Joao Carlos Filho - Água, Mulheres e Desenvolvimento

Transcrição

Joao Carlos Filho - Água, Mulheres e Desenvolvimento
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL
PROGRAMA DE EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE
ESPECIALIZAÇÃO EM GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS COM
FOCO EM RAÇA E GÊNERO
JOÃO CARLOS DA COSTA FILHO
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM LEVANTAMENTO
BIBLIOGRÁFICO E DE MARCOS LEGAIS
Belo Horizonte - MG
2012
JOÃO CARLOS DA COSTA FILHO
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM LEVANTAMENTO
BIBLIOGRÁFICO E DE MARCOS LEGAIS
Monografia apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação para a Diversidade da
Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito
parcial à obtenção do grau de Especialista em
Gestão de Políticas Públicas
Área de Concentração: Gênero e Raça
Orientador: Prof. Renato Barbosa Fontes
Belo Horizonte - MG
2012
2
COSTA FILHO, João Carlos da. Violência contra a mulher: um levantamento
bibliográfico e de marcos legais. Belo Horizonte: UFOP, 2012 (Monografia).
RESUMO
O presente estudo constitui-se em um levantamento bibliográfico e dos
marcos legais sobre a questão da violência contra a mulher. Procura traçar um
panorama histórico e o cenário atual da abordagem deste fenômeno a partir das
contribuições de diversos/as autores/as que escreveram ou escrevem sobre o
assunto. Busca também apontar algumas das providências no campo normativo
que vem sendo adotadas para o combate e o enfrentamento desse problema.
As obras deslindadas evidenciaram uma série de eixos temáticos, os quais
foram apontados ou analisados mais profundamente, conforme o nível de
recorrência com que é tratado pelos/as estudiosos/as da violência contra mulher.
Ao longo deste trabalho, procurou-se também evidenciar alguns pontos
que ainda podem ser mais bem esclarecidos e suscitar interesse àqueles/as que
vierem a se debruçar sobre o campo das questões de gênero, especialmente nos
aspectos relativos à questão da violência contra a mulher.
Palavras-chave: mulher; violência; legislação
3
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO..........................................................................................05
2
AS PERSPECTIVAS CONCEITUAL E HISTÓRICA.............................06
2.1
DEFINIÇÃO E TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER..............................................................................................................06
2.2
OS CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
E O DEBATE NO CONTEXTO ATUAL.............................................................13
2.3
RACIONALIDE OU MÚLTIPLAS BASES DA
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER...................................................................23
3
CUSTOS E ENFRENTAMENTO ............................................................31
3.1
AS DIVERSAS ORDENS DE IMPACTOS
DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ...........................................................31
3.2
UM BALANÇO DAS AÇÕES DE ENFRENTAMENTO E A LEI
MARIA DA PENHA.............................................................................................35
4
CONCLUSÃO..........................................................................................39
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................42
4
1
Introdução
Este texto resultou do propósito de elaborar um levantamento bibliográfico
e de marcos legais sobre o tema da violência contra a mulher. Tal arrolamento
teve como objetivo principal apreender a contribuição de cada autor/a na
edificação de um debate que a cada dia tem crescido em importância. O conjunto
documental estudado constituiu-se de obras com abordagens diversificadas, as
quais contemplam o assunto em comento sob prismas variados. Identificar e
apontar essas multifacetadas dimensões foram objetivos que se agregaram a essa
finalidade maior, visando à condensação de elementos tratados nessas obras em
termos, por exemplo, de tendências, predominâncias, controvérsias, lacunas e
apontamentos para pesquisas futuras.
Portanto,
todo
este
trabalho
compreende
a
estruturação
dessa
multiplicidade de aspectos de modo a dispor ao seu público-alvo maior facilidade
em suas investigações sobre a questão da violência contra a mulher. Mediante a
impossibilidade de abordar a totalidade dos aspectos perpassados na literatura
disponível, a organização deste estudo consistiu-se em apresentar tópicos
temáticos comumente presentes no acervo material analisado. Com isso, buscouse deixar clara a compreensão expressa pelos/as diversos/as autores/as e o papel
de suas escolhas metodológicas para a configuração dessas determinadas formas
de abordagens.
Estruturado em cinco capítulos, divididos em dois tópicos, reúne as
contribuições de diversos autores para o debate sobre a questão da violência
contra a mulher. Na sequencia desses capítulos, serão tratados os aspectos
conceituais e históricos do fenômeno, retomando a trajetória que contribuiu para a
definição do quadro atual desse campo de estudo. Mostram-se também as causas e
as implicações do problema da violência contra a mulher, considerando os
impactos de diversas naturas, dentre as quais a econômica, a social a psicológica.
Finalmente, elabora-se uma espécie de cenário das ações de enfrentamento do
fenômeno, com destaque especial para os marcos legais que contribuíram para a
constituição deste panorama.
5
2
AS PERSPECTIVAS CONCEITUAL E HISTÓRICA
2.1
DEFINIÇÃO E TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Um dos campos de maior complexidade e não consensual quanto ao tema
em estudo é o da conceituação de violência contra a mulher. Desagregar esse
fenômeno de outros tipos de violência e compreender suas características, causas
e consequências são tarefas desafiadoras, sobretudo pelas numerosas interrelações que existe entre eles, especialmente com a chamada violência social.
Sendo possível desagregá-la, muitos ainda questionam se tal fenômeno não
deveria receber a mesma atenção que as demais formas de violência, não devendo,
portanto, ser tratado como uma forma específica e particular de transgressão aos
direitos da mulher.
Além dos/as estudiosos/as da questão da violência contra a mulher,
organismos de luta pela prevenção e eliminação deste fenômeno procuraram
demarcar os seus termos, a fim de que pudessem estabelecer políticas melhor
direcionadas ao seu combate. É o caso da Organização das Nações Unidas (ONU),
que, em estudo de 2008 (apud Gadoni-Costa e Dell'Aglio, 2009, p. 152), cunhou
uma definição bastante genérica, ao afirmar que a expressão violência contra a
mulher refere-se a “todo ato de violência praticado por motivos de gênero,
dirigido contra uma mulher”. Para essa compreensão, o conceito de “mulher”
contempla quaisquer pessoas do sexo feminino de qualquer idade, incluídas as
crianças e adolescentes.
Por sua vez, os/as autores/as que discutem esse tema discorrem mais
detidamente em busca de expressões mais específicas e adequadas à sua
conceituação. Com isso, apresentam formas de designar esses atos e
comportamentos que sejam mais sensíveis para apreender a ocorrência de modo
consideravelmente mais enunciável e, com isso, de imediato visível. Tal
6
perspectiva possibilita maior facilidade de reconhecimento das situações práticas
do problema. Essa dimensão é contemplada por Gadoni-Costa e Dell'Aglio, que
citam o Dicionário da violência contra a mulher, no qual o termo “violência
contra a mulher” é definido como a
violação dos direitos humanos das mulheres e consiste no uso
da força física, psicológica ou intelectual para submetê-la,
tolher sua liberdade e impedir a manifestação de seus desejos
através de ameaças ou agressões (GADONI-COSTA E
DELL'AGLIO, 2009, p. 152).
A perspectiva que analisa a violência contra a mulher como violação dos
direitos humanos é uma das mais importantes dimensões desse problema. Entre
os/as autores/as objetos de análise nesse estudo, Schraiber dedica boa parte de sua
obra à descrição e análise do processo que levou esse fenômeno a possuir essa
forma de tratamento. A autora (2005, p. 105) concebe os direitos humanos como
sendo “direitos próprios de qualquer ser humano, independentemente das
nacionalidades ou de quaisquer outras condições, sendo, portanto, todos os seres
humanos sem distinção, os titulares desses direitos”. Com fundamento nessa
definição, surge o entendimento de que os direitos à vida, à liberdade e à
dignidade devem ser universalmente protegidos. Isso implica que os Estados não
podem violar esses direitos, devendo efetivar políticas e ações que os promovam.
Outra consequência é a sobreposição desses direitos à defesa de interesses
nacionais por parte dos países, que procuram estabelecer acordos e compromissos
para proteção dos cidadãos independentemente de ganhos ou permuta de favores
para cada país.
Como código, esses direitos notadamente surgem sem levar em conta a
perspectiva de diferenciação de gênero em sua expressão. A Declaração Universal
dos Direitos do Homem, documento adotado por diversas nações em 1948,
embora represente os direitos humanos de homens e de mulheres como um todo, é
enunciada como “direitos dos homens”. Essa codificação constitui a base de
diversos tratados, declarações, pactos e convenções internacionais – surgidos na
segundo metade do século XX –, os quais pactuam direitos de natureza geral,
destinados a todos os seres humanos; ou específica, voltados a certos atos – como
é o caso da tortura – ou de proteção a grupos populacionais particulares, como,
por exemplo, o das mulheres.
A enunciação dos direitos pautada em uma nítida diferenciação de gênero
aparece a partir dos anos 1980. Isso ocorreu num quadro histórico que será mais
7
bem explicitado no capítulo seguinte deste trabalho. Por ora, convém destacar
somente a maior visibilidade assumida pelos assuntos específicos ao feminino, na
proporção em que se avolumavam estudos e o ativismo concernentes às
reivindicações das mulheres. As demandas levantadas neste contexto foram aos
poucos sendo incorporados em instrumentos definidores de proteção legal aos
sujeitos de direitos ou de pressão aos países visando à sua efetivação. Nisso ganha
corpo as questões referentes aos chamados direitos humanos das mulheres.
De acordo com Schraiber et al , por direitos humanos das mulheres
compreendem-se aqueles que
fazem parte dos direitos universais da humanidade, reafirmando
o direito à igualdade política, ao exercício dos direitos
reprodutivos e a uma vida livre de violência (SCHRAIBER ET
AL, 2005, p. 37) .
A dimensão contemplada pelo escopo desta pesquisa implica em definir
que uma vida sem violência contempla o direito a políticas públicas que inibam a
discriminação e promovam o acesso a condições dignas e a serviços capazes de
atuar sobre as diversas esferas de promoção e manutenção desse tipo de violência.
Entretanto, segundo Hermann e Barsted (2000, p. 6), foi somente em 1993
que a Organização das Nações Unidas realizou a Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos, na qual, além de considerar que “a violência contra a mulher é
uma violação aos direitos humanos e que esta violência se baseia, principalmente,
no fato da pessoa agredida pertencer ao sexo feminino”, reconheceu esse
fenômeno como “um obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de
igualdade entre os seres humanos”.
Outro fato que aponta para o crescente enfoque concedido aos chamados
direitos humanos das mulheres – particularmente aos sexuais e aos reprodutivos –
das mulheres sucedeu-se em 1994. Nesse ano, ocorreu a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher,
também chamada Convenção de Belém do Pará. Conforme Almeida (2008, p.
161), o documento originário desse evento “estabeleceu que a violência contra a
mulher constitui violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”.
Ademais, em seu artigo primeiro, o documento define essa modalidade de
violência como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito
publico como no âmbito privado”, escreve Almeida (2008, p. 161).
