Untitled - Marcelo Paciornik

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Untitled - Marcelo Paciornik
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
O MAGO de PRATA
Este livro é dedicado ao todo poderoso Schaia III, por ocasião de seu retorno
do Planeta Azul. Que Deus o proteja.
A todos que lerão estas páginas
Deve-se saber que esta é uma história real, nada aqui é ficção. Apenas as páginas que antecedem ao primeiro capítulo foram baseadas em fatos históricos estipulados pelos historiadores de Carmel. Esses fatos são questionáveis, pois datam de trinta
mil anos-padrão atrás ou mais; são fatos meramente ilustrativos em seus detalhes,
porém, aparentemente, muito próximos da realidade do Planeta Azul, inclusive com
nomes de territórios e datas, todos pesquisados arduamente nos memo-cristais trazidos por Schaia III do próprio Planeta Azul. E explicam mais que bem os acontecimentos que geraram o maior problema ocorrido em toda a história do império.
Que as próximas gerações aprendam que os pequenos fatos, mesmo ocorrendo
nos confins do universo conhecido, podem se expandir em escala e transformar mesmo a mais sólida civilização em poeira cósmica.
A pedido do próprio Schaia III, a linguagem aqui adotada para relatar os fatos,
em sua maioria narrados pelo próprio Schaia III, é, em sua totalidade, de cunho jornalístico, simples, para que mesmo o mais comum dos seres que habitam os Planetas
distantes possa entender e compartilhar de sua essência.
Atenção, Planetas Grinfort, Curitixatro, Marson, Dremctom, Lacreines, Particres e seus satélites:
Este livro contém narrações de cenas de sexo e entorpecentes. Sendo estes
Planetas ainda dotados de uma postura reacionária, estas páginas devem ser passadas
por censura prévia antes de serem lidas por sua oprimida população.
Deve-se saber ainda que o Planeta Azul é agora o Planeta Verde, e era chamado
por seus antigos habitantes (sabe-se lá por quê) de Terra. As primeiras páginas são
uma explicação sobre o nascimento da magia. Elas são relatadas a partir de conhecimentos empíricos de nossos estudiosos, os quais são baseados na própria narrativa de
Ortal, o Guerreiro, segundo os cristais concedidos a Schaia III pelo Mago de Prata.
Chefe do Estado de Segurança na informação de Plan Ex.
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Boa leitura
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Introdução
O nascimento da “Eco Magia”
2015, o ano em que poderia ter acontecido a maior catástrofe natural desde a
era glacial no Planeta Azul.
Depois de cinco anos de guerras em certos territórios do Planeta, finalmente
a humanidade descamba para uma terrível e alarmante Terceira Guerra Mundial que
nunca terminaria, não fosse um poderoso incidente.
O início do conflito está agora perdido na memória da história. O que apenas se
sabe é que foi pelo fato de o ser humano ter ido longe demais em sua crueldade para
consigo mesmo e para com a sua casa que algo o impediu de ir além. O processo de
“evolução” estava errado, isto foi notado e desfeito.
O problema não foi o conflito em si, mas as consequências que este acarretaria
para o Planeta. O emprego de armas químicas foi apenas uma brincadeira, os fasers
e o início dos miniatômicos poderiam ter sequelas reversíveis, mas quando cem milhões de chineses foram mortos pela amplificação da energia estelar via satélites de
potencialização, a “eco-consciência” despertou. Começou por ser chamada de “Eco
Revolta”, depois de “Eco Justiça” e mais tarde de “Eco Magia”.
A “Eco Revolta” teve início no começo do ano em que foram empregados os
satélites de potencialização estelar, o que, além de matar milhões de seres humanos,
vegetais e animais por um décimo do custo de uma bomba atômica padrão, teoricamente não afligiria o ecossistema a longo prazo como a bomba. Eis o grande erro do
ser humano. As consequências desse tipo de armamento se tornariam irreversíveis e a
devastação do Planeta seria fato.
Logo depois do emprego da arma na China, que devastou uma imensidão de
terras, ela seria empregada num núcleo calculado, num ponto geográfico qualquer.
Provavelmente em um ponto de conflito extremo como o Oriente Médio que, a essa
altura, não teria mais muitos a quem matar, devido à vastidão de violência que a
guerra criara. Qual o ponto em particular ninguém sabia e nem viria a saber. Foi exatamente assim: (conta a história falada) momentos antes do disparo dos canhões dos
terríveis módulos de potencialização de raios estelares, com o seu maligno grito da
morte, que a vida simplesmente enlouqueceu sobre a face do Planeta.
Repentinos terremotos, maremotos, vulcões, furacões começaram a agir em
conjunto com animais que, desde insetos até baleias, se tornaram violentamente insanos. Cidades foram destruídas em segundos, todas as zonas de principais conflitos
entre seres humanos foram arrasadas, uma coluna de montanhas surgiu separando o
Oceano Atlântico em dois de cima a baixo do Planeta. O Japão mergulhou no mar e
nunca mais voltou; a América do Norte foi devastada por furacões de um lado, pelo
mar do outro e o meio coberto por quilômetros de lavas, formando um tapete de mais
de quarenta metros de altura; a Europa se afogou em inundações, a África tornou-se
um zoológico-hospício, com revoltas de animais de todo o gênero e espécie. Fábricas
foram destruídas com o mesmo sopro que derrubara usinas nucleares e hidrelétricas;
uma vastidão de morte caiu sobre a Terra. Não sobraram feridos, só mortos. A popu3
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lação da Terra tornou-se uma migalha se comparada aos dez bilhões de habitantes que
haviam antes do início do principal conflito. Nenhuma guerra na história alcançou tais
proporções. E o ser humano tornou-se um bebê no colo de uma Terra agora desconhecida, selvagem e extremamente rica.
Então a “Eco Revolta” se acalmou. Foram apenas cinco dias em que a natureza
guerreou contra o homem e venceu. Sim, venceu a natureza, mas o homem, como faz
parte da natureza, também venceu. Os poucos que sobraram, sem distinção de raça ou
credo, iriam reconstruir as cidades, resgatar a tecnologia que haviam aprendido com
os seus ancestrais, e recomeçar a vida, não iriam? Afinal tudo tinha passado, sobraram
poucos, mas sobraram! Sim, eles poderiam se erguer, formar suas comunidades, construir fábricas e escolas, carros e naves, medicamentos e armas, não poderiam? Não,
não poderiam.
Pois então veio a “Eco Justiça” e assim falou ao homem:
“Sua capacidade de destruição voltou-se contra você. Acredite, a “Eco Revolta” não acabou. Mas poderá descansar, caso você descanse. Descanse da química e
da guerra, descanse da poluição e das fábricas, e dos carros e da tecnologia e dos rios
desviados e dos mares sujos, dos bichos em mutação e das chuvas ácidas, descanse
das religiões e das blasfêmias das sociedades urbanas e do espaço sideral e da miséria
e da devoção ao ódio e do prazer da maldade e das coisas inventadas para as calamidades e do ócio e do petróleo e do abismo e da vergonha...” E assim a “Eco Justiça”
falou e falou, e era como se toda a humanidade ouvisse uma só voz de um só Deus e de
uma só vez, mas que todos já sabiam que não era nenhum Deus, mas uma chance que
eles, aqueles que ouviam, recebiam. Eram os afortunados, que recebiam uma dádiva
e desta forma foi implantada no homem a sensatez das novas leis naturais e de como
o ser humano poderia evoluir sem agredir o seu meio. Sim, o ser humano poderia
evoluir e guerrear, e também caçar e pescar e sobreviver, mas sem jamais agredir as
leis da “Eco Justiça”.
Como ele saberia que estaria agredindo ou não? Simples estava agora na sua
consciência: tudo o que agredisse as “Leis”, agrediria o ser humano.
Então, o ser humano começou a reconstrução de seu novo mundo, formando
pequenas vilas nas áreas onde ainda havia vida, construindo um mundo diferente das
grandes cidades. Inicialmente eram vilas básicas, como na Idade Média, mas logo
foram-se estruturando, com canalização de água, esgoto, energia solar para aquecer
a água, carroças construídas com madeiras e puxadas por cavalos, casas de pedra e
palha e tijolos feitos à mão, com conforto, sem eletricidade, mas com lareira. Tudo se
tornara esquisito, mas suave, uma nova forma de vida, nada do mundo passado tinha
sobrado, nem ferramentas nem sucatas, tudo fora destruído para sempre, menos a
memória. E foi com a memória, e apenas com ela, pois não havia papel, que o homem
começou sua nova evolução.
O maior problema foi adaptar-se, afinal, em 2015, apesar da guerra, a evolução
tecnológica tinha chegado à beira do sonho. A questão de “aldeia global” era uma
brincadeira de criança perto do que era o nível de transmissão das informações.
Através da sistematização unilateral dos equipamentos, um estudante de medicina
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poderia estar, como se fosse ao vivo, numa sala de operação do outro lado do Planeta,
vendo a cirurgia em tempo real, além de sentir o cheiro e, se quisesse, sentir o gosto
dos materiais utilizados. A divulgação de produtos e serviços era feita da forma mais
obscena possível, através de canais de divulgação próprios. Eram separados por categorias e levados ao consumidor em clips com referências subliminares que levaram
o comércio sem censura nenhuma, à beira da loucura.
A cultura do Planeta se tornou única; o Planeta inteiro era apenas uma língua,
um ritual, uma estética, todos ligados por um mesmo fio de comunicação. O que era
inventado num dado momento em determinado laboratório de pesquisa era, no mesmo
instante, espalhado, quisesse o inventor ou não, para sabe-se lá onde, conforme a necessidade do outro usuário.
Portanto, era um mundo de informação sendo passado de pessoa para pessoa,
de país para país, de continente para continente em frações de segundos, desde músicas a filmes, teatros em 3D, perfumes, sabores, até arquiteturas de bombas, esqueletos
de tramas políticas. Era só querer ter as vias de acesso e pronto, estava lá, na sua
casa, a última tendência em moda da Nova Guiné ou de Roterdã ou de onde alguém
desejasse.
Mas de repente tudo acaba, não há mais eletricidade, nem computadores, nem
vias de acessos, apenas carroças puxadas a cavalo e, quando muito, água quente;
esqueça as músicas e os vídeos, os teatros em 3D ou o final de semana numa praia
virtual. Acabou. E quem tentar fazer, através da antiga fórmula está morto, pois a “Eco
Justiça” apenas descansa, mas de olhos abertos.
A “Eco Magia”
A necessidade tornou-se um lamento. Como um viciado que não possui sua
droga favorita, a tecnologia passou a ser a síndrome de abstinência do ser humano,
pelo fato de não poder mais ter contato com outras pessoas, informações, prazeres
como tinha anteriormente. A “Eco Revolta” fez do homem um obstinado em desenvolver um método para o retorno destas funções perdidas.
O primeiro passo foi de não esquecer, a memória foi a arma mais potente para
a “Eco Magia”. O segundo foi o estudo de materiais, afinal, com a “Eco Revolta” e
toda a potencialidade das manifestações naturais, surgiram do fundo da terra materiais desconhecidos até então. Novos cristais, novas plantas começaram nascer, novas
formas de vida começaram a se desenvolver e o ser humano, como uma criança,
começou a questionar e avaliar como esses novos materiais poderiam ajudá-lo na
busca da comodidade perdida.
Então, sem os recursos da tecnologia, mas com a necessidade do conforto, dos
prazeres e de todo o universo de coisas e aspectos perdidos, o ser humano notou que,
só através do desenvolvimento cerebral, poderia, algum dia, voltar a ter o momento
inventivo que ele estivera vivendo anteriormente.
A “Eco Revolta” teve o capricho de deixar as “tribos” separadas o bastante para só se encontrarem depois de muito tempo, o que tornou o desenvolvimento
das mesmas bastante diferenciado, conforme as características de cada região. Além
disso, os materiais encontrados em cada parte do Planeta eram realmente muito dife5
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rentes. Cada “tribo” passou a se dedicar a uma forma de vida peculiar comparada à
outra, mas com algo em comum. O ponto inicial, o ponto de partida foi o mesmo, o
não-esquecimento, a memória do conforto e da segurança perdida.
Inicialmente, a maior parte das “tribos” começou a desenvolver armas arcaicas, mas que possibilitavam a sobrevivência. A ferro e fogo foram construídos os
mais notáveis armamentos de defesa e ataque, a pólvora e outros tipos de explosivos
estavam não só extintos como também altamente proibidos pela “Eco Justiça”. Se
houvesse alguma batalha, iria ser à moda antiga, isto é, luta corporal.
O segundo aspecto do desenvolvimento foi a questão da alimentação e medicamentos, e foi, a partir daí, que o homem começou um poderoso processo de pesquisa
que o levou à descoberta de várias ervas, pedras, plantas e até animais que tinham
peculiaridades de poderes até então desconhecidos.
Uma das mais poderosas ervas descobertas foi a “Laxenema”, que tem o poder
de ampliação da memória, o que foi extremamente necessário, pois a palavra escrita
estava proibida. Esta erva podia ser encontrada por quase todo o Planeta e devia ser
fumada para que sua capacidade de ampliação da mente fosse efetivada. Portanto,
quase todas as tribos teriam esta erva e não estariam com o perigo do esquecimento do
passado, o que era a chave para o próximo passo; para o desenvolvimento.
Com os novos recursos materiais que traziam essas novas descobertas, a mente
do ser humano foi se ampliando. Alguns cristais davam pequenos poderes telepáticos,
outros poderiam ter funções geriátricas, algumas ervas tinham o poder de entorpecimento, outras agiam como anestésicos. Na totalidade, a natureza se mostrou extremamente eficaz com as necessidades dos homens, que, ano após ano, foram desenvolvendo funções mentais que jamais sonharam.
O desenvolvimento corporal se consolidou tanto quanto a mente, com uma
comida altamente substancial, sem aditivos químicos, com o ar puro, sem a poluição
das fábricas, com a proximidade das florestas, com a necessidade dos “trabalhos braçais” e com uma vida voltada para o dia. Sem a luz artificial e com os novos recursos
naturais, o corpo do ser humano tornou-se muito mais belo e “durável”, a expectativa
de vida quarenta anos após a “Eco Revolta” saltou para cem anos, e duzentos anos
depois para cento e oitenta anos! Além disso o aspecto do homem artesão se tornou
um fato consumado; desde o desaparecimento das fábricas, o ser humano deveria
inventar os seus próprios utensílios, que de início foram básicos, mas depois com a
sabedoria do design que havia herdado de séculos anteriores, ele começou a adaptar
esses métodos de construção de aparelhos e ferramentas não seriais em verdadeiras
obras-primas.
As tribos só começaram a se encontrar cem anos depois da “Eco Revolta” e
notaram diferenças bastante grandes acerca do desenvolvimento de umas e de outras.
Mas as informações começaram a ser trocadas e não houve atrito entre elas.
O número de pessoas de cada tribo era de no máximo vinte mil, pois a “Eco
Justiça” foi enfática quanto à superpopulação. As “Aldeias” foram organizadas de
forma inteligente e civilizada. Com o aparecimento e descoberta dos novos materiais,
as construções passaram a ter um aspecto “naturalmente” futurístico, uma arquitetura
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bastante peculiar e muito bonita, porém principalmente, funcional, sem esbanjamento
de material, sem adornos desnecessários, pois o ser humano aprendeu dentro da sua
nova evolução a venerar apenas a natureza. A capacidade dos novos materiais possibilitou o aparecimento desta “magia” que tornaria o homem poderoso.
O processo evolutivo estava encaminhado. Com a memória do passado, o
homem começou a construir sua nova condição evolutiva; uma evolução não tecnológica, mas cerebral e corporal. Foi um casamento perfeito entre um ser humano
finalmente civilizado e uma natureza selvagem e rica.
“Ortal sentou-se fatigado de sua jornada de volta e revelou, após uma imensa
dose de “Laxenema”, ao cristal de memória a história de sua vida.
Que alguém o ache e veja que o sonho de dez mil anos não foi sua culpa, que
a revolução do Império de Schaia III não foi sua culpa, e que a morte do general Arcrates era prevista, pois ele sempre teve o intuito de trair a casa de Schaia III.
O sonho de Ortal não foi o culpado, mas a culpa real foi da beleza do Mago de
Prata, nunca Deus deveria ter criado um ser assim.
Palavras de Simom Prantra, historiador herege, membro dos que tentaram
romper com o general Arcrates, depois do reaparecimento de Schaia III.
As próximas páginas são imagens da visão do cristal, achado no Planeta Azul
(Verde), por Schaia III. Para o usuário do cristal recomenda-se não levar em consideração o delírio do narrador, fruto apenas de uma imaginação que estava sob forte
efeito de uma poderosa droga. Porém, leve-se em conta que foi esta imaginação que
criou um dos maiores problemas da infinitamente longínqua vida do império, o sonho
de dez mil anos-padrão. Além disso, existem passagens, nesta narrativa, que talvez
sejam as únicas testemunhas de como era a vida no Planeta Azul povoado por seres
humanos antes da “Eco Revolta”.
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LIVRO UM
O Cavaleiro Ortal
Enquanto eu subia a encosta secreta para a aldeia, mastigava um punhado de
“malacha brena”, uma erva revitalizadora e muito refrescante. Tinha um gosto parecido com hortelã e canela misturadas, soltava um líquido que dava a sensação de algo
estar penetrando no meu sangue e enrijecendo os meus músculos. O que não precisaria muito, pois eu era muito jovem e forte, tinha os cabelos loiros, quase brancos,
pela cintura, e uma cara com uma expressão forte de guerreiro, apesar da pele lisa e
nem sinal de um fio de barba, por enquanto. Tinha os olhos claros e verdes, como era
inerente a minha raça, e os cílios compridos e negros, assim como as sobrancelhas que
contrastavam com minha cabeleira clara. Meu nariz era reto e fino como o meu rosto.
Tinha os lábios carnudos e vermelhos. Meu corpo era definido pelos músculos, os
quais não se avolumavam em demasia, mas, sempre que eu precisava deles, estavam
lá com uma força exagerada para a minha idade.
Como minhas amigas diziam, “tens a força de um guerreiro aliada à beleza de
uma criança”.
Estava me sentindo ótimo naquela manhã; afinal, tinha sido condecorado na
noite anterior com honra, pelo próprio Lorde Pompe Carmalhoc, como o mais novo
cavaleiro da aldeia. Eu tinha apenas vinte anos e já era um cavaleiro real! Que sensação maravilhosa dava o triunfo da glória, e ainda misturada com esta “malacha” e um
dia com um céu azul era algo de sonho.
A minha ida bem cedo para as “Florestas Azuis” tinha sido um tanto cansativa,
mas agora estava me sentindo realmente ótimo, e melhor ainda, poderia chegar para a
hora do almoço na casa de Greenmy, minha mãe de criação, que me adotou depois da
morte dos meus pais, quando tinha apenas alguns meses de idade. Fui morar com ela
na floresta juntamente com um grupo de pesquisadores de ervas e minerais.
Morei nas florestas até aos dez anos, onde fui instruído dos mais notáveis valores entre as plantas, rochas e animais, e suas peculiaridades e efeitos sobre nós, seres
humanos. Depois, aos onze anos, fui morar na aldeia, onde entrei para a Escola Real,
para me tornar cavaleiro, que decididamente era a coisa que mais queria.
Minha tarefa nas “Florestas Azuis” tinha sido de trazer algumas sementes de
“Florplasc” e a erva “Laxenema” de ampliação de memória para a grande festa de
hoje à noite. Eram ervas dos dias antigos e tinham a única necessidade de transmitir a
tradição, pois agora já tínhamos os memo-cristais. Estava com uma mala pendurada
pelas costas cheia dos produtos e galopava pelas encostas secretas da aldeia, o que era
uma tarefa um tanto difícil não só pelo peso da mala, mas também pela trilha, que era
bem complicada e completamente indecifrável para alguém que não fosse da aldeia, e
mesmo assim, quem estava acostumado, às vezes se perdia.
A aldeia estava localizada numa planície em cima de um penhasco e entre uma
cordilheira de altas montanhas que a cercavam, tinha uma boa alimentação de água,
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que era feita através de vários rios que desciam pelas encostas e formavam um lago.
A aldeia ficava ao redor, e as águas caíam pelo penhasco abaixo na forma de uma
enorme cachoeira de uns cento e cinquenta metros. Deste platô, onde ficava a minha
aldeia, podia-se ver o “Grande Mar Azul” que ficava depois das “Florestas Azuis”,
assim chamados pela ilusão azulada que tínhamos ao vê-los.
Ao chegar em casa, deparei-me com um enorme prato de comida no qual se
achava grande quantidade de vegetais, cereais e um enorme pedaço de tender defumado, tudo muito bem temperado e ornamentado com várias frutas em volta. Se eu já
estava me sentindo bem, agora estava melhor ainda. Larguei logo a mala num canto da
casa, lavei-me rapidamente e sentei ao lado de Greenmy, que já se impacientara com
a minha pequena demora para o almoço:
– Já estava a pensar em devorar o seu prato também! – disse-me minha mãe.
– Pois então não te demores a pegar mais um prato para me acompanhar, bela
mãe!
– Creio que, se comer mais uma uva expludo como um tomate maduro que cai
do pé! Como está se sentindo jovem e triunfal cavaleiro?
– Não poderia estar melhor. Fiz uma bela colheita para a grande festa de hoje.
Creio que vou comer este prato, tomar um bocado de vinho e deitar-me por uma hora,
afinal quero estar muito bem para minha primeira comemoração de novo ano como
cavaleiro.
– Pois então faça isso que eu me atarefo de levar a sua colheita para a praça
central, onde estão sendo efetuados os preparativos para a grande festa.
– Agradeço-lhe muitíssimo, minha mãe.
E assim comi e fui dormir como havia dito. Dormi aquele sono que se dorme
quando se está com a barriga cheia, quando se deita na cama e se tem a melhor sensação do mundo; de que realmente vai “tirar a sesta”! E lá fui eu para o reino dos
sonhos! Mas por um infortúnio, acordei sobressaltado. Tinha tido um sonho claro
e assustador. Sonhei que alguém me chamava aos prantos, como se algo realmente
ruim tivesse acontecido. Este ser estava numa caverna e tinha o rosto escondido por
uma capa que refletia uma luz prateada, à sua volta existia uma grande quantidade de
nuvens e fogo, mas ele parecia estar imune a isto. Ele estava realmente muito triste e
chorava. Era pelo que parecia, um ser pequeno, uma criança ou talvez um anão, e de
seu manto erguiam-se pequenos braços como que implorando minha presença.
Fiquei muito abismado com o sonho, pois sabia que através de certas ervas
de ampliação mental era possível ser chamado ou chamar alguém telepaticamente.
O problema era que esse poder tinha um espaço limitado de atuação, e a pessoa com
quem eu sonhara não me era conhecida, portanto não era da aldeia, e se alguém de
fora da aldeia realmente fez esse chamado, esse ser deveria ser dotado de muito poder.
Mas por que me chamaria se não me conhecia? E se conhecia, por que não
conseguia identificar seu rosto definidamente? Estava deveras intrigado e tentei não
pensar mais nisso, pois era muito assustador, triste e real, como aqueles pesadelos que
tendem a continuar um pouco após o despertar.
Saltei da cama, fui para fora, montei no meu cavalo Delirium e segui para a
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praça no intuito de ajudar nos preparativos da festa.
A aldeia em que morava era algo de extraordinário. Por mais que seus moradores estivessem acostumados com ela, sempre todos ficavam admirados com a
beleza, não só das construções, com sua simplicidade, mas também com a harmonia
que tinha com o local.
Como já disse, a aldeia se localizava num platô em cima de um penhasco de
uns cento e cinquenta metros de altura e rodeada de montanhas enormes, com os picos apinhados de neve e penhascos feitos de cristais azulados. A cor verde imperava
no local, com muitos campos abertos entre as construções, e entre estas havia muitas
flores e árvores frutíferas.
Andava por suas ruas e sentia que toda a população estava agitada com a festa
daquele dia.
Delirium, meu cavalo, trotava por sobre os cristais azuis, de que eram feitas
as ruas e calçadas, que davam um ótimo contraste com os cristais alaranjados de que
eram feitas as paredes das casas e construções, as quais tinham o telhado do mesmo
material das ruas. Portanto, formavam uma unidade visual perfeita.
Além disso, havia muitas árvores e flores em vasos multicoloridos espalhados
pelas calçadas e janelas. A aldeia era sempre muito limpa e brilhante pelo reflexo do
sol nos cristais das construções, mas naquele dia se encontrava ofuscante!
Tinha duas avenidas principais que circundavam, uma de cada lado o grande
lago central, e se encontravam numa praça que também ficava na sua beira.
A praça estava sublime. Era um círculo com oitocentos metros de diâmetro de
cristais azuis perfeitamente encaixados no chão formando uma circunferência, alternando com vasos de meio metro de altura com todo o tipo de ervas e flores, até que
bem no meio surgia uma torre de vinte metros feita também de cristais azuis e cor de
laranja.
A cidade toda era feita destes cristais, por eles terem a peculiaridade de absorverem parte da energia luminosa para soltá-la à noite, tornando-os fluorescentes e
naturalmente não desperdiçando madeira para a iluminação, lembrando que a energia
elétrica estava banida para sempre pela “Eco Justiça”. No topo da torre poderia ser
vislumbrado um enorme relógio feito de diamantes, que funcionava movido à energia
solar.
Ao pé da torre haviam portas em forma de arcos e lá dentro um grande salão
que à noite estaria transbordando de pessoas, mesas, cadeiras, bebidas, ervas e comidas por ocasião da festa.
Quando cheguei ao meio da praça, após ter cumprimentado metade da aldeia,
deparei- me com os outros cavaleiros, todos mais velhos do que eu, mas que me cumprimentaram com grande alarde e respeito. Assim, desmontei do Delirium e fui para
junto deles ajudar nos preparativos.
O que se podia fazer era arrastar cadeiras, gritar, pendurar bandeiras nas cores
azul e laranja, que eram as cores sagradas de nossa aldeia, e levar caixas com ervas e
comidas para cá e para lá, e assim por diante, conforme uma festa deve ser organizada.
Todos pareciam muito felizes e entusiasmados com o acontecimento festivo que se
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aproximava.
Então, não mais que de repente, chega montado em seu cavalo o Lorde Pompe
Carmalhoc.
Imediatamente todos os cavaleiros correram em posição de guarda e saudação,
e como não poderia deixar de ser, o Lorde, que era um homem muito espirituoso,
pulou de seu cavalo, não deu a mínima atenção para nós e correu para ajudar uma
donzela que estava tendo dificuldades com uma caixa de ervas. Desabamos a rir e
fomos da forma dele, saudá-lo, com os preparativos.
Ao terminar os preparativos, já eram quase seis horas. Todos iriam descansar, pois a noite seria longa. Estava quase a partir com Delirium quando o Lorde me
chamou a um canto:
– Quero que tu, cavaleiro real desta aldeia, Ortal, nomeado por mim mesmo
e pelos meus antepassados, que me forneceram suas memórias, saibas que hoje será
uma noite especial para ti, não apenas por ser tua primeira noite de ano novo como
cavaleiro real, mas também porque vou incumbir-te de uma missão muito especial.
Portanto prepara, não só as tuas vestimentas, para hoje, mas também tua força e coragem.
E com estas palavras se despediu de mim! Deus das ervas e das plantas! Dos
mares e dos cristais! O que o Lorde estava a aprontar comigo? Primeiro me transforma em cavaleiro (o mais jovem de todos os tempos de nossa aldeia!), agora vem
me alertar desta missão misteriosa! Fora isso aquele sonho! Tão estranho, tão... belo!
Meu Deus, que coisa me veio à mente! E logo quando ia me lembrar da figura no meu
sonho, como se isto tivesse a ver com o que o Lorde acabara de dizer, uma voz de trás
de mim berrou:
– Ortal! Pelo amor de nossos cristais, tua comida está a esfriar! – era minha
querida mãe, interrompendo meus devaneios.
Então percebi todos os outros cavaleiros rindo de mim e da cena que presenciaram. Saí dali às pressas, pois já estava sendo motivo de troça dos meus companheiros.
Cheguei em casa, comi meu jantar e pus-me a um gostoso descanso, deitado
na rede da varanda lateral de minha casa, observando o entardecer por sobre a floresta
azul. Que cena! Sorvia goles de um vinho preparado à base de uvas e castanhas,
enriquecido de gotas de mel geriátrico das abelhas douradas, que era extremamente
saudável e impedia o processo de deterioração do corpo causado pelo álcool do vinho.
Entrava então num período de devaneio. Certa melancolia passava pelo meu corpo, e
perguntava a mim mesmo:
– Não estaria eu perdendo alguma coisa neste mundo? Não existiria algo mais
aventuresco do que morar nesta aldeia? Que tipo de espírito tenho eu para querer procurar algo longe daqui deste lar tão perfeito e belo, onde todas as pessoas são amigas
e onde não há guerras nem catástrofes, como diz a história falada sobre nossos ancestrais, passando estas histórias de geração a geração através da expansão da memória?
Por que estou sentindo isso, afinal? Estaria em mim sempre e só agora veio à tona?
Então parei de pensar nas perguntas porque já tinha a resposta. Fumei um
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pouco de laxenema e fui procurar na memória o que queria. E lá estava ele, o sonho!
Esta era a resposta. Este sonho estava fazendo isso comigo, este novo espírito de aventura, esta busca por uma coisa nova que eu não sabia ainda o que era, e que estava me
corroendo o espírito.
Isto provinha deste sonho tão belo e tão misterioso.
Capítulo 2
O Mago Maior
Às dez horas a praça já estava cheia. Chegamos juntos eu e minha mãe. Ela
logo foi se sentar ao lado de umas amigas, enquanto eu fui para minha cadeira disposta ao lado da cadeira do Lorde junto às dos cavaleiros. Esperamos até que Lorde
Pompe Carmalhoc chegasse para dar curso às comemorações.
Passara-se meia hora desde a minha chegada até a chegada do Lorde. Agora
a praça estava lotada e praticamente toda a aldeia estava no local. Um homem alto e
loiro com os olhos enormes e verdes foi para o centro do salão e anunciou:
– Está aqui para a abertura desta solenidade o Lorde Pompe da família Carmalhoc, que fundou esta aldeia. Que com força e prosperidade governe, nosso Lorde,
por mais cem anos!
Todos na plateia se levantaram com um grande “Hurra!” de boas vindas ao
Lorde.
Logo veio em nossa direção, cavaleiros reais, e cumprimentou, agora solenemente, cada um de nós, que saímos atrás dele e ficamos postados ao redor de um
tablado bem no meio do salão da torre.
Assim ele começaria a cerimônia:
– Cidadãos de Carmalhoc, membros do Conselho dos Mágicos que tão solenemente cuidam do templo da memória ancestral, cavaleiros reais que preservam a
paz dos cidadãos e das outras tribos, membros da família real que têm o sangue dos
Carmalhoc. Estamos aqui para dar continuidade ao que há quatro mil anos se iniciou.
Sim, estamos comemorando quatro mil anos de existência após a queda da “tecnologia” humana. Estamos comemorando com toda a honra a sabedoria, a dádiva que nos
foi dada pela natureza para que possamos sobreviver sem agredir uns aos outros e à
nossa casa, nosso Planeta.
Houve, então, as primeiras palmas calorosas de todo o povo. Porém, sem dar
muito tempo para prosseguirem as palmas, o Lorde continuou:
– Caros irmãos; tenho a honra de estar pela centésima nona vez aqui com
vocês, desde que meu pai me concedeu esta dádiva, para passar o ano nesta bela festa.
Infelizmente não posso dizer que vá ser uma bela festa do começo ao fim.
Naquele momento, passou-me um frio na barriga, era o que eu esperava.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Há algum tempo – continuou o Lorde – abateu-se uma grande calamidade
sobre nós da raça humana.
Por todo o povo pairou um imenso pesar, e logo que o Lorde continuou a falar
só se podia ouvir um silencioso medo.
– Como sabem, a cada cem anos existe uma reunião de todas as tribos conhecidas. Reunimo-nos no Espaço Piramidal Dourado, onde desde há três mil e quinhentos
anos trocamos informações sobre nossas vidas, nossas novas curas, novos elementos
naturais, novos procedimentos para com a natureza. E a cada cem anos descobrimos
não só novas tribos como novas experiências, que nos trazem esta felicidade que
temos hoje.
“Embora tivesse sido proibido contar para os outros membros das tribos, devo
agora dizer-lhes um segredo que na última reunião, há
duas semanas, foi liberado com aceitação de todos os Lordes, governadores e
responsáveis de todas as tribos conhecidas. Este é o segredo que nos foi relatado por
nossos antepassados e que vem caminhando durante os séculos na obscuridade:
Há dois mil anos, assim me relatou meu pai, o Lorde Nasteu Carmalhoc. Apareceu em uma de nossas reuniões um ser muito diferente. Ele era muito belo e trajava
um manto comprido até os pés, inteiramente prateado. De seu íntimo emanava uma
força espiritual que dava a todos os presentes uma sensação muito boa, muito confortante. Este ser, passou por todos nós sem nos olhar, tomou o tablado central do Espaço
Piramidal Dourado e logo foi falando:
– Caros amigos desconhecidos, venho de muito longe e por isso vós não me
conheceis. Permiti-me então me apresentar. Sou o Mago Maior do clã dos Magos de
Prata. Nossa aldeia é formada por uma família muito antiga que vem prosperando por
si só entre as Selvas Tristes. É assim que nós a chamamos, embora não tenha nada de
triste. Infelizmente, por motivo de segurança, e logo ides saber por que não lhes posso
dizer onde ela fica, mas o que posso dizer é que como todos que aqui estão, venho
em missão de paz e de troca. Se me aceitardes entre vós, ficareis muito gratos pelas
magias que trago na minha cartola.
Repentinamente, surge de suas mãos uma enorme cartola prateada, e todos no
local ficam muito surpresos. Mas o Governador da província do Extremo Sul revelarase um tanto descortês:
– Desculpe-me, caro Mago Maior, mas infelizmente não sabemos de sua procedência e simplesmente, como o senhor mesmo diz, por questão de segurança, não
podemos aceitar um novo membro sem saber de onde vem e nem mesmo quais são
suas intenções para conosco.
– Caro Governador Devidê, do Extremo Sul – falou o Mago. – Se estivesse
aqui para causar desarmonia, já há muito tempo teria causado, pois na realidade há
muito meu clã vem estudando os senhores, suas funções, suas aldeias e com isso interpretamos que deveríamos nos envolver e ensinar algumas de nossas magias para a
melhoria de vossas vidas sem agredir a “Eco-Magia”. Mas como estou vendo que sou
malquisto nestas paragens, devo dizer que tenho mais o que fazer.
E foi saindo, com um andar que mais parecia estar levitando. Mas logo o Gov13
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
ernador Devidê se levantou e falou:
– Perdoe-me, senhor Mago Maior do Clã dos Magos, sou um homem nervoso.
Apesar de não parecer, por trás dessa minha máscara mal-educada se esconde um
homem bondoso e humilde; apenas zelo por esta gente assim como eles zelam por
mim, suas tribos, e por eles mesmos.
Então, o Mago voltou-se a todos e falou:
– Espero que todos concordeis com o senhor Devidê.
E todos os que estavam presentes fizeram um gesto afirmativo, muito cauteloso.
O Mago voltou para o tablado central com um sorriso no rosto e disse:
– Não me temais nem a mim nem à minha magia. Ela é bondosa como eu e
meu povo. O que vós vedes e sentis vindo de mim pode ser um tanto estranho e ao
mesmo tempo fantástico, talvez por isso tenhais medo, por verdes algo que não compreendeis e nem vossos ancestrais vos transmitiram através da memória.
Pois bem, devo dizer que estes poderes vieram graças, não só ao lugar de
onde viemos, mas também da qualidade do meu clã, que vem herdando isto desde os
primeiros ancestrais desde a “Eco Justiça”.
Os primeiros a sobreviver faziam parte de uma família de cientistas, dotados
de uma enorme curiosidade e uma encantadora visão do mundo. Eram muito estudiosos, não só atrás de máquinas e equipamentos, mas também de campo. Era uma família muito grande e unida e estavam num lugar remoto quando aconteceu a devastação
da “Eco Revolta”, há exatos dois mil anos.
Como por milagre, todos sobreviveram. Realmente não estavam acreditando
no que estava ocorrendo. Eram mais ou menos quarenta pessoas ligadas por um forte
parentesco. Eles tinham, antes da “Eco Revolta”, uma empresa de pesquisas e possivelmente estavam em férias quando tudo aconteceu. O mais velho de todos reuniu
toda a família e disse que tinham que começar a trabalhar pela sobrevivência. Fizeram
então uma base-acampamento para estudar o local e ver quais eram as possibilidades
de vida. Dividiram-se em equipes e começaram a colher materiais. Após três meses
de pesquisas, ficaram espantados com o número de pedras e ervas novas que tinham
encontrado e com suas peculiaridades.
Após um ano de pesquisas, um dos jovens que tinha saído para uma busca
temporária voltou à base dizendo que tinha encontrado a maior surpresa até então.
Alguns dos cientistas foram verificar e logo voltaram dizendo que tinham achado um
lugar para morarem.
O lugar era um verdadeiro palácio feito de cristais. Quando entraram por uma
passagem extremamente estreita, descobriram num magnífico campo inteiramente
florido com uns mil metros de diâmetro e uma muralha de cristais em sua volta. Era
um lugar perfeito, mais perfeito ainda quando um dos cientistas descobriu que havia
um rio, correndo bem no meio do campo.
Assim o pequeno clã se instalou ali e passou a vida pesquisando, estudando
materiais novos, descobrindo e principalmente procriando.
Hoje, dois mil anos depois, somos mil habitantes daquelas paragens e temos,
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
graças a esses ancestrais que, além de estudarem, passaram as informações aos seus
filhos pelos métodos que vós conheceis e outros, toda a sabedoria que fez do nosso
clã o que ele é hoje.
Uma das coisas que logo foi descoberta e quero que seja um presente para todos vós e os seus, é este cristal, que, tenho certeza, vós tendes nos arredores de vossas
aldeias, mas não sabeis como empregá-lo.
– Não preciso dizer – falou o Lorde ao povo – que todos estavam abismados
não só com a narrativa do Mago Maior, mas também com a força e autoconfiança que
emanava dele. E com muita curiosidade juntaram-se para ver o cristal. Então, descobriram o que temos de mais valioso na nossa cultura.
– Vede senhores – falou o Mago. – Até agora toda sua sabedoria é passada de
pai para filho, de professor para aluno. Através da linguagem falada e por suas ervas
de expansão da memória, elas são mantidas, quase que imortalizadas, nas cabeças dos
seus. Isto pode mudar.
– Então – falou o Lorde – ele pegou um grande anel de cristal e colocou sobre
sua cabeça; anel este que ficava flutuando em volta dela. O Mago retirou uma areia
prateada de uma pequena algibeira e jogou por cima de sua cabeça. O pó prateado
começou a flutuar. O Mago fechou os olhos e por cinco minutos ficou assim, com o
pó caindo lentamente sobre o anel de cristal. Então, abriu os olhos, tirou o anel e deu
para um dos Lordes. Pediu para colocá-lo na cabeça como havia feito.
O Lorde pegou o cristal, colocou-o na cabeça e sentiu o que um memo-cristal
faz, isto é, a transferência de memória. Toda a história que o Mago tinha contado foi
transferida, através do cristal, para todos os Lordes, um de cada vez, e assim os Lordes
ensinaram todas as tribos a usarem o memo-cristal.
E desde então este povo maravilhoso vem, a cada cem anos, nos ensinando a
usar novos materiais e novas maneiras de explorarmos o mundo que temos.
Até hoje isso era segredo, até que no último encontro nenhum mago apareceu.
Então, resolvemos contar isso a cada membro de cada tribo.
Quando o Lorde terminou de falar isso, todo o povo estremeceu e ele mesmo
ficou muito triste.
– Então, nós que estávamos reunidos – continuou – decidimos tentar um contato com o Clã dos Magos. Pusemos todos juntos os cristais de transferência telepática
e por muito tempo ficamos nos concentrando. Não tínhamos notado o tempo passar.
Ficamos nesse estado extático durante três dias. Caso não fosse a nossa alimentação
enriquecida com o mel geriátrico das abelhas douradas, poderíamos ter sucumbido,
pela tamanha força que havíamos feito para manter o contato. Por fim, no término do
terceiro dia de concentração, os cristais telepáticos começaram a vibrar. O que poderia
ser uma pequena felicidade por termos entrado em contato, terminou na maior calamidade já vista por olhos humanos desde a “Eco Revolta”.
Vimos os corpos dos que achamos que era toda a população dos Magos no
chão, mortos, já em decomposição. Vimos a Cidade de Prata em ruínas. Vimos o
sofrimento estampado nos olhos abertos daqueles que estavam mortos e não tiveram
tempo de fechar. Vimos o desespero, o horror, sentimos o que a história falada conta
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sobre o holocausto, sim, meus irmãos, vimos o holocausto, a tragédia da perda de um
amado povo, de uma amada família. O lugar estava devastado, construções em ruínas,
animais mortos, plantações queimadas, corpos retorcidos, tudo indicava a devastação
total de um povo, e o que era pior, se conseguiram devastar, sejam eles quem forem,
este povo que era o mais instruído que nós conhecemos, que fariam a nós que fomos por séculos e séculos seus alunos? Mas não enxergávamos com nossos próprios
olhos, víamos tudo aquilo através dos olhos de alguém que, obviamente, nos transmitia aquelas imagens telepaticamente. Então, a figura se olhou no espelho de uma
grande sala por onde entrara e pudemos, com muita mágoa, mas com uma pontada de
alívio, perceber que restara um Mago, que por alguma razão se olhara no espelho com
metade da cara escondida por seu manto de prata. Então, pudemos ouvir por sua fina
voz algo que me fez chorar, não só a mim, mas a todos aqueles que estavam assistindo
a tamanho horror:
– Me ajudem!
E ele, como que por encanto, desapareceu. E só ficou na nossa memória um
meio rosto, deformado por um espelho sujo, com uma expressão de profundo sofrimento.
Eu estava horrorizado, por pouco não caí em lágrimas como quase todo o povo
fazia. Só não o fiz por uma simples razão: tinha certeza de que o Mago que me chamara no meu sonho era o mesmo que entrara em contato com os Lordes em reunião.
– Povo de Carmalhoc – continuou o Lorde – não nos desesperemos! No
começo, logo depois da notícia, foi difícil de tomar alguma decisão quanto a isso.
Mas depois de muito discutirmos, chegamos à seguinte conclusão: sabemos que os
magos compartilhavam sua sabedoria com todos os membros da aldeia, e sabemos
que um deles está vivo. Agora pergunto: como ele está vivo? Temos várias hipóteses:
ou ele fugiu na hora do ataque; ou não estava lá no dado momento; ou, e é no que mais
queremos acreditar, ele tem algum poder que os outros não tinham e pôde, por meio
deste, se salvar. E mais! Ter feito os atacantes recuarem, pois ainda existia algo a ser
saqueado, e coisas pelo chão, muito valiosas, como que deixadas cair por pânico na
hora de uma fuga! Foi o que vimos por seu relato telepático.
Mesmo com o coração partido por toda a história relatada pelo Lorde, consegui
finalmente ter um momento de esperança no fundo de minha alma. E pensei comigo
mesmo, “sim é claro que ele, seja lá quem for, tem este poder”.
– Irmãos, – continuou o Lorde – elaboramos no Espaço Piramidal um plano
imediato. Amanhã, um cavaleiro de cada tribo – meu coração disparou – irá sair pelo
mundo afora para achar o Mago de Prata que sobrou. Quem achá-lo deverá, imediatamente, trazê-lo para os seus e faremos contato com as outras aldeias. Ao trazer este
mago, temos certeza que poderemos saber quem é este povo maldito e como proceder,
e então provocaremos o maior distúrbio já causado na Terra desde a “Eco Revolta”.
Enquanto estes cavaleiros, que os Cristais abençoem suas existências, o procuram,
pelas ervas, aprenderemos a lutar e em conjunto derrotaremos quem fez isto aos nossos irmãos prateados!
E com isso, esmurrou a mesa à sua frente e todo o povo urrou em favor de tal
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resolução. Eu estava atônito! Sabia que seria o escolhido, tinha certeza! E quanto ao
Mago! Ele aparecera no meu sonho! E certamente iria aparecer de novo. Eu poderia
achá-lo!
– Queridos cidadãos de Carmalhoc – continuou o Lorde – Sentemo-nos agora,
que a calma nos proteja do infortúnio; deveremos prosseguir com nossa cerimônia. Os
menores devem saber que tipo de pessoas nós somos e como eles devem proceder no
futuro para que possamos sempre continuar sendo assim, um povo que faz da natureza
sua casa, sua irmã e sua amada.
Então, a cerimônia continuou não como sempre, mas triste, como não deveria
ser e lenta. As pessoas comiam sem vontade e bebiam apenas por compaixão à alma,
pois esta merecia um alívio nem que este viesse da bebida. Após a ceia, fizemos, como
sempre, o culto à memória e passamos aos mais jovens as memórias do que somos
e de onde viemos e por que vivemos assim, em comunhão com a natureza. Depois,
fumamos a erva laxenema para mantermos tudo o que foi dito vivo em nossas mentes.
Logo após todos os procedimentos normais da festa, o Lorde, muito solenemente, se levantou e pediu que todos se mantivessem sentados. Então, me puxou
gentilmente pelo braço e me postou no centro do tablado central. Fez um gesto de
reverência para mim, o que me deixou avermelhado, e falou:
– Cavaleiro Real Ortal, terás o fardo nas tuas costas enquanto alcanças o Extremo Norte, que é para onde vais amanhã ao amanhecer, em nome de tua casa, de teu
pai e de tua mãe, de mim e de teu povo.
“És o que mais corresponde a este trabalho, pois sabes lutar como um experiente cavaleiro, apesar de seres jovem; e és o mais experiente cavaleiro em sobrevivência nas florestas, pois és instruído, desde menino, na magia das ervas e cristais,
sabendo usá-los melhor do que todos os outros.
Por este motivo nomeei-te cavaleiro tão logo cheguei da reunião que fatidicamente nos revelou tal catástrofe. Tenho certeza que acharás o Mago de Prata e
logo trá-lo-ás para cá, para que possamos, com a ajuda dele e das outras tribos, nos
defender daqueles que matam e destroem nossa conduta de paz e fraternidade entre os
seres que habitam este Planeta.”
Olhei para ele com extrema seriedade e depois para todo o povo, e com enorme
convicção, que até alarmou a todos, declarei:
– Tenho absoluta certeza, e que todos os cristais quebrem se isso for inverdade,
que acharei não só o Mago de Prata, mas nosso futuro e nossa sorte.
Com isso, todas as pessoas se levantaram e me olharam, primeiro assustadas,
pois nunca me haviam visto falar daquele modo, e depois, muito expressivas, soltaram
um “hurra!” E assim terminou a festa.
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Capítulo 3
O Mago de Prata
Acordei às seis horas da manhã. O sol não havia despontado, mas todos os
cavaleiros reais estavam mais que despertos me esperando na porta de minha casa,
enquanto me despedia de Gren. Logo que saí, ouvi um murmúrio de bom-dia. Todos
pareciam muito tensos. Montei em Delirium e eles me levaram à Casa Real, onde o
Lorde morava.
Todos na aldeia sabiam que aquela casa era especial, não só porque ali morava
o senhor mais ilustre da aldeia, mas também por guardar todos os memo-cristais, os
cristais que continham toda a memória de nossa cultura. Entramos na grande casa
pela porta principal. Era uma grande porta feita de cristal laranja, assim como todas as
outras, mas esta era especial. Tinha adornos feitos pelos melhores artesãos da aldeia;
não causava impressão de riqueza, mas seriedade.
Naquela hora o sol começava a raiar e logo que entramos sua luminosidade
nos acompanhou, mostrando com ela um enorme salão com vários metros de altura, e
uma cúpula redonda que fechava o ambiente. Esta cúpula era dotada de cristais transparentes que, quando os raios solares nela incidiam, quebravam o espectro branco da
luz em um arco-íris artificial, dando ao ambiente um efeito muito especial. Depois de
quatro mil anos manipulando toda sorte de cristais, o homem aprendeu muito bem
como manejá-los!
Um homem muito alto e magro veio ao nosso encontro. Tão logo me viu, disse:
– Tenho alguns memo-cristais que servirão para sua bem– aventurança, nobre
e corajoso cavaleiro. Saiba, antes de recebê-los, que não estará aqui, dentro da proteção de quatro paredes, quando usá-los, mas, sim, em lugares pouco conhecidos por
homens e que dificilmente chamaria de amigáveis. Portanto, aconselho a usá-los, para
sua própria segurança, em lugares que sejam de difícil acesso para predadores, pois
sabe que quando está usando um destes cristais, seus sentidos são absorvidos para o
interior da informação que os cristais contêm, tirando você da realidade em que se
encontra para a da informação do cristal.
– Sim, mestre-guardador de cristais, respondi. Agradeço-lhe profundamente o
empréstimo de tão valioso material.
– Tenho certeza de que os memo-cristais que escolhi para sua viagem lhe servirão bem, pois suas informações contêm desde memórias para o aprendizado de autodefesa até entretenimento musical. Veja: com este pequeno cristal você poderá ter
um resumo de todos os outros e saber onde está a informação de que precisa, é só
colocá-lo na testa, como de costume, jogar a areia prateada e pensar no que quer. Esta
é uma mágica valiosa, que o povo dos Magos nos ensinou há dois mil anos. Tenha
cuidado para que não caia em mãos erradas.
Desta forma, deu-me um cinturão com vários pequenos cristais de todas as
cores e uma algibeira com a areia prateada. Virou as costas e entrou num outro salão.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Os cavaleiros me olharam e vieram comigo para fora. O mais velho de todos,
veio com um olhar muito sério e me disse:
– Ortal, nos conhecemos há mais de doze anos, quando você ainda era uma
criança. Tenho por você um amor quase como de pai. Desejo-lhe, assim como todos
os cavaleiros, nesta jornada, toda a sorte possível. Sabemos que é muito bom nas
florestas em termos de sobrevivência, mas preparamos esta maleta para você. Ela
contém vários tipos de alimentos, ervas, e alguns cristais-fluorescentes para iluminar
seu caminho no escuro, além de facas e iniciadores de fogo.
Então, muito solenemente, tirou seu cinturão de couro e me deu com sua
enorme espada inteira esculpida no diamante-roxo, o mais nobre dos diamantes, que
corta qualquer material conhecido de nossa cultura.
Estava comovido e assustado. Sabia que seria uma dura missão, mas agora estava totalmente comprometido, pois, para que um cavaleiro real desse sua mais nobre
arma, a situação deveria ser realmente extrema.
Quase tremendo, peguei o presente e imediatamente dei-lhe a minha espada,
como manda a tradição. Agradeci e tomei o caminho para a trilha secreta. Todos os
cavaleiros me acompanharam até o final da trilha e, com um grande “Hurra!”, me deixaram à mercê de minha tão amiga Floresta Azul. Assim começou a maior aventura
de minha vida.
Galopava por um corredor de árvores numa trilha conhecida para o norte.
Como estava muito familiarizado com aquele caminho, resolvi revisar mentalmente
minhas armas. Tinha dois lançadores de dardos muito possantes, amarrados nos meus
antebraços, que funcionavam com uma fibra elástica, tirada dos tendões de uma ave
de rapina. Estes dardos eram mortais, pois continham a toxina de uma larva marinha
muito perigosa encontrada nas encostas do grande Mar Azul e podiam ser facilmente
recarregáveis. Tinha várias facas penduradas pelo corpo, duas com lâminas envenenadas sendo que uma estava alojada nas minhas costas, embaixo da nuca, e a outra
ao lado de minha canela esquerda. Tinha mais duas facas, uma na cintura na forma
de facão e outra do lado de minha tíbia direita. Além disso, trazia mais um facão embaixo da cela de Delirium assim como estrelas de diamantes-roxos, que poderiam ser
lançadas manualmente, herdados do Povo Oriental Amarelo e um arco com flechas
para caçar. Por fim, para o meu deleite, a espada mais poderosa de toda a aldeia, dada
pelo mais nobre e antigo cavaleiro real. Realmente, em termos de armamento estava
sossegado, gostaria apenas de não precisar usá-los.
Andei muito depressa até as fronteiras extremas do norte da Floresta Azul.
Quando cheguei lá, já estava quase escurecendo, então resolvi montar o primeiro
acampamento da minha jornada.
Havia bastante comida na mochila que meus colegas cavaleiros tinham preparado para mim, mas como ali ainda era um território bastante conhecido meu, resolvi caçar. Sabia que por ali perto haviam algumas tocas de coelho, desta forma não
foi difícil capturar um. Também não foi difícil encontrar alguns cogumelos e ervas
para temperá-lo. Meu jantar estava perfeito. Só faltou algo para beber. Então logo
me lembrei de um pequeno córrego mais para a direita. Achei água. Fiz uma fogueira
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utilizando-me da maneira natural, isto é, sem utilizar os iniciadores de fogo, pois
poderia precisar para um momento posterior.
Após o belo jantar, amarrei minha rede no topo de uma árvore muito alta e
escolhi um memo-cristal qualquer para o meu entretenimento. Assim que lancei a
areia prateada por cima de minha cabeça, imagens e sons começaram a aparecer. Eram
imagens muito estranhas das antigas cidades, antes da “Eco Revolta”. Fiquei realmente atordoado. Como as pessoas conseguiam viver assim? Colunas de construções
surgiam por todo o espaço. Um barulho infernal de veículos e pessoas a tagarelar sem
o mínimo de educação, uma fumaça que cheirava muito mal. Sentia o gosto de uma
comida pavorosa como que feita por produtos inexistentes na natureza. Comecei a
passar muito mal.
Uma voz surgiu acima de todos os ruídos e começou a explicar as imagens que
iam surgindo.
“A raça humana, antes da ‘Eco Revolta’, era uma raça que tinha, na maioria
das vezes, crenças nos valores materiais acima de tudo, mais ainda que na vida. Na
verdade, segundo algumas discussões entre os pensadores das tribos, eles desacreditavam da vida, principalmente nos últimos anos antes da ‘Eco Revolta’.
Eles tinham como crença deuses que eram ditados por instituições, tecnologias artificiais. Sua sabedoria evoluiu através de guerras. Tinham como parâmetro de
poder algo denominado dinheiro, que era baseado no... ouro! Sim, num metal completamente sem valor potencial nenhum! Na verdade eles se ornamentavam de ouro e
diamantes! Compostos químicos que hoje em dia servem para camuflar minerais de
verdadeiro valor potencial para nossas vidas.
Além disso, usavam um poluente poderoso para gerar energia, chamado
petróleo. Praticamente, toda a humanidade dependia desse produto altamente tóxico
para nosso Planeta. Hoje em dia, só o fato de se falar esta palavra pode causar um terremoto em algum lugar do Planeta, de tão proibido que é pela ‘Eco Justiça’!
Uma tecnologia que se transformou através da guerra, chamada de tecnologia atômica, baseada na transformação de matéria em energia liberando assim uma
enorme explosão que danifica de maneira...”
Imediatamente tirei aquele memo-cristal. Senti um certo desprazer por aquela
humanidade. Como poderiam crer num deus que era a fachada de uma instituição? E
o pior: será que não sabiam que Deus, na verdade, é a vida, e que a vida está acima de
tudo? E que a natureza faz parte da vida e nós fazemos parte da natureza e, portanto,
somos o ser mais valioso que existe? Como podem chamar de evolução algo que
destrói a vida? E essa história de se adornar com ouro! Ouro? Que diabos de metal é
esse que não serve para nada? E diamantes! Imagine que temos uma cordilheira inteira de diamante de um pólo ao outro dividindo o oceano! Que bando de idiotas eram
esses seres humanos!
Coloquei um outro memo-cristal em contato com minha testa, pois já não
aguentava aqueles pensamentos. Lancei novamente a areia prateada. Começou a fluir
algo que poderia ser chamado de uma música suave, com uma batida ritmada quase
que lenta. Aquilo foi inspirador. Deveria ser algum tipo de música das paragens do
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Extremo Sul, que dava um aspecto quente à melodia, realmente muito apaziguador! E
foi ao som dessas melodias sulinas que me embalei para o reino dos sonhos.
Era um caminho feito de cristais azuis fluorescentes, e, por ser noite, estava muito iluminado por sua própria fluorescência. Caminhava muito lentamente e
com um certo receio, pois era um caminho desconhecido. Um corredor de plantas
me acompanhava e o aspecto azul-luminoso, emergindo de baixo para cima, num
degradê fantástico, dava ao lugar um aspecto delicioso. O caminho continuava por
quilômetros adiante, mas algo me chamava para a esquerda e foi o que eu fiz. Tomei
um caminho muito fechado. Praticamente ninguém tinha passado por ali há anos. No
caminho deparei-me com uma enorme pedreira preta. Existia ali uma caverna meio
que escondida por entre as plantas. Foi dali que saiu um brilho prateado que, como
por encanto, me chamou.
Depois, esse pequeno brilho foi se transformando numa enorme luz branca,
que, ao despertar, notei que era o sol iluminando meu sonho. Então tive certeza, era o
Mago de Prata que estava me mostrando como achá-lo.
Desci da enorme árvore com minhas coisas. Tão logo toquei o solo, alimentei
Delirium e comi um pouco de barras de cereal com café adoçado com o mel geriátrico
das abelhas douradas. Aquilo me deixou imediatamente revitalizado. Passei para a
segunda etapa da minha viagem, as montanhas do caminho do norte, não muito conhecidas e portanto um pouco mais perigosas do que o primeiro dia na Floresta Azul.
Delirium parecia estar muito feliz e trotava depressa por entre a mata, agora
já desconhecida. Invadiu-me um certo desestímulo, talvez por não conhecer o lugar e
achar que estava no caminho errado. No começo foi apenas um leve desconforto, mas
depois de percorrer longo tempo, fiz Delirium relaxar o passo. Estava começando a
ficar preocupado. Foi quando avistei um descampado muito bonito que ia se elevando
num tom esverdeado com várias flores pelo caminho. Era a primeira subida para uma
baixa montanha. Animei-me um pouco, pois sabia que aquele tipo de flor dava um
ótimo tempero adocicado para qualquer cozido; desta forma comecei os preparativos para o almoço. Já estava com um pouco de fome e seria ótimo dar uma pequena
parada e deslumbrar a vista com aquele descampado.
Era realmente bela. A Floresta Azul daquele ângulo já impedia a visão do
Grande Mar Azul, mas de qualquer maneira podiam-se ver várias cascatas caindo
aqui e ali das montanhas do caminho do norte.
Com uma flechada precisa consegui abater um pequeno dragão amarelo, uma
espécie de réptil, que tem o gosto parecido com o de frango, e que daria um ótimo
cozido junto com aquelas flores e mais alguns temperos à base de ervas que meus
colegas cavaleiros colocaram na mochila para mim.
Após a refeição, senti-me um pouco atordoado, o que me deixou um pouco
preocupado, pois estava acostumado a fazer grandes viagens. Pensei logo em tirar um
breve cochilo, pois achei que fosse o almoço que me deixara com aquela lassidão.
Estava enganado. Não foi o almoço mas, sim, a magia! Logo que adormeci,
me veio à mente um riacho. Parecia que eu estava dentro de uma pequena canoa e
navegava em suas águas. De repente, vi que estava prestes a cair numa grande cascata.
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Não tinha como sair do barco e assim fui, com velocidade cada vez maior, em direção
do abismo. E quando o barco caiu, como por uma forte magia, eu não caí. Soltei-me
do barco e comecei a voar! Estava vendo em minha frente a Floresta Azul. Olhei um
pouco mais para baixo e vi um descampado e então... Lá estava eu, deitado e sonhando comigo mesmo! Que visão fantástica! Parecia que estava fora do meu corpo e
estava me vendo. Então, virei a cabeça um pouco para a direita e comecei a aterrissar:
Caí dentro d’água, provavelmente no mesmo rio em que estava com o meu barco antes da cachoeira. Sim, era o mesmo rio, pois o barco estava lá na borda já quebrado.
Fui para uma das margens e lá fiquei sem me mexer. Algo me impedia de sair do lugar.
Acordei sobressaltado. Delirium comia logo ao meu lado e a fogueira que tinha
feito para o almoço estava ali, ainda acesa. Olhei para cima e vi claramente, com um
arrepio na nuca, o lugar de onde tinha decolado o vôo! Recolhi imediatamente minhas
coisas e saí em disparada, pois já sabia qual o caminho que deveria seguir. Não era tão
perto como imaginava. Passei a tarde percorrendo o rio até chegar próximo do barulho
da cachoeira. Estava uma tarde gostosa e refrescante, pois o rio liberava, não só um
aroma delicioso como também uma umidade que tornava o ar muito leve. A trilha ao
lado do rio era divertida. Várias espécies de esquilos brincavam por entre as flores e
corriam quando eu passava por eles. O tempo parecia fluir levemente naquela tarde.
Ao chegar ao lugar que vira no sonho, já era quase o entardecer. Desmontei de
Delirium e comecei a fazer os preparativos para o acampamento. Acendi o fogo e tive
uma ideia ótima. Deixei no fogo alguns peixes que havia pescado. Tirei toda minha
roupa e me atirei nas deliciosas e mornas águas do rio.
Fiquei por alguns minutos me banhando até que, exausto de tanto pular e brincar naquelas águas, me sentei numa pedra na margem. Fiz duas enormes tranças na
minha vasta cabeleira, pois ela me incomodava um pouco na viagem.
Logo que terminei a segunda trança, fiquei tenso. Senti que estava sendo observado. Levantei-me rapidamente e num pulo olhei para trás. Imediatamente ouvi uma
deliciosa risada infantil. Notei um pouco alarmado que minha refeição noturna não
estava mais no fogo, mas desaparecera com a risada por entre a floresta.
Corri para minhas coisas com o intuito de me vestir, mas já era tarde. Minhas
roupas também tinham sido levadas. Pelo menos minhas armas e Delirium estavam
intactos. Peguei um cobertor na cela de Delirium, o que pôde me trazer um certo conforto, pois já não estava totalmente nu. Foi quando ouvi de novo aquela risada. Peguei
minha espada e coloquei rapidamente os lançadores de dardos nos meus antebraços.
Corri na direção de onde viera a última risada, mas nada havia lá, nem sequer
marcas de pegadas. Parei por um momento e nada. Olhei para a fogueira muito devagar e notei uma pequena figura sentada numa das pedras em volta do fogo. Olhava-me
muito curiosa e vi que minhas roupas já estavam no lugar.
Relaxei o corpo e, com um olhar de quem acaba de cair numa troça, dirigi-me,
com muita cautela, em direção à figura, sentada na minha improvisada sala de jantar.
Ela reagiu de maneira estranha. Como mantive a espada desembainhada e em guarda,
notei que ela iria fugir. Abaixei a espada e finalmente consegui ter um vislumbre de
quem tinha me pregado uma peça.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Tratava-se de uma pequena criatura, impossível de determinar o sexo, mas
muito linda. Tinha os cabelos um pouco despenteados, muito loiros, e chegavam até o
chão devido ao tamanho dessa pessoa, se realmente fosse uma pessoa, que se encontrava sentada. Tinha dois enormes olhos azuis, um nariz muito pequeno e arrebitado.
Cílios enormes juntamente com duas sobrancelhas oblíquas emolduravam um olhar
agora quase calmo. Fiquei olhando para ela (imaginava agora se tratar de uma linda
menina de mais ou menos oito anos) e vi que parecia estar iluminada. Cheguei mais
perto e ela não se mexeu. Soltei calmamente minha espada e me sentei na sua frente.
Estava atônito. Jamais vira um ser assim. Estava seminua, apesar de o longo cabelo
cobria a maior parte do seu corpo. Então me lembrei de que estava seminu. Tive um
arrepio de frio. Peguei minhas calças e me vesti rapidamente. Notei um olhar brincalhão na sua cara. Mas com um pouco de mau humor, falei:
– Onde está meu jantar?
Ela não respondeu. Apenas ficou me olhando agora com um olhar um pouco
vazio. Notei então que a cor de sua pele era prateada! Senti um frio na barriga. Seria
ela o Mago de Prata? Não, não era possível. Não era assim que ele se apresentara no
meu sonho.
– Sou a Irmã Floresta – ela me disse com uma voz que quase que me fez chorar
de tão bela.
– Estás me dizendo que és a irmã do Mago? – perguntei.
– Não – respondeu. – Estou dizendo que sou Irmã Floresta, e você é Ortal.
Pode chamar de Irmã e, se quiser, posso ser sua irmã também, além de ser da Floresta.
Era um delírio, enquanto ela falava. Parecia que mil vozes, dela mesma, saíam
de sua boca, como se fosse um coro infantil cantando só para mim. A música que embalou o meu sono na noite passada era uma afronta perto disso.
– Gosta de música? – perguntou.
– Adoro – respondi – apesar de que, por ora, meus peixes fariam um efeito
melhor.
– Gosta de borboletas? – perguntou.
– Gosto – respondi, tentando não perder a paciência, mas também achando
aquilo um tanto divertido.
Então, com um movimento de seus pequenos braços, recitou uma pequena
cantoria com uma bela melodia:
– Borboletas divertidas, peixes saborosos, batatas rechonchudas, aparecer depois das batidas!
E com duas palmas, a fogueira se iluminou. Dei um pulo para trás, de susto. Vi
várias borboletas saírem voando do nada, e meus peixes lá estavam de volta no espeto,
além de, pendurada num galho, uma panela. Fui ver. Um pouco assustado ainda, me
deparei com uma enorme porção de batatas com todos os tipos de ervas dentro!
Sentei-me de novo na pedra e olhei muito seriamente para a pequena nova
amiga. Ela me encarou com um olhar agora místico. Sua beleza era desconcertante.
– És do povo prateado, cara Irmã Floresta? – perguntei.
– Irmã Floresta, da Floresta. Pequeno Mago de Prata, amigo da floresta. Gosta
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
de borboletas e de peixes também. Não pode sair do templo, nem ser olhado por ser
vivo. Gosta de Irmã Floresta. Irmã Floresta gosta do Mago, somos amigos! – Respondeu muito rapidamente.
– Ele te mandou aqui? – Perguntei.
– Sim.
– Para quê?
– Vou levá-lo, ser sua amiga e sua irmã, se quiser minha companhia – agora a
voz tinha mudado.
Era como uma donzela e de seu olhar saiu um súbito momento de paixão ao
cruzar com o meu enquanto falava. Fiquei um pouco atordoado com isso. Que tipo
de ser era este? Por nenhum momento me pareceu maligno. Mas como uma criança
poderia transmitir um olhar daqueles?
Olhou para mim novamente, agora com o olhar infantil de novo:
– Já está quase pronto, quer que pegue água? – perguntou, um pouco tímida.
– Sim, por favor – respondi. Foi aí que estremeci por completo! Não era um ser
humano nem um ser conhecido por nós até hoje, ou pelo menos eu nunca tinha visto
nada igual. Quando ela se virou, notei pasmo que seu corpo era realmente pequeno,
talvez, de uma criança de oito anos, e o que tinha nas costas! Pelos cristais! Eram duas
enormes e belas asas de borboleta azul! Do mesmo tom de seus olhos. Então ela se
virou para mim num gesto muito malicioso e com um sorriso, agora tímido, me deu
uma rápida piscadela.
Estava nas nuvens! Que ser maravilhoso! Que tipo de mutação sofrera? Será
que existe um povo inteiro assim? Ou ela é única, ou quem sabe fruto da minha
imaginação ampliada pelo Mago, ou uma criação do Mago com o intuito de me levar
até ele? Enquanto questionava em silêncio, ela voltava com a água e via que eu ainda
estava pasmo. Então se sentou e com gestos muito graciosos começou a me servir.
Preferi não fazer mais perguntas sobre ela. Imaginei que o que ocorreu como o povo
do Mago poderia ter acontecido com o dela, e nunca gostaria de ver aquele lindo rosto
triste. Comemos juntos em silêncio até que finalmente ela falou:
– O Mago me pediu para ajudar a achá-lo. Amanhã, se formos rapidamente,
poderemos achar a trilha dos cristais azuis. Então, infelizmente terei de deixá-lo, pois
preciso voltar ao meu posto. Protejo a floresta, pois sou sua irmã, a mais nova.
– Então sabes o que ocorreu com o povo do Mago?
– Irmã Floresta nunca fala de tristeza. O Mago irá contar. Mas devo preveni-lo.
Jamais deverá olhar diretamente para o Mago de Prata, a não ser que ele mande.
– Por quê? – Perguntei.
– Uma forte magia caiu sobre ele. Há tempos não nos vemos por isso. Quem
olha para ele fica imediatamente cego, não só dos olhos mas do espírito.
Um forte medo se apoderou de mim.
– Por que isto acontece, eles não são um bom povo? – Perguntei.
– Sim, eram o mais bondoso povo da terra. Grande magia emanava dos seus
belos corações. Só existe um Mago agora, e sua proteção é sua beleza.
– Tu estás me dizendo que quem olha para ele fica cego por ser ele muito belo?
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Sim, a beleza perfeita! Nenhum ser vivo deve olhá-lo diretamente. Esta é
a sua defesa, e por isso não foi morto pelo povo do outro lado dos diamantes; todos
fugiram.
– Mas como? – Perguntei. – Se ele tem essa magia como os outros não têm
tam...
– Por favor. Não posso mais falar sobre tristeza. Minhas asas somem, não
posso voar, nem viver. Falando sobre essas coisas, isso toma meu coração e faz de
mim, larva de novo.
– Desculpa.
Ela sentou do meu lado e me envolveu em seus pequenos braços. Ficamos assim durante algum tempo, vendo a fogueira queimar. Então ela disse:
– Tenho certeza, o Mago sabe o que faz. Melhor dormir.
– E tu não vais dormir?
– Sim, do teu lado, afinal sou tua irmã agora!
Peguei a minha rede e estendi sobre o chão fazendo dela um enorme lençol.
Peguei meu cobertor e fiz minha pequena irmã se deitar. Deitei ao seu lado e ela me
disse:
– Não tenha medo, todos os bichos são meus irmãos, e também irão cuidar de
nós.
E como nunca na vida, dormi. Um sono dos deuses, dos deuses das borboletas!
Estava quase despertando quando senti um toque úmido e muito gostoso em
meus lábios. Abri meus olhos e senti um frio na barriga! Era a pequena fada! Ali bem
na minha frente com sua magistral beleza. Todo o seu corpo estava sobre o meu, sua
barriga tocava meu peito e suas mãos estavam apoiadas nos meus ombros.
– Fiz um ótimo café, com doces da floresta, ovos de codorna selvagem, sucos
de morangos silvestres e minha especialidade, panquecas de mel geriátrico!
Eu estava abobado. O que uma aparente menina de oito anos estava fazendo
em cima de mim como se fosse minha amante? E mais, me beijando nos lábios! É
claro que aquela visão matinal foi realmente uma delícia, mas era muito estranho,
pelo menos para mim.
Tentei um gesto; ameacei levantar-me, mas ela chegou com sua cabeça mais
perto de mim e disse:
– Não vai me dar um beijo de bom-dia?
Com muito receio e cuidado toquei rapidamente seus lábios, sentindo um gosto
muito doce, que jamais sentira anteriormente. Ela ficou me olhando com uma expressão meio estranha mas logo deu um pulo para trás, me libertando e ficando parada
na minha frente, flutuando a meio metro do chão com suas grandes e azuladas asas de
borboleta a bater muito devagar.
Levantei-me e vi, pasmo, o que poderia ser uma mesa de café da manhã feita
para um Lorde! Olhei para ela, muito feliz, e ela me disse:
– A essa hora da manhã o rio está muito quente! Poderíamos, antes de comer,
tomar um belo banho, não poderíamos?
– Nós dois juntos? – Perguntei.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Sim, por que não? Ela me respondeu e afastou seus longos cabelos, que escondiam grande parte do seu pequeno corpo, para trás e foi logo tirando o que poderia
ser um pequeno calção feito de folhas. Se eu já estava pasmo, agora fiquei boquiaberto. Ela definitivamente não era humana, só poderia ser uma fada ou um anjo! Não
tinha seios, nem tampouco qualquer vestígio de sexo, tinha pernas e braços e barriga
como um ser humano, mas seus aparelhos reprodutores simplesmente não estavam
lá! Era um ser incompreensível para mim. Talvez por isso tenha me acordado daquela
maneira, sem o mínimo de vergonha, apenas como uma forma de carinho ingênuo.
– Vai ficar esperando a água esfriar, Ortal? – Gritou, já a caminho do rio.
Então muito timidamente tirei minhas calças e corri para o rio. Tão logo cheguei, joguei-me na água, formando uma grande onda que atingiu a fada, e ela, sem
esperar eu ficar de pé, já estava empurrando água em minha direção. Ficamos algum
tempo nesta brincadeira até que nos acalmamos e sentamos numa pedra um pouco
submersa deixando que a água quente passasse por nossos corpos.
– Quantos anos tu tens? – Perguntei.
– Doze anos na forma de larva e oito em crescimento nesta forma de Borbohumana, a Irmã Floresta.
– Então tu tens vinte anos? – Perguntei admirado.
– Sim, mas com aparência de oito. Entretanto, só aparência, pois enquanto
estávamos na forma de larvas, o Povo Prateado nos nutria com sua sabedoria através
dos Cristais de transferência telepática. E nos mantinham informadas de tudo.
– Quando falas que “nos mantinham informadas” significa que teu povo é
composto apenas de mulheres? – Perguntei
– Sim, é claro – ela respondeu, como se fosse a pergunta mais tola do mundo.
– Mas como procriam?
– Bem, você quer saber como preservamos nossa espécie?
– Sim – respondi, meio envergonhado.
– Enquanto ainda existia, o povo Prateado nos tinha como amantes – respondeu muito triste.
– Mas, que tipo de relacionamento tinham para procriarem? – Perguntei, muito
embaraçado.
– O Povo Prateado não é definido sexualmente até os quarenta anos, quando
eles atingem a idade adulta e não crescem mais. Até então eles podem ter a sexualidade que bem entenderem. Porém, sua maturidade sexual ocorre muito cedo, aos oito
ou dez anos, mais ou menos assim como a nossa. Para nós isso é muito bom, pois
assim podemos procriar com eles sem muito problema, afinal, como você deve saber,
nós não crescemos muito mais do que esta minha altura.
Então olhei para o seu corpo e logo que eu ia questionar, ela me respondeu.
– Minha maturidade sexual ainda não chegou, mas está para chegar!
– Como sabes? – Perguntei.
– Porque nunca tive vontade de abraçar um homem como abracei você hoje –
ela afirmou, com uma entonação desesperadamente tímida.
Olhei para ela e fiquei um pouco avermelhado. Então passei o meu braço pelo
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seu pescoço e dei-lhe um beijo no rosto.
– Vamos, temos um longo caminho pela frente – falei com medo de que alguma coisa a mais pudesse vir a acontecer com aquela pessoa adulta, mas que para
mim ainda parecia uma criança.
Deliciei-me com o café que, por sinal, me deu muita energia. A Irmã Floresta comeu muito bem para o seu tamanho. Recolhemos rapidamente nossas coisas
e deixamos aquele jardim encantado. Estava galopando em Delirium enquanto Irmã
Floresta ia de pé nas costas dele, segurando nos meus ombros com suas delicadas
mãozinhas. Tomávamos uma trilha cruzando o rio. Existia uma bruma fina por entre
as grandes árvores e podiam-se ver muitas flores penduradas nos galhos. Às vezes
Irmã Floresta se abaixava no meu ouvido para sussurrar alguma coisa referente ao
caminho ou o nome de uma árvore que se pronunciava mais do que as outras, ou às
vezes o nome de algum bicho que ela deveria conhecer.
Estávamos galopando há algum tempo quando ouvimos, de muito longe, um
tremor de terra. Fiz com que Delirium parasse imediatamente e Irmã Floresta zarpou
como uma flecha para cima. Flutuava muito acima das árvores e gritou com sua bela
e fina voz:
– Ortal, corra na minha direção!
Pus-me a galopar feito louco por entre as árvores, tentando seguir Irmã, que
voava rapidíssimo. De repente, vi-a bem na minha frente com um gesto de “pare” em
suas mãos. Ela estava flutuando logo acima de um abismo de quase cem metros de
altura. Por pouco eu e Delirium não nos esborrachamos lá para baixo. Então senti o
tremor, agora um pouco mais forte. Irmã Floresta apontou para um ponto bem à frente.
Era uma entrada para um grande tapete verde que ficava lá embaixo do penhasco,
onde estávamos. O tremor foi crescendo e Delirium foi ficando um pouco irritado,
no instante seguinte rompeu um grande estrondo! Do lugar onde Irmã tinha apontado sairam uns oitocentos búfalos-rosa de uma só vez, fazendo um grande alvoroço.
Pensei na sorte de estarmos naquele lugar, bem longe e bem acima do ponto que em
questão de segundos, foi tomado por toda aquela manada. Era um espetáculo assustador e fascinante! Depois, quando todos os búfalos-rosa estavam pastando em seu
recanto particular, retomamos a trilha, ainda maravilhados pelo grande espetáculo que
acabara de ocorrer.
Andamos o dia inteiro sem mais paradas, pois com aquele café da manhã não
precisávamos de nada. Irmã contava, sempre eufórica, sobre cada parte da floresta por
onde passávamos. Ela conhecia tudo sobre aquele lugar! Ao entardecer, sentimos um
vento frio vindo do sul. Irmã Floresta logo falou que aquilo parecia ser não só um sinal
de chuva mas de uma grande tempestade. Eu tinha certeza.
Encontramos uma árvore enorme, com uma parte do tronco oco. Joguei um
cristal azul fluorescente ativado para ver se não havia nenhum animal perigoso morando ali dentro. Por sorte não tinha nenhum e o buraco na árvore mais parecia uma
enorme caverna do que uma árvore oca. Tanto melhor, iria caber Delirium ali dentro.
Pedi que Irmã Floresta fizesse os preparativos na nossa “pousada” particular enquanto
eu ia caçar alguma coisa para o jantar.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Voltei com dois coelhos nas costas e, quando entrei, Irmã tinha deixado o local um verdadeiro quarto para um rei! Tinha colocado os cristais azuis fluorescentes
espalhados pela parede interna da grande árvore. Acendeu uma bela fogueira. Deixou
Delirium aparentemente muito feliz num canto com uma boa quantidade de frutas ao
seu alcance e finalmente preparou, numa pedra achatada, o que poderia se dizer, para
a ocasião, que era uma verdadeira mesa de jantar, até com um cristal azul brilhando
no centro da mesa!
– Que bela esposa tu não darias! – Falei brincando.
– Vamos preparar estes coelhos, pois estou morrendo de fome! – ela respondeu.
– Não sabia que borboletas comem coelhos.
– Sou uma fada, que foi criada por magos que adoram carne, portanto aprendi
a gostar!
– Ótimo – disse eu, e começamos a preparar o jantar.
Comemos e logo depois fumamos um pouco de malacha, a erva da ampliação
da memória, para que aquele belo momento ficasse bem registrado em nossas mentes.
De repente, Irmã Floresta me olhou muito assustada. Tive o ímpeto de perguntar alguma coisa mas não deu tempo, ela estava caindo. Com um pulo por cima da
pedra que servira como mesa, consegui segurá-la. Coloquei-a na minha rede que já
estava armada e passei sobre seu rostinho um pano molhado. Ela acordou lentamente
e me falou.
– Ortal, meu querido, está começando.
– Pelos cristais, não me assustes! O que está começando?
– Minha maturidade! Estou a senti-la!
– Como assim? Esta coisa chega assim, de uma hora para outra, sem mais nem
menos?
– Não, ela demora uma noite para se revelar – e tão logo falou isso, desmaiou
de novo.
Fiquei atordoado. Passei um bom tempo pensando no que fazer. Olhei para ela
e vi aquela beleza perfeita ali na minha rede, dormindo feito um anjo. Sua pele estava
com uma ótima cor, passei a mão em sua testa e senti sua temperatura normal. Fiquei
um pouco mais calmo. Sentei no canto de nossa “pousada” e vi os cristais azuis irem
perdendo a fluorescência. Os primeiros pingos da tempestade começaram a cair. Fui
para rede e muito gentilmente me ajeitei do lado da fada. Dei um pequeno beijo em
sua boca e ela estremeceu, com um leve sorriso. Fiquei bem calmo com isso e pela
segunda vez em minha vida dormi como os deuses e fadas dormem!
Acordei com um berro. Irmã Floresta já estava de pé, ou melhor, flutuando
dentro da árvore.
– O que foi? – perguntei.
– Aconteceu! Finalmente! – ela falou, atônita.
– Aconteceu o quê? – perguntei assustado. Afinal tinha acabado de acordar e
mal sabia onde me encontrava.
Então me lembrei. Sim, a menina virara uma mulher! Será? – pensei. – Afinal
seu tamanho estava igual! O que seria então? Olhei para ela e vi que seu olhar infantil
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continuava o mesmo. Então muito calmamente ela tirou o enorme cabelo da frente
do seu corpo e, para meu espanto, estava lá. Tudo que uma mulher deve ter estava
lá. Surgiu como por magia! Dois pequenos seios, bem proporcionais ao seu pequeno
tamanho, e seu quadril, agora um pouco torneado, seu sexo no devido lugar! Fiquei
muito vermelho e só consegui encará-la porque ela estava diante de mim com sua
pequena mão puxando meu queixo para cima e dizendo: - Todo o meu povo estava
com os Magos quando aconteceu. Fui a única que sobrou. Meu tempo de vida não é
tão longo como o seu ou do Povo Prateado. Não posso olhar para o pequeno Mago de
Prata, então não posso ficar com ele, mesmo porque não sei se eu seria sua escolhida.
Temos que fazer, por mais estranho que possa parecer para você. Se não fizermos
nosso povo pode desaparecer para sempre!
E sem me dar chance de pensar, agarrou meu pescoço com seus pequenos
braços e me beijou profundamente. Parecia que uma magia caíra sobre mim. Não tive
como reagir. Em um segundo estava dentro da rede de novo com uma pequena fada
me possuindo! Ela gentilmente tirou minha calça e postou-se em cima de meu sexo,
agora tendo quase uma convulsão. Seu corpo exalou uma fragrância doce e excitante,
eu estava em transe! De repente sentou-se e fez-me penetrar. Ela soltou um grito de
dor e prazer ao mesmo tempo e começou a cavalgar muito gentilmente sobre mim. Eu
não parecia estar ali, mas no céu. Sentia aquele pequeno ser ora lambendo meu lábio,
ora penetrando meu sexo no seu com muita suavidade. Suas asas estavam totalmente
abertas e delas, saía um pó brilhante que reluzia a luz da manhã que entrava no nosso
pequeno paraíso. Por fim, senti um enorme arrepio por todo o corpo que, imediatamente, foi transmitido para ela. Nossos corpos se enrigeceram até que explodimos de
prazer um dentro do outro. O futuro das borboletas-fadas estava a salvo!
Ela caiu em meus braços completamente exausta e saciada. Seu rosto estava
grudado em meu peito e eu podia sentir sua respiração primeiramente forte, mas logo
se acalmando. Ficamos nesta posição de relaxamento durante meia hora. Depois, com
um impulso sobre meu corpo, ela se levantou e começou a arrumar as coisas. Eu tinha
uma missão e pelo que parecia, tinha ainda um grande caminho pela frente.
Saímos da grande árvore e rumamos para o norte, mascando torrões de cereais
com mel geriátrico, por entre a floresta agora muito úmida devido à forte chuva da
noite anterior.
Quase não falávamos. Parecia que estávamos ligados mentalmente, ela só me
dizia de vez em quando qual o caminho que eu deveria tomar.
Ela estava muito agarrada em minha cintura, sentindo as minhas costas com
um dos lados de seu rosto, como que ouvindo meu coração por trás. Delirium cavalgava rapidamente por entre as árvores molhadas e eu sentia um prazer muito diferente,
de estar em companhia de um ser muito especial. Sentia-me muito bem com isto, mas
não queria me envolver demais com aquele sentimento, pois sabia que aquela companhia iria durar pouco.
Foi com estes pensamentos, divagando por entre a vegetação e as brumas
daquela floresta muito misteriosa para mim, que penetramos num lugar esquisito.
Irmã Floresta pediu que Delirium parasse. Assustei-me um pouco, parecia que Irmã
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estava um pouco reservada por estar naquele lugar.
– Este é o Vale da Penumbra – disse-me ela. – É um lugar inamistoso. Devemos tomar cuidado. Espere aqui um pouco.
Assim que ela terminou a frase, subiu rapidamente até o topo das árvores.
Voltou um pouco menos nervosa.
– Devemos atravessar este vale rapidamente, – falou – antes do anoitecer. Existe uma cabana de um ser muito especial e amigo do outro lado, porém, dentro do
vale moram animais perigosos que adoram os seres humanos para servir no jantar.
Com estas palavras, desembainhei minha espada e ela ficou impressionada.
Alimentei meus lança-dardos até o máximo e partimos. Agora ela voava alguns metros acima de minha cabeça, para monitorar a nossa passagem. Iniciamos a descida
calmamente. Conforme descíamos, a temperatura ia-se tornando mais fria e o ambiente mais úmido. Sentia um certo entorpecer, meu corpo estava mole e sentia muito
sono. Ela parou e me olhou. Tirou um punhado de Malacha Brena de uma algibeira em
sua cintura e me deu para mastigar. Imediatamente senti a droga nos meus músculos.
Agora estava muito tenso e acordado. Agradeci e tornamos a caminhar.
Quando chegamos ao rio, na parte mais baixa do vale, ouvi um estalo. Num
segundo, Irmã tomava meu facão e subia de novo para o topo, se escondendo. Num
piscar de olhos me virei e parti ao meio o corpo de um enorme lobo preto que vinha
pelas minhas costas. Então, ouvi um berro da Irmã, lá de cima.
– Ortal, corra pelo caminho direito, eles o estão cercando.
Disparei pelo caminho mandado e logo vi Irmã voando em minha direção, com
meu facão apontado em minha direção.
– Abaixe! – ela gritou.
Então, só senti o vento passar sobre mim e um uivo de um lobo agonizante
e logo depois o barulho do corpo se estatelando no chão. Não deu tempo de olhar.
Três lobos ao mesmo tempo voaram para mim, mas com apenas um golpe da espada
de diamante cortei seus corpos pela metade. Porém, para retomar a posição do golpe
demorei demais. Um enorme lobo malhado vinha de frente ao meu encontro e em segundos me derrubara de Delirium. Ainda tive tempo de cortar-lhe o estômago com um
golpe da espada, quilos de material em digestão e sangue caíram sobre mim. As patas
do lobo estavam cravadas em meu ombro, o que fez a matilha inteira enlouquecer com
o cheiro de sangue. Irmã veio em meu socorro e conseguiu, com a força da raiva que
sentia, me levantar. Eu estava atordoado com o cheiro horrível dos dejetos que estavam em contato com meu corpo. Mas, com a dor nos meus ombros, senti um grande
ódio, e com fogo nos olhos, gritei para Irmã se afastar.
Uns vinte lobos me cercaram. Quando viram a fúria em meus olhos, não tiveram muita coragem de atacar. Porém, era muito tarde para arrependimentos, logo
comecei a lançar os dardos com uma velocidade inacreditável. Eles só tinham uma
chance: me atacar. Era isto que eu esperava. Com muita rapidez, girei a espada no ar e
saí como um louco atrás deles. Foi uma carnificina. Não sobrou um lobo vivo.
Por um momento parei exausto, caindo de joelhos. Se houvesse algum outro
lobo, estava perdido. Mas não era isto que me incomodava, era a minha força, baseada
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numa fúria que jamais sentira. Senti um poder que nunca imaginei que tivesse e, sem
compaixão nenhuma, derrotei até o último lobo que estava fugindo.
– Deve controlar sua fúria – disse Irmã Floresta, muito assustada, provavelmente não pelos lobos, mas pela maneira que eu lutara.
– Creio que por um momento fiquei cego – disse amargamente.
– Por um momento? – perguntou ela, abismada. – Você esteve perseguindo os
lobos durante uma hora! Creio que deve ter matado todos os lobos do vale! – O que?
– perguntei, alarmado.
– Infelizmente não matou – não era a voz da Irmã. Mas uma voz rouca e
agradável que vinha do final de uma trilha.
Olhei com os olhos cerrados para melhor enxergar por entre a penumbra. Notei
uma silhueta do que poderia ser um homem muito velho apoiado numa bengala.
– Má é a índole desses demônios – continuou o velho. – Nossa sorte está mudando com você aqui, nobre cavaleiro.
– Sebastian! – gritou Irmã Floresta, muito contente, e já em disparada na direção do velho. Ao chegar perto dele, parou e fez uma graciosa reverência ainda no ar.
– Como vai, pequena borboleta? – disse ele muito alegre, mas logo mudando
sua expressão para um agradável espanto. – Vejo que já te tornaste uma moça, se assim me permites falar!
Ela ficou muito envergonhada e disse:
– Veja, Sebastian, este é Ortal, nobre cavaleiro das Florestas Azuis, encontrei-o
em seu caminho, a pedido do próprio Mago de Prata!
– Que os cristais abençoem os dois – disse o velho, que já se encontrava bem
perto de mim. – Vejo que mereces um banho, Ortal.
– Se não for incômodo, caro Senhor.
– Pode me chamar de Sebastian, é o meu nome, e não é incômodo algum servir
àquele que quase destroçou, com sua virtuosa espada, a matilha dessas repulsivas criaturas! – disse o velho, dando-me seu braço como apoio para eu sair daquela posição
de joelhos.
– Sebastian – disse Irmã para mim – é o ser especial de quem lhe tinha falado,
Ortal. Ele mora há muitos e muitos anos na cabana para a qual estamos indo. Ele é
muito amigo dos Magos e talvez possa lhe contar o que ocorreu com eles e com o
meu povo.
– Melhor não – disse Sebastian. – Melhor eu não contar. Apesar de ser um
tanto tagarela, acredito que seria mais aconselhável o próprio Mago contar para este
cavaleiro, pois não tenho absoluta certeza do que aconteceu, visto que ninguém pôde
ter contato com o único Mago que sobrou, devido à magia que está em seu corpo.
Depois disso, todos nós ficamos um pouco calados até chegarmos à cabana de
Sebastian. Eu estava muito cansado, sujo e dolorido. Era uma cabana de fato muito
rústica por fora, feita de madeira e telhado de cristal azul. Mas por dentro era espetacularmente aconchegante! Uma lareira ardia em chamas, pois aquela parte do vale era
fria, apesar de ficar ais no topo do que no fundo do mesmo. Existiam muitos cristais e
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ervas penduradas por todas as paredes. Acredito que mais da metade eu simplesmente
não conhecia! Sebastian me tomou pelo braço e me levou para uma sala que tinha uma
enorme banheira feita de cristal laranja, onde já escorria uma água escaldante.
– Lava-te, nobre cavaleiro – disse Sebastian - depois te falarei sobre os cristais e ervas, tudo acompanhado de uma maravilhosa sopa de cogumelos e chá antiinflamatório para essas feridas.
Enquanto eu me lavava deitado na banheira, pensava sobre o Povo do Mago e
da Fada-Borboleta. Que tipo de civilização teria feito isto com estes povos tão nobres?
Depois me veio à cabeça o que eu tinha feito no vale com os lobos. Será que esse tipo
de ódio não seria o mesmo ódio que atacou o Povo de Prata e as fadas? Não é possível!
O ódio que senti foi por autodefesa e não por maldade. Acredito plenamente que nem
o Povo de Prata nem as fadas poderiam ter feito mal a alguém que quisesse tamanha
vingança. Acho que o que atacou esses povos foi apenas por maldade, ou por querer
se apoderar daquilo que esses povos tinham acumulado durante os séculos.
Após me lavar e vestir uma roupa nova que Sebastian reservara para mim,
voltei à sala onde se encontravam ele e Irmã Floresta.
Sebastian havia feito um maravilhoso jantar, com frutas, torradas, sopa, e arroz
com molho de galinha. Para beber havia chá e vinho. O ambiente parecia um tanto
solene. Porém todos nós comemos com muito prazer, pois estávamos com muita fome.
Irmã Floresta retirou os pratos sujos enquanto eu e Sebastian dividíamos um
cachimbo de Malacha Brena. Quando Irmã se sentou, os dois ficaram me fitando com
um olhar meio estranho. Então Sebastian começou: – O que ocorreu hoje na floresta com os lobos foi muito perigoso, Ortal. O ódio é uma dádiva para a guerra, é o
desamor. Muitas das memórias que nos foram passadas por nossos ancestrais foram
alteradas pela linguagem falada. Durante séculos o ser humano passou de geração
para geração as memórias sem o uso do memo-cristal, o cristal que tem o poder de
imortalizá-las. Nesse período foi perdida muita coisa.
“Como a maioria dos homens se tornara um povo pacífico, pois a natureza se
encarregou de deixar as tribos separadas, a questão do ódio foi praticamente esquecida. O homem se dedicou a pesquisas para sua sobrevivência sem a necessidade da
guerra. A maldade do ser humano para com ele mesmo foi deixada de lado e o homem
perdeu o sentido da guerra e do ódio. Mas estes sentimentos, apesar de não serem
usados há séculos, podem ser resgatados, pois fazem parte da nossa natureza enquanto
seres humanos.
– Então – falei, finalmente – achas que o que ocorreu hoje comigo foi um resgate da maldade?
– Não – respondeu Sebastian. – Não foi um resgate da maldade, mas foi um
sentimento de ódio que surgiu em ti pela necessidade de autopreservação. Como este
sentimento, possivelmente tu nunca deves ter sentido antes desta forma, pois nunca
houve uma situação de perigo tão grande, deves ter perdido o controle.
– E como devo aprender a controlar isto? – perguntei.
– Não sei – respondeu Sebastian. – Mas creio que o Mago deve ter te chamado
para ensinar isto, para que possas ensinar isto também ao teu povo e ao resto das tribos
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
a fim de que saibam lutar com a razão contra o perigo iminente que está a nos rodear.
Caso contrário, se começarem a lutar como nossos ancestrais faziam, creio que haverá
uma outra “Eco Revolta”, e duvido muito que a natureza poupará um ser humano
nesta terra de novo.
– Então achas que o Mago sabe controlar o ódio, mas como?
– Não creio que ele saiba – respondeu Sebastian.
– Mas como ele vai me ensinar algo que nem ele mesmo sabe?
– Não sei.
Ficamos todos em profundo silêncio. Eu estava realmente atordoado. O que
ocorrera hoje na floresta com os lobos foi algo estarrecedor. Eu estava assustado comigo mesmo, com o poder de destruição que eu tinha em minhas mãos, com a força do
meu próprio corpo. Havia histórias antigas de superpoderes dos homens e armas antes
da “Eco Revolta”, que foram passadas para nós e em que não acreditávamos muito
por, possivelmente, terem sido distorcidas pela linguagem falada. Porém, o que ocorreu comigo hoje foi absolutamente real, sem distorções, porque fora eu quem vivera
aquilo. Se eu não conseguisse controlar isto, provavelmente este poder poderia subir à
minha cabeça e virar um monstro destrutivo para qualquer um que tentasse se opor à
minha vida ou à das pessoas que eu achava que eram boas. Era esse o medo do velho
Sebastian e meu também.
– Creio que devemos achar o Mago o quanto antes – falei, após alguns instantes de silêncio – estou muito assustado com o que ocorreu.
Certamente Sebastian esperava ouvir isto, pois me fitou com uma feição de
alegria.
– Se sairmos amanhã bem cedo – falou Irmã Floresta – creio que poderemos
alcançar a Vila dos Magos à noite. Então você poderá estar em contato com ele.
Fiquei atônito. Pensar em estar na presença de um ser tão poderoso me deixou
nervoso. E como se Sebastian pudesse ler os meus pensamentos, falou:
– Deverás enfrentar o medo. Acho que nem imaginas o que é o Mago de Prata.
Devo te afirmar que terás uma surpresa quando te encontrares com ele.
– Fala-me como ele é. O senhor o conhece?
– Sim, tanto eu como Irmã Floresta o conhecemos. Não depois da magia que
caiu sobre ele, mas antes. O Mago de Prata é filho dos dois Magos mais poderosos da
aldeia e herda um grande poder de várias gerações de magos desde a “Eco-Revolta”.
Ele descende da lendária primeira família de cientistas e pesquisadores que, como
nenhuma outra tribo, soube desenvolver uma fantástica pesquisa sobre os novos materiais que o Planeta tinha dado à luz. Creio que por isso ele foi salvo. Porque dentro
dele está todo o poder deste povo.
“Acredito plenamente que se foste o escolhido para estar na presença dele é
porque deves ser uma pessoa especial, pois senão o Mago não o teria feito. E depois
do que vi hoje na floresta, vejo que ele tem toda razão.”
– Achas que o Mago vai me passar este poder? – perguntei assustado.
– Não acho, tenho certeza. Mas acredito que deverás passar por um teste.
Se já estava assustado, agora entrara em pânico. Receber o poder do Mago?
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Passar num teste? Isso já era demais. Como este Mago poderia saber se eu era especial
ou não se nem mesmo eu sabia? Isso já estava ficando muito complicado, meu ombro
começara a doer de novo.
– Creio que tens algum chá sonífero, não tens, Sebastian?
– Achei que irias precisar, Ortal. Tomei a iniciativa de prepará-lo para ti.
– Realmente és um ótimo anfitrião, Sebastian. Acho que nossa conversa sobre
ervas ficará para outra ocasião, estou muito cansado e nervoso, foi um longo dia.
– Não te preocupes, Ortal. Trarei teu chá e poderás descansar até amanhã. Será
um grande dia para ti, grande cavaleiro!
Assim, tomei o chá e logo estava no mundo dos sonhos.
Acordei com a doce voz da Irmã Floresta dizendo que meu café estava pronto.
Comemos cereais, frutas, queijos, e tomamos sucos de frutas e café com mel geriátrico. Logo nos despedimos e tomamos o caminho para o norte.
Irmã Floresta estava parecendo uma gralha! Não parava de falar um minuto,
o que me acalmou um pouco, pois sua voz soava como um belo instrumento musical
aos meus ouvidos. Começou falando do que ela e Sebastian tinham conversado depois
que eu fui dormir.
Ela estava muito orgulhosa porque carregava muitas Fadas-Borboletas em seu
ventre, que provinham do meu amor. Falava que, por meu sangue não estar modificado como o dos magos, iriam nascer não só fadas, mas elfos! O que tornaria a espécie
possibilitada de procriar por si só sem a necessidade da ajuda dos magos. Isto era bom
e ruim ao mesmo tempo. Bom porque teriam finalmente elfos para procriarem, e ruim
porque ela adorava o Povo dos Magos e sentia muita saudade.
Falava das esperanças que o Mago tinha sobre mim e meu povo, que tinham
observado o nosso povo durante séculos e que a escolha do Mago estava absolutamente certa. Experimentei um momento de preocupação quando ela me falou isto.
Mas, como ela não parava de falar, logo tornou o assunto um pouco mais ameno.
Mal começara a contar sobre como os Magos tinham modificado as borboletas
para se tornarem Fadas-Borboletas, ela soltou um berro. Imediatamente fiquei alerta,
com a mão na espada, logo, porém, relaxei de novo. Percebi o motivo de tal empolgação. Era a estrada de cristais azuis! Começava ali, uns cem metros adiante. Era
deslumbrante! O azul faiscava energia e emprestava às árvores um reflexo azulado
muito peculiar. Logo que chegamos à estrada, paramos e fizemos uma breve refeição.
Estávamos muito empolgados para chegar à caverna do Mago.
Comemos alguns bolinhos de peixe feitos por Sebastian, muito gostosos por
sinal, e continuamos pelo caminho azulado. A floresta fechava a estrada como uma
caverna feita de folhas, galhos, flores e frutos, e de vez em quando eu pegava alguns
para me deliciar durante a viagem pelos cristais. Andamos durante muito tempo na
estrada. Começava a anoitecer quando vi algo semelhante ao meu sonho. Sim, estávamos chegando. Olhei para trás e vi Irmã Floresta chorando bem baixinho. Quando
ela viu que eu a observava, caiu em prantos! Então eu a abracei e ela quase quebrou
meu pescoço. Ficamos assim durante vários minutos, até que ela encostou seus lábios
nos meus e me beijou profundamente e por muito tempo. Depois, pegou em meu rosto
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
com as duas mãos e disse:
– Eu “te” amo, Ortal. Saiba que não nos veremos mais.
– Por quê? – perguntei, abismado.
– O tempo de fecundação e nascimento das larvas é rápido e após isso morrerei.
Comecei a chorar com ela e nos beijamos durante muito tempo. Então falei:
– Eu te amo também, Irmã Floresta.
E ela se afastou de mim e saiu voando para a floresta que era seu refúgio.
Só depois de algum tempo é que me dei conta de que eu estava sozinho de
novo. Muito tristemente comecei a procurar a entrada da caverna do Mago. Mal sabia
que estava entrando no que iria modificar minha vida por completo, para sempre!
Saí da estrada como mandava a mensagem através do meu sonho. Andei um
pouco em meio à floresta fechada e logo percebi a grande parede de pedras à minha
frente. Achei a fenda por onde deveria entrar. A fenda aparentava ser pequena demais
para Delirium, mas quando nos aproximamos, reparei que Delirium cabia perfeitamente no buraco que servia de entrada. O lugar já estava escuro. Entrei com Delirium
sendo puxado por mim. Dentro da caverna era uma parede de escuridão, acionei imediatamente um cristal azul fluorescente, que me deu pelo menos uma breve visão de
onde deveria pisar.
Comecei a penetrar pela caverna. Delirium não estava gostando nada daquela
escuridão, nem eu tampouco. Andamos cerca de cinco minutos. Parecia que estávamos ali há horas, e como por encanto o cristal azul começou a apagar. Em questão de
segundos estávamos em total escuridão. Tentei acionar outro cristal, mas estava, como
por alguma magia, sem fluorescência nenhuma. Tentei andar um pouco no escuro,
porém Delirium logo se deteve de medo. Então lembrei dos iniciadores de fogo; pelo
menos poderiam fazer luz por alguns minutos, até o cavalo se acalmar.
Quando acendi o fogo, notei que estava numa divisão de caminho. Não sabia
por qual deveria ir e, para o meu desespero, uma leve brisa apagou a chama que
iluminava o lugar. Estava desolado. Pensei em retornar. Porém, fiquei ali parado observando se algo acontecia. Será que tinha entrado na fenda errada? Impossível: era
idêntica ao meu sonho! Mas logo vi algo estranho. Era uma luz prateada vindo em
minha direção; primeiramente muito pequena, mas logo se intensificou. Parou sobre
mim e começou a se mover na direção de onde tinha vindo. Imediatamente comecei
a segui-la.
Então ela parou sobre uma pedra de mais ou menos meio metro de altura onde
se encontrava uma tira de pano prateado. Ficou ali, iluminando o pano. Imaginei que
eu deveria pegar o tal pano, e foi o que eu fiz, mas a luz não se moveu. Olhei para o
pano para ver do que se tratava e lembrei do que a Irmã e Sebastian falaram: “Não se
pode olhar diretamente para o Mago”. Pensei que a tira seria uma espécie de venda.
Coloquei a tira com os olhos fechados e depois de alguns segundos, com a venda
sobre os meus olhos, fiquei pasmo! Conseguia enxergar tudo! E tudo estava prateado!
A luz começou a se mover de novo pelos corredores da caverna e logo estávamos no que parecia ser um salão enorme.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Paramos bem ao centro e soltei Delirium. Imediatamente ele saiu correndo.
Tentei sair atrás dele, mas a luz se postou diante de mim me impedindo; era tarde
demais.
Fiquei parado, olhando para o ambiente que, mesmo com a luz agora em cima
de mim, estava muito escuro. Tentei melhorar minha nova visão me concentrando um
pouco. Então vi que eu estava realmente num salão muito grande. As paredes formavam um círculo enorme à minha volta. Comecei a notar que não eram apenas paredes,
mas estátuas: enormes estátuas de seres humanos postados nas mais diversas e belas
posições, ou segurando vigas que sustentavam um teto abobadado, ou em posições
eróticas, ou glorificando árvores, ou dramatizando alguma situação, e eram muitas, de
vários tamanhos, sendo que uma se destacava.
Tratava-se de uma estátua bem à minha frente, a uns cem metros mais ou menos. Era a estátua do que poderia ser um jovem que “batia” no meu peito, de um metro
e setenta mais ou menos. Seu brilho era diferente das outras. Parecia emanar alguma
vida. Foi quando notei meu coração bater fortemente. Minhas mãos ficaram geladas e
minha cabeça começou a girar.
O que era para ser uma estátua começou a se mover. A luz do local se intensificou um pouco e de repente, comecei a perceber o que vinha em minha direção.
Logo centenas de vozes soaram em meus ouvidos com uma nota só, era uma nota de
lamento e muito forte; então caí de joelhos.
O Mago estava à minha frente olhando para mim! Não conseguia me mexer.
Minha boca estava aberta e seca, o Mago não piscava. Sua pele era branca. Vestia um
manto de prata que caía de seus ombros até o chão, aberto no meio, deixando à mostra
parte de seu peito, sua barriga e seu sexo, que, como eu já sabia, ainda não estava
definido. Porém, por seu rosto, acredito eu que ele poderia ter mais tendência a uma
beleza masculina, apesar de ter alguns traços muito delicados como o nariz, as orelhas
e principalmente os lábios, que tinham um desenho feminino.
Então notei, com espanto, que, fora sua pele, todo o resto tinha tons azuis-esverdeados, não só os olhos, mas o cabelo, que era extremamente curto, quase raspado,
as sobrancelhas, os cílios e os lábios, que também tinham a mesma tonalidade.
Seu rosto era muito redondo e seu nariz reto e pequeno, assim como suas orelhas, que quase não se notava. Suas sobrancelhas tinham agora um desenho reto e
severo, e seu olhar estava postado com uma expressão muito séria sobre mim.
– Consegues ver-me? – perguntou.
Então cambaleei. Ele não se mexeu, mas eu quase caí. Sua voz era um espasmo
de beleza e graciosidade. Tentei recuperar-me e só depois de algum tempo, esperado
pacientemente por ele, é que consegui responder.
– Sim.
– Ótimo – disse ele, agora com um sorriso tão espontâneo que esta nova forma
de expressão em seu rosto me fez cambalear de novo. Pensei comigo se a cada novo
movimento dele seria a mesma coisa.
Ele então me segurou nos ombros e disse:
– És a primeira pessoa que vejo há muito tempo, Ortal. Mas gostaria de ver-te
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
sem esta venda, pois não consigo ver a expressão em teu rosto.
– Podes apostar que é de muito espanto – disse para ele.
Ele me olhou um pouco embaraçado, mas sorridente, e falou:
– Um pouco antes do ataque que destruiu meu povo, meu pai, o Mago Maior,
depositou uma magia muito grande sobre mim, uma magia que só eu posso quebrar,
mas para isso eu deveria ter alguma segurança, pois estava muito assustado. Esta
magia faz da minha pessoa um ser quase divino. Na verdade a minha beleza não foi
alterada, mas a magia altera a forma como as pessoas me vêem, tornado-me uma espécie de semideus. Como estás aqui, creio que posso quebrar pelo menos parte da magia,
isto é, por algum tempo só poderá me ver com teus próprios olhos, enquanto te ensino
alguma magia que pode nos ajudar a nos protegermos. Se alguém entrar aqui e tentar
nos atacar enquanto te ensino, esse ser ficará imediatamente cego.
– E quanto a Delirium? – perguntei.
– Não te preocupes, ele está num lugar apropriado. Agora por favor, para de te
ajoelhar para mim. Afinal não sou um deus, apenas um Mago!
Notei que não saíra da posição em que estava desde que ele tinha aparecido em
minha frente. Tentei me mexer, mas não consegui. Então ele passou sua mão sobre
minha cabeça e soltou um pó brilhante. Imediatamente eu estava livre. Pensei comigo
mesmo: que ser fascinante!
Agora o grande salão estava totalmente iluminado. Atravessamos para uma
sala menor e nos sentamos num sofá bem confortável.
– Estás com fome? – ele me perguntou.
– Sim, um pouco.
Então trouxe uma bandeja com vários tipos de alimentos e chás, como se ele
já esperasse pela minha estadia. Comemos juntos. Eu me sentia muito nervoso em
sua presença. Estava tremendo, e ele notou. Olhou-me e pegou muito gentilmente em
minha mão, não falou nada, apenas passou uma espécie de energia reconfortante. Meu
coração se acalmou e eu me sentia melhor. Meu sentimento para com aquele ser era
totalmente diferente de tudo o que eu jamais sentira.
Após comermos, ele me disse:
– A magia desta venda pode acabar a qualquer momento. Devo cortar parte da
magia que meu pai me transmitiu para que possas me olhar com teus próprios olhos.
Isto não será muito normal para ti: deverás confiar em mim.
Olhando para aquele ser e da maneira como ele falava, se tivesse pedido para
cortar minha cabeça, teria feito imediatamente. Acredito que ele tenha notado minha
resposta apenas pela minha expressão e me pegou pela mão.
Entramos de novo no grande salão. Ele foi até uma escultura e abriu uma espécie de gaveta que surgiu da grande cabeça que era a estátua. Retirou de lá um
pequeníssimo cristal e veio em minha direção.
– Tiro da cabeça de Dionísio este cristal encantado, que fará tua mente viajar
acordada, e as formas que verás serão transformadas da realidade, assim como as
cores, e seu efeito cessará vagarosamente para que te acostumes com a visão da minha
beleza e possamos conviver juntos sem medo da magia que me protege do Povo do
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Mal. Por favor, Ortal, ajoelha-te.
Ajoelhei-me. Ele colocou o cristal em sua boca, em cima de sua língua. Chegou muito perto de mim. Estremeci. Agarrou meu rosto com suas duas mãos, encostou
os seus lábios nos meus e me beijou profundamente, me passando o cristal. Enquanto
me passava o cristal com o beijo, tirou minha venda ao final do beijo, e me deparei
com seu olhar. Não aguentei. Caí para frente, desmaiado em seus braços.
Não sei quanto tempo fiquei desmaiado, mas quando acordei, estava deitado
em uma cama muito macia. Ele estava ao meu lado acariciando minha testa com um
pano úmido. Abri os olhos lentamente. Tudo estava colorido! Todos os objetos em
volta refletiam muitas luzes, os cristais então chegavam a ofuscar meus olhos. Por
vezes, alguns objetos pareciam estar derretendo. Meus ouvidos podiam escutar os
sons mais absurdos, como o caminhar de uma formiga verde no chão ou o barulho do
teto do quarto onde nós nos encontrávamos se contorcendo, o que, é claro, não passava de uma alucinação causada pelo cristal-dionísio.
Eu estava achando tudo aquilo muito engraçado. A cara do Mago se mostrava
mais bela do que eu tinha visto antes, se é que isto era possível, mas para mim, era o
que estava parecendo, e acredito que foi isso que não me cegou. A impressão incorreta da realidade era a chave para a quebra da magia! E enquanto eu me acostumava
com a beleza do Mago, vista antes por um processo alucinógeno, ia gradualmente me
acostumando com sua imagem à medida que diminuía o efeito da droga sobre o meu
corpo.
O Mago se contagiou um pouco pela brincadeira e parecia que via algumas
coisas estranhas também, pois ele tinha estado com o cristal-dionísio em sua boca
antes de mim.
Então ele me puxou para fora da cama e com sua mão me conduziu para fora
do quarto. Entramos de novo naquele salão enorme, que agora estava com luzes excitantes. As estátuas pareciam ter vida, pareciam nos acompanhar com os olhos! Pareciam estar muito alegres com a nossa passagem pelo salão e acenavam para nós! O
Mago e eu começamos a rir ao mesmo tempo. Então perguntei a ele:
– Vês o que eu vejo?
– É claro, Ortal. Graças ao cristal, nossas mentes estão unidas ao mesmo processo alucinógeno, tudo que sentes eu sinto. Não é fantástico?
Eu parei e olhei para ele.
– Tens certeza? Estás sentindo o que eu estou sentindo?
– É claro! Vamos aproveitar!
Comecei a ficar meio preocupado, pois estava com medo do que sentia pelo
Mago. Não sabia ao certo, mas era algo muito forte. Mas, afinal de contas, nem deu
tempo para pensar nisso. Logo ouvi uma bela música, mas não era música. Era a porta
do grande salão se abrindo para o lado de fora da construção.
Se dentro do salão eu e o Mago estávamos alucinados, agora tínhamos chegado
aos céus! Era a Vila dos Magos de Prata, ali, bem à minha frente, cintilando em cores
e formas absurdas. Via um pouco da destruição que ocorrera, mas meu estado mental
estava tão incoerente que não notei estranheza de espécie alguma acerca das con38
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
struções. E se estavam destruídas ou não, não poderia notar, pois o efeito do cristaldionísio agora era tão forte que mal podia notar o que era realidade ou fantasia.
O mago me puxou e saímos correndo feito duas crianças pela Vila. Tudo brilhava em demasia. Todas as formas se tornaram tão divertidas que em dado momento
rolamos por grande gramado, pois não conseguíamos nos manter em pé de tanto que
ríamos.
Ficamos ali e notamos que ainda era noite! Ficamos deitados, delirando nas
formas que as estrelas faziam no céu. Nossos corações começaram a se acalmar e a
alucinação começou a enfraquecer. Então o Mago sentou na minha barriga e segurou
os meus braços, me encarou profundamente e disse:
– Agora, grande amigo, deverás me olhar profundamente. Não tires os olhos de
mim, pois deverás te acostumar com minhas formas até que o efeito do cristal-dionísio
passe.
E assim ficamos por mais de meia hora. O efeito foi passando aos poucos e a
imagem do Mago já era conhecida de minha mente, por isso não iria mais me cegar.
O Mago se deitou ali mesmo na grama ao meu lado. Encostou sua cabeça em
meu ombro e dormiu. Eu ainda fiquei olhando para as estrelas, agradecendo aos céus
por ter encontrado este ser que estava ao meu lado, e por fim adormeci.
Acordamos assim que os primeiros raios solares atingiram nossos rostos. Olhamo-nos e começamos a rir assim que nos lembramos da noite anterior.
– Vamos – disse o Mago -, temos muito o que fazer. Mas primeiro comeremos!
– Sim! – falei entusiasticamente.
A caminho do grande salão, que possivelmente poderia ter sido a casa do Mago
antes da batalha, paramos num pequeno lago no centro da vila. O Mago despiu-se de
sua capa prateada e começou a correr, gritando:
– Vem, Ortal! O último que chegar é mulher do sapo!
Tirei minha camisa e mesmo de calça caí na água gelada do lago. Que maravilha! Então, o Mago agarrou meu pescoço por trás e iniciamos uma tremenda batalha
para ver quem afogava quem primeiro. Fiquei surpreso com a força daquele pequeno
rapaz! Mas, logicamente, consegui colocar sua cabeça para dentro d’água e por fim
soltei-me de todo o seu corpo, lançando-o por cima de minha cabeça! Ele deu um grito
de excitação e logo estava na água de novo. Ficou de pé e disse, como uma pequena
criança que perde o jogo:
– Não é justo, Ortal, és muito maior!
– Da próxima vez te dou mais uma chance, tá bem?
– Tá bem; vamos comer!
E assim saímos da água e rumamos para um lugar ao lado da construção por
onde tínhamos saído na noite passada. Era um imenso pomar com uma porção de árvores frutíferas de todos os tipos. Pegamos uma porção de frutas e entramos no grande
salão de novo. Lavamos todas as frutas e colocamos numa tigela. Com um simples
gesto, o Mago acendeu o fogo e começou a preparar o café. Indicou-me onde ficava o
resto das coisas e preparamos juntos um maravilhoso café da manhã.
Após tomarmos o café, tomei um pouco de coragem e finalmente perguntei:
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Tu... Bem tu pareces estar muito feliz, não é pequeno Mago?
– Sim, estou muito feliz, principalmente com tua chegada, Ortal. Por que me
perguntas?
– Não estás triste com tudo o que ocorreu com tua família ou com o teu povo?
– Sim, fiquei muito triste nos primeiros dias, e tive que limpar a vila e recolher
os cadáveres sozinho, pois, como sabes, ninguém podia me ver. Mas agora já estou
melhor. Além disso, sentir a falta da presença física das pessoas, logo passa.
– Presença física? – perguntei.
– Sim, as pessoas morrem e tu sentes saudade da presença física. Mas logo depois a presença mágica aparece, e pode ficar contigo enquanto quiseres, não é mesmo?
– Ah! sim, a presença mágica! – falei, fingindo entender.
– Bom, já que tocamos no assunto – falou o pequeno Mago – e já que estamos
alimentados, vamos à presença mágica de minha família. Estou louco para falar com
eles e te apresentar, pois foi meu pai que falou de ti, e que poderíamos ser um dia, bons
amigos. Claro que nunca imaginei que seria nessas circunstâncias, mas tudo bem.
Tenho certeza que com nossa união e com o que sentimos um pelo outro poderemos
dar continuidade ao que a Eco Consciência quer!
– Sim, claro! – disse, simulando algo rotineiro.
Já estava atônito de novo. Falar com sua família? O que sentimos um pelo
outro? Então ele sente o mesmo que eu? Isto é, alguma coisa que não sei o que é?
Pelos cristais! Isto estava ficando complicado.
Ele tomou a dianteira e disse:
– Vamos, Ortal, estou louco para saber o que meus pais têm para nós!
Fui seguindo-o, já sentindo um certo medo de novo. Atravessamos o grande
salão, entramos numa porta que nunca imaginaria existir e descemos por uma enorme
escada em caracol iluminada com os cristais azuis. O ambiente estava limpo. As paredes eram brancas e com o reflexo dos cristais ficavam com um efeito interessantíssimo. Descemos muitos degraus até chegar a uma ante-sala, também muito iluminada.
A ante-sala dava para dois imensos portais, com muitos desenhos talhados na
pedra de que eram feitos.
O Mago rugiu algumas palavras muito fortes e os portais se afastaram um do
outro fazendo um movimento circular. Então vi a coisa mais espetacular de minha
vida, até então. Era uma enorme sala inteiramente feita de cristais violetas e alaranjados, todos muito claros e com luz própria. O ambiente era muito fresco e cheio de uma
deliciosa umidade. Havia diversas pequenas cachoeiras deslizando pelas enormes
paredes de cristais.
– Este é o maior tesouro que meu povo possui – falou o Mago, com muito
orgulho.
– Posso perguntar por quê?
– Porque é através desta câmara de cristais encantados que fazemos a presença
mágica.
– E o que seria a presença mágica?
– Olha para trás!
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Olhei e cambaleei. Havia dois espectros voando! Dois Magos de Prata a meio
metro do chão! Iluminados, meio transparentes, prateados e sorrindo para mim!
– Ortal, esses são meus pais. O Mago Maior e a Senhora Cristalina. Cara Senhora e Mago Maior, apresento-lhes Ortal, o cavaleiro da Floresta Azul, descendente
da tribo dos Carmalhoc, a tribo guerreira do passado que esqueceu de guerrear e por
isso se tornou um povo nobre e belo.
Estava sem palavras, mas nem precisava! Eles falavam tudo!
– É um imenso prazer estar em sua presença – disse o Mago Maior. – Através
de gerações meu povo e meus ancestrais vêm estudando seu povo e seus ancestrais.
Descobrimos através disso que vocês descendem de um povo guerreiro, mas nobre.
Que por não ter necessidade se esqueceu de lutar, e, graças aos cristais, se esqueceu
do ódio. E você, Ortal de Carmalhoc, é um ser muito especial, pois conviveu com a
floresta desde pequeno e sabe de suas leis. Além de trazer em seu corpo muita força e
em sua alma muita ingenuidade. O que faz de você um cavaleiro perfeito para o que a
humanidade precisa neste momento.
– Seu aprendizado será breve – agora era a voz da Senhora Cristalina. – Deverá
sentir o poder que seu corpo tem e como poderá usá-lo para nobres ações. E nosso
filho, o Pequeno Mago de Prata, irá com você numa jornada em que jamais ser humano algum foi. Vocês dois descobrirão novos sentimentos. E deverão estar sempre
juntos, pois um ajudará o outro. Sejam como irmãos nesta jornada.
– Que tipo de jornada será esta, minha mãe? – falou agora o Mago, num tom
assustado.
– Vocês irão partir em breve para um mundo desconhecido. Toda a nossa tribo
está trabalhando nisso. Vocês irão resgatar algo do passado. Enquanto nós fazemos os
últimos retoques em nossos planos, você deverá ensinar a Ortal nossa magia, e ele,
por sua vez, ensinará a você a arte da luta. Deverão utilizar os cristais de transferência
psíquica, pois o tempo é curto. Chamá-lo-ei em breve, filho. Por enquanto, para sua
segurança, não se desfaça da magia que lhe forneci. Agora vão e não se preocupem
com a jornada, apenas aprendam um com o outro. Logo o chamarei. Adeus, Ortal, até
breve.
– Adeus – murmurei, quase num sussurro.
E assim desapareceram, nos deixando naquela enorme sala de cristais. O Mago
olhou para mim levantando os ombros como se não entendesse nada do que estava
acontecendo. Eu estava atordoado demais para pensar em alguma coisa.
Saímos dali e fomos para fora. O sol já estava a pino. Sentamos na grama e
colocamos dois cristais, um na testa do outro. Demos as mãos e começamos a fazer as
primeiras transferências de informações.
As informações que o Mago estava me passando eram algo de fenomenal. Era
engraçado, pois aquele tipo de cristal era diferente. Era como se o que eu quisesse
saber saísse da cabeça do Mago sem ele fazer esforço, assim como eu não precisava
me concentrar no que o Mago queria que eu passasse para ele.
O que eu pude saber eram coisas bem importantes. Por exemplo, agora eu
já tinha um caminho no meu cérebro para transmitir mensagens para o Mago tele41
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
paticamente. Podia controlar a química do meu corpo, e então soube que todos os
sentimentos que temos são feitos num grande laboratório interno, e que, controlando
este laboratório, podemos controlar o que sentimos. O medo, a alegria, a tristeza, o
desespero, a compaixão, a dor, isto sem falar nos sentidos básicos como o olfato, o
tato, a visão, a audição e o paladar, e tudo o mais que podemos sentir não passa de
química que nosso organismo promove para que nosso sentido da realidade trabalhe
melhor. E isto pode ser controlado!
Através de mecanismos de autocontrole, os Magos conseguiram obter um
elevado grau de experimentação corporal, que tornou toda esta química palpável e
conhecida.
Outra informação que me foi passada é que os Magos estavam a ponto de
desenvolver uma transmissão telepática desses sentimentos. Isto é, poderiam fazer
com que um receptor qualquer sentisse medo ou inveja ou amor ou qualquer outro
sentimento bastando apenas o desejo por parte daquele que detivesse este poder. Fui
mais a fundo nesta questão e indaguei em silêncio até onde eles tinham chegado nesta
pesquisa. Então, a transmissão foi enfática: eles tinham conseguido fazer experiências
com este processo. Era algo que eu queria perguntar para o Mago depois do nosso
aprendizado telepático, pois não queria tirá-lo de sua concentração.
Fui aprendendo rapidamente truques básicos de magia: acender uma pequena
chama, como se localizar no escuro, fazer desaparecer pequenos objetos etc.
Ao final da tarde, já estávamos exaustos, pois tínhamos dedicado praticamente
umas seis horas nos concentrando e imaginando as aplicações do nosso aprendizado
para uma possível utilização dos mesmos.
O Mago e eu começamos a treinar certas capacidades ensinadas um ao outro,
primeiramente com relação à transmissão de sentimentos. Foi ótimo e óbvio! Nós
dois estávamos com fome. Então o Mago saltou como um gato, lançando o calcanhar
em direção ao meu queixo. Esqueci-me, abaixando rapidamente, mas já o derrubando
com uma rasteira em seu pé de apoio. E imediatamente transmitindo-lhe:
“Aprendeste a teoria, a prática, mas não a velocidade: para isso deves treinar
muito.”
E ele me respondeu:
“Prefiro ouvir tua voz”, olhando-me com uma expressão muito afetuosa.
Fiquei vermelho, pois sabia que tipo de declaração era aquela. E respondi,
agora usando a voz:
– Sabes muita coisa para tua idade, não sabes?
– Como assim? – me perguntou, meio que indignado.
– Não achas que és muito jovem para esse tipo de coisa?
– Ortal, preciso te explicar uma coisa, mas antes gostaria de te fazer uma pergunta, para comprovar minha intuição. Quantos anos eu aparento para ti?
– Bem, na minha vila, pelo teu tamanho, acredito que no máximo uns doze
anos.
Ele soltou uma longa risada, deixando-me um pouco surpreso por sua reação.
– Muito bem – falou -, era o que eu esperava. Não sei se tu sabes, mas meu
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
povo vive muito mais do que o teu, algo em torno de uns trezentos e cinqüenta anos,
pois descobrimos a erva da longevidade, que te mostrarei mais tarde. Fora isso, temos
vários mecanismos para conseguir aproveitar a vida fazendo-a durar muito mais do
que qualquer outro povo soube. Portanto, nosso processo de envelhecimento é muito
mais lento, tornando uma pessoa de dezoito ou vinte anos com aparência de como
disseste dez ou doze!
– Tu estás querendo me dizer que tens vinte anos? – falei, quase que com raiva,
pois estava abismado.
– Dezoito, para falar a verdade, mas, como meu pai dizia, com atitudes de dez!
– falou, muito orgulhoso desta última parte.
– Simplesmente não posso acreditar!
– Acredita. E acredita também que, apesar das minhas atitudes de dez, sou uma
pessoa muito alegre e adorava ficar em contato com as crianças da tribo quando elas
eram vivas. Tenho conhecimento de gerações de Magos, pois descendo da linhagem
principal deles. Ou seja, logo eu iria me tornar o Mago Maior da minha tribo, caso não
tivesse acontecido esta calamidade.
Eu estava sem fala. Como sempre, não sabia que tipo de sentimento estava
passando por mim, só sei que ia da surpresa até a raiva. Então, pus em prática o que
havia aprendido, deixando a coisa esfriar, me acalmando e... deu certo! Larguei uma
gargalhada que até assustou o pequeno Mago. Ele olhou para mim e logo soube o que
eu tinha feito.
– Meus parabéns, Ortal. Nenhum iniciante em magia do corpo conseguiu
domar seu espírito tão rapidamente como tu! Estou orgulhoso. Acho que meu pai teve
razões de sobra para te escolher como meu companheiro.
– Obrigado, caro amigo. Estou muito emocionado com tudo isso.
– Ótimo! É assim que se deve ficar, afinal, recebeste informações muito valiosas. Mas agora vamos comer! Porque depois deveremos amadurecer nossos conhecimentos.
E assim estávamos de novo nos energizando com a maravilhosa cozinha dos
Magos. Desta vez comemos arroz com ervas e peixes que pescamos de uma enorme
“piscina” que havia na aldeia. Como sempre, a comida foi feita à base de magia, mas
desta vez o Mago exagerou:
– Agora que já adquiriste alguns dos nossos poderes de controle do corpo, acho
que podes experimentar a força de nossas ervas mais poderosas. Se por acaso sentires que as sensações vão sair do controle, passa-me imediatamente uma mensagem
telepática, de qualquer modo estarei aqui do teu lado.
Eu estava deitado bem no meio do salão principal. Uma luz direta caía sobre
meu corpo. O Mago estava deitado ao meu lado e todas aquelas enormes estátuas
pareciam nos vigiar.
Comecei a flutuar, não meu corpo, mas minha alma. Agora via meu corpo
iluminado de cima. Senti um breve estremecimento de minha alma quando observei
o corpo do Mago ao meu lado. Mesmo que a magia já não me atingisse, sua beleza
era indescritível. Sua capa prateada escorregara pelo seu corpo, deixando à mostra
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
toda sua pele incrivelmente branca e lisa. Suas pernas eram bem torneadas, como de
alguém que passou a vida inteira correndo ou brincando. Seu torso era definido já com
alguns desenhos de músculos de homem quase adulto. Ele parecia estar dormindo,
mas não estava. Na verdade estava me observando, e sabia muito bem o que eu observava nele. Ele podia sentir o que eu estava sentindo!
Porém, desviei o meu olhar para as estátuas, elas estavam comentando algo
sobre mim. Olhei para o Mago de novo, ele estava lá deitado no mesmo lugar. As estátuas pareciam conversar num idioma muito estranho, mas logo comecei a entender.
Minha alma flutuava no meio do enorme salão e as enormes estátuas estavam, a
princípio me ensinando algum idioma antigo, mas logo percebi que não era bem isso.
Elas me ensinavam o aprendizado da linguagem, com isto eu poderia compreender a
linguagem dos homens antigos.
Mas por que elas estavam me ensinando aquilo? Não estava entendendo o
propósito, mesmo assim continuei a aprender. Era uma linguagem complexa que
exigia muita concentração. Porém, foi passado de um modo simples, e logo estava
compreendendo algumas das mais importantes línguas do passado, línguas que eram
faladas havia mais de quatro mil anos!
Por um momento as estátuas se calaram, mas eu comecei a entrar em outro
devaneio. É interessante que tudo isto parecia ser um sonho, porém com um nível de
percepção da realidade muito superior à própria realidade. O devaneio tornou-se mais
forte e comecei a visualizar de longe o que parecia ser uma cidade realmente muito
grande. Nossos memo-cristais nunca foram tão realísticos ao passar uma informação
como este tipo de alucinação estava me passando. Comecei a me aproximar da cidade.
Era algo muito estranho, tinha prédios enormes, luzes, muitas pessoas andando apressadamente, um cheiro muito forte e carregado no ar... agora já sabia! Eu estava numa
cidade do passado! Imediatamente comecei a sentir uma violência muito grande emanando dali. O tamanho me assustava, a massa de gente me assustava, e todos aqueles
objetos estranhos, além de não existirem florestas nem animais! Comecei a entrar em
pânico. Na verdade eu estava tremendo, parecia que nunca iria sair daquele lugar.
Então senti alguém me abraçando. Era o Mago! Senti seu pequeno corpo em contato
com o meu, mas não era seu corpo, nem o meu. Fechei os olhos para não olhar mais
aquela cidade fétida e terrível, e quando abri, estava de novo flutuando no salão com
a alma do Mago nos braços da minha.
Então, nossos espectros, em uma decisão conjunta, desceram para os nossos
corpos, e lá permanecemos até o amanhecer.
Quando acordamos, o Mago estava assustado:
– Tenho certeza do que nos reserva o futuro, Ortal.
Não tirei os olhos dele, e ele continuou:
– Teremos nossas almas amaldiçoadas – Abri a boca de espanto. – Somos filhos da natureza – continuou – Temos a bênção dos cristais e das ervas, e dos animais
e de tudo que rege este Planeta. Mas agora seremos amaldiçoados para sempre. Eu e
tu. Nosso povo aprendeu a esquecer o ódio e a guerra. Durante séculos e séculos deixamos de lado todas as rixas entre seres humanos. Só matávamos para nos alimentar.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Cultivamos a amizade entre os povos e deixamos livres todos aqueles que queriam ter
um modo de vida distinto do nosso, mesmo sabendo que, mais tarde, pereceriam pois
não obedeciam às leis da Eco Justiça.
– Agora, para que a humanidade não pereça nas mãos desse povo que atacou e
destruiu todos os meus, deveremos buscar um conhecimento maldito. Pelo que vi no
teu aprendizado, senti nosso destino. Senti que deveremos retomar o fluxo do ódio,
como nossos ancestrais faziam e quase se autodestruíram. Senti que deveremos fazer
uma longa viagem, através do passado, para poder readquirir o que em milênios conseguimos finalmente esquecer. Senti que o mais negro dos cristais caiu sobre nossas
almas com sua ponta empapada do mais podre veneno existente na Terra e que seremos esmagados por ele, pois do nosso ódio surgirá mais e mais veneno.”
E assim caiu no mais doloroso dos choros, num choro que nunca tinha visto
antes. Ele agora estava em meus braços, soluçando como uma criança que ele era. E
todas as estátuas começaram a chorar, e a luz do sol que entrava pelas janelas no teto
se apagou, tornando o ambiente em uma penumbra. Um imenso fardo caiu sobre nós.
Uma tristeza indescritível começou a assolar minha alma. Não iria aguentar muito
tempo ver aquela criatura em meus braços sofrendo.
Eu estava num estado lastimável. Aquilo que poderia ser um semideus estava
se agarrando em minhas roupas fortemente, como se estivesse tentando se prender
em mim para não cometer suicídio, de tanta dor que sentia em sua alma. Olhei para a
frente para tentar alcançar algum caminho para apaziguar aquele desespero. No meio
dos olhos tristes de todas aquelas estátuas comecei a notar uma fumaça verde, luminosa, que começara a brincar no ar que nos rodeava. Sem mais nem menos, a fumaça
começou a tomar forma de uma pessoa, e logo a fumaça se tornou prateada. Sim, era
o espectro do pai daquele que caíra em meus braços! O Mago Maior!
– Deveria ter orgulho de carregar este fardo, pequeno Mago, pequeno filho,
pequeno escolhido. Serão você e este cavalheiro que irão salvar nosso Planeta e nosso
conhecimento daqueles que nos violaram. Por isso é que vocês dois foram escolhidos.
Porque irão aprender o poder do ódio, das guerras, da hipocrisia, da má-fé, da mentira,
da covardia, e irão derrotar o inimigo com isto e com nossos poderes que foram passados para vocês. Mas vão guardar este poder para vocês. Será o fardo que irão carregar
e nunca dividirão isto com ninguém. Em troca, irão salvar o Planeta e receberão de
mim uma surpresa.
O Mago parecia mais calmo, mas de seus olhos as lágrimas não paravam.
– Mas, mas o que iremos fazer? – perguntou o pequeno Mago.
– Ainda não estou preparado para lhe responder, porém lhes digo que será uma
tarefa muito difícil. Creio no seu poder e na coragem de Ortal. Apesar de perigoso,
tenho certeza que não terão problemas para aprender isto. Acredito que, depois de se
acostumarem com a ideia, irão até se divertir!
– Nos divertir? – perguntou o pequeno Mago, abismado. – Como podes falar
uma coisa dessas, meu pai?
O espectro do pai cintilava, iluminando o espaço.
– Não te aflijas, filho. Acredito na força de Ortal. E acredito que vocês, juntos,
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
conseguirão passar tranquilamente por esta primeira obrigação pela sua raça e por seu
Planeta, não é mesmo?
A expressão do Mago Maior era de pertinência absoluta. Tanto eu como o
Mago estremecemos. E o pequeno Mago falou, agora arrependido de sua falta de
coragem:
– Sim, pai.
