federal do Amazonas (UFAM) para obtenção do
título de Mestre. Área de concentração: Processos
Socioculturais na Amazônia.
2
MANAUS - AMAZONAS
2014
Ficha Catalográfica
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a)
autor(a)
Cruz Sobrinha, Olvídia Dias de Souza
C957c
A construção da linguagem da dança na obra "Rito de
Passagem". / Olvídia Dias de Souza Cruz Sobrinha. 2014
176 f.: il. color; 31 cm.
Orientadora: Artemis de Araújo Soares
Coorientadora: Rosemara Staub de Barros Zago
Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia) Universidade Federal do Amazonas.
1. práticas corporais. 2. processo de criação. 3. Yara Costa. 4.
dança contemporânea. I. Soares, Artemis de Araújo II.
Universidade Federal do Amazonas III. Título
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OLVÍDIA DIAS DE SOUZA CRUZ SOBRINHA
A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM DA DANÇA NA OBRA “RITO DE
PASSAGEM”.
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de PósGraduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da
Universidade Federal do Amazonas (UFAM) para obtenção do
título de Mestre. Área de concentração: Processos
Socioculturais na Amazônia.
Aprovada em: ......./ ......./ 2014
Banca examinadora
Presidente
Profª. Drª. Artemis de Araújo Soares
Universidade Federal do Amazonas
Julgamento: .........................................
Assinatura:..................................................
Coorientadora
Universidade Federal do Amazonas
Profª. Drª. Rosemara Staub de Barros Zago
Julgamento: ........................................
Assinatura:.................................................
Profª. Drª. Ítala Clay de Oliveira Freitas
Universidade Federal do Amazonas
Julgamento: .......................................
Assinatura:.................................................
Prof. Dr. João Luis da Costa Barros
Universidade Federal do Amazonas
Julgamento: .........................................
Assinatura:..................................................
MANAUS – AMAZONAS
2014
4
Dedico este produto-reflexão a meus pais pelo cuidado, pelo amor incondicional e
pelo apoio em todos os momentos da minha vida. Dedico ainda a minha família e
amigos próximos pelo apoio nos momentos difíceis. E por fim a dança, arte pela
qual me apaixonei e que muito contribuiu para a minha formação profissional,
acadêmica e pessoal, fonte de inspiração e alegria.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus - com a certeza de que dispensa provas.
A meus pais pelo apoio em todos os momentos.
Meus irmãos pelo apoio em momentos difíceis.
Ao Programa de Pós-graduação Sociedade e cultura na Amazônia (PPGSCA) da
Universidade Federal do Amazonas (Ufam) pela acolhida no curso de mestrado.
As minhas orientadoras Artemis de Araújo Soares e Rosemara Staub de Barros por
acreditarem no projeto e apontarem os caminhos para concretizá-lo.
A diretora da Índios.com Cia de Dança, bailarina, coreógrafa e professora Yara Costa
por concordar com a realização da pesquisa sobre uma de suas produções artísticas e
pelo apoio, dedicação e valiosas contribuições através de entrevistas e empréstimo de
materiais sobre a obra.
A família da coreógrafa Yara Costa pela calorosa acolhida e disposição para colaborar
com a pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na Amazônia que
muito contribuíram ao longo do processo (Nelson Noronha, Selda Vale, Artemis Soares,
Rosemara Staub, Elenise Scherer, Iraildes Caldas).
As professoras doutoras Ítala Clay de Oliveira Freitas e Elenise Scherer pelas
contribuições por ocasião do exame de qualificação.
Aos colegas do mestrado (Rooney Barros, Priscila Pinto, Gustavo Kienen, Maurício
Adu, Ivone, Jeanne Chaves, Mirian, Lara Almeida, Roseane, Priscila Lima, Socorro)
pelo apoio e por compartilharem seus processos e conhecimentos.
Aos professores da banca examinadora da defesa: Profª. Drª. Ítala Clay de Oliveira
Freitas e Prof. Dr. João Luis da Costa Barros pela contribuição ao trabalho dissertativo.
A todos que de alguma forma colaboraram com a pesquisa e com a minha caminhada
durante esse percurso no mestrado.
A CAPES pelo apoio a pesquisa.
6
RESUMO
Esta pesquisa trata de investigar através do estudo de processo de criação como as práticas
corporais foram resignificadas na obra de dança contemporânea “Rito de Passagem”, criada em
2007 pela coreógrafa amazonense Yara Costa. Buscamos em um primeiro momento nos
reportar aos estudos culturais abrangendo o global e o local, as práticas corporais na região
amazônica e na dança contemporânea. Também abordamos a performance em arte e
especificamente na dança. Em um segundo momento nos aprofundamos nos estudos de processo
de criação tomando como base a teoria da complexidade, a teoria dos signos e os estudos de
processos criativos em arte. No terceiro momento da pesquisa nos reportamos ao processo de
criação de “Rito de Passagem” através de documentos do processo da obra para uma análise
sobre as práticas corporais apresentadas no trabalho artístico. Utilizamos na pesquisa de cunho
qualitativo, entrevistas semiestruturadas, a pesquisa documental assim como para a análise a
hermenêutica e a dialética. Concluímos que os estudos de processo de criação podem colaborar
com pesquisas nas artes cênicas e mais especificamente a dança e para os estudos das práticas
corporais que vem sendo incorporadas a essa forma artística, possibilitando identificar e analisar
como as práticas corporais cotidianas e de diferentes campos que envolvem o movimento vem
sendo resignificadas na dança contemporânea.
Palavras-chave: práticas corporais, processo de criação, Yara Costa, dança contemporânea.
7
ABSTRACT
This research comes to investigate through the creative process study as the body
practices were resignificated in contemporary dance artwork “Rito de Passagem”,
created in 2007 by the amazon choreographer Yara Costa. We looked for in a first
moment to report to cultural studies including the global and local, bodily practices in
amazon region and in contemporary dance. We also discussed art performance and
specifically in dance. In a second step deeper into the studies of the creation process
building on complexity theory, the theory of signs and studies of creative processes in
art. In the third phase of research reported in the creation of "Rite of Passage" through
documents in the work to an analysis of the bodily practices presented in the artwork
process. Used in the research of qualitative nature, semi-structured interviews,
documentary research as well as for the analysis hermeneutics and dialectics. We
conclude that studies of the creation process can collaborate with research in the
performing arts and dance and more specifically to the study of bodily practices that
have been incorporated into the art form, enabling to identify and analyze how everyday
bodily practices and different fields involve the movement has been resignified in
contemporary dance.
Key-Words: body practices, create process, Yara Costa, contemporary dance.
8
FIGURAS
Figura: 01 Documento 01 de processo da pesquisa em dança aérea, de Yara Costa, caderno
de anotações, s.d. .....................................................................................................................92
Figura: 02 Documento 02 de processo da pesquisa em dança aérea de Yara Costa, caderno
de anotações, s.d. .....................................................................................................................94
Figura: 03 Documento 03 notações (símbolos representando movimentos) em dança, caderno
de anotações, s.d. .....................................................................................................................96
Figura: 04 Documento 04 (anotações relacionadas à pesquisa sobre o índio para “Rito de
Passagem”, caderno de anotações, s.d. ....................................................................................98
Figura: 05 Documento 05 recorte de reportagem sobre dança aérea. caderno de anotações,
2000. ......................................................................................................................................100
Figura: 06 documento 06 recorte reportagem sobre o grupo Bandaloop, 2000. ..................101
Figura: 07 Documento 07 pesquisa para a obra “Rito de Passagem”, caderno de anotações,
s.d. ..........................................................................................................................................102
Figura: 08 Documento 08 anotações sobre a criação do grupo de estudo em dança aérea, s.d.
................................................................................................................................................104
Figura: 09 Documento 09 relatório de participação no grupo de pesquisa aérea, s.d. .........105
Figura: 10 Documento 10 primeiras anotações sobre a obra “Rito de Passagem”, s.d. ......107
Figura: 11 Documento 11 pesquisa para a obra “Rito de Passagem”, s.d. .........................108
Figura: 12 Yara descendo no rapel em uma ponte, s.d. ......................................................109
Figura: 13 Yara treinando movimentos para a dança aérea na ponte, s.d. .........................110
Figura: 14 Caboclo descendo do pé de açaí, s.d. ................................................................111
Figura: 15 Yara na primeira cena entrada da intérprete no palco, 2008. ............................114
Figura: 16 Túnica estampada colorida, 2008. .....................................................................117
Figura: 17 Yara utilizando o equipamento corda trançada, 2008. ......................................117
Figura: 18 Yara na primeira cena, subindo na corda trançada, 2008. ................................118
Figura: 19 Yara na primeira cena, sequência na corda trançada, 2008. .............................119
9
Figura: 20 Yara na segunda cena referência a menina moça, 2008. ...................................120
Figura: 21 calça de malha corsário e tanga de miçanga, 2008. ..........................................121
Figura: 22 Equipamento do rapel cadeirinha (boldrié), corda e mosquetão, 2008. ...........122
Figura: 23 Yara à frente do suporte e objeto cênico maloca, 2008. ...................................123
Figura: 24 Yara na 3ª cena de “Rito de Passagem com o objeto cênico nomeado de maloca,
referência ao momento de reclusão e aprendizagem da menina moça, 2008. .....................124
Figura: 25 casaquinho de malha furta-cor, 2008. ...............................................................125
Figura: 26 Yara por trás do cenário tela branca vazada, 2008. ..........................................126
Figura: 27 Yara na quarta cena referência a maternidade, 2008. .......................................127
Figura: 28 Yara na quinta cena referência ao ritual de iniciação Baniwa prox. ao solo, 2008.
..............................................................................................................................................128
Figura: 29 Yara na quinta cena referência ao ritual de iniciação Baniwa no espaço aéreo,
2008. ....................................................................................................................................129
Figura: 30 Yara na quinta cena de “Rito de Passagem” com um figurino a mais o vestido de
algodão, 2009. .....................................................................................................................130
Figura: 31 Vestido de algodão marrom, 2014. ..................................................................132
Figura: 32 Yara na sexta cena referência a maturidade, 2008. ..........................................132
Figura: 33 Saia de barbante última cena de “Rito de Passagem”, 2008. ...........................134
Figura: 34 Yara na sexta cena interagindo com os objetos cênicos, 2008. .......................135
Figura: 35 Yara na sexta cena de “Rito de Passagem”, 2008. ..........................................136
Figura: 36 Agradecimento de uma parte da equipe que atuou em “Rito de Passagem”, 2008.
.............................................................................................................................................137
Figura: 37 Vista aérea da cidade de Urucurituba/AM, s.d. ..............................................148
Figura: 38 Localização geográfica do município de Urucurituba no mapa do Amazonas, s.d.
............................................................................................................................................148
Figura: 39 Residência de infância da coreógrafa em Urucurituba, 1973. ........................149
Figura: 40 A coreógrafa em Uricurituba na infância, 1973. ............................................150
Figura: 41 A coreógrafa na infância junto com sua família, 1973. ..................................150
Figura: 42 Yara à frente com o Grupo de GR da ETFAM, 1983. ....................................151
Figura: 43 Yara durante o tempo em que integrou o GEDAM e Renascença, 1995. ......152
10
Figura: 44 Yara durante o tempo em que integrou o GEDEF, GEDAM e Renascença, 1995.
............................................................................................................................................152
Figura: 45 Yara durante o tempo em que integrou o GEDEF, GEDAM, 1996. ..............153
Figura: 46 Foto de uma performance durante o curso de Pós-graduação em Dança na Bahia,
1997. ..................................................................................................................................154
Figura: 47 Audição para o C.D.A, 1998...........................................................................155
Figura: 48 No Teatro Amazonas após a apresentação do espetáculo “Mandala” junto com
o diretor do DCA na época Jofre Santos, 1999. ...............................................................156
Figura: 49 Atividades do AGAM treino da coreógrafa no rapel, 1999.
...........................................................................................................................................158
Figura: 50 Atividades do AGAM e experimentações de dança da coreógrafa no rapel, 2001.
...........................................................................................................................................158
Figura: 51 Prática esportiva da artista – paraquedismo, s.d. ...........................................159
Figura: 52 Prática esportiva da artista – escalada, s.d .....................................................159
Figura: 53 Prática esportiva da artista – Aikido, s.d. ......................................................160
Figura: 54 Ensaio para concerto de Natal no telhado do Teatro Amazonas da Índios.com Cia
de Dança, 2005. ................................................................................................................161
Figura: 55 Ensaio para concerto de Natal no telhado do Teatro Amazonas e com seu esposo
e companheiro de trabalho na Índios.com Cia de Dança Ednaldo Passos, 2005. .............161
Figura: 56 Divulgação do espetáculo “O Processo”, 2004. ..........................................162
Figura: 57 Apresentação do espetáculo “O Processo”, 2004. ........................................162
Figura: 58 Bastidores do espetáculo “O Processo”, 2004. ............................................163
Figura: 59 Cena de “Rito de Passagem”, 2008. ..............................................................163
Figura: 60 Foto do cartaz do Prêmio Palco Giratório, 2009. ..........................................164
Figura: 61 A coreógrafa com sua orientadora e as professoras de sua banca logo após a
defesa do mestrado, 2008. ................................................................................................166
Figura: 62 Folder da obra “Rito de Passagem”, 2007. ....................................................167
Figura: 63 Documento 08 na íntegra, anotações sobre a criação do grupo de estudo em dança
aérea. ................................................................................................................................168
Figura: 64 Documento 05 na íntegra, reportagem sobre dança aérea .............................169
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................................................13
1 CAPÍTULO - TEXTOS E CONTEXTOS DAS LINGUAGENS CORPORAIS
CONTEMPORÂNEAS................................................................................................................................17
1.1Cultura e sociedade contemporânea: o global e o local....................................................17
1.1.2 O global – Contemporaneidade..........................................................................24
1.1.3 O local - Manaus ontem e hoje...........................................................................30
1.2 Práticas corporais: corpo e corporeidade.........................................................................37
1.2.1 Noção de técnica do corpo..................................................................................37
1.2.2 Corporeidade......................................................................................................42
1.3 Corpo e performance em dança contemporânea.............................................................49
1.3.1 O corpo na cena contemporânea.........................................................................49
1.3.2 Performance na dança contemporânea...............................................................56
2 CAPÍTULO - PROCESSO DE CRIAÇÃO: DIVERSOS OLHARES..........................67
2.1 Processos de criação em arte...........................................................................................67
2.2 Processos de criação na dança........................................................................................78
3 CAPÍTULO - PROCESSO DE CRIAÇÃO DA OBRA “RITO DE PASSAGEM” .....86
3.1 Documentos de processos................................................................................................92
3.2 Corpo e performance ......................................................................................................99
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................139
REFERÊNCIAS..................................................................................................................142
ANEXOS.............................................................................................................................147
A. Trajetória biográfica da coreógrafa..................................................................................147
B. Folder de “Rito de Passagem”.........................................................................................167
C. Documento 08 na íntegra.................................................................................................168
D. Documento 05 na íntegra.................................................................................................169
12
E. Roteiro de entrevista semiestruturada 2012.....................................................................170
13
INTRODUÇÃO
O processo de envolvimento com esse tema de pesquisa vem desde muito antes do
meu ingresso na faculdade. Retrocedendo assim a minha infância na cidade de Manaus,
quando minha família e eu íamos assistir a espetáculos circenses que apresentavam uma
diversidade de performances, os artistas demonstravam grande domínio de diferentes técnicas
corporais.
A performance que mais me chamava a atenção era a dos trapezistas pelas acrobacias
aéreas, a força e precisão dos movimentos e o risco que corriam, como se não pudessem errar.
Recordo de estar sempre treinando principalmente os movimentos relacionados ao trapézio,
pois tinha um balanço grande em casa e eu passava horas me preparando para algum dia ir
embora e trabalhar no circo.
Envolta nesse universo circense de sonho e ciente da necessidade de existir um trabalho
árduo de treinos para torná-lo realidade, passei a prestar mais atenção nas práticas esportivas,
marciais e artísticas principalmente através da TV e de eventos festivos de cunho folclórico
como as festas juninas onde se apresentam diferentes estilos de danças folclóricas.
No esporte as práticas que mais me chamaram a atenção foram a ginástica rítmica e a
patinação no gelo, dentre as artes marciais o Kung-Fu e Ninjutso e na dança o balé clássico, o
rock na dança de salão e o balé moderno, conforme conhecia outros estilos de dança essa lista
foi se alargando.
Na adolescência pratiquei Kung-Fu, dança Flamenca, balé clássico, teatro e capoeira.
Após finalizar o ensino médio fiz aulas de dança moderna e tive a oportunidade de fazer testes
para três grupos de dança, vindo a fazer parte de dois destes grupos, o Balé Folclórico do
Amazonas e o Grupo Espaço de Dança do Amazonas (GEDAM), começando uma carreira
profissional na dança.
Na faculdade cursei bacharelado e depois completei a licenciatura plena em dança,
aprendi a importância da parte teórica e da pesquisa. Na pós-graduação latu senso, escolhi um
curso que ajudou a ampliar o olhar sobre as práticas artísticas, Artes visuais, cultura e criação,
sempre juntando a teoria com a prática nos trabalhos durante e na finalização do curso.
14
No percurso da minha formação acadêmica, profissional e pessoal tive muitas
experiências que só reforçaram o meu interesse pela dança e as artes em geral, até chegar ao
curso de mestrado mantendo o olhar voltado para a nossa região, a arte produzida aqui na
cidade de Manaus, no meu primeiro curso de pós me reportei a alguns artistas locais e suas
obras.
No cenário da dança local há grande interesse por parte dos artistas em temáticas que
se reportam a realidade amazônica, voltando o olhar para questões étnicas antropológicas.
Essas questões despertam em nós enorme interesse, razão porque decidimos fazer um
estudo abordando as práticas corporais a partir do processo de criação da obra de dança
contemporânea “Rito de Passagem” da coreógrafa amazonense Yara Costa, que apresenta
uma trajetória com a pesquisa e produção artística em dança contemporânea na cidade de
Manaus. Junto com a sua Índios.com companhia de dança a coreógrafa apresenta um trabalho
intrinsecamente ligado à investigação de movimento, que envolve a técnica do rapel e a
técnica circense de tecido, vindo a tornar-se uma referência em dança aérea no Estado do
Amazonas.
Yara nasceu no interior do Amazonas em Urucurituba e descende da mistura étnica de
indígenas e portugueses, desde criança demostrava interesse pela dança e no ensino
fundamental praticou ginástica rítmica. No ensino médio teve contato com os estilos de dança
clássica, moderna e contemporânea, cursou faculdade de engenharia elétrica e fez a pósgraduação tanto latu senso como stricto senso em dança.
Integrou alguns dos grupos de dança do Amazonas GEDAM (Grupo Espaço de Dança
do Amazonas), Renascença, CDA (Corpo de Dança do Amazonas), foi diretora artística de
dança no SESC (Serviço Social do Comércio) e atualmente é diretora e intérprete da
Índios.com Cia de Dança e professora de processo de criação na UEA (Universidade do
Estado do Amazonas).
Para conhecer a artista criadora da obra estudada, sua trajetória vivida, acrescentamos
em anexo à biografia de Yara Costa cuja pesquisa misturando técnicas de dança, esportiva e
circense começou com um projeto de extensão dentro da Universidade do Estado do
Amazonas investigando a mistura entre a técnica do esporte radical rapel e alguns
movimentos da dança buscando a possibilidade de realizar uma dança no espaço aéreo.
Depois foi introduzida no processo a técnica circense de tecido.
15
Yara venceu diversos editais nacionais e internacionais se destacando no cenário da
dança local com ênfase para a dança aérea e trabalhos com temática cultural. “Rito de
Passagem” se reporta a cultura indígena utilizando na maior parte da obra a dança aérea.
Trata-se de uma obra que apresenta temática voltada para a realidade do cotidiano da
mulher indígena amazônica, além de apresentar referências universais ao se reportar a todas
as mulheres através das diferentes fases de vida dessas mulheres, que implicam mudanças
físicas e psicológicas.
Os processos criativos apresentam uma variedade ampla de referenciais e um
determinado número de relações entre esses referenciais para formarem um todo complexo,
mas, coerente.
As práticas corporais presentes na cena da dança na atualidade estão cada vez mais
diversificadas, há abertura para mesclar a dança, por exemplo, com técnicas esportivas,
marciais, teatrais, práticas cotidianas e também outros estilos artísticos. Os intérpretes vêm
conseguindo uma hibridez na mistura dessas diferentes movimentações, causando
experiências estéticas de grande riqueza para os participantes da obra e do público que a
prestigia.
Para a pesquisas que envolvem processo de criação o estudo dos signos e das interrelações entre eles assim como sobre as relações e inter-relações do criador com o ambiente
ao seu redor, se mostra relevante para uma melhor compreensão da obra, de seu
desenvolvimento e para uma possível análise dessas informações.
Ressaltamos a importância de se ter um olhar sistêmico sobre esses estudos de
processo de criação artística devido a sua composição complexa.
As obras artísticas nascem a partir de inquietações, inspirações e da pesquisa e
trabalho de um ou mais criadores. A obra “Rito de Passagem” foi criada pela coreógrafa
amazonense Yara Costa que também é (bailarina, diretora da índios.com Cia de Dança e
professora da Universidade Estadual do Amazonas UEA), a partir de suas inquietações
relacionadas com suas origens da mistura entre indígenas e europeus e das referências
indígenas de nossa cultura amazônica.
Conhecer melhor um processo criativo é mergulhar em um universo próprio que trás
consigo diversas referências de uma vida e de diferentes pesquisas, que parte de um ou mais
criadores. Ao nos reportarmos a determinado processo criativo estamos voltando o olhar para
o trabalho de um ou mais artistas de e em determinado lugar.
16
Nesta pesquisa qualitativa buscamos investigar na obra “Rito de Passagem” como as
práticas corporais escolhidas pela coreógrafa foram transpostas, resignificadas para a
linguagem da dança contemporânea, utilizamos na metodologia a entrevista semiestruturada,
a pesquisa documental assim como a hermenêutica e a dialética.
Dentre os campos científicos podemos perceber no caso da obra observada uma
relação com a história, a sociologia, a antropologia. Ampliar o olhar neste contexto significa
ampliar o campo de conhecimento, buscar perceber as partes e o todo em sua completude,
com um maior número de conexões.
No primeiro capítulo abordamos o referencial teórico buscando embasamento a
princípio nos estudos de Geertz (2008), Laraia (2009), Santos (2008), Giddens (2000) sobre
os estudos culturais e a globalização; Mauss (2010), Le Breton (2007) e Soares (1996) para
analisar as práticas corporais, Peirano (2013), Ligiéro (2012) e Schechner (2012) para
verificar questões relacionadas à performance entre outros autores como Xavier (2002) sobre
a dança na cidade de Manaus, Le Breton (2012), sobre o corpo na cena contemporânea e Katz
(2004) sobre a dança contemporânea.
Partimos dos estudos culturais para termos uma visão mais ampla sobre a diversidade
cultural, a globalização e a influência das culturas nos trabalhos artísticos até chegarmos aos
estudos das práticas corporais, ao corpo na cena contemporânea e a performance em dança.
No segundo capítulo abarcamos o processo de criação na arte e especificamente na
dança tendo como base os estudos de Peirce (1977), Langendonk (2004), Santaela e Vieira
(2004), Morin (2003) e Salles (1998) sobre o estudo dos signos, ícones, a complexidade dos
trabalhos artísticos e também nos estudos de Ostrower (2004), Marques (2010), Lobo e Navas
(2008), Martins (2007) e Laban (1990) para abordar a criação na dança, técnicas de dança e
traços estéticos.
No terceiro capítulo, nos reportamos sobre a obra “Rito de Passagem” seu processo
criativo, documentos de processo (cadernos de anotações, equipamentos etc.), a produção, os
componentes da obra figurino, trilha sonora, práticas corporais utilizadas e a performance. A
partir dessas informações fizemos uma análise em cima do processo criativo sobre as práticas
corporais presentes na obra e como elas foram transpostas, resignificadas para a linguagem da
dança.
Esta pesquisa concluiu que através dos estudos de processo de criação é possível
perceber e conhecer partes do processo criativo de um trabalho artístico são detalhes que
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colaboram para decifrar alguns pontos importantes como alguns questionamentos,
inquietações e inspirações da criadora que a motivaram a criar a obra, assim como os
diferentes referenciais e vivências da artista que influenciam nas escolhas dos elementos
sígnicos selecionados para compor a obra.
A artista passa por momentos de introspecção e de busca inconsciente e consciente até
chegar a algo mais concreto, são diversos discursos no decorrer do processo que podem
concordar ou discordar uns com os outros, e a artista cabe conciliar tudo para organizar e
produzir a obra tirando-a do campo das ideias para o da realidade.
As práticas corporais que compõem a obra “Rito de Passagem” são bem diversificadas
e verificamos que foi necessário um bom tempo reservado a pesquisa de movimento para
chegar à composição coreográfica da obra concebida em 2007, ainda em um primeiro estágio
das experimentações para a dança aérea partindo dos conhecimentos da dança, esporte radical
rapel e arte circense tecido.
As possibilidades de diálogo entre as diferentes práticas corporais e expressões
artísticas são inúmeras e requerem tempo, dedicação e ousadia. E a coreografa conseguiu unir
esses elementos dentro dos seus conhecimentos e também buscando em outras fontes
dialogando com outras áreas e artistas o que nos leva a mais um ponto importante nos
trabalhos em dança contemporânea, a necessidade do diálogo, de experimentar, vivenciar as
diferentes práticas corporais para apreendê-las, percebê-las, corporificá-las para então
transformá-las, o que pode ser de forma mais orgânica ou não, mas lembrando de manter a
segurança dos intérpretes.
18
1. CAPÍTULO - TEXTOS E CONTEXTOS DAS LINGUAGENS
CORPORAIS CONTEMPORÂNEAS.
1.1 CULTURA E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O GLOBAL E O LOCAL
A cultura é dinâmica e o homem como um ser cultural que é, acompanha as diversas
transformações que as sociedades apresentam a sua sobrevivência, mantém relação com a
capacidade de se adaptar ao meio cultural no qual vive ou com o qual convive.
Para Geertz (2008) o homem se desenvolveu partindo de fatores biológicos em um
processo de variação genética e seleção natural e posteriormente, durante sua evolução sofreu
alguma alteração genética que o tornou capaz de produzir e transmitir cultura. E ao se
transformar em um ser cultural passou a responder de forma diferente as mudanças nos
ambientes aos quais se expunha, buscando se adaptar de acordo com suas descobertas e
conhecimentos culturais e não mais genéticos.
Para sobreviver nas diferentes regiões da terra Geertz (2008) esclarece que o homem
se protege em lugares frios com peles de animais ou outros materiais e usa pouca roupa ou
nenhuma no calor, cria instrumentos para aumentar a sua eficiência e facilitar a busca por
alimentos e na luta pela sobrevivência.
Com o desenvolvimento cultural, o homem se considera fora da cadeia alimentar do
reino animal e busca uma conexão com uma força superior/divina, o homem passou então a
acumular e transmitir conhecimento, desenvolvendo-se principalmente a partir do crescimento
da organização cultural.
Segundo Geertz (2008, p. 35), após o período de transformações da era glacial, [...]
“para obter a informação adicional necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender
cada vez mais de fontes culturais fundo acumulado de símbolos significantes”. Tais símbolos
para o autor estão relacionados com a linguagem, com a arte, o mito e o ritual, que servem de
apoio para a orientação da comunicação e do autocontrole. O apoio nesses sistemas
19
simbólicos criou um novo ambiente para o homem se adaptar, agora organizado e moldado
pela cultura.
A cultura apresenta distintas variações de acordo com o processo evolutivo e com
as necessidades de cada ambiente ao qual o grupo humano esteja inserido. Sobre seu
próprio conceito de cultura Geertz (2008, p. 66) afirma que:
[...], o conceito de cultura ao qual me atenho não possui referentes múltiplos
nem qualquer ambiguidade fora do comum, segundo me parece: ele denota
um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em
símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas
simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e
desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida.
Geertz (2008, apud Goodnough, p. 08), ao se reportar ao conceito de cultura, também
cita Goodenough onde expõe: “A cultura de uma sociedade consiste no que quer que seja que
alguém tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros”.
O autor apresenta o homem como um ser que se desenvolveu e se tornou o que é hoje
devido à criação e organização cultural da qual ele próprio é o autor. Também coloca a ideia
de controle onde as pessoas pertencentes a determinado núcleo cultural, aprendem a agir de
acordo com os comportamentos aceitáveis dentro da sociedade na qual estão inseridas. Se não
existisse determinada organização e orientação seria difícil manter uma ordem.
Para Geertz (2008) a cultura acumulada é transmitida através de símbolos, que partem
de significados acumulados ao longo de períodos históricos diferenciados representados por
padrões simbólicos convencionalizados através dos quais o homem amplia seu conhecimento
e pode modificar sua realidade, resultando em um processo evolutivo através do acúmulo e
transferência de saberes diversos. Sobre o uso do termo símbolo o autor esclarece que:
Para alguns, ele é usado para qualquer coisa que significa uma outra coisa
para alguém – as nuvens escuras são as precursoras simbólicas de uma chuva
que vai cair . Para outros é usado apenas em termos de sinais explicitamente
convencionais de um outro tipo – uma bandeira vermelha é um símbolo de
perigo , uma bandeira branca de rendição. [...]. Para outros, entretanto, ele é
usado para qualquer objeto, ato acontecimento, qualidade ou relação que
serve de vínculo a uma concepção – a concepção é o “significado” do
símbolo – e é essa concepção que usarei aqui. O número 6, escrito,
imaginado, disposto em uma fileira de pedras ou indicado em um programa
de computador, é um símbolo. A cruz também é um símbolo, falado,
visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze, dedilhado
quando pendurado em uma corrente [...]. Todos eles são símbolos ou pelo
menos elementos simbólicos, pois são formulações tangíveis de noções,
abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações
20
concretas de ideias, atitudes julgamentos, saudades ou crenças (Ibdem, 2008,
p. 67-68).
Então para o autor a concepção que se tem de símbolo escolhida para uso na sua
pesquisa na qual estamos nos embasando, é que todo objeto é um símbolo ou elemento
simbólico, pois representa algo concreto cuja forma pode relacionar-se com significados
diferenciados, mas dentro de um mesmo contexto, convencionalizados a partir de
experiências, ideias e crenças.
Laraia (2009, p. 45) que também se reporta aos estudos culturais comenta que:
O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um
herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a
experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A
manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as
inovações e as invenções.
O conhecimento é transmitido de uma geração a outra e sempre as informações são
atualizadas de acordo com o contexto em que as pessoas estão incluídas. Nesse processo de
aprendizagem e armazenamento de informação os cinco sentidos do corpo humano paladar,
audição, tato, olfato e visão são de extrema importância, pois percebemos o mundo ao nosso
redor através de nossos sentidos. Outro fator que faz muita diferença é a nossa grande
capacidade de comunicação e de armazenar, transformar e produzir conhecimento.
Na natureza o homem se destaca como o único ser cultural. Para a sociedade humana
as mudanças podem ocorrer de forma mais lenta tal como nos processos de evolução natural,
ou acelerada como em um processo de colonização.
Seja em um processo de colonização ou outra forma de intercâmbio cultural Herkovits
(1960, p. 348) afirma:
[...] a transmissão da cultura, processo de mudança cultural [...] ocorre
quando dois povos quaisquer têm contato histórico respectivo. Onde um
grupo, por ser maior ou estar tecnologicamente melhor equipado que o outro
obriga as mudanças nos modos de vida de um povo conquistado, pode-se
chamar, o que governa, o grupo dominante.
E ainda para Herkovits (1960, p. 348) com relação ao contato entre povos com
culturas diferentes, “o ponto importante a citar é que qualquer que seja a natureza do
contato, o resultado parece ser o empréstimo mútuo e a subsequente revisão dos elementos
culturais”.
21
Somos seres com uma grande capacidade de adaptação, inteligência e temos acesso
a uma diversificada gama de conhecimento, o que contribui para sobrevivermos às
mudanças e influências no ambiente. Adaptamo-nos constantemente às transformações ao
nosso redor, aprendemos com pessoas de nosso convívio como familiares, professores e
amigos o modo de pensar e agir da sociedade em que vivemos e com as quais temos
contato.
Parece que não há maneira de o homem não influenciar ou não ser influenciado de
alguma forma pelo todo ao redor ou com qualquer coisa que este venha a ter um contato
que exerça certo impacto sobre ele, influência ou tenha uma determinada duração de tempo
que leve a isso.
O ser humano tem uma grande capacidade de aprendizagem e percepção, mas
somente as desenvolve se receber estímulos que colaborem para que isso aconteça. A
capacidade existe e só se desenvolve mediante a variada estimulação de fontes
diferenciadas.
Laraia (2009) ressalta que apesar do ser humano nascer inteligente, ele precisa
receber os estímulos, as informações necessárias para que possa desenvolver as suas
capacidades criadoras e revolucionárias. Cita o exemplo de Santos Dumont que deixou sua
cidade no final do século XIX e foi para Paris onde teve acesso a um grande acúmulo de
conhecimento da civilização ocidental. Esse fato contribuiu para ele ter criado um aparelho
que proporcionou ao homem se locomover pelo espaço aéreo. O que não teria sido possível
se permanecesse em sua cidade natal.
Ainda segundo Laraia (2009), independente do local de nascimento de uma criança,
comunidade, cidade, pais, por exemplo, se ela nasceu em Londres e pouco tempo depois
for levada para ser criada em uma família no Rio de Janeiro, ela não se diferenciará
mentalmente de seus irmãos da família brasileira.
Para Laraia (2009), muitas vezes acontece de o que é considerada uma atividade
inteiramente feminina em determinada localidade pode ser uma atividade masculina em
outra. O que diferencia o comportamento entre homens e mulheres é, em sua maior parte,
de cunho cultural e não biológico. Sobre a influência biológica no comportamento do ser
humano em relação à diferenciação por gênero, afirma que se dá principalmente pela ação
dos hormônios sexuais.
22
A partir da experiência vivida e de relatos no meio da dança é possível destacar que
na prática do balé clássico, no Brasil, ainda há muito preconceito por parte da sociedade
quanto a ser praticado por meninos e, normalmente, os pais referem que os filhos
pratiquem esportes ou lutas marciais. O balé é considerado uma atividade feminina por
apresentar movimentos leves e delicados, apesar de que nos solos masculinos os
movimentos são vigorosos e fortes com grandes saltos. Já na Rússia, país onde há uma
grande tradição desse estilo de dança, é uma alegria para a família ter um filho ou uma
filha que se interesse em estudar balé clássico.
Outro exemplo é a dança praticada quase unicamente por mulheres no Brasil
conhecida por ser extremamente sensual chamada de Pole Dance, recentemente
transformada em uma modalidade esportiva ressaltando a performance de força e
flexibilidade, já na Índia é praticada pelos homens não como dança, mas como uma
atividade esportiva competitiva onde eles realizam principalmente movimentos de força,
flexibilidade e acrobacias.
Laraia (2009) também ressalta que é devido à capacidade de resolver problemas
através do uso não apenas do conhecimento, mas também utilizando a criatividade, os
habitantes de uma mesma região apresentam modos de vida diferenciados e cita os povos
habitantes da calota polar norte, os esquimós e os lapões. Os primeiros vivem em casas
feitas de gelo chamadas iglus, sendo forradas por peles de rena por dentro possibilitando
que eles tirem as pesadas roupas em seu interior. Eles preferem caçar ao invés de criar
animais e quando se mudam simplesmente abandonam o local.
Já os lapões constroem suas casas com peles de rena e pedaços de madeira, são
criadores de rena e ao se mudarem precisam desmontar tudo e transportar para o próximo
local escolhido para residir. Outro exemplo citado pelo autor são os Xinguanos como ele
coloca (Kamayurá, Kalapalo, Trumai, Waurá), habitantes do Parque Nacional do Xingu
que por motivos culturais não comem os grandes mamíferos e se dedicam acaça de aves e a
pesca. E os Kayabi, que habitam o norte da mesma região preferem os grandes mamíferos
como as antas, os veados e os caititus.
Herkovits (1960, p. 349) também se reporta a manifestações culturais diferenciadas
em uma mesma região partindo da relação de intercâmbios culturais onde expõe que:
23
Os tipos de contato entre os povos diferem em muitos aspectos. Podem
ocorrer entre populações inteiras, ou entre segmentos substanciados dessas
populações, ou pode ainda surgir do contato entre agrupamentos menores ou
mesmo entre indivíduos. Onde os representantes de um grupo levam a outro
uma faceta particular de sua cultura, os elementos tomados de empréstimo
serão evidentemente os da faceta apresentada.
Os filmes americanos são um exemplo de como nos dias de hoje determinado produto
como as produções cinematográficas podem influenciar diferentes parcelas da sociedade,
causando interferência desde a maneira como a pessoa se produz até na forma de pensar e ver
o mundo. É uma forma de intercâmbio cultural e pode-se dizer até mesmo que é uma forma
atual de colonização.
O homem está sujeito às intempéries da natureza principalmente na região em que
habita, seu organismo responde aos estímulos e transformações necessárias para uma melhor
adaptação como ser biológico que é, mas ele descobre diferentes maneiras de conviver e
transformar essa natureza, às vezes com sabedoria como uma grande parte da população
indígena brasileira ainda faz e às vezes não como os habitantes das grandes cidades que
desperdiçam tudo e consomem mais do que realmente precisam.
Um exemplo são as modificações geográficas feitas na cidade de Manaus, que era uma
cidade cortada por inúmeros igarapés, devido ao “progresso” os cursos desses rios foram
mudados, os igarapés foram aterrados ou transformados em esgotos sem pensar em cuidar de
um bem tão precioso à vida humana que é a água. E esse comportamento foi culturalmente
construído.
Laraia (2009, p. 25) esclarece que o conceito de cultura mais utilizado foi definido pela
primeira vez por Edward Tylor:
No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico
Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma
comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se
principalmente as realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram
sintetizados por Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture, que ‘tomado
em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui
conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade’.
Todas as práticas, crenças, formas de organização, enfim todo contexto em que vive o
ser humano está relacionado com a cultura, faz parte de quem somos porque é a partir das
relações e aprendizagens culturais que nos desenvolvemos.
24
Sobre os estudos culturais da antropologia Geertz (2008, p. 09) afirma que “a cultura é
pública porque o significado o é”, se reporta ao fazer do antropólogo e de questionamentos
sobre esse fazer, acrescenta que não conseguimos nos situar completamente em uma cultura
diferente da nossa, apenas parcialmente, não entendemos completamente o povo do local e
que a pesquisa etnográfica consiste em situar-se parcialmente em determinada cultura
pesquisada.