8
Schraiber et al apresenta uma compreensão conceitual semelhante àquela
apontada no Dicionário anteriormente citado. Conforme a autora (2005, p. 37),
violência contra a mulher “são atos dirigidos contra a mulher que correspondem a
agressões físicas ou sua ameaça, maus tratos psicológicos e abusos ou assédios
sexuais”. Em sua obra, Schraiber et al situa o surgimento desse conceito no
quadro de luta por conquistas do chamado feminismo a partir dos anos 1970.
Nessa década, publicações sobre o tema da violência são divulgadas com estudos
que afetariam também a compreensão sobre a condição da mulher no arranjo
familiar, com a individualização da mulher sendo uma nova base de análise das
relações de gênero. Segundo a autora (2005, p. 29), “É essa individualização da
mulher que processa o movimento feminista internacional nos anos 1970, criando
a terminologia da ‘violência contra a mulher’”. Um dos desdobramentos
importantes desse processo foi que, a partir de então, o problema representado por
essa forma de violência ganhou visibilidade e veio a ser estudado no campo do
direito, à medida que os estudos passaram a apontá-lo como um problema a ser
assumido pelo poder público, com a constituição de um aparelhamento policialjudiciário crescentemente adequado ao seu enfrentamento.
As definições até então apresentadas contemplam a possibilidade de se
compreender os variados tipos de violação dos direitos da mulher de experimentar
uma vida livre da violência num conceito único, que engloba atos e
comportamentos da esfera física, sexual e psicológica. Miller (1999, p. 11-25)
classifica esses tipos de violações pela decorrência ou não de marcas perceptíveis
em suas vítimas. Para a autora, as marcas da violência não-física se proclamam no
abuso psicológico, emocional, na coerção econômica e na restrição social. Estes
são atos sutis e habituais de poder e sujeição que confundem e dificultam a
percepção até mesmo para suas vítimas, minando seu bem-estar e sua autoestima
e criando um estado de confusão e incapacidade.
Por longo tempo foi negada a natureza pública da violência contra a
mulher ligada à perspectiva das relações interpessoais de gênero, considerando-a
um ato isolado e não um problema social; e ressaltado o seu caráter privado, como
decorrência de os fatos ocorrerem preponderantemente no interior do domicílio. A
máxima de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” implica a
ideia segundo a qual esse tipo de problema – assim como a gestão de seu
tratamento – não seja tomado como uma questão de ordem pública. Para as
9
mudanças nessa compreensão, Bandeira (In: Grossi et al, 2006, p. 240) destaca a
contribuição do movimento feminista ao denunciar a violência contra a mulher.
Segundo Bandeira,
A partir do momento que houve a denúncia, deu-se visibilidade
ao problema, e concomitantemente evidenciou-se que esse não
era um problema que deveria ser tratado na esfera do privado,
mas na esfera pública. Portanto, além da legitimidade,
politizou-se a questão.
É possível supor que, em função disso ou ainda da grande recorrência de
casos, boa parte da literatura sobre o tema aborda uma espécie de relação direta do
aspecto “doméstico” com o da violência contra a mulher. Com essa perspectiva o
fato é também conhecido como violência doméstica, referindo-se “aos atos
cometidos por um membro da família ou pessoa que habite, ou tenha habitado, o
mesmo domicílio, como escrevem Schraiber et al (2005, p. 37). Ou ainda, “a
violência que ocorre entre pessoas relacionadas por sangue, casamento ou direito
consuetudinário”, caso que geralmente ocorre dentro de casa, na concepção de
Buvinic e Morrison (2000, p. 23).
Em sua maioria, as ocorrências de violência contra a mulher no espaço
doméstico apresentam a superposição de suas formas física, psicológica e social.
Entre os casos de violência física incluem-se os tapas, empurrões, sufocações,
chutes, entorses nos braços, queimaduras propositais, cárcere privado, mordidas,
bofetadas, beliscões, asfixia, ameaça com faca e tentativas de homicídio
(Morrisson e Biehl: 2000, p.23; Schraiber et al 2005, p. 37). A violência
psicológica é reconhecida nos atos de ameaças, destruição de pertences pessoais,
submissão a gritos, humilhações, privações de liberdade, danos a animais de
estimação e impedimento ao trabalho (Idem). Segundo Buvinic et al (In:
Morrisson e Biehl, 2000, p. 23), “No contexto da violência contra mulheres, a
violência psicológica é mais comum do que a física”. Miller (1999, p. 41-54) cita
e descreve a Gaslighting – “o processo premeditado de, persistentemente,
convencer uma pessoa de que ela é louca” –, a lavagem cerebral e o isolamento
como alguns dos exemplos de abuso psicológico praticado por homens contra as
mulheres, especialmente nas relações doméstico-familiares. Entre as principais
ocorrências de violência sexual, encontram-se expressões verbais ou corporais que
não são de agrado da pessoa, toques e carícias não desejados, relações sexuais
forçadas, abuso sexual e participação forçada em pornografia (Morrisson e Biehl:
2000, p.23; Schraiber et al 2005, p. 37).
10
Sobre a violência não-física, Miller (1999. P. 55 -67 ) descrevem uma
variedade de suas formas de expressão. A autora relata numerosos depoimentos
que permitem compreender seus efeitos sobre a vida das mulheres que enfrentam
tais fatos. Muitos desses efeitos decorrem do aspecto social desses abusos. “O
homem socialmente abusivo emprega diversos meios para alcançar o seu objetivo,
embora raramente se limite a um”, escreve Miller (1999, p. 59). E aponta que
esses casos se expressam, dentre outras maneiras, proibindo o contato familiar
(com pais e mães, por exemplo), proibindo o trabalho e a escola, trancando-as fora
ou dentro de casa e o isolamento, dentre outros. Conforme ainda essa autora
(1999, p. 39), “uma característica comum àqueles que praticam abusos
emocionais é a habilidade para encontrar o ponto fraco da mulher, para utilizar
como uma arma aquilo que lhes é mais importante. Em muitos casos, são os
filhos”.
Pode-se afirmar que, no domínio da discussão orientada neste trabalho, o
assassinato de mulheres configura a extrema expressão de todas as formas de
violência. Numerosos casos que derrocaram nessa situação foram pesquisados por
Blay (2008), num estudo de análise das circunstâncias do assassinato de mulheres
na passagem do século XX para o XXI no Brasil. As fontes são notícias de
imprensa, boletins de ocorrência e processos criminais, por meio das quais a
autora busca compreender a história de cada caso, examinando as relações entre
vítimas e perpetradores, a maneira como a violência se instaura e se perpetua
inclusive além da esfera doméstica e como ela repercute e é alimentada. Em suas
conclusões, Blay concebe que
a denominação ‘violência doméstica’ é insuficiente pra abarcar
todas as formas de violência e de homicídios de mulheres por
homens com quem se relacionam afetivamente (BLAY, 2008,
p. 214) .
Para uma definição mais direta dos conceitos de violência contra mulher,
violência doméstica, violência intrafamiliar e violência de gênero, o trabalho mais
detalhado foi elaborado por Almeida. Nessa obra por ela organizada, a autora
destaca a incompletude conceitual de todas as formulações, mas estuda o
fenômeno tomando a noção de violência de gênero, não sem antes analisar os prós
e contra de cada uma das categorias supracitadas. O termo por ela explorado
(2008, p. 24) “designa a produção da violência em um contexto de relações
produzidas socialmente... o seu espaço de produção é social e seu caráter é
11
relacional”. Relativamente a tal categoria termo que explora, Almeida (2008, p.
26) afirma que a sua utilização
apresenta o risco adicional1 de ter um caráter tão abrangente
que, sendo aplicável a uma multiplicidade de fenômenos e de
discriminações, deixe escapar as particularidades das relações
de exploração e dominação que exercem nas relações intimas
.... Não obstante, permite entender a violência no quadro das
desigualdades de gênero (ALMEIDA, 2008, p. 26).
O estudo ora em desenvolvimento trabalha com o conceito de violência
contra a mulher. Portanto, é apropriado que sejam expostas as críticas
apresentadas por Almeida a essa formulação. De acordo com a autora,
Violência contra a mulher enfatiza o alvo contra o qual a
violência é dirigida. É uma violência que não tem sujeito, só
objeto; acentua o lugar da vítima, além de sugerir a
unilateralidade do ato. Não se insere, portanto, em um contexto
relacional (ALMEIDA, 2008, p. 25)
Ademais, a autora (apud Gregori; Saffioti e Almeida; Almeida, 2008, p.
24) relembra o risco indicado pela literatura especializada de o uso desse conceito,
“resvalar para uma perspectiva vitimista (...), levando a concepções de
passividade e imobilismo”. Outro perigo contrário a esse seria asseverar sobre a
impossibilidade de isolar a mulher como categoria descritiva e como alvo de
estudo, análise e práticas sociais. Ainda nesse livro, Bandeira (In: Grossi et al,
2006, p. 241) expõe outra crítica ao conceito de violência contra mulher. Escreve
Bandeira que tal categoria “é problemática porque não possibilita pensar fora de
dicotomias”. A despeito dessas objeções, Almeida (2008, p. 24) ressalta fatores
atuantes em prol dessa definição, sendo um deles o argumento de que é a
categoria violência contra a mulher “a única a ressaltar de forma inequívoca a
vítima preferencial de determinada modalidade e violência”.
Noutra de suas obras, Almeida apresentou uma perspectiva distinta para
definir o fenômeno em comento. Com o fito de politizar tal fato, a autora (1998, p.
1), trabalha com o termo “femicídio” – expressão que dá nome à obra –,
entendendo que ele “designa o caráter sexista dos crimes conjugais,
desmascarando a aparente neutralidade dos termos homicídio e assassinato”. Na
ótica apresentada pela autora, o fenômeno em estudo integra uma política sexual
1
Outras desvantagens relativas ao conceito de violência de gênero são citadas pela autora. Uma
delas diz respeito a sua suposta neutralidade, e, logo, facilitada assimilação no meio acadêmico.
Segundo Almeida (apud Louis, 2007, p. 24), o que motiva essa suposição é o crédito de que o uso
dessa formulação “deixa intocados os fundamentos da dominação patriarcal, contribuindo para a
análise das relações de poder entre os sexos em proveito da neutralidade quanto aos mecanismos
de opressão”
12
de apropriação das mulheres. O aspecto político dessa visão ocorre à medida que
Almeida (1998, p. 1) estuda processos criminais para avaliar a gestão pública da
violência de gênero em curso no Brasil e estabelece analogias entre esse tipo
violência e a tortura política, afirmando que ambas, dentre outros aspectos
comuns, ferem direitos humanos.
Violência contra a mulher, doméstica, familiar, de gênero. Como visto,
não há consenso quanto às definições. Há quem destaque essa amplitude de
conceitos para o problema em questão como algo positivo. Este é o caso, por
exemplo, de Bandeira (In: Grossi et al, 2006, p. 241), ao afirmar que “por um certo
olhar, acho bom, pois,(sic) pode sempre dinamizar o conceito”.