– Ótimo, continuem a se preparar. Em dois dias estarão partindo para uma viagem nunca feita antes por nenhum ser humano deste Planeta e talvez do universo: a
viagem no tempo! Todo o poder de nossa tribo será empregado para tamanha façanha.
Não decepcione aqueles que dedicaram a vida para você, e para você também, Ortal.
Você não imagina o quanto nós fizemos para que você chegasse aonde está.
E com estas palavras sumiu no espaço, deixando-nos ali parados, sem fala.
Era de manhã e resolvemos sair daquele salão para animar os espíritos. Pois foi
ao sairmos que tudo mudou. Acredito que o Mago Maior tenha feito isto para que o
Mago de Prata melhorasse seu humor. Toda a cidade estava reconstruída! Havia flores
por todas as partes. Peixes pulavam feito loucos para fora d’água no enorme lago que
centralizava a aldeia. As casas estavam como novas com todos os seus cristais estalando à luz solar. Eu e o Mago nos olhamos e não tivemos dúvida. Tiramos a roupa e
fomos direto ao lago. Antes de mergulharmos, o Mago me disse que estava na hora de
me mostrar uma surpresa.
Mergulhamos e fomos de encontro ao lindo mundo submerso; era fantástico!
A superfície da aldeia dos magos era maravilhosa, com suas casas de cristais de todas
as cores e a enorme parede de cristais transparentes que a circundava, o fundo do lago
era um absurdo.
Não sei como não havia notado isto antes, talvez por ter estado preocupado
demais com as outras coisas, mas o fato era que o fundo do lago era feito inteiramente
de... prata! A mais pura prata, com lindos ornamentos moldados para que os peixes
pudessem brincar por entre as infinitas cavernas de corais feitas de cristais incrustados.
Os cristais recebiam os raios solares de cima, pois a água era muito transparente, e de baixo, fruto da reflexão que a prata fornecia, fazendo do ambiente um
mundo de cores que faria qualquer arco-íris morrer de inveja.
O Mago parecia outra pessoa, e eu também! Aquele banho de beleza submarina adicionada à maravilhosa temperatura da água do lago prateado, sem contar a
companhia das mais variadas criaturas que vivem naquele aquário de cristal, deram
um banho de alegria aos nossos desolados espíritos. Ao sairmos da água, após horas
de divertimento, estávamos exaustos e famintos. Comemos uma grande quantidade de
frutas e o Mago me disse:
– Ortal, precisamos trabalhar. Se vamos fazer uma viagem ao passado, deveremos retomar alguns aspectos culturais do povo antigo, principalmente entender a
escrita, agora proibida, e as suas línguas. Vamos à câmara dos memo-cristais.
Contornamos o lago prateado e tomamos a direção oposta ao grande salão.
Andamos uns trezentos metros e viramos numa ruela à esquerda. Ao chegar ao fim
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
da rua, nos deparamos com uma construção de uma estrutura um tanto estranha. Ela
tinha sua base como um quadrado; uns cinco metros quadrados, sem portas nem janelas. A partir deste quadrado as paredes subiam opostamente uma da outra num ângulo
para fora, como uma pirâmide de ponta cabeça. A altura desse desenvolvimento era
de uns dez metros. Mas depois a pirâmide tomava a direção certa, indo para cima e
terminando seu pico com mais uns dez metros.
Toda ela era negra e espelhada. Eu podia agora ver nossos reflexos em sua
parede curva para fora.
– O sol – falou o Mago – é uma das melhores fontes energéticas do nosso
Planeta. Diz-se que foi por se utilizar desta fonte para o mal que a antiga civilização
sucumbiu.
– E foi aí que começou a Eco Revolta – falei empolgadamente.
O Mago me fitou perplexo.
– Então tu sabes sobre a história falada?
– Sim, um pouco. E sobre as cidades e algumas coisas sobre a civilização passada também.
– Ótimo, não precisamos perder muito tempo com isso então. Vamos colocar
alguns memo-cristais em funcionamento, digerir rapidamente essas informações e
voltar para a magia, que é o que devemos aprender.
– E o senhor, um pouco de defesa pessoal.
– Acredito na força do nosso poder mental, Ortal.
– Talvez por isso que teu povo tenha sucumbido – respondi.
– Meu povo não sucumbiu. Os corpos deles estão mortos, mas suas almas
estão vivas e livres. E se os seus corpos morreram é porque não sabíamos como usar
a magia para o mal. Por isso é que devemos aprendê-la do modo correto, sem que ela
faça de nós escravos da maldade.
– Acredito plenamente nisso, pequeno Mago, mas a defesa pessoal não é apenas um meio de saber lutar, mas um meio de conservar seu corpo e espírito.
– Sim, tens razão – falou o Mago. – Mas vou mostrar-te algo que realmente
conserva o espírito!
Tirou um pequeno cristal do bolso de sua manta prateada e jogou para cima.
O cristal ficou rodopiando parado no ar durante alguns segundos e o Mago gritou
algumas palavras. Sua voz ressoou em ecos que duraram muito tempo. Eles foram
sumindo, mas de repente voltaram, primeiro bem fracos e então crescendo, até que
retornaram na altura da voz original. Mas não pararam por aí. O que era uma voz fina
de um grito de uma criança começou a se tornar vagarosamente um rugido e logo um
trovão interminável. Eu estava com os ouvidos tampados e o Mago na minha frente se
postava de braços abertos para a construção na nossa frente.
Uma das laterais da pirâmide começou a desaparecer. O Mago se voltou para
mim. Deu um pulo para alcançar minha mão que se encontrava tampando um dos
meus ouvidos. Segurou-a e gritou alguma coisa, me puxando. Como não ouvi o que
ele disse, simplesmente pensou e me transmitiu:
“Vem rápido antes que feche. Minha voz ainda é muito fraca para manter ab47
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
erto muito tempo.”
Corri com ele para dentro do estranho templo. O templo era apenas uma escada. Descemos, agora não tão rapidamente. No começo era escuro, mas, à medida
que avançávamos, o ambiente se tornava claro e azulado.
– O azul torna o espírito livre – falou o Mago.
Estávamos num imenso salão azul. Tudo era refletido, desde as colunas que
seguravam o local, as quais eram perfeitamente lisas e também reflexivas como as
paredes, até nós mesmos, que ficávamos com uma espécie de textura azul e também
reflexiva!
– Ortal, agora vamos nos deitar e tu te tornarás um memo-cristal.
– Como assim? – perguntei.
– Esta câmara é inteira feita de memo-cristal. E ela tem a propriedade de tornar
teu corpo um memo-cristal reversível, então vais escolher as memórias que quiseres
sentir, através desta experiência. É lógico que isso só pode durar pouco tempo, pois
senão tu te tornarás um cristal para sempre. Não tentes saber de tudo de uma só vez.
Terá a oportunidade de voltar aqui mais vezes quando o teu corpo estiver recuperado.
Isto pode demorar uns seis meses.
– Quer dizer que eu vou ficar debilitado por fazer isso?
– Não, apenas não é aconselhável retornar aqui com muita frequência, pois o
nível energético desta câmara é muito grande. E afinal de contas, faremos esta viagem
no tempo para aprender pessoalmente as coisas. Portanto, vamos ter aqui um breve
entendimento do que vamos encontrar no passado.
Deitamos e um mar de informação começou a pairar sobre minha mente. Eu
estava de novo no passado, mas o que eu queria saber era como se iniciou a guerra
que fez a Eco Consciência despertar. Infelizmente, pouco havia sobre isso. Aproveitei
para rever as grandes cidades. Fiquei abismado com o tamanho das construções e
com a feiúra das coisas. Embora os sentimentos das pessoas que tinham deixado essas
memórias fossem inconfundivelmente bons. Como que extasiadas por um passado
que não conheceram. Creio que as memórias foram, em sua maioria, distorcidas pela
história falada, antes de terem descoberto os memo-cristais. Talvez fosse mais um
capricho da Eco Justiça.
Acabamos a sessão sem um resultado objetivo. Apenas tivemos informações
que já conhecíamos. Falei ao Mago sobre minha ideia da distorção que a linguagem
falada fez com as memórias e ele concordou plenamente.
Eu estava meio descontente com o resultado dos nossos estudos, mas o Mago
me animou. Disse que eu iria aprender tudo sobre o passado logo, logo, em carne e
osso. Creio que ele já estava se acostumando com a ideia de viajar ao passado.
Passamos mais dois dias numa rotina de aprendizados de magia, sempre regados a muitos cristais, muitos banhos no lago prateado, boa comida e belas caminhadas
pela cidade dos Magos, agora reconstruída e bela. No final do segundo dia, o Mago
me disse:
– Creio que estamos no final do aprendizado, Ortal. Acredito que pelo menos a
parte funcional da magia já aprendeste. Com algum tempo poderás desenvolver o que
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
foi aprendido e com um pouco de criatividade irás saber aplicar este poder nas devidas
circunstâncias. Não tardará a hora em que meu pai me chame para a nossa viagem.
Mal o Mago acabara de falar, surgiu no quarto um ponto de luz que tornou o
ambiente claro. O rosto do Mago se iluminou com a luz e com um sorriso.
– É chegada a hora Ortal! Iremos conhecer um mundo novo, e logo depois
salvar o nosso!
Eu mal acreditava na empolgação dele. Já não sabia o que me fascinava mais
naquele lugar maravilhoso. Até aquele momento eu estava imparcial quanto a toda
aquela missão, como se fosse algo que estivesse longe para acontecer, mas na hora em
que o Mago falou aquilo, um sentimento de ansiedade tomou conta de mim. Resolvi
botar à prova o conhecimento adquirido naqueles últimos dias. Concentrei-me em
todo o processo de controle mental e corporal. Sabendo que todas as nossas reações
emocionais são derivadas de uma química fabricada por nosso corpo e lançadas para
o mesmo quando se trata de algum sentimento qualquer, resolvi interpretar o que estava sentindo, detectar qual era o elemento químico que gerava aquele sentimento e
finalmente fazer com que o meu próprio corpo metabolizasse o antídoto. Após alguns
momentos de tentativa... deu certo! Estava calmo de novo!
O Mago sorria para mim com uma expressão de orgulho estampada na face!
Era incrível como eu não conseguia me acostumar com a beleza daquela pequena
criatura. Ele continuava a me olhar e sem mais nem menos se jogou no meu pescoço,
entrelaçou suas pernas nas minhas costas e eu, atingido pela mesma emoção, abraceio fortemente.
– Não tenhamos medo, Ortal. Temos um poder de milênios dentro de nossos
cérebros, é só termos cuidado ao usá-lo.
Assim, despencou do meu colo e me puxou pela mão atrás da luz que já saía,
voando, porta afora. Descemos as escadas do grande salão e fomos para a câmara
onde havíamos encontrado os pais do Mago antes.
A câmara estava à meia-luz. Sentamos no chão e esperamos que os espectros
chegassem. O aparecimento do Mago Maior foi, como das outras vezes, deslumbrante. Começou com alguns reflexos bem à nossa frente, com imagens desconexas que
voavam aleatoriamente de um lado para o outro até que formaram a imagem do espectro iluminado e transparente. O Mago Maior trajava um manto que esvoaçava como
se tivesse grande quantidade de vento no local. Seus cabelos estavam compridos e ele
parecia estar muito jovem agora, tudo que eu podia ver eram tons de prata translúcidos e iluminados que formavam a imagem de um ser humano. Ele carregava nas duas
mãos um perfeito círculo verde, do qual emanava uma luz muito forte.
“– Saudações, jovens Magos, se assim me permitem que fale. Seguro nas
minhas mãos o trabalho de meu povo que será concedido a vocês, sob o juramento de
não utilizarem dele para o mal, interpretado pela quebra da magia e das leis da Eco
Justiça. Com este cristal dos outros mundos vocês irão para outros tempos. Além de
ser um cristal com o objetivo de transporte temporal, é também um memo-cristal.
Vocês deverão implantá-lo atrás de suas orelhas, assim que ele tomar a forma conveniente. Através dele receberão algumas instruções básicas de como voltar para esse
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
tempo e o poder que ele pode depositar nas suas mãos. Uma vez colocado, vocês irão
ser deslocados no tempo imediatamente; portanto, creio que devem se preparar para
isso. Deverão colocar duas capas sobre suas roupas. As capas devem ser de prata
escurecida. Deverão levar suprimentos de mel geriátrico concentrado, pois a comida
no lugar para onde vão é extremamente ruim. Ao colocar o cristal atrás da orelha,
ele nunca mais sairá, e para sua segurança, ninguém notará nitidamente, pois ele se
tornará muito pequeno.”
“Não precisarão levar mais nenhum cristal consigo, pois este tem o poder de
todos os outros. Ao chegarem lá, aprendam o que devem e voltem imediatamente.
Vocês retornarão quando os dois sintonizarem o mesmo sentimento de partida. Não
revelem a ninguém de onde vêm, nem o que são, isto seria desastroso para vocês.
Contem apenas um com o outro.”
“Ah! Já ia me esquecendo! A magia que protege você está desfeita. A partir de
agora, você tem um ótimo protetor, Ortal, o Mago guerreiro. Só falta ele se acostumar
com o poder que tem nas mãos. Isso não levará mais que três ou quatro horas, pois,
assim que eu desaparecer, vou dar-lhe uma pequena ajuda. Adeus, meu querido filho,
adeus Ortal. Algum dia nos veremos de novo!”
E, dito isto, desapareceu, deixando cair o círculo verde, que imediatamente
parou de brilhar e, ao chegar ao chão, se espatifou em dois pedaços idênticos. Tanto
eu como o Mago pegamos um pedaço. Corremos para os aposentos do Mago e imediatamente colocamos as capas que iam até nossos pés. Fomos ao depósito e pegamos
umas drágeas de mel geriátrico das abelhas douradas e colocamos nos bolsos. Com
isso poderíamos viajar.
Quando o cristal parou de se modificar, alcançando um tamanho muito pequeno e uma forma de meia-lua que se encaixava precisamente atrás de nossas orelhas,
instalamo-los.
A princípio nada sentimos, mas logo o local onde estávamos desapareceu, e
uma escuridão total tomou o seu lugar. A última coisa de que me lembro foi o Mago
me olhando. Daí fiquei um pouco preocupado, pois achei que o Mago Maior se enganara quanto à retirada da magia, pois o pequeno Mago continuava igual, perfeitamente
belo.
CAPÍTULO 4
O Inferno na Terra
Um ruído de coisas sendo arrastadas foi a primeira impressão que obtivemos
do mundo a que acabáramos de chegar. Logo vimos que estávamos dentro de um
enorme salão, que estava um pouco escuro. As paredes à nossa volta eram negras
e metálicas. Bem à nossa frente, no alto de uma parede, se encontrava uma enorme
janela que continha uma série de desenhos em cores transparentes. Podíamos então
ver que lá fora o dia estava sumindo. Esta janela começava com uma base reta, uns
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
dez metros acima de onde estávamos, e terminava pontiaguda; as paredes laterais formavam uma curva até chegar ao pico. Os desenhos eram em tons de vermelho, preto
e laranja e simbolizavam bestas copulando com seres humanos, formando uma orgia
baseada na dor e sofrimento.
O movimento das pessoas ali dentro era frenético. Enormes caixas eram trazidas de um lado para o outro. Pessoas gritavam, bandeiras eram penduradas, balões
subiam e luzes eram acesas e apagadas num ritmo absurdo. Parecia que ia haver uma
enorme festa ali hoje.
De repente, um som muito alto começou com uma batida violentíssima. Viramo-nos imediatamente para ver de onde o som provinha, mas logo cessou. Foi então
que percebemos o verdadeiro tamanho do local. Do lado oposto ao que estávamos,
a uns cem metros de distância, havia um palco com uma caixa e um homem atrás da
mesma. Controlava algum equipamento, tinha nas orelhas dois globos enormes, que
parecia estar utilizando para ouvir alguma coisa, pois mexia a cabeça em movimentos
ritmados. Logo atrás dele, mais no alto, uma mensagem corria em luzes vermelhas, na
antiga escrita proibida, que dizia:
“00:01 HORA DO DIA PRIMEIRO DE JANEIRO DO ANO DOIS MIL O
TEATRO NOSFERATUS TEM O PRAZER DE INICIAR O TERCEIRO MILÊNIO
COM A MAIOR FESTA RAVE DO PLANETA – FELIZ ANO NOVO!”
Então uma voz surgiu lá de cima dizendo que estava ótimo, e que era para ser
colocado exatamente no horário.
Sim, eu e o Mago tínhamos certeza de que aquilo que estávamos presenciando
eram os preparativos para a comemoração de ano novo, do ano dois mil, há exatamente quatro mil e duzentos anos atrás de nossa era!
O Mago se agarrava fortemente em minha mão. Logo ele me puxou e disse:
Vamos nos esconder para ver o que significa isso.
Fomos para tráz de umas mesas que ficavam num lugar muito escuro. Sentamos num banco e esperamos.
Então pudemos ver todos os preparativos da festa. Muitas pessoas estavam
naquele local. Finalmente observamos que existiam mais quatro andares para cima e o
teto era uma cúpula em vidro com os mesmos motivos da enorme janela que tínhamos
visto. Nos andares superiores podíamos ver muitas mesas e cadeiras sendo arrumadas.
Em cada uma era posta uma cesta com muitas frutas e uma garrafa de um líquido borbulhante era depositado dentro de um balde de metal. Toalhas pretas eram colocadas
em cada mesa juntamente com uma porção de objetos estranhos e coloridos.
Olhei para o Mago e resolvemos testar nossos poderes. Sintonizamos nossas
mentes e começamos a analisar em conjunto o lugar. Descobrimos através de nossas
memórias ancestrais que aqueles objetos coloridos eram papel, um material proibidíssimo de ser feito no nosso tempo pela Eco Justiça. O líquido borbulhante era champanhe, e dentro dos baldes iriam ser colocados cubos de gelo, para que a bebida se
tornasse mais gostosa. Era incrível como minha mente juntamente com a do Mago
conseguiam localizar todas aquelas informações tão facilmente.
Estávamos mais à vontade quando percebemos o que se passaria na tal festa.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Sabíamos que iria haver uma enorme quantidade de pessoas, música altíssima, muita bebida e principalmente drogas, muitas drogas. Acredito que na maioria seriam
parecidas com o cristal-dionísio, porém, é claro que devido às circunstâncias de sua
produção, fariam muito mal ao usuário.
Sentimos um movimento à nossa esquerda. O pessoal que distribuía as coisas
estava se preparando para arrumar as mesas próximas daquela onde estávamos. Com
toda a cautela saímos dali e procuramos uma escada para subir e verificar o andar de
cima.
O movimento de pessoas estava tão frenético que mal perceberam nossa passagem. Mas logo o Mago me transmitiu que ele estava se utilizando de um artifício
de não-presença para nós dois naquele lugar. Ainda bem! Creio que aquelas pessoas
logo notariam nossa presença, afinal, não é todo dia que se vê um ser de quase dois
metros de altura com duas tranças até a cintura acompanhado de um Pequeno Mago
com todos os ornamentos de seu rosto, azuis-esverdeados. Definitivamente não, não
naquele lugar. As pessoas eram muito estranhas, eram pequenas, mesmo o Mago se
tornara grande, perto delas. Eram fracas e com cara de cansadas. Tinham manchas estranhas na pele e olheiras fundas. Acreditei que era pelo fato de comerem mal e terem
contato com um mundo poluído, como havia visto através dos memo-cristais. Logo o
Mago confirmou minha teoria.
Ficamos sentados numa mesa no primeiro andar do local, olhando toda a movimentação interna. Não paravam de chegar materiais para a festa. A coisa começou a
ficar entediante.
Mas, de repente, o som começou a tocar e as luzes começaram a piscar como
loucas. O som era uma batida rapidíssima num ritmo alucinante. A potência era algo
tão impressionante que tanto eu como o Mago tivemos que controlar nossa química
corporal, pois o nível de adrenalina se tornou caótico. Cinco minutos depois o salão
estava vazio, havia apenas o homem controlando o som. Alguns homens, vestidos
com uma roupa uniformizada e muito elegante começaram a entrar. Consegui contar
cem, mas depois me perdi. Eles tinham na mão um pedaço de papel e estavam muito
solenes. Espalharam-se por todo o local, inclusive no nosso andar. Então, vários homens com o mesmo uniforme dos primeiros, mas escuros, e com um instrumento na
mão segurando perto do ouvido, começaram a se mover feito loucos de um lado para
o outro.
De repente o som tornou-se ensurdecedor e uma chuva de fagulhas caiu do
teto, ao mesmo tempo que dois enormes portais se abriram. Eu e o Mago nos abraçamos de tanto medo, não deu tempo nem de fazer o controle corporal. Uma verdadeira
enxurrada de pessoas entrara ao mesmo tempo no local.
Era gente de todas as raças e todas as cores, vestidas com as roupas mais espalhafatosas possíveis, com cabelos coloridos e arrepiados. Seus rostos eram pintados de
todas as cores, porém o preto predominava, não só na maquiagem como nas roupas.
Tinham adornos pontiagudos nos pulsos e nos pescoços. De suas orelhas, narizes,
sobrancelhas, umbigos e sabe-se lá mais onde, pendiam diversos adornos prateados.
Era o povo mais estranho que eu já tinha visto na minha vida.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Em um segundo o local estava tomado. O Mago me passou a informação de
que nossa não-presença estava desfeita. Senti um arrepio, mas era algo necessário,
pois deveríamos participar de tudo aquilo para aprender o que viemos buscar.
Logo as pessoas começaram a pular feito loucas no ritmo da música. As garrafas eram abertas e seu líquido era ingerido mesmo no gargalo, e logo os homens de
branco vinham e traziam mais e mais garrafas. Eu e o Mago passeávamos por tudo aquilo com muito receio. Podíamos ouvir as pessoas e entendê-las, mas nossa dicção não
estava preparada para esta língua antiga e transformada por mais de quatro mil anos.
Se alguém nos dirigisse a palavra por qualquer razão, não saberíamos o que fazer.
Isto não custou a acontecer. Estava com medo que sentissem a presença da
beleza do Mago, mas foi a mim que se dirigiam. Eu e o Mago estávamos de mãos dadas, pois estávamos com medo de nos separarmos, quando um homem preto que batia
no meu queixo me encarou com um sorriso malicioso e gritou para que eu ouvisse,
pois a música estava muito alta:
– “E”, “E”!
Fiquei parado na sua frente e logo o Mago me transmitiu que ele estava me
oferecendo uma espécie de droga, e que era para eu imediatamente fazer um gesto
que não com a cabeça. Logo o homem me abandonou, pois havia dois garotos que o
abordaram para comprar sua mercadoria; começaram a discutir muito rapidamente.
Fiquei abismado ao ver aquilo. Eram duas crianças que estavam a comprar a
droga! Pelo que eu podia saber através dos ensinamentos dos memo-cristais, essas
drogas eram usadas para incentivar a violência. O Mago me pediu para eu agir com
naturalidade, pois aquele era definitivamente um mundo cruel e nada podíamos fazer
para evitar a isso. Continuamos a andar com dificuldade pelo local sem dar muita
importância, aparentemente, para o que víamos, ou o que sentíamos. O ar estava carregado. Havia fumaça para todos os lados e um cheiro de produtos que eu não conhecia começou a ser sentido. Era um cheiro muito desagradável de algo não natural,
doce, e provinha da fumaça que cada vez mais era lançada no lugar para dar algum
tipo de efeito nas luzes.
As luzes, apesar de serem um tanto agressivas para nossos olhos, tinham uma
certa beleza, fazendo desenhos incompreensíveis pelas enormes paredes do local.
Porém nem se comparavam às luzes dos corais de cristais no lago prateado.
Tanto eu como o Mago começamos a ficar um tanto enjoados naquele local. O
Mago me puxou para um canto e falou:
– Vamos tomar uma cápsula de mel-geriátrico, pois este ambiente está nos
envenenando e poderemos logo passar muito mal aqui.
Concordei imediatamente. Colocamos as cápsulas de nossa salvação na boca.
Nunca imaginaria que através daquele gesto nossa estada no passado seria tão rápida!
Logo que tomamos o mel geriátrico, dois homens de preto vieram em nosso encalço.
Mostraram uma arma para cada um de nós e falaram com violência para nos encostarmos na parede.
Fiz menção de defender tanto a mim quanto ao Mago, pois os homens, pela
aparência, deviam ser fracos e fáceis de controlar, porém o Mago logo me transmitiu
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
que aquilo seria a forma mais fácil de ter o que viemos aprender nesse lugar de malucos.
Os homens nos revistaram e acharam umas dez cápsulas de mel geriátrico em
nossos bolsos. Era óbvio que não sabiam do que se tratava.
– Que espécie de droga é essa, cabeludo? – falou, referindo-se a mim e me
dando um tapa na cabeça.
O Mago logo me disse que estávamos completamente ligados agora e que iria
me ajudar a controlar tudo isso, era só eu ficar calmo. E foi o que eu fiz.
Não respondemos nada. Então os homens nos amarraram com braceletes de
metal e nos levaram a um quarto.
– Os primeiros traficantes da noite chegaram, chefe. Que devemos fazer?
O homem com quem falavam estava se agarrando com uma mulher e nem
sequer notou nossa presença, apenas falou entre beijos e pegações:
– Chame a polícia e entregue-os com a droga, e não me atrapalhe mais!
O segurança pegou o telefone e disse para a polícia que já tinha uma encomenda para eles.
Em quinze minutos eu e o Mago estávamos passeando num carro de polícia
por uma enorme cidade. Ficamos abismados com tudo aquilo. Luzes por todos os
lados, pessoas se arrastando pelo chão, pessoas bebendo nas calçadas, uma gritaria o
tempo inteiro devido à comemoração do ano novo, um cheiro horrível de ar estragado,
tudo parecia um verdadeiro inferno. As cores da cidade eram feias mesmo sendo constantemente iluminadas. O ambiente parecia ser verdadeiramente hostil. Então imaginei que se tínhamos que aprender algo acerca do ódio, viemos ao lugar certo. Nem o
inferno das antigas e inúteis culturas poderia ser pior que isso!
Os dois policiais praticamente não notaram nossa presença, nem perguntaram
nada para nós. Então o Mago me transmitiu que ele estava fazendo isso, pois sabia que
assim seria mais fácil aprender o que queríamos.
Os policiais nos tiraram do carro com violência e nos levaram para dentro
de uma construção antiga e mal cheirosa. O lugar estava bem iluminado por dentro.
Trancaram-nos numa sala e falaram que era para esperar o delegado, que, devido às
comemorações do ano novo, iria demorar. Enquanto isso, falaram sarcasticamente que
era para nós aproveitarmos a decoração.
Logo que saíram, o Mago me disse:
– Ótimo, agora terás tempo de sintonizar teu poder. Deves usar a cabeça, Ortal,
lembra-te de tudo que foi ensinado a ti e alia com teus instintos mais antigos. Como
deves perceber, estas pessoas acham que o poder que elas exercem sobre nós é através
do medo. Procura aprender com isso. Acho que podes evitar o ódio, que seria muito
perigoso para nós neste lugar, e enfrentar isso apenas fazendo-os sentirem um medo
superior àquele que eles acham que nós estamos sentindo por eles.
Então comecei a sentir uma comichão nas minhas mãos que logo foi sendo
transmitido por todo o meu corpo. Uma sensação de poder começou a brotar dentro de
mim. Eu estava extasiado! Senti que podia fazer o que quisesse! O Mago experimentou algo parecido, pois estávamos muito ligados mentalmente agora. Então resolvi
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
saber até aonde isso poder iria.
E dentro daquele cubículo eu e o Mago começamos a flutuar no ar! Demos as
mãos e começamos a rodar feito crianças, mas a meio metro de altura! Não parávamos
de rir e durante algum tempo ficamos assim, rodopiando pela sala em que estávamos
confinados, sem nos importar com isso. Acredito que o poder do Mago foi duplicado
quando eu tive a capacidade de controlá-lo.
Então paramos de brincar. Sentamos no chão e começamos a traçar nosso plano para aquelas pessoas que nos tinham prendido. Teríamos que ver se nossa teoria do
medo iria dar certo. Se desse certo com estas pessoas, possivelmente daria com o povo
que destruiu a tribo dos Magos e que estava a assolar o nosso futuro.
Passaram uns trinta minutos até que entraram na sala dois policiais muito feios.
Eles tinham quase o tamanho do Mago, finalmente alguém notou nossa presença!
Quando olharam para o Mago ficaram um pouco assustados, mas fui eu quem os assustou mais. Meu tamanho e aparência eram realmente muito diferentes de todas as
pessoas normais daquele tempo.
Um deles falou pausadamente, olhando para mim, notando que eu dava quase
o dobro do seu tamanho.
– Quem foi que prendeu vocês e por quê?
Resolvemos não responder nada. O outro se irritou.
– Por que não responde, cabeludo?
O Mago me olhou, para dizer que compreendia o que o homem estava dizendo.
Então o homem olhou para o Mago e disse, evitando seus olhos:
– E você, quantos anos tem? É menor de idade e está se envolvendo com drogas? E este aí com você é teu amante, é? Pois se for, vai levar a maior surra de sua
vida.
O Mago deu um passo adiante e transmitiu-lhe mentalmente:
“Leva-nos ao teu superior.”
Os dois deram um pulo para trás! O Mago estava certo! Esses homens temeriam o que não entendessem. Era só fixar um padrão dos seus não-conhecimentos e
teríamos como fazer todo o distrito morrer de medo!
Imediatamente um dos homens gritou:
– Precisamos de reforços, tragam o delegado e rápido!
Uns dez homens vieram ao nosso encontro e nos agarraram de qualquer jeito.
Arrastaram-nos pelo corredor até que fomos jogados numa sala bem maior. Vários
homens apontavam armas para nós. Depois, entrou um homem muito gordo na sala e
foi sentar calmamente na outra mesa:
– Então, o que é que os meus ratos estão temendo? Essas duas crianças?
Ninguém respondeu. Os homens que estavam no cubículo e para os quais o
Mago fez a telepatia deram um passo para trás e os outros começaram a rir deles. O
delegado continuou:
– Muito bem, o que os dois namoradinhos fizeram de errado para estarem em
tão nobre local?
– Foram presos com esta droga, senhor – falou o policial que nos prendeu.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Ah! O que temos aqui? – falou o delegado em tom sarcástico. – Muito bem,
podem me explicar que tipo de droga é essa?
Silêncio. O delegado fechou a cara.
– Eu quero uma resposta! Quem são vocês e que espécie de droga é esta?
Nada. Nem eu nem o Mago iríamos falar. De repente senti uma forte pancada
em minhas costas. Um policial bateu com o cacetete em minhas costas com toda a força. Apenas fiz menção de olhá-lo e voltei a olhar o delegado, que estava boquiaberto.
Aquela pancada derrubaria qualquer homem adulto, e pela minha aparência, apesar
do meu tamanho, eu parecia uma criança para eles. Ouvi então um murmúrio atrás de
mim e, logo, mais uma pancada. Porém, quando foram atingir o Mago, levantei a mão.
Imediatamente três armas surgiram no meu rosto. E o delegado gritou:
– Já chega. Por que estes garotos não querem falar? Alguém revistou suas
roupas?
– Não, senhor.
– Então revistem! Bando de idiotas!
O Mago me olhou. Transmitiu imediatamente a aquele que estava vindo em
sua direção:
“Não me toques! “
O homem parou e o delegado gritou:
– O que esta acontecendo aqui? Por que parou?
Levantou e veio em nossa direção. O Mago me transmitiu:
“Agora, Ortal!”
Tanto das minhas como das costas do Mago surgiram por encanto duas asas
de anjos prateadas e iluminadas. As armas dos policiais foram jogadas para as outras
salas voando pela parede de vidro que as separavam. Imediatamente toda a delegacia
estava nos vendo, a meio metro do chão, com enormes asas de anjos. Estávamos a
encarar todos ali que, já brancos, se ajoelhavam!
O delegado gritou para nós:
– O que vocês querem? Quem são vocês?
Jogamos mais sensação de medo sobre ele e apagamos as luzes do local. Agora
só existia uma luz muito forte sobre nós que emergia de nossas asas! Sentíamos que
todas aquelas pessoas iriam sucumbir diante de nossa presença.
Então o Mago foi mais longe. Entoou uma nota de lamento tão forte que quebrou todos os vidros do local. As pessoas estavam paralisadas de pânico! O delegado
implorava perdão e os homens não conseguiam nem ao menos fugir. Suavam feito
loucos, com a boca aberta sob o efeito do grito do Mago.
Agora no silêncio, sentíamos apenas o cheiro do medo no ar. Continuávamos
a flutuar. Todos estavam nos olhando com os olhos arregalados. Então o Mago foi
voando em direção ao delegado e transmitiu a todos que estavam nos olhando:
“Agora concedo a vocês a dádiva que o Mago Maior deu um dia ao povo que
tentou nos destruir, um povo tão mau quanto vocês, adoradores do ódio e da mentira.”
“Vocês terão a visão mais bela que jamais viram em suas pobres vidas. Darei
a vocês o poder de me ver sob o efeito da magia do Mago Maior, que foi transmitida
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
para o Mago-Cavaleiro, e será a última visão que terão, pois vocês são maus e vivem
da calúnia.”
Olhou para mim e disse na linguagem deles:
– Mago-Cavaleiro conceda-me a beleza, a beleza perfeita, a beleza que um
dia não te cegou, pois você tinha amor em seu coração. Mostre nossa gratidão a esses
senhores, pois aprendemos com eles o poder através do medo e do ódio, pois é só o
que eles têm em seus corações e não merecem viver com a dádiva da visão.
Bati com força as minhas mãos e dela saiu um estrondo assombroso, que fez
tremer todo o prédio. E com a propagação do som, saiu de minhas mãos, agora unidas,
um facho de luz, luz de prata, que atingiu o Mago, fazendo de sua beleza uma beleza
perfeita, tão perfeita que cegaria qualquer ser vivo que olhasse para ele.
Todos os presentes, ao ver aquela criatura, ficaram abismados com sua beleza,
mas logo começaram a gritar, pois jamais veriam de novo, estavam todos cegos.
Não veriam mais nada e não se lembrariam de nada que tivessem visto na vida
até hoje, a não ser a imagem daquele que tirou sua visão, o Mago de Prata. Estavam
gritando como loucos. Desesperados, começaram a correr por todos os lados se debatendo entre si. Estavam com suas vidas condenadas. E eu e Mago também, pois
tínhamos adquirido sua doença, a doença do poder e do medo.
Depois disso, fechamos os olhos e deixamos a gritaria daqueles demônios para
trás. Teríamos um trabalho grande no nosso tempo e não aguentávamos mais aquele
inferno. Estávamos voltando para casa. Arrasados, mas estávamos.
Capítulo 5
A Cordilheira dos diamantes
Sentimos um grande alívio quando respiramos o ar do grande salão das estátuas. Tudo parecia igual a quando partimos. Apenas algo nos chamou a atenção.
O salão estava muito mal iluminado, só havia uma pequena estrela iluminando um
pedacinho do chão, sob a qual havia um pedaço de memo-cristal. Fomos até lá para
pegá-lo. O Mago logo colocou-o em contato com sua testa e imediatamente sentimos
a seguinte mensagem:
“Queridos Magos – era a voz do Mago Maior -, fico feliz pelo modo como
conduziram sua viagem. Conseguiram obter a informação de que precisavam sem ser
tomados pelo ódio nem pelo poder que este proporciona. Após um descanso merecido
deverão ir para o oeste, pela estrada secreta. Lá encontrarão os sinais que os levarão à
civilização que está destruindo as leis da Eco Justiça.”
“A natureza está dividida. Ela não quer cometer o genocídio de nossa espécie,
pois esta se mostrou valorosa após a Eco Revolta. Porém, existe uma tribo que cresce
como formiga no mel, e despreza a Eco Justiça. Eles não têm o poder dos cristais, nem
da magia, pois quando quiseram nos roubar, falharam, e fugiram da magia depositada
em você, filho, porém sua ‘tecnologia artificial’ é complexa e poderosa; eles invadiram campos proibidos.”
“Uma vez a natureza deu aos nossos ancestrais uma dádiva de nos deixar viver
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
num paraíso perfeito. Agora ela clama por nossa ajuda, pois senão terá que destruir
seus próprios filhos benévolos, que somos nós.”
“Devem se lembrar de algo muito importante. Vocês detêm um poder enorme.
Ao contato com esta gente, este poder pode se tornar ambição, pois eles podem tentar convencer vocês, com suas ‘invenções tecnológicas’. Jamais se esqueçam de que
vocês têm a maior das tecnologias, a tecnologia baseada na sabedoria da natureza em
si, isto é, a Magia Prateada!”
“Que os cristais enriqueçam suas almas!”
Já estávamos muito mais inspirados. O Mago Maior sabia como levantar a
moral das pessoas! Porém, ao sairmos do salão, tivemos uma surpresa. Era a surpresa
que o Mago Maior nos tinha prometido antes da viagem no tempo.
Lá estava Delirium, bem na frente do portal que separava o grande salão das
estátuas do resto da aldeia! E ao seu lado um clone prateado, um cavalo idêntico a
Delirium só que de prata. Era a sensação mais feliz que tínhamos desde a viagem no
tempo!
Os dois cavalos pareciam sorrir quando nós chegamos perto. Estavam alvoroçados com a nossa presença! Esquecemos o cansaço e os momentos horríveis que
tivemos no passado. Pulamos nos cavalos e galopamos feito loucos pelas ruas desertas
da aldeia. Para finalizar, entramos com cavalos e tudo no lago prateado; estávamos
extasiados.
Faltava apenas um belo jantar para terminar bem o dia! Quando entramos na
cozinha, tivemos mais uma surpresa. Havia na mesa um banquete indescritível! Desde
sucos até carnes, tudo era fantástico. Os pratos eram decorados com todos os tipos de
legumes e flores comestíveis e bem no centro havia um pote de cristal que sobressaía
dentre os outros. Tratava-se de uma erva verde com luz própria. O Mago ficou pasmo:
– Meus cristais amados! Desta vez meu pai foi longe demais!
– Do que se trata, pequeno Mago? – perguntei.
– Estás vendo aquele vaso de cristal bem no centro da mesa, com aquela erva
fosforescente?
– Sim.
– É a maior quantidade de erva da longevidade que já vi na minha vida! Ela é
extremamente rara! Acho que se comermos tudo aquilo, voltaremos à infância! – falou, em tom de gozação.
– Então tratemos de comer! Estou faminto!
A comida tinha gosto de magia! Era algo fabuloso. A erva da longevidade deveria ser misturada aos outros alimentos e dava um gosto adocicado aos outros pratos.
As carnes tinham cores especiais e com molhos multicoloridos pareciam ter saído de
um sonho absurdo. Comecei a perceber que, à medida que íamos comendo, tanto eu
como o Mago começamos a sentir algo realmente estranho. Quanto mais comíamos
a erva da longevidade, mais as cores ficavam intensas! E uma sensação de paz de espírito misturada com uma inspiração vital era acompanhada de uma leve melodia que
começara a invadir o ar.
Eu olhava para o Mago e parecia que ele sentia a mesma coisa que eu, e na
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
verdade sentia! Pois eu podia sentir o que ele sentia, mas não de uma maneira superficial, como no passado, mas algo intenso. Agora a sensação estava tão forte que eu
podia ver o Mago por dentro! Conseguia ver sua pulsação, sua corrente sanguínea,
sua vida e finalmente seu espírito! Mas logo reparei que eu estava me vendo! Sim, eu
estava dentro do corpo do Mago e estava me vendo com os olhos do Mago, e sentia
tudo o que ele sentia, pois eu estava no seu corpo e ele no meu! Estávamos olhando
um para o outro completamente extasiados, pois nunca o Mago tinha feito tal magia.
Controlamos um pouco a situação e cada um voltou para o seu corpo.
A sensação de paz e poder continuava. As cores vibravam freneticamente, e o
Mago falou:
– Eu tenho certeza de que este poder provém da erva da longevidade. Nunca
ninguém comeu tamanha quantidade! Acho que nosso poder aumentou ainda mais,
Ortal!
– Eu nunca imaginei que alguém poderia ter um poder deste tamanho! Nós
simplesmente trocamos de corpos!
– Foi realmente uma loucura. Creio que isso pode ser muito proveitoso no
futuro.
Agora estávamos empanturrados de comida e começamos a sentir um sono
abismal, afinal fazia muito que não dormíamos e tínhamos tido momentos bastante
cansativos.
– Vamos dormir, Ortal. Precisamos descansar, por mais que esta erva faça-nos
sentir fortes, estamos fracos e com sono.
– Sim, estou com muito sono.
E assim dormimos quase doze horas seguidas.
No dia seguinte, acordamos um pouco mais tarde do que de costume. Arrumamos com muita calma nossas bagagens, com todo o tipo de ervas, cristais e principalmente, comida.
Arrumei minhas armas, que estavam guardadas, e fomos cuidar dos cavalos.
Após um breve desjejum, tomamos a estrada que saía da aldeia. Contornamos a muralha de cristal por fora, pela estrada secreta, e rumamos para o oeste.
Os dois cavalos pareciam estar muito entusiasmados com a viagem, pois trotavam alegremente por entre a floresta. O dia estava maravilhoso e o Mago ia cavalgando a meu lado, transmitindo-me telepaticamente uma bela e alegre música que
falava sobre novas sensações. A melodia era realmente alegre e a voz não era do
Mago, mas de alguém que ele provavelmente inventara. A música tinha uma batida
parecida com a música que tínhamos ouvido no passado, mas não era tão forte e com
certeza, mais melódica.
Então resolvi entrar na brincadeira. Tomei as rédeas da transmissão e encaixei
uma outra melodia, porém na mesma batida. Agora quem cantava era uma voz um
pouco mais acentuada. O Mago adorou e continuou a ouvir. Assim, passamos a inventar novas músicas o tempo inteiro. Mas algo nos interrompeu. Já tínhamos viajado
muito tempo e não sentíamos o tempo passar. Foi guando ouvimos um estalido atrás
de nós.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
“Não pares, Ortal – pensou o Mago. – Vamos continuar como se nada tivesse
acontecido, mas presta atenção! Tu te concentrarás o máximo possível. Tomarás conta
do meu corpo e do teu ao mesmo tempo. Enquanto isso eu voarei sem meu corpo e
verei por cima o que nos persegue. Não te preocupes, não levará mais que alguns
segundos. Agora começa a penetrar no meu corpo enquanto eu saio lentamente. Entendeste?”
“Já estou aqui. Estás sentindo?”
“Sim! É ótimo estar aqui contigo! Já volto. Cuida bem de mim!”
Então consegui ver através dos meus olhos e dos olhos do Mago, seu espectro
saindo de seu corpo. Era incrível! Até nisso o Mago era prateado! Ele saiu voando e
foi para cima e para trás. Continuei na mesma marcha, controlando tanto o meu corpo
quanto o dele. Era incrível, eu virava o rosto do Mago e me via! Depois eu virava o
meu rosto em direção ao corpo do Mago e me via também! Logo depois ele voltou.
– Podes sair, Ortal. E podes parar de cavalgar também.
– Quem nos persegue? – perguntei.
– Já vais ver – respondeu, colocando os dedos na boca e soltando um estrondoso assobio.
Logo depois apareceu um imenso e peludo cachorro, inteiramente branco e,
como não podia deixar de ser, prata. Pulou em cima do Mago com o rabo abanando.
Este deu um grito, abraçando o cachorro.
– Léspas! Não acredito que estás vivo!
Então o Mago me olhou e disse:
– Ortal, este é o Léspas. Um dos cachorros da aldeia. Creio que ele vem nos
seguindo desde que saímos de lá. Ele é um ótimo companheiro, mas acho que vou
pedir para ele voltar. Penso que, se ele for para casa de Sebastian, ficará mais seguro,
não achas?
– Ele é um cachorro muito simpático, pequeno Mago, mas creio que seria melhor ele ficar, pois não sabemos o que vamos encontrar pela frente.
– Léspas! – gritou o Mago. – Para casa de Sebastian! Agora!
E assim, sem vacilar, o enorme monte de pelos saiu correndo para o meio da
floresta. O olhar do Mago estava melancólico.
– Vamos, Ortal. Logo na frente existe um lago ao pé de uma pequena cachoeira
onde poderemos comer e passar a noite.
Passamos a um trote um pouco mais rápido para chegar ao local.
Das águas do pequeno lago saía uma leve bruma que deixava toda a grama
verde em volta com uma aparência quase mística. Havia muitas flores no local, e ao
redor de tudo, as árvores formavam uma imensa parede viva.
O Mago parou em frente de tal paraíso e me perguntou:
– Já viste algo semelhante, Ortal?
A princípio não tinha notado nada de diferente no aspecto daquele lugar. Embora fosse muito bonito, não tinha nada de extraordinário.
É claro que o Mago estava me escondendo algo. Esperei para ver o que seria a
próxima surpresa. De momento nada. Desci de Delirium e o Mago desceu de Magia
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
(era esse o nome de seu novo cavalo). Começamos a preparar uma pequena fogueira
para esquentar os alimentos que tínhamos trazido. Sentamos e comemos. O Mago
parecia se divertir com a minha cara! Após um breve descanso, o Mago falou:
– Que tal um banho, Ortal?
– Claro, seria ótimo!
Despimo-nos e fomos de encontro às águas mornas do lago. Após nadarmos um pouco e brincarmos nas águas, nos encostamos numas pedras na margem e,
aproveitando a temperatura e a corrente da água e relaxamos.
O lago estava cheio de Magos em volta. Todos estavam vestidos com suas
enormes capas prateadas e pareciam flutuar. Logo à nossa frente havia uma menina
grávida que flutuava na horizontal, a uns dez centímetros do nível da água. Ela era extremamente bonita e parecia ter apenas alguns anos a mais que o Mago. As brumas deixavam seu corpo parcialmente à mostra, envolvendo-a cada vez mais. Um dos Magos
que estavam do outro lado do lago começou a flutuar na direção da menina, e agora eu
podia reconhecê-lo! Era o Mago Maior! Mas o que ele estava fazendo ali? Ele chegou
bem perto da menina e apalpou seu ventre. Com alguns gestos delicados começou a
fazer o trabalho de parto. Os outros Magos, em volta, jogavam o pó prateado para dentro d’água, o que dava um efeito muito belo ao ambiente. Logo nasceu uma criança,
um anjo, um ser assexuado. E em seguida veio uma entonação maravilhosa de mil
vozes num coro alegre e forte. Após isso, tudo desapareceu.
– Foi assim que eu nasci, neste lugar!
– Meu Deus!
Para variar, eu estava pasmo.
– Tu te lembras do teu nascimento?
– De algumas partes sim, mas a maioria foi-me passada pelo memo-cristal.
– Que coisa maravilhosa!
Estava olhando diretamente nos olhos do Mago, e ele nos meus. Ele não se
movera dali nem um centímetro. O que viria a seguir, perguntei a mim mesmo.
– Tu me amas, Ortal?
Foi uma bomba! Era óbvio que uma hora ou outra essa questão viria à tona, e,
para não mudar o costume, o Mago a fez vir na hora mais improvável possível.
– Eu ainda não entendi uma coisa, pequeno Mago. Como posso amar-te se
provavelmente já não somos do mesmo povo, isto é, da mesma espécie? Afinal, eu
nasci como um ser masculino e sei que sou um homem, mas tu... Bem, eu nem sei
como definir-te.
– Isso não importa. Apenas o amor importa. Eu tenho certeza que tu me amas,
pois já caminhei pela tua mente inúmeras vezes, assim como já caminhaste na minha,
mas eu gostaria de ouvir isso de ti.
Apoiei minhas costas nas rochas e tomei com minhas mãos seu rosto. Eu estava tremendo! O mundo desabou. Ficamos assim, nos olhando, durante muito tempo.
Saímos do lago e fomos dormir, sem nem uma palavra, sem nem uma mensagem
telepática. Já não precisávamos mais disso, éramos uma pessoa só. Parecia que nem
nossos corpos eram distintos.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Acordamos na mais bela manhã de nossas vidas. Eu ainda estava um tanto
preocupado com nossa relação e procurei guardar o máximo desta preocupação dentro de mim, para que o Mago não percebesse. Afinal, acho que alguma privacidade
deveríamos ter.
Recolhemos todo o nosso material, sem deixar de comer antes algumas frutas,
e tomamos a estrada. Não nos comunicávamos desde ontem, não por estarmos arrependidos de alguma coisa, muito pelo contrário, para que aquele momento continuasse o máximo de tempo.
Com muita suavidade, o Mago começou a despertar-nos para a realidade. Fez
que eu ouvisse uma bela música, com uma melodia muito forte e uma letra maravilhosa.
Cavalgamos rapidamente durante o dia todo. Ainda estávamos em silêncio,
apenas as músicas do Mago cortavam a floresta, porém sabíamos que só nós dois
ouvíamos. Flagrei-me pensando que aquilo era um tremendo egoísmo de nossa parte,
afinal, naquele momento tão feliz, toda a floresta deveria ouvir aquela bela canção. Eu
estava realmente apaixonado!
O silêncio foi finalmente quebrado quando chegamos ao oceano. Estávamos
num platô muito acima do nível do mar, e lá de cima podíamos ver quilômetros de
praias. Fixei meu olhar na linha do horizonte e quase caí do cavalo! Avistei a cordilheira de diamantes!
– Estás vendo aquilo, pequeno Mago?
Ele parecia divagar com alguma coisa na praia.
– O quê? – perguntou logo, olhando na direção dos meus olhos.
– Pelos cristais! – gritou, e logo foi descendo de Magia, seu cavalo.
Tratava-se de uma imensa cordilheira de montanhas todas feitas de diamantes
que cortavam de um pólo ao outro o imenso oceano! Era algo absolutamente maravilhoso, mesmo visto assim, de longe.
– Será que temos que atravessar isto, Ortal?
Olhei para ele com cara de pasmo.
– Atravessar o quê? O oceano inteiro a cavalo ou a cordilheira voando?
Soltamos uma risada meio nervosa quando fomos interrompidos por algo.
Logo eu desembainhei a espada e corri para o mato. O Mago flutuou cinco metros de
altura e me indicou a direção da onde vinha o ruído. Em um segundo eu estava com
uma criatura pequena, com o fio de minha espada em sua garganta.
A criatura não pôde acreditar em tamanha rapidez do golpe, mas logo estava
tentando me acalmar.
– Calma, calma, nobre cavaleiro. Pensei que eram vocês os dois por quem
espero há tanto tempo!
– E quem esperas há tanto tempo, curiosa criatura? – perguntei, e logo chegou
o Mago atrás de mim.
– Espero um Mago e um cavaleiro para providenciar auxílio em suas jornadas,
mas vejo que me enganei, porque vejo apenas duas crianças aqui.
Olhei para o Mago e quase não me contive em cair numa gargalhada. O Mago
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
parecia enfrentar o mesmo fardo. Então o Mago perguntou:
– E quem te mandou para que prestasses auxílio?
– Ora, não sei. Apenas vi um ser muito grande de prata num sonho dizendo para eu auxiliar um cavaleiro e um mago em sua travessia pelo oceano. E como
acredito em sonhos e não tinha mais nada o que fazer, vim verificar por estas paragens
se era ou não verdade.
– Isso é bem coisa do meu pai, Ortal.
– O que disse? – perguntou a criatura. – Ortal? Isto é, seu nome é Ortal? –
Agora a criatura me olhava embasbacada. – Pelos Cristais! Era verdade. E você deve
ser o Mago... Mas como? Não passa de uma criança!
Então o Mago bateu três vezes as palmas das mãos e cada vez que ele batia
todo o lugar mudava inteiramente de cor. Primeiro tudo ficou lilás, depois laranja,
depois verde; e na quarta vez tudo ficou normal.
A criatura, que parecia um duende, ajoelhou-se.
– Pelos deuses, me perdoem! Sou ignorante o bastante para confundir um
grande cavaleiro e um Mago de Prata!
Mas o Mago logo acariciou sua cabeça e disse.
– Não temas, pequeno duende. É claro que não poderias imaginar que éramos
nós que procuravas. Meu pai gosta de fazer surpresas. Agora leva-nos à tua casa e
mostra-nos como atravessar este lugar – falou, apontando para o enorme oceano.
– Não vou apenas levá-los à minha casa. Irei levá-los à minha aldeia e apresentá-los para todos aqueles que não acreditam em meus sonhos. Provarei que finalmente
um se tornou realidade!
O duende postou-se à frente numa complicada descida por um estreito caminho pelo meio do mato. Já estava escurecendo e a vista para o mar era realmente muito
bela. O pôr-do-sol refletia centenas de arco-íris na imensa cordilheira de diamantes.
Parecia uma cena épica!
Então chegamos a uma aldeia de casas pequenas, mas muito bonitinhas, todas
feitas de madeira, com os telhados pontiagudos provavelmente feitos de um tipo de
cristal avermelhado. A aldeia formava um círculo ao redor do que parecia ser uma
grande fogueira pronta para ser acesa.
O povoado estava alvoroçado com pequenos duendes correndo para todos os
lados com todo o tipo de afazeres. Todos estavam vestidos com roupas espalhafatosas,
com cores gritantes e imensos capuzes que iam até os pés. Muitas crianças corriam
para lá e para cá como loucas, brincando. Suas roupas eram mais berrantes que as de
seus pais e produziam um efeito no mínimo, caótico para quem visse aquilo de fora,
como nós.
Quando repararam em nossa chegada, todos saíram correndo mais ainda, e
gritando para dentro de suas casas, batendo portas e janelas como se tivessem visto
um fantasma! Foi uma cena hilariante. Em um segundo a aldeia estava deserta! Mas
logo o duende que nos acompanhava gritou:
– É desta maneira que vocês recepcionam meus convidados? Esses gigantes
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
não são maus, eles são dois viajantes que necessitam de nossa ajuda. São aqueles que
eu tinha dito que iriam aparecer por aqui, do povo prateado! Seus imbecis! Será que
são tão covardes assim? Bando de palermas amedrontados. É por estas coisas e por
outras que são baixos como formigas!
Aos poucos foi se formando um círculo de pessoas pequenas em nossa volta.
Todos muito curiosos e assustados com a nossa presença. O duende voltou a falar:
– Povo pequeno, esses são meus mais novos amigos: Ortal, o cavaleiro, e o
Pequeno Mago de Prata.
Então todo o povo soltou um breve grito uníssono de comoção. E o duende
continuou.
– Nós devemos ajudá-los, pois foi o pai desse garoto que apareceu no meu
sonho dizendo que tínhamos que ajudá-los a atravessar o oceano.
Todo o povo ficou estarrecido com tal ideia e logo um dos duendes falou:
– Estás lelé da cuca, Piri? Como pode ver, esses dois gigantes não passam de
duas crianças gigantes, e queres que eles atravessem o oceano para caírem logo nas
mãos do povo Blasfêmico? Imaginas que esses dois podem ser maiores do que nós,
mas como vão fazer se forem capturados pelo Povo do Mal? Vão virar escravos ou
coisa pior. Como podes notar, essas duas crianças não têm um mínimo de poder para
lutar com tal povo. Acho melhor encaminhá-los para seus pais para que eles possam
terminar de serem amamentados! E essa história de Mago? Não sabes que o Povo de
Prata foi destruído pelos Blasfêmicos?
Logo o tagarela parou de falar, afinal, eu e o tal duende Piri não parávamos
de rir e o Mago já ficava um tanto irritado de ser chamado de criança. Caminhou em
direção ao duende que falava e abaixou-se para bem perto dele, olhando-o nos olhos e
fazendo-o estremecer com sua beleza e o seu tamanho. De fato, o duende deveria ter
uns trinta centímetros de altura e até o Mago parecia ser um gigante perto dele. Todo
o povo ficou muito assustado com tal procedimento, mas logo o Mago se levantou e
começou a falar:
– Muito bem, povo pequeno, muito bem, caro Quiri, irmão de Piri, filho de
Locoi e de Martara...
Mas o duende interrompeu-o:
– Ei, como sabe meu nome, garoto?
O Mago virou-se bruscamente para o duende e, já irritado, falou:
– Cala-te, Quiri. Sei seus nomes, pois sou o Mago de Prata, o último Mago que
sobrou da minha aldeia prateada, a qual, como sabeis, foi destruída por este povo que
chamais de Blasfêmicos. Estou acompanhado pelo meu amigo e também Mago, que
além de Mago é um cavaleiro das terras azuis. Estamos numa missão de achar esse
povo maldito e livrar o nosso Planeta deles. Sabemos que será uma missão difícil e
não temos nem ideia de como proceder, mas tende certeza de que temos poder suficiente para isso.
O povo logo soltou mais um uníssono grito de comoção pelas palavras do
Mago, porém o duende tagarela disse:
– Poder? Mago de Prata? Você deve ter andado muito com o Piri, esse meu
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
irmão que é um lunático de marca maior. Acho que você e esse seu amigo aí deveriam
passar a noite aqui, pois já é tarde, e amanhã bem cedinho tomar a estra...
O duende não conseguiu terminar a frase, pois do casaco do Mago começaram
a sair milhares de borboletas fluorescentes!
– O que estava falando, Quiri? – perguntou o Mago sorrindo.
E logo as borboletas estavam em volta de Quiri e capturando-o elevaram-no
do chão uns três metros de altura! Todo o Povo caiu de joelhos ao ver aquela cena.
Mas logo soltaram uma gargalhada ao ver a cara do duende. Em seguida as borboletas
desapareceram e o duende estava nos braços do Mago, que o devolveu ao chão.
Logo depois estávamos em volta de uma fogueira no meio da aldeia, comendo
vários tipos de alimentos imagináveis. O tal duende Quiri, que parecia ser o chefe,
comandava tudo com veemência. Sentou-se ao nosso lado e, todo querido, começou
a explicar como era o povo Blasfêmico e como iríamos chegar até lá. Falou que o tal
povo queria a todo o custo se apoderar das terras desse lado do oceano e muitas vezes
passava para cá, mas nunca se deparara com sua aldeia por ela ser muito pequena e escondida. Após a queda da aldeia do povo prateado, as excursões do povo Blasfêmico
pararam, não se sabe por quê. Eu e o Mago sabíamos, e já começávamos a confabular
secretamente como iríamos lidar com esse povo.
O duende Quiri nos disse que haviam sobrado várias barcaças do povo Blasfêmico, pois parecia que muitos não conseguiram retornar, talvez por terem sido mortos na batalha. E que nós poderíamos utilizar estas barcaças para atravessar o oceano.
O Mago me passou secretamente a informação de que nenhum dos Blasfêmicos foi ferido na aldeia prateada, e concluiu que os que ficaram cegos possivelmente
foram executados pelos outros, pois eles deveriam achar que os cegos carregavam
uma magia má. Este era outro ponto que deveria ser estudado.
Após várias horas de tagarelices desse povo que se mostrou muito simpático
e hospitaleiro, fomos dormir, pois no dia seguinte deveríamos preparar a travessia do
oceano.
Eu e o Mago tivemos que dormir em uma cabana de tecido, pois as casas eram
muito pequenas para nós. Estávamos muito cansados e dormimos profundamente.
Acordei sobressaltado. Olhei para o lado e o Mago não estava. Havia várias
marcas de pegadas de botas esquisitas mas nenhuma do Mago. Ele fora levado, raptado. Soltei um berro tão forte que acordou a aldeia inteira. Saí correndo, acordando
todo mundo. Em um segundo a aldeia inteira estava em pé, já procurando pistas do
paradeiro do Mago. Logo percebemos que realmente foi uma emboscada, pois os
guardas que faziam a ronda noturna foram encontrados mortos! Pelos deuses, agora o
povo estava desesperado, chorando, enquanto eu estava paralisado, estava realmente
em pânico. O Mago de Prata tinha sumido! Não podia acreditar naquilo. Havia uma
gritaria enorme ao meu redor, mas minha mente não estava mais ali. Eu caí de joelhos
e se não fossem os duendes jogarem um balde de água em mim, acho que teria tido
um colapso nervoso.
Tentei manter a calma na forma de controle corporal. Procurei fazer contato
telepático com o Mago, mas não consegui. Ou ele estava em transe, sob o efeito de
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
alguma droga ou estava... morto. Não, eles não o matariam, afinal eles precisam do
Mago vivo, para poder roubar os seus poderes e tentar dominar o mundo. “Malditos!
Nunca conseguirão!”, pensei.
– Quiri e Piri, reúnam a aldeia aqui imediatamente – falei, em desespero.
Toda a aldeia reuniu-se à minha volta.
– Amigos duendes, estamos a enfrentar uma fase difícil para nossas vidas. Se
este povo maldito se apoderar dos poderes do Mago, estaremos condenados. Não há
tempo a perder. Uma parte da aldeia deverá me ajudar na travessia, a outra deverá
encontrar o quanto antes a minha tribo. Ela fica no meio das Florestas Azuis. Devereis levar um memo-cristal com informações confidenciais para o Lorde Pompe
Carmalhoc. De maneira nenhuma podeis vos utilizar desse cristal, apenas se o Lorde
autorizar.
“Muito bem, os que vão preparar a travessia que comecem já; os outros me
esperem no centro da aldeia, pois deverei ficar a sós para preparar o memo-cristal.”
Então todo o povo, num grande alvoroço, começou a se mexer. Eu afastei-me
sozinho, para os arredores da aldeia. Com muita dor no espírito me sentei e retirei um
memo-cristal virgem da minha algibeira. Comecei a contar rapidamente o que havia
ocorrido até então. Depois transmiti alguns poderes mágicos e como eles funcionavam, e depois, com todo o cuidado, deixei claro que a próxima informação deveria
ser passada apenas para as pessoas mais confiáveis possíveis. Era a informação do
sentimento do poder do ódio, e que os Cristais ajudassem a não precisar usá-lo, pois
da forma como eu passei, foi algo de estarrecedor. Afinal, a palavra ódio estava muito
longe de descrever o estado em que eu me encontrava.
Após os preparativos, todo o povo se despediu de mim, lamentando-se do
ocorrido. Os outros que se encarregaram de achar minha aldeia já tinham saído há
algum tempo, trotando em pequenos pôneis.
Os duendes me falaram que existia um enorme labirinto por entre as cordilheiras de diamantes, que poderia haver milhares de passagens para chegar do outro lado,
mas que possuíam o segredo de uma passagem que era indiscutivelmente a mais rápida de todas. Era só entrar no lugar certo e deixar a corrente levar o barco. Conforme
a corrente, se poderia atravessar a cordilheira em dois dias e logo avistar a outra margem do oceano. Porém, se tomasse a entrada errada poderia me perder para sempre!
Eles me deram as exatas coordenadas por onde entrar. Tomei um dos barcos
médios do povo maldito e zarpei para o alto mar, com a pior sensação que já tive em
toda minha vida. Eu chorava de raiva enquanto apunhalava a água com os enormes
remos da barcaça.
O vento ajudava muito a travessia. Eu ia de vento em popa, com o combustível
do meu ódio. Esse povo iria ver agora o que era maldade.
Passei o dia inteiro remando feito louco, cada vez tentando em vão fazer contato com o Mago. Porém, quase no final da tarde, percebi algo que os duendes haviam
descrito. Tratava-se de três pontas de diamante geminadas, todas tendendo para o
norte e exatamente do mesmo tamanho. Era o sinal! A partir dali, eu deveria ficar
atento para o quarto túnel e entrar pela via da esquerda, então poderia descansar, pois
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
a corrente se encarregaria de conduzir o barco.
Contei quatro túneis, e lá estava, pelos cristais! Exatamente como os duendes
falaram. Emboquei com muita dificuldade na entrada da esquerda e logo senti um
supetão para trás. A correnteza era realmente forte. Finalmente eu estava dentro da
Cordilheira de Diamantes! Infelizmente, toda aquela genialidade da natureza não foi
apreciada por mim, muito pelo contrário. À medida que eu entrava num emaranhado
de túneis, vielas e córregos cada vez mais fortes, com suas paredes refletindo a luz de
um recém-nascido luar, mais eu me deprimia, por não estar naquele que deveria ser
um maravilhoso lugar, com o Mago.
E assim vivi uma interminável noite, tentando fazer contato com o Mago, entrelaçando infinitos canais na interminável cadeia de montanhas feitas de diamantes,
atravessando o que, outrora, fora um enorme oceano.
Ao acordar, tentei comer algo que os duendes tinham colocado em minha
mala. O reflexo da luz do sol ali naquele lugar produzia infinitos arco-íris, mas eu já
não me importava com isso. Ao terminar o que foi o meu café da manhã, comecei a
divagar em milhares de pensamentos absurdos sobre o Mago. A sua despresença estava me deixando completamente louco. Já não conseguia mover um músculo, minha
depressão tinha chegado a um estado de paralisia extrema, nem mesmo o sentimento
de vingança me animava. De repente, caí para trás, no chão do barco.
Foi um chamado distante, a princípio, mas logo depois eu já conseguia ver o
Mago ali bem na minha frente! Ao seu redor não existiam diamantes, nem córregos,
nem águas, mas sim um fundo preto, apenas isso. Seu corpo se destacava em toda
aquela penumbra, sua pele branca parecia ter luz própria dentro daquele lugar escuro.
Podia-se vê-lo como numa aparição hiper-real. Seus cabelos, sobrancelhas, olhos, lábios e cílios verdes eram um choque em contraste com a cor de sua pele. Foi aí que eu
reparei uma coisa. Eu estava sonhando! Sonhando conscientemente.
“Ortal, por favor pára de divagar!”, falou o Mago. “Eu sei que o sonho é teu
mas eu devo tomá-lo emprestado para transmitir-te uma mensagem. Eu estou bem.
Fui atingido por uma cerda sonífera de alguns mercenários que trabalham para o povo
Blasfêmico. Eles acham que estou desacordado ainda, pois coloquei meu corpo em
hipo-funcionamento. Na verdade eles até estão preocupados comigo, pois eu já deveria estar acordado. Mas ficarei desta maneira até descobrir para onde estou sendo
levado. Afinal, assim consigo sair do meu corpo para observá-los sem que eles notem
a minha não-presença espiritual, se é que eles conseguem saber o que isto significa.
Pelo que vejo eles são um povo muito estúpido. Provavelmente não farão mal algum
a mim, pois se fizerem, não receberão o dinheiro do resgate. Foi isto que eu ouvi.”
“Agora por favor, acorda, e logo faze contato comigo, pois assim saberemos
nossa localização exata. Não podemos deixar que eu caia nas mãos do povo Blasfêmico sozinho. Lembra-te de que meu pai falou para não subestimá-los.”
Dei um pulo no barco. Suas últimas palavras ainda soavam em minha cabeça.
Logo sentei de novo e imergi num procedimento de concentração absoluta. Finalmente localizei a mente do Mago.
“Pelos cristais, tu estás vivo!”
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
“Sim, Ortal, e pelo que vejo estamos muito próximos!”
“Sim, acho que apenas algumas enormes paredes de centenas de metros de
diamantes nos separam! Com certeza estamos em canais paralelos e próximos. Mas,
como posso sentir, meu barco navega mais depressa do que o teu, então chegarei ao
outro lado mais rapidamente.”
“Ótimo, Ortal! Dessa forma poderás oferecer uma emboscada a esses idiotas.”
“Creio que estarei chegando ao outro lado da cordilheira antes do anoitecer de
hoje, pois foi assim que os duendes falaram.”
“Muito bem, assim estarei chegando logo em seguida. Tenta parar o barco atrás
de uma das pequenas montanhas de diamantes do outro lado, escondendo-te desta
forma do meu barco. Ao avistar-nos, investe contra nós, que eu já estarei tomando
conta das mentes destes palermas.”
“Tem cuidado.”
“Até mais, Ortal.”
O mundo voltou ao normal! Ou quase. Consegui comer alguma coisa e fiquei a
esperar as correntes me levarem para o outro lado das cordilheiras. Foi uma tarde que
levou um ano para passar!
No final da tarde eu estava do outro lado. Como previsto, podia avistar a outra
parte do oceano, que em nada se diferenciava da nossa. Existiam muitas pontas de
diamantes saindo da água. Escolhi uma que escondia o barco por inteiro. Joguei a
âncora e subi no diamante, para ter uma melhor visão da chegada do barco do Mago.
Tentei fazer contato com ele.
“Sim, Ortal. Estamos quase chegando, ainda permaneço desacordado. A surpresa que iremos fazer para eles será realmente muito grande.”
Consegui ver a ponta de um grande barco, em meio à penumbra noturna, saindo do emaranhado de montanha a uns trezentos metros ao sul de onde eu estava. Corri
para o meu barco. Icei a âncora e logo estava em movimento. Mas, ao olhar para trás,
senti um arrepio. Três barcaças vinham em minha direção. Estavam longe, rezei para
que não me tivessem avistado. Comecei a remar feito louco. O Mago me informou
que já podia me ver e que já estava entrando em ação. Ouvi um tremendo barulho
vindo da direção do barco do Mago. Logo depois reparei que seu barco estava parado.
Cheguei o mais rápido que pude aonde estava o Mago. Senti que ele pulava
para o meu.
– E os teus raptores?
– Se não estiverem mortos, vão demorar para se recuperarem do susto que dei
neles – respondeu o Mago.
– Como fizeste isso? – perguntei, e imediatamente comecei a remar.
– Primeiro fingi estar morto, o que já os deixou atônitos. Depois fiz uma ilusão
que meu espírito saía como um anjo, com asas e tudo, tocando uma harpa e olhando
para o céu. Eles ficaram abismados. Mas logo o anjo olhou para eles. Jogou a harpa
no chão do barco, transformando-se em centenas de cobras e fazendo um barulhão
enorme. Tão logo a harpa se quebrou, o anjo começou a se transformar num terrível e
vermelho demônio, voando para cima deles. Eles estavam ou correndo ou desmaiando
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
ou tendo um ataque cardíaco!
– Aposto que tiraste essas imagens de anjos e demônios das crendices dos nossos amigos antepassados, não foi?
– E de quem mais poderia ter tirado? – respondeu o Mago, sorrindo.
– Não temos tempo para nada, Mago. Vi três barcaças vindo em minha direção
antes de te pegar no barco.
– Então rememos, Ortal. Ao chegarmos em terra, teremos tempo suficiente
para nos esconder, afinal, aqueles que me raptaram terão muito trabalho para explicar
o que houve. E lembra-te de que eles acham que eu estou morto, até eles não acharem
o meu corpo.
– Foi uma ótima ideia, Mago.
Ao chegarmos à praia vimos que ninguém nos perseguia, ficamos abraçados
por muito tempo no clarão da lua cheia. E prometemos ter mais cuidado de agora em
diante.
Capítulo 6
A origem de Orh
– Estás com fome? – perguntei ao Mago, enquanto caminhávamos pela areia.
– Não, o estado de hipo-funcionamento de meu corpo quase não gastou energia
durante a viagem. E tu?
– Também não. Estou preocupado.
– Por quê?
– Logo que sumiste, relatei o que ocorrera num memo-cristal para o Lorde
Carmalhoc. Acredito que em alguns dias estarão aqui com um enorme exército, feito
por todas as tribos conhecidas para nos livrar desta enrascada.
– Tanto melhor! Vamos liquidar com este povo maldito!
– Só há um problema, pequeno Mago.
– O quê? – O Mago parou atônito, já percebendo o que eu fizera. – Tu transmitiste o poder do ódio para um memo-cristal, Ortal? Estás louco?
– Calma Mago, eu fiz um código que só o Lorde Pompe Carmalhoc saberá
decifrar. É um código dos cavaleiros e cada um tem um, portanto não te preocupes
em demasia. Acredito plenamente que o Lorde jamais trairia o seu povo e sua casa.
– Assim é melhor! Conseguiste me assustar, Ortal.
E entramos numa mata fechada, sem percebermos para onde estávamos indo.
– E quanto aos cavalos? – perguntou-me o Mago.
– Estão sendo cuidados pelos duendes.
– Tens ideia de para onde devemos ir?
– Não, mas creio que deveremos penetrar o máximo que pudermos nesta mata
fechada, assim será mais difícil sermos encontrados. Lembra-te de que agora estamos
sendo caçados.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Sim – respondeu o Mago, com um tom de voz meio assustado.
Prosseguimos penetrando cada vez mais a obscura mata, sob um belo luar. Estávamos eufóricos e só então começamos a nos comunicar em sentimentos. Havíamos
obtido uma grande facilidade para isso, principalmente depois de nossa separação.
Acredito que nossos poderes estavam fluindo cada vez mais, depois de nossa passagem pelo oceano, ou que talvez nosso susto com a separação tenha atiçado uma certa
reação em nosso sistema de defesa, tornando-nos mais sóbrios sobre os poderes que
tínhamos.
Estávamos discutindo isso mentalmente quando uma interrogação nos invadiu.
Como iríamos achar o povo Blasfêmico e qual seria nosso procedimento para com
eles? Que tipo de povo deveria ser? Será que seus armamentos eram tão poderosos
quanto o Mago Maior tinha dito? E qual seria nossa posição em combate? Teríamos
que realmente lutar contra eles?
Então eu e o Mago decidimos tentar nos infiltrar disfarçadamente e espionar
o que esse povo poderia ter de poder. Poderíamos com esta informação voltar para a
aldeia dos anões em uns três dias e nos encontrarmos com o exército de Carmalhoc,
que estaria chegando por lá, se nossos cálculos estivessem corretos.
Foi com estes pensamentos que logo subimos como dois pássaros para uns dez
metros de altura, dentro de uma imensa rede. Estávamos capturados!
Abaixo de nós podíamos ouvir umas risadinhas muito finas de alguém que não
conseguíamos visualizar da altura onde estávamos.
“Que faremos?” – interroguei ao Mago, telepaticamente.
“Espera um pouco. Essas pessoas, se é que são pessoas, não me parecem ser
o povo Blasfêmico, mas pelas risadas parecem estar pensando que conseguiram uma
bela caça para o jantar. Poderemos nos aproveitar desta situação e fazer amizade com
eles. Porém, esteja preparado para usar teus poderes.”
E assim ficamos em silêncio, enquanto nos desciam da enorme árvore. Ficamos extremamente quietos quando algumas delicadas senhoritas vieram nos sondar. Pareciam ser um povo guerreiro, extremamente primitivo, pois usavam grandes
lanças de madeira, as quais estavam apontadas para nós naquele momento. Usavam
farrapos para esconder pequenas partes de seus corpos e eram adornadas com colares,
anéis, e todos os tipos de ornamentos de povos místicos.
Imediatamente eu e o Mago pudermos crer que este povo possivelmente não
tinha tido contato com qualquer tipo de desenvolvimento pós-Eco Justiça, mas deveriam viver em um estado paralelo de cultura. Talvez alguma tribo desgarrada que perdeu o contato com as leis da Eco Justiça, pois não usavam cristais nem possuíam tipo
algum de linguagem telepática superior. Na verdade, seu linguajar era muito difícil
de ser decifrado.
Mas nós conseguimos entender parcialmente o que elas estavam sentindo. Estavam confusas, não sabiam se nos fritavam em óleo ou nos amavam como filhos.
Eu e o Mago continuávamos em estado de letargia apenas prontos para alguma
mágica extrema, caso aquele povo resolvesse nos atacar. Por fim elas decidiram nos
levar para sua aldeia. Amarraram nossas mãos e nos puseram a andar sob a mira de
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Marcelo Paciornik
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suas primitivas armas. Fomos andando agora em meio a ferozes porém delicados empurrões de nossas lindas anfitriãs. Eu e o Mago queríamos rir, poderíamos sair voando
a qualquer momento, deixando aquelas mulheres atônitas, mas resolvemos ver aonde
iria tudo aquilo.
Andamos durante longo tempo por entre árvores, mata densa. Atravessamos
pequenos riachos. Subimos e descemos pequenas montanhas, tudo isso acompanhado
por um forte calor noturno.
De repente, senti que aquilo começava não só a me irritar como também ao
Mago. Então ele disse para me preparar, pois iria tentar deixar tudo aquilo com um
toque menos tenso.
Transmitiu-me para parar de andar e levitar da maneira mais normal possível.
Em segundos nossos pés não tocavam o chão, nem mesmo faziam sequer um movimento, apenas acompanhávamos as donzelas guerreiras sem que elas se dessem conta
de como. Foi quando começamos a rir de tal situação que elas notaram, com muito
alarde, o que estávamos fazendo. Imediatamente eu e o Mago subimos bem alto para
não sermos atingidos pelas lanças, mas realmente não era este o intuito das donzelas.
Olhamos lá de cima por entre as árvores, em meio à luz do luar, e constatamos que
havia seis donzelas ajoelhadas para nós! Provavelmente teríamos um bom jantar!
Ao voltarmos para o solo, as donzelas continuavam ajoelhadas. O Mago deu
um pequeno grito.
– Ei! Vocês não precisam ficar assim a noite inteira! Foi só uma brincadeira.
Elas nem piscaram. Desamarramos mentalmente os nós de nossas mãos e o
Mago foi delicadamente tocar no cabelo de uma delas. Ela começou a tremer! Realmente a brincadeira tinha ido longe demais. Com uma enorme concentração conseguimos transmitir a elas uma espécie de calma. Tentamos dizer o propósito de nossa
vinda e da onde éramos. A telepatia causou um certo efeito. Elas muito delicadamente
começaram a falar em sua língua absurda.
Olharam para nós e uma das nativas começou a falar que queriam levar-nos à
sua aldeia, pois eram um povo amável, mas estavam com medo. Um povo mau tinha
raptado todos os homens da aldeia delas, inclusive os meninos. Não havia sobrado
nenhum!
Eu e o Mago nos olhamos atônitos. Elas poderiam não apenas saber onde encontraríamos o povo Blasfêmico, como também poderiam ajudar-nos a entender este
povo.
Seguimos, agora como respeitosos, semideuses mata adentro. Foram mais algumas horas de caminhada até chegarmos a uma aldeia pouco iluminada, a tochas.
Assim que chegamos; houve um imenso escarcéu. As donzelas que nos haviam caçado corriam para todos os cantos acordando em meio à penumbra do luar o restante
da aldeia. Eu e o Mago ficamos parados bem no meio da aldeia. Era realmente algo
primitivo. Muitas das casas foram construídas em cima das árvores. Meninas desciam
para o solo em cordas amarradas nos galhos, mulheres corriam em nossa direção,
formando um círculo em nossa volta.
O Mago não perdeu tempo. Ergueu os dois braços e lançou uma forte magia
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que fez com que todas as tochas da aldeia se iluminassem com um fogo esverdeado.
E tão logo isso ocorreu e todas as mulheres já estavam no chão, transmitiu as sensações do que havia ocorrido com sua aldeia e descrevia o povo que fez aquilo com os
prateados. Perguntou se havia alguma semelhança com o povo que raptara os homens
da aldeia delas.
Uma mulher muito bonita e forte, com os cabelos negros pela cintura, levantou-se e olhou para o Mago. Ele batia em seu peito e a mulher olhou com estranheza
para mim depois de ter visto o real tamanho do Mago. Mas falou, e nós sentimos que
ela sabia que teria que falar com os sentimentos, pois de outra forma a comunicação
seria parcial.
“O povo que procuram é o mesmo que está escravizando toda a nossa gente.
Eles se utilizam de armas que cospem fogo. São mágicos, não como vocês, mas diferentes. Eles são maus e cortam as árvores, e matam por prazer. Eles têm um enorme
exército. Neste momento nossos filhos estão sendo criados para fazer parte deste exército.”
“E o que eles querem?” perguntei. “Para que serve um exército desse tamanho?”
“Eles querem conquistar o povo do outro lado do grande lago.”
Era óbvio que ela se referia ao oceano, comentou o Mago comigo.
“Eles querem saber que tipo de força liquidou a visão de seus homens. Eles vão
atacar as nossas terras de novo e agora vai ser de uma maneira devastadora. Vamos
nos infiltrar o quanto antes neste povo e verificar qual o seu ponto fraco.” Assim eu e
o Mago confabulávamos secretamente. Nossas mentes estavam unidas a tal ponto que
nossos pensamentos eram quase um só.
As mulheres fizeram com que nós fôssemos para uma tenda e nos serviram
um ótimo jantar. Algumas continuaram na tenda trocando pensamentos sobre o Povo
Blasfêmico. Porém já era tarde e todos nós estávamos cansados. Fomos dormir.
Acordamos tarde, fizemos o desjejum. A mulher com quem havíamos falado
na noite anterior, disse que colocaria à disposição duas ótimas guerreiras para nos
mostrar o caminho da cidade dos Blasfêmicos. Disse-nos também, que teríamos o que
quiséssemos da aldeia delas se trouxéssemos seus homens. Eu e o Mago agradecemos
e dissemos que faríamos o possível não só para trazer seus homens, como também
para massacrar aquele povo maldito.
Elas não entenderam direito esta última parte. Provavelmente não tinham conhecido o valor do ódio. Tanto eu como o Mago ficamos preocupados. Será que seria certo este caminho que estávamos seguindo? Nosso sentimento de ódio estava
começando a tomar conta de nossas mentes de uma maneira quase que questionável.
A vingança imperava em nossas mentes.
Eu, o Mago e as duas jovens e belas guerreiras saímos da aldeia ainda ao sol da
manhã. Estava um dia maravilhoso e a companhia das duas donzelas se mostrou bastante divertida. Elas não sabiam que nós podíamos ler suas mentes e portanto falavam
sem parar entre si sobre os mais diversos assuntos femininos. Falavam, sobre a nossa
beleza e estavam fazendo apostas com quem iriam ficar! Eu e o Mago riamos o tempo
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inteiro. Caminhamos durante várias horas sem contar às donzelas que podíamos saber
do que elas estavam falando. Paramos para o almoço numa bela colina, num descampado de onde se podia ver muitos quilômetros de distância.
Na sombra de uma solitária e enorme árvore fizemos uma revigorante refeição.
Então, eu e o Mago resolvemos entrar em contato com as duas. Dissemos a elas, telepaticamente, que podíamos conversar com elas. Elas enrubesceram imediatamente!
Finalmente puderam notar que nós havíamos espionado suas conversas o tempo inteiro. Elas não paravam de rir. Começamos a conversar sobre quem eram elas e o que
faziam. Eram duas jovens guerreiras que foram adotadas de uma outra tribo há algum
tempo, pois seus pais haviam sido mortos em combate com o Povo Blasfêmico. Na
verdade elas mal conheceram seus pais. Foram achadas ainda bebês pela tribo que nos
acolhera. Seus nomes eram Bartrê e Faloma. Tinham idades de mais ou menos dezoito
anos e eram, agora que não existiam homens na aldeia, responsáveis por parte da
segurança e da caça da tribo. Eram muito belas, com a pele bem morena e os cabelos
negros até o quadril. Tinham corpos tão moldados de músculos quanto o meu, além
de serem mais ou menos da altura do Mago.
Ficamos muito amigos depois de algumas horas de conversa, embora elas tivessem demorado a se acostumar com o tipo de linguagem que estávamos empregando.
Ao cair da noite, continuamos a caminhar sob a luz de um imenso luar. Estávamos em uma espécie de transe com estas garotas. Eu me preocupava com o Mago,
pois agora nós estávamos com nossas mentes completamente conjugadas. Podíamos
sentir tudo em conjunto como se fôssemos parte de um só corpo. E o que sentíamos
agora era a mais pura luxúria por aquelas donzelas, que faziam o possível para transmitir o mesmo em relação à nós.
Ouvimos o ressoar de uma pequena cachoeira e fomos para lá. Tratava-se de
um córrego que desabava num imenso lago que refletia entusiasticamente uma lua
prateada. Pensei imediatamente que aquilo seria demais para nossos corpos aguentarem. Tanto eu como o Mago nos desfizemos de nossas mochilas e roupas. Mergulhamos no lago refrescando nossos corpos nus com pulos e brincadeiras. As duas
meninas não perderam tempo, logo estavam participando da brincadeira. Foi quando,
sem pensar, estávamos entrelaçando nossos corpos à beira do lago. Então nos secamos, comemos alguns peixes que pescamos ali mesmo, e fomos nos deitar. Agora o
prazer carnal era compartilhado entre eu e o Mago da maneira mais abrangente possível. Eu sentia ao mesmo tempo o que o Mago estava sentindo. Da mesma forma ele
podia sentir o que eu estava sentindo. Em uma maré de prazer com as duas donzelas
descobrimos que poderíamos ser duas pessoas completamente interligadas!
Um barulho irritante me tirou de todo esse devaneio. Era uma espécie de tilintar de metais batendo rapidamente. Em meio ao prazer daquela cena de sexo, fui
tirado da minha mais caprichosa evolução sexual. Um abrir de porta interrompeu
completamente tudo o que estava ocorrendo.
Ouvi a voz de uma mulher me chamando carinhosamente, dizendo algo como
se eu estivesse atrasado para não sei o quê. Realmente notei que eu não estava em
nenhuma floresta, estava em uma cama! Embaixo de vários acolchoados. E o Mago
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não estava ao meu lado nem mesmo as belas donzelas! Que lugar era aquele? Então,
a voz entrou no quarto com uma forte luz artificial:
– Vamos, Macoi, este é seu primeiro dia nesta nova escola. Você não vai querer
chegar atrasado, vai? Levante-se e vista-se, sua roupa está em cima da cadeira e seu
café já está na mesa. O ônibus da escola estará aqui daqui a meia hora. Eu e seu pai
estaremos no escritório, o número do telefone está na primeira página da sua agenda.
Vê se não cria problema hein? Até a tarde. Se precisar de qualquer coisa, a Clotilde
está na lavanderia.
E saiu, batendo a porta. Que absurdo é esse? Levantei-me e senti algo dentro
de mim que me fez ter alguma esperança! O Mago estava comigo! Em minha mente.
Ou eu estaria em seu corpo? Olhei para o meu corpo e levei um susto! Eu estava no
corpo do Mago! Mas havia algo de estranho. Diferente. Abri uma porta do que parecia
ser um armário. Quase caí para trás! Eu e o Mago estávamos no mesmo corpo. Só que
o corpo era meu e dele, uma mescla! O tamanho era o mesmo do Mago, um metro e
setenta de altura. Estava mais forte, com os músculos um pouco mais desenvolvidos
quase como o meu, a cara era do Mago mas os cabelos eram meus. Quase desmaiei.
Tentei entender o que a mulher havia dito. Que absurdo! Eu gritava comigo mesmo
e com o Mago, porque não deu sinal de vida dentro deste novo corpo. Então parei e
sentei.
Meu Deus! Eu e o Mago éramos agora a mesma pessoa! No mesmo corpo.
Tudo que eu estava sentindo ele também sentia.
Tentei me vestir. Pensei que isto poderia ser parte de alguma magia ou coisa
parecida. Ao cruzar a porta do “meu” quarto, notei que estava dentro de uma casa
muito diferente, com objetos estranhos. Fui para onde havia o som de alguém trabalhando. Entrei numa espécie de cozinha; tudo era muito branco e artificial. Meu sangue
parecia faltar em minha face.
– Viu um fantasma? – perguntou uma mulher muito gorda, com cara de anjo.
– Macoi, melhor comer alguma coisa senão não vai aguentar a escola. Vem cá, toma
este suco de laranja e coma estes ovos. Logo o ônibus vai chegar. Tua mochila está
aqui, não vai esquecer.
Sentei e tomei o café, tinha gosto de nada. Eu estava começando a ficar assustado. Lembrei então dos meus poderes. A primeira coisa a fazer é tentar entender
a mente das pessoas, tentando fazer o que elas esperassem que eu fizesse. Era uma
ótima tática.
Chamei então a senhora gorda:
– Clotilde! – gritei.
– Sim, Macoi – veio ela, toda afetuosa.
Então, em questão de segundos comecei a interrogar secretamente sua mente.
Tratava-se de uma senhora que trabalhava para a família que achava que eu era
filho deles. Diverti-me um pouco com isso. Ela estava com aquele ar de interrogação.
– O que houve com você, Macoi? Está tão quieto hoje!
Li sua mente e descobri o que eu deveria falar.
– Ah, não é nada, apenas estou nervoso em mudar de colégio. Você sabe onde
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está o mel geriátrico das abelhas douradas?
Ela me olhou com uma cara de espanto. Imaginei ter falado demais.
– O mel está na sua frente. Vê se para de balela e vai logo para o ônibus, que
acabou de chegar – falou carinhosamente.
Coloquei uma colher de mel na boca e engoli com um gole o suco. A mulher ficou me olhando pasma. Então gritou que eu estava esquecendo a mala. E logo gritava
que a porta de saída era pelo outro lado!
Saí daquela casa e quase desmaiei de novo! Que aldeia enorme! Parei e fiquei
olhando, tentando achar alguma mente para ler. O que me chamou a atenção era o tal
do ônibus. Um velho de chapéu me chamava com gestos bruscos na porta de entrada.
Corri para lá.
O velho estava pensando por que eu demorava tanto para ir até o ônibus, então
pensou que deveria ser o aluno novo, eu estava desculpado, segundo seus sentimentos.
Subi pela porta e encarei o velho. Ele disse que eu poderia sentar em qualquer
banco. Fui andando pelo corredor do ônibus. Várias crianças das mais variadas idades
me olhavam assustadíssimas! Comecei a ler seus pensamentos:
“Meu Deus, que gato!”, pensava uma menina. “Que cara estranho, para que
tanto cabelo?”, pensou um garoto. Então notei que meus cabelos estavam com as duas
enormes tranças até minha cintura! Ninguém daquele ônibus tinha um cabelo assim!
Um menininho de uns dez anos me olhava com ar de assustado. Sentei ao seu lado.
Ele continuava me olhando. Eu o encarei e ele desviou o olhar. Eu deveria ser o maior
de todos ali dentro, talvez por isso era motivo de tamanha inquietação.
– Como é seu nome? – perguntei ao garoto.
– Thomas – respondeu ele, timidamente.
Ele me sentia como uma grande montanha ao seu lado que estivesse prestes a
desabar. Pensei em confortá-lo, porém isso indicaria que eu saberia seus sentimentos
que agora eram de medo e fascínio por mim.
Logo comecei a sentir medo. O ônibus começou a se mover. Segurei-me avidamente numa barra à minha frente. O garoto me olhou espantado.
– Nunca andou de ônibus? – perguntou-me, com ar de divertimento.
Tentei ler em sua mente qual seria a melhor reposta.
– Como você descobriu? – respondi.
Ele soltou uma risada afetuosa e perguntou-me:
– Qual o seu nome?
– Ortal, ou melhor... é... Macoi!
– Você é novo neste colégio. De onde você vem?
– É... – de novo interroguei-o mentalmente. – Da minha casa.
Ele desabou de rir novamente.
Provavelmente tinha feito um amigo, pensei comigo mesmo. Nisso, senti um
leve toque em meu ombro. Era uma menina.
– Oi! Estou vendo que você já arranjou um amigo.
– Sim, possivelmente.
Ela me olhou estranhamente.
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– Eu sou Jessica, irmã deste demônio com quem você está conversando, nós
estamos na mesma sala. Eu ouvi falar que você iria chegar, mas não imaginei que você
seria... assim. – falou, olhando-me de cima abaixo, percorrendo os olhos por mim com
grande avidez.
“Que coisa!”, pensei, quantos anos esta menina deveria ter? Uns treze, talvez.
– Você ouviu falar que eu estava para chegar? Quem lhe disse isso?
– Ah, esse tipo de boato corre, você sabe...
Eu não estava entendendo.
– Olhe, Macoi. É melhor você ficar bem perto de mim. Assim você não se
perde, tá bom?
– Tá bom – respondi, como ela gostaria.
– Falando nisso, você tem namorada?
– Hã? Você quer dizer hoje?
– Estou vendo que você é rapidinho! – falou, me encarando.
Nisso, o menino me puxou bruscamente.
– Olha aqui, Macoi. Acho melhor você ficar longe de minha irmã. Ela tenta
namorar com todo o colégio, e além disso...
– Cala essa boca, seu demônio imbecil – falou a menina, interrompendo o
garoto com uma bofetada na cara. Imediatamente o garoto pulou por cima de mim,
agarrando a menina pelo pescoço com um berro. O ônibus inteiro começou a berrar
feito louco. Eu tentava separar a briga mas já era tarde. As duas crianças rolavam pelo
chão, com os aplausos dos companheiros.
O velho parou o ônibus e começou a gritar:
– Mas que porcaria é essa?
Eu me levantei e tirei o menino de cima da menina, que já começava a esmurrá-lo de novo. Coloquei-o pacientemente ao meu lado no banco e disse-lhe para ficar
quieto, usando o poder da magia na voz. O menino calou-se. Olhei para a menina, que
já se levantara e estava prestes a pular no pescoço do irmão. Interrompi seu movimento apenas me levantando e olhando para baixo. Ela batia no meu peito.
– Faça o favor de sentar-se, Jéssica – falei novamente, usando a magia na voz.
Ela sentou-se e todo o ônibus soltou um murmúrio indignado. O velho estava
abismado! Olhava-me como se eu fosse um deus.
Deu-me as costas, pensando: “Como esse garoto conseguiu controlar esses
dois diabos? Logo esta Jessica, ainda? Ela só pode estar apaixonada por ele! Hã,
crianças!”
O resto da viagem foi no mais puro silêncio. Apenas eu pensava, aterrorizado:
“Essas pessoas pensam que eu sou uma criança ainda! E eu estou indo conviver com
uma delas! Que espécie de prova é essa?”
O ônibus parou. A menina passou sem olhar para mim, já o menino era todo
amores.
– Vamos nos ver no recreio? – perguntou o garoto.
– Vamos – disse-lhe, usando o mesmo método de resposta.
Desci do ônibus e um homem gordo veio ao meu encontro. Tinha um olhar
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severo, pensei em puxar a espada, mas ela não estava ali.
– Você deve ser Macoi, o aluno novo – afirmou sorridente.
– Sim – respondi.
– Muito bem! Seja bem-vindo a nossa escola. Eu sou o diretor Mandel. Por
favor, siga-me, eu quero explicar algumas coisas. Afinal vocês chegaram de viagem
ontem e não tive tempo de passar para seus pais as regras de nossa escola. Venha até
minha sala.
Atravessamos um pátio enorme atulhado de alunos de todas as idades. Era
uma tremenda balbúrdia, gritos por todas as partes, uma música muito alta ressoava
nos ouvidos dos presentes. O diretor parecia estar em casa. Eu tentava me acostumar
com o lugar da melhor forma possível, isto é, tentando ler superficialmente as mentes
de todos que passavam por mim. Era uma avalanche de informações que eu estava
colhendo. Alunos tentando comprar a tarefa de casa de outros, meninas tentando saber
o que um tal colega tinha feito na noite anterior, outros querendo saber quem ganhou
tal jogo, uns sendo empurrados por seus colegas, xingamentos provinham de todos
os lados; mas uma coisa era certa, por onde eu passava, o efeito que causava era de
espanto. Minha aparência era no mínimo comovedora, tanto para as meninas como
para os meninos. Os menores olhavam assustadíssimos, já os maiores olhavam com
um certo desdém, preocupados. Eu estava começando a ficar nervoso. Cruzamos o
pátio inteiro. Deveria haver umas duas mil crianças agrupadas ali.
Entramos por um corredor muito bem iluminado com luzes artificiais. Seguimos pelo corredor passando por várias salas com muitas pessoas e equipamentos.
O lugar era muito limpo e organizado. Comecei a perceber o tipo de ensino que era
aplicado ali, todo ele feito com a palavra falada e escrita. Nada de cristais. Chegamos
a uma sala onde existiam várias telas interligadas, todo o pátio da escola aparecia
nessa tela, de repente mudava a imagem para dentro das outras salas. Fiquei olhando
impressionado.
– Este sistema custou muito caro para o nosso colégio, Macoi. Mas evitamos
vendas de drogas e abusos dos estudantes. Por favor, sente-se.
O diretor começou a mexer em alguns papéis. Tentei captar alguma informação na própria sala. Usando o método de assimilação, consegui ler na parede um
calendário. Estávamos no dia dez de abril de 1998. Pelo menos eu ou este corpo aparentemente não iríamos morrer na Eco-Revolta, ainda faltava muito tempo.
– Muito bem, senhor Macoi di Carmalho – disse o diretor. Eu me assustei com
a semelhança do nome da minha tribo, os Carmalhoc. – Aqui estão os documentos
que você deverá enviar a seus pais hoje mesmo. Saiba portanto que por hoje o senhor
estará livre das leis do nosso colégio, mas não abuse da minha boa vontade. Sabemos
pelo seu currículo que o senhor é um ótimo aluno e espero que saiba que nós só estamos o aceitando na metade do ano pelo fato de seu pai ser um dos maiores cientistas
da atualidade e virá trabalhar aqui na nossa cidade. Lembre-se de que estamos numa
pacata cidade, portanto não se espante se os outros alunos o incomodarem pelo seu visual. Como sabe, cabelos compridos estão fora de moda por aqui, mas acho que você
não terá muitos problemas devido ao seu tamanho. Muito bem. Leia com cuidado
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todas as regras de nossa escola. Agora venha que eu vou levá-lo para sua sala.
A coisa estava indo rápido demais. Eu não conseguia entender o que realmente
estava acontecendo. Enquanto caminhávamos pelo imenso pavilhão de ensino que era
aquela construção, ia tentando compreender o que estava ocorrendo. Supostamente,
eu e o Mago estávamos em um mesmo corpo, de um tal de Macoi di Carmalho. Este
corpo era de um adolescente e se assemelhava fantasticamente com o meu corpo e
com o corpo do Mago. A situação da mente desse garoto era naquele momento de
dormência, pois não conseguíamos absorver nenhuma informação de sua vida até
então. A própria situação de nossa consciência era complicada. Eu e o Mago estávamos no mesmo corpo, porém como uma mente só. Não discutíamos nem tínhamos
dualidades, apenas operávamos aquele cérebro como se fôssemos um só. Eu estava
apavorado, por que estávamos numa situação dessas, não conseguia pensar com tantas
informações daquele mundo passando por mim.
– Muito bem – disse o diretor, parando em frente a uma porta num corredor,
como tantas outras idênticas àquela. – Esta é sua sala, Macoi, oitava dez. Todas as
suas aulas serão aqui, apenas as aulas de condicionamento físico serão no pátio. Agora
entre comigo e vamos conhecer seus colegas.
Ele abriu a porta, pedindo licença ao professor. Quando me deparei com a sala,
fiquei mais nervoso ainda. Era um imenso anfiteatro com espaço para umas duzentas pessoas, com um tablado e um quadro onde o professor estava escrevendo algo
quando sua aula foi invadida.
– Bom dia, senhor diretor, a que devo esta visita? – perguntou o professor,
olhando-nos entusiasticamente.
– Bom dia, oitava dez. Bom dia, professor Gonçalves. Trata-se de um novo
aluno. Por favor, entre, Macoi – falou o diretor, apontando para mim e ao mesmo
tempo me chamando com um gesto.
Entrei na sala com uma expressão severa, de quem acaba de levar uma rasteira
do seu próprio destino. Todos os duzentos alunos que estavam naquele anfiteatro fizeram “hummm “ quando entrei. Na verdade não consegui avaliar o que poderia ser
aquela expressão e nem tive tempo de ler as mentes dos que estavam mais próximos. A
bem da verdade, era eu que me realmente diferenciava fisicamente daquele grupo. Era
muito mais alto e aparentemente mais forte do que todos ali. Além disso, como dizia
o próprio diretor, “cabelos compridos não estavam mais na moda”. Notei que isso
poderia ser uma das razões de tantas caras de espanto. Afinal, meus cabelos estavam
com duas enormes tranças e pela cintura! Além disso me lembrei de que o rosto desse
Macoi era extremamente semelhante ao do Mago, graças aos céus, sem os adornos de
sobrancelha, cílios, etc., verdes, como era o Mago na realidade! O que tornaria aquela
figura que estávamos habitando verdadeiramente extraordinária. Acredito ainda que,
para piorar a situação, nossas mentes compostas estavam começando a emitir uma
certa energia, típica dos magos. Era o caos!
– Muito bem, turma – falou o diretor. – Este é Macoi di Carmalho, seu novo
colega. Espero que vocês se deem bem. Sr. Carmalho. Pode se sentar naquela carteira
vazia, seu número será 68, como diz a carteira, guarde-o bem. Boa aula para todos.
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E saiu da sala. Dei uma olhada para a turma e depois para o professor, que estava esperando que eu fosse sentar para continuar a aula. Com muito cuidado desci do
tablado e fui para a minha carteira. Ela ficava muito apertada com as outras dos outros
alunos. Consegui ajeitar-me como pude e dei uma olhada para o meu colega logo ao
lado. Ele me olhava com cara de louco.
– E aí? – perguntou.
Fiz uma varredura rápida em sua mente. Esta expressão poderia ter infinitos
significados, mas o mais próximo que eu pude entender era que tinha uma entonação
de cumprimento e conspiração ao mesmo tempo, como se e ele e eu tivéssemos uma
mesma atitude perante o social.
– Beleza? – respondi, como ele estava esperando que eu respondesse.
– Legal – disse-me ele.
Tratava-se de um minúsculo componente daquele bando, com pele morena e
olhos negros, muito espertos por sinal. Ele estava em fantásticos delírios mentais, possivelmente fruto de alguma alteração produzida por ervas ou, quem sabe, algum cristal. Porém, logo vi que cristal era impossível, pois não existia naquela época. Então
notei que era uma erva que deixaram de usar há milênios, pois seus efeitos eram
completamente sem valor positivo para o corpo e mente. Ele continuou com seus
mirabolantes malabarismos mentais, enquanto eu varria as mentes dos que estavam
perto. Praticamente todos aqueles que estavam à minha volta estavam sob o efeito da
mesma droga. Eles compartilhavam, provavelmente, uma mesma situação de entretenimento escolar.
Logo adiante vi uma mãozinha acenando para mim, era a menina do ônibus.
Sorria e parecia que ia me escrever alguma coisa. Dei de ombros e tentei investigar o
que o professor estava querendo ensinar.
Era uma série de anotações que eu jamais iria entender: matemática! Logo
imaginei, completamente superada após o surgimento dos memo-cristais. E além
disso sem valor nenhum em um mundo como o nosso, onde a tecnologia artificial, o
consumismo e tantas outras coisas foram modificadas pela natureza. Graças aos céus
não precisaria me concentrar naquilo.
Logo chegou o bilhete:
“Macoi, desculpe-me se fui mal-educada no ônibus. Se você quiser pode pedir
ao diretor para mudar de lugar para sentar ao meu lado, afinal você não vai aguentar
ficar ao lado desse bando de maconheiros o ano inteiro, não é? Ass. Jessica.”
Não notei que o garoto do meu lado lera o bilhete. Ele rapidamente o arrancou
da minha mão, passando-o para um colega a duas carteiras a seu lado, e logo gritando
a plenos pulmões para toda a sala ouvir:
– Cara, olha o que essa vaca dessa Jéssica perua escreveu pro novo brother
que entrô!
O outro colega leu, compartilhando o bilhete com mais duas amigas que aparentemente eram do mesmo bando, devido às roupas diferenciadas do resto da turma.
Uma delas logo se ergueu da carteira. O professor já começara a gritar para que parassem, mas nem deu tempo. A menina enterrou uma bela bofetada na cara da Jéssica,
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que se agarrou fortemente aos cabelos da primeira! Logo, a outra menina que também
lera o bilhete e que também era da turma desses “maconheiros”, juntou-se à primeira
com tabefes para todos os lados. Todo o resto da turma se ergueu num “hurra” de
satisfação que me deixou chocado.
Mas assim que a coisa ia realmente esquentar, surgiu o diretor do colégio aos
berros pela porta, com dois ajudantes vestidos de azul.
– Muito bem, eu vi tudo! As três fileiras a partir do senhor Macoi para a sala
de inspeção. Aliás, senhor Macoi, parabéns, cinco minutos de colégio e já está em
encrenca!
Toda a turma começou a gritar “fora, fora, fora!”. Logo as outras salas ouviram
e começou a ecoar por todo o colégio “fora, fora, fora!” e gritos de saudação aos que
haviam conseguido importunar as entediantes aulas. Seja como for, consegui fazer de
minha entrada numa escola uma pequena revolução.
Logo estávamos em umas trinta pessoas andando em conjunto pelos corredores do colégio. O garoto que estava ao meu lado na sala veio falar comigo.
– Ô, brother, foi mal aí. Mas não vai dá nada. Os cara tão com tudo filmado,
quem vai se fodê são as mina, tá limpo?
– Tá limpo – respondi, na melhor forma que achei.
Então ouvi o garoto dizendo para seu colega:
– Pô, o cara aí é manêro, pensei que eu ia tomá o maior sopapo.
Olhei para ele de novo, mas ele já estava rindo com o resto das meninas que
arrebentaram a tal da Jéssica.
Fui andando sozinho para a sala de inspeção, pensando na loucura que era tudo
aquilo. Porém aconteceu algo que me deixou atônito. Um dos meninos que estavam
caminhando no corredor com a gente notou que os ajudantes do diretor não estavam
olhando e imediatamente deu um pontapé numa pequena caixa de vidro que estava na
parede. Uma sirene começou a tocar! Todas as portas de todas as salas do colégio se
abriram. Uma voz anunciou que havia sido detectado incêndio nas dependências do
colégio. Uma chuva artificial emanou do forro molhando tudo e todos. Logo estávamos em bando correndo em direção ao pátio externo. Essas crianças eram loucas! O
menino que sentava ao meu lado na sala me disse para segui-lo. Fiz o que ele disse, todos eles não paravam de rir. Só paramos de correr quando estavam todos num enorme
gramado externo. O colégio inteiro estava lá. Uma voz nos alto-falantes pedia calma
e silêncio até que os bombeiros verificassem a ocorrência. Então, toda essa turma que
acompanhava o menino sentou-se e eu logo fui puxado para sentar-me com eles por
uma bela menina.
– Daí, gato – falou ela. – Tá curtindo seu primeiro dia?
Não respondi nada, eu estava muito apavorado com tudo aquilo.
– Daí. Meu nome é Malu, essa é a Lô, o garotinho que senta do seu lado é o
Tom, esse aqui é o Mau; e o resto cê conhece depois, que eu esqueci o nome da galera
– e todos riram.
Eu parecia estar em outro mundo, tamanho era meu raciocínio sobre tudo aquilo. Eles acharam ótimo, pois pensaram que eu também estava sob o efeito de drogas.
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A conversa entre eles continuava.
– Cara, se alguém descobrir que foi o Mau que chutou a parada do incêndio,
vai dá merda.
– Ninguém descobre picas – falou o Mau. – E eu tô tão fodido nesse colégio
que mais uma, menos uma, não rola nada.
Como era difícil entender o que eles estavam falando, optei pela leitura de
cérebros, o que em alguns casos era pior ainda.
– Vamo convidá o cara novo pra uma volta hoje à tarde? – falou a menina,
como se eu não estivesse ouvindo.
– Tá a fim dele é, Malu? – perguntou o pequeno.
– Por que, tá com ciúmes? – respondeu a Malu.
Logo vi que iria dar confusão de novo. Então me interpus.
– Para ir aonde? – perguntei.
– Porra, vamo fumá um e depois a gente vê – respondeu um dos meninos.
– Pode ser – eu disse.
– A gente pode sair daqui e ir almoçar fora – um deles falou. – Afinal, hoje é
sexta!
– Só. Vamos com a gente, Macoi – falou a menina.
– Tá limpo.
Era uma ótima oportunidade de verificar a vida daquela sociedade primitiva,
e além disso, poderia ter tempo de localizar alguma fagulha de informação sobre o
corpo que eu e o Mago estávamos habitando.
Depois de alguns minutos de conversa e muita gozação para cima da Jéssica,
a voz nos alto-falantes disse que as aulas seriam interrompidas até depois do recreio.
Com um único uivo, todas as crianças vibraram! Parecia que eles realmente odiavam
as aulas. Comecei a andar por ali, sempre seguido de minha nova “turma” e principalmente de meu pequeno e fiel “escudeiro”, o Tom, que agora já se achava meu íntimo.
– De onde você vem, Macoi? – perguntou-me, enquanto éramos observados
por todos que nos cruzavam.
– Hã... de uma cidade... hã...
– Tá limpo, não precisa se lembrar. Cê deve tá ligadão!
– Na verdade estou com muita fome. Onde podemos arranjar algo para comer?
Tom virou para trás e perguntou para o Mau:
– Cê tem aquelas fichas roubadas da cantina aí com você? O Macoi tá com a
maior larica.
– Tá em cima.
E deu para o Tom algumas fichas em papel.
– Quê que tu qué, Macoi? Cachorro-quente, hamburguer ou pizza?
Mentalizei na mente dele o que ele pensava enquanto falava. Nada daquilo me
parecia comida.
– Hambúrguer – falei.
– Ótimo. Eu também vou querer.
Chegamos a um balcão onde dezenas de estudantes gritavam para duas mul81
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
heres, que faziam o possível para atendê-los. Ouviam todos os tipos de xingamento,
pois era óbvio que não conseguiam satisfazer a vontade de todos. Resolvi entrar no
clima da situação. Olhei para baixo. Tom estava tentando penetrar no mar de crianças
que berravam seus pedidos.
– Tom – perguntei -, como devo pedir?
– Pegue as fichas e diga que você quer dois hambúrgueres e duas cocas.
– Ótimo, agora olhe isso! – falei a ele.
Olhei para a mulher. Tom me acompanhava em tudo o que eu fazia. Mentalmente chamei-a e pedi secretamente com tamanha força hipnótica que ela cambaleou.
Largou tudo que estava carregando e foi pegar o meu pedido. A outra mulher gritou:
– Cê tá louca?
Ela nem deu bola, logo estava com o meu pedido nas mãos, sem ninguém
notar. Tom ficou abismado!
– Como você fez isso?
– Mágica! Mas não conte pra ninguém.
O resto da turma tinha sumido. Eu e o Tom estávamos sentados num canto do
pátio sorvendo nosso péssimo lanche. Após terminar, Tom recostou-se numa parede e
fechou os olhos, estava dormindo. Aproveitei para tentar me concentrar no que afinal
estava acontecendo. Eu e o Mago tínhamos sido deslocados no tempo de novo! Mas
por que razão? E sem aviso nenhum! E o pior, nós dois no mesmo corpo, só que como
se fôssemos uma pessoa só. É certo que estávamos muito ligados ultimamente, mas
isso era ridículo! E afinal, o que este lugar tinha a nos ensinar a não ser malandragens
de um bando de adolescentes malucos? Talvez fosse isso: aprender a enganar, roubar,
burlar as leis, poderia ser uma ótima ideia para nós, uma vez que o povo que iríamos
enfrentar fazia isso o tempo inteiro. Mas havia algo a mais, este corpo em que nós
estávamos alojados se parecia demais com a gente, e tinha o nome Macoi di Carmalho! Era um absurdo, mas podia-se pensar que foi algum antepassado de minha tribo.
Mas e a semelhança com o Mago? Era completamente ininteligível esta situação. O
pior era chegar em casa. Como os pais desse garoto iriam reagir quando percebessem
que seu filho virara de uma hora para outra um guerreiro real e um Mago de Prata?
Comecei a rir da situação.
– Então encontramos a mariquinha! – falou a voz de um rapaz acompanhado
de mais alguns ao nosso redor. Não tinham notado que eu estava com Tom – E então,
Thomas? Vai me pagar aquele beise que tu ficou me devendo ou vai ter de levar um
pau aqui mesmo? – perguntou, acordando o pobre Tom de sua sesta.
– Não tô te devendo nada, seu porco!
– Ah, seu porco, é? – pegou Tom pela gola da camisa quadriculada que o menino vestia e puxou-o para cima, num gesto brusco.
Imediatamente eu estava de pé, encarando o tal que atacara Tom. Ele viu meu
tamanho e minhas tranças mas não se assustou.
– Ora, vejam só. A bichinha arranjou uma bichona para se defender!
Todos os seus acompanhantes começaram a rir. Logo, já havia uma pequena
roda de alunos em volta de nós.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Largue-o! – falei, porém sem usar magia nenhuma.
– Com todo o prazer – ele disse, empurrando Tom de encontro à parede, mas
logo fechando a mão para me esmurrar.
Com toda sua força tentou meter um soco em meu rosto. Apenas levantei
minha mão segurando a dele “carinhosamente”. Todos em volta soltaram um murmúrio. Tom soltou uma gargalhada. O resto da turma que acompanhava meu agressor
deu um passo para trás. Eu ainda segurava a mão do rapaz. Ele tentou dar um outro
soco com a esquerda, mas antes que ele fechasse a mão, eu já apertara a primeira a
ponto de ele se ajoelhar em minha frente.
– Ótimo modo de nos conhecermos. Meu nome é Macoi, sou irmão mais velho
do Tom. Então é você que está vendendo maconha para meu irmão? – falei sentindo o
estremecimento de Tom logo atrás de mim.
– Pois muito bem, se você quiser continuar a viver, seu porco de merda, não
chegue nunca mais perto de meu irmão, tá limpo? – Eu estava me sentindo ótimo à
medida que conseguia me comunicar com aquela sociedade!
– Tá limpo – falou o rapaz com um gemido. – Agora dá pra me soltar?
Soltei-o, ele saiu num pulo para trás me xingando mentalmente, com sentimentos de vingança. Mas logo interferi: – procure me xingar na cara, e se quiser vingança,
faça ela agora mesmo. Depois pode ser tarde.
Ele virou-se, abismado. Transmiti a ele um sentimento de terror, uma indução
mental de algo terrível. Ele começou a tremer e logo desmaiou.
Olhei para Tom e disse:
– Acho que exagerei, melhor sairmos daqui. Você só me traz problemas! Mas
acho que é isso que eu preciso, para entender este inferno!
Tom não sabia o que dizer, sua cabecinha estava dando voltas. Eu apenas sorria. Até que isto começava a ficar divertido!
– Por que você disse aquilo? – ele me perguntou.
– Aquilo o quê?
– Que você era meu irmão?
– Por que me deu vontade de ter um irmão.
– Sério? Como assim?
– Não sei explicar. Apenas achei que seria uma boa forma de assustar aquele
rapaz.
– Ele nunca mais vai me vender uma porra de um baseado, será que você não
entende a cagada que fez?
– Olha aqui – falei, com voz muito severa, olhando para ele e parando de andar.
– Se você quiser ser meu amigo você vai parar de fumar essa merda.
Ele me olhou com ar furioso.
– Cê só pode tá louco, seu careta de merda. Quem precisa de um cara como
você? – ele me disse, virando-se e indo embora.
– Bem, eu já esperava por essa – falei para suas costas.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Menino estúpido, pensei. Continuei a andar com todos aqueles alunos me olhando cada vez mais assustados. Acho que a notícia de minha briga já havia se espalhado. Pois muito bem, vamos ver no que isso vai dar, pensei; afinal quem tinha o
poder ali éramos eu e o Mago, nada poderia dar errado! É uma pena que eu não tivesse
um memo-cristal virgem para relatar tudo isso para a tribo.
Soou um sinal que me pareceu ser para o retorno às salas, pelo menos era o
que todos os alunos vagarosamente faziam. Tive um pouco de dificuldade para achar
o caminho de volta à Oitava dez, mas logo descobri alguns alunos que eu tinha visto
na sala antes da quebra na aula de matemática. Segui esses alunos e logo estava sentado na minha carteira. Aquela que era para ser a minha nova turma de amigos entrou
logo depois de mim. Eles nem olharam na minha cara. Não liguei. Todos os alunos
entraram e sentaram. O professor estava se arrumando para começar a aula mas foi
bruscamente interrompido pelo diretor, que estava furioso!
– Muitíssimo bem! – gritou. – O senhor Thomas, o senhor Mau e as senhoritas
Malu, Lorena e, para variar, Jéssica. Para minha sala imediatamente!
Quase tive um ataque de riso. Provavelmente o diretor tinha repassado os
vídeos e notou o que ocorrera. Quando o Tom passou por mim, tive uma certa pena
dele.
– Desculpe, Macoi. Acho que fui um pouco grosso com você. Se você ainda
quiser poderemos ser irmãos, tá limpo?
– Tá limpo – falei baixinho.
Consegui determinar nessa atitude do garoto algo que poderia ser de muita
vantagem para mim. Acho que eu estava inspirando algum fascínio sobre ele. Pelo
menos existia algum sentimento a mais nele, que possivelmente seria de alguma
paixão ou algo parecido. O problema é que estava terrivelmente escondido dele
próprio. Comecei a acreditar que esta sociedade primitiva não tinha a capacidade de
encarar seus sentimentos e talvez sua mente estivesse incapacitada de mostrá-los, já
que eram teoricamente proibidos, pela própria sociedade. Era isso que estava ocorrendo agora com aquele garoto. Ele estava escondendo de si próprio algum tipo de
fascínio que sentia por mim.
Vi-o sair da sala acompanhado por sua turma e do diretor, ele estava com medo.
Comecei a trabalhar mentalmente. Lancei-lhe um sentimento de paz, mas relacionado
a mim, o que naturalmente iria alimentar o seu fascínio. Ele não iria saber que eu estava fazendo isso, mas de alguma maneira, o sentimento de paz que ele precisava seria
relacionado a mim. Eu precisaria daquele menino para investigar algo sobre o corpo
que eu estava usando e isto precisava ser feito o quanto antes. Nada como confiar em
uma pessoa que está com alguma relação sentimental por você. E principalmente se
esse sentimento for uma paixão enrustida.
A aula começou, era de história. O professor começara a falar.
– Caros alunos, muito bom dia. Como decorreu hoje um incidente um tanto
raro, vamos tomar esse incidente como fonte de inspiração para nossa aula. Como
estamos falando em Idade Média, vamos falar das fogueiras, das queimas de bruxas.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Como vocês sabem, na Idade Média existia algo chamado de tribunal da Inquisição.
Era um tribunal composto pelos membros do clero em que uma das atividades mais
comuns era julgar se alguma pessoa era particularmente perigosa para a instituição
eclesiástica ou não. A pena era irremediavelmente a fogueira. E quem era julgado? As
bruxas. Sim, todas as pessoas que tentavam estudar os fenômenos da natureza ou tinham algum comportamento estranho para a sociedade daquela época eram chamadas
de bruxas. Logo estavam ajudando a lenha a ser queimada.
Então um aluno levantou a mão e perguntou:
– Mas, professor, quer dizer que nunca houve bruxas, nem magia nem nada
disso?
A turma toda lançou-lhe uma vaia. E tão logo pôde, o professor respondeu.
– É claro que não. O que sempre houve e sempre haverá é algo chamado de
ciência, nada de ritos mágicos nem de bruxas nem de magos. Isso tudo é história para
crianças, como vocês, dormirem.
O professor levou uma vaia que o fez rir.
– Estão me vaiando, é? – perguntou. – Muito bem, vamos ver a coisa num
processo democrático. Quem acredita em mágicos, duendes, fadas e em todas essas
porcarias, levante a mão.
Meia dúzia de pessoas, inclusive eu, levantamos. Ele veio direto a mim.
– Muito bem, o aluno novo. Seu nome é...
– Ortal – respondi sem querer. A turma toda caiu na gargalhada.
– Sr. Ortal... – todos voltaram a rir. – Mas que é isso? Deixem eu fazer a pergunta! – Falou simpaticamente o professor. – O senhor acredita realmente em magia
ou está me gozando?
Não respondi, apenas encarei o professor e por indução nervosa fiz que ele
visse alguns milhares de borboletas de todas as cores saindo de minhas orelhas. Ele
parou de rir e deu um passo para trás, quase caindo de costas no tablado.
– Algum problema com borboletas, professor, ou quem sabe com magia? –
perguntei.
Ele estava pálido. Toda a turma estava quieta, pois não entendia nada, afinal
era só o professor que vira as borboletas. As borboletas sumiram. O professor continuava a me olhar.
– A magia existe sim, professor, é só usar a imaginação – falei.
Ele me olhou severamente.
Após a aula quero falar com o senhor, em particular.
Ninguém na turma entendeu nada. Apenas soltaram um “hummmmmmmm”
bem alto, a ponto de a turma ao lado ouvir e repetir, assim como todas as outras turmas
logo em seguida.
Fiquei num delicioso silêncio, mas o professor, por sua vez, continuou a aula
com um terrível mau humor. Cada vez mais meus colegas me olhavam de maneira
alarmada.
Comecei a pensar como eu iria fazer com que Tom me ajudasse a descobrir
sobre o Macoi di Carmalho. A resposta me veio na aula seguinte. Era aula de filosofia.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
A professora fez uma introdução sobre como as pessoas se conheciam mal e falavam
umas das outras sem ter a devida informação sobre o assunto, e estipulava uma tarefa
de casa que consistia numa entrevista com os pais de seu colega, para saber como
outras pessoas pensavam sobre uma pessoa com quem você convivia quase que diariamente. Era uma ótima oportunidade! Pediria a Tom que fizesse esta entrevista sobre
mim mesmo com os meus “pais”, e assim teria um ótimo meio de agir e descobrir
afinal alguma pista sobre este corpo que eu e o Mago estávamos utilizando.
Quando bateu o sinal para o término da aula, fiquei esperando Tom. Ele entrou
na sala com alguma dificuldade, pois a turma estava na porta esperando a enorme
população de alunos passar para poder ir embora. Tom veio com um enorme sorriso
no rosto, mostrando descaradamente enormes e perfeitos dentes brancos.
– Cara, cê não sabe o que o Mau está ferrado! Acho que o cara vai ser expulso
desta vez!
– Sério? – perguntei.
– Só. A bicha do diretor descobriu tudo, por isso que você não foi chamado. Eu
só levei uma advertência. As guria tão fodida também, mas o Mau se ferrô direitinho!
Vamo almoçá no Mac?
– Vamos, mas acho que eu preciso avisar minha mãe.
– Tá limpo! Tem um telefone no final do corredor. Vamo nessa.
Acompanhei-o até o corredor, fugindo do professor de história, e expliquei a
ele a tarefa de filosofia que tínhamos que fazer. Ele concordou imediatamente. Achei
isso um tanto estranho, afinal, aquele tipo de aluno não gostaria de uma tarefa como
essa. Minha dedução sobre o que ele estava sentindo por mim estava correta. Ele
queria me conhecer melhor.
Então tive de fazer algo bem difícil. Ligar para minha “mãe”. O telefone estava
no caderno. “Como se usa esse tipo de aparelho?”, perguntei a mim mesmo, olhando
um telefone vermelho bem na minha frente.
– Quer uma ficha? – Tom me perguntou.
– Olhe, Tom, na minha cidade os telefones são diferentes. Será que você pode
ligar para mim e chamar minha mãe?
– Claro! Como é o nome dela?
– É... chame, mmm... senhora Carmalho.
– Está bem.
Ele ligou sob meu atento olhar e logo minha “mãe” estava na outra linha.
– É a senhora Carmalho? – perguntou Tom.
– Sim – deu para ouvir a mesma voz que tinha me acordado.
– Só um minuto, por favor – disse Tom.
– Hã... Oi, mãe – falei no fone.
– Oi, filho. Como foi a aula?
– É... foi boa, muito boa! Olha, mãe, eu não vou almoçar em casa, tá? Depois
do almoço eu te ligo de novo, tem muita gente aqui.
– Tá bom! Divirta-se! Tchau!
– Hã... Tchau...
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– Pronto – falei sorrindo para Tom.
Ele estava me olhando com um olhar interrogativo.
– Tem certeza que ela é sua mãe? –perguntou- me sorrindo.
– Tenho. Por quê?
– Hum, por nada. Só estava brincando.
E assim saímos da escola para a rua. Eu, o Mago de Prata e um escudeiro
mirim, em pleno século vinte! Era alarmante. Quando chegamos à rua, vi o que era estudar naquela época. Deveria haver mais de três mil alunos concentrados na frente do
colégio. Fora isso, uma imensidão de automóveis subindo a rua, num engarrafamento
gigantesco.
– Venha, Macoi, eu sei que a cidade em que você morava era bem maior e sua
escola também, mas não precisa ficar parado feito bobo. E além disso tô morrendo
de fome!
Seguimos a pé pela rua, onde uma imensidão de estudantes fazia o mesmo
trajeto. Tom não parava de falar um minuto. Ou cumprimentava alguém aqui, ou me
apresentava para alguém ali, e assim ia, até que as pessoas começaram a se dissipar.
Mesmo assim, uma boa parte possivelmente estava indo para o mesmo lugar que nós.
Chegamos ao que poderia ser um imenso lugar colorido, com muitas pessoas
na frente, fazendo uma imensa e desconexa fila.
– Finalmente chegamos – disse-me Tom, com um sorriso. – Mac Donald’s. O
único de nossa pacata cidade.
– Ei! – gritou uma menina no final da fila. – Tom, podemos comer com vocês?
– Claro, venham. – disse Tom, a grande altura.
As meninas vinham do final da fila em nossa direção.
– Cê quer ver o que são de galinhas essas gurias, Macoi? – falou-me baixinho.
E quando elas chegaram, reparei em suas roupas, altamente insinuantes.
– Olha só! Quem é esse gato, Tom?
– É um amigo meu, seu nome é Macoi, ele é aluno novo.
– Qual é, gatinho, mas que cabelo manêro, hein? – falou uma delas, me dando
um beijo no rosto e me abraçando o pescoço.
A outra, por sinal, já estava agarrada com o Tom. Que loucura!
– E então, o que vão fazer à tarde? – perguntou a menina, ainda pendurada no
meu pescoço.
– Eu e o Macoi vamos fazer uma pesquisa com a mãe dele, mas depois estamos
livres. Que tal a gente comer aqui e depois ir ao shopping?
– Certeza! Tamos na barca! – falou a menina.
Entramos depois de meia hora de espera. Eu e a menina ficamos numa mesa,
cuidando enquanto Tom e sua amiga pegavam nossa comida. A menina começou todo
o inevitável questionário:
– E daí, gatinho, de onde você vem?
– De terras distantes – respondi calmamente.
– Nossa, tá ligadão, hein? Também, amigo do Tom! E aí, tá a fim de alguém?
– Como é seu nome mesmo?
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– Ah, desculpe! É Val.
– Que tipo de atividade você faz, Val?
– Nossa, ó o cara! Bem, eu estudo na mesma escola que você de manhã, e à
tarde eu vou ao shopping. Às vezes vou ao cinema, e quando aparece, fumo um, na
casa da galera quando tá liberado, tá ligado?
– Você não faz nenhuma atividade extra acadêmica? Algo que possa usufruir
no seu futuro?
– O que poderia ser melhor do que ficar com um gatinho como você ou fumar
um a tarde inteira? – respondeu-me, com jeito esquisito.
Nisso, chegou Tom com a outra menina, carregando cada um uma bandeja
cheia de caixas coloridas, onde provavelmente estaria nosso almoço. Comecei a sentir
falta das Florestas Azuis.
Logo, estávamos nos empanturrando com batatas empapuçadas em gordura,
sanduíches com gosto de plástico e Coca-Cola, uma combinação perfeita de detritos
dessa sociedade absurda de que eu estava participando. Após o almoço, marcamos
um encontro com as garotas num shopping. Eu pedi para elas verificarem os cinemas.
Estava louco para ver como era um filme, a maneira antiga de contar histórias.
Combinei tudo com o Tom acerca da nossa entrevista com minha mãe. Ele
telefonaria e marcaria um encontro com ela. A professora especificou que a entrevista
deveria ser apenas com os pais e o amigo, sem a participação do filho; era perfeito!
Tom ligou para minha suposta mãe e marcou tudo direitinho. Ele tinha pegado
o endereço. Tomamos um táxi e fomos ao escritório de minha mãe. Eu fiquei numa
praça em frente ao enorme prédio onde Tom entrou. Deixei o corpo de Macoi com
apenas uma parte de consciência, para que eu retornasse imediatamente se houvesse
algum perigo. Para quem olhasse de fora pareceria um menino cochilando num banco.
Agora eu estava acompanhando telepaticamente a mente de Tom.
Ele entrou alegremente no hall do prédio. Era uma enorme construção, cheia
de espelhos e concreto. Para a época deveria ser moderníssimo. Tom foi logo interceptado por um segurança.
– O que deseja, menino? – falou o guarda bruscamente.
– Olha aqui, ô mané! – respondeu Tom. – Tô procurando a senhora Carmalho,
ela é muito minha amiga e está me esperando, tá ligado?
– Espere aqui um pouco – falou o guarda, já se dirigindo a um balcão onde
havia outro segurança, que olhou para Tom com cara incrédula.
Pegou o fone e falou alguma coisa que não foi possível captar. O outro guarda
retornou.
– Ah! Você que é o Tom! Por que não disse antes? Venha, eu acompanho você
até o escritório da doutora Carmalho.
– Ih! Ó o cara aí! Vê se não se chega muito, falô?
– Gracinha de criança – falou o guarda, com um sorriso amarelo, puxando Tom
pela camisa.
Entraram em um elevador e subiram até o último andar. O guarda o levou até
uma sala onde havia uma linda mulher à espera de Tom.
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– Uh! Mas que dia de sorte! – falou, olhando para o guarda, que enrubesceu.
– Té mais aí, mané! – gritou para o guarda, que já estava esperando o elevador
para voltar ao seu posto.
– Oi, lindinho! – disse a secretária. – Quer tomar alguma coisa? Uma água, um
refrigerante, um sorvete?
– Uma cerva, por favor!
– Gracinha. Venha, a Dra. Carmalho está esperando você. Você deve ser muito
importante para ela receber você assim, sem mais nem menos, no meio da tarde!
– Só, eu sou o presidente da “Liga dos estudantes jacarés importados”. Estamos pedindo um auxílio para as pessoas portadoras de síndrome de jacaré, que passam
o dia inteiro enfiados dentro de uma bolsa de mão, já ouviu falar?
Ela deu uma risadinha e bateu numa porta.
– Entre! – gritou minha “mãe” lá de dentro.
A secretária abriu uma bem talhada porta de madeira e o menino entrou.
– Olá, Tom. Muito prazer em conhecê-lo!
– Boa tarde, doutora Carmalho. Como está a senhora?
– Ora, vejam só! Muito bem, obrigada! Mas a que devo a honra...
Tom foi logo se sentando numa cadeira oposta à que minha mãe se dirigia.
– Muito bem, doutora Carmalho. Estou necessitando de algumas informações
pessoais sobre seu filho. É claro que a senhora deve achar um tanto estranho este pedido, mas é para uma pesquisa filosófica escolar. Como eu e seu filho nos conhecemos
hoje e nos damos, aparentemente, muito bem, eu o escolhi para esta pesquisa. A senhora pode ficar sossegada que todas as informações aqui registradas serão apenas de
proveito acadêmico, e para que eu não faça nada de errado com elas, fique a senhora
sabendo que seu filho terá as mesmas informações sobre mim de meus pais.
Minha “mãe” estava abismada.
– Sabe que para uma pessoa do seu tamanho você fala muito bem?
– Obrigado, doutora. Não é por menos que uma pessoa inteligente como seu
filho me escolheu como amigo.
Que cara de pau! Nunca vi tamanha enrolação em toda minha vida. Então
aquele indefeso menino sabia mesmo como se comportar. Era hilariante! Minha
“mãe” estava tão pasma quanto eu. Mas logo ela começou.
– Então do que se trata?
– Muito bem – disse Tom. – Fale-me sobre ele desde seu nome até suas predileções. Poupe-me da infância, quero saber de suas atitudes de uns anos para cá.
A mulher estava embasbacada, assim como eu!
– Você não vai anotar nada?
– Este é um trabalho de observação e análise, acredito que qualquer anotação
possa interferir na minha análise empírica.
– Está bem, vamos lá. Macoi nasceu em 1984, portanto ele tem quatorze anos.
– O quê? Aquele poste?
– Sim, como pode ver, tanto eu como Marçons, seu pai, somos muito altos.
Macoi sempre foi um garoto estudioso, nunca repetiu o ano, gosta de esportes, apesar
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de não gostar de competir em nada. Adora namorar, principalmente garotas louras
de olhos azuis. Vê filmes sempre que pode e gosta mais dos de ficção científica. É
gamado em música erudita e rock pesado.
– Pelo cabelo eu poderia imaginar que ele tinha um ótimo gosto musical! –
falou Tom.
– É, mais ou menos. Acredito que sua matéria predileta seja história. Ele é
muito querido em casa, se dava muito bem com o pessoal do bairro onde morávamos,
principalmente com os menores, os quais ele sempre defendia. Acho que ele sempre
sentiu falta de um irmão menor.
– Ei, isso eu reparei!
– É, eu já imaginva qual seria o tipo de amigo que ele escolheria.
– Como assim?
– Alguém como você, menor que ele, esperto e completamente hílare.
– Hi, hi! Muito obrigado!
– Ótimo, de que mais você precisa, Tom?
– Deixa eu ver... Bem, fora os filmes e o tipo de música, a senhora diria que ele
tem algum tipo de literatura predileta?
– Ah, sim, ele adora magia, consome todos os tipos de livros sobre magos,
duendes, fadas, elfos, dragões, e ainda os que ensinam todos os tipos de magia. Uma
loucura o que ele lê sobre isso! Ele gosta muito de se expressar por desenhos e pintura,
na verdade estava até cursando aulas de pintura antes de mudarmos para cá.
– Muito interessante! Isso eu não sabia. Muito bem, acho que eu já tenho o
bastante para fazer um perfil psicológico dele. Muito obrigado, senhora Carmalho.
– Pode me chamar de Gioconda, Tom. Foi um grande prazer. Apareça lá em
casa para comer um bolo de chocolate, o Macoi adora! E se você o vir hoje, diga para
ele me ligar aqui mais tarde que eu irei pegá-lo. Afinal, duvido que ele saiba como ir
para casa.
– Muito obrigado pelo convite, Gioconda. Foi um grande prazer conhecê-la!
Tom saiu da sala e a secretária o acompanhou até o elevador.
– Não quer me dar seu telefone, gatinha?
– Quando você crescer meio metro, “te” darei, fofinho!
Os dois riram muito. Tom estava de saída do prédio e eu resgatei a consciência
do corpo de Macoi.
– Daí, malandrage? – veio ele sorrindo. – Tua mãe é muito manêra, hein?
– E você é um cara de pau! – falei, esquecendo que ele nunca saberia que eu
estava lá como ele.
– Quê que tu qué dizê com isso, bródinho?
– Bem – tentei responder. – Nada, ou melhor, acho que nós precisamos conversar, Tom. Preciso lhe contar uma coisa muito séria, e acho que você é uma ótima
pessoa para me ajudar.
– Ei! Tá querendo dizer que vamos dar os boi nas minas?
– Dar o quê?
-Vamo deixar as mina esperando?
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– Ah! As meninas. Bem, acho que sim.
– Ih, cara! Tu não vai me dizer que você é gay.
Era isso! Esta sociedade realmente tinha preconceito para alguns tipos de sentimentos! Ela aceitava o ódio como se fosse a coisa mais normal e proibia certos tipos
de amor por não serem algo comum.
– Não, não se trata disso.
– Então qual é a treta?
– Bem, precisamos de um lugar calmo, em que possamos conversar um assunto realmente sério. Trata-se de minha vida.
– E você vai confiar isso a um cara desconhecido como eu?
– Tenha certeza de que eu o conheço mais que você imagina. E agora você me
conhece também, não é verdade?