Esclarece também que “estar situado eis o que consiste o texto antropológico como
empreendimento científico” (GEERTZ, p. 10). Acrescenta ainda que “estamos procurando, no
sentido mais amplo do texto, que compreende muito mais do que simplesmente falar, é
conversar com eles o que é muito mais difícil (p. 10)”. O autor ainda afirma que visto desse
ângulo um dos objetivos da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano.
Para Geertz (2008, p. 10) esse objetivo se destaca por ser o qual o conceito de cultura
semiótica se adapta muito bem. “Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis [...], a
cultura [...] é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível –
isto é, descritos com densidade”.
A capacidade de comunicação que parte dos estímulos recebidos através dos cinco
sentidos dos humanos possibilita a leitura e compreensão de todos esses sistemas entrelaçados
de signos. Na relação entre povos distintos a comunicação não verbal, a gestual se torna
dominante e assim também o é na dança.
Podemos perceber uma mensagem corporal através da maneira como outra pessoa nos
olha, através do sorriso, de um gesto de suas mãos, na sua postura corporal e todas essas
nuances são utilizadas na dança, o corpo fala através de seus movimentos, gestos,
características próprias.
Para o ser biológico, social e cultural que é o homem, a cultura irá se desenvolver de
acordo com cada sociedade não havendo um modelo fixo, ele estará adaptado ao ambiente ao
qual habita e partindo dessas condições se organizará socialmente e culturalmente.
Os indivíduos tem uma grande capacidade de adaptação, os instintos de sobrevivência
biológicos e os conhecimentos adquiridos são diferenciais que ajudam nas mudanças ao longo
da vida, seja uma troca de emprego ou a mudança para outro país. A pessoa consegue se
25
adaptar ao novo ambiente cultural, mas não perde as referências culturais do seu local de
origem.
A cultura é mantida e reorganizada continuamente, o conhecimento seja cultural ou
não é transferido através de significações e representações simbólicas convencionalizadas.
Essas especificações biológicas e a capacidade de armazenar e comunicar é que tornam os
humanos dominantes entre as diferentes espécies.
Voltando nosso olhar para os contatos entre diferentes culturas, mais especificamente
na Amazônia para chegarmos à cidade de Manaus podemos observar as influências culturais
que principalmente a população que foi colonizada sofreu ao longo de anos de contato hostil.
Os povos nativos da região amazônica eram as diferentes etnias indígenas e entre os
que aqui chegaram estavam principalmente os portugueses que devido a seu conhecimento
tecnológico chamaram a atenção dos nativos com artigos materiais e dominaram a sociedade
local. Os portugueses trouxeram consigo escravos africanos que também contribuíram com a
miscigenação das raças. Outra organização cultural que chegou à Amazônia através de
propaganda enganosa com promessas de trabalho e riqueza foram os nordestinos que ficaram
conhecidos principalmente como soldados da borracha.
Herkovits (1960, p. 352) ao se reportar sobre o período de colonização do Brasil expõe
que:
Os negros levados ao Brasil influíram na cultura dos portugueses
dominantes, eles próprios também imigrantes e do mesmo modo sujeitos à
influência dos índios. Estas várias influências podem ver-se fundidas em tão
diferentes aspectos da vida moderna brasileira como a cozinha, a estrutura
social, crenças de várias espécies, formas musicais correntes e usos
linguísticos, para não citar o que persistiu do comportamento e das crenças
africanas mantidas pelos próprios africanos.
O autor se reporta a um quadro nacional desse intercâmbio por meio do contato não
amistoso entre povos, mas que não muda o fato dessas culturas se mesclarem com o tempo,
dando origem a uma nova organização cultural. Esse processo aconteceu em todas as regiões
do Brasil e cada uma com sua especificidade. Na cidade de Manaus, por exemplo, a maior
influência cultural que resiste nos dias atuais no ambiente urbano vem dos portugueses,
nordestinos e indígenas.
Com base nos estudos culturais apresentados sabemos que o ser humano é um ser
cultural que utiliza signos para perceber a si mesmo e o mundo ao redor, o que só é possível
26
através da linguagem, da capacidade que o homem tem de se comunicar. A cultura é resultado
do acúmulo, transmissão e transformação de conhecimento através dos diferentes signos de
linguagem e cada sociedade tem suas características próprias, por exemplo, crenças,
costumes, expressões artísticas.
A arte é resultado da necessidade de comunicação do ser humano, de suas inquietações
e questionamentos sejam eles coletivos ou individuais, reflexões/provocações. Cada artista
trás consigo uma gama de referenciais simbólicos e busca tantos outros para suas produções, o
que transforma uma obra em uma rede complexa de signos e significados. Podemos dizer que
a arte resulta de uma reflexão sociocultural onde o artista pode ser considerado um ser
questionador e transformador e quanto maior o grau de complexidade de uma cultura mais
complexa pode ser a sua arte.
Os avanços tecnológicos, as transformações socioculturais, o advento da globalização
exercem influências na vida cotidiana dos indivíduos e em suas produções culturais
contribuindo para novas experimentações, novas formas de ver e fazer arte nos mais
diferentes segmentos artísticos incluindo a dança.
Se a globalização está influenciando e transformando as diferentes sociedades, tornase relevante uma melhor compreensão do fenômeno devido às influências que exerce nas
produções artísticas, principalmente as dentro do conceito de arte contemporânea, que
envolve a interconexão entre diferentes linguagens apresentando um olhar crítico sobre os
temas abordados, uma reflexão, uma parceria, um diálogo entre artista e público.
1.1.1 O Global - Contemporaneidade
Os indivíduos e as sociedades estão em constante transformação reformulando seus
valores, crenças e manifestações artísticas, seja por necessidade ou por influência do
ambiente em que vivem e aos quais tem acesso, influenciando o ambiente e sendo
influenciados por ele.
A evolução dos meios de comunicação foi um dos fatores que contribuiu para
acelerar as transformações na contemporaneidade, trouxe uma maior proximidade entre os
povos e acelerou o atual processo de globalização. Para Santos (2008) a globalização está
em quase todas as partes do mundo, e assim como diminui as fronteiras também aumenta
as diferenças, pois é possível conhecer melhor a cultura de cada localidade. E essa
27
possibilidade tem provocado uma busca pelas características e manifestações próprias,
regionais, dirigindo o olhar para as origens, as raízes de cada povo e suas manifestações
socioculturais.
Parece que estamos em um momento de descobertas de novos mundos, mas
também de reflexão sobre a própria cultura de origem de cada região, buscando um novo
olhar, novas informações que podem levar a mudanças, a reformulações de tradições. E
isso faz com que apareçam novas possibilidades e caminhos a serem percorridos.
As mudanças que os avanços tecnológicos trouxeram para a humanidade estão
presentes no cotidiano das mais diferentes sociedades com maior ou menor impacto e os
trabalhos artísticos também apresentam essa influência, pois o artista incorpora em sua arte
muitas de suas referências vividas. Ressaltamos que o trabalho coreográfico estudado data
do ano de 2007 e reflete esse momento de buscar as origens, voltando o olhar para o local,
mas sem deixar de dialogar com o global.
A obra de dança escolhida para essa pesquisa se reporta a cultura indígena e um
pouco à urbana envoltas em toda uma estrutura de recursos tecnológicos, a coreógrafa trás
para a cena recortes culturais através de personagens femininas projetadas na tela ao fundo
e uma personagem principal que está presente no palco. Esse jogo entre o real e o virtual
acontece durante todo o trabalho. Apresenta em cena algumas das influências desse mundo
globalizado da era da comunicação.
A globalização faz parte da nossa atual realidade e sobre o termo Giddens (2000, p.
20) esclarece que vem sendo mais amplamente utilizado depois do final dos anos 80, está
relacionado com a “tese de que agora vivemos todos num único mundo”. Separou os
pensadores que discutem o termo em dois grupos devido a grande contradição existente nos
dois discursos.
Ao primeiro denominado céticos, são os que acreditam que tudo que é dito sobre o
termo são apenas conversas e que a economia global pouco mudou nos últimos anos. Ao
segundo grupo nomeou de radicais, acreditam que a globalização é um fato bem concreto e
seus efeitos podem ser sentidos em toda parte. O comércio internacional está muito
desenvolvido e se coloca de forma indiferente as fronteiras nacionais. “As nações perderam
uma boa parte da soberania que tinham e os políticos perderam muita da sua capacidade de
28
influenciar os acontecimentos [...]. Acabou a era do Estado-nação” (GIDDENS, 2000, p. 2021).
Para o autor a razão está com o grupo dos radicais devido à evidencias que
demonstram que:
O volume do comércio externo de hoje é superior ao de qualquer período
anterior e abrange uma gama muito mais extensa de bens e serviços. Mas a
maior diferença registra-se a nível financeiro e nos movimentos de capitais.
Alimentada pelo dinheiro eletrônico — isto é, dinheiro que só existe como
informação digital nos discos dos computadores – a economia do mundo
atual não tem paralelo com a das épocas anteriores (Ibdem, 2000, p. 21).
Cada vez mais há a possibilidade de verificar o quanto as economias mundiais estão
interligadas, pois quando um país está passando por uma crise financeira, pelo menos, as
maiores potências, todos os outros países sofrem consequências financeiras que influenciam
todas as outras áreas, saúde, educação, cultura etc. Essa é uma realidade da
contemporaneidade, a internet apresentou e divulgou amplamente a ideia de redes interligadas
e a economia mundial é um bom exemplo desse sistema que está presente tanto no mundo
virtual como real.
O autor também afirma que o fenômeno da globalização não é apenas de natureza
econômica. “A globalização é política, tecnológica e cultural, além de econômica. Acima de
tudo tem sido influenciada pelo progresso nos sistemas de comunicação, registrado a partir do
final da década de 1960” (GIDDENS, 2000, p. 22).
Alguns exemplos são as grandes invenções que contribuíram para melhorar e
expandir a comunicação iniciando o processo de globalização. Conforme expõe Giddens
(2000), a criação do código Morse pelo pintor Samuel Morse no século XIX, que ao
transmitir a primeira mensagem através do telégrafo elétrico iniciou uma nova fase da
humanidade. Em 1969 o primeiro satélite foi lançado em órbita com uma grande quantidade
de informação possibilitando pela primeira vez na história existir comunicação instantânea
entre um continente e outro diminuindo a distância entre as fronteiras e criando outro capítulo
na história da humanidade.
Outro exemplo de transformação apresentado pelo autor foi o rádio, que nos Estados
Unidos levou quarenta anos para atingir os cinquenta milhões de ouvintes, já o computador
pessoal, após quinze anos de sua invenção atingiu todos os cinquenta milhões e em apenas
quatro anos esse mesmo número de habitantes passou a usar a internet com regularidade.
29
Esses eventos transformaram para sempre a humanidade, as informações agora
chegam a muitos lugares do globo terrestre em tempo real, as pessoas têm acesso às
informações com maior facilidade e agilidade. As transformações tecnológicas e através delas
as culturais estão acontecendo em períodos de tempo muito curtos. O ser contemporâneo tem
acesso a mais informação do que pode absorver, e cada vez mais as crianças nascidas nessa
geração apresentam muita afinidade com as tecnologias, interagindo com uma naturalidade no
mundo virtual às vezes até maior que no mundo real.
O uso de tecnologia e as transformações que isso acarreta também estão presentes na
dança. Apresentamos como exemplo o balé clássico, com o uso das sapatilhas de ponta, as
estruturas móveis que formavam os cenários utilizados nos grandes balés, como exemplos
mais atuais têm a dança criada com a linguagem do vídeo e a dança na web utilizando a
linguagem da computação, acompanhando as transformações socioculturais e tecnológicas.
Como resultado de todos esses avanços na técnica temos a globalização, e Santos
(2008) esclarece que há três ideias que se reportam a uma forma de perceber esse fenômeno
global: na primeira o mundo é apresentado conforme a idealização e interesses das grandes
potências, dos grandes empresários, redes corporativas e políticos que o autor chama de a
globalização como fábula, em que e as informações são manipuladas e só é mostrado ao
grande público o que se quer que seja visto.
Na segunda ideia exposta pelo autor a globalização como perversidade, ele apresenta
principalmente os aspectos negativos da globalização e de todo o sistema principalmente
capitalista onde a competitividade é ensinada e altamente estimulada assim como o egoísmo e
a corrupção. Neste cenário agressivo, corrupto de desconfiança e desrespeito o homem não
vale pelo que é e sim pelo que têm, os valores familiares estão se perdendo assim como a ética,
não há interesse em educar e sim em manipular as pessoas para que sirvam a quem está no
poder.
E na terceira ideia o autor apresenta um caminho para transformar essa realidade que
ele chama de “uma outra globalização”, que seria uma globalização mais humana, pautada em
valores éticos e respeito à vida.
Santos (2008, p. 24) afirma que na arquitetura da globalização atual os fatores que
contribuem são: “a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do
planeta e a existência de um motor único na história representado pela mais-valia globalizada”.
30
Para o autor as técnicas não se apresentam isoladamente e sim em um conjunto,
grupos de técnicas que podem ser vistas como sistemas, cada um desses sistemas está
relacionado a um período de evolução da história do desenvolvimento do homem. Na
contemporaneidade o conjunto de técnicas que se destacam são as da informação por meio da
cibernética, informática e eletrônica e o grande diferencial é que elas se comunicam.
De certa forma, alguns dos mesmos fatores que contribuem para a globalização como
a perversidade, também contribui para uma outra globalização e Santos (2008) esclarece que
através do acesso a informação, da possibilidade de um maior conhecimento a respeito do
planeta e das sociedades diversas o homem passa a ter um maior número de referências
aumentando sua capacidade de comparação e possibilidade de escolha.
E com a crescente mistura entre povos, raças, culturas e filosofias principalmente nos
grandes centros urbanos onde uma enorme quantidade de pessoas dividem espaços cada vez
menores aumentando o intercâmbio sociocultural e o conhecimento a respeito das
possibilidades existentes, permitindo assim aparecer além do desejo também a busca por
transformações da realidade que se torna cada vez mais insatisfatória pelo aumento da
desigualdade, corrupção, violência e perda da qualidade de vida que supostamente com o
progresso da técnica deveria aumentar.
Hoje é possível observar nas redes sociais existentes não apenas o aumento do
conhecimento e interação entre membros de diferentes tribos urbanas e sociedades, mas que
essa interação vem gerando uma busca pela transformação da atual realidade em que vivemos.
As pessoas questionam as atitudes praticadas nas outras sociedades e na sua própria, apesar de
postarem na maioria dos casos apenas momentos felizes e de conquistas, as manifestações de
repúdio a muitas questões são claras assim como o apoio a possíveis soluções e mudanças.
Nos dias atuais, principalmente, as grandes empresas procuram por funcionários que
estejam familiarizados e atuantes nas redes sociais para que se mantenham informadas do
interesse mais atual do público consumidor, seja com relação a produtos, serviços e mesmo
preocupações ideológicas para repensarem sua estratégia de venda em cima dessas
informações.
As manifestações da população que aconteceram em 2013, em todo o Brasil, pedindo
mudanças e melhorias para diversas áreas cujo funcionamento está cada vez mais precário
31
como o transporte, por exemplo, buscaram por melhorias sociais, econômicas e até mesmo
culturais.
Esses manifestos tiveram início e foram organizados a partir das redes sociais, o
próprio governo brasileiro contratou uma equipe de pessoas para monitorar as redes sociais
para acompanhar a organização das manifestações tanto dos cidadãos como dos grupos
organizados que criam confusões, realizam saques e incitam a violência. Devido à entrada de
grupos de vândalos que se aproveitam ou são contratados para causarem o caos nesses
movimentos, diminuiu significativamente o número das manifestações das pessoas, o
aumento da violência tanto por parte dos grupos infiltrados como dos policiais desestimulou a
participação mais efetiva nesses eventos.
Esse direito a liberdade de expressão foi adquirido através da luta e sacrifício de
muitos personagens, tanto anônimos como famosos, da nossa história e Farias (2010, p. 18)
expõe que:
O último século deixou por legado, para além das marcas da industrialização,
da urbanização e da tecnificação da guerra, a extensão sem igual dos meios e
ambiências sintonizadas à realização do direito a expressão. Os potentes
meios técnicos de reprodução cultural e da informação inseriram-se
profundamente na importância, montante e volume adquiridos pelas
manifestações públicas: passeatas, greves, desfiles marciais e civis,
olimpíadas, festivais e outras.
Em um primeiro momento o rádio, depois a televisão, o computador e agora os
smartphones contribuem para a divulgação e organização desses movimentos que antes eram
compostos principalmente por jovens e hoje apresenta a participação de toda a população, da
criança ao idoso, quase todos eles usuários de redes sociais na internet.
Essa ferramenta de comunicação que é a internet e dentro dela as redes sociais, estão
sendo usada por artistas de diferentes áreas para divulgar suas produções artísticas, criando
uma rede de contatos que colabora com o artista principalmente com relação à divulgação.
Mas também para a troca de experiências, para buscar e firmar parcerias, para discutir ideias,
organizar eventos entre outras possibilidades.
A ideia de rede nos remete a imagem de diferentes pontos interligados, é assim que
funciona a internet e é assim a nossa forma de pensar, as ideias vão se relacionando, se
interligando e isso também acontece em um processo de criação artística em que diferentes
32
sistemas interagem até que uma obra seja composta. O criador trás os seus e busca por novos
referencias uma rede de significados que irá resultar em algo novo.
Nos reportamos aqui a ideia de sistema apresentada por Morin onde o todo está
contido nas partes e as partes estão contidas no todo, os diferentes segmentos sociais estão
ligados, há a necessidade de observar não apenas a pessoa, mas também, o ambiente ao qual
ela está inserida e a arte contemporânea não se mantêm distante do que acontece e sim
observa e se reporta a esses acontecimentos de forma questionadora e instigante.
Carvalho (2003, p.101) tendo como base os estudos de Edgar Morin afirma:
A reorganização e religação dos saberes, fundamental para o pensamento
complexo, é sempre biodegradável, redefine-se a todo o momento, funda-se
na dialogia, na recursividade e no holograma, operadores cognitivos a serem
simultaneamente acionados em qualquer pesquisa, ensaio, tese, conferência.
O primeiro associa termos aparentemente irreconciliáveis; o segundo nega a
linearidade entre causa-efeito; o terceiro identifica na parte e no todo a
totalidade da informação contida em todo o sistema. O todo, que
simultaneamente está na parte que, por sua vez, se presentifica nele, produz
uma miríade de fluxos, dobras, interconexões, multidimensionalidades,
ressonâncias, ondas, partículas, vidas, mortes, desejos, recalques. Indivíduo,
sociedade, cosmo encontram-se mutuamente implicados na totalidade da
natureza, aqui entendida como a totalidade inatingível da vida.
O homem ao longo de todo seu processo evolutivo chegou a um ponto de
organização e acumulação de saberes diversos, que quando passam a ser vistos com suas
conexões e interconexões automaticamente levam a reorganizações, reformulações desses
saberes, passando a enxergá-los de forma complexa e com a consciência de que tudo está,
de certa forma interligado, são diversos sistemas que formam um todo um sistema único.
Ao compreender um pouco melhor o desenvolvimento evolutivo do homem e com
ele o da cultura com os estudos de Gerrtz e Laraia, é possível compreender a importância
desse segmento nos dias atuais, parece que estamos em meio a um processo de
redescoberta de nossa ligação com a natureza tanto quanto de nossa ligação com a
tecnologia. Parece que não há como negar mais a necessidade de estudar o homem
abarcando além da sua origem biológica a sua característica cultural.
O ser humano precisa ser visto por completo e não por partes, ele é um todo
complexo, na contemporaneidade é possível visualizar melhor a necessidade de observar,
estudar o ser humano como um todo dentro do seu contexto sociocultural e ambiente ao
33
qual habita, levando em conta o estágio de seu desenvolvimento com a tecnologia e o
acúmulo cultural.
Buscamos partir de um campo de visão mais aberto investigando o conceito de
cultura, como é a cultura contemporânea para compreendermos melhor os estudos de
processos de criação e as práticas corporais que são uma parcela de extrema importância
dentro da estética da dança. Todos os assuntos abordados levarão a uma maior
aproximação com a dança praticada na cidade de Manaus na atualidade e na maneira que
escolhemos estudá-la, percebê-la para uma possível análise.
1.1.2 O local - Manaus ontem e hoje
Em todo o grande território brasileiro existem registros das misturas raciais e
socioculturais que foram moldando nossa história e transformando o Brasil em um país
multicultural e com a região Amazônica não foi diferente. É possível acompanhar as
mudanças através de alguns momentos históricos até chegarmos aos dias atuais.
O Brasil foi habitado primeiramente, de acordo com Freire (1991), pelos povos
indígenas, e em seus estudos expõe que na região de São Raimundo Nonato no Piauí foi
encontrado um sítio arqueológico de aproximadamente 41.500 anos. Com relação à
ocupação da Amazônia brasileira há várias hipóteses sobre ondas de migrações que não
foram confirmadas devido à dificuldade dos objetos utilizados por esses povos serem
perecíveis e dificilmente resistirem ao clima da região.
Freitas (2004) esclarece que entre os indígenas existiam posições hierárquicas de
comando e religiosidade que eram organizadas e seguidas pela comunidade e respeitadas por
outras comunidades e etnias indígenas. Tinham também suas disputas e guerras, em alguns
casos era durante essas guerras que roubavam mulheres para casar.
Os colonizadores acreditavam que os habitantes das terras recém-descobertas eram
selvagens que precisavam de cultura e civilização. Uma grande parte do território brasileiro
foi colonizada pelos portugueses que se empenharam em implantar a sua cultura e
transformar a colônia em um pedaço de Portugal.
Essa atitude resultou em uma transformação na vida dos povos indígenas brasileiros,
ocasionando extinção de algumas etnias indígenas e também de parte da cultura de alguns
povos que hoje tentam descobrir e aprender um pouco sobre sua própria cultura, como em
34
alguns casos, apenas os mais velhos de determinadas etnias sabem falar em sua língua
nativa.
Quando a Amazônia se integrou ao Brasil em 1853 através de um sistema de
transporte a vapor, também se integrou ao comércio internacional por meio da exploração da
seringa e iniciou o período conhecido como Ciclo da Borracha. Com a extração do látex
colhido da seringueira, esse produto tornou-se estratégico na primeira revolução industrial do
século XXI. Devido ao aumento da procura do produto foi necessário aumentar a mão de
obra, período em que vieram os nordestinos para trabalhar como soldados da borracha em
um regime escravista.
Foi nesse período que a miscigenação se tornou mais forte e diversificada na região
amazônica assim como a diversidade cultural. Da primeira mistura do índio com o europeu
nasce o caboclo, e no período da borracha essa miscigenação aumenta com o negro e o
nordestino, essas distintas etnias aprenderam a se adaptar ao ambiente em que se
encontravam se familiarizando um pouco com os conhecimentos e costumes de cada cultura,
dando origem a uma cultura própria rica e diversificada.
Devido a grande riqueza dos senhores da borracha Manaus foi transformada em uma
cidade com aparência europeia, ficando conhecida internacionalmente como a Paris dos
Trópicos, onde havia todos os luxos e serviços de uma grande cidade da Europa, foi a
primeira cidade a ter luz elétrica e uma universidade no Brasil, as casas eram construídas ao
estilo europeu e o Teatro Amazonas também foi construído nesse período, assim como
centenas de comunidades humildes que surgiram ao redor da cidade (BENTES, 1991).
As manifestações culturais da cidade eram exportadas da Europa apenas para uma
pequena elite. A cultura indígena continuava a ser dizimada e só era bom e bonito o que
vinha da Europa. As culturas negra, nordestina e indígena iam se mesclando e dando origem
à cultura cabocla e ribeirinha, algumas danças e ritmos indígenas tiveram influência de
ritmos africanos e os nordestinos também trouxeram suas danças, festas e religiosidade.
O período áureo da borracha compreendido entre 1901 e 1920, teve fim quando a
seringueira foi levada para ser produzida na Ásia, onde conseguiram uma maior e melhor
produção por menores custos (PEREIRA, 2006).
35
Foi um momento histórico de grande importância para o desenvolvimento, mesmo
que de forma extremamente desigual para a cidade e para o Estado, ficando até hoje
heranças arquitetônicas e mesmo socioculturais desse período também conhecido como o
Boom da borracha, devido à expansão do comércio de exportação do látex e aumento dos
lucros.
Após o término do período áureo da borracha, a Amazônia volta ao isolamento até a
implantação da Zona Franca de Manaus. É a Zona Franca que ainda mantêm a cidade ativa,
isso muitos anos depois de sua implantação e só permanece por estratégias políticas, o que só
aumenta a necessidade de se ter realmente uma política interna de desenvolvimento.
A situação econômica atual da Amazônia parece que não está tão diferente assim ao
que diz respeito à política interna de desenvolvimento e independência da Zona Franca de
Manaus com relação ao restante do país. A Amazônia parece ser o objeto de desejo de
muitos por suas riquezas naturais muitas ainda desconhecidas, relacionadas principalmente a
fauna e flora. São muitos os motivos para a população local despertar e buscar caminhos
para uma autonomia da região e maior valorização da cultura local.
Com relação à cultura local há registros em jornais do ano de 1956 de manifestações
artísticas e de artistas da cidade que nessa época estavam ligados ao restante do Brasil e do
mundo através do rádio, havia também poucas salas de cinema que exibiam filmes com uma
média de seis meses depois da estreia (AGUIAR, 2002).
Uma manifestação cultural e também um espaço para intelectuais e artistas
discutirem tudo o que estava acontecendo nas artes e mesmo relacionado à política e com a
sociedade em geral a nível local, nacional e internacional foi o Clube da Madrugada de onde
saíam veementes críticas ao governo. Foi um movimento que pode ser comparado a semana
de 1922 para o restante do país (AGUIAR, 2002).
Atualmente, na cidade de Manaus, temos uma diversificada e grande demanda
cultural dentro dos diversos segmentos artísticos com destaque para manifestações
folclóricas, para o cinema, a dança, o teatro, a música e as artes plásticas. Os municípios do
Amazonas também tem apresentado um grande crescimento cultural, pois agora existe um
maior investimento do governo do Estado em manifestações culturais próprias de cada
município e também há uma preocupação com o intercâmbio cultural entre a capital Manaus
e seus municípios.
36
Os festivais de artes cênicas, teatro e dança organizados pelo governo do Estado do
Amazonas, que em anos anteriores eram realizados na cidade de Manaus, no ano de 2013
passaram a ser itinerantes tendo alguns municípios escolhidos para sediar o festival, com a
realização de oficinas e apresentações na capital e no interior.
É possível perceber através da convivência do dia a dia com a população seja da
cidade e com maior ênfase a do interior, algumas heranças culturais deixadas no período da
colonização, através de usos e costumes, dentre os quais a preferência por comer peixe com
farinha de mandioca seja assado, frito ou em caldeirada, tomar vários banhos ao dia devido
ao calor como os indígenas, usar perfumes, fazer cantigas de roda como os europeus,
misturar crenças religiosas como fizeram os africanos no período da escravidão para não
perderem suas crenças, assim como algumas iguarias de sua culinária como o vatapá e o
caruru.
Também aprendemos com os nordestinos a apreciar iguarias da sua culinária como a
rapadura, realizar festas para os santos dentro da religião católica e dançar o Boi-Bumbá ou
Bumba meu boi, cuja origem é europeia e que ao se misturar com a cultura indígena deu
origem ao Boi-Bumbá do Amazonas.
O Boi-Bumbá do Amazonas nasceu na cidade de Parintins e é conhecido
internacionalmente, une o auto do boi trazido da região nordeste com a cultura indígena,
tendo personagens que representam os senhores das terras, o caboclo e o indígena, apresenta
de forma artística e grandiosa a nossa diversificada mistura cultural.
O Amazonas apesar dos investimentos culturais existentes ainda precisa de mais
incentivos e melhores políticas de desenvolvimento cultural, principalmente para a produção
por parte dos grupos independentes seja de teatro ou dança.
Antes da colonização as manifestações culturais existentes eram as das diferentes
etnias que habitavam a região, dentro de suas celebrações como os rituais de troca, ritos de
passagem, cerimônias fúnebres entre outras. As primeiras danças praticadas na região foram
as étnicas e ritualísticas das diversas etnias que habitavam a Amazônia.
Com a colonização vieram às danças folclóricas principalmente portuguesas, assim
como as danças nordestinas e afros.
O contato direto dos imigrantes com os nativos
indígenas ocasionou na influência de uma cultura sobre à outra, nas manifestações de dança,
37
as batidas mais dinâmicas dos tambores africanos podem ter influenciado a cultura indígena
levando a mistura de ritmos e possível aceleração de passos.
Após o período áureo da borracha, mesmo em um momento de crise econômica as
manifestações culturais permaneceram acontecendo e na Manaus do século XX, segundo
Freitas (2010) a partir de sua pesquisa de doutorado, esclarece que nos anos de 1930 aparece
em alguns jornais da época, como o Diário da tarde, reportagens sobre diversas festas na
cidade tanto populares como as realizadas pela elite manauara. Outra atividade cultural nesse
período eram os filmes exibidos nos cinemas, dentre esses, alguns faziam referência à dança
com dançarinos famosos de Hollywood como Fred Astaire e Ginger Rogers. Também
passavam pela cidade artistas do teatro e da dança como foi o caso da bailarina Maria
Caetana que além de atuar em uma peça também apresentou uma performance de dança,
presença divulgada no jornal Diário da tarde.
Freitas (2010) ainda acrescenta que no ano de 1969 foi realizado na cidade de
Manaus o II Festival de Danças Clássicas e Danças Modernas, uma das escolas participantes
era a Escola de Dança do Teatro Amazonas que era mantida pela Fundação Cultural. Nas
décadas de 1950 e 1960 os professores de balé que atuavam na cidade eram Beatriz
d’Agostinho, Glória Velasquez e Zenira Ferreira da Silva. E na década de 1970 o professor
diplomado em música e balé Adair de Paula lecionou na escola montada por ele na
Associação dos Sargentos da Amazônia (ASA), aulas de balé, Jazz e danças folclóricas.
A cena cultural da cidade com relação ao cinema, ao teatro, as artes plásticas e a
dança, não estagnou, passando por períodos com maior ou menor destaque, sempre com o
esforço dos artistas em permanecer fazendo e divulgando a sua arte, buscando seu espaço,
melhor estrutura, maior organização, respeito e reconhecimento.
Ainda na década de setenta segundo Xavier (2002) o bailarino amazonense José
Resende, após um longo período longe num primeiro momento no Rio de Janeiro e depois
na Europa, retorna a Manaus pretendendo encerrar o que foi uma promissora carreira como
intérprete da dança principalmente clássica, monta sua própria academia de balé clássico
onde ministrou aulas por muitos anos. Foi a partir da iniciativa e luta desse bailarino que a
dança acadêmica fincou realmente raízes na região e ocorreu a primeira formação de artistas
da área de dança.
38
Xavier (2002) ressalta que nesse período surgiram outras academias e os espetáculos
de dança locais apresentados praticamente eram apenas as finalizações das atividades
realizadas durante todo o período anual das academias.
Ainda na década de 1970 segundo Freitas (2010), chega a Manaus o carioca Arnaldo
Peduto trazendo e implantando o estilo de dança Jazz. Até hoje a academia fundada por ele é
referência na modalidade em Manaus participando ao longo de sua história de inúmeros
festivais de dança a nível nacional, como o Festival de dança de Joinville.
Dentre os alunos formados na academia do professor Rezende destacaram-se Ana
Mendes, Paulo Henrique Torres, Jaime Tribuzzy, Isa Kokay e Conceição Souza, sendo que
Conceição contribuiu para uma grande mudança na história da dança local, no início da
década de oitenta funda o grupo independente Dança Viva, o primeiro da cidade.
O grupo Dança Viva, em acordo com Xavier (2002), foi o primeiro grupo de dança
contemporânea da cidade de Manaus, se espelhando em companhias nacionais como o
Grupo Corpo de Belo Horizonte e o Ballet Stagium de São Paulo. Com a proposta de unir a
dança com outros meios de expressão artística como o teatro e a música, utilizava música
popular brasileira e latino-americana nas coreografias e apresentava um discurso estético que
discordava do autoritarismo vigente.
Por ser um grupo pioneiro enfrentou todas as dificuldades da época como a falta de
recursos, incentivos da iniciativa privada e a inexistência de políticas públicas culturais para
manter o grupo e produzir espetáculos de dança.
O grupo deixou de existir por desentendimento da direção com alguns membros
ainda no início da década de 80, mas deixou frutos, bailarinos que passaram a fazer parte de
outros grupos de dança e até mesmo fundar seus próprios, dentre os quais o Grupo
Movimento e Grupo Origem. Esses profissionais da dança de forma direta ou indireta até os
dias atuais estão envolvidos com a dança no Amazonas.
Xavier (2002) expõe que o Grupo Origem dirigido por Chico Cardoso ainda na
década de oitenta já apresentava temas amazônicos em seu repertório, onde denunciava a
devastação da floresta e das populações indígenas. O coreógrafo e diretor tinha como marca
pessoal a linguagem contestadora, um de seus espetáculos de grande destaque foi
“Metalmadeira”. Acompanhando as mudanças no cenário político, econômico e
39
sociocultural o grupo passa a utilizar outra linguagem onde se reporta aos conflitos internos
do homem moderno e a abstração, tendo como marco na transformação do trabalho do grupo
o espetáculo “Balanço”.
E como acontecia com outros grupos de dança da época o Grupo Origem se desfez,
mas seu diretor o transformou em um grupo teatral que fez bastante sucesso durante toda a
década de noventa e quando encerrou suas atividades em 1999 afirma Xavier (2002, p. 95):
“O Grupo Origem deixou como exemplo e pioneirismo de uma pesquisa que associava à
gestualidade indígena e, sobretudo, o compromisso de mergulhar na cultura cabocla, sem se
render aos apelos comerciais do falso regionalismo”.
Outros grupos de destaque na dança moderna e contemporânea do século XX e que
em momentos diferenciados buscaram se reportar também a cultura regional foi o Grupo
Espaço de Dança do Amazonas (Gedam) com direção de Conceição Souza e que se mantêm
até os dias atuais; o grupo de dança Renascença dirigido por Jorge Kennedy e Núcleo
Universitário de Dança Contemporânea (Nucad) dirigido por Lia Sampaio.
O Nudac foi um marco na história da dança em Manaus e dentro da Universidade
Federal do Amazonas, vindo a contribuir para a criação do Centro de Artes da Universidade
e por movimentar a dança dentro do ambiente acadêmico não apenas com aulas e
apresentações, mas com oficinas de intercâmbio com professoras do curso de dança da
Universidade Federal da Bahia, também promovendo seminários, palestras e parcerias entre
diferentes grupos artísticos como o Coral Universitário e o Madrigal.
Também foi o primeiro grupo a representar o Amazonas em eventos internacionais
como o fez oito vezes no Festival de La Confraternidad Amazônica na cidade de Letícia
(Colômbia), foi o primeiro grupo a ser institucionalizado pela Universidade Federal do
Amazonas e inspirou a criação de outro grupo dentro da Universidade o Gedef (Grupo
Experimental de Dança da Educação Física). Com relação ao trabalho do grupo a
metodologia utilizada pela diretora e coreógrafa Lia Sampaio se destacou por buscar
trabalhar a criatividade e motricidade com grande ênfase e que tempos depois essa pesquisa
e trabalho a levou a produzir obras literárias específicas para a dança educação.
O grupo Gedam focou seus trabalhos principalmente nos estilos moderno e
contemporâneo e o grupo Renascença em um primeiro momento na dança teatro de origem
alemã e em um segundo momento no neoclássico.
40
Os primeiros artistas que se tornaram intérpretes da dança a partir de suas
experiências em dança e mesmo teatro em momentos diferenciados de suas formações como
bailarinos, deram origem aos grupos locais de dança Nudac, Gedam, que foram os primeiros
que surgiram na cidade voltados para uma proposta mais pós-moderna na dança.
Foi a partir das atividades desses grupos e artistas que foram surgindo outros grupos,
companhias independentes de dança e corpos artísticos que atuam até os dias atuais no
cenário da dança local. Foi com o trabalho desses pioneiros que a dança se fixou e se
desenvolveu na cidade.
Dentre os artistas diretores de companhias independentes da dança que se destacam
no cenário da dança atualmente e cuja formação passou por um desses grupos podemos citar
Conceição Souza, Yara Costa, Mara Pachêco, Francisco Rider, Francis Bayard, Cléa Alves,
Eliezer Rabello, entre outros.
Podemos perceber que a dança esteve presente na cidade de Manaus desde o século
XX e que os primeiros grupos de dança apresentavam interesse pelo regionalismo, alguns
trabalhos artísticos incluindo de dança se reportavam a uma possível identidade cultural.
A pesquisa e produção no âmbito da dança contemporânea, dentro do conceito de
arte contemporânea tem início ainda no século XX e continua se desenvolvendo no século
XXI. Cada vez mais vem sendo divulgada e aceita pelos diferentes segmentos da dança, essa
forma de fazer arte abarca questões relacionadas à arte conceitual, a performance, a processo
de criação, a ter abertura para dialogar com diferentes campos artísticos ou de outros
conhecimentos durante a criação, a experimentar e apresentar frutos do conhecimento
advindo de diversas fontes, é um repensar a respeito do que se tem feito e do que se pode
fazer a partir de todas essas referências.
A dança contemporânea está sendo mais e melhor aceita na cidade de Manaus em
todos os diferentes segmentos existentes. O aumento nas interações com artistas nacionais e
até internacionais vem crescendo através de projetos de festivais de dança dentre os quais o
Mova-se festival de Solos, Duos e Trios e o mais recente Alimenta Dança. E mesmo dentro
da Universidade Estadual do Amazonas em eventos como a semana do profissional da dança
e com o curso de Pós-graduação em Dança Educação que acontece de forma modular,
trazendo grandes pesquisadoras na área de dança educação e dança contemporânea para
ministrar alguns módulos.
41
A opção pela temática regional não é nova e continua presente em trabalhos de
alguns grupos de dança na cidade de Manaus, que cada vez mais buscam fazer pesquisas
mais consistentes e voltar o olhar para o conceito de arte contemporânea. Dentre alguns
grupos independentes cito o Grupo espaço de Dança do Amazonas (Gedam), Cia de Dança
Renascença, Cia Uate de Dança, Índios.com Cia de Dança, trabalhos dos corpos artísticos do
Estado Corpo de Dança do Amazonas e Balé Folclórico do Amazonas.
