Joao Carlos Filho - Água, Mulheres e Desenvolvimento
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Joao Carlos Filho - Água, Mulheres e Desenvolvimento
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL PROGRAMA DE EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE ESPECIALIZAÇÃO EM GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS COM FOCO EM RAÇA E GÊNERO JOÃO CARLOS DA COSTA FILHO VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO E DE MARCOS LEGAIS Belo Horizonte - MG 2012 JOÃO CARLOS DA COSTA FILHO VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO E DE MARCOS LEGAIS Monografia apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação para a Diversidade da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial à obtenção do grau de Especialista em Gestão de Políticas Públicas Área de Concentração: Gênero e Raça Orientador: Prof. Renato Barbosa Fontes Belo Horizonte - MG 2012 2 COSTA FILHO, João Carlos da. Violência contra a mulher: um levantamento bibliográfico e de marcos legais. Belo Horizonte: UFOP, 2012 (Monografia). RESUMO O presente estudo constitui-se em um levantamento bibliográfico e dos marcos legais sobre a questão da violência contra a mulher. Procura traçar um panorama histórico e o cenário atual da abordagem deste fenômeno a partir das contribuições de diversos/as autores/as que escreveram ou escrevem sobre o assunto. Busca também apontar algumas das providências no campo normativo que vem sendo adotadas para o combate e o enfrentamento desse problema. As obras deslindadas evidenciaram uma série de eixos temáticos, os quais foram apontados ou analisados mais profundamente, conforme o nível de recorrência com que é tratado pelos/as estudiosos/as da violência contra mulher. Ao longo deste trabalho, procurou-se também evidenciar alguns pontos que ainda podem ser mais bem esclarecidos e suscitar interesse àqueles/as que vierem a se debruçar sobre o campo das questões de gênero, especialmente nos aspectos relativos à questão da violência contra a mulher. Palavras-chave: mulher; violência; legislação 3 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................05 2 AS PERSPECTIVAS CONCEITUAL E HISTÓRICA.............................06 2.1 DEFINIÇÃO E TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER..............................................................................................................06 2.2 OS CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E O DEBATE NO CONTEXTO ATUAL.............................................................13 2.3 RACIONALIDE OU MÚLTIPLAS BASES DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER...................................................................23 3 CUSTOS E ENFRENTAMENTO ............................................................31 3.1 AS DIVERSAS ORDENS DE IMPACTOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ...........................................................31 3.2 UM BALANÇO DAS AÇÕES DE ENFRENTAMENTO E A LEI MARIA DA PENHA.............................................................................................35 4 CONCLUSÃO..........................................................................................39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................42 4 1 Introdução Este texto resultou do propósito de elaborar um levantamento bibliográfico e de marcos legais sobre o tema da violência contra a mulher. Tal arrolamento teve como objetivo principal apreender a contribuição de cada autor/a na edificação de um debate que a cada dia tem crescido em importância. O conjunto documental estudado constituiu-se de obras com abordagens diversificadas, as quais contemplam o assunto em comento sob prismas variados. Identificar e apontar essas multifacetadas dimensões foram objetivos que se agregaram a essa finalidade maior, visando à condensação de elementos tratados nessas obras em termos, por exemplo, de tendências, predominâncias, controvérsias, lacunas e apontamentos para pesquisas futuras. Portanto, todo este trabalho compreende a estruturação dessa multiplicidade de aspectos de modo a dispor ao seu público-alvo maior facilidade em suas investigações sobre a questão da violência contra a mulher. Mediante a impossibilidade de abordar a totalidade dos aspectos perpassados na literatura disponível, a organização deste estudo consistiu-se em apresentar tópicos temáticos comumente presentes no acervo material analisado. Com isso, buscouse deixar clara a compreensão expressa pelos/as diversos/as autores/as e o papel de suas escolhas metodológicas para a configuração dessas determinadas