– É, pode ser, e mesmo assim tô cansado de agarrar aquelas peruas. Já sei! Tem
um lugar muito manêro e que ninguém vai nos incomodar. Eu sempre ia lá pra fumar
um com a galera, até que sujô.
Na mesma praça, pegamos um ônibus que estava praticamente vazio. Sentamos no banco de trás. Tom encostou a cabeça de lado e aparentemente cochilou, eu
fiquei vendo a paisagem da cidade passar. Esta, pelo que me falaram, era uma cidade
modesta, mas dava pelo menos umas vinte vezes o tamanho da Aldeia Carmalhoc.
Que loucura! Como tanta gente podia viver assim, apinhada num mesmo lugar? O
céu, apesar de limpo, não tinha a mesma intensidade de azul de onde vínhamos, nem
mesmo as árvores pareciam ter a mesma vida. Tudo era cinzento, ainda que a cidade
aparentasse ser limpa e com muitas áreas verdes.
Comecei a pensar sobre o que significava a nossa ida para lá. Repassei mentalmente a entrevista com minha “mãe”. Era óbvio que eu entrara em sintonia com
sua mente enquanto ela falava sobre o verdadeiro Macoi, e fui muito mais a fundo do
que aquelas meras palavras relatadas para Tom. Comecei a me concentrar no assunto,
utilizando-me de várias técnicas de significação por indução mental. Algo dominado
apenas pelo povo dos Magos de Prata, mas um poder que agora eu poderia utilizar
porque fazia praticamente parte desta tribo. Afinal, eu e o Mago éramos agora um só.
Era isso! Estremeci com o choque da descoberta! Eu e o Mago não apenas
fazíamos parte daquele corpo naquele momento. Na verdade, aquele Macoi era eu e
o Mago juntos o tempo inteiro, e que quatro mil anos depois iríamos viver de novo,
mas separados em dois corpos diferentes, um como o Mago de Prata e outro como
Ortal Carmalhoc! Deuses! Nós já havíamos estado juntos antes! Fomos repassados
geneticamente durante gerações para só depois de mais de quatro mil anos nos encontrarmos de novo, e numa situação extrema. Mas o que significava isso? Se existia já
uma pessoa que compreendia eu e o Mago, por que tornaríamos a nos encontrar e por
que, ao nos encontrarmos e termos uma relação de uma pessoa só, voltaríamos a ser
a primeira pessoa de novo? Era óbvio que isso tinha algum sentido, algum propósito
secreto. Algo estava para acontecer, algo grande, e nós não tínhamos nem ideia do
que era.
Com todos esses pensamentos, nem notei que estávamos para chegar ao tal
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lugar aonde Tom queria me levar. Realmente, era um lugar muito bonito se comparado
às pilhas de concreto da cidade. Tratava-se de um parque de flores. Ali se comercializavam flores, mel, e vários tipos de frutas e verduras. Mas além disso, havia uma
grande extensão de matas virgens em torno de um lago.
Andamos muito por este parque, até que chegamos a um local afastado, logo
depois de uma ponte. Era uma pequena clareira com várias rochas espalhadas pelo
chão. Tom foi para uma delas e sentou-se na grama, encostando-se na rocha. Fiz o
mesmo. Começamos a conversar.
– E então, Macoi, o que está te afligindo? Seus pais vão se separar?
A esperteza desse menino era de espantar.
– Não, não é isso.
– Então o que é?
Demorei um pouco para dar a resposta.
– Tom, eu não sou quem você pensa que eu sou.
– Como assim?
– Na verdade é muito difícil de lhe explicar.
Assim que terminei de falar isso, comecei a notar algo estranho naquele corpo
em que eu e o Mago estávamos. Comecei a sentir algo se mexer dentro daquela cabeça. “Mago, o menino está despertando!”, pensei comigo mesmo. Fechei os olhos e
esperei um pouco. Deveríamos tomar uma atitude, o choque seria muito grande para
Tom, mas era a única saída para aquela situação.
– O que está acontecendo, Macoi? – perguntou Tom com voz de preocupação.
Com isso, o despertar estava completo. Eu e o Mago deveríamos sair daquele
corpo para não influenciar a mente do verdadeiro Macoi.
Num verdadeiro deslumbre visual, como não poderia deixar de ser, eu e o
Mago nos separamos do corpo de Macoi. Éramos dois espectros prateados, brilhantes
e transparentes, flutuando na frente dos dois garotos encostados na rocha. Tínhamos
a forma original de nossos corpos, só que emitíamos uma luz própria. Os dois ficaram assustadíssimos. Acho que tentaram se levantar e correr, mas não conseguiam
se mexer.
– Mas que porra é essa, Macoi! – gritou Tom, embasbacado.
– Sei lá! – disse Macoi, olhando com espanto para Tom e, perguntando a si
mesmo quem era esse cara que sabia seu nome.
– Calem-se – pediu calmamente o Mago.
Eles estavam perplexos com a situação.
– Não vamos machucá-los – disse eu. – Estamos aqui porque tivemos que, de
alguma forma, interferir em parte de suas vidas. Não somos deuses, nem fantasmas,
nem anjos, somos pessoas como vocês. Só que de um tempo mais avançado. Tivemos
que voltar a este passado para reconhecer alguém que somos nós mesmos.
– Ei, calma aí! – disse Tom – Eu conheço esse jeito de falar! Você é o Macoi,
só que não está no corpo dele.
– Exatamente! Meu nome é Ortal e este é o Mago de Prata. Nós éramos, neste
tempo em que vocês vivem, esta pessoa chamada Macoi. Nós fomos separados após
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
quatro mil anos e agora tivemos que voltar para este corpo, para que pudéssemos
perceber que um dia fomos a mesma pessoa. Alguém tentou mostrar isto para nós,
não sabemos por que. Mas o fato é que nós pedimos desculpas por interferir desta
maneira nas suas vidas. Pedimos a você, Tom, que continue sendo amigo de Macoi e
o auxilie na percepção desta sua nova casa, afinal, acho que ele nem sabe que já teve
um dia inteiro na nova cidade. E quanto a você, Macoi, continue a levar a sua vida
como está levando. Um dia você vai conhecer um mundo maravilhoso, mas através
de dois corpos diferentes.
– Ei! E quanto mim? – protestou Tom.
– Desculpe-nos, Tom – era o Mago que falava -, mas não sabemos nada sobre
seu futuro. Sabemos apenas que você é uma pessoa especial e, pelo fato de estar em
nossa companhia, isto é, de Macoi, fará algo de bom. E não se esqueça, pare de fumar
maconha.
Macoi olhou-o com ar meio de gozação. Ótimo, eles estavam reagindo bem.
– Agora devemos ir – continuou o Mago.
– Esperem! – protestou Macoi. – Falem-me de vocês. De onde vêm? Quem
são?
– Nós somos você, Macoi, só que daqui a quatro mil anos. Tenha paciência,
isto passa rápido.
Ele sorriu.
– Acho que podemos ir, disse o Mago. Mas, penso que devemos deixar-lhes
um presente, para que sempre se lembrem de que existirá um futuro grandioso.
Então, eu e o Mago mandamos algumas lembranças de nosso mundo para eles
e, é claro, algumas receitas de magia básica, afinal de contas os meninos deveriam se
divertir um pouco. Desaparecemos.
CAPÍTULO 7
O Povo Rebelde
Caímos num sono profundo, estávamos exaustos. Sonhamos com os meninos
no passado! Era um sonho quase real, que eu e o Mago compartilhamos. Eles se divertiam muito na volta para casa, do parque. Já estavam formulando a concepção da magia e como poderiam usá-la. Ficamos tranquilos, pois sabíamos que tínhamos dado,
além da receita da magia, certas combinações de elementos mentais que faziam com
que eles tivessem a consciência da Eco Revolta antes mesmo de esta ter acontecido.
Estávamos plantando uma nova raiz acerca de nosso tempo.
Após uma maravilhosa noite de sono, acordamos em meio à floresta. Não
tínhamos sequer ideia de onde estavam as jovens donzelas. Pensei em perguntar ao
Mago, mas antes mesmo de falar sobre isso, ele já me transmitiu que não sabia o
paradeiro delas. Senti que ele me escondia algo. Desmontamos o acampamento e
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
continuamos a nossa busca ao Povo Blasfêmico, agora dotados de mais informações
sobre mentiras e enganações que aprendemos com nosso peculiar instrutor Tom, no
passado. Como seria bom se ele estivesse com a gente!
Continuamos andando rapidamente pela mata durante uns três dias. E já no
terceiro dia começamos a sentir a presença maligna do Povo Blasfêmico.
Eu e o Mago tínhamos que discutir um plano de como penetrar naquele povo
maldito, e depois sobre o que fazer. Deveríamos esperar pelo exército que vinha liderado pelo Lorde Pompe Carmalhoc com todas as tribos em conjunto ou deveríamos
investir nós mesmos contra eles? Estávamos sem respostas. O melhor que pudemos
pensar foi tentar espionar o povo antes, ver como viviam e quais eram suas falhas e
seus medos. Depois pensaríamos sobre como investir contra eles, se é que investir
contra eles seria a melhor solução.
Começamos, na manhã seguinte, uma delicada caminhada em meio a floresta.
Cada gesto dali para diante seria meticulosamente planejado. Não queríamos de maneira nenhuma ser capturados, pois não sabíamos ainda qual era a extensão do poder
daquele povo. E assim, deslocando-nos como uma brisa através da mata, andamos por
mais dois dias na direção em que as donzelas nos tinham dito para ir.
Chegamos ao topo de um enorme desfiladeiro. Era impressionante a altura
daquele lugar. Na verdade, nem tínhamos certeza da altura, pois sequer podíamos ver
o chão. Já era tarde e existia uma neblina cinzenta. À nossa frente, o mundo tornara-se
obscuro e frio.
Armamos nosso acampamento, pois agora a neblina era tanta que não conseguíamos nem enxergar a alguns poucos metros de distância. Era algo aterrorizante.
Eu e o Mago nos fechamos em uma redoma mental, estávamos protegidos ali dentro;
afinal, a boa e velha magia estava ao nosso lado. Fizemos uma refeição à base de mel
geriátrico, pois necessitávamos de muita energia, já que estávamos na iminência de
um encontro pouco recomendável. Tivemos uma noite tranqüila.
Ao acordarmos, porém, ficamos abismados com o que vimos. Realmente estávamos no ponto mais alto daquele penhasco. Dali, tínhamos uma visão espetacular
de uma imensidão de terras impossível de calcular. Mas foi quando nossa visão se
acostumou à claridade da manhã e à magnitude do lugar que começamos a observar
por que aquele povo era chamado de blasfêmico.
Lá embaixo no abismo. De onde nos encontrávamos, podíamos ver uma imensa cidade, feita principalmente de casas de madeira e lama. As pessoas moravam na
mais absoluta miséria e trabalhavam acorrentadas, movidas a chicote. Esta cidade se
estendia por quilômetros no vale. Era cortada por vários rios que em nada lembravam
os rios de minha aldeia, pois eram escuros e nada refletiam. Os casebres se misturavam à vista, à medida que ia se observando ao longo da cidade, um emaranhado de
arquitetura mal acabada até onde a visão alcançava.
Bem no meio desses casebres havia uma espécie de templo, uma enorme catedral negra que se erguia com muito estilo perante as pequenas e pobres casas. O
efeito que resultava era algo aterrorizador. A catedral se impunha de tal forma sobre
as casas que parecia que iria engoli-las. Era uma cena atordoante.
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Das casas lá em baixo saíam nuvens de fumaça negra. Ao acompanhar o desenho destas fumaças se erguendo ao céu, notamos uma coisa mais estarrecedora ainda! Circundando a imensa catedral, havia cinco redomas quase invisíveis, de vidro,
flutuando a cem metros do chão. Aguçando muito bem a visão, podíamos ver uma
cidade em cada uma destas redomas, que eram interligadas por imensos corredores
também transparentes. Nelas morava o Povo Blasfêmico, sustentado pelo trabalho
escravo de uma imensa massa popular aos seus pés. Foi a cena mais aterrorizante que
vimos em nossas vidas.
Eu e o Mago resolvemos nos infiltrar secretamente em meio à população escrava. Descemos o penhasco acompanhando sua borda, levamos o dia inteiro para isso.
Ao chegarmos lá embaixo, começamos a investigar sorrateiramente os movimentos
da cidade escrava. Estávamos longe, porém já sentíamos o terrível cheiro que emanava dali. Já era noite, entraríamos na cidade de madrugada. Ficamos ali a observar
o que acontecia.
As pessoas trabalhavam nas mais diferenciadas tarefas, eram coisas que nunca
tínhamos visto antes. A população escrava trabalhava sem parar, mas o mais interessante era que eles não eram forçados a isso. Existia um certo policiamento, no entanto
os escravos pareciam não estar ostensivamente vigiados, não havia nem cercas nas
margens da cidade. Na verdade, só se tinha a impressão de serem escravos por estarem
fazendo um trabalho mecânico, de repetição, na absoluta miséria em que viviam.
O que os escravos produziam era algo interessante, vários tipos de objetos de
todos os tamanhos e formatos. Pareciam ser extremamente complexos, mas todos
feitos de matéria-prima bruta, isto é, minerais e madeira. Portanto, quanto a isso não
estavam de forma alguma burlando a lei da Eco Justiça. Mas com relação a poluir o
meio ambiente, eles estavam, e muito. Primeiramente, jamais a Eco Justiça permitiria
o convívio de tantos seres humanos juntos, exatamente pelo fato de estar ocorrendo
isso que estávamos vendo e sentindo, isto é, um enorme despejo de poluição tanto no
ar como na mata e nos rios. Era algo nojento.
Víamos toda aquela população trabalhando sem parar. Havia pequenas fogueiras onde fundiam metais, casas onde eram serradas madeiras, tudo era muito primário.
Mas a atitude dos escravos estava nos deixando confusos. Eles trabalhavam como se
fosse para eles, embora tudo o que produziam fosse levado por carroças a cavalo pelo
emaranhado das vielas. Crianças estavam trabalhando feito loucas, e também homens
e velhos. O que pouco vimos foram mulheres.
Todos estavam muito mal vestidos, com trapos e pés descalços. Todos estavam
muito sujos, com os cabelos despenteados. Eram magros, quase secos; vimos mesmo
alguns caindo de mais completo cansaço. A miséria imperava naquele lugar, porém,
ainda assim, eles continuavam a trabalhar, como se estivessem sob um efeito hipnótico.
Enquanto observávamos e já estipulávamos como iríamos penetrar naquele
lugar absurdo, sentimos a presença de pessoas a nos vigiar. Começamos a transmitir telepaticamente o que estava ocorrendo e qual seria nossa estratégia. O Mago
começou:
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“Trata-se de oito jovens, Ortal. Estão armados com lanças e têm a sabedoria
das lutas antigas.”
“Já senti, Mago. Eles nem desconfiam que nós sabemos sobre eles. Pois bem,
ficaremos aqui em forma de ilusão. Tu ficas de costas para mim enquanto eu pego o
líder que está montado na árvore do centro, logo atrás de nós.”
Um deles deu um cutucão naquilo que parecia ser nossos corpos deitados em
meio à mata. Quando ele reparou que nada havia ali, virou-se para o líder. Este já estava flutuando a dois metros de altura, com minha a espada em seu pescoço. O Mago
estava logo acima de mim. Todos agora estavam em silêncio, olhando para aquela
cena alarmante. Então, eu e o Mago falamos numa só voz:
– Sob minha algibeira tenho os seus cadáveres. Sou o Mestre da Magia, sou
aquele que, neste momento, detém os seus destinos. Eu tenho a força dos teus deuses,
eu traço os planos da tua fé, eu forneço a fagulha de tua luta, eu sou a tua cegueira e a
tua maior paixão. Porém, também sou a fúria de teus pesadelos. Na receita de meu ser
não existe a menor pitada sequer de ódio, mas tenho sob minha espada a garganta de
seu líder e forneço-lhe a vida, se sobre a mata suas armas caírem.
– Façam o que ele disse – falou o líder, com a voz estrangulada pela espada.
Após todas as armas estarem no chão, soltei-o vagarosamente. E ele disse:
– Como pode tamanha força emanar de um só ser?
– Posso vencer um exército com minha força, porém posso vencer o mundo
junto com minha outra parte.
Coloquei o Mago na minha frente. Ele ainda flutuava a uns dez centímetros
do chão.
– Quem são vocês? – perguntou um deles.
– Eu sou o Guerreiro que veio antes – falei, em forma de códigos, pois notei
que aquele povo tinha um grande senso místico. – E sou acompanhado do último
Mago Prateado, agora somos um.
Ao ouvir isso, eles fizeram algo inesperado. Todos ao mesmo tempo se ajoelharam diante de nós, falando em conjunto, mas num murmúrio:
– É a lenda! A lenda de Ohr!
Dera certo, logo notamos que aqueles jovens eram rebeldes. Defendiam uma
causa.
– Finalmente – falou o líder – achamos o que por séculos nossos antepassados
procuraram. A lenda está diante de nós!
Mas logo um dos seus acompanhantes levantou a questão:
– Como poderemos saber se não são blasfêmicos disfarçados tentando descobrir nossas bases? Só porque se utilizaram de algo que chamam magia? Poderia ser a
tecnologia desse povo maldito – falou, apontando para a cidade escrava.
– Não lhe posso responder, caro Maifrem – disse o líder.
Mas logo o Mago interveio.
– Se você é Maifrem, você é Tramas – falou o Mago, apontando para o líder-,
filho de Dorim e de Marnas. Mas seu nome é Trar, aquele que luta sem destruir.
Eles estavam quase em choque com o que aquela aparente criança falara. E eu
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
logo entrei na mente do Mago e continuei, mas me assustando, pois o rumo da conversa não tinha nada de lenda, mas, sim, de algo que poderia ser real:
– E eu sou Ortal Carmalhoc, o mago guerreiro, e sou o que ama o Mago de
Prata, pois sei que nós dois somos um só. Descendo da família Carmalhoc, mas temos
nossa descendência em comum – apontei para o Mago. – Descendemos de Macoi di
Carmalho, o primeiro Mago de todos, o que veio antes da Eco Revolta, e nosso destino é o Ser Supremo.
Quando terminei, não sabia a princípio do que estava falando, mas os rebeldes
estavam no chão! Com a cara voltada para a terra. Acho que eu tinha ido longe demais. O Mago fez um sinal de satisfação para mim, e falava:
– Levantai-vos, filhos do outro lado das cordilheiras dos diamantes. Estais com
amigos. Temos que discutir nossas causas.
Eles se levantaram com a cabeça baixa. O líder nos olhou ainda muito assustado e disse:
– Sigam-me, nobres pessoas, nosso lar será seu, se isso desejarem.
Andamos num absoluto silêncio pela mata, até chegarmos em uma enorme
rocha. Entramos por uma fissura quase imperceptível na escuridão. Andamos vagarosamente pelo breu, descendo por uma caverna sem fim. Finalmente vimos ao longe
uma luz. Fomos naquela direção e nos deparamos com uma enorme abertura, uma
verdadeira cidade subterrânea, iluminada com uma luz avermelhada, um imenso teto
abobadado com milhões de estalactites voltadas para uma enorme população lá embaixo. Havia pelo menos umas mil pessoas, fazendo todo o tipo de trabalho. Estávamos bem acima do chão e quando as pessoas nos viram, lá no alto de sua imensa
caverna, pararam imediatamente de trabalhar. Ficaram nos olhando assustadas.
O líder falou.
– Antes de eu começar a falar, lembrem-se de quem sou. Trar, o filho do último
sacerdote, o que trazia em seu sangue a memória de nossos antepassados. A memória
da lenda de Ohr, o Ser Supremo. Agora não vou relembrar uma lenda pela qual oramos todos os dias, mas vou trazê-la a vocês.
Ao falar isso, apontou para nós. Todo o povo estremeceu! Eu e o Mago estávamos ali diante de mais de mil pessoas nos olhando. O Mago capturou minha mente.
Falamos em uníssono:
– Somos a atitude mais próxima de Ohr, e temos o poder para isso. Somos
o Mago de Prata e o cavaleiro Ortal Carmalhoc. Temos provas de que somos a descendência de Macoi, o primeiro, e provaremos. Pois nossa magia é antiga e infalsificável, é a magia do próprio Macoi.
Assim que terminamos de falar, o Mago assumiu o show. Toda a caverna, que
estava muito iluminada, se apagou. O povo soltou um gigantesco murmúrio. Mas logo
uma luz surgiu, quase tocando o teto da abóbada, bem no centro da caverna. Era uma
luz azulada e dela começou a surgir uma imensa forma de pessoa. Era Macoi! Agora,
vendo-o assim, senti um calafrio. Como ele era parecido comigo e com o Mago ao
mesmo tempo! Todo o povo começou a entoar um cântico na forma de hino. Estavam
ajoelhados diante da imensa imagem tridimensional que rodava sobre suas cabeças.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Fiquei emocionado.
Assim que o cântico terminou, o Mago reacendeu as luzes e o lugar tornou a
ser o que era. Todo o povo então gritou num único som, que estremeceu a caverna
toda:
– Ohr!!!
Ficamos por um tempo em silêncio, olhando para todos. Finalmente, Trar nos
conduziu para uma câmara lá embaixo. Vagarosamente o povo recomeçou o seu trabalho.
Entramos na câmara com mais quinze pessoas. Eram os líderes daquele povo.
Sentamos todos em volta de uma grande mesa feita de pedra. Eu e o Mago
ficamos em absoluto silêncio com os olhos fechados, lendo as emoções daquela gente.
Eles perceberam nossa concentração e deixaram que nós fizéssemos nosso interrogatório secreto.
Agora, eu e o Mago éramos novamente uma única pessoa, separados apenas
por nossos corpos. E em conjunto começamos a falar, mas a voz era do Mago.
– Creio que não tendes poder para ver onde estão vossos inimigos. Ao contrário do que pensais, ele não está escondido no enorme deserto de águas rasas, atrás
das terceiras montanhas. Mas está aqui. Logo acima da cidade escrava – todos ali
ficaram espantados. – Sei que vistes cidades em meio do deserto das águas rasas, mas
aquelas imagens eram apenas uma forma de magia artificial, feita através da tecnologia herege. Aquilo não vale como realidade e deveis retirar esta falsa informação de
suas mentes.”
“O povo Blasfêmico vive em cinco cidades separadas de nossa realidade por
redomas fabricadas por seus escravos. Esta redoma protege o povo maldito da meticulosa observação da Eco Justiça. Mas eles cometeram um grande erro. Atacaram minha
tribo, a tribo dos Magos de Prata, e assim, com um alto custo (o da vida de toda a
tribo, menos a minha), nós, os prateados, descobrimos que o povo Blasfêmico planeja
dominar os recursos naturais deste Planeta sem ser observado pela Eco Justiça. Eles
desenvolveram uma tecnologia para isso e vão conseguir muito em breve, caso nós
não os impeçamos.”
Houve um grande lamento por parte de todos.
“Nós temos uma grande vantagem sobre eles. Assim como vós, nós somos
totalmente desconhecidos desse povo, eles simplesmente ignoram nossa existência.”
“Existe um enorme exército, composto por todas as tribos conhecidas e liderado pelo Lorde Pompe Carmalhoc, vindo para cá neste momento. Acredito que eles
estejam reunidos nas terras dos homens pequenos, os duendes. Uma guarnição bem
equipada deve ir para lá imediatamente, com os planos que passaremos a vós ainda
hoje. Nós devemos combater esse povo o quanto antes, porém deveremos poupar a
enorme população escrava, pois esta, como sabeis, está lá apenas por indução hipnótica. Porém, sabemos que esta indução não é fruto de magia mas, sim, de fanatismo religioso, muito usado pelo povo primitivo e facilmente dissolvido, graças à boa mágica
prateada.”
“Agora passaremos a vós, por indução mental, nossos planos de ataque. Cada
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
um de vós passará para suas bases e sub-bases, através desses cristais-telepáticos”.
Eu pegava os cristais de minha mochila e espalhava sobre a mesa. “Pois eles agilizam
a informação sem deixar passar erros. A guarnição que se encontrará com o exército
de Pompe Carmalhoc também levará um dos cristais. E lembrai-vos de que nossos
planos só darão certo caso as informações estejam corretas.”
Assim, eu e o Mago distribuímos os cristais para cada um dos líderes de cada
base. Jogamos a areia prateada e começamos a implantar mentalmente nosso plano
de ataque.
Após isso, sentimos o nervosismo de todos.
– Agora precisamos dormir – disse o Mago. – As informações serão passadas
imediatamente para suas tribos e para Pompe. Enquanto dormimos, estaremos resguardando-as. Nada será violado, pois estaremos em cada uma delas, durante o sono.
Por isso, precisaremos de uma câmara secreta, muito bem vigiada.
Logo veio Trar e pediu que o seguíssemos. Antes, porém, de nos levar para a
câmara, fomos para um lugar onde muitas pessoas estavam nos esperando com uma
grande refeição. Espalhamos o mel geriátrico por todos os tipos de comida, iríamos
precisar.
Após comermos, Trar nos guiou para a câmara. Entrou conosco para ver se
estava tudo como gostaríamos. Mas antes de sair, fez uma pergunta que me deixou
confuso.
– Como começou esta lenda? – perguntou, em um tom que não parecia ser de
teste, mas sim, de pura curiosidade.
Então, o Mago começou a contar uma história que estava escondendo de mim
o tempo inteiro.
– Quando nos encontramos com um povo nativo daqui deste lado das montanhas de diamantes, eu percebi, através de um contato muito íntimo com uma donzela
guerreira, que este povo era muito primitivo. Devido provavelmente ao esquecimento
causado pela não-manutenção de uma postura doutrinadora, de uma não-detenção de
um dogma, nem político, nem religioso. Dessa forma, executei um plano extremo. Eu
deveria fornecer ao passado destes povos uma figura lendária, para que neste tempo a
situação fosse outra. Então estipulei, através de uma padronagem de meus ancestrais,
uma figura que pudesse ser cativante para as gerações seguintes. Com muito espanto,
encontrei nas veias da história genética que corre em meu sangue um elemento que
coincidia com a família de Ortal. Isto para mim foi um fato inquietante. Deveria haver
uma razão para que, dentro de minha pesquisa, eu chegasse a essa pessoa.
“Então voltamos ao passado, agora nos incorporando em Macoi, o ser que eu
havia encontrado, na história genética. Descobrimos, num êxtase fantástico, que este
Macoi nada mais era do que eu e Ortal juntos, no mesmo corpo. Então, introduzi em
Macoi um princípio de magia e informações que, através da aleatoriedade dos acontecimentos, provocaria exatamente o que ocorreu. Isto é, Macoi começou, naquela época, a profetizar a vinda de um elemento no futuro que seria a salvação do povo, uma
espécie de messias, um deus semi-humano que traria a sabedoria e a liberdade para os
povos. Macoi fez exatamente o que eu estipulara, e, na verdade, ele profetizava um
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fato verídico, que eu sei que vai ocorrer.”
“O que aconteceu é que este povo do lado de cá das montanhas de diamantes
se adaptou, durante os últimos quatro mil anos, a esta lenda profetizada por Macoi,
pois antes de nós termos voltado ao passado e termos depositado o princípio da magia
em Macoi, a lenda não existia, e todo este povo era apenas um povo escravizado tanto
física como intelectualmente.”
– Então Ohr realmente existe? – perguntou Trar, com uma expressão de pasmo.
– Ele começou a existir quando Macoi foi gerado, mas ainda não está totalmente formado. A existência de Ohr na sua totalidade, vai depender de uma série de
acontecimentos. Estes acontecimentos estão na teia de informações que eu passei para
vós, dentro da estratégia de ataque ao Povo Blasfêmico.
Tanto eu como Trar ficamos abismados com o que o Mago falara. Na verdade,
eu estava admirado com toda a situação, com o procedimento do Mago. Então tudo
aquilo fora calculado meticulosamente! Comecei a me sentir apenas uma peça dentro
deste jogo que o Mago jogava, mas logo este sentimento foi reprimido por ele.
– Não deves pensar desta maneira, Ortal. Fazes parte de Ohr, assim como eu.
Só que eu tive um treinamento durante minha vida inteira para o surgimento de Ohr, e
tu serás o elemento-chave para que isso ocorra. Deves te orgulhar disso.
Eu não tinha a menor ideia de como Ohr surgiria, apenas sabia que Ele viria
através de mim e do Mago.
Trar estava muito abalado com toda esta história que o Mago havia contado,
mas nos deixou a sós, ainda que pretendesse continuar conversando.
Eu e o Mago finalmente fomos descansar. Porém, uma parte de nossa mente
estava nos informantes que levavam os planos da guerra contra os blasfêmicos. Tudo
estava na mais perfeita ordem, pois o Mago já tinha traçado tudo. Restava apenas
saber se o poder dos blasfêmicos poderia descobrir algo.
Durante uma semana ficamos dentro da base rebelde, a trinta metros abaixo da
grande rocha. Aquilo que era para ser uma enorme caverna havia se transformado em
uma verdadeira cidade subterrânea. Graças às mudanças de planos que eu e o Mago
fizemos no passado daquele povo, eles desenvolveram um meio de vida baseado na
adoração da lenda de Ohr. E assim conseguiram se safar das armadilhas intelectuais
geradas pelos blasfêmicos.
Pudemos saber, vivendo ali em meio aos rebeldes, que os blasfêmicos necessitavam do trabalho escravo dos povos mais primitivos. Eles impunham uma religião
baseada na adoração da tecnologia que eles detinham e praticamente hipnotizavam
os povos para que trabalhassem para eles como se trabalhassem para um deus. Mas,
graças à adoração da lenda, os rebeldes conseguiram se libertar desta hipnose e, gradativamente, ir libertando centenas de outras pessoas que agora faziam parte de seu
enorme clã.
Aparentemente, os blasfêmicos não tinham consciência deste fato, pois a cada
dia milhares morriam de estafa e eram substituídos por outros povos, que os próprios
escravos, fervorosos adoradores da religião blasfêmica, capturavam.
Todas as semanas vários membros da corte e do alto clero blasfêmico desciam
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de suas cidadelas voadoras para a grande igreja central para fazer o culto ao deus
da sua tecnologia, chamado por todos de Cyberneus. Nesse culto, eram introduzidos
centenas de novos escravos para a sua subserviência. E além disso a hipnose era restabelecida, ou seja, quanto mais tempo o escravo trabalhasse ali, mais fanático ele se
tornaria. Os blasfêmicos formaram uma legião de pessoas que lutariam por eles até a
morte.
O tempo dentro da base passava rápido. Haviam muitas outras bases espalhadas nos arredores da cidade dos escravos, todas elas subterrâneas, mas nenhuma era
tão grande quanto esta. Por isso, acreditávamos que toda nossa legião não superava
nem metade do número de escravos que poderiam lutar contra nós. O Mago porém,
me disse silenciosamente que isso não era preocupante, pois ele já tinha planejado
tudo e provavelmente a violência seria mínima. “O que ele estava a tramar?”- eu
questionava o tempo inteiro. Na verdade eu estava muito preocupado.
CAPÍTULO 8
A Traição do Mago de Prata
Finalmente fomos informados de que o exército de Lorde Pompe Carmalhoc
estava escondido onde o Mago havia determinado, esperando o sinal para o ataque.
O mensageiro estava atônito. Falava de uma enorme legião com cavaleiros enormes,
com roupas adornadas com cristais protetores e espadas de diamantes. Falava que
existia também um povo de pessoas pequenas, duendes, que acompanhavam a delegação montados em pôneis, e ainda muitos cachorros. Todos estavam eufóricos e
principalmente preocupados com a situação do Mago de Prata e do Cavaleiro Ortal de
Carmalhoc. Mas os cristais que o Mago mandara informavam tudo e eles ficaram mais
calmos. Agora apenas esperavam pelo sinal dele.
Na última noite antes do encontro com o Povo Blasfêmico, o Mago selecionou alguns jovens para acompanhar a mim e a ele. Na realidade tudo aquilo já não
era do meu conhecimento, pois o Mago trabalhava mentalmente sozinho, eu apenas
executava o que ele pedia.
Estávamos numa das câmaras secretas da cidade subterrânea. Havia mais vinte
pessoas conosco. Eram jovens muito fortes que aparentavam ter uns vinte anos. O
Mago pedira a Trar para providenciar mantos pretos cristalizados, que agora repousavam sobre uma enorme mesa dentro da câmara. Os jovens estavam em uma fila única
voltados para mim e o Mago que falava.
– Eu vou implantar em cada um de vós um cristal capaz de promover nosso
intercâmbio de informações. Esse cristal é dotado de uma essência muito especial.
Com ele vós vos tornareis unos quando desejarem. A inteligência de dez se tornará
uma, porém há um preço a se pagar. O primeiro é quase simbólico, pois o cristal
substituirá e para melhor o efeito daquilo que perdereis. O segundo é a liberdade de
escolha: se um de vós se voltar para o lado contrário à Eco Justiça todos serão destruídos. Portanto, o amor que vós deveis sentir um pelo outro deve ser levado às últimas
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consequências. Caso algum de vós ache que não está preparado para essa tarefa, há
muito como ajudar, mas esta é uma dádiva de Ohr.
Ninguém se mexeu.
– Ótimo – continuou o Mago. – Agora todos deveis vos despir e entrar na
próxima câmara. Lá todos deveis vos banhar e vossos cabelos devem ser totalmente
raspados. É algo que não vereis nascer mais por agora estardes utilizando um cristal
sagrado. Após isso, devereis retornar e vestir esses mantos, para depois serem implantados os cristais.
Enquanto eles tomavam banho e raspavam os cabelos, o Mago pediu para juntar todos os cristais que eu tinha com os dele. Logo surgiu um pequeno monte de
cristais sobre a mesa. Ele pediu para eu ficar postado do lado oposto da mesa onde
ele estava e disse para apenas ajudá-lo em sua magia; que liberasse minha mente de
qualquer pensamento ou questão.
A partir daí não vi mais nada. O Mago tomou emprestado meu cérebro e se
utilizou dele para efetuar a magia sem nenhuma interferência minha. Quando “acordei” deste pseudo-transe, todos os rapazes estavam de volta, enfileirados, nos olhando
muito assustados, com as cabeças raspadas e os mantos pretos cristalizados. Sobre a
mesa havia dez cilindros de cristais verdes com uns doze centímetros de diâmetro por
cinco de altura. O Mago pegou um dos cristais-cilindros e foi até o primeiro dos jovens. Colocou uma das mãos numa das orelhas do jovem e encostou a base do cristalcilindro na outra. E começou a apertar a cabeça do rapaz com muita força, dizendo:
– Sobre a terra sagrada e sob a bondade dos Magos de Prata, com a pureza
deste cristal, com a magia que me foi dada, pela voz de séculos de poder e sabedoria
da natureza eu posso e devo modificar seu corpo, e faço isso com o consentimento
de meus ancestrais, que sempre devotaram seus dons à terra e seus habitantes, e que
guardaram e guardam seus segredos. E sob a luz desta lua que ilumina nossos sentidos, eu o nomeio como Gran-Ohr, o guardião das palavras de Ohr.
Após isso, o primeiro guardião sucumbiu aos pés do Mago. Estatelou-se no
chão desmaiado, e no lugar de uma orelha jazia um cristal-cilindro, enfiado na lateral
da cabeça pelada. Todos os outros estremeceram de medo, mas o Mago sequer olhou
para o jovem no chão. Logo foi para o segundo, que de tamanho terror nem sequer
se mexeu. E assim foi com os dez. Um após o outro receberam o implante do cristalcilindro e cairam no chão. No final, o Mago me olhou satisfeito.
– Acho que o pior desta fase está feito, Ortal. Quando eles acordarem, terão em
suas mentes parte da sabedoria que irão desenvolver em conjunto para tomar conta
das leis da Eco Justiça e proteger o conceito de Ohr.
Eu preferi não perguntar nada sobre isso, estava exausto demais, pois a cada
novo guardião que o Mago transformava, tomava minha energia emprestada. Então
cochilamos um pouco, afinal fazia tempo que não dormíamos direito, descansando
mente e cérebro.
Acordamos com os dez guardiões postados em silêncio mortal à nossa volta.
Eles já sabiam o que fazer e estavam com um ar confiante e orgulhoso no rosto. Pelo
que pude ver, os cristais estavam trabalhando bem.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Fomos para fora da câmara secreta acompanhados pelos guardiões em formação como os cristais indicavam, eu e o Mago no meio, quatro guardiões na frente,
quatro atrás e dois nos lados. Havia muita gente à nossa volta e todos ficaram espantados com o efeito que o visual causava. Os jovens com as cabeças totalmente limpas
e um cristal enfiado no lugar das orelhas esquerdas, além de um manto preto cristalizado até os pés. O Mago trajava seu manto prateado também até os pés e eu, a roupa
formal de cavaleiro, com a espada pendurada na cintura.
Dirigimo-nos até o meio do enorme pátio central da caverna, que estava muito
bem iluminada com cristais fluorescentes. Trar estava lá, bem no meio, com toda
a delegação de todas as bases à sua volta. Além disso, para minha total surpresa, o
Lorde Pompe Carmalhoc estava junto! E ainda dois cavaleiros, alguns chefes das
outras aldeias e dois duendes. Todo o povo estava presente. Era uma situação muito
solene. O Mago e eu estávamos num estado de profunda concentração perante toda
aquela gente. Então, o Mago falou:
– Trar, trago a ti, a teu povo e a todos os convidados a demonstração de nosso
poder. Para que aceiteis com louvor e sem questionamento a ordem que foi passada
a vós por mim, e que a executeis conforme especificado nos cristais. Agora trazei a
arma roubada.
Eles tinham roubado uma arma dos blasfêmicos!
Trar falou em voz alta:
– O Mago de Prata pediu-me em segredo que eu roubasse uma arma de flecha
de luz de nosso inimigo. Consegui isso graças ao próprio poder do Mago.
– E agora – disse o Mago – tu posicionarás a arma em minha direção e acionarás o gatilho.
Todos ficaram espantados, inclusive eu. E Trar respondeu, enraivecido:
– Está louco? O poder desta arma não só destruirá a você mas metade desta
caverna e todos aqui dentro!
O Mago se calou e todos ainda estavam espantados. Então, em uníssono, os
guardiões falaram com magia na voz, o que despertou terror e comoção a todos no
recinto:
– Execute a ordem.
As vozes ecoavam com efeito por todo o lugar e Trar ia levantando a arma para
nós sem vontade mas com os olhos vidrados num infinito inexistente. Quando a arma
estava apontada para nós, Trar disparou. Um enorme e possante raio partiu da arma
em nossa direção com uma força descomunal. Parecia que levara dez anos para chegar
até nós, mas sua velocidade era indescritível. Quando nos atingiu, o raio foi bloqueado
e se esfarelou numa redoma de força que surgiu dos cristais implantados na cabeça
dos guardiões. Todo o povo ficou boquiaberto. Começou a fazer comentários em voz
baixa e logo todos gritaram em conjunto:
– OHR!
Era a prova final. Nem a arma mais possante dos blasfêmicos poderia atingir o
Mago. O povo estava rindo de felicidade, o próprio Lorde Pompe Carmalhoc estava
sem palavras. O Mago, então, falou:
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Agora só nos resta esperar. Todos aqui e lá fora sabem o que fazer. Entrarei
com os guardiões e com Ortal no meio do culto daqueles malditos e nosso plano será
colocado em prática. Por ora comamos e louvemos a Ohr.
Com isso, o povo foi lentamente se dissolvendo, cada qual para seus afazeres.
Eu, o Mago e os Guardiões voltamos para a câmara secreta. Comemos e ficamos em
absoluto silêncio até a hora de nossa ida ao encontro fatídico.
Ao sairmos da câmara, havia muito poucas pessoas no lugar. Todos estavam
em seus postos cercando a cidade dos escravos. Saímos da caverna e fomos caminhando lentamente pela floresta em direção ao portal principal da entrada da cidade.
Quando chegamos, o portal estava escancaradamente aberto, com apenas dois guardas na passagem. Não foi preciso nem pensar para que eles nos deixassem passar. O
Mago havia determinado aos guardiões os mínimos detalhes. A cidade estava vazia
naquele ponto. Então paramos. Olhei para o Mago, que me olhava com um rosto sem
expressão, quase pálido.
– Boa sorte, Ortal.
Não deu tempo de responder. O Mago se transformou num plano redondo de
três metros de diâmetro e de alguns milímetros de espessura, feito de uma luz prata,
que flutuava a dois metros do chão. E que agora nos acompanhava rumo ao grande
templo no meio da cidade.
Caminhávamos na formação indicada pelo Mago, quatro guardiões na frente,
quatro atrás e dois dos lados. Eu ia logo atrás da nova forma do Mago. Enquanto
andávamos pela cidade, deserta naquele ponto, ouvíamos o discurso absurdo do que
parecia ser o “reverendo”, gritando as mais loucas aberrações pelos alto-falantes espalhados pela cidade.
Entramos numa rua principal que dava direto para o enorme templo. A visão
daquela construção, aliada às palavras frenéticas do “reverendo”, fazia da cena algo
estarrecedor. O templo era feito de pedras pretas, com uma arquitetura onde tudo
era alto, desde os portais de entrada até os vitrais, com desenhos de seres em indumentárias tecnológicas conquistando o Planeta em clima de violência e matança. Em
todas as bordas da construção havia estátuas de gárgulas com enormes asas prontas
para voar, caso avistassem algum procedimento errado por parte dos escravos. Todo o
clima ditado pela imensa catedral emanava medo. As pessoas tinham a impressão de
estar a todo o momento sendo observadas pelas pedras negras daquele imenso palácio
de terror.
Naquele momento do culto as pessoas estavam completamente hipnotizadas
pelas palavras do “reverendo”. Ele prometia uma vastidão de riquezas para aqueles
que lutassem pela “causa” do seu povo. As pessoas nem sequer se permitiam pensar
sobre quais eram essas causas de que o “pregador” falava. Estavam em tal estado de
subserviência que apenas devotavam um clamor selvagem ao locutor.
A catedral estava de tal forma tomada pelos escravos que estávamos a duzentos metros de distância e ainda havia gente para fora. Chegamos na mesma formação
perto destas pessoas que começavam a se amontoar voltadas para a catedral. Quando
chegamos bem perto, as pessoas olharam assustadas para nosso cortejo. Iam abrindo
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
caminho enquanto passávamos sem olhar para elas. Algumas ajoelhavam-se, outras
desmaiavam, mas todas estavam apavoradas, pois era algo jamais visto por aquelas
pobres almas.
Continuamos a seguir em direção à porta principal da catedral. O “orador”
continuava com seu estúpido discurso, bradando blasfêmias contra a Eco Justiça e
uma série de outras mentiras que me davam nos nervos. A multidão agora estava
quase fora de controle por onde passávamos. Houve algumas quebras no discurso do
“reverendo”, pois ele não sabia o que estava ocorrendo. Até que chegamos no enorme
portal. A catedral estava inteiramente iluminada por dentro com luz artificial. No teto
em forma de abóbada, havia todos os tipos de desenhos com difamações aos povos
que foram conquistados, inclusive com a queda do povo prateado.
Entramos com a mesma formação na catedral. O “reverendo” estava agora em
absoluto silêncio, assim como todo o resto do povo. Dois guardas tentaram nos impedir mas foram desmaterializados imediatamente. Ele, vendo aquilo, pediu prudentemente para ninguém impedir os “visitantes”, referindo-se a nós. Continuamos a andar
até o enorme palanque onde estavam o “reverendo” e toda sua laia de blasfêmicos
sentados em vários tronos, como se fossem reis do universo.
Tudo ali refletia a mais esnobe provocação à natureza. A construção se baseava
apenas na estética e não na funcionalidade. Havia desperdício de materiais. Tudo era
adornado com brilhantes e ouro apenas, em um senso estético deprimente e perdulário.
Além disso, os tronos eram feitos com partes de animais mortos! Com cabeças
acima do encosto como fossem troféus de uma matança sem significado. As roupas
dos blasfêmicos eram feitas de peles de animais mortos, mostrando que não havia
compaixão daqueles assassinos nem para se vestir. Acima do grande palanque havia
uma cúpula menor que a central, onde existia toda uma parafernália de refletores e
luzes, como na “Nosferatus” que visitamos na virada do século, havia mais de quatro
mil anos. Aliás, a essência do lugar era a mesma, o que mudava era que o povo naquele
lugar do passado parecia estar se divertindo, e neste, o povo estava sendo logrado.
Tanto o “reverendo” como todos os blasfêmicos ali presentes estavam nos
olhando assustados enquanto nos aproximávamos. Seus guardas miravam armas de
flecha-luz para nós, mas não sabiam em quem atirar.
Então, um dos nossos guardiões deu um passo à frente e esperou. Toda a iluminação do lugar diminuiu muito, não deixando o lugar na total escuridão. A “base”
do Mago estava agora no auge das atenções por todos os presentes, pois brilhava
mais que tudo. Os cristais encravados nas cabeças de nossos guardiões se acenderam
num verde fluorescente. E do meio da “base” surgiu o Mago, completamente nu, e
seu corpo estava em forma de luz. Todo o povo caiu de joelhos imediatamente, num
lamento único.
O Mago não falava mas expressava seus pensamentos, e os guardiões traduziam numa só voz, forte e rouca.
– Dirijo minhas palavras para aqueles que louvam o mal. Para aqueles que desrespeitaram um acordo com sua própria casa. Para aqueles que mataram tantos povos,
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
inclusive o meu. Deixo um aviso. Renunciai às suas maléficas intenções e vivereis.
Libertai esse povo e voltai a viver na terra como deve ser feito e nada acontecerá a
vós.
E o “reverendo”, com um sorriso sarcástico, perguntou:
– E como acha que pode vencer algo que é invencível?
As vozes dos guardiões ressoaram em conjunto outra vez.
– Sou o Mago de Prata – tanto o “reverendo” como os outros blasfêmicos
fecharam o sorriso imediatamente. – Sim! Tende medo, seus canalhas! Tenho todo o
poder dos Magos nas mangas das minhas almas. O povo que vós tentastes destruir e
falhastes. Agora deveis saber que não estou só.
Estalou os dedos e um imenso feixe de luz saiu de sua “base” flutuante até o
céu, fazendo um rombo na cúpula da catedral.
Imediatamente ouviu-se um enorme grito de guerra vindo lá de fora.
– Ohr!
Era nosso exército.
– Tenho um exército cercando sua catedral. Libertaremos este povo através de
minha magia e logo, vós não conseguireis mais os elementos de que necessitais para
vossa sobrevivência nas vossas ridículas cidades voadoras! Pois cercaremos vossas
instalações e deixarvos-emos isolados do mundo, isolados de vossa matéria-prima
para a feitura do mal que quereis espalhar por nosso mundo. Não tendes opção: ou
vos rendeis ou sucumbireis.
Mas o “reverendo” falou:
– Ah! Temos uma opção, sim, caro Mago.
Fez um clique com a mão e um de seus atiradores lançou um raio em direção
ao Mago. Para meu total espanto, a flecha atingiu o Mago em cheio no peito! Ele
caiu para trás, nos meus braços. Imediatamente, um grito de lamento surgiu no ar,
estraçalhando todos os enormes vitrais, que começaram a cair muito vagarosamente,
enquanto todo o ambiente se tornava verde com sombras negras. Ninguém se mexia.
O “reverendo” estava boquiaberto com o sentimento de lamento que pairava no ar.
Parecia que o mundo caíra na mais absoluta tristeza e que tudo e todos compartilhavam dela.
Eu estava agora ajoelhado com o Mago nos meus braços. Num sussurro, ele
me chamou para perto e disse para eu “tomar isso” e prosseguir meu destino. Aproximou seu rosto do meu, beijando meus lábios e passando-me sua centelha de vida. A
multidão estava ainda paralisada com toda a cena. Após o beijo, o Mago desapareceu
de meus braços. Uma lágrima começou a correr por meu rosto, logo meu corpo estava
em prantos. Mas o espaço-tempo era controlado agora por mim.
Parecia que eu era o único que chorava, mas todos os presentes estavam chocados. Ninguém se mexia, nem mesmo os blasfêmicos. Os próprios guardiões estavam parados, olhando para a frente como se nada tivesse acontecido. No entanto, o
guarda que tinha atirado contra o Mago tentou me atingir, mas seu raio foi bloqueado
pelos guardiões. Após meus soluços, veio o silêncio. Senti um fio de sangue surgir
em minha boca, eu continuava ajoelhado com a cabeça baixa. Comecei a sentir meu
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
rosto ficar quente. Meu estômago começou a revirar, num instante não sentia mais
meu corpo. Estava flutuando, sentia o Mago despertando dentro de mim. Agora eu
era a raiva. Estiquei meu corpo daquela posição. Já não estava vestido e meu corpo
não era mais o meu. Era sim um gigante que ia crescendo. Eu olhava com ódio para
baixo, vendo aqueles que mataram o corpo do Mago, o corpo que eu amava, ficando
cada vez menores. Com um golpe, fiz toda a cúpula da catedral explodir para fora.
Os atiradores tentavam em vão me acertar, mas os guardiões estavam ali protegendo
aquele corpo em gestação. Até que parei de crescer e disse, com algo que não era a
minha voz, mas, sim, o estrondo de mil trovões:
– Eu sou o princípio do ódio, a primeira forma de Ohr. E pela sua necessidade
nasci aqui neste antro. Todos os presentes serão testemunhas da minha ira.
Soprei o ar formando de minha boca nuvens carregadas e negras que taparam
a lua e as estrelas. E das nuvens surgiram os raios. Todos os escravos saíram correndo
para fora da cidade, sendo recepcionados pelo exército do Lorde. A função do exército
era de apenas dar apoio moral às pobres almas que fugiam, protegendo-os da tormenta
que surgiria.
Os blasfêmicos não tiveram a mesma sorte. Com a minha tempestade de raios,
ventos, pedras e água atingindo sem piedade suas cidade e derrubando-as uma a uma
dos céus, se espatifando num mar de lama, carne e sangue. Formaram uma cena de
terror feita da morte do povo que ali morava. Os comandantes do Povo Blasfêmico
que estavam na catedral foram aprisionados pelos guardiões. Neles foram implantadas
a magia da dor, da dor eterna. Pois não mereciam nem o descanso da morte, mas ver
seu horrendo mundo ruindo, ver que suas intenções de conquista daquilo que era para
a vida de todos foram extintas por uma criança, por um pequeno Mago de prata.
Eu, na imensa forma que era agora, desaparecia, fluindo na energia da natureza. Não estava em lugar algum, apenas sentia todas as coisas como sempre senti.
Surgiu então, num sussurro, a voz do Mago em meus ouvidos inexistentes:
– Ortal, graças a ti Ohr foi constituído no nosso plano.
– Mas o que é Ohr? – perguntei.
– Ohr é um meio entre duas inteligências. Nós, do povo prateado, sempre sonhamos em desenvolver um intermediário entre a inteligência humana e a inteligência
da natureza divina. Agora conseguimos. Mas isso foi feito pela sua intervenção.
– Como assim?
– Tínhamos que executar o feitiço para a feitura de Ohr através de uma imensa
carga energética que nunca possuímos. Vimos em ti essa possibilidade e demos decorrência a nossos planos. Existe um equilíbrio entre o amor e o ódio que é a maior energia que o ser humano pode conceber. O amor tu já possuías, faltava o ódio, que era
algo que já estava implantado mas precisava ser desenvolvido. Assim, com a minha
morte carnal, sabíamos de antemão que tu fornecerias essa energia na hora e no local
em que precisássemos. Com a minha centelha de vida foi possível a realização da
magia. Agora temos Ohr em pleno funcionamento. Estamos ligados tanto à natureza
divina como também à natureza humana, e poderemos, quem sabe, um dia, juntar as
duas.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Quer dizer que sacrificaste teu corpo para que o ódio surgisse em mim? –
falei com ar de perplexidade.
– Sim. Foi algo que tive que escolher sem que pudesses participar. Infelizmente tivemos que contar com tua ajuda sem te pedir permissão. Mas sabíamos que
concordarias, pois sabemos como é feita a essência de tua alma. Assim, sacrificamos
não só meu corpo, mas também nossa paixão carnal.
– Isto significa que jamais te verei de novo? – Eu estava aterrorizado com tal
possibilidade.
– Tu podes escolher o que quiseres, Ortal. Mas nós não podemos nos ver de
novo, nem mesmo conversar. Pelo menos nesta realidade.
– Por quê?
– Porque agora eu faço parte de Ohr, assim como o meu povo. Esse foi meu
destino. Fazemos parte de um outro contexto.
– Qual seria o lugar em que eu poderia estar mais próximo de ti de novo? –
perguntei.
O Mago não respondeu, teve medo do que estava me ocorrendo.
– Sim, Mago! Vou voltar no tempo de novo! Voltarei a onze de abril de mil
novecentos e noventa e oito. Um dia depois de nossa saída do passado. Vou me encontrar com Macoi! E com os poderes que eu tenho...
– Tu não podes. Essa é uma possibilidade inaceitável. Se fores ao passado,
poderás interferir neste presente que tanto nos custou realizar.
– Mas isto é um absurdo! Não pode estar acontecendo. Nós temos que ficar
juntos! Todos apenas me usaram! Usaram meu amor por ti!
Ele nada falou. Mas comecei a sentir algo que ele me passava pelas entranhas
do vórtice que nos ligava.
– Como pudeste, meu pequeno amigo? Tu sabias de tudo desde o início, não
sabias? Usaste de tua beleza e de teu carisma para me conquistar e dar vazão ao plano
de tua família. Nunca pensaste que eu pudesse estar ligado a ti mais do que tudo?
Nunca pensaste que eu realmente te amava? E ainda amo? Como pudeste? Por Deus!
O Mago estava agora em prantos, sua voz ecoava nas suas lágrimas, que não
poderiam existir, mas que eu sentia.
– Ortal, as coisas apenas aconteceram. Existia um plano, mas jamais poderiam
imaginar que chegasse a este ponto. Ou melhor, contavam com isso, mas de outra
forma. Devo-te confessar algo que eles nunca puderam imaginar que aconteceria.
– E o que é? – perguntei, em lágrimas.
– Ortal, eu também te amo.
– Então faze algo! Volta! Vamos viver juntos como sempre deveria ter sido.
– Não posso. Isso quebraria uma lei inviolável. Na verdade já estou quebrando
esta lei apenas por falar contigo. Ortal, devo ir. Mas há um meio, acredito que exista!
Isto não pode ser quebrado desta maneira.
E sumiu.
Eu estava agora em meio aos escombros do que era o palácio negro. Então pensei: “malditos sejam. Que mundo é esse afinal de contas? Como pode ter ocorrido tão
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
rápido, como eu pude ter sido tão negligente? Como pude deixá-lo escapar e morrer
nos meus braços? Nos meus braços...”
Levantei em meio aos risos dos que festejavam a vitória daquela guerra imunda. Vi que muitos vinham correndo em minha direção para cumprimentar-me, mas
eu definitivamente não poderia ficar ali. Não saberia olhar de novo para o Lorde, os
cavaleiros e para os seres dos outros povos que ajudaram a fazer o medo surgir, como
o Mago tinha estipulado.
Dei as costas a tudo isso e comecei a jornada a lugar nenhum, pois aquele
mundo já não me pertencia. Não poderia voltar como um herói para minha aldeia, pois
eu não me sentia herói nem de perto. Muito pelo contrário, era um nada, uma alma
penada dentro de um corpo sem rumo.
Entrei pela mata e o primeiro lugar que me veio à cabeça foi voltar à cidade
abandonada do povo prateado. Estava escuro, eu não tinha nem alimentos nem armas.
Uma forte chuva começou a cair e me lancei ao abandono. Nada me guiava. Andava
a esmo por entre as densas florestas para chegar ao oceano.
Andei por dias e noites nas cinzas entranhas de meu sofrimento. Parecia que a
cada respiração me sentia mais atordoado, mais cansado, mas não parava. Consegui
finalmente chegar ao oceano. Andei incansavelmente pela praia à procura de um barco
ou qualquer coisa que pudesse navegar. Eu estava completamente fora de mim. Não
consigo imaginar quanto tempo passei andando pelas areias brancas. Se foram dias ou
semanas, não saberia dizer.
Da única coisa que realmente me lembro é que existia uma melodia incansável
vindo todo momento à minha cabeça. Era dramaticamente triste, com uma voz muito
grave, e dizia: “não chore por ele. Ele se matou”.
Lembro-me de ter avistado um barco com vários homens tentando desencalhálo. Cheguei perto e todos os homens vieram a meu encontro, muito alegres me pareceram. Quando o primeiro chegou para me cumprimentar, joguei minha mão contra
seu rosto. Seu pescoço quebrou com tamanha força que eu possuía. Os outros vieram
chocados para interferir, mas já era tarde. Então voltaram-se contra mim, mas de nada
adiantou. Dos oito que tentaram me golpear, se bem me lembro, apenas três saíram
cambaleando pela água que cobria nossos tornozelos.
Tomei a embarcação e entrei mar adentro em direção à cordilheira dos Diamantes. Tenho plena certeza de que minha magia me guiava, pois não imagino como
poderia ter atravessado tal labirinto.
O resto da viagem foi completamente apagado de minha memória. Do que eu
tenho plena certeza é que estou agora aqui, dentro da sala de cristais do povo prateado.
Como vim parar aqui? Não sei. Apenas sei que tenho muitos suprimentos e estou
trancado relatando toda esta história a este memo-cristal que vocês estão sorvendo.
Devo dizer que tomei uma dose excessiva de laxenema para conseguir me lembrar com detalhes de tudo, e mesmo assim falhou ao final. Por ter tomado esta dose
creio que vou logo sucumbir num sono que acredito irá durar dez mil anos. Devo dizer
ainda que não existe nada em minha memória tão forte como o Mago de Prata, o ser
de carne, osso e magia que de dentro de minha alma nunca sairá.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
LIVRO DOIS
O Mago Neres
“Há dez mil anos vivemos e há dez mil anos morremos da mesma forma. Todos
nós, sem exceção, teremos a mesma forma de morte. Sempre nos confins da fronteira
da auréola, a fina terra que se expande ao espaço infinito. Mas sabemos que um dia
morreremos de outra forma.”
“Um dia a auréola chegará aos confins do universo e então surgirá o messias, o
messias em que será encarnado o Mago de Prata, e então morreremos por Ele.”
Os anos passaram rápido para Ket. Ele era mais um dos pequenos que entravam para o vasto campo do aprendizado da magia prateada. Ele segurava firmemente
a mão do grande Mago Neres enquanto via seu pai ir embora. De algo ele sabia, nunca
mais iria vê-lo. Sua mãe estava ali à frente. Abanando as mãos e rindo, ela gritava:
– Não chore por nós, nós nos mataremos! Nos mataremos por você e pelos que
te seguem.
Mas Ket chorava. Era apenas uma criança e não conseguia entender por que
deveria deixar seus pais irem embora. Na verdade ninguém sabia, nem mesmo o
enorme Mago Neres, que agora tentava puxá-lo para si, para evitar mais sofrimento.
– Para onde eles vão, Mago Neres, para onde? – perguntava.
Mas o Mago não respondia, pois não tinha a mínima ideia. Apenas sabia que
um dia ele teria de ir também. Sabia que, ao ficar adulto, quase velho, seria chamado,
e teria de ir para nunca mais voltar. Mas todos sabiam de uma coisa: eles todos iriam
de encontro à morte.
Agora o grande Mago carregava Ket nos braços. Este se agarrava ao pescoço
do Mago, pousando sua cabeça em um dos seus enormes ombros, ainda derramando
lágrimas.
– Acalme-se, Ket. Logo estaremos em Cosmo, o lugar para onde vão todos
aqueles que se perdem muito cedo de seus pais e onde são, por dádiva de Orh, instruídos na magia prateada. Não é algo que você sempre sonhou?
– Sim, todos sonham, mas a que preço? – perguntou o menino.
– Eu sei, Ket. Eu também tive que pagá-lo. E era menor que você! Agora,
olhe – o Mago parou. – Não importa para onde seus pais foram, quem os chamou foi
o próprio Orh! Sabemos que Ele é o Deus, não sabemos?
– Não, não sabemos – disse o menino.
– Como ousa!
– Alguém já provou? Como pode dizer que existe um Deus, que você tem que
dar sua vida a Ele? E cadê esse Deus que nunca aparece? Nem sabemos como Ele é!
– Veja, Ket – disse o Mago. – Vamos para Cosmo, será muito rápido se continuarmos andando pelas estepes desertas; quando chegarmos, você aprenderá muita
coisa, coisas que para o povo em geral devem ficar omitidas, pois são informações
reservadas apenas aos Magos. E você será um deles, com a graça desse Deus contra
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
quem blasfemou. Por isso me prometa que nunca mais irá dizer um absurdo desses
novamente!
– Está bem, eu prometo. Mas posso fazer apenas uma pergunta?
– Que seja breve.
– O nome dele é realmente Orh ou existe algum outro?
– Bem, acho que você merece saber isso antes de chegar. Ele é conhecido como
Orh pelo povo em geral, mas sabemos que existem dois outros nomes envolvidos com
Ele, e sabemos que sem eles Orh não existiria.
– E quais são estes nomes?
– É muito estranho falar isso sem a proteção da Ordem do Cosmo, mas está
bem. Um deles não sabemos e o outro é Mago de Prata. Agora se acalme, está bem?
– Certo.
O Mago tomou Ket no colo de novo e começou a caminhar. Logo seu passo
aumentou e, como Ket estava quase dormindo, assumiu o passo das aves. Flutuou
sobre o solo a alguns centímetros e começou a correr como o vento. Não demoraria
para que chegassem.
Quando Ket acordou, notou que eles estavam a uma grande velocidade atravessando as estepes geladas; seu pequeno corpo começara a tremer. Ao perceber isto, o
Mago enfiou Ket dentro de suas vestimentas. Com o contato do corpo do Mago, Ket
logo sentiu-se melhor. Tentou entender o que estava ocorrendo. Viu as estepes passarem a grande velocidade. Teve quase um espasmo quando notou que estava flutuando
nos braços do Mago, mas nada perguntou. Fechou os olhos, encostou o rosto no ombro do Mago e pensou: “meus pais estão mortos, eu posso sentir.” Começou a chorar
de novo.
Após alguns instantes, o Mago tocou em seu cabelo.
– Pequeno Ket, veja, já podemos perceber Cosmo, o grande palácio do saber!
Ket descolou o rosto do ombro do Mago e olhou para a frente. Ficou pasmo!
Era uma construção inteira em cristais! Quase riu, mas estava muito triste para isso.
De qualquer maneira, seus olhos soltavam lágrimas, não só devido ao vento que quase
os perfurava, mas pelo absurdo arquitetônico que era a construção. Ele não poderia
dizer se aquilo que sentia era bom ou mau, mas apenas conseguia discernir algo em
sua alma, que nunca sentira antes.
Cosmo ficava no meio das estepes desérticas geladas. Aparentemente nada existia em volta, apenas gelo. O que poderia se notar neste momento eram duas formas
bem distintas, uma retangular, pousada no solo e a outra, um cubo na vertical, rasgando o espaço e flutuando, tão grande que poderia encostar em uma estrela.
O Mago se aproximava rápido e ficou feliz em perceber a mudança no humor
de Ket.
À medida que iam chegando mais perto, Ket ficava mais e mais abismado.
Logo notou que a construção eram só e apenas as duas formas que tinha visto anteriormente, nada de detalhes intrincados como imaginara.
– Você só notará os entalhes nos cristais quando estiver bem perto. O lugar é
desse tamanho para que você nunca esqueça do seu tamanho e do tamanho de Orh –
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Marcelo Paciornik
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disse o Mago Neres, orgulhoso.
Agora eles estavam praticamente embaixo de uma das faces do grande cubo.
Era como um céu feito de cristal, completamente liso e sem uma cor distinta, algo
quase verde muito escuro. Ao notar isso, Ket pensou: “este lugar é muito triste.”
– Sim – disse o Mago, lendo os pensamentos do garoto. – Aqui todos rezam
pela volta daquele que se foi.
Quem se foi? – perguntou Ket.
– Você logo saberá, querido irmão.
“Ele já me considera um Mago!” pensou Ket, contente.
Eles demoraram uma eternidade para chegar à frente do local. Aparentemente
não existia entrada alguma e, na velocidade em que estavam eles, iam simplesmente
se esborrachar na parede de cristal. Ket estava assustado com esta possibilidade, mas
imaginou que o Mago sabia o que estava fazendo. Começou a perceber uma série de
desenhos incrustados ao longo da parede da construção, que parecia não ter fim. Olhava de um lado ao outro e via as paredes se perderem na linha do horizonte.
Quando estavam quase a colidir, um imenso buraco abriu-se dando passagem
aos dois. Estavam dentro da grande catedral. O Mago foi diminuindo a velocidade
até voltar a andar normalmente. Então Ket descobriu que na verdade a construção se
situava bem no meio de uma grande circunferência. O muro de cristal, laranja internamente, que acabaram de atravessar, dividia as estepes geladas de uma enorme floresta
azul, que era onde eles estavam andando naquele momento. A floresta era densa, mas
eles andavam por um caminho absolutamente reto e largo feito do mesmo cristal do
muro.
Parecia ser muito antiga. Ket podia ouvir gritos de pássaros que ecoavam num
canto frio e triste. O visual, na realidade, era muito belo, mas ao mesmo tempo parecia
carregar um fardo muito pesado. Ket lembrou-se de uma vez em que seu pai falara que
existia um mundo muito antigo, em que os homens enterravam os mortos num mesmo
lugar a que as pessoas iam para visitá-los. Ket pensou, “que lugar triste deveria ser”,
e a mesma sensação que teve ao imaginar aquele lugar, estava tendo ao ver a imensa
floresta.
– Vamos – disse o Mago. – Já podemos ir. Eles já sabem que aqui estamos.
O Mago pegou Ket no colo de novo e começou a andar como o vento. Voaram
a uma grande velocidade pela estrada laranja, atravessando a floresta. Após um interminável momento, Ket viu a ponta do enorme cubo que mal tocava o chão. Por uma
das arestas, os dois penetraram e subiram a uma enorme velocidade até a metade do
gigantesco edifício. Ket estava a ponto de desmaiar, não só pela velocidade com que
subiam mas também por ver o mundo abaixo de si, pois o cristal era completamente
transparente para quem olhasse de dentro.
Finalmente chegaram a um grande salão redondo, onde alguns Magos os esperavam. Estavam todos vestidos de prata.
Foi uma solenidade rápida. Deram um manto prateado a Ket e ao Mago Neres,
que trajava roupas comuns. Com muito cuidado, implantaram um cristal atrás da orelha de Ket e disseram:
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– Com seus sentidos irá saber do nosso segredo. Este cristal irá ajudá-lo a compreender o que agora você se tornará.
Atravessaram o salão em direção a uma escadaria em caracol, pela qual subiram. Chegaram a um outro salão que parecia dar a volta em torno de outro e do
próprio cubo. Ket podia ver a grande floresta lá embaixo, a imensa vastidão de terras
que ia crescendo no espaço de um lado e do outro. Boquiaberto, viu pela primeira vez,
quase como um pequeno ponto, o Planeta Azul, que dera início ao grande anel de terras que dividia o universo.
O Imperador Schaia II
A nave parou em frente a Plan Ex, o planeta-sede do Imperador. A visão do
Planeta era estarrecedora. Mas a tripulação já estava cansada de esperar a liberação
de entrada no Planeta.
– Não posso acreditar que estão nos fazendo esperar tanto tempo – disse Taih,
um dos exploradores do espaço extra-colonial. – As informações que trazemos não
são um mero estudo de habitantes do mundo extremo.
– Esses caras são uns palhaços! – falou Fahiat, seu colega de expedições e renomado cientista inter-galaxial. – A burocracia desta galáxia pode colocar abaixo toda
a megalomania do nosso Imperador!
Os dois caíram na gargalhada.
“Plan Ex elimina microcírculo de bloqueio, transfusão iniciada.”
– Ah, finalmente! – disse Taih, ouvindo a voz que dava as instruções de entrada.
A nave foi deslocada pelo complexo circuito de transferência até a sede da
inspeção, localizada na própria atmosfera do Planeta. A travessia foi lenta.
Após uma eternidade, a nave dos dois exploradores estava sendo pousada nos
arredores do palácio Imperial.
– Meu deus! – disse Fahiat. – Nem mesmo em Melfx poderíamos encontrar
tamanho esbanjamento!
– É, Fahiat. É nisso que são gastos todos o tesouros que encontramos para esses burocratas de sangue real!
A comitiva era de apenas vinte guardas à porta da nave. Os dois desceram da
nave. Foram levados solenemente pela escolta, atravessando os alegres jardins do palácio real. O sol estava se pondo naquela parte de Plan Ex, o que dava ao cenário um
quê de sonho. Enquanto caminhavam, o chefe de protocolo falava:
– Sabemos dos seus feitos, senhores. Estamos honrados com sua presença na
sede Imperial, esperamos que gostem da arquitetura deste palácio. A meu ver, é um
tanto inóspita. Prefiro a sede central em Clancar, do outro lado do meridiano. Mas
acredito que sirva para sua estadia. Não sei se o Imperador avisou, mas terão que ficar
por aqui por mais tempo do que imaginam. Ele não está muito interessado nos seus
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últimos achados de Carbo, por isso gostaria de mostrar uma nova pedra que começou
a colecionar para a construção de um novo palácio que dará para seu último filho, que
acaba de nascer.
“Estão vendo aquele pequeno riacho? Pois bem, quando o sol se põe completamente ele vira uma lagoa, e imediatamente começa a jorrar águas escaldantes do meio
do Planeta até mais de dois quilômetros de altura. É o maior chafariz do universo, não
é maravilhoso?”
Os dois cientistas caminhavam sem notar nada. Para eles o que tinham começado a estudar há mais de seis meses nos confins da zona intermediária, sobre a qual nem
o império tinha declarado posse, era muito mais abismal do que aquele palácio real.
Ficaram em completo silêncio, o que tornou o monólogo do chefe de protocolo
mais irritante. Ele relatava, a cada estátua, todos os feitos dos mais de cem imperadores que estavam imortalizados naquela área do jardim.
Ao chegarem à imensa porta de entrada, um serviçal totalmente abarrotado
de joias chegou correndo ao encontro deles. Com uma voz frenética e gesticulando
muito, falou:
– Senhores, senhores, me perdoem, mas o Imperador está ocupadíssimo!
Acredito que não poderá recebê-los agora. Terão que ir para seus alojamentos, onde
poderão descansar, e creio que em dois ou três dias o Imperador os chamará para um
desjejum ou, quem sabe, um jantarzinho, como preferirem.
Fahiat estava pasmo de raiva.
– Olhe aqui, lacaio imperial! O que temos a relatar para o Imperador é de extrema urgência, diz respeito a descobertas de altíssimo nível. Queremos uma audiência imediatamente!
– Ora, ora. Mas o nosso cientista está irritado! – disse o chefe de protocolo. –
Saiba que não podemos receber ordem de seja lá quem for. Mesmo vocês, cientistas,
que julgam ser os donos da verdade, não podem nos dar ordens!
– Escute aqui, seu pequeno merda. – disse Taih, indo em direção ao chefe
de protocolo e não ligando para as armas que os soldados apontavam para ele. – Se
você gosta deste Planeta e da merda de palácio onde você puxa o saco deste monte de
banha que se diz que governa o universo, me deixe passar, pois trago comigo ordens
do Plano Superior.
– Ora, ora. Se é o Plano Superior que quer falar com urgência com o Imperador,
por que teria mandado dois meros mortais para lhe dizer qualquer asneira que seja?
Os guardas estavam a ponto de disparar as armas. Nesse momento, Fahiat
mandou um sinal para as naves do Plano Superior, que aguardavam em estado não
detectável em órbita de Plan Ex.
As naves se posicionaram em manobras ofensivas, imediatamente soando o
alarme geral do Planeta.
– Pois bem – disse Fahiat. – Os meros mortais foram classificados há algum
tempo como prioridade de plano. Por isso, estamos com uma escolta significativa
para transformar seu Planeta em um mero buraco-negro. Como sabíamos da prepotência do Imperador, resolvemos trazer nossos guarda-costas. Desejamos uma audiência
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imediatamente.
A confusão no Planeta inteiro era total. A tentativa de fechamento da camada
atmosférica falhou imediatamente, pois quem controlava a energia para tal feito era o
Plano Superior. Guardas corriam para todos lados e o alarme gritava feito louco. Os
únicos que não se mexiam eram os dois cientistas e o mestre de protocolo, que tentava
inutilmente dizer à central de forças que não se tratava de um ataque, mas apenas uma
mostra da capacidade bélica do maldito Plano Superior.
Finalmente os cientistas estavam dentro do palácio propriamente dito, acompanhados da inevitável escolta e do pomposo chefe de protocolo. A confusão lá dentro era mais alarmante que fora. Com um pouco de paciência, o chefe de protocolo
conseguiu explicar a situação ao comando. Pelo menos o alarme parou. Em meio à
confusão, os dois cientistas foram levados até um salão que permanecia alheio ao
tremendo terror externo.
– Ótimo, agora que vocês conseguiram tumultuar a paz do Planeta inteiro,
posso saber pelo menos do que se trata para fazer com que o Imperador possa receber
vocês?
– Trata-se de uma informação fase oito, o que o senhor, como chefe de protocolo, deve saber que é de extremo sigilo – disse Taih.
– Ah, é claro!
– Cale-se – disse Fahiat. – Fomos escolhidos apenas para o transporte da informação. A informação em si deve ser dada por um próprio Extuártico.
O chefe de protocolo ficou branco.
– Você quer dizer que carregam em si um Extuártico? Como... por que não
falaram antes?
– Para não criar pânico. Sabemos que o Império externo não recebe um Extuártico desde o começo do acordo. Temíamos que, se a população soubesse, fosse criada
uma expectativa emocional perigosa para o selo e para o pacto. Devo lembrar que o
senhor deve ser morto depois de dar esta informação ao Imperador.
O chefe de protocolo já estava hipnotizado pelo cientista. Agora ele não falaria
nada até ver o Imperador, sua informação seria passada imediatamente e todos os presentes seriam mortos pelo próprio chefe, que se mataria em seguida.
Alguns instantes depois, o Imperador entrou sozinho no salão onde os cientistas estavam. Olhou para os dois com ódio e disse friamente:
– Sigam-me.
Eles desceram uma enorme escadaria em caracol e se confinaram os três em
uma pequena sala completamente hermética.
– Chamem o Extuártico – disse o Imperador.
Eles estavam de pé e o Imperador estava com a mão em sua espada, no caso de
aquilo ser uma emboscada, o que particularmente ele preferia que fosse.
Os dois cientistas conectaram dois pedaços de placas de Tincadium que carregavam no pescoço. Nesse momento, o Imperador tirou a mão da espada e arregalou
os olhos. Com aqueles dois pequenos pedaços de Tincadium ele poderia comprar mais
um império igual ao seu!
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Após feita a conexão, os dois cientistas se afastaram, pois sabiam o tamanho
da forma que viria. Um ser imenso dentro de um lóbulo gigante apareceu, a sala hermética parecia ser pequena para tamanha criatura.
Os olhos enormes de peixe olhavam para o Imperador com uma expressão
sarcástica, por sua boca entrava e saía um líquido esverdeado que era logo absorvido
pela água do lóbulo gigante. O Imperador ouvira falar das formas dessa criatura, mas
nunca imaginou que veria uma na vida.
– Estamos contentes em ser recebidos pelo Imperador – disse o Extuártico,
com a voz rouca que saía pelos painéis de amplificação do lóbulo. – Através dos tempos mantemos um acordo de amizade. Para nós, o tempo nada significa. Porém, para
vocês... faz milênios... Não gostamos do espaço externo, não gostamos de estar aqui
– sua voz estava ficando um pouco irritada. – Selamos um acordo para a transferência
energética para sua massa.
– Sim – disse o Imperador.
– Seus bruxos trabalham para nós – o Extuártico se referia aos cientistas.
– Sim – disse o Imperador. – Sabemos disso, faz parte do acordo.
– O que mais faz parte do acordo? – berrou o Extuártico, dando um tremendo
susto no Imperador e nos dois cientistas.
– Que o Império tome conta do espaço externo e faça florescer a Ordem Universal, mesmo que isso possa gerar a guerra entre os povos. E mesmo que haja a guerra, sabemos que ganharemos, pois temos a sua energia e a energia do espaço interno.
– Nós achamos que vocês haviam esquecido desta parte do acordo – disse o
Extuário.
O Imperador estava pasmo.
– Como? Como assim? O que fizemos, ou melhor, deixamos de fazer, que
incomodasse a Ordem Universal?
– Nós dormimos pouco – disse o Extuártico.
O Imperador ainda esperava algo a mais quando os três desapareceram da sala
hermética. Soltando um suspiro de decepção, disse:
– Agora eles podem desaparecer mesmo dentro de uma sala hermética.
Cosmo
Ket caminhou por sob um imenso portal. Estava ainda em silêncio mórbido,
pois nunca tinha visto um Planeta tão de perto, quanto mais o Planeta Azul, a casa
onde a lenda dizia que foi criado Orh. Sentia uma espécie de estranheza quanto a essa
ideia. Como poderia um Deus ter vindo de um Planeta, e por que nunca, ninguém dessas terras tinha ido até lá para verificar a veracidade daqueles fatos? Estava tão absorto
em seus pensamentos que não percebera onde tinha entrado.
Tratava-se do maior espaço que já conhecera. Embora sempre tivesse vivido
nos campos abertos, jamais, sequer, podia imaginar a existência de um lugar como
aquele. Tentou entender que parte do cubo era aquela.
Bem podia lembrar que uma das pontas do imenso cubo quase tocava o solo,
desta forma, o cubo se posiciona na vertical, com uma das pontas para o chão a outra
para o espaço e as quatro restantes para os lados. Portanto, eles estavam exatamente
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na metade da altura do cubo, e, certamente, a parte com o maior diâmetro. Ali cabia
aquela imensa abóbada, para a qual olhava agora do portão pelo qual acabara de entrar.
Seus sentimentos quanto ao Planeta Azul se foram. Aquilo que ele estava olhando era um Planeta à parte! Mas como se fosse oco e todas as pessoas estivessem
na parte de dentro.
Quando eles começaram a avançar para o centro, andando pelo interminável
corredor, Ket notou que todos ali estavam em estado de transe. Na maioria eram crianças como ele, uns um pouco mais velhos, outros mais jovens. Na verdade, os únicos
adultos ali eram os grandes Magos que o cercavam. Todos ali dentro estavam vestidos
de maneira igual, com o manto prateado caído sobre os corpos. Ao observar isto,
Ket notou que as crianças estavam ajoelhadas, como que rezando, mas os mantos
flutuavam no ar. Então, quando os portões se fecharam atrás deles, ele finalmente entendeu. Com a leve brisa ocorrida pela expansão de ar dos portões ele viu os mantos
esvoaçarem por um pequeno momento. Todas as crianças estavam ajoelhadas no ar!
Estavam voando!
Continuou andando, tentando não demonstrar sua emoção diante do que estava
vendo, o que era um tanto penoso para ele, não só pelo tamanho do local mas pela
forma como tudo ali era feito. Um mundo absurdamente inconcebível. Em primeiro
lugar, o teto só era percebido porque sua forma arredondada e a transparência do
material de que era feito distorcia o espaço externo, isto é, Ket podia ver todo o infinito espaço com estrelas e Planetas e ao mesmo tempo sentir-se dentro de um vão
perfeitamente esculpido no cubo que o continha. Outro aspecto impensável do lugar
era a iluminação. Para cada criança existia um pequeno cilindro de cristal verde que
Ket, estarrecido, percebeu que flutuava, fazendo com que a chama que saía da sua
ponta ficasse exatamente na altura das mãos das crianças, unidas em frente aos olhos.
As crianças eram um espetáculo à parte. Aparentemente podia atravessar um
meteoro pelo grande templo que elas não se mexeriam. Elas sequer respiravam!
“Que mundo absurdo é esse?”, perguntou-se Ket. “Será que eu farei parte disso
tudo? E ficarei rezando aqui para sempre? Pode ter certeza que não. Vou fugir logo,
logo.”
Mas Ket continuava a andar por entre os Magos. O corredor continuava e continuava, e quanto mais andava, mais crianças ele via. Começou a pensar sobre sua
mãe. Lembrou uma vez em que estava correndo pelas estepes, perto de sua casa. Seu
pai colecionava cristais e estava longe, em alguma mina no setor setentrional.
Tentava de alguma forma conseguir que um pássaro feito por ele de cristais levantasse vôo. Ele amarrara o brinquedo com um pedaço de fibra que o pai usava para
empacotar os cristais que vendia. Mas o pássaro apenas flutuava por instantes e depois
caía sobre o alto gramado. Ket só conseguia encontrá-lo graças ao resto de fibra que
estava enrolada em sua mão.
Em certo momento, perseguia a linha quando percebeu que tinha ido muito
longe de casa. Estava quase perto dos precipícios negros. Sabia muito bem que não
podia ir lá sem a companhia de alguém mais velho, pois os penhascos eram traiçoeiros.
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Mas viu algo no céu que lhe chamou a atenção. Era um imenso meteoro, na iminência
de colidir com o solo. Correu para os penhascos e observou a queda da gigantesca
pedra.
Mas um fato muito estranho aconteceu. Quando o meteoro iria colidir, o chão
se abriu. E Ket, boquiaberto, vislumbrou alguma coisa que poucos conseguiram ver. O
outro lado do mundo. Ele viu que o solo era uma fina camada e do outro lado ele vira o
espaço, o mesmo espaço que estava agora sobre sua cabeça, mas com outras estrelas e
Planetas e em posições diferentes! O meteoro passou pelo buraco que logo se fechou,
formando o mar que estava antes lá embaixo dos precipícios negros.
Uma luz esverdeada tirou-o de seus devaneios. Vinha de longe, no corredor.
Só então notou que aquela luz se encontrava bem no meio do templo e que todas as
crianças estavam posicionadas de frente para ela. Após mais um enorme tempo de
caminhada, eles chegaram até a luz e se ajoelharam em frente. Ket não conseguia
olhar para ela. Mantinha os olhos fechados, até que um dos magos falou:
– A luz agora vai escurecer, não olhe para o que surgir. É a própria referência
ao Deus. Você deve saber de algo que jamais pode sair deste templo. Orh é apenas
um nome para o povo, nós o chamamos de Mago de Prata. Após o que Ele lhe falar,
você deve nos comunicar secretamente, então caberá a você entender sua missão e
realizá-la, para preservar o Mago e nosso mundo. Lembre-se de que não poderá olhálo diretamente. Todos os que olharam ficaram cegos e foram banidos da existência
neste mundo, nem suas mortes foram louvadas para a expansão do anel.
“Concentre-se, abaixe a cabeça e reze por ele.”
Ket fixou sua testa nas pontas de seus dedos unidos. Seus olhos estavam tão
fechados que seus músculos da face começaram a doer. Sentiu então que a luz do
ambiente começara a diminuir. A luz, que antes era muito forte e transpassava suas
pálpebras, agora sumia em uma total escuridão.
Não sentiu nada. Ninguém falou nada. O silêncio era absoluto. Pensou que o
mago se enganara, que simplesmente esse deus era uma farsa, que tudo aquilo não
passava de um truque, e para provar que estava certo, resolveu desmentir a si mesmo
tudo aquilo.
Abriu os olhos e deu de encontro com o Mago de Prata.
Quase soltou um berro com o que vira! Era o espectro de uma criança um
pouco maior do que ele, completamente nu em cima de um pedestal enorme.
O Mago era branco como a neve. Tinha o corpo completamente liso, mas suas
linhas eram extraordinariamente perfeitas. Ket estava boquiaberto com tal visão. Jamais vira algo tão belo em toda sua vida.
O pedestal começou então a baixar, o Mago de Prata estava bem em sua frente.
Agora podia melhor observá-lo. Seus olhos verdes estavam penetrando dentro de seu
ser. Ele estava começando a ficar com medo. Ficaria realmente cego?
– Não – disse o Mago. A voz quase fez Ket cair. – Você teve coragem. Há tempos atrás muitos ficaram cegos. Mas desde a criação deste mundo nunca aconteceu
isto. Todos os que vieram e estão em nossa dimensão não tiveram coragem de olharme, mas suas vidas são necessárias para manter este mundo.
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– Eles não podem te ouvir? – perguntou Ket.
– Não, nem têm coragem de me olhar, assim como são os magos deste mundo.
– Deste mundo? Como assim?
– É uma longa história. Devo contar-lhe algo, assim você entenderá o que deve
fazer. Você será o messias e terá a mim. Juntos construiremos um sonho.
– Mas veja o meu tamanho, sou apenas uma criança – disse Ket, assustado.
– Não, você não é mais.
O Mago tirou o cristal implantado atrás da orelha de Ket e tocou-lhe a testa.
– Transmito a você uma sabedoria de milênios. Após a chegada da minha luz
todos aqui despertarão de novo e você deverá caminhar como pássaro pela mesma
entrada por onde veio. Irá para o topo do cubo, onde encontrará um quarto. Tranque-se
lá e durma. Em sono profundo, eu revelarei a você tudo o que deve saber. Deve porém
lembrar-se de algo: ninguém deve falar com você até a chegada nesse quarto, bloqueie
sua mente. A melhor forma de fazê-lo é mudando de nome. Seu nome não é mais Ket,
mas sim Muir-Iled, em homenagem a Delirium, um grande amigo do passado. Dentro
do quarto lhe darei minha própria essência, então você se tornará o messias.
O Mago desapareceu. A luz surgiu em seu lugar novamente. Os magos em
volta de Ket, olhavam-no com admiração. Para eles Ket deveria estar como tantas
outras crianças flutuando e rezando em volta da luz divina. Porém, Ket estava ali olhando para eles. Deu as costas aos magos e com passos de pássaro caminhou de volta
ao portal por onde tinha entrado.
Os chamados dos magos não adiantaram. Ket continuou a voar com uma velocidade que eles nunca tinham visto. Para Ket, aqueles chamados não tinham sentido
algum. Seu nome era Muir-Iled e estava a caminho de um merecido descanso, no
quarto extremo-norte do templo do Deus Mago de Prata.
Um dos magos olhou para o chão e viu o cristal que tinha sido implantado atrás
da orelha de Ket.
– Ele falou com o Mago de Prata – disse o mago.
– Então Ele realmente existe – disse o outro.
Com uma voz chocada e como que falando para si mesmo, o Mago Neres
disse:
– Sim! Ele realmente existe!
O Imperador Schaia III
Após o desaparecimento do Extuártico e dos dois cientistas, o Imperador
Schaia II saiu da sala hermética. Estava velho e cansado. Carregava em sua carcaça de
mais de cem anos um governo que para ele parecia ter sido perfeito. Nos últimos anos
de reinado, tinha se apoderado de centenas de estrelas e seus planetas em órbita. Na
verdade, desde que seu povo fez o acordo com os Extuárticos, muito tempo antes, todas as gerações de governantes de sua família nunca tiveram problemas em governar
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e adquirir posses para seu império intergaláctico. Mas agora, após uma visita de cinco
minutos de um Extuártico em pessoa, parecia que tudo estava a ruir.
Quando entrou no salão principal do palácio, havia ainda reminiscências do
caos deixado pelo falso alarme dos cientistas.
“Malditos cientistas”, pensou o imperador.
Quando se sentou no trono, logo comandou o aparecimento imediato dos três
pilares de seu governo. Eram os elementos mais respeitados de todo o império, às
vezes mais até que o próprio imperador. Seus feitos na área de tecnologia, segurança
espacial e formação da fé davam ao império a certeza de um poder imaculado. Até
agora, pois após a visita do Extuártico, as coisas estavam diferentes.
“Aquele ser estava transparecendo uma impressão de verdadeira preocupação,
e eles sempre foram tão arrogantes”, pensava o imperador. “Que maneira poderia ser
pior de terminar meu reinado, do que com uma crise iminente com a fonte de energia
e poder que sustenta todas essas colônias que tanto nos respeitam.”
Essa era a ideia que o Imperador tinha das coisas. Sua família esteve ao longo
dos séculos colonizando Planetas e fazendo de outros povos seus escravos, graças
à enorme fonte de poder que tinham. Na verdade, todos os reinados foram, sem exceção, de déspotas, inclusive o dele.
Como era na verdade um grande covarde, resolveu ali mesmo dar fim a tudo
isso. Chamou dois de seus guardas pessoais e ordenou:
– Você – disse, apontando ao guarda real como se fosse um membro da baixa
infantaria. – Faça uma requisição imediata para a vinda de meu filho Schaia III. Ele
deve estar em Carmel, o Planeta da criação da fé. Digam que seus estudos devem
ser paralisados, pois ele deve assumir o trono. Avise ainda que ele tem uma reunião
urgente com os mestres dos três pilares. O assunto deve ser visto pelos quatro a portas
fechadas, nos arquivos dos últimos quinze minutos estocados na sala hermética. Ele
vai ter uma ótima surpresa. Pode dizer a ele que é meu presente de coroação.
– Agora você – disse ao outro guarda. – Você terá uma tarefa muito mais interessante. Pegue sua arma – o guarda fez isso imediatamente. – Aponte-a para mim
e atire.
O guarda quase cambaleou. Mas estava sob juramento e, quando notou que o
seu colega estava a ponto de executá-lo caso ele não obedecesse, atirou no imperador.
Os dois viram, com uma certa satisfação, o corpo do imperador cair do imenso
trono. Logo, quase toda a corte estava na sala para chorar a morte do déspota.
O guarda encarregado de dar a notícia para o novo Imperador teve de usar
um transporte de desmaterialização. Sua viagem foi feita em segundos. Deveria ter
pressa, pois os três pilares já tinham sido convocados e a presença do novo Imperador
era urgente.
Sua chegada no Planeta Carmel era esperada. O próprio chefe da guarda imperial tinha feito a conexão. Porém, a notícia da morte do Imperador não saíra da corte.
Carmel estava em meio a um festival. De todas as festas religiosas do Planeta,
esta era a mais importante. Dizia respeito ao nascimento de Luntra, o revolucionário
da hierarquia do clero.
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Sua doutrina tinha se infiltrado no Planeta logo que o acordo com os Extuárticos fora feito. Era tudo muito simples. Como o clero não podia aceitar a nova energia
que os Extuárticos estavam comercializando com o império, pois era completamente
inaceitável pelas ideias daquela igreja, o clero foi completamente banido. Foi uma
das maiores carnificinas já feitas pelo império desde a reforma de Marchor, o rei sem
alma.
Quase todo o Planeta foi aniquilado. É claro que o resto do império se manifestou contra aquela guerra religiosa, porém os governantes estavam convictos de que
iriam vencer, pois a propaganda feita da nova forma de energia era muito óbvia:
“Ou aceite ou sinta.”
A mensagem aparecia em todas as formas de comunicação conhecidas na época; é claro que o império não era tão vasto quanto agora. Ninguém entendia muito
do que tratava aquele slogan, pois apenas a frase era transmitida. Quando o clero do
Planeta Carmel resolveu se manifestar fortemente contra a entrada da nova forma de
energia, o Planeta inteiro foi destruído com imagens ao vivo para todo o mundo o ver.
Após as efervescentes imagens da destruição, aparecia a frase. Logo, todos que assistiram entenderam do que se tratava.
Então veio Luntra, mandado pelo próprio império, como um desbravador do
Planeta atingido pelas novas armas imperiais. Segundo a lenda, fez o Planeta renascer
com uma nova forma de hierarquia: a fé se curvava para a tecnologia. Foi muito fácil
erguer este pilar filosófico. Bastou interpretar o mundo segundo as normas científicas.
Logo, o Planeta inteiro foi reconstruído segundo estas normas. Fez-se daquele lugar
um verdadeiro Planeta universitário, pois a tecnologia regia a fé. Na verdade, todo o
aspecto científico passou a se chamar de fé, a ciência virou religião.
Assim, naquela grande festa, o Planeta inteiro estava infestado de demonstração das novas ideias, dos novos princípios e, é claro, dos novos “deuses” que eram
criados através da Tecnologia.
Foi surpreendente o fato de o filho do imperador ter de sair em meio às principais festividades. A urgência era tamanha que um veículo do próprio regente do
Planeta fora buscá-lo, assessorado de muitos guardas, pois tudo se podia esperar da
falta do Schaia III.
De início, todos pensavam se tratar de um rapto. Houve um dilúvio de manifestações por todo o Planeta. Porém, quando se soube de um desvio de um regimento
da frota imperial ao Planeta, as manifestações se calaram.
Schaia foi transferido imediatamente para Plan Ex, o Planeta-sede do império.
Ele próprio não sabia do que se tratava. A transferência fora feita da maneira mais sutil
possível. Houve um embargo de informações a Carmel durante vários dias.
Ao chegar em Plan Ex, Schaia III estava atônito.
“O que esse imbecil do meu pai aprontou agora”, pensava ele. Schaia III tinha
visto seu pai pela última vez aos cinco anos, quando foi transferido para Carmel. Seu
desenvolvimento na área científica era espantoso para sua idade e, de longe, era diferente de seu pai. Nunca se interessou pela política suja do império. Era conhecido nos
meios acadêmicos de Carmel como um verdadeiro revolucionário.
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Seu pai nunca se preocupou com isso. “Quando ele sentir o gostinho de governar o universo, sem nada com que se preocupar, ele mudará de ideia”, dizia seu pai
a toda a corte. E todos riam. Porém Schaia III estava agora no nível máximo de sua
revolta. Beirava os dezesseis anos e tinha aquele sentimento de repulsa a tudo que se
podia chamar de poder. Principalmente porque sabia das manipulações que o império
de seu pai fazia.
Era um rapaz pequeno, muito magro. Tinha os cabelos quase passando pelas
costas, vestia-se mal, segundo os conceitos do império. E era extremamente violento.
Tinha plena consciência de seu poder intelectual e sabia que estava cercado de cobras. Pode-se dizer que odiava o império de seus antepassados e naquela ocasião mais
ainda, pois fora tirado do meio de uma festividade importante. Não que ele desse a
mínima atenção para Luntra e as mentiras por trás dessa nova religião, mas as festividades eram demasiado importantes para ele estar ali naquele Planeta feito de ideais
pernósticos.
Seu raciocínio fora rápido. “Esses idiotas não têm noção de minha antipatia por
eles, farei o que for preciso para ganhar sua popularidade. Após isso, vou descobrir o
que está ocorrendo por aqui e darei meu golpe. Vou destruir todo o tipo de absurdo que
esse império construiu.” Mal ele sabia que faria isso tão brevemente.
Schaia III foi levado para um quarto. Foi informado pelo chefe de cerimônias
que aquele quarto fora escolhido a dedo pela tropa. O chefe de cerimônias disse ainda
que o império estava prestes a passar por uma crise, uma verdadeira calamidade, que
ele deveria se apressar a se apresentar perante a corte, pois iria assumir o governo.
– E quanto ao meu pai? – Schaia III perguntou.
– Seu pai morreu – disse o chefe de cerimônias, friamente.
Quando entrou no quarto, Schaia não sabia se ria ou chorava. Estava tão perdido com o impacto da notícia que apenas ficou parado, sem pensar em nada. O chefe
de cerimônias ainda perguntou se precisava de algo, mas Schaia III nada disse.
Ouviu algumas batidas na porta e logo se virou. Quatro mulheres muito bonitas entraram sem sequer pedir a permissão do garoto e o olharam com encantamento.
Ele porém parecia não estar ali. Elas o pegaram pelas mãos e o levaram para a cama.
Tiraram suas roupas e, sem nada dizer, começaram a chupá-lo como loucas. Ele estava pasmo. Seu sexo reagiu imediatamente, estava completamente extasiado. Cada
mulher lambia uma parte de seu corpo. Apesar de assustado, Schaia não conseguia se
controlar. Uma delas agora colocara a boca em seu sexo e, com movimentos frenéticos, o massageava.
Então, o carregaram para uma outra sala, onde havia um enorme piscina. Colocaram-no vagarosamente dentro d’água e continuaram as massagens orais.
Schaia tinha a pele lisa e, por sua idade, não tinha praticamente pêlos no corpo. As mulheres pareciam gostar disso e continuaram, até que uma o fez penetrá-la.
Schaia não demorou muito para chegar ao êxtase.
Depois, elas o lavaram e vestiram. Suas roupas eram majestosamente lindas,
até mesmo para ele, que não gostava da moda daquele Planeta.
Enquanto estava andando pelo imenso corredor a caminho da coroação, pen122
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
sou consigo mesmo: “esses idiotas acham que vão fazer de mim um fantoche como
era meu pai! Pois eles vão ver.”
Ao chegar ao grande salão onde iria ser coroado, Schaia descobriu um leve
toque de mentira no ar. Algo eles estavam escondendo. Havia pelo menos duas mil
pessoas ali. A indumentária era absurda, mas tudo fora feito muito rapidamente.
“Pois bem, seus cretinos, então é assim... Acham que com quatro prostitutas
vocês me comprarão.”
Deixou que o levassem para o trono. Em uma cerimônia que durou mais de
cinco horas, foi coroado perante todo o Império, ao vivo. Foi um verdadeiro choque
para todos a rapidez dos eventos. Os três pilares agiram imediatamente ao saberem
do ocorrido com o antigo imperador. Tinham visualizado todo o problema através
das informações contidas na sala hermética. Como sabiam que o novo imperador era
apenas um adolescente, decidiram resolver o problema da forma mais rápida e secreta
possível. Eles nem imaginavam o que estava para ocorrer.
Após a coroação, e o chamado juramento da guarda imperial que dizia “juramos solenemente obedecer ao Imperador Schaia III em qualquer ordem, mesmo que
seja tirar a vida de qualquer membro do império, até mesmo a do próprio Imperador,
se necessário for para o bem da ciência divina”, Schaia III quebrou completamente o
protocolo. Levantando-se do trono, disse:
– Como minha primeira ordem, exterminem imediatamente os três pilares e
todos os membros da antiga corte.
A matança foi transmitida ao vivo para todo o império.
O Templo de Cosmo
Muir-Iled atingiu tamanha velocidade por entre os intermináveis corredores
do Templo de Cosmo, que sua capa de prata rasgou-se inteira. Ao chegar ao quarto
no topo da pirâmide superior do cubo ficou impressionado, estava praticamente nu.
No entanto não sentia frio, o quarto era aquecido. A vista era espetacular. Através
do finíssimo cristal transparente, podia-se ver o imenso anel de terras que cercava o
Planeta Azul a uma distância inimaginável, e todo o espaço que se fazia de céu sobre
sua cabeça.
Mas Muir-Iled estava exausto. No meio do quarto existia um imenso espaço
para descanso, era uma espécie de almofada gigante de forma redonda. Ele se lançou
ao ar e caiu; com imenso prazer notou que a almofada era d’água! Estendeu seu corpo
sobre a macia superfície e logo dormiu.
A visão era fantástica. Inicialmente ele achou um pouco estranho, pois estava
voando num céu azul-claro, o que ele nunca tinha visto antes. A paisagem lá embaixo
era de arrepiar, milhares de árvores se estendiam sobre morros, ao longe podia-se ver
um mar azul. Até mesmo a floresta tinha uma certa nuance de azul também.
Logo ele viu um ser a cavalo. Suas roupas eram bem esquisitas e ele tinha uma
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
beleza peculiar, cabelos muito longos e loiros. Cavalgava em meio àquela floresta
com muita destreza. De repente, tudo sumiu. Ele estava ao lado daquele ser, que conversava com uma menina que tinha asas de borboletas. Era difícil de entender o que
estava sentindo, pois as imagens estavam completamente ofuscadas.
Agora, o ser estava em frente a outro bem menor do que ele, mas num ambiente muito escuro, uma espécie de caverna. Quando o outro apareceu, Muir-Iled se
sentiu muito estranho. Era como se já conhecesse o menino. Ficou extremamente chocado com a beleza desse novo personagem, não conseguia tirar os olhos dele. Então
percebeu quem era. O Mago de Prata estava à sua frente de novo. Mas que mundo
estranho! Então, ouviu-os conversando e não conseguiu entender do que se tratava. O
ser maior, o loiro, usava uma faixa prateada nos olhos, mas parecia ver tudo perfeitamente. Então, para seu espanto, viu os dois se beijando.
Agora tudo mudou absurdamente. Se aquele lugar já era estranho, este fez
Muir-Iled ficar chocado. Um lugar escuro, com luzes e sons que deixavam os sentidos
conturbados. Viu então a mesma dupla ser levada por alguém. Viajaram pela enorme
vila, com estradas separando blocos de imensas casas que rasgavam o céu, que agora
estava normal, escuro e com estrelas, como ele conhecia. Acompanhava esses eventos
como um ser à parte, sentia até mesmo os cheiros dos lugares, mas ninguém o percebia.
Parecia que os dois tinham voltado para aquele mundo anterior, em meio à
floresta. Então começou a sentir algo muito estranho. Seu coração estava batendo
muito forte. Ele estava sentindo uma paixão absurda por aquilo, não em particular por
alguém, mas pela situação. Começou a delirar completamente, vendo os dois andando
a cavalo, banhando-se em uma estranha fonte, conversando com um povo pequeno e,
de súbito, sentiu uma dor terrível. Foi quando raptaram o Mago de Prata. Mas logo
estava se sentindo bem de novo, de novo na imensa vila, agora com o céu enlouquecidamente azul. O Mago de Prata e seu grande amigo tinham desaparecido. Surgira
no lugar um outro menino, um pouco mais velho que ele próprio, e que lembrava
muito os dois. Muir-Iled viu uma porção de imagens completamente fora do comum,
lugares onde pessoas se concentravam em salas, muita gritaria, barulhos estranhos e
uma confusão danada.
Então viu o Mago de Prata sendo levado por seres com cristais nos ouvidos,
seu amigo estava logo atrás. Foi quando sentiu um espasmo de dor se apoderar de todo
seu corpo. O Mago de Prata estava morto nos braços de seu grande amigo. Muir-Iled
chorava muito, não só pela dor mas pela própria morte do pequeno Mago.
Também viu o amigo loiro em prantos, enlouquecido, vagando por aquelas terras estranhas. O céu se transformara de azul para um cinza escuro e uma forte chuva
caía.
O loiro estava agora dormindo numa câmara com muitos cristais. Muir-Iled
saiu voando da câmara e viu a floresta se afastar, estava no céu de novo. Mas foi
subindo cada vez mais alto, até que podia ver o Planeta inteiro. O Planeta Azul! O
mesmo que vira pelas paredes do Templo de Cosmo. Ele ficou observando o Planeta.
Não tinha noção de tempo, mas viu o Planeta em órbita ao redor de uma estrela por
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
centenas, talvez milhares de vezes; a velocidade era imensa. Então viu um anel sendo
formado ao redor do Planeta. O anel começou a se expandir pelo espaço aberto do
universo.
Muir-Iled estava sentado numa sala vazia e escura. Percebeu que havia alguém
na mesma sala. Virou-se devagar e para seu espanto viu o Mago de Prata. Sentiu um
espasmo. Era exatamente o mesmo ser que tinha visto no templo e acompanhando o
guerreiro loiro, mas agora emanando uma força interior muito mais intensa.
– Não tenha medo – disse o Mago.
Muir-Iled nada falou.
– Estou povoando seu sonho – continuou o Mago. – Eu o escolhi, pois é chegada a hora. Ortal estava completamente fora de si quando começou isto tudo, há muito
tempo atrás. Ele dormiu com uma forte dose de uma droga muito poderosa. A droga se
amplificou dentro da câmara dos cristais e com esta força ele sonhou com este mundo
em que você vive. Durante todo este tempo, por culpa de sua ira e do poder dos cristais
e da droga, ele manipulou sem querer uma fonte energética universal que fez criar este
mundo de sonho. O problema é que este mundo está se transformando num vórtice
material. Ele está se transformando em outra realidade, que vai afetar completamente
outro universo que você não conhece. Devemos nos unir e dar continuidade a isto,
pois agora não há volta.
Muir-Iled estava chocado. Não entendia metade das palavras que o Mago estava falando, porém entendia o sentido de tudo. Então perguntou:
– Nos unir, como assim?
– Na verdade não vamos nos unir, eu vou roubar a sua essência de vida. Você
vai ser eu.
– Você está louco?
– Não se preocupe. Você vai adorar ter o meu corpo e meu poder. Vai demorar
um pouco para que as coisas fiquem normais, mas você não irá sofrer.
Muir-Iled acordou suando. Estava sozinho no quarto onde tinha adormecido.
Começou a sentir medo. Saiu do quarto e foi tentar achar o Mago Neres.
Não precisou andar muito. Logo que desceu um lance de escadas, deparou-se
não só com o Mago Neres, mas com pelo menos doze outros, todos muito assustados.
– Você esta dormindo há dias, Ket – disse o Mago Neres.
– Meu nome não é mais Ket! É Muir-Iled.
Então, um dos Magos interveio.
– Quer nos contar o que aconteceu? Como você conseguiu modificar a geração
de energia para a manutenção do Mago?
– Isto tudo é uma bobagem – disse Muir-Iled. – Nós somos parte de um sonho.
Ninguém sustenta o Mago de Prata a não ser ele mesmo. O que essas crianças fazem
é sustentar o sonho de Ortal, que está morto há muito tempo. Porém, o seu sonho
permanece.
Os Magos riram.
– Como você pode falar tanta besteira, menino?
– Cale-se – a voz de Muir-Iled tinha mudado, na verdade ele mesmo estava
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
mudando. – Vocês estão prestes a passar por uma fase estranha, assim como a que eu
estou passando. – Ele estava se sentindo muito esquisito, parecia que não era ele quem
estava falando.
Então todos os Magos ficaram boquiabertos. Muir-Iled não conseguia mais
falar e caiu.
– Rápido! – disse o Mago Neres. – Lembrem-se! As palavras sagradas! Ele
mencionou o nome Ortal. Ele vai renascer! Devemos levá-lo para o centro do templo
sagrado.
Os Magos correram para o pequeno corpo de Muir-Iled. Levaram-no para o
imenso templo onde as crianças dormiam. Atravessaram com o corpo de Muir-Iled e
o colocaram no centro do pedestal do templo.
– Os sonhadores devem ser acordados – disse um dos Magos.
Nesse momento, os doze magos se postaram de pé em volta e de costas para o
corpo de Muir-Iled, que estava deitado no chão.
Mas antes de os magos fazerem qualquer coisa, a luz que atingia o corpo de
Muir-Iled no meio do templo, se intensificou. Não se podia ver nada, a não ser um
clarão esverdeado que agora iluminava mais da metade do imenso recinto.
A luz se apagou, mas os magos podiam ver agora os rostos assustados das
crianças que acabaram de acordar. Atrás deles e flutuando a quase dois metros de altura estava o Mago de Prata. Os magos maiores se voltaram para ele. Imediatamente
caíram de joelhos.
O Mago de Prata estava imóvel, apenas sentindo o lugar. Os magos maiores
olhavam-no com espanto. Após um enorme espaço de tempo, o Mago de Prata disse:
– Este mundo deverá ficar imaculado, nós deveremos fazer isto.
O Mago Neres deu um passo à frente e disse:
– Faremos o que pudermos para que isto aconteça, mas gostaríamos de saber
sobre a lenda. É ela verdadeira, ó, Mago de Prata?
– Vocês deverão me chamar Muir-Iled, não sou o Mago de Prata. Sou um espectro, assim como todos aqui. Somos um sonho, um sonho de um ser chamado Ortal,
que por sua paixão desenfreada pelo Mago de Prata criou este mundo. O problema
é que quando Ortal sonhou, estava sob efeito de substâncias muito poderosas. Seu
sonho teve continuidade, até que o próprio sonho começou a sonhar com este lugar,
todas estas crianças sonhando davam sustentação a este mundo. Porém, agora não
precisamos mais sonhar, pois estamos mudando de substância, e este é o problema.
Este sonho que nós vivemos irá se transformar em matéria e isso irá dividir o universo
em dois. Aquele Planeta que vemos – falou Muir-Iled, apontando para o Planeta Azul
– nos confins de nosso mundo é o início. Foi lá que Ortal começou o nosso mundo.
É um anel invisível que se expande pelo universo. Nós podemos ver o universo, mas
ninguém consegue ainda nos ver. Quando começarmos a virar matéria, haverá discórdia. Devemos nos preparar.
Todos estavam assustados com estas revelações de Muir-Iled. Ele continuou:
– Vocês serão os messias deste mundo. Deverão sair deste lugar onde passaram
tanto tempo e farão de Cosmo todas as terras que são o sonho de Ortal. Isto enquanto
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
há tempo. Eu vou ter que fazer uma tarefa muito mais perigosa, deverei ir antes para
o mundo material. Lá encontrarei a chave de vivência que eles têm. Assim, com este
aprendizado, retornarei e teremos que, juntos, enfrentar este mundo que nos rodeia.
Por ora, todos aqui levarão as informações que passarei para os doze magos. Eles irão
instruí-los. Quando a transformação for consumada, retornaremos para este lugar, e
só então saberemos o que fazer com o mundo lá fora. Estamos com uma grande vantagem, pois eles não sabem que existimos e nós sabemos.
Então Muir-Iled ficou a portas fechadas com os doze magos. Falou-lhes sobre o procedimento necessário para informar a todos os habitantes das terras que se
chamariam Cosmo, o reino de Ortal. Os magos aprenderam com Muir-Iled muitas das
coisas que ele havia recebido do Mago de Prata. Por estarem habitando o sonho de Ortal, não foi difícil entender a maneira como aqueles cristais funcionavam. Finalmente
souberam a utilidade de tudo aquilo que apenas pairava nos ares e que formava um
indecifrável quebra-cabeça. Desde as lendas até as pessoas que deveriam morrer num
certo momento da vida.
Após esta reunião, os doze magos viram Muir-Iled desaparecer. Foram em
seguida ao grande salão onde as crianças que há tempos mantinham o sonho de Ortal
em pé, esperavam impacientes pelas informações.
Foi assim que, após dez mil anos, Cosmo se transformou, de um lugar de sonhadores, em uma catedral onde o centro da veneração era um menino por quem um ser
outrora se havia apaixonado. E feito dele um deus.
Plan Ex
O imperador Schaia III havia mandado chamar de Carmel todos os melhores
cientistas de sua época. Colocou todo o império sob a guarda do general Arcrates. Este
deveria manter a ordem, pois após a devastação que ocorrera na antiga corte, muitos
dos grandes colaboradores do antigo governo estavam perturbados.
O general Arcrates era um ser impaciente e conseguiu, com muito custo, fazer
do império um lugar quase aceitável. Muitas das oligarquias criadas pelos sectários
do imperador Schaia II foram desfeitas. Vários Planetas foram invadidos pelas tropas
imperiais para manter a ordem, mas o verdadeiro problema estava guardado a sete
chaves em Plan Ex.
Após terem visto as gravações feitas na sala hermética por mais de cem vezes,
Schaia III e os cientistas começaram a pesquisar o verdadeiro problema.
O salão oval era o cenário da discussão. Pela mesa, que tinha a mesma forma
do salão, espalhavam-se as mais diversas facções e categorias de historiadores, cien-
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
tistas e analistas, todos com o maior respaldo que uma pessoa poderia ter.
A discussão se prolongara por mais de um mês, nenhum tema emergente fora
achado para poder colocar, tanto o universo como o império em perigo. Haviam
analisado as revoltas dos Planetas mais antigos que o império possuía e feito uma
enigmática consideração dos Planetas Aquários, os mais desconhecidos e menos influenciados pelo império, pois eram quase que independentes. Fizeram uma busca
em todos os Planetas por qualquer fato estranho, levando em conta revoltas populares, grupos radicais separatistas, idealistas religiosos e assim por diante. O que conseguiram descobrir foi até mesmo interessante. O sistema de governo dos ancestrais
de Schaia III até Schaia II, apesar de ter sido extremamente demagogo e oligárquico,
conseguiu construir uma base sólida de vida. É claro que nem todos estavam satisfeitos, mas a grande maioria, digamos que oitenta por cento do império, era a favor da
atual política.
Todos os Planetas eram abastecidos com a energia gerada pelos Extuárticos.
Recebiam quase que instantaneamente todas as novidades tecnológicas criadas no
Planeta Carmel e, apesar de ser proibido, podiam crer nos deuses que bem entendessem, pois as autoridades faziam vista grossa.
A velocidade de transporte era bastante rápida de um Planeta a outro. É claro
que o povo em geral não utilizava o transporte de desmaterialização devido ao alto
custo, mas mesmo assim, se uma pessoa quisesse mudar para um Planeta do outro
lado do quadrante central, poderia fazê-lo sem despender quase nada de dinheiro e
numa viagem que levaria de um a sete dias. As empresas de transportes gostavam
de frisar isto: “não se adaptou ao sistema burocrático de Plancrus? Venha morar em
Allcrem! Sete dias de viagem ou seus míseros trocados de volta!” Dessa forma, as
pessoas migravam de um Planeta a outro sem muita cerimônia, e era fácil então de
construir suas próprias vidas, vista a facilidade de se incorporar na sociedade que mais
facilitasse seus mais variados sonhos.
Portanto, aparentemente o império crescia a olhos vistos. Quase não existiam
revoltas, pois cada planeta era como que um paraíso feito dos sonhos da população
que ali morava.
Foi um velho que nada falara durante toda a reunião que começou a se pronunciar. Menos de cinco pessoas das mais de cento e cinquenta que estavam ali reunidas
conheciam este velho, que estava acompanhado por dois senhores com aparência um
pouco mais jovem.
O velho se chamava Laprisius e vinha de um longínquo Planeta que nem fazia
parte do mapa do império. Era um Planeta-satélite e por isso não tinha quase nenhuma
influência do império. Na verdade, os Planetas mais próximos davam uma vaga cobertura a este Planeta, que vivia na mais absoluta miséria. Sua população era devotada
às antigas escrituras. Eles eram os historiadores à moda antiga, sem a influência dos
atributos tecnológicos que reinavam pelo vasto império de Schaia III. As características principais daquela população poderiam ser traduzidas na aparência daquelas três
figuras que agora chamavam a atenção de toda a sala oval. Eram ermitões com longas
barbas brancas, de aparência cansada, mas que cativavam qualquer um por possuir
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
uma poderosa aura, rica em tranquilidade e da mais absoluta sabedoria.
Assim que o velho se levantou pesadamente, todas as discussões paralelas terminaram. Todos os componentes da mesa oval se voltaram para ele com olhos fascinados. Então, o velho Laprisius, segurando uma imensa bengala de madeira bruta,
começou a falar, com uma voz baixa e forte:
– Este maldito império está com seus dias contados.
Houve um murmúrio quase escandaloso por toda a mesa. Um dos guardas
ensaiou um gesto, mas logo Schaia III levantou-se e fez um sinal para que todos se
calassem.
– Caro senhor – disse Schaia III. – Peço-lhe que se apresente e retire o que
disse, a menos que tenha uma boa desculpa para tamanha blasfêmia.
– Blasfêmia! – gritou o velho, com um sorriso cínico na boca. – Blasfêmia! – e
começou a rir mais ainda, agora com cara de espanto. E então começou a falar, muito
depressa. – Vermes! Burocráticos, lançadores de dádivas nutridas no inferno! Construtores de mausoléus que clamam a morte! Pútridos magnatas da fé em nada! Possuidores da lança lambida pelo diabo e passada pelo coração de Deus após sua morte!
Schaia III sentou-se, de boca aberta. Os dois guardas estavam no chão após
uma tentativa frustada de intervenção. O velho continuou:
– Assim se forma seu destino. Nós temos lido nos laudos de Deus! – gritava,
impaciente. – Todos os pequenos impérios tiveram o mesmo fim, após um reinado de
imposições e calúnias. Sempre foi e sempre será assim. Vocês se vestem de bem, de
bons, se intitulam os guardiões do espaço e de tudo que nele existe. Mas a história é
sábia, pois é real! É um padrão. As civilizações são assim: surgem impérios que se
sustentam na força, mas logo chega a antítese. Todo o bem, todo o bom se reverte,
surgem deuses. Fatigados com sua demagogia, o povo entende que o seu bem e o seu
bom são mera especulação e tende ao outro. Vocês estão mortos, todos mortos, foram
longe demais! Haverá a revolta, está sendo formada lá – o velho apontava na direção
contrária a Schaia III. – No extremo dos seus poderes há de se formar.
Então, os três velhos saíram quase cambaleando da sala oval. Houve um silêncio de quase meia hora na sala, após a saída deles. Schaia III levantou-se e disse
calmamente:
– Alguém aqui pode dizer-me a que tipo de revolta este velho se referia? Se
nosso sistema se tornou quase que de liberdade total, por que alguém iria se revoltar,
e contra o que, afinal de contas?
– Talvez seja apenas o padrão – disse alguém. – Um império não pode ficar no
poder por muito tempo, e, com o devido respeito, caro imperador... há quanto tempo
este império existe?
– Ninguém sabe – disse outro. – Há especulações de mais de cem mil anos,
mas ninguém realmente sabe.
– Cem mil anos? – as vozes vinham sabe-se lá de onde.
– A família real começou nosso império neste Planeta em que estamos há mais
de cem mil anos, isto é fato.
Schaia III interveio.
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– Esta discussão não leva a nada. Isto não pode ser tão simples. Uma revolta
não pode sair do nada, um império desse porte não sucumbe desta maneira, principalmente com os aliados que temos.
– O senhor se refere aos Extuárticos?
– Exatamente.
Houve um silêncio profundo.
– Não, de maneira nenhuma, nem podemos pensar nisto! – disse Schaia III. –
Eles jamais conseguiriam viver no espaço externo.
Muir-Iled
Se existe algo mais traumático que o nascimento ninguém sabe. O problema
mais sério seria nascer consciente de que você já está vivo. Este era o grande martírio
que Muir-Iled estava passando naquele momento. Ele descobrira-se vivo. Acabara de
nascer, porém com o corpo desenvolvido de um menino que ele era.
Ele passara da terra dos sonhos para uma outra realidade, uma realidade que
Ortal e o Mago de Prata deixaram havia milênios. Muir-Iled achava-se agora fazendo
parte do Planeta em que viveram milhares de seres humanos, agora desaparecidos.
A impressão inicial era de dor, uma imensa e insuportável dor física. Sentia frio
e fechou seu manto prateado ao redor do pequeno corpo. Começou então a notar, com
muito espanto, o mundo à sua volta. Era um mundo fascinante, com uma luz mágica.
O céu estava meio nublado, num crepúsculo onde nuvens eram abençoadas com a luz
dourada de um sol que se punha.
A umidade do ar formava uma bruma que fazia com que o imenso cenário
daquele estranho e belo mundo desaparecesse, em partes, e aparecesse de novo. MuirIled se encontrava num platô e podia ver uma imensa extensão de terras verdes, com
imensas pedras rasgando o chão selvagem. A vegetação era rala, mas ia crescendo
à medida que os olhos avançavam em direção ao horizonte. Córregos desciam de
pequenas colinas que eram encapadas por pequenos nichos de florestas aqui e acolá.
As árvores eram imensos monstros que pareciam dançar ao sabor do vento.
Um cheiro doce e úmido preenchia o lugar. Havia um ruído de magia, como
tambores tocando uma melodia forte vindo de lugar algum. Na verdade eram manadas
de seres esquisitos que corriam como loucos ao longo de uma das centenas de aberturas lá em baixo, entre as árvores.
Muir-Iled não aguentou ficar de pé por muito tempo. Teve de sentar, pois aquilo era demais para ele. Era, na realidade, exatamente o mundo em que vivia, porém
era real, era vivo e além de tudo, não estava no meio do espaço infinito, mas havia
um céu, parecido com um imenso teto suspenso no ar e que se modificava a seu belprazer. Sem saber por que, começou a chorar. Deitou-se na enorme pedra daquele
platô que serviu de seu novo nascimento e esperou. Sabia que algo muito esquisito
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iria acontecer, e aconteceu.
O céu se tornou escuro e Muir-Iled sentiu um terrível medo. Parecia que aquele
céu agora escuro e com algumas constelações aparecendo e sumindo, conforme a
dança das nuvens, se tornara o céu de Cosmo, a terra dos sonhos. Mas ele logo notou
que não, que não era, nada mudara em seus sentimentos tão reais, e fez algo que parecia muito estranho, Muir-Iled adormeceu.
Ao acordar, sentiu-se revitalizado. O mesmo lugar que vira no crepúsculo do
dia anterior estava mudado. Com a quase cegante luz da aurora, o mundo parecia
outro, com uma energia infinita. Muir-Iled deu um salto de cima da pedra onde estava
e desceu o enorme morro em que tinha dormido. Tudo era tão fantástico que teve que
parar diversas vezes para apalpar flores, pedras, folhas, árvores e tudo que passava
em seu caminho. Ficou chocado ao saber que um bando de pássaros resolvera voar
quando ele se aproximara. Quase tinha um colapso de tanto que ria a cada descoberta
que fazia daquele mundo tão real.
Contudo, algo o incomodava, algo que vinha de seu estômago. Pela primeira
vez na vida Muir-Iled sentiu fome, muita fome. Mas tudo que o cercava era tão fantástico que ele não ligou muito para a estranha sensação que vinha de seu estômago.
Continuou a caminhar a passos largos, sempre sorrindo por aquele imenso jardim sem
dono.
O sol já estava um tanto quente quando se deparou com um riacho. A água
era rasa e ele pôde contemplar uma quantidade infinita de peixes que formavam um
labirinto de cores e formas. Não pensou duas vezes e se atirou no pequeno riacho.
– Mas o que é isso? – disse, em um grito que fez com que centenas de pássaros
levantassem voo num imenso estardalhaço. – Isto é... isto está gelado!
Sim, ele sabia de todas as sensações possíveis para um ser humano, apenas não
as tinha experimentado num mundo real. Ele estava estarrecido.
Assim Muir-Iled começou sua caminhada por este novo mundo, desabitado
por seres humanos. E descobriu que para o desconforto de seu estômago precisava
apenas catar algumas frutas e engoli-las.
– Que gosto bom! – dizia, a cada descoberta que fazia com a imensidão de
frutos e flores que experimentava.
Tudo era perfeito e Muir-Iled avançou muito por aquelas terras intermináveis.
Teve muita sorte em não ter que enfrentar os imensos perigos existentes por lá. Estava
protegido, e parecia saber disso.
Um dia, porém, algo fez com que sentisse medo. Ele estava andando como
sempre sem destino, quando teve uma impressão muito esquisita. Ele sentiu que estava sendo seguido.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Plan Ex
Após aquela reunião em que o velho louco se pronunciara com tamanho
descaramento, Schaia III resolveu parar com tagarelices e pôs todos aqueles seres
pensantes do império para trabalhar. Mandou trazer de Carmel todo equipamento de
última geração que pudesse ser aproveitado nas pesquisas. A ordem era clara: todo e
qualquer movimento no universo conhecido pelo império deveria ser relatado.
Todos os tipos de equipamento foram postos a todo o vapor para analisar
qualquer fator que pudesse estar fora do padrão, desde astros, estrelas, quasares, pulsares, planetas, até mesmo fenômenos sociais em todos os lugares do império. O trabalho era tão absurdamente grande que Plan Ex ganhou duas novas luas artificiais, pois
o Planeta inteiro não tinha espaço suficiente para tamanho empreendimento.
Após quase dois meses de pesquisas, Schaia III começou a sentir-se um tanto
irritado com a situação. Além disso, com a dimensão de todo aquele poder que possuía, ficara muito amargo, dando ordens desnecessárias e tratando seus colegas de
estudos como meros coadjuvantes de seu reinado. O poder subira à cabeça de Schaia
III e aquele jovem, que antes tinha tanta inspiração para o cargo como um novo tipo
de governante, lentamente se transformava no mesmo déspota que seus antepassados
haviam sido.
Após um longo período de tempo, Schaia III achava que todos aqueles estudos
estavam indo pelos buracos negros adentro. Os gastos com os equipamentos eram
enormes, muito maiores do que o império jamais vira, e os Planetas começaram a
interrogar o porquê daquilo tudo.
Finalmente, depois de muitas revoltas pacíficas, houve uma pesada e sangrenta
em um dos Planetas do setor norte, um Planeta perigosamente próximo de Plan Ex.
Então, Schaia III teve que se pronunciar a todos os súditos informando o perigo em
que o império se encontrava. Imediatamente as manifestações cessaram e, ao contrário do que se previa, o império inteiro se uniu para descobrir o inimigo comum.
Isso porque aparentemente Schaia III era um jovem governante, criativo, esperto e
simpático. Afinal, ele tinha matado toda a corte de seu pai em nome do império, e isso
o tornara muito popular.
Finalmente Schaia III conseguiu notar o erro que estava cometendo. Acalmouse e resolveu se retirar de Plan Ex. Seus planos eram de passar uma semana em um
Planeta sagrado qualquer, um daqueles Planetas que prometiam uma vida pacata,
longe das grandes invenções tecnológicas e em contato com a natureza selvagem, sem
as modificações genéticas que se espalharam por todo o império.
Isolou-se num daqueles Planetas, retirando-se para uma cabana perto do mar,
apenas com a companhia dos locais e observado a quilômetros de distância por naves
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
que faziam a proteção do jovem imperador.
Schaia III estranhou, nos primeiros dois dias, o convívio com todas aquelas
pessoas seminuas, que pescavam para sobreviver e se divertiam ao sabor das areias
e no frescor da deliciosa brisa local. A aparência da região começou então a se tornar
fantástica a seus olhos. Schaia III estava agora deslumbrado com toda aquela natureza
virgem e descobriu que era sensacional descer pelas ondas, agarrado em pranchas de
madeira.
Mas algo fez com que ele questionasse tudo aquilo, toda aquela sua alegria;
afinal, Schaia III havia experimentado todos os tipos de novas tecnologias de expansão mental. Viajara em câmaras de desmaterialização, tinha provado das mais exóticas
comidas do universo e, mais que tudo, era o dono do universo! Sim, era o imperador
Schaia III, e tudo aquilo era apenas uma migalha de seu imenso império. Ele tinha
todo o poder em suas mãos! Então, por que estava ali brincando com as crianças
daquele pequeno e mísero Planeta no meio do nada?
Ficou paralisado na areia da praia sob o belo pôr-do-sol do Planeta Anacom;
perplexo, ao saber por que se sentia tão mais fascinado pela vida ali naquele mísero
lugar onde as pessoas se vestiam com pedaços de pequenos panos apenas para esconder seu sexo e não em qualquer outro lugar do universo. Estava enfeitiçado! E
foi a figura em sua frente que despertou sua descoberta e indignação para com todo
aquele sentimento.
Schaia III não conseguia se mover, a cena era como de um sonho. Estava plantado de pé, na areia. Algumas crianças brincavam de construir castelos bem mais ao
fundo, fazendo uma espetacular composição com as montanhas lá no horizonte. Perdendo-se nos limites do oceano, bem à sua frente, a uns trinta passos, estava um nativo
que só agora ele notara. Era quem tinha despertado nele o fascínio daquele lugar.
O nativo olhou para ele com um olhar forte. Era um pouco menor que ele, e
Schaia III estremeceu ao perceber que sempre vira aquela criatura ali, mas nunca tinha
se dado conta de sua beleza.
O Mago de Prata, à sua frente, só teve a consideração de dar um pequeno sorriso. Era o que Schaia III tinha pensado que fosse, mas não foi, pois o Mago de Prata
apenas desapareceu, deixando o resto da cena para as crianças brincando ao longe e
as montanhas bem mais atrás. Schaia III deu um grito e caiu desmaiado na areia de
Anacom.
Algumas crianças vieram correndo para ver o que ocorrera. Como Schaia III
não acordara, as pequenas crianças, pensando que ele estava morto, pegaram uma
grande prancha de madeira e colocaram o corpo do rapaz em cima. Os homens da
aldeia estavam pescando e as mulheres estavam nos seus afazeres domésticos quando
Schaia III foi levado ao mar, pois era comum para aquelas crianças que qualquer ser
vivo que morresse fosse levado ao mar para ser engolido pelo grande deus branco que
lá vivia.
Quando as crianças soltaram o corpo de Schaia III atrás da arrebentação das
ondas, uma imensa nave cobriu o céu daquela parte de Anacom. Apenas as crianças
puderam ver o corpo de Schaia III sendo removido para o imenso trans-universo im133
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
perial. Elas aplaudiram aquilo de cima de suas pequenas pranchas de madeira e, ainda
sorrindo, abanaram as mãos para o ser que podia voar em direção a “deus”.
– Por que me tiraram de lá? – Schaia III berrava, pasmado. – Eu não queria
ir embora! – agora, histérico e chorando como uma criança que perdera a coisa mais
importante da vida. – Transfiram-me imediatamente! Agora! Suas cabeças vão rolar,
estou avisando!
A nave, que já tinha percorrido três dias de viagem em direção a Plan Ex,
imediatamente deu meia-volta. O imperador estava desmaiado quando foi resgatado
e por resolução de todos os cinquenta médicos a bordo da nave deveria ficar assim,
pois precisava descansar.
Schaia III estava enlouquecido de raiva. Estava quase que explodindo dentro
de seus pensamentos quando teve uma grande ideia. Os comandantes da imensa nave
levaram um susto quando viram-no abrir um imenso sorriso e sair correndo para a sala
de controle externo.
– Eu quero todos os dados sensoriais que tive nos cinco minutos antes do meu
desmaio. Agora! – gritou para os técnicos da sala de controle externo, de uma maneira
tão rápida que não deu tempo nem de eles fazerem a saudação imperial.
Schaia III parecia um cachorro que levara o maior carinho de seu dono quando
corria pelos corredores da nave até chegar em seu quarto imperial. Quando chegou,
colocou todos os controles em funcionamento para rever a cena que ocorrera com ele
na praia.
Ele via-se saindo de sua cabana com um olhar quase magnetizado, com uma
satisfação no rosto de quem tinha tomado Pralplenart, a droga que simulava o sentimento de amor. Mas aquilo que sentira era real e não o efeito da maldita tecnologia de
sua época. Viu-se caminhando pela praia e sentiu de novo aquele cheiro doce de mar
e vegetação. Tudo “sampleado” pelas máquinas do império. Então, ao caminhar pela
praia viu-se diante da cena fatídica, mas nada havia ali nos “samplers” do império. Via
apenas as crianças brincando em seus castelos e as montanhas com o pôr-do-sol como
pano de fundo, nada mais, nem um ser em sua frente.
Quase que histericamente apertou os botões do equipamento para mudar a
visão. Colocou na visão da nave, nada. Colocou na visão das crianças, nada. Tentou a
leitura de calor, nada; de frio, nada. Não existia nada entre ele e as malditas crianças,
nenhum ser divino. Apenas a mágoa que agora começava a subir por sua garganta.
Schaia III começou a soluçar, a berrar. Jogou-se ao chão, após ter quebrado o equipamento que não tinha transmitido aquilo que ele desejara.
Imediatamente, entrou meia centena de guardas em seu quarto. A cena era
estarrecedora. O imperador do universo em posição fetal no chão, aos prantos. Um
comandante da nave entrou no quarto e mandou todos os soldados saírem.
– Volte imediatamente para Plan Ex – ordenou Schaia III. E quando o comandante saiu, entrou no mundo dos sonhos.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Schaia III em Cosmos
O lugar era o maior lugar em que Schaia III já estivera.
– Meu Deus do céu! – Schaia III gritava, contente. – Isto é maior que Plan Ex
inteiro!
E realmente era. Estava dentro do Templo de Cosmo, o lugar agora se achava
deserto. Subia com afinco as imensas escadarias. Ao chegar no meio do templo, quase
teve um colapso dentro do seu próprio sonho. Viu as terras sonhadas e no meio estava
o Planeta Azul, como centro daquele universo.
– Deus! Isto não pode ser sonho, é muito real. Não pode ser sonho! – dizia para
si mesmo em voz alta.
Então, conseguiu se libertar da maravilhosa visão e entrou no templo onde as
crianças haviam sonhado por milênios sustentando aquele lugar. Nunca imaginara que
isso pudesse ter acontecido, mas sentiu ali uma energia poderosa, uma energia que
dava calafrios. Continuou seguindo em direção ao meio do gigantesco templo.
– Quem poderia ter tamanha tecnologia para construir um lugar como este? –
perguntava para si mesmo. – Meu Deus! Quando isso vai acabar? – falava, olhando
indignado para o teto que parecia não ter fim.
Uma voz veio do nada, quase o matando de susto.
– Schaia III, você está num sonho! Se voar poderá ir mais rápido.
– Isto é loucura! – gritou. – Quem falou isso? Como posso saber que estou
sonhando e não acordar?
– Porque este sonho não é seu! – disse a voz. – É de Ortal.
– Quem está aí? Apareça imediatamente!
Mas a voz se calou. Então, experimentou algo que era impensado. Sim, ele
estava voando!
– Para a frente! – gritava.
E assim foi, bem mais rápido, cruzando o templo das crianças adormecidas.
Avistou lá ao longe, no que supunha ser o centro do templo, a luz que Muir-Iled havia
visto um dia. Avançou a um palmo do chão até lá.
Ao chegar perto, porém, a luz foi diminuindo e ele não conseguia discernir o
que iria encontrar. Só a alguns metros da estátua, ele conseguiu ver o que era. Sim, era
o próprio ser que havia visto nas areias de Anacom! Então, Schaia III caiu de novo,
desmaiou de novo, mas agora dentro de Cosmo, dentro do sonho que um dia fora de
Ortal.
Sentiu aos poucos, uma mão batendo delicadamente em seu rosto. Acordou
nos braços de um ser que parecia ser um monge muito jovem.
– O que faz aqui, rapaz? – perguntou o monge, com uma voz delicada. O
monge tinha uma capa prateada muito brilhante. – Por que não está com os outros
informando todo o povo do nosso feito?
– Que feito? Quem é você? – perguntou Schaia III.
– Sou o Mago Neres – respondeu o monge. – Você, você... não é daqui? Você
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
não faz parte deste mundo, eu consigo notar! O que veio fazer aqui? O que faz em
frente à referência divina? O que faz em frente ao Mago de Prata? – agora o Mago
Neres estava de pé, com indignação na face.
– Eu, eu não sei – disse Schaia III, assustado. – Eu achei que estava sonhando.
– Sim, você está sonhando, mas está sonhando dentro do sonho de Ortal.
Então as coisas começaram a diluir-se. O Mago Neres parecia um fantasma
e tudo à sua volta desapareceu. Schaia III começou a cair e cair, pois estava muito
alto. Enquanto caía, viu o mundo do sonho do alto e viu algo que chamou muito a sua
atenção. Um imenso Planeta passar por um buraco na terra lá ao longe. A superfície
se abrira para a passagem do Planeta e depois se fechara de novo, e o Planeta ia como
um imenso asteroide vagando por sua órbita.
Schaia III acordou em seus aposentos em Plan Ex.