Do até então exposto, já se pode afirmar que o/a estudioso/a do fenômeno
em avento deve se atentar a essas diferenciações conceituais. Pode ser notado que
esses conceitos adotam abordagens estreitamente ligadas ao campo das relações
interpesais. Não se deve perder vista, porém, que a violência feminina possui
muitos outros aspectos. Ela se faz presente, dentre outras situações, nos espaços
laboral e institucional, nas imagens midiáticas, nas instituições jurídicas e nos
estupros cometidos em ocasiões de guerras. As limitações deste estudo impedem
que sejam tratadas e consideradas todas as dimensões que perpassam e
fundamentam essas variadas formas de conceituar o(s) tipo(s) de violência ora
estudado. Entretanto, ao utilizar a noção de violência contra a mulher, esse
trabalho não perde de vista os aspectos evidenciados nos outros tipos de
formulações. Não há uma justificativa única e específica para a adoção desse
conceito ao longo deste estudo, e isso, ao que parece, não fere o seu objetivo
central, qual seja, o de promover uma revisão da produção bibliográfica sobre o
tema da violência contra a mulher.
2.2
OS CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E O DEBATE
NO CONTEXTO ATUAL
Os caminhos que fizeram com que a questão da violência contra a mulher
assumisse relevância no momento atual são diversos. Por uma via, essa
13
importância do tema ocorre como desdobramento do notável espaço que tem
encontrado nas discussões cotidianas dos diversos meios de comunicação e da
sociedade de maneira geral. Esse cenário se estruturou a partir dos trabalhos de
diversos atores históricos que, ao longo das últimas décadas, ocuparam variados
espaços de lutas – como universidades e movimentos sociais –, fortalecendo e
dando corpo às discussões sobre as questões referentes a essa modalidade de
violência. A partir de Grossi et al (2006, p. 369-381), ora podem ser citados
exemplos de autores/as como Ana Flávia Lucas d’Oliveira, Analba Brazão
Teixeira, Bárbara Musumeci Soares, Carmem Simone Grilo Diniz, Cláudia
Fonseca, Climene Laura de Camargo, Débora Diniz, Estela Aquino, Eva Blay,
Flávia de Mattos Motta, Guita Grin Debert, Heleiet Saffoti, Juliana Cavilha
Mendes, Karla Galvão Adrião, Lia Zanotta Machado, Lilia Blima Schraiber,
Lourdes Bandeira, Lucila Scavone, Maria Filomena Gregori, Maria do Rosário de
Menezes, Normélia Maria Freire Diniz, Regina Lúcia Mendonça Lopes, Russel
Parry Scott, Silvia Ramos e Simone Becker, que serão tratadas direta ou
indiretamente ao longo deste estudo, uma vez que escrevem, organizam ou
participam da escrita das obras para tanto pesquisadas.
Um panorama mais específico e exato da violência contra a mulher no
Brasil ainda está por se construir. Sobre este fenômeno é possível encontrar dados
e informações direta ou esparsamente apresentados em um ou em outro
levantamento, como, por exemplo, naqueles do Instituto Avon e do Instituto Ipsos
ou no Mapa da Violência a serem apresentados a seguir. Os índices neles
apontados ou abordam apenas algumas das perspectivas ou trabalham com a
percepção das pessoas sobre o problema. Dentre as dificuldades ou empecilhos à
construção de um levantamento mais sistematizado e abrangente pode ser
destacado o fato de que um número expressivo dos casos de violência contra
mulher não ser denunciados às autoridades.
Tal ocultação ocorreria, por exemplo, entre as camadas socialmente mais
privilegiadas, que optam por um encaminhamento diferente ao problema, como
pode ser notado no boletim do SEADE (1987, p. 65); ou na obra de Blay (2008, p.
10; 91). Ou ainda porque, pelas dificuldades de encontrar a rota capaz de tirá-las
da relação violenta ou não se disporem de meios viáveis a fazê-lo, como debatido
por Schareiber et al (2005, p. 122-161 passim), muitas mulheres acabam
ocultando a situação de violência a que estão submetidas. “Uma porcentagem
14
relativamente pequena das mulheres agredidas denuncia o crime ou busca alguma
outra forma de ajuda”, escreve Schareiber et al (2005, p. 140). Com fundamento
em dados e em informações, a autora compara um estudo realizado sobre a Zona
da Mata pernambucana com outro sobre a cidade de São Paulo, e afirma que,
A busca mais ativa de instituições em São Paulo parece deverse, em grande parte, a uma maior facilidade de acesso nessa
cidade. Em são Paulo, à época da pesquisa (2002), havia nove
DDMs (Delegacia de Defesa das Mulheres). Na Zona da Mata
não havia nenhuma nos 15 municípios pesquisados. As
mulheres precisariam deslocar-se até Recife para utilizar esse
equipamento.
Estudo do Ministério da Saúde (BRASIL, 2012, p. 126-134) – com certa
sistematização correlacional – intitulado “Impacto da violência na saúde dos
brasileiros” também expõe indicadores desse ocultamento da questão da violência
por parte de suas vítimas. A base de boa parte dos dados é uma pesquisa de 2004
da Fundação Perseu Abramo, com 2.502 mulheres em 187 municípios de 24
estados das cinco macrorregiões brasileiras, na qual (2012, p. 126) “constatou-se,
também, que as mulheres raramente fazem denúncias públicas e, em quase todos
os casos de violência, mais de 50% não procuram ajuda”.
Mesmo que as ocorrências tenham sido denunciadas, falta ainda ao poder
público um trabalho de gerenciamento das informações necessário ao adequado
processo de tomada de decisões. Um esforço sustentado e coordenado para o
controle e prevenção da violência contra a mulher requer que a questão seja
incorporada ao sistema estatístico do país, e que os dados e informações sejam
coligidos sob diversos níveis – nacional e regional, por exemplo – e perspectivas –
tipos de ações violentas: física, psicológica, moral e sexual, por exemplo. Blay
(2008, p. 214) aponta as dificuldades resultantes da carência de uma melhor
sistematização dos dados e informações sobre a questão da violência contra a
mulher. Dentre tais dificuldades a autora descreve a impossibilidade de
estabelecer certas relações úteis à compreensão do fenômeno; e de encontrar as
possíveis correlações entre os atos violentos e julgamento dos perpetradores
desses atos.
Não obstante essas ressalvas, os números apontados conduzem à
compreensão de que a situação é grave e de que, pelas implicações que possui,
demanda considerada atenção. Heilborn et al (2010, p. 174) cita o caso de uma
pesquisa histórica de âmbito nacional com dados sobre vitimização. Datada de
15
1988, a investigação constitui um suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílio e contempla algumas perguntas sobre agressão física. As
constatações são de que, então, 63% dos casos de agressão física no espaço
doméstico tinham a mulher como vítima. A autora aponta ainda uma pesquisa
internacional realizada pela Sociedade Mundial de Vitimologia, pela qual foi
verificado “que no Brasil 23% de todas as mulheres estão sujeitas à violência
doméstica”2.
Como pode ser observado, o primeiro dos apontamentos limita-se a tratar
dos casos de agressão, configurando, pois num tipo de levantamento limitado. O
segundo, por sua vez, não informa o período em que a pesquisa foi realizada, além
de abranger apenas a violência contra a mulher em sua dimensão doméstica.
Ainda assim trazem números que revelam o caráter assustador do problema. Com
base nesses percentuais, e, sabendo-se que, segundo o Censo 2010 – com dados
divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2011–, a
população brasileira é formada por cerca de 98 milhões de mulheres (BRASIL,
2012), é possível afirmar que o número de mulheres brasileiras sujeitas a tal tipo
de violência pode ser estimado em milhões. Essa extensão do problema pode ser
encontrada nos dados do já citado estudo do Ministério da Saúde, revelando que
(2012, p. 126), “A partir dos dados, a pesquisa fez uma projeção da taxa de
espancamento (11%) para o universo investigado (61,5 milhões), indicando que
pelo menos 6,8 milhões de mulheres foram espancadas”.
Um dos poucos casos em que é possível encontrar uma razoável
sistematização dos dados relativos à violência contra a mulher é observado no
Anuário das Mulheres Brasileiras, elaborado em 2011 pelo Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Nesse estudo do DIEESE
(2011, p. 276-285), há um pequeno detalhamento que permite avaliar o
dimensionamento do problema em termos, por exemplo, da distribuição das
pessoas que foram vítimas de agressão física, por sexo, segundo local da agressão
no Brasil e nas grandes regiões (no ano de 2009); da taxa e razão de homicídios
por sexo, segundo o local de ocorrência da morte e estado civil no Brasil (também
em 2009) e do número de registros de informação na Central de Atendimento à
Mulher - Ligue 180 sobre a Lei Maria da Penha (entre os anos de 2007 e 2010).
2
Grifo no original.
16
Já no ano de 2012, foi divulgada uma pesquisa com o objetivo de traçar
um panorama da evolução do homicídio de mulheres entre 1980 e 2010. Com o
nome Mapa da Violência 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil, a pesquisa foi
feita com apoio da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais - FLACSO - e
do Instituto Sangari, e coordenada pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz. É parte
de um estudo do próprio autor, intitulado Mapa da Violência 2012: os Novos
Padrões da Violência Homicida no Brasil. Um de seus grandes feitos é o de
apontar o grau de maiores ocorrência desses crimes por estados e por municípios
do país. Dentre os dados e informações destacáveis, pode-se apontar (2012, p. 1617) o fato de Brasil ter o sétimo maior índice de homicídios de mulheres entre 84
países. A base dessa colocação, segundo ainda a pesquisa, é a taxa do que o
estudo chama de “feminicídio” no Brasil, que ficou em torno de 4,4 vítimas para
cada 100 mil mulheres.
Do ponto de vista da percepção das pessoas quanto ao fenômeno da
violência contra a mulher, uma ampla pesquisa foi realizada pelo Instituto Avon e
pelo Instituto Ipsos (2012) e divulgada no ano de 20113. Alguns dados deste
estudo serão ainda analisados ao longo deste trabalho. Em termos da recorrência
das situações de violência contra a mulher, vale destacar o fato de que 6 em cada
10 entrevistados conhecem alguma mulher que sofreu violência doméstica; que
59% dos entrevistados declararam conhecer alguma mulher que já sofreu agressão
física ou psicológica; e que 27% das mulheres declaram ter sofrido agressão
grave.
Outros números mais esparsos, mas mais direcionados ajudam a entender a
dimensão deste fenômeno. Segundo dados e informações levantadados a partir de
estudo realizado pelo Departamento de Informática do SUS – Datasus (2012), a
cada 4 (quatro) minutos uma mulher é agredida em seu próprio lar, por uma
pessoa com quem mantém uma relação de afeto. Conforme o mesmo
apontamento, as estatísticas disponíveis e os registros nas Delegacias
Especializadas de Crimes contra a Mulher demonstram que 70% dos incidentes
acontecem dentro de casa e que o agressor é o próprio marido ou companheiro.
Mais de 40% das violências resultam em lesões corporais graves decorrentes de
3 A pesquisa deve ser considerada no contexto da campanha Fale sem Medo – Não à
Violência. A campanha procura compreender as razões daquilo que representa uma das
maiores dificuldades da pessoa que enfrenta a violência: falar a respeito.
17
socos,
tapas,
chutes,
amarramentos,
queimaduras,
espancamentos
e
estrangulamentos.