O artista local parece estar buscando suas origens, se percebendo, reconhecendo as
suas raízes culturais que se originam da mistura de etnias e culturas, podemos perceber esse
interesse através da temática local em diversos trabalhos artísticos produzidos na capital e
interior. Essa grande diversidade cultural pode confundir em um primeiro momento, mas
quando o artista passa a reconhecer, aceitar e a buscar sua própria identidade pode levar a
um fazer singular e rico.
O homem possui uma identidade cultural que se forma ao longo de sua vida, de
acordo com as culturas com a quais se relacionou. As influências de outras culturas na nossa
região foram muitas, mas ainda se mantêm usos e costumes da cultura regional indígena, por
exemplo, com relação a culinária e alguns hábitos. O manauara ainda apresenta uma postura
de colonizado, pois, valoriza mais o que vem de fora e não confere a si próprio e as suas
características culturais o devido valor, respeito e preservação, mas, ao longo dos anos isso
vem mudando, passando a se ter um olhar mais questionador e consciente.
Os intercâmbios culturais que estão acontecendo de forma esporádica entre artistas de
diversos segmentos não apenas da dança, podem influenciar de forma positiva e negativa na
arte local. Mas, é importante saber o que está sendo pesquisado no Brasil e no mundo, trocar
informações, experiências e conhecimentos, sempre de forma crítica e analítica, tomando o
devido cuidado para não aceitar verdades alheias como nossas, para não nos vermos pelo
olhar do outro.
1.2 Práticas corporais: corpo e corporeidade
1.2.1 Noção de técnica do corpo
Sobre as técnicas do corpo, Mauss (2010) entende por técnicas corporais, “as
maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional,
42
sabem servir-se de seu corpo” (p. 401). Para comprovar esse entendimento sobre as
técnicas do corpo, o autor parte da observação de atividades cotidianas.
Percebe, primeiramente, observando as práticas cotidianas nos treinos esportivos,
por exemplo, na natação ressalta o fato de que a sua geração do final do século XIX era
ensinada a engolir a água e cuspi-la, e na geração seguinte início do século XX, esse
costume não era mais ensinado, assim como o nado a braçadas com a cabeça fora d’água
fora substituído por diferentes espécies de nado crawl. Foi possível através de esses
estudos perceber o quanto essas práticas corporais esportivas evoluíram de uma geração a
outra, e acrescenta a dificuldade de se modificar uma prática adquirida, pois quando ele
nadava ainda executava o ato de engolir e cuspir a água (MAUSS, 2010).
Esse exemplo exposto pelo autor pode ser transposto para a atividade da dança de
forma clara quando nos reportamos ao corpo do bailarino que foi treinado no balé clássico
e ingressa em aulas de dança moderna. Nos primeiros contatos com esse outro estilo que é
o oposto do clássico, o bailarino sente uma grande dificuldade na postura, nas posições de
pernas e braços, na respiração, em ter que trabalhar a contração do corpo, são inúmeras as
diferenças que causam um total desconforto e estranheza ao corpo até que ele consiga se
adaptar.
Mauss (2010) afirma que uma habilidade manual é aprendida de forma lenta e que
“toda técnica propriamente dita tem sua forma. Mas o mesmo vale para toda atitude do
corpo. Cada sociedade tem seus hábitos próprios” (p.403).
Partindo da afirmação do autor podemos dizer que toda pessoa tem seus hábitos
corporais próprios relacionados, tanto a uma cultura mais ampla na qual se insere como a
uma mais específica que inclui hábitos familiares e atividades específicas que esse
indivíduo tenha praticado ou pratique, toda essa vivência e conhecimento ficam em sua
memória corporal sensorial.
No balé clássico, mesmo depois de anos sem executar os exercícios desse estilo de
dança, um bailarino é capaz de executar um movimento como o grand plié (grande dobra
do joelho), por exemplo, de forma correta tendo consciência do cuidado com a posição dos
pés, joelhos, coluna, braços, de todo o corpo, mas, provavelmente só conseguirá realizar o
movimento com todos os devidos cuidados de forma mais lenta, sem a mesma destreza
quando com um ritmo mais acelerado.
43
Ao observar a forma de andar das moças na tela do cinema ou em seu cotidiano
Mauss (2010, p. 403) concluiu que:
A posição dos braços e das mãos enquanto se anda é uma idiossincrasia
social, e não simplesmente um produto de não sei que arranjos e mecanismos
individuais, quase que inteiramente psíquicos. Por exemplo: creio poder
reconhecer assim uma jovem que foi educada no convento. Ela anda
geralmente, com as mãos fechadas.
Também observou outros movimentos convencionalizados de acordo com cada
sociedade, por exemplo, a posição dos braços ao comer a mesa, a forma de correr, essas
observações sobre a natureza social dos hábitos perduraram durante muitos anos e sobre isso
Mauss (2010, p. 404) expõe que:
Esses ‘hábitos’ variam não simplesmente com os indivíduos e suas
imitações, variam, sobretudo com as sociedades, as educações, as
conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da
razão coletiva e individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e suas
faculdades de repetição.
Cada sociedade apresenta suas convencionalidades referentes a comportamento, as
atividades pessoais e interpessoais, um modelo ideal, que pode ser observado e apreendido
através da educação que normalmente se enquadra dentro dos padrões exigidos, e prepara
os indivíduos para a vida dentro dessas exigências. Contudo, as mudanças acontecem
naturalmente, principalmente de uma geração a outra por mais que a estrutura permaneça a
forma de apresentação sofre modificações.
Um exemplo atual seria a manifestação popular do Boi-Bumbá de Parintins em que
o roteiro permanece assim como seus personagens tradicionais, a marujada de guerra e a
marcação do tempo, mas, a forma de apresentação sofreu muitas mudanças, o ritmo está
mais acelerado, os passos coreográficos apresentam evoluções com um grau bem maior de
dificuldade e agilidade acompanhando a mudança rítmica.
As habilidades pessoais, interpessoais e comportamentos corporais específicos para
cada sociedade e região são moldados ao longo de um período de constante aprendizado,
sendo passado de geração em geração e sofrendo modificações por parte dos mais jovens
devido a adaptações com relação a mudanças no ambiente e as transformações nas
organizações sociais.
A globalização presente na maioria das sociedades ocidentais trouxe grandes
mudanças nos mais diferentes aspectos relacionados ao homem e ao ambiente, ampliando e
44
acelerando a comunicação entre nações, comunidades, aproximando culturas, levando a
um novo olhar sobre o conhecimento que se tinha sobre tudo.
Nas sociedades ocidentais mais atuais, que estão em constante e acelerada
transformação, Le Breton (2003) informa sobre o uso do corpo como suporte, como forma
de expressão de uma personalidade, algo que deve ser constantemente aprimorado e para
isso a tecnologia é o principal meio utilizado para as constantes transformações, como as
cirurgias plásticas que possibilitam uma mudança radical na aparência física da pessoa sem
deixar de lado as implicações psicológicas que a levaram a tais mudanças.
Ao se reportar sobre a sociologia do corpo Le Breton (2006, p.7) esclarece:
A sociologia do corpo constitui um capítulo da sociologia especialmente
dedicado à compreensão da corporeidade humana, como fenômeno social e
cultural, motivo simbólico, objeto de representações e imaginários. [...].
Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o
vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída.
O autor complementa as ideias de Mauss sobre a intrínseca relação da corporeidade
com o contexto sociocultural e acrescenta que as técnicas, interações corporais, jogos
diversos, enfim todos os gestos simbólicos representativos estabelecidos pela sociedade
são perceptíveis no corpo.
Mauss (2010) apresenta um tríplice ponto de vista para se observar o ser humano, o
do “homem total” levando em conta os aspectos biológicos, psicológicos e sociológicos
desse homem. E afirma que a educação abrange todos esses aspectos, inclusive em relação
à arte de dominar o corpo, pois apesar do homem ter a capacidade de imitação, em alguns
indivíduos essa capacidade é mais desenvolvida que em outros e a educação se mostra
eficaz nesse processo de aprendizagem, todos se submetem a ela podendo alcançar bons
resultados.
Também acrescenta que o homem imita atos bem-sucedidos, a criança
principalmente se espelha em ações vitoriosas de pessoas próximas e que exercem alguma
autoridade sobre ela. É bom lembrar que hoje essa relação de proximidade com um modelo
de sucesso pode se referir a um ídolo que é acompanhado e imitado através das diferentes
mídias visuais. O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo
ao corpo “o indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado diante
dele ou com ele pelos outros”, Mauss (2010, p. 405).
45
Dessa forma, tudo é apreendido e assimilado de acordo com referências e
imposições sociais, psicológicas, biológicas e referentes ao meio ao qual o ser humano
pertence ou se desenvolveu.
Tomamos, como exemplo, a comunidade indígena dos Saterê Mawé no Bairro
Santos Dumont, local que visitamos no ano de 2012 durante as aulas da disciplina
“Práticas corporais dos povos tradicionais”. Ao comparar as pessoas da comunidade com
alunos de uma escola de balé clássico, é possível observar tanto na primeira como na
segunda uma postura corporal característica que possibilite identificá-las em sua
singularidade corporal.
Na comunidade indígena, uma característica que chamou a atenção por propiciar
um amortecimento maior de impactos sofridos pelo corpo principalmente a coluna
vertebral ao caminhar foi a posição semiflexionada dos joelhos, mais visível nos anciãos e
adultos do que nos jovens.
Com relação aos alunos de balé clássico, apesar de existirem diferentes escolas com
métodos diferenciados de ensino, a base da técnica do balé é a mesma, ressalto a postura
com os quadris encaixados e pés voltados para fora da linha do corpo possibilitando maior
leveza e equilíbrio na execução dos movimentos que apresentam uma grande leveza.
Os estudos antropológicos em muito contribuem para o conhecimento sobre o
comportamento humano, possibilitando uma visão mais ampla das mais diferenciadas
situações referentes ao homem e as sociedades colaborando para uma aceitação do outro,
da sua singularidade biológica, social, cultural, territorial, para respeitar as diferenças e
instigar a conhecê-las com menos preconceitos. Os trabalhos artísticos contemporâneos
também vêm colaborar para isso, com toda a diversidade e diálogos entre os mais
diferentes campos do conhecimento.
Mauss (2010, p. 407) chama de técnica “um ato tradicional eficaz, sem excluir o
religioso, o simbólico [...], não há técnica e não há transmissão se não houver tradição”.
Essa característica diferencia os homens dos animais, a transmissão das técnicas, a
transmissão oral, é o que difere a técnica de um ato religioso, político, moral, um ato
tradicional é um ato de ordem mecânica ou físico-química e é efetuado com esse objetivo.
46
O corpo é o primeiro e mais antigo instrumento ou objeto técnico do homem, e este
foi aprendendo a utilizar esse instrumento de forma lenta e cada vez mais precisa. Na
contemporaneidade o avanço da ciência e das técnicas devido à soma do conhecimento
adquirido ao longo de muitos anos de existência da espécie humana, tem contribuído de
forma cada vez mais eficaz para o aprimoramento das técnicas corporais e da interação e
mesmo a mistura do ser humano com a tecnologia principalmente através das próteses.
Antes a humanidade dominava algumas técnicas a partir das quais e de diversos
experimentos e experiências estas foram se aprimorando e dando margem para que surjam
outras muito melhores. Hoje, conhecemos mais a respeito do funcionamento do corpo
humano, diferentes formas de preparar esse corpo para as mais diversificadas atividades, e
a ciência parece caminhar para o aprimoramento dessas técnicas englobando o ser como
um todo buscando obter melhores resultados.
Se uma pessoa está preocupada com algo, seu corpo automaticamente reagirá de
forma diferente da habitual, ele estará sob um estresse e isso pode resultar em um
desempenho anormal, seja em uma atividade física, intelectual e mesmo espiritual. E, hoje,
além das ciências biológicas médicas existe a união com os demais campos de investigação
a respeito do uso do corpo e de técnicas corporais como a educação física e a fisioterapia.
Essa união está mais presente em atividades esportivas, mas a arte principalmente a
dança vem se informando com esses saberes e aprimorando suas diferentes técnicas. Os
conhecimentos a respeito do funcionamento do corpo ajudam nas pesquisas de movimento,
para mesclar as técnicas e transcender limites. Se um coreógrafo, um intérprete da dança
conhecem as facilidades e dificuldades de seus corpos, podem trabalhar de forma mais
segura, com certa precisão, respeitar e ultrapassar fronteiras sem prejudicar a si mesmo ou
comprometer a obra.
1.2.2 Corporeidade
A partir do momento em que começamos a perceber, tomar conhecimento de nosso
corpo e de que ele existe em determinado lugar, espaço e tempo, estamos tomando
consciência, mesmo que pequena de nossa corporeidade. Um exemplo é a criança que nas
diferentes fases da infância vai descobrindo cada parte do corpo e as possibilidades de
movimentos que cada uma delas tem. Sente, movimenta, observa os movimentos dos outros e
47
os seus próprios para aprender e conhecer sua movimentação. Nóbrega ( 2000, p. 69) esclarece
que:
Na perspectiva fenomenológica, a corporeidade é compreendida como a
condição essencial do ser humano, sua presença corporal no mundo, um
corpo vivo que cria linguagens e expressa-se pelo movimento, com
diferentes sentidos e significados. Nesse sentido, consciência corporal é a
percepção que o ser humano possui de sua realidade existencial como corpo
em movimento como corporeidade.
Podemos estar em diferentes estágios de compreensão da consciência corporal de
acordo com a idade, a necessidade e os estímulos recebidos ao longo da vida. Para um músico,
o sentido da audição é mais aguçado que os outros sentidos, o que pode levar o indivíduo a
perceber o movimento com a finalidade maior de verificar o ritmo. Já para um bailarino a
percepção do movimento é maior, identifica com maior facilidade as partes do corpo que o
executam, do espaço que utiliza ao se deslocar, acompanhando ou não o ritmo musical.
Cada pessoa percebe o mundo partindo das referências e estímulos que recebeu dentro
da sociedade a qual atua e através de seu corpo, com suas facilidades e limitações corporais.
Não apenas a sociedade e a cultura influenciam nas escolhas de um indivíduo, seu corpo e a
maneira como este responde aos estímulos recebidos são fatores importantes em suas decisões.
Nóbrega (2000, p. 70) apresenta a corporeidade partindo de um processo histórico de
desenvolvimento, com o acúmulo de conhecimento e com as transformações de acordo com
cada sociedade e esclarece que:
A corporeidade seria a matriz a partir da qual as expressões corporais
estruturadas pelo homem ao longo da história - os jogos, as danças, as lutas,
etc. – estariam fundamentadas, no sentido que são expressões temporais,
históricas, vivas e significantes, portanto mutáveis, o que pode oferecer
possibilidades de reagir ao condicionante da ideologia do mercado e o viés
mecanicista de corpo banalizado pela sociedade de consumo, sendo
necessário o resgate da sensibilidade e o redimensionamento do ser.
O indivíduo acompanhando as mudanças ideológicas e comportamentais de seu tempo
transforma sua percepção e a sua própria corporeidade. Na nossa sociedade capitalista atual,
os seres humanos mantendo uma constante interação com as máquinas, tecnologias, se
condicionaram a elas. Os movimentos do homem em diferentes ambientes de trabalho se
tornaram mecanizados. Em muitos casos, tudo na vida de uma pessoa é feito quase que de
forma automática, acorda, toma café, leva os filhos para à escola, vai para o trabalho
normalmente por um mesmo caminho, e ao fim do dia, volta para casa. Muitas vezes tudo é
48
tão condicionado a ponto de que quando ocorre uma necessidade de mudança pode acontecer
um acidente.
Um exemplo que toma como base casos verídicos é o de um indivíduo qualquer que
vive uma rotina em que apenas leva os filhos para a escola e não há a necessidade de buscálos. O que cabe a outra pessoa. Se um dia ele precisar ir à escola depois do trabalho para pegar
os filhos, ele simplesmente pode esquecer e ir direto para a casa, tendo que retornar para
pegar as crianças na escola. Parece algo corriqueiro e simples, mas o grau de
condicionamento pode ser tão grande a ponto de esquecer um bebê dentro do carro e a criança
vir a óbito, como já aconteceu na cidade de São Paulo e foi noticiado a nível nacional.
Casos assim nos proporcionam perceber a influência do modo de vida da sociedade
contemporânea e o grau de condicionamento que pode chegar um ser humano, ficando apenas
no automático das sequências de atividades realizadas ao longo do dia. O que lembra também
as recentes manifestações e pequenas transformações por parte de alguns grupos de pessoas
pela busca de uma mudança, de um maior contato com a natureza, de autodescoberta e da
descoberta de nosso ambiente natural, o que faz muitos pais moradores de grandes cidades
levarem seus filhos para passar as férias em ambientes mais naturais como fazendas.
Nossa sociedade contemporânea está chegando a um momento crucial, em que ou
mudamos e passamos a ver as coisas com toda a sua complexidade e interligações, sendo que
já está provado que o que acontece em uma parte do planeta pode afetar outras e buscamos
soluções para os problemas que criamos, dentre os quais o consumo exagerado, a poluição e
devastação da natureza, ou sucumbiremos ao condicionamento de nosso sistema capitalista de
consumo e sofreremos as consequências que entre muitas podemos citar o esgotamento de
bens naturais como água potável, minerais, diferentes espécies de plantas e animais.
Na natureza tudo tem uma singularidade o que faz com que mesmo sendo de uma
mesma espécie um ser seja diferente de outro. Nóbrega (2000, p. 71) ao se reportar sobre as
atividades corporais em aulas de Educação Física esclarece que:
[...] o professor deve considerar que, ao realizar movimentos, os alunos não
são objetos, corpo-máquina, prontos a reagir com precisão diante das
solicitações externas, mas são sujeitos cuja condição corporal marca sua
singularidade e autonomia, pois o corpo é vivo e significante e ao mover-se,
o sujeito humano cria e recria a história e a cultura.
49
Nas aulas de atividades físicas como a dança, por exemplo, toda e qualquer pessoa
apresenta sua singularidade comportamental e gestual que adquiriu ao longo de sua existência,
que está relacionada com a sua herança biológica, social e cultural, que colaboram para que
cada indivíduo seja único, tenha características próprias dentro do meio ao qual pertence ou
convive.
Nos estudos que envolvem o corpo na atualidade o indivíduo vem sendo visto como
um todo, o intérprete da dança, por exemplo, trás para a cena toda a sua trajetória e
referências vividas e o coreógrafo pode escolher o que deixa aparecer na cena ou não. Em
“Rito de Passagem” a coreógrafa apresenta diferentes práticas corporais executadas por um
mesmo personagem, é possível perceber algumas técnicas de base, que fizeram parte da
formação da intérprete e que influenciam a sua movimentação como o balé clássico e
moderno.
Dessa forma, nós temos a movimentação da Yara que está relacionada com a sua
capacidade psicomotora que está de acordo com sua herança biológica, genética, relacionada
com seu ambiente sociocultural de criação e com as diferentes técnicas corporais aprendidas
em suas práticas de dança, esportes e circo, assim como as práticas corporais de povos
indígenas.
Em uma perspectiva fenomenológica Nóbrega (2000, p. 75) reforça a sua visão sobre
o corpo:
Na perspectiva fenomenológica, o corpo não se reduz aos condicionantes
biológicos, mas abriga em si o mundo da cultura e da história, expressando a
totalidade do Ser. Esta expressão manifesta-se nos movimentos do cotidiano
ou nos gestos do esporte, das lutas, da dança e da ginástica. Esses
movimentos por sua vez não se reduzem ao aspecto da funcionalidade
mecânica, mas possuem uma intencionalidade, isto é, um sentido e uma
significação.
Ao concordarmos com a autora em seu posicionamento sobre corpo e corporeidade,
buscaremos um olhar que venha abranger os demais aspectos relacionados a estudos que
envolvem o corpo como a sua história e a cultura na qual se insere. Neste ponto, tendo em
vista que a pesquisa se reporta as práticas corporais dentro de um processo de criação em
dança e que a obra apresenta um contexto cultural indígena amazônico, lancemos então o
olhar para as práticas corporais dos povos tradicionais.
50
Na obra Rito de Passagem, a coreógrafa trás para a cena práticas corporais da mulher
indígena, dentre as quais o transporte de alimento utilizando um cesto de palha trançada, o ato
de apanhar açaí no pé de açaizeiro, tirar o açaí do talo para poder fazer o vinho, lavar roupa no
rio. Essas atividades nas diferentes etnias são em grande parte acompanhadas pelas crianças,
principalmente as meninas que repetem essas práticas em suas brincadeiras, imitando os mais
velhos e aprendendo a cultura.
A coreógrafa também faz referência aos ritos de passagem da mulher indígena e ao
ritual de passagem masculino da etnia Baniwa. No ritual da moça nova da etnia Tikuna, as
meninas moças ficam em uma cabana por certo período de tempo até saírem no dia da
celebração que marca a sua entrada na vida adulta. E o ritual de iniciação masculino Baniwa
se caracteriza como uma reunião em uma maloca onde os meninos e homens se dispõem a
tomar chicotadas de um ancião e receber um conselho do mesmo. Ambos rituais envolvem
toda a comunidade e acabam virando também uma forma de confraternização.
Os indivíduos não indígenas (urbanos ocidentais) devido a toda uma evolução
histórica e sociocultural com a implantação principalmente do capitalismo apresenta sua
maneira de ver o mundo centrado no eu, diferente dos indígenas que ainda mantêm em muitos
casos uma visão coletiva da pessoa que podemos representar pelo pronome de tratamento nós.
E Soares (2011, p. 2) esclarece que:
A produção física de indivíduos se insere em um contexto voltado para a
produção social de pessoas, isto é, membros de uma sociedade específica. É
nesta constatação que se capta a originalidade das sociedades brasileiras.
Nelas não existe a ideia de que a sociedade preexiste ao indivíduo, a qual ele
irá integrar-se. Nas mesmas, o indivíduo não só constrói-se fisicamente
como socialmente através dos rituais de passagem, das tatuagens e das
escarificações, por exemplo. Portanto, nas sociedades indígenas brasileiras o
indivíduo é submetido a um processo de fabricação tanto externo como
interno. O referido processo abrange elementos que vão desde o complexo
de nominação até as teorias sobre a alma, sem deixar de enfatizar que o
corpo é um importante objeto e instrumento da referida construção.
Parece que em qualquer sociedade a construção do indivíduo passa pelo corpo e nesses
dois casos apresentados a sociedade não indígena está centrada no eu e a indígena no coletivo,
enquanto o homem ocidental representa a si mesmo e a sua própria personalidade visando
apenas seus próprios interesses e desejos, o homem indígena representa a sua etnia, seu grupo,
povo, a noção social de indivíduo. A autora também chama atenção para a diferença que na
nossa sociedade “o público justifica a sociedade e o privado justifica o indivíduo [...] numa
51
sociedade indígena não são demarcados os limites entre um e outro – o público justifica o
privado e vice-versa (SOARES, 2011, p. 3)”. Ou seja, nas sociedades indígenas tudo o que
eles têm pertence a todos.
Ainda tomando como base as pesquisas sobre práticas corporais de Soares (1997) nas
sociedades indígenas, as crianças também aprendem as tarefas diárias dos adultos através de
brincadeiras. Ao acompanharem os mais velhos em suas tarefas diárias elas costumam seguir
o exemplo nas brincadeiras e entre uma diversificada quantidade de brincadeiras que se
reportam desde o comportamento dos animais e lendas, existem as em que os pequenos
brincam de pescar, de colher frutos, de caçar, de plantar, de fazer farinha.
As crianças parecem na maioria das etnias pesquisadas como os Baniwa e Tikuna,
participar dos diferentes rituais realizados em cada etnia principalmente para aprenderem, sem
um compromisso maior até atingirem a idade de se tornarem homens e mulheres quando terão
de passar por um ritual de passagem para então serem considerados adultos.
Nas sociedades indígenas existe um período menor de tempo para que a criança entre
na fase adulta, para as meninas, por exemplo, após a menarca são consideradas adultas e
passam por um período de preparação específico e um ritual para essa nova fase.
A autora expõe que a noção de pessoa desenvolvida foi herdada da civilização latina
onde a pessoa é um fato fundamental e de direito e não apenas um direito reconhecido a um
personagem. Também acrescenta que segundo Mauss ao primeiro esboço latino da noção de
pessoa foi acrescentado o fato moral herdado dos gregos e mais um elemento também é
inserido que é a base metafísica advinda do cristianismo, trazendo a noção de propriedade.
Soares (2011, p. 7) esclarece que:
Temos, portanto a noção de unidade da pessoa, assim como a noção de
unidade da Igreja, todas inspiradas na unidade de Deus [...]. É a partir da
noção de uno que a noção de pessoa foi criada, inicialmente para designar as
pessoas divinas, mas, ao mesmo tempo esse modelo foi estendido à pessoa
humana [...]. Para concluir o desenvolvimento da noção de pessoa até os dias
de hoje, Mauss acrescenta-lhe o ser psicológico: a categoria do eu, entretanto
não anuncia aí o fim do desenvolvimento da mesma, diz que ela continua,
ainda em nossos dias, lentamente, a edificar-se, esclarecer-se, a especificar-se
[...].
Os seres humanos estão em constante transformação cultural, sejam com relação a sua
aparência, as suas referências, virtudes, problemas entre outros. As diversas culturas
apresentam semelhanças e diferenças e muitas vezes são essas semelhanças e diferenças que
52
nos aproximam e ao mesmo tempo nos distanciam uns dos outros. Parece que os autores
concordam em que o homem é um ser complexo em desenvolvimento, aprendendo cada vez
mais um pouco sobre si mesmo, sua própria espécie, o ambiente e suas relações e
interrelações.
As diferentes sociedades indígenas parecem sentir um grande respeito pelo corpo e
todas as transformações corporais estão ligadas ao crescimento e amadurecimento do
indivíduo como membro da sociedade. Segundo a autora para a sociedade Xinguana:
Toda reclusão é concebida como uma mudança do corpo. Fica-se recluso para
“mudar o corpo”. Também para formar ou reformar a personalidade idealadulta, sobretudo no caso da reclusão pubertária, a mais importante. A
personificação do homem ideal depende de uma adesão correta às regras
ditadas pela tecnologia do corpo na reclusão (SOARES, 1996, p. 33).
Nas sociedades indígenas, o corpo sofre inúmeras transformações que representam
muitas vezes não apenas a fase da vida em que o indivíduo se encontra ou sua posição na
comunidade como guerreiro, chefe, pajé, enfim, o corpo também é extremamente
representativo nos rituais, celebrações, nos diferentes eventos da comunidade. Muitas vezes
esses eventos podem durar vários dias e há pinturas e adornos corporais que representam
esses momentos. E, Soares (1996, p. 35) expõe que:
Os ornamentos físicos devem ser tratados como símbolos com uma variedade
de referenciais, e devem ser examinados como um sistema e não isoladamente.
Esses ornamentos corporais em geral são inseridos em ritos de passagem e
constituem marcas de status.
Antes do contato com os não indígenas, esses povos não utilizavam roupas, apenas
tapa sexo em algumas etnias e pinturas e adornos corporais apresentando grande diversidade e
riqueza de materiais extraídos da floresta, como sementes, folhas de palmeiras entre outros
materiais como frutos que utilizam para fazer tinta para pintar a pele, barro para
confeccionarem potes.
Apesar de muitas coisas terem se perdido ao longo de todo o processo colonizador,
ainda hoje a maioria das etnias mantêm esses conhecimentos da arte de decorar o corpo com
pintura e ornamentos cuja representatividade dentro das sociedades indígenas é de grande
importância, sendo necessário um estudo minucioso para falar especificamente desse assunto
levando em conta que para cada etnia há pinturas e adornos específicos, que podem
representar os diferentes clãs, status dentro da comunidade entre outros.
53
As diferentes etnias indígenas tem a confecção de artesanatos utilizando materiais da
natureza em suas tradições, entre esses objetos temos cestos para transportar e guardar
alimentos, potes e utensílios de barro, e diversificados adornos como colares, brincos,
alargadores, cocares e mesmo instrumentos musicais utilizados em rituais e celebrações.
Soares (1996, p. 31) ressalta a importância do corpo e corporeidade nas sociedades indígenas:
E é essa matriz, portanto o corpo, que ocupa lugar de destaque na organização
das sociedades indígenas. As mitologias, a vida cerimonial e a organização
social giram em torno da fabricação, decoração, transformação e destruição
dos corpos.
Nas sociedades humanas, em geral, o corpo seja de forma discreta ou mais evidente
como nas sociedades indígenas ocupa um papel de destaque pela sua própria condição de que
tudo que vivemos e aprendemos passa por ele, é nele que estão nossos sentidos e é
principalmente através deles que percebemos o mundo.
Os não indígenas utilizam roupas por cima da pele para proteger o corpo, para dar
status, para representar uma empresa, para demonstrar sua personalidade, para provocar ou
chamar a atenção. São diversos motivos além de ser uma tradição de nossa sociedade e para
algumas uma questão de sobrevivência, essa diversidade de roupas e acessórios podem
representar um grupo específico como funcionários de uma firma podem representar os
costumes de toda uma cidade ou simplesmente a personalidade de cada um, seu estilo, sua
marca que representa quem ele é e como ele é.
Nas sociedades indígenas, dos dias atuais, a maioria dos jovens já adotou algum tipo
de roupa, principalmente uma bermuda, peça que é muito presente. Mas, para os indígenas, a
pele parece ser a principal vestimenta, e as pinturas, os adornos são o que representam o status
dentro da etnia, as etapas vividas e são extremamente artísticas, impressionam pela beleza.
O corpo a corporeidade são importantes em qualquer sociedade, umas dedicam um
cuidado maior do que outras, mas todas sabem a importância do corpo, da maneira como
lidamos com ele de acordo com as facilidades e dificuldades, o homem é o seu corpo, e sendo
assim, tudo o que o ser humano faz tem que estar ou acaba ficando relacionado ao corpo.
O corpo é constituído de uma parte física, mental e psicológica, todas essas partes se
completam e necessitam ser alimentadas, receber orientação, interagir umas com as outras e
com o ambiente para funcionarem em harmonia. O corpo funciona também como uma
máquina, sendo necessário de manutenção, cuidados para funcionar bem e dependendo da
função a ser exercida por ele precisa de mais ou menos treino para executá-la bem.
54
Entendemos que o corpo humano é um todo complexo cujas partes mantêm constante
troca de informação, seja de forma consciente ou inconsciente por parte do ser humano. Ao
conhecermos melhor nosso corpo, seu funcionamento e funções nos conhecemos melhor,
assim como o todo ao nosso redor.
1.3 Corpo e performance em dança contemporânea.
1.3.1 O corpo na cena contemporânea
Para conhecermos mais sobre o corpo na cena contemporânea é importante perceber
como está à sociedade na atualidade, quais as principais influências que afetam o indivíduo e
consequentemente seu corpo, um dos grandes pesquisadores do corpo na contemporaneidade
Le Breton (2012, p. 15) esclarece que:
Estamos doravante imersos em uma “sociedade do indivíduo”. Com uma
margem de manobra relativamente grande, cada ator erige de maneira
movediça e deliberada suas próprias fronteiras, a trama de sentido que
orienta seu caminho. Obviamente a decisão pessoal é limitada pelos fardos
sociológicos, pela ambiência do tempo, pela condição social, pela história
própria... A autonomia do ator parece ser alargada, mas ela é
essencialmente uma liberdade de mover-se entre as idas e vindas aos
supermercados para escolher o produto que participa do estilo do qual o
ator se sente mais próximo.
Dois fatores exercem grande influência em todos os campos da sociedade
contemporânea que são o capitalismo e as tecnologias. Com o capitalismo veio o consumismo
e o individualismo e consequentemente o egoísmo, a insatisfação com o básico, e quanto mais
uma pessoa tem mais ela quer ter. O indivíduo capitalista pensa principalmente no seu próprio
bem estar e satisfação, prioriza o particular, individual e não o coletivo.
Com os avanços tecnológicos que desde a revolução industrial só vem acelerando o
desenvolvimento, aconteceram as grandes mudanças na comunicação chegando a Internet e
com esta a globalização. Esses avanços encurtaram as fronteiras e transformaram a vida
cotidiana da população mundial visando um melhor uso do tempo, ampliando o acesso a
comunicação e aos diversos conhecimentos existentes na rede mundial de computadores.
O ator ao qual Le Breton se refere na citação anterior é esse ser que se encontra
envolto a todas essas mudanças que não param de acontecer, não há mais tempo para absorver
as informações e mudanças que acontecem diariamente, talvez à maneira de lidar com tudo
55
isso seja se voltar para si mesmo, o lugar onde o indivíduo pensa que tem um maior controle
que é seu próprio corpo. Mas para acompanhar as transformações e se integrar dentro desse
contexto tecnológico e de mudanças de paradigmas, de conceitos e crenças, o indivíduo
parece querer se hibridizar com a tecnologia ou mesmo buscar uma nova realidade criada por
ele próprio dentro das diversas redes sociais.
Nos anos mais atuais é possível verificar diversas mudanças nos núcleos familiares
que apresentaram uma grande mudança principalmente quando as mulheres começaram a
trabalhar fora de casa, a exercer uma jornada dupla de trabalho e ainda cuidar dos filhos. Hoje
o núcleo familiar está altamente diversificado com pais separados, lares apenas com o pai ou a
mãe, filhos da mãe e filhos do padrasto e vice-versa, pais homossexuais, filhos adotivos entre
muitos outros.
Parece que essas adaptações no núcleo familiar vêm contribuindo para uma nova visão
de mundo, tudo ainda parece estar em um grande emaranhado de indefinições, os padrões
antigos ainda são reconhecidos, usados como exemplo e até desejados o que aumenta o
ambiente de incertezas sobre certo, errado, bom, mal. Todas essas questões sociais,
econômicas, culturais, éticas e etnográficas influenciam o ser humano de forma que este tente
encontrar um caminho que possa seguir e se encontrar como pessoa. Le Breton (2012, p. 16)
acrescenta que:
A destituição de sentido de sistemas sociais e a necessidade de criar seu
próprio caminho para existir levam a uma centralização acentuada de si. O
dobrar-se sobre o próprio corpo e sobre a aparência é um meio de reduzir a
incerteza ao se buscar os limites simbólicos o mais proximamente possível
[...]. A transformação de seu estatuto acompanha o movimento de
mercantilização do mundo. A obsolescência da mercadoria tornou-se assim
aquela do corpo. [...] Importa então ter o corpo para si, um corpo por si. O
sonho é inventar a própria singularidade pessoal. O corpo não determina
mais a identidade ele está a seu serviço.
O ser humano parece está preocupado em encontrar-se, em descobrir ou criar sua
identidade, busca incessantemente suprir essa necessidade, talvez as chamadas tribos urbanas
sejam um exemplo dessa busca, assim como as diferentes redes sociais parecem ser um
espaço para que as pessoas possam firmar, encontrar ou criar suas identidades, para serem
ouvidas. Ao se reportar sobre o grande fluxo e troca de informações Le Breton (2012, p, 23)
afirma que:
56
A circulação incessante das informações em um mundo reduzido à
informação alimenta essa vontade de ativamente e por conta própria do
fluxo das trocas, e leva a recusar um sentimento de si estável e bem
enraizado. Na era da informação, a identidade não passa de uma soma
provisória de informações destinada aos outros, no desejo de sentir-se a
vontade em sua definição. Da mesma forma que o corpo a identidade tornase um trabalho, um permanente work in process.
O indivíduo contemporâneo segundo a afirmação do autor, diferente das gerações
anteriores não cria raízes profundas, um exemplo, são as inúmeras reportagens sobre o que as
empresas podem fazer para manter seus melhores funcionários que assim que recebem uma
proposta melhor de trabalho rapidamente trocam de empresa, não há um vínculo maior, certa
fidelidade, raiz.
Como tudo passa se transforma muito rapidamente, há a necessidade de acompanhar
essas mudanças e mesmo até chegar ao ponto de se reinventar acompanhando as
transformações, se enquadrando nos padrões mais atuais de forma a se encaixar
confortavelmente, assim:
O corpo se transforma em narrativa pessoal e em programa ajustado,
matéria prima a retrabalhar ou a conservar para bem corresponder aos
episódios das personagens rebaixadas pelo indivíduo. [...]. A identidade
narrativa, tornada nosso quinhão, e os jogos de transformações corporais,
reduzem doravante a identidade a um permanente comentário sobre si (LE
BRETON, 2012, p. 23).
É nesse atual contexto da era da comunicação, da globalização que o corpo entra em
cena e é usado a favor dessa transformação, adaptação desejável, o corpo como suporte de
uma identidade reinventada de acordo com a vontade ou necessidade do ser, um corpo em
processo de transformação onde cada vez mais as fronteiras assim como os padrões são
rompidos.
O corpo na atualidade parece sofrer muito mais influências relacionadas a diferentes
referências culturais ou de uma cultura dominante ou de maior influência. Com a ampla
divulgação das diferentes culturas pelos meios de comunicação TV, cinema, pela internet e
mesmo através das aulas de idiomas tão comuns nos dias atuais, despertam a curiosidade dos
indivíduos em conhecer um pouco mais sobre as culturas que mais lhe chamam a atenção,
incentivando o turismo e o intercâmbio cultural.
Essa curiosidade e atitude de conhecer outra cultura parece também exercer um
despertar desse corpo contemporâneo que tem seus sentidos aguçados com sabores, cheiros,
57
sons, sensações e situações diferentes de seu cotidiano. Situação que nos reportam a um
período em que o homem era nômade e matinha seus sentidos aguçados, mas principalmente
por uma questão de sobrevivência.
Tomando como base principalmente os estudos de Le Breton percebemos que os
conhecimentos das ciências principalmente das ciências biológicas, da saúde e do esporte
contribuíram para o maior conhecimento a respeito do corpo e também para que este passasse
a ser visto hoje como um suporte, um meio de realização, satisfação. O corpo não é mais
sagrado, ele pode ser modificado, reestruturado, mutilado ao gosto do freguês, é objeto de
satisfação, insatisfação, de desejo, de estudo e pode ser extremamente lucrativo para os
segmentos do esporte/fitness, beleza/cosmética, moda, saúde/estética entre outros.