Muir-Iled
Vagando por aquele mundo aparentemente inabitado, Muir-Iled, agora com
um certo receio de que alguém o perseguia por entre as florestas e campos abertos do
Planeta, questionava a si próprio sobre o que o Mago de Prata lhe havia dito.
“Isto aqui está um tanto esquisito. Não é para eu aprender uma certa cultura
fora do reino dos sonhos de Ortal? Pois que espécie de mundo é este, sem ninguém?
Parece que apenas eu estou habitando este lugar, que, embora magnífico, não passa
do próprio Cosmo que eu habitava antes, muito diferente devo dizer, muito mais real,
porém com o mesmo fundamento daquele que Ortal tinha sonhado.”
Andava agora como nas terras do sonho, porém com consciência de estar vivo,
de ser matéria, de sentir a matéria como nunca antes tinha sentido. Estava muito feliz
com isto, porém preocupado.
À sua frente só existiam terras verdes, longínquas, infinitas, que faziam dele
um ser muito pequeno, minúsculo, a vagar sem sentido por entre oceanos de rios,
florestas, campos e rochas.
Muir-Iled começou a ficar quase exausto devagar por aquelas terras, e o pior,
sentia- se solitário. Sua solidão era questionável, pois era um menino muito sozinho
nas terras de Ortal, mas sabia que existiam mais “pessoas” a vagar por aquele mundo.
Certo dia tinha ido com seu pai, agora morto, para uma pequena vila. Seu pai trocara
coisas com outras pessoas. Ele não entendia como isto funcionava. Parecia ser uma
espécie de troca fictícia, pois sabia que tudo que seu pai trocava de nada valia para
eles, era como fazer aquilo apenas por fazer. Nunca tinha questionado seu pai, pois
tinha medo de o próprio pai não saber as respostas.
Nunca havia sentido fome antes, perambulava pelo mundo de sonhos apenas
por perambular, assim como todos ali. Foi então que começou a perceber certas
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
questões.
O Mago de Prata havia falado para ele que as pessoas que morriam iam para
os confins do sonhar, e morriam lá para expandir as terras do sonhar. Assim como
aquelas crianças rezando por toda a vida sustentavam o sonhar, as pessoas que morriam expandiam as terras.
Então, concluíam que os habitantes daquele sonho nasciam de alguma forma
inexplicável apenas para prolongar o sonho de Ortal. Que coisa estranha. Agora que
ele tinha esta sabedoria, em parte dada pelo próprio Mago de Prata, começou a entender. Nós éramos escravos daquele mundo. Éramos seres pensantes, mas manipulados de forma a não pensar, pois não tínhamos estes questionamentos. Estávamos ali
apenas por estar. Mas qual a razão de expandir este mundo sem sentido?
Lembrou-se do que o Mago de Prata falara, este mundo se tornará matéria. Pelos deuses! Isto era loucura! As terras em expansão do sonhar eram como um imenso
anel achatado que iria dividir todo o universo em dois!
Não tinha se dado conta de que caminhava por terras agora um pouco estranhas. Eram árvores com imensas frutas mas não da forma como havia visto nas florestas anteriores; as árvores estavam em perfeitas fileiras! Imensas! Muir-Iled seguiu
então uma destas fileiras e lembrou-se dos corredores de crianças a rezar sustentando
Cosmo.
“Ah, se eu pudesse voar aqui nestas terras!” Sim, se ele pudesse voar como
voara no templo. Então parou. Agora estava certo. Alguém estava a observá-lo!
– Quem está aí? – gritou.
Nada. Começou a sentir um pouco de frio. Pegou um pouco das frutas e tentou
encontrar um lugar para dormir. Alojou-se embaixo de uma enorme árvore. Comeu
algumas frutas e, enleando-se em sua capa, dormiu.
Ao acordar ficou extremamente surpreso. Estava coberto com um manto, muito lindo e bem feito. Com um tecido que jamais vira em sua vida, era óbvio. Como
poderia ver ou sentir algo assim, afinal Ortal poderia ter criado todo aquele mundo,
mas não poderia ter pensado em tudo. Mas de onde viera aquele manto? Ele o abriu e
percebeu que havia uma figura maravilhosa estampada no tecido, uma flor feita com
o próprio tecido mas de cores diferentes, criando aquela forma. Muir-Iled apalpou a
enorme flor ali feita e gritou:
– Apareça! Por favor, apareça! Estou aqui perdido, este não é meu mundo! Será
que vocês não podem me ajudar?
De novo o silêncio, logo depois de alguns pássaros saírem, indignados pelo
barulho de seus berros. Muir-Iled abaixou a cabeça, olhando para o pano.
– Bem, pelo menos acho que, seja lá quem for, é pacífico. Engraçado, havia
uma certa preocupação na voz do Mago de Prata...
Nesse momento, um vento começou a soprar, quase que cantando um lamento
triste por toda a parte. Muir-Iled olhou pasmo, enquanto o vento se acalmava junto
com o canto. Ele ficou muito assustado e seguiu pela trilha numa manhã ensolarada.
Caminhou o dia inteiro, empanturrando-se de deliciosas frutas do imenso pomar. Chegou à beira de um pequeno lago de onde partiam todas as fileiras de árvores.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Já era quase o entardecer, mas Muir-Iled não pensou duas vezes para entrar no
convidativo lago. Para seu maior espanto, a água era morna! Ficou ali boiando nas
águas rasas enquanto caía o anoitecer. Muir-Iled tinha certeza que havia mais alguém
ali com ele. Encostou a cabeça numa pedra e fingiu que estava dormindo, com os olhos semifechados. Então viu surpreso o que o seguira. Eram duas pequenas beldades
femininas que o observavam em meio às árvores frutíferas. Dois seres muito pequenos que emanavam uma luminosidade, iluminando as próprias árvores onde estavam
escondidas. Tinham dois olhos sorridentes e arregalados olhando o corpo do menino;
flutuavam em meio às brumas das águas do lago.
Elas se olharam sorridentes e Muir-Iled teve que fazer um enorme esforço
para não sair correndo nu dali quando as duas abriram duas enormes asas de borboletas e alçaram vôo em sua direção. Uma delas estava agora bem perto de seu rosto.
Era realmente muito pequena, quase do tamanho de seu braço esticado. Ela foi se
aproximando cada vez mais. Muir-Iled estava à beira de um ataque, mas se conteve.
A pequena fada, num impulso de coragem encostou seu lábio no lábio dele, dando-lhe
um pequeno beijo! As duas então desapareceram como que por encanto, quase que se
matando de rir.
Muir-Iled não se mexia! Estava pasmo, mas conseguiu esboçar um sorriso depois de algum tempo de susto. Levantou-se calmamente e deitou na relva que cercava
o lago. Tornou a semicerrar os olhos e esperou. Lá estavam elas de volta. Agora um
tanto assustadas, vigiavam-no a certa distância, flutuando no meio do lago.
Muir-Iled esperou-as chegarem um pouco mais perto e abriu bem devagar os
olhos. Fitou aqueles seres agora paralisados, tão abismados com a presença dele ali,
como se ele fosse a coisa mais anormal do mundo. E na verdade ele era.
– Quem são vocês? Meu nome é Muir-Iled.
Foi o bastante para as duas quase caírem de susto. Ficaram paradas por um
momento, mas logo saíram gritando, como se tivessem sido perseguidas por algum
animal feroz. Muir-Iled ainda tentou ficar de pé e falar alguma coisa mais, mas já era
tarde, tinham sumido.
Plan Ex
– O senhor está bem? – perguntava um dos médicos que se postara nos cuidados do imperador.
– Solicite uma audiência com todos os pesquisadores e cientistas que se encontram no Planeta trabalhando no Projeto Descoberta – disse Schaia III.
Projeto Descoberta fora o nome dado ao empreendimento que deveria visualizar o problema que levara Schaia II ao suicídio.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Duas horas mais tarde, Schaia III estava de novo trancado com os melhores
cientistas e pesquisadores do império na sala oval.
– Muito bem, senhores – Schaia III estava muito diferente, parecia muito brilhante, quase alegre.
Seu rosto não transmitia nenhuma diferença, era frio como tinha se tornado
nos últimos meses, fruto da expectativa de solucionar o problema. Mas todos naquela
sala sabiam que algo tinha mudado, aquele ser parecia ter rejuvenescido. Não que
Schaia III parecesse velho, mas todo o aspecto da situação o deixara amargo como
seus ancestrais, nos últimos anos de governo. O imperador agora parecia belo, uma
beleza peculiar, aquela beleza que qualquer adolescente transmite por nunca ter passado pelas incansáveis teias maléficas do amadurecimento.
– Gostaria de apontar um foco para a nossa pesquisa. Todos os cientistas aqui
presentes devem abandonar qualquer atividade anterior, por mais significativa que
possa ter aparentado, e se voltar a uma nova pesquisa.
Houve um grande murmúrio pela sala. Schaia III porém, não deu ouvidos a
isso e continuou.
– Gostaria que toda a nossa tecnologia fosse condicionada a qualquer alteração
energética significativa no campo de ondas alfa. Como estudante do Planeta Carmel,
sei que temos tecnologia suficiente para isso, afinal – agora ele estava sorrindo – todos
nós, quando pequenos, brincávamos com os aparelhos de decodificação de sonhos.
Mas devo dizer que uma equipe deve ser formada até esta noite para analisar meus
próprios sonhos.
A sala estava silenciosa. Aquela era uma decisão quase que absurda para
aqueles cientistas. Schaia III estava, nas últimas reuniões, extremamente arisco, e
ninguém tentou questionar qualquer decisão que ele tomara. Porém aquilo era um
absurdo, e visto que Schaia III parecia estar um tanto de bom humor, um dos cientistas
que era mais íntimo dele como estudante em Carmel, perguntou:
– Caro imperador, sabemos da importância do caso. Gostaria apenas de alimentar minha curiosidade sabendo como uma reviravolta tão drástica nas nossas pesquisas poderá ser favorável.
– Estamos lidando com este problema há meses e até agora nada no plano
material foi descoberto, nem mesmo um desalinhamento na moda do penteado no Planeta Curloc foi descoberto – todos riram com a piada. – Então tive uma ideia, quase
como um aviso de que nossas forças deveriam ser voltadas a este plano, a este aspecto.
Se alguém tem alguma dúvida, por favor, se pronuncie.
Agora era demais! Schaia III voltara ao normal, estava até sendo democrático
de novo. Isto deu um impulso de otimismo aos cientistas. Todos se levantaram, fizeram o sinal de cordialidade ao imperador e saíram. Quando Schaia III ficou sozinho,
na imensa sala oval, pensou: “se não encontrarem o maior problema que nossa civilização já enfrentou, pelo menos irão encontrar aquele ser para mim. Deus! Isto não
pode estar acontecendo comigo...”
Uma semana após aquela reunião, Schaia III ficara muito doente. Não havia
nem sinal de qualquer aparente desordem no sistema referente a ondas alfa. O Projeto
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Sonho, como fora denominado, não demonstrou nenhuma alteração de qualquer padrão dentro do espaço do império.
Mas havia uma alteração categórica: era Schaia III. O rapaz entrara num labirinto crescente de sentimentos e confusões. Não queria obviamente mostrar isto de
maneira nenhuma, mas toda a corte só falava nisto. Estava branco, quase não comia,
e perdia-se em melancolia pelos jardins do palácio imperial. “Estou apaixonado, terrivelmente apaixonado por um sonho. Por um sonho...” E repetia isto na sua cabeça.
“Não consigo nem me lembrar de suas feições. Meu Deus, como pode isto estar acontecendo?”
Mas estava. Schaia III foi envolvido de tal maneira com este sentimento que
a sua melhora na reunião logo desapareceu. Não se tornara aquele quase déspota que
estava na iminência de surgir, mas, pelo contrário, tornou-se quase um ser à parte.
Nem lia os relatórios, apenas perguntava a seus assessores se existia alguma novidade.
– Não senhor. Infelizmente nada – respondiam.
Houve uma pesquisa minuciosa em seus sonhos, que eram passados e repassados em telas de vivência, e nada: nem sinal do sonho que tivera.
Após duas semanas, reuniu de novo o conselho de cientistas e decidiu algo
jamais esperado.
– Os sinais de recepção devem ser instalados nos Planetas fora dos limites de
nosso espaço – disse ele calmamente, quase como se não estivesse ali.
Agora, o que era para ser um murmúrio tornou-se um grande alarde na sala
oval. Cientistas quase berravam em desaprovação. Schaia III fez um sinal e uma tropa
de duzentos soldados entrou na sala com armas engatilhadas. Os cientistas logo se
sentaram em silêncio.
– Nós conquistamos este império – disse Schaia III, agora com ar digno de
um imperador. – Temos expandido nossos territórios por milhões de anos-luz. Não é
porque há milênios tivemos uma tentativa frustrada de tentar cultivar um Planeta fora
de nosso território energético que devemos tremer atrás de nossas fronteiras. Viemos
de um Planeta que derrotou os absurdos religiosos. Cultivamos a matéria. Nossos
deuses são a nossa tecnologia e nossa energia. Temos em nossas mãos a maior fonte
energética do universo. Deveremos enfrentar as tagarelices populares da má-sorte trazida pelo desconhecido.
Os cientistas nada falaram, afinal foram educados sob o medo da derrota que
esta civilização sofrera quando tentaram colonizar um Planeta distante, há milênios.
Era chamado popularmente de Planeta do Terror, mas conhecido como o Planeta Azul.
De todos os cientistas, o mais experiente e mais velho era um simpático ser
chamado Fladrim. Todos respeitavam suas decisões e quase todos ali foram seus alunos. Quando ele se levantou, os guardas postaram suas armas contra ele, mas Schaia
III interferiu.
– Caro Imperador! Sei de nossas capacidades mais que qualquer um aqui. Não
tenho medo algum de invadirmos o espaço exterior às nossas fronteiras, pois nunca
fui ligado a dogmas religiosos ou de ordem emocional. Há fatos castradores ligados
a esses dogmas. Sempre acreditei que todo este problema viesse do espaço externo,
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
porém nunca mencionei isto pelo fato do medo imposto à colonização do Planeta
Azul. Porém...
Schaia III ficou branco. Afundou-se em sua cadeira e abriu a boca pasmado.
Imediatamente o velho parou de falar e todos votaram a atenção a Schaia III.
– Senhor? – disse o velho.
Os guardas ficaram alterados. Ouviu-se um grande murmúrio na sala. Schaia
III tentou falar, mas as palavras não saíam. Desfaleceu ali mesmo. Os médicos entraram em cena imediatamente. Foi implantado um leitor de sinais na cabeça de Schaia
III. Os sinais revelaram uma imensa carga energética de ondas alfa. Deslocaram
Schaia III a uma sala hermética com um decodificador de sonhos.
Schaia III estava tendo espasmos enquanto sonhava. Todos os seus sonhos
estavam sendo decodificados e guardados em arquivos que somente ele poderia rever;
esta era uma regra de ética absolutamente inquebrável, sob pena de morte no império
inteiro.
A única preocupação dos cientistas encarregados era saber se Schaia III sobreviveria a tal aparente sofrimento.
Muir-Iled
Após o desaparecimento das pequenas fadas, Muir-Iled demorou para dormir.
Ao amanhecer, tornou a se banhar no lago morno e continuou sua caminhada pelo
gigantesco pomar. Seus pensamentos estavam confusos. Tornara a se lembrar de
seu sonho com o Mago de Prata, que parecia estar tão distante. Era engraçado como
aquele mundo de sonhos divergia deste mundo em que se encontrava. Não só o sonho
que tivera mas o próprio reino de sonho que vivera até então. Na verdade, o sonho
com o Mago de Prata parecia quase irreal, algo falso, criado pela mente de Ortal. Sim,
era como se Ortal tivesse recriado o Mago de Prata em seu próprio sonho e tivesse
imposto tudo aquilo para ele. Mas isso estava se tornando estranho. Como ele poderia
saber que era um Mago de Prata falso se ele mesmo nunca tinha visto o verdadeiro?
Na verdade ele poderia saber, pois o sonho que tivera dentro do sonho de Ortal seguia
o mesmo padrão, as mesmas características das terras de Cosmo, o que divergia totalmente daquelas paragens em que ele se encontrava.
Muir-Iled sabia que alguma coisa estava muito errada. Começou a se assustar
com seus próprios pensamentos, a duvidar até mesmo de seu passado, pois parecia
ser um passado ilusório e, à medida que caminhava por aquelas terras mágicas, seu
mundo anterior parecia desaparecer de sua consciência. Ele já não conseguia mais se
lembrar de tudo aquilo, como um sonho sem importância que vamos esquecendo à
medida que acordamos.
O grande problema para Muir-Iled era que ele estava vivendo avidamente
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
aqueles momentos. Aquele mundo era algo de grande poder e ele sentia vida naquele
lugar. Ele via animais jamais imaginados, cheiros absurdos e principalmente, cores.
Definitivamente, as cores daquele lugar eram o que mais o impressionava e quanto
mais sentia o lugar, menos conseguia comparar com Cosmo. Cosmo se tornara tão
apagado quanto o sonho que tivera com o Mago de Prata.
Em meio a esses pensamentos, Muir-Iled não percebeu que tinha saído do pomar, mesmo porque o pomar se mesclava com uma floresta que surgia vagarosamente
em meio às árvores frutíferas. Foi só quando ele estava no meio dessa nova floresta
que percebeu o tamanho das árvores. Eram gigantes, absurdamente gigantes. Deparou-se com uma delas e ficou petrificado. Era uma parede que se elevava muito acima
de sua cabeça e quando olhou para cima reparou que não era o tronco da árvore, mas,
sim, uma de suas pequenas raízes que se entrelaçava com as demais num confuso
labirinto para os olhos. Muir-Iled ficou acompanhando essa raiz até o tronco e então
percebeu que não iria conseguir enxergar o topo da árvore. Teve que andar muitos passos para desviar esse monstro e ficou abismado com o surgimento bem mais distante
de uma outra. E assim a floresta se seguia.
“Meu Deus! Eu sou uma formiga!” Muir-Iled riu com este pensamento, mas na
verdade estava assustado. Pelo menos poderia caminhar por entre as imensas raízes
que saíam do chão, pois, devido ao seu tamanho, ele podia passar por baixo delas.
Então as raízes começaram a formar um imenso túnel sem fim. Agora quase não conseguia ver o céu, apenas pontos azuis por entre o emaranhado de raízes que cobriam
sua cabeça.
Muir-Iled parou e pela primeira vez sentiu o perigo iminente. Estava em meio a
uma escuridão quase palpável. Ouviu ao longe uma respiração ofegante que se transformava num terrível eco atravessando as raízes. Então, escalou uma das imensas
raízes e subiu o mais alto que pôde. Estava muito alto agora, embora pudesse ver o
chão. Notou um movimento estranho lá em baixo. Eram criaturas cinzentas sobre
quatro patas. Rondavam o lugar onde estivera, cheirando o solo, e acompanharam o
cheiro para onde Muir-Iled tinha ido. Mas, aliviado, percebeu que tais criaturas não
podiam escalar as íngremes paredes por onde tinha subido. Com olhos vermelhos,
olharam para o alto e viram Muir-Iled. Começaram a uivar em sua direção. Ele se
escondeu por entre as raízes. Sentou na enorme superfície e começou a chorar.
Quando a noite caiu e o lugar se transformou em uma cortina negra, ele olhou
para baixo e ainda viu pontos vermelhos, luminosos, a rondar o lugar. Os uivos aos
poucos cessaram e Muir-Iled, enrolado no seu novo manto, adormeceu.
Agora seus sonhos eram floridos. A passividade imposta pelo Cosmo de Ortal
já não existia em sua consciência. O fator relevante era mais realista, mesmo seu
sonho ia se tornando mais real, com mais sentimentos. Muir-Iled sentia pertencer a
este novo lugar e como uma memória artificial ele possivelmente podia pensar que
nasceu ali, cresceu e sabia de todos os segredos daquele lugar. É claro que isto era um
exagero, visto o pouco tempo que passara ali, mas, em sua cabeça, as coisas foram se
transformando e ele começara a criar um novo passado, pois o seu passado surreal já
quase não existia em sua memória. Seus sonhos eram com aquele lugar e não mais
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com Cosmo. Era como se não apenas seu consciente estivesse esquecendo, mas seu
inconsciente também.
Quando acordou, com poucos raios penetrando por entre as gigantescas raízes,
Muir-Iled sentiu um cheiro ao mesmo tempo estranho e delicioso. Logo à sua frente
havia uma maravilhosa cesta com algo que identificou como um tipo de alimento, algo
que ele jamais vira em sua vida. Mas espere! Não era tão estranho para ele afinal de
contas. Sim, ele já vira aquilo em algum lugar, apenas não sabia onde.
Postou-se diante da cesta, pegou um punhado das esverdeadas folhas que
tão magnificamente lhe sorriam com uma luminosidade ofuscante. Cheirou muito
desconfiado o exuberante punhado e achou muito estranho, não havia cheiro de nada!
Mas, espere um instante, pensou. Se eu acordei com um cheiro delicioso e parecia vir
daqui, como é que isto não está cheirando mais? Tentou se lembrar do cheiro e imediatamente as folhas começaram a exalar tal cheiro. Muir-Iled ficou de pé.
– Isto é magnífico! Agora eu quero que cheire àquela pequena frutinha azul
que peguei dias atrás... – lembrou do cheiro e as folhas logo estavam não só exalando
o cheiro, mas com as mesmas cores da tal fruta. – Hei! Isso já é demais! – falou sorridente.
Com muito cuidado, lambeu um pouquinho das folhas.
– Nossa! Mas isso tem o mesmo gosto daquelas frutinhas! – e comeu avidamente aquele punhado.
Então pegou mais um punhado e pensou em outra fruta. A magia continuou,
as folhas mágicas tornaram-se exatamente o que Muir-Iled queria, não só cheiro mas
cor e gosto também.
Muir-Iled fez várias experiências. Cheirou a árvore onde estava em pé e descobriu que aquele tipo de árvore tinha um gosto muito estranho, meio amargo. Então,
cheirou a sua própria mão e experimentou.
– Nossa! Que horror – gritou.
Nesse momento ouviu uma série de risos por entre a floresta.
– Oi, fadinhas! – gritou de novo. – Obrigado por estas... por estas... folhas
mágicas!
Elas riram de novo, mas agora deveriam ser mais de duas. Muir-Iled deu de
ombros e continuou a comer, divertindo-se com as cores e gostos que inventava.
Depois de comer quase metade da cesta, Muir-Iled ficou com muito sono.
– Nossa! Eu acabei de acordar e já estou com sono. Devo ter comido demais!
Acho melhor andar um pouco.
Lembrou-se com um pequeno espasmo da noite anterior, das criaturas maléficas de olhos avermelhados lá embaixo, não teve coragem de descer. Olhou para seu
manto e deixou-se cair novamente no sono. Adormeceu profundamente.
As fadas agora o envolviam. Eram cinco ao todo. Por alguma razão elas não
estavam com medo.
– Olá! – disse Muir-Iled.
– Oi, Muir-Iled – disseram as fadas em conjunto. – Nós não somos fadas, MuirIled! Nos chamamos as Irmãs Floresta. Mas cada uma de nós tem um nome.
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– Como sabem meu nome?
– Nós não sabemos, ou melhor, agora sabemos.
– Como assim?
– Nós estamos no seu sonho! E aqui dentro sabemos tudo sobre você.
– Onde estou?
– Você está no Planeta Azul. E nós somos as filhas desta terra, irmãs da floresta
e filhas da Irmã Floresta e de Ortal.
– Vocês são filhas de Ortal?
– Sim! Ou melhor... somos descendentes dele e da Irmã Floresta, e vivemos
neste mundo há muito tempo. Agora nosso povo está só, pois já não existe mais nenhum outro povo, a não ser os animais que nesta terra habitam. Nós nunca tínhamos
visto alguém como você. De onde você veio?
– É difícil explicar. Mas será que não dava para eu acordar? Passei minha vida
inteira dentro de um sonho.
– Tem certeza que não vai nos fazer mal?
– É claro que não!
Muir-Iled acordou assustado.
– Mais um desses sonhos estranhos – falou para si mesmo. Não existia nenhuma fada perto dele. Ficou de pé e vasculhou o lugar com um olhar preciso. Então,
percebeu uma luminosidade atrás de algumas folhas lá em cima, entre as gigantescas
árvores.
– Irmãs Floresta! – gritou.
As pequenas fadas apareceram timidamente, escondendo-se o quanto podiam
por entre as folhas.
– Podem vir! Não lhes farei mal!
As fadas chegaram muito depressa. Muir-Iled levou um susto e se encostou
na enorme raiz atrás dele, elas riram. Uma chegou bem perto de seu rosto. Fez uma
careta e levantou as duas mãos como querendo dar um susto nele. Ele quase deu um
pulo. Todas riram de novo.
Logo ele esboçou um pequeno sorriso e foi se sentando calmamente.
Elas estavam bem em sua frente, olhando-o admiradas.
– É melhor o levarmos conosco – disse uma delas.
As outras concordaram e para total espanto de Muir-Iled, elas o agarraram por
seu manto prateado e levantaram voo com ele.
Muir-Iled só não gritava porque lhe faltava voz. Estava subindo por entre as
gigantescas árvores e agora já estava sobrevoando o topo das mesmas. As fadinhas
não paravam de rir ao perceber o espanto do rapaz. Após algum tempo sobrevoando a
floresta gigante, eles aterrissaram em uma clareira. Elas estavam em sua frente esperando que ele se recuperasse do seu primeiro vôo.
– Agora Muir-Iled – disse uma delas – nos conte de onde você vem. Nós precisamos saber.
– Não sei se vão acreditar – disse Muir-Iled, um tanto constrangido. – Mas sou
um habitante de um sonho, se bem me lembro de um sonho feito há muito tempo atrás
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
por um ser chamado Ortal. Ele sonhou este lugar onde eu habitava porque acho que
ele queria que um menino voltasse à vida. O nome desse menino era Mago de Prata
e parecia que este Ortal gostava muito dele. Este Mago de Prata me apareceu num
sonho dentro do sonho de Ortal, falando que eu deveria fazer não sei o que numa terra
habitada por uma gente muito estranha. Me disse que isto faria que o sonho de Ortal
pudesse se tornar real. Mas acho que fui mandado para o lugar errado. Afinal, não vejo
nem sinal de uma civilização estranha por aqui, pelo menos nada do que o Mago de
Prata me havia dito!
As fadas estavam com os olhos esbugalhados e muito pálidas. Nada falavam e
tinham um olhar quase vago, embora parecessem pensar muito.
– Será que eu falei algo errado? – perguntou Muir-Iled, assustado.
– A lenda! – sussurrou uma delas – Está acontecendo!
– Que lenda? – perguntou Muir-Iled. – Já me falaram isso uma vez.
– Mas ele não está cego! – disse outra.
– Sim... a lenda dizia que Ortal iria tentar uma vingança em nome do Mago de
Prata. Graças aos Cristais, ele veio parar aqui!
– Foi o Mago de Prata que assim desejou, tenho certeza!
– Podem me dizer o que está acontecendo? – perguntou
– Não – disseram as três juntas. – Mas você deverá esperar aqui, Muir-Iled.
Neste lugar você estará protegido. Nós deveremos retornar e mandaremos alguém que
cuidará de você. Não se preocupe. Você estará protegido.
Elas começaram a desaparecer.
– Ei, calma!
– Não se preocupe, Muir-Iled. Alguém retornará!
E sumiram.
Cosmo
O Mago Neres se postara diante de uma multidão de espectros. Ele jamais
poderia pensar que aquele sonho era tão povoado. Eram milhares de “pessoas” que
tinham vindo de várias partes de Cosmo para saber o que estava por interromper suas
pacatas vidas.
Na verdade, eles eram apenas coadjuvantes num sonho. Suas vidas eram apenas um lamento criado por Ortal para sustentar um sentimento obsessivo. Estavam ali
apenas para expandir aquele sonho. Teriam que ir, numa certa “idade”, para as fronteiras do sonhar, para serem transformados em terra de sonho. Cada vida daquelas era
transformada em milhares e milhares de quilômetros de sonho que ia se espalhando
pelo universo. Mas agora isso não era mais necessário. Segundo o Mago de Prata nin-
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
guém necessitava morrer mais, afinal, o sonho estava por se expandir por si próprio.
O Mago Neres estava um tanto nervoso, pois era a primeira vez que falava
para tantas pessoas juntas. Estava na beira de um grande penhasco, em cima de uma
pedra de uns dez metros de altura. A cidade se espalhava pelo descampado aos pés
da imensa coluna de rochas. Como não poderia deixar de ser, as rochas eram feitas
do mais puro cristal laranja, cuja luminosidade clareava permanentemente a cidade.
Era uma cidade muito bonita, toda ela feita nos moldes da antiga aldeia de Ortal, com
suas casas de telhados laranja e ruas bem acabadas. A única diferença é que era uma
cidade sonhada e portanto nada tinha a ver com uma cidade normal. Nada precisava
funcionar, pois fazia parte de um sonho. A maior diferença era o céu, sem atmosfera,
negro como o universo deve ser, com vista para as estrelas e Planetas que pareciam
estar tão perto.
Foi naquela cena onírica que Mago Neres começou seu discurso:
– Há dez mil anos vivemos e há dez mil anos morremos da mesma forma.
Todos nós, sem exceção, teremos a mesma forma de morte, sempre nos confins da
fronteira da auréola, a fina terra que se expande ao espaço infinito. Mas sabemos que
um dia morreremos de outra forma.
“Um dia, a aureola chegará aos confins do universo e então surgirá o messias,
o messias que encarnará o Mago de Prata e então morreremos por Ele.”
Todo o povo estava atento àquelas palavras, pois era a única coisa em suas
vidas que os interessava. Era por isso e apenas por isso que existiam.
– Não chegamos aos confins do universo ou quem sabe chegamos e não sabemos, pois o Mago de Prata foi encarnado e está em algum lugar agora, formando
o nosso destino. Não necessitamos morrer mais, apenas vamos esperar seu regresso
com as boas novas.
“Devo dizer-lhes do que somos feitos. Somos parte de um sonho! Nossa civilização se tornará logo outra, de uma forma diferente. Iremos habitar um outro plano,
iremos nos tornar matéria, mas para isso haverá uma grande tormenta. Deveremos
lutar para isso.”
Todo o povo estava boquiaberto. Nem imaginavam do que aquele ser estava
falando. Afinal, por que deveriam mudar, se não iriam morrer mais nas fronteiras?
Estava tudo muito bem, não estava? Eles tinham suas vidas pacatas, sem nada por
que lutar e nada a fazer, a não ser existir, não tinham? Então porque deveriam lutar?
O Mago Neres percebeu essas questões nas faces dos habitantes do sonho e
continuou:
– Não sentem falta de nada? Não sentem um vazio em suas vidas? Já se perguntaram o que fazem aqui e por quê? Levam uma vida pacata sem nada a fazer,
suas vidas foram programadas. De que adianta viverem assim? Vocês sabem como
surgiram? Sabem como nasceram? Seus pais são seus pais apenas por serem. Não percebem que vocês não nasceram deles e sim, foram postos neste mundo como mágica?
O povo começou a se inquietar. Sabiam que existia um certo sentimento de
vazio em todos, como se suas vidas não tivessem valor algum, pois nada precisavam
fazer para viver. Mesmo que tivessem sido criados por um sonho, eles faziam parte de
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
uma mente que havia vivido realmente, que havia habitado uma terra divina, sentido
fome, sede e necessidades, que havia principalmente amado e venerado um ser que
agora estava por mudar tudo isso. Sim, todo aquele povo começou a entender que
lá no fundo de sua existência havia algo mais. Havia um mundo a ser descoberto e
vivido de uma forma mais real mais intensa.
Então, o Mago Neres disse:
– Eu tenho algo que faz parte de vocês, algo que pertenceu a seu criador e foi
passado a mim, e que agora eu o repasso a vocês. Dividam e sintam o que os espera,
o mundo em que vocês irão habitar.
Tirou um imenso cristal verde de seu bolso e jogou de cima da rocha em que
se encontrava. O cristal caiu na rocha de cristal laranja lá em baixo, espatifando-se
em milhares de pedaços. O som foi ouvido por todas as partes de Cosmo. O cristal
verde começou a se mesclar com o cristal laranja e o imenso muro de rocha laranja
transformou-se em cristal verde.
– Este penhasco é agora a memória de Ortal. Agora vocês poderão saber como
surgiram. Apenas encostem suas cabeças na rocha verde e sintam as memórias de
Ortal.
Foi assim que se espalhou por todo o Cosmo a notícia de que Mago Neres havia transformado a parede de cristal laranja em cristal verde. A cidade, então, passou
a ser chamada de I Cidade Sagrada da Memória Esverdeada de Ortal. E começaram a
surgir peregrinos de todas as partes para reverenciar o Penhasco Verde.
Plan Ex
Schaia III acordou inteiramente molhado de suor na sala hermética. Imediatamente ordenou que queria ficar sozinho. Os médicos insistiram que ele necessitava
de cuidados, mas Schaia III não deu ouvidos. Estava extasiado demais para ouvir
qualquer coisa. Imediatamente começou a rever seu sonho. Aquele equipamento era
de última geração, o que possibilitava não só rever o sonho, mas senti-lo de uma
forma mais forte ainda do que a sonhada. Schaia III ajustou no nível máximo e se
deitou de novo.
Após rever seu sonho, saiu da sala hermética. Ordenou que parassem todas as
pesquisas e que o Império ficasse em prontidão para qualquer chamado seu. Foi então
para a base de navegação espacial e secretamente pegou sua nave particular. Cinco
minutos depois, estava em espaço aberto, sozinho, a caminho do Planeta Azul.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Muir-Iled
A noite caiu rapidamente, fazendo da floresta em volta de Muir-Iled um sinônimo da mais pura solidão. Sentiu que algo em sua vida iria mudar drasticamente. Teve
vontade de correr, mas sabia que mesmo que corresse, estaria condenado.
Percebeu que o lugar estava cercado de fadas iluminando a noite que acabara
de chegar. Uma das fadas se aproximou. Ele estava sentado e chorando. Não se mexia.
A fada despejou em sua volta um pó prateado, formando um círculo. Era uma fada
velha, um pouco maior que as jovens que vieram visitá-lo anteriormente. A fada, com
um olhar severo, falou, apontando o dedo na cara de Muir-Iled:
– Você não deveria estar aqui! Você e todo o seu povo são uma aberração, mas
você se tornará parte de sua própria destruição. Como você foi criado segundo a essência do próprio Mago de Prata, poderemos trazê-lo de volta. Sua centelha de vida
será dada a ele e, assim como diz a lenda, ele retornará para pôr um fim a este absurdo
criado por Ortal!
Imediatamente a fada se pôs a fazer gestos mirabolantes, que ficavam cada vez
mais grandiosos e mais enérgicos. Logo, porém parou. Toda a tribo de fadas-borboletas estava abismada ao redor da clareira. O que era para ser um episódio épico não
passou de uma enervante efervescência de gestos da fada mais poderosa da aldeia. Ela
estava olhando para Muir-Iled, pasma. Ele, por sua vez, não se mexia de tanto medo.
Então, uma das fadas-borboletas que tinham aparecido para Muir-Iled anteriormente se aproximou. Ele estava ajoelhado de cabeça baixa, chorando. A velha
berrou para a fada:
– Como ousa interferir em meu feitiço?
– O seu feitiço não atingiu o rapaz! Não percebe? Seu poder pode atingir a
qualquer um, menos aos que são eleitos pelo próprio Mago de Prata!
– Mas ele não pode ser um eleito! De onde veio senão do sonho de Ortal? Vejam! Ele tem todas as características descritas pelo próprio espírito do Mago de Prata!
Muir-Iled, então, falou:
– Sim, eu venho do sonho de Ortal.
Todos ao redor soltaram um murmúrio. A velha fada se afastou, como se estivesse diante de uma das flores negras das terras frias.
– Não sei por que estou aqui – continuou Muir-Iled –, nem sei por que fui
criado. Agora começo a entender este mundo. Estou me sentindo realmente vivo, mas
ainda não entendo o propósito de tudo isso. Digo-lhes que não trago maldade em meu
coração, se é que tenho um. Mas, como posso perceber, creio que vocês sabem quem
é o Mago de Prata. Pois devo dizer que ele apareceu para mim no sonho de Ortal e me
disse que eu deveria ir a terras distantes para aprender como aquele povo vivia, pois
haveria uma grande batalha com aqueles domínios. E encontrei vocês. Não era exata148
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
mente o tipo de povo que o Mago de Prata me fez pensar que fosse, e agora, vendo
que vocês o conhecem, devo dizer que algo saiu errado.
Toda a aldeia estava se aproximando de Muir-Iled quando ele parou de falar.
Olhavam-se e depois de um longo tempo, a velha falou:
– Vejo que veio aqui com outro propósito, Muir-Iled. Nós estávamos esperando uma aberração, como eu havia dito. Mas, por favor, conte-me sobre esta aparição
do Mago de Prata.
Muir-Iled contou sobre como ele havia chegado a Cosmo e como o Mago de
Prata tinha aparecido para ele. Contou sobre o cristal e como tudo ocorrera e que ele
deveria ser o messias do Mago de Prata e assim por diante, até a chegada dele aquele
mundo.
A velha olhou para toda a tribo que a cercava tomando quase toda a extensão
da clareira, e disse:
– Acredito que este rapaz deveria saber a verdade. Acredito ainda que ele não
esteja aqui por um erro de percurso, mas acho que está aqui por intervenção do próprio
Mago de Prata.
Todos agora olhavam fascinados para Muir-Iled.
A velha fez um sinal para que todos se sentassem. Com alguns gestos acendeu
uma fogueira no chão em frente a Muir-Iled e sentou-se. Fechou os olhos. Muir-Iled
estava assustado, porém conseguia conter as lágrimas. Viu que todos estavam com os
olhos fechados. Algo fez subir seu campo de visão, algo que estava acima de sua cabeça e que se tornara mais forte. Era uma espécie de luz que vinha do céu. Deitou-se,
com os olhos arregalados e viu que o céu estava mudando!
Com cenas escuras viu um ser loiro de cabelos longos chorando pela praia.
Logo percebeu que era Ortal. Notou que suas feições estavam se transformando de
tristeza em raiva, estava agora quase enlouquecido. Com uma força absurda conseguira matar algumas pessoas e tomar um barco. As imagens eram complexas, como
se todos os corpos fossem feitos de estrelas que delineavam a luz, o próprio céu escuro
e as sombras. Era um espetáculo maravilhoso e assustador. Os efeitos sonoros dos
ventos e da tempestade que caía eram bem mais altos que as vozes de Ortal ou de
qualquer animal que se encontrava na cena.
Ortal estava agora atravessando enormes rochas muito brilhantes. Muir-Iled
sentia como se estivesse prestes a cair do céu, pois era como se estivesse no céu e Ortal na terra. Ortal jogava os braços para cima clamando e gritando, suas feições eram
de fúria. Mas não parava. Em meio à tempestade, conduzia o barco por um labirinto
de caminhos entre as rochas.
Agora Ortal chegara à margem do imenso oceano. Várias criaturas muito
pequenas vieram ajudá-lo, criaturas que eram menores que as fadas ao redor de MuirIled e não tinham asas. Mas pareciam ser muito simpáticas e conhecer Ortal. Porém
Ortal, com desdém, se limitou a tirar sua espada e, com golpes e mais golpes, matar
pequenas mulheres e crianças, que, em pânico, corriam para se proteger. Ortal, sorrindo como um louco, parecia ter-se lembrado de seu poder. Correu para a aldeia das
pequenas criaturas e com um gesto ateou fogo em tudo e em todos. Saiu correndo por
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entre a mata e, a uma velocidade incrível, foi deixando um rastro de fogo e destruição.
Chegou então ao que parecia ser uma grande construção, um lugar que outrora
fora uma bela cidade e que agora estava cinza e morta. Ortal fez abrir um portal e entrou com toda sua fúria. Desceu por escadas até um compartimento onde havia muitos
cristais. Os cristais emanavam uma energia frenética e Ortal parecia não perceber.
Apenas se limitou a tirar a roupa e deitar exatamente no meio daquele lugar. Enquanto
Ortal dormia, fora da câmara dos cristais houve um imenso estardalhaço. Podiamse ver pessoas morrendo, aldeias pegando fogo e, mais tarde, uma luz muito forte
apareceu no céu, criando um círculo de fogo ao redor de todo o Planeta. Este círculo
desapareceu, mas criou ao mesmo tempo o sonho de Ortal. Foi de lá que começou a se
expandir, por todo o universo, Cosmo, o reino de onde Muirled tinha vindo.
A velha fada abrira os olhos.
– Nós sabemos disso, pois guardamos os cristais que narram estes fatos. Sabemos que esses cristais estão amaldiçoados pela fúria de Ortal, mas devemos preserválos. Não podemos destruí-los, tememos que caiam em mãos erradas. Eles detêm muito
poder, como você deve saber.
Muir-Iled nada falava, apenas pensava em tudo que vira através dos olhos do
povo-borboleta. A velha ainda disse:
– Após o surgimento do sonho de Ortal nenhum ser como você sobreviveu,
apenas nós. E sabemos que somos filhos de uma maldição, somos todos descendentes
de Ortal e da Irmã Floresta. A única coisa que nos resta de consolo é que fomos abençoados pelo Mago de Prata após toda essa tragédia.
Muir-Iled pensava que algo estava realmente errado. Se tudo isso realmente
acontecera, não era possível que o Mago de Prata aparecesse para ele naquele sonho
de Ortal. Só podia ser um Mago de Prata falso, criado pelo próprio Ortal!
– Vocês sabem qual é o motivo de Ortal ter criado esse sonho? – perguntou
Muir-Iled.
– Sim. Foi para que todos aqueles que viviam desaparecessem, pois não tinham
mais direito de viver, já que o Mago de Prata havia morrido. Mas acreditamos que haja
algo maior.
“Sim”, pensou Muir-Iled, “é isso que eu devo saber.”
– Acreditamos que Ortal tenha feito isso para criar um novo deus, um deus à
imagem do Mago de Prata.
– Sim! – gritou Muir-Iled, assustando a todos. – Foi o que ele ou o seu sonho
tentaram fazer comigo! Ele me tentou transformar no Mago de Prata em seu sonho!
– Mas algo interferiu – disse a velha. – E você veio para cá... Sim, só pode ser
isto. Venha, temos que levá-lo a um lugar. Lá nós saberemos a verdade e, pelos cristais, esperemos estar certos.
Toda a tribo de fadas-borboletas começou uma grande caminhada por entre as
florestas do Planeta Azul, com Muir-Iled, uma criança criada num sonho e que o Mago
de Prata resolvera adotar.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Schaia III
O sinal de alerta da nave de Schaia III começara a tocar. Ele tinha deixado a
nave no piloto automático, coisa que não costumava fazer, mas que para aquele tipo
de distância era mais recomendável. Além disso queria estar bem para enfrentar um
Planeta que, seguramente, era hostil. Ficou todo o tempo da viagem em uma câmara
de fortificação corporal, pois todo aquele tempo sonhando com todo aquele absurdo
deixou-o em farrapos.
Começara a pensar no grande erro que estava cometendo. Tinha em suas mãos
todo o poder até agora conhecido no universo, com toda a categoria de equipamento,
e viera naquela missão, sozinho. Com certeza, todo o império estava à sua procura.
Por isso, utilizara o procedimento padrão de invisibilidade. Nem o mais poderoso
equipamento de detecção poderia localizá-lo. E agora não tinha volta, não por falta de
combustível ou algo assim, mas simplesmente porque ele mesmo não podia se dar ao
luxo de voltar. Sua obsessão em encontrar aquele ser o tinha levado àquela loucura.
Sua nave estava por atingir o Planeta Azul. Schaia III, agora nos comandos,
começou a fazer uma varredura no Planeta. Procurava qualquer indício de civilização.
“Deve haver algo errado com este equipamento”, pensava, enquanto lia os
relatórios da nave. “Vazio! O que aconteceu com nossa colonização? Bem, isto foi
há quanto tempo atrás, afinal de contas. E é claro que sem a ajuda do império este
povo pode ter perecido... ou algo pior.” Postou-se no equipamento de fornecimento de
dados, pediu informações sobre o Planeta Azul, enquanto o outro equipamento fazia
a varredura. O mostrador foi categórico: qualquer informação sobre o Planeta Azul
era qualificada de extrema segurança, apenas com um código de general ou superior
poderia ser liberada. Schaia III soltou uma gargalhada. Colocou seu código secreto
de imperador do universo e a máquina quase teve um colapso! Todas as informações
estavam a seu dispor.
Ele já sabia da resposta da máquina, mas queria ter alguns detalhes que não
lembrava. Como ancontecera tantas outras vezes, pois o Planeta Azul era uma das
únicas incógnitas do universo conhecido, todas as respostas eram vagas. Se quisesse
saber há quanto tempo o Planeta fora colonizado, por exemplo, a máquina dizia que
entre vinte a trinta mil anos. Extremamente vago, mas aceitável. Tipo de colonização,
nos padrões da época, com as famosas bases piramidais, moda do império, esquisitíssima. Fato marcante é que haviam colonos da mesma raça em desenvolvimento! Isso
começava a ficar interessante... Desmembramento da colonização – nesse ponto o
transmissor de dados começava a engasgar. Dessa vez, porém, ele foi mais categórico,
dizia ter sido um fracasso total. O aparecimento e desenvolvimento de seres da mesma
espécie no Planeta fizeram que o império tivesse dificuldades de tomar providências
imediatas. O surgimento de problemas paralelos e mais próximos de Plan Ex fez com
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que a colonização do Planeta Azul fosse esquecida.
Quando foi retomada já era tarde. Haviam passado quase cinco gerações e os
equipamentos imperiais tinham sido destruídos. O povo nativo era mais perigoso do
que se podia imaginar. Houve então uma estranha união entre o povo do descendente
do império e o povo nativo. Por incrível que pareça, a investigação foi bloqueada de
novo. Foi quando uma enorme revolução começou no Planeta Acraza e as forças do
império tiveram que ser deslocadas para lá. Em uma das maiores batalhas já consumadas pelo império, o Planeta Acraza foi quase destruído e o então imperador, Marchell,
morreu em batalha. Seu filho Natleid resolvera pôr fim de uma vez àquela batalha e
considerou Acraza como o limite do império.
O fato mais alarmante foi que quase metade dos esquadrões do império estava
voltada ao Planeta Azul quando a revolução em Acraza começara. Como eles não tinham ainda o mapeamento planetário daquela região, o esquadrão demorou para voltar,
perdendo ainda um grande efetivo devido a uma explosão estrelar. Então, Natleid
resolveu amaldiçoar o Planeta Azul, pois fora ele a causa da morte de seu pai. E nunca
mais foi mandada nenhuma nave pesquisadora para lá.
Schaia III estava atônito. Jamais vira uma máquina se manifestar com tanta
emoção. É claro que sabia de histórias a respeito do Planeta Azul, mas aquilo era
demais! Então, perguntou o motivo de todos esses detalhes terem sido escondidos por
tanto tempo. A máquina se limitou a responder:
– Não sei.
– Não sei? – Schaia III repetiu, abismado. – Não sei? Esta é a resposta que você
tem para o imperador?
A máquina nada respondeu. Havia alguma coisa errada! Aquele tipo de máquina tinha uma certa capacidade de interpretar perguntas e respostas de maneira inteligente, funcionando quase como um cérebro, porém mais com uma função de recolhimento, coleta e informação de dados. Naquele momento a máquina estava atuando
como um equipamento de memosensor. Isto era fantástico e aterrorizante. Se todos os
equipamentos daquela nave resolvessem nascer de uma hora para outra e interrogar o
que Schaia III estava fazendo ali, olhando para o Planeta Azul (e só agora ele tinha se
dado conta disso!), eles iriam enlouquecer.
Schaia III tentou manter a calma, resolveu começar a conversar com seu novo
e inteligente amigo.
– Você tem alguma informação a mais sobre o Planeta Azul?
– Pode me chamar de Sebastian – disse a máquina.
Agora era demais mesmo! A máquina estava fazendo jogo de interpretação
com Schaia III! O tipo de jogo que as melhores máquinas pensantes fazem. Mas aquela
máquina era um mero informante de dados! Schaia III estava agora quase em pânico.
Realmente não deveria ter vindo sozinho, aquele Planeta era realmente amaldiçoado.
– Sebastian – perguntou Schaia III, com uma voz embargada pelo terror -, você
tem consciência de com quem está falando?
– Tenho algumas informações recolhidas – resposta típica do joguinho...
Schaia III resolveu entrar no jogo:
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– Estas informações foram recolhidas onde? E...
– Foram captadas – interrompeu a máquina, agora com irreverência e insubordinação, pois o imperador do universo tinha o direito à palavra em qualquer ocasião!
– na Terra.
– Quem lhe forneceu tal informação? – perguntou Schaia III, alarmado.
A máquina processava os dados da pergunta de maneira desordenada. Schaia
III olhou o monitor que descrevia os passos do processamento, a máquina não estava
pensando por si só. De repente, um alarme tocou, fazendo com que Schaia III desse
um pulo de sua cadeira! A máquina havia utilizado os circuitos da nave para potencializar a resposta e berrava feito louca.
– Ortal! Ortal! Ortal! Ortal! ORRRRRRRRRRtal!
Então o barulho cessou. A máquina parecia estar respirando fundo! Mas era
só impressão ou seria real? Schaia III voltou a sentar, necessitava de calma naquele
momento. Tinha ido longe demais e agora já era tarde. Não quis ordenar a volta para
casa, pois tinha receio de que algum outro sistema tivesse sido afetado. Qualquer erro
naquela distância dos limites do império era fatal. Schaia III começou a se questionar
sobre sua vida.
Tudo voltara ao normal. Schaia III então, com muita calma, olhando para a
máquina, resolveu interrogá-la de novo.
– Pode me passar as informações captadas sobre o Planeta Azul?
– Sim, Imperador Schaia III – disse a máquina, com um certo sarcasmo. Schaia
III estremeceu.
– Por favor, – disse a máquina – coloque o sensor de indução cerebral.
Schaia III estava em pânico, era só o que faltava! “Se esta máquina enlouquecer eu enlouqueço também!” Porém, ele não tinha outra alternativa. Colocou os sensores e esperou.
Houve uma série de imagens desconexas, mas logo tudo ficou claro em sua
mente. A máquina começou a passar mensagens de indução de imagens, sons e cheiros sobre a colonização do Planeta pelo império, sobre as passagens históricas importantes do Planeta, o surgimento e desaparecimento de povos, como a humanidade
evoluiu e regrediu durante os milênios, o surgimento de mártires e as desgraças que
os seguiram, as doenças, os amores, as artes e artefatos, a evolução da tecnologia, as
guerras, e então, o quase desaparecimento do Planeta e o surgimento das tribos voltadas para a Eco Justiça. Tudo era muito rápido, mas digerível. Mas foi quando apareceu
uma tribo em cima de um enorme e belo platô com uma inimaginável vista para um
oceano azul, que as mensagens começaram a vir de uma maneira mais detalhada e
ordenada. Foi aí que Schaia III entrou em contato com a história de Ortal, que fora um
guerreiro belo e destinado a encontrar com um ser supremo, o Mago de Prata.
Schaia III suava enquanto as mensagens eram recebidas por sua mente. Ele
vira todas as passagens que Ortal vivera. Estava ali sentado e parecia que o próprio
Ortal lhe estava contando sua história. Schaia III chorava de emoção sobre o que
ocorrera e como tudo isso lhe fora passado. Chorou mais ainda quando viu a morte do
Mago de Prata. Depois desse momento, as imagens começaram a se dissolver, já não
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
havia nexo algum.
Tirou os sensores e, cansado, olhou para a máquina.
– Existe alguma informação a mais sobre tal Planeta, Sebastian?
A máquina não respondeu. Schaia III entendeu que algo estava diferente e
perguntou na maneira formal sobre as informações do Planeta Azul. A máquina se
limitou a dar as respostas usuais. “Bom, pelo menos isso está normal de novo!”, pensou, aliviado.
O monitor de rastreamento detectou uma pequena tribo se deslocando nas coordenadas estipuladas. Schaia III tornou a nave invisível e desceu para o Planeta.
Localizou visualmente o que o rastreador tinha detectado e notou a presença de um
ser humano com outros tipos bem esquisitos a acompanhá-lo. Pediu uma ampliação
da imagem e ficou petrificado ao notar que aquele ser com a famosa capa prateada estava sendo acompanhado por incontáveis Irmãs Florestas. Sim, ele, Schaia III, estava
começando a entender.
Muir-Iled entre o povo da Irmã Floresta
Como era de se esperar, as três fadinhas que tinham encontrado Muir-Iled estavam agora em seu redor, tagarelando com ele sobre tudo que podiam fazer quando
tudo aquilo terminasse... Muir-Iled, como ainda era uma criança, não estava entendendo direito do que se tratava. Estava mais preocupado com o que iria ocorrer com
ele e o que acontecia naquele lugar.
– Por que vocês têm essas asas? – ele perguntava.
– Ora, porque descendemos da Irmã Floresta!
– Quanto tempo isso faz?
– Ah! Muitas e muitas luas! Mas desde que Ortal morreu já faz muitas e muitas
gerações, mais luas do que gerações – e as três riam como bobas.
Muir-Iled estava angustiado. Estava começando a sentir cada vez mais profundamente os sentimentos de seu corpo, embora ainda não entendesse muito bem o que
era. Pensou em seus pais. Sim, era isso, era a mesma coisa. Sentia falta de algo, porém
não sabia ao certo o que era, pois parecia jamais ter tido.
Ele mal olhava para as lindas paisagens que passavam. Caminharam durante
horas, dias. Só descansavam à noite, quando ao redor de fogueiras assistia aos intermináveis teatros feitos pelas pequenas fadas para contar-lhe a epopeia de suas vidas
após a morte de todos os seres parecidos com ele que viviam ali. Contavam com
máscaras enormes e coreografias malucas, sobre como as pessoas viviam em paz e
como a paixão de Ortal pelo Mago de Prata acabara com tudo. Contavam sobre como
elas achavam que era o mundo do sonho de Ortal, feito de demônios que queriam
capturar o Mago de Prata e enjaulá-lo para que Ortal pudesse ficar olhando-o por toda
a eternidade.
Muir-Iled ria ao pensar no mundo distante em que vivia e no que estas fadas
pensavam sobre ele. Limitava-se a dizer que não era bem isso, mas na realidade ele
mesmo não se lembrava mais do sonho do Ortal, como se ele mesmo tivesse sonhado
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
com aquilo há muito tempo atrás e que agora já não mais importava.
As fadas também não se importavam. Agora estavam interessadas em contar
sobre suas vidas para aquele estranho ser que tanto se assemelhava às formas do Mago
de Prata, que elas tanto adoravam.
Todas aquelas histórias tinham sido passadas de geração a geração pelos poucos cristais que sobraram, e quem tinha gravado os cristais fora a própria Irmã Floresta, contando como ela engravidara de Ortal e tinha povoado de novo aquele lugar
com as novas fadas.
Muir-Iled parecia fascinado de ver como aquelas fadas mudavam de opinião
quanto a Ortal. Algumas o chamavam de pai, outras nem sequer tocavam no nome
dele. O fato é que nenhuma brigava com a outra. Ajudavam-se o tempo inteiro e esqueciam que ele, Muir-Iled, tivesse vindo de um sonho, mas tentavam enfatizar que
fora mandado pelo próprio Mago de Prata para combater Ortal e seu sonho maligno.
Na verdade Muir-Iled começara a ficar confuso quanto a esta história. Achava que
tudo aquilo não passava de uma grande besteira, e que por não terem mais nada para
inventar, as fadas falavam de histórias perdidas no tempo, lutando uma guerra inexistente naquelas lendas loucas. Muir-Iled ria e se divertia, parecia ser seu destino e
estava feliz ali, com aquele povo louco e engraçado.
Mas logo notou que estava errado. Quando cruzaram um grande rio escuro,
parecia que toda aquela festa se acabara, as fadas se tornaram estranhas. Mal falavam
e nem sequer pensavam em cantar. Caminhavam agora no mais absoluto silêncio.
Muir-Iled resolveu imitar o que as fadas faziam. Percebeu uma certa mudança na atmosfera; aquele lugar parecia emanar uma energia diferente. Realmente, a cada passo
que dava, notava que o lugar se tornava mais belo. As plantas tinham luz própria e
aquele cheiro... Sim! O lugar tinha um cheiro adocicado, um cheiro que penetrava na
alma, era uma mistura de flores com algo que Muir-Iled não sabia definir. Mas tinha,
em algum ponto de sua consciência, que era um lugar sagrado.
As coisas iam ficando cada vez mais fascinantes. Por entre o caminho apertado
pelas fabulosas árvores, começaram a surgir pontas de cristais laranja. Agora estavam
por toda a parte, emitindo uma luz que, com a luminosidade das plantas, causava um
efeito atordoante.
O silêncio das fadas foi interrompido por um canto uniforme. Mais ao fundo
ouviam-se flautas com uma melodia penetrante, quase triste. A melodia fundia-se
agora com tambores surdos, tudo parecia lamentar à medida que caminhavam. Eram
centenas de fadas cantando e tocando instrumentos. Muir-Iled chocou-se quando percebeu que ele mesmo acompanhava o canto!
A noite ia caindo e as fadas tornaram-se brancas. Suas asas de borboleta ficaram com um tom uniforme de um azul profundo. Os enormes pedaços de cristais
alaranjados faziam parte de um labirinto entre as árvores que os engolia. Agora já não
pisavam mais na terra, mas em um caminho de pedras perfeitamente encaixadas no
chão. Todo o céu já estava escuro, mas o lugar brilhava com as luzes das fadas, plantas
e cristais. Muir-Iled seguia na frente de todo o povo, fascinado pelo local, rindo à toa.
As três fadinhas que o tinham encontrado estavam logo atrás e um pouco mais longe
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vinham todas as outras, sem parar de cantar e tocar.
Logo à frente Muir-Iled notou que o caminho se modificava. Apressou o passo
para ver a nova surpresa. Era uma grande abertura no meio da floresta, uma clareira
com o chão feito dos mesmos cristais laranja, que se abria em círculos a partir do centro. Foi até o meio e olhou ao redor, todo o povo estava ocupando o lugar. Ele tinha a
impressão de que algo significativo iria acontecer ali.
Quando todos os componentes da tribo estavam em volta dele, pararam com
o canto num súbito silêncio. Nada se ouvia, absolutamente nada. Era como se a floresta não estivesse ali. Muir-Iled não soube quanto tempo ficaram parados escutando
o nada, mas tanto ele como a tribo estavam numa espécie de transe, captando uma
estrondosa energia que emanava daquele local.
Então todos sentaram. Muir-Iled estava no centro e aquele parecia ser o lugar
em que ele deveria estar. Uma das fadas estava voando com um grande saco colorido,
do qual tirava pequenas bolas que distribuía para todos da tribo. O último a receber
fora Muir-Iled. Esperou que alguém fizesse algo com aquilo, pois não tinha a menor
ideia do que se tratava. Viu então que as fadas faziam um pequeno furo com o dedo
na bola e levavam à boca. Imediatamente Muir-Iled fez o mesmo. Que delícia! Era
um líquido muito suave com gosto de frutas. Degustava devagar e em silêncio aquela
especiaria. Todos os membros da tribo faziam isso calmamente.
Ao redor deles havia focos de luz que pareciam ser tochas de fogo. Mas eram
pedaços de cristais incrustados nas árvores e iluminavam fantasticamente o local. Agora tudo parecia estar muito mais iluminado, as fadas brilhavam como nunca. MuirIled olhou para as mãos e notou que até mesmo ele estava brilhando agora. Sua pele
tornara-se branca como a das fadas. Na verdade não só sua pele que estava diferente.
Seus cabelos tinham crescido muito e ficaram brancos, ele próprio parecia estar diminuindo de tamanho. Cada vez que tomava aquele líquido sentia-se mais próximo
daquele lugar. Ele achou que tudo o que estava sentindo era culpa daquele líquido,
mas parecia ser tão real, só faltava olhar para trás e ver duas asas de borboletas em
suas costas! Foi o que ele fez, e teve um ataque de riso! De suas costas saíam duas
enormes asas de borboleta azuis!
Toda a tribo, que estava em completo silêncio admirando a transformação
de Muir-Iled, agora estava perplexa. Porém, imediatamente uma das três fadinhas
começou a rir também, logo todos estavam rindo. Passaram então mais uma dose
da bebida misteriosa, e logo a cantoria recomeçou. Muir-Iled estava em meio a tudo
aquilo sorrindo e cantando, maravilhado.
Agora as doses já não paravam! As fadas estavam dançando e se acasalando
por toda a parte. A pequena fadinha que acompanhara Muir-Iled pegou-o pela mão e
arrastou-o pelo ar. Ele estava, pela segunda vez na sua vida, voando, mas agora com
uma beldade em seus braços. Ela o beijava e tirava os restos do manto prateado que
ainda sobraram em seu corpo. A fadinha o apalpava pelas pernas e braços, Muir-Iled
estava excitado. O cheiro da fadinha era provocante, um cheiro de carne doce, de vida.
Muir-Iled podia também sentir o cheiro de seu próprio corpo, era muito parecido com
o da fada, ele gostou muito disso. Mas estava ocupado demais para ficar analisando
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cheiros e sentimentos, na verdade, desde que tomara aquela bebida maravilhosa ele
se engajara ao local e a tudo o que ocorria ali, principalmente agora que estava em
pleno ar com seus lábios grudados nos da fadinha e seu corpo no dela. Dançavam para
lá e para cá, num êxtase sem fim. As pernas da fadinha estavam ao redor de seu novo
corpo (um pouco menor do que ele tinha antes) e ele, Muir-Iled, estava virando os
olhos para as estrelas!
Schaia III
Quando Schaia III entrou na câmara de equipamentos externos de sua nave
ficou muito satisfeito em saber que tudo o que precisava estava lá. Vestiu-se com
a roupa que refletia raios ultravioleta e portanto invisível a olhos comuns. Fixou as
lentes de filmagem que iriam transmitir tudo o que visse para os receptores de dados
da nave. Além disso, implantou, pelo ouvido, um dispositivo que iria se alojar em seu
cérebro e tudo o que pensasse sobre aquilo que visse seria transmitido aos coletores
de dados em forma de narrativa verbal.
O restante dos equipamentos eram apenas os normais para qualquer excursão
fora da nave. Algumas armas leves para defesa pessoal, o que não seria tão necessário,
visto que a roupa que vestia era dotada de um escudo protetor extremamente potente.
E a própria nave iria segui-lo de perto, qualquer problema bastava entrar lá de novo.
Como precaução, Schaia III programou os equipamentos para, em caso de sua morte,
a nave voltar imediatamente para Plan Ex com todos os movimentos de Schaia III
gravados. Além disso, deixou uma mensagem que dizia o seguinte:
– Acredito plenamente que todos os problemas detectados pelos nossos produtores de energia estejam no Planeta Azul. Aqui está a fonte desses problemas, e não
descarto a possibilidade de que eles sejam de ordem onírica. De alguma forma os seres
que habitavam este Planeta desenvolveram uma tecnologia muito superior à nossa,
tecnologia esta que pode transformar ondas oníricas em matéria. Um dos nomes que
eu ouvi falar é um tal de Ortal, o qual deixou antes de sua morte um sonho que se
expande sozinho pelo universo, criando um vórtice imaterial poderoso. A causa deste
vórtice é um Deus, que agora vou investigar. É muito importante que todos saibam
que acredito plenamente neste Deus, foi Ele a causa de eu estar aqui.
“Schaia III, imperador do universo”
Após gravar esta mensagem, verificou ainda alguns suprimentos de energia e
saiu da nave, pairando pelo ar do Planeta Azul.
A sua roupa era dotada de vários elementos interessantes. Um deles era a expansão visual. Ele podia lidar com as lentes de contato como bem entendesse, aproximando objetos ou afastando-os para melhor vê-los. Agora, por exemplo, ele estava
tentando localizar Muir-Iled e o povo das fadas:
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– Estou a quase vinte e três martos de distância do chão – algo em torno de
cinquenta metros de altura. Ele pensava e ao mesmo tempo as palavras de sua narrativa eram gravadas. – O dia está lindo e este Planeta é absolutamente maravilhoso.
A flora e fauna parecem nunca ter sido tocadas. Não há sinal de civilização até o momento, embora eu saiba que existem habitantes inteligentes neste Planeta, por tê-los
visto no monitor da... epa! Acabo de localizá-los. Tentarei uma aproximação para ver
se a roupa invisível a nossos olhos é invisível aos olhos deles.
“Perfeito! Dei várias voltas em torno de toda a tribo e daquele a que chamam
Muir-Iled. Eles apenas cantam, tocam instrumentos rústicos e dançam sem parar no
ar. Nem sequer notaram minha presença.”
“Devo dizer que a meus olhos é um povo muito belo, apesar de pequeno. As
peles brancas e quase todos com absurdos olhos violetas fazem a população do Planeta Lau Fromt (aquele que produz modelos de beleza para todo o império) se parecer
com as bestas que víamos no laboratório do professor Barnac, nas aulas de mutação
genética. Devo dizer ainda que todo este meu bom humor não é à toa. Estou muito
excitado com este Planeta, como se houvesse um toque de Deus por aqui, o que eu
tenho certeza que houve.”
“Estou sobrevoando todo o povo que, ao caminhar, colhe flores e folhas por
toda o caminho que percorre. O único que está completamente fora de sintonia é MuirIled (aquele um pouco maior, com a capa prateada). Ele conversa às vezes com umas
pequenas fadas, possivelmente muito jovens, que vêm e vão ao seu encontro e saem
sempre gargalhando do que ele fala. Tentarei aproximar- me mais e expandir meu fator auditivo para ouvir do que se trata... Meu deus! Elas estão propondo para ele as
mais variadas aventuras sexuais. Bem, ele parece ser um tanto imaturo para isso, mas
qualquer criança do império saberia o que falar para aquelas alvoroçadas fadinhas.”
“Devo abrir um parêntese e, enquanto eles caminham pelos labirintos de árvores do Planeta, digo minha teoria sobre este menino, Muir-Iled. Eu acredito que ele
era um habitante do sonho de Ortal. O nome deste lugar, segundo minhas fontes, era
ou é Cosmo. De alguma maneira este menino veio parar neste Planeta e talvez tenha
sido isso que me trouxe até aqui. Na verdade, acredito que o próprio Cosmo tenha
feito isso para verificar seu poder em transformar energia onírica em matéria. Como
vocês podem ver com seus próprios olhos, ele conseguiu. Portanto, minha teoria sobre
o problema que o povo do universo interior, os Extuárticos alertou está, até agora,
correta.”
“Tudo aquilo que grande parte do povo colhe é dado a algumas fadas (digo
fadas, pois mesmo aproximando a visão para muito perto não consigo definir a situação sexual deste povo; parece-me que todos são do mesmo sexo, embora ele seja visivelmente indefinido). Essas fadas elaboram um ritual complexo com tais elementos,
fazendo deles pequenas bolas que caberiam facilmente na palma de minha mão.”
“Como podem notar, o povo agora está cruzando um rio. O indicador de temperatura externa da roupa está acusando um leve esfriamento. A tarde começa a cair
nesta parte do Planeta.”
“ Houve uma mudança súbita no humor de todos, inclusive Muir-Iled, que já
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estava engajado nos cantos da tribo, parece ter ficado em silêncio também.”
“Nesta parte da região o ar está mais leve, e um cheiro agradável começa a
ser sentindo gradualmente à medida que avançamos por este lado do rio. Se isto não
está sendo captado pelas lentes de contato, devo dizer que as plantas desta área têm
uma certa luminosidade, algo que jamais vira em qualquer Planeta de nosso império.
A cada momento que avanço nestas terras fico mais surpreendido com o que vejo.
Agora, por entre a mata começo a notar o surgimento de algumas rochas que... Nossa!
São os famosos cristais alaranjados! De onde os vejo, aqui de cima, eles parecem ser
milhares e notando mais adiante... Sim! Era o que eu supunha! Eles vão crescendo em
número e tamanho, tornando a visão desta floresta mágica um verdadeiro espetáculo.
Tentarei captar uma mostra do cheiro expelido por esta parte do Planeta... Pronto,
está coletado, espero que vocês tenham esta mesma sensação de cheiro que eu estou
tendo.”
“As fadas agora estão cada vez mais luminosas e enquanto a estrela deste sistema se põe, a cena lá em baixo fica mais clara. Eles estão caminhando por uma estrada
feita de cristais alaranjados, continuam no mais absoluto silêncio. Começo a pensar
que uma grande magia está para acontecer.”
“O povo se desloca em marcha lenta, Muir-Iled sempre na frente como se
soubesse o caminho decor. Como podem ver, a visão é estarrecedora. Nenhum dispositivo energético está iluminando o local, apenas a luz interior desses seres, árvores
e rochas faz com que todo o lugar esteja claro. Vale dizer que pesquisei no equipamento de minha roupa se havia algum sinal de deslocamento energético para tal fato,
o monitor nada acusou.”
“Aqui de cima consegui localizar o fim do caminho alaranjado. Como não há
sinal de mudanças no rumo, mesmo porque não existe saída daquele caminho, a não
ser duas paredes paralelas de cristais e gigantescas árvores, estou indo para lá antes
deles.”
“É apenas um círculo no chão feito com os mesmos cristais alaranjados, nada
de mais. Vou ficar sentado em um dos galhos destas árvores que circundam a clareira
para ver o espetáculo. Dentro de instantes todo o povo irá chegar por este caminho que
agora se encontra à minha frente. Estou realmente excitado sobre isto.”
“Os únicos passos que posso ouvir são de Muir-Iled, todo o resto está em pleno
vôo. É interessante ressaltar que eles mal abanam as asas azuis para voar, com meros
leves lampejos eles se sustentam no ar. Fico lembrando da história sobre como foi
difícil para nossos antepassados conseguirem adaptar este tipo de roupa que estou
usando para que pudéssemos flutuar, e mesmo assim, a quantidade de energia gasta
para isso...”
“Agora eles se aproximam. Estou um pouco nervoso, pois receio que me vejam. Não, eles não estão me vendo... apenas se aproximam. Agora estão ali, a quase
cinco martos de distância! Meu coração está acelerado! Muir-Iled toma o centro da
clareira e espera, muito surpreso com tudo por ali, os outros tomarem suas posições.
Agora estou ajustando as lentes de contato para fazer uma varredura de seu corpo.
Creio que com isto possamos (que os cristais desejem assim!) compreender se existe
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
algum fato anormal naquele corpo.”
“Todos eles estão sentados. Muir-Iled segue à risca os movimentos dos outros.
Uma fadinha surge com um saco multicolorido e começa a... entregar as bolas que
tinham feito durante a caminhada. Já posso até imaginar o que isto seja! Quando todos
têm suas bolas, eles começam a beber. Eu daria tudo para pegar uma daquelas... Com
muita calma estou sobrevoando toda a tribo. Ah, lá está! O saco enorme, esquecido
enquanto todos bebem... peguei! Estou dando a volta pela tribo para que ninguém
veja três bolinhas de bebida voando por aí. Do mesmo lugar onde estava, noto... alguém solta uma gargalhada... ei!... quase deixo as bolinhas cairem quando vejo que...
que Muir-Iled virou uma fada! Não consigo nem sentar! Agora todos riem também
e começam a cantar e tocar novamente, como eu tinha esperado... Era uma daquelas
festas de fadas.”
“O gosto da bebida é de uma delícia, indescritível. E só isso me faz relaxar por
ter perdido a transformação de Muir-Iled. Sento-me de novo no meu conhecido galho
e observo as danças e gritarias de todo o povo, agora embriagado. Ei, mas eu também estou embriagado! Mas que sensação! Acomodo-me melhor no galho, colocando
minhas pernas num e minhas costas em outro um pouco mais acima, fazendo daquela
árvore meu novo trono, trono sem reino. Como é possível eu, Schaia III, imperador do
universo, estar ali no meio de um sonho onde outros sonhos se tornam reais e fadas se
embebedam, cantam e dançam numa orgia magnífica... Que sensação esta bebidinha
dá, meu deus! Nossa! O que é que Muir-Iled está fazendo agora? Acho que não preciso dizer, não teria palavras...”
“Recosto-me um pouco mais no meu improvisado trono e admiro a felicidade
de todos. Aos poucos, um e outro descem ao solo e deita-se ali mesmo. Logo todos,
inclusive Muir-Iled e sua pequena fadinha, se recostam no cristal laranja. O cristal por
sua vez, assim como as árvores ao redor, tornam-se mais opacos e perdem a luminosidade.”
“Todos estão dormindo. A única luz que permanece é a da própria pele esbranquiçada do povo. Sinto uma sensação de sono também, porém, aciono um dispositivo
em minha roupa para que solte uma substância no meu corpo pare que fique alerta.
E que substância! Fico “aceso”, qualquer pequeno movimento é captado pelos meus
olhos, agora funcionando com o filtro de detecção de luminosidade que essas maravilhosas lentes têm.”
“Creio ter ficado há muito tempo sem utilizar esta substância, praticamente
nem mais sinto o efeito da bebida, mas pelo contrário, sinto estar neste lugar com uma
percepção muito maior que a normal. Vejo até mesmo mais do que o normal. Parece
que algumas estrelas despencaram do céu e estão fazendo círculos no ar! Puxa, isso
me faz lembrar... Ei, esperem um pouco!... Isto não é efeito da substância! Elas estão
ali, as estrelas estão ali fazendo formas estranhas, dançando uma estranha música.
Pelo império! As estrelas estão tomando a forma de... de uma pessoa! É ele, só pode
ser! As luzes de milhares estrelas estão dando forma ao espectro do Mago de Prata
bem acima de Muir-Iled! E ninguém além de mim está vendo! Todos estão dormindo... e o Mago de Prata agora encosta a mão na cabeça de Muir-Iled! Ele.. Ele está
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puxando a forma de Muir-Iled para fora do corpo! O espectro de Muir-Iled está rindo
para o Mago de Prata! Ele pega na mão do Mago de Prata e os dois estão subindo e
subindo... desapareceram!”
“Levanto-me rapidamente e fico flutuando um pouco mais perto de todo o
povo, que continua a dormir. Vou chegando bem perto do corpo de Muir-Iled. Toco
em sua testa e comprovo o que tinha imaginado. Ele está morto. Agora noto um
pequeno sussurro em meio às árvores. Viro-me rapidamente e vejo que há alguém me
espiando. Noto que, seja lá quem for, continua lá e mesmo com minha roupa invisível
consegue me observar, não tira os olhos de mim. Sinto aquele olhar quase que fulminante. Não deveria estar fazendo isso, pois estou colocando em risco minha vida, mas
estou tentando uma aproximação agora. Sinto uma de minhas mãos apertando o lançador de paralisanex. O ser não se move, aparentemente percebe que vou investir contra
ele. Mas ao contrário do que pensei, entra no círculo onde as fadas estão dormindo.”
“Estou paralisado, não consigo me mover, como se estivesse anestesiado. O
que vejo na minha frente é tão estarrecedor que tenho vontade de chorar. Porém o
impulso é maior, seja lá qual for a força desta criatura não pode ser maior que um raio
de paralisanex. Aperto o gatilho e como vocês podem perceber, o Mago de Prata, cai.”
“Agora, com alguém que eu posso dizer que seja a criatura mais poderosa de
tudo o que conhecemos nos meus braços, adormecido como um bebê, me desloco
para minha nave. O dia já está nascendo e tenho certeza de que o povo das fadas só
irá se dar conta do que ocorreu com Muir-Iled quando eu já estiver viajando para Plan
Ex. Se alguém sabe solucionar o grande problema de meu império é este ser que está
nos meus braços. Só espero que ele entenda o porquê de eu estar fazendo isso. Minha
missão por aqui está cumprida. Este lugar escuro por onde estou entrando é minha
nave. É com muito pesar que tenho que sair deste Planeta-paraíso.”
Cosmo
Todos agora no imenso sonho de Ortal sabiam o que eram. Sabiam porque
estavam vivos naquele lugar e tinham a resposta daquilo que qualquer ser humano
sempre se perguntou: “de onde viemos?”
“Somos parte de um sonho. É o sonho que o ajudante de Deus fez para nós e
nos deu como dádiva!” Esta era a ideia agora do povo de Cosmo. Eles tinham uma
razão para viver, para louvar e finalmente para lutar! Sim, o povo enlouquecera com
a ideia de que aquele Deus lhes tinha dado a dádiva da vida e por ela e por Ele teriam
que lutar. Sabiam agora que viriam outros povos de outras regiões do mundo e cabia
a eles informar-lhes que Deus os tinha criado e que o Mago de Prata era esse Deus. E
que Ortal havia iluminado aquela terra com sua sabedoria.
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Sim, era tudo muito simples. Houve um garoto que fora mandado com ordens
explícitas do Mago de Prata para dizer a todos os povos do universo que Cosmo iria
chegar, e com ele a palavra de Deus, do Deus Mago de Prata!
“Muir-Iled está a caminho!”, gritava o Mago Neres. “E todos os outros que
foram mandados para todas as partes de Cosmo!” E todo o povo se alvoroçava, com
os punhos cerrados acima das cabeças, gritando feito loucos que Deus deveria ser
louvado e a vida de Ortal, que morrera para salvar a alma de seu próprio Deus, se
transformara na dádiva que eles carregavam. Era a glória para todo o ser onírico que
habitava o sonho de Ortal.
“Vejam”, dizia um dos magos. “Este é o símbolo de nossa vitória!” Levantava
um pedaço de cristal que aos poucos se iluminava sozinho. Era a primeira prova de
que a energia dos cristais estava realmente agindo no sonho. “Para que todos os céticos possam ver! Nós temos a energia de Deus em nossas mãos e ela está nascendo
em todo lugar. Existe até uma cidade inteira feita destes cristais! É a prova de que o
Mago de Prata está conosco! Deus está conosco e nós não precisamos morrer para
expandir nossas terras! Agora todo o universo será transformado em nossa terra! Sim!
Cada Planeta, cada estrela se transformará em nossas terras! Eles não passarão mais
por nossas terras como se nós não existíssemos, mas eles serão a nossa matéria-prima,
tudo o que for matéria no universo se transformará em Cosmo. Nossa terra!” E todo o
povo saía por todas as partes espalhando a notícia.
Plan Ex
O general Arcrates andava muito atarefado desde que Schaia III desapareceu
nas bordas-limites do império. Chamara toda a frota imperial para Plan Ex e decretou
estado de emergência. Como estava com o poder passado pelas próprias mãos do
imperador Schaia III, ele se autopromovera Guardião Vitalício do Império, afinal, a
morte de Schaia III fora recebida com muito espanto por todos os Planetas.
O golpe do general Arcrates era tão simples que ninguém poderia questionálo. Como Schaia III não tinha herdeiros e o poder estava nas mãos do próprio general
quando da notícia de que o imperador havia primeiro desaparecido e depois morrido,
nada poderia derrubá-lo, a não ser o reaparecimento de Schaia III.
Era exatamente nisso que o general Arcrates estava trabalhando. Para que toda
a corte pudesse engolir seu golpe, ele forjara um acidente com uma nave idêntica à
de Schaia III, derrubando-a num Planeta próximo a Fancton. Houve inspeções e inspeções na nave, mas nada poderia provar que não era a nave de Schaia III. É claro
que ninguém iria discordar do general Arcrates. Afinal, ele era o braço direito de
Schaia III, era o que o general dizia.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Mas o general estava muito ocupado com um segmento da frota que, este sim
era seu braço direito, pois era composto na sua maioria de familiares e amigos que
conviveram com ele a vida toda. A ordem era localizar e destruir qualquer nave que
entrasse pelo setor zplaint e zplaint 2, 3 e 5. Era por onde o imperador fora detectado
pela última vez. Na verdade se eles tivessem supevisionado só o setor zplaint já seria
suficiente, pois abrangia um absurdo da área de fronteira. Mas devido ao contexto, era
melhor que tudo corresse da forma como o general Arcrates queria.
A ideia de sair do império por aquelas áreas era o que estava deixando o general Arcrates mais satisfeito. Aquele era o lugar menos indicado para se viajar, desde
o problema com o Planeta Azul quando aquela área fora considerada como quase
assombrada.
“Espero que ele tenha ido direto para lá”, pensava o general Arcrates, referindo-se obviamente a Schaia III e ao Planeta Azul. Era incontestável o medo que a
maioria dos guerreiros imperiais tinha das famosas histórias sobre o Planeta Azul. E
mesmo que o próprio general Arcrates mandasse, se acaso ele tivesse coragem para
isso, qualquer guerreiro da frota preferiria a morte.
O maior problema, no entanto, que o general Arcrates estava tendo era com
os cientistas que vieram de Carmel. Eles ainda não acreditavam na morte do amado
imperador. Arcrates teve que pedir a uma parte da frota para se encarregar da retirada
dos cientistas, que após muito custo saíram do Planeta e foram para Carmel.
O General tinha certeza que alguns deles duvidavam da veracidade dos fatos. Quase mandou executá-los por insubordinação e por duvidarem da palavra do
Guardião, porém teve respeito aos sentimentos dos amigos de Schaia III. Como gesto
de solidariedade deixou que os rebeldes fossem para Carmel.
O império se tornou, em poucas horas, um inferno. O general governava com
punho de ferro. No terceiro dia depois de ter tomado o poder, todos os seus inimigos
políticos tinham sido mortos e toda a forma de comunicação deveria ser passada por
um processo de censura. Todo o problema que fora criado pela visita do Extuártico
foi desmentido e o desaparecimento de Schaia III foi por uma crise depressiva que o
imperador havia tido.
Era assim que o general Arcrates governava. Se todos os últimos imperadores,
que foram uns déspotas, tivessem governado juntos, nem chegariam aos pés da tragédia que se abatera sobre o império agora, nas mãos desse louco.
Após uma semana, o povo já começava a sentir o problema. Ninguém entendia
o que se passava pela cabeça do general. Afinal o império não estava indo tão mal
assim, estava? Não, é claro que não, mas a ideia do general era outra. Ele estava poupando a energia dos Extuárticos, era esse o seu medo. Mesmo sabendo que, depois de
muitas e muitas gerações de imperadores, a convivência com aqueles estranhos seres
era amigável, o general não admitia que eles queriam viver pacificamente.
“O que fazem aqueles monstros com tanta energia?”, perguntava o general
para si mesmo. “E o que devemos dar em troca? Então eles vêm, depois de milhares
de anos, e dizem que não estamos cumprindo o trato... Ha, ha, ha!... E o imbecilzinho
do imperadorzinho cai nesta balela! Eles querem o pagamento, isso sim! Querem algo
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
do império que não sabemos o que é, e dizem que não estamos cumprindo o trato!
Bando de monstros!” E era verdade! O general Arcrates estava disposto a acreditar em seus pensamentos, tanto que tomou um Planeta inteiro apenas para esconder
parte da energia que deveria ser distribuída para a população. Era na verdade muita
energia. Arcrates queria ter muita energia para seu plano... destruir o espaço interior!
Sim, destruir o mundo dos Extuárticos. Ele estava convencido de que os Extuárticos
estavam planejando algo contra o império, e não iria ser ele, enquanto general e agora
guardião universal, que iria deixar isso ocorrer.
Schaia III
O Mago de Prata acordou ainda atordoado de seu conturbado sono. Estava
num ambiente muito diferente daquele em que pretendia estar, mas sabia que isto
fazia parte de seu plano, não exatamente dessa maneira, mas o caminho era certo.
Tentou adivinhar o que era tudo aquilo à sua volta. Levantou-se de uma cama
muito macia e percorreu a sala onde estava. Parecia não haver saída, e imaginava que
seu raptor o espiava. Sentou-se na cama, percebeu uma jarra de água ao lado. Fazia
muito tempo que não tomava algo daquele tipo, não fazia? Na realidade, se não fosse
seu poder de concentração estaria louco ali dentro, afinal tinha voltado para a materialidade. Isso era indiscutivelmente estimulante. É claro que muitos espectros já haviam feito esta passagem, mas ele via-se numa situação peculiar, tudo fora planejado.
Com muito esforço, soube do grande problema que ocorrera no universo material,
problema por sinal causado por sua existência, e que agora deveria tentar reverter. O
Mago de Prata sabia que era tudo uma questão de energia, e esta energia vinha dos
cristais, amplificados pela magia de seu povo e usada erroneamente por Ortal.
Mas a questão do momento era aquela jarra de água a seu lado. Ele se dirigiu a
ela e cheirou-a... Ei, nada mau! Tomou diretamente da jarra. A água escorreu-lhe pela
boca e molhou seu corpo nu. Agora ele estava bem estimulado pela ideia. Colocou a
jarra sobre sua cabeça e fez toda a água cair, formando um delicioso chuveiro. Sim,
aquilo sim era uma forma de resgatar a energia de que precisava, o contato com a
água. Ficou parado, de olhos fechados, absorvendo aquela matéria que percorria seu
corpo.
Schaia III estava pasmo. Desde que O Mago de Prata acordara, o imperador
observava cada movimento dele. Schaia III estava quase debruçado, engolindo os
monitores, que faziam de sua sala de comando uma galeria de arte a cada gesto que o
Mago de Prata fazia. Como poderia uma criatura ser tão bela! Schaia III ficou petrificado quando a água no corpo do Mago de Prata começara a dançar com movimentos
que discordavam da gravidade artificial da nave.
O Mago de Prata sorria ao ver a água dançando em seu corpo. Sua magia es164
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
tava voltando. Aos poucos, mas estava.
Schaia III ficou atônito, já não sabia o que fazer. Achava que cometera um
enorme erro. Se aquele ser fosse tão poderoso como ele vira, calculava que poderia
estar perdido. Mas que bobagem! O que estava feito, estava feito, não estava? Era
melhor encarar os fatos, afinal não o fizera por maldade, fizera? Schaia III parou para
pensar. Sim, fizera. Em parte queria se apoderar do Mago de Prata. Por um certo momento soube que aquela beleza o corrompia e todo o escrúpulo aprendido em sua vida
pareceu ter desaparecido. Schaia III estava triste. Por alguma razão muito especial
aquele ser voltara à vida, talvez fosse o próprio problema no universo que o trouxera
até ali de novo e ele, Schaia III, o roubara. Talvez o Mago de Prata fosse o único ser
que pudesse reverter o sonho de Ortal, afinal o sonho fora sonhado por sua causa...
Mas ele, Schaia III, o roubara de seu destino apenas por seu próprio egoísmo.
O imperador olhava de novo para os monitores. Levantou-se. O Mago de Prata
abrira a porta e saíra. Como ele fez isso? Schaia III ficou imóvel, agora suava frio. O
Mago estava à solta pela nave! E não seria muito difícil encontrá-lo, seria? Não, não
seria. Schaia III não quis olhar para a porta da sala de controle, atrás dele, mas a leve
brisa que batera em suas costas respondia a sua pergunta. O Mago de Prata estava ali,
olhando para ele!
Schaia III virou-se bem devagar e caiu sentado. O ser estava ali, nu, na sua
frente! O Mago olhava-o com um olhar paciente. Não havia mágoa em seu olhar, nem
mesmo frieza. Schaia III tentou falar algo mas as palavras não saíam. Foi na verdade
o Mago de Prata quem falou.
– Não se assuste. Por mais que você ache que foi um erro ter me raptado, não
se esqueça que eu vim a você primeiro, em seu sonho, lembra?
– Sim, você veio a mim.
Schaia III não entendia como estava falando com ele. Era uma língua que jamais ouvira em sua vida, porém conseguia se comunicar perfeitamente.
– Por favor, não tente entender meus poderes. Sei que sua civilização desenvolveu enormes poderes também, poderes que talvez eu não entenda, mas acredite:
só com a união de nossos poderes é que conseguiremos reverter a tolice que Ortal
fez. Agora porém, devemos nos preocupar com algo mais imediato. Primeiro, sei que
meu corpo o abala, por isso gostaria de vestir algo, pois não quero nenhum incidente
desnecessário.
Schaia III enrubesceu, mas nada falou a respeito.
– Venha, vou mostrar-lhe alguns trajes a que você possa se adaptar.
O Mago de Prata escolheu uma longa capa preta que, por sinal, lhe caía muito
bem.
– E agora...? – perguntou Schaia III.
– Bem, agora... deixe-me ver... Bom, espero que vocês gostem de comer, na
sua civilização.
– Sim, isto é uma boa ideia!
Schaia III estava rindo feito criança. Sua preocupação desaparecera ao perceber
que o Mago de Prata estava feliz por estar ali, ao menos era o que estava parecendo.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Foram de novo para a sala de comandos da nave. Schaia III abriu uma enorme
escotilha sobre suas cabeças e todo o universo apareceu através da transparência do
material. Agora era o Mago de Prata quem ria como criança.
– É realmente lindo.
Podiam ver o Planeta Azul se afastar rapidamente, agora que Schaia III impulsionava a nave mais velozmente. O Imperador fez alguns gestos no ar e colocou a
nave em curso, logo em seguida repetiu os estranhos movimentos e disse:
– Nós desenvolvemos muitas maneiras de lidar com nossas criações, mas a que
mais eu me identifico é esta, por gestos. Eu dou o comando para que os equipamentos
façam o que eu queira. É claro que estas decisões são passadas por um equipamento
de inteligência, que mede os comandos e, se detectar qualquer risco, imediatamente
retorna os parâmetros para mim, explicando-me o que pode ocorrer e o que devo fazer.
O Mago de Prata estava olhando atento e, com um olhar quase alarmado, perguntou:
– Essas máquinas são quase mágicos artificiais, não são?
– Sim, podemos dizer que sim. São máquinas avançadas e que aprendem com
seus próprios erros. É praticamente impossível uma máquina dessas errar, pois, devido à sua longa existência, ela já considerou qualquer erro possível.
– Vou me lembrar disso.
Schaia III não gostou nada do que o Mago de Prata falara. Além de ter duvidado do potencial em que se baseava todo o império, o Mago de Prata detectou, e
mostrou explicitamente em seu olhar, que a menina dos olhos do império, a tecnologia, poderia cometer erros.
De uma escotilha inferior surgiu o que poderia se dizer um maravilhoso banquete com várias espécies de alimentos. O Mago de Prata estava pasmo, e sorrindo
para Schaia III, disse:
– Mas é uma maravilha! Que espécie de magia é esta que prepara uma refeição
como essa em tão pouco tempo?
– Nossa civilização é baseada na nossa tecnologia. Não é magia, caro Mago de
Prata! É tecnologia!!
O Mago de Prata riu de novo.
– Sabe há quanto tempo alguém não me chama assim, Schaia III?
Schaia III riu.
– Desfrute da cordialidade de meu império, meu amigo.
Começaram a comer e Schaia III contou todo o problema que estava ocorrendo
em seu império desde a morte de seu pai. O Mago de Prata ouvira com atenção todos
os detalhes e visualizava em sua mente tudo o que o imperador lhe dizia.
Após terminarem a refeição, a enorme bandeja foi recolhida. Schaia III continuava a falar seriamente sobre seu império.
– Ainda não tínhamos chegado a nenhuma pista do que poderia ser este grande
problema, até que você, ou seu espectro, me apareceu naquela praia... Aí comecei a
entender que o problema poderia ser de ordem imaterial, onírica. Assim, após uma série de fatos irrelevantes, fui até o Planeta Azul escondido de todos, pois algo me dizia
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
que deveria proceder dessa forma. E quando vi aquele que chamam de Muir-Iled lá,
tive certeza que o que eu estava fazendo não era loucura. Agora, com você aqui, sintome mais aliviado. Acho que, como você mesmo disse, juntos, com minha tecnologia
e sua magia, poderemos solucionar este problema, não poderemos?
– Como era mesmo o nome do general que você nomeou para tomar conta do
seu império? – perguntou o Mago de Prata.
Schaia III olhou-o meio que estranhando a pergunta e respondeu, dando de
ombros:
– General Arcrates! Por quê?
– Não estou bem certo se já posso confiar em minha magia, mas acredito que
vi um bloqueio em minha mente quando você falou sobre este general.
Schaia III encostou-se em sua cadeira.
– Pode me explicar melhor?
– Acho que vou dormir. Devo recuperar minhas funções dormindo. Acredite,
não consegui visualizar um futuro certo quanto a solucionarmos juntos o problema,
com sua tecnologia e a minha magia. Alguém roubou sua tecnologia, Schaia III.
O Mago de Prata desaparecera da sala, mas o imperador viu-o entrando na
mesma sala onde dormira enquanto estava sob o efeito do paralisanex.
Schaia III ficou alarmado com o que o Mago de Prata falara. Pensou que a
comida tivesse feito algum mal a ele, mas mesmo assim não poderia correr riscos.
Colocou toda a potência dos receptores de dados de sua nave em direção ao império.
Deixou todos os equipamentos captando as mensagens e foi descansar. Iria levar algum tempo para que as mensagens chegassem.
Carmel
Se todo o império estava sendo espionado pelas garras do general Arcrates,
nenhum Planeta era mais investigado do que Carmel.
– Mas qual é a preocupação desse imbecil do general Arcrates? – perguntava
Gundel de sua câmara secreta para a pequena comissão que analisava o império às
escondidas.
– Use seu mediador de dados, caro senhor – dizia um dos participantes da
comissão.
Essa comissão era tão secreta que nem mesmo quem pertencia a ela sabia a
identidade dos outros. Eles usavam codinomes e Gundel agora era Sargento Luntra.
Mexia e remexia em seu analisador de dados.
– A resposta mais plausível é que por termos um potencial tecnológico ainda
desconhecido, por estar em evolução, o general acha que podemos usar isto contra ele.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Com a miséria de energia que ele desloca para nós! Não conseguiríamos nem
fazer os painéis mecânicos funcionarem!
– Ei, espere um momento! O que você disse?
– Eu disse que o nosso querido general, que agora está no poder de tudo que
este Planeta vem criando, não libera nem uma migalha de energia.
– E o que mais?
– Que a energia que nós temos não bastaria para ativar os painéis mecânicos.
– É isso! Sargento Luntra sai da conferência.
– Sargento Luntra espere, é...
Já era tarde, Gundel desativara o contactador. Ele sabia qual era o problema, ou
melhor, achava que sabia. Dedilhava categoricamente seu analisador de dados.
– É isso, só pode ser isso! – dizia para si mesmo.
Tinham-se passado quase dois meses-padrão desde a notícia da morte de
Schaia III. Gundel era um colega de Schaia desde a infância, não que isso tivesse sido
há muito tempo, mas conhecia o futuro imperador.
– Ele não iria morrer daquele jeito. Não mesmo – afirmava, enquanto depositava os dados na máquina pensante.
– Sim, sim, sim, sim! Existe uma possibilidade. Se esta máquina fria diz que
existe uma possibilidade, é porque existe!
Ele jamais pensou na possibilidade de que Schaia III estivesse morto. O general jamais poderia ter até mesmo pensado em matá-lo, nem mesmo ninguém da tropa.
Eles eram condicionados. A nave de Schaia era de última geração, mas poderia haver
falhas naquele modelo. E foi o que o general, em seu discurso em cadeia universal,
afirmou que ocorrera. O que ninguém sabia é que aquela nave fora modificada secretamente, era à prova de erros. Não havia cogitação.
– Mas o grande problema é que não havia energia suficiente para tentar contatar a nave. É óbvio! O general deixou os Planetas isolados para que ninguém achasse
o imperador. Inventou um problema com os Extuárticos e qualquer mensagem deveria
ser mandada à Plan Ex. Depois, ela retransmitia para o canal desejado. Isso na era da
comunicação sensorial! O general enlouqueceu achando que ninguém iria descobrir
seu erro. Muito bem, mãos à obra!
Gundel saiu de sua sala privada, tomou seu transportador e foi à sede de telescopia espacial, que, àquela hora, estava deserta. Pudera! Além de ser um tanto tarde,
com a energia que tinham só conseguiam ver as três luas ao redor de Carmel. Mas
Gundel tinha muita experiência nisso.
– Qual era mesmo o quadrante de onde a nave de Schaia III saiu? Aquele que
secretamente ouvimos falar que estava com a segurança redobrada... Ah, sim! Localizei.
Colocou os satélites naquela direção.
– Agora... com esta pequena lanterna de projeção holográfica eu encaixo
no adaptador de recepção/transmissão do equipamento e... Sim, lá vai! Pronto, conectado. Muito bem, qual é a mensagem? Ah, sim: “Pranta, lnvikdm;;, ioj io ejfh
navwejj, jeif jqp,, kjeiowjkjweqpfh.mijfqweom..ijiewoju dfkpjfeil,..lkof mkiej
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
fiqpiofle.//,kefqjikd....iieuea;iuyf. Mnfufhaln jehu aopui uihuf pufh puioerf puihfa
uiejhfi poijh p iefua pihfjdhl nmkj ioejfp; kjhif; kmk ijafkj ,djka o kefio ikeiawfpuih
kjiaew qiqwpjkk.” Código indecifrável!
– Aí está! Agora é só fazer o equipamento do satélite inverter a função vetorial... Pronto! A mensagem está sendo codificada e amplificada... Isso!... gastando
a energia da pilha da minha lanterna... Agora, o satélite pensa que a mensagem é
uma imagem de um Planeta muito, muito distante... e para recebê-la deve gastar... a
quantidade suficiente de energia que o vetor deste Planeta distante gastou. Assim, nós
invertemos a polaridade e... bum! O satélite explode, lançando minha mensagem para
o espaço em direção à nave de Schaia, o Cabeludo. E eu, bem... devo correr!
Dez minutos depois, Gundel estava deitado em seus aposentos, ansioso para
receber a mensagem de volta.
Schaia III
– Mago de Prata! – Schaia III chamava o Mago pelo ampliador de voz da nave.
“Como dorme este menino... menino? Bem, esta coisa...”
Schaia III foi pessoalmente aos aposentos do Mago de Prata. Ele vira pelos
monitores da nave que o pequeno dormia um sono profundo, mas três dias parciais era
demais. Além disso, eles deveriam traçar um plano, afinal quem teria o poder ali era
o Mago, não era...? Claro que era. O Mago de Prata iria tirá-los dessa enrascada. Mas
como Schaia III poderia confiar naquele ser? E agora, pensando bem... que loucura era
aquela toda? Simplesmente deixar centenas de domínios do império, gerações e gerações de poder, nas mãos daquele estúpido general...! Schaia III entrou nos aposentos.
– Meu Deus! É, ele não pode ser uma farsa.
O Mago de Prata estava deitado apenas coberto com um fino e transparente
lençol. Schaia III teve que forçar seu consciente para voltar à realidade. Porém, diante
daquela visão avassaladora, era quase impossível.
Schaia III tocou o ombro do Mago de Prata, sentindo uma emoção especial ao
fazê-lo... Sim, ele está vivo. O Mago acordou. Ficou em silêncio, se recuperando das
intermináveis horas de sono. Assim que viu a cara de espanto do imperador, perguntou:
– Viu algum fantasma?
– Não... não! É claro que não.
– Você irá receber uma mensagem... Meus poderes se solidificaram com o
sono, mas eu preciso de matéria orgânica para poder mantê-los.
– Mensagem... matéria orgânica... Uma coisa de cada vez. Se é comida que
necessita temos toneladas de arranjos genéticos que podem fabricar a comida mais
pura e saudável do universo.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Pura sim, saudável não.
– Você está brincando! Nossos alimentos são fabricados da forma mais evolutiva jamais vista! Uma máquina sonda seu corpo e desenvolve o prato baseando-se
exatamente no que você necessita, e com o paladar que você deseja.
– Naturalmente você, como imperador de todas essas quinquilharias tecnológicas, jamais ouviu falar no valor das vidas de uma planta ou animal em desenvolvimento. Toda a carga energética adquirida por um alimento enquanto em vida é muito
mais poderosa do que a própria matéria que ela oferece.
Schaia III estava pasmo. O poder daquele indivíduo na sua frente era sem
dúvida nenhuma algo jamais possível de atingir por qualquer fruto tecnológico da
civilização imperial.
– O que deveremos fazer então? – perguntou Schaia III, ainda assustado de ter
concordado com as palavras do Mago de Prata.
– Em primeiro lugar, analise a mensagem que está para chegar. Tente fazê-la
chegar mais rápido, pois seu amigo teve dificuldade em transmiti-la.
– Amigo?
– Sim, um ser chamado Gundel.
Schaia III quase perdeu o controle. Gundel! Como um ser que vivera há não
se sabe quantos séculos atrás e que agora revivia da forma mais explícita possível era
capaz de saber o nome de um dos seus melhores amigos?
– Basta! – gritou Schaia III. – Como é possível? Até agora eu vi coisas aqui que
provocariam um ataque em qualquer cientista do império!
– Não se preocupe, imperador! Haverá a hora das explicações. Temos uma
linha a seguir. Estamos os dois correndo perigo.
Schaia III foi para a sala de controle, agora acompanhado do Mago de Prata.
Assumiu os controles e com muita precisão localizou a mensagem codificada para
sua nave.
– Um maldito golpe! – gritou. – O bastardo está no poder do império! Forjou minha morte! Isso é completamente contra a... – olhou para o Mago de Prata e
começou a chorar.
A cabeça de Schaia III estava um alvoroço. E a primeira coisa que surgiu foi
que a culpa era dele, que jamais deveria ter deixado o império daquela maneira.
– O bastardo cortou a energia. Os Planetas estão desconectados, não existe
forma de transporte entre eles. Por que ele fez isso? – Schaia III esmurrava os controles da nave com tanto ódio que o Mago estava assustado.
Mas Schaia III se recuperou, olhou novamente para o Mago de Prata e disse:
– Do que você precisa, caro Mago?
– Tente localizar um Planeta fora dos domínios do império, mas próximo. É
primordial que o Planeta seja habitável e com uma grande quantidade deste material – o Mago de Prata esticou a mão para Schaia III, que ficou um tanto perplexo ao
perceber que nada havia na mão dele.
Olhou de novo para o seu rosto e notou que o Mago de Prata estava com os
olhos fechados, se concentrando.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
nava.
– Não vai durar muito, Schaia... Meu poder está mais fraco do que eu imagi-
Então, Schaia III olhou de novo para a mão do Mago de Prata e constatou que
havia surgido um pequeno pedaço de cristal sobre ela. Tomou-o de imediato e colocou
dentro de uma caixa que se abrira nos controladores da nave. O Mago ainda estava
concentrado.
– Pronto! Já tenho a linha principal do material. Podemos reproduzi-lo, se você
quiser.
– Não. Devemos utilizá-lo na sua forma natural. Nenhum tipo de máquina
pode efetuar magias.
Schaia III olhou-o com atenção. Por que esta pequena criança tinha tanta
aversão às criações tecnológicas?
– Você irá saber, meu amigo, irá saber.
O que interrompeu os pensamentos de Schaia foi a voz da máquina à sua frente, dizendo as características do material e as áreas onde poderia ser achado. Era um
material que praticamente existia em quase todos os Planetas naturalmente habitáveis.
– Bem, só devemos achar um Planeta isolado do império... Aqui está... Gelo?
Por que será que alguém daria um nome desses a um Planeta?
Foi a máquina que respondeu...
“Planeta Gelo, teoricamente inabitado... Massa polar gigantesca, habitável em
condições críticas... Antiga população... Cxarms... População que originou as famosas
tropas de Sarmartans, o exército do terror dos antigos imperadores... O Planeta sofreu
forte corrente migratória a ponto de se encontrar inabitado no presente... Pela falta de
condições de vida confortável se encontra fora dos domínios imperiais... Alta taxa de
umidade... Alta taxa de minerais... Animais perigosos... Rico em vegetais nas áreas
centrais... Sem mais informações devido ao desinteresse dos cientistas imperiais.”
– Está aí, meu querido Mago! Eu, como imperador Schaia III, o nomeio tutor
vitalício do Planeta Gelo!
O Mago de Prata nada falou. Estava em transe.
– O futuro do seu império está nesse Planeta, Schaia III.
Schaia III quase riu, só não o fez porque o Mago estava muito sério.
– O que quer dizer?
– Sinto uma tremenda energia vindo dessa linha temporal.
“Como ele consegue fazer isso?”, perguntava-se Schaia III mentalmente.
– É muito simples. Você deve traçar mentalmente todos os dados do que está
acontecendo no momento. Una isso à sua sabedoria do passado e pense nas possibilidades futuras. Sempre existirá uma mais forte do que as outras. Ela já faz parte do
seu conhecimento passado, ela já tem um referencial, um padrão, por isso ela se torna
mais visível em sua mente. Então você percebe que se agir dentro dessa determinada
linha, ela se tornará mais segura do que as outras. Além disso, os acontecimentos
universais não se dão ao acaso. Nós fazemos parte desses acontecimentos como seres
integrantes deles, portanto, se os manipularmos, estaremos alterando-os da maneira
que quisermos. Mas para isso devemos conhecer as linhas e saber qual seguir para
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
fazer nossas conquistas mais facilmente.
O Mago de Prata falava isso olhando para o monitor onde aparecia a imagem
de Gelo, como se estivesse falando a coisa mais normal do mundo.
Schaia III no entanto estava assustado. Tentou fazer o que o Mago de Prata
tinha dito, mas suas ideias eram outras. Visualizou o presente, onde eles estavam,
então o misturou com o passado, à maneira de como o destino colocou o Mago de
Prata em sua vida. As linhas de pensamento se embaralhavam, nada se determinava,
apenas um caos de informações.
– Ah – disse o mago –, esqueci-me de lhe dizer. Nunca tente fazer isso quando
o objeto seja um Mago de Prata. Nós não conseguimos nem determinar o nosso sexo.
Schaia III engoliu em seco, como era possível... Mas evitou pensar nisso.
Tinha coisas urgentes a fazer, e uma delas era mandar uma mensagem para Gundel.
Disse-lhe, em outro código, que estaria indo para o tal Planeta, acompanhado por um
amigo. E que se possível gostaria de saber mais notícias sobre o império, ou que ele
próprio se deslocasse o mais secretamente possível para Gelo.
A nave de Schaia III não era um trans universal, porém era uma grande nave,
digna de um imperador. Iria mostrar agora ao Mago de Prata que ele, Schaia III, também tinha cartas na manga.
– Muito bem, Mago de Prata – dizia Schaia III. – Está vendo, neste monitor? É
um mapa estelar plano. Nós vamos traçar um plano de viagem até Gelo. O problema é
que Gelo está exatamente no lado oposto do espaço do império, portanto, deveremos
atravessá-lo. Se não o fizermos, mesmo com todo o potencial desta magnífica nave,
fruto da mais alta tecnologia de Carmel, o Planeta da fé, nós levaremos duas vezes o
tempo de nossas vidas... O que iremos fazer é estipular uma rota, e esta belezinha fará
exatamente o que fez quando eu fui ao seu querido Planeta Azul. Viajar por um hiperespaço paralelo, coisa que nem um cruzador imperial poderia fazer! Sim, podemos
viajar com esta tecnologia para onde quisermos, sem os parâmetros dos portais que
as naves do império utilizam e que consomem tanta energia dos Extuárticos. E tem
mais: ninguém poderá saber disso! Pois para eles, isto não pode existir, a não ser que
o General Arcrates resolva investigar cada código secreto em Carmel para adquirir
esta informação. Mas isso ele não fará, pois não existe tal código. Nem Carmel sabe
da existência disso, nem mesmo os próprios cientistas que criaram esta belezinha. Ela
foi criada por seus cérebros, mas em outros corpos! Corpos estes que eram artificiais e
foram aniquilados, junto com as memórias deste projeto. Não é simples?
O Mago de Prata nada falou... Apenas pensou na Eco Justiça. Grande Deus! Se
o sonho de Ortal estiver com a memória da Eco Justiça e realmente atingir o que Ortal
estava querendo que atingisse... Deus!... O universo iria sucumbir!
Schaia III nem olhou mais para o Mago de Prata, estava apenas interessado em
traçar o plano de viagem. Enquanto isso, o Mago pensava em seu próprio plano. O que
o futuro e o passado tinham reservado para ele...
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Cosmo
O Mago Neres estava angustiado. Apesar de toda a revolução que se criara
por todo o Cosmo, alguma coisa o perturbava. O que aquela figura de cabelos longos
estaria fazendo ali? Dentro do palácio de Orh... dentro de Cosmo... dentro do sonho
de Ortal? De onde tinha vindo?
– Muir-Iled... onde está você? O povo está aflito! Por que não temos o contato
com o mundo exterior...?
Gelo
A primeira impressão que o Mago de Prata teve quando viu a pequena bola
branca se aproximando, era de que iriam bater diretamente na Lua. Mas quando a nave
chegou bem perto, pensou: “não, nem a própria Lua poderia brilhar tanto”.
Era um Planeta feito totalmente de gelo, completamente branco. Refletia uma
luz muito intensa, provinda de uma estrela próxima.
– Nem sinal de contato com o império – dizia Schaia III, contente e ainda olhando para os equipamentos.
O Mago de Prata nada falou; estava ainda assustado com tudo aquilo. “Seria
possível a tecnologia ir tão longe? Bem, talvez aquele povo se tivesse desenvolvido
sem atacar tanto a natureza de seu Planeta... Mas mesmo assim era um povo dominador, um povo guerreiro.”
– Schaia... – perguntou. – Como foi desenvolvido seu império?
– Você quer dizer como meu império dominou quase todo o universo conhecido?
– Humm... sim.
– Bem, a princípio conhecíamos uma tecnologia muito mais sofisticada que
a de qualquer Planeta daquela época. Começamos a entrar em contato com aqueles
Planetas e logo vimos que seria fácil cobrar impostos deles. Isto foi com uns dez
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Planetas se as escrituras estiverem corretas. Após isso, começamos a compartilhar
nossa tecnologia com eles. Então, eles começaram a fazer parte do próprio império,
isto é, fazíamos parte de uma coligação de Planetas. Quando começamos a ter contato
com Planetas mais distantes, eles também quiseram se juntar àquela coligação. Assim, exportávamos tecnologia para uns, enquanto importávamos comida de outros,
cada Planeta tinha seu dever dentro da coligação. Foi então que o império começou
a se expandir mais e mais. Estávamos procurando uma energia muito maior, que suportasse os portais de hiperespaço, que nos permitiriam viajar pelo universo na dobra
do espaço.
“Fizemos um acordo com os Extuárticos, que nos fornecem energia suficiente
para qualquer deslocamento. Com isso, o império, que se espalha por uma imensidão,
pode ser cruzado em semanas, dias ou até mesmo horas, dependendo de aonde você
queira chegar.”
– Mas como tivemos energia para fazer isto agora, se o seu querido general
tomou toda essa energia?
– Simplesmente porque esta pequena nave é uma nave do próprio imperador
e carrega, entre os acessórios opcionais, seu próprio portal de hiperespaço, conectado
ao outro, de destino. É só apertar um botão e estamos lá!
– Poderíamos voltar à Terra, ou melhor, ao Planeta Azul?
– Não tão facilmente, pois o Planeta Azul não faz parte do império, portanto
não tem um portal que possamos aterrissar. Mas não se preocupe. Acharemos seu
cristal neste Planeta.
– Com este cristal, Schaia III, poderemos ter infinitamente mais energia; tanta
que seus amigos Extuárticos jamais sonharam! – o Mago de Prata falou como se para
si mesmo.
Schaia III estava paralisado, olhando para o Mago.
– O que você disse?
– Eu disse que a energia deste cristal pode ser absoluta. É por isso que o sonho
de Ortal me preocupa. Se os habitantes do sonho obtiverem quantidade suficiente
desse cristal, o que eu acredito que eles já tenham conseguido... o sonho pode se tornar
real, para este plano.
– O que há de tão especial nesse cristal?
– É um cristal comum, mas com a sabedoria de minha família, desenvolvemos
habilidades para transformá-lo num poderoso catalisador de nossa magia. Portanto,
com ele e vários outros elementos naturais, muito bem encaixados, aliados ao poder
de nossas mentes, podíamos até mesmo fazer viagens no tempo.
– Meu Deus... – Schaia III estava começando a entender o potencial que tinha
nas mãos.
Definitivamente, todo o poder do império não era sequer uma migalha se comparado ao poder da natureza e daquele povo que habitava o famigerado Planeta Azul...
Tão famigerado que criou o maior problema do império de todos os tempos e que
agora, segundo esse ser fantástico ali na sua frente, iria dar início ao salvamento do
universo. Materializar um sonho que se apodera de todo o universo... Como poderia?
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Mas Schaia III não teve mais tempo de pensar. O ruído frenético de alerta que
a nave emitia era ensurdecedor. Eles estavam sendo atacados.
Schaia berrava nos microfones, tentando fazer contato, enquanto fugia dos
tiros que choviam em direção a sua espaçonave. Se ele não tivesse tido tempo de aplicar o escudo de plasma de contato, certamente já estariam mortos. Mas os cruzadores
do império poderiam aniquilar a nave de Schaia logo, logo, pois o escudo poderia ser
manipulado.
– Mas o que vocês estão fazendo? Quem está no comando? Esta nave é de
Schaia III, o imperador...!
Mas logo veio a resposta.
– Sua nave não está em nossa memória... Identifique-se.
– Sou Schaia III, imperador do universo!
– Schaia III está morto, esta nave não está registrada no arquivo central... Você
só tem mais uma chance: estamos com o parâmetro de seu escudo ativado...
– Não, senhor! – falou Schaia para si mesmo.
Ele conhecia sua nave como a palma da mão e mudou os parâmetros do escudo
em segundos. Logo veio um tremendo estrondo. Eram as naves imperiais tentando
acertá-los!
– Mago de Prata!... Não suportaremos muito tempo!... Espero que você tenha
uma magia para isso!...
– Sim, há uma possibilidade! Como não tenho nenhum cristal, não terei o
poder de transportar toda esta nave, mas tenho certeza de onde possa ter. Posso estar
lá em um segundo, mas deveremos nos separar... Ao entrar no sonho de Ortal conseguirei, com a ajuda dos cristais do sonhar dele, transportar sua nave. Isto levará
um segundo, mas não saberei onde sua nave irá entrar. Você deverá me procurar pelo
sonho, estarei perto da Terra. Estarei num lugar que chamam de Templo de Cosmo,
um templo muito grande.
– Sim, eu conheço este lugar... Tenha sorte!
E o Mago de Prata desapareceu.
De dentro da nave do império, um guarda imperial traçou o código de abertura
do escudo de Schaia III, uma potente arma foi disparada. Para espanto da tripulação
o raio não atingiu a nave, mas, sim, o Planeta Gelo, que explodiu e logo entrou em
colapso, sugando as naves do império que estavam à sua volta.
Plan Ex
Isso foi o bastante para que o general Arcrates chegasse à loucura. Ele tinha
certeza que só poderiam ter sido os Extuárticos que explodiram as naves do império,
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
e ainda o Planeta Gelo inteiro.
– Propriedade do império!!! Eles vão pagar por isso! Chamem a Confederação
dos Planetas! Devemos começar a atacar os malditos Extuárticos imediatamente! Já
temos energia estocada suficiente para mais de cem anos! Que aqueles malditos do
Planeta Carmel descubram alguma fórmula para um novo tipo de energia! E que todos
vão à...
Cosmo
A nave de Schaia III rasgou o céu de Cosmo, o sonho de Ortal, com um assombroso estrondo. Havia centenas de fileiras de pessoas se deslocando num leve
caminhar por toda a parte daquelas terras planas. Milhares de pessoas caminhando
para um único ponto, agora ainda invisível, devido à enorme distância que separava
cada fileira.
Schaia III parecia estar tendo um espasmo, não só pela passagem entre os
mundos, mas por estar consciente naquele mundo de sonho. Naquele mundo onde o
universo era o mesmo que o seu, mas completamente diferente. Ele podia ver os Planetas, as estrelas, como se estivesse dentro de uma maquete do próprio universo. Ali
o espaço era diferenciado, ali, no sonho de Ortal, tudo era insignificante... Apenas o
próprio sonho era enorme. Schaia III tentou ativar todo o maquinário de sua nave para
saber em que quadrante do universo se encontrava, mas nada funcionava. Todas as
máquinas estavam operando loucamente, a nave estava completamente em suas mãos.
Schaia III sabia que todas aquelas pessoas se dirigiam apenas para um único
local, para onde o Mago de Prata deveria estar.
– Não só o espaço, mas o tempo também está em colapso neste lugar – dizia
Schaia III a si próprio.
Colocou então sua nave em uma enorme velocidade e rompeu os céus de Cosmo, para espanto de todos, em direção ao templo.
– Sim, devo alcançar o Mago de Prata o quanto antes. Schaia III visualizava
ainda aquele ser que tanto o cativara e colocara seu universo naquela situação. – Não
devo deixar que minha emoção tome conta de mim novamente – porém, a sensação
de estar longe dele, e mesmo sabendo que iria encontrá-lo logo, o deixava em pânico.
– Que espécie de domínio este ser exerce sobre os outros? É com todos ou apenas
comigo?
Schaia III descobriu-se num grande vazio, um vazio causado pela falta do
Mago; não que sua presença pudesse trazer algo de útil, não, definitivamente não era
algo carnal, mas algo um pouco mais profundo, mais egoísta, sim, era isso! Não era
o fato de ter uma paixão carnal ou até mesmo espiritual, mas era o fato de o Mago de
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Prata existir que incomodava Schaia III. Incomodava mas ao mesmo tempo fazia sua
vida melhor. Talvez como as doses de Martrere, que iam causando dependência cada
vez que se aplicava mais ao corpo, sim, era quase isso! Mas havia mais. Schaia III
experimentou algo ainda mais complexo... Ele invejava o Mago de Prata! Era um ser
superior, não só em sua beleza... principalmente em sua beleza... mas todo o complexo
de seu corpo e mente o tornava um ser superior...
– Superior a mim! Isso é um absurdo!... Não posso concordar com isso! Eu
descendo de uma linhagem que governou o universo durante séculos!
Mas Schaia III ia logo concordando com a ideia. Ficou calado, considerando
em sua consciência, algo o incomodava mais que tudo. “E se eu não encontrá-lo de
novo...?”
Ajustou os propulsores da nave, colocou em velocidade total. Aquilo era uma
loucura, e loucuras eram o que ele mais havia feito. Uma a mais, uma a menos não
seria relevante. Voava pelas planícies do sonhar evitando olhar para baixo.
– Essa “porra” nunca termina!
Sim, o sonhar fora longe demais! A nave poderia ter passado por mais de cem
vezes o tamanho de Plan Ex inteiro e nada do templo de Cosmo. Porém, algo em sua
frente, logo à esquerda, chamou sua atenção. Um imenso buraco no chão do sonhar ia
se abrindo e logo um pequeno Planeta atravessava com uma velocidade avassaladora.
– Então é isso, este universo coexiste com o nosso!
Mas o Planeta que ele tinha visto não era um Planeta, apenas um pequeno
satélite artificial. E logo um buraco mais enorme ainda fora aberto bem à sua frente.
Schaia III não teve tempo de desviar do Planeta que surgira.
– Meu deus, eu vou bater em um Planeta!
A nave de Schaia III se aproximou do Planeta a uma velocidade abissal, mas ao
colidir, não colidiu. Sim, a nave de Schaia III, com ele mesmo dentro, desapareceu...
e... reapareceu do outro lado do Planeta! Agora Schaia III sabia.
– Eu faço parte deste sonho! Para meu universo eu não existo mais. Sou matéria neste sonho!
Mas ele não compreendeu apenas isso. Compreendeu que as dimensões do
sonho eram diferentes do seu mundo real. Os Planetas eram menores, o próprio universo era menor.
– Sim, é por isso que estas terras se aprofundam no universo tão rapidamente.
Deus, eu tenho que deter isto com ou sem ajuda do Mago... Nossa civilização está
comprometida.
Foi com este pensamento que Schaia III visualizou o Templo de Cosmo, num
horizonte negro, e mais atrás o tão temido Planeta Azul. Num espasmo, Schaia III
disse:
– Se esta loucura acontecer realmente... se este sonho se tornar matéria no meu
mundo... a Terra se tornará o centro do universo!
Mas logo veio em sua mente como um tufão a voz do Mago de Prata:
– Acontecendo isso ou não, a Terra se tornará o centro do universo.
Schaia III diminuiu a velocidade da nave, pois pelo tamanho do Templo ele
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
pensara que estava bem perto. Mas não estava. Demorou muito para chegar. Conseguiu visualizar então, lá embaixo, centenas de milhares de pessoas ao redor do templo. Pareciam formigas. Deu a volta ao redor do enorme templo.
– Deus! Isto não termina nunca!.
O Templo de Cosmo parecia infinito. Schaia III percebeu que na parte onde estava agora, que seria não a parte de trás do templo mas a parte de trás do caminho por
onde tinha vindo, e, por sinal, exatamente entre o templo e o Planeta Azul, o número
de pessoas parecia diminuir. Como se elas soubessem que o que estava para acontecer
estivesse exatamente do outro lado.
Resolveu então verificar aquele mundo mais de perto. Pousou com extrema
facilidade sua nave no que parecia ser uma praia. Havia um grupo de jovens sentados
em pedras, à beira de um mar escuro. Schaia III saiu de sua nave. Ninguém parecia ter
notado sua chegada, pois o céu era escuro, tornando sua nave quase invisível. Caminhou para perto do grupo, eles cantarolavam e brincavam na areia, eram jovens com
cabelos compridos. Quando Schaia III chegou todos o cumprimentaram com muita
simpatia. Sentou-se e observou-os. “Deus...” pensou ele, “como estas pessoas são
lindas!” De fato, todos ali pareciam ser irmãos próximos do próprio Mago de Prata.
Mais que isso, Ortal criara as pessoas daquele mundo à imagem e semelhança de seu
“deus”.
Schaia III ficou ali parado, melancólico, apenas apreciando aquelas pessoas se
movimentando e cantando alegremente. Não se deu conta de quanto tempo passara
ali, talvez horas, talvez dias, não tinha mais a noção do tempo-padrão do império. Um
estrondo muito forte o tirou de seu devaneio, assustando não só a ele, mas a todos
que estavam no local. Notou que não só eles notaram o estrondo, mas houve gritos
por todo o Cosmo. Um pânico coletivo se apossara de toda a gente. Olhou perplexo
para os céus de Cosmo e, com muita desolação, viu não uma nem duas, mas centenas,
talvez milhares de fragatas trans galácticas. Ele sabia, mais do que ninguém, do que se
tratava. Eram suas fragatas. As armas mais mortais do império estavam ali, cercando
o Templo de Cosmo.
– Mas como descobriram! – gritou Schaia III para os céus.
Mas seu brado foi em vão... As pessoas ao seu redor formaram um imenso caos
de gritos e correria. Ele não teria muito tempo. Saiu correndo para sua nave.
– Agora esta merda vai ter que funcionar direito! – disse ele para os controles
da nave. – Estado de alerta geral, propulsores dinâmicos em operação, controle manual total, desvio de radar geral, sistema de invisibilidade total, ignição parcial.... ignição total!
A nave saiu dali a plena velocidade, enganando não só os habitantes do sonho
mas também as fragatas. Schaia III foi em direção ao templo, em velocidade assombrosa.
– Vamos, Mago de Prata... Dê algum sinal! Preciso tirar você daí!
Schaia III contornou o templo e viu finalmente em uma das imensas janelas,
agora abertas, a figura de deus, do deus daquele mundo. Viu que aquele deus tinha
uma expressão de horror, mas só conseguiu receber uma mensagem: “o Planeta Azul,
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
a chave de tudo está lá”, e sumiu.
Schaia III impulsionou sua nave para cima e para o lado. Tomou a direção do
Planeta Azul e viu através dos monitores traseiros a enorme explosão. Tomou todo o
ar que pode e, num espasmo, gritou:
– Malditos!!!!!
Agora chorando, esmurrava os controles da nave. Veio a lembrança das crianças na praia brincando e cantando, e começou a soluçar num choro quase interminável. Viu então todo o chão do Cosmo, do sonho de Ortal, desaparecer numa nuvem de
fogo. Estava acabado. Schaia III sabia que era para acabar, mas não desta forma. Não,
não desta forma...
E assim voltou ao tão temido Planeta Azul pela segunda vez. Já não tinha mais
esperanças de nada, apenas queria voltar para lá e ver sua vida passar. Já não suportava mais nem um tipo de guerra nem traição. Aquele não podia ser seu império. Não
foi assim que durante centenas de gerações o universo foi controlado. Não com aquela
forma de violência.
Interlúdio
O Magnânimo e absoluto General Arcrates transmite agora para todo o Império a seguinte mensagem.
“Agentes da Côrte, Frota Imperial, Corporação dos Planetas, Casas Maiores,
Casas Menores, súditos do império. Há dois dias, três fragatas estelares foram bombardeadas, assim como um Planeta inteiro: o Planeta Gelo. A princípio pensamos que
havia sido obra dos Extuárticos, mas estávamos enganados. Quando analisamos a
situação, resolvemos combater imediatamente o espaço interno, fazendo da Casa Extuártica um monte de cinzas. Contudo, um dirigente do Planeta Carmel, acompanhado
pelo próprio Extuártico-Mor, pediu uma audiência anunciando uma pequena Carmelhita. Sabemos muito bem da importância disso.”
“Mandei que a frota esperasse em alerta geral uma posição da Carmelhita. O
fato é que tanto Carmel como os Extuárticos provaram-me incontestavelmente que o
ataque ao Planeta Gelo e às três fragatas não foram feitos pelos Extuárticos, e sim por,
algo que vem assolando nosso império há milênios. E que provavelmente foi isso que
matou nosso querido imperador Schaia III. Trata-se de uma nova arma que vem sendo
desenvolvida em outro plano material, algo nunca antes visto, mas que, com a ajuda
dos controladores de Carmel e dos próprios Extuárticos, descobrimos a tempo. Devo
pedir as mais sinceras escusas ao espaço interior e dizer que vamos atacar imediatamente esta aberração.”
“Tomaremos a forma material deles e atacaremos de surpresa. Não sobrará
sonho sobre sonho!”
“Saudações imperiais.”
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Terra, o Planeta Verde
Schaia III ainda tentava controlar suas lágrimas quando descobriu estar cercado. Eram milhões, não bilhões de micropartículas que viajavam tão rápido quanto
ele. Schaia III escaneou uma delas e mandou a nave analisar. Sim, era possível! Os
cristais que tinham se alastrado por todo Cosmo estavam agora viajando com ele em
direção ao Planeta Azul! Fruto, é claro, da explosão do próprio Cosmo. Schaia III
começou a rir.
– Sim! É possível que haja uma saída!
E havia! Devido ao impulso da explosão de Cosmo, a nave de Schaia III entrou
na atmosfera do Planeta Azul com uma velocidade espantosa. Ele havia notado que,
à medida que penetrava na atmosfera, as pequenas partículas verdes diminuíam em
número. Schaia III conseguiu controlar a nave facilmente, fazendo um vôo rasante
por sobre um enorme oceano. Mas quase perdeu o controle de si mesmo quando se
aproximou da costa.
– Não é possível! – gritou ele, com um enorme sorriso nos lábios. – Esse
Mago, esse Mago de Prata... só pode ser um anjo! Mandado diretamente por Deus
Todo Poderoso! – e de fato era.
A imensa construção do Templo de Cosmo, o Templo de Ohr, estava ali, enterrada pela metade no meio de uma gigantesca montanha, e na praia...
– Sim!... na praia!... Toda a gente de Cosmo!
Era óbvio que no sonho de Ortal existiam muito mais pessoas, mas uma grande
parcela do povo estava ali.
– O Mago de Prata conseguiu salvar pelo menos uma parte do povo... E se não
bastasse, o templo, o enorme templo!
Schaia III sobrevoou toda aquela gente que olhava admirada sua nave. Todos
estavam espantados, não só com a nave, mas possivelmente, com a beleza do local.
Afinal, tudo ali era muito diferente de Cosmo. Ele sobrevoou várias vezes o local.
Havia uma movimentação muito estranha lá embaixo. Deixou sua nave em estado
estacionário logo acima da estranha movimentação das pessoas. Começou então a entender do que se tratava. Eles estavam se dividindo. Tribos estavam sendo formadas,
e uma intensa peregrinação começara. Calmamente, as tribos estavam se deslocando,
cada uma com seu líder devidamente vestido de prata, como era esperado. Levou
horas e horas para que toda aquela gente se deslocasse, e ao entardecer, os últimos
resquícios de civilização já haviam desaparecido.
Schaia III sabia muito bem o que fazer. Em alguma daquelas tribos estava escondido o ser que ele procurava, e não foi difícil localizá-lo. Caminhava lentamente,
acompanhado de alguns outros jovens. Ele se fizera incógnito perante os outros, o que
era uma medida espantosamente esperta, afinal, as doze tribos separadas fizeram a
diáspora aleatoriamente. E obviamente, se soubessem que o Mago de Prata estava em
alguma delas haveria no mínimo uma calamidade.
Foi bem ao norte, quando a tribo já havia caminhado pelo menos três dias, que
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Schaia III notou uma certa anomalia no caminhar.
– Eu sabia que isto iria acontecer.
E era verdade. Para o espanto de todos, uma pequena criança tomou a liderança
da fila. Subiu em uma pedra e fez toda a gente parar. Logo o Mago que liderava até
então a tribo, falou:
– Por tudo o que é mais sagrado! Pelo amor dos céus e das estrelas, sem falar
nos cristais!... O que queres, criança, atrasando-nos em nossa jornada?
– Para onde vais, grande Mago? Qual é o final de tua jornada? – perguntou o
pequeno Mago de Prata.
– Vamos encontrar nosso destino, não foi assim estipulado? Ou estavas a brincar com os garotos de sua idade quando os céus nos falaram para que cada uma das
doze tribos buscasse um lugar seguro para viver, amar e procriar?
– Não, não estava a brincar com os da minha idade, mesmo porque, ninguém
aqui tem minha idade. Nem mesmo tu tens minha idade. Talvez nem mesmo esta rocha e estas plantas tenham minha idade.
Todos estavam pasmos, mas o Mago de Prata continuou.
– Por certo que escutei o que os céus disseram, pois eu fui a voz que surgiu
dos céus.
Ao dizer isso, o Mago de Prata tirou as pesadas vestes que lhe escondiam o
corpo. Imediatamente todos os presentes se ajoelharam, tampando os rostos com as
mãos. Então, o Mago que liderava a caravana falou:
– Pelo amor dos cristais, ó poderoso Mago de Prata! Todos estávamos a chorar
seu desaparecimento de Cosmo, pensávamos que tinha sucumbido, assim como as
Terras de Ortal sucumbiram. Perdoe-nos e não jogue a ira de sua beleza aos nossos
olhos.
– Que todos se levantem! Minha magia está mais forte do que nunca! Tenho
em minhas mãos o poder do Mago Maior e de toda minha tribo. Vim para ajudá-los,
pois foi por minha causa que surgiram. Se Ortal foi seu criador, eu fui criador de Ortal.
Portanto, seu povo é minha responsabilidade; minha beleza é só bondade e não ira.
Todos se levantaram um tanto temerosos, mas logo risonhos.
– Abençoarei esta tribo com minha presença e meus ensinamentos, porém logo
os céus mudarão e não necessitarão mais de mim. Vou levá-los ao meu território.
Vocês substituirão a minha tribo há muito exterminada e terão o mesmo dever que
tivemos no passado, ajudar as outras tribos a continuar com a vida na terra.
Todos ficaram muito felizes com aquelas palavras e o Mago de Prata liderou
a peregrinação para o lugar onde uma vez, há mais de dez mil anos-padrão, havia
existido a aldeia prateada.
Schaia III acompanhava tudo isso de sua nave, que já não era mais causa de
espanto para eles. Era como se aquela nave fosse parte do local.
Por mais de dez dias andaram e andaram por entre as florestas do Planeta Azul.
Não notaram porém, que a cada dia o céu se transformava. Aquele azul-claro de antes
começava a se transformar em azul-esverdeado. Schaia III notara, não acreditava, mas
notara. Os equipamentos da nave diziam que uma camada de cristal se apossara da
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
atmosfera, que estava se transformando numa espécie de plasma, como uma enorme
nuvem de cristais que encapava todo o Planeta.
– Que consequências terá isso para este Planeta? – perguntava-se.
Toda a tribo chegara finalmente a uma enorme cordilheira. Então o Mago de
Prata disse:
– Esta será nossa última noite fora de casa. Amanhã bem cedo estaremos
habitando o lado de dentro destas montanhas. Esta noite, porém, receberemos pela
primeira vez as novas águas que cairão dos céus e finalmente vocês sentirão as águas
dos cristais. E aprenderão com elas sobre a minha magia. Infelizmente as outras tribos
sentirão as mesmas águas, mas não saberão lidar com este poder. Portanto, que todos
se banhem nela; bebam as águas da magia! Provinda das nuvens de cristais que estão
a se formar nos céus de minha casa, de nossa casa. Esta nuvem, este plasma transparente feito de magia, se formará aos poucos, mas sua água cairá como qualquer chuva
e com ela virá para vocês toda a sabedoria de meu antigo povo.
Todos os olhares estavam fascinados com a beleza das palavras do Mago de
Prata. Como um ser daquele tamanho poderia emanar tanta energia, tanto fascínio?
Mas como era de praxe, ele ignorou aqueles olhares e continuou a falar, agora como se
só tivesse um espectador, Schaia III. E olhando para onde estava a nave, disse:
– Hoje teremos uma visita muito especial, uma visita que nos tem acompanhado durante esta nossa jornada por algum tempo. Ele se unirá a nós e verá o ressurgimento de uma civilização neste Planeta. Uma nova civilização, que sempre se banhará
nas virtudes do passado, uma civilização que terá uma tremenda energia, a maior já
vista pelo ser humano.
Todo o povo olhava indignado para o Mago de Prata. Eles sabiam que de sua
boca saía apenas e somente sabedoria, mas não entendiam o que ele falava. Em compensação, Schaia III estava atento.
– Uma energia capaz de mover montanhas e mares. Porém, esta energia ficará
intocada, será apenas nossa, de nosso povo, que na verdade nem necessita dela, pois
este Planeta é o bastante para nós. Mas será nosso trunfo para um futuro incerto.
As águas da magia, que cairão para sempre em nosso Planeta, contêm um elemento
gerado no sonho de Ortal e que se modificou durante os milênios. Talvez essa água
seja a substância mais forte do universo, pois ela provém de um desejo não satisfeito,
potencializado durante todos os milênios que o sonho de Ortal pairou pelo espaço.
E agora está aqui. Os cristais que foram explodidos no sonho estão aqui, sob outra
forma. Venha, Schaia III, sinta as gotas da substância que algum dia todos os povos
sonharão em ter!
Schaia III saiu da nave, muito assustado. O Mago de Prata não era a criança
que aparentava, mas, mesmo assim, o imperador estava demasiado curioso. Assim
que tocou o solo do Planeta Azul, sentiu um pingo de chuva tocar nele, e então mais
outro e mais outro, e assim, uma tempestade morna caiu sobre todo o povo. A chuva
começou então a se modificar. O Mago de Prata se postara em cima de uma pedra e
abriu os braços, como que para sentir melhor aquela bênção divina.