Descrições assim caracterizadas e dados como os da pesquisa acima
sinalizam o estado atual da questão, em que o debate sobre o problema da
violência contra a mulher é ampliado tanto na esfera do poder público como na de
setores representativos da sociedade civil. Neste sentido, como será discutido no
próximo capítulo, é evidenciada a preocupação do poder público em promover
certas políticas públicas para enfrentar o problema; o reforço dessas ações por
parte de instituições organizadas não governamentais; e a atuação da mídia quer
na exposição e na denúncia dos casos de violência contra a mulher, ou mesmo no
convite à sociedade como um todo a desempenhar o papel de agente de combate
desse fenômeno.
Apesar dessa configuração contextual presente favorável à ampliação do
debate, uma breve revisão bibliográfica possibilita o entendimento de que a
historicidade do tema da violência contra a mulher pode ser encontrada em um
passado bastante remoto. De acordo com Blay (2008, p. 33), “homicídios de
mulheres fazem parte da realidade e do imaginário brasileiro há séculos, como
mostra a variada literatura de caráter jurídico, histórico e sociológico”. Para a
autora (2008, p. 215), “a violência contra a mulher está enraizada na cultura
brasileira e vem sendo denunciado há mais de um século”. Já no começo do
século XX, escritoras, jornalistas, intelectuais e feministas que dispunham de
meios como jornais e livros conduziam os questionamentos à realidade de
violência perpetrada contra as mulheres. E a própria literatura não escapou de
apresentar esse fenômeno, por exemplo, com os chamados “crimes de amor” ou
“assassinatos por amor”, bem retratado na obra de João do Rio (2007, p. 83), A
alma encantadora das ruas.
Todavia, é possível afirmar que a partir das três últimas décadas o assunto
vem à tona de uma forma específica. Na medida em que se ampliam o debate e a
investigação em torno desse fenômeno nos mais variados campos do saber, tal
especificidade vai se constituindo, porquanto nesta fase o tema passa a ser
pensado em si mesmo, como uma questão dotada de aspectos específicos, os quais
merecem análise e estratégias de ações próprias e não como um fato meramente
integrante da violência comumente considerada. Numa perspectiva de mão dupla,
pesquisadores de áreas como psicologia, direito, serviço social, enfermagem,
18
gestão de políticas públicas, dentre outras, se debruçam sobre o assunto com
vistas a entender os aspectos que o compõem e, na medida dessa atuação, acabam
por definir as proporções que a questão da violência contra a mulher passa a
assumir.
O quadro que assim se configura estende suas raízes ao movimento
feminista, mais diretamente ao chamado “feminismo de segunda onda”4, por
assim dizer, no conjunto das lutas e conquistas remontantes a essa fase. É sabido
que, como um todo, esse movimento buscou desconstruir concepções culturais,
comportamentos e práticas sociais e possibilitou a desnaturalização do modo
como se constituem as relações entre homens e mulheres em variadas sociedades
e que, ao questionar e discutir determinadas assimetrias que aí se estabelecem,
contribuiu consideravelmente na redefinição dos arranjos de gênero delas
decorrentes.
O feminismo de primeira onda e o feminismo de segunda onda são
apontados como sendo duas fases em que se distinguiram as marcas e as bandeiras
levantadas no seio da organização de mulheres. O feminismo de segunda onda
possui foco no aspecto socialmente construído das concepções do feminino e do
masculino e é identificado a partir da década de 1960. Constituiu uma fase
importante para a compreensão do conceito de gênero como categoria socialmente
construída. Segundo Heilborn et al (2010, p. 195), esse foi um período de
consolidação e de legitimação do feminismo como prática política e proposta
filosófica de compreensão do mundo com notáveis impactos sobre diversas
esferas do saber científico. Por um lado, esse foi um contexto reconhecidamente
marcado pelo tema da luta de classe e da necessidade de transformação das
relações sociais. Por outro, fortaleceu-se o ativismo em termos de demandas das
mulheres, repercutindo-se na ideia de que os direitos humanos das mulheres
constituem direitos humanos universais. Conforme a autora,
A frase clássica de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher,
torna-se mulher”, expressou a ideia básica do feminismo: a
desnaturalização do ser mulher. Com a categoria gênero,
4
Fundamentalmente para fins didáticos, o movimento feminista tem sido divido em “ondas”
distintas conforme o momento histórico e a pauta de lutas. Segundo Heilborn et al (2010, p. 174)
A primeira delas remonta ao século XIX, em torno da luta pelo sufrágio universal e da extensão de
outros direitos advindos de revoluções como a Francesa de 1789. Nesse processo, destacaram-se as
lutas e as conquistas pelo acesso à educação de nível médio e superior e ao trabalho remunerado e
pelo direito de votar e ser votada. Destaca-se nesse sentido o trabalho de Simone de Beauvoir de
questionamento das raízes culturais da desigualdade entre mulheres e homens em favor destes.
19
enfatizou-se a construção social da diferença sexual. Não se
tratava mais de abordar o poder masculino submetendo às
mulheres – uma espécie de guerra dos sexos – mas pensar como
está organizada na sociedade a diferença sexual, que se baseia
no binarismo, associando o poder ao polo masculino e a
submissão ao polo feminino, como se inscritos na sua própria
natureza. (HEILBORN ET AL, 2010, p. 195).
A demarcação da categoria de gênero a partir das contribuições do
movimento feminista nos anos 1970, referindo-se à maneira de representação
sobre as diferenças atribuídas ao ser homem e ao ser mulher construídas pela
sociedade e que produzem ou reforçam relações de poder foi de importância
destacável. De acordo com Heilborn et al, por considerar o caráter social
naturalizado da diferença sexual, a emergência do conceito de gênero implicou a
ruptura radical entre a noção biológica de sexo e a noção social de gênero.
O gênero passou a ser analisado enquanto fenômeno histórico, determinado e
produzido ao longo do tempo. Ao se considerar o caráter construído da
dimensão de gênero, o feminismo de segunda onda também permitiu a
concepção da pluralidade dos femininos e masculinos. Neste sentido,
potencializou as articulações de feministas e a interseção com múltiplas
agendas, como o combate ao racismo e à heteronormatividade (HEILBORN
ET AL, 2010, p. 48).
Barsted (In: Almeida, 2008, p. 119-137) debate o papel de importante
interlocutor representado pelo movimento feminista brasileiro diante do Poder
Legislativo desde a década de 1970, e o impacto do movimento internacional de
mulheres nas Nações Unidas e em outras instituições internacionais. Para a autora,
essas articulações e demandas possuem a importância de terem decorrido em
notáveis resultados em termos de conquistas no campo das políticas públicas
contra a violência contra a mulher. Além disso, resultaram em significativos
tratados, convenções e conferências que denunciaram a violação dos direitos
humanos das mulheres e repercutiram positivamente na legislação de diversos
países, nos quais se inclui o Brasil. O capítulo final deste trabalho apontará
algumas das formas em que se deram as repercussões resultantes dessas
articulações promovidas pelo movimento feminista especialmente com o Poder
Legislativo brasileiro.
Na avaliação de Heilborn et al (2010, p. 174), as conquistas decorrentes da
organização de mulheres puderam ser sentidas principalmente a partir da década
20
de 1980, quando o Estado brasileiro passou a efetivar algumas respostas às
demandas formuladas pelo movimento feminista.
Algumas questões abordadas por estes programas (como o
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – PAISM,
em 1984), seminários, conferências etc. tornaram-se polos de
aglutinação ou bandeiras comuns – como a denúncia da
violência doméstica tornaram-se polos de aglutinação ou
bandeiras comuns – como a denúncia da violência doméstica e
o combate a todas as formas de violência contra as mulheres, a
luta antirracista, assim como a luta pela saúde, os direitos
sexuais e reprodutivos e a descriminalização do aborto.
(HEILBORN ET AL, 2010, p. 174).
Por razões como essas, o movimento feminista brasileiro é apontado como
uma importante força social para despertar a consciência das mulheres para os
seus problemas e para questões que as cercam e as afetam direta e indiretamente.
Entretanto, há certa diferença nos apontamentos dos/as autores/as quanto à
inserção do tema da violência contra a mulher no debate liderado pelo movimento
feminista. Para Machado (In: Grossi et al, 2006, p. 179-82), o movimento
feminista brasileiro destacou a questão da violência, por meio, por exemplo, do
duro combate aos homicídios contra mulheres e a absolvição dos agressores. A
autora destaca que “No Brasil, o grande tema específico agregador em torno dos
direitos das mulheres, (sic) é a violência”. E compara esse quadro com aquele
constituído em países como a França, onde a abordagem prevalecente foi aquela
relativa aos direitos individuais e aos direitos sexuais propriamente ditos. No caso
brasileiro, esse quadro foi se reorientando nas décadas seguintes, como aponta
Machado:
Talvez uma das especificidades do movimento feminista
brasileiro seja a permanência da questão da violência na pauta
política e, por outro lado, ao contrário, a continuação do
exercício da violência na pauta cotidiana brasileira. Bem depois
de criadas as Delegacias Especializadas, e recentemente, o
movimento feminista propõe a mudança na escuta judiciária:
novos procedimentos, mais proteção à vitima e criação de varas
especializadas para a violência doméstica contra as mulheres.
(GROSSI ET AL, 2010, p. 48).
De acordo com Schraiber et al (2005, p. 113), não obstante trazer à tona
instrumentos que reafirmavam o direito à igualdade política e ao exercício dos
direitos reprodutivos, muitas questões específicas relativas ao feminino
permaneciam invisibilisadas. Como escreve a autora, “o direito à não interferência
do Estado no lar e na família não considerou, então, a violência doméstica como
21
questão”. Por essa compreensão, a violência cotidiana que mulheres sofrem no
espaço doméstico ficou invisível.
Tal entendimento coaduna com aquele – ou pode ser analisado à luz
daquele – apresentado por Heilborn et al (2010, p. 196-8), que destaca a ideia de
que, já no conjunto dos temas da luta de classe e de modificação das relações
sociais permeados pela perspectiva marxista, foram levantados questionamentos à
busca por mudanças com enfoque exclusivo nas desigualdades de classe. Tratarse-ia, pois, de uma instante em que as demandas específicas das mulheres tinham
representatividade menor que aquelas ligadas aos chamados interesses gerais
contestatórios à ordem social então estabelecida. Com isso, os elementos
fundamentais das demandas abordam aspectos mais amplos, negligenciando
aqueles mais ligados ao plano das relações domésticas. Neste sentido, mesmo ao
longo da década de 1970, diferentes correntes e ideologias políticas do feminismo
brasileiro se envolveram na contestação ao regime autoritário em vigor, e a
questão da defesa da autonomia das mulheres diante dos homens, da família e do
Estado basicamente tangenciou a pauta de reivindicações desses grupos, em geral
marcadas pela luta para a construção de uma sociedade democrática, senão pelo
combate à tortura e outras formas de opressão.
Como visto na primeira parte deste capítulo, a própria terminologia
“violência contra a mulher” é um dos desdobramentos importantes desse
processo de resistência e denúncias operado pelo movimento feminista. A partir
das formulações teóricas daí emergentes, a condição da mulher no arranjo familiar
existente passa a ser analisada e as questões das relações de gênero passam a ser
tomadas em conta com base nos conflitos e violência. Para Heilborn et al (2010,
p. 29), a expressão acima destacada surge como consequência da individualização
da mulher processada pelo movimento feminista nos anos 1970.