Le Breton (2003) evidencia esse corpo contemporâneo que está sempre em
transformação, não apenas pelas mudanças naturais do decorrer do tempo, mas mudanças
promovidas a partir do conhecimento tecnológico. É possível mudar a cor, o tamanho, e a
textura dos cabelos, das unhas, a cor dos olhos, da pele, assim como mudanças mais
duradouras como o tamanho de músculos glúteos, dos seios, das panturrilhas, coxas entre
outras mudanças cada vez mais agressivas, por exemplo, as cirurgias que modificam
completamente o rosto.
Ao longo do desenvolvimento do ser humano em diferentes sociedades aparece um
cuidado com a aparência e hoje, mais que em outras épocas, as pessoas são estimuladas a
tratar da sua imagem de forma que ela é reconhecida e respeitada pelo fato de estar de acordo
com as exigências da moda, ir ao salão de beleza deve virar um hábito incentivado
principalmente pelas revistas especializadas em moda, em fofoca e saúde, que vendem um
padrão ideal de beleza a ser seguido.
Faz parte da realidade de muitas pessoas fazer uma breve transformação ou
manutenção de um visual. O salão de beleza também pode ser considerado um ambiente de
socialização e afirmação social, ao entrar em um salão e observar mesmo que em um período
curto de tempo, é possível perceber uma insatisfação e um desejo de mudança por parte de
muitos frequentadores, seja pela contínua troca de corte ou cor do cabelo que melhor possa
atender os desejos de transformação corporal. Silva (2001, p. 18) esclarece que:
Todas essas práticas sociais que se propõe a ser uma intervenção sobre o
corpo têm como fundamento, em maior ou menor grau, os conhecimentos
produzidos pelas ciências biomédicas e pela tecnologia e, em especial, pela
medicina. Estudar a área médica se torna fundamental para se compreender
como se constituem os fundamentos da expectativa de corpo atual,
58
caracterizados por um desejo de intervenção e de dominação sobre o corpo e
sua “naturalidade” tal qual o desejo de dominação de toda a natureza externa
ao ser humano.
Todas essas transformações são motivadas ou influenciadas por diferentes segmentos
sejam de cunho cultural, social, econômico, científico, religioso. A cultura capitalista parece
ter acelerado e aumentado esse processo de insatisfação com o corpo e o desejo de mudança
devido à ampla divulgação de padrões idealizados, levando a um crescimento no lucro de
diferentes segmentos econômicos principalmente de grandes empresas multinacionais.
Podemos observar através de jornais, revistas de diversos segmentos sejam voltadas
para o público jovem abordando assuntos sobre a adolescência, namoros etc. ou revistas de
moda, de fofoca, sobre saúde, que existe atualmente uma idealização de beleza corporal
ocidental que é amplamente divulgada tanto nesses meios de comunicação escrita como
principalmente na televisão, internet e cinema. Nesse ideal de corpo de saúde e beleza o
homem aparece com músculos bem definidos e a mulher bem magra ou tão musculosa quanto
o homem (SILVA, 2001).
Essa busca pela mudança seja na transformação do ambiente ou do corpo parece fazer
parte da natureza do homem devido a sua capacidade de se adaptar ao meio, mas ao
percebermos o ser humano principalmente como um ser cultural essa adaptação é
principalmente relacionada aos diferentes modos de vida nas sociedades, cada sociedade pode
ter seu próprio padrão de beleza ou adotar um padrão de outra sociedade devido à influência
de uma cultura sobre a outra.
Silva (2001) expõe que no Brasil há uma aceitação devido a grande divulgação, de um
padrão de beleza baseado na magreza, sendo este importado de padrões internacionais
impostos pelas grandes indústrias da moda. O Brasil também é um dos maiores consumidores
de cosméticos do mundo e apresenta dados estatísticos preocupantes relacionados com a
insatisfação com a autoimagem. O indivíduo contemporâneo tem uma grande preocupação
devido a não corresponder com os padrões que lhe são impostos.
A insatisfação leva a atitudes que vão desde simples mudanças de hábitos que possam
contribuir com a modelagem do corpo até intervenções drásticas que podem mesmo colocar
em risco a saúde da pessoa, dentre os quais dietas variadas, cirurgias plásticas e a ingestão de
medicamentos para emagrecer ou tonificar os músculos. Essa preocupação com o corpo não é
exclusiva da modernidade e Silva (2001, p. 15) afirma que:
59
O que se pode perceber ao longo dos últimos três séculos é que há uma
ampliação do interesse pelo corpo, deixando transparecer uma identificação
do indivíduo com sua dimensão corporal. A identificação ocorre
concomitantemente com uma opção pelo privado e pelo individual,
exacerbada pelo capitalismo e por sua ideologia, o Liberalismo, no qual
prevalece o interesse por si mesmo e para si mesmo. A preocupação com a
mera aparência parece estar entrelaçada com o surgimento de uma
concepção moderna de indivíduo na perspectiva de um atomismo social, no
qual os interesses subjetivos é que parecem predominar; caracterizando-se
um novo indivíduo na fase contemporânea, com implicações importantes no
seu projeto de vida e nas interações que estabelecem com a sociedade e com
a natureza.
Reafirmando a influência da cultura capitalista, a autora traz o individualismo como
uma das principais características do homem contemporâneo, há uma preocupação exagerada
consigo mesmo, seus próprios desejos, necessidades principalmente relacionadas com o status
social, a imagem que esse ser quer aparentar ter para a sociedade.
O corpo também é o cartão de visita do homem, expressa quem ele é, suas
preferências, ambientes que frequenta e estilo de vida, se é saudável ou não, equilibrado ou
não, bem sucedido ou fracassado, as roupas, acessórios e bens como telefones móveis entre
outros contribuem para a composição desse eu construído detalhadamente e aparente. E a
autora acrescenta que:
A expectativa de corpo moderna se fundamenta no reforço de um sentimento
contraditório que se vê explodir na atualidade: dominar o corpo e, ao mesmo
tempo, libertá-lo; subjugá-lo e depender dele para a sua felicidade; acreditar
na superioridade e independência da mente, mas submeter-se aos rituais
necessários ao corpo “em forma” (SILVA, 2001, p. 18).
Parece-nos que esse sentimento contraditório é sentido de forma bem particular por
cada indivíduo e assim também o é a forma de expressá-lo. Para algumas pessoas dominar ou
libertar o corpo pode ser submetê-lo aos seus limites sejam da dor, do prazer, seja com a
imposição de limitações ou liberando-o para diversas extravagancias. O corpo é o meio pelo
qual o homem percebe, sente o mundo, se comunica com o ambiente e outros seres humanos,
expressa suas dúvidas, alegrias, tristezas, insatisfações e satisfações.
Na dança o intérprete se submete não apenas as aulas que moldam e preparam seu
corpo, mas também aos ensaios e especificidades necessárias para melhor interpretar cada
trabalho coreográfico. É possível nas aulas e ensaios perceber um pouco dessa dicotomia e
tênue linha entre a dor dos exercícios com os esforços repetidos e o prazer de dançar, de
interpretar determinada obra de dança com todas as suas nuances, desafios e exigências
próprias.
60
A arte como fruto da cultura criada pelo ser humano reflete todo esse turbilhão de
acontecimentos que o cerca, suas referências e sentimentos e Silva (2001, p. 17) expõe que:
A arte também é ela própria, profundamente influenciada por todo esse
movimento científico que se estrutura mais fortemente a partir do século
XVIII e XIX, e apresenta obras clássicas que caracterizam toda uma nova
expectativa em relação aos corpos humanos. A “Lição de Anatomia do
Doutor Tulp”, pintada por Rembrandt em 1632, é um exemplo clássico do
início de um novo período no que se refere à concepção de corpo e que é
impensável em épocas anteriores; porém o desenvolvimento da ciência
tradicional traz uma valorização do conhecimento inexistente até então.
Solidifica-se a ideia de que se pode fazer a aplicação de leis gerais e que, por
isso, o mundo é manejável através da ciência.
A partir principalmente dos avanços científicos é que a sociedade contemporânea
criou suas bases, cada descoberta levava a certo domínio e controle sobre a natureza e a
razão foi cada vez mais valorizada, como o corpo faz parte da natureza assim como crescia
o desejo pelo domínio da natureza também crescia o de dominar o corpo até transformá-lo
em suporte como nos apresentou Le Breton.
Na arte contemporânea, podemos ver o corpo apresentado de diversas formas, como
suporte, como questionador, como objeto, como forma, como um conceito de corpo, como
metáfora, como avatar, enfim as possibilidades são inúmeras e depende da criatividade ou
relação que o artista faça e queira apresentar.
Dentro do contexto da dança contemporânea, Greiner e Katz (2011) afirmam que o
corpo pode ser visto como uma mídia sendo ele próprio a mensagem. Ao longo de sua
existência, o homem recebe, armazena, transforma e transmite informações existindo
inúmeras possibilidades de interação entre este e o todo ao redor, também afirmam que “o
homem está inteiramente implicado naquilo que observa” (p. 285). O que o faz tornar-se
parte do todo, ele se adapta e absorve os conhecimentos necessários a sua sobrevivência e
que melhor o inserem no contexto ao qual vive.
Todas as características, marcas, nuances, referências, gestos, interpretação de si
mesmo e de seus sentimentos, todas as reações expressas, todo o acúmulo cultural
adquirido e do qual o corpo se encontra impregnado fazem dele um corpo mídia; um corpo
que é ele próprio não uma, mas várias mensagens demonstrando nossa tão surpreendente
capacidade de transmitir, decodificar e ser uma mensagem.
Na atual cena da dança o corpo que dança apresenta mais de uma base, incluindo
além de técnicas corporais diversas, discursos sobre o corpo cênico, que se adapta e sabe
61
adaptar os diferentes conhecimentos para o seu corpo. Parece ser mais consciente de si e de
sua relação com o todo, com seu ambiente, seu tempo, seu contexto sociocultural. Também
é mais criativo e alerta.
Hoje, o artista cênico, principalmente que atua dentro do contexto de arte
contemporânea é nomeado também de intérprete, porque além de executar uma ação, ele
consegue interpretar o que se quer dizer ou sua própria forma de sentir a obra da qual
participa, ele realmente interpreta toda a sua arte, se envolve, procura saber o que fala, seja
com palavras, sons, símbolos ou gestos, dialogando com o público.
Na dança contemporânea, também, há o termo cocriador utilizado por diferentes
autores da área de dança, onde o intérprete é ao mesmo tempo o próprio criador ou
colaborou criativamente no processo de criação do coreógrafo. E nos processos criativos
de dança da atualidade, os intérpretes trazem para a cena sua personalidade ou suas
próprias concepções de personagens e movimentos a partir da orientação do coreógrafo,
são criações coletivas, conhecimentos somados.
De acordo com o pensamento de Katz o artista da dança contemporânea na forma
mais atual de apresentação desta, em seus trabalhos artísticos, ele instiga, questiona,
propõe, ele ressignifica, transforma um signo em outro signo.
A partir dessas informações podemos verificar a importância do corpo na cena
contemporânea ser um corpo presente, perceptivo, atualizado, aberto as propostas e que se
disponha a se adaptar as mais diferentes técnicas, redescobrindo suas capacidades,
potencialidades e buscando lidar com suas limitações de forma consciente e se respeitando.
A construção e desconstrução das referências de movimentos e hábitos contribuem com o
processo criativo. Há uma busca maior pelo uso da técnica em conjunto com a
interpretação e a criatividade.
1.3.2 Performance na dança
Em meados do século 19 a performance dentro de um contexto artístico já se fazia
presente na Europa. Um artista e intelectual que se destacou no final do século 19 e início
do século 20 foi o rico poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, que participou e
influenciou o movimento Futurista, que foi um movimento de vanguarda que se opunha
“aos valores estabelecidos da pintura e das academias literárias” (GOLDBERG, 2006, p. 1).
62
A performance esteve presente segundo a autora em vários movimentos artísticos de
vanguarda, dentre os quais, além do futurismo o
construtivismo, o dadaísmo, o
surrealismo. Foi um período de destaque para a declamação de textos, “versos livres” de
forma diferenciada, os artistas também utilizavam em suas performances marionetes,
expressão teatral e dança.
Nas performances futuristas e em alguns dos demais movimentos artísticos que o
sucederam, havia um grande destaque para as declamações de poesias, os manifestos
literários e as apresentações teatrais. Ainda segundo a autora (GOLDBERG, 2006), outro
artista de grande destaque com relação à arte da performance foi Oskar Schlemmer,
professor da escola alemã de arte Bauhaus que criou uma teoria da performance pautada na
relação do performer com o espaço, criou cenas performáticas que incluíam a dança, em
cima de uma relação espacial bem definida, apresentando com destaque os ângulos de
proporção e de profundidade da pintura.
Na Alemanha a escola de Arte Bauhaus foi principalmente um local de
experimentações e descobertas, voltada para um estudo interdisciplinar, abarcando diversas
áreas do conhecimento dentre as quais a arquitetura, o designer, os alunos tinham aulas
teatrais e todos esses conhecimentos se somavam nas performances criadas por professores
e alunos, dando ênfase a mistura entre arte e tecnologias (GOLDBERG, 2006).
A Bauhaus apresentou diversos balés mecânicos, como eram chamados devido à
utilização de objetos tecnológicos acoplados no corpo, o que limitava os movimentos do
performer, um exemplo, a dança do vidro de 1929 de Schlemmer, onde a performer usava
“uma saia formada por um aro do qual pendiam filetes de vidro, a cabeça coberta por um
globo de vidro, e levando nas mãos esferas de vidro” (GOLDBERG, 2006, p. 97), nesses
balés parecia haver a busca por uma metamorfose entre homem e máquina.
A Europa foi o berço de diferentes movimentos de vanguarda e da arte da
performance. Com a segunda grande guerra mundial muitos artistas se refugiaram em
outros países incluindo os Estados Unidos onde a performance começou a surgir no final
dos anos 30, junto com a chegada dos refugiados principalmente na cidade de Nova York.
E, em 1945, já havia se tornado “uma atividade independente, reconhecida como tal
pelos artistas e indo além das provocações que marcaram as primeiras performances”
(GOLDBERG, 2006, p. 111).
63
Foram muitas as mudanças que aconteceram nesse período da história, tanto
econômicas como sociais e culturais, a educação que as pessoas recebiam em casa e, nas
instituições de ensino parecia ser mais rígida. A sociedade era mais conservadora, os
artistas de vanguarda deveriam causar reações fortes no público da época pelas suas
propostas que rompiam com tudo o que era politicamente correto e convencional com
relação às manifestações artísticas.
Hoje, depois de tantas mudanças socioculturais, quase tudo parece ser normal ou
aceitável, os padrões são variados, e apesar dos diferentes preconceitos ainda estarem
enraizados e serem disseminados de forma mais camuflada, o diferente não é tão estranho
e espantoso como era considerado em tempos anteriores.
Nos Estados Unidos, segundo (GOLDBERG, 2006), uma escola que se destacou nas
atividades interdisciplinares e artísticas foi o Black Mountein College devido à contratação
para o corpo docente de ex-professores da Bauhaus que buscaram dar continuidade as
pesquisas que estavam realizando na Alemanha e cujas atividades logo chamaram a
atenção de vários artistas tanto entre os refugiados quanto entre os locais, dentre eles o
jovem músico John Cage e o jovem dançarino Merce Cunningham.
O primeiro professor contratado pelo Black Mountain College vindo da Bauhaus foi
Josef Albers que trouxe a combinação de disciplina e criatividade que marcaram seu
período na Bauhaus e durante uma palestra explicou aos alunos que “a arte diz respeito ao
COMO e não ao O QUÊ, não ao conteúdo literal, mas á representação do conteúdo factual.
É na representação – no modo como isso se faz – que se encontra o conteúdo da arte”
(GOLDBERG, 2006, p. 111).
Para o professor Albers a maior ênfase para o conteúdo da arte estava no processo, o
como se faz era mais importante de que o que se faz e a arte contemporânea ou pósmoderna vem apresentando seja nas artes cênicas, plásticas ou do vídeo um grande
interesse em trazer o processo para a cena.
Segundo Lopes (2003) o termo performance de língua inglesa, é considerada uma
palavra estrangeira de uso regular em nosso idioma. Primeiramente se reportava ao
rendimento de máquinas e relacionado ao desempenho dos atletas, apenas mais
recentemente adentrou no âmbito das artes indicando um ato mais ou menos teatral, que
faz uso da improvisação e do acaso, e nos Estados Unidos passou a ser uma área de estudos
acadêmicos.
64
Dois artistas de grande destaque nos Estados Unidos foram John Cage e Merce
Cunningham que estavam desenvolvendo suas teorias e práticas artísticas e não demorou
muito para que começassem uma parceria apresentando-se com performances multimídia.
Goldberg (2006, p. 106), esclarece que:
Enquanto Cage observava que “cada unidade mínima de uma composição
mais ampla reflete, como um microcosmo, as características do todo”,
Cunningham enfatizava “cada elemento do espetáculo”. Era necessário, dizia
ele, levar em conta a natureza inerente a cada circunstância, de modo que se
possa atribuir valor intrínseco a todo e qualquer movimento. Esse respeito
pelas circunstâncias dadas foi reforçado pelo uso do acaso na preparação de
obras como Dezesseis danças para solista e companhia de três (1951), em
que a ordem das “nove emoções permanentes do teatro indiano clássico” era
decidida pelo arremesso de uma moeda.
Todas essas reflexões e proposições de pesquisas e performances explicitando e
modificando a forma de ver o mundo, a arte e as interrelações existentes continuaram a se
desenvolver e a se ampliar contribuindo diretamente para a arte contemporânea. John Cage
na música e Merce Cunningham na dança, ao trabalharem juntos suas propostas inovadoras,
e ao desenvolverem suas pesquisas influenciaram diretamente para a criação da dança de
hoje.
Muitos movimentos performáticos foram aparecendo e a partir destes surgindo outros,
o inconformismo de alguns artistas ousados, inovadores e atentos às mudanças sociais,
políticas e tecnológicas não apenas marcaram uma época, mas contribuíram para o
desenvolvimento de outra. Goldberg (2006, p. I) informa que:
A performance passou a ser aceita como meio de expressão artística
independente na década de 1970. Naquela época, a arte conceitual – que
insistia numa arte em que as ideias fossem mais importantes que o produto e
numa arte que não pudesse ser comprada ou vendida – estava em seu apogeu,
e a performance era frequentemente uma demonstração ou execução dessas
ideias. Desse modo a performance transformou-se na forma de arte mais
tangível do período. Os espaços dedicados a arte da performance surgiram
nos maiores centros artísticos internacionais, os museus patrocinavam
festivais, as escolas de arte introduziram a performance em seus cursos e as
revistas especializadas começaram a aparecer.
A performance saiu de uma posição marginal com relação ao mundo da arte e passou
a integrá-lo, sendo aceita dentro das escolas de arte, transformou-se em uma forma de arte
acessível a todo artista que quisesse expor suas ideias e experimentações mais livremente e
Goldberg (2006, p. I) esclarece que:
65
A performance tem sido vista como uma maneira de dar vida a
muitas ideias formais e conceituais nas quais se baseia a criação artística. As
demonstrações ao vivo sempre foram usadas como uma arma contra os
convencionalismos da arte estabelecida. [...]. Essa postura radical fez da
performance um catalizador na história da arte do século XX; sempre que
determinada escola – quer se tratasse do cubismo, do minimalismo ou da arte
conceitual -- parecia ter chegado a um impasse, os artistas se voltavam para
a performance como um meio de demolir categorias e apontar para novas
direções (GOLDBERG, 2006, p. I).
A forma como a performance se apresentou no século 20, pode ser comparada a um
grito de liberdade que além de um desabafo vinha propondo e anunciando mudanças
partindo de ideias conceituais e utilizando a interdisciplinaridade na sua forma de
organização e apresentação.
Para Lopes (2003), no campo artístico a performance é associada principalmente com
a noção de processo do que a de resultado e com relação as artes cênicas afirma que:
Em sentido lato, é uma exibição formal de uma peça de teatro, número de
dança, programa musical, operístico ou circense, diante de uma audiência.
Equivale ao termo apresentação ou presentação: processo de tornar presente
uma certa pauta musical, coreográfica, textual, gestual, de movimentos etc.
Em sentido estrito, refere-se à uma atuação de um artista (performer) numa
apresentação específica (p. 7).
As performances artísticas parecem ter estado sempre ligadas a questões da vida real,
do cotidiano, dos acontecimentos sociais, os artistas trazem questões que se relacionam a
todo um contexto social e demais seguimentos que envolvem o homem de sua época.
Lopes (2003) destaca o fato de que apesar de haver essa inspiração e relação com a
observação da vida cotidiana, e haver uma discussão sobre o conceito de performance, ela
está relacionada a um fazer, refazer, interpretar a vida, “a vanguarda artística americana
dos anos 60 desenvolveu os projetos de dissolução entre arte e vida, opondo-se a
representação e buscando uma experiência direta, uma arte de presentação” (p. 8).
Nos diferentes segmentos artísticos a performance jogava frequentemente com o
acaso, quebrando barreiras e distância entre artista, público e obra de arte, apresentando o
corpo do artista como um local privilegiado da experiência estética.
Para o autor o conceito de performance não apenas quebrou barreiras entre os
diferentes segmentos artísticos entre si, mas as artes buscaram se inspirar em outras
expressões performáticas, dentre as quais, ritos religiosos, atividades esportivas e práticas
cotidianas, levando a uma aproximação com as áreas do conhecimento que estudam tais
práticas, sito a antropologia, a filosofia e a linguística.
66
Segundo Setenta:
O conceito de performatividade refere-se a um modo de estar no mundo,
podendo ser aplicado às relações pessoais, sociais, políticas, culturais e
artísticas. A performatividade se caracteriza por movimentos inquietos
questionadores [...] Dela faz parte a necessidade de mudanças porque se refaz
a cada tentativa de resposta as inquietações que aparecem no processo de
constituição de sujeitos/sociedades [...]. Traz para o presente marcas
passadas e indica, no mesmo presente, marcas futuras.
A performance como arte de vanguarda e questionadora pode estar enfatizando uma
época e anunciando outra, estando presente assim nas duas ao mesmo tempo, pois o
conceito da arte que está sendo anunciado já encontra-se ali. Também parece estar
relacionada com o desejo de mudança de alguns artistas que se encontram um pouco além
do seu tempo, mais visionários talvez ou que consigam assimilar as mudanças de seu
tempo com maior agilidade.
O diretor de teatro e professor Richard Schechner que há muito se enveredou nos
estudos da performance e hoje é uma referência reconhecida em pesquisas que envolvem o
tema inclusive dentro de um contexto antropológico e não apenas artístico expõe que:
O “Ser” performance é um conceito que se refere a eventos definidos e
delimitados, marcados por contexto, convenção, uso e tradição. No entanto
qualquer evento, ação ou comportamento pode ser examinado como se fosse
performance. Tratar o objeto como performance significa investigar o que
esta coisa faz, como interage com outros objetos e seres e como se relaciona
com outros objetos e seres (SCHECHNER, 2003, p. 25).
Para o autor a performance vai muito além do contexto artístico, está inserida no
cotidiano, nos rituais, nas atividades esportivas, relações de negócio na vida simples e
corriqueira a situações diversificadas vivenciadas pelo ser humano. Ao se reportar sobre o
ato da performance Schechner (2003, p. 25) esclarece que:
No contexto dos negócios, do esporte ou do sexo, dizer que alguém fez uma
boa performance é afirmar que tal pessoa realizou aquela coisa conforme
um alto padrão, que foi bem sucedida, que superou a si mesma e aos
demais. Na arte o performer é aquele que atua num show, num espetáculo
de teatro, dança, música. Na vida cotidiana, performar é ser exibido ao
extremo, sublinhando uma ação para aqueles que a assistem. No século
XXI, as pessoas tem vivido, como nunca antes, através da performance.
Fazer performance é um ato que também pode ser entendido em relação a:
[...] ser a existência em si mesma. Fazer é a atividade de tudo que existe dos
quazares aos entes sencientes e formações super galácticas. Mostrar-se
fazendo é performar: apontar, sublinhar e demonstrar a ação. Explicar
situações demonstradas é o trabalho dos Estudos da Performance.
67
O autor apresenta o uso do termo performance de três formas, a primeira se reportado
ao desempenho realizado pelo performer cabendo este aos esportes, negócios ou em
relação ao sexo, a segunda forma de uso se reporta ao artista em uma apresentação artística
e a terceira referente a vida cotidiana. Com relação à terceira referência, os acontecimentos
da vida cotidiana na contemporaneidade parecem exercer um grande interesse e fascínio
por parte de um grande público.
Nos programas de TV há um grande destaque para os reality shows, programas que
apresentam o comportamento, as relações e reações de um grupo de pessoas normalmente
ocupando determinado espaço restrito como uma casa, uma fazenda e passando por
diferentes situações dentro de um jogo em que o público pode participar interferindo em
decisões de quem permanece ou sai do jogo. Também como exemplo de reality shows sito
as disputas entre cantores, grupos de dança e bandas.
O público se coloca em posição de observar tudo o que acontece e ficar de certa
forma julgando o comportamento de cada participante para votar em quem continua ou é
eliminado do jogo. Um filme que se reporta a esse tipo de programa e que tem feito
bastante sucesso é “Jogos Vorazes”, onde os competidores lutam até que reste apenas um,
e há toda uma preocupação com cenário e distribuição de câmeras para que o público
acompanhe tudo. Mostra os bastidores desse tipo de programa e o poder de atração que
exercem em relação ao público.
Isso demostra o poder da mídia na vida cotidiana das pessoas, parece que as pessoas
preferem ver o cotidiano de outras pessoas a viverem os seus, dedicando cada vez mais
tempo a TV, a internet, ao mundo virtual em que seus corpos ficam horas inertes e suas
mentes vivem ou apreciam diferentes histórias. Isso deve em muito está influenciando para
que o corpo se torne obsoleto, descartável, manipulável como nos apresentou Le Breton.
Schechner (2003), também refere-se a performance como um comportamento
restaurado, sendo este um processo chave para todos os tipos de performance, as do dia a
dia, de curas xamânicas, brincadeiras e das artes. “Comportamento restaurado inclui uma
vasta gama de ações. Todo comportamento é comportamento restaurado – todo
comportamento consiste em recombinações de pedaços de comportamento previamente
exercidos” (p. 34). Ou seja, a partir de uma atividade exercida de forma rotineira, seja no
dia a dia, em um jogo, em uma aula de dança ou em um ritual sagrado o comportamento
68
restaurado irá utilizar apenas pedaços desses comportamentos reorganizá-los, tirá-los de
seu contexto original e apresentá-los de uma forma diferente da habitual.
Todas essas informações sobre a performance demonstram o quanto essa forma de
expressão artística influenciou para que surgisse a arte contemporânea e mais
especificamente a dança contemporânea ou pós-moderna, estando a interdisciplinaridade
presente na criação, organização e apresentação das performances assim como acontece na
arte produzida hoje.
Com relação à expressão corporal relacionada às danças étnicas indígenas, Costa
(2008) expõe que as danças indígenas estão intrinsicamente relacionadas com o contexto
sociocultural, como se fossem uma forma visual de mitos e rituais. E Muller (2003, p. 128)
se reportando as danças realizadas nos rituais xamanísticos dos Asuriní, afirma que “a
dança, linguagem do corpo em movimento, organizada esteticamente pela coreografia e
pelo canto vocal, ocupa lugar fundamental no desempenho ritual”.
Sobre o estudo de rituais, Peirano (2003) apresenta uma definição operativa e ressalta
a importância da compreensão de um ritual não ser antecipada, precisa ser etnográfica, ou
seja, apreendida no campo pelo pesquisador junto ao grupo que observa.
A autora também acrescenta que a antropologia tem a intenção de dar voz ao outro
diferente de nós, que nas sociedades existem eventos tidos como especiais, não cotidianos,
como exemplos na sociedade ocidental temos a cerimônia de formatura, de casamento,
uma posse presidencial. “O pesquisador deve, portanto, desenvolver a capacidade de
apreender o que os nativos estão indicando como sendo único, excepcional, crítico,
diferente” (p. 09).
Os rituais assim como as danças indígenas devem ser estudados dentro do contexto
aos quais estão inseridos, pois são concebidas dentro da cultura de cada etnia,
representando suas crenças, demonstrando assim a forma de ver o mundo de cada povo.
Para Schechner (2012, p. 50) a performance perpassa por interações entre o jogo e o
ritual e expõe que:
Rituais são uma forma de as pessoas lembrarem. Rituais são memórias em
ação, codificadas em ações. Rituais também ajudam pessoas e animais a
lidarem com transações difíceis, relações ambivalentes, hierárquicas e
desejos que problematizam, excedem ou violam as regras da vida diária. O
jogo da às pessoas a chance de experimentarem temporariamente o tabu, o
excessivo e o arriscado. [...]. Ambos ritual e jogo levam as pessoas a uma
69
segunda realidade separada da vida cotidiana. Esta realidade é onde podem
se tornar outros que não seus eus diários. [...]. Por isso, ritual e jogo
transformam as pessoas, permanente ou temporariamente. Estes são
chamados “ritos de passagem”, e alguns exemplos são: iniciações,
casamentos e funerais.
Assim como as performances os jogos e rituais fazem parte da cultura de cada
povo, em muitos casos exercem funções semelhantes e com relação aos rituais, estes
contribuem para a transformação do ser, ajudando a moldá-lo ou a enfrentar momentos
difíceis e mudanças significativas como a transição de uma fase da vida para outra ou
aceitar a morte.
Os rituais de acordo com Schechner (2012) podem ser divididos em dois tipos
principais sagrados e seculares. O sagrado refere-se diretamente a cerimônias religiosas e
os seculares se relacionam a atividades que não sejam diretamente relacionadas à
religiosidade, se relacionam, por exemplo, a cerimoniais de estado, vida diária e esportes.
Mas, o autor ressalta que essa divisão pura não é genuína e que acontecem cerimonias
governamentais que assumem caráter religioso e cerimonias religiosas que incluem
atividades consideradas mundanas como o uso de máscaras, bebidas e sexualidade.
Os trabalhos artísticos e, nos reportamos mais especificamente as artes cênicas,
apresentam esse formato performático e ritualístico, envolvem preparações corporais e do
ambiente, repetição de ações, entrega e concentração total dos artistas, utilizam diferentes
textos, contextos e técnicas. Podem ser inovadores ou não, mas apresentam interação com o
público, seja em forma de diálogo, de perguntas, de despertar emoções, questionamentos e
estranhesa.
Os trabalhos artísticos contemporâneos apresentam uma característica específica
referente a cada criador, como um traço específico onde é possível reconhecer o trabalho de
determinado artista, Salles (1998) informa que cada artista apresenta uma repetição de
elementos em suas obras, de forma que a observação e percepção desses elementos
contribuem para verificar as características próprias das obras do criador ou sua identidade
artística.
Ao observar diferentes trabalhos de artistas manauaras seja da zona rural ou urbana,
é possível perceber que eles trazem consigo toda uma característica cultural própria,
resultado das misturas raciais e culturais e apresentam de forma consciente ou inconsciente
70
traços dessa miscelânea em seus trabalhos artísticos. Entendemos que o artista deve tomar
cuidado com o excesso de informações da era da comunicação para não se perder e cair
apenas no campo da repetição do que se vê, e aprofundar-se mais em si mesmo e nas suas
referências de origem de modo a inovar e engrandecer suas obras, lembrando que a pesquisa
é um dos caminhos.
A dança em geral, e no caso dessa pesquisa especificamente, a dança contemporânea,
se insere no contexto social e cultural como uma ferramenta de reflexão, surgindo nesse
contexto de inovações e transformações da era da comunicação, das tecnologias, onde as
culturas passam a ser reconhecidas e apreendidas em diferentes partes do mundo.
A dança contemporânea nasce em meados dos anos 50 quando Merce Cunningham
inicia o que ficou conhecido como movimento pós-moderno na dança e por volta dos anos
80 passa a se chamar dança contemporânea, trazendo uma nova forma de ver, criar e
apresentar a dança. Engloba, os movimentos tradicionais da dança como (Balé Clássico,
Jazz, Moderno) associadas a outras técnicas como (dança teatro, artes marciais, esportes e
outras práticas corporais), diluindo as fronteiras existentes tornando as obras de dança
híbridas.
Na atual forma de apresentação da dança contemporânea, existe a possibilidade de se
utilizar recursos dos mais diferentes tipos de arte, e mesmo chegar ao ponto de hibridizar,
ou seja, mesclar diferentes técnicas de forma que uma venha a se apropriar de outra, sendo
um exemplo a “dança teatro” de Pina Bausch, que apresenta um forte trabalho de
interpretação através da expressão corporal e ainda hoje provoca polêmica, quando se
pergunta onde termina a dança e onde começa o teatro.
Essa apropriação também acontece na mistura da dança com as novas tecnologias,
que usam projeções de imagens em tempo real a partir de eletrodos colocados nos corpos
dos bailarinos, de filmagem com projeção ao vivo, do uso do vídeo como cenário ou
mesmo na interação da imagem na tela com o bailarino no palco, onde este responde aos
movimentos ou ações projetadas, demonstrando assim, outras possibilidades de pensar e
fazer dança (SPANGHERO, 2003).
Não há apenas a mistura entre as diferentes formas de apresentações artísticas, mas
também a total interação público e artistas seja apenas no diálogo durante a apresentação
da obra, seja em uma pesquisa que antecede a obra ou uma interação através de suportes e
71
recursos tecnológicos em que muitas vezes, o público é incentivado ou levado a interagir
também fisicamente se movimentando e contribuindo de alguma forma.
Spanghero (2003) expõe que outra forma de apresentação da dança contemporânea é
a vídeodança, que nasce da mistura da dança com a fotografia e o cinema. Nesta forma de
apresentação da dança, a coreografia é pensada, criada na linguagem do vídeo, a partir da
gramática, as possibilidades de movimentação e mistura de técnicas é maior ainda.
A vídeodança torna possível se fazer dança apenas com o foco no movimento em si,
sem o uso do corpo humano para representá-lo. Pode-se misturar ás técnicas de
documentário, fazer diversas mudanças de cenários e localidades, incluindo utilizar a
sobreposição de imagens de forma a fazer com que os elementos das imagens pareçam
pertencer a uma mesma cena. É a fusão da dança com o cinema.
Para Helena Katz (2004) a dança contemporânea é mais que um apanhado de
segmentos artísticos que se relaciona entre si, ela apresenta não apenas reflexões a respeito
de algo, mas também questionamentos voltados para o espectador e mantêm um diálogo
aberto com este.
Para a autora a dança contemporânea instiga mais que distrai, e ao se reportar a
algumas obras de Karole Armitage e Willian Forsythe em que ambos se utilizam da
técnica clássica e da sapatilha de ponta afirma que mesmo com essas
características
em
cena,
ambas
estão
dentro
do
contexto
da
dança
contemporânea e acrescenta que ambos os trabalhos:
Como que nos obrigam a mirá-los com atenção investigativa para entender o
que se passa. Não nos fazem buscar a história que contam nem os sentimentos
que expressam. Fazem de nós não mais expectadores, mas parceiros.
Precisamos construir juntos a legenda do que se passa. A obra me pergunta e
cabe a mim levantar hipóteses sobre ela. Pronto. A obra fez uma pergunta.
Não se deixou consumir em uma fruição instantânea, não permitiu que o olhar
escorresse sem compromisso maior do que o de passar de uma cena à outra
somente confirmando nossas expectativas e impressões. A dança
contemporânea acontece num pacto entre palco e plateia. Não há emissor e
receptor, mas um fluxo que atravessa todos os envolvidos com graus
diferenciados de responsabilidade compartilhada (KATZ, 2004, p. 2-3).
Estamos em uma nova etapa do fazer artístico e da apreciação, não há mais a
contemplação, mas formas de instigar e possibilidades de construir juntos. Parece que as
barreiras na relação entre artista e público em uma obra artística foram desfeitas e no lugar há
uma parceria, um constante diálogo que pode levar a novas direções.
72
Em acordo com as ideias de Ostrower (1990), todos os acontecimentos históricos que
foram moldando o ser humano e mudando a humanidade, o entendimento de si, do outro e da
vida de forma geral, ampliaram a visão dos seres e sua compreensão do mundo e da existência.
Todas as descobertas e conhecimentos acumulados nos trouxeram até nosso atual estágio
evolutivo da era da comunicação, e é possível através das artes ao longo das diferentes
décadas perceber todas as mudanças sociais, culturais, econômicas, tecnológicas, filosóficas e
demais aspectos que envolvem a humanidade.
Assim sendo, a arte contemporânea em todos os seus segmentos é o resultado de todo
esse acúmulo de conhecimento e mudanças, o reflexo de como estamos e somos hoje, mesmo
que ainda seja algo indeterminado, um momento transitório e talvez decisivo para a existência
da raça humana e de nosso planeta. Talvez seja a hora de dialogarmos mais, percebermos
mais, participarmos mais como nos propõe a arte contemporânea.
2 CAPÍTULO - PROCESSO DE CRIAÇÃO: OLHARES DIVERSOS
2.1 Processo de criação em Arte
Os estudos de processo de criação se configuram de forma complexa devido à
existência de relações e inter-relações entre diferentes signos dentro de um mesmo processo.
Para uma melhor compreensão dessas inter-relações buscamos apoio na ciência da Semiótica
através dos estudos semióticos de Peirce (1977), de Lúcia Santaella e Vieira (2008) e Cecília
Almeida Salles (1998).
Para Peirce (1977, p. 94) “um signo ou representamem, é algo que sobre certo aspecto
ou de algum modo representa alguma coisa para alguém”. Para o autor signo tem um
significado amplo podendo ser um objeto, uma palavra, uma imagem, um gesto, ele os dividiu
73
em três grandes categorias que denominou de segunda tricotomia dos signos que diz respeito
ao signo em relação ao seu objeto:
Um ícone é qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou
uma lei, será um ícone de algo na medida em que é semelhante a esse algo e
usado como signo dele.
Um indicador é um signo que se refere ao objeto que denota em razão de
ver-se realmente afetado por aquele objeto. [...] Envolve, portanto, uma
espécie de ícone, embora ícone de tipo especial; e não é a simples
semelhança com seu objeto, mesmo sob esses aspectos, que faz dele um
signo, mas a efetiva modificação dele por força do objeto.
Um símbolo é um signo que se refere ao objeto que denota por uma força de
uma lei, geralmente uma associação de ideias gerais que opera no sentido de
levar o símbolo a ser interpretado como se referindo àquele objeto (PEIRCE,
1977, p. 101-102).