Schaia III por sua vez estava parado, assim como o povo, sem sentir diferença
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
alguma nas águas que caíam. Mas algo estava realmente acontecendo. A chuva se
modificara, as águas não eram mais transparentes mas luminosas, uma luminosidade
esverdeada, simplesmente linda, com um sabor maravilhoso. Schaia III sentiu o gosto
da sabedoria entrando por sua garganta, o gosto da magia. Agora ele ria! Seu corpo
estava tomado por um delírio fascinante. Ele estava em contato com seu verdadeiro
“eu”, estava lá dentro de seu interior. Começou a sentir suas células pulsando, a vida
dentro de seu corpo! Sim, aquilo era mais que qualquer droga jamais experimentada
no império. Aquilo era a fonte de tudo! Mais que isso... Schaia III simplesmente não
conseguia explicar.
– Ei, espere! É claro que consigo! Estou vivenciando meu eu, meu próprio eu,
sem a interferência do mundo. É como se eu não tivesse nascido e vivido num mundo
como este. É como se eu não tivesse tido nenhuma experiência no meu passado, mas
aqui estou eu! Vivendo este momento...
Mas logo as águas da magia acabaram. Foram duas horas de chuva e todo o
povo estava, assim como Schaia III, extasiado, sorrindo um para o outro. Então, o
Mago de Prata falou:
– Agora vocês já se conhecem, já sabem quem são. Mesmo que este mundo
soe estranho a vocês, de alguma forma sabem quem são. E agora sabem também o
poder desta água, que através de mim fluiu este conhecimento. Vocês saberão lidar
com isto. Porém agora devem descansar. Amanhã entraremos onde um dia foi minha
casa, a casa de meus pais e minha aldeia. E onde de certo modo nasceram, onde Ortal
dormiu pela última vez e sonhou com vocês... Com aqueles que foram no sonho dele,
seus antepassados.
Schaia III apenas sentou-se na terra molhada, encostou a cabeça em algumas
folhas e dormiu. Sim! Schaia III, imperador do universo, estava deitado na lama dormindo após um banho de chuva.
Uma pequena menina sacudia-o delicadamente, e numa língua muito estranha
disse que deveria levantar. Schaia III abriu lentamente os olhos e notou com grande
fascínio a extrema beleza dos olhos da menina. Era quase uma moça, com seus belos
quatorze anos-padrão.
– Deus! Até seus despertadores têm que ser deuses...
A menina o olhou admirada, sorriu e o ajudou a levantar.
Schaia III percebeu que eles e mais alguns membros da tribo eram os últimos.
Todo o resto já se pusera a andar pela trilha entre a mata. Schaia III tocou umas cinco
ou seis vezes em seu pulso, desta forma ele ativara o controle-remoto da nave, que
imediatamente levantou num grande estrondo e começou a segui-lo.
A menina que estava a seu lado olhou-o espantada. Ele deu uma pequena risada
e disse:
– É uma velha amiga...
Os dois foram juntos em silêncio, caminhando com os demais na enorme peregrinação. Schaia III não conseguiu calcular quantas pessoas haviam ali, pois todas
estavam anteriormente espalhadas pela densa mata, mas agora estavam em uma fila
só, que se perdia nas entranhas daquilo que poderia ser chamado de trilha.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Eles percorreram por muitas horas aquele caminho. Schaia III começou a ter
fome, pois em meio ao tumulto da noite anterior, esquecera de pegar seus equipamentos de sobrevivência. Então sua fome foi esquecida e seu coração começou a bater
mais rápido. Agora todos que estavam na fila se encaminhavam a uma gruta.
– Sim, eu conheço esta gruta! Foi ali que Ortal conheceu o Mago de Prata.
A gruta estava completamente iluminada. Havia muitas entradas laterais, assim como um labirinto, porém todo o povo sabia para onde ir, era por onde o caminho
estava iluminado. Eles caminharam por muito tempo neste universo de cavernas. A
menina pegara em sua mão e Schaia III sentiu algo passar por seu corpo. Uma sensação de prazer profundo, uma grande alegria de estar ali. Afinal, ele estava vendo uma
civilização nascer, de uma forma inusitada, pode-se dizer, mas era um nascimento.
O caminho os levara não à imensa sala de pedra em que Ortal tinha quase
sucumbido ao encontrar o Mago de Prata, há mais de dez mil anos atrás, mas ao
que parecia ser um imenso jardim. Eles caminharam em direção à luz que provinha
daquele lugar e quando chegaram ao final, Schaia III sorriu, talvez como nunca havia
sorrido antes. Águas brotaram de seus olhos. Ele olhou para a menina, que estava
também quase a chorar.
Tratava-se da aldeia do Mago de Prata. Mas parecia não haverem passado dez
mil anos que aquele lugar fora abandonado, não, definitivamente não. Tudo parecia
estar restaurado. E em meio a todas as casas de prata e cristais, em meio ao imenso
lago bem no centro do espaço, em meio a todo o povo de Cosmo, estavam as pequenas
beldades! As pequenas fadas e elfos da floresta! Sim, era aquele pequeno povo que um
dia Schaia III vira e roubara o Mago de Prata deles, era uma cena fantástica. No meio
de uma pequena praça, o povo das fadas havia feito uma enorme mesa com todos os
tipos de frutos que havia no Planeta. Além disso, havia alimentos e bebidas, flores,
copos e arranjos com ervas e cristais, era uma imensa festa de boas-vindas!
Todos estavam reunidos e esperando que todo o povo chegasse à praça que
rodeava o lago central. Então, num pôr-de-sol maravilhoso, o povo das fadas começou
a cantar e oferecer as bolas com aquele embriagante líquido dentro.
– Ai, meu Deus – disse Schaia III, e a menina ao seu lado o olhou.
– Eu conheço esta bebida... – disse, mostrando a bola que chegara a suas mãos
pelas mãos da fada que acabara de entregar a ele.
– Bebida – repetiu a menina.
– Sim... Você não está com sede?
A menina fez que sim, mas Schaia III notou então que no mundo de Cosmo
não havia bebida nem comida de verdade, sim, era um sonho! Como poderia haver?
– Bem, você vai aprender rápido o que o seu corpo necessita para viver aqui.
Ela fez que sim com a cabeça e olhou maravilhada de novo para o desenvolvimento das ações dos elfos e fadas.
Só quando o céu estava quase escuro, o povo começou a circundar a mesa. O
Mago de Prata estava bem no meio, em cima de uma pequena rocha que o fazia visível
a todos. A mesa, assim como a praça, circundava o lago pela metade e todos assistiam
ao povo das fadas tocando os instrumentos e cantando logo acima do lago, com o
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
reflexo do sol se pondo. A imagem era de sonho!
Schaia III estava tão comovido que nem notou que não largara a mão da menina. Ela parecia estar gostando, pois cada vez que algo novo aparecia dava um leve
apertão na mão de Schaia III. Ele se divertia com isso e depois da décima olhada no
rosto dela, não teve dúvidas, estava apaixonado.
Então, todos os cristais se acenderam de uma só vez e a música parou. Houve
gritos de alegria por toda a parte. O Mago de Prata fez um gesto com a cabeça e todas
as fadas e elfos voaram em direção a todos na mesa. Quando estavam em cima do
povo, despejaram um pó verde, com a mesma cor e brilho da chuva da noite anterior.
Isto despertou fome em Schaia III, e, pelo jeito, não só nele, pois todo o povo
começou a olhar para a mesa com muita avidez. Assim, aquele povo compreendeu
pela primeira vez o que é uma das melhores sensações que podemos ter, saciar o
desejo da fome.
Depois que comeram como nunca e beberam daquele “vinho” de frutas, todo o
povo começou a se dispersar, cada grupo com uma fada ou elfo. Schaia III acompanhou a menina naquela pequena jornada. O elfo explicava o que era cada prédio e casa
da aldeia e como os novos donos deveriam cuidar daquilo tudo.
Por fim, como era para acontecer, Schaia III e a menina ficaram a sós, na beira
do lago, ouvindo um canto de elfo aqui e acolá e conversando sobre tudo o que passaram. Schaia III ficou pasmo com as loucas histórias da menina e como seus pais
tiveram que morrer para que o sonho de Ortal continuasse, e como ela teve que dormir
orando, para que um dia o Mago de Prata aparecesse. Apesar de tudo, ela não poderia
estar mais feliz, pois aquilo sim era um sonho.
Schaia III não quis falar sobre sua vida, porque achava que era muito para a
cabeça dela. Mas, ficou sabendo algo muito importante para ele naquele momento,
seu nome era Nashat. Sim, era um nome lindo. E dormiram abraçados em meio à
suave melodia do povo das fadas. Schaia III sonhou com seu império, com sua casa.
O Império
Após todo o estardalhaço alcançado pelas forças da frota imperial, o império
nunca esteve tão agitado. Havia festas por toda a parte e Planetas comemorando a
derrota do adversário invisível. Mesmo a dinastia de Schaia III já não era mais interrogada, não existiam parentes próximos o bastante para questionar o trono. Até
mesmo Carmel, o Planeta que viu Schaia III crescer, já se tinha tornado a favor do
general Arcrates. Além disso, o império já estava tão dissolvido politicamente pelas
terríveis maquinações de Schaia II que nem ligavam mais para a força do império,
visto que parecia não haver mais inimigos para tal força. E quando finalmente apareceu uma, o General Arcrates dissipou-a “tão heroicamente” que todo o império se
tornou uma vez mais voltado a adorar este “simpático ditador” e até mesmo esquecer
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a grande dinastia.
O General Arcrates, por sua vez estava nas nuvens. Tinha refeito o acordo
com os Extuárticos, que agora forneciam toda a energia de que o império necessitava, porém com uma condição: que o império se expandisse, utilizando-se da força
gerada pelos terríveis Extuárticos. Que o império dilatasse suas fronteiras, pois os
Extuárticos não queriam mais nenhum incidente desagradável como o que ocorrera.
E a primeira operação militar, para total inquietação do General Arcrates, era destruir
o quanto antes o Planeta Azul. Era óbvio que o General Arcrates não fazia ideia do
porquê disso, mas também não tornou o assunto aterrador, afinal, com a demonstração
de força que tivera nada o preocuparia, nem a ele nem ao império. Melhor que isso!
Se o Planeta Azul fosse destruído, não iria sobrar mais nenhum tipo de estigma contra
o império. Sim! Toda aquela bobagem de que o Planeta Azul fora um Planeta amaldiçoado e protegido por forças sinistras e invisíveis iria acabar em poeira cósmica.
O General Arcrates ordenou que fosse construída uma nova série de armamentos, uma frota especial só para este Planeta. Seria o maior espetáculo que o império já
tivera ocasião de presenciar! Então, as naves começaram a ser construídas.
O Planeta Verde
Nashat estava com uma barriga enorme. Quando o Mago de Prata entrou na
pequena cabana de cristais de Schaia III, ele estava acariciando a barriga da menina.
O Mago de Prata sorriu para ela e olhou para Schaia III.
– Acredito que você tenha mudado de ideia com relação a voltar para seu império, não é, Schaia III?
Schaia III olhou para baixo com um olhar quase triste e disse:
– Ainda sinto saudades daquilo que me pertence. Apesar de desfrutar uma vida
que nenhum imperador jamais sonhara, me preocupo com o império e com o que
possa estar ocorrendo com ele.
– Creio que com as doses da água da magia que temos tomado nos últimos
meses você tenha condições de captar as vibrações de seu antigo lar...
– Sim, acredito plenamente que tenho, porém ainda não o fiz, e nem desejo
fazê-lo tão cedo.
– É, este lugar é realmente mágico – disse o Mago de Prata, um tanto irônico.
– O que quer dizer?
– Posso convidá-lo para um passeio? Preciso lhe mostrar um lugar muito belo,
e faz muito tempo que não vou até lá.
– Ficará bem aqui, Nashat?
– Sim – respondeu a menina. – Hoje teremos uma reunião, na câmara central.
Precisamos trocar receitas!
Os três riram e o Mago de Prata saiu acompanhado por Schaia III.
Foi uma cavalgada silenciosa, em meio ao entardecer. Os dois atingiram o topo
de uma colina, já bastante distante da aldeia. O que parecia era que os dois estavam
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muito dispersos, apenas desfrutando da energia do local. Foi numa repentina abertura
da mata que Schaia III se deparou com um pequeno lago que refletia a imensa lua.
Ele fez menção de rir, mas notou que o Mago de Prata estava um tanto sério, muito
diferente dos últimos tempos, desde que o imperador estava vivendo ali.
– Acredito – disse o Mago de Prata, descendo de seu cavalo – que você saiba
que fui feito para não amar... desde Ortal... nesta minha nova vida. Porém tenho uma
grande afeição por você. Talvez você não saiba, mas graças a você e à minha magia,
consegui salvar estas pessoas e esta cultura. Schaia III se aproximou do Mago de
Prata, um pouco sério. – Acho que você deveria tentar visualizar seu povo, mesmo
sendo contra sua vontade.
O Mago de Prata tinha o poder de hipnotizar quem quer que fosse, porém ele
estava usando apenas parte da magia em Schaia III naquele momento.
– Será que notei algo de incomum em você, pequeno Mago?
– Sim, sei que estou usando um certo poder em você neste momento, mas isto
é muito importante.
– Eu confio muito em você, acredite. Não precisa tentar me persuadir dessa
forma. Meu coração jamais ficará dividido entre você e Nashat... Cada um tem ao seu
modo um lugar especial.
– Sei disso, mas quero lhe dizer que minhas palavras são verdadeiras quando
digo que sinto uma certa afeição por você. Talvez mais do que possa imaginar.
Schaia III deu as costas, não suportando olhar para tal beleza. Sentou-se em
uma rocha. O Mago de Prata sentou-se ao seu lado e retirou uma cristal oco, encheuo de erva e acendeu-o calmamente. Schaia III fazia uma certa ideia do que aquilo
significava.
– Não temos muito tempo, meu amigo. Vamos, trague e lance um pequeno
olhar dentro daquilo que não quer ver.
Schaia III baforou o cristal avidamente. Imediatamente sua consciência se dispersou. Uma ousada viagem espacial tomou conta de seu corpo. Quando acordou, estava suado, o sol estava para se levantar e o Mago de Prata o estava segurando, como
um bebê. Ele olhou dentro dos olhos do Mago e disse:
– Vejo um mundo preto e um verde. São duas linhas iniciais, mas que interferem em muitas outras. Visualizei muitos futuros, mas que começam nestas duas
linhas. Precisamos voltar para a aldeia.
–Sim – disse o Mago de Prata, ainda segurando Schaia III fortemente em seus
braços.
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Plan Ex
O que se passou no império foi algo estarrecedor, nunca se gastou tanto dinheiro público para algo tão supérfluo. O general Arcrates e sua equipe militar, por
sinal agora com uma vida muito mais confortável, resolveram fabricar uma questão
quase divina no problema do Planeta Azul. Eles resolveram, devido ao entusiasmo da
população, investir pesado em toda a campanha. O que era para ser um aparato militar
virou um espetáculo.
Foram montadas nada menos que cinquenta naves de combate que poderiam
ser naves de passeio ao mesmo tempo! Foram vendidas cotas de turismo para a população endinheirada do império para que eles pudessem assistir ao vivo à destruição do
Planeta Azul. Além disso, a viagem prometia todo o conforto que qualquer cruzador
hiperestelar poderia ter.
A festança seria transmitida ao vivo para todo o império. Os veículos de informação de imagem estavam livres para transmitirem o que quer que se passasse desde
a saída das naves até a destruição propriamente dita. Desde que, é claro, depositassem
uma soma absurda nos bolsos de Plan Ex. Mas isto não importava. Havia todo o tipo
de patrocinadores para o evento, desde fabricantes de provedores transespaciais até a
famosa Fran-Glans, bebida consumida entre os mais poderosos do império.
Além disso, a destruição do tão temido Planeta Azul tinha mais um pilar, o
de destruir uma fraqueza que o império tinha até Schaia III. Portanto, para o General
Arcrates isto era o renascer de uma nova era, a era em que seu golpe tornara o império
uma ditadura militar irrevogável. Mas se o povo estava contente; o que importava?
O Planeta Verde
A primeira coisa que Schaia III e o Mago de Prata fizeram quando retornaram
à aldeia foi avisar Nashat que Schaia III iria ficar na câmara de cristais por algum
tempo. Naturalmente ela não entendeu o porquê disso, porém, quando Schaia III disse
que o Mago de Prata iria tomar conta dela e do bebê que iria nascer, ela ficou mais
contente.
Schaia III ficou muito tempo na câmara de cristais. Seu corpo era hidratado
com a água da magia e ele tinha apenas uma pequena ligação com o mundo exterior,
uma ligação de emergência com o império. Ele já sabia, por meio da magia, o que
o General Arcrates e sua estirpe estavam preparando, portanto ele mesmo resolvera
solidificar seus poderes. Com a água da magia ele já havia captado muito do conhecimento do povo prateado, porém, dentro da câmara de cristais isso era potencializado.
Logo que deitou na mesma cama que deitara Ortal há milênios atrás, ele sentira
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um calafrio, mas imediatamente os cristais começaram a agir, e sob o comando do
Mago de Prata, Schaia III adormeceu num sono profundo, um sono que iria elevá-lo
à categoria de verdadeiro mago.
Ao mesmo tempo que Schaia III estava no seu isolamento, Nashat teve os
gêmeos. Eram os primeiros bebês que nasceram desde que o povo de Cosmo se tinha
“mudado” para aquele mundo. E como Nashat tinha tomado a água da magia durante
a gestação, os bebês nasceram com a sabedoria dos magos. Era um lindo casal, com os
olhos verdes da precoce mãe e os cabelos negros do imperador Schaia III.
Quase um ano depois do nascimento dos bebês, Schaia III acordou sobressaltado. Era uma bela manhã ensolarada quando o Mago de Prata entrou na câmara
dos cristais e viu, pela primeira vez, depois de mais de um ano, Schaia III sentado no
mesmo lugar em que seu amigo Ortal morrera.
– Seus olhos... Schaia... estão verdes!
Sim, Schaia III estava diferente. Havia uma beleza peculiar nele que assustou
até mesmo o próprio Mago de Prata.
Schaia III não falou nada. Dele emanava uma energia absurda. O Mago de
Prata deu um passo para trás.
“Não tenha medo, querido amigo”, falou Schaia III em pensamento. Seu poder
era inimaginável. “Temos que agir rápido, eles estão vindo.”
E só então falou.
– Como estão os gêmeos?
O Mago de Prata estava realmente assustado.
– Talvez com o mesmo poder que o seu, com um ano de idade eles já falam.
Coisas estranhas para o povo, devo dizer. Mas todos estão felizes por tê-los aqui.
– Sim, estive em contato com eles durante meu sono. Eles já sabem de tudo.
Venha, vamos ver Nashat.
Tanto Schaia III como o Mago de Prata saíram da câmara de cristal. Toda a
tribo estava esperando na porta. Schaia III flutuava logo atrás do Mago, que falou
para todos:
– Assim como eu, Schaia III, imperador do universo, tenho o poder da magia.
Um poder para poucos, mas que estará selado nas dinastias seguintes. Porém, agora
temos algo importante a fazer. Devemos nos concentrar. A partir de hoje, durante um
mês tomaremos apenas a água da magia, como combinado. Cada um que instruí durante o sono de Schaia III irá, a passos de pássaro, levar às outras tribos as providências que devem ser tomadas. Isso é uma questão de vida para nós e este Planeta. Nosso
inimigo é forte, mas não tão forte quanto nossa magia. Que vão agora!
Assim, uma pequena legião de crianças saiu da aldeia tão rápido que os olhos
não poderiam acompanhar. Com eles iria a água da magia e alguns ensinamentos do
Mago de Prata. O culto deveria começar. Todo o Planeta dependia disso, assim seria
protegido do mal iminente.
Só então Schaia III se juntou com os gêmeos Mordehai I e Shaan, com Nashat
e com o Mago de Prata. Em alguns momentos eles estariam preparados. Que o império começasse a tremer.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Arcrates
A festa de saída das naves foi muito mais do que o império estava esperando.
Todas as emissoras de imagens do universo estavam lá. Todo o comando do império
estava naquelas naves, uma legião dos Extuárticos, príncipes dos Planetas menores e
maiores, toda classe social que pudesse pagar para ir, estava lá. Havia lançamentos
de bebidas, de naves pequenas, de cigarros, todo tipo de material bélico, roupas, equipamentos de última geração. Tudo para acompanhar o que seria a maior batalha de
todos os tempos.
Todas as naves tinham o mesmo tamanho e todas eram dotadas do mesmo
equipamento, tanto bélico como turístico. Seria um grande divertimento, não só para
quem estava indo, como para quem iria ficar. Afinal, nada menos que cinco naves
foram projetadas para a emissão de imagens, de todos os ângulos, ao vivo e em terceira dimensão, do maior evento já ocorrido no universo! Sim, isso era o que diziam
os promotores da festa.
O fato é que Plan Ex foi, uma vez mais, a estrela pulsante do império. Nunca
tantas pessoas juntas assistiram a um evento ao mesmo tempo, mesmo os Planetas
que estavam fora da fronteira do império voltaram suas precárias antenas para lá, e
já havia pedido daqueles Planetas para a integração com a política imperial. Foi um
plano de propaganda insuperável.
Enfim as naves foram lançadas, fazendo todo o estrondo que poderia ser feito.
As emissoras acompanhavam tudo na viagem, que por sinal foi lenta, para que os
patrocinadores pudessem desperdiçar todo seu dinheiro durante a viagem. Tudo era
transmitido. Todas as festas internas de cada nave, todas as fofocas, o que tal príncipe
comeu, o que a filha de tal diplomata andara fazendo com um dos tripulantes, o que
a mulher de um general estava vestindo no café da manhã, enfim, tudo aquilo que a
estúpida sociedade tem que saber, sabe-se lá por quê.
Quando as naves diminuíram suas velocidades de trans galácticas para sistema
solar, ouviu-se uma sirene e um urro de alegria surgiu por todas as partes, tanto nas
naves como nos Planetas do império. Era chegada a hora! As naves se enfileiraram
ao redor do Planeta Azul. Houve um certo murmúrio por parte de todos. Eles ficaram
horrorizados, pois o tão famoso Planeta Azul estava verde! Foi a primeira deixa para
que o General Arcrates falasse.
– A todos do Império, nós não erramos de endereço. O que ocorreu é que o
Planeta Azul ficou verde de medo!
Novamente um urro de risadas ouviu-se por todos os cantos do universo.
– Senhores! Apesar de tudo, este é um procedimento militar. Devo dizer que
nosso comando será padrão, mesmo o Planeta tendo mudado de cor. Hoje haverá
a festa que infelizmente mudará de nome; ao invés de “Adeus Planeta Azul” será
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“Adeus Planeta Verde”! Portanto, comecem a se preparar. Quero ouvir o tilintar dos
champanhes! Pois amanhã não haverá ressaca, mas apenas mais uma festa. Eu decreto
três dias de festas tanto aqui, como no império! Que todos se divirtam.
O império inteiro aplaudiu o General Arcrates e começaram a grande festa.
E o Império silenciou
A noite artificial caiu sobre todas as naves. Era uma grande balbúrdia em todos
os segmentos. As naves estavam alinhadas, preparadas para o ataque. Eram cinquenta
e cinco naves ao todo. Cinquenta de combate e cinco estúdios de imagens, que captavam e transmitiam tanto internamente como externamente. Para quem assistia, era
um verdadeiro “show”.
Já no Planeta Verde, tudo era diferente. Todas as doze tribos estavam na mais
silenciosa concentração. As legiões de semimagos conseguiram atingir seus objetivos com perfeição. Todos se concentravam fielmente, numa magia coletiva. Então, o
Mago de Prata se preparou e começou a definir sua linha de ação. Todo o plasma de
cristal esverdeado que cobria o Planeta se solidificou numa fina camada. Para quem
via da superfície do Planeta, a aparência era de que o céu tinha cristalizado, mas para
quem via de fora, o plasma continuava a ser uma imensidão de nuvens a se mover
naturalmente ao redor do Planeta. Ninguém das naves notou nada.
Por volta de doze horas depois do início da festa, quando alguns bêbados ainda
sobreviviam às doses de bebidas e drogas distribuídas e outros acordavam do porre, o
General Arcrates ordenou o início do movimento militar.
As duas naves da extremidade da linha de ação deveriam começar o ataque,
disparando seus raios cósmicos. Em seguida as seguintes e assim por diante, até que
a nave do general, que estava bem ao centro, terminasse com o show. Cada raio tinha
ação de um minuto. Como cada nave da extremidade iria lançar dois raios por vez, a
duração do ataque iria ser de vinte e cinco minutos. A contagem regressiva fora dada.
A apreensão, não só nas naves como em todo o império, era constrangedora. Apesar
disso, havia um certo sarcasmo no rosto de todos.
Então, as duas naves lançaram seus raios. Parecia uma eternidade até que eles
chegassem ao Planeta, mas chegaram. Chegaram e, para espanto de todos, retornaram
com a mesma potência, atingindo não só as naves mais externas mas já levando de
sobra outras duas. Tudo fora filmado e transmitido ao vivo para todo o império!
Parecia que o universo tinha sucumbido. Imediatamente, uma câmara mostrava o rosto do General. Nada no mundo poderia expressar o tamanho do desgosto que
surgia naquele rosto. Mas o General não se abateu. Ordenou que todas as naves em
conjunto lançassem mísseis herméticos, nada poderia detê-los.
Entretanto, algo o fez retroceder. Havia um sinal de emergência na sua própria
nave, uma invasão sensorial na nave. O alerta seria dado em seguida em todas as
outras naves.
O General se sentou. Todos ali estavam esperando algum comando. Os Extuár-
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ticos olhavam-no severamente. Mas Arcrates ficou imóvel. A figura que surgira à sua
frente, à frente de seu pomposo trono e da pretensiosa corte ao seu redor, era desafiadora. Os guardas sacaram as armas, mas o general levantou o braço.
Um ser pequeno com uma capa prateada cobrindo parte do rosto, olhando para
o chão, com dois seres bem menores também vestidos de prata, fizeram toda a corte
abrir a boca. E a forma como se materializaram ali, sem nenhum vínculo com equipamento algum, assustava.
– São estas crianças que quer destruir? – perguntou o Mago de Prata para o
General Arcrates. Ele apenas abriu a boca mais ainda e olhou severamente para os Extuárticos, que começavam a tremer compulsivamente. No instante seguinte, os imensos aquários onde os Extuárticos estavam trincaram e se quebraram em mil pedaços,
matando-os imediatamente. A cena era de terror, e eram de terror as caras de todos
que a acompanhavam.
O General Arcrates levantou-se num pulo e gritou:
– Como se atrevem! Guard...
Mas as duas crianças deram um passo à frente, tiraram os capuzes que cobriam
seus rostos e falaram, usando magia na voz:
– Sente-se, traidor!
O general sentou-se, amedrontado, ainda sentindo os ecos das vozes e espantando-se com as caras das crianças. Elas tinham crescido demais para sua idade,
mas suas feições eram ainda de bebês. Quando a corte viu isto, todos olharam ferozmente para o General. Mas este logo revidou:
– Por que me chamam de traidor, quando só quero o bem de meu povo?
Então, o Mago de Prata deu um passo à frente e, enquanto falava, tirava seu
capuz:
– Seu povo?
Agora, a corte estava quase em prantos. O Mago de Prata tinha modificado sua
beleza de tal forma que, quando o vissem, se sentiriam diante de uma beleza divina,
todos, sem exceção.
Ninguém no recinto falava, nem mesmo a anos-luz de distância. Nos Planetas
foi um silêncio doloroso, castigante.
– Será que ninguém aqui suspeitou que havia um povo, uma civilização morando neste Planeta? – perguntou o Mago de Prata. – E com que autoridade o senhor
resolve explodir um Planeta, se nem faz parte da dinastia de Schaia III?
– Schaia III está morto! Todos sabem disso!
Então, os gêmeos falaram:
– Nós não sabemos, só se ele morreu há segundos atrás.
– Quem são vocês? Malditos demônios, vindo deste maldito Planeta! – gritou
Arcrates.
– Somos parte da dinastia que você roubou, somos Morderhai e Shaan, filhos
de Schaia III.
Nesse momento, para surpresa geral, o próprio Schaia III, acompanhado de
Nashat, surge logo atrás do Mago de Prata, materializando-se do nada, como seus
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filhos e o Mago.
– Esta geração inteira irá pagar por esse erro – disse Schaia III, com um poder
na voz que fez todos se calarem.
Ele olhou para o General Arcrates e com um pequeno sussurro quase inaudível
fez sua cabeça explodir, lambuzando a guarda pessoal que estava à sua volta.
– Uma vez o Mago de Prata disse que o Planeta Azul, que agora é Verde, se
tornaria o centro do universo. Nunca entendi isso, mas agora eu sei. Esse será o legado
para os meus filhos, e não para os seus filhos, mas seus netos, que irão desfrutar esse
poder. Isso se aprenderem esta lição e outras que virão. A energia dos Extuárticos será
imediatamente cortada, não sobrará um Extuártico para contar essa história. Vocês
viverão na mais absoluta miséria, até que chegue o dia em que meus filhos decidirão
se devem ou não distribuir energia para este medíocre império. Mas até lá, os Planetas
viverão isolados. Vocês deverão aprender a viver em harmonia consigo mesmos, para
aprender a respeitar os outros. E eu terei meu castigo, por fazer parte desta maldita dinastia. Deixarei meus filhos aqui no Planeta Verde e retornarei a Plan Ex, para acertar
os detalhes de sua maldição.
Parecia ter havido um pequeno murmúrio por parte de todo o império, mas
devido aos fatos, logo foi absorvido com a presença de tão poderoso imperador.
Então, Schaia III virou-se para Nashat e para o Mago, assim como para os
gêmeos.
– Um dia retornarei, somente quando estiver convencido de que plantei a semente certa para isto que se chama civilização – apontou para trás. – Até lá, vocês
aprenderão a viver no mais belo dos Planetas, com o mais belo dos seres.
Olhou para o Mago de Prata que, com uma lágrima nos olhos, juntou-se aos
gêmeos e a Nashat, desmaterializando-se de volta ao Planeta Verde.
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A ANDRÓIDA ANDRÓGINA
O aniversário de Pan-noa
A pérola-cubo despertou Pan-noa Kalumbry duas horas antes de seu horário
habitual. Ele aguardava este momento há pelo menos cinco anos. Era o dia de seu aniversário e seu pai havia lhe prometido há algum tempo que quando ele completasse
doze anos poderia fazer sua animotatoo.
Bem, era óbvio para Pan-noa que seu pai poderia estar brincando ou tentando
empurrar a data para mais tarde, de modo que Pan-noa esquecesse ou reconsiderasse
a ideia. O fato era que Pan-noa não havia esquecido e, muito menos, reconsiderado.
Muito pelo contrário! Organizou uma escapada duas horas antes de ir para a escola
para fazer aquilo que mais queria sem que houvesse problema algum.
Seu Aerojet estava estrategicamente acomodado do outro lado do castelo em
que morava. Ele teve que se esquivar dos empregados e fazer malabarismos para
chegar até o local da fuga sem ser captado pelos sensores de segurança. Fácil demais,
afinal ele era Pan-noa Kalumbry e ninguém mais do que ele sabia de todas as passagens do enorme castelo.
Quando abriu a janela vislumbrou algo que sempre fazia os pelicos da sua nuca
arrepiarem: a holografia animada de um dragão em pleno voo estampada na lateral
de seu Aerojet Plasma! Drakunum Maximatrya. Com muita calma Pan-noa pulou a
janela e caiu sobre o Aerojet, deitou-se sobre o corpo da mini nave, ligou os controles
e, com o zumbido fino da plasma turbina, avançou em direção ao céu na velocidade
de batalha, camuflando assim, sua passagem pelos radares do castelo, da cidade e
finalmente do planeta. Ao alcançar a atmosfera seu Drakunum Maximatrya fechou a
carenagem fazendo o Aerojet virar um minúsculo transgaláctico.
Pan-noa começou a rir e pensou: “nada como implantes de mecânica cósmica
na minha pérola-cubo! Terceira Lua em cinco segundos!”
E então o mecanismo de navegação alertou: “Terceira Lua em cinco, quatro,
três, dois, desaceleração automática, carenagem reaberta.”
- E cá estamos! – Gritou Pan-noa eufórico. Deu uma guinada ao ver dois aerojets miliciantes e se deslocou rapidamente para a Zona Nacro.
- Muito bem. Procurar no mapa “Zamstas Harcers Animotatuagens”. Seu
aerojet se deslocou para ruas pouco iluminadas... Sombrias!
- Ei isso é sinistro! – Gritou Pan-noa sarcasticamente.
O aerojet parou em frente a uma construção em cuja fachada se podia ver os
desenhos mais bizarros se movimentando. Pan-noa ficou paralisado frente tamanha
aberração. Estava boquiaberto. Jamais vira desenhos antiestáticos tão perfeitos!
- Isso é alucinógeno! – Falou empolgado.
A porta da frente se abriu e uma jovem de corpo torneadamente perfeito olhou
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para ele.
- Foi você que me fez acordar tão cedo?
Sua roupa de látex cromado era algo que deixou Pan-noa nas nuvens. Ficou
parado, absolutamente pasmado, olhando para o corpo da mulher a sua frente.
- Então garoto? – Disse ela. – Vai entrar ou desistiu da sua tatoo?
- A tatoo? A sim é claro! Foi sim, fui eu, quero dizer, fui eu quem marcou com
você. – Enquanto falava olhava de cima abaixo o perfeito modelo de mulher à sua
frente. As animotatuagens que ela tinha pareciam ainda estar dormindo.
- Venha. – Disse a moça. – Entre, eu não mordo! Bem, só se você me pedir...
- Pedir? A sim, estou indo. – Disse ele horrorizado com seu próprio comportamento.
A moça ainda sorria quando Pan-noa entrou no estúdio. Então ele percebeu que
uma linda fada tatuada no corpo dela abriu os olhos e deu um lindo sorriso para ele.
Pan-noa ficou com os olhos esbugalhados.
- Então você é Pan-noa. – Disse a moça. – Bem diferente do que eu imaginei.
Muito prazer eu sou Zamtas, mas pode me chamar de Zam, bem o que vai querer?
- Você é Zamtas? – Perguntou Pan-noa – A famosa tatuadora?
- Estou vendo que eu não sou aquilo que você tinha imaginado. – Algumas
tatuagens no corpo dela começaram a acordar.
- Bem, para ser sincero não.
Zam olhou para Pan-noa com um olhar malicioso.
- Quantos anos você tem? – Perguntou ela.
- Estou fazendo doze hoje. Minha maioridade sexual! – Disse Pan-noa com
afinco e olhando muito sério para o corpo da moça, que estava caótico com todas as
fadas, peixesgolfins, dragões e magos a se movimentarem.
- Hahaha! – Riu Zam. – Estou vendo que vou começar bem o meu dia. Quem
diria! Doze anos. Sabe Pan-noa, você é muito bonitinho mas acho melhor deixarmos
para outra hora, afinal você quer uma animotatoo e acredito que daqui um pouco você
tem que ir para a escola, não tem?
Parecia que Pan-noa tinha visto um fantasma. De repente a realidade surgiu em
sua frente de novo: ele não tinha muito tempo para bate papo, tinha que estar indo para
a escola em menos uma hora.
- Legal Zam! Eu quero uma fase dois. É o que meu corpo suporta não é?
Zam olhou para ele, chocada.
- Você não terá tempo de aprender a controlá-la antes de ir para a escola! Sabe
o que estas coisas fazem se quiserem te colocar em enrascada, não sabe? Além disso,
tem os efeitos hipnóticos do começo. Aposto que você nunca usou algo mais pesado
do que uma pastilha de Almatadema, usou?
- Sabe Zam, você é legal mas não sabe que eu me meto em tantas enrascadas
que mais uma menos uma, não dá nada. Além disso, eu fabricava pastilhas de Almatadema quando tinha oito anos e vendia nas festinhas, se tocou?
- Você é quem manda. Tire a roupa e deite-se ali de barriga para cima.
- Tirar a roupa? – Perguntou Pan-noa, lembrando-se que não tinha se recu195
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perado da ereção que começou quando viu o corpo de Zam.
- Claro! É o que mais preciso neste momento! – Falou Zam sorrindo sarcasticamente.
Pan-noa deu um sorriso malicioso e fez o que a moça tinha pedido. Zam então
assumiu uma postura diferente, extremamente profissional. Nem sequer olhou para o
corpo de Pan-noa. Este no entanto ficou um pouco nervoso ao ver a máquina que Zam
preparava. Sua ereção tinha sumido. Notou pela primeira vez a sala em que se encontrava: era um lugar escuro, cheio de equipamentos por todas as paredes, conectados a
uma cadeira de um azul belíssimo no meio da sala.
- Zam... Isso não vai doer muito, vai?
- Nem um pouco querido. – Enquanto falava Pan-noa viu alguns raios de luz
sobre seu corpo. Dançavam para cima e para baixo fazendo cócegas. As luzes eram de
todas as cores possíveis de se imaginar. – Para falar a verdade, já está pronto!
- Sério? Só isso? Mas onde está ela?
- Bem, é o que eu te falei, você deve controlá-la. Vou te dar uma dica: comece
com algum desenho relacionado a algo de que você goste. Deixe ele vir a sua mente,
concentre-se.
Imediatamente surgiu em sua mente o dragão desenhado no aerojet e até mesmo Zam ficou surpresa com a qualidade da imagem. Era um dragão com asas enormes
voando pelo corpo de Pan-noa. Ele levantou-se e olhou no espelho.
- Uau! Isso é demais! – Disse Pan-noa.
- É realmente está muito bom Pan-noa! E você sabe, as animotatoos se transformam no que você quiser e vão para qualquer parte do seu corpo, é só saber controlá-las, tá limpo? Agora seja bonzinho, vista-se, passe a grana e vá para escola.
- Na boa. – Mas ele nem se mexeu vendo seu dragão dar voltas e voltas em seu
corpo a toda velocidade e cuspindo labaredas de fogo pela boca. Zam riu da cara de
satisfação do menino e lembrou-o mais uma vez para ter cuidado no começo.
- Não enfureça sua tatoo Pan-noa, elas são muito sensíveis.
- Está bem. – Disse Pan-noa já em direção a porta. – Bem, foi muito bom te
conhecer Zam. Espero que a gente se veja de novo.
- Você é sempre bem-vindo Pan-noa. – Falou Zam se curvando para frente
e dando um beijo na testa de Pan-noa. Então parou olhando para ele, muito séria,
curvou-se de novo e beijou-o na boca, encostando sua língua na dele. Depois olhou-o
de novo e sorrindo disse:
- Essa foi por sua maioridade sexual!
Pan-noa ainda tremia de prazer quando entrou na atmosfera do planeta Kalum
Br, planeta no qual seu pai, Pan-Newe Kalumbry, reinava.
Pan-noa teve um pouco de dificuldade para desviar dos escudos de defesa do
planeta.
- Que estranho. – Falou para si mesmo. – Não costumo ter problemas com
estas coisas.
Pan-noa na verdade não tinha problema algum com qualquer miliciante ou
autoridade do planeta. Não por ser o filho do rei pois todos eram tratados da mesma
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
forma perante a lei naquele planeta mas por ter algo que ninguém imaginava: informações altamente secretas dos sistemas de defesa, ataque e, sobretudo, dos conhecimentos de alta tecnologia do planeta. Pan-noa possuía secretamente, além de tudo, uma
pérola-cubo de última geração de uma eficiência absurda obviamente furtada por ele
mesmo nos intermináveis laboratórios subterrâneos do castelo.
Toda a grande fortuna do planeta Kalum Br era graças a dois produtos: alimentos para planctons atmosféricos que favoreciam a vida em planetas inabitáveis e
o outro era desconhecido graças a um planeta chamado Carmel.
O fato era muito simples: Carmel queria dominar toda a produção de tecnologia de ponta do Império mas o problema era que planetas como Kalum Br fabricavam
tecnologias muito mais eficientes do que a de Carmel. O trato feito pelos dirigentes
de Carmel era que esta tecnologia fabricada em Kalum Br deveria ser vendida secreta
e exclusivamente para Carmel. Obviamente Kalum Br aceitou a proposta desde que
Carmel pagasse um preço exorbitante. O trato foi feito e assinado há muitas gerações.
O que os dirigentes de Carmel ignoravam era uma cláusula no contrato permitindo a Kalum Br ficar e utilizar sua tecnologia como bem entendesse, desde que
não vendesse para nenhum outro planeta.
Kalum Br nunca quebrou este trato porém, escondia tecnologias que fariam
qualquer cientista de Carmel virar lixeiro espacial. Uma destas tecnologias estava agora implantada, camufladamente, na testa de Pan-noa: era a pérola-cubo. Na verdade
quase todos no planeta usavam a pérola-cubo, um tipo de bio-processador de dados
que permitia às pessoas comunicarem-se “telepaticamente”, captarem e aprenderem
todo o tipo de informação, além de muitas outras funções para a ajuda do desenvolvimento psíquico.
- Mas que merda! Parece que eu tomei Vortex fabricado em Branda! – A cabeça de Pan-noa começava a rodar. Colocou então seu Aerojet em piloto automático e
pediu uma cérebro-conferência com Zam.
- A pessoa em questão não está munida de pérola-cubo. – Falou a voz na cabeça de Pan-noa.
- Que bosta do caralho! Como uma pessoa do nosso sistema não tem uma
pérola-cubo? - Pan-noa tentou lembrar-se de quem havia feito uma animotatoo que
ele conhecia mas era difícil. Ninguém que ele conhecesse havia feito uma daquelas!
Então a pérola-cubo enviou um impulso cerebral para ele: “Chamada via voz para
Zam”.
- Não acredito! Estou pior do que eu imaginava! Chamada via voz para Zam.
- E aí garoto? – Era a voz de Zam. – Problemas?
- Zam estou tonto, enjoado e não consigo pensar direito. – Disse Pan-noa em
voz de desespero.
- Ah! – Disse Zam triunfante. – E parece que tomou um litro de Vortex de
Branda?
- Ei, como você adivinhou?
- Bem, – Disse Zam. – Está em piloto automático?
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- Sim!
- Vou te transferir um Enecto-Lex, vai te ajudar, mas não manifeste raiva de
maneira nenhuma senão sua animotatoo vai ficar louca! Não vai acontecer nada de
mais para você, mas sua animotatoo vai tentar fazer cenas que nem as putas da primeira lua poderiam imaginar, tu tá entendendo irmãozinho?
- Não ficar com raiva? Em plena aula de socialização? Você quer que Schaia
III se vista de Extuártico e saia na Videogaláxia?
- É tua única chance Pan-noa. – Disse Zam rindo.
- Manda a parada.
- Já tá aí.
- Valeu. – Disse Pan-noa desligando a conexão. – Introduzir Enecto-Lex via
pérola-cubo. - Disse Pan-noa para os controles do aerojet.
Imediatamente o alívio tomou conta do corpo de Pan-noa. Na verdade, ficou
tão calmo e tranquilo que deixou o aerojet em piloto automático até chegar a escola.
- Uau! Parada maneira! – Falou Pan-noa andando pelos corredores da escola.
Três ou quatro meninas olharam para ele de forma estranha, fazendo comentários
entre si.
- Pan-noa! Aqui! – Uma mãozinha no final do corredor acenava para ele.
“Caralho.” Pensou Pan-noa. “Se a Be souber que eu to ligado vai rolar esporro.
Vou tentar me acalmar”. “Mais do que você já está?” Disse a pérola-cubo. “Cale a
boca!” Respondeu Pan-noa.
- Oi Be, tudo bem?
- O que houve com você? Não parece muito bem.
- Be, contato cerebral imediato.
- Tá limpo.
Pan-noa e Be sintonizaram suas pérolas-cubo e começaram a conversar mentalmente, cada um em seu compartimento secreto, dentro de seus cérebros.
Be finalmente deu berro:
- Uma animotatoo fase dois da terceira lua!?
O corredor inteiro de estudantes olhou para os dois.
- Como eu odeio aula de socialização. – Disse Pan-noa. – Olha Be, - continuou, falando baixinho – Eu não tô legal. Tive que tomar uma parada prá porra da tatoo
não ficar enlouquecendo. Vê se me ajuda! Não esquece hoje é meu niver!
- E você acha que eu iria te deixar na mão? Vem, fica comigo e nada de azucrinar a aula de socialização.
Pan-noa nem respondeu. Pegou na mão de Be e foram para sala. Sentaram bem
no fundo. A professora entrou na sala e, para variar, começou falando sobre o terrível
método de ensino estipulado após a invenção das pérolas-cubo. Era um tabefe na cara
de Pan-noa.
- Então, – Falava a velha e raquítica professora Trala. – Vocês enfiam um cubo
na testa, contatam com o que querem aprender e em segundos suas mentes já estão
com a informação. Que maravilha! Sem leitura, sem transferência de dados corporais, sem o uso das antigas tecnologias de interpretação. Vocês vão se transformar em
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robôs.
Pan-noa deu uma risadinha mas a professora não percebeu e continuou falando.
- Essas novas tecnologias nem foram testadas propriamente. Por quê vocês
acham que a socialização deve ser feita em grupo, como nós estamos fazendo, numa
sala de aula e não na frente de um programador? Porque nós devemos trocar informações um com o outro e não só recebê-las.
Pan-noa começou a ficar um pouco tenso, afinal ninguém estava trocando informações até agora, apenas uma bruxa idiota não parava de falar merda. Um rabo
do dragão passou por sua cara enquanto a professora estava de costas. A turma toda
soltou um breve murmúrio ao ver tal espetáculo.
- É isto mesmo que eu quero ouvir de vocês! Tentem liberar este vocabulário
restrito a cubos implantados nas testas! Desfaçam-se desta escravidão tecnológica que
nos impuseram neste planeta e logo irão impor no Império inteiro!
Pan-noa pensou em seu pai, dedicando praticamente a vida inteira para desenvolver esta tecnologia que, provavelmente, estaria pagando o salário desta aberração
que estava agora quase espumando de raiva e falando contra a tecnologia que tornara
o planeta em que viviam tão rico e próspero.
- Pois bem já que ninguém vai se manifestar, – Falou a professora olhando
para Pan-noa que tentava-se manter calmo. - Vamos abordar da seguinte forma: quem
aqui acha que esta tecnologia de cubos transmitindo conhecimentos, informações,
conexões e sabe-se mais o que é superior às nossas famosas trocas de informações tão
valorizadas durante séculos, levante a mão.
Todas as cabeças voltaram-se para Pan-noa, afinal ele era o único que sabia
defender a tecnologia das pérolas-cubo muito bem. Mas Pan-noa permanecia calado.
Be segurava sua mão suada e lhe transmitia secretamente: “Pense só no que você vai
poder fazer com sua animotatoo quando nós sairmos daqui! Nem escute a megera.
Pan-noa, saiba o quanto eu te amo!” Pan-noa olhou para os lindos olhos violetas de
Be e perguntou:
- É verdade?
Be não sabia onde botar a cara. Sua feição se tornou avermelhada porém alguém estava entendendo mal as coisas. Então veio a irritante voz da megera:
- Quer dizer que vocês ficam transando através destas malditas conexões?
Com essas absurdas pérolas-cubo enfiadas em seus cérebros? É por isso que o senhor
Pan-noa está tão quieto? Por que está flertando secretamente com esta menina estúpida ao seu lado?
Pan-noa levantou-se. Agora era tarde para pensar em qualquer coisa que fosse.
O efeito da droga que Zam dera para ele já tinha revertido contrariamente e quando
Pan-noa abriu a boca para falar a animotatoo começou a se manifestar mas, para
espanto do próprio Pan-noa, não exatamente para ir contra ele, mas para, de algum,
modo assustar a megera à sua frente.
Da garra do dragão que ainda estava atada à pele de Pan-noa saiu uma garra
virtual de pouca espessura mas suficiente para rasgar a vestimenta de Pan-noa. “Eu
não sabia que essas coisas faziam isso!” Pensou Pan-noa. Mas a animotatoo tinha
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começado o espetáculo e não queria parar tão cedo.
Pan-noa estava semi nu agora, no meio da sala de aula. Obviamente a megera
jamais vira uma animotatoo na vida e quase teve um colapso quando a roupa de Pannoa caiu no chão e o enorme dragão, agora completamente enlouquecido, fazia os
gestos mais obscenos para a megera. Pois foi quando o demônio resolveu mostrar
o que realmente não devia que a sala toda deu um pulo para traz e a megera caiu de
costas desmaiada no chão da sala de aula.
Após alguns segundos que duraram horas para Pan-noa, a sala toda, olhando
ainda abismada para ele, soltou um urra de satisfação que pelo prédio inteiro se ouviu.
As chamadas via pérolas-cubo foram imediatas e em questão de segundos Pannoa foi não só considerado herói diante de todos os estudantes da escola mas também
para todos os “Nacroinômades”, marginais da sociedade que cultivavam as animotatoos e as artes alternativas, pois fora o “Nacroinômade” mais jovem até então, que
conseguira controlar uma animotatoo fase dois em menos de uma hora! Ao receber a
notícia Zam ficou muito orgulhosa.
O Último Jantar no Castelo
Das muitas coisas que Pan-noa pensou na volta para o castelo, após o trágico e
cômico evento na escola, duas tinham maior importância: Be e seu Drakunum Maximatrya. Sem dúvida tinha o Aerojet mais bem equipado porém, era hora de esquecer.
Provavelmente o castigo seria não utilizar o Aerojet por um ano ou mais, o que para
Pan-noa nem significava muito. O maior problema era Be. Se seus pais estivessem
desconfiados de que ele, Pan-noa, estava loucamente apaixonado pela menina das
casas menores, eles definitivamente iriam sofrer.
Pan-noa ainda brincava de dar piruetas no caminho de casa como se fossem as
últimas de sua vida.
- Eu estou fodido, simplesmente fodido. E além de tudo, Be...vou ficar sem ver
Be para o resto da porra da minha vida. - Pan-noa estava agora chorando. Analisou os
fatos ocorridos e jamais esteve tão encrencado. Sabia que nem tudo era sua culpa mas
fazer uma professora, nem que fosse a Senhora Trala, ir para o Hospital com o coração
rompido era uma tremenda enrascada. Isso sem contar ter ido à terceira lua e à zona
Nacro, ter feito uma animotatoo, ter tomado um Enecto-Lex em pleno voo com uma
das máquinas mais rápidas do sistema!
Pan-noa avistou o castelo ao longe, uma magnífica construção imperial ainda
da época de Schaia Alcandes I, construída há milênios. Ele avançava agora pelos
jardins intermináveis do palácio. Nunca tinha reparado que sua casa era tão grande,
tão majestosa e tão bela. Ao pensar nisso percebeu estar com muito medo, medo até
mesmo, de perder isso tudo.
Deu uma volta pelo palácio inteiro e entrou com seu Aerojet direto pela enorme
janela de seu quarto. Desceu de sua pequena nave e olhou ao redor. Estava tremendo.
Descobriu então algo incomum: na sua tele percebeu um bilhete:
“Querido Pan-noa, seus familiares estão te esperando na sala de jantar princi-
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pal para comemorar seu aniversário às oito em ponto, não demore.”
- Fodeu tudo. – Disse Pan-noa, já conectando com Be.
- Pan-noa você está bem?
- Estou com medo Be. Eles ligaram para seus pais?
- Ligaram, mas só falaram que sua festa de aniversário havia sido suspensa.
- Ai, Be. O que eu faço? Estou com muito medo!
- Medo do que Pan? No máximo vão tirar seu Drakunum por algum tempo e
te dar um esporro! Festa a gente faz semana que vem!
- Não é isso Be. É sobre você.
- Sobre mim?
- Eu tenho um pressentimento que eles já sabem.
- Já sabem o que Pan?
- Que eu também te amo.
Silêncio. Silêncio mortal tanto nos aposentos de Be como nos de Pan-noa.
- Oh! Pan...eu, eu sinto muito. Quero dizer, vai dar tudo certo.
- Eu não sei Be, me ajuda.
A cara da Be apareceu no monitor principal do quarto de Pan-noa. Ela estava
chorando assim como ele.
- Olhe bem para mim Pan-noa. Se você realmente me ama você vai tomar
coragem, vai aparecer, nem que seja com um Tralmtantico azul calcinha, no nosso
esconderijo do castelo assim que você puder. Estarei lá te esperando daqui duas horas
está bem?
Pan-noa olhou para ela, assustado. Reparou em seu cabelo extremamente curto
para uma menina, seu rosto liso, sua boca violeta da cor do seus olhos, extremamente
violeta para uma humana, mas ela era real, ela era a sua Be, a menina que ele amava.
- É claro Be, eu estarei lá.
Após um belo banho Pan-noa vestiu-se de maneira formal, muito mais formal
do que se vestiria para a festa de seu aniversário.
Quando estava na metade das escadarias que ligavam os aposentos à sala de
jantar principal, Pan-noa viu que alguma coisa estava realmente errada: a mesa estava
posta para quatro pessoas. Ele, seu pai, sua mãe e mais alguém. Quem poderia ser em
uma ocasião destas? Ao ouvir o som afetado de uma voz que vinha do fundo da sala,
Pan-noa parou na escada e pensou: “Agora sim fodeu. Fodeu mesmo e fodeu tudo.
Que caralho, que puta que o pariu, a porra da bicha da merda do meu tio Francian.”
Quando finalmente parou diante da sala, os três estavam olhando para ele. Os
olhares não podiam esconder mais insatisfação simplesmente por falta de espaço nos
rostos. Pan-noa quase riu, mas sua situação era lamentável.
- Pan-noa, meu filho, por que não sentamos?
Pan-noa nada disse, cruzou o longo percurso e sentou-se na ponta da mesa, o
mais longe possível de Francian. Sua mãe nem o olhava e Francian parecia contorcer
os lábios para não rir.
De uma coisa Pan-noa podia estar feliz: conseguira até agora controlar sua
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animotatoo.
- Pan-noa. – Voltou a falar seu pai. – Não quero que você pense que este jantar
tão solene seja pela sua belíssima atuação na escola hoje. Na verdade nem estamos
interessados nesta monstruosidade que você colocou em seu corpo.
Os três adultos entreolharam-se. Pan-noa ficou chocado. “Eles já sabem sobre
Be, sabem que estou com uma plebeia, uma menina das casas menores, eles vão me
proibir de vê-la!” Pan-noa com este pensamento ficou pálido. Agora os três o fitavam
com interesse.
- Por que está tão assustado Pan-noa? – Perguntou o tio - Algo que ainda não
sabemos?
- Já chega Francian. – Interrompeu Larissa, mãe de Pan-noa. – Ele não precisa
disso. Vamos Pan-newe, conte logo a ele.
Seu pai levantou-se, deu um gole na bebida cintilante que borbulhava no cálice
dourado-transparente e, finalmente, encarou Pan-noa.
- Veja filho. – Disse seu pai. – Eu quero que você saiba que nós queremos o seu
bem. Eu quero que você tenha certeza de que nós monitoramos pelo menos noventa
por cento dos seus atos. - Pan-noa passou de um branco perolado para uma vermelho
rubro e seu pai quase riu. – Veja, nós só fazemos isso para não deixar você cair em
mãos inimigas. Você não desconhece o fato de que sua família corre riscos constantes,
mesmo na proteção do nosso sistema de satélites e luas, desconhece?
Pan-noa nada falou mas ele sabia muito mais do que o pai imaginava e, por ter
feito uma expressão que traduzia este sentimento, seu pai continuou parecendo mais
satisfeito.
- Pois bem nós sabemos a maior parte de conhecimentos que você anda coletando por aí, inclusive a pérola-cubo de ultima geração que está na sua testa e dos
testes que você tem feito com ela. - Pan-noa arregalou os olhos “Fodeu mais ainda”.
– Bem, eu quero que você saiba que nós estamos extremamente orgulhosos de você.
E mais rápido que Pan-noa pudesse pensar, o tio colocou:
- Principalmente de você ter feito a Trala parar de dar aula. Você sabia que ela
trabalhava como espiã para o inimigo?
Pan-noa estava abismado, mas não conseguia sorrir. Apenas murmurou:
- Vocês estão brincando, não é? É uma forma de tortura, uma nova forma que
esse balofo do Francian bolou para me torturar, para eu falar a verdade. – Então Pannoa pulou da cadeira com a mão na boca pensando “Fodeu”.
- Verdade? – Perguntou seu pai. – Que verdade? Nós sabemos de tudo! Sabemos da animotatoo, sabemos de Zamtras, da terceira Lua, das bebedeiras em Clardorfs, das suas escapadas pelos porões do palácio, de suas visitas aos laboratórios, da
maneira que você transformou seu Drakunum Maximatrya em um mini transgaláctico
de guerrilha e assim vai... A lista é infinita e te digo uma coisa: tivemos que moldar um
sistema de vigilância só para você, Pan-noa! Uma polícia secreta só para você pois os
nossos sistemas normais simplesmente eram ineficazes perante sua habilidade!
Pan-noa ainda estava de pé, agora quase com um sorriso na boca.
- Então? - Falou o tio. – O que te preocupa, o que o pequeno diabinho fez que
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nem um grupo especial não descobriu?
Pan-noa sentou-se. Uma lágrima correu por sua face e ele disse quase num
suspiro:
- Estou apaixonado.
- O quê? Eu não ouvi. – Disse sua mãe do outro lado da mesa.
- Nem eu. – Falaram o tio e o pai ao mesmo tempo.
Então Pan-noa levantou-se e esmurrou a mesa:
- Se vocês não estivessem preocupados com o que o seu menininho prodígio
estava maquinando em sua pérfida mente, vocês teriam mais tempo para perceber
que ele, no caso eu estou loucamente, perdidamente apaixonado por uma guria da
escola e que eu não estava, até agora, preocupado se vocês iriam tirar meus caríssimos
brinquedos ou não, desde que vocês não me tirassem ela! Está bem agora?! Será que
vocês entenderam?!
A princípio os três olharam-se pasmos. Então houve uma imensa gargalhada o
que fez Pan-noa se arrepiar e, por final, os três voltaram a se olhar, porém desta vez
sem máscaras. Eles estavam realmente preocupados.
Foi o pai que finalmente falou.
- Pan-noa queira nos desculpar. Nós queríamos fazer uma surpresa para você
mas vejo que a situação mudou drasticamente. Larissa, por favor.
- Vamos Pan-noa, devemos conversar antes de irmos para a festa, se é que
você quer ainda uma festa.
- Festa, que festa? Por que eu não iria querer uma festa? Estavam planejando
uma festa surpresa?
- Venha Pan-noa. – Disse sua mãe calmamente. - Eu preciso te contar.
Os dois deixaram a sala principal. Pan-noa ajustou mentalmente seu nível auditivo e, quando estavam passando pela porta, ouviu o tio dizer secretamente ao pai:
- Queira ou não queira o plano deve continuar Pan-newe.
Pan-noa posicionou o nível auditivo ao normal e pensou. “É um balofo filho
da puta mesmo.”
Mãe e filho sentaram-se na mesa da cozinha e, enquanto Pan-noa comia, Larissa se remoía em pensamento. “Como pudemos não ter perguntado a ele antes?
Como poderíamos saber? Bem, afinal de contas ele pode voltar se ele quiser, apenas
o primeiro ano é obrigatório.”
Quando Pan-noa parou de comer sua mãe o abraçou e disse.
- Querido, a coisa está feita. Nós achávamos que seria algo útil para você,
afinal é o que você mais faz o dia inteiro!
- Mãe, – Disse Pan-noa decidido. – Seja lá o que for eu vou suportar. Estou
confiando em você.
- Está bem. – Disse a mãe olhando-o firmemente. – Como você sabe, suas
notas na escola são péssimas, sua atuação como líder de classe é um absurdo, suas
experiências com drogas, suas farras, suas matações de aula, enfim tudo que você fez
e deixou de fazer na sua vida acadêmica é um verdadeiro desastre para quem quer ir a
uma escola imperial.
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Pan-noa espichou o pescoço de maneira a olhar a mãe de cima para baixo:
- Escola imperial? Aos doze anos?
- Você é filho de um rei Pan-noa, não se esqueça disso.
- Bom, graças ao bom Deus eu tenho péssimas notas não é mamãe? Assim,
posso concluir meu curso aqui, ao lado de Be e, quando eu tiver vontade, eu irei para
onde quiser, não é mesmo?
- Pan-noa, veja bem meu filho. Seu pai formou um grupo especial de espiões
para te observar, pois nenhum outro grupo conseguia.
- Mãe, tudo o que eu fiz foi pura sorte! São as encrencas que vem em minha
direção! Eu não as procuro!
- Eu não estou falando de encrencas, estou falando de suas criações, de como
você se esquiva de miliciantes com os melhores radares como se estivesse se esquivando de uma criança num jogo de Quinlapalas!
- Então? O que isso tem a ver comigo?
- O que tem a ver? Este grupo mandou os relatórios do que você tem feito há
três anos! A Imperial Extuártica está enlouquecida pela sua chegada há meses!
- A o quê? Aquela escola de frescos? A Imperial Extuártica? Do outro lado do
sistema imperial? Do outro lado do universo? Nunca! Nem pensar!
- Pan-noa agora eu devo ser dura com você. Você parte amanhã cedo, queira
ou não queira. Eu consegui convencer os dirigentes da escola que você poderia levar
o seu Aerojet. Agora está havendo uma festa de despedida para você. Se você quiser
ficar sozinho no seu quarto com esta tal de Be, pode ir. Mas lembre-se do que você
tem feito de cagada - nesse ponto Pan-noa levou um susto com o linguajar da mãe você deveria estar indo para uma prisão infantil e não para uma das melhores escolas
do universo, portanto, agradeça ao destino por ele não ser tão cruel com você.
Pan-noa teve um sentimento estranho quando a mãe falou aquilo sobre destino
mas pensou bem em tudo que ela disse e foi à festa despedir-se de todos e pegar Be,
afinal eles tinham muito o que conversar.
Breve relato da situação do Império
O General Arcrates se autodenominara Guardião Vitalício do Império, após o
desaparecimento do jovem imperador Schaia III.
Como ninguém sabia do paradeiro do imperador, o General Arcrates forjara
sua morte e tomara o poder do Império para si.
Nesta época, o Império inteiro estava passando por uma crise sem precedentes,
uma crise com os fornecedores de energia, os poderosos seres que moravam no espaço
interno, os Extuárticos.
Schaia III, em seu exílio, descobrira parcialmente a causa da crise quando se
encontrou com ser semidivino - ou supremo - conhecido como “O Mago de Prata”.
Porém, paralelamente, o General Arcrates também descobriu a causa do problema e atacou Cosmo, o sonho de dez mil anos, destruindo assim a raiz da crise do
Império. Aclamado como herói, o General Arcrates teve carta-branca das grandes ca204
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
sas – os planetas imperiais - para fazer o que bem entendesse. Então inventou que a
origem de Cosmo, o antigo gerador da crise, era um planeta temido freneticamente
por todas as pessoas do império: o Planeta Azul.
O General Arcrates resolvera destruir este planeta por inteiro. Entretanto o
Planeta Azul foi o refúgio dos que moravam em Cosmo, refúgio, inclusive, do Mago
de Prata e de Schaia III, que estavam em Cosmo quando este foi atacado.
Quando o General Arcrates atacou o Planeta Azul O Mago de Prata, com ajuda
do Imperador Schaia III, conseguiu proteger o planeta. Schaia III retornou então ao
seu trono e voltou a Plan Ex, planeta sede do Império, com novos planos de governo.
Alguns detalhes foram marcantes para os novos eventos que se seguiram na
vida do império e seus habitantes. Schaia III tornou-se Imperador Mago com poder
sobre humano, pois fora instruído pelo Mago de Prata.
Quando o General Arcrates resolveu destruir o Planeta Azul ele tinha apoio
de todo o Império e, mais que isso, resolveu fazer da destruição um verdadeiro espetáculo, levando uma frota de inúmeras naves de turismo, naves de transmissão, toda
a corte e convidados ilustres, como se a destruição de um planeta fosse um evento
circense. A suposta destruição iria ser transmitida para todo o império ao vivo. Os
Extuárticos apoiaram plenamente as ideias do General Arcrates e foram convidados a
participar deste evento. A destruição foi um fiasco total e o General Arcrates foi morto
na frente das câmeras que transmitiram a cena para todo o Império.
Quando Schaia III, o Imperador Mago, retornou do Planeta Azul, sua primeira
ordem foi implantar a nova bandeira por todo o Império. A bandeira simboliza o Templo de Cosmo, supostamente destruído pelo General Arcrates.
A segunda ordem foi a feitura do livro onde se relata a história que o levou a
ser o Imperador Mago. O título deste livro é O Mago de Prata.
A partida de Pan-noa
Na manhã seguinte à festa de despedida de Pan-noa, Schaia III, O Imperador
Mago, apareceu em todas as teles para um breve discurso de retomada do poder. Ele
parecia alarmado e extremamente arisco:
- Gostaria de informar que em breve estarei mandando um exemplar do livro
“O Mago de Prata” a todos os habitantes do Império. É imprescindível que todos
leiam. Nele haverá uma notícia que modificará para sempre a vida dos que habitam
este Império. Devo dizer ainda, que esta notícia será uma maldição a todos aqueles
que um dia tornaram-se comparsas do mal.
Nas teles apareceu o palácio imperial com milhares das novas bandeiras do
Império.
Pan-newe olhou para Francian que fitava o monitor com o sorriso mais sarcástico que poderia ter dado em toda sua vida. Pan-newe sorriu também e disse:
- O Imperadorzinho simplesmente enlouqueceu. É outro que logo vai cair do
poder. Bem, vamos ao que realmente interessa. Onde está Pan-noa?
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Pan-newe, – Chamou Larissa – Você tem certeza de que vamos fazer isto?
- Não vamos discutir de novo! O garoto vai e vai levar todo o estipulado.
Pan-noa desceu as escadas de mãos dadas com Be. Estavam felizes quando
olharam para o Rei e a Rainha.
- Eu li o regulamento da escola. – Disse Pan-noa. – Eles permitem uma visita
no terceiro mês do curso. Nós falamos com os pais da Be e eles vão leva-la para lá,
não é ótimo?
- Uma maravilha, meu filho! – Disse Larissa. – É ótimo ver você tão feliz
querido! Bem, seu pai quer lhe dizer uma coisa antes de você partir.
- Nós tivemos que mudar um pouco os planos, Pan-noa.
- É mesmo? Sabe, já estou me acostumando com pessoas agindo pelas minhas
costas.
- Pan-noa! – Disse Be horrorizada.
- Está bem, desculpe-me majestade. – No rosto de Pan-noa estava estampado
o desgosto.
- Bom filho, você não irá com a nave expresso comum.
- Não? Que ótimo! Poderia ir a pé. O que vocês acham? Não é um ótimo exercício?
- Pan-noa, – Continuou o pai. – Na verdade acho que você vai gostar disso.
Seu tio deve fazer uma entrega exatamente na lua do Planeta Marson, o planeta de sua
escola, então resolvemos que você será o único encarregado da entrega. O que você
acha?
- Francian! – Exclamou Pan-noa. – Devo carregá-la nas costas para você,
titio?
- Na verdade não Pan-noa. – Seu pai ainda aparentava calma. – Você vai pilotando um dos meus trans universo imperiais.
Silêncio.
- Mais uma brincadeira de mau gosto, papai?
- É sério Pan-noa, já está na hora de você amadurecer e tenho certeza que
podemos confiar em você. Depois que você entregar a carga na lua, você vai até Marson e comanda a nave para voltar para cá. O que me diz?
Pan-noa não sabia se ria ou se chorava.
- Eu não acredito! Eu, pilotando um trans universo imperial inteirinho! A
maior nave de batalha que nós temos! Que o império tem! E só eu! Sozinho!
Be no entanto estava alarmada. – Vocês vão deixar Pan navegar até o outro
lado do sistema num trans universo imperial sozinho?
- Sim. – Disse o tio. – A carga que Pan-noa levará para nós é de valor extremo, confiamos nele e em mais ninguém, para levá-la. Não podemos ir com ele
pois demonstraria o valor da carga. Portanto, achamos que Pan-noa seria a melhor
camuflagem. Além disso, o trans universo imperial é impenetrável, ninguém tentaria
atacá-lo, mesmo porque não há nenhuma razão para isso, visto que será apenas um
menino navegando. Nada mais seguro.
Larissa ainda estava nervosa, mas concluiu que Francian estava certo. Nada
206
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
era mais seguro que um trans universo imperial.
- E tem mais uma coisa Pan-noa. – Disse o tio. – Como você levaria teu amado
Drakunum Maximatrya no Expresso comum, com toda aquela ralé espremida?
- Por mim está ótimo. - Pan-noa estava eufórico. - Quando eu parto?
- O quanto antes.
- Larissa, está tudo estocado?
- Sim Pan-newe.
- Bem, hora de dizer adeus.
Pan-noa beijou Be profundamente. Seus pais ficaram chocados ao ver pela
primeira vez a animotatoo se manifestando nos braços, pescoço e cara de Pan-noa.
Eram lindas flores azuis que desabrochavam enquanto ele beijava a menina. Be derramava lágrimas e Larissa se emocionou, abraçando o marido e percebendo que ele
também chorava. O tio no entanto pensava profundamente.
Pan-noa só percebeu a gravidade da situação quando se deparou com a magnitude dos cinco trans universo imperiais que estavam estacionados na órbita de Kalum
Br, seu planeta. A pequena nave de translado acoplou-se na extremidade da cabine de
comando da nave. Alguns inspetores ainda faziam ajustes na nave quando a família
imperial chegou. Pan-noa estava branco. Um dos inspetores veio ao encontro de Pannoa.
- O senhor gostaria de algum ajuste pessoal Pan-noa?
- Não, obrigado. Conheço essa nave mais do que qualquer um.
- Conhece mesmo senhor? – Perguntou o inspetor incrédulo.
- Você não tem tido muito contato com os simuladores de última geração, tem?
O inspetor olhou estarrecido para Pan-newe.
- É inspetor, é possível sim. Ele entrou no sistema de defesa, roubou os códigos de acesso e tem nos monitores de seu quarto todos os simuladores de todas
as naves de batalha de nossa frota. Graças ao bom Deus que é o meu filho e não um
inimigo, você não acha?
O Inspetor olhava para Pan-noa mais incrédulo ainda. Pan-noa no entanto
deslocou-se para os controles e mexeu em alguns comandos. Então uma voz muito
sensual foi ouvida por toda a nave.
- Kenn, processador de comandos, apresentando-se para navegante. Saudações Pan-noa. Nave pronta para partida, destino Marson com conexão na lua Defort.
- Ótimo. – Disse Pan-newe. – Está mais que perfeito.
Pan-noa voltou-se para seus pais e abraçou-os.
- Vocês vão se orgulhar de mim. Podem ter certeza.
Pan-noa estava agora sentado sozinho em frente aos comandos da enorme nave
e via, através das janelas, o breu do universo infinito.
- Kenn. Quando você quiser.
- Comandos ligados, navegante. Ignição de plasma. Estamos a caminho da
dobra.
E assim o trans universo imperial se deslocou da órbita de Kalum Br e encaminhou-se para a dobra do espaço. A viagem até a dobra iria levar alguns dias.
207
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
A única coisa que deixou Pan-noa preocupado foi o fato de não ter perguntado
ao tio qual era a tão valiosa carga que ele estava transportando.
A chegada do livro
Somente após alguns instantes depois do trans universo imperial tomar velocidade galaxial, Pan-noa começou a perceber sua nova realidade. Nos centenas de
monitores ao seu redor Pan-noa começou a ver o tamanho real da nave e, para seu
maior espanto, a magnitude do poder de batalha que estava em suas mãos. Ficou
perplexo. Estava em silêncio, pensando se aquilo não era um sonho. Estava quase que
caindo numa espécie de depressão melancólica, por se sentir tão pequeno em relação à
guinada que seu destino dera. Então, de repente ficou de pé, olhou ao redor da imensa
e absurdamente extravagante sala de controle e disse:
- Caralho... Esta é maior cagada em que eu me meti na minha vida! Kenn?
- Sim Pan-noa?
- Acho que a navegação até a dobra está pré determinada, não está?
- Sim Pan-noa.
- Bom, então vamos precisar de diversão por aqui. Em primeiro lugar quero
mais iluminação em toda a nave, em segundo quero video-reunião com os seguintes
códigos, são de meus amigos e resolvi que eu vou dar uma festa virtual nessa porra!
- Pan-noa, a iluminação já está providenciada. – A nave ficou muito iluminada
e brilhante por dentro. – Quanto à sua festa, infelizmente não podemos fazer comunicação externa, chamaria a atenção de possíveis investigadores e colocaria em risco a
missão da entrega.
- Que merda! Não vou poder falar com ninguém durante todos esses dias?
- Infelizmente não.
- Puxa Kenn... Bem, vamos então nos divertir de outra forma. Que tal um
simulador de navegação de aerojet? Você conseguiria tomar as características do meu
Drakunum Maximatrya?
- Conseguiria, mas devo informá-lo de algo.
- Vai me dizer que devo ficar aqui sentado nestes controles até Marson? –
Disse Pan-noa, já ficando irritado.
- Não Pan-noa. Esta nave tem corredores largos e posso abrir todas as portas
da nave ao mesmo tempo, já que você está sozinho aqui dentro. Quero lembrá-lo que
esta nave tem cem quilômetros de extensão por quarenta de largura e mil metros de
altura intercalados por magníficos mezaninos, alguns com cascatas e vegetação. É
uma nave de batalha transformada por um dos melhores decoradores...
- Não! – Disse Pan-noa eufórico, interrompendo o discurso de Kenn. – Você
não está me dizendo que...
- Devo trazê-lo imediatamente? - Kenn já estava se acostumando ao modo de
falar do garoto.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Imediatamente!
Uma escotilha se abriu na sala de comando e do chão saiu a devastadora visão
da carenagem com o símbolo do dragão cuspindo fogo do Aerojet Plasma! Drakunum
Maximatrya.
Pan-noa tremía. Então a voz de Kenn falou.
- Devo conectar em sua pérola-cubo uma planta detalhada da nave Pan-noa?
- Sim!
Pan-noa deu um pulo e mal caiu no aerojet este já estava atravessando a sala
de comando. Então Pan-noa viu com seus próprios olhos algo que nem os melhores
simuladores do universo poderiam mostrar: o saguão de conexão dos setores de um
trans universo imperial. Era uma queda de mil metros num vão com vários corredores
conectando as extremidades dos vários andares de mezanino. Pan-noa comunicou a
Kenn, via pérola-cubo, algumas instruções e, em segundos, a nave inteira foi chacoalhada com o pulsar de vozes de cantos eufóricos e batidas desconexas do que poderia
ser uma música tão pesada quanto uma batalha.
Pan-noa caiu em parafuso até o fundo do saguão e ficou estarrecido com o
enorme chafariz lá em baixo. Teve que subir e descer várias vezes para reconhecer o
saguão. A partir daí começou a entrar nos outros setores da nave. Pan-noa voou com
seu aerojet pelos corredores, salas, saguões da nave até que, exausto, depois de horas
voando resolveu voltar para sala de comando.
- Kenn, a única coisa que eu devo dizer a você é que eu te amo!
Kenn riu.
- Deseja algo para comer?
- Sim os melhores sanduíches que alguém possa fazer! E por favor diga que
pelo menos podemos receber programação de tele.
- Ah! Isso sim, qual a programação?
- Bem vamos ver o que está acontecendo com “Alnos” no seriado “A Volta
do Senhor das Sombras”. Sabe, eu adoro essas coisas de castelos antigos com janelas
feitas de ferro retorcido.
- Ah sim, a idade das sombras foi um momento muito interessante na nossa
cultura. Seu sanduíche está pronto e servido nos sofás laterais. Um dos monitores
servirá de tele para você, Pan-noa. Divirta-se.
- Obrigado Kenn. A propósito, poderíamos manter o mesmo horário de Kalum
Br?
- Sim claro, são nove horas da noite agora.
- Ótimo! Assim que eu terminar de comer e ver o programa vou dormir. Você
pode me acordar às sete. Estou louco para nadar naquele lago artificial que descobri lá
atrás.
- É uma ótima ideia Pan-noa, boa noite.
Pan-noa sentia-se realmente satisfeito com tudo aquilo, mas mesmo assim não
conseguia parar de pensar em Be.
O som de uma bela melodia começou a ser ouvida por Pan-noa, introduzida em
seu sistema auditivo através da pérola-cubo. A música foi aumentando até que toda
209
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
nave se transformou em uma grande orquestra. Os monitores mostravam o lago artificial que Pan-noa queria nadar. No ambiente do lago, Kenn preparara um magnífico
nascer do sol virtual. Além disso, na sua frente Pan-noa tinha ovos, torradas, cremes
verdes e frutas fatiadas.
- É impressionante Kenn, muito obrigado.
- É um prazer servi-lo, Pan-noa. Gostaria de fazer uma pergunta. Durante seu
sono notei manifestações estranhas no seu corpo...
- Ah sim! Vou lhe mostrar.
Pan-noa tirou seu pijama e ele mesmo ficou abismado ao se olhar num dos
espelhos. Seu corpo estava inteiro coberto por uma paisagem paradisíaca. Existiam
mesclas de belos pequenos animais e no centro estava Be mexendo nas flores que a
cercavam. Pan-noa ficou parado olhando o corpo nu da menina desenhada na sua pele.
Ficou um pouco triste mas Be olhou para ele através do reflexo no espelho e sorriu.
Depois disso a tatuagem se transformou em duas aves idênticas que agora ocupavam
os braços de Pan-noa. As aves bateram as asas algumas vezes e ficaram imóveis.
- É, por enquanto é só pessoal. – Disse Pan-noa melancólico.
- Isso foi muito legal Pan-noa! – Disse Kenn com uma entonação verdadeiramente empolgada.
- Sabe Kenn, eu realmente estou começando a gostar de sua companhia.
- Obrigada, agora que tal seu desjejum? Gostaria de algo a mais?
- Não está ótimo, vou comer e me divertir.
O lago era incrível, estava cercado por um jardim maravilhoso e ainda tinha
uma cascata em que se podia sentar e ficar sentindo a água bater nas costas. Pannoa resolvera passar o dia ali. Pediu a Kenn para servir seu almoço embaixo de uma
grande árvore. Passou o dia explorando a pé os arredores do lago. No final da tarde
deu mais algumas voltas com seu aerojet, descobrindo as partes mais extremas da
nave. Ficava impressionado a cada descoberta que fazia.
Passou alguns dias assim, se divertindo e descobrindo os cantos e mais cantos
da nave. Quando estava para ficar enjoado daquilo tudo Kenn anunciou que ele deveria vir a sala de comando.
- Pan-noa, devo pedir que sente-se na cadeira de comando da nave, estamos
por chegar no espaço de dobra.
- Ah! Finalmente. Quanto vai demorar?
- Mais ou menos cinco minutos. Está preparado?
- Sim.
- Ótimo: vou começar o procedimento.
Então a nave deu uma guinada para baixo, entrou em algo que parecia um túnel
e logo depois voltou ao normal. Todos os monitores estavam desligados e a mesa de
comando estava sem luz alguma. Kenn estava fazendo tudo sozinha.
- Cá estamos Pan-noa. Agora, contagem regressiva em cinco, quatro... - Neste
momento Pan-noa percebeu uma luz vermelha piscar no canto da sala de comando.
Era o alerta de que algo tinha chegado à nave. Uma entrega qualquer, pensou Pan-noa.
- ... Três , dois, um. – Continuou Kenn.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
A nave deu um solavanco e entrou na velocidade de dobra. Pan-noa estava
atravessando o universo.
- Estamos estabilizados? – Perguntou Pan-noa a Kenn.
- Sim e você tem um pacote na parte esquerda da sala de comando, chegou
antes de nossa entrada na dobra.
- É; eu percebi.
Pan-noa foi verificar. Tratava-se de um pacote e um envelope. Os dois tinham
o selo de Schaia III, o Imperador Mago. Pan-noa abriu o pacote e deixou o envelope
em cima da mesa de comando. Ao ver o que havia dentro do pacote, Pan-noa falou
confuso:
- Um livro mandado pelo Imperador Schaia III para mim?
Então Pan-noa viu o título do livro e leu em voz alta:
- “O Mago de Prata”. Kenn, quanto tempo nós temos até sair do espaço de
dobra?
- O suficiente para que você leia o livro, Pan-noa.
- Ótimo, vou fazer como nos velhos tempos, sem usar minha pérola-cubo.
Então Pan-noa entrou no mundo do Mago de Prata. Enquanto lia Pan-noa tinha
verdadeiros espasmos de riso, gargalhava sem parar.
- Ai, meu Deus! Acho que o Imperador enlouqueceu! É a coisa mais ridícula
que eu já li em toda a minha vida! Fadas, duendes e semi deuses, tudo isso ainda
naquela porra daquele Planeta Azul! E agora o cara está apaixonado por um mago
assexuado! Acho que o imperador vai cair do trono logo logo!
- Pan-noa. – Disse Kenn. – Prepare-se para a reentrada.
De fato a reentrada foi um pouco mais dramática. Houve um tremendo solavanco, algumas luzes de alerta piscaram. Pan-noa arregalou os olhos e viu que um dos
sistemas estava falhando, virou-se então para ajustar e, ao sair da cadeira sentiu mais
um solavanco que o derrubou. Ao cair não percebeu que o envelope que recebera
junto com o livro caíra em baixo de sua cadeira.
- Ei Kenn! Pode dar uma ajudazinha aqui?
- Pan-noa, estamos em dificuldades mas acho que logo vai voltar ao normal,
vou desviar algumas prioridades de auxílio.
As luzes já não piscavam. Pan-noa levantou-se e chacoalhou a cabeça.
- Puxa! Que coisa. Pode me informar o que houve Kenn?
- Sim, já estou preparando um relatório.
A Maldição de Schaia III
Pan-noa começou a ficar confuso. Os dois maiores monitores que ficavam ao
lado da grande janela frontal da nave estavam totalmente enlouquecidos. Esses monitores mostravam a localização da nave dentro do mapa estelar, mas neste momento
não mostravam nada, a não ser o caótico piscar de linhas e pontos. Era como se os
monitores tentassem se comunicar com vetores que o Império havia colocado no es211
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
paço para a localização das naves e não conseguissem.
O resto parecia estar funcionando normalmente. Nenhuma avaria na nave havia sido detectada. Então Kenn disse:
- Pan-noa a nave está em pleno funcionamento. O único problema detectado
foi na localização de nossa posição no mapa estelar.
- Bem... Isso eu já estou percebendo. Os monitores de mapeamento não estão
fornecendo os dados. Posso saber o que isto significa?
- Espere mais um instante.
O instante foi mais demorado do que Pan-noa desejara.
- Kenn por favor, seja lá o que for me informe. - Pan-noa estava sentado ereto
na cadeira de comando, olhando para a janela e percebendo apenas um breu à sua
frente. – Ei! Não deveria haver umas estrelas e alguns planetas por aqui? Afinal nós
deveríamos estar no sistema do maldito planeta Marson, não deveríamos?
- Deveríamos, Pan-noa.
- Então - Pan-noa estava gritando. – Dá prá me explicar o que está acontecendo com essa porra?
Houve mais um momento de silêncio e então Kenn começou a falar muito
devagar:
- O livro que você recebeu.
- Sim o que tem?
- Eu passei as informações do livro para o meu banco de dados.
- E o que essa bosta dessa bicha do Mago de Prata tem a ver comigo?
- Não só tem a ver com você Pan-noa, com tem a ver com todo o Império.
- Como assim?
- Leia a última página do livro.
Pan-noa tomou o livro nas mãos e leu a última página, agora prestando muita
atenção.
- Meu deus! – Disse Pan-noa com o livro aberto. – Veja o que o filho da puta
diz: “... A energia dos Extuárticos será imediatamente cortada ... Vocês viverão na
mais absoluta miséria ... Os planetas viverão isolados!” Isso significa que ... – Agora
Pan-noa começara a chorar.
Foi Kenn que tentou explicar melhor a situação para que Pan-noa pudesse realmente entender, apesar de ele já ter entendido sozinho, de alguma forma.
- Isso significa que sem a energia dos Extuárticos, os espaços de dobra não
podem ser feitos. Isso significa também que quando nós estávamos atravessando o
espaço de dobra este foi desfeito e nós estamos em algum lugar do universo sem
parâmetro nenhum de reconhecimento, pois os vetores dos mapas foram igualmente
desconectados. Nenhuma nave poderá sair de seu próprio sistema. E nós estamos
completamente perdidos no meio do fim do mundo.
Enquanto Kenn falava, Pan-noa apanhou de baixo de sua cadeira o envelope
que tinha chegado com o livro e que ele não tinha aberto. Ao lê-lo, Pan-noa teve que
admitir: tudo que Kenn estava falando era a mais pura verdade. Os planetas estavam
isolados, os mapas estelares não estavam mais disponíveis para a navegação e todo o
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Império estava simplesmente fodido.
Pan-noa afundou-se inteiramente na cadeira e começou a chorar, a chorar de
verdade. Kenn tinha parado de falar. Pan-noa encostou a testa na mesa de controle e
começou a esmurrar o braço de sua cadeira, então fechou a mão num punho a levou-a
a sua boca soltou um urro e caiu no chão, ao lado da cadeira, desfalecido.
O Planeta Deusaflor
Os guerreiros Litri, Milos e Clia conseguiram, no último momento, entrar no
tronco oco da enorme árvore. Quando entraram notaram que a água do rio passava por
baixo e dentro do tronco.
- É um milagre! – Disse o pequeno Litri. – Vamos, entrem na água e não saiam, assim eles não vão sentir mais nosso cheiro.
Os três entraram na água e logo ouviram a voz de um dos homens que os perseguiam.
- São apenas três crianças e vocês não conseguem pegá-los! Imprestáveis!
O som de patas de cavalos estava em toda parte. De repente dois cães entraram
no tronco oco da árvore. Os três afundaram a cabeça na água e ficaram o máximo que
puderam. Quando se levantaram os cães já não estavam. Ficaram ali por horas. Ao
cair da noite já não ouviam mais nada. Saíram da água mas ficaram dentro do tronco.
- Nada de fogueiras. – Resmungou Clia. – Ficaremos aqui até estar bem
escuro. Durante o outro lado da noite iremos atrás deles. Devemos descobrir até onde
chegaram.
- Sabe o que vai acontecer se nos apanharem? – Disse Milos. – Vão nos arrancar a verdade e descobrirão o caminho.
Clia olhou triunfante para os dois. – Eu não abriria minha boca por nada nesse
mundo!
- Nós também não! – Disse Litri. – Mas você sabe o que eles podem ter para
nos fazerem falar?
- Porque não voltamos às cavernas e não contamos aos outros que existem
intrusos procurando?
- Porque fomos longe demais. – Disse Clia.
- Você quer mostrar coragem aos outros ou a si mesma Clia?
- Eu quero proteger a Deusa, coisa que nossa tribo tem esquecido ano após
ano. Esqueceram-se que são guerreiros, que seu destino é o de proteger a Deusa e
que são treinados como nós fomos para serem guerreiros e enfrentar qualquer um que
saiba o segredo da existência da Deusa.
Os dois se calaram. Sabiam que aquilo era verdade, mas sabiam que eram um
dos poucos que haviam visto a Deusa com os próprios olhos.
- Talvez seja porque eles nunca a tenham visto... – falou pensativamente Milos.
- Não. – Respondeu Litri. – É porque são estúpidos, porque querem viver
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
como os outros, como as outras tribos, tanto que venderam o segredo de Sua existência. Pensam que Ela é imprestável.
- Pela Deusa! – Disse Clia tocando a testa. – Como podem?
- E o que querem com Ela afinal? – Interrogou Milos.
- Disseram que Ela é valiosa, que tem poderes mágicos, que pode curar até a
morte.
- Isso é um absurdo! Todos sabem que a Deusa só faz aquilo que faz para
preservar o nosso mundo, que sem ela simplesmente não haveria mais equilíbrio.
- São tolos, Clia, todos tolos. Aposto que fariam dela uma peça de decoração.
É uma pena eles não saberem que ela só dura três pétalas ao chão a cada trinta luas.
- É. É uma pena que dure tão pouco. Como alguém pode ser tão belo? – falou
Litri, bocejando. Recostou-se em Clia e logo os três dormiram.
O despertar de Pan-noa
Kenn enviou uma dose de Enecto-Lex para a pérola-cubo de Pan-noa depois
de algum tempo que o menino ficara deitado no chão. A droga logo o fez despertar.
Pan-noa levantou-se calmamente e, durante algum tempo, ficou pensando preguiçosamente. A droga iria trazê-lo à realidade com um pouco mais de conforto e, realmente,
ele sentou-se de novo na cadeira e pegou a carta de Schaia III.
- Existe alguma coisa errada com tudo isso, Kenn.
- Eu imagino o que seja, mas fale sua teoria.
- Bem, aqui diz que todos os planetas foram alertados para não mandarem
nenhuma nave para os espaços de dobra... Então, por que nós não fomos avisados?
- Vocês foram.
- O que?
- Vocês foram. Era para você voltar para Kalum Br mas meus sensores foram
alterados. Seu tio tinha muita urgência em mandar aquele material para a lua de Marson.
- Francian. – Falou Pan-noa. – Como fomos acreditar nele?
- Ele nos traiu, Pan-noa. A todos nós. Ele sabia de tudo desde o começo. Seu
plano foi tão pérfido que ele me programou para contar isso a você somente agora,
quando estivesse tudo acabado. E você perdido. Acredito que seus pais estejam mortos, Pan-noa. Desculpe.
Pan-noa só não teve outro ataque porque Kenn o estimulou ainda mais com
Enecto-Lex. Pan-noa ficou durante muito tempo parado, apenas pensando. Quando
finalmente voltou a si perguntou:
- Mas e quanto à entrega? O que era?
- Na verdade ele ainda tinha esperanças de que você conseguisse entregá-la há
tempo. Depois, provavelmente, seria morto pelo próprio Império por estar navegando
numa área que não era do seu sistema. Acredito que o produto em si não vale nada
para você.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Mas o que é afinal?
- É um contrabando, um produto altamente proibido pelo Império.
- Sim, Kenn. Você está me deixando curioso.
- Bem, é um ser semi-humano moldável do planeta Lafrout.
Pan-noa afundou de novo na cadeira.
- Eu não acredito! Para quem ele iria vender tamanha aberração?
- Não tenho a mínima ideia, mas acho que deveríamos...
- Não. Eu quero ver isso com os meus próprios olhos. Se meus pais morreram
por isso e eu estou perdido nesse fim de mundo, eu quero ver de perto esta bosta.
Então, Pan-noa subiu no seu aerojet e disse a Kenn:
- Dê-me as coordenadas de onde está estocado o produto. Enquanto isso, neutralize os programas de mapas convencionais, amplie todos os telescópios e tente
achar algum sistema que seja semelhante a algum do Império. Mesmo que não se
assemelhe encontre um que possa ter um planeta habitável. Vamos sair desta enrascada Kenn!
A droga estava ajudando, mas quando Pan-noa avançou nave adentro começou
a chorar. Seus pais estavam mortos. Mortos da pior maneira possível, por traição.
Então sua mente se reverteu. Pensou em Schaia III que também traíra o Império. Pensou em Be. Será que o crápula do tio mandara matá-la também? Começou a acelerar
mais seu aerojet. Era a raiva.
- Eu vou vingá-los. – Disse a si mesmo. Olhou então para sua mão e notou
uma figura se formando. Era o rosto de um ser magnífico. Então a animotatoo formou
em volta da cabeça deste ser um manto prateado. Pan-noa sorriu. Um sorriso aterrador. – Sim, e você vai ser o primeiro! Por você ser o que é, por você ter começado isso
tudo, por você ter enlouquecido Schaia III ... eu vou matá-lo Mago de Prata, você será
o primeiro.
Pan-noa chegara em uma sala lacrada. Ele desceu calmamente de seu aerojet,
porém suas feições estavam com a expressão da mais pura raiva.
- Destrave Kenn.
A porta se abriu. Era um quarto escuro que foi se iluminando à medida que
Pan-noa entrava. Uma luz azul e fria focava uma espécie de caixa metálica ornamentada em vidro, muito parecida com um caixão funerário. Dentro da caixa havia um
líquido azul viscoso e, mergulhado no líquido, pairava o corpo de um ser mais ou
menos do mesmo tamanho que o seu.
Na parte de cima do “caixão” havia uma mensagem em código. Pan-noa leu e
transferiu os dados para sua pérola-cubo. Imediatamente retornou a tradução:
“De Francian, novo rei de Kalum Br, com afeição. Devo dar-lhe um conselho:
ao matar o menino, faça do bio Andróida algo parecido com ele, afinal não é Pan-noa
uma graça? A propósito! Se o fizer, molde um pênis um pouco maior, afinal, nesta
idade, bem, você sabe...Saudações Francian.”
- Kenn?
- Sim Pan-noa?
- Transfira essa caixa para a sala de comando.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Tem certeza?
- Absoluta. Ao olhar para esse semi humano eu vou lembrar todos os dias que
devo vingar meus pais através dele.
Os guerreiros Litri, Milos e Clia
Ao passar da lua pela árvore os três guerreiros acordaram.
- Vamos descer pelo rio. – Disse Clia. - Foi por lá que eles foram. Temos que
entender como andam, como lutam e se suas armas são mais fortes do que as nossas.
- Nossa maior arma é a Deusa. – Falou Milos. – Estamos contatados com ela
através do solo, das árvores, do ar e das águas.
- Sim. – Disse Litri. – Nossos olhos estão brancos de novo, a cor dos olhos da
Deusa! Devemos seguir rapidamente. Lembrem-se que o contato dura pouco.
Os três tomaram um tronco grande e, sob as fortes correntezas, desceram o rio
em direção à vila dos homens. Os três agora tinham o poder da Deusa. Manipulavam
em pequena escala a natureza que os cercava. As águas do rio empurravam-nos mais
rapidamente e eles conseguiam segurar no tronco tão forte que nem a correnteza iria
derrubá-los. Os três conseguiam enxergar à noite de maneira que nenhum outro ser
humano conseguiria sem artifícios tecnológicos.
- Nossa nunca durou tanto! – Disse o pequeno Litri.
Clia estava igualmente ansiosa.
- Estamos mais fortes! Algo importante está ocorrendo! Nunca senti Sua presença desta forma.
- Vamos continuar até onde pudermos então. – Afirmou com convicção Milos.
- Sim! Estou sentindo também! Jamais imaginei tamanha força!
Os três navegavam rapidamente e então viram fogueiras. Era o acampamento
dos homens! Estavam dormindo.
- Vejam! – Disse Clia. – Uma sentinela.
- Sim e está cochilando.
- Devemos matá-los? – Perguntou Litri assustado.
- Sim. – Disse Clia. - Mas deixaremos o líder vivo. Vivo, porém sem as mãos.
Litri estremeceu, mas logo fitou o brilho da lua e seus olhos cintilaram. Ele foi
o primeiro a tomar fôlego e seguir por baixo d’água para a margem. Os outros dois o
seguiram. Litri saiu da água e, sem fazer nenhum barulho, apunhalou o sentinela na
garganta, por trás. Milos e Clia já estavam dando conta dos outros. O líder acordou
com seus companheiros mortos, os cavalos afugentados e seus pertences queimados.
Ele estava amarrado, deitado no chão. Então Litri falou.
- Por nos perseguir e tentar achar a Deusa, deverias morrer, porém, serás o
aviso que mandaremos para seu povo e para todos os que vivem nas planícies, que não
devem tentar achar a Deusa. Ela nada tem para vocês. Agora vá.
Assim Litri cortou as cordas que estavam amarrando o líder. Num piscar de
olhos Clia e Milos deceparam as duas mãos do homem. Ele caiu de dor. Litri cortou as
cordas que amarravam os pés. Os três então juntaram o homem que estava aos prantos
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
e o empurraram para frente, na direção da correnteza do rio.
Seus olhos ficaram negros de novo e o sol aparecia.
- Devemos descansar e segui-lo à noite, quando o poder voltar. Devemos ver
o que irá acontecer. – Disse Clia.
- Teremos o poder de novo? – Perguntou Litri.
- Agora teremos, enquanto isso durar. – Disse Milos.
O Quarto Planeta
A figura mórbida do “caixão” na sala de controle já não assustava mais Pannoa. Na verdade, Pan-noa não se referia ao “caixão”, mas ao pseudo ser que estava
ali dentro.
Enquanto Kenn procurava algum planeta habitável Pan-noa lera o livro dezenas de vezes. Estava realmente perplexo com a história. Estava perplexo principalmente com o poder deste ser nefasto que chamavam de Mago de Prata.
- Eu espero que Schaia III tenha exagerado nisso tudo. Não pode ser possível
alterar a realidade como estes seres fizeram.
Pan-noa lia, relia o livro e não via sentido para o que estava fazendo.
- Porque não paro de ler esta bosta? – Perguntava-se. Então parou, colocou o
livro aberto no joelho e olhou para a Andróida ali, deitada dentro da água que a mantinha em estado de semi vida.
- Transforme-o no menino morto, afinal Pan-noa não era uma graça? - Então
este semi-humano deveria ser moldado em outro qualquer, não é? – A cabeça de Pannoa estava fervilhando quando Kenn falou.
- Pan-noa, coordenadas em posição, achei um planeta!
- Ei calma lá! Não estamos mapeados. Como evitaremos corpos estelares?
- Bom, eu achava que você soubesse como navegar um trans universo imperial....
- Ah então é isso!
- Modulo manual ativado. – Disse Kenn. Pan-noa estava nervoso. – Escudo de
defesa ativado. Armas de defesa ativadas.
A monstruosa nave começou a tomar outra forma. A cabine de comando foi
para frente e Pan-noa, abismado, assistia tudo pelo monitor. Os dois monitores ao lado
da janela que dava para o espaço ampliaram a localização do planeta e projetaram um
mapa vetorial. Todas as luzes do painel foram ligadas. Um capacete que era muito
maior do que a cabeça de Pan-noa desceu do teto e tocou em seus ombros. Dali Pannoa tinha uma visão total de dentro da sala de controle e, transparentemente, da parte
de fora da nave. Pan-noa sentiu suas mãos penetrando em luvas. Ele tinha o toque de
qualquer instrumento da sala de controle de onde estava.
- SHOW! – Gritou ele. – Vamos arregaçar!
- Já tenho um vetor apropriado. Vamos ter uns rodopios para evitar alguns
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asteroides. Daremos a volta naquele planeta enorme, impulsionando nossa velocidade
a 906.759 L.U. Estaremos chegando ao planeta no próximo amanhecer. Vou usar um
estimulante atemporal em sua pérola-cubo assim, quando chegarmos ao planeta você
poderá dormir. Até lá, você é o navegante.
- Estou preparado. – Disse Pan-noa, eufórico.
A pancada da droga atemporal em seu cérebro foi pavorosa. Pan-noa parecia
sentir uma força indomável em seu corpo.
- Pan-noa, partida em três, dois, um.
Ele focalizou sua força em um só ponto: chegar ao planeta com a nave inteira.
Os fatos foram totalmente alterados em sua memória. Não havia uma linha
de tempo a ser seguida. Ele viu um enorme asteroide se aproximando à sua esquerda
antes mesmo de Kenn falar “dois” na contagem regressiva. Viu três luas passarem e só
depois visualizou um planeta. Talvez eles tenham passado por muitos planetas, mas a
única coisa que a mente de Pan-noa conseguia fazer era focalizar a chegada a salvo. E
assim foi. Quando chegaram, Pan-noa visualizou um lindo planeta laranja pálido com
tons de verde azulado e uma grande atividade atmosférica. Foi o que o fez relaxar.
- Muito bem Pan-noa, estamos salvos. O planeta é o quarto de seu sistema,
habitável, praticamente do mesmo tamanho de Kalum Br. Mas depois falaremos sobre
isso, agora é melhor você dormir.
Pan-noa olhou para cima com os olhos vidrados, como se estivesse bêbado e
falou:
- Boa noite Kenn e boa noite para você também Andróida.
A Cidade dos Homens
Os três guerreiros da Deusa seguiram o homem que conseguira recuperar um
cavalo. Ele estava desmaiado nas costas do animal. A jornada foi longa. Os três guerreiros perceberam que o homem havia morrido, mas mesmo assim o cavalo continuava. Quando os três avistaram a cidade de cima de uma pequena montanha, ficaram
estarrecidos. Era uma cena muito triste.
Sob um céu cinza escuro o cavalo andava cansadamente numa trilha em meio
ao capim baixo. Ele se dirigia a um portal feito de ferro que agora se encontrava aberto. A cidade era inteira feita de pedras negras, as casas muito parecidas umas com as
outras se empilhavam como se faltasse espaço. O amontoado de telhados altos e pontudos dava um aspecto sombrio. Mas o que mais chamava a atenção eram as janelas
feitas de ferro retorcido, parecendo olhos pequenos de algum animal cego.
De cima de uma das torres ao lado do portal, um soldado fazia gestos aos outros habitantes da cidade. Então várias pessoas vieram correndo de encontro ao cavalo
com seu ocupante moribundo.
Litri, Milos e Clia assistiam a tudo com o coração triste.
- Essas pessoas não sabem viver alegremente. – Disse Clia.
- Como podem se enclausurar em habitações como estas? – Perguntou Milos.
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- Como vamos entrar lá? Como poderemos ver como nosso inimigo vive afinal de contas? – Litri falava intrigado.
Então uma figura grande apareceu atrás deles e perguntou:
- O que fazem, filhos de camponeses, fora da escola?
Os três estiveram a ponto de atacar o homem mas notaram que ele estava sorrindo.
- Então preferem os campos do que ficar trancados nas salas... bem, exatamente como eu fazia. Mas não podem ficar aqui para sempre. Venham. Sigam-me.
Vou levar vocês para a escola de novo. Vocês estão na escola aberta ou no internato?
Nenhum dos três estava entendendo uma palavra que o homem falava, foi Litri
que resolveu experimentar.
- Estamos no internato.
- Puxa que pena. Bem é a vida. Venham. Acompanhem-me antes que algum
soldado os veja.
Os três seguiram o homem em direção a cidade. A cada passo que davam ficavam mais nervosos.
Quando passaram pelo homem morto, ouviram uma grande discussão.
- Vamos resolver isto hoje à noite. Pelo que estou vendo, muitos dos nossos
parentes morreram nesta empreitada. Devemos achar os malditos que fizeram isto!
E desta vez vamos colocar os soldados para acharem este maldito tesouro que tanto
estão falando.
- E quanto ao estrangeiro? Este que veio do norte com esta notícia de tesouro?
O que faremos com ele?
- Foi o povo dele que matou nossos irmãos e parentes, não foi? Então vamos
queimá-lo como fazemos com as malditas bruxas!
E então ouve um grande alvoroço. Pegaram o homem sem mãos e o levaram
carregado acima das cabeças. Os três guerreiros seguiam tudo aquilo com grande
expectativa.
Clia disse murmurando para Litri e Milos.
- Vão matar Trauro, o traidor.
- Que assim seja. – Falou Litri.
Milos olhava para a cidade se aproximando com os olhos arregalados de terror.
O homem que os estava acompanhando falou:
- Dia alvoroçado para fugir do colégio, não? Não pensem que vou deixar
vocês assistirem ao estrangeiro ser queimado. Vocês são muito crianças para isso.
Crianças. Esta era uma palavra que os três não entenderam. Mesmo assim decidiram não falar nada ao homem.
Quando chegaram à cidade perceberam que esta era muito maior do que imaginavam. Os muros eram enormes, havia calçamento de pedras para as pessoas andarem. Tudo era muito sujo e sombrio. O cheiro de estrume imperava no local. Mas eles
podiam sentir cheiro de comida também. Logo se depararam com uma grande praça
onde o povo começava a se aglomerar. Mas eles foram levados para outro lugar. Andaram por ruelas e mais ruelas, um verdadeiro labirinto de pedras negras e sombrias.
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Chegaram então a uma construção maior com uma enorme porta de ferro negro. Sobre
a porta havia inscrições esculpidas em pedra. Nenhum dos três conseguiu decifrar
aquilo, pois não sabiam ler.
O homem bateu na porta várias vezes mas, no começo da rua, um outro gritou
seu nome:
- Dantres! Corra, vão queimar o estrangeiro!
O homem olhou para os guerreiros e disse.
- Não quero ver vocês perambulando por aí está bem crianças? Logo vão abrir
a porta. Não saiam mais, são dias difíceis.
Os três ficaram olhando o homem descer a rua correndo para se encontrar com
o amigo.
O trinco da porta de ferro se abriu com um barulho forte. Uma voz nada afetuosa falou sarcasticamente.
- Vejam só! Alunos novos! E pelas roupas esfarrapadas devem ser filhos de
algum negligente ou quem sabe órfãos. Órfãos são o que mais temos por aqui. Vamos,
entrem. Parece que vão queimar alguém.
Os três entraram. O lugar era detestável, escuro. Iluminado apenas por luz de
velas. Seguiram por um corredor frio que desembocava num enorme pátio com chão
de terra vermelha. Lá havia centenas de pessoas gritando e correndo num caos total.
Litri disse baixinho para os outros dois.
- Crianças. Aqui este povo difere pessoas não crescidas das crescidas, não é
um absurdo?
- É engraçado. – Disse Milos. – Seremos tratados como se não soubéssemos
tomar conta de nós mesmos.
- Venham. – Disse a mulher. – Vamos fazer suas fichas e depois para o banho.
Por hoje nada de atividades, apenas jantar e cama. Espero não ter problemas com
vocês.
A mulher deixou os três com uma outra que os introduziu em uma sala com
uma mesa e atrás, uma cadeira.
- Oi. – Disse a nova mulher sentando-se. – Meu nome é Gala e vou fazer
algumas perguntas a vocês. Se não souberem as respostas não fiquem preocupados,
afinal vocês estão aqui para aprender. Os três se olharam quase rindo. A mulher riu da
expressão dos três.
- Bem vamos começar. Primeiro eu quero que vocês me contem de onde vêm,
está bem?
Os três se olharam de novo. Esperaram um pouco e finalmente Clia deu um
passo a frente e começou.
- Nós morávamos no campo, muito ao sul daqui. Morávamos com nossos pais
cuidando das plantações. Então um dia saímos para pescar e, quando voltamos, nossa
casa estava incendiada e nossos pais mortos. Não tínhamos mais ninguém. Fomos até
a casa de um camponês vizinho e ele nos disse que nossos pais haviam sido mortos
por um desses bandos que vivem nas cavernas. Então, o vizinho nos disse para acharmos uma cidade. Disse que nas cidades eles têm lugares onde cuidam das crianças.
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Gala estava quase chorando enquanto ouvia a história de Clia. Milos e Litri,
por outro lado, tiveram que baixar a cabeça para não rir de tamanho descaramento.
- Bem, – Disse Gala. – Sinto muito pelos seus pais. Preciso saber seus nomes.
- Clia, Milos e Litri. – Disse Clia, somos irmãos.
- Sim, isso eu sei. Vocês tiveram algum tipo de educação onde moravam?
Os três ficaram quietos. Não sabiam o tipo de educação que ela se referia.
Foram treinados desde muito pequenos nas artes da caça, defesa e ataque. Moravam
nas florestas, em árvores, conheciam tudo sobre a vida e a morte dentro da selva, conheciam o poder das plantas, das frutas, das pedras, sabiam os aspectos das coisas pela
observação da lua, do sol, das correntezas dos rios, da forma que a chuva caía, além de
possuírem poderes mágicos quando a Deusa mandava a lua para eles. Mas a educação
à qual Gala se referia, não tinham a mínima ideia do que era.
- Entendo. – Disse Gala. – Bem, não se preocupem. Amanhã vocês começarão
com a turma de aprendizado mínimo. Agora, vamos para um bom banho e depois
jantaremos está bem?
Os três concordaram com a cabeça.
Foram levados para o banho e tiveram uma imensa surpresa ao saber que não
iriam tomar banho num rio mas sim em banheiras com água aquecida.
- Eu não sei quanto a vocês. – Disse Clia. – Mas essa lagoa no meio da sala
com água quente dentro é a melhor coisa que apareceu até agora.
- Clia, – Perguntou Milos. – De onde você tirou aquela história do camponês?
- Você queria que eu dissesse que somos guerreiros da floresta e prestamos
serviços à Deusa?
- Foi muito esperta, Clia. – Disse Litri.
- Obrigada. Mas o que faremos agora?
- Bem, vamos aprender. Aprender com o inimigo.
Pan-noa em Deusaflor
A dor de cabeça era insuportável.
- Kenn por favor, apenas um analgésico.
- Chega de drogas, seu corpo precisa descansar. Tome um suco. Do que você
quiser?
- Verde creme.
O copo de suco apareceu na sua frente. Enquanto Pan-noa tomava o suco, suas
lembranças voltavam. “Meus pais estão mortos”, pensava com lágrimas nos olhos.
Kenn percebera a mudança nas feições do garoto. Deveria mantê-lo ocupado.
- Já enviei micro satélites espiões. Na órbita do planeta, existe vida inteligente,
porém muito primitiva.
- Casas de pedras com janelas de ferro retorcido? – Perguntou Pan-noa lembrando-se de seu seriado favorito.
- Precisamente!
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- Não brinque comigo!
- Estou falando sério. Você se deparou com um planeta que está no que chamamos em nossa cultura de idade das sombras. Na verdade eles nem possuem algum tipo
de energia a não ser o fogo.
- Não posso acreditar nisso. Pode me dar uma tomada de alguma cidade?
- Já estou preparando isso. Existem várias cidades e vilas no planeta inteiro,
mas acho que você vai gostar muito desta.
O satélite posicionado centenas de quilômetros acima da cidade, orbitando o
planeta, focalizou e começou a transmitir as imagens. Pan-noa vislumbrou, chocado,
um cavalo com um homem morto e sem as mãos indo em direção a uma cidade que
nem nos melhores seriados poderia reproduzir. Era algo de sonho. Uma cidade feita
de pedras negras, janelas feitas de ferro retorcido e telhados pontudos.
- Você não está fazendo isso para me divertir, está Kenn?
- É a mais pura realidade, Pan-noa.
- Muito bem, vamos descer imediatamente.
- Seu traje de proteção já está preparado e obviamente armado. Devo dizer-lhe
apenas uma coisa: você deverá ficar algum tempo sem usar o Drakunum Maximatrya
por que existe uma pequena diferença de tamanho entre este planeta e o seu. Seu corpo
deverá se adaptar a esta nova gravidade para depois você poder voar. Não se esqueça
que a roupa de proteção tem antigravitacionais, então você poderá fazer voos rasos.
Rasos, Pan-noa. A roupa não é um aerojet.
- Está bem. Como nos deslocaremos até lá?
- Não usaremos um transportador comum, vamos deslocar a sala de controle.
Precisarei estar perto de você com todo o equipamento além de estar conectada aos
satélites e ao próprio trans universo imperial, caso algo aconteça. Para entrarmos e
ficarmos sem ser vistos no planeta vamos usar o camuflador.
- E o trans universo?
- Ficará em alerta máximo, qualquer nave num raio de cem anos-luz de distância será captada e nós seremos imediatamente informados. Em caso de qualquer
ataque a você ou à sala de comando o trans universo imperial lançará um contraataque imediato ao inimigo.
- Perfeito! Comece a descida imediatamente! Por incrível que pareça minha
dor de cabeça passou!
A sala de comando se soltara do resto da nave, tornando-se assim uma nave de
reconhecimento e uma base para Pan-noa. A nave entrara na atmosfera do planeta e
se aproximava da cidade.
Pan-noa não acreditava no que via enquanto a sala de comando circundava a
cidade.
- Pessoas sendo transportadas por cavalos! Veja, eles têm miliciantes ali em
cima das torres. Kenn, veja: as pessoas estão se aglomerando naquela praça.
Então a alegria de Pan-noa acabou como por encanto. Ele vira um homem
sendo arrastado e amarrado em um poste. Alguns instantes depois o homem estava
morrendo queimado e todo o povo em volta berrava de alegria diante da cena.
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- Bem-vindo a idade das sombras. – Disse Kenn.
- Vamos estacionar a nave próximo da cidade. Estamos com a camuflagem
máxima?
- Sim, ninguém pode nos ver desde que deixamos o trans universo imperial.
Pan-noa, espero que você saiba que esta roupa de proteção é de última geração. Além
de levitação, ela possui camuflagem tornando você praticamente invisível além de
armas e micro mísseis.
- Sim Kenn, eu ouvi falar sobre ela. Schaia III usou exatamente a mesma
quando desceu de sua nave no planeta Azul. Mas foi bom você ter me lembrado.
Agora devo traçar algum plano?
- Primeiramente devo implantar em sua pérola-cubo a maneira que estas pessoas se comunicam. Consegui captar algumas falando e consegui o padrão da língua.
Você poderá expressar suas ideias na sua própria língua, a pérola-cubo irá traduzir
imediatamente.
- Perfeito.
- Segundo, devo lembrá-lo que você ainda é uma criança, tente fazer o que as
crianças fazem. Não se esqueça que você tem uma inteligência de talvez mais de dez
mil anos além das pessoas que habitam este mundo, porém, cuidado, às vezes culturas
primitivas podem surpreender. Acho que a melhor coisa a fazer é ir a uma escola.
Acredito que eles devem ter uma. Não sei o que esperar deste planeta, mas devemos
ter esperanças que o programa de Schaia III não tenha interrompido a conquista de
novos planetas, caso contrário, estaremos perdidos aqui para sempre.
Pan-noa baixou a cabeça ao perceber sua realidade. Mas então olhou para fora
da nave e viu a estranha construção à sua frente.
- É como voltar ao passado. Uma experiência única! Devo aproveitar. Só gostaria de saber porque o destino gosta de me por em tais enrascadas.
Pan-noa vestiu a roupa protetora que imediatamente tomou forma e cor de
seu corpo. Foi até seu guarda-roupa, parou em frente às roupas de última moda em
seu planeta e pensou. “E agora? Se eu sair vestido assim vou ser queimado imediatamente.” Então teve uma ideia: suas fantasias de festa de passagem de ano! Sim, sua
mãe teria colocado algo em algum lugar. Foi ali que achou uma fantasia que lembrou
muito o personagem do livro O Mago de Prata. “É isso. Uma calça, e por cima um
manto, logicamente não prateado, mas apenas um manto que cubra minha cabeça e
reserve meu rosto em sua sombra. Perfeito!”
- Kenn? Você tem um descaracterizador de identidades aí, não tem?
- Sim, o que você tem em mente?
- Que tal cabelos compridos e brancos até a cintura com duas tranças, olhos
azuis e pele queimada pelo sol?
- Vai ficar uma beleza! Entre na câmara de banho ali atrás, vamos ver o que dá
para fazer.
Quando Pan-noa se olhou no espelho riu muito.
- É isso! Uma pessoa pequena, escondida num manto. Vão pensar ser um mensageiro de Deus ou qualquer coisa parecida. As tranças deram um toque fenomenal!
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Acho que vou começar a gostar deste visual.
Porém, neste momento sua animotatoo fez um emaranhado de linhas abstratas
perfeitamente simétricas dos dois lados de seu rosto. As linhas começaram a dançar
formando padrões de desenhos em espirais hipnóticas, variando de prata a azul num
dégradé incrível. Pan-noa ficou chocado. Abriu então o manto e a tatoo começou a se
expandir por todo o seu corpo. Ele olhava fascinado para as formas que iam se modificando. Então Pan-noa começou a tentar interferir nas formas, utilizando o mesmo padrão de imagens, conseguiu domar a tatuagem até que esta terminou em um pequeno
reflexo prateado dentro de suas duas pupilas.
Pan-noa ainda se olhava perplexo no espelho e reparou em algo que jamais
reparara antes ou, se reparara, aquilo que jamais havia despertado seu real interesse:
era a sua beleza. Olhou novamente dentro de seus olhos, captando o último resquício
de luz deixada pela animotatoo. “Acho que estou começando a ficar bom nisso”. Pensou, virou-se e percebeu que nenhum sinal dos comandos se manifestara perante
seu pequeno show. Mas então:
- Pan-noa. – Disse Kenn. – Estamos contatados via pérola-cubo. É só mandar
o impulso do seu pensamento para a pérola-cubo que ela me transmite, está bem?
- Está ótimo, quero informações do planeta inteiro, o que você conseguir
através dos “mini satélites”. Mapas, situação atmosférica, terremotos, furacões, enfim,
tudo.
- Boa sorte Pan-noa.
A escotilha externa se abriu. Pan-noa teve uma descarga de adrenalina e enviou uma mensagem via pérola-cubo para que sua roupa de proteção flutuasse. Saiu
em um voo rasante da nave. Seu corpo sentiu o impacto do frio do local. Mas logo a
roupa protetora fez a inversão térmica, deixando o corpo do menino em temperatura
confortável.
Pan-noa olhou para cima e viu o céu acinzentado. “Bem-vindo à era das sombras” - disse a si mesmo. Tocou o solo com os pés e teve o imenso prazer de saber
que estava bem protegido. A roupa protetora não deixaria nada penetrar em sua pele
e quanto aos seus pés, estavam bem confortáveis, mesmo parecendo estar pisando
diretamente no solo.
Começou a caminhada até a cidade. Era bem mais longe do que imaginava.
A reunião
Os três guerreiros comeram sopa. Estavam famintos e aquilo parecia um banquete. Nenhuma das crianças do local falava com eles. Nem mesmo olhavam para eles.
Eles eram diferentes. Coisa que talvez tenha passado desapercebida pelas mulheres
que cuidavam do local, mas não passaria pelas crianças. Não era apenas o cabelo,
branco demais e curto demais, nem mesmo a cor da pele extremamente morena, nem
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as marcas da musculatura, forte demais para crianças mas sim os olhos. O olhar. Um
olhar negro, de um breu total. Coisa que arrepiava. As outras crianças se afastaram
e, na hora de dormir, deixaram os três guerreiros num canto do dormitório, sozinhos.
O poder aguçado de audição dos três fez com que ouvissem algumas conversas
nas camas ao longe. De todas uma interessou mais.
- ...uma reunião. – Dizia um menino. – Quando fui buscar a lenha ouvi dois
soldados conversando. Parece que capturaram dois do povo do norte, do povo que
matou os que foram buscar o tal tesouro. Vão fazer uma reunião para saber sobre este
tesouro. Estão chamando os das cidades vizinhas, querem vingança. Disseram que
vão queimar estes dois que foram capturados hoje a noite mesmo. E sabe do que mais?
Esses estranhos que foram capturados...sabe como eles são? Cabelos curtos, olhos
negros e muito fortes...
Então, na réstia de luz azulada que banhava o dormitório os guerreiros puderam ver três ou quatro cabecinhas olhando para eles. Os três esperaram e viram
pelas grades da janela uma nuvem escorrer no céu escuro e apresentar a todos da
região uma lua de soberba magnitude.
Quando todas as crianças do dormitório finalmente dormiram, três pares de
olhos brancos cruzaram o recinto sem som algum. Pularam para as vigas que sustentavam o telhado e se foram pelos labirintos da construção mal vigiada.
As ruelas escuras não eram problema. Na verdade, era a ajuda de que precisavam. Com o olhar ampliado pela ajuda da Deusa os três se espreitaram em sombras e
buracos até chegar na praça central, agora tomada por uma feroz multidão. Uma voz
falava em cima de um palanque. Os três eram muito pequenos para enxergar, então
subiram em uma construção na lateral da praça e nas sombras fizeram seu refúgio.
Perplexos, viram Mabele e Claia, mãe e filha, amarradas em postes com montes de
lenha abaixo de seus pés.
- Temos que salvá-las. Elas foram capturadas, não são traidoras.
- Mabele é minha mãe. Disse Milos. – Devemos salvá-las agora.
Mas então o orador da cerimônia falou.
- Pela última vez bruxa! Verás sua filha ser queimada se não disseres o que é e
onde fica o tesouro.
Então Claia, filha de Mabele disse:
- Não faça isso por mim, mãe. Lembre-se a Deusa é mais importante para
todos inclusive para este povo imundo.
As palavras caíram como um trovão nos ouvidos da multidão. “Queime a
bruxa” - disse um deles.
- Prometa salvar minha filha. – Disse Mabele.
- Não mãe!
- Sim, prometo. – Disse o orador com uma tocha na mão.
- Então solte-a! Solte-a agora que eu falo.
- Soltem a bruxinha! – Berrou o orador.
A menina mordeu a mão do homem que a soltou e saiu como louca pela multidão. Alguém a segurou, no entanto, Mabele pensava que sua filha estava livre.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Ao norte atrás das montanhas brancas existe uma montanha, a mais alta de
todas, lá existe uma flor, esta flor é o segredo de um tesouro incalculável, o segredo
até mesmo da vida. Porém se esta flor morrer...
- Balela de bruxa. – Gritou alguém. – Queime-a
Neste momento o orador ateu fogo nas mais próximas lenhas aos pés de Mabele, o fogo se expandia devagar. Claia gritou no meio da multidão e Mabele começou
a se contorcer para salvar a filha. Milos, de cima do telhado não aguentou ver a mãe e
a irmã neste estado. Pulou seguido por Litri e Clia.
A reunião sob o olhar de Pan-noa
Pan-noa chegou na cidade ao entardecer. Os soldados o saudaram como se
ele fosse um convidado ilustre. “Até agora tudo bem”. Seguiu em frente admirando a
arquitetura da cidade. “Janelas com ferro retorcido. Exatamente como eu imaginei”.
Os telhados pontudos, ora negros ora muito acinzentados, davam um contraste mórbido ao céu cinzento que ia perdendo a já pouca luz existente. “Parece que entrei num
mundo preto e branco”. Realmente existia pouca cor naquele lugar. Um sentimento
quase de angústia se retorceu no estômago de Pan-noa.
Logo deparou-se com uma enorme praça. Viu que estavam construindo um
grande palanque. Pan-noa decidiu tentar investir em alguma comunicação para ver se
Kenn tinha feito a tradução do padrão de voz corretamente.
- O que temos para hoje à noite, camarada? – Perguntou Pan-noa ativando o
tradutor simultâneo de sua pérola-cubo.
Um homem alto e barbudo virou-se e olhou para baixo, arregalou os olhos e
disse muito alto.
- Olhem o que temos aqui! Um forasteiro do leste! De onde és irmão, de
Flamirnas ou Flancosra?
- Ah! Morei em vários lugares. – Respondeu Pan-noa satisfeito com o investimento que fizera surrupiando esta pérola-cubo em particular. – Mas nasci em Flamirnas.
- Tanto melhor. – Disse o barbudo. – Teremos um espetáculo, aprisionamos
duas bruxas do norte, aquelas que dizimaram nossos homens da busca do tesouro!
Que eu bem me lembre, tinha um dos seus nesta empreitada. Seu nome era...
Pan-noa viu que era uma boa chance de provar que ele realmente tinha vindo
de Flamirnas. Buscou então na memória do barbudo usando a pérola-cubo.
- Frintas! – Disse Pan-noa surpreso.
- Isso mesmo o pobre Frintas. Mas veja forasteiro, porque não se refresca com
um bom trago de Klandras? Te digo que é a melhor cerveja da região!
- Deve ser mesmo. – Disse Pan-noa indo na direção que o barbudo apontara.
Quando Pan-noa entrou na taverna, todos olharam para ele em busca de algum
conhecido que viera para a reunião. Como ninguém o reconheceu o próprio taberneiro
gritou.
- Aqui camarada, tem um banco aqui. É do leste não é? Talvez de Flamir226
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
nas...- Pan-noa foi se sentando enquanto o taberneiro continuava. – Sabe, ninguém de
Flarminas chegou ainda.
- Estava viajando. – Disse Pan-noa. – O que está havendo?
- Ah! Uma grande balbúrdia. Sabe, algumas cidades amigas se juntaram para
ir ao norte, pois chegaram notícias de um grande tesouro por lá. Algumas luas mais
tarde, apenas um dos nossos voltou, sem as mãos e morto. Todos os outros devem
ter morrido também. Sabemos que existe um povo que mora ao norte. Um povo de
bruxos. Imagine que eles não rezam para Klaia-am! Não é um absurdo?
- Que barbaridade! – Disse Pan-noa se divertindo.
- Então soubemos que foram estes bruxos do norte que aniquilaram nossa comitiva. Bem, agora vamos juntar nossos exércitos e exterminar os desgraçados e vamos, ainda, achar o tal tesouro que eles tanto prezam.
Pan-noa estava atônito! “Kenn! Estou no meio de uma guerra da época das
sombras!”
“Cuidado Pan-noa isso não é um seriado da tele. Estou captando massas de
pessoas indo para onde você está, além disso, no norte começou uma grande euforia
natural, parece que a atmosfera enlouqueceu por lá.”
“Fique atenta a isso. Deixe que eu me viro por aqui. A propósito, posso experimentar esta cerveja?”
“De maneira nenhuma! Mesmo que o traje protetor possa te salvar de alguma
toxina, quero você atento para os próximos acontecimentos.”
- Ei taberneiro! – Gritou Pan-noa. - Uma cerveja!
- É pra já. A primeira é por conta da casa!
- Obrigado.
Pan-noa tomou a cerveja e saiu da taverna, prometendo ao taberneiro que
voltaria. A cerveja era forte e o deixou em estado de alegria. Mas ele resolvera investigar a coisa toda. Na verdade, a praça já estava ficando cheia e o palanque já estava
montado. Então, alguns soldados passaram por ele e depois mais alguns segurando
uma mulher e uma menina. Elas estavam amarradas. Pan-noa ficou chocado. “Então
essas são as bruxas?” A mulher e a filha eram lindas! Tinham cabelos brancos e muito
curtos, pele dourada do sol e olhos negros, extremamente negros. A filha olhou para
Pan-noa com olhar de súplica. Pan-noa ficou atônito. “Devo fazer alguma coisa.” Ele
deu a volta na praça, correndo. Estava já muito escuro. “Kenn, visão noturna.” Agora
Pan-noa via tudo como se fosse dia. A mulher e a criança foram amarradas aos postes.
“Eles vão queimá-las!”. Gritou Pan-noa para si mesmo.
Pan-noa olhou para o lado e viu três figuras mais ou menos de seu tamanho
se escondendo pelas sombras, elas não o perceberam. O orador começara a falar mas
Pan-noa resolvera seguir as figuras: cabelos brancos e curtos, pele queimada! “São do
mesmo povo daquelas que vão ser queimadas”. Pensou. Então ficou abismado com
o pulo que os três deram para alcançar o telhado de uma grande construção. Se não
fosse pela visão que Pan-noa estava utilizando, jamais veria estas três criaturas, tal
era o modo como se moviam. Então, quando elas estavam paradas observando o que
ocorria na praça, Pan-noa finalmente percebeu. “Mas são três crianças!”
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
“Muito bem agora chega. Acho melhor eu ficar preparado.” Pan-noa tirou a
capa, a calça e colocou sua roupa protetora em estado de camuflagem. Agora ninguém
conseguiria vê-lo. Pan-noa flutuou para cima das crianças que estavam escondidas nas
sombras do telhado e observou. Porém estava tendo problemas com o flutuador. Demorou um pouco para adaptar-se à gravidade do planeta. “Ótimo, finalmente.” Mas,
alguns fatos ele havia perdido. Quando percebeu a mulher já estava em chamas, as
crianças já estavam indo em direção à multidão e ele resolvera ir atrás delas.
Milos conseguiu chegar até sua mãe que lutava desesperadamente para se salvar. Num salto que deixou Pan-noa e toda a multidão abismada, derrubou o poste em
que sua mãe fora amarrada, mas quando caiu toda a massa de fogo caiu em cima deles.
Quando todos perceberam que estavam sendo atacados, abriu-se um espaço no
qual estavam Clia e Litri, um de costas para o outro, com punhais nas mãos. Então um
homem veio em direção a eles com a menina Claia no colo se debatendo.
- Vejam o que nós fazemos com bruxos aqui. – Gritou o homem. – Levantou a
pequena Claia no ar e atirou-a na fogueira onde jaziam Milos e sua mãe.
Pan-noa caiu no chão, chocado com a cena. Mas logo foi tomado de uma fúria
abismal. Levantou-se e percebeu que estava no meio do círculo junto às crianças.
Então, num ataque de fúria ordenou: “Desligar camuflagem”. O aparecimento de uma
pessoa dentro do círculo foi um impacto tanto para a multidão em volta quanto para
as crianças.
- Mais um bruxo! Vamos pegá-lo! – Gritou alguém.
Mas ninguém se mexia. No corpo de Pan-noa surgiram diversos demônios, os
mais aterrorizantes possíveis, um se engalfinhando ao outro com um efeito de realismo fantástico.
- Vejam não é um bruxo mas vários demônios! – Gritavam um para o outro.
Pan-noa olhou para as crianças aterrorizadas mais com ele do que com a
própria multidão e passou uma mensagem telepaticamente utilizando-se da pérolacubo: “Eu vou ajudar vocês, confiem em mim.” Litri e Clia se olharam e fizeram que
sim com a cabeça. Mas a multidão estava eufórica demais. Agora eles queriam matar
os demônios e vieram em direção a Pan-noa e às crianças com facas e paus nas mãos.
Pan-noa abraçou Litri e Clia pela cintura e simplesmente levantou voo. A multidão
efervesceu em urros de horror. Já há uns dez metros de altura, Pan-noa lançou dois
micro foguetes de impacto moral bem no centro de onde o palanque pegava fogo com
os corpos de Milos, Mabele e Claia. Houve uma explosão enorme. A multidão saiu se
atropelando, em pânico.
Pan-noa afastou-se imediatamente para a sala de controle com Litri e Clia nos
braços. Os dois estavam paralisados de medo, agarrados no pescoço de Pan-noa. Antes de entrar na nave Pan-noa pensou. “Estou num mundo de loucos!”.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
O mistério da Deusaflor
As duas crianças estavam deitadas em uma cama confortável. Era uma sala
no interior da cabine de controle que servia como uma pequena enfermaria. O branco
imperava neste local.
Litri e Clia estavam voltando a si após o efeito dos calmantes que Pan-noa administrara a eles. Os dois continuavam deitados mesmo depois de estarem totalmente
conscientes. Pareciam estar tristes, mas não tristes o suficiente a ponto de demonstrar
a perda dos amigos.
Pan-noa não sabia o que dizer. Estava em frente a dois seres humanos com um
aspecto que jamais vira em toda sua vida. Ele percebeu como os traços musculares
daquelas crianças eram fortes.
Litri olhou para Clia indagando-a com os olhos. Clia era um pouco maior que
Litri mas os dois eram menores que Pan-noa. Então Litri tomou a iniciativa. Sentou-se
na cama e, neste momento, Pan-noa, por reflexo, afastou-se um pouco. Imediatamente
algumas flores começaram a subir por seu pescoço, como que estivessem nascendo
muito depressa. Litri arregalou os olhos e Clia sentou-se rapidamente falando:
- Você é uma espécie de Deus? Foi a Deusa que mandou você para nos proteger?
Pan-noa fez com que as imagens da tatuagem desaparecessem.
- Eu sou um garoto, uma criança como vocês. Sei que talvez vocês não entendam isso mas sou de outro mundo, outro planeta.
- Outro planeta. – Repetiu Litri como se a palavra não existisse para ele.
- Venham, acho que está na hora de mostrar algo a vocês. Conseguem se levantar?
Os dois estavam apenas vestidos com trapos sujos que mal cobriam seus corpos. Então Pan-noa falou.
- Acho que antes de qualquer coisa um belo banho cairia bem por aqui. O que
vocês me dizem?
- Estamos perto de algum rio? – Perguntou Clia.
- Não exatamente.
- Há! Você tem aquele lago muito pequeno que cabe dentro de uma sala e a
água é muito quente!
- Digamos que eu tenho uma pequena cachoeira da qual corre água quente...
Os guerreiros olharam-se satisfeitos. Embora tenham presenciado uma cena
horrorosa antes de entrarem naquele lugar onde estavam, eles pareciam estar muito
calmos, além de emanar uma ingenuidade fora do comum.
- Vocês podem me chamar de Pan-noa. Como devo chamá-los?
- Eu sou Litri e esta é Clia. Somos guerreiros e defensores da Deusa. Viemos
do norte, a pedido de nossa tribo...
Neste momento Clia encostou seu dedo no ombro de Litri que imediatamente
parou de falar. Parecia que eles estavam em alguma missão secreta.
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- Vejam. – Disse Pan-noa. – Vocês podem confiar em mim. Não quero seu
mal, nem quero nenhum tesouro, pois de nada valeria para mim. Mas se vocês querem
guardar segredo sobre o que fazem, eu não me importo.
Pan-noa abriu a porta da enfermaria. Os dois tiveram um sobressalto ao olharem a sala de controle. Mesmo com Pan-noa lá dentro os dois não se mexeram.
- Ei! – Disse Pan-noa. – Vão ficar aí o dia inteiro?
Então os dois vieram muito devagar e ficaram realmente abismados ao olharem para a grande sala oval, cheia de luzes e cores mirabolantes a seus olhos.
- Isto é o seu mundo? Quero dizer, seu planeta? – Perguntou Litri boquiaberto.
- Não! Isto é um pedaço de meu trans universo imperial!
Os dois olharam-se abismados.
- Venham, vocês vão tomar banho e, enquanto isso, eu vou preparar algo para
vocês vestirem e comerem.
Pan-noa pôde ouvir os berros de alegria além de muita cantoria dos dois vindos
da sala de banho. Ele deixou dois uniformes brancos e foi falar com Kenn.
- Espero que tudo esteja certo Kenn. O que você me diz?
- Fora adotar duas crianças alienígenas sem ter passado por um exame médico
prévio, ter causado um alvoroço de proporções em uma guerra intergaláctica numa
pequena vila de um planeta perdido que vive na era das sombras....acho que o resto
está indo muito bem!
- As crianças portam algum tipo de doença desconhecida por nossa civilização? – Indagou Pan-noa insatisfeito consigo mesmo por ter cometido tamanho erro.
- De maneira nenhuma. São saudáveis até demais e mesmo que não fossem a
sua roupa protetora acusaria algum mal. Para falar a verdade, seus corpos são muito
mais resistentes que os da sua raça.
- Eles são de outra raça? - Pan-noa agora se surpreendeu com um sorriso.
- É uma raça muito semelhante à humana, mas definitivamente eles não são
humanos. Eles sofreram alguma mutação durante a evolução da espécie.
- Eu deveria ter imaginado. O que você aconselha para a alimentação?
- Vamos experimentar alguns tipos de frutas e depois você pode propor algum
tipo de carne. Não estou certa de seus hábitos alimentares.
- Está bem. Começaremos com frutas. Pode preparar alguma coisa não muito
estranha?
Os dois entraram na sala de controle de novo. Pan-noa assustou-se com a beleza daquelas “pessoas” à sua frente, trajando um impecável uniforme branco, de tecido
leve.