O apontamento de Heilborn et al (2010, p. 196-8), como a concepção
apresentada por Schraiber et al (2005, p. 113), notadamente dá ênfase à chamada
violência doméstica. Por outro lado é possível assinalar que outras formas de
violências contra a mulher foram condenadas na luta desse período. Afirmação de
Blay (2008, p. 214) destaca o papel do feminismo contemporâneo na denúncia,
desde a década de 1970, da violência que atinge física, psicológica e moralmente a
mulher – que também engloba aquela praticada no âmbito doméstico ou dela se
compõe.
22
Embora sejam diferentes os caminhos que vieram a fortalecer o interesse
pelo campo de pesquisa sobre a violência contra a mulher, um dos mais notórios é
aquele formado por militantes feministas. Grossi et al (2006, p. 13) afirma que tal
militância buscara “entender academicamente aquilo que os discursos militantes
não davam mais conta”. À medida que esse processo foi se intensificando,
configurou-se um cenário favorável ao fortalecimento do debate em torno das
questões distintas que envolvem a temática da violência contra a mulher. Tem-se
assim o contexto atual de crescente interesse pelo tema, como foi apresentado na
parte inicial deste capítulo, e que foram ou ainda serão distintamente tratados no
decorrer de todo este trabalho.
2.3
CAUSALIDADES OU AS MÚLTIPLAS BASES DA VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER
Outro ponto notadamente discutido na bibliografia considerada neste
levantamento diz respeito à busca de um nexo explicativo para o fenômeno da
violência contra a mulher. O problema possui numerosos componentes
constituintes e sustentadores, e a compreensão prevalecente é de que a atuação ou
intervenção sobre eles exige a explicitação de suas causalidades. Trata-se de
reconhecer
que há
múltiplas
motivações definindo
as práticas e os
comportamentos violentos, mas que é possível apreender fatores comuns dando
pretexto às suas variadas maneiras de expressão. É importante observar que as
fundamentações estabelecidas pelos/as autores/as pesquisados/as não se baseiam
simplesmente numa perspectiva do tipo causa-efeito. Entende-se, sim, que há
algumas raízes às quais o problema se vincula, e que é possível e viável
estabelecer uma base elucidativa que possa desvelar as múltiplas correlações que
o envolve.
Em boa medida, a produção bibliográfica explora esse aspecto como a
maneira mais atualizada de se ampliar o foco da discussão em torno da violência
23
contra as mulheres, qual seja, compreendendo-a como uma das formas de
violência de gênero. Com já fundamentado na parte anterior deste trabalho, a
expressão gênero possui união direta com o chamado feminismo e se vincula,
conceitual e politicamente, com o movimento de mulheres contra a secular
opressão patriarcal que tem limitado para as mulheres o alcance às plenas
condições de equidade em diversas feições da vida humana.
Categoria demarcada pelo pensamento feminista dos anos 1970, gênero se
refere à maneira de representação sobre as diferenças atribuídas ao ser homem e
ao ser mulher construídas pela sociedade, e que produzem ou reforçam relações de
poder. Publicação da Fundação SEADE (1987, p. 2) indica que “cada vez mais
consolida-se a convicção de que é no plano das relações assimétricas de poder
entre homem e mulher que devem ser buscados os fundamentos que produzem e
reproduzem esta forma de violência observada (contra a mulher)”.
Embora não deva ser perdida de vista a crítica de Almeida – apontada no
primeiro capítulo deste trabalho – quanto à incompletude de uma análise
totalmente centrada na categoria de gênero, é adequado citar o escrito pela autora,
para quem (2007, p. 27) “A violência de gênero só se sustenta em um quadro de
desigualdades de gênero”5. Desenvolvido, esse raciocínio significa que essas
desigualdades baseiam-se e fertilizam-se a partir da matriz hegemônica de gênero.
Para Almeida (2007, p. 27) “Isto é, de concepções dominantes de feminilidade e
masculinidade, que vão se configurando a partir de disputas simbólicas e
materiais, processadas, dentre outros espaços, nas instituições cuja funcionalidade
no processo de reprodução social é inconteste”. Como exemplos são citados os
casos marcantes da família, da escola, da igreja e dos meios de comunicação.
Essa explicação que estabelece uma relação direta entre poder e
masculinidade tendo como matriz hegemônica as relações sociais de gênero é
evidenciada também no estudo de Blay. Os assassinatos por ela pesquisados têm
em sua ascendência uma relação direta entre poder e masculinidade, a qual se
desenvolve na matriz relacional hegemônica das relações sociais de gênero. É essa
a lógica das equações causais quer do ponto de vista material ou simbólico que se
desencadeiam nos assassinatos de mulheres analisados pela autora, e que permeia
5
Grifo no orginal.
24
os componentes circunstanciais e situacionais da motivação masculina para
cometê-los. Nestes termos,
São as diferenças culturais e históricas criadas e prescritas para
os homens e mulheres que mascaram e disfarçam o uso de
práticas violentas, misóginas e de muitas expressões de ódio e
de repulsa contra as mulheres, legitimando-as como sendo um
direito masculino e, ao mesmo tempo, honrando os homens em
sua virilidade (BLAY, 2008, p. 9).
Também a obra escrita por Herman (2008, p. 1) possui uma parte
totalmente dedicada a explorar as vinculações entre relações de gênero e
desigualdade entre homens e mulheres. A autora destaca a inter-relação entre os
aspectos biológicos e sociais para a constituição e manutenção das assimetrias
originadas dessa relação. A partir especialmente da leitura de Richard Dawkins,
Hermann fundamenta o entendimento de que as desigualdades naturais são
geradas a partir de uma base biológica.
O desequilíbrio entre masculino e feminino não é um fenômeno
exclusivamente social; tem origem biológica. Resulta
primitivamente de diferenças entre os sexos, construídas e
demarcadas pela evolução e não-exclusivas da raça humana
(HERMANN, 2008, p. 23).
Somando-se a isso, a “exploração da fêmea” (2008, p. 25) possui também
uma componente que se liga ao seu maior investimento genético em termos de
funções reprodutivas entre as espécies. Disso decorre simplesmente o fato de que
(2008, p. 25) “é o fundamento genético-biológico que, na espécie humana, deu
origem às diferenças de socialização, convivência e atribuições entre homens e
mulheres, denominadas diferenças de gênero”.
A partir dessa fundamentação a autora debate temáticas como sexualidade
feminina e preconceito, o chamado paradigma cartesiano e o racionalismo
masculino, emergência e vigência do patriarcado e relações de poder e dominação
patriarcal. De uma forma ou de outra esses aspectos se fazem presentes e
fundamentam, isolada ou conjugadamente, os pilares explicativos que os/as
autores/as apresentam para o fenômeno em estudo. Não há como negar nessa
discussão, porém, o peso assumido pela questão do chamado patriarcado como
um dos elementos considerados mais presentes na sustentação das relações
assimétricas de gênero de que decorrem as manifestações diversas de violência
contra a mulher.
Com mais ou menos detalhes, a conceituação de patriarcado é trabalhada
em praticamente todas as obras pesquisadas neste estudo. De forma simplificada,
25
ele se refere “às estruturas de poder nas quais a dominação masculina é exercida”,
como escreve Almeida (1998, p. 156). Nesta sua obra, a autora traça uma
discussão que explora profundamente as críticas teóricas contra esse modelo
explicativo da distribuição diferencial de poder. Uma das críticas resgatadas
aponta que a “teoria do patriarcado” apoia-se (1998, p. 156) “no entendimento de
que a dominação da mulher se dá através (sic) da apropriação do seu trabalho
reprodutivo e da sua reificação sexual”.
De fato, é essa a perspectiva que pode ser encontrada no trabalho de
Hermann (2008, p. 48-58), na qual a autora resume o histórico da passagem da
estrutura de sociedade primitivamente pautada no matriarcalismo para outra
predominantemente patriarcal. O protagonismo feminino primordialmente
matricêntrica das primeiras culturas conhecidas – e desvelado nos estudos
feministas partir da década de 1960 – se atrelava a dois fatores distintos,
notadamente ligados à crítica retomada por Almeida acima indicada. Segundo
Herman (2008, p. 49),
O primeiro era a forma de subsistência, centrada na coleta de
frutos e outros vegetais e na caça de pequenos animais,
atividades que não exigiam força física e agressividade. O
segundo era o poder gerador de vida da mulher (HERMANN,
2008, p. 49).
Nessa fase de desenvolvimento da humanindade, nem homens nem
mulheres sabiam do papel masculino na procriação. Isso começaria a mudar,
conforme a autora (2008, p. 49), há aproximadamente vinte mil anos,
quando os homens descobriram a sua função reprodutora,
intensificou-se a afirmação do patriarcado. (...) A dominação
tornou-se predominante: o homem passou a dominar; e a
mulher, a ser dominada. (...) Estava plantada a semente da
violência no seio das relações de gênero6 . (HERMANN, 2008,
p. 49).
Poder-se-ia aqui estender numerosas páginas descrevendo como cada
autor/a define os embasamentos desse nexo entre relações de poder e violência
contra a mulher – assim como as críticas a ele apresentadas – mas isso escapa aos
objetivos deste trabalho. É fundamental destacar, entretanto, que o fenômeno da
violência em comento possui sua explicação ligada não ao patriarcado em si, mas
à crise pela qual esse modelo de organização social vem passando.
Esse ponto é tocado diretamente por Schraiber et al (2005, p. 75), que
assim escreve: “Partimos da hipótese de que a violência entre homens e mulheres
6
Grifo nosso.
26
reflete rupturas ou fissuras nos tradicionais padrões culturais de base patriarcal
presente na maioria das sociedades”. Como seu foco é mais voltado para a
violência doméstica, a autora trabalha com a noção de “casa-família”, para
expressar o espaço das relações de parentesco. Essa unidade onde se localiza a
família seria uma das mais afetadas pelas transformações supramencionadas,
fundamentalmente por ser também o lócus privilegiado de composição e
expressão dos padrões culturais patriarcais.
No desenvolvimento histórico atual da sociedade, processos de ordem
econômica e social infundem novos valores e padrões de comportamento nas
relações afetivo-conjugais. Isso tem levado ao questionamento ou rompimento
prático com o controle e domínio da mulher pelo homem baseado no maior poder
conferido aos homens pela sociedade. Schraiber et al bem explora esse panorama,
revelando os aspectos dominantes do debate defensor da existência de uma crise
sem precedente na instituição família. Critica (2005, p. 89), entretanto, a ideia de
que a violência contra a mulher como produto direto ou destino certo das
mudanças processadas nas casas-famílias. Defende ainda um repensar sobre a
noção de família e de relações familiares, desmistificando sua padronização,
linearidade e fixidez. Não obstante essa consideração, defende (2005, p. 89) que
não deve haver impedimento para que “todas essas mudanças trazem profundas
alterações nas relações entre homens e mulheres e que estas podem, sob outras
dinâmicas, influenciar o surgimento de episódios e contextos de agressões e
abusos”.