Com base na citação de Peirce sobre a segunda tricotomia dos signos, podemos dizer
que o ícone é semelhante ao objeto ou àquilo que significa como a fotografia de uma bicicleta
se assemelha a própria bicicleta. Já o indicador é um signo que o significado é esclarecido por
meio dos efeitos que seu objeto produz nele como determinado movimento pode ser o indício
de uma técnica de dança específica, indicando que aquele movimento é utilizado dentro do
repertório de movimentos da técnica, sendo assim, diretamente afetado por ela. E o símbolo se
associa ao objeto por meio de convenções especiais, é um signo que se transforma em signo
porque desta forma é entendido.
Nos estudos semióticos de Charles Sanders Peirce a semiose descrita como as
mudanças sofridas pelo signo ao longo de um processo ou também, criar e recriar
significações vêm a ser, realmente relevante nos estudos sobre processos criativos devido as
transformações sofridas pelos signos escolhidos pelo artista ao longo de um processo de
criação.
Ao se reportar sobre a Teoria Geral dos Signos, Langendonck (2004, p. 22) ressalta
que ela “é tão geral e abstrata que tem a capacidade de abranger todas as formas possíveis de
desenvolvimento e transmissão de um processo evolutivo, permitindo-nos olhar linguagens
diferentes sobre um mesmo prisma”. E acrescenta que:
O mundo é feito de diversos tipos de signos necessários à condução do
pensamento e das linguagens. Esses signos se comunicam e interagem entre
si [...]. Os documentos de processo formam uma cadeia sígnica com signos
de diversas materialidades. Esta mistura vai-se transformando ao longo do
processo. [...]. A compreensão de como esses signos se manifestam no
processo de criação de uma obra literária possibilita a compreensão das
manifestações diversificadas dos signos em outros processos de criação
(p.23).
74
A autora ressalta a relevância de se observar e levar em consideração essas relações e
inter-relações entre os signos que vão acontecendo ao longo do processo. Utiliza também
como um exemplo de base metodológica o processo de criação de uma obra literária,
afirmando a generalidade da Teoria de Peirce e trazendo a possibilidade de utilizar a
metodologia dos estudos literários para os estudos em outros campos artísticos.
Para exemplificar faremos uma relação entre a linguagem literária e a linguagem das artes
cênicas tomando como exemplo os estudos linguísticos de Jakobson.
Segundo Jakobson (2007 p. 122,123): “A linguagem deve ser estudada em toda a
variedade de suas funções. {...} dos fatores constitutivos de todo o processo linguístico, de
todo ato de comunicação verbal”. Ele se refere à ação de comunicar onde há a necessidade de
um remetente, a pessoa que envia a mensagem, que codifica o que quer dizer e o destinatário
quem irá receber e decodificar a informação.
A mensagem em si que deve estar dentro de um contexto que seja acessível àquele que
irá recebê-la para que seja mais bem compreendida, deve haver um código que seja pelo
menos em parte comum entre quem envia e quem recebe a mensagem como também o
contato ou canal físico por onde a mensagem será enviada. O autor ressalva a importância de
existir uma conexão psicológica entre remetente e destinatário capacitando-os a entrarem e
permanecerem em comunicação.
Dentro desse contexto de relações entre signos e tomando como exemplo o ato de
comunicar de acordo com Jakobson, podemos definir as artes cênicas como uma linguagem
cujos textos vêm em forma de linguagens corporais verbais ou de movimentos, sendo que
tanto a dança quanto o teatro utilizam as expressões corporais, embora de forma diferenciada.
Ao considerar as artes cênicas como linguagem da mesma forma como a linguística
tem seu código que são as letras, nas artes cênicas existem os textos falados e os de
movimentos corporais, que em algumas técnicas estão bem definidos, e como exemplo temos
a técnica do balé moderno na dança.
Cada segmento artístico apresenta sua forma particular de comunicar algo para
alguém, levando em conta que o ser humano sente necessidade de se expressar e esse ato
sempre leva a transmissão de alguma informação. Normalmente onde há comunicação existe
a função remetente e destinatário, independente da mensagem ser escrita ou não, e os
elementos que transmitem as informações, os signos de cada linguagem.
75
Mas, ressaltamos que quando nos reportamos às artes o destinatário não precisa ter
referências prévias a respeito dos signos utilizados pelo artista na mensagem, lembrando que
nas artes há uma abertura para a interpretação. O artista pode ter a intenção ou não de passar
uma mensagem, mas o que a pessoa que assiste a obra vai interpretar é livre e depende de suas
referências, conhecimentos, da maneira como percebe e compreende as coisas.
Ao nos reportarmos à arte contemporânea especificamente, a ideia de emissor e
receptor desaparece e o que acontece é uma colaboração, ambos constroem a mensagem
simultaneamente, a obra de arte contemporânea indaga o telespectador e cabe a ele levantar
hipóteses. O público não recebe uma mensagem ele constrói a mensagem simultaneamente
junto com a obra (KATZ, 2004).
Com relação a estudos de linguagens, a ciência da semiótica que surgiu no século XX,
nos chama a atenção por ser a ciência geral que estuda todas as linguagens indistintamente do
campo onde estas estejam atuando, vem demonstrando grande evolução, partindo de estudos
relacionados principalmente a criação na linguagem escrita como poemas, letras de músicas,
partituras para distintas formas de linguagem como a dança por exemplo.
A Semiótica tem por objetivo investigar “todo e qualquer fenômeno como fenômeno
de produção de sentido (SANTAELLA, 1983, p. 13,)”. Em seu estado atual inclui também os
mais diferentes segmentos artísticos, investiga as relações existentes entre os diferentes signos
que produzem a linguagem. E o que é relevante para essa investigação é a semiose, que é a
transformação sofrida pelos signos dentro de um processo de criação.
Todo processo criativo parte do ato de criar, que para Ostrower (1987, p. 09): “[...] é,
basicamente, formar. {...}. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender, e
esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar”.
Criar é ir além do banal, do comum, é ter um olhar diferente sobre algo conhecido, é
voltar o pensamento e a ação de forma a reorganizar, modificar, reestruturar utilizando
determinado conhecimento e a partir disso encontrar algo novo.
O ato criador, de acordo com Ostrower (1987), abrange a função memória do ser
humano onde ficam guardadas as inúmeras experiências vividas, todas as referências sociais,
culturais e o conhecimento apreendido ao longo de sua existência, que serve como referencial
para qualquer atividade atual.
76
Isso significa que o ser humano é capaz de relacionar passado e presente e imaginar,
podendo até mesmo com base nesses conhecimentos antever possíveis consequências futuras,
resultado de seus atos passados ou atuais.
Para criar o indivíduo parte de um conhecimento apreendido e compreendido,
relaciona esse conhecimento com as novas experiências e referências, ordenando-as de acordo
com o contexto atual ao qual se insere resignificando esse conhecimento.
Com relação à memória Ostrower (1987, p. 19) informa que:
{...} de um ponto de vista operacional, a memória corresponderia uma
retenção de dados já interligados em conteúdos vivenciais. {...}. Nota-se
uma seletividade que organiza os processos em que a própria memória se vai
estruturando.
Os dados retidos na memória são apreendidos através de diversos estímulos recebidos
a todo instante através dos cinco sentidos (olfato, paladar, audição, visão e tato), mas o ser
humano não absorve todas as informações que chegam a ele, acontece uma seleção onde só o
que interessa, ou atende as necessidades do ser é que é apreendido.
O homem relaciona os fenômenos entre eles e a si próprio, se orienta de acordo com
suas expectativas, desejos, medos e com sua ordenação interior (OSTROEWR, 1987).
A ordenação interior de cada ser está relacionada com a sua consciência, que por sua
vez, busca significados para as suas criações. E para Ostrower (1987) a consciência não é algo
acabado, nem definitivo. “Ela vai se formando a si mesma, num desenvolvimento dinâmico,
em que o homem, procurando sobreviver e agindo, ao transformar a natureza, se transforma
também” (p. 10).
Neste caso o homem é visto como um ser consciente de si e do ambiente ao redor, um
ser sensível que percebe o meio ao qual pertence através de seus cinco sentidos corporais e de
seus sentimentos, estando em constante transformação de si mesmo e do ambiente em que
atua. Usa a memória para compreender os acontecimentos partindo do ato de relacionar as
conexões entre as experiências vividas e observadas, podendo assim antecipar determinados
acontecimentos.
O homem não é apenas um ser biológico, também é um ser social e cultural, sendo
assim, não pode ser visto separadamente do ambiente ao seu redor, é esse ambiente
sociocultural que influência diretamente na necessidade, capacidade e maneira de criar do ser
humano.
77
As referências adquiridas em seu meio cultural são os fatores que formam a sua
consciência e a percepção delimita o que o homem é capaz “de sentir e compreender,
porquanto corresponde a uma ordenação seletiva dos estímulos e cria uma barreira entre o que
percebemos e o que não percebemos” (OSTROWER, 1987, p. 13).
O ser mais sensível percebe melhor o que está a sua volta, a sensibilidade pode
aumentar o potencial criativo de acordo com as ligações e inter-relações que o homem seja
capaz de fazer. Cada pessoa dependendo de sua criação, influências e formação percebe
melhor tudo o que está relacionado às suas referências, um exemplo, pode ser um artista que
se dedique a área da música e um a área da dança, o primeiro perceberá melhor as variações e
nuances musicais e o segundo padrões diferenciados de movimento, e ambos provavelmente
tem uma boa percepção rítmica seja musical ou de movimento.
Se os dois artistas passarem a trabalhar juntos em um processo de criação, por
exemplo, podem contribuir sensivelmente para uma percepção das variações possíveis nas
duas áreas, aumentando não apenas o conhecimento de cada um, mas também a capacidade
perceptiva do artista da música em relação à dança e do artista da dança em relação à música.
Criar faz parte da natureza do homem assim como a sensibilidade e a percepção, mas a
cultura determina o que esse homem terá interesse em criar, seus anseios e desejos se baseiam
nas suas referências adquiridas, nas suas necessidades, por isso a importância de olhá-lo de
forma a perceber também o contexto ao qual se insere.
O ambiente ao qual o artista pertence e com o qual se relaciona troca informações
influencia e é influenciado, é chamado na semiótica da Cultura segundo Vieira e Santaella
(2004) de Unwelt.
Com relação às referências e influências vividas pelo criador, Vieira (2007) acrescenta
que essa relação de troca com o ambiente interfere diretamente no fazer artístico e contribui
para os acasos durante o processo criador, que podem levar a obra para direções diferentes das
pensadas originalmente.
Existe uma ideia inicial, uma primeira programação proposta pelo criador, mas nada é
definitivo em um processo criativo, o projeto artístico pode se transformar gradativamente ou
mesmo repentinamente dependendo das experiências vividas pelo artista e das influências que
irá sofrer no percurso criativo.
Tanto os homens como o ambiente como um processo criativo podem ser vistos de
forma sistêmica com suas conexões e interconexões criadas entre o todo e suas partes ou
78
partindo das partes para o todo, a vida acontece de forma evolutiva e depois involutiva, em
um processo de crescimento e envelhecimento, é cíclica. Fazemos parte de um sistema maior,
mas também somos um sistema.
Foi a partir do surgimento das ciências sistêmicas como a ecologia, que se passou a
conhecer e estudar os diferentes sistemas existentes, partindo da ideia de ecossistema que
engloba os animais, vegetais, minerais, ou seja, os sistemas ecológicos da Terra. E após
estudos antropológicos, sociais e culturais, a ideia de sistema passa a ser usada também nas
ciências humanas com a teoria de sistemas, de acordo com os estudos de Edgar Morin (2003)
que expõe que todo sistema é aberto e complexo.
Todas as questões processuais podem ter uma abordagem sistêmica, buscando
encontrar pontos de conexão e interconexão, relações internas e externas de forma a
compreender melhor o desenvolvimento de processos.
Dentro dos estudos sobre sistema existe o termo parâmetros sistêmico, que foi
utilizado por Uyemov (1975) e mantido por Vieira e Santaella (2008) e reporta-se:
{...} aquelas características que ocorrem em todos os sistemas, independente
da natureza particular de cada um, ou seja, traços que encontraríamos tanto
em uma galáxia quanto em uma sinfonia, por exemplo, (2008, p. 32).
São características gerais inerentes a todos os sistemas, que os definem como sistemas,
como a questão da existência de conexões e interconexões, de haver uma comunicação com o
meio externo relacionado aos sistemas complexos entre outras.
Os parâmetros sistêmicos podem ser divididos em dois de acordo com Vieira e
Santaella (2008), os básicos ou fundamentais e os evolutivos, onde os básicos todo sistema
possui e os evolutivos passam a fazer parte do sistema conforme seu processo evolutivo, suas
necessidades de transformação devido a mudanças no ambiente externo e interno.
Com relação aos parâmetros básicos estes estão divididos em três, a permanência, o
ambiente e a autonomia.
Sobre o primeiro parâmetro a permanência, Vieira e Santaella (2008) informam que de
acordo com uma discussão cosmológica, reportando-se aqui a ciência das leis que regem o
universo, é uma solução encontrada pelo universo para manter a sua existência. Essa definição
aparece embasada a partir da teoria do Big-Bang que em português significa grande explosão,
essa teoria reporta-se sobre a origem e expansão do universo, e envolve questões relacionadas
à transformação termodinâmica.
79
As coisas que surgem no universo surgem para satisfazer as necessidades da
termodinâmica deste, e para que as coisas apareçam e permaneçam no tempo como um canal
de viabilização da termodinâmica é necessário que o universo provenha condições prévias
para que surja certo tipo de sistema necessário naquele momento. A essas condições chama-se
de condições de permanência (VIEIRA e SANTAELLA 2008).
A permanência está relacionada com a evolução dos sistemas e com o fato de existir
uma abertura entre o sistema e o ambiente, para que aja uma constante troca de informações
de modo que o sistema esteja sempre alerta às transformações do meio e assim possa produzir
formas de sobreviver a essas transformações, o que pode resultar em um processo de
evolução.
Outra questão proposta pela autora é que há um meio prévio com relação ao sistema
onde essas condições que permitem o surgimento de novos sistemas atuem localmente, esse
meio que também é um sistema é o ambiente, sendo este o segundo parâmetro. “É no sistema
ambiente que encontramos todo o necessário para trocas entre sistemas, desde energia até
cultura, conhecimento, afetividade, tolerância e etc.” (VIEIRA e SANTAELLA 2008, p. 33).
É através do segundo parâmetro, o ambiente, que se evidencia que há a necessidade de
se ter uma abertura no sistema para que aconteça a troca de informações e mesmo surjam
novos sistemas, pois o ambiente ao redor do sistema também é um sistema e sofre alterações.
Se os diversos sistemas existentes não estiverem aptos a se adaptar as mudanças, correm o
risco de se extinguirem.
O terceiro parâmetro informado por Vieira e Santaella (2008) é a autonomia, que se
refere aos estoques de informações criados a partir da interação entre o sistema e seu
ambiente. Estas informações abrangem todas as áreas do conhecimento, vão desde questões
biológicas, como físicas, como filosóficas etc., esses estoques garantem formas de
permanência ou sobrevivência do sistema e possuem um caráter histórico, gerando a função
memória.
Os sistemas precisam acumular informação por ser um fator que influencia para a sua
permanência, sendo uma necessidade o registro e acúmulo das modificações ocorridas no
ambiente de forma a formar um banco de dados que pode ser acessado a qualquer momento
para a resolução de possíveis problemas, esse acúmulo de informação pode ser comparado a
um mecanismo de defesa.
80
Com relação aos parâmetros evolutivos, Vieira e Santaella (2008, p. 35,36) informam
que eles exprimem temporalidade nos sistemas e são:
A composição [...] consiste naquilo de que é formado o sistema. [...], a
conectividade [...] capacidade que os elementos do agregado (m) têm em
estabelecer relações ou conexões. A estrutura {..,} o número de relações
estabelecidas no sistema até um determinado instante de tempo.
A integralidade [...] quando as relações são estabelecidas entre os elementos
que vão compor o sistema; a funcionalidade que se relaciona ao fato de
subsistemas serem também sistemas, sendo que esses subsistemas
contribuem para o funcionamento do sistema de forma integrada; a
organização ocorre quando o sistema desenvolve sua conectividade de
forma a se tornar integral e funcional.
Os parâmetros sistêmicos explicam o que é, como se formam, organizam e funcionam
os sistemas, ajudam a uma compreensão interna e causal desse mecanismo complexo.
Cada parte que compõe um sistema tem a sua função de forma a contribuir para a
permanência deste, e os sistemas mais complexos são compostos por inúmeros subsistemas
que colaboram para o seu funcionamento de forma integrada e para a interação com o
ambiente em que se insere. A partir das trocas de informações com o todo ao redor e da
capacidade de armazenar informação é que o sistema produz conhecimento enviando novas
informações.
Todo ser vivo constitui um sistema complexo que existe em determinado ambiente
influenciando e sendo influenciado por este de forma a armazenar e produzir informação.
Com relação à complexidade, Vieira (2006) coloca que todos os parâmetros sistêmicos
são permeados pela complexidade e esta atua como um parâmetro livre, não há ainda um
conceito definido para a complexidade que seja aceito de forma consensual pela comunidade
científica, o que se apresenta em diversos estudos de diferentes áreas da ciência como a física,
biologia, filosofia entre outras, são definições que se reportam a formas de complexidade.
Também ressalta que uma forma de compreender melhor a complexidade seria adotar
um enfoque ontológico sistêmico, onde os sinais obtidos da atividade científica seriam
tratados como sistema organizado de signos.
Seria uma visão sistêmica da natureza do objeto de estudo, organizado e analisado
através dos seus componentes sígnicos.
Cordeiro (2008) concorda com Vieira quando se refere à complexidade como um
parâmetro livre “uma qualidade ou característica do sistema que flutua no decorrer de todo o
seu processo evolutivo [...]” (p. 131).
81
A complexidade implica diversidade, transformação, reestruturar, mudar conforme as
necessidades se apresentem, é um fator que propicia a permanência que até então é o objetivo
principal de todo sistema.
Os processos criativos são complexos e não há como se ter uma previsibilidade
fechada com relação a eles ou uma certeza absoluta sobre esses sistemas, pois, os diversos
fatores que ele próprio contém e que estão ao redor dele implicam conexões e interconexões
variadas e até mesmo inusitadas que causam transformações em todas as partes do todo, o que
impede qualquer afirmação precisa.
Uma forma de se estudar os sistemas é observar seu funcionamento, as causas e efeitos
que resultam nas transformações que ele sofre ao longo de sua existência ou em determinado
período desta, pois os sistemas são complexos, acumulam, geram e trocam informação com o
meio, estão em constante mudança se adaptando ao ambiente ao qual pertencem, são
imprevisíveis.
Nas artes cênicas também conhecidas como efêmeras onde as apresentações
acontecem ao vivo, não há a possibilidade de se repetir uma apresentação exatamente como
foi à anterior devido a diversas influências externas e internas sofridas pelos artistas, e por
modificações referentes ao próprio meio ao redor. O texto, o figurino, a história e o cenário
podem ser os mesmos, mas a apresentação é diferente, o espaço utilizado apresenta pequenas
alterações, o tempo, a atuação dos artistas, o público também é diferente.
Podemos verificar bem essas pequenas mudanças quando temos um espetáculo em
cartaz por um tempo determinado, este está em temporada, e se o público acompanha as
apresentações de um espetáculo durante uma temporada consegue perceber algumas pequenas
variações que acontecem nas cenas, porque eles já conhecem a sequência, guardaram na
memória nuances, detalhes das apresentações anteriores e estão mais atentos para perceber as
diferenças.
Após vermos um pouco sobre o que é sistema e sua complexidade a partir dos estudos
semióticos de Vieira e Santaella (2008), podemos dizer que os seres vivos são sistemas
complexos, o ser humano, com sua mente, corpo e alma formam um sistema, o corpo humano
por si só já se constitui como um sistema complexo, que faz parte da dança sendo este o meio
para se criar e expressar dentro dessa arte.
82
O processo de criação que também é um sistema complexo acontece com a ligação e
organização de diversos referenciais vividos que colaboram para a criatividade do ser. Para
Ostrower (1999):
A fonte da criatividade artística, assim como de qualquer experiência criativa
é o próprio viver. Todos os conteúdos expressivos na arte, quer sejam de
obras figurativas ou abstratas, são conteúdos essencialmente vivenciais e
existenciais ( p. 7).
Os processos criativos acontecem partindo de referências internas e externas do ser
criador, que envolve seus desejos e anseios e toda a influência exercida pelo seu meio
ambiente, principalmente social e cultural. Sendo que o acaso é outro fator importante nesse
processo.
Ostrower (1999, p. 3), afirma que: “Antes de mais nada , há o grande acaso na vida de
cada pessoa, que é a sua própria existência”. Então o acaso faz parte da natureza do homem
levando em conta o fato de sua própria origem e nascimento estarem vinculados a isso.
Sobre o acaso, Ostrower (1999) expõe que o homem vê uma imagem de relance ou
ouve um som que lhe chama a atenção por algum motivo que nem ele próprio sabe explicar,
ficando guardado em sua memória até que um dia vem à tona novamente, e ele compreende
que aquilo que ele viu ou ouviu por acaso faz parte ou vem completar todo um contexto que
ele estava buscando materializar ou resolver.
Na verdade o próprio acaso e o fato de ele acontecer de forma perceptível só é possível
pela incessante busca do inconsciente em resolver ou encontrar o que se está procurando, pois
o subconsciente estava trabalhando para isso.
Assim como o cérebro funciona como uma teia de neurônios que se interconectam e
passam informações entre si e para o resto do corpo, os processos criativos acontecem e se
desenvolvem a partir de inúmeras conexões e interconexões, utilizando os mais diversos
referenciais.
Na dança, o elemento mais importante é o corpo, com toda a capacidade de articulação
entre suas partes, os movimentos, os fatores espaço temporais internos e externos, toda a sua
constituição complexa.
As possibilidades de movimentações específicas do ser humano em conformidade com
a sua anatomia e biomecânica, formam um sistema. Assim como os códigos de movimentos
gerais e os específicos de cada estilo de dança e os elementos ou signos da composição
coreográfica e processos de criação. Outros sistemas são o ambiente ou Unwelt de cada
83
intérprete/criador individual ou os ambientes comuns a todos os envolvidos em um processo
criativo.
O corpo compõe o sistema informacional na dança e constitui-se em relação ao
sistema coreográfico como um subsistema fundamental (MARTINS, 2007, p. 134). Ele
compõe o sistema dança como um subsistema mantendo uma conectividade e troca de
informação com este.
Sobre o sistema coreográfico Martins (2007, p.132) informa que:
Para existir, o sistema coreográfico requisita, necessariamente, os parâmetros
fundamentais apresentados na Teoria Geral dos Sistemas. Permanência,
ambiente e autonomia, associados a ideia de existência, espaço e
cooperatividade, possibilitam firmar o argumento que supõe a coreografia
enquanto sistema. {...}. Os parâmetros evolutivos – composição,
conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização são, em
princípio, parâmetros que acontecem ao longo do tempo em direção a
complexificação do sistema, por aquisição de informação .
Pode-se dizer que dança é sistema, pois esta é composta por todos os parâmetros que
compõem um sistema, tanto os fundamentais quanto os evolutivos. O ambiente reporta-se ao
corpo, espaço e tempo, a cooperatividade relaciona-se aos subsistemas como corpo,
movimento e com a possível troca de informação entre eles. E a permanência relaciona-se
com organização e complexidade, pois, quanto mais organizada for uma coreografia dentro de
sua complexidade maior as chances de esta virar uma referência e permanecer como um
repertório, tradição estética ou produção atualizada.
Ao que se refere à conectividade, Martins (2007, p. 132) expõe:
Conectividade é posterior à composição e implica seletividade. [...]. O
parâmetro conectividade confere inteligência ao sistema através da sua
competência em selecionar ou rejeitar elementos favoráveis ou prejudiciais
ao sistema por uma qualidade de predição.
Assim, a conectividade implica a existência de coerência entre os elementos
selecionados, de haver uma consistência entre as partes, de serem feitas escolhas inteligentes
que contribuam para o bom funcionamento ou que sejam a favor do sistema de forma a
contribuir para a sua permanência.
A dança é e acontece de forma sistêmica assim como o próprio ato de pensar e criar,
partindo de fragmentos aparentemente desconexos e que no decorrer das relações propostas
vão se mostrando complementares e formando um todo coerente, que seria a obra do artista,
sendo esta o resultado de uma apropriação de um conhecimento e da relação deste com todas
84
as referências às quais foi exposto, buscando transpor esse conhecimento e informação
utilizando a linguagem poética que neste caso está dentro da estética da dança.
2.2 Processo de criação na dança
A dança faz parte da história da humanidade desde seus primórdios e vem sofrendo
influências e modificações de acordo com a evolução, organização e reorganização do ser
humano e das sociedades. Pode ser definida como “... um sistema de signos que permite a
produção de significados” (MARQUES, 2010, p. 36). Uma linguagem que se expressa através
do movimento onde há um conjunto de elementos com inúmeras possibilidades de serem
combinados.
A arte dança é formada por diferentes códigos de movimento que juntos compõem a
linguagem gestual característica dessa expressão artística, há também códigos específicos,
próprios de cada estilo como, por exemplo, o da dança moderna ou da dança do ventre.
Callanzas (2008, p. 34) afirma:
Dançar sentindo e pensando, é vivenciar uma maior consciência do sentido e
da torção dos ossos, do movimento das articulações, das cinturas escapular e
pélvica e da relação entre ambas do tônus e deslizamento muscular, da
sensibilização da pele. Dançar é trabalhar com transferência de apoios, com
percepção do peso, da direção, com micro e macro movimentos, com
alteração de planos, de intenções, de intensidade.
Estando em acordo com a autora acreditamos que a dança é um estar presente,
sentindo o momento, percebendo a si mesmo e o todo ao redor, o corpo e a mente estão
conectados entre si e com o meio em volta. Os movimentos podem ser soltos, o intérprete
pode se deixar levar pela música entre outras possibilidades infindas, mas há uma
intencionalidade, existe uma proposta, o corpo está sendo conduzido pelo bailarino, há um
controle, uma atenção, uma consciência sobre o corpo, o espaço, o tempo e sobre seus
próprios limites.
Dentro da técnica de Klauss Vianna estudada por Neves (2008), o corpo do intérprete
é visto como um corpo consciente, principalmente a respeito de seu próprio reportório de
movimentos, e isso é alcançado a partir desse estar presente, percebendo-se e percebendo o
ambiente, buscando suas referências vividas para criar e desenvolver performances.
85
O trabalho de Klauss Vianna é voltado tanto para o bailarino quanto para o ator,
buscando a personalidade própria de cada intérprete, estando esta forma de trabalhar dentro
do contexto contemporâneo em que a dança se situa.
Já para Rudolf Laban (1978) a dança é movimento, movimento este em que consiste
uma intencionalidade, que foi estudado, experimentado dentro de um sistema préestabelecido, codificado, sem deixar de fora a movimentação cotidiana em que se baseiam
seus estudos.
Em suas pesquisas em dança moderna Laban (1978) encontra na movimentação
cotidiana a base para a pesquisa e o ensino em dança, mostrando a pessoas comuns, que não
possuem técnicas de dança que todos podem dançar através do uso dos movimentos utilizados
no dia a dia, sendo a dança coral uma das pesquisas mais importante de sua trajetória como
pesquisador e coreógrafo e para o ensino em dança. A dança coral se apresenta como um
trabalho de pesquisa coreográfica realizado por um grande número de pessoas, bailarinos e
não bailarinos ao mesmo tempo.
Os autores citados trabalham a dança de forma orgânica, Klauss Vianna partindo da
técnica que os intérpretes já dominam e explorando as possibilidades de cada um e assim
como Laban faz uso da percepção. Já Laban apresenta uma técnica específica criada por ele
dentro da dança moderna e tomando como referência a movimentação cotidiana das pessoas
durante suas atividades comuns como andar, sentar, comer, cozinhar entre outras.
É relevante ressaltar que a dança pode estar inserida em vários campos da sociedade,
como um fator social, ajudando na socialização, interação entre pessoas e grupos, relacionada
à saúde ajudando na consciência sobre o próprio corpo, no condicionamento físico, na postura
corporal, na flexibilidade e mobilidade dos movimentos do corpo e na autoestima de seus
adeptos, sejam crianças, jovens, adultos ou pessoas idosas. Não há limite de idade, e cada
pessoa pode encontrar o melhor estilo para as suas necessidades ou desejos.
Destacamos que os fatores consciência corporal, autoestima, socialização, estão
relacionados diretamente com a educação, ajudando na aprendizagem, estimulando a
criatividade o cuidado consigo mesmo e com o outro, a si perceber e a perceber o outro,
entrando em questões éticas e sociais.
Laban ao longo de sua vida fez grandes contribuições para a dança educação
abarcando diferentes fatores sociais que a atividade dança envolve como a colaboração,
principalmente quando relacionada a grupos, sejam estes amadores ou profissionais, o que
86
leva a um pensar em comunidade, em um bem estar e sucesso comum ao grupo, e essa
vivência, esse aprendizado é levado para onde quer que o membro do grupo circule na
sociedade, no seu ambiente familiar, escolar, profissional e círculos de amizades.
A prática da dança quando conduzida por um profissional capacitado e consciente de
suas responsabilidades sociais em muito pode vir a contribuir para uma sociedade melhor, ou
seja, um ambiente mais humano, de respeito e colaboração.
O aprendizado na dança, que engloba todas as partes de um todo e suas conexões leva
a um pensamento sistêmico e a uma prática sistêmica, pois o corpo humano já é um sistema e
tem que interagir com os diferentes (ambientes) sistemas ao redor.
Dentre os diferentes estilos de dança o de principal interesse dessa pesquisa por estar o
objeto desse estudo dentro dessa modalidade é a dança contemporânea, que se apresenta como
uma nova maneira de se pensar esta arte, não havendo modelos definidos em relação à técnica
ou aos corpos que dançam. Existe a necessidade de se ter uma proposta com base em
pesquisas. Muitas são as possibilidades e recursos para se criar em dança contemporânea.
É possível perceber nas obras de dança contemporânea características que a
identificam como a abertura para a experimentação e utilização de diferentes técnicas
artísticas e de outros campos do conhecimento. Essas obras podem se apresentar de forma
temporal ou atemporal, linear e não linear e as singularidades e características próprias de
cada intérprete são evidenciadas.
Para Meireles e Eizirik (2008, p. 87) a dança contemporânea:
[...] parece ser menos um estilo e mais um apanhado de princípios que
incluem: a individualização de um corpo e gesto sem modelo que
exprimam uma identidade ou projeto insubstituível; a produção e não
reprodução de um gesto a partir da própria esfera sensível de cada
dançarino ou de uma adesão profunda ao ponto de partida de alguém; a
pesquisa e o trabalho sobre a matéria do corpo; a afirmação da gravidade
como mola propulsora de movimento e a não-antecipação da forma.
As autoras colocam que ocorre a desconstrução e reconstrução do corpo do bailarino,
este precisa criar consciência de que tem alguns hábitos de movimento para deixá-los de lado
e conseguir adquirir nova movimentação corporal. Também há uma apropriação da ideia e
elementos propostos pelo criador de modo que esses intérpretes atuem como cocriadores,
sem que se perca a identidade de quem propôs o trabalho.
87
Neves (2008), em seus estudos sobre o pensamento do coreógrafo e pesquisador
Klauss Vianna expõe que ele defendia um tipo de trabalho aberto, “a ser desenvolvido no
corpo daqueles que o levavam para a vida e para a arte. {...} Aquele que propicia, dá
ferramentas para que o outro desenvolva algo cujas possibilidades já trazem em si (p. 38)”.
Klauss Vianna com sua forma de ver, pensar e ensinar dança consegue pontuar de
forma clara como é a dança hoje, onde por mais diferentes que sejam os processos criativos
no campo da dança, há sempre a possibilidade de desenvolver o potencial do intérprete pelo
coreógrafo para a proposta do trabalho, valorizando as características do intérprete e
enfatizando a personalidade do criador.
Num processo de criação é necessário conhecer a linguagem e as ferramentas que
serão utilizadas e no caso da dança a linguagem de movimento, as técnicas de composição
coreográfica e as metodologias para a dança contemporânea.
Retomando a afirmação de Marques (2010, p. 36) que: “A dança é um sistema de
signos que permite a produção de significados”. O coreógrafo vai utilizar determinados
signos para gerar significados que serão diferentes dos signos utilizados, e que para ele
representarão algo, mas para o público que tem referenciais diferentes será outra
interpretação.
Por exemplo, o espetáculo “Lecuona” do Grupo corpo montado em 2004, traz como
referência principal as músicas do cantor cubano Ernesto Lecuona, são canções fortes com
tonalidade melancólica que se reportam a relacionamentos entre casais, o coreógrafo
escolheu representar os sentimentos que trazem as canções de Ernesto através de vários pasde-deux onde dançam um bailarino e uma bailarina, com apenas um grupo de quatro casais,
utilizando movimentos advindos da dança de salão Tango e movimentos do moderno e do
clássico, sendo este último à base da técnica dos intérpretes.
Na cena da valsa está em cena um casal com figurino de cor preta realizando por
alguns momentos uma sequência coreográfica dramática e em seguida entra um casal com
figurino de cor branca e ambos os casais começam a dançar a valsa, a cena continua com
outros casais que entram em cena quase que de forma imperceptível ficando apenas casais
com figurinos brancos. É uma cena muito poética, parecendo se reportar aos maus e bons
momentos de um relacionamento. Mas isso depende das referências de cada pessoa, levando
o público a se reportar as suas próprias experiências vividas, despertando assim, emoções
diferenciadas.
88
Marques (2010) também apresenta a dança como sistema “quer dizer que ela é um
conjunto organizado de elementos e suas possibilidades de combinação (2010, p. 36)”. Isto
viabiliza um número infinito de possibilidades de criações de acordo com cada criador e
cocriadores.
Dentro do sistema dança a função memória é acionada pelo criador e cocriadores
para buscar referências que colaborem com o processo de criação, ajudando a relacionar as
informações e referências e mesmo esclarecer questões referentes à pesquisa do trabalho. Os
elementos que se apresentam a partir da função memória vão sendo organizados,
reorganizados, relacionados com outros elementos e estruturas para criar uma obra.
Sobre os diferentes signos que formam as linguagens Santaella (1983, p. 58) em
acordo com os estudos de Peirce (1997) esclarece: “O signo é uma coisa que representa outra
coisa. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir
outra coisa diferente dele”. Ao olhar para uma fotografia de determinado movimento, vê-se
apenas a representação daquele movimento e somente em parte e não ele exatamente como
é.
Com relação à dança, por exemplo, se o signo escolhido for uma palavra ou frase ele
terá que ser traduzido para a linguagem do movimento, se apresentando de forma
diferenciada para cada criador, e neste caso o criador um, por exemplo, utilizará signos
diferentes do criador dois para falar do mesmo assunto.
Santaella também coloca que o signo representa apenas em parte um objeto para um
intérprete e na mente deste é gerado “um signo ou quase signo, ocorre um processo
relacional que se cria na mente do intérprete (1983, p. 58)”. O resultado dessa interpretação é
outro signo que traduz o primeiro, e este é chamado de interpretante.
Então um determinado movimento de dança como o demi plié (pequena flexão dos
joelhos), por exemplo, é o objeto dinâmico, a fotografia desse movimento é o signo e a
interpretação que o intérprete faz ao olhar a fotografia é o interpretante.
Na criação em dança é necessário à vivência do processo criativo e entre os recursos
utilizados, para que aconteça a composição coreográfica, além do uso das diversas técnicas
de dança que envolve os fatores do movimento que são o tempo, espaço, peso, força e
planos. Dentre estas, a técnica de Laban (1978), se destaca por enfatizar o estudo desses
elementos na movimentação cotidiana do indivíduo, de forma a propiciar ao bailarino uma
89
maior consciência corporal e conhecimento teórico-prático, dando suporte para a pesquisa e
para o processo criativo do intérprete criador.
Também são usados os elementos de composição coreográfica como: o rondó, o
espelho, a improvisação, o retrocesso, o acaso, a metáfora entre outros.
De forma resumida, o rondó é quando uma frase de movimento é repetida durante
uma célula coreográfica; o espelho caracteriza-se pela execução de movimentos onde um
bailarino está de frente para o outro como se dançassem com o espelho, o que ocasiona
movimentos simétricos. O acaso acontece por seleções aleatórias das movimentações dos
intérpretes, direções e demais fatores do movimento (NEVES, 2008).
Segundo Lobo e Navas (2008):
O improviso se da por impulsos, mas é um processo estruturado, acontece
fiel a nossa individualidade, conduzindo-nos de acordo com regras
inerentes a nossa própria natureza. {...} improvisamos a partir do que está
inscrito no corpo pelas nossas percepções, sensações, memórias e por todo
tipo de relações com o meio ambiente (p. 119).
Durante os exercícios de improvisação, o coreógrafo conhece mais sobre seus
bailarinos, assim como, eles também a respeito de si próprios, e isso ocasiona uma abertura
para a busca e a descoberta de novos caminhos, tanto para a vida, como para a arte.
Já no retrocesso, se cria uma frase e esta será repetida de trás para frente; tema e
variação, a partir de uma ideia se cria uma frase tema e depois são feitas variações como
trocar o ritmo, o tempo, o espaço (LOBO e NAVAS, 2008, p. 134). O que pode mudar
completamente a visão que se tem da composição coreográfica, existem vários trabalhos
com um restrito número de movimentos e muitas variações dos mesmos.
Santana (2006, p. 13-15), em seu trabalho de pesquisa coreográfica “Pele”, utiliza
três metáforas do imaginário popular que são o mito de “Prometeu” o de “Frankenstein” e
“Neuromancer”. Para referenciar a sua pesquisa envolta nesses conceitos da evolução da
humanidade, com relação à imersão do ser humano nas suas criações tecnológicas, a
projeção do corpo no ciberespaço, na figura do avatar, a linguagem do cinema e da Web, em
um trabalho de dança que acontece ao vivo utilizando o real e o virtual.
A metáfora gramaticalmente significa a “substituição de uma palavra por outra, com
base em uma semelhança; é uma comparação sem junção comparativa: Ela é um taco de
sinuca” (metáfora), ou seja, é como um taco de sinuca (comparação) (PIMENTEL, 2008, p.
31).
90
Durante os exercícios criativos, o coreógrafo já está experimentando o potencial dos
bailarinos, e as possibilidades de criação dentro da proposta ou possível tema da obra. É no
decorrer dessas atividades que acontecem em um ou vários ambientes e cujos participantes
vem impregnados pelas suas relações sígnicas das suas semiosferas de convivência, que o
trabalho vai tomando formas e direções variadas até que uma seja escolhida, ou se deixe o
processo sempre em aberto, apresentando sempre novas possibilidades a cada apresentação.