- Você estava falando com alguém, Pan-noa? – Perguntou Clia um pouco
desconfiada.
- Sim. Mas antes de eu explicar tudo, venham, sentem-se aqui.
Pan-noa levou-os a um sofá que fazia um grande semicírculo em cujo centro havia uma mesa redonda onde Kenn havia preparado vários pratos com as mais
variadas frutas cortadas em tiras. Os dois guerreiros ficaram impressionados com disposição da comida e não pediram permissão para comer. Pan-noa ficou satisfeito e
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começou a comer junto.
- Vejam... – Começou Pan-noa um pouco tenso. - O que eu vou mostrar a
vocês não é mágica nem feitiços nem coisas que os deuses mandam. Existe uma palavra para isso: chama-se tecnologia e é de última geração! – Concluiu empolgado.
Os dois olharam-se inquietos com a explicação de Pan-noa, mas pareciam estar
aceitando bem.
- Olhem. - Pan-noa prosseguiu. - Estão vendo aquelas placas pretas ali, ali e ali
e lá, lá e lá? - Pan-noa indicou com o dedo os monitores agora desligados.
Os dois olharam para as placas sem muita admiração.
– Pois bem, ali eu vou fazer aparecerem imagens para poder explicar melhor
de onde eu venho e quem sou eu. Vocês vão ouvir a voz de uma graciosa dama, ela é
minha amiga, mas não é de verdade ela é.... Bem .... Ela fica dentro dessas máquinas
que vocês veem piscar e me ajuda a controlá-las está bem?
Os dois pareciam compreender à medida que se empanturravam de frutas.
- Kenn? Vamos começar, não exagere no volume.
Então, para total espanto dos dois guerreiros, a voz suave e feminina de Kenn
começou a apresentar o que poderia ser um cartão de visitas do planeta natal de Pannoa, Kalum Br. Mostrou como era o castelo de Pan-noa e como ele vivia, como o povo
do planeta vivia, mostrou que havia outros planetas que faziam parte do Império de
Schaia III e, finalmente, depois de horas de narrativa mostrou como Pan-noa havia
chegado neste planeta e como estava preso ali.
Os dois estavam digerindo as explicações no mais absoluto silêncio. Porém,
logo que as explicações terminaram, Clia fez algo absolutamente inesperado. Levantou-se do sofá, caminhou em direção a Pan-noa tomou seu rosto nas mãos e beijou-o
na testa. Pan-noa teve um pequeno espasmo de satisfação.
- Seja bem-vindo Pan-noa! Você nos salvou a vida e nós nem pudemos te
agradecer ainda. Porém, agora que sabemos quem e o que você é contaremos a nossa
história.
Então, Pan-noa ficou de pé e pediu para Clia esperar pois tinha algo a dizer.
- Vejam, eu tive uma ideia. Kenn mandou, antes de eu chegar aqui, várias
máquinas que podem mandar imagens do seu planeta. Elas estão espalhadas lá no
céu. - Pan-noa esticou sua mão para cima. – Então, à medida que vocês falarem sobre
de onde vocês vieram, nós poderemos localizar os lugares dos quais estão falando e
mostrar aqui, nos nossos monitores!
Clia estava alarmada! Já Litri babava um pedaço de fruta vermelha que escorria de sua boca para seu, já não tão impecável, uniforme.
- Bem acho que vocês não entenderam. – Disse Pan-noa. – Vamos tentar. Faça
o seguinte Clia, tente se lembrar do caminho por onde vocês vieram desde que vocês
partiram.
Litri e Clia começaram a pensar em suas jornadas. Enquanto isso, Kenn captava estas informações diretamente da mente das crianças. Como a área em que estavam pensando não tomava um espaço tão grande no planeta, Kenn programou para
que alguns satélites daquela área comparassem o que havia na mente das crianças com
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o que era a realidade geográfica do planeta.
Os dois guerreiros estavam de olhos fechados quando os satélites mandaram
a planta da área do planeta por onde eles tinham andado. Além disso, os satélites
comunicaram-se com os outros satélites e determinaram uma varredura total. Agora
eles tinham a exata localização de onde estavam no planeta e uma planta geográfica
detalhada. Pan-noa deu-se por satisfeito.
- Muito bem Clia e Litri, podem abrir os olhos. E pela primeira vez na história
de sua cultura, vislumbrem a sua verdadeira casa!
Era apenas uma bola alaranjada, muito pálida, que se misturava a tons de verde
azulado.
- Bem. – Disse Pan-noa. – O que vocês acham? Este é o seu planeta.
Os dois guerreiros olharam fascinados para os enormes monitores.
- E se quiserem, podem saber onde estão. Kenn, vamos fazer uma tomada em
espiral. Faça uma volta pelo planeta inteiro até chegar na sala de comando. A propósito quando chegar peça ao satélite que forneça uma imagem interna da nave para que
possamos nos ver nos monitores.
Então aconteceu algo que os guerreiros jamais puderam imaginar em suas
pacatas vidas. Um dos pequenos satélites entrou em velocidade hiper sônica na atmosfera do planeta e com um voo rasante deu a volta inteira ao redor do planeta,
mostrando montanhas, lagos, florestas, plantações, cidades, vilas...até que finalmente
a velocidade do satélite baixou dramaticamente até chegar a uma pequena colina onde
estava a imagem de três pessoas dentro de uma sala cheia de luzes piscando. Eram
eles mesmos!
- Somos nós! – Gritou Litri abanando os braços para comprovar olhando-se no
monitor à sua direita. – Somos nós! Veja Clia. A tal máquina voou pelo planeta inteiro!
Lá do céu e chegou aqui!
- Muito bem Kenn. – Disse Pan-noa. – Voltar espião.
A imagem deles sumiu dos monitores, mas Clia e Litri ainda estavam fascinados.
- Agora que vocês já sabem o que podemos fazer e saber, pode começar sua
história. Lembrem-se que podemos visualizar por onde vocês andaram nos mapas. E
além disso podemos ver sua vila ou suas casas, ou cavernas ou...
Clia porém estava um tanto preocupada. Quando Litri olhou para ela, esperando alguma coisa, notou que algo estava realmente errado.
Clia olhou muito sério para Pan-noa e perguntou.
- Com isso nós podemos localizar a Deusa não podemos?
- Bem, teoricamente. Se a Deusa viver neste planeta. – Respondeu Pan-noa
um pouco assustado com a cara da menina.
- Litri! – Disse Clia sorrindo. – Estamos salvos! Poderemos achá-la antes dos
outros e salvá-la.
- Ei esperem um pouco! – Disse Pan-noa. – Que espécie de Deusa é esta?
Vejam, eu não quero entrar no mérito se Deus é homem ou mulher nem se acredito
em Deus ou não, mas não quero me meter em assunto religioso. Isso dá cagada e das
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feias!
Clia levantou a mão para que Pan-noa parasse de falar.
- Você com esta máquina pode ler minha mente não pode? – Perguntou Clia.
- Sim posso. – Disse Pan-noa como se fosse a coisa mais normal do mundo.
- Pois então faça com que ela leia o que estou pensando agora.
- Kenn?
- Estou preparada. – Disse Kenn.
Então apareceu algo fantástico nos monitores. Pan-noa ficou completamente
pasmo perante tal imagem.
Era uma flor fechada em tons de azul claro. A flor tinha um pequeno caule que
brotava de cima de uma pedra negra, brilhante e que refletia as cores da flor de forma
sobrenatural. A flor estava completamente fechada e então começou a mudar de cor:
do azul pálido foi escurecendo passando por tons de azuis jamais imaginados por Pannoa. O reflexo na pedra era avassalador. Então a flor tornou-se prateada com tons de
azul-escuro percorrendo seu caule e suas pétalas ainda fechadas.
Pan-noa achou tudo muito bonito, mas teve que sentar-se pois quando menos
esperava ela desabrochou e enquanto as pétalas se abriam, uma pequena figura apareceu de dentro da flor. Estava de costas. Pan-noa arregalou os olhos e, quando a figura
virou-se para ele, teve uma sensação que jamais tivera em toda sua vida. Era o corpo
de um pequeno ser humano, assexuado, inteiro prateado, do qual emanava uma luz
celestial. De uma beleza absurda, a figura estava olhando diretamente para seus olhos.
Ela simplesmente não tinha cor! Ela era algo como prata muito cromado que refletia
seu próprio prateado! Mas o mais aterrador era seu olhar. Um olhar tão angelical e, ao
mesmo tempo, diabólico... Então uma das pétalas da flor soltou-se e quando atingiu o
chão a flor fechou-se novamente e a imagem sumiu.
Clia estava chorando. Litri viera socorrê-la, mas Pan-noa ainda estava sentado
e, para seu espanto, a primeira coisa que veio em sua cabeça foi uma figura que ele
não suportava nem pensar ultimamente. O Mago de Prata.
Pan-noa ficou por muito tempo parado, pensando. Clia e Litri estavam assustados com a reação de Pan-noa. Foi Kenn quem quebrou o silêncio.
- Devo mostrar mais uma vez a última imagem Pan-noa?
- De maneira nenhuma, apenas guarde nos arquivos. Preciso reler aquela merda daquele livro de novo. Mas antes. – Olhou para os guerreiros que aguardavam
solenemente alguma decisão de Pan-noa. – O que vocês querem exatamente?
Então Clia começou finalmente a contar sua história e de Litri.
Era fascinante como Clia conseguia imaginar as etapas de sua vida junto a Litri
e Milos que agora estava morto. Ela simplesmente pensava nos fatos de maneira tão
detalhada que era impossível para Kenn perder alguma coisa. Foi então, ouvindo a
narração de Clia junto às imagens de sua memória e à localização geográfica de cada
ponto da narrativa que Pan-noa ficou sabendo da existência de uma flor que desabrochava em ciclos e que ninguém conseguia entender. Soube também que existia um
povo, chamado de bruxos do norte ou guerreiros do norte, que tinha estranhos poderes
e eram guardiões da Deusa, a flor. Soube onde morava este povo, como vivia em total
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
harmonia com a terra e que eram praticamente nômades. Soube que alguns foram
expulsos por terem violado leis sagradas e juraram vingança, indo até os povos do sul
para contar sobre a Deusa, os tesouros e minérios que estão em volta dela.
E, finalmente, soube que vários guerreiros haviam partido para os quatro cantos do mundo com o dever de achar desertores e minar o caminho até a Deusa na esperança de salvá-la de qualquer intruso. Apesar de ser extremamente poderosa enquanto
desabrochada, ela era muito frágil quando fechada. Durava apenas o tempo da queda
de uma pétala no chão para abrir e fechar.
Pan-noa estava fascinado. Porém Clia e Litri estavam muito cansados. Eles
queriam dormir para traçar planos para o dia seguinte.
- Então. – Disse Pan-noa. – Antes de nós dormirmos vamos comer algo de
verdade. Espero que vocês gostem. Isso é muito popular em meu planeta. Kenn! Sanduíches de peixes com folhas multicoloridas!
Todos os três se deliciaram com os sanduíches e foram deitar. Pan-noa no entanto custou a dormir. Sabia que estava se metendo em uma grande enrascada.
- Na maior da minha vida. – Disse e dormiu.
O Mundo Menor
O alerta da nave estava tocando.
- Temos uma emergência de terceiro nível. – Disse Kenn acordando as três
crianças. Pan-noa levantou-se num pulo.
- Por favor, desligue este alarme Kenn! Vai matar nossos convidados de susto.
E realmente Litri e Clia estavam assustados.
- O que está acontecendo? – Berrou Litri.
- Já vamos descobrir. Kenn, por favor, não faça suspense!
- Movimentação humana Pan-noa. Enormes massas deslocando-se para a cidade.
- Já temos imagens?
- Sim. Agora temos.
Então Kenn contatou os satélites e nos vários monitores da sala de controle, os
dois guerreiros e Pan-noa puderam ver a imensa massa de pessoas indo em direção à
cidade.
- De onde vem tanta gente? – Perguntou Pan-noa abismado.
- São exércitos. – Explicou Kenn. – Exércitos das cidades vizinhas. Pelo jeito
eles estão com medo. Viram o poder que demonstramos na nossa última visita à cidade
e resolveram atacar o perigo ou, quem sabe, os desertores conseguiram convencê-los a
buscar o tesouro.
- Ou, as duas coisas juntas. – Disse Pan-noa.
Pan-noa notou, abismado, como estas pessoas iriam guerrear. Estavam munidos de espadas e todo tipo de artefato primitivo que ele jamais imaginara poder existir.
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- Eles só podem estar brincando. – Disse Pan-noa sorrindo. – Kenn como você
analisa isto?
- Temos um grande problema Pan-noa. Estamos com equipamento bélico muito superior, mas não podemos usá-lo em uma guerra de terceiros. É contra o código
do Império tomarmos partido de uma ou outra cultura fora do Império, a não ser que
a vida de algum súdito do Império esteja correndo risco.
- Bem acho que eu sou um súdito do Império e estou bem no meio do caminho
de uma guerra, você não acha?
- Teoricamente não. Você não faz parte da guerra. Atacar qualquer destes povos é algo que vai contra minha programação.
Então Clia deu um passo à frente.
- Nosso povo é muito mais forte do que estes pedaços de carne com facas e
espadas. Temos o poder da Deusa. Acredite, você não precisa se preocupar em salvar
meu povo. Temos que nos preocupar agora em proteger a Deusa, pois enquanto nosso
povo se defende, não terá tempo de proteger a Deusa.
- Perfeito. – Falou Pan-noa. – Acho que o que devemos fazer é saber o que
estes loucos estão pretendendo e então tomar alguma decisão. O que vocês acham?
- Sim eles estão chegando rápido à cidade. – Respondeu Litri. – Logo vão se
reunir e sair feito loucos para o norte numa cassada sem pé nem cabeça.
Pan-noa estava começando a ficar fascinado com a inteligência das crianças.
Então percebeu algo que o deixou com muito medo.
Olhou para Litri e Clia. Os dois pareciam estar hipnotizados. Olhavam não
para os monitores, mas para as grandes janelas retangulares da sala de comando. Era
uma manhã bonita. A estrela daquele sistema deveria estar atrás da nave, no céu, para
aonde as crianças olhavam. Era uma enorme lua cheia quase que desaparecendo em
meio ao branco azulado do céu. Pan-noa voltou-se para as crianças de novo e deu um
passo para trás. Seus olhos estavam brancos! Totalmente brancos! Pan-noa quase caiu
para trás num passo em falso.
- Não tenha medo Pan-noa. – Disse Litri. – Estamos em contato com a Deusa.
É ela que faz aumentar nosso poder e mudar nossos olhos. Estamos no caminho certo.
Devemos esperar o inimigo se reunir e sair junto com eles na cassada. Seu caminho
já está minado, mas devemos chegar à Deusa antes deles. Lá Ela nos dará instruções.
Você deverá vir conosco. Como Ela sabe de sua existência eu não sei, é o poder Dela,
mas Ela deseja estar com você.
- Estar comigo? – Perguntou Pan-noa abismado. – Como, o que ela quer afinal?
- Não deve interrogar a Deusa, Pan-noa. – Disse Litri. - Na verdade deveria estar orgulhoso. São poucos os que podem vê-la. Mesmo na nossa tribo, somos
os únicos que a viram em muitos anos. Ela desabrocha de forma muito irregular. E
mesmo assim só os que são chamados que podem vê-la.
- Nossa! – Disse Pan-noa fascinado. – Espero vê-la mesmo.
Seu olhar estava na lua. Os dois guerreiros não se mexiam. Pareciam estar se
concentrando. Pan-noa percebeu ao longe muitas pessoas passando. Pediu a Kenn
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para virar a nave de modo que as janelas ficassem bem de frente para a cidade.
Ao final da tarde já havia muita gente reunida. Parecia um mar de gente! Então,
Pan-noa viu algo que o deixou alarmando: do lado direito da cidade, lá ao fundo, no
horizonte, ele viu pontos pretos se movendo no céu.
- Kenn! Rápido amplie aqueles pontos no céu, ali, do lado direito da cidade.
- Do lado direito e esquerdo você quer dizer?
Então Pan-noa ficou quase que histérico.
- Por tudo o que é mais sagrado! Não me diga que eles tem naves! Vamos
Kenn amplie a porra da imagem!
Então Pan-noa sentou-se de boca aberta. Os dois guerreiros nada diziam. Pareciam já prever tamanha catástrofe.
- São pássaros domados? – Perguntou Pan-noa ao perceber homens montados
em monstruosos animais com asas voando em direção a cidade.
Mas então para seu total espanto Pan-noa viu que um dos monstros, o que
estava mais próximo da cidade, soltou uma labareda de, pelo menos, cem metros de
comprimento. Então Pan-noa levantou-se num pulo e gritou.
- São dragões! Eles tem dragões!
- Eles são do oeste. – Disse Litri. – São bárbaros.
- É o povo mais temido que conhecemos. Os Olfranoas. – Completou Clia.
- Muito bem Kenn, acho que vou ter que me envolver nesta guerra para que
sua maldita programação permita usar nosso potencial bélico.
- Pan-noa, existe uma maneira de você usar em parte nosso material bélico.
Porém, estarei conectada o tempo inteiro com você. Caso algo aconteça o trans universo imperial lançará as defesas necessárias imediatamente, pois você estará correndo risco de vida.
- Ótimo, e qual é a parte de nosso material bélico que posso usar nesta jornada
suicida?
- Bem, o que você acha em usar um dragão infinitas vezes mais veloz do que
qualquer dragão ali fora?
Pan-noa pensou por um momento e então explodiu em alegria.
- Mas é claro! - Berrou Pan-noa assustando os dois pequenos guerreiros. – Vamos mostrar a eles?
Um buraco redondo começou a se abrir simetricamente no meio da sala de
controle e de lá de dentro surgiu um artefato vermelho, espelhado com a figura holográfica de um dragão em sua carenagem frontal. Os dois guerreiros ficaram assustados e fascinados com a aparição. Olharam para onde estavam as letras que cobriam o
dragão e em seguida para Pan-noa com olhar interrogativo.
- Aerojet Plasma! Drakunum Maximatrya. – Disse Pan-noa orgulhoso. - O
menor e mais veloz meio de transporte existente em todo o Império e transformado
em trans galaxial de guerra! Uma verdadeira obra-prima.
Os dois olhavam para a máquina que tomava boa parte da sala de comando,
fascinados.
- O que isto faz exatamente, Pan-noa? – Perguntou Clia assustada.
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- Bem vocês vão descobrir agora. Kenn? Os ajustes para a gravidade deste
planeta foram alterados?
- Está pronto para partir, Pan-noa.
Pan-noa abriu a carenagem superior de seu aerojet e os dois guerreiros puderam visualizar um assento vermelho em seu interior. Então Pan-noa mexeu em alguns botões e disse:
- Expandir para três assentos.
O comprimento do aerojet aumentou um pouco e Pan-noa abriu ainda mais a
carenagem mostrando dois novos assentos lado a lado e um pouco atrás do dele.
- Queiram sentar-se senhores. Coloquem seus cintos e preparem-se. Vamos
assustar alguns dragões.
Quando os três estavam sentados no aerojet, uma camada transparente trancou
os três lá dentro.
- Agora tenham calma está bem?
Ninguém ali atrás respondeu. Eles não tinham a mínima ideia do que ia acontecer. Mas começaram a ficar nervosos quando um buraco começou a ser aberto no
teto da sala de comando. Alguns segundos mais tarde eles estavam a quinhentos metros de altura, parados no ar.
- Pela Deusa! O que está acontecendo Pan-noa? – Gritou assustado e eufórico
o pobre Litri.
- Nós estamos voando.
Então Pan-noa posicionou a frente do aerojet em direção à cidade.
- Estão prontos? – Olhou para trás sorrindo e viu duas caras alucinadas. –
Ótimo: vamos lá!
O aerojet projetou-se em direção à cidade com uma velocidade extraordinária.
Vários dragões estavam sobrevoando a cidade e provocando alvoroço com suas baforadas de chamas, numa demonstração do mais puro exibicionismo. Pan-noa teve que
fazer algumas manobras para desviar deles. Isso sim causou um grande alvoroço na
cidade inteira. Porém, não menos alvoroço do que dentro do próprio aerojet. Os dois
guerreiros gritavam de pânico e felicidade ao mesmo tempo.
Pan-noa investiu umas cinco vezes da mesma forma, indo e voltando em velocidade abismal. Sua velocidade era tanta que as pessoas não conseguiam localizar
de onde vinha tal calamidade. Apenas enxergavam um vulto vermelho passando ora
por aqui ora por ali, deixando os dragões tão histéricos que começaram a investir um
contra o outro.
O aerojet zumbia como um inseto gigante que parecia estar ali comandado por
demônios. Era assim que o povo da cidade e os outros que haviam chegado viam a
cena.
A histeria tomou conta da cidade de tal forma que as pessoas começaram a
bater uma nas outras assim como os dragões que, já enlouquecidos, começaram a cair,
um a um, do céu, num apocalíptico entardecer.
Depois da brincadeira Pan-noa voltou para a sala de controle satisfeito.
- Acho que estes filhos das putas não sabem com quem eles mexeram! – Disse
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sorrindo.
Os dois guerreiros gargalhavam de tal modo que não conseguiam falar. Desceram do aerojet e foram verificar o estrago. Olharam pelas janelas da sala de controle
e ficaram assustados ao perceber que metade da cidade estava em chamas. Nenhum
dragão estava voando. As pessoas corriam para todos os lados. O caos fora implantado.
- Bom, ou vão ficar muito bravos ou com muito medo. – Disse Pan-noa sorrindo.
- Tanto melhor. – Disse Clia. – Quanto menos organizados estiverem para a
cassada, mais tempo teremos. A primeira coisa a fazer é avisar meu povo. Mas só depois de sabermos o que o inimigo irá fazer. Depois desse ataque a reunião será breve.
De fato as pessoas começaram a se reunir com urgência. Kenn mandara micro
espiões para que os três pudessem escutar o que estava ocorrendo.
Então, já à noite, as pessoas, segurando tochas nas mãos, reuniram-se fora da
cidade. Num improvisado palanque, vários homens que aparentavam ser os líderes de
cada comunidade, prontificaram-se a falar. O discurso foi mais breve do que Pan-noa
imaginara. Um homem grande, vestido com peles de animais, cabelos compridos e
negros esbravejava para todos ouvirem:
- Pelos poderes investidos a mim pelo próprio Klaia-am. – Agora o povo estava em total silêncio. - Vizinhos do povo do sul, nosso inimigo em comum, os bruxos
do norte, estão com um poder que não sabemos de onde vem. Foi Klaia-am quem
mandou este presságio, este inseto gigante para nos avisar que Klaia-am está conosco.
Devemos enfrentá-los imediatamente, ou seremos escravizados. Sairemos esta noite,
todos juntos, pela trilha principal que leva ao norte. Aqueles que quiseram tomar o
rumo do rio, poderão faze-lo. Matem todos os que acharem pelo caminho. O povo que
achar o tesouro primeiro terá direito sobre ele. E que Klaia-am proteja-nos e sacrifique
os malditos bruxos!
E assim a imensa massa popular saiu em correria num uivo animalesco que
deixou Pan-noa de cabelos em pé. Foram em direção ao norte sem comando algum,
como uma manada de animais que saem a caça. Era a idade das sombras se revelando
mais que nunca.
- É o ataque mais absurdo que eu já vi em toda a minha vida! – Disse Pan-noa
pasmado. – De qualquer maneira, temos que correr. Kenn, preciso de provisões para
uma jornada. Acho que uma caixa de manipulador de alimentos serve. O aerojet tem
um processador pequeno, mas acho que basta. Estaremos conectados o tempo inteiro.
Infelizmente, não tenho roupas protetoras para os dois guerreiros mas acho que eles
não precisam. - Pan-noa falava isso muito rápido como para si próprio, porém os dois
guerreiros olhavam atentamente o que ele fazia, à medida que arrumava coisas estranhas na sua nave.
- Bem acho que é isso, não é Kenn?
- Procure não usar armamento pesado, nem que seja do aerojet. Não deve danificar o planeta de seus novos amigos.
Então Pan-noa olhou para os dois: estavam postados, um ao lado do outro, as238
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sustados com o que a estranha voz que não existia acabara de falar.
Pan-noa sentiu um pequeno aperto em seu coração ao olhar para Litri, mas
quando olhou para Clia teve um grande aperto, uma vontade de abraçá-la de beijá-la.
Lembrou-se de Be e quase chorou. Sentiu então com amargura que os dois guerreiros
perceberam sua fraqueza.
Clia deu um passo à frente e disse:
- Pan-noa está na hora. Devemos correr. Veja! – Apontou para a janela. – Eles
recuperaram os dragões.
Clia neste momento tocou a mão de Pan-noa. Ele queria beijá-la mas ficou
parado, com medo de sua reação. Então Clia ficou na ponta dos pés tomou a nuca de
Pan-noa com a mão e tocou-lhe os lábios com os seus. Pan-noa arregalou os olhos e
teve que fechá-los para não sorrir de felicidade e da cara de espanto de Litri.
Então eles entraram no aerojet e Pan-noa falou:
- Agora nós não vamos brincar, ok? Isso é muito sério. Se vocês estiverem
passando mal, uma pequena agulha entrará na ponta de seus dedos e vocês ficarão
melhores. É uma pena que nós não tenhamos nenhuma pérola-cubo para vocês.
- Não se preocupe com a gente Pan-noa. – Disse Litri. – A Quarta lua logo
aparecerá. É a lua que nos fornece os poderes da Deusa de maneira mais intensa.
- Ótimo. - Pan-noa olhou um pouco para trás e viu o rosto de Clia. “Não vou
perde-la Clia. Não como fiz com Be.”
Clia fez que sim com a cabeça e Pan-noa teve a impressão de que ela estava
entendendo o que ele pensava. Seria possível?
Então Pan-noa olhou para os controles do aerojet, respirou fundo e falou fortemente:
- Linha dolfin, preparar modo de guerra.
O aerojet modificou toda sua volta, tornando-se mais agressivo. Eram as linhas
do dragão que tomavam a forma do aerojet. Um zumbido muito forte foi ouvido de
dentro da cabine. A saída na sala de comando mal tinha sido aberta quando Pan-noa
gritou:
- Modo camuflagem, modo de batalha, impulsão total para fora da atmosfera.
Num empuxo vertical o aerojet projetou-se para fora da atmosfera do planeta.
Os dois guerreiros nada falavam.
- Tudo bem aí atrás? – Perguntou Pan-noa.
Mas nada deveria estar bem, afinal os dois guerreiros estavam vendo seu
próprio planeta lá embaixo. Pan-noa notou o aviso no painel de que duas doses de Enecto-lex haviam sido aplicadas. Soltou uma pequena risadinha e pensou: “Eu avisei”.
- Kenn, localização dos dragões. Vamos derrubá-los. Depois, localização da
maior concentração da população do norte. Você deve ter captado algo nos pensamentos de Clia. Mande as informações em forma de vetores.
Pan-noa olhou para o painel e segurou firme nos controles: um visor em meialua saiu de seu banco tomando sua visão.
- Ei! Agora eu posso ver! – Disse Pan-noa ao perceber seu destino em modo
vetorial.
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O aerojet então investiu para baixo. Pan-noa tentou não pensar no que os guerreiros estavam sentindo, afinal o que ele estava fazendo era muito sério.
- É, estou numa porra de uma batalha!
Então localizou os dragões à sua frente.
- Mas são tantos!
Eram milhares, em fileiras que rasgavam o céu. As labaredas podiam ser vistas
de vez em quando. Pan-noa resolveu ir por baixo e levar o aerojet para cima, tentando
confundi-los. Porém, ao passar pela primeira fileira, a segunda, logo à frente, pressentiu o perigo e dois dragões viraram-se e acompanharam o aerojet com o olhar. Um
segundo mais tarde um dragão disparou uma labareda que atingiu a frente do aerojet.
Pan-noa tomou um susto.
- Mas o que é isso? Nesta velocidade?
Então viu que alguns dragões o estavam seguindo.
- Bem, vamos mudar os planos. – Disse para si mesmo. – Velocidade de batalha, armar semi raios.
Prosseguiu um pouco mais numa velocidade que fez os dragões sumirem e
logo depois voltou. Um dragão enorme estava à frente dos outros tentando achar o
aerojet. Porém foi o aerojet que o achou. Num lançamento múltiplo de raios, Pan-noa
derrubou todos os dragões que tinham vindo procurá-lo.
Voltou-se então para o resto. Com manobras precisas, fez com que os dragões
se voltassem uns contra os outros. Houve algumas batidas aéreas. Além disso, Pannoa utilizou os raios para atrapalhar ainda mais o voo dos monstros. Já não se via
nenhum dragão no céu. Pan-noa resolveu tentar achar o povo do norte.
- Vamos para casa crianças.
Os dois guerreiros estavam paralisados, mas pareciam bem. Olhou mais uma
vez para Clia e disse:
- Vamos precisar de sua ajuda.
- Está bem.
Mas parecia não estar. Pan-noa já conhecia aquele olhar. Então olhou para
frente e viu no horizonte o nascer de uma lua que ele jamais pudera pensar existir.
- A Quarta lua. – Disse Clia. - A lua prata, a lua da Deusa.
Pan-noa olhou de volta para traz e viu, fascinado, o olhar de Clia se transformar de negro profundo para prateado.
- É a coisa mais linda que já vi! – Disse Pan-noa abismado.
- Pan-noa. – Ordenou Clia - Siga à frente, reto. Estamos a caminho. Estou
identificando este lugar. Meu povo já está reunido. É o poder da Deusa!
Pan-noa seguia mais devagar agora. A pedido de Clia voava baixo para que
ela pudesse localizar o lugar onde seu povo estava. Pan-noa estava maravilhado. Andavam por entre uma floresta miraculosa, com árvores gigantescas, entre as quais o
aerojet podia se movimentar livremente.
- Logo à frente prepare-se Pan-noa. – Disse Clia. – Vamos subir pela encosta
de um penhasco.
E de fato o aerojet guinou noventa graus na vertical e subiu. O penhasco pare240
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cia não acabar. Mas logo Pan-noa não via mais a parede. Deu um rodopio no ar e ficou
na horizontal de novo. Então olhou um pouco para baixo, para onde o penhasco havia
terminado e ficou abismado. Clia percebeu o que Pan-noa sentia e disse.
- Hora do meu mundo, Pan-noa!
- Visão noturna normal. – Disse Pan-noa.
Quando o visor voltou para o acento, Pan-noa percebeu que o universo ficara
menor, que tudo no mundo era uma mera fagulha dentro de uma enorme fogueira.
Deparou-se com algo que poderia ser um mundo em miniatura, algo impensável, um
planeta dentro de um planeta.
A encosta que eles haviam subido, na verdade, fazia parte de uma grande montanha feita de pedra lisa. Lá em cima havia uma espécie de cratera, como a de um
vulcão, tão grande que quase se perdia de vista. Mas não era uma cratera. Era uma
superfície côncava, escondida pela borda de pedra. Era como a forma de um planeta
que fora cortado e colocado ali, naquela cratera. Mas algo estava errado. Aquilo era
desproporcional ao resto do planeta. Aquilo era um mundo muito menor. Pan-noa
estava confuso.
- Eu disse que não era necessário você se preocupar com o meu povo?
- Mas então por que você quis avisá-los?
- Bem, para que eles se protejam.
- Mas como? Afinal o que é isso?
- É a nossa morada. É um mundo à parte, um mundo dentro de um mundo.
- E podemos entrar nele?
- É claro!
- Mas nós não somos muito grandes? Quero dizer, como isso irá funcionar?
- Simplesmente voe para dentro.
E assim Pan-noa fez. Porém, quando estava prestes a se chocar com o solo, ele
realmente entrou, como se tivesse entrado na atmosfera daquele novo planeta.
- Eu não acredito! – Gritou Pan-noa. – Estamos realmente em outro planeta?
- Sim, teoricamente sim.
Então Pan-noa voou para baixo, passando por florestas e lagos.
- Ali na frente. Ali é minha aldeia.
Era uma aldeia simples, mas bela. Casas de madeira, telhados de palha, muitas
casas. Uma fogueira enorme ardia bem no meio de tudo. Então Litri falou.
- Chegou minha hora.
Pan-noa pousou a nave, não entendendo mais nada. Litri pediu a Pan-noa que
o deixasse ali e dizendo que Pan-noa deveria partir com Clia.
- Mas...
- Não pergunte Pan-noa. Você nem deveria ter visto isso.
Litri desceu da nave olhou para Pan-noa e fez um sinal de adeus com a mão.
Olhou para Clia e uma lágrima rolou de seus olhos.
- E agora. O que faremos? – Perguntou Pan-noa angustiado.
- Vamos embora. – Disse Clia chorando.
Pan-noa comandou sua nave extremamente irritado. Subiu em direção um céu
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escuro, sem estrelas.
- Velocidade de batalha. – Bradou - e o aerojet disparou como um raio. Logo
depois Pan-noa percebeu estrelas e viu, lá embaixo, o mundo menor. Virou o aerojet
para olhar melhor e então reparou que uma densa névoa começara a cobrir o mundo
menor.
- O Mundo menor. – Repetiu para si mesmo.
- É assim mesmo.
- O que? – Perguntou para Clia.
- É assim que nós o chamamos, de mundo menor.
Pan-noa sorriu e disse:
- Dois lugares.
O banco de Clia se moveu para o seu lado, deixando a cabine mais curta.
Pan-noa pegou na mão de Clia e disse.
- E agora?
- Agora meu povo vai guerrear para que possamos proteger a Deusa.
- Vai guerrear? Seu povo acabou de desaparecer naquele mundo.
- Sim. Aquele mundo protege os filhos do meu povo. Para que a Deusa exista,
nós temos que existir para sempre. Mas devemos existir aqui neste mundo também,
para protegê-la. Então, aquele mundo protege os filhos e, quando eles crescem, eles
vêm para este mundo para proteger a Deusa.
Pan-noa olhou admirado.
- É uma troca de favores! Foi a Deusa que fez aquele pequeno mundo para que
a sua raça nunca desaparecesse! Para ela estar sempre protegida e vice-versa!
- Isso mesmo.
- Isso é fantástico. Mas, e quanto a você?
- Bem, eu fui instruída para outra finalidade.
- E qual é?
- Ainda não sei.
A Andróida Andrógina
Clia estava de novo em contato com a Deusa. Pan-noa não ousava tocá-la
apesar de ser ela quem comandava o trajeto. Mesmo vendo de cima ela conseguia
localizar-se. Era o poder da Deusa.
Eles não passaram por nenhum lugar onde se pudesse ver batalhas. Estavam
agora num mar de montanhas geladas, sobrevoando um vasto emaranhado de picos
cobertos por neve. Sob a gigantesca lua, Pan-noa não necessitava de sua visão noturna. Houve um silêncio aterrorizante. Pan-noa começou a ficar nervoso. Apesar de
estarem em velocidade baixa, já tinham voado por muito tempo. Então tentou falar
alguma coisa:
- Se aquele povo vencer a guerra contra o seu eles nunca vão encontrar sua
Deusa, Clia. Estamos voando há horas e nada...
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Clia não se movia. Mas então ela moveu seu corpo para frente e sorriu.
- Lá embaixo Pan-noa, aquele rio.
- Devemos navegá-lo?
- Podemos? – Perguntou Clia se referindo ao aerojet.
- Claro! Até debaixo d’água!
- Ótimo é para lá que nós vamos. Ninguém nos seguirá desta maneira.
- Ei! – Disse Pan-noa estarrecido. – Eu tenho os melhores radares do universo
aqui! Ninguém está nos seguindo, além disso o planeta inteiro está monitorado.
- Eu sei, Pan-noa. Mas podemos estar sendo seguidos por coisas que seus
radares e sensores não captam.
- Ei! Você está me assustando.
- Não percebeu ainda, Pan-noa?
- Percebi o que?
- Estamos lidando com poderes supremos.
Enquanto se dirigiam para o rio, Pan-noa pensou em tudo que acontecera até
agora. Era verdade. Ele estava preocupado demais com coisas puramente racionais e
não deu a mínima para os absurdos que tinha visto e vivido.
- Ora! Vamos lá! Eu não tive tempo nem de fazer xixi ainda! Como eu poderia
perceber algo anormal, por mais anormal que fosse, se tive que enfrentar uma cidade
enlouquecida tentando queimar crianças, depois dragões, depois mundos dentro de
mundos, fora isso você...
Pan-noa parara por ali.
- Sim o que tem eu? – Perguntou Clia.
- Veja! O rio. – Disse Pan-noa aliviado.
Pan-noa pousou sobre as águas de um rio nada calmo. A correnteza os levou por entre desfiladeiros feitos de neve. Era um lugar lindo, com uma luz mágica,
mesmo sendo noite.
Pan-noa olhou para Clia.
- Estamos no caminho certo?
- Sim, agora estamos sob a proteção da Deusa.
- Como assim? Só porque estamos navegando em um rio e não estamos voando?
- Não, Pan-noa. Por que vamos entrar em Seu domínio. Olhe para frente.
Pan-noa ficou atônito. Estavam penetrando em uma caverna na qual terminavam os desfiladeiros. Era uma pequena fenda feita de rocha negra.
- Ai meu caralho! – Disse Pan-noa. – Kenn! Está me ouvindo? – Já era tarde.
Kenn já não podia mais ouvi-lo. – Visão noturna!
Neste momento Pan-noa teve que se sentar mais confortavelmente em seu acento. A caverna fazia um arco por cima do rio. O fundo da caverna era negro mas em
quase toda parte, sobre a superfície da rocha negra, havia cristais verdes e laranja de
todos os tamanhos.
- Cristais. – Disse Pan-noa. – Cristais verdes e laranja! Como no planeta Azul,
como nas moradias dos povos que habitavam e habitam o mundo do Mago de Prata!
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Estes cristais são encantados!
Clia olhou-o com determinação.
- Como sabe que são encantados, Pan-noa? Quem lhe disse isso?
- Os seres supremos. – Disse Pan-noa pensando se isso que estava acontecendo com ele era obra de alguém ou simplesmente seu destino. Alguma coisa estava
errada e muito errada.
A coisa ficou realmente errada quando o rio acabou em uma queda abrupta.
- Ei! Por que você não me avisou, Clia? Reverter motores.
Mas a queda foi rápida. Caíram num lago dentro da caverna. Pan-noa acionou
os motores e o aerojet se transformou em um pequeno submarino.
Avançaram pelo lago enorme, com as mais loucas criaturas. Pan-noa estava
fascinado. Clia parecia estar em contato de novo. Pan-noa olhou para ela e não quis
atrapalhar. Se eles se perdessem aqui seria o fim, afinal não tinham contato com o
mundo lá fora.
Seguiram pelo caminho que Clia indicava. Pan-noa pensava naquele povo bárbaro tentando achar esta tal Deusa. “Já estariam todos congelados”, pensou sorrindo.
- Ali Pan-noa, suba!
Então Pan-noa subiu e viu uma pequena luz. Foi em direção a ela e logo estavam fora d’água, dentro de uma caverna enorme. Pan-noa pousou o aerojet na neve
e abriu a carenagem transparente do aerojet. Sentiu o cheiro do ar.
- Como é doce!
- Sim é o cheiro da Deusa!
Pan-noa olhou para Clia assustado. Clia soltou uma risadinha ao ver sua cara.
- Ela, Ela está aqui por perto?
Clia olhou para frente. Pan-noa acompanhou o olhar. Era uma pedra negra da
metade do tamanho de Pan-noa. Pan-noa deu um passo à frente admirando a pedra.
Não havia nenhuma fenda da qual pudesse sair uma flor mágica. Mal percebeu os
cintilantes cristais que o cercavam. Uma luz veio do teto da caverna. Era a luz da lua
penetrando e quase o cegando.
- Temos contato com o ar de fora! - Disse ele alegremente. – Kenn? Pode me
ouvir.
- Onde esteve Pan-noa? Dei uma busca pelo planeta inteiro!
- Está tudo bem! Kenn, pode gravar tudo o que eu estou captando nos sensores?
- Comecei agora.
Pan-noa olhou para Clia. Ela estava apenas olhando para o chão, acompanhando a luz da lua que ia em direção à pedra. Quando lá chegou, parou. Então a flor
começou a nascer. Pan-noa estava enfeitiçado. Viu a flor tomando forma, mudando de
cor, ficando prateada, depois tons de azul e prateada de novo. O desabrochar, o ser de
costas para ele, o ser se virando. Magia, beleza. Era a coisa mais bela que ele já vira.
Pan-noa estava paralisado, mas suas mãos queriam tocá-la, tocar aquilo como se fosse
um objeto mágico e sagrado. Desejo! Pan-noa chegou mais perto e ajoelhou-se. Agora
o ser estava à sua frente. Ele não conseguia vê-lo como uma deusa, mas sim como um
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anjo, como algo que fazia sua adrenalina subir, dando reviravoltas em seu estômago.
Pan-noa começou a sentir-se inferior. Ele queria aquela beleza. Inveja. Queria para
ele. Ambição. Não queria apenas tocá-la, abraçá-la, queria possuí-la, como se aquela
beleza pudesse lhe trazer tudo o que precisava. Então o ser à sua frente olhou-o de
forma severa. Pan-noa não se mexeu, continuou desejando. Então o ser falou:
- Você terá. Mas deverá saber usá-la. Quando a pétala cair eu vou fechar e
você deverá pegar a pétala para você. No momento certo, você deverá saber o que
fazer. Por enquanto, você deve saber só uma coisa: um dos nossos quebrou uma lei.
Fez isso com boa intenção, mas agora já deveria ter voltado. Ele passou de um estágio
e voltou ao estágio anterior. Você deverá destruí-lo. Só assim ele morrerá de novo.
Você pode fazê-lo com esta pétala. Mas não o subestime. Ele é muito forte e agora tem
um aliado muito pior que ele. Será seu pior inimigo. Agora pegue a pétala e vá.
Então a pétala caiu e, antes que esta tocasse o chão, Pan-noa segurou-a e guardou-a no aerojet. Clia estava lá quando Pan-noa chegou, pálido como a neve. Nem
esperara a flor se fechar e já estava dentro do aerojet, puxando Clia para dentro.
- O que houve? O que a Deusa disse? – Perguntou Clia angustiada. – Como
ousa sair do templo sem fazer as rezas e as reverências?
- Isto é bobagem. Temos trabalho a fazer e você deve me ajudar. Chega de
segredinhos! Você deve saber de algo. Kenn, preciso de 5 L.u. Quero que você se
acople imediatamente no trans universo imperial. Chegarei junto com você. Mantenha
a escotilha aberta e todos os processadores operando!
Num piscar de olhos o aerojet, com uma Clia abismada e um Pan-noa enlouquecido, pousou dentro da sala de controle já devidamente acoplada no trans universo imperial. Pan-noa desceu do aerojet seguido de Clia que não conseguia sequer
piscar ao notar que estava no espaço de novo, vendo seu planeta lá embaixo.
Pan-noa colocou a pétala da Deusaflor dentro de um analisador de substâncias
na mesa de controle do trans universo imperial.
- Kenn, análise total por favor.
Pan-noa olhou intrigado para Clia. Ela estava com uma “cara-de-quem-nadatinha-a-dizer”. Mas Pan-noa sabia que ela tinha. Que ela era um ser poderoso, criada
por uma criatura poderosa e estava na hora das coisas começarem a se encaixar. Então
Pan-noa resolveu ir ao extremo dos extremos. Conectou-se com Kenn via pérolacubo: “Vamos resolver o problema da forma mais perigosa, Kenn. Acredito que esta
nave possua pelo menos um suprimento mínimo de pérolas-cubo...estou certo?”
“Pan-noa?” Perguntou Kenn abismada.
- É isso mesmo! - Gritou Pan-noa para Clia – Já estou cheio de fantasmas,
de duendes, fadas, crianças encantadas, sapinhos cor de rosas e dragões. Dragões! –
Repetiu abismado, como se tivesse acabado de sonhar com dragões e acordasse do
sonho mais absurdo de todos. – Ei! Espere um pouco. – Refletiu consigo mesmo. –
Sonho, crianças encantadas. Isto me lembra aquele livro!
- Kenn! – Gritou Pan-noa de novo. – Estava com uma cara de quem tinha tido
uma ótima ideia. – Lance um dardo de inconsciência em Clia, agora!
Clia nem teve tempo de se mover. O dardo a atingiu e ela caiu como uma folha
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cai de uma árvore. Pan-noa teve tempo de pegá-la antes que ela atingisse o chão.
Levou-a à enfermaria e pediu a Kenn que implantasse uma pérola-cubo na testa de
Clia. Era o maior absurdo já feito por Pan-noa desde que ele nasceu. Mas pelo estado
das coisas Kenn resolveu obedecê-lo.
Algumas horas depois, Clia acordou sobressaltada.
- O que você fez comigo? – Perguntou para Pan-noa.
- Fiz algo para nos salvar. Fiz algo que sua Deusa teria me pedido para fazer
caso tivesse tido mais tempo. Agora tome. - Pan-noa deu a Clia o livro “O Mago de
Prata”. Leia isso e tente associar com algo da sua cultura. Deve haver alguma relação
entre esta porra deste livro e sua Deusa ou eu estou ficando completamente louco.
Clia teve um grande espanto quando abriu o livro e entendeu as palavras.
Pan-noa riu e disse.
- É, nós também temos coisas supremas.
Clia ficou mais abismada ainda quando ouviu aquilo na língua de Pan-noa e
não na sua.
- Não se preocupe, é uma espécie de mágica. Agora sua mente vai trabalhar
mais rápido, você entenderá meu mundo mais facilmente e terá uma bagagem cultural
praticamente igual a minha. Bem, comece a ler o livro. Vou preparar algo para comer,
esse livro dá muita fome. Além de ser meio idiota.
Clia começou a ler o livro, mas imediatamente percebeu que não precisava
ler o livro inteiro. Através da pérola-cubo ela simplesmente poderia ter a história em
sua mente em um segundo, como se alguém a tivesse contado para ela de uma forma
imediata.
Ela foi para onde Pan-noa estava sentado. A comida estava começando a surgir
na mesa de centro.
- As coisas aqui andam meio apressadas. Você não acha, Clia? – Perguntou
sarcasticamente Pan-noa.
Clia limitou-se a sentar no sofá em meia-lua ao lado de Pan-noa. Ela olhou
para ele e no rosto de Pan-noa surgiu a figura do rosto do Mago de Prata, muito parecida com as formas do rosto da Deusa.
- Então? – Perguntou Pan-noa. Existe alguma relação?
Clia estava muda.
- Sabe o que sua Deusa me falou quando nós conversamos?
Clia mexeu sua cabeça num gesto negativo. Sua aparência era comovente.
- Kenn? Quer retransmitir, por favor?
Então surgiram nos monitores as imagens da conversa entre Pan-noa e a Deusa.
Clia estava estarrecida. Por algum tempo não falou. Pan-noa comia sem parar.
Então Clia finalmente falou.
- Existe uma lenda entre nosso povo.
- Ah! - Disse Pan-noa - Finalmente a verdade! Vamos lá, não se apresse.
- Nós sabíamos de outros mundos. – Continuou Clia ainda angustiada.
- Bem, no nosso Império nós temos cerca de cem mil, sem contar as luas! –
Disse Pan-noa sarcasticamente. Estava furioso.
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- Cale a boca e deixe a menina falar. – Gritou Kenn.
Pan-noa olhou para cima, tentando achar o rosto inexistente de Kenn.
- Está bem, desculpe-me. Continue.
- Bem, estes outros mundos, nós não sabíamos se eles existiam ou não. Na verdade nunca soubemos de muita coisa, apenas estava dentro de nós, como um instinto.
Assim como o instinto de que deveríamos cuidar da Deusa. Agora eu consigo visualizar isto muito melhor! Veja: todos os mundos, pelo que eu estou entendendo agora,
estão conectados. Estão conectados de uma forma especial, não como você se conecta
com suas máquinas. Estão conectados na forma da morte. A morte de certas raças
conectam-se para formar um outro mundo, um mundo fora deste, não um planeta mas,
quem sabe, um outro universo. – Ela parou para pensar no que estava dizendo. – Bem,
existe em cada planeta, habitado ou não, um fio de ligação entre o mundo daqui e o
mundo formado por essas pessoas que passam por este estágio.
- A morte? – Perguntou Pan-noa abismado.
- Sim. É uma espécie de ligação quase mística que existe entre esses dois universos e os planetas deste universo que estamos habitando.
- Quer dizer que todos os planetas tem uma ligação? – Perguntou Pan-noa
mais abismado ainda.
- Sim e não. Na verdade deveriam ter. Veja a Deusa, por exemplo. Ela é um ser
supremo porque ela pode comunicar-se com os seres do outro universo.
- Os mortos. – Perguntou Pan-noa.
- Sim, os supostos mortos. E consegue também comunicar-se com os “Deuses” que existem em todos os outros planetas deste universo. Em cada planeta deste
universo existe um ser supremo, podemos chamá-lo de Deus, que se comunica com
os outros seres supremos de cada planeta. São esses seres supremos que morrem para
manter a comunicação entre o universo inteiro.
Pan-noa sentou-se na cadeira com a boca aberta. “Mas é óbvio! Assim como
em qualquer planeta de qualquer sistema a vida se prolonga através da morte...como
aqueles que morrem dão seus corpos para a terra para virarem alimentos para outras
vidas, certas almas de certos corpos de certos seres, os ‘seres supremos’, prolongam
a vida desta maneira, morrendo e formando a vida num plano superior. Uma espécie
de adubo ao contrário!”
- Mas infelizmente, – Clia continuou. – Um desses seres voltou. Voltou para
reparar um erro do passado. – Neste momento Pan-noa sentou-se ereto no sofá. – Se
ele simplesmente tivesse voltado, reparado o erro e depois morresse como um mortal
qualquer... Mas ele não morreu, ele está vivo. Vivo neste planeta que vocês chamam
de Planeta Azul.
- O Mago de Prata! – Gritou Pan-noa. - Então a Deusaflor estava me pedindo
isso! Para matá-lo. Mas por que eles, os seres superiores, não o matam já que são tão...
superiores?
- Porque ele é muito poderoso eu acho. E acho que o que está atrapalhando
tudo não é só o fato de ele estar vivo, mas sim o fato de estar bloqueando a ligação
entre o planeta em que ele vive, com os outros seres supremos. Como você sabe, no
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
universo nada é ao acaso. Tudo está conectado e este Mago de Prata desconectou seu
mundo do universo. Isto deve estar gerando um problemão. Acredito que pelo fato dos
seres superiores não poderem fazer contato com o Planeta Azul eles não podem tocar
o Mago de Prata.
- Mas como? Como você sabe que ele desconectou o planeta Azul do universo? - Pan-noa estava desnorteado.
- Antes do Planeta Azul ser atacado O Mago de Prata lançou um feitiço fenomenal no planeta inteiro, lembra-se?
- Sim para se proteger dos mísseis do Império.
- Pois bem esta proteção não é apenas física, é espiritual!
Pan-noa jogou-se de novo no sofá. Estava desiludido.
- Como posso ir contra tamanha força? O filha da puta é um maldito mago!
- A única forma de combater um mago, é ter o mesmo efeito da magia que o
protege.
- É mesmo? Tipo lançar uma magia para transformar um planeta inteiro azul
em verde? Isso é fácil! – Disse Pan-noa irritado.
- Não. – Respondeu Clia no mesmo tom de voz. – Lembra-se do livro, Pannoa! Com o que O Mago de Prata se protegia e atacava?
Pan-noa pensou um pouco e se ergueu do sofá com a mão na testa, paralisado
por não ter pensado nisso antes.
- Com a sua beleza! A magia do Mago de Prata está no fato de que, se qualquer
ser vivo olhar para ele, fica imediatamente cego! Cego de espírito! A pior maldição
que alguém pode sofrer!
Então Kenn interferiu:
- A análise da pétala indica a construção de um ser. Fiz uma hipótese do ser
que seria construído e já a tenho disponível. Deseja vê-la?
- Imediatamente. – Gritaram Pan-noa e Clia ao mesmo tempo.
Então, para o total espanto dos dois, o que apareceu nos monitores era uma
réplica virtual exata da aparência do Mago de Prata. Era nada mais, nada menos do
que a Deusa vista como um ser humano.
- Pela Deusa! – Disse Clia atônita. – É o próprio ser! Nós o temos.
- Sim, temos virtualmente. Que grande coisa! Vamos até o planeta azul, pegamos o Mago de Prata pela mão, trazemos até a nave e pedimos para ele olhar para o
monitor. Logo depois ele nos transforma em dois sapos. Ótimo!
Pan-noa sentou-se e sua pérola-cubo lançou-lhe um estímulo. “Você é mesmo
um tapado, não é Pan-noa? Não se lembra que você tem uma andróida moldável enfurnada num caixão aqui dentro da sala de comando?”
Pan-noa levantou-se num pulo.
- Filha de uma puta! – Berrou. Clia caiu no sofá indignada. – A Andróida! A
maldita andróida deitada no caixão!
Clia olhou para a caixa feita de vidro e metal, cheia de água e um boneco assustador que jazia lá dentro.
- Pan-noa. – Disse Kenn. – Eu não recomendo a modelagem de tão deplorável
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
ser. Lembre-se, você dará vida àquilo que te sentenciou ao que você está vivendo.
- Você quer dizer, – Disse Pan-noa olhando no fundo dos olhos de Clia. – A
melhor época da minha vida!
Clia ficou vermelha.
- Kenn. – Ordenou Pan-noa. – Transforme esta Andróida no ser que irá destruir o Mago de Prata! Transforme esta aberração na Andróida Andrógina!
O Contato com o Império
Schaia III, O Imperador Mago, mandara buscar constantemente remessas do
cristal verde que era encontrado no planeta azul. Era sua nova fonte de energia. Schaia
III tornara-se um imperador mago, com um poder supremo, mas não fazia parte dos
seres que eram predestinados a serem supremos. Como seu fiel amigo Mago de Prata.
Na verdade, os dois estavam amaldiçoados por terem usado a magia dos seres supremos para sua própria causa.
Schaia III e O Mago de Prata tinham achado a chave da imortalidade. Para isso
eles precisavam dos cristais abençoados pelo Mago de Prata.
Além disso, Schaia III precisava manter seu Império em total coalizão. Como
ele tinha fechado todos os espaços de dobras e, pior ainda, lacrado o espaço interno,
espaço em que viviam os Extuárticos, seres que mantinham a energia para a dobra dos
espaços, todos os planetas do império estavam totalmente isolados.
Os três únicos planetas que estavam conectados por uma via especial de transporte eram Plan Ex, planeta sede do Império e casa de Schaia III, o Planeta Azul,
conhecido pelos seus antigos habitantes como Terra, lar do Mago de Prata e dos filhos
gêmeos de Schaia III e, finalmente, Carmel, planeta sagrado, confeccionador de tecnologia para o Império.
Com esses três planetas Schaia III estava construindo algo que ele poderia
torná-lo um ser quase supremo: ele estava construindo, com os cristais encantados do
Planeta Azul e com a sabedoria dos cientistas de Carmel, algo que lhe permitiria observar todos os planetas e, ainda, observar todos os movimentos dentro de seu Império
além dos seres supremos de cada planeta. Era “O Olho de Deus”.
Pan-noa não tinha a mínima ideia disso tudo. Estava isolado num canto
qualquer do universo, transformando um ser semi orgânico em algo que ele acreditava
capaz de matar O Mago de Prata, o ser que deixara Schaia III louco, que transformara
o Império numa cozinha e que, por consequência, dera oportunidade para que a bicha
de seu tio matasse seus pais e tomasse o poder do seu planeta. Isto era exatamente o
que Pan-noa pensava.
Portanto, a ideia de Pan-noa era muito simples... “Cortaremos o mal pela raiz.
Primeiro esse ou essa bruxa desse Mago de Prata que ninguém consegue nem definir
o sexo. Depois, Schaia III, o imperador bicha que se apaixonou pela outra bicha do
Mago de Prata. Depois, voltaremos para casa e mataremos a bicha do meu tio que
ninguém consegue definir o sexo. Perfeito! Tudo com a ajuda de uma Andróida An249
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
drógina que ninguém consegue definir o sexo. Só tem um problema... como vamos até
o maldito planeta Azul sem um portal de dobra? Estamos perdidos! Perdidos e agora
com uma Andróida Andrógina. Um ser que não sabemos o que é nem para que serve,
ou melhor, sabemos que a maioria deles é feita para fazer sexo, obviamente. Mas, e se
meu tio estivesse mandando um presente assassino para não sei quem?”
Pan-noa pensava, pensava, enquanto Kenn preparava os procedimentos para a
transformação da andróida em Andróida Andrógina. Não era um processo fácil. Então
Pan-noa teve uma ideia, o que na verdade foi a segunda maior cagada que já fizera
em sua vida.
- Kenn, por favor, implante uma pérola-cubo na Andróida Andrógina, uma que
nós possamos controlar.
- Você está louco? Utilizar-se de uma tecnologia secreta em um ser como este?
- Pode ser nossa salvação Kenn. O que sabemos sobre este ser? Implante e
deixe a pérola inconsciente. Caso haja algum problema, manipularemos a Andróida
para que nos obedeça. O que você acha?
- Não é uma má ideia, só é arriscada.
- Estamos em uma situação arriscada, Kenn. - Pan-noa falava isso tomando
um belo suco vermelho, deitado no sofá ao lado de Clia que cochilava.
- Pan-noa.
- Sim Kenn?
- Situação arriscada você disse?
- Sim. – Disse Pan-noa calmamente.
- Bem, então acho melhor você se levantar. Acabei de te dar uma pequena dose
de enecto-lex via pérola-cubo para que você não tenha um ataque.
Pan-noa levantou-se e olhou para o monitor.
- Um transportador imperial. Acabou de sair de um portal de dobra. Sem
navegadores, sem radares, sem armas, sem tripulantes. Apenas levando toneladas e
toneladas de um cristal estranho ao meu sistema.
- Pode decodificar o sistema?
- Já estou fazendo. A nave vem do setor Z planct 2 e Z planct 3. Só para você
saber melhor é a entrada ou saída para vários sistemas não catalogados porém muito
famosos para os militares na época do General Arcrates.
- Não!!! – Gritou Pan-noa com satisfação.
- Sim!!! – Disse Kenn, imitando a entonação de Pan-noa. - E tem mais! Segundo os códigos da nave ela está indo diretamente para Plan Ex, tomando um portal que
estava camuflado mas está aberto permanentemente. Nós podemos utilizá-lo agora
que sabemos sua localização.
Pan-noa não pensou muito.
- Podemos conseguir uma aproximação com o transportador?
- Certamente.
- Podemos localizar o último portal e irmos em direção a Z planct 1 e 2?
- Certamente. Os portais são camuflados mas uma vez detectados podem ser
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
usados.
- Podemos, antes de tudo, colocar um presentinho para Schaia III dentro da
nave?
- Certamente. O que vai ser?
- O que você acha de dois Ulmátrios com detonadores específicos?
- O que? – Gritou Kenn, fazendo Clia despertar num pulo.
- Sim, vamos destruir não só Plan Ex como o sistema inteiro e, quem sabe, a
galáxia?
- E formar um buraco negro? Seu sistema não está tão afastado para se safar
da força de um buraco negro, Pan-noa.
- Está bem! Um Ulmátrio. E é minha última cartada.
- A nave levará sua bomba Pan-noa. E que Deus esteja do seu lado.
- Ah está, Kenn! E não só Deus como todos os seus anjos.
Olhou para Clia e disse:
- Está começando! Nossa guerra terá a bênção de todos os anjos, de todos os
seres supremos. Eles já devem saber. A sua Deusa é boa e poderosa. E já começou a
nos ajudar.
- Kenn, armar e carregar a bomba para este bastardo deste Schaia III. Depois
disso, lançar o trans universo imperial para o maldito Planeta Azul.
Pan-noa beijou Clia. Eles se deitaram no sofá e enquanto a nave entrava em
velocidade inimaginável eles se amaram. Se amaram como os seres jovens, tão jovens
que não sabem o que fazer quando se amam, mas se amaram.
Enquanto isso, dentro do caixão de metal e vidro, a forma de um ser magnífico
se consumava. O sopro de vida estava quase sendo mandado pelos codificadores que
Kenn comandava. Logo nasceria um ser que mudaria o destino da vida no universo.
O nascimento da Andróida Andrógina
O tempo no transuniverso imperial, a partir daquele momento, foi gasto por
Pan-noa e Clia da forma mais estranha possível. Tanto Pan-noa como Clia não tinham
corpos formados para o que eles estavam fazendo, mas por outro lado, os dois estavam
conectados através das pérolas-cubo, as quais possibilitavam aos dois aprenderem
todos os mistérios dos prazeres carnais. Além disso, eles estavam de tal forma unidos
que não repararam que podiam comunicar-se tão facilmente que já não mandavam
instruções às pérolas-cubo. Elas praticamente agiam como parte do corpo deles.
Eles não tinham ideia de quanto tempo passaram viajando pela dobra espacial.
O que eles podiam sentir era o imenso prazer de estarem juntos. Apesar disso Pan-noa
sempre tinha um santuário secreto em sua mente onde guardava seu sentimento de
amor por Be.
Clia demonstrou a Pan-noa formas de se movimentar que ele jamais sonhara.
Eles aproveitaram os imensos jardins da nave para colocar seus corpos na mais perfeita forma. Passavam dias nos jardins, sem nem mesmo voltar à sala de comando.
Dormiam ali, nas desnaturais florestas, que serviam bem ao propósito deles, como se
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
fosse um esconderijo particular, uma espécie de paraíso feito apenas para eles.
Kenn deixava os dois se divertirem, afinal, não detectara nenhum perigo durante a viagem. A única coisa que a estava preocupando era a demora para chegar ao
sistema do planeta Azul.
O novo casal entregara-se totalmente ao marasmo. Clia ficara fascinada com a
magnitude da nave e só não achava aquilo aterrorizante porque Pan-noa programara
a pérola-cubo que Clia estava usando com as mais variadas formas de conhecimento.
Clia aprendia de uma forma fascinante. E quanto às aulas de socialização, as únicas
que não podiam ser feitas através das pérolas-cubo, Pan-noa fazia sua parte deitando-a
na relva artificial da nave.
Os dois estavam no lago, embaixo da pequena cascata. Pan-noa brincava com
sua animotatoo e Clia ria sem parar das mais absurdas formas que Pan-noa fazia em
seu corpo. Foi quando Kenn soou um alerta que deixou os dois em estado de pânico.
Era um alerta estipulado para a situação mais perigosa que poderia ocorrer. Os dois
começaram a pensar em conjunto nas mais absurdas possibilidades enquanto corriam
para o aerojet. Ou Schaia III descobrira que eles o tinham o atacado e mandara toda
a frota imperial atrás deles, ou o Mago de Prata resolvera combatê-los com um exército de bruxos cósmicos, ou o transuniverso imperial estava tendo problemas com a
inesgotável energia que o impulsionava bem dentro do espaço de dobra, ou seu tio
resolvera ir atrás deles para matá-los e ficar finalmente com o planeta roubado de seu
pai. As coisas iam mais ou menos por aí, uma ideia mais apavorante que a outra. Mas
foi ao chegar à sala de comando que Pan-noa e Clia visualizaram que a coisa era, na
verdade, muito, muito pior.
A sala de controle estava funcionando. O alarme tinha parado de tocar e Pannoa estava ao lado de Clia. A sala estava escura. A primeira coisa que Pan-noa e Clia
notaram foi o reflexo muito mais forte das luzes de comando no chão da sala, como
se a sala estivesse inundada.
- Kenn? Pode acender as luzes?
Kenn não respondia, mas as luzes foram acesas, apesar da demora.
Realmente agora Pan-noa e Clia podiam ver que a sala estava completamente
inundada. Então Pan-noa deu um passo para trás, apertou fortemente a mão de Clia e
apontou para o caixão de metal e vidro completamente destruído. Pela primeira vez na
vida Clia sentiu um medo profundo, um medo que a fez respirar ofegante.
- Kenn, por favor me responda. O que aconteceu aqui?
Pan-noa falava isso indo diretamente para a sala de banho onde guardara sua
roupa protetora. Vestiu-se rapidamente e, enquanto se vestia, viu que as luzes da sala
de comando estavam se estabilizando. Então Pan-noa conseguiu vislumbrar o ocorrido. Nem ele nem Clia necessitavam das explicações de Kenn mas a bela voz da
máquina resolvera dar sinal de vida.
- Ela me desprogramou momentaneamente, Pan-noa.
- Sim eu percebi isso. Consegue localizá-la?
- Não.
- E quanto a pérola-cubo?
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Ela está utilizando-a em proveito próprio.
- Como?
- Não sei. Estes seres são imprevisíveis! Na verdade eles são criados para
serem escravos, escravos sexuais como vocês devem saber. Mas este em particular alterou seu comportamento. Talvez ela tenha conseguido manipular-me graças a pérolacubo.
Então Clia falou.
- Foi a pétala. A pétala da Deusa. Nós demos o corpo e ela tomou vida. A
Deusa te deu uma pétala para que nós criássemos um outro ser. Não lembra?
Então Pan-noa desesperou-se.
- Um ser supremo! Que se misturou a um ser escravo, que tem uma pérolacubo, que conseguiu manipular até Kenn, roubando seus arquivos, Ela sabe de tudo,
de toda nossa cultura, sabe como nos matar e ainda...
Pan-noa parara de falar pois viu o terror no rosto de Clia.
- Vamos ficar aqui na sala de comando. – Disse Pan-noa. – Kenn, alerta máximo! Tente localizá-la o quanto antes. Lacre totalmente a sala de comando. Não sabemos que tipo de ser criamos e não quero ser atacado por um ser que pode ter poderes
superiores aos nossos. Kenn, tente achar uma roupa protetora para Clia. Implante em
sua pérola-cubo a maneira correta de utilizar a roupa.
Pan-noa ainda estava tenso quando sentou-se na cadeira de comando. Não tirava os olhos dos monitores que vasculhavam freneticamente todo o interior da nave.
Clia estava parada, em pé, ao seu lado, testando a roupa protetora.
Então Clia perguntou:
- Será que ela não está se escondendo por estar com medo de nós?
- Como assim? Ela roubou todos os arquivos possíveis! Ela sabe tanto da nossa cultura quanto você ou eu.
- Talvez tenha feito isso por instinto e, por ter vindo da Deusa e ser, na verdade, a própria Deusa em essência; talvez tenha reconhecido a pérola-cubo como algo
anormal em seu corpo, de maneira que a primeira coisa que fez foi saber o que aquele
corpo estranho fazia em sua testa. Ao verificar, impulsionou a curiosidade e fez com
que a pérola-cubo funcionasse da maneira que funciona, isto é, captando as informações. Isto é, talvez tenha feito isso não propositadamente.
Pan-noa pensou sobre isso. Clia poderia estar certa. Então, foi um pouco mais
longe.
- Lembra-se da pétala? Era uma pétala que acabara de nascer, era minúscula!
- Sim! – Disse Clia confiante. – A Deusa não poderia refazer-se já adulta. Ela
te deu uma pétala ainda em crescimento.
- E o corpo que estava para ser moldado também era de uma criança. Sim. –
Disse Pan-noa eufórico. – Eu lembro, no bilhete que meu tio dera a não sei quem, estava escrito para moldar um ser parecido comigo, portanto, a Andróida deve ter mais
ou menos o nosso tamanho, a nossa idade.
Clia olhava para Pan-noa e compreendia o que ele queria dizer.
- Então, concordamos que temos uma criança assustada. Assustada ao nascer
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
consciente. Ela nasceu e logo foi bombardeada com milhares de informações. Ela
deve estar completamente desnorteada!
Pan-noa olhava para os monitores. A imagem passava pelos jardins em que ele
e Clia tanto se amaram. Então Pan-noa levantou-se.
- Kenn, congele a imagem ali, naquele ponto. Traga mais perto. Veja Clia! Ali,
no chão, não é algo estranho para você?
- Pela Deusa! Só pode ser ela! Mas como conseguiu?
- Ela inspirou-se na nossa tecnologia de camuflagem! É uma criança definitivamente esperta e, logicamente, está com medo. Vamos.
O aerojet saiu da sala de controle em disparada para os jardins da nave. Pannoa e Clia chegaram ao local que viram no monitor.
- Estou sonhando! – Disse Pan-noa – Ela é ainda mais bela que a Deusa!
- Como é possível? – Perguntou Clia.
O que eles viram os deixou realmente fascinados. Os dois ajoelharam-se para
chegar mais perto do ser que tinha se camuflado na forma de uma flor azul prateada.
Uma flor que deveria ter um metro de altura e que se encontrava totalmente fechada.
Ela cintilava uma luz quase divina, uma luz que era refletida no rosto de Pan-noa e
Clia. Os dois se olharam admirados com a beleza do ser.
- Isso é algo muito além da nossa tecnologia. – Disse Pan-noa.
- Isso é algo muito além da nossa magia. – Disse Clia.
Os dois ficaram parados, de joelhos, olhando para a flor. Estavam tão hipnotizados que não notaram o tempo passar. A única coisa que começaram a cogitar era
como e quando o ser iria voltar a ter forma humana.
Um forte impacto tirou os dois daquele mundo mágico. Quase caíram no chão
e perceberam que a flor se fechara mais fortemente.
- O que houve Kenn?
- Acabamos de sair do espaço de dobra. Estou com o mapa estelar roubado da
nave de transporte. Estamos indo em direção ao planeta Azul.
Um forte espasmo passou pelo corpo de Pan-noa e Clia. Os dois se olharam
mais uma vez. Agora sabiam que o perigo era palpável.
- Kenn – Pediu Pan-noa. – Pode abrir as janelas laterais?
As imensas janelas subiram. De um lado da nave se encontrava o espaço infinito, negro e frio. Do outro, havia uma espiral infinita de estrelas.
- O sistema do Planeta Azul. – Sussurrou Pan-noa aterrorizado. – Jamais
imaginei que eu algum dia pudesse estar aqui.
- Estou com o Planeta Azul no vetor, Pan-noa. Disse Kenn. – Devo me aproximar?
Pan-noa esperou um pouco e então disse:
- Sim Kenn, velocidade de batalha.
Então o transuniverso imperial começou a avançar em direção à galáxia em
espiral.
Pan-noa e Clia sentaram-se em volta da flor, deram as mãos e esperaram.
A viagem demorou. Pan-noa e Clia estavam dormindo ainda no mesmo lugar,
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
abraçados. Então, ainda deitados, sentiram o leve toque nas suas pérolas-cubo. Kenn
estava avisando que tinha contato visual com o Planeta. E de fato, quando os dois abriram os olhos, viram o imenso planeta através das janelas do transuniverso imperial.
Pan-noa ficou realmente espantado com a beleza do planeta. Ele ainda possuía tons
do azul, apesar do verde imperar. “É a forma que o Mago de Prata protege o planeta”,
pensou Pan-noa. “Uma camada de energia verde acima da atmosfera. Que força um
ser deve possuir para criar tamanha façanha?”. Pan-noa observava, admirado, o Planeta Azul que agora estava esverdeado. Porém, algo chamara sua atenção. Algo que
iria mudar sua vida para sempre.
Em um lado do planeta, à sua frente, começou a aparecer uma forma branca e
arredondada, uma forma que refletia uma luz branca fantástica. Ele sentou-se ao lado
de Clia e olhou para ela. Seus olhos estavam brancos. Pan-noa sentiu um calafrio. A
luz da lua começara a entrar pela janela da nave e, com um feixe poderoso, banhava
os jardins onde os três seres se encontravam. A luz ficou muito forte ao atingir a flor.
Pan-noa levantou-se num pulo. Clia estava hipnotizada. “Ela vai renascer”. A flor
cresceu meio metro e, ao crescer, começou a mudar de forma. Havia uma quantidade
de energia enorme saindo da flor que agora estava passando pela forma híbrida. Era
quase um ser humano, mas então Clia despertou do seu estado hipnótico, pegou na
mão de Pan-noa e disse rapidamente:
- Modifique um pouco sua visão com o auxílio da roupa protetora antes que
ela se transforme totalmente!
Pan-noa levou um susto. “É claro! A magia vai vir com ela!”
E realmente o ser à sua frente era a criatura mais estarrecedora que Pan-noa
já vira. Uma criatura de um metro e meio, com o corpo desenhado nas mais perfeitas
proporções. Um ser que fazia com que Pan-noa sentisse algo infinito dentro de si. Um
ser que mexia com os mais profundos sentimentos. Um ser que emanava algo inexplicável, algo puro, algo divino.
O ser olhava para os dois com um olhar de quase mágoa, de quase medo. Um
olhar de lamento. Então Pan-noa não se conteve. Deu um passo adiante. O ser não
se mexeu. Deu outro e mais outro. Então, estava cara a cara com o ser. Clia estava
congelada de medo. Pan-noa levantou os braços e abraçou o ser. Abraçou-o como se
abraça uma criança. Então, o ser o abraçou também. Pan-noa parecia ter sido violentado, tamanha era força que sentira vindo daquele abraço. Não uma força física, mas
algo místico. Um sentimento de prazer muito além do que ele já havia experimentado,
muito além de qualquer coisa que ele jamais sentira. Pan-noa não conseguia soltá-lo.
Então, conectou-se com Clia e ela fechou os olhos. Era lindo. Clia também sentia.
Pan-noa finalmente deu um passo para trás. Estava chorando de emoção. O
ser o olhava agora com admiração. Era inteiro prateado, azul prateado, os olhos profundos como água, o cabelo era uma fina penugem num tom mais azul que o resto do
corpo. Os olhos no mesmo tom do cabelo, das sobrancelhas, dos lábios.
- O que devemos fazer? – Perguntou Pan-noa para Clia sem tirar os olhos da
Andróida.
Antes que Clia respondesse o ser criou uma capa prateada e fechou-se nela,
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
deixando apenas uma parte de rosto à mostra.
- Suas visões não precisam ser mais modificadas. – Falou uma voz rouca e
fraca, quase meiga.
Pan-noa e Clia levaram um susto. Era a primeira vez que o ser falava com eles.
Mas levaram um susto maior ainda quando o ser desapareceu da frente deles num
piscar de olhos.
- Para onde ela foi? – Berrou Pan-noa desesperado.
- Ela está com a pérola-cubo, vamos nos conectar.
- Para a sala de comando! – Falaram os dois juntos.
Agora os três olhavam para o planeta em frente. Pan-noa e Clia esperavam
impacientes. A Andróida Andrógina concentrava-se profundamente no planeta. Então
disse algo que fez com que Clia apertasse fortemente a mão de Pan-noa.
- Vamos começar a guerra.
No Planeta Azul
Pan-noa estava desnorteado. Enquanto caminhava à noite, como a Andróida
Andrógina tinha estipulado, remoía pensamentos e sentimentos. Ele parecia estar vivendo num sonho. O que fora escrito naquele livro que Schaia III ordenara que o
Império inteiro lesse, não era nem uma mísera partícula daquele mundo.
A lua estava no meio do céu negro esverdeado, adornada com nuvens de bordas quase claras. Pan-noa e Clia caminhavam na mata fechada, descendo uma montanha. Ele podia ver algo fascinante lá embaixo. Uma aldeia, uma aldeia, com a qual
jamais pudera sequer sonhar.
Todas as construções eram feitas de cristais verde e laranja. A aldeia margeava um lago muito grande e todo o fundo do lago podia ser visto de onde Pan-noa
e Clia se encontravam. O fundo cintilava graças aos cristais que, com a luz da lua,
formavam feixes de luzes multicoloridas. As pessoas na aldeia movimentavam-se freneticamente. Parecia haver algum tipo de festa, pois Pan-noa conseguia ouvir sons de
tambores e, às vezes, alguma melodia.
Pan-noa não estava desconcertado apenas com a beleza do local. Sempre
imaginara que o planeta azul deveria ser um deserto sem fim, com animais perigosos
e pessoas selvagens. Aquilo era, para ele, uma agradável surpresa. Mas tinha certas
coisas que ele queria saber, que retumbavam em sua mente e que nem a pérola-cubo
implantada em sua testa conseguia lhe responder.
- Algumas coisas deveriam ser esclarecidas. – Falava enquanto caminhava
atrás de Clia.
- O que por exemplo? – Perguntara Clia com uma entonação de puro descaso,
como se tudo fosse absolutamente normal.
- O que por exemplo?! – Repetiu Pan-noa admirado. – Como nós viemos parar
aqui, sem uma nave, por exemplo. Como esta Andróida sabe onde estamos indo, por
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
exemplo. Como aquela aldeia consegue ficar acesa sem energia, por exemplo.
- Pan-noa. – Disse Clia calmamente. – Você está se esquecendo do livro que
leu na nave?
- Não eu não me esqueci, apenas não acreditei na metade.
- Pois então comece a acreditar. Nós viemos parar aqui graças ao poder da
Andróida Andrógina. Você ainda não percebeu que ela ou ele é, na verdade, um ser
que tem o domínio de certas forças no universo que nós não temos?
A Andróida Andrógina estava agora indo na frente deles. Na verdade o que ia
na frente deles era uma forma esférica, totalmente preta e que absorvia a luz da lua. A
Andróida Andrógina se transformara em flor novamente e estava guardada da luz da
lua dentro desta esfera que flutuava na frente dos dois.
Pan-noa olhava para a esfera com receio.
- Ela só se transformou em flor novamente para não despertar a atenção do
Mago. – Dizia Clia.
Pan-noa porém estava pensando em outra coisa. “Vir para um planeta totalmente estranho assim, sem mais nem menos, apenas com a roupa protetora, sem aerojet, sem sala de comando. Simplesmente caímos aqui como mágica.”
O fato de Pan-noa não entender a possibilidade de se deslocar no espaço sem
nenhum equipamento para isso o estava incomodando tanto que ele não pensava mais
nenhum possível perigo. Clia ficara satisfeita por isso e deixou Pan-noa se perder
nestes pensamentos.
Mas ela estava preocupada. A esfera à sua frente demonstrou possuir extremo
poder, mas seria suficiente para enfrentar este Mago de Prata? E se o resto do planeta
se voltasse contra eles? Clia começou a pensar que deveria haver algum ser supremo
por aqui durante o intervalo em que O Mago de Prata morrera e retrocedera. Tentou
pensar na história do livro e alguma coisa apontou para um pensamento. Sim, algo
dizia que estavam indo na direção correta.
Eles só caminhavam à noite e só quando a lua aparecia, afinal a Andróida
Andrógina só podia manifestar-se com a luz da lua. Além disso, a lua era a fonte de
seus poderes.
A coisa começou a ficar mais clara para Clia na quinta noite. Inicialmente tanto
ela quanto Pan-noa pensavam que eles estavam indo em direção a alguma aldeia, mas
eles já tinham passado por duas. Então Clia falou:
- A esfera não está procurando uma aldeia de humanos. Ela está procurando os
seres que eram os seres supremos deste planeta no intervalo da morte e ressurreição
do Mago de Prata.
Pan-noa parecia ter voltado ao normal. Já não estava se perdendo em devaneios.
- Sim. – Disse ele. – Possivelmente aqueles seres que foram chamados de Irmã
Floresta.
Clia parou e olhou para trás. Deu um sorriso.
- Fico feliz que você esteja mais seguro.
- Estou aprendendo a lidar melhor com esta situação. – Disse Pan-noa.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
A esfera e os dois continuavam sua busca. Durante noites caminhavam e nada
achavam. Pan-noa e Clia pareciam ter perdido a esperança mas a Andróida Andrógina
seguia normalmente. Os dias e noites pareciam intermináveis. Pan-noa só resistia e
continuava a busca porque Clia estava ao seu lado. Pan-noa e Clia começaram a ter
uma relação extremamente íntima, um amor ilimitado, algo que, para Pan-noa, era de
fato muito penoso, afinal ele já tinha sentido a poderosa e devastadora força da perda
e o que mais o afligia naquele momento era a possibilidade de perder Clia. Era algo
insuportável de pensar.
Como de costume, eles seguiam à noite por trilhas árduas, colhendo frutas
porque o suprimento de comida que carregavam estava acabando. Clia começou a
fraquejar. Então, enquanto caminhavam por uma floresta de árvores gigantescas, os
dois sentiram algo. Sentiram que haviam passado por uma espécie de fronteira cujo
outro lado se mostrava mais generoso com suas almas. A esfera que carregava a Andróida Andrógina desaparecera. Os dois se olharam espantados mas um segundo mais
tarde lá estava ela, a criatura que eles praticamente criaram, estava ali, olhando para
eles.
- Um ser maligno morreu neste momento. – Disse a Andróida seriamente.
- O que quer dizer? – Perguntou Pan-noa.
- Entramos em solo sagrado. Aqui o Mago de Prata não me perceberá. – Respondeu a Andróida Andrógina, olhando profundamente para Clia.
Pan-noa ficou abismado com este olhar. Procurou o olhar da Andróida. Ela
observou-o vagamente, virou-se e continuou pela floresta.
A angústia
Agora eles podiam andar durante o dia. Foram dias belíssimos, penetrando
em uma floresta que, para Pan-noa e Clia, era mágica. A Andróida sempre ia alguns
passos à frente dos dois que, de mãos dadas, sentiam-se em um verdadeiro paraíso.
Foi ao entardecer de um dia particularmente belo que Pan-noa notou que a
Andróida havia parado um pouco à sua frente. Ele e Clia pararam ao lado dela e viram
algo realmente fantástico. Estavam sobre um penhasco imenso e um oceano esverdeado expandia-se até um horizonte laranja avermelhado. Pan-noa olhou para baixo e viu
uma floresta imensa cujas árvores, podia jurar, eram azuladas. Mas estavam muito no
alto para saber. Então, percebeu um tênue fio de areia dourada que dividia o oceano
da floresta. A Andróida Andrógina apontou para um lugar à frente, na areia. Pan-noa e
Clia ampliaram suas visões com o auxílio da pérola-cubo. Eles podiam ver que a linha
de areia era bem maior do que pensavam e bem no ponto onde a Andróida Andrógina
havia, apontado viram o topo de uma pirâmide
- É para lá que deveremos ir. – Disse a Andróida Andrógina. – Aquela construção tem um grande poder.
Tomaram o caminho beirando o desfiladeiro. Em alguns momentos, por pre-
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
caução, entravam na mata mas tentavam manter sempre o rumo do desfiladeiro que
descia em direção à floresta.
- Estamos andando em terras protegidas - Dizia a Andróida. – Aqui o Mago de
Prata não nos ouve e não nos sente.
- Então, por que não podemos pedir a Kenn o Drakunum Maximatrya? Já
estamos cansados de andar. – Falou Pan-noa irritado.
A Andróida Andrógina parou e olhou-o severamente.
- Este povo não gosta de sua tecnologia.
Pan-noa ficou chocado com a resposta. “Esta coisa está começando a me irritar.” Pensou se a Andróida podia saber o que ele estava sentindo sobre ela. “Que
sinta mesmo! Essa aberração do caralho.” Clia não olhou para ele mas deu um aperto
em sua mão.
- Ei! – Disse Pan-noa mais irritado ainda. – Se estamos protegidos da bicha,
vamos, pelo menos, voar! Essas roupas tem antigravitacionais!
Pan-noa não esperou a resposta da Andróida. Ativou o mecanismo da roupa
protetora e desceu o desfiladeiro num voo rasante em uma velocidade abismal. Clia
teve que segui-lo berrando para que ele parasse. Pan-noa, porém, estava cansado de
seguir as ordens de uma Andróida. Olhou para trás e viu, abismado, que a Andróida
tinha duas asas prateadas nas costas. Ela parecia um anjo. Sua expressão não era de
desaprovação. Então Pan-noa avançou e, mesmo chegando lá embaixo, na floresta,
assumiu o controle da comitiva e seguiu na direção da construção em forma de cone.
Ao chegar um pouco mais próximo, parou no ar, logo acima de algumas árvores.
- Meu caralho! – Berrou – Então essa porra realmente existiu!
- Sim – Disse Clia com um sorriso na face. – E ainda existe! Como é enorme!
- O Templo de Cosmo. – Disse a Andróida, novamente olhando para Clia.
- Vamos! – Gritou Pan-noa tomando a mão de Clia e deixando a Andróida
Andrógina para trás.
Tentou uma comunicação com Clia via pérola-cubo:
- “Por que essa porra não para de te olhar, Clia?”
- “Como assim?” – Perguntou Clia.
- “Essa coisa está tentando fazer algo com você, eu tenho certeza!”
- “Imagine Pan-noa.” – Disse Clia abismada. – “Ela é um ser divino e está aqui
numa missão divina.”
Pan-noa não falou mais nada. Estavam aproximando-se da construção. A
aproximação era, no entanto, apenas ilusão. O Templo era muito grande e dava a
impressão de estar perto mas, mesmo flutuando sobre as árvores, eles só conseguiram
chegar realmente perto na manhã do dia seguinte.
- Imagine se estivéssemos andando! – Disse Pan-noa olhando para a Andróida
Andrógina com desdém.
Ela, entretanto, parecia não estar ali. Havia fixado o olhar no templo e não falou
mais nada até chegarem à praia onde o templo estava fincado. Os três “aterrizaram” na
areia e Pan-noa perguntou.
- Essa porra é de verdade?
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Não fale assim de algo tão sagrado. – Disse a Andróida.
- É sagrado para aquela bicha do Mago de Prata e do Schaia III, os dois filhas
da puta que me colocaram nesta merda.
Neste momento uma nuvem negra cobriu o céu e um vento violento soprou
vindo de direção nenhuma. Pan-noa estremeceu. Clia pegou na sua mão e disse.
- Cuidado com o que fala, Pan-noa.
- Ei! Que tal a gente comer algo? – Disse Pan-noa. – Se tiver algum ser ali
dentro, acho melhor nós esperarmos um convite para entrar. Não é o mais sensato?
Os três sentaram-se e acenderam uma fogueira. Clia foi em uma direção para
achar água e a Andróida foi em outra para procurar gravetos. Pan-noa ficou sentado
numa pedra, pensando. “Fazer uma fogueira, procurar água, só me falta eu ter que
achar a caça.” Um lagarto enorme começou a correr da mata em direção a água. “Que
saco.” Pensou Pan-noa. Então levantou o braço e com um pequeno gesto disparou um
raio estourando a cabeça do animal.
- Eu não vou limpar isso. – Disse com nojo olhando o lagarto mais de perto. Olhou para trás e não viu ninguém. Sentiu um frio na barriga e seus pensamentos começaram a embaralhar-se. Flutuou acima das árvores e viu Clia à beira de
um pequeno lago, deitada em cima de uma pedra e com uma massa azul prateada
penetrando-a. A expressão de Clia era do mais puro prazer. Ergueu o braço e disparou
gritando:
- Não!
Neste momento a Andróida Andrógina virou seu corpo junto com o de Clia.
O raio atingiu a pedra. O rosto da Andróida estava transformado. Sua aparência era
quase masculina, com um sorriso sarcástico olhando para Pan-noa. Mas, para o total
espanto de Pan-noa, Clia não parara de cavalgar em cima do recém-formado pênis da
Andróida Andrógina.
Pan-noa então voltou para a areia e se agachou, mordendo seu próprio joelho.
Soltou um urro que deve ter sido ouvido por meio mundo, tamanho o estardalhaço que
milhares de aves fizeram ao levantar voo, berrando feito loucas. Aves negras.
Pan-noa entrou em contato imediatamente com Kenn.
- Kenn, poder de fogo ao máximo! Lançar Drakunum Maximatrya imediatamente nas minhas coordenadas.
O estrondo do Aerojet entrando na atmosfera foi ouvido pela metade do planeta. “Se isso não despertou o Mago de Prata, então ele deve ser surdo.” Pensou
Pan-noa.
Foi só na metade do caminho de volta ao transuniverso Imperial que Pan-noa
pensou. “Estou fugindo.” Mas, se aquela maldita criatura estivesse manipulando a
mente de Clia?
Pan-noa arrependeu-se imediatamente de ter fugido. Uma angústia intolerável
lhe consumia. Agora já era tarde. Devia ir até o Trans Universo Imperial e pensar
sobre isso tudo. Então pensou, mais angustiado ainda: “E se a criatura não tivesse
manipulado a mente de Clia? E se Clia estivesse fazendo aquilo por amor?”
Uma dor em seu coração começou a se manifestar. Pan-noa não conseguia
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
chorar, mas seu coração chorava. Era a pior dor que já sentira. Pan-noa olhou para a
imensa nave à sua frente mas sua mente estava em outro lugar. “Mais uma perda. O
que mais pode vir agora? Acho que este foi o pior dia da minha vida.”
A vingança
Foi Kenn que não deixou Pan-noa dormir por muito tempo. Despertou-o com
imagens apavorantes e, ao mesmo tempo, gratificantes, na medida do possível. Kenn
havia mandado um satélite espião para verificar o que estava ocorrendo lá embaixo.
Então Pan-noa viu como a Andróida Andrógina havia realmente manipulado a
mente de Clia. Logo depois que o Drakunum Maximatrya saíra da atmosfera do planeta, a Andróida Andrógina capturara Clia e a levara para dentro do templo de Cosmo.
Porém, quando o satélite espião entrou no templo, Pan-noa perdeu contato. A última
coisa que viu foi a cara de desespero de Clia olhando para trás. Pan-noa tinha certeza
que o satélite havia sido destruído.
Uma terrível energia começou a crescer dentro de Pan-noa. Era algo que ele
não conseguia explicar, uma espécie de prazer em poder retornar e recuperar o amor
perdido e uma espécie de raiva por não ter ficado lá para defender este amor. Mas
agora Pan-noa não tinha tempo para ficar se auto condenando ou se arrependendo.
Kenn, como que adivinhando o que Pan-noa iria querer, disse:
- Sua roupa de batalha está pronta Pan-noa. Fiz algumas modificações no
escudo de defesa. Agora, qualquer tipo de energia que tente atravessá-la, será bloqueada. Consegui entender como esses seres usam seus poderes: nada mais é do que
uma espécie de “energia domada”, uma energia captada da natureza que os cerca e
equalizada da maneira que desejam.
- Então. – Disse Pan-noa com o olhar vago. – Podemos interferir nos poderes
destes seres já que podemos entender como eles agem.
- Sim. Teoricamente sim. Se você conseguir fazer um campo de força que os
cerque e que os isole da fonte onde captam energia, isto é, de tudo o que os rodeia,
você conseguirá não só capturá-los como também mantê-los neste campo sem poder
algum.
Pan-noa deu um sorriso. Sua mente estava trabalhando tão rapidamente que
ele praticamente já visualizava um final absurdo para a coisa toda. Entretanto, parou
e pensou um pouco mais. Como iria capturar seres tão poderosos? Pediu a Kenn que
colocasse nos monitores, detalhadamente, o funcionamento das roupas de batalha.
Pan-noa notou com espanto que este era um modelo novo. Era praticamente
igual ao que ele estava acostumado a usar em seus “treinamentos domésticos”, mas
continha modificações significativas. Pan-noa começou a estudar os tipos de armas.
- Bem. – Disse ele para si mesmo. – Isto não vai ser de grande uso, já que estes
seres devem ter defesas contra este tipo de coisa. Mas poderá distraí-los. Sim, se eu
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
lançar raios múltiplos desta magnitude... eles vão estremecer e assim eu poderei... Pan-noa avançou a demonstração – usar isto.
Então parou e olhou para o que estava escrito na tele. “Arma de captura”.
- Vamos lá Kenn, diga-me o que isto faz.
- Acho que você achou, Pan-noa. A arma de captura envolve o inimigo em um
campo energético do qual ele não pode sair, é extremamente eficaz para capturar e
manter o inimigo vivo.
- Kenn, você está brincando? Se vamos manter as bichas lá embaixo vivas,
dentro desta porra, é porque deve passar ar para dentro e se passa ar para dentro passa
energia e eles poderão manipular esta energia de tal forma que vão me transformar em
sapo.
- O manual, – Disse Kenn. – é enfático ao dizer que se duas armas de captura
forem lançadas no mesmo indivíduo haverá dois campos energéticos circundando o
indivíduo e entre estes ... uma zona de vácuo.
Pan-noa ficou olhando para o nada, com cara de quem acabara de levar uma
bofetada.
- Eu não acredito! Com uma zona de vácuo entre os campos de captura eles
não poderão usar energia alguma!
- Na verdade, – Disse Kenn. – Não é somente o campo de vácuo que irá detêlos. O primeiro campo de captura associado ao vácuo e associado ao segundo campo
de captura vai funcionar como um espelho energético. Qualquer feitiço que tente escapar dali será refletido e retornará para o...
- Feiticeiro! – Gritou Pan-noa satisfeito.
- Exatamente!
- Kenn! Prepare as naves de combate e prepare o Aerojet. Prepare um plano de
batalha e vamos fazer uma invasão em massa. Tenho certeza que este Mago de Prata já
sabe que estamos aqui mas o nosso ataque vai ser tão rápido que ele não vai conseguir
nem piscar.
- Você vai mesmo matar este Mago de Prata? – Perguntou Kenn.
- Não só ele como esta porra desta Andróida Andrógina.
Pan-noa vestiu-se rapidamente com a roupa de batalha. Estava eufórico.
Então Kenn avisou:
- Todas as naves preparadas.
- Muito bem. – Disse Pan-noa. – Não quero nenhum ser humano morto. Procure poupar os animais. Bombardeie lugares desertos. Quero também o máximo de
explosões fictícias no céu. Vamos deixá-los completamente perplexos. Quantas naves
temos?
- Todas que um transuniverso pode carregar.
- Você quer dizer incluindo as micronaves e tudo?!
- Exatamente.
- Vamos foder com tudo! Isso significa mais de cem mil naves, satélites e
micro naves! Comece imediatamente. Lançar satélites de comunicação, espiões e
guerrilha nesta ordem ... lançar micronaves ... lançar atordoadores ... lançar naves de
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
batalhas. – Neste momento Pan-noa sentou-se no seu Aerojet. – Formato de batalha.
– Gritou. – Lançar Aerojet. Vamos entrar pelos fundos Kenn!
Como uma nuvem de insetos, toda a parafernália de equipamentos de batalha
foi deixando o Transuniverso Imperial numa velocidade incrível. Com uma precisão
fantástica, todo o poderio de batalha foi circundando o Planeta Azul. As naves e satélites deram a volta pelo planeta e voltaram num círculo menor. Os satélites entraram
em órbita imediatamente e então as micronaves penetraram na atmosfera. Pan-noa,
neste momento, viu uma tentativa de mudança na atmosfera. O verde começou a ficar
mais forte e mais denso, como se fosse transformar-se num escudo. Mas já era tarde.
As naves entraram por trás, pelo outro lado do planeta onde o escudo nem sequer
começara a se formar. As naves já haviam entrado quando Pan-noa rompeu a atmosfera com um rastro dourado.
- Show! – Gritou ele ao ver o estardalhaço que suas naves estavam fazendo.
Aonde a vista alcançava o planeta estava sendo bombardeado ou parecendo estar,
graças às falsas explosões criadas por armas apenas para causar impacto visual. Mas
a batalha de Pan-noa não estava neste lado do planeta, estava do outro. Pan-noa acelerou seu Aerojet à frente das naves e circundou o planeta. As naves o seguiam fazendo
uma demonstração apocalíptica. Por um momento pensou se a Andróida Andrógina
teria matado Clia. Acelerou mais ainda seu aerojet.
- Kenn, ligar escudos em todas as naves.
Estava protegido. Visualizou ao longe uma cadeia de montanhas.
- A cordilheira de diamantes!
Ao passar pela cordilheira viu o imenso templo enterrado na areia pela metade.
Circundou-o lançando uma cortina de bombas ao redor do templo e incendiando a
mata em volta. Pousou o aerojet na frente do templo onde parecia haver uma entrada.
- Kenn, circule o templo com naves de batalha, quero todo o apoio possível.
Avise-me até se uma mosca entrar aqui.
Pan-noa saiu do aerojet flutuando e com seu escudo ligado. Sua roupa o tornara, neste momento, invisível. Todas as armas carregadas. Pan-noa usou sua visão de
antisólidos que, penetrando no templo, conseguiu ver centenas de seres acomodados
num imenso salão ao redor da...
- Não posso acreditar nisso!
Lá estava ela, a Andróida Andrógina com todos os seres em volta. Milhares!
Conseguiu visualizar Clia no chão, ao lado da Andróida, desmaiada. Seu coração ferveu. “O que a filha da puta está fazendo agora?” Pan-noa nem ligou para a aparência
dos seres ao redor da Andróida Andrógina. “O povo da Irmã Floresta. Carne humana
e asas de borboleta. Se eu conseguir, vou pegar dois ou três espécimes e levar para
um zoológico.” Pan-noa estava realmente irritado. “Estou muito irritado. Preciso
concentrar-me no que vim fazer.” Enquanto flutuava para a entrada começou a pensar.
“Numa situação de risco esqueça a paixão. A emoção. Só o instinto é válido.” Então
Pan-noa subiu. Ao invés de penetrar pela entrada à sua frente, subiu. “O que esta
Andróida Andrógina está pretendendo ao usar Clia como isca? Ela é um ser supremo
ou não?” Parou quase na metade da altura do templo, em uma parede inclinada que
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
formaria a pirâmide superior. Localizou o ponto médio e calculou o impacto da arma
que iria usar. “Sim, a melhor maneira de entrar sem machucar ninguém... o som.”
Começou a amplificar os módulos e, à medida que ia prolongando o som, viu a lateral
do templo começar a rachar. Cautelosamente abriu uma fissura enorme. Continuou
até que conseguiu visualizar, dentro do templo, o lugar onde a Andróida Andrógina
estava, onde Clia estava, onde o povo da Irmã Floresta estava e onde Schaia III havia encontrado com o Mago de Prata num sonho. Antes mesmo de sentir um frio na
barriga, Pan-noa disparou dois raios de captura no exato instante em que a Andróida
Andrógina olhou para cima.
- Isto era algo que você não previa não é monstrinho? – Falou Pan-noa sorrindo e indo em direção a Clia.
Tomou Clia nos braços. Toda uma população de fadas em pânico fervilhava à
sua volta.
- Kenn! Estabilizador corporal via pérola-cubo para Clia. – Clia começou a
despertar mas algo ao lado de Pan-noa o incomodava.
Olhou para o lado e viu a Andróida Andrógina se debater dentro da armadilha.
Clia olhou assustada para a cena.
- O que está fazendo, Pan-noa? Porque a Andróida Andrógina está presa?
- Se você não sabe então é melhor não ficar sabendo. Ela sabe o que fazer para
sobreviver ali dentro e, se tivermos que usá-la, ela estará escondida, fora do alcance
dos poderes do Mago de Prata.
Então os dois e mais uma população inteira de pequenas fadas vislumbraram a
transformação da Andróida Andrógina em flor.
- Assim está bem melhor. – Disse Pan-noa.
Clia levantou-se e só então os dois deram-se conta da multidão à sua volta.
Olharam assustados para as fadas que pareciam estar à beira de um ataque de nervos.
- Clia, acho melhor ligar seu escudo. - Disse Pan-noa.
Os dois estavam um de costas paro o outro. A “Flor Andrógina” flutuava logo
acima de suas cabeças envolta numa esfera de luzes transparentes. Uma fada deslocou-se para frente encarando Pan-noa. Imensas asas de borboleta batiam vagarosamente para mantê-la no ar.
- O que pensam que estão fazendo? – Disse a fada controlando a raiva. – Como
se atrevem a entrar aqui como se fossem deuses, macular o Templo de Cosmo e fazer
magias artificiais no lugar que o Mago de Prata nos deu para descansar e rezar?
Pan-noa estava calado. Se a fada se movesse mais um centímetro, dispararia
suas armas. Foi Clia quem interveio. Virou-se em direção à fada e, agora ao lado de
Pan-noa, falou:
- Ele lhes deu este templo para que vocês não mais existissem!
Todo o povo em volta soltou um murmúrio de estarrecimento.
- Como se atreve menina? – Disse a fada, vindo em direção aos dois.
Pan-noa levantou o braço e disse.
- Nem mais um centímetro Irmã Floresta! Ou tudo isto vai pelos ares.
- Irmã Floresta? – Disse a fada. Todos ao redor ficaram mais estarrecidos ainda
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
– Como sabe o nome da Mãe de todos?
- Sei não só esse nome. – Continuou Pan-noa. – Mas sei de Ortal o guerreiro
apaixonado, o dono do sonho de dez mil anos; sei de Muriled, o menino que o Mago
de Prata roubou o corpo para sua encarnação; sei tudo o que ocorreu com seu povo
e sei tudo sobre o Mago de Prata, o ser que não pode ser visto, o ser cuja beleza é a
maldição para aqueles que o olham. Vim aqui com a tarefa de informá-los que estão
sendo traídos! Traídos pelo Mago de Prata! – Neste momento, todas as fadas recuaram
como que para livrar-se de um demônio ou coisa pior. Mas Pan-noa continuou. – Este
templo isola vocês do mundo, do mundo lá fora. Não digo apenas deste planeta, mas
digo do mundo de fora. - Pan-noa lera a mente da fada mais próxima e achou a palavra
correta. – Há quanto tempo vocês não tem contato com o mundo dos espíritos? – “Espíritos”, pensou Pan-noa “um bom nome para seres supremos”.
Algumas fadas colocaram a mão na boca, outras começaram a chorar, porém a
que estava mais próxima falou:
- Ele está tomando conta dos espíritos. Não devemos perturbá-lo.
- Não, não está. – Disse Pan-noa enfrentando-a - Ele isolou este planeta para
seu próprio bem, para prolongar sua vida eterna aqui sem que os espíritos o impeçam.
A tarefa de contatar os espíritos é de vocês do seu povo, vocês sabem disso.
Pan-noa sentiu o silêncio. As fadas estavam concordando. Agora começavam
a olhar para baixo, como se estivessem com vergonha de terem sido logradas. Porém
Pan-noa não deixou a coisa toda cair.
- Vejam. - Disse ele apontando para a esfera acima de sua cabeça. – Eu trouxe
um ser supremo, um ser comandado pelos espíritos. Ele veio para enfrentar o Mago
de Prata, porque tem o mesmo poder. – Todo o povo se ergueu e flutuou acima das
cabeças de Pan-noa e Clia. Nesta hora Clia tomou a mão de Pan-noa e falou baixinho:
- Você tem certeza disso?
- Não. Mas é a nossa última cartada. – Respondeu Pan-noa.
O povo voltou à altura dos olhos de Pan-noa e uma fada falou:
- Nós vimos a magia deste ser. – Apontou para a esfera onde estava a Andróida
Andrógina. – Mas ela poderia ter a força do Mago de Prata?
Então uma voz poderosa veio de fora e como um trovão estremeceu a alma de
cada ser presente naquele templo.
- Quem poderia ter a mesma força que a minha? - Pan-noa percebeu um murmúrio e viu que as fadas lá de trás afastavam-se para que uma figura se aproximasse.
- Kenn, escudo total. - Pan-noa e Clia foram envoltos em duas esferas muito
parecidas com a esfera que protegia a Andróida Andrógina. De lá de dentro viram uma
figura envolta em um manto prateado penetrar no enorme salão.
Pan-noa ficou assustado. Tocou o escudo como se fosse um vidro. Não tinha
uma boa visão porque se tivesse já estaria cego diante da beleza do Mago de Prata.
Olhou para Clia e viu que ela estava na mesma posição, completamente aterrorizada
com a beleza do ser que acabara de parar à sua frente. O povo da Irmã Floresta estava
de cabeça baixa.
O Mago de Prata olhou para Pan-noa e para Clia. Depois olhou para a esfera
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
que estava entre eles.
- Consigo ver claramente dois mortais em escudos impenetráveis. Como sempre, sua raça se acovarda atrás de sua tecnologia.
Pan-noa estava aprisionado pela beleza daquele ser até esta frase. Após ouvila começou a sentir um comichão no estômago, um certo enjoo que o levou à raiva.
Então olhou bem para o ser à sua frente e com grande desprezo falou:
- Vamos ver o que a minha tecnologia reserva para você, Mago miserável.
Estas palavras foram o bastante para fazer com que o Mago de Prata desse
um passo para trás. Neste momento Pan-noa percebeu que atingira o ponto fraco do
Mago. Em questão de segundos libertou a Andróida Andrógina. A “Flor Andrógina”
caiu no chão despertando a curiosidade do Mago de Prata.
A flor começou a se transformar na imagem do próprio Mago. Neste instante,
prevendo o que ia acontecer e com um movimento das mãos levantou a flor em transformação e lançou-a para o teto do templo. A recém-transformada Andróida Andrógina, ao atingir o teto, explodiu em um sangue azul prateado que se espalhou pelo
ar como uma chuva fina. Todo o ambiente foi envolvido por uma fina névoa azulprateada e os presentes foram forçados a respirar aquele ar. Pan-noa sentiu o mesmo
cheiro adocicado que sentira ao abraçar a Andróida Andrógina pela primeira vez. “O
cheiro da Deusa” - pensou.
Quando o Mago de Prata olhou em direção a Pan-noa com a vitória estampada
na face, este já havia disparado não uma nem duas, mas dezenas de armas de captura.
Agora uma esfera de luzes enormes pairava sobre a cabeça de todos dentro do
templo. Dentro dela, um Mago de Prata derrotado.
As gotas de sangue da Andróida Andrógina ainda molhavam os presentes. Pannoa olhou para Clia. Ela assim, como ele e todo o povo da Irmã Floresta, estavam
encharcados da substância prateada que ainda pairava no ar.
Pan-noa esperou alguns instantes para saber se sua arma estava funcionando.
Aparentemente o Mago de Prata estava capturado. Então, para seu alívio total, a imensa esfera diminuiu em frações de segundos e caiu. Pan-noa pegou-a na palma da mão
e olhou. Parecia uma pedra preciosa, negra esverdeada. Guardou-a.
- Agora temos certeza que um já foi pro pau! – Disse Pan-noa retirando os seus
escudos e os de Clia. Olhou ao redor dizendo: – Mas o que é esta névoa de sangue que
respiramos? O que representam os restos mortais da Andróida Andrógina entrando
por nossos poros, por nossas bocas?
- Significa que ela não está morta Pan-noa. – Disse Clia alarmada. – Ela está
agora dentro de nós.
Pan-noa sentiu um frio no estômago.
- Isso era algo que eu definitivamente não estava esperando. – Olhou para Clia
novamente. - Minha esperança é que seja a Deusa entrando em nós e não a Andróida
Andrógina.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
O Livro das Esferas de Pedra Verde
Os Antes e a Morte dos Anjos e Demônios
Há quem diga que os mais opostos dos opostos são, dentre os semidivinos,
os anjos e os demônios. Isso não deixa de ser um pensamento sensato, porém, irreal.
Os anjos e os demônios são, em essência, a mesma coisa. São feitos da mesma não
matéria, têm a mesma virtude, a mesma bondade e a mesma maldade. Eles são, na
verdade, simplesmente, semidivinos e nada mais. Recebem a nomenclatura de Anjos
e Demônios erroneamente porque o que os difere é o olhar de quem os vê. Os seres
em transição, os Antes, são os que veem os anjos e os demônios de maneira diferente.
Eles, os Antes, são puros e desconhecem o próximo círculo. Desta maneira não estão
a par do “Tudo”. Assim sendo, eles julgam os semidivinos conforme a maneira com
que estes colaboram ou não para seus interesses.
Os Antes vivem ainda com a matéria pois dependem dela e só passam para
o próximo círculo após muito tempo em contato com ela. Na verdade, eles têm um
pensamento muito engraçado: acham que quando morrem seus “espíritos” saem do
corpo e vão encontrar-se com Anjos ou Demônios criados por eles! Acham que, após
a morte, vão para o próximo círculo e que este círculo é uma bênção ou uma punição.
Estes pensamentos absurdos estão relacionados com o contato que os Antes mantêm
com os semidivinos. É uma teoria válida pois nas diferentes culturas dos Antes nós
podemos encontrar uma padronagem de elementos que levam à mesma fé inspirada
pelo contato com os semidivinos.
Obviamente os semidivinos são completamente proibidos de manter qualquer
espécie de contato com os Antes, mas de quando em quando isso acontece e quando
acontece...
Antes de explicar o que acontece, existe um pormenor extremamente importante para entender os Antes e saber porque o contato com os semidivinos pode gerar
uma catástrofe: na maioria das culturas dos Antes, quando um deles morre, o principal
costume é enterrar o morto. Existem alguns outros costumes como queimar o corpo
ou até mesmo comer o cadáver. Existem, mais algumas maneiras de lidar com aqueles
que morreram mas é desnecessário fazermos referência a elas porque o final é sempre
o mesmo.
Pois bem, qualquer que seja o destino do morto, ele sempre acaba voltando
para a matéria alimentando-a e, por consequência, alimentando os Antes através de
uma complexa cadeia de acontecimentos do círculo da matéria. Por exemplo: o Antes nasce, seu corpo material cresce assim como seus conhecimentos. Isso só ocorre
graças à matéria que o Antes come e bebe. À medida que envelhecem aprendem mais
e guardam os conhecimentos adquiridos ao longo da vida dentro de si, dentro de seu
próprio corpo até que, finalmente, morrem.
Ao morrer (digamos que o Antes é enterrado), seu corpo é decomposto pela
terra e a terra se alimenta do corpo decomposto do Antes. As plantas se alimentam
da terra, os animais se alimentam das plantas e os próximos Antes que nascerem se
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
alimentam destes animais.
Ora, se o Antes que morreu levou consigo, dentro de sua carcaça material, toda
uma série de conhecimentos, o que acontece com eles então? Os próximos Antes que
comeram a carne dos animais ou até mesmo as plantas que se alimentaram da terra
que o Antes morto alimentou, vão estar comendo também, de uma maneira ou de
outra, os conhecimentos que o Antes morto levou consigo para a morte (Inteligência
Cadavérica).
Isso tudo significa que, na verdade, os Antes não morrem! Simplesmente reciclam-se, expandindo seus conhecimentos, da forma mais paradoxal possível, isto é,
através da própria morte que não é uma morte propriamente dita mas uma não-morte.
Esta não-morte é absolutamente impensável para os Antes. Eles acham que
a morte é ligada ao término do corpo e, depois disso, não sabem de nada. Existem
certas teorias para explicar a morte, graças ao contato esporádico e proibido com os
semidivinos, mas essas teorias não são tão importantes para os Antes quanto a matéria, quanto seus corpos. Desta forma eles acham que, quando o corpo acaba, tudo
simplesmente acaba também. A morte é o fim mesmo que a fé existente no coração do
Antes seja forte e lhe diga que não.
O Antes só passa para o próximo círculo quando supera a matéria, deixando
de ser Antes e passando a ser um de nós. Isso só ocorre com a transferência do conhecimento entre os Antes, seja verbalmente seja através da não-morte. Mas isso é
extremamente raro e só alguns conseguem chegar a esse estágio.
Então, para a maioria dos Antes, a morte continua sendo o fim, pois, para eles,
quando termina a matéria termina tudo. É aí que está o grande problema do contato
entre os semidivinos e os Antes. Foram poucos os contatos, mas os que ocorreram
foram catastróficos para o nosso círculo.
Os Antes, de quando em quando, conseguem aliar-se a poderes materiais e espirituais de tamanha magnitude que nenhum de nós ou até mesmo um dos semidivinos
consegue superar.
Quando um semidivino se depara com o destino de um Antes e este Antes
acha que este semidivino é um demônio, isto porque este semidivino, possivelmente,
está atrapalhando a vida deste Antes, o resultado é simples: o Antes tem poderes que
o semidivino subestima e a única coisa que o Antes consegue pensar é em punir este
semidivino e limpar o caminho do Antes é a morte. Porém o semidivino não está em
seu plano natural. Ele pode estar até mesmo disfarçado com um corpo material, mas
não é um Antes e não vai ter uma não-morte como os Antes têm. Ele vai realmente
morrer e morrer da forma que o Antes entende que deve ser a morte.
Então, o semidivino, seja ele Anjo para alguns ou Demônio para outros, vira
uma esfera de pedra, independente da natureza ou da cultura, porque a morte do semidivino está concretizada, mas sua força mística se transforma em uma esfera de pedra,
uma esfera que concentra tudo o que o semidivino foi e que ninguém até hoje conseguiu libertar.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Schaia III
Era o ano de 134.789. Plan Ex havia caído. Os sistemas Craisson, Matricariams, Samplardacos, Kalum Br, tencionavam avançar pelo espaço e ameaçavam uma
revolta contra o Imperador Schaia III.
Schaia III estava em Carmel quando uma nave de transporte explodiu o sistema de Plan Ex, casa do Imperador Schaia III.
De seus sonhos nada sobrara a não ser alguns cristais de extremo poder que
seriam usados para fechar a imensa cúpula conhecida como O Olho de Deus que agora
estava destruído. Destruído como o sistema de Plan Ex inteiro.
- A casa imperial. – Schaia III falava para si mesmo ainda não acreditando.
– Quem seria tão corajoso e tão inescrupuloso para mandar, dentro de meu próprio
carregamento de cristais, um Ulmátrio, uma arma de tamanha força.
Schaia III olhou para cima, para o espaço. Uma noite linda, o céu cheio de
estrelas. “Ele poderia ter formado um buraco negro e, pelo menos dez sistemas iriam
sucumbir. Este inimigo é completamente insano. Ele quer me matar! Quem poderia
ser tão idiota ao ponto de destruir a casa imperial, o lar de centenas de milhares de
imperadores?” Schaia III nunca ficara tão alarmado desde a crise do Sonho de Dez
Mil Anos que ele mesmo resolvera. Sua indignação, entretanto, não era proporcional
a tamanha calamidade. Alguma coisa estava errada. “Estou calmo demais. Sinto que
algo terrível vai acontecer.”
Schaia III tocou com os pés descalços o mar à sua frente. Uma lua artificial
começara a surgir no céu. “A lua do ‘projeto descoberta’. O que devo fazer?” Schaia
III ficou ali, parado, de pé por alguns instantes. Então, instintivamente, colocou a mão
no bolso, sentindo que alguma coisa estava pesando mais que o normal. Um cristal
verde. Schaia III tirou o pequeno cristal de seu bolso. Era uma pedra quase bruta. O
cristal emitiu um brilho, um mísero brilho que Schaia III não teria notado se não fosse
treinado pelo Mago de Prata. Colocou o cristal em contato com sua testa, concentrouse ao máximo e caiu de joelhos na areia de Carmel. A dor era tanta que não conseguia
se mover e, ainda com o cristal na testa, sentiu pingos caindo sobre ele. Com muita
dificuldade olhou para o céu de novo. Não havia nuvem alguma e Schaia III olhou
para seu braço molhado. O cristal estava agora grudado em sua testa, brilhando e
emitindo uma luz esverdeada.
Schaia III percebeu que os pingos não eram de chuva. Eram de uma água azul,
cintilante. Mas então a dor voltou muito mais forte, uma dor vinda do espírito. “A dor
que vem do espírito.”
- Do espírito! – Schaia III berrava. – A dor está vindo de meu espírito.
Então a realidade abateu-se sobre ele. Uma realidade que ele jamais acreditou
um dia conhecer. Com grande dificuldade, retirou o cristal de sua testa e começou a
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
chorar. “Ele está morto, realmente morto. Mataram o Mago de Prata.” Quando finalmente caiu na areia molhada, os guardas vieram, tomaram-no nos braços e levaram-no
para o castelo imperial de Carmel.
Os médicos o acordaram. Alguns generais cercavam sua cama.
- Estamos em uma situação emergencial Imperador. Algumas casas maiores
estão se revoltando.
- E o que podem fazer? Eles não têm como fazer a dobra e não possuem energia para isso. Vão se revoltar dentro dos seus próprios sistemas? Que se matem!
- Imperador. – Falou outro general. – Quando o sistema de Plan Ex caiu perdemos alguns mecanismos de espionagem e, neste meio tempo duas casas inimigas
uniram-se. Duas casas que, antigamente, competiam pela venda de tecnologia a Carmel. Samplardacos e Kalum Br, senhor. Infelizmente, acreditamos que eles, unidos,
possuam tecnologia para fazer a dobra espacial.
- O que? – Explodiu Schaia III. – Infelizmente vocês acreditam que eles têm
tal tecnologia? Tecnologia que, supostamente era restrita a Carmel?
- Senhor, eles estavam operando dentro da lei. Havia uma cláusula no contrato...
- Eu não quero saber de contrato algum. – Schaia III estava de pé, jogando
seus braços em cima do general que falava. – Coloque todas nossas tropas de prontidão! Se eles vierem para cá estaremos perdidos! Se eles conseguiram interceptar
meu transportador no meio do espaço da dobra e implantar uma Ulmátrio lá dentro
e destruir a casa imperial eles podem vir até aqui. Agora eu imagino quem possa ter
destruído o sistema de Plan Ex. Toda a inteligência na sala de comando, agora!
Schaia III entrou na sala de comando do planeta Carmel seguido pelos generais. Ordenou que todos os equipamentos de espionagem possíveis fossem ligados.
- Senhor, conseguimos instalar quase todos os sistemas de espionagem e estamos operando com praticamente a mesma força que teríamos em Plan Ex.
- Excelente. - Disse Schaia III. – Quero os sistemas de Samplardacos e Kalum
Br sob vigilância máxima.
Schaia III ficou com os generais espionando os sistemas durante horas. Então
passaram para as outras casas maiores. Fizeram todas as varreduras possíveis. Havia
comunicação entre os sistemas. Havia mensagens em código de batalha mas nada
de alarmante. Não havia nem sinal da energia necessária para fabricar os espaços de
dobra.
- O que isso quer dizer? – Perguntou um dos generais.
- Ou eles estão escondendo muito bem ou estão blefando. – Disse Schaia III
pensativo. – Deixe-me ver a rota do espaço de dobra que fizemos secretamente para
os transportes de cristais do planeta Azul para Plan Ex.
Quando os monitores mostraram a rota do espaço de dobra Schaia III ficou
perplexo.
- O que é aquele rompimento no meio da dobra?
Ninguém soube responder. Schaia III olhava para o infinito, algo em sua mente
estava fervendo. Tomou de novo o cristal e colocou-o em sua testa. Imediatamente
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
o cristal acendeu. A sala de comando ficou às escuras e os generais, espantados, tentavam fazer alguma coisa mas só o que viam era o imperador com a testa iluminada
pelo cristal verde.
- Existe algo. – Schaia III estremeceu ao ouvir a voz do Mago de Prata dentro
de sua mente. – Uma força que poderá nos deter. Não se esqueça, nós fizemos um
pacto e assumimos riscos. Se eles descobrirem nossa aliança e o que você pretende
com ela irão interferir e, de uma maneira ou de outra, acharão um meio de nos parar.
Só não se esqueça de algo: o poder deles aqui neste círculo não é tão grande. Tanto
você quanto eu somos cem vezes mais fortes do que o poder deles aqui, mas se este
poder estiver disfarçado...aí sim poderemos sucumbir.
Schaia III retirou o cristal de sua testa e as luzes da sala de comando voltaram
ao normal. Lembrou-se do exato momento em que o Mago de Prata havia lhe dito
isso tudo.
- No planeta Azul. – Falou para si mesmo. – O Mago de Prata está morto.
Schaia III pensou profundamente. “Não estava esperando por isso. Não está na
hora de reencontrá-los. Mas agora, quem vai cuidar deles? Meus filhos ... minhas adoradas crianças nascidas com meus poderes, com minha maldição, com minha ganância de poder. O Mago de Prata. Deus jamais deveria ter criado um ser assim.”
Agora Schaia III estava em pânico. Ele havia deixado no planeta Azul duas
crianças nascidas com poderes semelhantes ao dele e ao do Mago de Prata. “Duas
almas que não pediram para ter este poder e que agora estavam condenadas a um futuro terrível, se eles descobrirem...” Então Schaia III pensou no livro. “Eles já sabem.
O relato do livro mostra o poder dos pequenos... meus filhos... o que eu fui fazer...”
Os generais ainda esperavam alguma reação do imperador. Schaia III acordou
de seus pensamentos e falou:
- Continuem vigiando todos os sistemas possíveis. Tenho um trabalho a fazer
e devo fazê-lo sozinho. Qualquer manifestação contra as ordens que eu dei a respeito
dos planetas ficarem isolados, deve ser retaliada com o máximo de força. O Império
está em crise de batalha.
Schaia III deixou a sala de comando e dirigiu-se para seus aposentos. Trancouse lá dentro, recolheu todos os cristais que sobraram, entrou em uma câmara secreta e
encaminhou-se para sua nave.
Olhou para a nave e, com os olhos fechados, tentando encontrar a coragem que
lhe faltava, falou:
- Não acredito que estou fazendo isso. Estou rompendo o maior compromisso
de todos: voltar ao planeta Azul antes de ter terminado o Olho de Deus.
Entrou na nave, colocou-a no espaço e, com o toque de um botão despertou o
ser que estava confinado dentro de uma não-sala da nave. O filhote de Extuártico foi
estimulado a liberar uma enorme carga de energia. Schaia III direcionou o fluxo e sua
dobra particular estava formada. Schaia III estava em direção a Z planct 1 e 2, saídas
para o sistema do planeta Azul.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Pan-noa
Clia tomou a mão de Pan-noa. Todos aqueles seres ao redor deles os olhavam
com um ar de quase idolatria. Às vezes pareciam até mesmo sorrir. Pan-noa notou, ao
deslocar-se para a saída do templo, que o povo estava mudando. Pareciam crescer à
medida que ele e Clia andavam. Pan-noa não queria usar os antigravitacionais de sua
roupa porque, a cada passo dado, sentia-se melhor. Uma força magnífica estava sendo
injetada em seu sangue. Ele percebia, através de suas pérolas-cubo, que esta força
era sentida por Clia e também pelo povo da Irmã Floresta, tamanha era a satisfação
estampada em seus semblantes.
- Parece, – Falou Pan-noa num sussurro para Clia. - que liberamos uma tremenda energia ao matar a bichinha você não acha?
- Cale a boca e ande. – Disse Clia nervosamente. – Não percebe que o povo
está mudando?
Pan-noa deu uma pequena olhada para trás. O povo da Irmã Floresta já não
parecia um povo composto de pequenas fadas com asas de borboletas.
- Meu Deus eles estão se transformando! – Berrou Pan-noa.
- Olhe para frente e ande, Pan-noa. Estou assustada.
- Mas eles deveriam nos agradecer. Estão crescendo! Estão praticamente já do
nosso tamanho! - Pan-noa falava isso tentando interromper o passo rápido de Clia.
- Cale a tua boca, Pan-noa. E se eles não gostarem deste novo visual?
- Se eles não gostarem! – Repetiu Pan-noa alarmado. – É claro que vão gostar!
Eu pelo menos estou achando super bacana.
Clia puxou-o com mais força e, à medida que andavam o povo continuava a
mudar. Ao abrirem espaço para o casal passar, olhavam-nos admirados.
- Eles estão nos olhando como amigos, Clia.
- Eu sei, mas quero sair daqui! Esse lugar me dá arrepios!
Então Pan-noa percebeu. Olhou para o alto e viu a enorme cúpula que servia de
teto para o templo: estava manchada com o sangue da Deusa. “Deve ser isso.” Pensou
Pan-noa. “O lugar em que a Deusa morreu. É isto que está deixando Clia assustada.”
Mas, ao saírem do templo, os dois ficaram assustados. O clima mudara drasticamente. Uma imensa massa de nuvens negras despejava uma pesada chuva. Pan-noa
e Clia demoraram para perceber que os dois estavam cercados. Um enorme círculo de
pessoas estava em volta do templo. Então, em meio à chuva, perceberam duas crianças de mãos dadas, cobertas da cabeça aos pés com mantos prateados. Elas estavam
chorando.
Os dois ficaram parados em frente à abertura que dava passagem para o interior do templo. Os seres que estavam lá dentro começaram a sair. Passavam por
trás de Pan-noa e Clia em duas fileiras, uma para cada lado e, em seguida, formavam
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
um outro círculo de gente em volta do templo só que menor. Pan-noa e Clia não se
mexiam.
As duas crianças chegaram mais perto e Clia apertou a mão de Pan-noa.
- Eles nos libertaram. – Falou um ser logo atrás de Pan-noa e Clia com uma
magnífica voz. Pan-noa virou a cabeça e admirou, estarrecido, um ser enorme com
uma face delicada postado atrás dele. Olhou com mais atenção para toda aquela massa
corpórea e ficou mais admirado ao reparar que, das costas do ser, saíam duas asas
azuis pontudas como as de um dragão.
As duas crianças pararam tentando identificar, por entre a chuva, o ser que
estava falando. Então o ser fez um gesto circular com o braço, apontando de um horizonte ao outro. À medida que o braço formava uma curva, apontando para o céu, as
nuvens iam desaparecendo e um céu totalmente azul aparecia.
Pan-noa deu um berro de prazer. Clia nem respirava. Todo o povo em volta deu
um passo para trás. O ser veio e tocou os ombros de Clia e de Pan-noa. Os outros seres
levantaram voo e deslocaram-se para todas as partes do planeta. O ser que estava no
comando falou:
- Voltem para suas vilas! Com o tempo vocês saberão o que fazer. Vocês estão
livres de um imenso mal. Vão agora! – Gritou o ser.
As únicas pessoas que restaram no local eram Pan-noa, Clia, o ser absurdo e as
duas crianças. Uma das crianças falou:
- Vocês mataram o segundo pai. – Seus olhares não eram nada amistosos.
- Hum! – Disse Pan-noa rindo das crianças.
Subitamente uma delas levantou um braço e lançou uma rajada invisível de
força sobre Pan-noa, Clia e o ser. Pan-noa percebeu o deslocamento energético a tempo e imediatamente envolveu os três em um escudo de energia.
Eles sentiram a energia passar por eles.
- Caralho! – Disse Pan-noa. – O que são estes dois agora?
- São os filhos de Schaia III. Eles eram guardados pelo Mago de Prata, a quem
chamavam de o segundo pai. – Disse o ser.
- Mas que merda! – Disse Pan-noa. – Eu não vou matar nenhuma criança!
O ser olhou admirado para baixo e, observando Pan-noa, teve que entortar o
lábio para não rir.
- O que foi? – Disse Pan-noa enfurecido.
- Você não deverá matá-los, Pan-noa. A menos que não consigamos persuadilos a largarem seus poderes.
As duas crianças ainda estavam ali e pareciam irredutíveis.
- Vocês devem mudar seus nomes assim como eu mudei o meu e o do meu
povo. – Disse o ser a elas – Aceitando esta proposta vocês serão poupados porque
nasceram sob a influência do pacto e não têm culpa disto, porém, nada posso prometer
ao seu pai, Schaia III.
Um frio passou pela barriga de Pan-noa. “E se eu matei Schaia III com meu
Ulmátrio? O pai destas crianças. Meu caralho elas são os herdeiros do Império!” Pannoa começou a se dar conta de onde estava metido.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Schaia III está a caminho para resgatá-los. – Disse o ser às crianças. – Tomem
a decisão certa. Vocês poderão poupar a vida de seu pai.
As crianças começaram a discutir. Pan-noa tentou ler as suas mentes através
da sua pérola-cubo, mas as crianças tinham enorme poder e Pan-noa não captou nada.
Olhou para Clia. Ela estava realmente muito assustada. “E se tivermos que matá-las?”
Perguntou a Pan-noa. “Acho que vamos deixar o serviço para o novo ser supremo.”
Respondeu Pan-noa, dando uma olhadela para trás. Clia ainda estava assustada.
- Meu novo nome será Ing-mar. - Disse o menino tirando o manto da cabeça e
revelando uma face tão meiga que assustou Pan-noa e Clia. O menino olhou para sua
irmã como que esperando alguma reação dela. Como não houve, olhou para frente de
novo e, quase com medo, disse:
- O novo nome de minha irmã gêmea será Galarina.
- Ótimo. – Disse Pan-noa desligando o escudo.
Então, antes que o ser supremo dissesse qualquer coisa, a menina já tinha investido uma força energética contra os três. O ser supremo, com um gesto brusco,
revidou com uma força que fez a menina voar alguns metros para trás e cair morta no
chão. Seu irmão saiu correndo em direção a ela. Clia, Pan-noa e o ser também foram
ao seu encontro. Quando chegaram perto o menino olhou para eles chorando:
- Ela tinha concordado! Não foi minha culpa!
- Eu sei. – Disse o ser. – Só não tive tempo de dizer a Pan-noa que somente
se ela pronunciasse seu novo nome não teria mais o poder. É uma pena que ela tenha
escolhido a morte.
Ing-mar veio de encontro ao ser e abraçou-o.
- Por favor. – Disse ele ainda em lágrimas. – Não matem meu pai. Eu tenho
certeza que ele vai se arrepender.
- Eu imaginava, – Disse o ser. – que se vocês dois estivessem juntos ele poderia se arrepender. Mas agora, quando souber que fui eu quem a matou, não tenho
certeza se seu ódio não vai explodir.
O corpo da menina desapareceu enquanto Ing-mar abraçava o ser pelas pernas.
Pan-noa viu uma pequena esfera verde aparecer na areia no lugar do corpo da menina.
Pan-noa abaixou-se e pegou a esfera, guardando-a ao lado da esfera do Mago.
- Pan-noa. – Chamou o ser. Pan-noa virou-se assustado, como se tivesse roubando algo. – Você deve esconder sua nave. Schaia III não sabe que você está aqui e
nem deve saber. Devemos ir para a vila de Ing-mar. A mãe deve saber da morte de sua
filha.
Pan-noa contatou Kenn e pediu para recolher tudo que indicasse sua presença
naquele planeta. Então, alarmado, viu seu aerojet a caminho do céu do planeta Azul
(verde).
Ing-mar olhava melancólico para o nada.
- Não devo ficar triste por minha irmã. Ela escolheu o caminho errado. Mas
posso permitir-me sentir sua falta. Talvez isso me deixe triste. – Então olhou para o
ser. – Não ficarei triste. Não com vocês ao meu lado.
O ser tomou a mão de Ing-mar e começou sua caminhada para o norte. Ao ver
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os dois caminhando Pan-noa teve um breve momento de melancolia e lembrou-se
de seu pai. O ser era alto, belo e forte. Possuía cabelos mesclados entre o preto e o
dourado, caindo pelas costas entre duas asas gigantes que variavam de azul a verde.
A criança era, de fato, algo entre o humano e o objeto de um sonho, com os cabelos
embaraçados na altura da orelha. A criança olhou para trás e viu Pan-noa e Clia embasbacados com a cena que assistiam. Seus olhos amendoados finalmente revelaram
um sorriso. Em seguida a boca de Ing-mar também acompanhou o sorriso dos olhos
revelando dois dentes enormes como as crianças costumam ter.
- Então, vocês dois...vão vir ou não?
Pan-noa olhou para Clia mostrando um sorriso prazeroso por ter visto algo
realmente maravilhoso e esquecendo a morte da menina. Os dois deram as mãos e
foram em direção ao ser e Ing-mar.
Ing-mar olhou um pouco para cima, para o rosto de Pan-noa e tomou-lhe a
mão também. Pan-noa sentiu algo estranho, como se tivesse dando a mão para alguma
coisa misteriosa, algo que exercia nele um fascínio mas, ao mesmo, tempo uma certa
aversão. Pan-noa segurou a mão da criança um pouco mais forte e conseguiu sentir
um carinho imenso por aquela pequena figura. “Meu Deus.” Pensou Pan-noa. “Estou
de mãos dadas com o filho do Imperador do Universo, Schaia III! Caminhando numa
praia linda, ao lado de uma menina guerreira e, ainda, acompanhado de um elfo alado
gigante.”
O ser olhou para Pan-noa com um sorriso afetuoso. Pan-noa estremeceu. Então
o ser falou:
Não sou um elfo, Pan-noa. Na verdade sou um presságio de um anjo. Meu
destino, assim como os da minha raça, é entrar para o próximo círculo como um semidivino. Meu nome, bem, vocês podem me chamar de Lainoriel. É o som que mais se
aproxima de meu nome em sua língua.
Pan-noa olhou para Clia sorrindo. Finalmente estava se sentindo muito feliz.
Olhou para Ing-mar, para Lainoriel e para Clia de novo. Então parou e, ainda sorrindo,
todos pararam à sua volta. Pan-noa ordenou, via pérola cubo, que sua roupa de batalha ficasse transparente até a cintura, fechou os olhos e se concentrou o máximo que
pôde. Os três estavam parados à sua frente olhando para o corpo semi nu de Pan-noa
e deram um passo para trás.
As flores começaram a subir pela barriga de Pan-noa como se viessem das pernas, crescendo com caule e folhas. A qualidade da imagem era fantástica! Era como
se estivessem vendo as plantas crescerem de verdade. Então as flores abriram-se e,
logo depois disso, explodiram como fogos de artifício. Ing-mar soltou um murmúrio
de satisfação e se agarrou no braço de Clia. Das luzes dos fogos surgiram massas
disformes como se as pequenas e milhares luzes dos fogos se juntassem em formas abstratas. Estas formas começaram a rodar e ao rodarem tomaram o formato dos quatro
rostos ali presentes. Quando o desenho ficou estático os três começaram a aplaudir
Pan-noa. Ele então abriu os olhos e, maravilhado, encarou os três à sua frente. Olhou
para Clia, abraçou-a e deu um beijo em sua boca.
O entardecer caía formando um céu de fogo, laranja, vermelho, com tons de
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rosa e violeta nas nuvens. Os quatro andavam pela areia dourada subindo para o norte.
Pan-noa desejou que aquele momento nunca acabasse.
Kalum br
Be deitou-se na cama de Pan-noa. Era uma noite clara e a terceira lua completava um céu cheio de estrelas. Be olhava a magnífica noite através das enormes janelas abertas dentro do quarto de Pan-noa. “Um ano” pensou ela. “Tudo começou na
terceira lua, no aniversário dele.” Be, como em tantas outras vezes, começou a chorar.
“A animotatoo, a festa, a despedida.” Com um estremecimento no corpo lembrou-se
do dia em que Pan-noa foi embora. Os pais dele, reis de Kalum Br, assim como Be,
haviam chegado do trans universo imperial. Francian, tio de Pan-noa, pediu a Be que
se retirasse, porque havia algo muito importante a ser tratado com os pais de Pan-noa.
– De uma importância real, minha filhinha. – Dissera Francian afetadamente
como de costume.
Be retirou-se do palácio e estava saindo dos jardins do castelo quando lembrou-se do anel que Pan-noa havia lhe dado. Esquecera no quarto dele. Pediu aos
guardas para entrar no castelo de novo. Os guardas a conheciam mas como os reis
estavam em reunião ela não poderia entrar no castelo desacompanhada.
Dois guardas gentilmente acompanharam a menina de volta ao castelo. Entraram com ela pelo hall e a seguiram pelo salão principal. Ela estava quase subindo
as escadas quando ouviu alguma coisa esquisita na sala ao lado. Os guardas pararam
para ouvir também.