Os desafios colocados pelo novo panorama de questionamentos dos
paradigmas referentes às assimetrias culturais e históricas prescritas para homens
e mulheres estão também na causa dos assassinatos de mulheres apontadas por
Blay (2008). A autora avalia que as práticas e pensamentos masculinos ainda se
mostram refratários à aceitação e efetivação de novas relações sociais entre
homens e mulheres. Em função disso os muitos exemplos trazidos pela autora em
sua pesquisa
evidenciam o quanto ainda os chamados ‘crimes de legitima
defesa da honra respondem pela expressão do ódio à mulher,
seja pela perda de poder e de controle sobre o corpo feminino,
seja pelo uso que a mulher possa fazer de seu corpo desafiando
os papeis, desempenhos e normas sociais que lhe foram
prescritos, seja nas relações de conjugalidade, seja na condição
de pessoa ou de indivíduo (BLAY, 2008, P. 10).
27
Aos/às estudiosos/as do assunto, requer atenção esse entendimento de que
a violência contra a mulher possui estreito vínculo com esse contexto de
metamorfoses e de redefinição dos padrões de socialização fundados na lógica
patriarcal. Esse é o convite que está contido na noção de Almeida (1998, p. 162),
segundo a qual, “Como não se demonstrou historicamente que o patriarcado,
como estrutura de exploração-dominação da mulher, tenha sido superado,
descartá-lo como paradigma significa negar as bases e a gênese da subordinação
feminina”. Deve-se, pois, buscar melhor compreender as variadas dimensões
desse modelo, sua condição de elemento histórico e não de uma estrutura
rigidamente definida, na medida em que é permanentemente ressignificado pela
intervenção de sujeitos também históricos.
Outra obra que contribui para a compreensão das lógicas que
fundamentam a existência e perpetuação do fenômeno da violência contra mulher
nas diversas sociedades ao longo do tempo foi organizada por Morrison e Biehl.
Num dos capítulos, Gonzales de Olarte e Llosa apontam uma perspectiva que em
certa medida se difere daquela baseada no componente patriarcal. Em seu estudo
(2000, p. 59) sobre as violências domésticas do tipo física, psicológica e sexual,
realizado na área metropolitana de Lima, os autores concluem que devem se
pensar em variáveis distintas e conjuntas para constituição do fenômeno. Todavia,
que suas análises “mostram que a existência de relações violentas está
estreitamente relacionada a três fatores: pobreza, desemprego e falta de uma rede
de apoio social”.
Os dois estudiosos detalham cada um desses elementos, chamam a atenção
para a necessidade de pesquisas que investiguem melhor a atuação de tais
aspectos como causadores dessa modalidade de violência, e concebe maior
relevância à questão da pobreza. As conclusões corroboram com tese inicial de
que (2000, p. 51) “A pobreza parece ser um fator importante, mas o quão
importante é difícil determinar”; pois expressam (2000, p. 60): “o resultado de
nossa pesquisa mostram que a pobreza é um importante fator para a violência,
mas está longe de ser o único”.
Quanto ao Brasil, o já citado estudo do Instituto Avon/Ipsos (2011, p. 6)
aponta que os fatores relacionados à pobreza são percebidos como fortes
componentes de causalidade no tocante à violência contra a mulher. Podem ser
citadas como percepções destacáveis o fato de que as condições econômicas e a
28
preocupação com os filhos são indicados como principais fatores que mantêm a
mulher na relação violenta. E ainda, na lista de estímulo, aparecem os problemas
financeiros; e dentre as respostas estimuladas, as duas principais razões para uma
mulher permanecer nesse tipo de relação, segundo homens e mulheres, são: falta
de condições econômicas para se sustentar (27%) e falta de condições para criar
os filhos (20%).
Gonzales de Olarte e Llosa fazem ressalvas a essa correlação causal entre
violência contra a mulher e níveis de pobreza. Indicam a existência de análises
indicadoras de que o fenômeno ocorre em todas as classes sem distinção. Com
isso,
a incidência aparentemente maior de violência entre os pobres
deve-se a uma tendência de metodologia de coleta de dados:
grupos da população de renda mais alta estão mais aptos a
preservar sua privacidade do que os dos setores pobres.
Segundo essa visão, a violência domestica não prevalece entre
os pobres, apenas é mais óbvia (MORRISON E BIEHL, 2000,
p. 51 ).
Ponto de vista semelhante pode ser formulado com base no retrato da
violência contra a mulher, elaborado pela Fundação SEADE. Um dos aspectos
destacados como explicativos da perpetuação do fenômeno está ligado à ideia de
que a total dependência econômica da mulher pode ser um dos fatores
determinantes da violência doméstica. (SEADE, 1987, p. 47). Tal afirmativa se
sustenta sobremaneira porque é encontrada maior concentração de casos em
grupos posicionados na base da pirâmide social (donas de casa e empregadas
doméstica, por exemplo). Tanto aqueles que cometem os atos de violência como
as mulheres vítimas pertencem às camadas inferiores da estrutura social o que
permite diversas conclusões se se promove um estudo mais detalhado a partir de
agrupamentos sociais.
Essa compreensão de que as mulheres vítimas de violência, cujo perfil foi
criteriosamente agrupado no levantamento, compõem-se majoritariamente de
pessoas das classes populares possui reserva análoga àquela assinalada por
Gonzales de Olarte e Llosa. É o que pode ser notado a partir de uma das
conclusões do estudo, segundo o qual (SEADE, 1987, p. 65), “a violência contra a
mulher não é uma ‘prerrogativa’ das camadas socioeconômicas mais baixas,
29
podendo ocorrer também em outras camadas sociais”. Entretanto, o segmento
composto pelas classes mais privilegiadas tenderia a buscar um encaminhamento
diferenciado para o conflito, privatizando os meios de tratamento da problemática,
recorrendo aos serviços, por exemplo, de psicólogos e advogados, dificultando,
assim, a visibilidade do fenômeno.
A baixa proporção de casos de violência entre mulheres de camadas mais
altas se comparada às suas congruentes de camada mais baixa é discutida também
por Blay. De acordo com a autora (2008, p. 91), “os assassinatos de mulheres por
homens e a tentativas de cometê-los ocorrem em todas as classes sociais”. Porém,
a própria autora explica a percepção equivocada em relação a esse quadro de
ocorrências ao afirmar que,
Entre os fatores que fazem parecer que a violência é própria da
camada baixa está no ocultamento dos crimes pela camada alta,
que recorre a advogados de renome e coma habilidade.
Criminosos com condições econômicas e sociais mais elevadas
podem fugir ao flagrante e até mesmo desaparecer, auxiliados
por advogados, clínicas de saúde ou amigos influentes (BLAY,
2008, p. 91).
Lado outro, os assassinatos de mulheres podem enfrentar o processo que
Blay (2008) chama de “espetacularização” midiática. Segundo a autora (2008, p.
67), “o assassinato de mulheres ocorre em todas as classes sociais”. Contudo, uma
dimensão bem destacada no texto são os tratamentos desiguais oferecidos pela
mídia (2008, p. 12), “Sobretudo quando envolvem pessoas de projeção ou de
status social, evidencia-se o comportamento diferenciado da mídia”. Os
noticiários
midiáticos
destinam
destaques
quantitativamente
diferentes
dependendo de quem são os/as personagens envolvidos/as nos casos. Os
resultados encontrados da pesquisa evidenciam que esse tratamento é determinado
pela condição socioeconômica das partes.
Além desses aspectos apontados, há outras formas de pensar as
causalidades do fenômeno da violência contra mulher. Especialmente nos anos
mais recentes, o uso do álcool (embora este também seja indicado como
atenuante) e da droga tem sido apontado como fatores precipitantes da violência
(SEADE, 1987, p. 48). Esses pontos ainda requerem estudos mais detalhados, de
30
modo que possa compreender suas dimensões e sobre elas atuar em vista de uma
atuação mais efetiva em termos de enfrentamento do problema.
3
CUSTOS E ENFRENTAMENTO
3.1
AS DIVERSAS ORDENS DE IMPACTOS DA VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER
Outro ponto bastante recorrente nos estudos sobre a violência contra a
mulher diz respeito aos impactos desse fenômeno direta ou indiretamente para as
vítimas dele, assim como para a sociedade como um todo. Estudos nesse sentido
indicam que, além de numerosos, tais impactos são de ordens variadas. Eles
atingem a mulher do ponto de vista pessoal, com danos à sua saúde, ao seu
universo familiar e profissional, quando não assumem a forma de fatalidade. Com
isso, implicações sobre a sociedade se manifestam principalmente na esfera social
e econômica.
Assim, fundamentalmente devido às perdas significativas de saúde física e
mental por parte vítimas da violência, o fato é classificado como um problema de
saúde pública. No campo psicológico, por exemplo, esse tipo de violência
ocasiona danos à auto-estima feminina e pode levar a mulher a doenças
psicossomáticas ou até mesmo ao suicídio.
Em um estudo voltado para casos nos Estados Unidos, Miller (1999)
descreve a experiência de numerosas vítimas da chamada violência não-física. Os
relatos revelam o extremo sofrimento e a devastação existencial das mulheres
sujeitas a abusos não-físicos perpetrados pelos indivíduos seus parceiros. De
acordo com a autora (1999, p. 20), “a violência que não envolve dano físico ou
ferimentos corporais continua num canto escuro do armário, para onde poucos
31
querem olhar”. Na análise, são detalhadamente trabalhadas as dimensões de cada
um dos tipos de abusos considerados, dentre eles, o emocional, o psicológico, o
social e o econômico. O livro possui ainda o feito de ajudarem as mulheres a
identificarem a violência não-física, possibilitando a elas atuar sobre seus efeitos,
assim descritos por Miller (1999, p. 21): “O abuso não-físico, de qualquer tipo, é a
destruição acumulada do bem-estar emocional, psicológico, social e econômico de
uma mulher”.
Palazzo et al (apud Palhonni, 2012) aponta variados danos de natureza
psicológica às mulheres vítimas de violência. Conforme a autora,
a violência é capaz de desencadear ansiedade, fobias, depressão,
transtornos de estresse pós-traumático, uso e abuso de drogas
lícitas ou ilícitas, tentativa de suicídio, dentre outras, afetando,
dessa forma, a qualidade de vida. (PALHONNI, 2012, p. 16)
No tangente às repercussões da violência na saúde das mulheres que a
experimentam, Schraiber et al (2005, p. 91 - 97) dedica boa parte de sua obra em
apontar e descrever as maneiras como elas se efetivam para suas vítimas. Dentre
os danos apontados se encontram os adoecimentos, que acometem não só em
diferentes partes do corpo, mas também a mente; ou ainda perdas mais gerais,
como sofrimentos, transtornos mentais diversos ou dores especificadas ou não.