Todos esses exercícios que fazem parte do processo criador podem estar registrados e
servir como documentos de processo. Sendo que:
O olhar científico procura por explicações para o processo criativo que
esses documentos guardam. {...} Retira-se da complexidade das
informações que oferecem o sistema através do qual esses dados estão
organizados. {...} É feito, desse modo, um acompanhamento crítico
interpretativo dos registros. O movimento do olhar nasce no
estabelecimento de nexos entre os vestígios. O interesse não está em cada
forma, mas na transformação de uma forma em outra (SALLES, 1998, p.
19).
Cabe ao pesquisador a preparação para que se faça a análise dentro da pesquisa
proposta de modo a perceber detalhes de como o processo de criação foi acontecendo, quais
os elementos que o artista usou e como ele foi fazendo as ligações entre eles até chegar à
obra. Sendo que essa análise acontece apenas em partes da obra e não em toda a obra.
Para que aconteça uma investigação de um processo é importante que o pesquisador
compreenda o que é processo, como ele acontece e quais as suas partes. O fato de o
propositor da pesquisa ter vivenciado ou estar vivenciando esse ambiente criativo lhe
permite uma maior apropriação do tema e mais fundamentos para o discurso.
Sobre processo de criação artística Ostrower (1999) expõe:
Ao criar o artista não precisa teorizar a respeito de suas vivências, traduzir os
pensamentos e as emoções em palavras. Ele tem mesmo que viver a
experiência, incorporá-la em seu ser sensível, conhecê-la por dentro. Daí,
espontaneamente, lhe virá a capacidade de chegar a uma síntese dos
sentimentos – naquilo que a experiência contém de mais pessoal e
universal—e de transpor essa síntese para uma síntese de linguagem,
adequando as formas ao conteúdo (p. 17).
O que leva um indivíduo a criar algo parte de inquietações pessoais que podem ser
compartilhadas por determinado grupo, são questões que persistem de forma consciente ou
inconsciente e o levam a busca por uma possível resposta e a expressar de forma mais
concreta esse sentimento, essa descoberta ou apenas esse questionamento.
91
Torre (2005) ao reportar-se sobre os limites do campo criativo chama atenção para a
direcionalidade e intencionalidade como elementos delimitadores da criatividade e expõe que:
“O momento culminante da iluminação costuma ser precedido por uma fase escura de
afastamento, esquecimento e incubação. Toda obra ou realização deve ter passado
previamente por uma fase de criação, questionamento e pesquisa” (TORRE, 2005, p. 55).
A criação e a própria criatividade são vistas como um processo que acontece ao longo
de um tempo, partindo de fatores motivadores que provocam ou estimulam essas capacidades
que são atributos dos seres racionais. E Torre (2005, p. 55) ressalta que “a criatividade é o
potencial humano de gerar ideias novas dentro de uma escala de valores e comunicá-las”.
O artista independente de sua área de atuação apresenta uma sensibilidade mais
apurada, tem uma tendência a estar sempre em alerta e com certa abertura para receberem e
compreenderem melhor as mensagens que chegam até eles, mantém uma curiosidade aguçada
e estão sempre buscando algo, uma resposta, um link que venha a contribuir ou esclarecer
uma inquietação que levará a solução de uma questão ou possível criação de um novo projeto
artístico.
Para os artistas da área de dança tudo também pode ser visto a partir da linguagem de
movimento, por isso a grande preocupação em aprimorar sempre o instrumento de trabalho,
seu próprio corpo e o de seu elenco, assim como os suportes que compõem as cenas da obra
como cenário, figurino, iluminação, tecnologias.
Outra preocupação é com o diálogo e a coerência entre todas essas linguagens, para
que o resultado se aproxime do esperado pelo ou pelos criadores e consiga de alguma forma
passar a mensagem ou representar a inquietação motivo da criação artística.
A arte da dança demonstra uma grande capacidade de contribuir para o
desenvolvimento do ser humano e sua capacidade de inclusão, assim como a maioria das
formas artísticas, dependendo de como estas forem trabalhadas. Quando há um trabalho
envolto em uma base na pesquisa de forma consciente de tudo o que se está estudando e
utilizando, aumenta a eficácia nesse processo de desenvolvimento e inclusão, contribuindo
para uma sociedade melhor.
Não importa se a dança é de cunho social ou apenas artístico ela sempre poderá atuar
nesses dois seguimentos, o artístico e o social e dialogará com outros campos artísticos. Os
estudos de processos criativos e de práticas corporais cotidianas podem contribuir para o
92
autoconhecimento de uma cultura ou para ampliar o conhecimento ao se reportarem a culturas
diferentes das locais.
3 CAPÍTULO - PROCESSO DE CRIAÇÃO DE “RITO DE PASSAGEM”
A obra “Rito de Passagem” foi concebida e produzida em 2007, quando a
Índios.com Cia de Dança foi contemplada com o prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna.
Estreando em 2008, a obra levou a companhia a vencer outros editais como o projeto “Palco
Giratório” patrocinado pelo SESC, de cunho nacional (COSTA 2013).
O Palco Giratório apresenta-se como o maior projeto de circulação nacional de teatro
e dança promovido no Brasil pelo Serviço Social do Comércio - SESC. Pela participação
nesse projeto a companhia de dança apresentou a obra “Rito de Passagem” 33 vezes em mais
de 25 cidades em todo o Brasil, tornando-se a primeira companhia independente de dança do
Amazonas a realizar uma circulação desse porte (COSTA, 2013).
A Índios.com Cia de Dança foi inicialmente composta por uma maioria de intérpretes
femininas e atualmente apresenta um número similar de intérpretes masculinos e femininos.
Desde o início da companhia havia o interesse em se aprofundar em uma proposta que
utilizasse diferentes técnicas de dança e advindas de outros campos como o esportivo e
circense.
Um fator que contribuiu para a companhia de dança optar e se firmar com a técnica
do rapel e do tecido foi para ter uma maior opção de espaço tanto para treino como
apresentações, levando a companhia a estreitar a relação da dança com a técnica do rapel
para criar uma dança aérea já existente em outras partes do país e do mundo, mas ainda era
uma novidade na cidade de Manaus.
O primeiro trabalho da companhia que apresenta em todo o contexto da obra as
técnicas do rapel e do tecido foi “Por um Fio”, vencedor de edital com circulação nacional
trazendo maior visibilidade e reconhecimento para a companhia, que veio a se tornar
pioneira com essa proposta de trabalho em Manaus.
93
A companhia já estava em um período de maior amadurecimento artístico quando a
obra “Rito de Passagem” começou a ser criada pela coreógrafa, propiciando a criação de um
solo que foi um divisor na forma de criação, apresentação e proposta a qual a companhia
estava habituada, trazendo a pesquisa para um contexto mais cultural. E, devido à maioria
dos integrantes da companhia ser mulheres nesse período, a coreógrafa optava por criar
trabalhos pensando nessa composição centrada na mulher.
A obra “Rito de Passagem” apresenta questões relacionadas ao ambiente
sociocultural indígena e urbano quando a coreógrafa apresenta em cena referências que se
reportam a esses dois mundos, como a figura da mulher indígena e urbana em seus
ambientes, sendo que a mulher urbana aparece de forma mais sutil.
Para criar a obra “Rito de Passagem” a artista buscou referencias a partir da pesquisa
que fez para sua dissertação de mestrado 1 sobre as danças Baniwa. Também utilizou as
vivências da infância no interior do Estado do Amazonas onde tinha como exemplo e
referencia sua mãe, suas avós e tias, todas elas mulheres criadas dentro da cultura ribeirinha e
muito trabalhadoras. A característica física indígena foi herdada do pai, descendente direto de
indígenas. Outras referências foram às mulheres da cidade, com suas vidas urbanas, com
menos contato com a natureza e cujo fator tempo é sempre muito importante.
O contexto sociocultural e as práticas corporais da mulher indígena são demonstrados
com maior ênfase, a coreógrafa traz como referência também suas raízes da mistura étnica e
cultural do índio com o colonizador. Implica também questões globais, pois apresenta um
pouco do contexto urbano, o uso de novas tecnologias, o multiculturalismo (pluralismo
cultural).
Segundo a coreógrafa a mulher indígena e sua importância na formação social na
Amazônia foi um dos interesses para a criação da obra, para trazer para a dança a temática
regional sobre as influências da cultura indígena na cultura ocidental.
Com relação ao seu processo criativo Yara declarou que a ideia fica por um bom
tempo apenas no campo do pensamento, e conforme ela pesquisa e experimenta coisas que de
1
Um maior interesse para a criação da obra “Rito de Passagem” segundo a própria artista, surgiu a
partir de suas pesquisas durante o curso de mestrado em composição coreográfica na Universidade Técnica de
Lisboa Faculdade de Motricidade Humana em Portugal, cujo título da pesquisa era “Análise das danças
Baniwa: Uma reflexão sobre a dinâmica identitária e cultural dos povos indígenas da Amazônia”.
94
certa forma se remetem a proposta que está surgindo, começando a tomar forma, é que ela vai
transportando a ideia para um plano mais concreto até surgir o projeto.
Sobre os trajetos percorridos em processos criativos Salles (2002) esclarece que:
Uma visão semiótica nos permite falar de construção de uma
representação que da a conhecer uma nova realidade, com
características que lhe vão sendo atribuídas pelo artista. Seu esforço é
o de fazer visível àquilo que está por existir – um trabalho sensível e
intelectual executado por um artesão. Um movimento feito de sentir,
agir e pensar, sofrendo intervenções do consciente e inconsciente. A
criação mostra-se como uma metamorfose contínua (p.191).
A inquietação já está presente na mente do criador, o que o leva a buscar em um
primeiro momento mais de forma inconsciente caminhos que o levem para possíveis soluções
da realização de seu desejo, e um segundo momento passa a apresentar interesse em tudo que
se reporte a sua busca, sejam objetos, pessoas, acontecimentos, projetos entre outros. Nesse
percurso de sentir, agir e pensar, as ideias vão clareando e se modificando até chegar a uma
forma mais concreta e dentro das possibilidades do artista.
Após um período vivenciado pela artista, de inquietação, em que a ideia de criar a obra
surgiu a partir do desejo de falar sobre o contexto amazônico com maior propriedade, mas
sem saber exatamente o caminho a ser seguido, por onde começar, o que foi esclarecido após
a pesquisa teórica e a prática de campo na comunidade indígena no período do mestrado. A
artista pode criar o projeto e um roteiro para o desenvolvimento da pesquisa e construção da
obra.
A produção da obra “Rito de Passagem” segundo a artista ficou dividida em sete fases:
1ª Fase: estudo do contexto cultural abordado na obra (pesquisa bibliográfica, pesquisa de
campo e criação do roteiro).
2ª Fase: Pesquisa de movimento, seleção musical, pesquisa do figurino e cenário, filmagens,
seleção e edição das imagens.
3ª Fase: Gravação dos textos falados (apenas som), definição dos suportes tecnológicos que
seriam utilizados para projetar as imagens, som, equipamentos do rapel, equipamento da
técnica do tecido, definição do figurino, do cenário, das imagens editadas que seriam
utilizadas e da seleção musical e sons (vozes).
4ª Fase: Seleção do que realmente seria utilizado em cena a partir de experimentações com o
que já havia sido produzido.
95
5ª Fase: colaboração de artistas convidados nas cenas já estruturadas, buscando outros olhares
sobre o que estava sendo produzido.
6ª Fase: Ensaios da obra semiconcluída.
7ª Fase: Período de amadurecimento da obra durante a turnê a partir do vencimento do edital
de circulação nacional Palco Giratório em 2009.
Uma parte do período de criação da obra, apresentado pela coreógrafa também como a
primeira fase da produção da obra, teve início durante os estudos e pesquisas no mestrado e ao
finalizar o curso pode se dedicar com mais ênfase a pesquisas específicas para concretizar e
estruturar a obra e compor as cenas. Estão incluídas nessa fase algumas anotações/reflexões
da pesquisa para a obra “Rito de Passagem”, feitas pela coreógrafa em dois de seus cadernos
de anotações, estando em meio a diversificados textos, dentre estes atividades vivenciadas no
período do mestrado em Lisboa.
A segunda fase teve como foco principal a pesquisa de movimento junto com os
integrantes da companhia através de experimentações propostas pela coreógrafa, tendo como
base as observações do cotidiano das mulheres indígenas da comunidade pesquisada, que foi a
de Pana Pana no alto Rio Negro da etnia Baniwa.
A coreógrafa se reporta a esse momento da pesquisa como rica e exaustiva, pois os
ensaios eram totalmente voltados para as experimentações de movimento a partir das
orientações propostas por ela, cada um inclusive ela experimentava sua própria sequência
utilizando a improvisação, buscando maior afinidade com o tema, tentando se aproximar da
experiência da convivência que apenas a coreógrafa teve.
Durante os laboratórios de movimento para a criação da obra, Yara percebeu que a
maior parte das experimentações deveria partir de seu próprio corpo, devido à vivência que
teve com as comunidades indígenas. Selecionou então três de suas intérpretes que integravam
a companhia há mais tempo para ajudá-la em suas experimentações corporais, observando a
movimentação da coreógrafa e ajudando-a a encontrar o que ela queria.
Ainda na segunda fase, paralelo a pesquisa de movimento foram realizadas as
filmagens seguindo as indicações do roteiro, entre os elementos do vídeo estão à intérprete
caminhando em um ambiente de floresta, o elenco de apoio, as bailarinas Rose Rosa,
Alessane Negreiros e Carol Santa Ana caminhando em ruas da cidade, imagens de fetos no
útero materno, imagens de guerra.
96
Todas as imagens foram capturadas pelo integrante da companhia e esposo da
coreógrafa Ednaldo Passos que também capturou o som das vozes dos demais integrantes do
elenco e de uma convidada indígena que atua no teatro, falando palavras chaves relacionadas
à obra como mulher, rito, corpo, transformação, índio, desconstrução entre outras. As palavras
foram pronunciadas na língua Portuguesa, Tukano, Tuyuka, Dessana e Baniwa.
Toda a parte de imagem incluindo a edição foi uma realização de Ednaldo Passos
quem editou o vídeo que é projetado na grande tela vazada de cor branca parecendo uma
cortina cortada em tiras na vertical.
Na terceira fase após a concepção e experimentação de algumas ideias e propostas,
tudo foi tomando forma e se concretizando. A coreógrafa buscou selecionar dentre todos os
materiais que estavam sendo experimentados os que estavam funcionando melhor em cada
cena. Dentre esses materiais estão todos os suportes tecnológicos (imagens, sons,
equipamentos esportivos, figurinos, cenário, objetos cênicos), pois cada um tem sua
importância e destaque nas cenas, também selecionou a trilha sonora já sugerindo as
mixagens.
A quarta fase foi de tomadas de decisões, com a obra toda estruturada Yara pode ter
uma visão mais geral do todo e definir o que realmente continuaria o que melhor funcionou
para a obra e o que seria descartado das cenas.
A quinta fase foi o momento de buscar outros olhares sobre o todo, chamando alguns
dos artistas que colaboraram com a obra em determinados aspectos e momentos para
assistirem o todo e passarem suas impressões, apesar de terem conhecimento do contexto e
desenvolvimento da obra não estavam tão imersos quanto à criadora e intérprete.
Entre os artistas e parceiros que foram convidados a assistir estava o amigo, professor,
médico e artista Ricardo Risuenho, companheiro de outros trabalhos artísticos, que também
venceu alguns editais nacionais relacionados a dança contemporânea, foi um dos grandes
colaboradores para a montagem da obra “Rito de Passagem”, ficando responsável pela
elaboração da iluminação, também colaborou na criação do roteiro e em algumas cenas com
codireção.
Partindo da observação de algumas obras de Risuenho, ele parece buscar
embasamento na dança teatro para realizar um trabalho corporal com seus intérpretes, o que
pode ajudar a tornar as suas obras mais expressivas, a parceria entre Yara e Risuenho é antiga,
pois a coreógrafa já atuou como intérprete em alguns trabalhos criados por ele, o que
97
possibilitou a artista uma vivência e conhecimento com esse treino corporal utilizado pelo
colega.
Em seus projetos artísticos Yara busca parcerias com profissionais do teatro, da dança,
de iluminação entre outros para que colaborem durante o processo criativo e com as demais
partes que juntas compõem um trabalho de artes cênicas como a iluminação, trilha sonora,
cenário e figurino. Dependendo da proposta do criador todos esses elementos mantêm uma
relação dentro da obra.
Nesse espetáculo o elenco de apoio Carol Santa Ana e Rose Rosa, ficou nos bastidores
atuando na segurança da dança aérea para quem está no ar não se machucar e também
participando ativamente das performances aéreas com a técnica do rapel aumentando ou
diminuindo a distância da intérprete do chão de acordo com a coreografia. Esse processo
mostra a corda como uma extensão do corpo e fazendo a conexão entre a intérprete e as duas
bailarinas que estavam contribuindo com a coreografia elevando ou devolvendo a intérprete
ao chão no tempo certo.
A sexta e penúltima fase citada pela coreógrafa foi a pré-estreia onde aconteceram
diversos ensaios para que tudo estivesse encaixado, os vídeos no tempo certo, as células
coreográficas, as duas pessoas da segurança que também colaboram com o desenvolvimento
da sequência de movimentos, o som, a luz enfim é um momento de afinação, das coisas se
encaixarem da melhor forma possível, da intérprete e equipe acertar o tempo das cenas e
seguirem do começo ao fim em harmonia.
A sétima e última fase aconteceu durante as apresentações da Caravana Nacional do
SESC e sobre esta a coreógrafa informou que foi um momento de crescimento e
amadurecimento da obra, cada apresentação tinha sua própria forma, ela ia se percebendo
mais madura na cena e mais preparada para realizá-la, ou seja, em uma turnê há uma maior
apropriação com relação à proposta, há a possibilidade de fazer pequenas variações, também
existem alguns imprevistos, a mudança de local e público que neste caso foi uma constante
com uma grande variação de cidades.
Quando um intérprete está em turnê ele pode observar as nuances e transformações de
sua performance se ele se dispõe a isso, se o corpo não se acostuma ele se coloca em maior
prontidão, os sentidos e propriocepções podem ser estimulados e o intérprete pode aprimorar
sua técnica e seu desempenho.
98
Para que pudéssemos nos aproximar do processo da criação, recorremos aos
documentos de processos disponibilizados pela coreógrafa.
Os documentos de processos segundo Salles (1998) são os registros do processo
criador. Para Zago (2002, p. 32) os documentos procuram dar conta de toda a materialidade
do processo criativo, que observada pelo geneticista, a partir da análise interpretativa desta
ação, ata conexões e relações de atuação processual.
3.1 Documentos de processos
3.1.1 Cadernos de anotações
Durante a pesquisa de movimento para a dança aérea e que também fez parte do
processo criativo para chegar a “Rito de Passagem” Yara fez algumas anotações sobre
diferenças e semelhanças entre a arte da dança e o esporte radical rapel, as características de
cada um compreendendo melhor o que é a dança aérea, como esses conteúdos podem ser
mesclados, trabalhados, reorganizados. Como criar dança para esse espaço que não é natural
para o homem.
Para uma organização do material pesquisado retirado dos cadernos de anotações da
coreógrafa, estes estão numerados de acordo com a ordem em que aparecem no texto.
Fig.01 documento 1 de processo da pesquisa em dança aérea de Yara Costa.
99
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Transcrição da figura 1:
Ligam e diferenciam no contexto de motricidade humana (Xang, Luis).
RAPEL/ESPORTE
1 -- Não há compromisso com a estética
além de que se trabalha para a segurança
do praticante,
2. Ação/adrenalina,
3. Fim,
4. Espaço próprio,
6. Tempo preciso.
6. Regras.
Leitura complementar:
texto dança ............
X
DANÇA/ARTE
1. Precisa ver/ter estética,
2. Produção/criação,
3. Meio,
4. Espaço aleatório,
5. Tempo vivido em cada momento,
6. Liberdade.
2 categorias: dança, rapel, tecido.
– Parâmetro de classificação: organização
temporal
100
A) Tempo cinético: dependendo da altura (ou da distância da ancoragem) o tempo pode ser mais rápido ou
mais lento.
B) Tempo ...........: (simétrico ou assimétrico) depende do que o coreógrafo idealizar. No rapel, isso será
condicionado pelo grau de segurança do rapelista-bailarina tiver, ou se joguem mais no movimento ou não.
C) Tempo narrativo: tempo utilizado.
O documento da figura 01 evidencia as dúvidas da artista sobre a nova modalidade de
dança e o esforço em compreender bem as diferenças e possíveis semelhanças buscando se
aprofundar e se apropriar do conhecimento para assim mesclar os dois e a partir desse
entendimento e conhecimento criar sequências coreográficas em dança aérea.
O rapel é uma técnica esportiva de descida seja em ambientes naturais (cachoeira) ou
urbanos (prédios) e uma das maiores preocupações nesse esporte é com a segurança do
praticante. Bem diferente da dança onde há uma grande valorização da estética, o tempo não é
o de cada intérprete e sim o criado pelo coreógrafo entre outras diferenças.
Nessa parte da pesquisa Yara percebe que o tempo da dança no espaço aéreo é
diferente do da dança no térreo e que existem alguns fatores relevantes como o fator cinético,
a distância da ancoragem (parte em que a corda fica presa ancorada) e a distância do
equipamento e do artista do solo.
Na figura 02 a coreógrafa também buscou fazer uma relação de técnicas possíveis de
serem utilizadas, classificando quanto às possibilidades de movimentos, objetivos de cada
técnica, tentando esclarecer o que realmente poderia ser definido como dança aérea, chegando
à possibilidade de ter uma dança vertical e uma aérea.
Fig.02 documento 2 de processo da pesquisa em dança aérea de Yara Costa.
101
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Transcrição da figura 2:
Durante a execução do movimento passar a mensagem que a coreógrafa deseja expressar no movimento.
Obs.: O rapel em si é como no atletismo (p. 306, Charles L. Baile’s. Dança), pois também é organizado
exclusivamente no tempo cinético.
Segundo Charles L. Baile’s “Não pode ser considerado dança um fenômeno que não tenha os 3 tipos de
organização temporal cinético, narrativo e de ...................., que porém são suplementares ao tempo de medida
em que a dança é organizada”.
------------------------------X---------------------------------------CLASSIFICAÇÃO
(POSSÍVEL)
Isso é
1. RAPEL,
DANÇA
2.TECIDO,
VERTICAL!
3. CAMAS ELÁSTICAS,
pois não
4. PECONHA
temos o corpo
o tempo todo
solto no ar.
Para ser aéreo – deveria ser uma dança que deixasse o bailarino no ar o tempo todo.
102
Yara parte de uma pesquisa teórica buscando uma diferenciação entre dança vertical
em que ainda se mantêm contato com alguma superfície, por exemplo, uma parede, e a dança
aérea onde não há contato com superfície alguma. Observa as diferenças ou similaridades no
fator tempo de cada modalidade, sempre buscando certa relação com outras técnicas, no caso,
a circense ou a ginástica olímpica (tecido e cama elástica/acrobacia) além das práticas
corporais cotidianas, neste caso ribeirinha ou indígena, como a subida em árvores para
apanhar frutos com o uso da peconha (material feito de palha usado como suporte para a
subida).
Em outro momento da pesquisa para a dança aérea (figura 03) temos uma notação (ou
escrita em forma de símbolos de movimentos coreográficos) de passos da dança aérea
buscando visualizar as possibilidades e definir nomes para os movimentos.
Na figura 03, a coreógrafa desenha possibilidades de movimentos na dança aérea
descrevendo-os, fazendo comparações com movimentos de animais, nomeando-os, um
exemplo, é o nome “cristo” ou “T” dado ao passo em que a bailarina se posiciona com o
corpo na horizontal como se estivesse deitado e abre os braços lembrando a figura do Cristo
crucificado ou a letra “T”.
Ainda na figura 03 aparecem orientações da coreógrafa sobre a necessidade de realizar
contrações em alguns movimentos nas sequências coreográficas.
103
Fig.03 Documento 3 notações (símbolos representando movimentos) em dança.
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Transcrição da figura 3:
NOMES:
1. INVERTIDO
BAILARINA
GRAND ÉCART NA CORDA DE CABEÇA
PARA BAIXO;
2. CRISTO OU T
NA HORIZONTAL COM O CORPO EM T
104
3. DIAGONAL
PODE-SE FAZER C/ O IMPULSO DO CAMBRÉ GIRAR EM TORNO DA CORDA
DESCENDO COMO UMA COBRA
OU
4. ARCO
PODE-SE TENTAR FAZER GIROS COMO RODA
DINÂMICA DOS GIROS: DE ONDE VEM?
5.
Z
CONTRAÇÕES P/ ESTENDER E FLEXIONAR
JOELHOS
6. T
C/ PERNA FLEXIONADA
7. GIRAR EM TORNO DO MEU EIXO – TRABALHANDO PERNAS NA LATERAL – COMO GATO
PROCURANDO O RABO
8. CAMINHAR NA PAREDE – MERGULHAR E CAMINHAR COM AS MÃOS NA PAREDE – DE
COSTAS
Cada coreógrafo tem sua forma de fazer registros dos movimentos coreográficos
também chamados de notações de dança, podem ser feitos de forma particular ou o coreógrafo
pode seguir uma notação pré-estabelecida. Existem estudos específicos sobre notações do
movimento e pesquisadores que criaram seus próprios sistemas como o coreógrafo, bailarino
e pesquisador austríaco Rudolf Laban que criou o Labanotation, conhecido em diversos países
e que exige um conhecimento maior sobre os estudos de Laban.
Após vivenciar um período de pesquisa, experimentação e criação em dança aérea
acrescentando também a técnica circense de tecido em seus espetáculos, Yara adentrando em
105
suas investigações do mestrado busca uma aproximação maior com a cultura regional e
indígena e aparecem os primeiros esboços do que viriam a ser a obra “Rito de Passagem”.
Na figura 04 aparecem às reflexões da coreógrafa sobre a movimentação do índio, o
uso do espaço, as intensões possíveis na movimentação, preocupação com questões
relacionadas a rituais, sobre identidade, talvez um caminho para se chegar a uma identidade,
homem/índio/artista. Também há uma reflexão sobre possibilidades de adereços para compor
cenário, levantar características próprias dos indígenas e dos bailarinos.
Fig.04 Documento 4 (anotações relacionadas à pesquisa sobre o índio para “Rito de Passagem”).
106
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Transcrição da figura 4:
ORIGEM
ÍNDIO
ADEREÇOS
MÚSICA
RITUAIS
RAÇA INDÍGENA
HISTÓRICO
HOJE
ONTEM
SIGNIFICADO/movimento
PROCESSO
LEVANTAMENTO
CARACTERÍSTICAS
INTRÍSECAS
ANÁLISE
TEMPO
ESPAÇO
MOVIMENTO
DO MOVIMENTO
PURO DO ÍNDIO
ÍNDIOS
OBJETO
TEMPO
DANÇA
ESPAÇO
RITUAIS
FORMA
P/
DEPOIS
chegar
a uma identidade!
Ressaltamos que desde a vivência durante a pesquisa de campo quando a ideia de criar
uma obra com temática cultural indígena realmente tomou forma, como é possível verificar
nos primeiros esboços nas anotações da coreógrafa, a obra foi sendo visualizada de maneira
integral, ou seja, os elementos, as referências e as experiências vividas pela artista foram se
ligando, interconectando.
3.1.2 Técnica aérea em processo
Um dos primeiros contatos que a coreógrafa Yara teve com a dança aérea foi através
da reportagem sobre o projeto e grupo de mesmo nome Bandaloop, através da revista
Smithsonian (fig. 05). Dica de uma companheira que participava do mesmo grupo de rapel que a Yara
107
o AGAM (Anjos Guerreiros do Amazonas) e viu a coreógrafa experimentando possibilidades
de executar movimentos de dança no rapel.
Bandaloop é um projeto que envolve artistas de diferentes áreas, esportes radicais, do
circo, da dança e da ginástica. Esses artistas/atletas fazem performances em diferentes lugares
com destaque para as que acontecem em ambientes naturais em lugares inusitados como
grandes cachoeiras, montes entre outros.
Fig. 05 Documento 05, recorte de reportagem sobre dança aérea.
Fonte: arquivo pessoal de Yara Costa (Revista Smithsonian 2000).
Transcrição e tradução da figura 05:
Dançando no Ar
COM CORDAS DE NYLON E NERVOS DE AÇO, O PROJETO BANDALOOP
APRESENTA NO ALTO ACIMA DAS MULTIDÕES
Na figura 06 a performer Kimm aparece de acordo com as pesquisas de Yara Costa
realizando uma performance de dança vertical, pois há contato do corpo com uma superfície
que no caso é a parede de uma cachoeira. A artista realiza movimentos de grande extensão o
que facilita a visualização de quem a assiste, demonstra muita tranquilidade e domínio das
técnicas utilizadas, o que só uma pessoa bem treinada e acostumada com as práticas
esportivas radicais pode ter diante de um ambiente natural que apresenta uma beleza
envolvente que pode levar a uma distração e risco se não houver autocontrole, conhecimento e
domínio técnico.
108
Fig. 06 documento 06 (recorte reportagem sobre o grupo Bandaloop).
Fonte: acervo pessoal de Yara Costa (revista Smithsonian 2000).
Transcrição do texto da figura 06:
Dancer Kimm F. Ward
looks carefree despite
the chilly spray from
Yosemith Falls and the
2,500 feet between her
and the valley floor.
Tradução do texto da figura 06:
Dançarina Kimm F. Ward
parece despreocupada apesar do
gelado borrifo da
cachoeira Yosemite e os
2,500 metros entre ela
e o chão do vale.
109
No documento da figura 07 a coreógrafa apresenta diferentes questionamentos dentro
de sua pesquisa em dança aérea, com relação à transitoriedade das técnicas, quais as técnicas
que podem ser utilizadas e quais as que melhor se encaixam para um trabalho em dança aérea,
a importância dos equipamentos e suportes tecnológicos. Como adaptar as movimentações
das técnicas do rapel e do circo para a dança, as limitações e outras possibilidades de
movimento e criação que os equipamentos apresentam.
Fig. 07 Documento 07 pesquisa para a obra “Rito de Passagem”.
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
110
Transcrição da figura 07:
Trabalho de pesquisa
Título: a dança aérea e a transitoriedade de técnicas: o hibridismo da arte contemporânea.
1. Subprojeto: do rapel a dança aérea: transitoriedade de técnicas, do suporte e da função.
2. P/ sistemática: técnicas utilizadas para dança aérea – qual me da melhor suporte de
trabalho?
3. Sistematização do movimento na dança aérea: circo, esporte radical (RAPEL É ESCALADA
ARTIFICIAL)
(TECIDO).
(+) ou (-)
TÉCNICAS CIRCENSES
DANÇA
CORPO
AÉREA
GINÁSTICA ARTÍSTICA
CULTURAS
HÍBRIDO
ESP. RADICAIS
POPULARES
OUTROS:
INDÍGENAS
CENÁRIOS
OBJETOS.
1º Observação
a liberdade de criação no rapel só é limitada pela forma do material utilizado (cadeirinha) e
depende da altura em que se propõe estudar o movimento. [Yara Costa].
“O que faz uma habilidade motora geral transformar-se numa habilidade motora específica”.
O rapel e o tecido foram selecionados para a pesquisa específica aérea, a ginástica
artística também apresenta movimentos acrobáticos em aparelhos que estão presentes no circo
e todas as três técnicas trabalham força, equilíbrio, acrobacias e a dança aérea está se
desenvolvendo a partir dessas bases.
E mais especificamente sobre a pesquisa cultural a artista se reporta a cultura indígena,
entre a mistura das diferentes técnicas no corpo do intérprete pode-se chegar a um corpo
híbrido, que apresenta características de diferentes práticas corporais em sua performance.
Nesse documento da figura 07 a coreógrafa tráz uma forma mais concreta do projeto
buscando a interação do intérprete com os objetos cênicos característicos da cultura indígena.
Mostra o cuidado na interligação das cenas e de criar uma história para a personagem.
Esses registros escritos feitos pela coreógrafa em diferentes períodos nos ajudam a
conhecer uma parte do processo de criação de “Rito de Passagem” e a perceber como que
111
diferentes referências em momentos distintos vão se interconectando conforme ela consegue
visualizar um todo maior,
descobrindo caminhos para materializar suas inquietações,
questões.
Ostrower (1990) nos esclarece que os insights não ocorrem por acaso, são o resultado
de todo um acúmulo de informações tanto do inconsciente como do consciente em um esforço
conjunto para ajudar a encontrar uma resposta que muitas vezes ainda se encontra no campo
do inconsciente.
Os estudos de processo de criação colaboram para um conhecimento a respeito de
como nosso cérebro funciona, como organizamos o pensamento, percebemos e processamos
as coisas, as informações para criarmos algo.
No documento 08 Yara escreve a estrutura do que posteriormente veio a ser o projeto
de extensão para o grupo de estudos em dança aérea que continua em plena atividade na
Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Agora em outro estágio das pesquisas, existe
um grupo de iniciantes, um intermediário e um avançado, e conta com a participação
principalmente dos alunos do curso de dança e teatro da UEA.
Fig. 08 documento 08 anotações sobre a criação do grupo de estudo em dança aérea.
Fonte: acervo pessoal de Yara Costa.
Transcrição da figura 08:
Projeto (Título): Grupo de Estudo em Dnaça Aérea Índios.com.
Nº horas / semana : 6 horas
Participantes:
x
Local : Salão de Dança (1) / Área externa
Do prédio Samuel Belchimol
112
(EAT) .
? Data : (início) :
Natureza : Investigação de movimento aéreo
executado no rapel.
No documento 09 a ex-integrante da companhia Carol Santa Ana ainda durante os
estudos de movimento para a dança aérea no projeto de extensão da UEA relata sua percepção
a respeito da experiência na pesquisa, enfatizando os cuidados que o intérprete deve ter com a
preparação adequada, com a segurança e vencer os medos para que consiga realizar uma boa
performance na modalidade.
Fig. 09 documento 09 relatório de participação no grupo de pesquisa aérea.
113
Fonte: Acervo pessoal de Yara Costa
Transcrição da figura 09:
devi ser adaptados para
não
que sua forma fique
boa e sua execução também.
O trabalho da dança aérea , requer muita preparação, cuidado e prin-
114
cipalmente dedicação, pois o
nervosismo, o medo e a insegurança podem ser claramente
percebidos pelo público.
Carol
3. Cenas em processo
Podemos perceber na figura 10, que a coreógrafa já formava uma ideia a respeito de
como poderia ser o cenário, o figurino, os adereços, a movimentação, a composição da obra já
estava presente em sua totalidade, mas ainda sem conexão estabelecida, sem a reorganização,
a ressignificação que realmente transforma a realidade e as experiências vividas em um
trabalho artístico.
No documento da figura 10 Yara apresenta elementos da cena em que se reporta a
reclusão da menina moça e apresenta também idéia para o figurino trazendo a figura do
pássaro, mas com forma humana. Nessa cena são muitos os sentimentos e pensamentos
que a artista buscou se reportar, apresenta diversos elementos que se completam e
misturam deixando esse turbilhão de informações bem aparente, não apenas nos elementos,
mas, na mistura de técnicas e mesmo na escolha da música.
A figura que lembra uma caixa pode estar representando em um primeiro momento o
que na obra é a maloca que além de fazer parte do cenário também é utilizada como objeto
cênico. Yara apresenta em diferentes momentos do trabalho uma relação com a terra, o
chão e o transcender, com o aéreo.
Na maioria das cenas em que se refere ao cotidiano indígena e mesmo aos dois rituais
distintos como é o caso dessa cena especificamente, a artista apresenta de forma positiva,
lúdica, com certa proximidade com essa vivência do dia a dia.
O desenho que lembra uma palmeira está relacionado à primeira cena em que a
coreógrafa faz uma referência a colheita do açaí. A palmeira ficou representada por uma
corda trançada de espessura grossa.
Fig. 10 Documento 10 Primeiras anotações sobre a obra “Rito de Passagem”.
115
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Transcrição da figura 10:
Estudos,
2006.
Lisboa
Dança -- tecnologia
[PENA]
-- Pena de pássaro,
-- Pena de sentimento (piedade),
-- Pena de morte.
Ornamentos, instrumentos de caça e vestimentas.
REFLEXÃO
pássaro
sentimento
TUBILHÃO
voo
transcender
vencer a gravidade
morte
destruição do índio
cultura,
história
vidas
chão
Teia de significado
O documento número 11, a seguir, se reporta a ideias soltas. Tráz o elemento
escolhido tanto como parte do cenário como objeto cênico que é o cesto de palha e
116
especificamente na última cena a intérprete/criadora dança interagindo com diferentes
cestos indígenas.
A coreógrafa ao se reportar ao cotidiano e aos ritos de passagem da vida da mulher,
optou por se reportar mais especificamente a mulher indígena, criou uma estória
apresentando as transformações corporais que não deixam de estar ligadas a questões
emocionais, sociais e culturais.
Fig. 11 Documento 11 pesquisa para a obra “Rito de Passagem”.
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Transcrição da figura 11:
Projeto: índia (solo)
Ideias soltas:
1 interação com imagens/ objetos,
projeção nos objetos
p/ dar continuidade
a cena inicial da
dança com a história
a ser contada.
dança
É importante observar nessas anotações que são produzidas durante um
processo de criação que não há uma ordem, elas surgem conforme os pensamentos se
encaixam e possibilitam uma visão de partes do que virá a ser a ser a obra. São fragmentos
de pensamentos que começam a se organizar conforma as respostas vão sendo encontradas
na mente do criador impulsionadas também pelos estímulos externos.
3.1.3 Equipamentos em processo
117
Outro ponto importante na criação da obra foram os equipamentos utilizados para as
performances aéreas dentre os quais temos o equipamento do rapel (cadeirinha, mosquetão,
freio e corda).
Na figura 12 Yara aparece em um treino de rapel ao ar livre, utilizando todos os
equipamentos necessários e com o acompanhamento de um profissional na segurança do
rapelista, caso a pessoa que está descendo perca o controle ou aconteça algum acidente o
segurança tem a possibilidade de frear e fazer com que esta desça em segurança.
Fig. 12 Yara descendo no rapel em uma ponte.
Fonte: arquivo pessoal de Yara Costa.