A mãe de Pan-noa estava quase gritando. Então ouviram o ressoar de uma
arma. Imediatamente os dois guardas entraram na sala. A cena era estarrecedora. Francian apontava uma arma para o casal real. Ele já havia disparado um tiro mas havia
errado. Os dois guardas dispararam várias vezes contra o tio Francian, matando-o. Os
reis olharam para os guardas.
- Como souberam? Essa sala não é anti monitorada.
- Foi a menina. – Disse um dos guardas. – Ela pediu para voltar ao castelo e
ouvimos gritos.
- Graças a você Be. – Falou Pan Newe, pai de Pan-noa. – Estamos salvos.
- Vamos fazer contato imediatamente com a nave. - Disse Larissa, mãe de Pannoa. – Nosso filho deve estar correndo perigo.
- Já é tarde. – Disse Pan Newe. – O bastardo isolou a nave completamente.
Nosso filho vai seguir seu destino e não podemos fazer nada a respeito.
- Mas o que ele está levando afinal, Pan Newe? – Perguntou Larissa desesperada.
- Quanto a isso não se preocupe. É uma carga perigosa mas está bem lacrada.
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Ele está levando um semi moldável do planeta Lafrout.
Toda a sala ficou em silêncio. Até os guardas ficaram boquiabertos.
- Como você deixou, Pan Newe?
- Acredite. – Disse Pan Newe. – Ele está seguro. O lacre da porta é inviolável,
e eu não tinha saída. Era a única forma de fazer com que Pan-noa chegasse são e salvo
ao sistema de Marson.
A tensão pareceu diminuir um pouco. Pan Newe pediu aos guardas que tirassem o corpo de Francian da sala.
- Que seja feito um enterro comum. – Disse Pan Newe, olhando para o corpo
do irmão com desgosto.
Pan Newe olhou para Be que ainda chorava e abraçou-a . Foram para a outra
sala e pediram ao serviçal que trouxesse creme verde para Be. Os três estavam quase
calmos quando o monitor baixou no meio da sala onde estavam.
- O Imperador Mago, Schaia III, entrará em suas teles para uma declaração
oficial a todo o Império.
Logo depois disso apareceu a cara do imperador no monitor. Na sala, os três
ainda estavam pensando na morte de Francian quando Schaia III começou a falar.
- Dentro de cinco dias padrão de Plan Ex, estarei fechando todas as dobras.
Todas as naves que estão a caminho de qualquer espaço de dobra devem ser detidas.
A partir de cinco dias padrão, todos os sistemas do Império ficarão isolados.
Pan Newe não conseguia falar. O impacto foi tão grande que ele quase desmaiou.
- A nave de Pan-noa está isolada! Não temos como contatá-la! Meu filho está
perdido. – Sentou-se na cadeira e viu a sua mulher e Be entrarem em pânico.
Be lembrava desta cena como se fosse hoje. Ela tentava imaginar se Pan-noa
ainda estaria vivo em algum lugar. Talvez perdido para sempre no espaço infinito,
enclausurado num transuniverso imperial. Mas Be sempre sentia algo em seu coração,
alguma coisa lá no fundo dizia a ela que ele estava bem.
- Pan-noa não é do tipo que vai ficar perdido no espaço. Alguma coisa ele vai
aprontar e, tenho certeza, não vai ser pouca coisa.
As quatro esferas
No segundo ou terceiro dia em que os quatro seguiam pela praia Pan-noa se
perguntava se uma praia tão grande era realmente possível. Pan-noa estava tão eufórico com a natureza e com as novas companhias que se sentia absolutamente extasiado.
Algumas vezes, porém, ele deixava o mundo de sonhos que aquele planeta
insistia em proporcionar e voltava a alguns temas que o incomodavam. Às vezes eles
ficavam, durante a noite, em volta de fogueiras. Pan-noa viajava em questões sem fim
com Lainoriel que estava sempre pronto a responder. Pan-noa sentia-se tão bem na
presença daquele ser alado que ele mesmo se questionava quanto ao que sentia realmente por aquele semidivino.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- O ser que vocês chamam de Andróida Andrógina – Dizia Lainoriel. – na
verdade não morreu, Pan-noa. Os seres, na realidade, simplesmente não morrem assim, sem mais nem menos, como você e sua cultura imaginam. Na verdade, os seres
se transformam tanto em matéria quanto em espírito. Os que ainda estão muito ligados
à matéria vão inteiramente com a matéria do corpo mas não acabam... Eles simplesmente prosseguem com a vida, gerando mais vida.
Pan-noa já sabia disso e sabia mais ou menos, pela explicação de Clia sobre a
Deusa, que certos seres morrem e vão para outro círculo, alimentando outro nível de
vida. Mas o que ele estava querendo saber era onde estava a Andróida Andrógina e o
que havia ocorrido com ela afinal de contas.
- Bem, – Continuava Lainoriel, com o rosto iluminado pela fogueira enquanto
Ing-mar dormia com a cabeça na coxa de Pan-noa e Clia absorvia todas as palavras do
anjo. – quando o Mago de Prata traiu Ortal o guerreiro e, por consequência, surgiu o
sonho de dez mil anos, nós ficamos aprisionados. O nosso povo, o povo que descende
da Irmã Floresta, ficou apenas procriando, sem ter a possibilidade de evoluir. Por
outro lado, estávamos livres da extinção, porque nada nesse mundo poderia nos matar.
O equilíbrio da magia era, ao mesmo tempo, uma maldição e uma dádiva que o Mago
de Prata havia nos lançado após sua primeira morte, há mais de dez mil anos atrás.
A maldição era que, sem nossa evolução carnal e espiritual, iríamos perambular sobre esta terra sem nada a fazer a não ser sobreviver. Caímos no marasmo e só não
nos esquecemos de quem éramos realmente porque tivemos o bom senso de guardar
nosso passado nos memo-cristais que achamos na vila abandonada do Mago de Prata.
A dádiva era que nós iríamos sobreviver a qualquer mal que ocorresse nesta
terra.
Quando o Mago de Prata retornou para libertar o universo do mal que tinha
causado, O Sonho de dez mil anos de Ortal, ele nos cedeu o templo de cosmo e ali
ficamos novamente enclausurados.
Entendam que a preocupação do Mago de Prata era que, se nós nos tornássemos seres supremos avisaríamos os outros seres supremos que o Mago estava quebrando pelo menos uma centena de leis universais que jamais poderiam ser quebradas.
O que ocorreu no templo de Cosmo quando você chegou, Pan-noa, foi a maior
dádiva que alguém poderia ter-nos concedido. Você praticamente o matou porque o
que resta dele é apenas a esfera do esquecimento da qual ninguém conhece o segredo
para resgatar a vida ou o que quer que seja de dentro dela. – Neste momento Pan-noa
apalpou o lugar onde havia guardado a esfera do Mago. – Você trouxe consigo um
ser, que no seu íntimo, estava guardando a essência de um ser supremo, ou seja, o que
era necessário para que nossa evolução retardada em dez mil anos viesse à tona em
pouquíssimo tempo. Por isso a Andróida Andrógina ainda existe aqui, dentro de nós.
- Mas, a Andróida Andrógina era uma Andróida, ela explodiu no teto do templo, insistiu Pan-noa.
- Sim e dentro da substância semi orgânica que ela possuía ela conseguiu
transferir a essência da Deusa para nós.
Pan-noa ainda não estava entendendo, mas sabia que o raciocínio de Lainoriel
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
fazia sentido. Olhou para baixo, viu o rosto do menino em seu colo e passou a mão no
cabelo dele. “É uma criança sem idade.” Pensou. “Às vezes parece um ser crescido e
às vezes parece um bebê. Que porra de magia fizeram com ele.” Então voltou a olhar
para Lainoriel.
- Nós também respiramos o sangue da Andróida Andrógina. O que isto pode
representar?
- Que vocês também estão com a essência de um ser supremo dentro de seus
corpos. Tenho certeza que Clia pode se tornar a próxima geração de seres supremos
deste planeta – Clia arregalou os olhos - pois nós, o povo da Irmã Floresta, iremos
logo para o próximo círculo. Nossa missão na matéria está para acabar. Mas quanto a
você Pan-noa, você é muito ... – Lainoriel parou por um momento e fitou o menino. –
Impreciso. Você é um dos Antes cujo destino não conseguimos determinar nem sequer
por um dia.
- Antes? O que é isso que você me chamou? – Perguntou Pan-noa indignado.
Lainoriel riu.
- São os seres que estão no estágio anterior, os seres que necessitam da matéria
para viver.
Pan-noa estava boquiaberto. “Então esta história de outros mundos de outros
seres muito mais evoluídos podia ser mesmo verdade? Seres que podem até mesmo
determinar nosso destino. Eu sou um Antes! Isso sim é um nome ridiculamente legal!”
Pan-noa olhou de novo para o menino em seu colo. Clia reparou que Pan-noa estava
determinado a cuidar daquele menino e sentiu um aperto em seu coração. Pan-noa
quase deu um pulo.
- Ei! – Disse Pan-noa assustado. – O que quer dizer que Clia vai ser a próxima
geração deste planeta? Ela não pode ficar aqui.
- Isso é algo que ela vai decidir, mas vejo uma enorme penumbra em seu destino. Talvez você esteja certo, talvez ela volte com você para o seu planeta.
Pan-noa abriu um sorriso imenso.
- Voltar ao meu planeta? Você tem certeza disso?
- Já lhe disse Pan-noa, você é o Antes mais impreciso que já contatamos. Não
existe destino certo para você nem para aqueles que o rodeiam.
Pan-noa ficou contente com a ideia de voltar para casa, mas lembrou-se de
seus pais mortos e lembrou-se de Be que poderia estar morta também. Uma lágrima
correu pela sua face. Olhou para baixo de novo e viu Ing-mar mexer um pouco a
cabeça sobre sua perna. “É, talvez eu devesse ficar por aqui neste mundo fantástico
e, como Schaia III tirou minha família, talvez eu tire este filho dele. Meu Deus o que
eu estou pensando! Mas por outro lado, esse menino tem algo...” Pan-noa levantou
os olhos cheios de lágrimas. Seus sentimento o traíam. Olhou para Clia e ela sorria
porque compreendia o que Pan-noa estava sentindo. Ele sorriu um pouco para ela mas
estava preocupado demais. Ele queria ficar com aquele menino. Não para vingar-se
de Schaia III mas simplesmente por que o menino o atraía. De alguma forma aquele
menino o enfeitiçara e nenhum sentimento no mundo era mais forte que aquele. Ele
poderia ficar no Planeta Azul para sempre, morando em choupanas, ou poderia ir para
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Kalum Br resgatar seu castelo das mãos da bicha de seu tio. Desde que aquele menino
estivesse com ele. “Para todo o sempre.”
Lainoriel olhava para Pan-noa assustado. Com certeza era uma das coisas que
ele não havia previsto, que não havia visto nas linhas do destino de Pan-noa. Então
Lainoriel pensou. “Creio que estamos com um problema enorme, um problema no
qual não devemos interferir. Ele já está com duas esferas do esquecimento. E tenho
certeza que vai ter mais. Isso é mais perigoso ainda...mas não posso interferir, não
ainda.”
À medida que o tempo passava Lainoriel ficava mais bonito. Agora seus cabelos estavam lisos e brancos passando das costas. Suas asas haviam crescido ainda
mais e o seu rosto parecia ficar mais delicado. Ninguém poderia dizer qual era o sexo
daquele ser. “Influência da Andróida Andrógina.” Pensava Pan-noa.
Ing-mar dizia que já estavam quase chegando à sua aldeia. Na verdade Ing-mar
falava isto apenas para Pan-noa. Aliás, ele praticamente não falava com ninguém mais
a não ser Pan-noa.
Pan-noa não sabia o por quê disso. Estava ficando preocupado com Clia. Não
queria magoá-la mas o menino não deixava Pan-noa ter um momento a sós com Clia.
Pan-noa parecia sentir-se aliviado com a imposição de Ing-mar, afinal ele também
preferia ficar com o menino do que com qualquer um dos dois ali. Lainoriel estava
ficando cada vez mais nervoso com esta situação. Aquilo para ele já tinha passado de
apenas um sentimento de afeição ou amizade. Estava virando uma obsessão. “E se
os dois tiverem que se separar? A magia do Planeta Azul amplia qualquer sentimento, principalmente entre pessoas que estão com lacunas sentimentais a preencher. E
quando duas pessoas assim se encontram e se completam ... este planeta ... este lugar
... é algo que extrapola a barreira da sensatez. Tantos problemas foram causados pela
paixão de que este planeta parece se alimentar.”
Lainoriel caminhava um pouco à frente do grupo seguido por Pan-noa e Ingmar, inseparáveis, e, logo atrás, vinha Clia um pouco alarmada com a situação entre
Pan-noa e aquele menino. Mas Clia era uma guerreira e não estava disposta a enfrentar uma situação louca como aquela. Na verdade ela parecia estar vislumbrando outra
história. “Vou virar uma Deusa!” Era o que mais a fascinava naquele momento.
Pan-noa parou ao lado de Lainoriel que estava abaixado entre arbustos. Clia
chegara. Ing-mar estava agarrado ao pescoço de Pan-noa e quase chorando.
- Pelos cristais! O que aconteceu aqui? – Perguntou Lainoriel.
- Onde estão todos? – Perguntou Ing-mar agora chorando.
- Vejam! – Disse Lainoriel. – No meio da vila, logo acima do lago de cristais.
Pan-noa estava estarrecido. Não conseguia imaginar o que poderia estar se passando. Foi Clia quem respondeu.
- Sua pérola cubo, Pan-noa. Acho que está na hora de começar a usá-la.
Pan-noa olhou, estarrecido com as palavras de Clia. Aquilo soou como uma
bofetada. “Mas por quê? Por que Clia está me tratando assim?” Então Pan-noa olhou
para Ing-mar assustado com a visão de sua aldeia.
- Eles foram levados! – Disse Pan-noa.
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- Sim. – Respondeu Lainoriel. – E lá no meio do lago existe um ser... pelos
cristais! – Lainoriel percebeu finalmente o que era. – Uma Irmã Floresta não modificada! E trancada numa destas cúpulas de luz que sua tecnologia consegue fazer!
- Schaia III. – Disseram Clia e Pan-noa ao mesmo tempo.
Ing-mar voltou seu rosto para o de Pan-noa, assustado.
- Meu pai. – Começou a chorar de novo. – Ele fez isso? – Disse estarrecido
apontando para sua aldeia.
Lainoriel levantou voo.
- Fiquem aqui e protejam-se. Eu vou ver o que está se passando.
Lainoriel chegou rapidamente à esfera de luz que pairava sobre o lago de cristal. Era uma cena linda e aterrorizante de se ver. Uma pequena Irmã Floresta, com
seu minúsculo corpo e asas de borboletas estava deitada na parte inferior da esfera
de energia que a mantinha presa. Lainoriel tocou a esfera produzindo ondas como se
estivesse tocando água. A Irmã Floresta ergueu um pouco a cabeça. Estava fraca. Olhou contente para Lainoriel, mas logo seu rosto se contorceu em dor. Então Lainoriel
conseguiu distinguir na dança dos lábios dela:
- Schaia III.
E caiu morta. A cúpula de energia sumiu e o corpo da Irmã Floresta caiu afundando na água. Lainoriel não conseguia mexer-se para fazer qualquer coisa.
- Que ela descanse em paz nas águas do lago de cristal.
Quando Lainoriel voltou viu que os três estavam com os escudos acionados.
- Podem tirar seus escudos. – Disse Lainoriel. – Ele não vai nos atacar. Não
enquanto estivermos com Ing-mar.
Ing-mar tinha um olhar de ódio. Agarrou-se na perna de Pan-noa e disse:
- Meu pai voltou-se para o mal. Ele sequestrou minha aldeia, minha mãe, meus
amigos e quer nosso mal. Agora eu entendo. Ele quer ficar com o poder, o mesmo
poder que corrompeu e tirou a vida de minha irmã. Ele não vai descansar enquanto
não estiver com o poder de novo e sem a interferência de ninguém.
Pan-noa estava com medo, um medo que nunca sentira na sua vida antes.
Schaia III estava vivo e Pan-noa estava com seu filho. O anjo tinha matado sua filha.
Ele tinha matado o Mago de Prata. “Seu filho, que agora se agarra em minha perna e
fala como se fosse um ser crescido”.
Os quatro ficaram em silêncio. Um silêncio mortal.
Pan-noa fechou os olhos, tomou ar e concentrou-se.
“Por tudo o que é mais sagrado... Kenn, você ainda está aí?” A demora era assustadora. “Kenn, contato via pérola cubo.”
“Espero que seja você Pan-noa.”
- Caralho! – Gritou Pan-noa alegremente.
- Onde esteve Pan-noa? Estou com dados catastróficos aqui. Estou operando
em nível de infusão. Você sabe quem está aí com você neste planeta? Schaia III!
- Relatório total sobre este crápula, Kenn. O que ele esteve fazendo?
- Pan-noa! – Disse Kenn alarmada. – Vocês estiveram na mira dele por dias!
Ele viu tudo o que aconteceu! Ele sabe de tudo, da morte do Mago, da morte da filha
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e de como o filho está contra ele!
- Como você sabe de tudo isso, Kenn?
- Porque ele transmite tudo para um receptor de dados, como se quisesse provas de tudo que ele está fazendo! O Imperador está completamente louco. Eu consegui
captar os dados porque ele nem desconfia que exista um transuniverso imperial por
aqui. Ele não tomou providência nenhuma com parâmetros de batalha!
- Ele está confiando muito nos cristais. – Disse Lainoriel. – Esse vai ser seu
erro. Agora que o Mago de Prata está morto os cristais dão informações parciais.
- Mas afinal, o que ele quer? – Disse Pan-noa perplexo.
Os quatro se olharam.
- Preservar seu poder. Certo? – Perguntou Pan-noa.
- Ele quer Ing-mar também. Senão não teria tomado a vila inteira como refém.
– Concluiu Clia.
- Ele sabe que eu não deixarei acontecer nada com estas pessoas. – Disse Lainoriel. – Ele vai querer negociar seu poder.
- Ele deve saber que eu não vou me entregar. – Disse Ing-mar.
- Eu acho que temos uma carta na manga! – Disse Pan-noa. – Acho que
podemos assustá-lo. Ele não sabe que estamos com um poder de batalha enorme nas
mãos.
- Mas você não poderá usá-lo Pan-noa. – Disse Lainoriel.
- Porque não?
- Essa terra deverá ficar imaculada. Você já causou muitos desastres usando
sua força de batalha. Nós percebemos que era uma tática não para destruir o planeta
e sim assustar o Mago de Prata com armas fictícias mas não devemos acordar a Eco
Revolta.
Pan-noa lembrou-se do livro. “Meu caralho! Eu poderia ter destruído o planeta inteiro!” Olhou para Ing-mar. “Eu poderia ter destruído Ing-mar”. Um espasmo
percorreu-lhe o corpo.
- Então, como iremos vencer esta guerra? O filho da puta é um mago! – Disse
Pan-noa indignado.
- Use sua força Pan-noa. Mas apenas assuste-o. Finja uma guerra mas não
dispare um míssil. Deixe o resto comigo. – Ao falar isso Lainoriel saiu voando.
- Ei! Para onde você vai? – Gritou Clia.
- Vou chamar os anjos!
Pan-noa olhou para Clia e para Ing-mar.
- Kenn... Aerojet Plasma! Drakunum Maximatrya nas minhas coordenadas. A
toda força! Apostos novamente. Localize o Imperador. Ataque surpresa imediato!
Para total alívio de Pan-noa a expressão infantil retornara ao rosto de Ing-mar.
Foi a aparição do aerojet que o deixou feliz. “Um brinquedo, uma criança feliz” pensou Clia. Os três entraram no Drakunum Maximatrya. As coordenadas de Schaia III
já estavam no painel. Pan-noa pediu uma visualização do local. Viu então o povo da
aldeia dentro de ruínas, viu a nave de Schaia III estacionada e então, para seu maior
espanto, viu Schaia III em pé do lado de fora das ruínas, esperando. Do seu lado estava
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
o corpo de uma menina com não mais de dezesseis anos. Pan-noa ampliou a imagem.
Quando o rosto da menina apareceu bem próximo no monitor do aerojet uma mãozinha veio por trás do ombro de Pan-noa e delicadamente tocou o monitor. Uma voz
enfraquecida e rouca chegou aos ouvidos de Pan-noa e Clia.
- Minha mãezinha. – A mão de Ing-mar acariciava o monitor como se acariciasse a face de sua mãe morta. Pan-noa começou a chorar. Clia não aguentou e pela
primeira vez abraçou Ing-mar. Ele agarrou-se fortemente ao pescoço dela e chorou
como a criança que era.
Pan-noa colocou o aerojet em movimento. O lugar era de fato longe de onde
estavam, numa região remota. A tribo de Ing-mar foi levada pela nave de Schaia III.
Clia perguntou a Pan-noa o quanto eles iriam demorar para chegar ao local.
- Dentro de instantes. – Disse Pan-noa ainda enfurecido.
- Então reduza a velocidade. Deveremos demorar mais um pouco. – Disse
Clia.
- Por que? – Perguntou Pan-noa irritado.
- Veja. – Apontou Clia para o horizonte.
Então Pan-noa percebeu uma mancha rosa no horizonte.
- O que é aquilo? – Perguntou Pan-noa perplexo.
- Diminua um pouco, Pan-noa.
Então Pan-noa praticamente parou o aerojet no ar. Eles estavam acima de um
platô que terminava em um desfiladeiro. Lá embaixo estava o mar. A noite era clara,
cheia de estrelas. Mas para onde eles olhavam havia nuvens negras. Então, para total
espanto de Pan-noa, a ponta da enorme lua começou a surgir. A mancha rosa intensificou-se. Era o reflexo de uma lua quase vermelha que vinha surgindo.
Pan-noa manifestou um pequeno sorriso, olhou para trás e viu que Ing-mar
conseguia sorrir para ele. Um sorriso triste mas um sorriso.
Ao olhar para Clia Pan-noa assustou-se: sua cor estava mudando! Ela estava
ficando branca e sua pele começava a brilhar. Seus olhos agora estavam da cor da lua.
Pan-noa sentiu uma força abismal emanando daquele ser.
- Chegou a hora Pan-noa. Voe! Vamos pegar o assassino.
O aerojet atravessou velozmente o ar acompanhando a costa. Depois de alguns
minutos a lua já estava inteira à vista. Então, sem mais nem menos, Clia apertou um
botão do aerojet abrindo a carenagem superior.
- O que você está fazendo Clia? – Berrou Pan-noa. Ing-mar estava assustado.
Clia apenas olhou para Pan-noa e disse:
- Adeus Pan-noa. Adeus Ing-mar.
E saltou no ar. Pan-noa tentou agarrá-la mas já era tarde. Porém Clia não caiu.
Saltou e Pan-noa a viu voar acima do aerojet, mesmo na velocidade abismal em que
estavam. Pan-noa tentou entender. Talvez fosse a roupa protetora. Mas era impossível
porque a roupa jamais iria suportar aquela velocidade.
- Ela está se transformando Pan-noa. – Era a voz de Ing-mar agora sentado ao
seu lado. – Veja mais ali atrás!
Era Lainoriel. E só então Pan-noa percebeu, com um frio na barriga de emoção,
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as asas prateadas que surgiam nas costas de Clia. Os dois voavam na frente do aerojet.
- O que vão fazer? – Perguntou Pan-noa. Mas eles já haviam sumido. Pannoa sentiu que algo iria dar errado. Chamou Kenn e pediu para que pelo menos trinta
naves e micro naves de batalha acompanhassem o aerojet.
As naves estavam a postos e logo depois Pan-noa estava cercado. Ing-mar estava completamente enfeitiçado pelo poderio de batalha que tinham em mãos. Então
as naves tomaram distância umas das outras. As mais externas começaram a ir na
frente formando um semi círculo. Pan-noa diminuiu a velocidade. As naves circundaram o lugar onde estava Schaia III. Todas as naves iluminaram o lugar e, sob a lua
agora já alta, Pan-noa viu, Schaia III a meio metro de altura do chão olhando sem
entender para as naves à sua frente. No chão havia duas pequenas esferas. Pan-noa
estava parado com seu aerojet olhando estarrecido para o monitor que ampliara a imagem das esferas. Clia e Lainoriel estavam ali, no chão, em formato de esferas, a morte
para os semidivinos na ideia dos Antes.
Pan-noa demorou muito para se recuperar do choque. O fato de mais duas pessoas morrerem o revoltou. Ele já não conseguia perceber a realidade e só forçou-se a
continuar fazendo o que tinha que fazer porque sabia que mais uma vida estava em
jogo. Não a sua, porque ele já não se dava conta de sua própria existência, mas a de
alguém que estava ao seu lado, do filho do Imperador. O mesmo Imperador que transformara toda sua vida em um grande inferno.
Por alguma razão Schaia III não se mexia. Estava realmente muito assustado.
Foi quando Pan-noa percebeu por que Schaia III não se manifestava. As naves haviam
sido algo inesperado mas o que estava deixando Schaia III naquele estado era outra
coisa.
A revolta dos Anjos
Pan-noa aterrizou o aerojet há uns dez metros de Schaia III. Abriu sua carenagem e saiu calmamente lá de dentro. Deu a volta na pequena nave sem sequer olhar
para Schaia III que estava em pânico. Ficou ainda mais espantado quando viu seu filho
ser tirado da pequena nave por aquele menino. Ing-mar deu a mão para Pan-noa e os
dois avançaram em direção a Schaia III. Pan-noa abaixou-se lentamente e lentamente
pegou as duas esferas do esquecimento. Ficou olhando para elas. Schaia III não se
mexia. Olhava para seu filho que fitava a mãe morta no chão.
- Ing-mar. – Disse Pan-noa. – Corra até as ruínas, tire o seu povo de lá e digalhes que corram e se afastem. Que fiquem reunidos atrás daquela colina.
Logo depois escutou-se os gritos do povo saindo correndo. Pan-noa não parava
de encarar Schaia III com olhar de ódio. Ing-mar retornou e ficou ao lado de Pan-noa
olhando para seu pai.
Schaia III começou a tremer. Olhou em volta e ao longe. A visão deveria ser
aterradora para ele. Abaixo das naves de combate havia milhares de seres alados.
Eram os irmãos de Lainoriel, o povo da Irmã Floresta modificado.
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- Você destruiu minha vida. – Disse Pan-noa. - Você tirou tudo que eu amava
. – Olhou para as duas esferas. – Mas agora eu tenho o equilíbrio. Tenho as quatro
esferas. Duas boas e duas más. Mas eu levo algo mais. Levo algo que vai me ajudar
a reconstruir minha vida, algo que eu amo de uma forma como nunca amei antes. Eu
levo seu filho comigo. – Ing-mar tomou a mão de Pan-noa e Schaia III fechou os olhos
não suportando aquela perda. – Deixo sua vida para os anjos. Como você matou um
dos seus irmãos eles vão querer entender-se com você. A propósito, se você não entendeu o que está se passando, graças à sua ganância você destruiu todo seu Império,
o de seu pai e de gerações de Imperadores atrás de você, portanto, tomara que você se
foda. – Schaia III parecia não ouvir.
Pan-noa deu as costas para Schaia III e, de mãos dadas com Ing-mar voltou ao
aerojet. Tirou o aerojet dali e emparelhou com as outras naves.
- Kenn, espero que você esteja gravando tudo isso.
- Que você acabou de mandar o Imperador Schaia III se foder? Não tenha
dúvida, Pan-noa.
Pan-noa e Ing-mar esperaram e então viram a pior cena que se pode conceber:
quando os anjos tornam-se, aos olhos humanos, demônios.
- Ing-mar. – Perguntou Pan-noa. – Você não está triste pelo seu pai?
- Na verdade Pan-noa ele nunca foi meu pai...pai de verdade.
Os anjos começaram a voar em círculos que, à medida que o tempo passava
iam se fechando. A velocidade começou a aumentar e chegou ao ponto em que Pannoa só conseguia ver a poeira que levantava da areia. Podia-se ouvir ruídos de vozes
berrando em meio ao barulho do vento e da tempestade que começara a se formar.
Quando tudo se acalmou, não restavam mais anjos nem demônios. Schaia III
havia sido engolido pela energia que os anjos formaram. “Provavelmente ele irá responder pelos seus atos.” Pensou Pan-noa que em meio àquela cena devastadora quase
sentiu pena de Schaia III. Porém, olhou para Ing-mar e pensou em seus pais, pensou
em Clia, em Lainoriel, pensou em Be. “Eles não podem estar mortos. Não podem.”
Então olhou para algo que, até então não lhe chamara a atenção. A nave de Schaia III.
- Como ele veio parar aqui? – Perguntou-se.
Olhou para Ing-mar, deu um pequeno sorriso, abraçou o menino e disse:
- Acho melhor irmos falar com o seu povo. Vamos levá-los para casa.
Ing-mar olhou para Pan-noa muito triste.
- O que foi Ing-mar?
- Você não está pensando em me deixar aqui não é?
Pan-noa sentiu um frio na barriga. “Levar Ing-mar comigo! Cuidar dele como
um irmão, como um filho. Um filho que eu poderia ter tido com Clia mas não tive.”
Pan-noa deu um imenso sorriso e chorando de alegria, de tristeza, de emoção, de saudades, de compaixão, de amor abraçou Ing-mar.
- É óbvio que você vai comigo Ing-mar! É óbvio! É só a gente achar um jeito
de formar uma dobra espacial, só isso, e vamos para minha casa. Ainda temos que
fazer uma guerra quando chegarmos lá! Uma guerra de verdade. Ainda temos que
matar a bicha do meu tio Francian e retomar meu planeta.
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Ing-mar olhou para Pan-noa meio que rindo.
- Uma guerra de verdade?
- Acho melhor a gente descansar um pouco Ing-mar. Eu estou exausto. Vamos
falar com seu povo e ver o que eles vão decidir.
A descoberta de Pan-noa
Nunca, em toda sua vida, Pan-noa imaginou ficar um dia sequer sem toda a
tecnologia a que estava habituado. Já havia se passado muito tempo desde que Pannoa estivera no Planeta Azul, morando com o povo de Ing-mar. Lá ele concebeu a
grandiosidade de uma lei adotada há muito tempo atrás, a eco Justiça. Era a lei da sobrevivência implantada pela natureza no ser humano. Graças a esta lei aquele planeta
estava imaculado, protegido de qualquer intervenção humana a não ser a necessária
para que pequenas aldeias espalhadas através do globo conseguissem sobreviver.
Essas aldeias não apenas sobreviviam. Elas assumiram o papel de existir da
forma mais digna possível, respeitando-se e respeitando o planeta.
Era óbvio que Pan-noa sabia tudo a respeito do povo de Ing-mar. Sobre como
eles tinham desaparecido da face do planeta e aparecido de novo. Ele tinha lido o livro
que relatava a história do Mago de Prata, de Ortal o guerreiro, do mundo anterior a eco
Justiça, do mundo anterior ao mundo da magia.
“Qualquer planeta do império poderia ter tido o mesmo destino deste planeta.”
Mas então olhou à sua frente e viu a vasta extensão do mar. Olhou para a cordilheira
de diamantes que tanto o impressionava. “Não, nenhum planeta no universo é como
este. Nenhum planeta consegue ser tão belo, tão mágico. Aqui o amor é ampliado.”
Olhou para Ing-mar ao seu lado dando atenção aos múltiplos raios coloridos que refletiam na cordilheira dos diamantes.
- É realmente muito bonito, não é Ing-mar?
- É esplêndido. – Disse o garoto.
Pan-noa jamais soube qual era a idade daquele garoto. Pelo que o livro contava
ele deveria ter, agora, três anos segundo os cálculos do planeta azul e mais ou menos
uns quatro e meio segundo os anos calculados por Plan ex. “Plan ex!” Pensou Pan-noa
abrindo um sorriso. “Aquilo sim deve estar em ruínas agora.” Mas este sentimento o
deixou tenso. Ele não poderia ficar ali sua vida toda. Ele teria que voltar e enfrentar
seu destino. Suas férias deveriam acabar. Olhou para Ing-mar de novo. “Quantos anos
afinal? Poderia, às vezes, ter minha idade e às vezes mais! Como era possível? Era
uma sequela da magia depositada nele e em sua irmã gêmea, agora morta. Mas às
vezes ele realmente parece ter quatro ou cinco anos.”
- Ing-mar. – Disse Pan-noa calmamente. – Já faz muito tempo que não andamos no aerojet, não é mesmo?
- Sim. – Disse o menino, sem dar muita atenção à pergunta.
- Bem, acho que está na hora de vermos uma coisa e eu gostaria de fazer isto
o mais rápido possível.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Ing-mar olhou para Pan-noa. “Agora ele deve ter uns quinze anos!” Pensou
Pan-noa aturdido. Porém Ing-mar olhou para as montanhas de novo. “E agora? Cinco
de novo? Será que ele sabe disso?”
- Está bem. – Disse o garoto.
Pan-noa entrou em contato com Kenn que ficara no espaço monitorando o planeta e Pan-noa. Logo depois o aerojet descia das nuvens em direção aos dois meninos.
Eles tomaram o caminho para o sul e foram ao encontro da nave de Schaia III.
“Não imaginava ter que ver esta coisa de novo.” Pensou Pan-noa. “Mas se quero ver
o que está acontecendo com meu planeta vou precisar dessa merda.”
Pan-noa voava com Ing-mar ao seu lado pensando em como seria difícil deixar aquelas terras. Porém, o fato de estar em contato com seu aerojet trouxe-lhe uma
certa melancolia e, ao mesmo tempo, uma vontade de voltar para sua casa, para seu
planeta e, acima de tudo, enfrentar seu tio, enfrentar as armadilhas que seu destino
lhe preparara. “Você é um Antes diferente. Você é um Antes que faz seu próprio destino.” Pensou Pan-noa imitando Lainoriel e, com um aperto no peito, circundou, numa
manobra violenta, a nave de Schaia III.
- É, estou pegando o jeito de novo! – Disse Pan-noa a Ing-mar. O garoto sorria. – Muito bem. – Continuou Pan-noa. – Vamos lá. Vamos roubar algo do Império.
Ing-mar olhou Pan-noa um pouco assustado, como se Pan-noa estivesse
contando uma piada de mal gosto, afinal Ing-mar era o Imperador agora que seu pai
estava morto, mas logo depois sorriu.
- É, enquanto eu não for o Imperador...
Pan-noa ficou impressionado com a presença de espírito do menino e teve um
pensamento estranho. “Acho que ele não vai querer ser o Imperador. Não depois de
ver o que é o Império realmente. Ou talvez por outro motivo.” Ficou chocado com
este pressentimento. Há algum tempo sentia coisas esquisitas, coisas que não estavam
ao seu alcance mas que conseguia sentir. Desde que começou a morar neste planeta
ao lado deste menino... “Talvez eu tenha realmente mudado... A Andróida Andrógina
... as quatro esferas...”
Os dois estavam do lado de fora olhando para a nave de Schaia III. Uma visão
destoante daquele lugar tão belo.
- Não é tão pequena quanto eu imaginava. – Disse Pan-noa.
Ing-mar estava absorto em pensamentos.
- Kenn, – Disse Pan-noa. – você conseguiu algum contato com a nave?
- Bem Pan-noa, enquanto você estava de férias durante meses com seu novo
amigo, descobri algumas coisas.
- Ora! Então me impressione.
A porta de entrada da nave se abriu. Um sentimento de alívio passou pela barriga de Pan-noa.
- Ora, ora, Kenn. Nada mal!
Os dois entraram na nave. Pan-noa ficou mais impressionado ainda quando viu
que a nave estava com tudo funcionando e em condições de voo.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Isso é uma maravilha Kenn! Como conseguiu interferir nos códigos?
- Eu não interferi! – Disse Kenn. – Na verdade tudo estava funcionando desde
que o Imperador abandonou a nave.
Agora Pan-noa estava assustado.
- Kenn! Pode ser uma porra de uma armadilha!
- Não Pan-noa. Tenho certeza que não é.
- Como você pode estar tão certa?
- Existe uma mensagem. É para o filho do Imperador.
- Uma mensagem para Ing-mar! Pois então que venha!
Ing-mar ainda estava absorto. Pegou na mão de Pan-noa pressentindo algo
ruim, algo que talvez nem quisesse ouvir.
Mas, para o desprazer dos dois, a voz do Imperador Schaia III começou a ser
ouvida:
- Caro filho ou filha. Quando um de vocês ouvir esta mensagem eu já estarei
no próximo círculo. Provavelmente estarei sendo julgado pois cometi vários crimes
contra a ordem universal. Um dia você entenderá que nem tudo foi minha culpa. Eu
agi com o coração e não com a cabeça. É, de fato você faz coisas absurdas quando
está apaixonado. Porém entendi meu erro. Sei que um de vocês está agora morto ou
foi transformado na esfera do esquecimento. Se um está morto o outro está vivo e com
um outro nome, com um nome que eu jamais deverei saber. De agora em diante me
torno massa corporal. Meu espírito já se foi. Neste momento estou sendo procurado
por seres intermediários que se dizem supremos. Deixarei este corpo fazer o que deve
ser feito para que eu seja levado ao próximo círculo e julgado.
Para você eu deixo esta nave. Ela o levará a Carmel, sede provisória do meu
Império. Cabe a você governá-lo. Espero que você me desculpe. Sei que errei, mas alguém me levou a este erro. Fui fraco diante de uma coisa que muito mais forte que eu.
Este planeta amplia a paixão, o amor. Tome cuidado. Saia deste lugar o quanto antes.
Este lugar é mágico. Ele não é bom nem ruim. É apenas mágico. Sei que você ainda é
muito, muito jovem e sei que você ainda não deve entender o que é se apaixonar por
alguém. Mas se isto ocorrer aqui, neste planeta, acho que seu futuro será incerto. Tão
incerto quanto o meu desde que me deparei com o ser chamado Mago de Prata. Que
este tenha morrido em dor.
Pan-noa e Ing-mar olharam-se e, ainda de mãos dadas, constataram algo estarrecedor. Ing-mar olhou para sua mão sendo tocada pela mão de Pan-noa. Olhou para
cima. Pan-noa estava branco. Ing-mar parecia ter crescido. Parecia ter a idade de Pannoa. Estavam os dois se olhando como se tivessem o mesmo tamanho. Uma lágrima
escorreu pela face de Ing-mar. Ing-mar abraçou Pan-noa.
- Nosso amor não será amaldiçoado pelo meu pai Pan-noa. – Disse Ing-mar
aos prantos – Esta magia foi quebrada! Quando eu troquei de nome eu troquei de vida.
Não sou mais aquele! Nem lembro mais daquele nome. Seremos o que quisermos ser
sem a interferência desta magia ou deste planeta.
Pan-noa abraçou Ing-mar. “Pena que isto não vai ser tão fácil. Não será tão
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
fácil desfazer esta maldita magia.” Tocou o cabelo do ser que o abraçava e disse:
- Maldita e bendita.
Os dois saíram da nave. Pan-noa sentiu algo errado, algo muito errado. Olhou
para Ing-mar. Seu tamanho não tinha se alterado desde que se abraçaram na nave.
“É a maldita magia!” Pensou Pan-noa aborrecido. “O menino não vai voltar ao seu
tamanho real. Tamanho real? Que porra de tamanho real? Ele nunca foi real!” Então
Pan-noa sentiu um frio na barriga. “A Andróida Andrógina! Ela está dentro de mim!
Ela pode estar fazendo esta magia acontecer, mas nem fodendo!”
- Kenn! Leve a nave de Schaia III para dentro do transuniverso imperial, isolea e veja como qual o procedimento para voltarmos para casa. A maldita nave deve ter
um dispositivo de dobra espacial interno. Faça com que funcione.
- Ing-mar! - Pan-noa estava enlouquecido. – Para o Drakunum agora! Vamos
sair daqui! – Olhou para o que deveria ser o menino e viu alguém do seu tamanho. –
Caralho! Eu não acredito!
- O que foi? – Perguntou Ing-mar. – O que te aflige Pan-noa?
Pan-noa tentou disfarçar.
- Nada, Ing-mar. Só... Bem, vamos falar sobre isso na nave. “Talvez na minha
nave eu tenha mais auto controle. Talvez seja só uma maldita alucinação.” Pensou
Pan-noa em silêncio.
- Nós vamos embora Pan-noa? E os outros? E a tribo?
- Acho que não temos tempo para isso Ing-mar.
Ing-mar refletiu um pouco, olhou para Pan-noa e, vendo a aflição estampada
no rosto do amigo disse:
- Está bem! Já que é para partir, então vamos logo.
Pan-noa sorriu finalmente. “É fascinante...é um ser fasci....” Pan-noa parou
de pensar e fechou o sorriso. O menino já estava dentro do aerojet. Pan-noa tocou o
peito e sentiu as quatro esferas que estavam seguras por um colar. “Vocês não vão me
controlar. Eu sou o pior Antes que vocês já tentaram controlar.”
Entrou no aerojet e rumou para o transuniverso imperial.
Do Livro das Mutações
Sobre as evoluções dos círculos
Uma das leis mais sagradas da ordem universal é a de que um círculo só evolui
quando o seu antecessor evolui, abrindo espaço para que um outro círculo anterior
ocupe o espaço da evolução da vida inteligente.
Os Antes sempre serão o primeiro círculo e só evoluirão para semidivinos quando deixarem de ser Antes. Existe uma informação muito valiosa acerca da evolução de
qualquer círculo: nenhum círculo torna-se evoluído parecendo com o seu antecessor,
isto é, se um Antes evolui para um semidivino este Antes terá uma forma ou estrutura
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
ou pensamento ou energia totalmente diferente do semidivino que o Antes substituiu.
Outra regra muito importante é que só quando uma espécie evolui totalmente
é que a passagem de círculo é consumada.
Os círculos superiores sempre trabalham para que os círculos inferiores evoluam pois só assim os superiores evoluirão também. Desta forma, todos os círculos
estão interligados e quanto mais os círculos inferiores evoluírem mais a inteligência
universal evoluirá. Talvez seja por isso que os Antes chamem, inconscientemente,
os semidivinos de Anjos. Os Antes entendem que os Anjos são seres superiores que
protegem suas vidas.
A passagem de uma espécie de Antes para o próximo círculo é demorada em
razão do tamanho da população existente no universo, pois a evolução pode começar
apenas com um Antes e demorar gerações para chegar ao resto da espécie. Às vezes
esta evolução estaciona em uma região do universo e então toda a espécie fica inalterada.
A evolução de um Antes quase sempre começa quando ele se depara com um
ou mais seres de outros círculos. O Antes sofre com extrema intensidade. A evolução
é forçada e, depois de concebida, o Antes tem um choque significativo. Na maioria das
vezes não supera o choque e extingue a evolução.
Nunca houve relato de que um Antes conseguiu desfazer a evolução por si
próprio a não ser, é claro, que ele venha a sucumbir.
O Fardo de Pan-noa
A situação estava piorando para Pan-noa à medida que ele saía da atmosfera
do Planeta Azul e via que Ing-mar o olhava de forma diferente. Parecia fascinado com
Pan-noa. Olhava-o pelo canto dos olhos e ficava nervoso. “O que está acontecendo
com este menino?” Perguntava-se Pan-noa. “E seu tamanho! Ele já não é mais uma
criança pequena! Está do meu tamanho, praticamente um adolescente!” E realmente,
Ing-mar transformara-se em um menino, um menino já quase crescido, crescido ao
ponto de estar se tornando um homem. Mas ainda não era. Pan-noa não queria admitir
mas estava achando a figura de Ing-mar quase atraente.
Pan-noa olhou mais uma vez para Ing-mar. Estava nervoso com a situação.
Tentou controlar o voo. Já estavam quase chegando ao transuniverso imperial. “Ótimo!” Pensou Pan-noa. “Lá eu vou controlar a situação.”
- Kenn, estou com um mau pressentimento. Prepare a sala de revisão corporal
para Ing-mar. Não tenho certeza se ele está bem.
- Eu estou ótimo Pan-noa! – Disse Ing-mar. Mas Pan-noa não deu ouvidos.
Silêncio.
- Kenn? Está me ouvindo?
- Sim Pan-noa. A sala está preparada mas acho que...
- O que foi Kenn? – Interrompeu Pan-noa bruscamente.
- Bem, por medida de segurança eu vou preparar a sala para você também está
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bem?
- Para mim? Você está louca? Estou com a roupa de batalha desde que entrei
neste planeta! Nada pode ter me atingido.
- Só por precaução Pan-noa. – Disse Kenn tentando ser simpática.
Pan-noa não entendeu, mas estavam quase chegando e ele queria fazer a manobra de entrada na nave com perfeição. Não queria nenhum incidente agora, principalmente para não assustar o menino.
Mas Pan-noa não parava de pensar. “Fazer uma inspeção corporal em mim?
O que há de errado?” A nave deu uma guinada para o lado e Pan-noa teve que concentrar-se melhor. Parecia até que Kenn tinha feito isso de propósito. “Ela não está
deixando eu me concentrar direito. Ela sabe que estou pensando que há algo errado.”
- Pan-noa! – Disse Kenn. – A sala de controle está pronta para sua chegada.
Pan-noa não disse nada. Agora tinha certeza de que algo estava errado e era
com ele. Kenn jamais agiria deste jeito. “E essa porra desse menino...” Ing-mar não
parava de olhar para Pan-noa. Estava fascinado.
Pan-noa pousou o aerojet na sala de controle e abriu a carenagem. Os dois
saíram da mini nave. O aerojet foi guardado em seu devido compartimento. Pan-noa
estava parado, olhando para os monitores que mostravam o Planeta Azul. Ing-mar
estava olhando para Pan-noa estarrecido. Pan-noa explodiu.
- Posso saber o que está havendo comigo??? – Berrou. O menino deu um pulo
para trás e caiu no chão assustado com a reação de Pan-noa.
- Kenn, pelo amor de Deus! – Disse Pan-noa quase chorando. – Diga-me algo!
Por que você quer fazer uma inspeção em meu corpo?
Silêncio.
O menino não se mexia ainda estatelado no chão da sala de controle. Pan-noa
virou-se calmamente e ordenou, via pérola cubo, que uma parede à sua frente se transformasse em espelho, um enorme espelho.
Pan-noa caiu de joelhos. Tocou seu rosto, seu cabelo. Não era ele! Simplesmente não era! Era um ser, um ser tão imensamente lindo que Pan-noa ficou enlouquecido! Começou a tirar a roupa. Queria saber se o resto do seu corpo tinha mudado
também. A roupa teimava em ficar grudada no seu corpo. Pan-noa foi descobrindo
que seu corpo estava moldado em formas precisas, fabulosas, inacreditáveis! Quando
finalmente conseguiu tirar a parte de baixo simplesmente não conseguiu se mexer. Olhou para o espelho para ver se o reflexo mentiria para ele. Talvez o reflexo mostrasse
uma outra realidade, uma realidade que ele, Pan-noa, não queria que estivesse acontecendo.
- Não pode ser. – Disse Pan-noa em sussurros. – Eu só posso estar sonhando.
Não pode ser.
Ing-mar olhava-o admirado. Seus olhos brilhavam ao fitar corpo de Pan-noa.
Pan-noa no entanto não tinha mais forças para discutir. Sabia que a forma
daquele corpo que agora era o seu fascinava a todos. A Pan-noa também. Tocou sua
barriga devagar e foi descendo com a mão até onde deveria estar seu pênis. Quando a
mão de Pan-noa tocou o órgão ou melhor, o não-órgão, Pan-noa sentiu-se extasiado.
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Tão extasiado que bilhões de pequenos pontos de luz de todas as cores explodiram
de onde estava sua mão para o resto do corpo como uma bomba que detona. Em sua
cabeça, em seu corpo, esta mesma bomba foi detonada e quando a explosão feita
pela animotatoo relaxou, Pan-noa também relaxou só que profundamente e, profundamente, Pan-noa desmaiou.
Ing-mar permaneceu deitado no chão da nave observando aquele corpo caído.
Por um momento pensou que Pan-noa havia morrido, mas notou que ele respirava
profundamente. Com muito cuidado e esforço Ing-mar colocou Pan-noa sobre um
sofá.
Ing-mar olhou à sua volta. Queria falar com a pessoa ou coisa que Pan-noa
sempre falava, mas tinha medo. Então, timidamente, perguntou:
- Kenn?
- Sim Ing-mar? – Respondeu a voz feminina da nave. Ing-mar sorriu desoladamente. Olhou para Pan-noa de novo.
- O que ouve com ele?
- Ele foi transformado Ing-mar.
- Ele vai ficar bem?
- Não sei. Mas acho que sim. Pan-noa é um menino que consegue contornar
seus problemas de uma maneira peculiar.
Ing-mar olhava para Pan-noa com afeição.
- Ele ficou tão bonito! Ele parece uma menina. Mas não uma menina de verdade. Parece um ser que... – Ing-mar não sabia dizer no que Pan-noa se transformara.
- Ele virou um ser Andrógino, Ing-mar. Um ser que possui a beleza dos dois
sexos num só. A Andróida Andrógina manteve a essência da Deusa em seu sangue e
Pan-noa foi transformado.
- É isso! – Disse Ing-mar. – Mas ele não tem nenhum sexo! – Disse Ing-mar
olhando para o meio das pernas de Pan-noa.
- Acho que devemos deixar Pan-noa descansar, Ing-mar. Vamos esperar que
ele acorde. Acho que sua mente está trabalhando de forma muito acelerada. Venha,
vamos deixar este lado da nave no escuro para que ele possa descansar melhor. Você
quer comer algo?
- Sim. – Disse o pequeno menino.
Ing-mar sentou-se, comeu e, assim como Pan-noa, adormeceu.
“Venha Pan-noa!” Dizia Be sorridente. Ela estava olhando para trás enquanto
Pan-noa tentava alcançá-la. Estava montada numa criatura fascinante, uma espécie de
réptil em tons azuis. A cabeça do réptil projetava-se para cima num pescoço alto. A
cauda era enorme e parecia balançar para dar impulso no ar. O réptil voava.
Pan-noa tentava manter o seu réptil estável, porém não conseguia domá-lo.
“Calma Be.” Dizia Pan-noa com receio de perdê-la de vista.
Mas Be tinha sumido. Pan-noa estava muito alto e o réptil parecia não querer
voar. “Vamos bichinho!” Dizia Pan-noa. “Temos que chegar até Be.” Então o réptil
lançou-se para baixo e Pan-noa conseguia ver o chão.
“Não estamos em casa! Estamos de volta ao planeta azul! Mas onde está Be?”
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Pan-noa conseguiu localizar Be lá embaixo. Em um instante já estava ao lado
de Be. “Veja Be! Lá ao longe, no meio do oceano.” Be olhava estarrecida. “Lá é a
cordilheira de diamantes!”
Be olhou para Pan-noa. “Como você está lindo Pan-noa. Como você ficou
desse jeito? Eu nunca vi alguém tão lindo!”
Pan-noa não falou nada apenas tomou Be nos braços e começou a beijá-la.
“Você também está linda Be. Muito mais linda que Clia, que Ing-mar, que
Lainoriel.” Be começou a tocá-lo e percorreu o corpo de Pan-noa com as duas mãos
avidamente.
“O que houve com seu corpo...? Como você está diferente!”
Pan-noa conseguia entender o que Be sentia. Ele mesmo sentia seu corpo
através dela.
Mas então Pan-noa começou a ficar com medo. “Meu corpo está mudado.”
Pan-noa começara a ficar excitado mas não sentia nada entre suas pernas. Então parou
e olhou para Be. “O que houve Pan-noa? Do que está com medo?”
Mas Pan-noa voltou a beijá-la. Estava sentindo muito calor, muito frio. Estava
excitado como nunca ficara antes. Então Pan-noa não teve mais medo. Sentiu algo
crescer dentro dele. Algo muito forte, uma paixão tão grande que não conseguia mais
controlar. Tirou a roupa de Be e começou a tirar a sua própria. “Meu Deus! E se eu não
tiver mais...” Mas Pan-noa continuou. Be virava os olhos para cima tocando o corpo
de Pan-noa. Quando Pan-noa tocou o corpo de Be, seus pequenos seios, sua barriga,
quando seu peito tocou nos seios de Be ele sentiu. Sentiu algo absurdo, sentiu algo
rasgando sua pele. Algo que estava lá dentro e que surgiu com uma fúria aterradora.
Pan-noa penetrou Be e sentiu algo fulminante enquanto a penetrava. Be gemia de
prazer e dor ao mesmo tempo.
Os dois rolaram em carícias pela areia. O corpo de Pan-noa estava quente e
suado, grudado ao corpo de Be de forma prazerosa. Pan-noa sentia seu membro dentro do corpo da menina. Líquidos, cheiros. O prazer começou a brotar lá no íntimo
do corpo de Pan-noa e veio vindo de forma lenta e majestosa. Um arrepio começou
a ser sentido nas pernas depois foi para as costas. Então os músculos de Pan-noa
contraíram-se e ele agarrou os cabelos de Be. Uniu sua boca à dela e explodiu.
Pan-noa explodiu e logo levantou-se dando um berro. Olhou para baixo, para
seu sexo, e viu seu membro molhado. O sofá estava sujo com o líquido branco.
Pan-noa deitou-se de novo, aliviado. Começou a rir. Depois, tocou com sua
mão o membro para ver se realmente estava ali, se era de verdade.
- Graças a tudo o que é mais sagrado! – Disse rindo.
Mas então levantou-se assustado.
- Kenn? Você não viu isso não é?
- Vi o que Pan-noa?
- Você viu! Eu não acredito! – Disse Pan-noa, mas ainda ria.
- Bem, não pude deixar de notar.
Pan-noa parou por um instante.
- Ei, quem tirou minha roupa?
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- Você mesmo. – Disse Kenn.
- Um sonho e tanto. – Falou Pan-noa. – Onde está Ing-mar?
- Explorando a nave. Você está dormindo há dias Pan-noa!
- Melhor assim.
Pan-noa foi para a sala de banho. Apenas deixou que a água escorresse pelo
seu corpo. Não queria tocar-se muito. Achava que aquele corpo não era o seu. “Devo
me acostumar a isso.” Disse para si próprio. “O que está feito está feito. E agora eu
já entendi. Devo controlar o corpo da mesma forma que aprendi a controlar a animotatoo.” Vestiu-se e saiu para a sala de comando de novo. Ing-mar não estava lá. Não
quis chamá-lo. “Melhor ele ficar um tempo longe de mim.” Pan-noa realmente estava
assustado com seu novo corpo e com que ele era capaz de fazer.
- Kenn, o que você descobriu sobre a nave?
- Algumas coisas que você vai gostar. Em primeiro lugar a nave esconde um
filhote de Extuártico numa não-sala. Podemos utilizá-lo para voltar para casa porque a
nave tem todos os mapas de todos os sistemas. Outra coisa, existem arquivos na nave
comprovando que o sistema de Plan-ex foi destruído.
- Isso eu já sabia. Nossa bomba deu certo. – Disse Pan-noa alegremente.
- Existe uma informação curiosa. O Imperador Schaia III...
- Que Deus o tenha. – Interrompeu Pan-noa.
- ... estava preocupado com algumas rebeliões. Nada oficial, mas Kalum Br
estava envolvido.
- Kalum Br. – Repetiu Pan-noa com um frio no estômago. – Será possível?
Meu tio jamais se meteria nesse tipo de coisa. – Uma esperança passou pelo coração
de Pan-noa. – Be. Que sonho lindo!
- Muito bem. – Continuou Pan-noa. – O que estamos esperando?
- Pan-noa. – Falou Kenn. – Tem certeza que devemos levá-lo conosco?
- Levar quem? – Perguntou Pan-noa perplexo.
Então Kenn mostrou um pequeno ser humano de cabelos esbranquiçados brincando nas águas do lago artificial tão conhecido por Pan-noa.
- Ele voltou ao normal! – Disse Pan-noa ao olhar o pequeno Ing-mar nadando
feito louco nas águas transparentes.
- O que quer dizer Pan-noa?
- Veja por si só Kenn. Ele voltou a ser aquele menino de quando eu conheci! –
Disse Pan-noa com cara de afeto.
- Pan-noa, esse menino nunca mudou desde que você o conheceu. Eu tenho
todos os registros.
Pan-noa parou no tempo e espaço. “Então é isso.” Disse a si mesmo. “Você
quer controlar minha mente e meu corpo, não é mesmo? Você mudou a aparência do
menino só para me mostrar o que eu poderia virar. Mas você não vai conseguir. Não
mesmo. Eu já estou treinado. Veja isso!”
Pan-noa abriu a parte de cima de sua roupa, olhou-se no espelho e fez com
que surgisse em seu corpo a figura da Andróida Andrógina e logo depois fez com ela
explodisse em mil pedaços e desaparecesse. Olhou para o espelho olhando-se nos
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olhos e disse:
- É isso aí! Alguém aqui vai se foder e não vou ser eu! Traga o menino Kenn.
É óbvio que vamos levá-lo. Afinal, eu o adotei e, apesar de ter doze anos, considero-o
meu filho.
- Treze Pan-noa. Você completou treze anos há dois dias.
Pan-noa olhou abismado para o nada.
- Então me dê Kalum Br de presente Kenn.
Ing-mar entrou na sala de comando. Olhou para Pan-noa meio assustado. Mas
logo que viu o sorriso estampado na cara de Pan-noa correu para abraçá-lo.
- Está tudo bem Ing-mar. Nós vamos para minha casa.
Ing-mar olhou para Pan-noa e disse:
- Pan-noa, devo dizer que você está muito bonito.
Pan-noa sorriu. “Eu vou controlar essa porra!”
Kalum Br
Be estava sentada na escada da escola cercada por alguns amigos. Ela parecia
não absorver as conversas. Estava em um mundo à parte. Uma amiga aproximou-se
dela.
- Você não pode ficar assim pelo resto da vida Be. Já faz um ano e dois dias.
Por que você não experimenta sair? Hoje nós vamos à praia. Por que não nos acompanha?
Be não conseguia nem ouvir a menina.
- Desculpe, mas não vai dar. – Disse Be atordoada.
A menina juntou-se ao grupo de amigos. Be ainda estava sentada na escada
quando ouviu um sinal mandado através de sua pérola cubo.
- A todos os habitantes do sistema Kalum Br. O Império declara estado de
emergência. Todos os habitantes estão sob guarda do Império a partir de agora.
Be levantou-se e saiu correndo. Só tinha um lugar no qual ela saberia o que
estava acontecendo.
Entrou sorrateiramente no castelo do qual Pan-noa havia entrado e saído com
ela tantas vezes. Be conseguiu, pelas passagens secretas, entrar no quarto de Pan-noa.
Ligou os monitores que davam acesso às informações secretas e viu, aterrorizada, que
todas as grandes casas estavam cercadas pelo Império. Todos os planetas com alta
tecnologia viam-se sob custódia. O sistema de defesa de Kalum Br estava em alerta
máximo e o clima era de guerra.
A porta do quarto de Pan-noa abriu-se e um guarda pediu a Be que descesse.
Larissa, mãe de Pan-noa, esperava por ela na sala principal. Lá estavam PanNewe e seus assessores. Na mesma sala havia um membro do Império. Be reconheceu
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pelo uniforme. Larissa abraçou-a e disse para ela ficar quietinha. Be estava chorando.
- A situação está muito delicada Imperador Pan-Newe. – Disse o correspondente do Império. – Schaia III está desaparecido. Sabemos que ele dirigiu-se para Z
planct 1 e 2.
- E o que nós temos com isso? – Disse Pan-newe. – Ele jamais governou este
Império de verdade. Se não fosse pelo conselho das grandes casas nossa raça já teria
desaparecido.
O correspondente olhou com certa fascinação para Pan-Newe. De certa forma
o homem tinha razão. Schaia III havia demonstrado total desequilíbrio mandando
fechar as dobras espaciais.
- Veja, Pan-Newe. Sabemos da insatisfação de todos. O problema é que não
queremos nenhum incidente até que...
- Até que vocês achem o Imperadorzinho? Será que ele não foi dar um passeio
com o seu amigo, como é o nome da coisa? Mago de Ouro, Mago de Prata?
- Pan-Newe. Por favor. – Disse o correspondente.
- Está bem. – Disse Pan-Newe quase se desculpando.
- Será que podemos contar com vocês?
- Vocês poderão contar com nosso apoio. Vocês sabem que temos tecnologia e
força para fazer dobras no espaço. Temos tecnologia também para abrir o espaço interno e desta forma obter energia dos Extuárticos. Só não fizemos ainda porque nossos
aliados de agora foram nossos inimigos de antigamente. Existe muita discórdia ainda.
- Nós sabemos, Pan-Newe, nós sabemos. E é por isso que devemos manter a
calma e tentar localizar Schaia III, afinal foi o Império que estabeleceu a paz com seus
rivais, não foi?
- Sim. – Pan-Newe admitiu. – Por mais incrível que pareça, foi graças à união
da família de Schaia III que as grandes casas entraram em acordo. – Pan-Newe parou
por um instante. – Vocês têm meu apoio desde que retirem a custódia de meu sistema
e deixem apenas uma nave de observação para não haver mal entendidos.
- Uma nave de observação?
- Eu disse que vocês têm minha palavra. As casas maiores estão conectadas.
Podemos começar um incidente agora mesmo. Temos um sistema de defesa que faria
estes trans universos de batalha aí em cima virarem pó em um piscar de olhos. – Berrou Pan-Newe.
O membro do império concordou com a cabeça. Quando retornou para sua
nave e retransmitiu a conversa que teve com o Imperador de Kalum Br, os generais
em Carmel logo viram que estavam travando uma batalha perdida. Se Schaia III não
aparecesse o Império iria entrar em uma guerra interminável.
Pan-Newe informou à população que não existia ameaça alguma por parte do
Império.
Be olhou para Larissa.
- Precisamos conversar.
Larissa tomou a mão de Be e foram para o quarto de Pan-noa.
- Eu sonhei com ele ontem. – Disse Be chorando.
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- Eu sonho com ele todos os dias meu bem. Devemos manter a fé que ele esteja
vivo mas devemos tocar nossas vidas para frente, mesmo que isso doa.
Be sabia que Larissa falava da boca para fora. Sabia que a mulher sofria até
mais do que ela.
- Não é isso Larissa. O sonho foi real, foi um presságio. Ele estava comigo! Eu
senti. Mas ele ... ele não era ele mesmo.
- O que quer dizer? – Larissa estava assustada.
- Não consigo explicar. Apenas sei que ele, que ele está vivo! – Começou a
chorar de novo.
- Be, por favor. Diga-me o que você sonhou.
Be contou do sonho, contou de como Pan-noa estava, contou de onde o sonho
se passou. Larissa escutou tudo com muita calma, depois falou com a menina da
forma mais carinhosa possível.
Mais tarde, nos jardins do palácio, Larissa pensou. “Meu filho, no Planeta
Azul. Seria possível?” Larissa parou e olhou para o céu estrelado. “Devo agarrar-me
ao sonho de uma menininha? Certamente é a única coisa que tenho.”
O retorno de Pan-noa
Pan-noa e Ing-mar tinham decidido que, não importava o que acontecesse,
iriam ficar juntos. Pan-noa cuidaria de Ing-mar e vice-versa. Se Ing-mar quisesse tomar o poder do Império, o que era seu direito, iria fazê-lo e a nova sede do Império
seria Kalum Br.
- Espero que meu pai concorde. – Disse Pan-noa assustado com a ideia – Se
ele estiver vivo.
Mas o que mais o assustava era olhar-se no espelho. “O que eu me tornei?”.
Ele tinha suas suspeitas mas não queria responder.
Os dois estavam sentados em cadeiras separadas. Fitavam para o espaço infinito, negro. Então olharam-se e fizeram um sinal afirmativo com a cabeça.
- Kenn. – Disse Pan-noa. – Coordenadas fechadas?
- Sim Pan-noa. Os mapas foram transferidos da nave do Imperador. Iremos
ativá-la para formar a dobra espacial. Os cálculos estão prontos. Será uma viagem
curta.
- Assim espero Kenn.
A nave entrou em movimento. Ing-mar segurou a mão de Pan-noa. Estava
suando. Os monitores indicaram que a nave estava em velocidade de galáxia. A dobra
formar-se-ia a qualquer momento. O Extuártico fora ativado e a dobra feita. Pan-noa
estava a caminho de casa, de Kalum Br.
Logo que a nave estabilizou-se Pan-noa e Ing-mar sentaram-se no sofá lateral.
Pan-noa viajava em pensamentos e Ing-mar não quis atrapalhar. Sabia que o amigo
havia mudado e precisava pensar. Encostou sua cabeça nas pernas de Pan-noa e dormiu.
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“Como isso foi acontecer?” Pan-noa ativou sua pérola-cubo e pediu um espelho à sua frente. O espelho desceu imediatamente do teto da nave. Pan-noa começou a
se olhar. À medida que passava os olhos pelo seu corpo ficava mais admirado. “Como
pôde?” Seus cabelos estavam curtos, brancos, suas sobrancelhas negras, a pele branca
tendendo ao dourado e seus olhos... “Meu Deus meus olhos!” Eram de círculos negros, cinza e verde. “Os cílios negros e tão grandes...” Pan-noa passou a mão em sua
face. “Lisa. Tão lisa.” Então fechou os olhos e concentrou-se. Sim estava funcionando! A animotatoo mudou a cor de sua pele, estava mais escura. “Ótimo! Então este
será o procedimento. Vou começar com coisas fáceis.” Agora conseguia controlar a
cor do cabelo. “Fascinante!” Mas algo começou a incomodá-lo. Olhou para baixo, era
o menino.
“Não. De novo não.” Ing-mar começou a se tornar diferente. Sua expressão
já não era meiga. Pan-noa continuou olhando. “Vamos ver onde essa porra vai dar.”
Deixou a cabeça mais leve, não tentou controlar a coisa. Ing-mar mexeu-se, causando
um certo desconforto emocional em Pan-noa. “Vamos lá.” Pensou Pan-noa. “É só isso
que vocês sabem fazer?” Mas então veio um baque, algo de dentro de seu coração, de
sua barriga. Ing-mar já não era Ing-mar. “Meu caralho!” Disse Pan-noa sentindo-se
totalmente atraído por aquilo que dormia em sua perna. Começou a tremer. Fechou os
olhos e controlou-se. Olhou-se no espelho e viu que suas feições eram as mesmas de
quando tinha pedido o espelho. Então começou a tocar em meio as suas pernas. Num
segundo deu um pulo acordando Ing-mar com um berro.
Ing-mar olhou-o assustado. Já não era a coisa. Tinha voltado ao Ing-mar normal, o menino que tanto adorava.
- Não chegue perto de mim. – Gritou Pan-noa para Ing-mar.
O coitadinho estava tão pálido que quase comoveu Pan-noa mas ele lembrouse do que não havia no meio de suas pernas. Ficou em silêncio. Ing-mar estava quase
chorando. Então concentrou-se. “Be. Pense em Be.” E então veio a imagem da garota
que tanto amava. Pan-noa relaxou com esta visão. Cautelosamente tocou-se de novo
e, ao sentir seu membro, olhou para baixo e começou a rir. Ing-mar, no entanto, estava
assustado. Pan-noa olhou para ele rindo, quase satisfeito.
- Desculpe, Ing-mar. Tive um sonho horrível.
- Você não precisa mentir para mim, Pan-noa.
Pan-noa fechou o rosto. “Seria possível?”
- Do que você está falando Ing-mar?
- Você tornou-se um ser supremo, Pan-noa.
Por esta Pan-noa não esperava. Estava na sua cara o tempo inteiro mas ele não
queria admitir.
Pan-noa não conseguia falar.
- Você não pode ter medo disso, Pan-noa. – Continuou Ing-mar. – Seus pensamentos vão te trair. Deixe a coisa fluir.
- Mas...mas esta coisa está fazendo eu te ver como alguém mais velho alguém
que possa ser meu amante!
Ing-mar calou-se, pensou por uns instantes e disse:
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- Você deve aprender a controlar. É óbvio que tudo isso não passa de uma
provocação, uma espécie de prova.
- Quer dizer que é só uma alucinação, não é? É só para que a coisa diga: “ei
estou aqui Pan-noa, está vendo no que você se transformou?”
- Acredito que sim. Não deixe a coisa te levar mas não trate o assunto tão a
sério está bem?
- Ah sim! Isso é fácil para você dizer não é Ing-mar?
- De certa forma sim Pan-noa.
- Por que está dizendo isso?
Ing-mar tirou a roupa. Pan-noa quase ficou histérico.
- Está vendo? Nós somos iguais. Fui criado a partir de um ser humano, Schaia
III, e de um ser que veio de uma espécie de magia. O Mago de Prata queria a todo
custo criar um ser evoluído, alguém que ele nunca conseguiu ser de verdade.
Pan-noa ficou boquiaberto. Então a pérola-cubo agitou-se e sua cabeça
começou a fervilhar.
- Isso significa que... já não sou mais um Antes. Nós dois não somos mais
humanos!
- Bem. – Disse Ing-mar dando de ombros e quase sorrindo. – Eu nunca fui um,
quer dizer, verdadeiramente.
Pan-noa sentou-se no sofá. Ing-mar estava de pé.
- O que vou fazer? – Perguntou Pan-noa. – Vou voltar para casa e dizer: “Pai,
mãe adivinhem! Acabei de virar um ser supremo! Daqui a pouco, se tudo correr bem,
viro um anjo, logo depois um ser divino e depois bem, quem pode saber...”. Isto se
meus pais estiverem vivos.
- Não é bem assim Pan-noa e você sabe.
- Bom, para falar a verdade eu já não sei de mais nada.
Ing-mar viu a confusão no olhar de Pan-noa. Pela primeira vez viu aquele ser
ficar desnorteado com seu destino.
- Pan-noa, por enquanto só pense em uma coisa: pense que muitas pessoas
morreram para você tornar-se o que tornou-se. Isto deve ser importante não é?
Agora sim havia levado um tapa. Pan-noa começou a pensar sobre tudo, desde
o dia em que havia saído de Kalum Br. Começou a lembrar o que tinha passado.
“Pense que muitas pessoas morreram”. Era engraçado, mas Pan-noa não sentia seus
pais mortos. De alguma forma ele não sentia. Fechou os olhos e começou a chorar.
Chorar por Clia, por Milos, por Litri, por aquele povo da idade das sombras, chorou
pela irmã de Ing-mar que nunca soube o nome, por Lainoriel. Olhou para o pequeno
Ing-mar e chorou por ele. E então pensou: “Não vou chorar pelos meus pais nem por
Be. Não enquanto não souber se eles estão vivos ou mortos.”
Recostou-se no sofá e fechou os olhos.
“Por enquanto eu vou levando, vou segurando. Caminho pelo corredor da
enorme galeria. As portas me levariam a lugares incompreensíveis. Como a chuva,
as lágrimas caem do céu. Como facas lágrimas furam meus sonhos. Sugo meu desejo
pela vida, olho para lado e não o vejo, não a vejo. Lá de cima Deus berra comigo. Tão
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alto que não consigo compreender. Então olho à minha frente... você poderia ser um
raio de sol e trazer-me aquele sorriso. Poderia brilhar por um instante. Mas sumiu...
todos sumiram. Será esta minha sina? Não tê-lo mais? Nunca mais? Como a chuva, as
lágrimas caem do céu. Todo o belo está morto. Tudo que é belo morre.
Agora estou levando, vou segurando... até você surgir de novo. Mesmo que
abençoado por pecados. Segurarei sua mão e pelo corredor voltarei, voltarei com
você.”
Pan-noa levantou-se num pulo. Ainda chorava. Viu que Ing-mar ainda estava
ao seu lado. Apertou-o contra o peito. “O que vamos fazer? O que poderemos fazer?”.
Pela primeira vez na vida Pan-noa estava assustado, realmente muito assustado.
- Sistema de Kalum Br em cinco, quatro, três, dois, um... agora. – Era tudo que
Pan-noa não queria ouvir. Não naquele momento, não naquele estado. Um baque foi
sentido devido à desaceleração da nave. Pan-noa levantou-se.
- Kenn. Camuflagem total. Vamos seguir para Kalum Br e estacionar atrás da
terceira lua.
Durante o tempo em que a nave entrava no sistema e seguia em direção ao
planeta, Pan-noa vestiu Ing-mar com uma roupa de batalha.
- Devemos retomar nossa força Ing-mar. Vamos nos preparar.
- Pan-noa. – Disse Ing-mar com um brilho nos olhos. – Eu conheci muitas
coisas desde que eu nasci. Conheci poderes que você jamais sonharia e morei com um
dos seres mais poderosos que você possa imaginar. Pan-noa, você é um ser especial,
você tem que saber disso. Não é pelo fato de você ter mudado exteriormente que você
vai virar algum tipo de aberração. Você tem um poder muito além do que imagina e
não pense que vai ficar sozinho porque não vai. Aconteça o que acontecer eu estarei
sempre ao seu lado.
Pan-noa chorava. Como um ser tão minúsculo poderia passar-lhe tanta energia? Pan-noa segurava Ing-mar pelos ombros. Encarou-o com um olhar muito compenetrado. Então falou alto:
- Kenn? Já estamos em posição?
- Em alguns instantes.
- Prepare o aerojet.
Pan-noa levantou-se, olhou para cima e pensou. “É agora! Agora vou saber.”
“ Contato via pérola-cubo com Be imediatamente!”
A conexão demorou mas no instante seguinte Pan-noa ouviu uma voz muito
fraca, quase um murmúrio aos seus ouvidos.
“Pan?”
Pan-noa caiu de joelhos. Lágrimas rolavam pela sua face.
“Be ... é você ?”
“Pan-noa. Você....você está vivo?”
“Sim, Be sou eu... estou chegando Be.”
“Pan-noa!” A menina estava em prantos.
“Be, por favor, acalme-se. Eu preciso saber de uma coisa. Por favor Be, digame, meus pais Be... como eles estão?”
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Be demorou para entender a pergunta, afinal havia se passado mais de um ano
e Be quase esquecera do incidente que salvara os pais de Pan-noa.
“Seus pais? O que têm eles?”
“Eles estão vivos Be? Por favor, diga-me!”
“É claro que estão!”
Pan-noa abraçou Ing-mar que não estava entendendo muita coisa do que se
passava, mas tinha uma certa ideia tamanha a alegria estampada no rosto de Pan-noa.
“Pan-noa, você está aí? Ei! Onde você está?”
“Be, não tenho tempo para respostas. Estou localizando uma nave do Império
em meus monitores. Vá para o castelo e avise meus pais. Estarei lá daqui a pouco.”
- Kenn, escudos totais! Se tem uma nave do império por aqui é por que deve
ter dado merda. Venha Ing-mar.
Os dois entraram no Drakunum Maximatrya.
A notícia de Be
- Senhor, ouve um disparo da nave do Império atrás da terceira lua.
- O quê? – Berrou Pan-Newe aterrorizado.
Todo o comando de segurança de Kalum Br estava reunido no castelo. Estavam discutindo que posição tomar acerca da nova política externa agora que o Imperador sumira. Mas a notícia de que uma nave do Império atacou outra nave ou seja
lá o que fosse dentro do sistema de Kalum Br era totalmente absurda!
Pan-Newe imediatamente contatou com o Império.
- O que pensam que estão fazendo?
- Senhor – Disse a voz de um membro do Império. – Captamos um intruso
em seu sistema. Estava totalmente camuflado mas conseguimos localizá-lo atrás da
terceira lua. Creio que estava para atacá-los senhor. Tentamos contato mas não houve
resposta. Não sabemos que tipo de nave é senhor. Depois do ataque houve deflagração
de energia e a perdemos de vista. Ela pode ter explodido ou pode estar usando um
parâmetro de camuflagem que não conseguimos captar.
- Como se atrevem a disparar uma arma dentro de meu sistema? Vocês querem
uma declaração de guerra contra o Império?
- Senhor, ouvimos linguagem de batalha.
Na sala de reuniões do castelo o comando mostrou-se perplexo. Todos estavam
a ponto de apoiar a investida do Império. Larissa olhou para Pan-Newe desnorteada.
Então ela fez algo que Pan-Newe não entendeu: simplesmente saiu da sala de reuniões. O comando ficou estarrecido, porém a reunião continuou com os ânimos exaltados. Pan-Newe, no entanto, só conseguiu pensar na última expressão de sua mulher.
Algo realmente importante deveria ter acontecido para que ela saísse de uma reunião
tão peculiar.
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Larissa não acreditou na cara de Be. Ela estava sendo segurada por dois seguranças, em prantos. Be tinha conseguido entrar no castelo da maneira que Pan-noa lhe
ensinara mas, ao tentar encontrar Larissa, foi achada pelos seguranças. Imediatamente
mandou uma mensagem via pérola-cubo para Larissa. Era uma mensagem muito peculiar e importante. O suficiente para que Larissa saísse da reunião.
- O que foi menina? – Disse Larissa aterrorizada com a cara de Be.
- Ele voltou. Eu falei com ele!
Larissa não teve tempo de pensar. Os seguranças soltaram Be quando Larissa
abriu a sala de reuniões com um estrondo. Todos lá dentro olharam para ela.
- A nave que o Império atacou era de seu filho, era de Pan-noa. – Disse Larissa
angustiada.
Ouve um silêncio mortal na sala de reuniões.
Pan-Newe olhou seriamente para Larissa e leu em seus olhos que aquilo era
verdade. Olhou para fora da sala e viu que Be estava de pé esperando. A menina havia
dado a notícia. Típico de Pan-noa.
- Capturem a nave do Império. – Disse Pan-Newe. – Varredura total no sistema de Kalum Br. Não atirem em nada. Apenas localizem qualquer nave que esteja nos
arredores.
A resposta veio imediatamente.
- Senhor, estamos sendo atacados. Uma pequena nave acabou de penetrar nos
escudos do planeta! Senhor, ela está vindo em direção ao castelo! Como ela conseguiu!
Ouviu-se alguns disparos nos arredores do castelo.
- Não atirem! – Gritou Pan-Newe. – Todos para fora! Vamos.
Uma multidão de guardas esperava nos jardins do palácio. Todos com as armas
apontadas para a pequena nave que fazia manobras para pousar.
Pan-Newe saiu pela porta da frente seguido de Larissa, Be e todo o comando
de segurança do sistema de Kalum Br. Quando a nave ficou visível por entre os ofuscantes raios solares, Pan-Newe mandou a guarda abaixar as armas.
A carenagem do Drakunum Maximatrya abriu-se e, após um instante que demorou horas para todos os presentes, duas pequenas cabeças se levantaram. Pan-noa
desceu, deu a volta pelo aerojet e tirou do outro lado um pequeno menino. Os dois
andaram de mãos dadas em direção à porta do palácio. Pan-noa e um ser na altura de
seu ombro.
Quando estavam há uns trinta metros de distância os dois pararam.
“Pai, mãe. Não se assustem, sou eu mesmo.” Disse Pan-noa através da pérolacubo. “E este que está comigo é Ing-mar, filho de Schaia III.”
Ninguém se mexia. Nem Pan-Newe nem Larissa conseguiam acreditar que
aquele ser quase divino segurando a mão de um outro quase tão divino quanto ele
poderia ser seu filho. Então Pan-noa olhou para Be. Na mesma hora Be entendeu.
Entendeu que aquele era Pan-noa, o mesmo Pan-noa de seu sonho. Be deu um passo
à frente, passou por Pan-newe e por Larissa e saiu correndo em direção a Pan-noa.
Quando estava a um passo dele parou. Olhou-o assustada.
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- O que fizeram com você, Pan-noa?
Pan-noa olhou para Ing-mar e os dois sorriram. Naquele sorriso Larissa viu seu
filho. Era realmente Pan-noa.
Be abraçou-o. Larissa e Pan-newe vieram a passos largos na direção deles.
Todo o castelo estava em silêncio.
Quando os dois chegaram, viram que de algum modo aquele era realmente
Pan-noa. Demoraram-se um pouco, mas depois abraçaram o menino.
Ing-mar olhava para tudo aquilo um pouco deslocado, mas quando Pan-newe
e Larissa soltaram Pan-noa no chão, Pan-noa olhou para Ing-mar e depois olhou para
os pais.
- Bem, acho que vocês devem acostumar-se ao meu novo amigo. Ele vai morar
aqui com a gente.
O comandante da segurança estava logo atrás de Pan-newe. Pan-noa passou
por ele e disse:
- Existe todo um relatório no meu aerojet. O transuniverso imperial está a
salvo atrás da lua de Brics, o oitavo planeta. Ele ficará estacionado na nossa órbita e
ninguém deve ter nenhum contato com a nave até que eu decida o que fazer.
Pan-newe estava impressionado com o filho. Olhou para o comandante e fez
que sim com a cabeça.
Pan-noa entrou no castelo com seus pais, Be e um extremamente impressionado Ing-mar.
Parecia que Pan-noa nunca estivera ali antes. Não que o castelo estivesse mudado, mas só agora Pan-noa dava-se conta de que sua visão do mundo mudara. Foi
só olhando um ambiente familiar que Pan-noa notou as alterações em sua capacidade
cerebral. Conseguia sentir o mundo de uma forma que nem mil pérolas-cubo conseguiriam. “Será que eu já estava com esse poder ou só agora que tudo, ou quase tudo,
acalmou-se é que veio à tona?”
Então algo surgiu em sua mente. “As coisas vão vir lentamente.” Era Ing-mar
respondendo. “Deus, isso não vai parar nunca?” Pensou Pan-noa preocupado.
“Não, na verdade nem começou.” Olhou para Ing-mar e notou com espanto
que não era ele que havia dado essa resposta. Tocou seu peito e sentiu as quatro esferas dentro de sua roupa de batalha.
O Império diante de Ing-mar
“Agora sim vai ser uma cagada do caralho.” Pensou Pan-noa enquanto caminhava ao lado de Ing-mar pelo longo corredor.
Pan-noa tentava se lembrar de quando tinha chegado a Kalum Br, não mais que
três meses atrás. Todos sentaram na sala principal do palácio. Sua família, Be, Ing-mar
e todo o corpo da segurança de Kalum Br, além dos generais do Império interligados
pelas teles.
Lembrou-se da cara engraçada dos generais do Império quando a morte de
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Schaia III foi transmitida e do completo estarrecimento ao saberem que aquela figura
ao seu lado era filho do Imperador morto. Era óbvio que ninguém queria acreditar.
“Nem meu pai acreditou”. Pensou Pan-noa.
Para provar, foram mandadas amostras de sangue de Ing-mar para todos os
planetas. Os traços da família imperial estavam lá, mas e o resto? O que eram aquelas
outras infinitas linhas misturadas ao sangue da criança e que, por sinal, não davam
indicação nem do sexo da criatura. Era natural que o Império se inquietasse diante
deste fato. Na verdade, seria natural se o Império ficasse alarmado.
Depois de muitas discussões foi convocada uma reunião, uma reunião sem
precedentes na história do Império.
Todos queriam saber o que estava acontecendo com o Império, afinal, primeiro
o Imperador Schaia III resolve cortar o suprimento de energia dos Extuárticos deixando todos os planetas isolados, depois apenas as naves do Império trafegavam em espaços de dobra por terem seus próprios Extuárticos aprisionados em não salas. Então
Schaia III desaparece deixando seus generais perdidos e com uma crise em potencial
nas mãos. Para piorar, chega a todo o Império a notícia de que Schaia III está morto e
seu filho, que aparenta ter de quatro a quinze anos conforme o ângulo que você olha,
aparece assim, sem mais nem menos, junto com o príncipe de Kalum Br para quem,
ninguém consegue olhar sem ser hipnotizado diante de tamanha beleza. O Império
estava insatisfeito com tudo isso e não era para menos. Ninguém dava respostas coerentes, ninguém acreditava nos fatos novos, haviam boatos de que Kalum Br inventara
tudo aquilo para tomar o poder do Império e, o pior, o que mais deixava todos alarmados, o transporte de energia, de produtos e de pessoas. Onde estavam os Extuárticos?
Então resolveram, finalmente, diante dos fatos, fazer uma reunião. Havia,
porém, um pequeno problema. Como fazer a reunião?
A questão era muito simples. Como iriam resolver o problema de transporte?
Afinal, sem os espaços de dobra, as viagens entre os sistemas seriam impossíveis.
Não havia possibilidade de reunião alguma se os membros da reunião não pudessem
comparecer.
Pan-noa caminhava contendo o riso. Ing-mar olhava para ele quase rindo também. “Chegou o dia. Conseguimos provar. Finalmente eles estavam lá, todos os representantes do maldito Império.”
De alguma forma, naquele dia, eles estavam lá. Estavam reunidos em uma lua
do sistema Kalum br. Representantes de todo o Império. Eram, talvez, milhões de pessoas reunidas, todas enlouquecidas para saber quem reabrira o espaço interno, quem
fizera um novo pacto com os Extuárticos e quem conseguira fazer a dobra no espaço
novamente. Quem afinal conseguira tal milagre?
Uma imensa porta abriu-se no final do corredor. Pan-noa podia ouvir o murmúrio das pessoas diminuindo à medida que olhavam para as portas e viam surgir
duas pessoas. As portas fecharam-se logo atrás de Ing-mar e Pan-noa. O silêncio era
estarrecedor. Teles gigantescas estavam espalhadas por todo o local. Praticamente a
lua inteira fora transformada em uma sala de reuniões. E agora, no centro de tudo e
de todos, sobre um palco pequeno e arredondado estavam dois seres vestidos apenas
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com roupas de batalha. Era uma cena realmente absurda. Representantes do mais alto
escalão de milhares, talvez milhões de planetas, estavam aqui para ver duas crianças?
Tanto Ing-mar quanto Pan-noa resolveram modificar seus corpos da melhor
maneira possível. Modificaram-se criando a ilusão de que eram apenas duas crianças.
Realmente a impressão causou desagrado. Todos começaram a comentar. “Então é
isso... é por isso que viemos? É esse o motivo da reunião? Onde está o tal imperador?”
Ing-mar deu um passo à frente e perguntou, com uma voz tão meiga quanto a
cara que agora ele resolvera assumir:
- Como vocês vieram? – Sua voz soou aos ouvidos de cada indivíduo no local
e dos que estava assistindo ao vivo a transmissão. Pan-noa abaixou a cabeça para não
rir. A multidão calou-se. O Império calou-se.
Uma bolha imensa, transparente e cheia de líquidos coloridos começou a descer. A bolha parou logo acima da cabeça dos dois. Dentro dela havia um filhote de
Extuártico.
- Reconhecem isso? – Perguntou Ing-mar. – Se alguém quiser comercializar
energia com eles, pode fazê-lo. Agora!
Ninguém se mexeu.
- Agora que provei que posso fazer um novo pacto com os Extuárticos, posso
provar que sou filho do Imperador Schaia III. E que pelo fato dele estar morto, sou
o novo Imperador. Se alguém tiver alguma objeção, o pacto com os Extuárticos será
desfeito imediatamente. Se o problema do Império era este, está resolvido.
Ninguém sequer respirava. O Extuártico deu uma cambalhota engraçada dentro da bolha.
Alguns instantes se passaram. Pan-noa estava voltando à sua forma normal e
Ing-mar começara a crescer diante de um público cada vez mais alarmado.
Agora o que se via era um ser semidivino, algo que ninguém entendia mas que
parecia um ser semidivino e um Imperador tão pequeno e tão grande que estava difícil
de decidir.
Mas o que mais assustava a todos era o poder demonstrado por aqueles dois
ali, diante de todo o Império. Ninguém conseguia falar. E ainda um Extuártico brincando dentro de sua bolha. Um Extuártico! Algo que ninguém via desde que Schaia
III enlouquecera.
Então Ing-mar, cansado de esperar, disse:
- Se não há nenhuma objeção, devo retirar-me. A nova sede do Império será
em Kalum Br. A todos vocês, uma boa viagem de volta.
O Extuártico deu mais duas cambalhotas engraçadas e disse no tradutor de sua
bolha:
- Obrigado por voarem com os Extuárticos.
A bolha foi recolhida assim que Ing-mar e Pan-noa entraram no corredor de
novo. Quando as portas fecharam-se atrás deles os dois se abraçaram e quase caíram
no chão de tanto rir.
- Bem se era para foder, nós fodemos com tudo.
- Agora é esperar o resultado.
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Mas então os dois olharam-se seriamente. Parecia que o momento da brincadeira havia explodido em mil pedaços. Uma névoa preta parecia ter passado pelos
dois e a consciência dos fatos veio à tona. “Será que temos noção do que fizemos?
Podíamos ter interferido desta maneira em nossa raça?” Continuaram a andar pelos
corredores, agora um pouco assustados com seus atos.
“O mesmo corredor em que eu te perdi. O mesmo em que Deus gritou comigo,
só que desta vez sem saídas, sem portas ao desconhecido.” Pan-noa estava percebendo
seu novo mundo de uma maneira que não queria.
Das leis dos círculos superiores para os inferiores
Lei universal
Quando um círculo superior prontifica-se a cooperar com uma determinada
espécie de um círculo inferior para que esta evolua, é imprescindível que a evolução
tenha sucesso, não importa o tempo que leve.
Caso a tentativa de evolução seja abalada, o círculo superior responsável deve
interferir na espécie.
É inaceitável a existência de indícios de intolerância entre membros da mesma
espécie enquanto estiverem passando por um processo evolutivo. Se isto ocorrer os
membros inferiores da espécie devem ser dispensados, dando chance para que os superiores da sua espécie continuem a evolução.
Sobre os Antes e os Não Antes
De todos os círculos, o mais difícil de lidar é o dos Antes. Isso se justifica pelo
apego que eles têm à matéria.
Quando o círculo dos semidivinos tem contato com os Antes, fornecendo informações para que estes evoluam, surge, na maioria das vezes, os Não Antes. Seres
semidivinos que, para os Antes, aparentam ser divinos. Carregam instintos e até mesmo poderes fornecidos pelos semidivinos.
O momento mais perigoso neste tipo de evolução é que os Não Antes misturam
e confundem os instintos fornecidos pelos semidivinos com seus próprios instintos de
Antes. As consequências são, quase sempre, dramáticas e catastróficas. Quando isso
acontece o círculo de responsabilidade deve recorrer à lei universal.
Se os Não Antes possuírem poderes para quebrar a lei universal a evolução
pode entrar em colapso. Assim, o círculo responsável pode regredir de nível e o processo evolutivo universal regredirá uma era.
A evolução não pode ser parcial. Se for, a catástrofe é comparável à das esferas
do esquecimento.
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O impacto de Pan-Newe
A fúria do pai era visível. Pan-noa podia perceber claramente apesar de PanNewe tentar aparentar descaso. Enquanto os cabeças do sistema de Kalum Br estavam
presentes à reunião no castelo, Pan-Newe olhava com o canto dos olhos para Pan-noa
e Ing-mar que estavam entretidos em conversas particulares, totalmente alienados ao
que estava acontecendo na reunião. Ing-mar era uma incógnita para Pan-Newe. Na
verdade Pan-noa era uma incógnita maior ainda. Pan-noa percebia que o pai queria
saber o que realmente estava acontecendo. Eles podiam ter enganado o Império inteiro mas a Pan-Newe não.
Quando os chefes políticos, os dirigentes das luas e planetas próximos e sobretudo os miliciantes saíram da sala de reuniões Pan-Newe voltou-se para Pan-noa
e Ing-mar.
- Então essa foi a reunião? – Pan-Newe referia-se à reunião do Império inteiro,
aquela que todos os meios de comunicação traduziram como o maior milagre já ocorrido desde a queda de Marlontres.
- Era isso que vocês estavam querendo fazer? Tornarem-se astros? – De fato,
logo após a reunião todo e qualquer jovem do Império resolvera adotar as vestimentas, cabelos, atitudes e tudo o que podia ser copiado de Pan-noa e Ing-mar. Pan-noa
abaixou a cabeça para não rir. Será que nem seu próprio pai desconfiava?
Aparentemente não. Pan-Newe parecia estar muito preocupado que o filho e
esta coisa que o acompanhava para cima e para baixo tivessem logrado o Império
inteiro. Pan-noa leu este pensamento do pai.
- O senhor não vê que todo o Império está voltando a ter transporte de novo?
– Perguntou Pan-noa meio constrangido por ter lido o pensamento do pai.
Era verdade. Pan-Newe teve que admitir que os dois haviam feito um novo
pacto com os Extuárticos e que os planetas de todo o Império estavam, miraculosamente, interligados novamente.
- Muito bem. Como vocês conseguiram?
- Eu não consegui nada. – Disse Pan-noa. – Foi ele. – Apontou alegremente
para Ing-mar como se estivesse culpando-o de algo terrível.
Ing-mar, até agora de cabeça baixa, quando viu que a coisa era com ele, levantou-se como se levasse um enorme susto e disse:
- Eu?
Pan-noa começou a rir. Mas Pan-Newe não estava acreditando nesta atitude.
- Como vocês podem brincar com algo tão sério? Pan-noa, por favor, uma
única vez, me diga a verdade.
Pan-noa olhou para o pai de uma maneira que Pan-Newe teve que desviar os
olhos. “O que era aquilo? Seria Pan-noa mesmo?”
- Muito bem. Vou lhe contar um segredo. Não sabemos se fizemos a coisa
certa ou errada. Seguimos nossos instintos.
Pan-Newe sentou-se, ou melhor, caiu numa cadeira como se tivesse levado
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uma pancada.
- Não, não é o que você está pensando.
- Como sabe o que eu estou pensando? Minha pérola-cubo é intangível.
- Eu apenas sei, pai. – Continuava Pan-noa. – Veja, olhe bem para mim. Você
sabe que sou seu filho, não é? Mas sabe apenas por uma razão: você sente isso. Porque
se fosse pela minha aparência... eu não seria. Acontece que uma parte, talvez uma
grande parte de mim não seja mais seu filho. – Ing-mar olhou assustado para Pannoa. “Pelos cristais ele vai contar!” Pan-Newe olhou estarrecido. “O que ele está dizendo?.” – Ótimo já que consegui sua atenção, vou contar alguns pedaços da minha
viagem que achei melhor deixar para uma outra ocasião. E a ocasião é esta. Kenn?
- Sim Pan-noa. – Disse a voz da nave ainda estacionada na órbita de Kalum br.
- Lembra daquelas passagens da viagem que não deviam ser mostradas para
ninguém?
- Sim Pan-noa.
- Mande-as em código para minha pérola-cubo.
Pan-noa decodificou as mensagens e começou a passar para Pan-Newe com
todos os detalhes possíveis e com as imagens secretas em uma tele. Então Pan-Newe
ficou sabendo como Pan-noa encontrou-se com a Deusa, como fizeram a Andróida
Andrógina, como Pan-noa fora até o Planeta Azul, como teve contato com o sangue
da Andróida Andrógina e como isso o transformara em um ser que já não era mais um
humano e como os poderes de Pan-noa expandiam-se a cada dia que passava.
Mostrou então tudo sobre Ing-mar, que tipo de ser era, apesar de Pan-Newe já
ter uma vaga ideia graças ao livro de Schaia III, “O Mago de Prata”. Mas pela expressão de Pan-Newe ou ele não lera o livro ou não acreditara em nada do que estava
escrito nele.
- Ele é um ser como eu. – Explicou Pan-noa para o pai. – Uma espécie em
mutação forçada. Ele já não é mais um humano, assim como eu e assim como eu, ele
tem poderes além dos poderes humanos. Se estamos juntos é porque o destino nos fez
estar juntos. E depois dessa viagem, se tem uma coisa na qual eu comecei a acreditar
é no destino.
Ing-mar olhava para Pan-Newe com uma interrogação nos olhos: “Ei e agora:
o que você acha de mim?”. Mas, Pan-Newe, na medida do possível, não se deixou
abalar.
- Mas então, o que vocês fizeram nesta reunião? – Pan-Newe ainda não conseguia acreditar que o filho se transformara em algo não humano. Deveria ser mais um
de seus truques.
- Foi simples! – Disse Pan-noa feliz por o pai aceitar tão “bem” sua nova
identidade. – Nós sabíamos que o quê o Império mais necessitava no momento era a
reintegração entre os planetas. Sabíamos que o senhor, assim como outros de vários
planetas, pretendiam implantar, através de outro tipo de energia, eram os espaços
de dobra. Mas sabíamos que era uma energia muito cara e que deveriam ser feitas
coligações entre antigos inimigos para que a energia fosse viável. Iria levar tempo e
dinheiro.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Bem, Ing-mar aqui, - Pan-noa tocou no ombro de Ing-mar mostrando muito
orgulho do novo amigo – sabia como fazer contato com os Extuárticos. Como? Nem
eu sei. Isso é um segredo da família dele. O fato é que os Extuárticos não aguentavam
mais viver no mundo interior. Na verdade, sem o contato com o mundo exterior eles
logo logo iriam morrer. Então Ing-mar fez um novo pacto com o Extuárticos, exatamente o que o Império e os Extuárticos mais queriam. Convocamos a reunião para
deixar bem claro a todos os membros do Império que temos o poder para viabilizar os
espaços de dobra com a ajuda dos Extuárticos e proclamamos Ing-mar Imperador!
Pan-Newe pensava. Depois de algum tempo falou com uma expressão muito
compenetrada.
- Pan-noa, você poderia ter provado o grande valor do nosso novo Imperador
demonstrando que os Extuárticos estavam liberados; que os espaços de dobra foram
feitos graças a um novo pacto celebrado por ele de outra forma. Eu quero saber o
porque desta maldita reunião!
- Mas pai! – Disse Pan-noa fingindo-se estericamente ultrajado – O Império
queria conhecer o novo Imperador! Eles pediram a reunião!
- Vocês estipularam que essa reunião seria a única alternativa para que o Império conhecesse o novo Imperador. E por que uma reunião dessa magnitude durou
apenas dois minutos?
- Cinco minutos! – Disse Ing-mar fingindo-se perplexo.
Pan-Newe nem olhou para o menino que sorria. Continuou olhando para Pannoa.
- O que vocês fizeram?
Pan-noa abaixou a cabeça e percebeu que não havia maneira de enganar o pai.
Ergueu a cabeça e falou:
- E se eu te contar a verdade? O que o senhor fará?
- Se cometeram algum erro, ele poderia ser revertido?
- Não, já está feito. Não tem retorno.
- Pois bem, guardarei segredo. Mas eu preciso saber a verdade. Preciso me
preparar caso hajam represálias.
- Se houver represálias, nós nos responsabilizaremos. – Disse Pan-noa olhando para um Ing-mar sério.
- Meu Deus! – Disse Pan-Newe olhando para Ing-mar. – Ele cresceu de uma
hora para outra.
- São os poderes dele pai. - Pan-noa olhou para baixo de novo. – Bem, depois da minha transformação, comecei a perceber que tinha mais poderes, mais do
qualquer pérola-cubo poderia sequer sonhar em me dar. Comecei a dominar este meu
novo corpo que, por algum motivo que ainda não sei, pode mudar de um sexo para o
outro num piscar de olhos. – Nesse momento Pan-Newe ficou branco. – Acho que há
alguma conexão com algo que está para acontecer com a humanidade.
- Meu Deus. – Disse Pan-Newe preparando-se para o pior.
- Durante os primeiros dias em que estivemos aqui, – Continuou Pan-noa. –
tanto eu quanto Ing-mar tivemos ideias. Essas ideias manifestavam-se ao acaso, mas
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
sempre tínhamos as ideias em conjunto, como se alguém nos ditasse. Concluímos que
tudo o que pensássemos ou sonhássemos em conjunto, deveríamos botar em prática.
A primeira ideia foi a reunião do Império. O pior veio depois.
- O pior! Existe coisa pior ainda! – Pan-Newe estava estarrecido.
- Bem. Ing-mar notou que os Extuárticos estavam loucos para sair do espaço
interno, então propôs um novo pacto. Os Extuárticos deveriam fazer os espaços de
dobra de dentro das naves. Cada nave indicada pelo Imperador Ing-mar deveria ter um
Extuártico para poder navegar entre os sistemas.
- Vocês estão loucos? Para que tudo isso?
- Assim cada nave teria seu próprio centro de energia para viagens extra sistemas. Então os Extuárticos foram mandados, junto com as naves, para todos os membros que deveriam estar na reunião do Império. Mais uma parte do acordo era que
cada Extuártico em nave do Império deveria ser carregado com uma centena de certas
linhas do meu sangue. Assim, todos que navegassem com os Extuárticos receberiam,
de uma maneira que não posso revelar, uma parte do meu sangue, contaminando cada
ser humano na nave. Isso faria com que esses seres humanos, em contato com o meu
sangue, gerassem, a partir daquele momento, seres como eu e Ing-mar.
Pan-Newe estava encostado na cadeira. Seu olhar era vago, suas feições estavam brancas e seus lábios ficando roxos. Pan-noa foi até o pai e o sacudiu na cadeira.
- Pai? O senhor está bem?
- Ele está entrando em colapso. – Disse Ing-mar.
Porém a pérola-cubo na testa de Pan-Newe resolvera fazer o trabalho sozinha.
Pan-Newe tomou ar como se tivesse acabado de retornar do fundo de uma piscina.
Ainda levou algum tempo para que o pai de Pan-noa se recuperasse totalmente. Então
ele olhou para Pan-noa e para Ing-mar.
- Pelo menos vocês sabem o propósito de tudo isso? Sabem por que vocês vão
modificar essas pessoas?
Agora Ing-mar falou. Pan-Newe nunca tinha conversado direito com Ing-mar.
Para ele, Ing-mar não passava de um brinquedo que Pan-noa tinha trazido de viagem.
Mas agora Pan-Newe estava confuso, era realmente uma criança que falava com ele?
- Nós escolhemos fazer a mudança primeiro com os filhos das pessoas mais
importantes de cada sistema ou planeta. Assim a rejeição de um ser Andrógino seria
menor. Socialmente falando.
- Socialmente falando! – Repetiu Pan-Newe olhando para Ing-mar estarrecido
– Isso significa que vocês não vão apenas mudar os próximos filhos dos dirigentes dos
outros planetas, mas sim a humanidade inteira?
- Foi o que nós entendemos dever ser feito segundo nossos instintos, - disse
Ing-mar da maneira mais natural possível.
- Seus instintos? – Pan-Newe olhava para o menino querendo matá-lo.
- Pai, ele é o Imperador, lembra-se?
Pan-Newe agora olhou para Pan-noa furioso. Não aguentou mais. Deu as costas para os dois e saiu da sala.
Ing-mar olhou para Pan-noa.
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- O que nós temíamos acabou de ser demonstrado. A intolerância entre as raças vai ser grande.
- Acho que está na hora de começarmos a pensar em sair de Kalum Br por um
tempo. Não sei se meu pai acredita que sou mesmo seu filho.
- É, acho que fodeu.
- Isso não é coisa para um Imperador dizer Ing-mar!
- Mas é verdade! Acho que fodeu mesmo.
- Sabe o que mais me preocupa? – Perguntou Pan-noa.
- O quê?
- É que eu não tenho a mínima ideia do por quê fizemos isto tudo.
Ing-mar parou para pensar e disse.
- Sabe que eu também não?
Be estava com muito medo. Olhava para a imensa janela do transuniverso
imperial e via ao longe o planeta em que nascera. Nunca tinha feito uma viagem fora
do sistema de Kalum Br e nunca imaginou que a faria naquela situação. Pan-noa e
Ing-mar ainda não tinham parado no lugar. Corriam como loucos pela sala de controle
da nave. Faziam todo o tipo de contatos. Contatos que Be não fazia ideia do que eram.
Mas parecia ser coisa importante, afinal não se tornara Ing-mar o Imperador? “O Imperador.” Pensou Be. “Aquela coisa minúscula. Um toco de gente, um menino de fato
lindo, talvez o mais lido menino que eu já vi.” Olhou perplexa para Pan-noa entretido
em uma comunicação. “Sem contar Pan-noa, é claro. Como pode existir alguém assim?” Be olhou-se no espelho. Ela também era muito bonita, mas o que faltava para
ficar com aquela aura que Pan-noa e Ing-mar tinham?
- Vocês precisam de ajuda? – Perguntou Be para os dois.
- Não obrigado Be. Estamos quase concluindo, só mais alguns ajustes e estaremos prontos!
- Prontos para que Pan-noa? Você me trouxe aqui sem falar nada. Não que eu
esteja com medo...
- Assuntos do Império Be, mas logo você saberá de tudo, logo estará tudo
acabado e nós vamos viajar!
- Viajar? Mas e... e a escola?
- Escola? – Perguntou Pan-noa. – Desde que criamos as pérolas-cubo não precisamos mais das escolas. Elas só servem para a socialização e, para onde estamos
indo, teremos as melhores aulas de socialização que se possa ter. Ei Ing-mar! E os
micro produtores?
- Estão prontos. Este pessoal do Império é mesmo eficiente! É só eu pedir e
eles fazem!
- É sensacional! – Disse Pan-noa eufórico.
Be olhava assustada para os dois que não paravam de trabalhar. “Eles parecem
estar fora de si.”
Depois de algum tempo os dois finalmente se olharam.
- Acho que é isso, não é? - Perguntou Pan-noa.
- Eu nem acredito que fizemos tão rápido. – Disse Ing-mar.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Posso saber o que está havendo Pan-noa?
- Sim. Pode! Kenn, por favor leve-nos ao sistema Goldame-ír.
- Goladame-ír? – Interrogou Be assustada.
A nave começou a virar no espaço. O planeta Kalum Br já não podia ser visto.
Be sentiu uma leve força para trás. A nave começara a entrar em velocidade galaxial.
Logo depois a voz de Kenn soou nos ouvidos dos três.
- Entrando no espaço de dobra em cinco segundos.
- Ah! Nada como ter nosso próprio Extuártico. – Disse Pan-noa.
Quando entraram em velocidade de dobra Be perguntou:
- Por que estamos indo ao sistema mais central do Império Pan-noa? Porque
estamos a caminho de Goldame-ír?
- Bem, a explicação não é tão simples quanto parece. Já tomei um puta esporro
de meu pai quando contei a ele o que eu e Ing-mar estávamos fazendo. Vamos ver se
você aceita melhor está bem?
Be olhou seriamente para Pan-noa e para Ing-mar. “Não é possível que os dois
estejam fazendo algo muito ruim, é? É óbvio que o pai de Pan-noa, enquanto rei do
sistema Kalum Br, deveria ficar preocupado com alguma coisa que Pan-noa pudesse
ter feito. Mas eles estavam ali com uma nave do sistema do pai dele, então provavelmente ele deveria estar sabendo, não deveria?”
- Não. – Respondeu Pan-noa. – Não sabe. Na verdade nós roubamos a nave
e fugimos porque sabíamos que meu pai nunca me deixaria fazer o que vou fazer,
mesmo que Ing-mar pedisse. Não é mesmo Ing-mar?
- Nem a pau. – Disse o menino.
- Mas Ing-mar é o Imperador! Ele tem poderes sobre tudo!
- Não para isso Be. Se meu pai não deixasse eu fazer, Ing-mar não conseguiria
fazer sozinho. E, de qualquer maneira, assim é bem mais divertido.
- Divertido? Mas afinal o que vocês estão aprontando? – Be estava ficando
realmente muito assustada. “Roubar um transuniverso imperial!”
Pan-noa olhou para Ing-mar.
- Conte você. – Disse Ing-mar meio mal-humorado. – Ela é sua namorada.
Pan-noa olhou para Be e só agora percebeu que não tivera tempo para ela
desde que chegara. Sentou-se ao seu lado, abraçou-a e beijou-a profundamente. Be
sentiu um arrepio na espinha. Sentiu algo realmente bom. O beijo de Pan-noa estava
diferente. Ele estava diferente. “É óbvio que ele está diferente!” Tinha algo a mais,
um calor. Um desejo fulminante subiu pelo corpo de Be. Então Pan-noa afastou-se
um pouco.
- Acho que antes de mais nada preciso te contar algumas coisas.
Be balançou a cabeça não só fazendo que sim, mas fazendo um gesto que
significava muito mais. Um gesto que dizia “Sim meu querido, eu vou compreender
qualquer coisa.”
Pan-noa contou a Be toda sua viagem desde quando saiu de Kalum Br e as
imagens que Kenn gerava para ilustrar eram fantásticas. Obviamente ficou muito
insatisfeita quando soube que fora traída por Pan-noa com uma menina guerreira,
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mas quando a história começou a ficar mais crítica, quando o Mago de Prata morreu, quando a Andróida Andrógina morreu, quando a irmã gêmea de Ing-mar morreu,
quando a menina guerreira morreu junto com Lainoriel, quando Schaia III morreu. “ E
de que forma!” Quando Pan-noa começou a mudar e a ficar parecido com aquilo que
chamavam de Deusa e com o próprio Mago de Prata a coisa começou a mudar na cabeça de Be. A história que Pan-noa relatava estava ficando séria demais. Be começou
a se interrogar se estava no lugar certo e com as pessoas certas. Olhou para Pan-noa e
pensou. “Meu Deus ele já não é mais um humano!”
Pan-noa parecia ter lido a mente de Be, mas ainda tinha esperança na menina.
Então continuou.
- Agora temos uma questão muito peculiar, Be. Temos uma certa quantidade
de membros importantes do Império que gerarão filhos com uma centena de linhas
a mais no sangue, linha esta derivada da Deusa daquele planeta, passada para a Andróida Andrógina e depois para mim. Assim, esses seres terão essa nova essência, isto
é, eles nascerão nesta forma nova. - Disse isso apontando para seu próprio corpo.
- E o que isso quer dizer exatamente Pan-noa?
- Quer dizer que a humanidade começará a passar por uma mudança drástica.
Irá evoluir para esta nova forma.
Be pensou por um instante.
- Bem. – Disse ela dando de ombros. – Eu acho teu novo visual fantástico
Pan-noa. Sei que você está ganhando poderes acima do normal a cada dia que passa
mas isso tem alguma razão especial de ser, quero dizer, se a humanidade não evoluísse
da maneira forçada que vocês estão querendo, não iria ter que evoluir de algum outro
modo?
Pan-noa não tinha resposta para isso. Na verdade fizera a mesma pergunta a
Ing-mar. “Eu não tenho a mínima ideia do por quê de estarmos fazendo tudo isso.”
Mas disse a Be o que dissera a seu pai:
- Não sei ao certo o por quê de estarmos fazendo isso. Estamos apenas seguindo nossos instintos. – Mas alguma coisa havia mudado no pensamento de Pan-noa.
Alguma coisa estava errada. Algo que ele deveria investigar sozinho.
Be notou a preocupação no rosto do menino. Abraçou-o e disse:
- Pan-noa, depois de tudo o que você me contou, estou certa de que o que está
fazendo tem realmente alguma razão, tanto para você como para Ing-mar e também...
bem, para a humanidade. – Ela ficou um pouco preocupada com esta frase. “Será que
eu estou falando da humanidade inteira?” – E estarei com você. A única coisa que
quero saber agora e que você não me contou é por que nós estamos indo para o centro
do Império. Por que Goldame-ír?
- Você falou tudo Be. – Disse Pan-noa sorrindo. – Por que lá é o sistema mais
central do Império e, praticamente, o centro do universo conhecido. Estamos com
um carregamento imenso de micro naves trans universais, cada uma com um micro
Extuártico e todas elas carregadas com o concentrado das linhas do meu sangue que
gerarão os seres Andróginos do futuro. Vamos impregnar a atmosfera de cada planeta
conhecido no mapa do Império com a essência. Assim, não só os filhos dos dirigentes
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
dos planetas serão evoluídos mas também toda a humanidade e quando digo toda a
humanidade, quero dizer toda a humanidade mesmo! - Pan-noa apontou, sorrindo,
para as centenas de monitores espalhados pela sala de comando do trans universo
imperial. Cada qual tinha um mapa estelar diferente mostrando a exata localização de
cada planeta com vida humana fizesse ele parte ou não do Império.
- Agora veja. – Continuou Pan-noa eufórico apontando para um dos monitores.
– Aqui está um planeta a ser modificado. – O monitor mostrava um planeta virtual. –
Bem, aí vem a micro nave. É isto que acontece quando a nave atinge a atmosfera do
planeta. – O monitor mostrou a micro nave colidindo com a atmosfera, explodindo e
liberando uma espécie de ar azul prateado que expandia-se pelo planeta inteiro. – Veja
– Continuou Pan-noa mais empolgado ainda. - o que os seres que habitam este planeta
veem – No monitor aparecia a visão de quem morava no planeta. Aparecia o mesmo
ar azul prateado expandindo-se no céu e então, quando o planeta inteiro estava com
o novo ar, o céu fechava-se com um símbolo: uma circunferência com uma flecha do
lado direito apontando para cima e uma cruz apontando para baixo. – Vê? – Disse
Pan-noa. – Este símbolo, nós tiramos da mente de Ing-mar. Ele estava guardado em
sua inteligência genética! É um símbolo usado pelos humanos do Planeta Azul há
milênios. Só que eles usavam os símbolos separados. Um indicava o sexo feminino e
o outro, o sexo masculino. Então nós juntamos os dois e ainda colocamos efeitos de
ferro retorcido como no seriado “A Volta do Senhor das Sombras”. Não é sensacional? – No monitor a imagem do símbolo desaparecia e logo depois aparecia no céu,
na escrita tradicional do Império: “Bem-vindos ao projeto A Andróida Andrógina.”
Pan-noa olhava para Be eufórico.
Be não acreditou naquilo. Simplesmente abriu a boca e fechou de novo. Olhou
para Pan-noa para ver se ele não estava brincando. Pan-noa olhava para ela com a
expressão radiante e como que dizendo: “E então? Não é uma ideia fantástica? Pelo
menos eu não vou precisar espalhar a essência através de sexo, não é verdade?”
Be não sabia o que dizer, mas não estava disposta a discutir com Pan-noa. “E
se afinal ele estiver correto?” Pensou ela. “Há quantos milhares de anos a humanidade não muda? Há quanto tempo temos os mesmos valores? As mesmas brigas pelo
poder? Mas o que esta mudança poderia trazer para a humanidade?”
Pan-noa parecia ter captado esta última interrogação. Sua cara fechou. Olhou
para Ing-mar. O menino estava compenetrado em algo que Pan-noa não se interessou. Olhou para baixo e pensou. “Não pode estar errado. Simplesmente não pode.”
Devemos continuar.
A viagem durou alguns meses. Segundo os cálculos de Pan-noa e Ing-mar era
o tempo certo para que alguns casais que estavam na reunião do Império já estivessem
esperando filhos. Assim, mais os meses ou anos que cada nave demoraria para chegar
ao planeta destino, com certeza alguns bebês dos aristocratas já teriam nascido com a
nova forma. Além disso, quem viajava com as naves dotadas de Extuárticos não eram
pessoas comuns. Eram pessoas com dinheiro e, portanto, com um certo poder. Dessas pessoas nasceriam os novos seres e quando o populacho em geral começasse a ter
estas novas crianças a humanidade já estaria quase que aceitando a ideia. Pelo menos
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a maioria do Império. A notícia do nascimento de uma nova raça não seria vista como
uma aberração total.
Porém, logo após o lançamento das micro naves para todos os planetas habitados por seres humanos, Pan-noa pensou. “E se eles não aceitarem esta nova raça?
Estamos impondo algo extremamente absurdo para a cabeça deles... um ser com os
dois sexos.” Pan-noa pensou longamente. “Para que serviria isto afinal?” Olhou para
Ing-mar... “Por que quando eu tenho alguma dúvida sobre algo eu olho para ele? É
como se ele tivesse a resposta.” Ing-mar brincava com Be como se fosse uma criança,
ainda comemorando os últimos lançamentos. Be parecia ter aceitado a história sem
muitos problemas.
“Agora devemos esperar. Mas preciso pensar... o que significa exatamente esta
evolução que acabamos de impor à humanidade?” Os resquícios de instinto verdadeiramente humano estavam começando a ganhar força na consciência de Pan-noa.
O poder das quatro esferas
Pan-noa não podia ter pensado num lugar melhor para esperar do que o planeta
onde encontrara Clia. “Onde tudo começou.” Além disso era um dos planetas mais
atrasados que Pan-noa pensava existir. Assistiria de perto a aceitação ou não dos novos seres pela sociedade mais grotesca que ele conhecia.
Be parecia estar enfeitiçada por Ing-mar. Os dois brincavam sem parar e Ingmar assumiu, finalmente, a postura da criança que, no fundo, ele sempre fora e parecia estar gostando disso. Pan-noa aceitava bem o fato e eventualmente brincava com
os dois também. Mas à medida que o tempo passava Pan-noa começou a sentir um
enorme peso em suas costas. Sua consciência humana começara a interrogá-lo.
Ao chegarem ao planeta chamado pelo próprio Pan-noa de Deusa Flor, tudo
mudou. Pan-noa deixou de lado os sentimentos de culpa e resolveu explorar o planeta
com Ing-mar e Be.
Como da outra vez, Pan-noa estacionou o transuniverso imperial na órbita do
planeta e deslocou a sala de comando para a superfície do planeta. Fez questão de
pousar no mesmo lugar que pousara antes. Sentiu uma certa melancolia ao lembrar-se
de Clia. Sentiu um peso sobre seu peito. Eram as esferas. “As esferas. Eu me esqueci
totalmente delas.”
Be e Ing-mar estavam ansiosos para conhecer o planeta e, principalmente, a
cidade da idade das sombras. Pan-noa fez questão de instalar uma pérola-cubo em
Ing-mar.
- Eu sei que você tem poderes Ing-mar, mas pelo menos assim você vai entender melhor a língua deles sem ter que ficar investigando minha mente toda hora.
Ing-mar concordou. Vestiram a roupa de batalha e saíram a pé em direção à
cidade. Pan-noa fez questão de deixar toda a roupa de batalha à mostra. Queria ver
a reação das pessoas, queria sentir esta humanidade mais de perto. Estava disposto a
investigar. As roupas eram um absurdo tecnológico para aquela civilização e obviamente ninguém naquele planeta saberia nada sobre o que as roupas poderiam fazer ou
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não. Mas o importante era o visual. As roupas eram pretas com partes transparentes
mostrando painéis de controle. A roupa era extremamente justa mostrando as formas
dos corpos. Em certos lugares a roupa cintilava com placas brilhantes e em outros
era opaca. As botas eram um show à parte. Para finalizar Pan-noa resolveu que seu
cabelo, que agora estava batendo nos ombros, deveria ser violeta assim como de Be.
Logicamente Ing-mar o copiou. Pan-noa pediu para que Ing-mar adotasse o maior
tamanho possível.
- O seu tamanho está bom Pan-noa?
- Perfeito. Assim vão pensar que somos uma gangue e não uma família.
E assim os três saíram da nave: com o visual mais absurdo possível e sem
importarem-se com a consequência, afinal, estavam com roupas de batalha, o que
resolveria qualquer problema.
Be andava fascinada. Olhava para aquele planeta e seus olhos brilhavam. Nunca estivera tão longe de casa. Ing-mar estava mais fascinado com a cidade do que
qualquer outra coisa. Ela era maior do que ele pensara ser. Pan-noa, no entanto, estava
preocupado. Voltara a pensar naquilo que tinha feito.
Então Ing-mar interferiu.
- Pan-noa, acho que você deveria aproveitar. O que está feito está feito. Afinal,
nós tivemos as ideias em conjunto não tivemos? Como você acha que isso foi possível?
- Não tenho a mínima ideia Ing-mar. Você tem?
- Claro! Tenho quase certeza que existe um outro povo, um povo mais evoluído que o nosso, mais evoluído do que eu e do que você. E mais: estão nos ajudando
como se fossem anjos, entende?
Pan-noa parou. “Anjos. Alguém ajudando a fazer aquilo. Não seria mandando?”
- Vamos Pan-noa. – Disse Ing-mar. – Está tudo certo.
- É, Pan-noa. – Disse Be. – Você não está se sentindo bem em ser o que você
é agora?
Esse era um ponto-chave. É óbvio que Pan-noa sentia-se o máximo sendo o
que era. No começo foi muito estranho. “Essa coisa de dois sexos e tudo mais.” Mas
no final das contas ele estava sentindo-se muito bem assim. “E além do mais eu vou
ser o primeiro dessa raça. Um verdadeiro pioneiro, um fundador!”
Pan-noa sorriu sentindo-se verdadeiramente alegre e disse:
- Sabe o que? Que se foda! Que se foda mesmo! Vamos comemorar. Acho que
está na hora de Ing-mar provar a única coisa que este planeta tem de bom! Uma boa
cerveja.
Be ficou estarrecida.
- Vamos para um bar? Um bar da idade das sombras?
- É isso mesmo!
- Isso é fantástico Pan-noa!
- O que é um bar? – Perguntou Ing-mar.
- É um lugar que você, como Imperador do universo, jamais deveria ir Ing316
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mar.
- Já estou começando a gostar!
Os três abraçaram-se e foram alegremente até a cidade. O sol estava se pondo
colorindo as nuvens de um vermelho dourado. A cidade era um amontoado de formas
negras no meio de um descampado. Era uma cena assustadora. Os três pararam de
caminhar por um momento.
- É realmente fascinante. – Disse Be.
- Fantástico. – Comentou Ing-mar.
- Sensacional! – Falou Pan-noa. – Vamos arregaçar!
Ao chegarem à cidade, postaram-se de uma forma menos alegre. Tinham que
dar um show à parte e resolveram a assumir um olhar maligno, como em um desfile
de modas para bruxos.
Passaram pelos portões da cidade. A impressão que se tinha era de que até as
casas viravam-se para olhar para eles. Uma multidão atordoada arregalava os olhos à
medida que eles passavam. Pan-noa sabia muito bem o que esse povo fazia com pessoas diferentes deles, mas existiam pessoas incomuns e pessoas incomuns. E a cidade
estava frente a pessoas tão absurdamente incomuns que ninguém conseguia se mexer.
Os três avançavam com um andar nobre, sem olhar para ninguém. A arrogância era tanta que Ing-mar achou que passaria mal se não risse, mas conseguiu chegar
à praça central sem perder a postura. Os três pararam no meio da praça. As pessoas
simplesmente pararam também. Estavam como estátuas, olhando para os três. Pannoa finalmente olhou para o povo que estava em volta e gritou a plenos pulmões e na
língua deles:
- Será que não existe uma porra de uma taverna para feiticeiros beberem uma
boa cerveja?
O povo não acreditou que aquele ser pudesse estar ali só para beber uma cerveja. Então os rostos assustados ficaram menos tensos e a cidade começou a rir. De
repente começou a gargalhar, como se algo terrível acabasse por terminar numa boa
piada. Então, um homem muito grande veio em direção a eles com muito cuidado.
- Posso pagar a primeira rodada? – Disse o homem.
- É claro. – Respondeu Pan-noa sorrindo. Agora Ing-mar e Be sorriam também.
O homem apontou a direção da taverna que Pan-noa já conhecia e os três foram
na frente, seguidos pelo homem e por murmúrios histéricos da população.
O homem abriu a porta da taverna para os três. Eles entraram normalmente,
como se estivessem entrando em um lugar conhecido.
As pessoas que estavam lá dentro viraram-se na direção deles e alguns copos
caíram no chão, espatifando-se. Uma mulher deu um berro e caiu desmaiada. Então o
homem entrou logo depois e disse:
- Ei! Eles são meus convidados. Está tudo bem. Só querem umas cervejas.
A taverna era escura e o cheiro de cerveja e assados impregnava o lugar. Velas
iluminavam o local onde tudo era feito de madeira, rusticamente. Havia um balcão
lotado de pessoas que se aglomeravam para pegar canecos enormes de cerveja. As
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mesas fervilhavam com pessoas indo para lá e para cá. Ing-mar ficou fascinado.
- É do caralho!
- Ing-mar, eu já falei que este tipo de linguajar é desapropriado para um Imperador.
Ing-mar sorriu e entrou na taverna. O bom humor do menino fez com que a
taverna quase se acalmasse. Pan-noa notou que eles ainda olhavam com os cantos
dos olhos para os três. “Não é para menos.” Pensou. Pan-noa percebeu, ainda, que o
homem, antes de entrar na taverna, virou-se para o povo atrás dele e fez um sinal com
a mão para se acalmarem. Era um bom sinal.
Pan-noa, Be e Ing-mar sentaram-se. Não tinha ninguém da idade deles ali, mas
as pessoas não queriam saber da idade deles, mas sim o que eles eram.
O homem veio sorrindo e sentou-se à mesa que os três haviam escolhido.
- É um lugar antiquado, mas acolhedor vocês não acham? A propósito, meu
nome é Caroteno. E o de vocês?
Os três não puderam conter o riso diante do nome do sujeito. O homem sorria
por ver “crianças” tão felizes.
Ing-mar estava quase tendo um ataque de tanto rir quando a cerveja chegou.
- Bem. - Disse ele ainda rindo. - Meu nome é Ing-mar e estes são meus amigos.
Esta é Be e este é Pan-noa. – Ing-mar riu mais ainda ao ouvir o que saia de sua própria
boca, pois a pérola-cubo traduzia tudo o que ele falava.
Be e Pan-noa riram também da expressão do menino.
- Ótimo, muito prazer em conhecê-los. – Disse Caroteno muito alegre e aliviado por ver que aqueles seres não eram os bruxos do norte, mas apenas crianças desgarradas de algum povoado próximo.
- O prazer é todo nosso... Caroteno. - Pan-noa não conseguia conter o riso.
- Bem, à saúde de vocês! – Caroteno levantou a caneca e bebeu a cerveja.
Os três o imitaram. Ing-mar gostou tanto da cerveja que virou a caneca inteira
de uma vez.
- É exatamente assim que um Imperador bebe, Ing-mar.
- Imperador? – Perguntou Caroteno.
- A sim! Ing-mar é o Imperador do nosso novo jogo, o jogo de quem bebe mais
cerveja. Ing-mar aqui é o que mais bebeu desde que nós saímos de viajem. – Falou
Pan-noa rapidamente para que Caroteno não desconfiasse de nada.
- Ah! Uma brincadeira não é? Mas já que estão viajando, de onde vocês vieram?
Neste momento passou por eles o taberneiro levando um prato enorme com a
perna de algum animal assado enfeitada por vários legumes.
Ing-mar quase gritou.
- Ei! Eu quero um desses!
Caroteno não pode conter o riso. “É, são apenas crianças que fugiram para
encontrar uma aventura. Mas de onde poderia vir esse cabelo lilás? E essas vestimentas?”
Depois de algumas canecas de cerveja o prato chegou. Caroteno admirou como
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
os três comiam, mas ficou mais admirado ainda com algo que ele não tinha reparado
porque a situação até agora era de pura euforia: os dois meninos, eles emanavam algo.
Algo muito estranho. Eles pareciam ser... diferentes.
“Ing-mar ele está nos observado. Está reparando como somos diferentes.”
“Sim Pan-noa eu senti isso. O que vamos fazer?”
“Continuar.”
Pan-noa perguntava ao novo amigo de tudo um pouco, como eles viviam, o
que faziam para sobreviver. Ing-mar e Be entraram na conversa apenas para fazer
piadinhas. O fato era que Ing-mar nunca ficara bêbado e estava adorando a situação.
Então Caroteno voltou a perguntar.
- Vocês não me disseram ainda de onde vieram.
- Do sul - disse Pan-noa - estamos procurando as bruxas do norte. Queremos
caçá-las.
Caroteno viu na expressão de Pan-noa que não era nenhuma brincadeira. Então
Ing-mar e Be explodiram em risadas. Pan-noa começou a rir também e Caroteno, depois do susto, começou a rir.
- É, não é uma boa ideia falar assim do povo do norte. Vocês sabem, estivemos
em guerra com eles há tempos atrás. São um povo muito poderoso. Tivemos que concordar em não importuná-los mais.
- É eu soube. - Mentiu Pan-noa satisfeito em saber que o povo de Clia ganhara
a guerra.
Caroteno não perguntou mais de onde eles vinham e deixou a conversa fluir.
A taverna parecia não mais interessar-se por eles, o que era um alívio. Então, depois
de muitas cervejas Pan-noa decidiu ir embora. Agradeceu a Caroteno e retirou-se.
Quando chegou à porta da taverna Caroteno perguntou:
- Onde vão dormir?
Pan-noa virou-se e respondeu:
- Estamos com um acampamento fora da cidade.
- Apareçam. – Disse Caroteno.
- Sim, obrigado. – Falaram os três juntos.
Logo estavam saindo da cidade em direção à sala de controle.
das.
- Kenn. – Disse Pan-noa. – Quantos estão nos seguindo?
- Até agora? Acho que metade da população da cidade.
- Podem nos ver?
- Não creio Pan-noa. Estão usando lanternas a óleo para enxergar suas pega-
- Lanternas a óleo. – Repetiu Pan-noa. – Temos que agradecer aos céus pelo
tempo fechado não é mesmo?
Os três olharam para o céu negro, sem nenhuma estrela.
- Será que podemos levitar? Estou meio tonto. – Disse Ing-mar.
- É, a cerveja bateu. – Falou Pan-noa com um sorriso. – Vai ser melhor. Não
deixaremos pegadas para os curiosos.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Os três levitaram e foram em direção à nave a meio metro do chão. Porém
quando estavam quase chegando, sentiram um vento forte e, nesse momento, um
clarão apareceu naquela área. Os três olharam para o céu e viram uma gigantesca lua
prateada bem em cima da cabeça deles.
Pan-noa parou chocado e seu corpo começou a tremer. Teve que desligar os antigravitacionais para sentir algo em baixo de seus pés. Mas mesmo assim não aguentou, caiu no chão. Não conseguia tirar os olhos da lua. Sua pele ficou branca e seus
olhos também. Apesar disso sentia-se muito forte. Conseguia enxergar muito mais.
Muito mais do que jamais imaginou e começou a ouvir sussurros de todos os lados.
Viu Be e Ing-mar olhando para ele. Conseguia ver não Ing-mar nem Be mas a essência
deles. Ainda estava no chão pois não conseguia controlar seu corpo. Via a corrente
sanguínea dos dois, o coração batendo. Ouviu mais sussurros vindo dos homens que
os estavam perseguindo. Ouvia coisas de muito longe. Sua mente começou a girar
num redemoinho de informações.
Agora estava em outro mundo. Os sussurros continuavam. Não tirava os olhos
de Be e Ing-mar mas, ao mesmo tempo, estava em outro mundo. Um mundo que ele
não sentia na carne, mas sim no espírito. Ondas de prazer tomaram conta do seu corpo. – Nós lhe devemos isso Pan-noa. – Falavam vozes que não eram vozes. – Foi você
quem iniciou a evolução. Um novo círculo nos espera. Obrigado Pan-noa. – “De quem
eram essas vozes?” Perguntava-se Pan-noa. “O que queriam dizer... e esta sensação...”
Pan-noa tentou olhar para dentro deste novo mundo, do mundo das sensações mas
nada encontrava. Só havia sensações. – Informações espirituais. – Disseram as vozes.
- Se tudo der certo você virá para cá. Não é maravilhoso Pan-noa? – As vozes perguntavam. – Para cá, Pan-noa. - Pan-noa ouvia. Conhecia esta voz!
- Eles estão vindo para cá, Pan-noa. – Parecia ser Be.
Pan-noa levantou-se sentindo-se muito forte. Seu olhar branco conseguia ver
as pessoas como se fosse dia.
- Camuflagem, agora! A toda velocidade para a sala de controle.
Os três estavam dentro da sala assistindo nos monitores o povo da cidade procurar por eles. Jamais os encontrariam.
- O que houve com você, Pan-noa?
- É, como foi cair desta maneira?
- Quanto tempo fiquei desmaiado? – Perguntou Pan-noa.
- Desmaiado? – Perguntou Be. - Você simplesmente parou e olhou para a lua.
Caiu no chão e levantou gritando feito louco!
- E seus olhos? – Perguntava Ing-mar. – Como foi que fez aquilo? Foi com
a tua tatuagem não foi? Ou agora você está conseguindo manipular seu corpo desta
maneira? Se está, é muito legal Pan-noa!
“Eles não sabem... Será que foi a cerveja? Não, foi a lua. Assim como Clia!
Claro! Os poderes! Eu consegui ouvir vozes que pareciam ter vindo de Kalum Br!
Mas, e aquelas sensações...? O que as vozes diziam? Era sobre a evolução!” O colar
começou a pesar no seu pescoço.
Pan-noa ficou com sono. Sua consciência pesava de novo. Estava muito cansa320
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
do. Então dormiu, assim como Be e Ing-mar.
Pan-noa levantou-se muito cedo. Olhou para Be e Ing-mar dormindo. Passou o
dedo no rosto de Ing-mar “Meu amiguinho...o que fomos fazer?” Olhou para Be. “O
que posso fazer por você, Be? Minha querida Be.” Saiu da nave dando instruções a
Kenn para não deixá-los sair a não ser para encontrar com ele.
Pan-noa foi para o norte levitando. Caminhar seria desperdício de tempo.
Achou um rio e subiu beirando a margem. “Até que é um planeta bonito.” Pensou
Pan-noa. “Nada comparado ao Planeta Azul, é claro...” Encontrou um lago. Havia
uma pedra exposta ao sol. Pan-noa sentou-se nela e começou a refletir. Pensava no
que tinha feito, pensava na mensagem da lua ou seja lá de onde tivesse vindo. “Então
estou realmente ajudando o ser humano a mudar. É realmente uma evolução como nós
suspeitávamos.” Olhou para o espelho d’água. Seu rosto, uma figura perfeita, beleza
infinita. Um ser sem sexo e, ao mesmo tempo, com os dois. “Mas para que? Para
que necessitamos de seres assim? O que mais disse a voz? Que estavam gratos. Meu
deus!” Pan-noa lembrou-se de Lainoriel. “Eles evoluíram também! Será que Lainoriel
falou algo de passar para outro círculo?” As esferas pesaram em seu pescoço. “Vocês
querem dizer algo não é?” Pan-noa sentiu um puxão.
- Caralho, isso dói! O que querem afinal? Onde estão?
Nada. “Eles não vão falar comigo.” Pan-noa pensou de novo. “Um mundo de
sensações. Será que é este o nosso destino? Puxa será que ninguém pode me ajudar?”
Pan-noa esperou um pouco.
Sentiu um aperto no estômago. Sentiu que alguém o observava. Olhou para
baixo. Uma sombra. Olhou para cima. Não era uma nuvem entre ele e o sol. Pan-noa
ficou de pé e colocou a mão quase na frente do rosto. O que estava entre ele e o sol era
transparente. Pan-noa ainda sentia os raios baterem no seu.
Pan-noa estava agora sentado. Via-se sua cara de interrogação olhando para
cima. O braço fazendo sombra nos seus olhos. Olhos verdes, rosto claro, cabelos
quase no ombro. Um ser divino, algo inimaginável.
- Ei! Ei você! - Pan-noa gritou. – Você que está me vendo.
Não houve resposta, mas aquilo continuou olhando Pan-noa. Era uma pessoa.
Pan-noa ainda olhava sério, questionador.
- O que é o mundo deles... você sabe? Como é o outro círculo? O círculo para
onde vamos? Você não precisa dizer. É só pensar! Consigo ler sua mente.