Também Blay (2008, p. 219) discorre sobre os numeráveis malefícios e
dificuldades enfrentadas pelas mulheres quando condicionadas a um quadro de
violência em suas relações interpessoais. Segundo a autora, com recorrência ainda
a Almeida (apud Blay, 2008, p. 219), em experiências assim configuradas,
A mulher se depara com reais dificuldades financeiras e o medo
de não conseguir sobrevivência e a manutenção dos filhos, além
de terror de ficar ao desabrigo. Este quadro paralisa a reação, e
garante a reprodução de uma rotina de violência suportada por
anos, que pode levar à sua morte. (...) A mulher submetida a tais
violências se sente “culpada” por não conseguir ter um
relacionamento harmonioso e (...), ela aprende a não reagir,
torna-se passiva. É o “desamparo aprendido”7. Submetida a
todas essas pressões, a mulher se torna depressiva, ansiosa,
sente-se fisicamente mal (BLAY, 2008, p. 219).
7
De acordo com Blay (2008, p. 219), essa expressão que descreve a situação exposta foi
corretamente cunhada pro Lenore Walker e citada por Almeida. Grifo no original.
32
Os aspectos relacionados aos impactos no campo social e psicológico são
explorados de forma mais ou menos detalhada em praticamente todas as obras
deslindadas neste estudo. Uma dimensão apenas vagamente abordada e com
carência de pesquisas mais aprofundadas diz respeito aos custos econômicos da
violência contra a mulher. Ao longo das obras, poucas referências são dadas a essa
questão, não havendo, pois, maior aprofundamento em termos de dados ou
informações mais precisos sobre os efeitos econômicos da violência contra a
mulher.
Embora não diga respeito diretamente ao Brasil, Morrison e Orlando
descrevem algumas dessas conseqüências, definindo-as sob a forma de custos.
Para esses autores, a amplitude de seus efeitos se percebe no campo econômico e
social, se expressando, por exemplo, nos valores anuais dos bens e serviços
empregados nos tratamentos médicos e na perda de produtividade ou de salários.
“Há evidências insofismável (sic) procedentes de nações desenvolvidas de que
mulheres que sofreram de maus-tratos padecem de pior estado de saúde e situação
econômica de que aquelas que não sofreram”, escrevem Morrison e Orlando
(2000, p. 64).
Outra sinalização de que são altos os custos econômicos da violência
contra a mulher foi referida Briceño-León (apud Palhoni, 2012), apontando alguns
dados concretos. Segundo o autor,
os cálculos do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) estimam que 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro são gastos em custos diretos com a violência, três
vezes mais elevados do que os investimentos com Ciências e
Tecnologias. Dessa forma, entende-se que, mesmo de maneira
indireta, a vida da sociedade é afetada pela violência, pois
gasta-se muito com ela, ao passo que esses recursos poderiam
ser destinados ao investimento em necessidades sociais que de
fato promovam uma melhoria na qualidade de vida das pessoas.
(PALHONNI, 2012, p. 17)
Esse quadro indica possibilidades de novos estudos aos/às interessados/as
pelo tema da violência contra a mulher. Notadamente, é indiscutível a presença de
prejuízos dela decorrentes em campos como o do trabalho, reduzindo a
participação das mulheres na força de trabalho (aumento do absenteísmo,
33
decréscimo de produtividade e perda do emprego) e, consequentemente, nos
rendimentos salariais familiares; e nos da saúde, com os vultosos gastos com
tratamentos e aquisição de medicamentos, ainda que permaneçam muitas das
sequelas de alguns dos atos violentos. Acrescente-se a esses os impactos no
campo escolar, como apontado no estudo desenvolvido por Morrison e Orlando, e
suas conclusões (MORRISON E BIEHL, 2000, p. 82 ) de que “crianças de lares onde
ocorre violência contra a mulher são significativamente mais propensos a ter
problemas disciplinares na escola do que crianças de lares sem violência.
Como os estudos desses autores se referem às cidades de Santiago (Chile)
e Manágua (Nicarágua), convém pesquisar a presença desses fatores no Brasil e
dimensionar o seu peso em termos de custos econômicos para as pessoas em si e
para o país como um todo. Morrison e Orlando apontam informações neste
sentido na realidade econômica de países como os Estados Unidos e o Canadá,
onde as estimativas indicam milhões ou bilhões de dólares sendo empregados nos
efeitos diretos e indiretos da violência contra a mulher 8. Visto que a incidência
desse tipo de violência é tão representativa no Brasil, é possível supor montantes
semelhantes para o país, não devendo ser desconsiderados os posicionamentos
econômicos desses três países – e, consequentemente, os efeitos na realidade de
cada um deles – na configuração econômica global. Algo a ser, pois, ainda
examinado em novos estudos.
Estudos (SEADE, 1987, p. 45) têm tratado de outras consequências da
violência contra a mulher, especialmente quanto a seu desenvolvimento no âmbito
familiar. Como a violência na família é considerado um padrão de comportamento
adquirido, o destaque é dado para o fato de que a presença dos/as filhos/as durante
a situação de violência possa interferir negativamente na formação psicossocial,
formando futuros agressores ou ainda vítimas em potencial.
8
Morrison e Orlando apontam estimativas neste sentido na realidade econimica dos Estados
Unidos e do Canadápara os casos também dos Estados Unidos e do Canadá.
34
3.2
UM BALANÇO DAS AÇÕES DE ENFRENTAMENTO E A LEI
MARIA DA PENHA
A temática das intervenções sobre a violência contra a mulher, tanto para
inibir a expansão desse fenômeno como para assegurar proteção às suas vítimas,
possui ampla abordagem na bibliografia estudada. Nesse sentido, os/as autores/as
destacam as diversas mobilizações historicamente constituídas em diversas esferas
para intervir no problema em questão. Tais estudos abordam principalmente o
esforço de grupos ligados às causas femininas para que a questão da violência
contra a mulher fosse assumido como um problema a ser enfrentado. Exploram
também a maneira como as demandas nesse sentido foram sendo incluídas na
pauta de organismos internacionais como a ONU e tomando corpo nos
documentos reguladores editados por esses órgãos e sancionados pelas nações.
Além disso, apontam também a mobilização de variados segmentos para a
incorporação dessas reivindicações no âmbito das políticas públicas sociais, pois
se reconhecia a importância de medidas dessa natureza para a formalização de
direitos garantidos em lei. Enfim, outro importante destaque foi dado às respostas
legislativas à violência contra as mulheres.
Como pontuado no segundo capítulo, Blay (2008) situa o quadro de
denúncias contra o tipo de violência retratado neste trabalho como um processo
que perfaz mais de um século. Até os anos 1930, foram escritoras, jornalistas,
intelectuais e feministas com acessos a espaço em jornais e livros que conduziram
as denúncias às situações de violência. Depois desse período, houve um
interregno até a década de 1960, quando novamente tomaram corpo as exigências
para que os homens fossem punidos pela agressão e pelos numerosos assassinatos
de mulheres. Nesse período se configura o panorama, também descrito no
segundo capítulo, em que ganha força a atuação do movimento feminista
brasileiro. Sobremaneira após os anos 1970, em meio a outras reivindicações
desse movimento assume papel destacável o tema da violência contra a mulher,
como destacado na afirmativa de Lia Zanotta Machado, na obra organizada por
Grossi et al.
35
Foi importante o fortalecimento do movimento de mulheres contra esse
tipo de violência nessa ocasião – décadas de 1970 e 1980. Segundo Gadoni-Costa
e Dell'Aglio (2009, p. 153), “Esse movimento foi fundamental para o processo de
mudanças sociais e de legislação”. O desenrolar desse processo coincidiu com a
implantação das primeiras políticas públicas no Brasil.
Políticas públicas podem ser entendidas como um processo que norteia as
decisões de governos democráticos em benefício dos governados. Essa noção foi
desenvolvida por Helborn et al (2010, p. 14-56), para quem as políticas públicas
são compostas de diversas etapas nas quais são definidos os atores, os
destinatários, o momento de sua elaboração e o acompanhamento dos resultados
por meio da avaliação e do monitoramento. A marca desse processo como um
todo, e que o faz merecer o título de política pública, é a submissão ao debate
público antes que se torne política governamental. Assim, não obstante a presença
de vários/as atores/atrizes e dos e níveis de decisão, a atuação dos governos será
decisiva na instrumentalização da política pública. A partir dos modelos
explicativos/classificatórios das políticas públicas, Souza escreve que
a política pública, embora tenha impactos no curto prazo, é uma
política de longo prazo; envolve processos subseqüentes após
sua decisão e proposição, ou seja, implica também
implementação, execução e avaliação (SOUZA APUD
HEILBONR ET AL, 2010, p. 20).
Portanto, no campo das discussões acerca da violência contra a mulher,
pode-se compreender as políticas públicas como uma maneira de se legitimar e
fortalecer os pressupostos delineadores da busca pela constituição de direitos ou
pela efetivação daqueles direitos já garantidos em lei. Um dos feitos do
movimento feminista no Brasil a partir da década de 1970 foi, segundo Almeida
(2007, p. 119), o de “desenvolver sua capacidade de estabelecer diálogo com o
Poder Legislativo na propositura de leis que completassem a cidadania feminina”.
É seguro afirmar que muitos dos instrumentos para o enfrentamento da
violência contra a mulher resultaram dos esforços para manter esse diálogo aberto.
Assim foi, por exemplo, na década de 19809, época em que foram criadas, no
âmbito estadual, as Delegacias de Defesa das Mulheres, que nos anos 1990
passaram a ser chamadas de Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres
9
De acordo com Gadoni-Costa e Dell'Aglio (2009, p. 153), em 1985, foi criada no Brasil a
primeira delegacia de policia de atendimento à mulher, em São Paulo, e nos anos seguintes, em
outros estados.
36
(DEAM). Blay (2008) destaca o fato de essas delegacias logo terem se tornado
objeto de estudo nos mestrados e doutorados das universidades, embora esses
estudos não considerassem os aspectos culturais e políticos das sociedades a que
estavam ligadas. “Estas importantes ferramentas passaram a ser analisadas sem se
levar em conta os limites estruturais de uma delegacia”, escreve Blay (2008, p.
215). Essa estudiosa do assunto em explanação considera o caráter revolucionário
representado por essas delegacias.
as mulheres que anteriormente se sentiam constrangidas diante
do machismo e da incompreensão nas delegacias em geral,
passaram a receber um atendimento diferenciado. Essa mudança
na relação de subordinação de gênero configurou-se como o
início de uma revolução nos papéis sociais (BLAY APUD
GADONI-COSTA E DELL'AGLIO, 2010, p. 153).
Por outra via, essa atuação na esfera acadêmica trouxe benefícios na
adoção de mais medidas de combate à violência contra a mulher. Assim figura,
para Schraiber et al (2005, p. 137) o surgimento de instituições como os
Conselhos da Condição da Mulher e as Coordenadorias da Mulher em
administrações municipais e estaduais, e a assinatura pelo país de diversas
conferencias internacionais, comprometendo-se em desenvolver ações de
enfrentamento. Além disso, destacam-se as Casas Abrigo, os Serviços de
Atendimento à Violência Sexual, os Centros de Referencia, e instituições
governamentais e não-governamentais de diversos setores que foram criados e
passaram atender meninas e mulheres em situação de violência. Serviços dirigidos
aos homens também foram criados, como é o caso da organização masculina o
Laço Branco, muito atuante em Pernambuco, e que trabalha com a questão da
masculinidade e da não-violência contra mulher, como apontado por Blay (2008,
p. 216).