Na imagem da figura13 Yara está em uma ponte pesquisando movimentos para a
dança aérea sem nenhum contato com alguma superfície/parede. Buscando firmar a diferença
entre o que seria a dança vertical onde há contato com uma superfície e a dança aéra onde não
há esse contato, o corpo está solto no ar apenas preso pelo equipamento como se flutuasse. As
possibilidades de movimentos sofrem variações pois na dança aérea o movimento parte dos
impulsos do corpo e de como este consegue interagir com a corda principalmente.
Na execução da técnica do rapel e principalmente a do tecido o performer utiliza para
equlibrar o corpo a musculatura do abdômen e da costa, os braços e pernas além de atuarem
no deslocamento também controlam a velocidade dos movimentos assim como no chão, mas
sem o apoio.
Fig. 13 Yara treinando movimentos para a dança aérea.
118
Fonte: arquivo pessoal de Yara Costa.
Na próxima figura, a de número 14 temos uma imagem de cunho ilustrativo para uma
visualização em parte de como é a movimentação de um caboclo ribeirinho descendo em um
pé de açaí. Um suporte muito utilizado tanto por indígenas como pelos caboclos para auxiliar
na subida e descida é a peconha, que é confeccionada com a própria palha do açaizeiro apenas
trançada.
Se usa a peconha apoiando-a entre os dois pés e no açaizeiro de forma que os pés
tenham um apoio e não escorreguem no tronco da palmeira, os braços também são necessários
para manter o corpo junto ao tronco da árvore e para puxar o corpo na subida e segurá-lo na
descida.
Normalmente sobe-se com um facão preso a boca para cortar a base que sustenta o
fruto que fica presa na árvore e ao descer o caboclo ou indígena trás o fruto em uma das
mãos se apoiando e segurando com a outra.
Fig. 14 Caboclo descendo do pé de açaí.
119
Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702012000300014
Em uma das cenas da obra (fig. 16) a palmeira do açaí foi representada por uma
grande corda trançada de espessura grossa onde a intérprete/criadora Yara se reporta ao
movimento de subida para apanhar o fruto e na sequência da movimentação faz uso da técnica
circense do tecido.
Ressaltamos além da referência a prática corporal, a diferença de suporte, a árvore é
estática e firme diferente da corda (espessa, móvel) que por sua vez é diferente do tecido de
malha (flexível, macio) e normalmente são utilizados dois um do lado do outro que oferece
maior apoio.
Outro equipamento utilizado na obra é o tecido confeccionado com uma malha
resistente e elástica, na obra a coreógrafa optou por utilizá-lo por trás do painel branco e
vazado na cena em que ela se reporta a maternidade.
Em “Rito de Passagem” o equipamento do rapel tem destaque, pois é utilizado em
várias cenas e grande parte das sequencias coreográficas foram criadas em cima das
possibilidades que dançar no ar utilizando este equipamento permitem.
A dança aérea vem sendo um dos focos da pesquisa de movimento realizada pela
coreógrafa há mais de dez anos e a Índios.com Cia de Dança é a principal referência na cidade
120
de Manaus. E segundo a própria criadora “Rito de Passagem” foi a realização de um sonho
antigo de unir a dança aérea com a temática cultural amazônica.
Cada equipamento teve sua importância no processo criativo, pois toda a sequência de
movimento em que eles são utilizados precisaram ser criadas a partir de experimentações com
eles e conforme as possibilidades de cada um.
O cenário também influenciou na criação da sequência de movimentos da obra e além
de ser composto pelos objetos cênicos e suportes tecnológicos como as cordas, equipamentos
de projeção (computador, retroprojetor) e iluminação conta com o pano de fundo que é uma
tela com cortes verticais parecendo uma cortina onde as imagens são projetadas. E na cena
referente a maternidade a coreógrafa utiliza o espaço atrás da tela, onde seus movimentos
estão relacionados com as imagens que estão sendo projetadas na tela a frente dela.
Os objetos cênicos utilizados na obra foram os cestos indígenas de palha trançada de
diferentes etnias, o único da etnia Baniwa é o que a coreógrafa aparece carregando no vídeo e
no início da primeira cena quando ela entra no palco.
Segundo a coreógrafa na escolha musical ela optou por uma seleção de músicas de
grupos e cantores diferentes que foram: Grupo masculino Timbo 2 (Aldeia Metutire Timbo ),
Ngthautumau – Cláudia Tikuna, Coracio de Bufalo – Keco Brandão, Epuwanay Yarakiri
Eseponto – Mekuxi Serenkato, Keeping Warm – Mereth Monk, Canto das Mulheres – Sa
Brito e Bady Assad, as falas Simone Saoul Sa Brito e integrantes da Índios.com. Edição de
Ednaldo Passos utilizando o programa Nero.
O processo de criação proposto pela coreógrafa dentro da Índios.com Cia de Dança é
coletivo, todos contribuem com suas pesquisas de movimento dentro da proposta da
coreógrafa, mas, “Rito de Passagem” foi uma exceção devido à escolha do tema e também ao
fato de ser um solo, exigindo uma vivência para que se apresente uma maior propriedade e
verdade em cena e somente a coreógrafa teve essa vivência em uma comunidade indígena.
Outra intérprete que dançou esse solo foi a bailarina Rose Rosa que chegou a presentar
a obra quatro vezes, três durante a turnê nacional após vencimento do edital de circulação
nacional Palco Giratório e mais uma vez em Manaus pelo Festival de dança contemporânea
MOVA-SE de solos, duos e trios um pouco antes de deixar de fazer parte da Índios.com
Companhia de Dança.
Em entrevista cedida à pesquisadora Olvídia Dias no ano de 2012, a artista Yara Costa
que criou, dirigiu e interpretou a obra na maioria das apresentações, esclarece que a grande
121
dificuldade que sente enquanto intérprete-criadora está relacionada à direção, pois considera
muito difícil se autodirigir em cena, quando se encontra nessas duas posições ao mesmo
tempo de intérprete e criadora, conta com a participação de membros do grupo e de parceiros
convidados para colaborar em alguns momentos durante o processo de criação.
3.2 Corpo e performance
Os figurinos criados para a obra foram pensados de forma a ajudar a destacar as
referências das culturas indígenas em cada cena, assim como complementar o contexto
apresentado e colaborar com a movimentação, com exceção de uma peça, o vestido de
algodão, cujo propósito era o de não deixar tão evidente o equipamento do rapel. Os figurinos
fizeram parte da pesquisa da composição coreográfica, pois devido ao uso dos suportes
tecnológicos os figurinos devem ser pensados com cuidado e testados para que a
movimentação possa fluir tranquilamente.
Cada cena apresenta um elemento que se destaca seja com relação a movimento,
equipamento, música, figurino entre outros. As cenas de “Rito de Passagem” apresentam
figurinos que se reportam ao tradicional e também uns mais criativos. Alguns como a tanga de
missanga (fig.21) compõem a cena e outros como o casaquinho furta cor e a saia trançada,
completam a cena fazendo parte da performance seja de forma sonora ou enaltecendo os
movimentos.
A criação e produção do figurino se deram em parceria entre Yara e o artista plástico
Adroaldo Pereira, a coreógrafa expôs a ideia principal e detalhes que seriam interessantes
serem ressaltados em cada cena e ele criou em cima da proposta resultando em seis peças.
Observamos três momentos de destaque da obra “Rito de Passagem” dentro de um
contexto mais geral, que são a descoberta do corpo representando a passagem de menina para
mulher, a transformação vivenciada na maternidade e a maturidade representada pela anciã
com toda a sua experiência e visão sobre a vida, essa é a parte da obra onde há uma maior
utilização de objetos cênicos artesanais.
O trabalho coreográfico foi dividido de forma mais detalhada e técnica pela coreógrafa
em 8 partes, algumas compostas pela projeção de imagens que completam as cenas da obra,
um exemplo é a primeira cena que começa com a projeção de um vídeo que podemos
considerar o início desta. A descrição da obra apresentada a seguir se baseou no vídeo registro
122
da obra filmado no ano de 2008 no evento Laboratório Contemporâneo realizado no teatro do
SESC Manaus-Am.
Após observação do vídeo da obra, e ao perceber cada vídeo projetado durante a
performance como parte integrante de cada cena, optamos por dividir a obra em seis cenas,
lembrando que a mesma apresenta uma sequência linear que não está bem definida, podemos
ver momentos distintos da vida da mulher e em um momento específico há a referência a um
ritual indígena masculino ressaltando a transcendência que ocorre em rituais. A obra tem
como orientação e inspiração a cultura indígena de forma geral e mais especificamente
aspectos da cultura da etnia Baniwa. Dentre os quais destacamos alguns movimentos do
cotidiano como carregar o aturá (cesto grande de palha) apoiado a cabeça, lavar roupas e o
ritual de passagem masculino, todos partindo das observações de campo da coreógrafa.
Junto à descrição da obra optamos por apresentar nesta pesquisa o figurino, cenário e
objetos cênicos, destacamos também os equipamentos, sendo importante acompanhar a
indicação das figuras no texto.
No início da obra, a primeira cena começa com a projeção de imagens de mulheres
caminhando em ruas da cidade, em seguida a intérprete caminha por uma trilha carregando
um cesto indígena preso com uma alça apoiada no alto da cabeça, chamado segundo a
criadora da obra de aturá, muito utilizado para o transporte da mandioca pelas mulheres.
Yara parece estar caminhando na floresta e a trilha sonora apresenta sons de vozes
falando palavras relacionadas a questões referentes à obra dentre as quais mulher, rito,
urbano, corpo, memória, vida, transformação entre outras. As palavras são faladas em
português e em algumas línguas indígenas, a Tukano, Tuyuca, Dessana, Baniwa.
123
Fig. 15 Yara na primeira cena entrada da intérprete no palco
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
No vídeo projetado na tela aparecem alguns closes nas pernas e pés das intérpretes,
nas bolsas, na costa da Yara. Vemos pés descalços, sapatos de salto alto, sandálias, bolsas
carregadas à tira colo, o cesto na costa da Yara, caminho na mata, riacho, calçadas, rua.
A luz diminui até escurecer todo o palco por um breve momento e volta a clarear já
com a intérprete em cena caminhando com o mesmo figurino e objeto cênico que estava
carregando no vídeo (túnica colorida, calça de malha e o cesto de palha). A gravação das
vozes de pessoas falando continuam sendo ouvidas.
O ato de caminhar e a postura de cada personagem é o que nos chama a atenção nessa
cena, pois a ação de caminhar nos é ensinada na infância e conforme crescemos vamos
modificando-o de acordo com novas referências ou orientações e transformações sofridas
pelo corpo. Caminhamos conforme nos é culturalmente ensinado, aqui tomamos como base
os estudos de Marcel Mauss citado no capítulo 1 em que o autor se reporta a ação de
caminhar de diferentes mulheres pesquisadas e a hábitos aprendidos em práticas esportivas
como a natação.
O andar feminino pode dizer muito sobre os ensinamentos a respeito do que se espera
em determinada sociedade com relação à postura social da mulher, como se portar para ser
bem vista pela sociedade por exemplo.
Na obra é possível perceber a diferença principalmente pela postura corporal, entre o
andar das bailarinas que representam transeuntes nas ruas e o caminhar apresentado pela
124
coreógrafa, Yara buscou adaptar ao seu corpo dentro das possibilidades a postura do
indígena ao qual ela observou na pesquisa de campo.
A postura é ereta e os joelhos semi-flexionados, o peso parece estar bem distribuído
nos pontos de apoio dos pés que formam um triângulo na planta dos pés, os quadris bem
encaixados e o olhar não parece influenciar muito no movimento da cabeça devido à
necessidade de manter em equilíbrio o aturá cuja alça está apoiada na cabeça que pode estar
pesado ou não.
Essa forma de carregar peso parece ajudar a fortalecer e proteger a musculatura das
costas, do pescoço, pois o peso se mantido em equilíbrio fica bem distribuído e apoiado sem
levar o corpo a pender mais para um lado do que outro evitando muitos problemas posturais
ao longo da vida.
As demais transeuntes algumas de salto alto e outras com sandálias rasteiras
apresentam uma postura também ereta, mas, mais imponente, com as costas bem colocadas,
possivelmente com as omoplatas mais encaixadas que o de pessoas que não são adeptas do
balé, com essa postura o corpo fica mais alongado.
Outro destaque apresentado são os acessórios diversificados utilizados pelas
mulheres urbanas com destaque para sapatos, bolsas e roupas, o que influencia muito na
postura corporal e na forma de andar.
Se uma pessoa caminha com sandálias baixas sua postura é mais natural, similar a
como se estivesse descalça, mas se ela caminha com sapato de salto alto o peso do corpo é
deslocado principalmente para a parte da frente da planta dos pés e para os dedos, exigindo
assim uma organização postural diferente, é preciso que haja um pouco mais de esforço da
estrutura corporal para se manter de pé e em movimento.
Outra influência é a bolsa, se for uma bolsa para se carregar em um dos lados do
corpo há uma tendência natural do corpo a compensar a diferença, principalmente se estiver
pesada, a pessoa tende a subir ou baixar um pouco mais a altura do ombro onde carrega o
objeto formando uma curvatura na direção horizontal da coluna. Existem diversos estudos da
área médica que comprovam esse fato, pois normalmente a pessoa não tem total consciência
corporal para estar constantemente corrigindo a sua própria postura.
No cotidiano das mulheres principalmente de diferentes culturas indígenas, elas
carregam bastante peso, buscam água em potes, carregam os alimentos colhidos na roça e
durante as atividades como cozinhar ou descascar alimentos costumam utilizar a postura de
125
cócoras. Talvez essas atividades contribuam para uma postura encaixada, mas, sem a
preocupação com um alongamento maior.
Nas atividades da cultura indígena assim como da ribeirinha temos a colheita de
frutos da floresta e ainda na primeira cena (fig.16) Yara executa movimentos cortados com
os braços e em seguida ao chegar à frente a corda trançada, presa ao teto do lado direito do
palco na visão de quem está na plateia, ela transfere-se para o plano aéreo ao subir na corda,
descendo e subindo algumas vezes, tal como o gesto corporal de subir em um açaizeiro
(fig.14).
Fig. 16 Yara na primeira cena, subindo na corda trançada.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
A intérprete Yara sobe na corda utilizando movimentos que lembram a
movimentação do caboclo ou indígena quando sobem na palmeira para colher frutos.
Por outro lado, há a execução de uma evolução de movimentos utilizando a técnica
do tecido utilizada principalmente no circo (fig.19). Parece que a intérprete brinca com as
possibilidades de movimentação dentro da proposta metafórica, relacionada ao homem da
floresta, na coleta de frutos nativos e as práticas corporais circenses.
126
Fig. 17 Yara na primeira cena, sequência na corda trançada.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Ainda na primeira cena, Yara muda de plano novamente, voltando para o solo e
retirando do cesto a parte que sustenta o fruto açaí na palmeira, o talo, e o utiliza como um
objeto cênico, a intérprete parece explorar as possibilidades de utilização deste. Na primeira
movimentação executa movimentos de cima para baixo acompanhando as espécies de
varetas do objeto lembrando a movimentação de debulhar o fruto (tirando ele do suporte
natural).
A bailarina também movimenta o objeto cênico como se estivesse varrendo o chão,
lembrando o movimento das mulheres indígenas que varrem as folhas do chão utilizando
essa parte que sustenta o fruto na palmeira e realiza movimentos que trazem o objeto a frente
do corpo e o levam para trás do corpo, o encostando nas costas.
O figurino utilizado nesta primeira cena é uma túnica de malha estampada com várias
cores que lembra vestimentas de etnias da Guiana e segundo a coreógrafa foi intencional, ela
queria utilizar referências de etnias diferentes e não focar só na etnia Baniwa (fig.18).
Algumas peças tem detalhes que são diferenciais do artista plástico Adroaldo Pereira,
como na figura 18 a túnica que foi confeccionada com cinco tiras de tecidos com estampas e
detalhes diferenciados.
127
Fig. 18 túnica estampada colorida.
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Com relação ao equipamento utilizado no início da obra na figura 19 observamos a
corda trançada de espessura grossa e segundo a coreógrafa se reporta a colheita do fruto açaí
(fig.14). Outra referência à colheita do açaí acontece tanto com relação à movimentação
quanto com o uso do objeto cênico que é a parte da árvore que sustenta o fruto do açaizeiro.
128
Fig. 19 Yara utilizando o equipamento corda trançada.
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Na transição da primeira para a segunda cena a intérprete tira a túnica e veste no
palco, a tanga de missanga (fig.20 e 21) com uma meia luz na cor vermelho âmbar já ao som
de uma música indígena com vozes femininas, essa transição acontece do lado direito do
palco na visão de quem está de frente para o palco.
Fig. 20 Yara na segunda cena referência a menina moça.
129
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Nessa cena (fig.20) Yara executa movimentos introspectivos principalmente com os
braços, realiza contrações corporais que lembram a técnica de dança moderna, seus gestos
parecem relacionar-se a sexualidade da mulher, ou a percepção dela através da descoberta do
próprio corpo. A coreógrafa esclarece no roteiro da obra que a música utilizada nessa cena
faz referencia a indignação dos povos indígenas em relação à comemoração dos 500 anos do
Brasil, para os povos indígenas o Brasil não foi descoberto, pois eles já viviam aqui.
Ainda na segunda cena Yara desloca-se para o centro do palco em frente a uma
grande tela branca como uma cortina de tiras com cortes na vertical, imagens são projetadas
na tela vasada e no corpo da intérprete, imagens que parecem tintas fluindo de algum
recipiente, depois parecem imagens de tintas sendo misturadas, como se tudo fosse uma
coisa só ou um momento vivido, uma lembrança.
A música vai finalizando e a intérprete continua a movimentação de braços e as
contrações de forma mais acelerada, os movimentos enfatizam em alguns momentos partes
do corpo da intérprete como os seios, ventre e órgão sexual, na sequência temos outro black
out finalizando a segunda cena.
Na obra “Rito de Passagem” as características da dança moderna podem ser
claramente identificadas, temos à contração de forma global do corpo como de apenas partes
dele, o uso de movimentos naturais do corpo. Já mais especificamente com base em Laban,
temos uma parte da pesquisa de movimento da coreógrafa relacionada à movimentação
130
cotidiana da cultura contemporânea e indígena, ressaltando o ato de caminhar de algumas
mulheres com referências as urbanas e as indígenas.
Outro fator que chama a atenção é a movimentação de braço em determinados
momentos como na cena da figura 20 que remetem ao trabalho corporal usado também na
dança teatro e lembra o trabalho do amigo da coreógrafa o diretor Ricardo Risuenho que usa
esses elementos em suas obras.
Em “Rito de Passagem” a coreógrafa opta por utilizar em algumas cenas a
improvisação o que é uma escolha que pode ser vista em muitos trabalhos contemporâneos
de dança. A improvisação pode propiciar uma entrega total ao momento vivido e vivenciado
pelo intérprete, pois este pode adentrar mais profundamente na proposta da cena ou da obra
assim como recorrer as suas referências e experimentações corporais.
A improvisação pode ser de acordo com os estudos de Martins (
), conduzida, ter
um direcionamento de um diretor ou não, pode ser realizada dentro de um contexto,
seguindo a música, pode ser combinado de acontecer o improviso em determinado momento
da obra , ressaltando que quanto mais o intérprete se percebi e domina seu corpo e
determinadas técnicas ele efetuará movimentos diferenciados dos quais seu corpo está
acostumado.
Cada cena apresenta um figurino sendo que a calça corsário segunda pele com
detalhes que lembram couro de cobra com tons de marrons claros é o único que permanece do
começo ao fim. O segundo figurino é uma tanga de missangas marrons com detalhes com
sementes nas laterais e um grafismo em um dos lados (fig.21).
fig.21 calça de malha corsário e tanga de miçanga.
131
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Na sequência da obra no início da terceira cena Yara aparece rapidamente em uma
meia luz branca no lado esquerdo do palco na visão do público, colocando o figurino que
chamo de casaquinho amarelo (fig.23), apaga a luz e é exibida mais uma projeção com
imagens da Yara e de uma das integrantes da companhia (Alessane Negreiros) realizando
movimentos da dança aérea no rapel ao ar livre.
Nessa cena assim como em outras Yara também utiliza o material básico específico do
rapel a cadeirinha (equipamento que envolve a cintura e coxas, que possibilita a pessoa sentar),
o mosquetão que é o elo entre a cadeirinha e o freio, fabricado em aço ou alumínio e a corda
específica para a prática do esporte e neste caso dança (fig.22).
Fig. 22 Equipamento do rapel cadeirinha (boldrié), corda e mosquetão.
132
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Um dos destaques nesse momento da obra é o cenário composto pela maloca (fig.23)
confeccionada com juta suspensa em um dos lados do palco que especificamente nessa cena
também é utilizado como objeto cênico, é uma cena em que a coreógrafa brinca com ritmos,
movimentos e há diferentes possibilidades de interpretação criadas pelo visual do figurino e
do objeto cênico.
Dando sequência a cena coloca-se o foco no objeto cênico que a coreógrafa nomeou
de maloca (fig.23) do lado esquerdo do palco na visão do público onde Yara já está
posicionada dentro desse objeto cênico que também faz parte do cenário. A intérprete já com
o equipamento do rapel e segura também por uma corda presa no teto tem o corpo elevado
variando entre um pouco acima da maloca e também apenas com metade do tronco acima da
maloca.
Fig. 23 Yara à frente do suporte e objeto cênico maloca.
133
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Os movimentos executados sempre interagem com o objeto, é uma movimentação
um pouco acelerada no ritmo da música que lembra um samba, utiliza contrações de corpo
inteiro, alongamentos, movimentos curtos de pernas e braços juntos de forma assimétrica,
movimentos em que abre a maloca e visualmente lembra um pássaro (fig.24). A iluminação
também é focalizada com um vermelho e ambar, na sequência a intérprete é posicionada
dentro da maloca, a música diminui e temos mais um black out.
Com relação à cena da figura 24 Yara (2014) afirma que se reporta ao espaço de
reclusão da mulher indígena em seu rito de passagem durante a menarca, que é um espaço que
da margem para ela sonhar, aprender e se preparar para um casamento, a vinda dos filhos.
Para a coreógrafa remeteu a uma espécie de voo, onde a maloca se transforma assim como a
menina moça, ora a maloca é um pássaro, uma saia, uma rede, asas, uma espécie de
brincadeira onde o personagem sorri e apesar da música utilizada nessa cena ser indígena ela
lembra um samba, com um ritmo agitado e ritmado.
Fig. 24 Yara na 3ª cena de “Rito de Passagem com o objeto cênico nomeado de maloca, referência ao
momento de reclusão e aprendizagem da menina moça.
134
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
A coreógrafa parece fazer uma forte relação com a infância em que temos todo um
mundo de brincadeiras e sonhos que ficará para trás e o que será esperado dessa menina
daquele momento em diante após o aprendizado mais direcionado para as atividades e
deveres de uma mulher, como um voo para a vida adulta.
Nas movimentações aéreas onde a intérprete busca apresentar uma maior leveza nos
movimentos aparecem com maior clareza os traços da técnica de dança clássica dentre as
quais cito a posição dos pés na ponta com o dorso mais proeminente (flexão plantar), a
postura mais característica clássica com o corpo bem ereto e alongado e o trabalho de braços
contribuindo para a leveza dos movimentos nessas cenas.
Essa cena apresenta uma movimentação aparentemente mais livre, mas percebemos
que a intérprete propõe uma brincadeira tanto com relação à música, ao tempo de execução
da movimentação, a interação com o objeto, com os movimentos hora mais contidos, hora
mais expansivos.
Pode ser que um ponto que facilite e mantenha a impressão de leveza seja além da
base clássica a intencionalidade e o uso do lúdico pela intérprete, assim como o domínio e a
tranquilidade por dominar no seu corpo as técnicas utilizadas na cena, dentre as quais a
clássica, do rapel e moderna.
Na terceira cena temos o terceiro figurino que é um casaquinho em furta-cor nas cores
amarelo e laranja (fig.25) que junto com o objeto cênico proporciona um efeito visual que
chama a atenção para a cena e lembra a figura de um pássaro, Yara relata que nesse figurino a
135
inspiração principal do artista adroaldo foram imagens de pássaros, foi nessa peça do figurino
que o artista teve maior liberdade de criação e a que mais se aproxima de seus trabalhos
artísticos, vindo a ser um ponto de referência da marca do artística.
fig.25 casaquinho de malha furta-cor.
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
A quarta cena tem início com uma projeção com imagens de óvulos sendo
fecundados por espermatozóides, Yara aparece por detrás da tela branca vazada que faz parte
do cenário da obra (fig.26), e uma imagem de ultrasom de um útero é projetada
priemeiramente no canto direito da tela na visão de quem está no público, depois na lateral
direita e no centro da tela já praticamente no tamanho da tela.
Fig. 26 Yara por trás do cenário tela branca vazada.
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
136
Na cena da figura 27 Yara utiliza dois tecidos de malha que tem uma das pontas
presas ao teto, seus movimentos nessa sequênncia são um pouco contidos, gira junto com o
tecido, contrai todo o corpo e estende-o, movimenta os braços e as pernas como se estivesse
caminhando de forma lenta.
Na tela a imagem do ultrassom do útero (fig.27) em contraposição a imagem da
intérprete se completam como se o público estivesse vendo o feto dentro do útero da mãe, a
música apresenta uma sequência sonora que se repete contribuindo para a imersão da
intérprete e da platéia nesse ambiente recluso, íntimo.
Fig. 27 Yara na quarta cena referência a maternidade.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa
Um detalhe é que ainda durante a movimentação da intérprete no tecido as assistentes
já baixam a corda que comporá a próxima cena no meio do palco para que a mesma ficasse
na altura adequada.
Após o black out a intérprete sai por um dos espaços da tela e encaixa o equipamento
da cadeirinha que está usando com o da corda virando de costas para o público, a intensidade
da luz diminui novamente, começa a quinta cena aparecendo vagamente a intérprete se
137
movimentando ainda de costas para o público até que um foco de luz branca é posto sobre
ela.
Com o foco na intérprete, a movimentação começa com ela realizando um giro
sentando e cruzando as pernas, enquanto gira é baixada a uma altura perpendicular ao chão,
apoiando algumas partes do corpo no solo, utilizando diferentes apoios e torções, com
algumas contrações, alongamentos do corpo inteiro e de partes do corpo e diferentes giros
principalmente com as pernas flexionadas.
Na sequência (fig.28) realiza deslocamentos circulares primeiramente em um espaço
reduzido e depois se expandindo até onde a corda permita, no início ainda próximo ao solo e
depois no espaço aéreo chegando a uma boa distância do térreo.
Fig. 28 Yara na quinta cena referência ao ritual de iniciação Baniwa prox. Ao solo (2008).
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Essa sequência coreográfica (fig.28, 29 e 30) é uma das mais poéticas da obra, a
intérprete criadora consegue mesclar a técnica de dança moderna com a técnica do rapel de
tal forma que elas se completam e apesar de ser possível reconhecer ambas as técnicas elas
se tornam algo diferente.
Segundo a coreógrafa essa foi a primeira experimentação de movimento para a obra,
talvez a dança aérea proposta pela coreógrafa após pesquisas teóricas e práticas esteja visível
de forma mais clara nessa sequência coreográfica dessa cena que se reporta ao ritual de
passagem masculino da etnia Baniwa.
138
A sequência de movimento que começa na posição de pé depois perpendicular ao
solos, volta para a posição de pé no momento em que a Yara corre em círculos chegando até
o momento em que as assistentes a elevam e ela continua realizando os movimentos de
correr no espaço aéreo (fig.29), mas a posição do corpo muda ficando quase totalmente na
horizontal como se estivesse deitada. Nesse momento do voo o foco na intérprete é retirado
e abrem dois focos com tonalidade vermelha ao fundo, um de cada lado do palco.
Fig. 29 Yara na quinta cena referência ao ritual de iniciação Baniwa no espaço aéreo (2008).
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Os círculos do giro vão se fechando conforme a intérprete varia sua movimentação
até o momento em que as assistentes baixam-na novamente na altura perpendicular ao solo
(fig.28,30), nesse momento a intérprete usa os apoios diferenciados com torções ainda
girando, impulsiona novamente o giro e se coloca em uma posição de torção fazendo
pequenos movimentos com o corpo até que as assistentes a sobem um pouco mais enquanto
a música vai finalizando, a luz diminuindo a intensidade até o black out .
139
Fig. 30 Yara na quinta cena de “Rito de Passagem” com um figurino a mais o vestido de algodão
(2009).
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Segundo a coreógrafa, é esta cena a qual se refere ao ritual de passagem Baniwa
masculino, em que usam um chicote para dar lambadas nas pernas, braços e costas dos
meninos e homens e após as lambadas o pajé lhes da de forma breve um conselho que o
ajudará a se preparar para os próximos passos em sua vida.
Yara relata que durante o processo de criação e produção de “Rito de Passagem” na
cena em que se reporta ao ritual de iniciação masculino Baniwa, que ela coloca como uma
cena que transcende, de iniciação a algo, tem uma referencia ao chicote do ritual Baniwa. A
intérprete se encontra presa pelo boldrié (cadeirinha) no espaço central do palco a pouca
distância do solo e na movimentação de forma discreta a referência às chicotadas são feitas
com os braços batendo nas costas quando ela está na posição de costa para o público, os giros
estão relacionados à questão de voar de transcender.
A coreógrafa ressalta que é uma abstração de tudo o que pôde ver e perceber
relacionado ao ritual de iniciação masculino Baniwa Pudali, no período da pesquisa de campo
na comunidade Pana-Pana, onde os indígenas fizeram uma representação do ritual, todos os
membros da comunidade do sexo masculino participavam desse ritual até mesmo as crianças
recebiam as chicotadas.
Essa comunidade é uma das poucas que preservam as flautas sagradas guardadas
dentro do rio e quando vão fazer o ritual vão buscá-las e voltam já tocando, nessa parte do
início do ritual há uma crença que as mulheres não podem ver e todas inclusive se tiver
alguma visitante e mesmo um indígena que não seja da etnia vão para um lugar distante, no
caso foram para um morro, aguardaram até serem chamados depois que os homens guardam
as flautas, só lhes é possível ouvir o som delas.
140
A partir desse momento todos se reúnem e os meninos e os homens fazem fila e de um
por um levantam os braços e levam chicotadas com um chicote feito com uma palha de
palmeira trançada e depois o pajé dá um conselho para quem foi chicoteado, parece ser um
processo educacional como um alerta para as fases futuras.
Muller (2004) que estudou alguns rituais da etnia Asuriní, apresenta algumas
observações a respeito da existência de semelhanças entre os rituais e os trabalhos artísticos
performáticos como a utilização de um local que serve como palco para o que será realizado,
o uso de objetos que compõem um cenário, a presença dos performers (pessoas que realizam
a performance) das pessoas que estarão realizando o ritual ou espetáculo, o uso de
roupas/figurinos apropriados para a ocasião e a própria transcendência, entrega, concentração
no que se está fazendo como ocorre em ambos os casos.
A coreógrafa parece ter buscado trazer para a obra uma referência ao ritual indígena
Baniwa partindo de uma essência que se remeta ao sagrado, ao transcender, o uso de
movimentações em círculo pode ser uma forma simbólica de se reportar ao sagrado, assim
como a repetição de movimentos. O ritual aqui referenciado não é um ritual do cotidiano e
sim um realizado em ocasiões específicas dentro da etnia Baniwa.
Nas (fig.28 e 29) da apresentação realizada em 2008 no Laboratório Contemporâneo
a intérprete se apresenta somente com a calça de malha, nas demais apresentações, apartir de
2009, (fig.30) ela está com o vestido (fig.31) criado como uma alternativa para que o
equipamento do rapel não ficasse tão aparente. O vestido de tecido de algodão puro
envelhecido, tingido com chá e café também em tons de marrom. Segundo a coreógrafa
como a cena em que usa o vestido se reporta a um ritual, a uma transcendência e ela estaria
usando o Boldrié (cadeirinha), não queria deixá-la a mostra. A música é instrumental com
um ritmo mais lento, há um foco de luz na intérprete e o tom geral é azul, vermelho e
ambar .
141
fig.31 vestido de algodão marrom.
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
No início da sexta cena da obra a intérprete está em pé no canto direito do palco de
quem olha da posição da plateia, ainda com quase todas as luzes do palco apagadas , quando
a intensidade da luz vai aumentando ela fica em posição de cócoras, coloca as mãos dentro
de um cesto de palha e mexe o que parece ser uma espécie de rede de juta com sementes que
fazem som ao se chocarem umas com as outras, a movimentação se reporta a figura da
ribeirinha/indígena lavando roupa (fig.32).
Fig. 32 Yara na sexta cena referência a maturidade.
142
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Após fazer alguns movimentos tirando e devolvendo o objeto para dentro do cesto de
palha, a intérprete o arremessa um pouco acima da linha dos seus ombros e o apara com os
braços passando a olhá-lo como se o examinasse, o esfrega na coxa direita com pressão nos
movimentos de cima para baixo e vai se ajoelhando até o chão. Passa o objeto para o chão,
primeiro o puxa para junto de si, depois o leva de um lado para outro no chão e volta a
esfregá-lo na coxa direita como se o estivesse lavando, então o dobra e enrola e o coloca em
seu ombro direito.
Ela caminha desenhando um círculo pequeno retornando quase para o mesmo lugar,
retira o objeto do ombro e o joga de um lado para outro do corpo batendo com ele nas costas
até parar com ele a frente do corpo e sacudi-lo algumas vezes como se fosse uma roupa,
então ela o veste como uma saia (fig.33) ajeitando-o ao seu corpo e o amarrando um pouco
abaixo da cintura.
A saia de barbante trançado com detalhes de cascas de sementes de seringueira
(fig.33) é o último figurino que a intérprete usa na obra. As sementes utilizadas nesse figurino
são muito utilizadas por algumas etnias indígenas em rituais, celebrações, como instrumento
de percussão, pois produzem som ao se chocarem umas contra as outras. É possível ver
durante algumas danças de etnias indígenas essas sementes amarradas nos tornozelos
contribuindo com a marcação rítmica.
143
Esse figurino além de ser utilizado como objeto cênico no início da sexta cena também
o é como instrumento de percussão. Parte da sequência coreográfica desta última cena foi
criada a partir da ideia de como ele poderia interferir/colaborar na cena, partindo de
experimentações das possibilidades de uso deste.
Fig.33 saia de barbante última cena de “Rito de Passagem”
Fonte: arquivo pessoal Yara Costa.
Na sequência da última cena Yara começa a caminhar em círculo novamente parando
em frente ao cesto, se agachando na posição de cócoras para pegá-lo, se curva pega outro
cesto e caminha para um pouco depois do centro do palco, não há som durante essa parte da
cena.
144
Yara para e se agacha novamente, começa a arrumar os cestos sendo que o elemento
surpresa é que não são apenas dois cestos e sim vários um dentro do outro, ela parece
verificar se estão como queria, se levanta e volta para o lado direito. A luz diminui a
intensidade, o foco fecha e já abre o foco do canto direito novamente, isso acontece ao som
de uma música mixada com vozes fazendo sons e com um instrumento indígena
característico bem marcado confeccionado com sementes de seringueira as mesmas sementes
que estão na saia.
A intérprete se agacha na posição de cócoras mais uma vez e pega um cesto grande
de tal forma ajeitando-o ao ombro como se estivesse carregando algo muito pesado, o que
me remete aos carregadores dos mercados que transportam mercadorias pesadas nos ombros,
nas costas, na cabeça.
Novamente ela retorna para o outro lado do palco um pouco mais ao meio, coloca o
cesto junto ao peito balançando o corpo e o cesto ao mesmo tempo de um lado para o outro,
gira o cesto, agacha-se, gira o cesto no chão, vira-o de cabeça para baixo deixando cair mais
um, puxa outro e distribui os cestos no espaço, mas agora com a abertura voltada para baixo.
Retorna ao lado direito pega mais um cesto o coloca junto ao corpo com a abertura
voltada para a barriga, volta para o outro lado girando com o cesto na barriga, para e se
balança novamente com movimentos mais curtos que a primeira vez quase como se estivesse
tremendo, os distribui no espaço rapidamente e repete o percurso. O foco continua do lado
esquerdo e meio do palco, ela pega o restante dos cestos arrastando o maior que é o mesmo
da entrada da primeira cena.
Da uma volta pela frente do palco e para do lado esquerdo, no braço direito carrega
um cesto menor com dois cestos dentro e com a mão esquerda segura a alça do cesto maior.
Ao parar tira com o pé esquerdo (fig.34) um cesto que está dentro dos outros no lado direito
do corpo, em seguida sacode os cestos para que caiam no chão, roda com um só braço e
movimentando todo o corpo para ajudar a impulsionar o último que restou até jogá-lo para
cima de sua cabeça, e este girando passa por sua cabeça e braço antes de cair no chão.
Fig. 34 Yara na sexta cena interagindo com os objetos cênicos.
145
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Ainda na mesma cena Yara da uma volta completa no sentido anti-horário ao redor
dos cestos no chão arrastando o cesto maior com a mão esquerda parando do lado esquerdo
do palco e dos cestos, fica por um tempo parada com a respiração bem acentuada até a
música mudar um pouco, apresentando um instrumento com som mais grave junto com a
marcação do instrumento de sementes, ela caminha novamente em círculo arrastando o cesto
(fig.35) e para no meio do palco ainda atrás de alguns cestos.
Fig. 35 Yara na sexta cena de “Rito de Passagem”.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
146
A intensidade da luz diminui e mais um vídeo é projetado na tela ao fundo, agora
com imagens de guerras, no momento em que aparece a projeção de uma grande explosão a
intérprete caminha para trás da tela passando pelo meio e se colocando em uma posição de
cabeça para baixo, apoiando braços e ombro no chão deixando as pernas flexionadas e
voltadas para cima, permanece assim por um tempo, se levanta e sai detrás da tela se
posicionando do lado esquerdo do palco ainda em frente à tela.
Seguindo com a cena imagens de fractais são projetadas e a intérprete executa
movimentos de balançar o corpo de um lado para o outro de forma frenética, para por um
momento com a cabeça abaixada e de forma lenta levanta os braços até aproximadamente a
altura dos ombros quando executa uma movimentação rápida com os braços e passa-os pelo
corpo e cabeça.
Nesse momento deixa o braço esquerdo junto ao corpo enquanto o direito passa
rapidamente pela cabeça várias vezes, a cabeça é movimentada para baixo e para frente até
que a intérprete vire de costas para o público e comece uma sequência de movimentos
rápidos com os braços seguidos pelo balançar quase frenético do corpo.