Então a pessoa lá em cima pensou:
“Lainoriel já te falou! Nós somos diferentes deles porque ainda somos apegados à matéria e eles não.”
- Apegados à matéria! - Pan-noa falou. A pessoa desapareceu. Mas ainda estava lá. Pan-noa a sentia.
- Ei! - Pan-noa olhou para cima de novo. – Obrigado!
Nenhuma resposta de novo. E agora o seu rosto desaparecera das vistas dele.
- Pan-noa! – Gritou Ing-mar.
- O que pensa em estar fazendo? – Disse Be.
- Vocês não vão acreditar! – Disse Pan-noa eufórico. – Acabei de ver uma pes321
Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
soa.
- Uma pessoa? – Os dois perguntaram.
- Sim, um ser humano. Lá em cima! - Pan-noa apontou para cima. – Estava lá
e tenho a sensação que ainda está, olhando para nós nesse exato momento!
- E o que ela fez? – Perguntou Ing-mar.
- Ela me respondeu algo, algo que eu precisava saber.
- O quê? – Perguntou Be.
- Algo sobre a evolução!
Os dois baixaram os ombros.
- Você não vai desencanar dessa evolução nunca, Pan-noa?
Pan-noa olhou para baixo. Era verdade. Ele estava muito preocupado.
- Veja, nós trouxemos comida. O que você acha? – Perguntou Ing-mar.
- Perfeito! Estou morrendo de fome.
Os três devoraram os sanduíches e depois nadaram na lagoa. Passaram a tarde
ali.
- Ei, o que vocês acham de caçar algo para comer à noite, aqui mesmo? –
Disse Ing-mar.
- Ótima ideia!
Não foi difícil de encontrar alguns coelhos. Ing-mar mostrou ser um expert
em assá-los. Comeram ao anoitecer em volta de uma fogueira. Os três deitaram-se na
pedra ainda quente e ficaram olhando para o céu. Milhares de estrelas iluminavam a
noite. Os três estavam quase dormindo quando algo chamou a atenção de Pan-noa.
- Vocês estão vendo?
- O que?
- Aquele ponto prata lá no céu.
- Não, onde?
O ponto prata explodiu. Os três se levantaram.
- Caralho o que foi isso? Kenn... Kenn! – Berrou Pan-noa. – O que está havendo?
- Pan-noa. – Disse Kenn calmamente. – As micro naves não são tão rápidas
quanto o transuniverso imperial.
- O que? - Pan-noa não entendera. Mas logo entenderia.
Da explosão surgiu um clarão azul prateado espalhando-se por todo o céu do
planeta.
- Meu Deus. – Disse Pan-noa. – É nossa micro nave trazendo meu sangue!
O céu ficou um pouco mais claro com nuances de prata expandindo-se. Depois
de alguns instantes apareceu a marca da Andróida Andrógina, enorme, cobrindo o céu
inteiro. Logo sumiu e uma frase numa caligrafia maravilhosa escreveu: “Bem-vindos
ao Projeto A Andróida Andrógina.”
Os três se sentaram. Viram então uma finíssima camada de pó prateado descer
do céu. Então sentiram um cheiro doce. O mesmo cheiro doce que Pan-noa tinha, que
Ing-mar tinha.
As esferas puxaram o pescoço de Pan-noa para baixo de modo que a corrente
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
que as seguravam arrebentou. As quatro esferas caíram na pedra.
Pan-noa olhou e pegou-as segurando-as nas mãos. Elas estavam muito pesadas. Pan-noa olhou sério para Ing-mar e Be e disse:
- Alguma coisa está muito, mas muito errada por aqui.
Os dois perceberam pela expressão de Pan-noa que aquilo não era só uma vaga
intuição. Perceberam que a coisa já não era mais uma brincadeira. A consciência do
pouco de ser humano que ainda restava em Ing-mar começou a despertar.
O despertar das quatro esferas
Os três estavam sentados ao redor de uma mesa redonda com apenas um feixe
de luz iluminando as quatro esferas. O resto da sala de comando só não estava totalmente escura porque a luminosidade da lua entrava pela imensa janela frontal.
Ing-mar e Be estavam verdadeiramente assustados. A lua parecia iluminar o
rosto de Pan-noa diretamente e seus olhos estavam totalmente brancos. Mas não era
só isso. Parecia haver uma luz dentro da cabeça de Pan-noa e seus olhos eram como
dois faróis.
Ing-mar estremeceu. Ing-mar nasceu com a inteligência plena de Schaia III, foi
aprendiz do Mago de Prata e era, em essência, um Mago, apesar de ter renunciado à
maioria de seus poderes. Mas nunca, em toda a sua vida, tinha visto algo parecido com
aquilo. O pior era saber que aquele à sua frente tornara-se alguém de quem Ing-mar
dependia totalmente. Não era só um amigo. Era o único amigo. O que sentia por Pannoa extrapolava a noção de amizade. Pan-noa era tudo em sua vida. E agora Pan-noa
estava, ali, à sua frente, emanando tanto poder, tanta energia que Ing-mar estava com
medo.
Be estava paralisada. Não entendia o que estava acontecendo e sentia falta de
casa. Sentia um vazio. Era como se Pan-noa a tivesse abandonado sozinha naquele fim
de mundo. Mas não era só isso. Era Pan-noa, o seu Pan-noa paralisado à sua frente e
com duas lanternas no lugar dos olhos.
Pan-noa não piscava. Olhava para lua logo atrás da cidade. Um céu iluminado.
A cidade fazia sombras grotescas no espaço aberto que a separava da sala de comando.
“A Deusa.” Pensou Pan-noa. Só que estava difícil para desenvolver qualquer
pensamento sensato. A energia era forte demais e ele não conseguia pensar. Era melhor deixar a energia penetrar. Sentir a energia entrando e fluindo por seu corpo, indo
tão longe que chegava ao seu espírito. Pan-noa não via nada apenas sentia. O mundo
das sensações. Lentamente começou a entender. “Você que me olha! Você me disse
que ainda somos ligados à matéria e eles não!” Pan-noa entrou de novo nas sensações.
Agora tentava controlar de novo.
- Estou enxergando! – Gritou Pan-noa dando um susto em Be e Ing-mar. – Estou vendo!
Pan-noa finalmente conseguiu enxergar o lugar, mas não tinha nada para comparar. “Isso não pode ser um lugar!” Era o tudo e o nada ao mesmo tempo. Era algo
impensável. Pan-noa estava tão eufórico que sua respiração começou a ficar intensa.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
go?”
Ing-mar estava preocupado com a vida de Pan-noa. “Será que ele corre peri-
- Kenn – Disse Ing-mar. – Você não acha melhor nós fecharmos essa janela?
Kenn não respondeu. Pan-noa, sem saber, controlava tudo à sua volta. Sua
mente estava por toda a parte. Estava na nave e, ao mesmo tempo, no não lugar que a
Deusa o levara. Então, mentalmente deu ordens a Kenn. Um braço mecânico aproximou-se da mesa. Ing-mar estava com os olhos esbugalhados. Be não piscava. O braço
depositou no centro da mesa um cubo azul. “Uma pérola-cubo!” Pensou Be. Vieram
mais dois braços trazendo uma espécie de material metálico negro. “Mantíros!”
Pensou Be de novo.
“Supercondutores! O que ele vai fazer?” Então mais braços surgiram e, com
muita agilidade, começaram a trabalhar os materiais. Pan-noa não olhava para a mesa,
mas sim para a lua.
A pérola-cubo ganhou uma moldura finíssima e ao redor havia um círculo do
mesmo metal. Para cada esfera verde havia também uma moldura arredondada soldada ao redor da moldura da pérola-cubo. Havia ainda mais um círculo oco que ligava
as esferas verdes bem no meio. Era uma peça linda. Os braços retiraram-se quando
acabaram o trabalho. Apenas um ficou. Pegou a peça, esperou que Pan-noa retirasse
a parte de cima de sua roupa de batalha e colocou a peça bem no meio do peito de
Pan-noa. A peça foi enfiada no peito rasgando a pele. O braço ainda apertou um pouco
mais contra o peito dele. Pan-noa nem pestanejou. O braço retirou-se. A peça não
tinha como sair dali.
As luzes nos olhos de Pan-noa se apagaram. Pan-noa sorriu para os dois à sua
frente, mas eles não se mexiam. Pan-noa falou:
- Eu vi! – Estava extasiado. – Eu vi o lugar!
Os dois continuavam estáticos.
- Ei! O que houve com vocês?
Ing-mar conseguiu apontar para o peito do amigo. Pan-noa olhou para baixo e
levantou-se da cadeira com um pulo.
- Ei! Quem colocou essa porra em mim?
- Você Pan-noa. – Disse Ing-mar assustado.
Então cada uma das pontas da peça formou um rosto na pele de Pan-noa. Um
rosto para cada esfera. Clia, Lainoriel, O Mago de Prata e a irmã gêmea de Ing-mar
que morreu sem nome.
- Ah! Mas nem fodendo. Vocês estão mortos! - Pan-noa apagou as imagens fazendo com que um dragão comesse cada uma delas. – É isso aí! Isso sim é um jantar!
Ing-mar tentou rir mas não conseguiu. Pan-noa tentava arrancar a coisa que
estava enterrada em seu peito.
- Kenn, por favor, quer me ajudar com essa porra?
Um braço mecânico veio em direção ao peito de Pan-noa e com um ploc fez
a coisa sair. O braço colocou a coisa em cima da mesa. Voltou ao peito de Pan-noa e
cicatrizou a ferida.
Pan-noa sentou-se olhando para os dois.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
- Muito bem, alguém vai me explicar o que aconteceu?
Os dois olhavam para a peça em cima da mesa ainda com um pouco de sangue.
Então repararam que já não havia mais lua.
- Pan-noa. – Disse Be. – Cada vez que a lua aparece você se transforma. Ontem você caiu, hoje você chegou aqui muito bravo com as esferas ou seja lá com o que
for. Mas então a lua surgiu no céu e você... bem. – Ela olhou par Ing-mar.
- Você se transformou, Pan-noa. – Disse Ing-mar. – Seus olhos ficaram primeiro brancos, como ontem, mas hoje parecia que havia uma luz dentro de sua cabeça e
a única forma dela sair era pelos seus olhos!
Pan-noa olhou para a peça que estava na mesa.
- E essa porra? De onde veio?
- Você não sabe? Não foi você quem fez?
- Não. – Disse Pan-noa. – Os malditos estão querendo me manipular. Tem algo
a ver com a evolução. Tem algo a ver com a Andróida Andrógina.
Os dois se olharam.
- Vejam. – Disse Pan-noa. – Isso acontecia com Clia, neste planeta e no Planeta Azul. Essa coisa dos olhos. Ela ficava esquisita, com um olhar vago e um poder
inexplicável.
- Você ficou assim! – Disse Ing-mar.
- Ela dizia que fazia contato com a Deusa, o ser que gerou a Andróida Andrógina. Acho que eu fiz esse contato também. Só que acho que eu fui muito mais além.
Acho que eu descobri qual é o plano deles. Acho que sei por que fizemos tudo isso
Ing-mar.
Os três se olharam. A peça rodou em cima da mesa. Pan-noa fechou os olhos e
pegou a peça na mão. “Então seus filhos da puta? O que vocês querem afinal?” Quatro
vozes falavam ao mesmo tempo. Pan-noa largou a peça na mesa.
- Se não forem educados não teremos contato, ouviram?
- O que a peça faz, Pan-noa? – Perguntou Be.
- Aqui dentro estão quatro pessoas não mortas. Eles ainda têm poderes e me
usaram para fazer esta peça. Eles comunicam-se comigo através dela, o problema é
que eles querem falar todos ao mesmo tempo.
Ing-mar olhou para a peça. “Minha irmã está aí dentro.”
- As quatro esferas. – Disse Ing-mar. – Imagine o poder que isso não deve ter?
- É sobre isso que eu quero falar. – Disse Pan-noa. – Esses seres, chamados de
seres supremos, estão nos manipulando. Acredito que eles querem que a humanidade
evolua. Até aí tudo bem. Mas quando tive contato com a Deusa eu vi um lugar, um
lugar que não era um lugar. Um lugar com muita energia. Eu tenho a impressão que
se nós fizermos essa evolução, quero dizer, se ela acontecer como eles querem, nós,
enquanto seres humanos evoluídos, iremos para este lugar depois de mortos. Um lugar
sem matéria.
- Fantástico! – Disse Be. – Então podemos dizer que depois da nossa morte
iremos para um lugar que não é um lugar? Pelo menos não morremos de verdade.
Quero dizer, a vida não acaba por aqui certo?
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- Acho que sim. – Disse Pan-noa. – Mas eu gostaria de saber por que eles
resolveram fazer isto agora, assim, sem mais nem menos e o por que tanta pressa em
fazê-lo.
- Pelos Cristais! – Disse Ing-mar. – Eles vão nos matar! Vão matar a todos
quando todos estiverem modificados! Assim iremos mais depressa para esse lugar.
Agora eu me lembro. O Mago de Prata falou uma vez! “Quando um círculo evolui, o
próximo evolui também. É a lei da vida.” Nunca entendi isso muito bem mas agora
está tudo muito claro!
- Mas por quê? – Perguntou Be quase histérica. – E por que esta evolução iria
nos fazer entrar neste lugar? O que tem de mais em ser assim como você ou Ing-mar?
Qual é a grande diferença a não ser esta coisa do sexo?
- Aí está a grande diferença Be. – Falou Pan-noa. – O primeiro impulso instintivo do ser humano enquanto macho foi o de dominar a fêmea, de fazer com que
ela se sentisse segura, que tivesse um sujeito com poder para que seus descendentes
tivessem a mesma força. O instinto da sobrevivência sempre que falou mais alto. A
humanidade nunca mudou, sempre foi a mesma coisa. Obviamente nos tempos modernos, tanto os homens como as mulheres tinham atração pelo poder, principalmente
para dominar o ser amado. O impulso é o mesmo desde que a humanidade começou a
engatinhar. O que mudou foi só o ponto de vista. E o ser humano sempre conseguiu o
poder através da matéria seja manipulando-a, seja vendendo-a. O valor espiritual dos
tempos da era das sombras foi esquecido. Só a matéria valia desde então. Por isso o
apego tão grande à matéria. Agora derrube o primeiro pilar. Imagine que você pode
mudar de sexo num piscar de olhos. Todo o primeiro impulso instintivo seria derrubado. O objeto do desejo seria desfeito porque não existiria mais um par verdadeiro,
um oposto a ser desejado. O ser humano seria colocado em um outro nível e a equação
domínio, poder, matéria seria desfeito. O ser humano estaria disposto a equacionar
outros valores, valores estes, não materiais. A matéria ficaria para um segundo plano.
E então ele poderia passar para um outro estágio quando morresse, um estágio no qual
a matéria não existiria mais, sobrando só e somente a energia. Eu vi este lugar.
Ing-mar e Be estavam chorando. Jamais poderiam imaginar que começariam
tudo aquilo. A expressão de Pan-noa não era a de uma pessoa abalada. Ele parecia não
estar vencido.
Be foi a primeira a notar isso.
- O que foi Pan? – Disse ela com lágrimas na face. – Você tem alguma ideia
não tem? Não tem Pan?
Pan-noa olhou para ela quase sorrindo. Pegou as quatro esferas nas mãos e
ouviu um monte de vozes em sua mente. Com um gesto brusco obrigou as vozes a se
calarem.
- Ainda não Be. Mas vou ter. E quando eu tiver... – Disse Pan-noa chacoalhando as quatro esferas. – Esses merdas vão se foder.
Mas então Ing-mar falou:
- Seja lá o que você tiver em mente Pan-noa, a evolução já começou. Isso,
ninguém pode mudar.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Pan-noa olhou para Ing-mar com uma expressão de pura sinceridade:
- Nós temos tempo, Ing-mar. Eles não podem simplesmente matar toda a humanidade só porque nasceram evoluídos. A evolução está na maneira de como a humanidade irá reagir diante da sua nova identidade. E quem disse que eu queria parar
a evolução? Deixem a humanidade evoluir como queira! Só vamos mudar o ponto de
vista do novo ser humano! E se algum dia nós tivermos que ir para um lugar que não
é um lugar, nós escolheremos quando!
As quatro esferas pesaram nas mãos de Pan-noa ele segurou-as firmemente. “E
acho melhor vocês irem se acostumando com a ideia”
A Morte da Deusa
“Para que querer algo se você já o tem, se você já o é? Que ideia perfeita.” Pensou Pan-noa. “Esses seres supremos são mesmo espertos.” Pan-noa estava sentado no
aerojet esperando por Be e Ing-mar. “Eles já foram Antes uma vez, devem saber lidar
com nossos sentimentos, com nossas fraquezas melhor que nós mesmos. Imagine!
Não se apaixonar mais simplesmente porque você pode se tornar o objeto amado! Não
ser atraído por outro pelo simples fato de já possuir tudo que o outro lhe daria. Que
merda de ideia fantástica. Destruiria toda a nossa compulsão pela matéria. O próprio
desejo desapareceria!”
Pan-noa não acreditava nos seus próprios pensamentos. Eram elevados demais.
Tocou as quatro esferas presas novamente no seu pescoço, penduradas em um colar e
com a pérola-cubo no meio. “São vocês não são? Eu estou controlando vocês também
e vocês me respondem. Vocês simplesmente passam a informação que eu preciso.”
Pan-noa olhou para sua mão. Uma espiral infinita, uma teia com bilhões de conexões
giravam sem parar. Pan-noa via o infinito naquele desenho. “Com a animotatoo eu
aprendi a controlar meu corpo, meus pensamentos e as quatro esferas. Ninguém havia
conseguido controlar estes objetos antes. Ninguém sabia o que fazer com as esferas
do esquecimento. Nem mesmo os seres supremos.”
Pan-noa viu Ing-mar e Be aproximarem-se da nave.
- Precisava ser tão cedo? – Disse Ing-mar mal-humorado.
Pan-noa sorriu. “Esse menino vai fazer parte da minha vida para sempre.” Olhou para Be quase sonâmbula. “Assim como essa menina! Mesmo sem ela ser o que
sou... ela é linda.”
Os dois entraram no aerojet.
- Então, para onde vamos? – Perguntou Ing-mar.
- Preciso encontrar alguém. Quero esclarecer algumas coisas.
- Vamos para aquele mundo menor que você nos mostrou? – Perguntou Be.
- Não, vamos ver quem me obrigou a começar tudo isso. Vamos ver a Deusa.
O teto da sala de controle abriu-se em um círculo. “Num círculo.” Pensou
Pan-noa. O aerojet subiu rasgando o céu, fez uma pirueta e voltou num voo rasante
passado a poucos centímetros da casa mais alta da cidade. Be olhou para trás mas já
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não via a cidade. Pan-noa estava em velocidade hiper sônica.
- Você quer matá-los de susto? E a essa hora da manhã? – Perguntou Ing-mar.
- Quanto mais cedo levantar mais dinheiro terá para gastar. – Falou Pan-noa
voltando ao seu humor habitual.
Os três riram. Pan-noa colocou uma música fantástica e fez o caminho que
um dia tinha feito com Clia. Tanto havia acontecido. Pan-noa diminuiu a velocidade.
Sabia que a Deusa só aparecia na presença da luz da lua. Passaram o dia dentro da
nave. Pan-noa queria tempo para pensar e adorava pensar quando estava voando. As
informações começaram a ser coletadas.
O mergulho na água foi emocionante. Ing-mar e Be jamais sonharam em
navegar por baixo d’água. Quando o aerojet entrou no rio subterrâneo eles ficaram
realmente excitados. Pan-noa começou a passar as informações via pérola-cubo para
eles. “ Cada vez que a pétala cair Be lança um micro raio. Nunca deixe a pétala cair no
chão porque a Deusa some. Ing-mar, você será minha proteção. Como não saberemos
se a Deusa vai me atacar ou não, você vai ficar conectado à minha mente o tempo
inteiro. Não faça nada, apenas aponte o braço direito para a Deusa e, se eu perceber
que ela vai fazer alguma coisa contra nós, atirarei com sua arma. A palavra-chave para
isso será “tiro pela culatra.’ ”
O aerojet subiu pela neve que se fazia de areia numa minúscula praia dentro da
caverna. Logo adiante estava a pedra onde a Deusa morava. Uma pedra negra rodeada
de cristais. “Cristais! Cristais mágicos!” Pensou Ing-mar com vontade de tocá-los.
Mas não o fez.
A luz do aerojet iluminava o local. Os três se aproximaram da pedra negra.
Ing-mar com um dos braços apontados para a pedra.
“Diminuir luzes.” Ordenou Pan-noa. O lugar ficou numa escuridão total.
“Visão noturna.” Mas nem precisou porque neste momento a luz da lua penetrou pelo
buraco logo acima da pedra. A flor começou a nascer. Primeiro surgiu o caule, depois
a flor e, finalmente, desabrochou. A Deusa apareceu. Nenhum dos três ficou emocionado. Estavam ali por uma razão e definitivamente não iriam impressionar-se com
qualquer performance. Nem Be alterou-se. Tinha visto coisas muito mais absurdas
nos últimos dias.
A Deusa notou que havia algo errado. Olhou para Pan-noa e fechou os olhos.
Abriu para ver se aquilo era verdade ou sonho. Depois olhou para Be que não chamou
tanta atenção. O pior momento foi quando viu Ing-mar. Sua cara fechou e a beleza
personificada naquele ser deu lugar à máscara de um monstro. Ing-mar fechou a mão
que estava apontada para a Deusa.
Pan-noa deu um passo à frente.
- Nem pense em fazer-lhe mal. – Disse com uma voz de comando que fez
estremecer o coração de quem ouvia.
A Deusa olhou assustada para Pan-noa e voltando a seu estado natural.
- Então é assim que os demônios surgem... – Disse Pan-noa sarcasticamente.
- Como ousa trazer tamanha aberração à minha presença? – Disse a Deusa
referindo-se a Ing-mar.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Pan-noa agora falou mais alto e mais forte, sua voz era rouca e penetrava nos
lugares do cérebro onde o medo gosta de se esconder:
- A sua dor será mais forte desse modo.
A Deusa recuou um pouco. Seu medo era visível e o poder dela nesse momento
foi questionado. Uma pétala se desprendeu da flor. Quando estava a caminho do chão
um micro raio a destruiu. A Deusa fechou os olhos.
- Você não pode fazer mal à sua mãe. – Disse a Deusa para Pan-noa.
- Minha mãe se chama Larissa e é um ser humano. – A voz de Pan-noa não
mudava de tom.
- Mesmo que você me mate, mesmo que eu vire uma esfera do esquecimento,
mesmo que tenha que ficar trancada neste círculo, mesmo que não evolua para o outro
círculo, meu trabalho não foi em vão. Morrerei da sua forma sabendo que minha
espécie irá para um outro futuro, que vão evoluir assim como vocês. Minhas atitudes
não foram em vão. Sabemos que nossas ordens foram claras. Vocês enviaram o meu
sangue para todos os planetas. Quando você matou o tutor dessa coisa que está com
você, você permitiu que o Planeta Azul fosse liberado e que sua miserável tecnologia
levasse meu sangue até lá. Portanto, a evolução, a sua evolução forçada, já começou.
- Sabe, dona Deusa, se a senhora permitir que eu a chame assim, – Disse Pannoa sarcasticamente. – às vezes o ser humano erra. Esquece uma torneira ligada, não
programa um sistema para explodir um planeta direito, não verifica o alarme de casa
ao sair de férias... essas coisas ... é claro que a pérola-cubo nos ajuda muito nesses
casos. Mas veja a senhora que Schaia III não colocou o Planeta Azul como lar de seres
humanos e, por acaso, eu e Ing-mar aqui esquecemos completamente deste detalhe.
A Deusa abriu a boca embasbacada.
- Estou falando sério! – Disse Pan-noa. – Não fizemos por mal! Será que fodeu
tudo? Quero dizer, seu plano? Afinal, eu fiquei sabendo por seus amigos aqui - Pannoa tirou as quatro pérolas de seu pescoço e mostrou-as à Deusa que quase teve um
colapso ao olhar para a peça. – que se toda a espécie não evoluir então todo o trabalho
será em vão, não é verdade?
- Clia. – Disse a Deusa olhando assustada para o colar. – Ela está ali. Como
você descobriu Pan-noa? Como você conseguiu fazer contato com os seres no esquecimento?
- Ah! Você sabe! Minha miserável tecnologia às vezes serve para alguma coisa.
A Deusa abaixou a cabeça praticamente derrotada. Duas pétalas caíram mas
imediatamente explodiram.
- Sabe, dona Deusa. Eu realmente não fazia ideia dessa história do Planeta
Azul, mas acho que não seria necessário eu ter mandado o MEU SANGUE para eles,
afinal olhe para Ing-mar! Ele já está evoluído e acho que a próxima geração do Planeta
Azul nascerá como ele.
A Deusa olhou para Ing-mar e logo depois para Pan-noa. Um certo brilho passou pelo seu olhar. “Como? Será que não está tudo perdido?” Mas Pan-noa continuou:
- Veja como vocês não têm a manha para fazer as coisas certas! E ainda se
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
dizem como é mesmo? – Encostou as esferas no pescoço de novo. – Ah sim! Semidivinos. – Os três riram. A Deusa estava alarmada. “Como é possível? Os Antes estão
rindo de nós!” – Vocês como semidivinos deveriam saber mais coisas sobre nós antes
de tentarem foder com nossas vidas. Se bem que esse novo visual causou muita sensação no Império, não é mesmo Be?
Be não se mexia.
- Mas, você sabe, dona Deusa. As coisas com os seres humanos são difíceis.
Quando eles não querem alguma coisa simplesmente não querem e quebram uma
carralhada de regras para não fazerem aquilo que não querem. - Pan-noa parou de
falar por um momento. – Sabe, estou falando meio esquisito ultimamente. Bem, mas
voltando ao assunto. Como seus amigos mortos aqui resolveram me contar tudo sobre
leis de círculos e toda essa merda, eu pensei em algo que poderia foder com o seu
plano.
A Deusa estava em pânico. Olhava cada vez mais para Ing-mar, pensando
como deveria ser insuportável ser aprisionada numa esfera do esquecimento. Mas a
raiva estava subindo por seu pescoço e Pan-noa notava.
- Então eu pensei no seguinte: como meu pai tem uma fábrica de pérolascubo eu poderia manipulá-las com toda essa informação que eu possuo. Assim, todo
o ser humano, quando nascesse, ao invés de ganhar um investimento bancário para
seu futuro, ganharia uma pérola-cubo com instruções sobre seu novo corpo. Quem
quiser ser homem será, quem quiser ser mulher será e quem quiser ser os dois também
será! Não é ótimo? Bom, os que escolheram ser um só vão continuar sendo os seres
humanos sem diferença alguma e os que escolherem serem os dois, possivelmente escolherão uma vida mais pacífica, mais espiritual e , eventualmente, serão o que vocês
querem que sejam, isto é, seres que estão cagando para a matéria. Não é assim que
funciona? Então, quando morrerem vão para o seu plano, seu círculo. O único problema é que se uma espécie vai para o próximo círculo pela metade pode dar cagada
não é mesmo? A espécie inteira deve ir ou então só um mínimo de indivíduos, aqueles
que evoluem antes dos outros. Mas são casos raros. E eu estou falando de um monte
de gente que escolherá os dois sexos!
A Deusa estava atordoada com tal possibilidade.
- Nunca aconteceu algo assim antes! – Ela disse com muita raiva.
- Então, dona Deusa? A senhora deveria estar aberta a novidades! Parar um
pouco de se achar a mais gostosa do universo! O que a senhora acha de compartilhar o seu não lugar com alguns dos seres inferiores que se mostraram, por incrível
que pareça, mais evoluídos que vocês, pois conseguiram foder com seus planos de ir
para um círculo superior? Quem sabe eles não passem por vocês? O que aconteceria?
Vocês iriam retroceder um círculo? Vocês poderiam se tornar Antes de novo! Não é
maravilhoso? Imagine você ter que ir para uma série anterior porque a senhora Trala
errou suas notas nas aulas de socialização!
Be teve um ataque de riso e Ing-mar, mesmo não entendendo a comparação,
também riu.
A Deusa olhava-o. Mas não era mais a Deusa. Era um demônio, algo terrível e
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
feroz. Era a beleza da Deusa ao inverso.
Ninguém se assustou. Pan-noa olhou com uma expressão de riso:
- Pelo jeito teu descaracterizador de identidade foi pro pau! – Os três riram de
novo.
Mas a Deusa falou com sua nova voz de demônio:
- Há quanto tempo a humanidade não evolui? Vocês vão tornar-se a escória do
universo. Vão interromper a evolução da vida inteligente em uma era. Vão continuar
a comer suas informações através dos mortos, através da sua maldita inteligência cadavérica. É isso que vocês querem? Como pode você, uma criança sem o mínimo de
discernimento, responder pela humanidade inteira?
Pan-noa olhou muito sério para a Deusa.
- Comeremos a inteligência dos nossos mortos até quando quisermos e só
evoluiremos quando estivermos aptos para isso. Falo isso em nome de toda a humanidade porque vocês, seres semidivinos, me escolheram. Vocês escolheram essa criança
sem discernimento para fazer o seu trabalho sujo. Mas o tiro saiu pela culatra. Coisa
que meu querido amigo Ing-mar jamais deixaria acontecer.
Do braço de Ing-mar saiu um tiro que atingiu o coração da Deusa e depois
outro que atingiu a pedra negra. Restou apenas a luz da lua refletida na neve. Então,
com um som seco a esfera do esquecimento caiu em cima de uma pedra.
Os três sentiram o ar mais leve e o sorriso estampou-se na face de todos.
- Vamos embora dessa merda. – Disse Pan-noa.
Deixaram a esfera lá. Entraram no aerojet e saíram a toda velocidade pelo buraco onde a luz da lua entrava. A luz da lua atingiu em cheio a cara de Pan-noa. Seus
olhos ficaram brancos. Então ele disse:
- Estou tendo uma visão!
Ing-mar e Be se assustaram. “Até quando isso vai durar?” Os dois pensaram
juntos.
Pan-noa olhou para eles muito sério.
- Amanhã deveremos voltar a Kalum Br e começar a fazer as novas pérolascubo. Meu pai vai adorar. Ele será o ser mais rico do universo. Mas hoje, - Pan-noa
levantou a voz – eu só consigo ter uma visão!
- O que é Pan-noa? – Falou Ing-mar assustado.
- Eu vejo uma porrada de canecos de cerveja à minha frente!
A luz nos olhos de Pan-noa apagou-se.
- Foi ordem da Deusa!
Os três riram. Pousaram o aerojet na praça da cidade causando alvoroço na
população e dirigiram-se para a taberna. De alguma forma eles deveriam comemorar.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
O Guerreiro Azkenadzy
O Ser menino/menina
Abriu os olhos. A manhã já estava abafada, era um dia de outono, porém o mormaço se fazia sentir em todos os poros do corpo. Era um dia cinza e úmido. Naquele
dia Azkin acordou sentindo-se particularmente diferente de qualquer outro dia. Não
lembrava o que tinha sonhado, mas logo iria começar a lembrar. “Provavelmente lembraria” uma voz estranha a sua soou de maneira tímida dentro de sua cabeça.
Desceu da cama que dividia com suas três irmãs e foi ao único banheiro da
casa, quando olhou para seu pênis logo percebeu que tudo estava realmente diferente,
três pequenos pelos pretos haviam nascido contrastando com sua pele morena clara.
- Hum!
Era esse o som que emitia quando algo ligeiramente fora do normal ocorria.
Ficou olhando para seu pequeno pintinho e quase riu. Lembrou-se, no entanto, do dia
que tinha pela frente e prosseguiu com sua rotina. Lavou o rosto e escovou os dentes,
olhou-se no espelho e viu um belo menino de cabelos negros longos e lisos até os ombros, a pele morena clara, os olhos negros, espertos e felizes; esse era ele. Foi para a
pequena cozinha, a maioria de seus irmãos mais velhos já tinha saído para o trabalho.
Tomou um copo de café preto extremamente doce e já quase gelado. Voltou para o
quarto e vestiu sua roupa, a mesma que tinha usado a semana inteira, surrada, com
alguns pequenos furos na camiseta azul, uma bermuda que deveria ser bege quando
limpa, e os tênis sem meia. Pegou uma mochila preta e velha onde havia umas três ou
quatro caixas de balas que sua mãe deixara para ele vender no centro da cidade. Na
mochila ainda tinha uma blusa, um caderno de desenhos e uma caneta. No bolso ao
lado verificou o dinheiro para a condução de ida para a cidade.
Morava num barraco na periferia, longe o bastante para poder pensar em sua
vida inteira, umas cinco ou seis vezes no caminho, mesmo porque não tinha muito o
que pensar pois não tinha vivido mais que dez anos e sua vida se resumia em pouca
coisa a mais do que a rotina diária de vender balas e às vezes sair com seus irmãos
para algum tipo de jogo ou brincadeira nas redondezas de sua casa.
Esperou a condução pacientemente sem dar muita atenção a qualquer coisa que
fosse, como fazia quase todos os dias desde os seis anos de idade quando começou
este tipo de trabalho para ajudar a família a ter um punhado de feijão na mesa.
A condução era um carro grande e velho caindo aos pedaços e já estava lotada,
Azkin entrou e não deu a mínima para o cheiro horrível que emanava do veículo e das
pessoas ali encurraladas, já se acostumara a este cheiro. Conseguiu um lugar para sentar sentiu o tranco forte do veículo se deslocando. A condução parava a cada quadra,
as pessoas saiam e entravam, Azkin nada notara de diferente, mesmo porque nada
havia de diferente para ser notado, a não ser talvez, algo nele mesmo. Foi algo quase
insignificante, começou como um arrepio na coluna, algo gostoso e ao mesmo tempo
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
temeroso, um friozinho na barriga, não sabia ao certo o que era, mas a coisa começou a
ficar ao longo do percurso cada vez mais latente, logo estava se segurando firmemente
na poltrona do veículo, suas mãos começaram a suar e tremer. Olhou para o lado e viu
uma outra criança olhando para ele, não saberia dizer se era menino ou menina, e ela
ou ele também olhava para Azkin de forma aterradora, o ser ao seu lado iria segurar
também na poltrona da condução mas acabou tocando na mão de Azkin, apertou-a.
Azkin teve um pequeno espasmo, quis tirar a mão mas não conseguia, como se a mão
ali posta não fosse a sua. Percebeu, entre outras milhares de coisas, o cheiro do ser
ali ao seu lado, adocicado? Um pouco azedo? Uma bala de morango e limão? O que
ocorrera com o tenso cinza do céu? O mormaço tinha virado um inferno, a pequena
sensação na coluna foi parar em seu sexo. Sentiu seu pequeno pintinho agora reto e
duro como pedra. O ser a seu lado fitou-o pelos cantos dos olhos, Azkin conseguiu
reparar no tom esverdeado de seus olhos. Na negritude de suas sobrancelhas e no tom
esbranquiçado de sua pele. E os cílios! “Meu deus!” Pensou. O ser tirou então a mão
de cima da mão de Azkin e ao fazê-lo saltou da condução que estava parada, deixando
e recolhendo pessoas.
Azkin tentou olhar para onde o ser havia ido. Foi-se como um fantasma. Simplesmente desapareceu. Azkin ficou então desolado, o cinza do céu voltara no tom
mais escuro possível e logo o céu caiu em forma de chuva.
Uma senhora gorda sentou-se ao seu lado. Simpática, viu o olhar triste do
menino.
- Tudo bem, filhinho?
Azkin olhou para ela e não sabia o que responder, estava com algo preso na
garganta, um tipo de vontade de gritar ou soluçar e chorar, mas conseguiu se controlar.
-Tudo. - Respondeu olhando para o outro lado, como que querendo observar
por onde estavam passando, reparou que os barracos tão reconhecíveis estavam mais
feios naquele dia.
Mas então, algo fez com que Azkin olhasse para a mulher assustado. O som
que vinha dos alto-falantes do veículo tocava uma música nada convencional para
aquela condução. Logo todos estavam reclamando, era uma espécie de rock e obviamente ninguém daquela área gostava deste tipo de som. O assistente do motorista,
responsável pela cobrança do dinheiro, logo tentou corrigir o erro tentando mudar a
estação de rádio, mas de nada adiantava pois a música continuou. Logo Azkin olhou
para frente mais assustado ainda pois a cada frase cantada em outra língua “talvez em
inglês” pensou, ele entendia apesar de nunca ter tido uma aula de inglês na vida.
Time to live - Tempo de viver
Time to lie - Tempo de mentir
Time to laugh – Tempo de rir
Time to die – Tempo de morrer
Takes it easy, baby – Va com calma, criança
Take it as it comes – Tome como vem
Don’t move too fast – Não se mova tão rápido
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
And you want your love to last – E você quer que o seu amor dure
Oh, you’ve been movin’ much too fast – Você tem se movido muito rápido
Time to walk – Tempo de andar
Time to run – Tempo de correr
Time to aim your arrows – Tempo de apontar suas flechas
At the sun – Para o sol
Go real slow – Vá bem devagar
You like it more and more – Eu quero mais e mais
Take it as it comes – Tome como vem
…
Azkin não conseguia pensar direito, estava tonto, a música retumbava em sua
mente. A tiazinha a seu lado chacoalhou um pouco ele, logo ele conseguiu olhar para
ela de novo.
- Aonde está indo, filhinho? – Perguntou ela um pouco assustada.
- Vou pegar o trem para a República. – Respondeu Azkin pálido como a neve.
- Eu estou indo para lá, vou com você está bem?
- Sim, obrigado. - Azkin respondeu debilmente. – Mas acho que vou dormir
um pouco. A senhora me acorda quando chegarmos a estação?
- Claro meu filho! – Disse a mulher ainda preocupada.
Azkin encostou a cabeça na janela e logo aquele mundo desapareceu. Menos a
música. A voz veio a sua mente “agora provavelmente lembraria.”
Um lugar chamado Perdida Lenore:
Azkin estava voando sobre um mar cinza azulado, o céu encoberto por nuvens esverdeadas, escuras. Logo reparou que a sua frente havia um penhasco gigantesco e negro, fazendo divisa com campos dourados e verdes, infinitos. Na encosta do
penhasco havia um vilarejo, casas de pedras acinzentadas, telhados de palha, ruas estreitas. Azkin rodava por cima deste vilarejo como uma abelha que roda a flor. Pessoas
andavam para cima e para baixo nas ruelas de pedras. Algumas tochas começaram a
ser acesas, prenúncio da noite. Lá ao norte uma comitiva vinha a cavalo arrastando
três ou quatro pessoas com as mãos atadas a cordas e os rostos tampados com panos.
Azkin se dirigiu para lá. Uma das pessoas se recusava a andar e logo levou umas chibatadas. Azkin tremeu. Eram seres pequenos, talvez crianças. Eles vinham em direção
à cidade por uma estrada de pedras. Azkin percebeu um certo alvoroço nos portões da
vila. O tumulto logo se espalhara e todos os habitantes da cidade começaram a formar
um corredor para ver os capturados passarem, provavelmente eles já sabiam o que
ocorreria, pois muitos já se postavam na praça central.
Azkin veio sobrevoando junto à comitiva, passou pelo portal da cidade lá estava escrito em letras que ele nunca tinha visto na vida, mas conseguia ler: “Bemvindo a Perdida Lenore” e logo em baixo “Se for um Azkenadzi suma.”
A comitiva entrou na vila arrastando os encapuzados. Gritos ecoaram pela ci334
Marcelo Paciornik
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dade inteira, uivos de gente que pareciam de cães, dentes podres à mostra. Os três ou
quatro seres foram postados no centro da praça em meio ao turbilhão dos cidadãos. Os
três ou quatros seres foram amarrados em três ou quatro postes na praça central. Os
três ou quatro seres ficaram em um silêncio estarrecedor. Logo os três ou quatro seres
foram desencapuzados. Azkin olhou para eles e notou com um espasmo que um deles
tinha os olhos esverdeados com cílios e sobrancelhas negras a pele extremamente
branca, não conseguia dizer se aquilo era um menino ou uma menina. Mas Azkin ficou mais estarrecido quando notou que o quarto ser amarrado no poste era ele. Azkin
sentiu a primeira avalanche de pedras a cair sobre ele.
A Praça da República
Azkin acordou com o solavanco do veículo passando por um buraco. A tiazinha tinha um olhar de pena. Porém Azkin nada falou. Estava tão assustado com o
sonho que não conseguia pensar direito. Foi a tiazinha que disse:
- Quanto mais velhos ficamos mais os sonhos parecem reais.
Azkin pensou “Se houver um sonho mais real do que aquele eu prefiro não
mais sonhar.”
Agora seus pensamentos começavam a assustá-lo também, a mudança que
sentia era tão latente que ele mesmo não conseguia mais se sentir o Azkin que ele conhecia, parecia haver alguém dentro de sua cabeça. Era um Azkin mais adulto. “Será
que se eu raspar aqueles pelos no meu pau isso pode acabar?” Perguntou a si mesmo.
Mas a resposta estava na sua cabeça. “É claro que não!”
A tiazinha puxou Azkin para fora da condução e logo entraram na estação de
metrô. Ali ela lhe comprou uma água. Ele bebeu e teve outra sensação esquisita: a
própria água parecia ter outro gosto. “De agora em diante acho que tudo vai ser mais
amargo.”
Porém dentro dos túneis do metrô as coisas pareciam ser iguais a o que eram
antes. Azkin conseguiu até conversar um pouco com a tiazinha que logo achou que o
menino deveria ter passado mal devido ao calor.
A viagem demorou cerca de uma hora até que chegaram à Praça da República,
centro da cidade. Azkin agradeceu e se despediu da tiazinha. Já eram dez horas da
manhã e ele tinha um monte de balas para vender. Ao meio dia ele já conseguira dinheiro suficiente para comprar algo para comer. Pessoas passavam sem dar a mínima
para o garoto sentado na praça comendo um sanduíche e vendendo balas. Na verdade
as pessoas mal se preocupavam com crianças estiradas na rua como ratos subnutridos,
quem dirá com um menino que teve a imensa sorte de poder vender alguma coisa.
Azkin continuou vagando pelo centro nos arredores da praça vendendo suas
balas que eram compradas por um mísero aceno de compaixão dos seres ali passantes.
A noite se fez sem se anunciar e Azkin tinha apenas uns cinco pacotes de balas
para serem vendidas, estava com o dia ganho e foi para um bar em uma esquina comprar um salgado antes de voltar para casa.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Quando entrou um menino o chamou para sentar a sua mesa. Azkin que parecia ter esquecido do que havia ocorrido naquela manhã foi sentar-se com o menino,
este era mais velho que Azkin deveria ter uns quinze anos, mas Azkin descobriu mais
tarde que ele tinha dezessete. Depois de algum tempo um amigo bem mais velho
deste menino sentou-se a mesa, os três conversaram bastante. Azkin percebeu que
eles viviam em outro mundo, eram muito alegres, emanavam uma felicidade fora do
comum, principalmente naquele ambiente carregado de pessoas medíocres. Este mais
velho não parava de tomar cerveja e colocava uma música mais louca que a outra na
caixa de músicas do bar. Todo o bar ficava indignado com sua estratégia de colocar
um monte de dinheiro na tal caixa não deixando que ninguém escolhesse outro tipo de
música. Azkin achou isso muito divertido e logo fez amizade com os dois. Perguntou
a eles se eram parentes.
- Sim. Somos. - Falou o mais novo. - Ele é meu tio.
- Hum. – Desconfiou Azkin.
Eles tinham muitos amigos todos vinham à mesa e não paravam de conversar
um minuto o mais velho era o mais palhaço, berrava com todo mundo, principalmente
com o garçom que demorava para trazer suas tão amadas cervejas.
Então o mais velho, no alto de sua bebedeira, disse preocupado.
- Você não tem que ir pra casa? O trem acaba a meia-noite, filhinho.
- É mesmo! – Respondeu Azkin.
Então o mais velho, sem mais nem menos, tirou do bolso um mp3 e deu a Azkin de presente, pediu para o mais novo levá-lo para o metrô. Azkin não sabia como
agradecer o mais velho falou então para Azkin algo que o deixou assustado.
- Tempo de viver, criança, tempo de mentir. Aponte seu arco para o sol.
Azkin tentou falar mais alguma coisa, mas o mais novo já estava puxando-o
para a estação. Não conseguiu conversar sobre nada com o mais novo pois este parecia conhecer o centro inteiro. Ao chegar à estação ele disse para Azkin.
- Normalmente o guerreiro deixa algo para você sem você saber, se ele deixou
realmente... Bom é melhor você descobrir.
- Qual guerreiro? – Perguntou Azkin.
- Guerreiro? – Perguntou o mais novo. – Você vai voltar aqui, não vai Azkin?
- Sim todo dia venho vender balas.
- Então nóis se cruza. Nóis sempre vem neste bar.
- Ta bom, amanhã a gente se vê. – Falou Azkin.
O mais novo deu um beijo no rosto de Azkin e disse.
- Se cuida e ouve o mp3.
Azkin tinha até esquecido do tal mp3. Quando entrou no trem colocou os fones
no ouvido e logo voltou para a Perdida Lenore.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
A figura de preto
A chuva tinha parado. Quando Azkin despertou o sol ainda não havia raiado,
suas mãos ainda estavam atadas ao poste, logo adiante ele podia ver os corpos das outras três crianças; pareciam mortas. Azkin não tinha muita certeza pois sua visão estava
nublada e sentia dores pelo corpo. Havia pedras ao seu redor, muitas pedras. Então
viu um vulto negro se aproximando, apenas uma capa preta voando ao vento, o vulto
parou junto a um Azkin deitado e contorcido no chão de pedra. Azkin agarrou o poste
com força e medo, um medo doentio. A figura tirou uma adaga que brilhou, um brilho
prateado contrastando com o breu eminente do local e cortou as amarras de Azkin.
- Levante-se, não temos muito tempo. – Uma voz profunda e calma.
A figura foi verificar os outros, então para total surpresa de Azkin dois dos
corpos foram cortados em pedaços. A figura colocou os pedaços dos corpos em volta
dos postes formando um círculo. Azkin se contorceu mais ainda diante do imenso terror. Agora a figura traçava desenhos com uma enorme quantidade de sangue que saía
dos corpos. Depois foi para a terceira figura: aquela que havia aparecido no primeiro
sonho de Azkin; cortou suas amarras e levantou a criança no colo. Olhou para Azkin
e disse novamente.
- Levante-se e siga-me.
Azkin com um imenso esforço conseguiu levantar-se. Seguiu a figura. Quando
saíram do círculo Azkin ouviu um barulho incompreensível olhou para trás e viu uma
gigantesca labareda de fogo levantar-se ao céu. Azkin olhava e andava para trás, abismado. O fogo agora azulado formava uma estrela de seis pontas. A figura levantou
Azkin no colo e segurou-o fortemente. Ouviram-se então os primeiros gritos dos cidadãos. A figura andava a passos largos com as duas crianças no colo. O sol começara
a nascer. Alguns passos ecoaram. Começara então a correria. A figura, porém, não
aumentara os passos, estava se deslocando pela viela que levava para a saída da cidade. Azkin viu por cima do ombro da figura, alguns aldeões seguindo-os, correndo e
gritando. Azkin segurou fortemente no pescoço da figura. Neste momento os aldeões
já em grande número se aproximavam mais e mais. Dentes podres à mostra. Azkin
poderia tocá-los, mas eles apenas passaram por eles correndo, como se eles não estivessem ali. Azkin olhou abismado para a figura mas não conseguiu ver seu rosto; viu
então o rosto da outra criança que agora despertara no outro braço da figura que os
carregava e aquela criança tocou nos cabelos de Azkin.
Uma mão tocava na cabeça de Azkin no metrô.
- Última parada. – Falou uma voz despertando-o.
Azkin tinha ainda que pegar a condução para ir do terminal do metrô para sua
casa. Uma música solene começara a tocar no mp3 que ele ganhara daquele seu novo
amigo no bar, foi o que ajudou Azkin a não sentir tanto medo de si mesmo. Porém por
pura curiosidade Azkin olhou para o mp3 e leu o nome do grupo que tocava a música
“Tristania” e com um frio na espinha Azkin leu o nome da música “ My Lost Lenore.”
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Os pensamentos de Azkin dispararam enquanto a condução se deslocava em
direção a sua casa. Eram pensamentos desconexos e assustadores. Azkin sentiu-se
extremamente só e angustiado. Será que o sonho continuaria? O que aqueles dois
novos amigos teriam a ver com tudo isso? E a menina/menino do sonho? Existia em
seu mundo ou era fruto da sua imaginação? Azkin queria vê-lo/vê-la mais uma vez.
Quando chegou em casa, sua família já estava dormindo. Azkin pensou em
comer alguma coisa mas nada havia na geladeira. Sobrara apenas um copo de leite,
provavelmente deixado pela sua mãe. Tomou e foi dormir com o corpo dolorido.
No dia seguinte acordou com um aperto no coração, mas não se lembrava do
que havia sonhado. Iniciou então a mesma rotina de sua miserável vida. Neste dia, no
entanto, nada havia de diferente, passou o dia vendendo balas, angustiado para que a
noite chegasse. Queria se encontrar urgentemente com seus novos amigos. Foi para
o bar logo que a noite caiu. Mas eles não estavam lá. Esperou até as onze da noite,
mas só encontrou um bando de pervertidos e medíocres. Voltou para casa cabisbaixo
a única conexão que tinha com aquele novo mundo que se abria em sua mente eram
as músicas do mp3 que ilustravam tão bem seus temerosos sonhos. Não dormiu no
trem, tomou a condução que o deixara duas quadras de sua casa. A rua estava escura e
vazia, Azkin não se assustou pois era ali que vivia. Tirou o mp3 do ouvido e guardouo em seu bolso; apesar de conhecer tudo por ali não queria que seus vizinhos vissem
o aparelho pois era algo caro e logicamente perguntas iriam ser feitas a respeito de
como Azkin havia conseguido o tal aparelho. Um sino tocou. Azkin parou arrepiado.
- Hum... Um sino? – “Não havia igrejas por ali.” Pensou.
Mais um toque e outro e mais outro cada vez mais perto. Azkin começou a
correr. Ouviu então barulhos estranhos; já ouvira estes barulhos antes, em filmes.
Agora corria mais ainda em direção a sua casa. Cavalos! Era barulho de cavalos,
sinos e muitos cavalos. Entrou pelo portão e ao olhar para rua uma imensa cavalaria
estava passando pela frente de sua casa! Figuras com capas pretas! A vizinhança toda
olhando assustada pelas janelas. Uma das figuras olhou para Azkin e apontou para ele.
A cavalaria foi até o final da rua e fez a volta. Vinham em sua direção! Azkin entrou
correndo em casa. Quando fechou a porta o barulho desapareceu. Porém sua mãe, irmãs e irmãos vinham correndo para ver o motivo de tal estardalhaço. Azkin ficou em
frente a porta trancando-a palidamente.
- Não saiam! Eles vieram me buscar!
A família assustada foi ver a janela.
- Quem Azkin? – Perguntou sua mãe.
A rua estava num alvoroço, todos assustados comentando o que viram ou deixaram de ver. Os irmãos de Azkin passaram por ele e foram lá para fora. Azkin
abraçou sua mãe, mas nada mais falou. Sabia que as coisas começaram a ficar muito
sérias para ele.
Azkin ouviu de seu quarto os irmãos voltarem e ninguém sabia explicar nada,
ninguém falava coisa com coisa na rua, todos pareciam enlouquecidos, mas todos
concordavam com algo: alguma coisa esteve lá fora; algo grande e barulhento.
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Azkin estava agora em uma sala escura, havia uma mesa grande e redonda,
várias figuras de preto estavam sentadas ao redor da mesa, Azkin estava sentado com
o ser menino/menina ao seu lado. Azkin tentou falar algo mas nada saia de sua boca, o
ser encostou seu dedo na boca em sinal de silêncio; ele entendeu e voltou a olhar para
os de capa preta. Existiam muitas velas acesas na mesa, porém Azkin não conseguia
ver o rosto de ninguém. Por algum motivo somente agora ele conseguia, vagarosamente, entender o que um deles falava. Parecia ser o menor deles, porque tinha uma
voz infantil.
- Por qual motivo esta é a noite que se difere de outras noites?
Todos os outros respondiam a pergunta em coro.
- Esta noite não difere de outras noites, pois nada mudou a não ser a luz da lua
e do sol.
- Por qual motivo comemos em silêncio nesta noite diferentemente de todas as
outras noites?
- Comemos em silêncio, pois em silêncio devemos ficar todas as noites e todos
os dias, pois libertos ainda não estamos.
- Por qual motivo não bebemos o vinho esta noite diferentemente das outras
noites?
- Não bebemos o vinho nem esta noite nem qualquer outra noite pois esta noite
não difere de qualquer outra noite.
As pessoas de preto, então, comeram um pão branco e achatado e tomaram
uma água amarelada.
- Esta noite difere de qualquer outra noite?
Um tempo se passou, ninguém na sala respondeu. O ser menor que perguntava
o que parecia ser uma reza, olhou para os outros que permaneciam com a cabeça
abaixada. Agora Azkin pode ter um breve vislumbre dos olhos deste ser que fazia as
perguntas. Então ele continuou.
- Se esta noite difere das outras noites, então deveremos beber o vinho?
- Se esta noite é a noite que difere das outras noites, esta será a noite na qual
beberemos o vinho que não beberíamos em nenhuma outra noite.
- Hum! – Fez Azkin sem querer.
Imediatamente todos olharam na direção dele; pelo que parecia ninguém tinha
notado a presença dele ali. Estavam assustados, ou pareciam estar. Mas então Azkin
notou que eles não o enxergavam.
- Qual de vós, espíritos da noite, vem presenciar nosso ritual sagrado? Não
basta o abandono de anjos seus a nosso povo? O que querem, espíritos orgulhosos?
Mais sacrifício deste povo que se faz escravo há tantas eternidades?
O ser menino/menina agarrou a mão de Azkin.
- Apareçam, se vieram de bom grado, caso contrário sumam para o silêncio que
preferiram, levem para fora vosso orgulho, deixe-nos sós neste deserto agreste. Não
tornem mais nem por compaixão, pois vosso Deus já nos abandonou há tempos. Nem
venham mais para zombar. Se riem, que sejam risadas de vossas desventuras.
Azkin suava nas mãos. Todos na sala contornaram para o outro lado da mesa
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
e encaravam a parede que Azkin e o menino/menina estavam agora, em pé. Mas eles
não os viam.
Então o menino/menina, segurando a mão de Azkin deu um passo a frente. Sua
voz era de um esplendor inacreditável:
- Que esta noite se torne diferente de todas as outras noites! Que a luz aqui
presente ilumine nossas feições, que seja servido o vinho.
Um dos seres de capa preta avançou alguns passos e olhou para eles, como que
buscando algo:
- O vinho deve ser servido. – Disse. – Fui eu que trouxe estes dois espíritos.
Eles foram capturados por engano; eles presenciaram a morte de Ruth e Ester. Eu
achava que eram mais dois dos nossos, mas logo eles sumiram dos meus braços, logo
que eu passei a fronteira, se não fosse por eles os Nadzim iriam me capturar; eles me
fizeram desaparecer. São espíritos poderosos, e pelo visto não compreendem isto.
“Não compreendem isto!” Pensou Azkin. “ Eu não to compreendendo é nada!”
Então o menino/menina falou novamente.
- Que assim seja, de bom grado aqui estamos. Que o vinho seja servido.
O menor dos de preto foi buscar o vinho, foram servidos treze taças de vidro,
e mais três taças de prata. Azkin olhou para o menino/menina e ele/ela disse baixinho.
- Quando eles pegarem as taças você também pega e bebe.
- E a terceira? – Perguntou Azkin.
- Não sei. – Respondeu o ser menino/menina.
Então os seres de preto pegaram suas taças, e entraram em total comoção
quando as outras três flutuaram e foram bebidas também. Imediatamente Azkin e o
menino/menina apareceram de mãos dadas na sala dos seres de preto.
Silêncio. Silêncio absurdo e mortal. Azkin agora podia senti-los. Não como
sentira qualquer coisa até hoje em sua vida, ele sentia a alma daquelas pessoas, e
parecia para ele que as pessoas sentiam Azkin da mesma forma.
- Onde está o terceiro? – Perguntou o menor.
- Não havia um terceiro. – Respondeu o que resgatou Azkin e o ser menino/
menina.
- O terceiro. – Disse uma voz muito fraca, poderia ser o mais velho dos seres
de preto. – É o guardião, seu nome é Eliau Anavi. Mas agora devemos saber o nome
destes dois. – Sentem, espíritos.
Obviamente estava falando para Azkin e para o ser menino/menina mas Azkin
teve que rir.
- Espíritos? – Perguntou sorrindo. – Eu não sou nenhum espírito!
Até o ser menino/menina o olhava assustado/a.
“Que merda!” Pensou Azkin. “Agora como vou explicar o que sou.”
Foi o ser menino/menina que o salvou:
- Somos entidades. Viemos para cá em nome de Adonai.
Os seres de preto começaram a orar histericamente.
- O que está fazendo? - Perguntou Azkin baixinho para o ser menino/menina.
- Calma! Eu sei o que faço. – Disse ele/a num sussurro.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Depois da reza eles olhavam mais abismados ainda para os dois.
- O que diz Adonai, ó anjos? O que fala o Senhor?
- Ele diz. – Continuou o ser menino/menina. – Que haverá discórdia e perseguição, morte e calamidades, mas haverá também liberdade.
Os treze fitaram o ser menino/menina por um tempo, mas ele/ela continuou.
- Nós precisamos de algo, temos que resgatar um amuleto, só assim seu povo
irá ser libertado.
Azkin estava atônito. “ Que que eu to fazendo aqui?”
- Precisamos do símbolo. - Disse o ser. – Precisamos do amuleto Azkenadzi.
Silencio. Depois risos muitos risos.
- Como o Senhor? Como o próprio Adonai? – Disse o mais velho ainda sorrindo. – Manda anjos Seus para pedir tal absurdo!
- Não é Adonai que quer o amuleto. – Disse o ser menino/menina, agora mudando totalmente a entonação de sua voz.
Então todos ficaram em silêncio mais uma vez.
- Então quem o quer? Por tudo o que é mais sagrado! – Perguntou o mais velho.
- Somos nós, queremos o amuleto para entregar para o próprio demônio! – A
voz do ser menino/menina agora era gutural.
A cabana em que estavam se desfez em pó. Agora os treze de preto o ser menino/menina, Azkin a mesa com velas as taças estavam num deserto escuro e frio,
o vento apagou as velas e o vulto de Eliau Anavi surgiu num relâmpago, mas logo
desapareceu.
Atrás de Azkin e do ser menino/menina surgiu um exército de seres gigantescos montados em cavalos, com tochas nas mãos. Atrás dos treze de preto surgiu um
outro exército de homens com capas pretas, também montados em cavalos. O ser
menino/menina estendeu a mão para frente e olhou diretamente nos olhos do mais
velho. Então na palma da mão do ser menino/menina surgiu uma peça em prata com
uma estrela de seis pontas rodeada por círculos que formavam pontas entre si. O ser
menino/menina bateu com o amuleto no peito de Azkin. A carne de Azkin gemeu de
dor e o amuleto entrou no peito do menino. Fixou-se ali dentro como uma tatuagem
de metal. O ser de preto mais velho desfaleceu ali mesmo.
Azkin acordou indignado com a dor em seu peito.
Correu para o banheiro e se olhou no espelho, verificou com enorme alívio que
nada havia em seu peito.
- Meu deus! – Disse rindo e aliviado para si mesmo no espelho. Percebeu que
estava inteiro suado. Despiu-se e entrou no banho, olhou para seu sexo e disse.
- Que merda heim seus pentelhos! Tudo isso começou graças a vocês! Ainda
bem que eram só sonhos... Sorria para a água que caia em sua cara. Pegou o sabonete
e começou a lavar seu corpo, passou pela barriga, pelas pernas, embaixo dos braços e
pelo peito, ao passar com o sabonete por ali parou imediatamente.
- A não. Não pode ser. – Olhou para seu próprio peito e viu num pequeno
reflexo da luz que penetrava pela pequena janela do banheiro o amuleto apareceu
brilhando encravado em seu peito.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Quando saiu do banheiro, porém, logo viu algo que o deixou um pouco mais
feliz. Havia um bolo de chocolate no centro da mesa. Sua família estava lá reunida.
-Feliz aniversário Azkin!
-Hum!
Logo estavam todos comendo um pequeno pedaço de bolo e tomando café. Azkin conseguiu esquecer por um momento seus problemas oníricos. Depois da pequena
comemoração Azkin pegou a mochila e foi para sua jornada diária: vender balas.
Por mais que estivesse assustado e relutante em ouvir o mp3 Azkin deixou-se
levar pelo impulso. Ao ouvir a música logo os sentimentos vieram como raios a atingir
seu cérebro. Colocou a mão no peito e sentiu uma fina camada mais dura de metal
ali depositada. Fechou os olhos e tentou se concentrar nos acontecimentos dos seus
sonhos. Mas os pensamentos eram desconexos, havia apenas uma sensação latente da
presença do ser menino/menina. Azkin continuou sendo envolvido nesta sensação,
sem fazer força para evitá-la, gostava de senti-la. Apesar da estranheza e do medo que
vinham junto, não conseguia permitir que ela fosse embora e a música era o melhor
canal para senti-la.
O dia passou mascarado pelas sensações. Azkin agora compreendia que aquilo
fazia parte dele e deveria encarar da melhor maneira possível, assim não tentou mais
entender e sim apenas sentir e quanto mais deixava a coisa penetrar em seu ser mais
latente ela ficava. Às seis horas da tarde Azkin resolveu tomar o caminho para o bar,
tinha que encontrar seus amigos de alguma maneira.
Andava por inúmeras ruas recheadas de seres recostados em muros, todos enlouquecidos por uma droga poderosa. Vários miliciantes em todas as esquinas viam
aquilo como se fosse a coisa mais normal do mundo. Crianças como ele, maiores ou
menores, ali deitadas a consumir as piores das drogas possíveis. Proibidas por lei, mas
consideradas toleráveis a olhos vistos. Ninguém poderia se meter neste mundo, era
um mundo a parte. Nem miliciantes, nem donos de lojas, nem clientes ou passantes
poderiam se meter naquele mundo fatídico. Se quisessem se matar, que assim fosse.
Uma forma de vida descartável, sem um mínimo de valor... Eram os seres acabados,
abandonados por uma sociedade alheia, a um mundo que deveria ir em frente, postergando os argumentos alheios a aquilo que Azkin começava a entender.
Fatigado daquela realidade Azkin começou a penetrar em si mesmo; tentou
tornar-se alheio àquilo que estava presenciando, porém, não conseguiu. Logo adiante,
em meio aqueles seres quase mortos, viu o ser que aparecia em seus sonhos. Correu gritando. Aquilo não poderia estar acontecendo. Viu aquele ser menino/menina
deitada/o completamente esfarrapada/o fumando um cachimbo de crack.
Ao colocar o ser em seus braços os outros se afastaram, existia uma certa repulsa ao ser Azkin, por toda aquela realidade. Os drogados começaram a correr. Azkin
não entendia como aquilo funcionava e não ficou alarmado com aquela situação. Os
miliciantes, porém acharam meio esquisito a correria e vieram ver o que ocorrera.
Acharam Azkin deitado com o ser menino/menina em seu colo.
- Está drogada? – Perguntou um dos miliciantes.
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- Não. – Respondeu Azkin. – Um pouco bêbada.
Os miliciantes foram embora. Olhou para o ser ali deitado/a em seus braços.
- O que você fez comigo? – Perguntou Azkin a figura desmaiada.
Ficou ali sentado em uma calçada suja com ele/a nos braços sem saber o que
fazer. Suas mãos no rosto do menino/a.
- Pelo menos o seu nome... – Disse Azkin desesperado.
O despertar de Pan-noa
Pan-noa estava deitado, desmaiado, em uma calçada imunda embaixo de um
viaduto imundo que cortava uma cidade imunda de leste a oeste. Seu corpo nu tremia,
o barulho da cidade era ensurdecedor. Foi isso que fez com que ele despertasse. Pannoa não tinha a menor noção do que ele era. Abriu os olhos devagar, piscou algumas
vezes. Sentiu seu corpo febril e dolorido, notou veículos ao seu redor num engarrafamento enorme e caótico. O cheiro era horrível, não só de seu próprio corpo, mas a
cidade fedia como nada que sua memória pudesse lembrar.
Ergueu um pouco a cabeça, era noite, uma iluminação amarelada revelava seu
pequeno corpo a todos os passantes, que por algum motivo mal o notavam. Tentou
respirar um pouco mais fundo, mas seu corpo tossiu compulsivamente. Sentou-se vagarosamente e arrastou-se para uma das imensas pilastras que sustentavam o viaduto.
Seu olhar estava longe, como se ele não estivesse ali, mas sua mente fervilhava. Tentava descobrir quem era ele e onde estava.
Um cobertor imundo foi jogado sobre seu corpo. Uma garrafa de vidro entrou
no seu campo de visão. Pan-noa pegou a garrafa e tentou agradecer, mas não sabia
falar qualquer língua que fosse. O gosto da cachaça desceu queimando sua garganta.
Pan-noa tentou cuspir mas o líquido já estava em seu corpo. Pan-noa continuou ali
sentado por um tempo. A mente tentando funcionar, a bebida, agora atrapalhava, estava tonto. Continuou assim, agora observando com alguma consciência o movimento
dos veículos; as pessoas olhavam para ele de dentro deles com olhares frios, sem
emoção alguma, um pedaço de carne a apodrecer num mundo injusto.
Após algumas horas Pan-noa conseguiu levantar-se, andou mancando com
dores pelo corpo, apoiando-se na pilastra do viaduto. Olhou para um lado e para o
outro a fila de veículos era interminável, assim como o viaduto.
Pan-noa começou a andar, seu corpo parecia doer um pouco menos. Levava
um cobertor em volta de seu corpo sujo. Seguiu pela calçada, a passos lentos, ainda
concentrando-se em seu próprio ser. Logo adiante havia um bando de crianças na
mesma situação que ele; algumas dormiam enroladas em seus cobertores imundos,
outras estavam sentadas com o olhar vazio. Pan-noa foi até eles, não falou nada pois
até aquele momento não sabia como se comunicar. Uma das crianças fez um sinal com
a mão para ele, o que o fez entender que era para ele ir até ela. Pan-noa sentou-se ao
lado da criança, podia ser um pouco mais jovem que ele, mas Pan-noa não conseguia
pensar sobre isso. A criança passou-lhe uma lata vermelha, Pan-noa bebeu o líquido
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compulsivamente; era doce, gelado e gostoso.
- Como é seu nome? – Perguntou a criança.
Pan-noa não conseguiu responder. A criança pareceu não se preocupar. Sabia
qual era o estado de Pan-noa, passava por isso todos os dias, todos ali passavam. Ficavam em uma semiconsciência constante; era assim o mundo deles, e era assim que
deveria ser.
Pan-noa ficou com eles durante dias, eles alimentaram Pan-noa da forma que
podiam, mas Pan-noa não saia do estado letárgico que estava. Porém depois de algum
tempo algo dentro da cabeça de Pan-noa começou a ficar mais claro ele começou a
compreender o que os outros falavam, e logo começou a balbuciar algumas palavras,
às vezes desconexas, às vezes em outras línguas às vezes na língua deles. Eles na
verdade não se interessavam muito com a mudança de Pan-noa, continuavam ali,
alguns vinham outros iam de maneira inconstante, mas Pan-noa começou a perceber,
e vagarosamente algo em sua testa começou a despertar.
Então depois de alguns dias Pan-noa sentiu seu corpo um pouco mais forte.
Conseguiu se mexer, levantar-se e até mesmo andar. No começo seguia um ou dois
do bando, mas eles mandavam Pan-noa voltar, falando que Pan-noa poderia se perder.
Pan-noa voltava com medo. Se amontoava junto aos que dormiam e ficava ali, quieto
apenas sorvendo um mundo mágico que queria despertar em sua mente. Eram coisas
estranhas, viagens em lugares escuros por entre as estrelas, castelos e existia ainda
uma menina e um menino que povoavam esses pensamentos longínquos.
Numa noite chuvosa um dos meninos do bando voltou sorridente. Pan-noa ouvia o que ele falava e conseguia discernir entre algumas coisas e alguns sentimentos;
era algo como se ele tivesse conseguido roubar algo valioso que iria dividir com todos
ali. Pan-noa achou que era uma coisa boa, pois todos do bando começaram a comemorar. Então fizeram uma espécie de tenda com os cobertores, armaram uma mesinha de
caixas de papelão ali dentro e um após o outro entravam na casinha e logo saíam. Pannoa admirava aquilo com aquele um vazio. Então um dos garotos do bando o pegou
pela mão e levou para dentro da tenda.
- Olha aqui Sem Ideia – Era assim que eles chamavam Pan-noa. – Ta vendo
aquela carreirinha de pó ali? Tu põe o nariz ali e cheira. Assim cê vai fica com ideia!
Pan-noa olhou para a carreira de pó sem saber o que era nem o porque de fazer
aquilo. Ele meteu o nariz na carreira e cheirou o pó. Depois olhou para frente, erguendo a cabeça da mesinha de caixa de papelão. Saiu da tenda e olhou em volta. Viu
todo o bando em torno e todos falavam muito. Pan-noa começara a entender a língua
deles. Respirou fundo e começou a sentir o mundo a sua volta.
A pérola cubo despertou Pan-noa embaixo do viaduto que corta a cidade de
leste a oeste. Descobriu-se vestido com farrapos de tecidos imundos, sentiu o cheiro
do lugar e começou a comparar com as informações que seu cérebro carregava. Ele
despertou de forma violenta, seus olhos agora estavam aguçados; olhava para os lados
analisando sua situação.
- Onde estamos? – Perguntou para o bando sem ter ninguém realmente em
foco.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
As informações começaram a chegar telepaticamente (via pérola cubo). Os
meninos apesar da situação precária em que se encontravam conseguiram dar algumas
informações, mas nada relevante, eram seres a parte do mundo e era assim que deveria
ser. Os meninos estavam agora um pouco assustados. Pan-noa continuou processando
as informações e visualizou o que deveria fazer. Foi para a esquina mais próxima e esperou um pouco. Os meninos do bando vieram perguntar algo, mas ele percebeu que
deveria ficar incógnito. Os meninos voltaram para a aparente festa na tenda. Alguns
carros pararam no sinal vermelho daquela esquina. Pan-noa analisou os condutores
do veículo. Olhou para um em especial. Era um veículo preto, havia um homem de
meia-idade lá dentro. Pan-noa fez um sinal de afirmação com a cabeça, o homem
dentro do carro retribuiu e apontou com o dedo para a outra esquina. Pan-noa foi para
lá, a esquina estava deserta, Pan-noa viu o carro preto dando a volta. O carro parou,
o homem abriu a janela do carro, perguntou alguma coisa para Pan-noa, mas agora já
era tarde. Pan-noa dominava a mente do homem que abriu a porta do carro sem pestanejar. O homem o levou para um motel. Entraram lá com o veículo, fechou-se uma
garagem atrás do carro e estavam a salvo de qualquer testemunha. Os dois desceram
do veículo e entraram no quarto. A porta fechou-se o homem tentou dizer algo, mas
Pan-noa fez com que ele deitasse na cama desacordado. Pan-noa revistou o sujeito.
Cartões de crédito, dinheiro, chaves do veículo... Pan-noa tomou um banho, havia
alguns por menores que o atrapalhavam, mas logo iria solucionar a situação. Começou
a pensar no que tinha: apenas a pérola cubo, e a roupa protetora. Analisou a mente do
ser desacordado na cama e refletiu.
“ Merda, não tenho roupas e a roupa dessa bichona não me serve, o carro também não posso usar porque essa merda desta civilização não deixa meninos usarem
veículos. Muito bem Pan-noa, vamos lá: como você veio parar aqui?” Sabia que as
coisas iriam demorar para funcionar, especialmente a pérola cubo. “Viajem no tempo!
É isso! A pérola cubo não está funcionando bem por causa da maldita viagem no
tempo. A roupa protetora, sim é isso! Posso usar a roupa protetora, mas para quê? Não
estou conseguindo processá-la direito. Merda! Por que eu vim parar neste fim de mundo? Alguma missão... É claro mas, qual?” A água quente era uma bênção para ele. “Ta
bom! Ta bom! Agora com calma... Posso usar a bichona por enquanto! Sim é isso.”
Voltaram para o carro e o sujeito perguntou.
- Quer que eu te deixe em algum lugar, garoto? – Perguntou o sujeito lhe entregando uma nota com o número dez escrito, como se ele tivesse feito algo com Pan
noa e ele merecesse esse dinheiro.
Ele então, condicionou a mente do sujeito e este conduziu o veículo. Andaram
pela cidade. Pararam em frente a uma loja, o sujeito estacionou o carro e desceu; era
um fantoche para Pan-noa. Logo depois o sujeito voltou com algumas sacolas. Pannoa analisou a mente do sujeito e notou que a casa desse homem era um ótimo refúgio
por enquanto. Foram para a casa dele. Largou seu novo fantoche sentado na sala com
a cara mais idiota possível, pegou as sacolas e vestiu-se de maneira quase descente.
“Bem, não são as roupas de Plan-ex, mas tudo bem. Tomara que tenha custado uma
fortuna.” Pan-noa começou a pesquisar a casa do sujeito. Ligou a televisão. “Caralho
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
de mundo ridículo.” Viu um computador e conseguiu ligá-lo via pérola cubo. “Finalmente algo um pouco menos pre-histórico” Acessou todas as informações possíveis.
“Mundinho filho da puta, hein! Se eu tenho uma porra de uma missão então tenho que
descobrir onde estou e quando eu estou. Vamos dar uma olhadinha nestas velharias,
olha só essa porra que chamam de internet que merda de tecnologia. Vamos acessar
os satélites desses filhos das putas... Ta aqui: fotos do planeta, nome da pocilga, blábláblá, e...”
E de repente Pan-noa parou. Olhou para a tela do computador e sentiu um frio
na barriga. “Que merda... que merda filha da puta e pau no cu...”
Olhava abismado, atordoado e estarrecido para a foto do planeta azul muito
antes de virar verde na tela do computador. “Agora acho que eu me fodi mesmo.”
O Topo do mundo
Azkin e o ser menino/a estavam sentados no topo do mundo; era uma espécie
de montanha enorme e eles podiam ver tudo lá embaixo, haviam planícies, rios, plantações, florestas, tudo era muito lindo e colorido, o céu tinha várias cores com nuvens
em formatos lindos, em tons violetas e rosas; o sol estava se pondo, os dois levantaram-se e olharam para aquele mundo delicioso que se estendia aos pés da maravilhosa
montanha. Então o ser menino/a apontou para os quatro pontos daquele mundo. Azkin
olhava para os quatro cantos que o ser menino/a apontava, mas nada via a não ser a
vastidão maravilhosa que era aquele mundo.
O ser menino/a apontou mais uma vez, e mais uma, mas Azkin não viu nada.
Queria perguntar para o ser menino/a o que ele/a queria mostrar, mas não conseguia
falar. Então o sol se pôs e o céu ficou escuro, e tudo que era lindo e verde começou a
ficar cheio de sombras negras, e um trovão sem fim começou a ser ouvido, crescendo
e crescendo dentro dos ouvidos de Azkin. O ser menino/a apontou de novo para os
quatro cantos do mundo e Azkin começou a ver que as sombras negras começavam a
tomar formas estranhas ao que eram. Então as sombras negras começaram a se mover
e de dentro de sua negritude Azkin começou a ver pontinhos de luzes sendo acesas.
Eram pequenos pontos de chamas que começavam a se mover junto com as sombras e
dos quatro cantos do mundo as chamas vinham em direção a Azkin e ao ser menino/a.
Então o rugido do trovão foi se erguendo e Azkin conseguiu discernir entre imagens e
sons dois exércitos vindo dos quatro cantos do mundo.
Agora Azkin sentia o chão tremer, e o céu começou a ficar mais escuro do que
as sombras e todas as estrelas começaram a sumir; nuvens negras começaram a se
chocar, Azkin agora podia ouvir berros vindos lá de baixo; uma multidão de berros
e sons de cavalos e aço a cortar o vento. Então o rugido ficou mais alto ainda, muito
mais alto com todos estes sons estraçalhando os ouvidos de Azkin, e logo em seguida
os sons cessaram e um raio caiu do céu iluminando os exércitos lá embaixo. Mas o
raio com seu estrondo ensurdecedor iluminou também a Azkin e sua luz refletiu o que
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estava no peito de Azkin e todos os exércitos lá embaixo viram o talismã Azkenadzi
cravado em seu peito. E todos os exércitos berraram juntos e vieram em direção a
Azkin e ao ser menino/a.
Azkin ainda estava com o ser menino/a deitado na calçada imunda do mundo
imundo em que vivia. Azkin acordou o ser menino/a e disse:
- Está na hora de você me contar alguma coisa.
O ser menino/a olhou para Azkin e disse.
- Eu não sou um ser comum, Azkin. Eu sou uma criação humana. Sou uma
androida. Sou uma Androida Andrógina. E nós temos uma missão neste mundo.
E simplesmente para total espanto, não só de Azkin, mas de todos os que estavam em sua volta, fossem eles mendigos, policiais, crianças, velhos, moços, mulheres ou homens ele/a desapareceu. Desapareceu nos braços de um Azkin sentado.
Azkin imediatamente levantou-se berrando e todos a sua volta começaram a gritar
também. Os policiais vieram correndo em direção a Azkin, mas o alvoroço foi tão
imenso que Azkin conseguiu correr para junto dos mendigos infiltrando-se na corrente
caótica que agora imperava no local. Não foi uma nem duas pessoas que viram a cena,
mas uma centena de pessoas, e logo a notícia se alastrou com uma velocidade absurda,
a polícia chamou reforços pois a área ficou catastrófica, todos corriam para todos os
lados sem saber onde ir, e logo, com tamanha confusão, gerada assim, sem mais nem
menos, iniciou-se o quebra-quebra. Vitrines foram saqueadas, pessoas foram pisoteadas, a polícia começou a atirar para todos os lados, e logo chegaram mais carros de
polícia, tentando tomar a praça de guerra que ali se formara. Azkin conseguiu, em
meio aos mendigos, correr. Correr como nunca tinha corrido antes, foi em direção,
sem saber porque à Praça da República, achou que fosse um local seguro, mas na
verdade era seu instinto que falava mais alto, ao chegar na praça, correu para a rua do
bar onde encontrara aqueles seus supostos amigos. Para total alívio em sua alma, lá
estavam eles, sentados, sem nada saber do incidente, tomando cerveja. Azkin entrou
no bar e foi imediatamente para baixo da mesa onde os dois estavam. Ao sentar-se no
chão Azkin começou a chorar.
Pan-noa na Praça da República
Pan-noa acordou, ainda em frente à tela do computador. Tinha babado no teclado. A foto do planeta azul ainda estava lá. Levantou-se e viu a bichona ainda esparramada no sofá da sala; já deveria ser tarde. Pan-noa viu no relógio do computador
17:35. “Caralho... dormi pra caralho.” Pan-noa começou a pensar e agora sua mente
estava funcionando muito melhor. Deu uma olhada pelo apartamento da bichona.
“Pelo menos peguei uma bichona rica.” Foi até a cozinha tentou compreender como
as coisas naquele mundo funcionavam. “Ora vejam só... nada mal, para uma civilização idiota.” Abriu a geladeira, estava com muita sede. Cheirou algumas garrafas, a
roupa protetora começara a interagir com ele. Provou um líquido preto gaseificado.
“Horrível, mas serve.” Achou pão, frios, manteiga. “Um sanduíche do mundo dos escrotos, dos filhos das putas que quase destruíram o planeta.” Enquanto comia pensava,
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mas suas ideias ainda não estavam totalmente claras. Tentou processar a pérola cubo
da melhor maneira possível, alguma coisa realmente estava errada. A pérola cubo,
por mais que pudesse ter sofrido danos na viagem do tempo não deveria estar em tal
estado. A programação de uma missão estaria agora explícita para ele. Outra coisa
que o incomodava era o fato de Be e Ing-mar não darem sinal de vida ainda; sabia
que qualquer missão que fosse eles estariam juntos porque era assim que funcionava
desde que eles voltaram para Kalum-Br. Tentou de novo e de novo visualizar algum
dado, mas nada.
Então um pensamento veio-lhe a mente: algo terrível. “Fui mandado para cá
através de uma cilada, fui raptado, talvez obrigado a vir sem que eu mesmo saiba, mas
por quê?”
A bichona começou a resmungar na sala. Pan-noa foi até lá. Não sabia o que
fazer com aquele ser, não sabia se ele poderia ajudá-lo de alguma forma. Olhou para o
corpo do homem ali esparramado e imediatamente pensou em seu maldito tio. “Sabe o
quê? Que se foda... nunca precisei da ajuda de ninguém para solucionar minhas cagadas.” Pan-noa induziu, via perola cubo, um sentimento que provocou uma descarga
elétrica absurda na mente da bichona, a qual entrou em coma profundo ali mesmo.
“Malditos seres inferiores.”
Pan-noa olhou-se no espelho, suas roupas pareciam adequadas para aquele
mundo, voltou à sala, pegou na carteira da bichona seus cartões de crédito, “coisa
ridícula”, dinheiro, o que mais precisava? “Uma arma seria ótimo, ou melhor não?
Consigo controlar a mente destes idiotas, mas em todo o caso.” Procurou uma arma no
apartamento da bichona, não achou nenhuma. “Bicha filha da puta.” Tomou o elevador e saiu do prédio, o porteiro o olhou de forma estranha, mas Pan-noa não precisou
fazer nada; a bichona deveria trazer rapazinhos para transar em seu apartamento. Saiu
do prédio e deparou com o pior aspecto que poderia imaginar de uma civilização. Andou por uma calçada larga, gente de todos os tipos, veículos barulhentos de todos os
tamanhos pareciam estar em uma guerra caótica. Foi até a esquina e analisou algumas
informações; poderia ter que voltar ali, leu uma placa. “Av. Paulista. Tudo bem Pannoa, não pode ser tão ruim assim, pense que você está visitando uma daquelas favelas
daqueles planetas nos confins do império, não nada chegava a este ponto.” Pan-noa riu
sozinho. Seu humor estava começando a melhorar, por enquanto. “ Para aonde eu deveria ir?” Continuava andando absorvendo tudo. Um relógio marcava 18:30. “A hora
aqui é diferente de Kalun-Br, o planeta deve ser um pouco menor.” Então viu uma
placa, uma flecha indicava para a direita e dizia Consolação, Centro. “Centro, isso
pode ser um caminho, afinal é no centro que as coisas acontecem. E se não acontecer
nada pelo menos posso dizer que já conheço o centro desta maldita cidade.”
Desceu a rua da Consolação em direção ao centro. Após alguns minutos caminhando e percebendo o local só conseguiu pensar em uma coisa a respeito daquilo tudo:
“Como é que esta civilização já não foi pras cucuias há muito tempo”. E como nada
mais o interessava por ali foi tentando se concentrar em administrar melhor a sua
pérola-cubo. Porém ao passar pelo Cemitério da Consolação sentiu algo estranho. Na
verdade não foi ele quem sentiu, mas a pérola cubo mandou um sinal estranho para
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
seu corpo. Pan-noa parou em frente a entrada do cemitério e ficou olhando para dentro
do mesmo. Alguns dados entraram em conflito dentro da pérola cubo, mas ele já sabia
mais ou menos o que era. A referência aos mortos levou-o a imaginar coisas. Coisas
que não o agradaram em nada. Sentiu uma presença estranha a aquele mundo e imediatamente veio à sua mente a figura da Androida Andrógina. Ouviu o sino da igreja
da consolação soar sete badaladas. Continuou a descer e quanto mais descia, mais
sentia a presença do ser maldito. Estava realmente em uma cilada. Quando chegou em
frente à igreja não sentiu mais a presença do ser. Parecia ter desaparecido como por
encanto. Logo depois, ainda a caminho do centro ouviu muitas sirenes e vários carros
de polícia passaram em direção ao centro. “Então a cagada ta feita!”
Pan-noa seguiu o barulho das sirenes, não teve muito problema em estar andando, pois os veículos mal podiam se locomover visto o tamanho do tráfico. Andou
em direção à Praça da República. Sua concentração estava voltada para qualquer coisa
que fosse estranha àquele mundo, e não demorou muito. Avistou uma figura pequena
correndo feito louca pelo meio da praça, o menino passou por Pan-noa assustadíssimo, um objeto prateado cintilou por baixo da camisa do garoto, era um símbolo que
Pan-noa nunca tinha visto, mas a perola cubo encravada na testa de Pan-noa detectou
o material como sendo algo impensável para aquela civilização. Pan-noa seguiu Azkin
a passos largos. Viu o menino entrar pela rua Vieira de Carvalho, entrar num bar onde
duas figuras esquisitíssimas tomavam cerveja, o menino logo se alojou embaixo da
mesa onde as duas figuras estavam. Pan-noa foi para o balcão do bar, pediu uma água
e ficou observando.
Os exércitos Nadzim, Azkenadzim e o Homodemônio
A rua estava lotada, assim como o bar; eram seres selvagens, estavam ali para
usufruir dos prazeres mais primitivos do ser humano, era um ritual bárbaro e caótico,
não havia lógica naquele ritual, era uma busca por prazer e só isso.
Haviam pessoas de todas as idades e todos os sexos possíveis, homens querendo ser homens, homens querendo ser mulheres, mulheres querendo ser homens,
crianças querendo ser adultos e adultos sentindo-se como crianças. Pessoas ricas, pobres, ladrões, travestis, traficantes, a corja da humanidade. Era uma fauna apocalíptica
transvestida em seres humanos. Pan-noa começou a perceber que o lugar que estava
poderia ser o pior lugar que já estivera em toda sua vida e ele estava realmente muito
assustado. Estava esperando pelo pior e sabia que aquele lugar merecia sua total atenção. Focou sua mente naquele ambiente como um todo, mas sabia que uma parte de
sua concentração deveria estar naquela mesa.
Ali, naquela mesa, parecia ser outro universo, outra existência, uma existência
a parte daquele mundo grotesco. Havia estes dois seres esquisitos, não que o resto não
fosse, mas estes eram esquisitos em outro sentido; eles modificavam aquele ambiente
de alguma forma que Pan-noa não conseguia entender. Nem a pérola cubo conseguia
identificar o que quer que fosse de diferente naqueles seres, na verdade Pan-noa ficou
indignado pois a pérola cubo parecia não funcionar ali e somente ali naquela mesa.
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
O mais velho vestia uma saia negra de um tecido grosso que passava seu joelho, uma bota preta passava acima de sua canela e uma camiseta preta, seu cabelo
pendia até metade de suas costas, ele emanava uma beleza diferente algo um pouco
aterrador aos olhos de Pan-noa, ele tinha um olhar forte e agora preocupado com a
aparição do menino aterrorizado embaixo de sua mesa. O outro era um pouco menor.
Talvez do tamanho de Pan-noa. Tinha um rosto com o olhar hipnótico, olhos verdes e
cabelos raspados dos lados e uma franja caia sobre o seu rosto. Os dois olhavam para
baixo da mesa. Pan-noa não conseguia ouvir o que diziam. Tentou manipular a pérola
cubo, mas não adiantava, então conseguiu fazer com que a pérola cubo diminuísse o
volume da gritaria ao seu redor e focasse apenas na mesa. Deu certo, conseguia entender o que falavam pois a língua já tinha sido codificada pela pérola cubo.
- O que houve? – Perguntou o mais velho, tomando a mão do menino e puxando-o para si. O mais novo olhava assustado, Pan-noa não conseguia entender o que
falavam pois a criança falava muito perto do mais velho.
A criança começou a narrar debatendo-se em gestos e lágrimas. Falou muito
rapidamente, cada vez o mais velho olhava em volta assustado, olhava para o mais
novo e de novo para o menino em prantos explicando o que ocorrera. Então o mais
novo levantou a camiseta suja e rasgada até acima do peito e mostrou para o mais
velho o símbolo que Pan-noa tinha visto brilhar ainda há pouco. Pan-noa conseguiu
fotografar o símbolo mentalmente. O menino abaixou a camisa e narrou mais um
pouco do acontecido. Parou quase sufocado quando terminou.
O mais velho pediu para o garçom alguma coisa e ficou parado por algum
tempo olhando para um vazio inexistente. Então o mais velho reparou em algo que
deixou Pan-noa atônito. O mais velho olhou para Pan-noa, e seus olhares se cruzaram.
Pan-noa engoliu em seco. Pan-noa quis sair do lugar, mas o mais velho voltou a atenção para o menino e para seu amigo e disse em voz alta.
- Kley. Chame o Japa, agora!
Kley saiu correndo do bar e foi para a rua. O mais velho fez o menino sentar-se
e continuou.
- Azkin. Se acalme e tente me dizer exatamente como era esse ser do teu sonho.
Azkin, agora um pouco mais calmo, olhou para o mais velho e começou a fazer
quase que um retrato falado do ser que havia aparecido em seu sonho. Enquanto Azkin
falava, o mais velho olhava algumas vezes para Pan-noa de forma que ele percebeu
que a descrição era para ser ouvida por ele também.
O Japa chegou enlouquecido no bar e Kley vinha logo atrás com um olhar assustado.
- Mordehay! – Gritou alto o Japa. – Venha correndo, estão revistando todo
mundo! Tá uma cagada animal na rua.
Mordehay tomou Azkin pela mão e saiu a passos largos do bar, seguido pelo
Japa e Kley. Ao passar pela porta Mordehay olhou para Pan-noa com um olhar bravo
e assustado como que dizendo: -vai ficar esperando aí ou vai nos seguir?
Pan-noa seguiu os quatro. A rua estava um caos. Muitos, mas muitos carros de
polícia estavam esparramados pelas ruas. Os policiais seguravam armas enormes e
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aos berros faziam com que as pessoas se postassem nos muros para serem revistados.
- Qualquer suspeito deve ser revistado. – Gritou um policial. Pan-noa pensou
“suspeito de quê, afinal de contas?”
Os quatro foram passando por aqueles seres selvagens e pela polícia, quase
que imunes a tudo. Pan-noa estava quase que grudado atrás deles e o Japa perguntou:
- Mordehay, tem um erê nos seguindo, você o conhece?
- Não. – Disse Mordehay. – Mas ele está com a gente. Deixe ele nos seguir. O
Japa olhou para Pan-noa desconfiado e continuou. Desceram pela Vieira de Carvalho
até a Rua Vitória e lá dobraram a direita. Vitória era uma ruela apertada e escura e eles
toparam com mais carros de polícia. “Que merda de cagada filha da puta.” Pensou
Pan-noa. Mordehay olhou para trás fixou seu olhar no de Pan-noa como dizendo:
-você ainda não viu nada! “Será que este Mordehay consegue ler minha mente?”
Questionou Pan-noa.
Neste momento um policial gritou algo para Mordehay.
- Você! – Os quatro pararam. Logo atrás Pan-noa também parou.
Mordehay encarou o policial. O policial mediu Mordehay de cima abaixo e
disse:
- Vá logo! Isto aqui está uma praça de guerra.
Mordehay e os outros avançaram até à Rua São João.
- Vamos até o bar do Aguiar. – Disse Mordehay.
- Você ta louco! – Disse o Japa. – O pior lugar do centro! Olhe como está esta
rua! E você com esse menor!
- Vamos Japa, lá não dá erro.
Entraram pela Rua São João à esquerda, andaram por entre bandos mais malencarados ainda, quase todos sendo revistados pela polícia; passaram incógnitos e
foram se sentar em umas mesas na calçada.
Mordehay estava certo, aquele bar deveria ter algum tipo de proteção. Tanto
o Japa quanto Mordehay cumprimentaram as poucas pessoas ali sentadas. Pan-noa
parou olhando para os quatro sem saber o que fazer.
Mordehay puxou mais uma cadeira e fez um gesto para Pan-noa vir sentar-se.
Enquanto ele vinha, gritou para dentro do bar.
- Aguiar! Traz duas cervejas. – Olhou para Pan-noa quando este sentava-se assustado. Todos os quatro estavam agora olhando também para Pan-noa.
A cerveja chegou. Mordehay serviu quatro copos, Azkin fez que ia pegar um
copo mas Mordehay disse.
- Este não é para você Azkin, é para nosso novo amigo.
Pan-noa não teve alternativa senão pegar o copo, os quatro brindaram e beberam.
- Vamos dar um tempo aqui. – Disse Mordehay.
- Que que ta havendo? – Perguntou o Japa.
- Uma cagada filha da puta. – Respondeu Mordehay.
- Cara em toda minha vida, eu nunca vi a Vieira desse jeito! – Disse Kley.
- Deu alguma cagada feia mesmo. - Disse o Japa.
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- Ninguém sabe o que aconteceu, nem mesmo a polícia, se é que o que Azkin
contou é verdade. – Todos olharam para Azkin.
- É verdade é verdade sim! – Disse Azkin olhando para Mordehay.
- Ninguém ta duvidando de você, Azkin, só é meio estranho não é? – Disse
Kley.
- Afinal o que aconteceu? – Perguntou o Japa. – E quem é esse erê tomando
cerveja com a gente?
Pan-noa não sabia o que responder. Se falasse uma mentira, Mordehay poderia
saber; nenhuma história poderia caber ali, para aquele momento.
Foi Mordehay que falou então.
- Azkin me contou que ele estava aqui no centro com uma menina ou menino,
ele não sabia dizer, e esta coisa simplesmente desapareceu. Rolou um quebra-quebra
pois a galera não entendeu nada e a polícia desceu pra conter a situação.
“Modo simples de explicar.” Pensou Pan-noa.
- Você já viu este ser antes? – Perguntou Mordehay para Pan-noa.
Pan-noa ia abrir a boca para falar alguma coisa mas Azkin gritou.
- Ali! Ali está ela! – A figura apareceu bem no meio da Av. São João com uma
capa preta e apontando para Azkin. Os quatro se levantaram de onde estavam sentados
assustados olhando para o meio da rua.
- Caralho! – Gritou Pan-noa. - É ela: a Androida Andrógina!
Mordehay fez que ia correr para pega-la/lo mas no momento do impulso a
figura desapareceu. E recomeçou a gritaria, pois, não foram só eles que viram. As pessoas ali passando e até mesmo alguns, para não dizer muitos policiais, viram também
a cena. Os três ficaram parados olhando para o meio da rua, embasbacados. Os berros
obviamente chamaram a atenção da polícia que veio correndo em direção ao meio da
rua para onde todos estavam agora apontando.
- Ninguém se mexe! – Gritavam os policiais apontando suas armas para todos
os lados. - Vocês quatro aí: parados! - Alguns policiais apontavam para eles. - Não se
mexam daí. - O nervosismo imperava no local. Logo vieram pela rua mais carros de
polícia. A Av. São João estava tomada de gente e polícia num caos absoluto quando
ouviu-se o primeiro estrondo de tambores a rufar por entre os prédios.
O estrondo foi tão forte que fez com que a terra tremesse. Logo alguém estava
gritando.
- Terremoto!
Mas logo em seguida, o que fez com que todos parassem de falar e gritar ou
se mover, um outro estrondo, como tambores do inferno. A terra tremeu de novo e de
novo à medida que os estrondos começaram a soar e soar.
Agora a rua estava tomada pelo pânico, a polícia tentava falar em seus rádios,
ou fazer alguma coisa, mas nada poderia ser feito diante de tamanho estardalhaço que
os tambores faziam. Então, inúmeras vozes foram ouvidas vindo de baixo do Elevado
Costa e Silva que ficava a algumas quadras de onde eles estavam.
Uma forte trombeta soou por entre as vozes, um clamor obscuro que começava
agudo e tornava-se grave a ponto de fazer tremer os carros ali parados.
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Uma marcha forte começou a ser ouvida com o retumbar dos tambores em seu
encalço. Todos olhavam agora para a direção do que poderia ser uma imensa torcida a
se deslocar em direção a eles. Os policiais agora gritavam nos seus rádios.
- Apoio...apoio...precisamos de apoio! - Vários policiais vinham correndo para
o local. E para espanto de todos logo viu-se a primeira linha de um exército de seres
imensos com capas pretas sendo liderados por um que montava um cavalo. Vieram
vagarosamente batendo com suas espadas em seus escudos prateados e negros com
uma cruz suástica encravada no meio de cada um. E a cada duas batidas de tambores
ouvia-se o estardalhaço das espadas nos escudos. Tum, tum, plas. Tum, tum, plas...
Todos estavam absolutamente paralisados diante de tal visão. O exército parou
então a meia quadra da onde estava a polícia; os cinco, e um bando de gente que nada
falava.
Mordehay tomou um gole de sua cerveja, olhou para o Japa, pegou na mão de
Azkin e disse.
- Fodeu tudo! Vamos sair daqui. – Neste momento porém, um policial disparou
com uma doze contra a multidão do exército que estava parada logo a frente. Ouviu-se
a bala colidir com um dos escudos, nenhum dos seres do exército caiu.
- Que caralho! – Gritou o Japa. E nisso a polícia começou a disparar como louca contra o exército que veio como uma manada, correndo e gritando hinos infernais.
Os cinco saíram correndo. A polícia só tinha uma preocupação agora: o exército de bárbaros que resolvera invadir o centro de São Paulo. Mas isso facilitou um
pouco a fuga dos cinco. Entraram pela rua Vitória e continuaram a correr. A rua estava
em pavorosa situação. Eles conseguiram correr juntos até a Vieira de Carvalho. Corriam pelo meio da rua junto à multidão desordenada. Estavam para entrar na Aurora
quando um novo ruído estrondoso foi ouvido vindo do final da rua.
Agora já não eram tambores nem espadas mas o ruído de um animal gigantesco que ressoava num rufar absurdo.
Eles olharam para o final da rua Aurora junto à multidão e viram um ser gigante que avançava por entre os prédios. O ser deveria ter o tamanho de um prédio de
dez andares e estava completamente louco.
Alguns tiros foram ouvidos e o ser apareceu num raio de luzes que emergia da
rua do Arouche e trouxe a visão de todos a tamanha aberração que era. Um demônio
vermelho gigantesco com chifres negros e pernas de algum animal, como um fauno,
o corpo delineado por músculos, um rabo de escorpião que movia-se para lá e para cá
com tamanha violência que derrubava os prédios por onde passava. Nesse momento
a luz do centro de São Paulo apagou-se. O demônio clamou aos céus com um uivo
estonteante e um raio partiu das nuvens para chocar-se com o chão logo adiante dele
e por grande azar, diante dos cinco que estavam ali parados sem nada falar ou fazer.
A luz do raio iluminou então, num reflexo poderoso, o peito de Azkin. O
demônio visualizou o talismã que demorou um pouco a se apagar. E veio em direção dos cinco. O demônio se debatia feito louco entre os prédios, derrubava tudo
no seu caminho, pisava em carros e a cada passo sentia-se o tremor na terra. Os cinco
começaram a correr em direção à Praça da República, viraram na rua que tangencia
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a praça e continuaram correndo sendo seguidos pelos estrondos de cada passo do
demônio. Ao chegarem na esquina com a Rua do Arouche, no entanto, não sentiram
mais os paços do demônio, este tinha parado. Os cinco olharam para trás e viram a
criatura parada olhando para o nada.
- O que houve? – Perguntou Kley. – Porque ele parou?
Todos estavam em silêncio, podia-se ouvir apenas os berros e tiros que vinham
ao longe de uma outra guerra, algumas quadras para trás.
Surgiu então uma nova movimentação: algo que vinha descendo pela Rua da
Consolação. Os cinco viraram-se e visualizaram uma imensa luz azul vindo na direção a Praça. O som das patas dos cavalos começaram então a ser ouvidos, alguns
estandartes de luz azul começaram a aparecer por entre os cavalos pulando acima
dos carros e desviando do que viam em seu caminho. Nos estandartes luminescentes
podia-se ver o símbolo do talismã que Azkin carregava incrustado em seu peito. Os
guerreiros montados nos cavalos eram um vulto fantasmagórico, não se podia ver seus
rostos, porém Azkin já os conhecia.
- Não vamos perder tempo. – Gritou Mordehay. – Vamos para o metrô.
Correram para a Rua do Arouche, e entraram na caverna negra que era estação
de metro da República. Algumas luzes de emergência funcionavam, dando ao ambiente uma atmosfera assustadora. Neste momento sentiram o chão tremer quando a
cavalaria passou. Logo um estrondo absurdo e um rugido enorme do demônio, parecia
ter caído, mas a cavalaria continuava.
Mordehay parou os quatro e disse alto, em meio aquele som ensurdecedor.
- Japa, pegue o Azkin e o Kley, vá de metro até a estação Santa Cecília, vão pra
minha casa correndo, acho que essas coisas nem sabem que existe metrô.
Pessoas passavam por eles gritando enlouquecidas de pavor e indignação.
- Kley, quando chegarem no meu prédio não subam, peça para o Igor abrir a
porta da garagem, vão até a garagem do meu carro, Kley sabe aquela portinha ao lado
que você sempre me pergunta para que serve?
Kley fez que sim com a cabeça. Olhos esbugalhados a tamanha assombração.
- Abra e desça a escada. Lá em baixo vai ter mais uma porta, use o código para
entrar, é a data do meu aniversário, entrem lá e me esperem.
- Aonde você vai? – Perguntou Azkin assustado.
- Não se preocupem. Eu vou pra lá mais tarde. Você. – Olhou para Pan-noa. –
Venha comigo.
Mordehay pegou Pan-noa pelo braço e saiu da estação. Ainda podiam ver os
cavalos passando. Mordehay pegou Pan-noa pela camiseta e juntou-o na parede.
- Não pense que eu não sei quem você é Pan-noa, certo?
- Como sabe meu nome? – Perguntou Pan-noa assustado.
- Já faz algum tempo, mas você ainda está em minha memória...E não tente
usar seus poderes em mim. – Mordehay tirou um saquinho com um pó branco dentro
e continuou. – Eu estou com meu saquinho mágico!
Pan-noa estava indignado.
- Agora venha. Eu sei que você consegue localizá-la/lo.
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Mordehay saiu na frente deixando Pan-noa boquiaberto.
- Como sabe?
- Cale-se e venha tentar uma coisa, você sabe montar, não sabe?
Uma outra cavalaria vinha pela Rua do Arouche em direção à Praça; era a
polícia montada. Vinham disparando contra os guerreiros montados. Mordehay puxou
Pan-noa para o lado de um carro, ficaram ali agachados. Os dois levantaram um pouco
a cabeça para ver o que ocorria por entre os vidros do carro. Os seres guerreiros desapareciam quando eram atingidos, mas havia muitos ainda e a cavalaria da polícia deveria ter apenas uns vinte ou trinta soldados montados. O seres guerreiros começaram
a atacar a polícia com suas lanças, não demorou para que houvesse vários cavalos sem
seus donos. Alguns policiais tentaram retornar, mas logo foram atingidos pelas lanças.
- Vamos pegar um cavalo. – Disse Pan-noa. – Fique junto de mim, eu tenho
uma roupa protetora nada pode nos atingir.
Pan-noa pegou um cavalo. Mordehay ainda estava agachado, mas agora por
trás do carro, puxou o corpo de um policial e pegou suas armas e seu rádio.
- Venha Mordehay. Suba no cavalo atrás de mim.
Mordehay pulou.
- Vamos! Disse Mordehay. - Siga o fluxo dos guerreiros.
Os dois cavalgaram junto aos guerreiros, os quais estavam agora ocupados demais para perceberem qualquer coisa que fosse, estavam no encalço do demônio que
combatia no chão da praça. Pan-noa e Mordehay seguiram adiante e tornaram a entrar
na Rua Vieira de Carvalho. Já não havia muita gente por ali, seguiram até a próxima
rua e entraram para a direita em direção à Rua São João.
O combate prosseguia entre a polícia e o primeiro exército.
- Vamos pegar a Androida, Pan-noa.
- Era isso que eu tinha em mente.
Passaram cavalgando entre tiros e carros de polícia. Agora o exército tinha
avançado bastante, alguns guerreiros lutavam contra os policiais com suas espadas; o
exército parecia não haver fim.
Mordehay sentia algo bater em suas costas eram as balas perdidas que com a
ação da roupa protetora de Pan-noa perdiam a força. Avançaram derrubando alguns
guerreiros que lutavam no chão. Logo adiante viram a Androida montada em seu
cavalo, dando instruções a torto e a direito. Foram em sua direção. Ela porém ao perceber Pan-noa mudou de direção e começou a correr pela Rua Vitória em direção ao
Largo do Arouche.
Pan-noa conseguiu, via pérola cubo, fazer com que o cavalo da Androida diminuísse o ritmo. Quando chegaram perto o bastante, Mordehay deu uma pancada
com a coronha do revolver na nuca da Androida e ele/a caiu desmaiada. Mordehay
desmontou do cavalo de Pan-noa pegou a Androida nas costas e montou em seu cavalo.
- Vamos Pan-noa, me siga.
Os dois saíram cavalgando pelas ruas do centro de São Paulo em direção ao elevado, pegaram a esquerda e seguiram pela Amaral Gurgel. As ruas estavam escuras,
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carros haviam sido abandonados, e eles apenas ouviam a gritaria e os tiros que vinham
da guerra que deixaram para trás.
Japa, Kley e Azkin entraram na estação do metrô. O Japa com um em cada
mão. Corriam por entre a multidão ensandecida e o Japa berrava feito louco. As pessoas saiam de sua frente, tamanha era sua bravura. Eles conseguiram pular pela catraca e avançaram lá para baixo. Um trem estava parado e eles entraram. O Japa dava
pontapés e gritava para se afastarem. Neste momento Kley também começou a lutar
feito louco por um lugar no trem. O trem logo começou a andar e várias pessoas
lá dentro choravam assustadas com o que havia ocorrido. Na próxima estação eles
saíram correndo e foram lá para cima, onde encontraram ruas desertas e sombrias;
havia apenas o barulho dos tiros e gritos a algumas quadras dali. Os três passaram em
frente à Santa Casa que agora estava mais sombria do que nunca; apenas as luzes de
emergência iluminavam poucos aspectos daquela construção de estilo vitoriano.
Atravessaram em poucos minutos as ruas desertas que levavam a rua do prédio
de Mordehay.
Quando chegaram, Igor estava na porta, meio que escondido, mas querendo
saber o que estava ocorrendo.
- Igor! – Gritou Kley. – Não saia de maneira nenhuma do prédio!
- O que houve? – Perguntou Igor assustado. – Onde está Mordehay?
- Ele está vindo pra cá. Abra a porta da garagem que nós vamos esperar por ele
lá embaixo. E não saia, ta a maior cagada lá no centro.
Igor abriu a porta da garagem e os três entraram. Foram até onde Mordehay falou para entrarem. Kley não estava acreditando muito naquilo, mas quando viu a porta
embaixo da escada e os números ao lado para digitar a senha, ficou mais relaxado.
Abriram a porta e não acreditaram no que viram.
- Um bunker! Não acredito que Mordehay tem um bunker!
- O que é um bunker, Japa? – Perguntou Azkin, só conseguindo falar agora.
- É isso que você está vendo, fofinho! Um esconderijo secreto! Vamos ver o
que aquela loca guarda aqui em baixo.
O bunker tinha luz de emergência, um computador meio antigo, algumas camas, um banheiro, uma pequena cozinha.
- É ótimo! – Disse o Japa.
- É mesmo! - Disse Azkin agora um pouco mais alegre do que assustado.
- Japa, ponha Azkin embaixo do banho que ele está fedendo a chulé. – Disse
Kley, vou dar uma olhada no que tem para a gente comer e você veja se da alguma
notícia na internet.
- Ok. – Disse o Japa.
O Japa ligou o computador.
- Eu não to acreditando! – Falou um pouco assustado para Kley, que vinha ver
o monitor abrindo uma caixa de purê de batatas.
Viram por um site de notícias as imagens de um centro de São Paulo em
chamas, em guerra, semidestruído, com cavalos, carros de polícia e pessoas mortas
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O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
pelo chão.
O nome da matéria era:
Centro de São Paulo em guerra civil.
A câmera estava em um helicóptero filmava todo o tumulto. O locutor não
conseguia descrever direito o que acontecia, as imagens estavam desconexas e ele não
conseguia dizer de onde tinham vindo os exércitos e os cavalos; apenas informava em
meio a estrondos que as forças armadas haviam sido convocadas.
- Que caralho! – Disse o Japa meio que para si mesmo.
Mordehay e Pan noa abandonaram os cavalos na esquina do prédio onde Mordehay morava, estava um breu absoluto e não havia ninguém nas ruas. Mordehay
ainda carregava a Androida nas costas quando desceram pela garagem e foram em
direção ao bunker. Mordehay digitou o código e a porta do bunker abriu-se.
O Japa e o Kley olharam assustados para trás, os dois vieram socorrer Mordehay com a Adroida que foi depositada em uma cama.
- O que vocês fizeram? – Perguntaram Japa e Kley ao mesmo tempo.
- Trouxemos a namoradinho/a do nosso amigo Azkin. – Falou Mordehay.
Azkin estava saindo do banho, enrolado numa toalha e vociferou enlouquecido
ao ver o/a Androida Andrógina desmaiado/a na cama:
- O que vocês fizeram com ele/a?
- O que nós fizemos com ele/a? – Perguntou Mordehay abismado...- O que
ele/a fez com a gente!
Azkin ficou olhando assustado para a Androida deitada na cama.
Pan noa foi para o computador, fez conexão com a máquina. Mordehay, Kley
e Japa vieram ver o que Pan noa estava fazendo, Azkin foi sentar-se ao lado do/a
Androida.
- Por mais que suas máquinas sejam arcaicas, “umas merdas” ainda posso fazer
algumas coisas por aqui. – Disse Pan noa com os olhos vidrados no monitor que mostrava um turbilhão de informações de forma tão rápida e inesperada que não parecia
vir daquele computador tão antigo. Passados alguns instantes Pan noa falou.
- Não sei quanto a vocês, mas acho que isso aqui ta uma verdadeira cagada!
- Não diga! – Disseram os três juntos.
- O que você quer dizer exatamente Pan noa. – Perguntou Mordehay.
- Bem, a princípio não existe explicação concreta da onde vieram esses exércitos montados a cavalo. Segundo os dados dos satélites eles simplesmente surgiram em
seu mundo, “do nada”, assim sem mais nem menos. O que é extremamente incoerente
para sua tecnologia.
- Ei pera aí! – Disse o Japa perplexo. – Nossa tecnologia? O que você quer
dizer com isso? Que você não faz parte dela? Que você é? Um tipo de alienígena?
Você só pode estar tirando com a nossa cara... E de qualquer maneira como você surgiu aqui, em primeiro lugar? Mordehay quem é essa porra desse erê metido a besta
que você trouxe pra cá? – Ficou apontando para Pan noa e olhando para Mordehay.
Mordehay, no entanto não falava nada, ele próprio apesar de saber o nome de
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Marcelo Paciornik
O Mago de Prata A Andróida Andrógina O Guerreiro Azkenadzy
Pan noa e saber que ele tinha certos poderes, não sabia ao certo o que era. Foi Pan noa
que começou a responder.
- Não sou deste planeta, nem mesmo deste tempo, deste agora, sou de um planeta chamado Kalum Br. Acordei aqui sem saber de nada do que estava ocorrendo,
provavelmente caí em uma cilada... Tenho um equipamento na minha testa chamado
pérola cubo que faz com que minha mente trabalhe de forma mais eficiente, posso fazer com que esse dispositivo se manifeste de diferentes formas produzindo um poder
em seres e máquinas conforme minha mente comande. Com isso pude analisar dados
do seu mundo que vocês dificilmente conseguiriam.
- Cê ta louca?!? – Perguntou o Japa. Mordehay e Kley apenas observavam.
- Não. – Continuou Pan noa. – Não estou louco. Posso provar utilizando-me
deste computador de forma que ninguém neste seu mundo pode, mas acho que isto
vocês já perceberam; posso provar lendo suas mentes mas não agora pois acredito
que o talismã encravado no peito daquele menino – apontou para Azkin que ainda
estava ao lado da Androida deitada. – Possa estar gerando alguma interferência. Mas
posso mostrar algo que pode atrair um pouco mais a sua atenção. – Tirou a camiseta
e mostrou imagens abstratas perfeitamente bem geradas em seu corpo. – Isto é uma
ânimo- tatoo. – Explicou Pan noa. – Muito na moda em meu mundo.
Os três não tinham palavras para aquilo, estavam em total desequilíbrio mental
ao ver as imagens no corpo de Pan noa formado cataclismos pictóricos de uma beleza
absurda.
- Acho que agora vocês podem acreditar em mim, não podem?
- Acho que podemos, não é mesmo Mordehay? – Pergunto o Japa.
- E como podemos! – Respondeu Mordehay. – Como eu sabia seu nome? E
como eu sabia de seus poderes?
- Taí algo que eu realmente não sei, Mordehay. – Disse Pan noa sem pestanejar.
- Muito bem, - continuou Mordehay. - E quanto a ele/a? - Perguntou a Pan noa
apontando para a Adroida.
- Bem ele/a é um ser proibido, é uma Androida Adrógina, um ser criado organicamente pelo ser humano, num planeta do Império, que deveria servir para os
mais absurdos apetites sexuais, pois ele/a além de ser algo sintético e portanto sem
problemas com a ética, é também um ser moldável, tanto intelectualmente como fisicamente, neste caso aqui, eu imagino que tenha sido raptada para servir a propósitos
contra mim e provavelmente contra este aqui e agora.
- Como sabe disso? Por que alguém iria te fazer mal? – Perguntou Mordehay.
- Bem eu fiz umas cagadas no meu breve passado, acho que alguém pode ter
ficado um pouco puto da cara.
- Um pouco? – Perguntou Mordehay cinicamente.
- Eu matei um ser superior, matei uma deusa incorporada em ser/flor, acho
que eles não gostaram muito disso, mas é mera especulação, deveríamos interrogar a
Androida, mas acho que minha telepatia não serviria de nada para este ser. – Concluiu
Pan noa.
- O que você acha Japa? – Perguntou Mordehay.
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- Deve ter um meio de interroga-lo/la. – Disse o Japa.
- Você disse que é um ser orgânico Pan noa? Como isso funciona?
- O ser Androida Andrógina é uma imitação do nosso corpo. É feito com elementos orgânicos e sintéticos. Cabe à parte orgânica imitar nossos sentimentos através
de procedimentos elétricos/químicos. As partes sintéticas funcionam para manter e
alterar a forma da Androida, por isso ela é um ser mutável morfologicamente só que
com capacidade de sentir.
Os três ouviam as explicações de Pan noa boquiabertos, após alguns instantes
Mordehay perguntou.
- Então isto é um robô com sentimentos?
- Não. – Disse Pan noa. – Um robô não tem funções humanas, é apenas uma
ferramenta para os humanos, a Androida é uma ferramenta com sentimentos.
- Caralho! – Disse o Japa.
- E esta pérola cubo? – Perguntou Mordehay. – Você pode controlar a Androida
com ela?
- Não. Não esta Androida, ela tem um dispositivo de proteção.
- Então como vamos saber o que está ocorrendo? – Perguntou o Japa. – Como
vamos interrogá-la?
- Você disse que ela imita as nossas funções orgânicas, nossos sentimentos? –
Perguntou Mordehay.
- Sim. – Disse Pan noa.
- Então ela pode ser drogada?
- Teoricamente sim, dependendo da droga ela pode ter alterações sensoriais.
- Então. – Disse Mordehay rindo. – Acho que vocês vão adorar saber que eu
tenho uma caixa de Rohypinol nesse bunker!
- O que é Rohypinol? – Perguntou Pan noa.
- Boa noite Cinderela. – Respondeu o Japa sorrindo também.
- Ainda não entendi. – Disse Pan noa.
- Você vai ver. – Concluiu Mordehay, já indo para um armário e tirando de uma
gaveta uma caixa de remédio.
- Esse medicamento. – Disse Mordehay, com uma cara alegre. – É um hipnótico, na medida certa podemos dopar essa coisa e ela vai falar até mesmo se ela já
transou com um elefante.
Os quatro olharam para a Androida deitada na cama com Azkin ao seu lado.
Kley foi até ele e o pegou pela mão.
- Venha Azkin. Agora você vai ter que ficar aqui jogando comigo no computador enquanto o Japa, o Pan noa e o Mordehay, vão tratar da tua amiga, você quer que
ela fique bem, não quer?
Azkin olhou desconfiado para os quatro, mas logo sentiu-se mais aliviado assim que Kley segurou sua mão. Enquanto os dois sentavam-se no computador, Mordehay já pegara uma garrafa de água gelada.
O impacto de água fria no rosto da Andrógina revelou seus absurdos olhos
azuis. Mordehay deu um passo para trás.
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- Caralho! – Disse ao vê-lo/a agora podendo prestar atenção em sua beleza.
O Japa também fez um movimento brusco como que assustado pela existência
de tal ser.
- Não se iludam. – Disse Pan noa. – Eu já caí nessa; esse ser não mostra o que
ele realmente é. Por trás desta bela máscara existe algo amaldiçoado. Lembrem-se do
horror que sua cidade está passando graças a esta bela coisa.
Os dois ainda estavam atônitos olhando para a Androida e por mais que a coisa
fosse realmente do mal era algo que eles jamais poderiam imaginar existir. O fato de
que aquilo era uma criação humana era impensável. Se fosse criado pelo próprio Deus
já seria impensável, mas ali estava ele/a, olhando para os três com um olhar indescritível, aterrador, e definitivamente hipnótico, como se ele ou ela própria soubesse
que eram eles que iriam hipnotizá-lo/a.
Pan noa agiu rapidamente.
- Vamos lá, Mordehay. Quanto mais você olhar para a Androida, mais você
sucumbirá aos seus poderes.
Mordehay chacoalhou a cabeça, pegou quatro comprimidos de Rohypinol tomou com uma mão as bochechas da Androida num gesto brusco, fazendo com que
ele/a abrisse a boca num bico e enfiou os comprimidos lá dentro. O Japa meteu a água
gelada goela a baixo. Tomaram a Androida segurando-o/a pelas axilas e fizeram-no/a
sentar-se.
Kley e Azkin agora estavam sentados de costas para esta cena, Azkin com um
fone de ouvido.
- Agora podemos esperar um pouco. – Disse o Japa. – Acho que estou com
fome. Kley fez um purê de batatas e salsichas, deve estar ótimo.
- Beleza. Vamos comer enquanto a droga faz efeito. – Disse Mordehay.
O Japa trouxe uma taboa com um montinho de purê de batatas no meio e várias
salsichas cortadas em volta, cobertas com uma deliciosa mostarda preta. Os três comeram em silêncio.
Foi o Japa que quebrou o silêncio.
- Devemos amarrá-la?
- Com a dose de Rohypi que eu dei pra ela? Acho que não.
Os olhos da Androida começaram a ficar sem brilho, olhavam para o vazio.
A Vendeta
- A interferência não deve ser no espaço vazio.
- Devemos agir no plano material.
- As consequências não podem ser devastadoras para os Antes, apenas para
aqueles que estiverem relacionados com os fatos.
- O ser que destruiu a semideusa deve pagar com a vida antes que ele se torne
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superior, as quatro esferas deverão ser capturadas e escondidas.
- O procedimento ficará a cargo de uma Androida, para não haver sentimentos
retroativos.
- Confiar num Antes tal comando, seria conspirar contra nós mesmos.
- A Androida deverá proceder de forma incógnita.
- Tanto a Androida quanto o ser, deverão ser transportados ao passado.
- Ao passado de forma a intervir no nascimento da tecnologia dos Prateados.
- Deveremos utilizar de um manifesto em forma de vendeta para que seja consumado no plano dos Antes e não interrogado pelo Supra Ser.
- O manifesto é concebível desde que não seja entrevisto pelos seres superiores
após o início dos atos da Androida.
- A Androida só conseguirá realizar a vendeta em plano semimaterial.
- Para tanto o ser que matou a semideusa deverá cair em duas armadilhas, a
primeira do tempo e espaço a segunda em espaço semimaterial.
- A primeira, nós conseguiremos proceder sem o auxílio da Androida.
- Enviaremos o ser via tempo ao passado pré-prateados.
- A segunda, a Androida terá instruções para proceder no tempo e espaço anterior à Eco Revolta no Planeta Azul (Verde).
- Lá ela deve roubar as quatro esferas do ser e capturá-lo em um plano semimaterial.
- A Androida será responsável pela criação do plano semimaterial utilizando-se
da mente de um Antes aleatório.
- Conforme instruções plantadas em seu inconsciente inorgânico.
- Que assim seja.
O rapto do Judeu
O primeiro a perguntar foi Pan noa. Extremamente concentrado, não aparentava ser a criança que era. Na verdade foi a primeira vez que tanto Mordehay quanto o
Japa conseguiram visualizar o rapazote, prestando realmente atenção em sua aparência. Não poderia ter mais de quatorze anos, mas aparentava menos; era bonito, na
verdade, agora estava muito bonito, parecia ter mudado. O Japa sentiu um arrepio na
espinha ao perceber aquilo e logo olhou para Mordehay que estava olhando para o
menino completamente embasbacado. “Esse filho da puta esconde-se atrás de mascaras desconhecidas”. Olhou para o Japa, mas nisso o menino já estava formulando
a pergunta.
- Modelo e ano de fabricação. – Perguntou Pan noa sem pestanejar.
A Androida olhava inebriada, mas nada respondia.
- Quando chegou neste agora? – Continuava Pan noa.
- Quem mandou-nos para cá? – Pareciam estar fazendo uma conversinha particular.
Mordehay voou no pescoço de Pan noa levantou-o e juntou-o contra a parede
mais próxima, causando tamanho susto no Japa que as salsichas voaram pelo bunker.
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- Vamos parar com os joguinhos, Pan noa. É um - dois pra eu te arrebentar aqui
mesmo; com ou sem roupa protetora eu dou um jeito de te foder.
- Está bem. – Disse Pan noa assustado, tamanha era a força que Mordehay
segurava ele contra a parede. O Japa, ainda sentado, só olhava. A Androida parecia
não estar ali.
Mordehay jogou Pan noa na cadeira e chegou perto da Androida, extremamente furioso, pegou-a pelo maxilar e levantou sua cabeça até estabelecer contato
visual.
- Muito bem travequinha, não quero saber de porra nenhuma a não ser o que
eram aquelas merdas daqueles exércitos no meio de São Paulo.
Pan noa fez que não com a cabeça tipo o-cara-não-sabe-fazer-um-interrogatório-mesmo. Mas a Androida começou a falar.
- Vieram de Azkenadzia.
Os três se sentaram, Mordehay olhou para Pan noa que fez que sim com a cabeça indicando que ela poderia estar falando a verdade.
- Onde é Azkenadzia? – Perguntou Mordehay.
- É a terra dos Azkenadzym, onde moram, onde vivem.
- Azkenadzim são os judeus que viviam na Europa central. – Disse Mordehay. E não lembro de eles terem fundado um país, estado, cidade, vila ou qualquer caralho
a quatro que seja chamado Azkenadzia.
- Eles não fundaram, na verdade só um judeu fundou.
- Como assim? Só um judeu resolveu fundar uma terra que tem uma caralhada
de exércitos que lutam contra si e além de tudo um demônio de dez metros de altura
que resolve foder com o centro de São Paulo?
- São apenas dois exércitos, são vários demônios e seres desconhecidos por
vocês, e ele não fundou por si só. – Disse a Androida.
- Então explique, caralho! Com quem ele fundou? – Perguntou Mordehay irritado.
Mas para piorar a situação Azkin e Kley perceberam o que estava ocorrendo e
vieram ver o ser menino/a falar. Foi Azkin que perguntou:
- Japa, o que é um judeu?
Mordehay teve vontade de rir, mas conseguiu se controlar.
- Azkin, se quiser ver o que está acontecendo tudo bem, mas não faça perguntas
isto aqui é muito sério, tá bom?
- Tá bom.
- Então, Androida, da onde vem e quem fundou esta terra Azkenadzia?
- Eu ajudei o judeu a fundar. – Disse a Androida.
Mordehay e o Japa começaram a ter um acesso de riso.
- A traveca só pode ta loca da boceta! – Disse o Japa.
- Bom. – Disse Mordehay. – Pelo menos o Rohypi fez efeito!
- Cale-se Mordehay. – Disse Pan noa. – O que ele/a fala tem coerência, eu sinto
via pérola cubo que o que ele/a fala é a mais pura verdade.
Mordehay ficou sério e olhou para a Andrógina.
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- Então, conte sua história: toda ela.
- Fui enviado/a para este “agora” para corrigir um erro. – Olhou para Pan noa
severamente. – Minhas instruções foram claras. Raptar um humano, abduzi-lo para
um plano intermediário e formular neste plano um semi- universo semi material de
quintessência.
Consegui capturar a essência de um ser que fosse capacitado para tal coisa,
ele deveria estar semi formado e deveria ter em seu inconsciente elementos fortes o
bastante para criar um mundo razoavelmente coerente, porém com conflitos míticos
significativos, o que foi razoavelmente difícil de encontrar.
Depois que eu achei este ser, um Judeu Azkenadzi de doze anos, consegui, graças a poderes implantados em mim pelos seres superiores, transportá-lo para um plano
intermediário de existência onde lá se consumou a fundação de Azkenadzia, graças as
forças míticas inerentes no inconsciente deste pequeno judeu.
A partir daí o pequeno judeu teve domínio destas novas terras, como uma espécie de semideus.
Fui para lá e consegui graças a este outro ser que está nesta sala (apontou para
Azkin) causar distúrbios, roubamos um objeto de extremo valor mítico para os habitantes de Azkenadzia, os distúrbios seguiram para este plano material que estamos,
pois este Azkin tem em seu peito O Talismã Azkenadzy. Os exércitos de Azkenadzia
vão caçá-lo até conseguirem levar o talismã para Azkenadzia de novo.
A única coisa que realmente fazia com que todos não explodissem em uma
risada total foi a palidez de Pan noa.
Após alguns instantes o Japa perguntou.
- O que isto quer dizer, Pan noa?
Pan noa não conseguia falar. Porém depois de um tempo pediu:
- Alguém poderia me dar uma bebida forte por favor?
Mordehay olhou para Kley e fez um gesto com a cabeça indicando a geladeira.
Kley trouxe uma cerveja. Pan noa tomou num gole só a lata inteira.
Olhou para o Japa e logo depois para Mordehay. A Androida permanecia impassível.
- O que esta porra desta Androida fez foi alterar este presente de forma criminosa. Ele/a abduziu uma criança humana para criar um mundo paralelo, este mundo
chamado Azkenadzia, que está agora interferindo neste mundo em que vocês vivem,
neste aqui agora.
O mundo Azkenadzia foi criado com a força psíquica deste judeu que ela
raptou. Graças ao subconsciente deste judeu Azkenadzia foi criada e existe paralelamente a este mundo que agora estamos, estes exércitos vem deste mundo inicialmente
psíquico, mas que agora fazem parte do universo em uma existência semimaterial.
Azkenadzia é na verdade um mundo paralelo criado a partir do subconsciente
de um judeu de doze anos.
Dentro deste mundo, Azkenadzia, existia um objeto de extremo poder, provavelmente criado no inconsciente deste judeu, através de alguma manipulação sór363
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dida. A Androida conseguiu levar Azkin para este universo paralelo e roubar o tal
Talismã. Quando Azkin voltou para cá os exércitos de Azkenadzia o perseguiram, e
pelo jeito os dois exércitos querem o mesmo talismã. Resolveram então começar uma
guerra no centro desta cidade que estamos. Para piorar a situação devem existir outros
seres absurdos na mente deste garoto, que podem vir para cá conforme sintam a falta
do Talismã.
Quando Pan noa terminou eles estavam ainda muito confusos com estas informações. Na verdade mal acreditavam em tal possibilidade, mas lembraram os exércitos que simplesmente apareceram do nada no centro de São Paulo, eram verdadeiros
e que pessoas morreram lá e poderiam ainda estar morrendo, sem contar a destruição
que estes exércitos estavam fazendo.
- Qual é o propósito de você ter criado este mundo, Androida? – Perguntou
Mordehay indignado.
- Corrigir um erro do futuro, erro este, feito por Pan noa.
Todos olharam para Pan noa.
- Eu matei um semi Deus por estar interferindo em nossa existência, foi só isso,
agora eles querem se vingar.
- Só isso Pan noa? – Perguntou Mordehay perplexo e já se levantando para
descer uma camaçada de pau no garoto.
Pan noa foi rápido na resposta.
- Vejo muito de você em mim, Mordehay, tenho certeza que pelos motivos que
tive você faria o mesmo. Não vê que eu não abduzi ninguém do seu mundo? Foi essa
aberração que fez. Esses filhos das putas fazem planos sórdidos dentro de planos mais
sórdidos ainda! – Falou rapidamente apontando para a Androida.
Mordehay relaxou, mas logo franziu os cenhos e voltando-se velozmente para
a Androida tomou-a pela garganta e vociferou chacoalhando-a.
- Porque logo um judeu, sua filha da puta? Porque logo uma porra de um judeuzinho que nem bar mitsfa fez, sua maldita filha da puta? Por que você escolheu
um judeuzinho? – Berrava com tanto ódio e chacoalhava a Androida que a poderia ter
matado caso ele/a não fosse uma Androida.
Ela olhou cinicamente para os olhos de Mordehay como se não tivesse sido
agarrada nem chacoalhada e respondeu sorrindo.
- Ora eu o escolhi porque os judeus foram o povo escolhido. Não foram Mordehay?
Mordehay deixou a Androida cair na cadeira estatelada, ainda teve forças para
dar um chute em sua cara que logo após ficar desfigurada voltou ao normal, com
aquela beleza que tanto Mordehay quanto os outros já estavam aprendendo a odiar.
Ninguém esperava mais nada naquele estado das coisas, mas Azkin falou algo
que chocou a todos.
- Eu estive neste mundo, nesta Azkenadzia, eu estive lá com a Androida. Este
mundo realmente existe e é tão real quanto este mundo que nós vivemos agora. E ela
me fez ir até lá porque eu achava que ela gostava de mim!
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Todos olhavam para um Azkin em estado indignado, falava como se tivesse
levado um tiro pelas costas, estava muito bravo.
- Acho que nós deveríamos ir até este mundo e simplesmente devolver este
talismã. – Falou apontando para o próprio peito, o talismã refletia a pouca luz que o
bunker oferecia. – Assim destruiríamos o plano desta travequinha.
Mordehay olhou para Pan noa. Queria rir do que o pobrezinho Azkin acabara
de falar, mas pensou mais um pouco e disse.
- E então? Você acha que seria possível fazer tamanha loucura.
- É exatamente este o plano deles. – Disse Pan noa. – Afinal por que eu estaria
aqui? Eles querem me levar para me aprisionar neste mundo, eles sabem que com
minha roupa protetora e minha pérola cubo não podem interferir em minha existência, mas se eles me levarem para lá a coisa se torna diferente. Se nós formos juntos,
poderíamos ficar todos aprisionados lá. Seria passagem só de ida.
- Ficar aprisionado num mundo que na verdade é o subconsciente de um judeuzinho de doze anos? – Perguntou o Japa. – Me parece um tanto estranho...vai ter
guefiltefish?
Mordehay riu. Achava que estava num sonho discutindo com um bando de
loucos, mas continuou.
- Então, Androida? – Perguntou Mordehay. – É este seu plano?
A Androida não respondeu.
- Acho que Pan noa tem razão, quem cala consente, não é, travequinha. - Disse
Mordehay. – Mas acho que eles não contavam que nos levariam também e nem contavam que nós teríamos o poder de dopar a Androida.
- Nem de estarmos dispostos a entregar o talismã em troca da nossa volta. –
Disse o Japa.
- É algo a ser considerado. – Disse Pan noa quase alegre. – Você pode conseguir algo mais forte que este Rohypinol, Mordehay? Talvez possamos alterar totalmente esta situação... Quem sabe possamos convencer a nossa amiga Androida em
levar algo a mais, apenas como precaução.
- Você quer dizer alguns equipamentos, Pan noa?
- Você não consegue imaginar como é o subconsciente de um judeuzinho de
doze anos, não é verdade? – Perguntou Pan noa.
- Bom. – Respondeu Mordehay. – Eu sou judeu e já tive doze anos, mas não
imaginava que pudesse existir em meu subconsciente exércitos enlouquecidos nem
demônios loucos para destruir tudo por causa de um talismã.
- Acho. – Disse o Japa sorrindo. – Que você não tem ideia do que seria do
centro de São Paulo se essa maldita Androida abduzisse você e não seu patriciozinho.
Mordehay soltou uma gargalhada. - Sendo seguido por todos no bunker menos
é claro a Androida.
- Acho que nós vamos ter que sair em viagem, não é mesmo? – Perguntou
Mordehay. – Tipo: a gente vai mesmo para esse mundo absurdo?
- Enquanto conseguirmos manipular a mente da Androida, acho que sim, dependemos dela para sermos enviados para lá. – Disse Pan noa.
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mindo.
- Eu também consigo ir para lá. – Disse Azkin. – Eu vou quando estou dor-
Todos olharam para Azkin admirados. Por um instante Mordehay viu uma centelha de brilho de ódio no olhar da Androida, mas nada falou. Levantou-se, pegou
vários comprimidos de Rohypinol misturou com alguns de Lexotan veio em direção a
Androida e falou meio que por acaso.
- Você está com aquela garrafa de água, Japa?
- Ta aqui.
- A Androida está com sede. – Despejou os comprimidos goela abaixo e logo o
Japa enfiou meia garrafa d´água na Androida.
- Bons sonhos, travequinha. – Disse Mordehay. – Agora nós poderemos dormir
um pouco, quando acordarmos vamos ver o que faremos. Japa, não custa nada amarrar
a traveca.
Enquanto o Japa amarrava a Androida Andrógina com a ajuda de Kley, Azkin
e Pan noa. Mordehay foi dar uma olhada no monitor do computador.
- Ei! Vejam isso! – Disse Mordehay eufórico. – As imagens mostravam um
centro de São Paulo amanhecendo, enquanto a luz do sol incidia por entre as ruínas
dos prédios e das pessoas mortas, via-se também os exércitos de Azkenadzia desaparecendo. – Os exércitos desaparecem durante o dia!
- Perfeito! – Disse Kley. – Eles são como vampiros, só vão vir para cá durante
a próxima noite.
- Espero que sim. – Falou o Japa.
- É isso mesmo. – Disse Pan noa. – O subconsciente só se manifesta durante os
sonhos mais profundos, exatamente quando um menino de doze anos está dormindo.
Provavelmente eles seguem um horário padrão associado ao da noite e dia do garoto
antes de ter sido abduzido.
- Vamos descansar. – Falou Mordehay. – Acordaremos enquanto ainda houver
sol para nos prepararmos.
Mordehay acordou sobressaltado, parecia ter

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