Outras formas destacadas de intervenção sobre o problema da violência
contra a mulher foram instituídas no campo da legislação. Um dos fatores desse
passo rumo ao maior acesso à cidadania por parte das mulheres foi a substituição,
em 2003, do Código Civil Brasileiro de 1996, o qual discriminava a mulher em
várias situações, como ao possibilitar que o homem movesse ação para anular o
casamento no caso de descobrir que sua mulher não era virgem; ou ainda, permitia
que pais ou mães expulsassem a filha da casa paterna em caso de “desonestidade”
praticada por esta praticado. Heilborn (2010, p. 175) aponta que, com a aprovação
do novo Código Civil, foram instituídas a lei de criminalização do assédio sexual
37
(Lei 10.224/2001), a de probição de discriminação contra a mulher na legislação
trabalhista (Lei 9.029/1995) e a de notificação de casos de violência contra
mulheres atendidas no serviços de saúde pública e privados (Lei 10.778/2003).
Nesse quadro também devem ser destacadas a leis que incluíram em seus
dispositivos preceitos de repúdio à violência contra a mulher. Almeida (2007, p.
125-137) discute detidamente esse panorama, e cita como exemplos, a Lei 8.930 /
94, que incluiu o estupro entre os crimes hediondos, considerados inafiançáveis; a
Lei 9.250 / 97, que revogou dispositivos processuais penais que impediam à
mulher casada exercer o direito de queixa criminal contra o marido e a Lei
11.340/2006, a chamada Lei Maria da Penha.
O destaque cedido a esse dispositivo legal é um sinal do marco
representativo que ele se constitui no sentido de atuar sobre a questão da violência
contra a mulher. As obras analisadas neste trabalho destacam os alcances e limites
dessa lei como instrumento de combate à violência doméstica e familiar contra a
mulher – mostrado como a forma mais frequente de violação dos direitos
humanos da mulher. Segundo Almeida (2007, p. 135), o texto da lei sancionada
em 2006 define “não apenas o que é violência doméstica e familiar contra as
mulheres, mas, também, as linhas de uma política de prevenção e atenção ao
enfrentamento dessa violência”. A autora destaca ainda que a Lei Maria da Penha
trouxe ainda a preocupação com a articulação das ações de União, Estados,
Municípios e do Distrito Federal, por meio da integração operacional do Poder
Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública com áreas da segurança
pública, assistência social, saúde, educação, dentre outras. De forma conclusiva, a
autora (2007, p. 136) arremata que “a aprovação da Lei Maria da Penha é um caso
exemplar bem-sucedido de articulação política entre a sociedade civil/movimento
de mulheres e poderes constituídos – Executivo e Legislativo”.
Esses e outros aspectos são profundamente discutidos por Hermann
(2008), em sua obra totalmente dedicada à análise dessa lei, avaliando o contexto
em que ela se frutificou assim como os seus impactos sobre o processo de
combate e prevenção à forma de violência definida no texto e a interpretação a ser
concedida a cada artigo. Para a autora,
Em termos de ordenamento jurídico, a Lei Maria da Penha
constituiu avanço e retrocesso. É avanço na medida em que
traça diretrizes importantes para incremento de sistema
protetivo integrado e coordenado de atenção e valorização da
38
vítima e de prevenção às práticas violentas no âmbito das
relações domésticas e familiares. É retrocesso na proporção em
que sobrevaloriza a repressão penal, retomando o sistema penal
duro como arena privilegiada para enfrentamento da violência
doméstica, numa ótica que vigorou até a criação dos Juizados
Especiais Criminais pela Lei 9090 / 95, ou seja, por mais de
cinquenta anos, se resultados efetivos em termos de prevenção e
proteção às vítimas. (HERMANN, 2008, p. 251)
Enfim, a bibliografia avaliada neste estudo destaca a necessidade de
reforçar as ações institucionais de modo a tornar efetivos os sistemas de proteção
legal para o combate à violência contra a mulher. Isso facilitado por meio da
criação e reforço dos programas e das redes que atuam em defesa e proteção das
vítimas. As propostas nesse sentido não devem perder de vista o componente
cultural que o fenômeno em estudo possui. Componente este que necessita de
outras formas de atuação muito além daquelas que normas e leis podem definir.
4
Conclusão
Este estudo teve como escopo analisar um conjunto de obras sobre o tema
da violência contra a mulher. Uma breve revisão bibliográfica apontou que
algumas dessas obras eram mútua e frequentemente citadas pelos/as estudiosos/as
do assunto. Esse critério orientou a escolha dos livros analisados e citados no
decorrer deste trabalho. Indicou ainda uma série de eixos temáticos abordados
pelos estudiosos/as que se debruçaram na pesquisa sobre essa questão a partir de
variadas fontes e com suas perspectivas teóricas e metodológicas diversas, como é
sabido existir no universo acadêmico. A presença maior desses eixos temáticos foi
a base prevalecente na escolha dos assuntos a serem elencados e discutidos neste
trabalho.
A ampla e diversificada abordagem deve ser a tônica dos levantamentos
bibliográficos. Haveria campo para isso neste estudo? A resposta é, seguramente,
sim. Uma simples consulta às páginas de busca de universidades brasileiras revela
que a questão da violência contra a mulher, com toda a variedade que foi
apresentada, tem sido amplamente tratada, até mesmo mais do que se pode
inicialmente imaginar. São artigos e monografias, para ficar somente em poucos
39
exemplos, que têm buscado deslindar esse fenômeno na expectativa de gerar
conhecimento que possa inclusive atuar para que se elimine o problema e seus
efeitos. Não obstante a concentração de esforços, este trabalho pode ter perdido de
vista muitos dos aspectos importantes que esse tema abrange. Com isso,
autores/as mais destacáveis no debate deste tema podem ter sido negligenciados
nas análises. Assim como também há o risco de ter sobrevalorizado algumas
dimensões temáticas em detrimento de outras mais importantes. Este é um dos
aspectos que deve ser levado em conta ao se avaliar os alcances obtidos neste
levantamento e análise de produção bibliográfica sobre o tema da violência contra
a mulher. Aspecto este que funciona, como pode ser notado, como limitação.
Como alcance propriamente dito, podem ser considerados os variados
aspectos trabalhados. Eles podem servir na orientação de novos estudos sobre o
tema em comento, na medida em que seja percebida a dimensão de seu tratamento
nas diversas obras, as lacunas que ainda devem ser preenchidas, e os novos
olhares que sobre eles podem ser lançados. Algumas dessas lacunas já foram
citadas ao longo do trabalho, e outras podem aparecer ainda nessa parte
conclusiva.
Uma das conclusões a ser lembradas é que a violência contra mulher tem
um elevado componente cultural que não é facilmente superada por meio de
normas e leis. Suas raízes fincadas no patriarcalismo e na chamada dominação
masculina levam ao entendimento de que, nas estratégias utilizadas para combater
e erradicar a violência contra as mulheres, é necessário discutir e explorar
melhores maneira de incorporar os homens nas iniciativas contra a violência de
gênero, reconhecendo que estas estratégias são diversas e devem refletir a
diversidade existente entre os homens.
Outro ponto importante a ser pensado é que, além de ampliar os programas
de enfrentamento e envolver mais agentes do poder público e da sociedade civil
organizada, deve ser empreendidos esforços para evitar a descontinuidade entre os
diferentes serviços disponíveis no país. Essa perspectiva exige ação articulada
entre instituições jurídico-policiais; e dos sistemas de saúde e judicial,
promovendo a melhor efetividade dos serviços oferecidos. Para tanto, as políticas
a serem adotadas devem ser pensadas a partir da perspectiva da transversalidade,
da intersetorialidade e da interseccionalidade, de modo a articular os principais
40
agentes e garantir a continuidade das políticas de enfrentamento do fenômeno da
violência contra a mulher.
Devem-se ainda serem discutidos e reforçados os trabalhos de qualificação
e capacitação de gestores e outros profissionais para lidar na condução das
políticas de combate à violência contra a mulher, inclusive com apoio psicológico
e social para profissionais de saúde que lidam com a violência. Da mesma forma,
é adequado que se busque reforçar as experiências que geraram ou vem gerando
resultados positivos, e envolver os gestores na disseminação dessas experiências
nas mais diversas esferas de atuação que podem alcançar, como família, igrejas e
instituições jurídico-policiais. Aprofundar o conhecimento desse fenômeno pode
ser o passo inicial para se atingir o objetivo de uma sociedade de paz e respeito
aos direitos humanos, algo que vem sendo profundamente impedido pela
perpetuação da violência contra a mulher.
41
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Suely Souza de. Femicídio: algemas (in)visíveis do públicoprivado. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.
ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de gênero e políticas públicas. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
BLAY, Eva Alterman. Assassinato de mulheres e direitos humanos. São
Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2008.
Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SP). Um retrato da
violência contra a mulher :2038 boletins de ocorrência / Fundação SEADE,
Conselho Estadual da Condição Feminina. São Paulo: SEADE, 1987.
BRASIL.
Disponível
em
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766
. Acesso em 10 de maio de 2012.
GADONI COSTA, Lila Maria e DELL’AGLIO, Débora Dalbosco
Dell'Aglio. In: Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia: 1983-8220 Vol. 2,
No 2, jul-dez, 2009.
GROSSI, Miriam P.; MINELLA, Luzinete S.; PORTO, Rozeli (orgs).
Depoimentos: trinta anos de pesquisas feministas brasileiras sobre violência.
Florianópolis: Editora Mulheres, 2006.
HEILBORN, Maria Luiza (org.). Gestão políticas públicas em gênero e
raça./GPP – GeR: módulo II. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de
Políticas para as Mulheres, 2010.
HEILBORN, Maria Luiza (org.). Gestão políticas públicas em gênero e
raça./GPP – GeR: módulo III. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de
Políticas para as Mulheres, 2010.
HEILBORN, Maria Luiza (org.) et al. Gestão políticas públicas em gênero
e raça./GPP – GeR: módulo IV. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de
Políticas para as Mulheres, 2010.
HERMAN, Leda Maria. Maria da Penha lei com nome de mulher:
considerações à Lei 11340/2006: contra a violência doméstica e familiar.
Campinas, São Paulo: Servanda Editora, 2008.
42
MILLER, Mary Susan. Feridas invisíveis: abusos não-físicos contra
mulheres. São Paulo: Summus, 1999.
MORRISON, Andrew R. e BIEHL, María Loreto (eds.). A família
ameaçada: violência doméstica nas Américas. Trad. Gilson Batista Soares. Rio de
Janeiro: Editora da FGV, 2000.
PALHONNI, Amanda Rodrigues Garcia. “Representações de mulheres
sobre violência contra mulher e qualidade”. Belo orizonte: 2011. Disponível em
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/GCPA8RJF5Y/1/amanda_rodrigues_garcia_palhoni.pdf . Acesso em 21 de
junho de 2012.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte : Crisálida,
2007.
SCHRAIBER, Lilia Blima et al. Violencia dói e não é direito: a violência
contra a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo: Editora UNESP,
2005.
“A violência contra a mulher é também uma questão de saúde
pública”.
Disponível
em:
http://www.datasus.gov.br/cns/temas/tribuna/violencia_contra_mulher.htm
. Acesso em 14 de maio de 2012
43