As projeções agora são de queimadas, o foco está apenas nos cestos no chão e o som
que se ouve é apenas o das sementes da saia da intérprete ao se chocarem umas com as
outras devido à movimentação realizada. As projeções cessam por um momento, fica apenas
o foco nos cestos e o som das sementes que a intérprete produz ao se movimentar, aparece
mais uma projeção de guerra rapidamente.
O foco vai diminuindo até escurecer o palco por completo, o som produzido com o
movimento pode ser ouvido por mais um tempo na escuridão até parar terminando assim a
apresentação da obra. As luzes gerais são ligadas e a Intérprete criadora Yara Costa junto
com as integrantes da Índios.com Cia de Dança na época Rosilene Rosa e Carol Santa Ana
agradecem ao público presente.
Fig. 36 Agradecimento de uma parte da equipe que atuou em “Rito de Passagem”.
147
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Para a apresentação da obra segundo a própria coreógrafa as duas pessoas que atuam
nos bastidores do palco fazem a dança acontecer juntamente com ela, devido à manipulação
das cordas feita por elas para a realização da dança aérea, pois devem conhecer bem cada
cena, sequência de movimento, música e propostas das cenas para estarem afinadas e
conectadas para tudo acontecer no tempo certo.
O vídeo registro da obra do ano de 2008 foi escolhido para análise devido a ser o
registro de uma das primeiras apresentações, em que a obra está em sua forma mais original,
logo após a finalização da produção, sem sofrer as pequenas alterações após inúmeras
apresentações principalmente com relação a execução do movimento. Levando em conta que
a dança é uma arte cênica, portanto uma arte do tempo, em que uma apresentação nunca será
exatamente igual a anterior.
A obra foi apresentada diversas vezes com poucas mudanças, uma das maiores foi o
acréscimo do figurino que é o vestido usado na quinta cena, em que há a referência ao ritual
de passagem Baniwa.
As diferenças de uma apresentação para outra estão relacionadas com a performance
da intérprete, as adaptações necessárias ao local da apresentação, normalmente envolvendo o
uso do espaço, iluminação e sonorização, um exemplo seria uma apresentação no espaço de
um teatro como o Teatro Amazonas, e outra em um espaço cultural em um prédio antigo
adaptado para receber diversos segmentos artísticos.
148
Uma apresentação de destaque da obra ocorreu em 2013, no ano do projeto “Brasil
em Portugal” tendo como intérprete a própria coreógrafa, quando a companhia também
levou para apresentar nesse evento a obra “Rastros Híbridos” que enfoca questões culturais,
mas
direcionadas
para
a
cultura
indígena
da
Guiana,
enfatizando
territorialidade/espacialidades, sem o uso da dança aérea, mas, dando continuidade as
pesquisas artísticas com a temática cultural indígena.
A obra “Rito de Passagem” marca uma mudança no trabalho da coreógrafa e da
Índios.com Cia de Dança devido a juntar a pesquisa aérea com a pesquisa voltada para a
cultura indígena.
Reporta-se a uma cultura cuja ligação com a terra, com a natureza é forte, mas,
apresenta uma forma particular de olhar para a cultura local, transcendendo o espaço usual,
levando o olhar do público para outras possibilidades sem deixar perder o contato com a raiz
cultural. A coreógrafa faz isso com sensibilidade, destreza, harmonia, entrega, apresenta a
mulher em toda a sua completude nas diferentes fases da vida, em seus ritos de passagem.
Yara nos mostra uma dança para refletir, questionar, apresenta a condição de ser
mulher, de ser indígena, as contribuições dessa cultura para a nossa sociedade local, as
práticas corporais na floresta e na cidade, momentos de sonho e realidade em que o público
muitas vezes pode sentir vertigem ao assistir essa dança que traz o uso de tecnologias
multimídias e das diferentes práticas e técnicas corporais de forma equilibrada, ultrapassando
os limites espaciais naturais do ser humano.
Percebemos na pesquisa que o processo de criação de uma obra de arte envolve
experiências de vida do criador desde muito antes de ele pensar na possibilidade de criar a
obra. Está relacionado com suas referências e experiências acumuladas durante sua
existência. São situações, momentos, sentimentos, aprendizagens, referências registradas no
inconsciente e consciente que em determinado momento aparecem em destaque para o
criador, seja ajudando a responder questionamentos, completando significados, contextos,
criando links entre temáticas similares ou distintas, podem servir como fonte de inspiração,
contribuem para o insight do criador.
Para a criação de “Rito de Passagem”, Yara trás referências de diferentes momentos
de sua vida, desde suas referências e lembranças da infância com o contato com a natureza, a
mistura étnica, a convivência com sua mãe e irmãs. Da dança traz para a obra o
conhecimento dos diferentes estilos de dança que praticou, estudou e diversas formas de ver
149
e vivenciar a dança, também trouxe referências dos esportes radicais que praticou e do circo,
enfim, as transformações físicas e psicológicas que viveu até o momento que concebeu a
idéia da obra, a produziu e a interpretou.
Cada obra reflete seu criador de alguma forma, em algum ponto desta, a criação
acontece quando o criador já está maduro ou preparado o suficiente para realizar aquele
trabalho. Caso o artista tenha a ideia e perceba que não é o melhor momento para
materializá-la este tende a armazená-la e retomá-la em um momento mais oportuno.
No caso da obra “Rito de Passagem” a criadora apresenta um grande número de
referências advindas de diversos campos artísticos, esportivo, tecnológico, circense,
antropológico. A obra se reporta a mudanças e transformações na vida da mulher e a criadora
trouxe referências de diferentes momentos de sua vida como se estivesse marcando uma
grande mudança, revendo tudo para traçar caminhos novos. E a obra marca essa mudança
onde a coreógrafa passa a focar suas pesquisas artistas em suas raízes, com essa visão e
conhecimento antropológico e que para a ela pode ter sido uma espécie de rito de passagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os aspectos relacionados ao processo de criação como as referências utilizadas pela
artista, a forma como apreendeu as informações e as transpôs para a linguagem da dança, os
elementos representativos dos ritos de passagem da mulher, a movimentação cotidiana da
mulher indígena observada na composição da performance de dança contribuíram para a
organização e composição da obra e das cenas. Foi através desses elementos principais que a
artista se referiu ao regional e dialogou com as técnicas de dança escolhidas.
Todos os elementos postos em cena são signos que representam um contexto
sociocultural e contribuem para transportar o espectador ao ambiente de referência, e
transmitir a informação proposta pela criadora de forma explícita ou implícita.
Através da pesquisa realizada por meio de entrevistas e dos documentos de processo
de criação da obra, foi possível perceber alguns processos de semiose ocorridos, e destacamos
alguns momentos específicos como: a referência à subida no açaizeiro para apanhar o fruto,
150
que na cena a artista faz ao subir em uma corda no plano aéreo sem contato com outra
superfície e utilizando a técnica circense do tecido, o movimento de subida na corda se
assemelha ao de subida na árvore apesar das técnicas utilizadas serem diferentes.
Também há a referência à reclusão da menina moça na maloca que na obra é
apresentada de forma lúdica com símbolos de liberdade como um pássaro, brincadeiras e a
imaginação da criança que mesmo estando só consegue brincar e sonhar.
Na quinta cena que faz referência ao ritual de passagem masculino Baniwa é possível
ver um entrelaçar das técnicas, a busca por algo novo, próprio.
A coreógrafa Yara apresenta uma interação com diferentes tecnologias relacionadas à
informação/comunicação (técnicas e equipamentos de filmagem, vídeo, programas de edição,
fotografia digital, projeção de imagens, gravação de voz, equipamento de som), práticas
esportivas (equipamentos para atividade esportiva rapel e de segurança), atividades
artesanais e artísticas diversas (cestaria, confecção de figurino, equipamento de iluminação,
utilização do tecido para atividade circense, materiais e confecção de cenário).
Todos esses recursos tecnológicos, equipamentos e práticas corporais se
complementaram, mesmo sendo um trabalho de composição com uma grande quantidade de
informação, referências e até mesmo questionamentos.
Por mais que existam parcerias com diferentes profissionais, o artista precisa ter um
mínimo de conhecimento para criar e produzir utilizando essas tecnologias de forma que
venham a somar com o seu trabalho. E no caso da coreógrafa Yara, ela buscou se aprimorar
em uma técnica esportiva e pesquisar sobre a dança utilizando essa técnica para criar uma
maneira mais pessoal de fazer sua dança.
Com relação às práticas corporais diferenciadas temos a técnica do rapel que com
certa influência das acrobacias circenses e também da ginástica rítmica levaram a pesquisa
prática para a dança aérea que se insere em dança contemporânea, além da técnica circense
do tecido e as práticas corporais cotidianas dos povos indígenas.
Uma característica dos trabalhos artísticos pós-modernos ou contemporâneos na
dança é o uso da improvisação, onde o artista utiliza seu repertório gestual que é recorrente,
mas tentando manter um nível de consciência proprioceptiva que o ajude a buscar algo a
mais que seja único para aquele trabalho.
A coreógrafa traz para a cena diversos elementos regionais, dentre os quais, os cestos
de trançado, a saia utilizada pela intérprete que parece uma rede de dormir indígena e a
151
movimentação que em diversos momentos é executada no espaço aéreo e em outros em
espaço térreo e mesmo em plano baixo onde faz uso, por exemplo, da posição de cócoras que
ainda é muito utilizada principalmente pelos anciãos e pelas crianças indígenas.
Outra referência é o ato de caminhar logo no começo da obra que traz uma riqueza de
detalhes de posturas corporais assim como usos e costumes que as mulheres amazônicas
apresentam estejam elas no perímetro urbano ou não. Yara começa a cena caminhando na
floresta carregando um grande cesto utilizado para transportar alimento e também apresenta
mulheres caminhando na cidade carregando diferentes tipos de bolsas utilizadas para levar
objetos pessoais diversos.
“Rito de Passagem” é uma obra de dança rica em detalhes onde a cultura regional é
exaltada, mas permeada pelo novo, pelas tecnologias, é um tempo presente, contemporâneo,
uma realidade atual onde as diferentes referências, culturais se interconectam, se mesclam
para quem sabe surgir algo novo.
Yara traz para cena diversificadas referências e inquietações que se reportam desde as
heranças culturais que ainda perduram, as que se mesclaram e deram origem a novas, até as
pesquisas mais atuais da arte contemporânea com relação ao uso de suportes e técnicas
diversas e a possível fusão entre elas. E o momento de transição são os ritos de passagem
apresentados na figura da mulher em seus diferentes momentos da vida e que atualmente
começa a ser vista pela sociedade com outro olhar, com mais respeito pelas suas conquistas
crescentes, mas sem perder a sua essência.
Os processos criativos são diferentes para cada criador apesar de existirem pontos em
comum como a utilização do acúmulo de informações aprendidas e vividas ao longo da
existência, a troca de informações com o ambiente e todo o contexto sociocultural. Mas
também são únicos porque as pessoas não são iguais umas as outras, por mais que vivam
experiências similares possuem personalidades diferentes e apreendem as coisas de formas
distintas, assim como as interpretam de formas diferenciadas.
As práticas corporais podem ser iguais em uma determinada sociedade ou
comunidade, os corpos dos seres humanos podem ser semelhantes, mas cada um tem sua
peculiaridade seja de cunho genético ou não. E na sociedade pós-moderna cada vez mais
assim como nas artes tudo tende a se misturar, a somar, a transformar.
Estamos reconhecendo a simplicidade e a complexidade das coisas e que tudo está de
certa forma interligado, as ciências assim como as artes estão cada vez mais se permitindo
152
avançar e ir além. Talvez seja uma questão de sobrevivência ou apenas um maior despertar da
consciência.
Na obra pesquisada, percebemos que a artista se propôs a ir além dialogando com o
tradicional que são as práticas corporais do cotidiano seja da sociedade indígena ou urbana e
com o pós- moderno com as diferentes técnicas de dança, esportiva e circense e as tecnologias
inseridas, tudo dialogando entre si, apresentando ações, situações semelhantes em parte, e
diferentes principalmente em relação ao contexto em que são realizadas e formas de
execução.
Na obra“Rito de Passagem” as práticas corporais do cotidiano indígena e de diferentes
campos que envolvem o movimento foram resignificadas
mostrando o olhar da coreógrafa sobre esse recorte cultural, com novas perspectivas espaciais
e de movimento.
A obra apresenta o aspecto global no início da primeira cena, quando mostra a mulher no
ambiente urbano, as tecnologias, técnicas de dança, esportivas e circences.
Já o aspecto local é mostrado nos ritos de passagem,
nas práticas corporais indígenas, nos objetos cênicos, cenário, figurinos e na própria figura da
intérprete criadora, permeada por todas as suas referências vividas e apreendidas ao longo de
sua trajetória.
153
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ANEXO A
Biografia da coreógrafa
URUCURI
Esbelta palmeira em solo fértil es tu, Urucuri
Em tua pujança nasceu contigo, os homens bravos,
159
nos tempos idos, e em abundância nas várzeas frouxas,
emparelhados, exuberantes, as ribanceiras,
em massapé, em terra firme, os cacauais,
os seringais tão elegantes que tanto servem
e quase sempre já não são mais.
Esbelta palmeira em solo fértil es tu, Urucuri.
Essa tua gente, esses teus filhos, sorrindo triste,
por teus dilúvios tão traiçoeiros,
fogem da terra que vai no fundo,
sem madrigal, sem um laurel,
a mesma terra pelos meandros dos paranás
ou pra mais longe pra não morrer.
Esbelta palmeira em solo fértil es tu, Urucuri.
Alegres pântanos e tão profundos escondedouros
de ricos sáurios, mas teus quelônios em
extinção.
E o que te resta?
Essa tua fauna ameaçada no pastiçal em teus
barrancos, em tua floresta, em teus riachos,
pelos teus lagos, em toda terra, virá um tempo e
já não são mais.
Esbelta palmeira em chão fecundo ontem e hoje és tu,
Urucuri. (José Alberto Neves Urucurituba, Abril 1989,
Reproduzido por R. Marques em: 24/08/2012).
Fig. 37 Vista aérea da cidade de Urucurituba/AM.
160
Fonte: http://www.portalamazonia.com.br
Nascida no Médio Amazonas, cercada por vasto rio e generosa beleza natural da
biodiversidade amazônica, Yara Costa dos Santos nasceu no ano de 1969 na comunidade de
Santa Isabel cujo município na época era chamado de Urucurituba Velho. Hoje é chamado de
Vila Augusto Monte Negro ou apenas de Urucurituba. O município tem uma área aproximada
de 2.903,68. Km², uma população de 18.265 habitantes (fonte: IBGE), está localizado no
médio Amazonas, é a 8ª sub-região do Amazonas e fica a 207,51 km de Manaus (fonte: atlas
de desenvolvimento humano PNUD).
Fig.38 Localização geográfica do município de Urucurituba no mapa do Amazonas.
Urucurituba
Fonte:http://www.silascamara.com.br/index_municipios.php?var=municipios_ver&id=Urucur
ituba
O município foi denominado de “Urucurituba” que significa palmeiral e provém de
“Urucuri”, uma espécie de palmeira que existia em abundância nas proximidades do
161
município. Urucuri e Tyba palavra de origem Tupi que significa grande abundância,
quantidade. Sabe-se que entre as etnias que primeiro habitaram a região onde hoje é o
município de Urucurituba estão os índios Mundurucus Mavés.
O município de Urucurituba foi criado pela lei nº 1118 de 27 de abril de 1895, seu
território foi desmembrado do município de Silves e Urucará.
Hoje existem algumas manifestações culturais que movimentam a cidade de
Urucurutuba, dentre as quais o Aniversário do Município comemorado no dia 24 de janeiro, a
Festa do Cacau e Feira Cultural realizada de 01 a 03 de maio, Festa de São Benedito de 25 a
27 de julho e o Festival do Peixe Liso que se realiza no último final de semana do mês de
agosto.
Yara nasceu em meio a uma tradicional e grande família de nove irmãos, sete
mulheres e dois homens, sendo a penúltima das mulheres, suas recordações sobre o período
em que morou no município lhes são apresentadas apenas a partir das histórias contadas por
sua mãe e irmãs, pois quando saiu da cidade era muito jovem.
Yara provém de uma mistura étnica entre portugueses e indígenas, sendo que seu pai
apresentava maior descendência indígena e sua mãe maior descendência portuguesa, mas, não
há o conhecimento por parte da coreógrafa ou da família sobre qual etnia indígena descende.
Fig. 39 Residência de infância da coreógrafa em Urucurituba.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Fig. 40 A coreógrafa em Uricurituba na infância).
162
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Fig. 41 A coreógrafa na infância junto com sua família.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Quando a família se mudou para Manaus Yara tinha apenas três anos de idade, e
passaram a residir no bairro de Petrópolis. Depois a família foi morar no bairro do Japiim
onde sua mãe reside até hoje.
Sua formação escolar se deu no ensino público e federal, estudando em escolas
próximas de onde morava até entrar na Escola Técnica Federal do Amazonas (ETFAM) hoje
o Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e atende apenas ao ensino médio técnico, Yara
cursou do sétimo ano do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino médio nessa escola.
Suas irmãs revelam que Yara sempre gostou de dançar, brincava de criar coreografias
junto com elas, era uma criança cheia de energia. E que fora na ETFAM que teve seu primeiro
163
contato com a Ginástica Rítmica (GR) e através desta com a dança. Nesse período estava com
treze anos de idade e não demorou a vir a integrar a equipe de GR da ETFAM com a
professora Maria Antonieta, permanecendo pelo período de quatro anos até o final do ensino
médio.
Fig. 42 Yara à frente com o Grupo de GR da ETFAM.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Antes de finalizar o ensino médio Yara teve dúvidas sobre qual curso tentaria o
vestibular, pois sabia que era importante pensar na família, e um curso que oferecesse uma
melhor estabilidade financeira seria melhor. Ao conversar com a coordenadora da equipe de
GR sobre o assunto tomou a decisão de cursar engenharia elétrica, pois estava formando em
eletrônica na ETFAM.
Ao tomar conhecimento da grande concorrência para o curso de engenharia elétrica
Yara resolveu então, prestar o vestibular para estatística na Universidade Federal do
Amazonas (UFAM), vindo a adentrar na universidade no ano de 1989, depois do primeiro
período estudando estatística pediu reopção para Engenharia Elétrica. Foi na UFAM onde
conheceu o Grupo Experimental de dança da Educação Física GEDEF coordenado pela
professora Chang Yen Yin permanecendo por um curto período de tempo como intérprete,
coreógrafa e monitora.
Em uma das apresentações do GEDEF no Fest Dance organizado pelo grupo Espaço
de Dança do Amazonas (GEDAM), coordenado por Conceição Souza, conheceu um dos
integrantes do GEDAM e passou a fazer aulas com o grupo no Teatro da Mineração no bairro
164
da Compensa, no qual fica hoje a Prefeitura de Manaus, também teve uma breve participação
no grupo, integrando poucos trabalhos.
Pouco tempo depois, Yara assistiu a uma apresentação da coreografia “Mulheres de
Pequim” da qual afirma ter apreciado muito, do grupo de dança Renascença dirigido pelo
coreógrafo Jorge Kennedy. Após a apresentação Yara conversou com Kennedy e pediu para
fazer aulas com o grupo, desde então passou a ser uma das integrantes e ficou pelo período de
1991 a 1994. Quando o diretor Jorge Kenedy assumiu a coordenação de arte no Serviço
Social do Comércio (SESI), levou o grupo para o espaço, e este passou a se chamar Cia de
dança do SESC.
Fig. 43 Yara durante o tempo em que integrou o GEDAM e Renascença.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Fig. 44 Yara durante o tempo em que integrou o GEDEF, GEDAM e Renascença.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
165
Fig. 45 Yara durante o tempo em que integrou o GEDEF, GEDAM.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Nesta fase Yara teve oportunidade de atuar não apenas como intérprete, mas também
de contribuir criativamente para a Companhia, o que ajudou em sua decisão de estudar
composição coreográfica no curso de pós- graduação.
Em 1995 assim que se formou em Engenharia elétrica, pouco antes de colar grau,
recebeu o aceite para concorrer a uma vaga para o curso de pós- graduação na Universidade
Federal da Bahia (UFBA) teve que viajar para fazer a prova de seleção e permaneceu lá até
sair o resultado, durante esse período ficou hospedada na casa de uma das irmãs mais velhas
que reside na Bahia.
Como ainda não havia colado grau, pediu para uma das irmãs que reside em Manaus
para representá-la no evento, vindo então, a saber, que havia se formado com mérito no curso
em que a grande maioria dos alunos era homens. Sua irmã Solange que a representou relata
que teve que ir a frente da turma duas vezes sem saber o que dizer pelo reconhecimento do
mérito de Yara no curso, o que a faz recordar sempre esse momento em que ajudou a irmã que
tanto gosta de dançar.
Após verificar sua aprovação nos exames para o curso de pós-graduação, Yara saiu da
casa da irmã para dividir um apartamento com algumas colegas, conseguiu uma bolsa de
estudos algum tempo depois, na época o valor da bolsa era menor que o valor de um salário
mínimo, mas ajudou-a bastante no período em que permaneceu na Bahia.
166
Yara relata que o mais difícil nessa época de sua vida foi à distância da família,
também estranhou algumas matérias logo que começou a estudar por nunca ter tido um
contato anteriormente com elas, dentre as quais a de filosofia e estética. Outro ponto que
ressalta ter sido difícil foi o processo de transformação de intérprete para coreógrafa, pois
apesar da experiência que teve com alguns grupos em Manaus, atuava mais como intérprete
do que como criadora.
Somente quando chegou à metade do curso de pós-graduação em Composição
Coreográfica é que teve um maior contato com as atividades artísticas e grupos da
universidade, vindo a integrar o grupo da professora da graduação Silvana Martins, vindo a
participar em um dos trabalhos do grupo em uma apresentação que se realizou na Praia do
Forte nas ruinas de um forte da cidade.
Dentre as técnicas novas que pode conhecer durante o curso estava a de contato
improvisação que estudou com um professor americano e o Butô que é bastante conhecida no
teatro.
Na época em que estudou na Bahia, havia em alguns dos teatros da cidade a
oportunidade de assistir aos ensaios dos espetáculos que estavam em cartaz, assim como uma
facilidade para ter acesso a informações, estimulando a pesquisa. Nessa fase desenvolveu seu
lado de pesquisadora e buscou entender melhor seu próprio desenvolvimento na
transformação para coreógrafa.
Fig. 46 Fotos de uma performance durante o curso de Pós-graduação em Dança na Bahia.
167
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Yara declara que ficou a dúvida, se trabalharia com dança ou engenharia. Voltou para
o grupo do coreógrafo Jorge Kennedy, mas precisou trabalhar com engenharia para ter maior
estabilidade e no ano de 1996 entrou na empresa GramCitel, ficando como responsável
elétrica.
Ainda no ano de 1996, Yara recebeu o convite do professor Rubem Cesar da UFAM
de quem já havia sido bolsista, para trabalhar em um projeto do CNPQ como (pesquisador
DTI) no assentamento Iporá em Rio Preto da Eva, para implantação de novas fontes de
energias.
Yara não se afastou da dança, continuou na Companhia de Dança do SESC fazendo
aulas e se apresentando em espetáculos da Companhia.
No ano de 1998 o Governo do Estado do Amazonas abril o edital para audição do
Corpo de Dança do Amazonas (CDA), Yara se inscreveu e venceu a audição, vindo a integrar
a primeira formação do CDA. E por um período de seis meses conseguiu conciliar o trabalho
de engenheira com o trabalho da dança, mas foi vencida pelo cansaço, escolhendo permanecer
com a dança.
Fig.47 Audição para o CDA
168
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Fig.48 No Teatro Amazonas após a apresentação do espetáculo “Mandala” junto com o diretor do CDA
na época Jofre Santos.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Nos anos em que integrou o elenco do Corpo de Dança do Amazonas, pôde
aperfeiçoar a sua técnica de dança clássica e moderna, o professor búlgaro Ivo
Karaqueorquiev contribuiu muito com suas aulas de balé clássico para a evolução de sua
169
técnica, e o diretor e coreógrafo Jofre Santos colaborou em sua formação como profissional
da dança.
Dois espetáculos marcaram a carreira da artista durante sua passagem pelo Corpo de
Dança do Amazonas segunda ela própria, o primeiro foi o espetáculo “Xamã” e o segundo foi
“Mandala”, devido à interação com coreógrafos externos e de nível internacional e a grande
exigência técnica e musical, o que elevou o nível técnico dos intérpretes e da companhia.
Ainda como integrante do CDA, Yara também atuou como assistente de coreografia e
coreógrafa criando duas coreografias para o Corpo de Dança do Amazonas que foram
“DUAL” em 2001 e “Quem te Conduz?” em 2003.
No ano de 2001 foi criada pelo Governo do Estado do Amazonas a Universidade
Estadual do amazonas (UEA) oferecendo os cursos na área de arte de música e dança abrindo
a seleção para compor o quadro de docentes de disciplinas teóricas e práticas. Por pensar em
outras possibilidades de viver da dança e encontrar novos caminhos, Yara prestou a seleção
para a docência e no mesmo período prestou o vestibular para o curso de dança vindo a passar
no vestibular com uma boa colocação no quadro geral.
Cursou um semestre como aluna regular e logo em seguida foi chamada para lecionar
as matérias práticas de dança clássica e moderna, Yara escolheu a docência e em seguida
também passou a ministrar aulas de composição coreográfica.
Yara permaneceu até 2004 atuando tanto no Corpo de dança CDA quanto na
Universidade UEA, quando teve início o horário matutino do curso de dança havendo a
necessidade de atuar nesse novo horário o que a levou a mais uma vez ter que escolher entre a
companhia e a universidade. Decidiu por permanecer na universidade deixando de vez o
Corpo de Dança do Amazonas. Mas, manteve contato com alguns colegas do Corpo de
Dança, que se reuniram para criar coreografias e apresentar performances de dança na cidade.
Nesse período o Governo do Estado do Amazonas estava apoiando a criação de
empresas, companhias de teatro e dança, foi quando decidiu criar a Índios.com Cia de Dança
onde atuaria como intérprete/criadora.
Yara e seus amigos Helem Rojas e Marcelo Dantas viram uma atividade de esporte
radical rapel acontecendo na Ponte do Bairro Educandos, que fica próxima ao teatro Chaminé
na região central da cidade de Manaus, resolveram ir até o local da atividade conseguindo
participar, sendo está a primeira vez que praticou o esporte radical rapel, Yara pegou o
170
contato do grupo que estava praticando rapel, era a escola de rapel AGAM (Anjos Guerreiros
do Amazonas).
Yara manteve contato com o grupo e buscou fazer o curso básico e avançado de rapel,
vindo a participar com assiduidade das atividades do grupo e começando já nesse período a
sua pesquisa em dança aérea, experimentando movimentos da dança durante as práticas de
rapel que estavam sendo realizadas nessa época principalmente na Caverna do Maruaga no
município de Presidente Figueiredo.
Durante os treinos do grupo AGAM, uma colega norte americana que participava das
atividades e treinos do grupo de rapel, ao ver o interessa de Yara em juntar as duas linguagens
dança e rapel, comentou sobre o grupo Bandaloop que experimentava essas duas linguagens,
instigando-a a pesquisar sobre o trabalho desse grupo e vindo a ser a primeira referência com
relação a essa mistura de linguagens específicas, dança e esporte radical. Durante a pesquisa
que fez sobre o trabalho do grupo Bandaloop percebeu que estava começando uma pesquisa
com uma proposta semelhante.
Fig. 49 Atividades do AGAM treino da coreógrafa no rapel.
171
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Fig. 50 Atividades do AGAM e experimentações de dança da coreógrafa no rapel.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
A partir dessas constatações resolveu levar o projeto para a Universidade do Estado do
Amazonas-UEA, apresentando o projeto para a direção da instituição que apoiou a ideia e
contribuiu com a aquisição de alguns dos materiais necessários para atividade e treino (corda
específica e cadeirinhas).
172
Assim Yara pôde iniciar às atividades de curso básico de rapel para os alunos e dentre
eles selecionar os que apresentavam maior afinidade para talvez integrarem a índios.com Cia
de Dança, sendo que a maioria dos alunos eram mulheres.
Yara sempre gostou de esportes de aventura e desde o começo de sua carreira ela
apresenta em suas obras a representação de seus questionamentos internos. Em um de seus
primeiros trabalhos na formação do curso de pós-graduação em dança chamado “Imagens
Urbanas”, a artista se reporta a própria condição em que se encontrava, longe de casa e se
adaptando ao novo ambiente, estando em meio a várias pessoas e ao mesmo tempo só.
Figura 51 Prática esportiva da artista – paraquedismo.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Figuras 52 Prática esportiva da artista – escalada.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
173
Figuras. 53 Prática esportiva da artista – Aikido.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Já com a Índios.com Cia de Dança formada a coreógrafa passou a apresentar
performances de dança Aérea pela cidade de Manaus sendo convidada inúmeras vezes para
participar do Concerto de Natal organizado pela Secretária de Cultura do Estado do
Amazonas, que reúne todos os corpos artísticos do Estado e os alunos do Liceu de Artes e
Ofícios Claudio Santoro.
Nessas performances haviam integrantes da Índios.com Cia de Dança e alunos e exalunos convidados da Universidade do Estado do Amazonas. Nas performances os intérpretes
apareceram descendo a fachada do Teatro Amazonas, descendo de tirolesa do telhado do
teatro para o de um prédio ao lado atravessando assim o Largo São Sebastião e também
pendurados em cabos de aço a mais ou menos 60 metros de altura por um guindaste
aparecendo na parte da frente do teatro dentre outras composições cênicas.
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Figura 54 Ensaio para concerto de Natal no telhado do Teatro Amazonas da Índios.com Cia de Dança.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Fig. 55 Ensaio para concerto de Natal no telhado do Teatro Amazonas e com seu esposo e companheiro
de trabalho na Índios.com Cia de Dança Ednaldo Passos.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
A Índios.com Cia de Dança é composta atualmente pela diretora, coreógrafa e
intérprete Yara Costa, por quatro técnicos de esportes verticais fixos que são o Georgio,
Harry, Luck e Naldo, também pelos Intérpretes Daniela Alves, Kamilla Aguiar e Jonatas
Amaral.
Pela companhia dançaram vinte e dois bailarinos e no balé aéreo já passaram mais de
oitenta pessoas que representaram a Índios.com, em todo Concerto de Natal Yara relata que
trabalha com pelo menos vinte bailarinos e 10 técnicos de esportes verticais.
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A Índios.com Cia de Dança venceu diversos prêmios, sendo o primeiro o prêmio
Amazônia Celular em 2001 para montagem do espetáculo “O Processo” e em 2004 vence o
prêmio Caravana Funarte de Circulação Regional-Brasil com o mesmo espetáculo
apresentando-o em Porto Velho, Ji-Paraná, Cruzeiro do Sul e Rio Branco (A Crítica, 2013).
Figuras 56 Divulgação do espetáculo “O Processo”.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Figuras 57 Divulgação e apresentação do espetáculo “O Processo”.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
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Figuras 58 Bastidores do espetáculo “O Processo”.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Outros editais foram vencidos a nível nacional dentre os quais: Em 2005- Venceu em
duas categorias o prêmio Pequenos Projetos Grandes Ideias da Fundação Vila Lobos, a
primeira /PPGI-Eventos para apresentação de “O Processo” e a segunda PPGI-Pessoa Jurídica
para montagem do espetáculo “Por um Fio” onde a coreógrafa aborda o virtuosismo na dança
aérea (A Crítica, 2013).
No ano de 2007, Prêmio de dança Klauss Vianna para montagem da obra “Rito de
Passagem” e em 2009 vence o mesmo prêmio sendo que para circulação da Intervenção
urbana “Sob o Abrido de...”. Ainda em 2009 vence o Prêmio Palco Giratório para a circulação
de “Rito de Passagem” em várias cidades do Brasil, no mesmo ano vence o Prêmio SESC
Amazônia das Artes (A Crítica, 2013).
Fig. 59 Cena de “Rito de Passagem” 2008.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
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Fig.60 Foto do cartaz do Prêmio Palco Giratório 2009.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Em
2010 o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2010 para montagem de “Rastros
Híbridos”. Em 2011 vence também o Klauss Vianna só que para a circulação de “Rastros
Híbridos” que foi apresentado em São Gabriel da Cachoeira (AM), Cuiabá (MT), Goiânia
(GO) e Brasília (DF). E em 2012 venceu o Prêmio Funarte Petrobrás de Dança Klauss Vianna
2012 para a montagem da obra “AËËË: pra falar do que não foi perdido” que se reporta a
cultura Yanomame e estreia em outubro de 2013 sendo o trabalho mais atual de sua carreira
(A Crítica, 2013).
Festivais nacionais e internacionais em que a coreógrafa apresentou trabalhos
coreográficos da Índios.com Cia de Dança, além da participação nesses eventos a companhia
também realiza oficinas de dança aérea e debates:
Projeto Dança Aérea: Desafios da Beleza (SESC Consolação São Paulo); Mostra
Garatuja de Dança e Teatro de Artes Cênicas-Mambembão 2012 (RJ); 4º e 5º encontro de
Danses Metisses (Cayenne-Guiana Francesa); I Plataforma Internacional Estado da Dança
(SP); 17º Festival Internacional de Dança do Recife (Recife); Mostra de Artes /Cênicas no
ano do Brasil em Portugal (Coimbra Portugal). A companhia também apresentou-se em
alguns municípios do Amazonas, dentre os quais: Manacapuru, Presidente Figueiredo,
Itacoatiara e São Gabriel da Cachoeira.
Yara também trabalhou no Serviço Nacional do Comércio (SESC), foi selecionada no
concurso que prestou realizado em 2009, para a vaga de técnico de cultura. Após seu ingresso
na instituição foi contratada para assumir a coordenação de cultura do SESC-AM. Foi um
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período muito difícil para conciliar as atividades, pois estava viajando pelo Projeto Palco
Giratório.
Durante sua gestão no cargo propôs alguns projetos para o ano de 2010 que
englobavam as artes de modo geral, dentre eles destacou-se a Residência Artística em Dança,
na qual participaram cinco artistas de Manaus (Daniela Alves, Juliana Borges, Daniela Carla,
Silmara Santos e Magna Valeria). Yara ressalta que foi o primeiro projeto de residência
proposto em Manaus e infelizmente aconteceu apenas uma vez.
Outro projeto bem divulgado a nível nacional pelo SESC foi o ARTE SESC-LER,
relata Yara, no qual a Índios.com fez parceria com o SESC para realizar apresentações e
oficinas em quatro municípios do Amazonas que tem Unidades do projeto SESC-LER,
(Itacoatiara, Manacapuru, Presidente Figueiredo e Manaus (Cidade Nova).
A Índios.com entrava com transporte, alimentação, hospedagem e cachê dos artistas
envolvidos, já o SESC dava a infraestrutura (espaço das apresentações, técnico de luz e um
transporte para os equipamentos de luz e cenários).
Em janeiro de 2010 Yara passou a ser apenas técnica de dança, o que facilitou a
execução dos projetos de dança, mas ao mesmo tempo não teve mais como trabalhar em
outros projetos previstos para as outras áreas, pois isso ficava na responsabilidade do
Coordenador e dos técnicos de cada área.
Yara permaneceu no SESC até início de 2012, quando foi aprovada no concurso
público da UEA (Universidade Estadual do Amazonas), escolhendo a efetivação como
servidora pública da universidade e buscando uma maior estabilidade.
Resolveu então investir em seu crescimento como professora e pesquisadora
ingressando na Universidade Técnica de Lisboa Faculdade de Motricidade Humana em
Portugal no curso de mestrado em composição coreográfica, foi nesse período que aumentou
o interesse pela pesquisa com a cultura indígena que viria a influenciar todo seu trabalho
artístico e mudar a estética da Índios.com Cia de Dança. O título da pesquisa de mestrado que
também serviu de base para a criação de “Rito de Passagem” era “Análise das danças Baniwa:
Uma reflexão sobre a dinâmica indenitária e cultural dos povos indígenas da Amazônia”.
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Figura 61 (A coreógrafa com sua orientadora e as professoras de sua banca logo após a defesa do mestrado).
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
Em sua trajetória artística e de vida, Yara demonstra ser uma mulher forte,
determinada e apaixonada pelo que faz sem esquecer-se de suas obrigações para com sua
família, buscando se descobrir como artista em cada fase de sua vida e etapa de seu trabalho
tanto como intérprete como coreógrafa, professora e diretora da companhia de dança. E assim
como uma grande maioria de artistas amazonenses parece que busca se encontrar dentro de
tantas referências culturais, descobrindo ou redescobrindo a própria identidade artística.
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ANEXO B
Fig. 62 folder da obra “Rito de Passagem” 2007.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
181
ANEXO C
Fig. 63 documento 08 na íntegra, anotações sobre a criação do grupo de estudo em dança aérea.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa.
182
ANEXO D
Fig. 64 Documento 05 na íntegra, reportagem sobre dança aérea.
Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa (revista Smithsonian, 2000).
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ANEXO E
INSTRUMENTOS DA PESQUISA
1. ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA 2012
Tendo conhecimento que a criação da obra “Rito de Passagem” surgiu durante a pesquisa
de mestrado da coreógrafa Yara Costa relacionada às danças Baniwa e levando em conta o
contexto da obra, elaboramos esse roteiro de entrevista para nortear entrevistador e
entrevistado nos assuntos que serão abordados nessa pesquisa sobre a obra de dança “Rito
de Passagem”.
1. Como surgiu a ideia de montar a obra “Rito de Passagem”?
2. Quais foram as suas principais referências?
3. Existiram situações que interferiram durante o período de criação ou montagem da
obra?
4. Como a mulher foi vista pela artista?
5.
Como as práticas corporais foram transpostas para a obra?
6. Por que escolheu como foco central essa temática regional indígena?
7.
Porque a escolha dessas técnicas específicas de dança e demais técnicas corporais
para esta obra?
8. Como as demais técnicas corporais foram introduzidas (colocadas) no contexto da
obra?
9. Como foi a participação do grupo no processo de criação e montagem da obra?
10. O que a obra Representa para a artista? (Implicações pessoais).
2. ENTREVISTA NÃO ESTRUTURADA - RELATO DA ARTISTA SOBRE O
PROCESSO DE CRIAÇÃO DA OBRA.
3. DOCUMENTOS DE PROCESSO DA OBRA “RITO DE PASSAGEM” CEDIDOS
PELA ARTISTA PARA A PESQUISA.
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