formas de abordagens. Estruturado em cinco capítulos, divididos em dois tópicos, reúne as contribuições de diversos autores para o debate sobre a questão da violência contra a mulher. Na sequencia desses capítulos, serão tratados os aspectos conceituais e históricos do fenômeno, retomando a trajetória que contribuiu para a definição do quadro atual desse campo de estudo. Mostram-se também as causas e as implicações do problema da violência contra a mulher, considerando os impactos de diversas naturas, dentre as quais a econômica, a social a psicológica. Finalmente, elabora-se uma espécie de cenário das ações de enfrentamento do fenômeno, com destaque especial para os marcos legais que contribuíram para a constituição deste panorama. 5 2 AS PERSPECTIVAS CONCEITUAL E HISTÓRICA 2.1 DEFINIÇÃO E TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Um dos campos de maior complexidade e não consensual quanto ao tema em estudo é o da conceituação de violência contra a mulher. Desagregar esse fenômeno de outros tipos de violência e compreender suas características, causas e consequências são tarefas desafiadoras, sobretudo pelas numerosas interrelações que existe entre eles, especialmente com a chamada violência social. Sendo possível desagregá-la, muitos ainda questionam se tal fenômeno não deveria receber a mesma atenção que as demais formas de violência, não devendo, portanto, ser tratado como uma forma específica e particular de transgressão aos direitos da mulher. Além dos/as estudiosos/as da questão da violência contra a mulher, organismos de luta pela prevenção e eliminação deste fenômeno procuraram demarcar os seus termos, a fim de que pudessem estabelecer políticas melhor direcionadas ao seu combate. É o caso da Organização das Nações Unidas (ONU), que, em estudo de 2008 (apud Gadoni-Costa e Dell'Aglio, 2009, p. 152), cunhou uma definição bastante genérica, ao afirmar que a expressão violência contra a mulher refere-se a “todo ato de violência praticado por motivos de gênero, dirigido contra uma mulher”. Para essa compreensão, o conceito de “mulher” contempla quaisquer pessoas do sexo feminino de qualquer idade, incluídas as crianças e adolescentes. Por sua vez, os/as autores/as que discutem esse tema discorrem mais detidamente em busca de expressões mais específicas e adequadas à sua conceituação. Com isso, apresentam formas de designar esses atos e comportamentos que sejam mais sensíveis para apreender a ocorrência de modo consideravelmente mais enunciável e, com isso, de imediato visível. Tal 6 perspectiva possibilita maior facilidade de reconhecimento das situações práticas do problema. Essa dimensão é contemplada por Gadoni-Costa e Dell'Aglio, que citam o Dicionário da violência contra a mulher, no qual o termo “violência contra a mulher” é definido como a violação dos direitos humanos das mulheres e consiste no uso da força física, psicológica ou intelectual para submetê-la, tolher sua liberdade e impedir a manifestação de seus desejos através de ameaças ou agressões (GADONI-COSTA E DELL'AGLIO, 2009, p. 152). A perspectiva que analisa a violência contra a mulher como violação dos direitos humanos é uma das mais importantes dimensões desse problema. Entre os/as autores/as objetos de análise nesse estudo, Schraiber dedica boa parte de sua obra à descrição e análise do processo que levou esse fenômeno a possuir essa forma de tratamento. A autora (2005, p. 105) concebe os direitos humanos como sendo “direitos próprios de qualquer ser humano, independentemente das nacionalidades ou de quaisquer outras condições, sendo, portanto, todos os seres humanos sem distinção, os titulares desses direitos”. Com fundamento nessa definição, surge o entendimento de que os direitos à vida, à liberdade e à dignidade devem ser universalmente protegidos. Isso implica que os Estados não podem violar esses direitos, devendo efetivar políticas e ações que os promovam. Outra consequência é a sobreposição desses direitos à defesa de interesses nacionais por parte dos países, que procuram estabelecer acordos e compromissos para proteção dos cidadãos independentemente de ganhos ou permuta de favores para cada país. Como código, esses direitos notadamente surgem sem levar em conta a perspectiva de diferenciação de gênero em sua expressão. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, documento adotado por diversas nações em 1948, embora represente os direitos humanos de homens e de mulheres como um todo, é enunciada como “direitos dos homens”. Essa codificação constitui a base de diversos tratados, declarações, pactos e convenções internacionais – surgidos na segundo metade do século XX –, os quais pactuam direitos de natureza geral, destinados a todos os seres humanos; ou específica, voltados a certos atos – como é o caso da tortura – ou de proteção a grupos populacionais particulares, como, por exemplo, o das mulheres. A enunciação dos direitos pautada em uma nítida diferenciação de gênero aparece a partir dos anos 1980. Isso ocorreu num quadro histórico que será mais 7 bem explicitado no capítulo seguinte deste trabalho. Por ora, convém destacar somente a maior visibilidade assumida pelos assuntos específicos ao feminino, na proporção em que se avolumavam estudos e o ativismo concernentes às reivindicações das mulheres. As demandas levantadas neste contexto foram aos poucos sendo incorporados em instrumentos definidores de proteção legal aos sujeitos de direitos ou de pressão aos países visando à sua efetivação. Nisso ganha corpo as questões referentes aos chamados direitos humanos das mulheres. De acordo com Schraiber et al , por direitos humanos das mulheres compreendem-se aqueles que fazem parte dos direitos universais da humanidade, reafirmando o direito à igualdade política, ao exercício dos direitos reprodutivos e a uma vida livre de violência (SCHRAIBER ET AL, 2005, p. 37) . A dimensão contemplada pelo escopo desta pesquisa implica em definir que uma vida sem violência contempla o direito a políticas públicas que inibam a discriminação e promovam o acesso a condições dignas e a serviços capazes de atuar sobre as diversas esferas de promoção e manutenção desse tipo de violência. Entretanto, segundo Hermann e Barsted (2000, p. 6), foi somente em 1993 que a Organização das Nações Unidas realizou a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, na qual, além de considerar que “a violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos e que esta violência se baseia, principalmente, no fato da pessoa agredida pertencer ao sexo feminino”, reconheceu esse fenômeno como “um obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de igualdade entre os seres humanos”. Outro fato que aponta para o crescente enfoque concedido aos chamados direitos humanos das mulheres – particularmente aos sexuais e aos reprodutivos – das mulheres sucedeu-se em 1994. Nesse ano, ocorreu a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, também chamada Convenção de Belém do Pará. Conforme Almeida (2008, p. 161), o documento originário desse evento “estabeleceu que a violência contra a mulher constitui violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”. Ademais, em seu artigo primeiro, o documento define essa modalidade de violência como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito publico como no âmbito privado”, escreve Almeida (2008, p. 161). 8 Schraiber et al apresenta uma compreensão conceitual semelhante àquela apontada no Dicionário anteriormente citado. Conforme a autora (2005, p. 37), violência contra a mulher “são atos dirigidos contra a mulher que correspondem a agressões físicas ou sua ameaça, maus tratos psicológicos e abusos ou assédios sexuais”. Em sua obra, Schraiber et al situa o surgimento desse conceito no quadro de luta por conquistas do chamado feminismo a partir dos anos 1970. Nessa década, publicações sobre o tema da violência são divulgadas com estudos que afetariam também a compreensão sobre a condição da mulher no arranjo familiar, com a individualização da mulher sendo uma nova base de análise das relações de gênero. Segundo a autora (2005, p. 29), “É essa individualização da mulher que processa o movimento feminista internacional nos anos 1970, criando a terminologia da ‘violência contra a mulher’”. Um dos desdobramentos importantes desse processo foi que, a partir de então, o problema representado por essa forma de violência ganhou visibilidade e veio a ser estudado no campo do direito, à medida que os estudos passaram a apontá-lo como um problema a ser assumido pelo poder público, com a constituição de um aparelhamento policialjudiciário crescentemente adequado ao seu enfrentamento. As definições até então apresentadas contemplam a possibilidade de se compreender os variados tipos de violação dos direitos da mulher de experimentar uma vida livre da violência num conceito único, que engloba atos e comportamentos da esfera física, sexual e psicológica. Miller (1999, p. 11-25) classifica esses tipos de violações pela decorrência ou não de marcas perceptíveis em suas vítimas. Para a autora, as marcas da violência não-física se proclamam no abuso psicológico, emocional, na coerção econômica e na restrição social. Estes são atos sutis e habituais de poder e sujeição que confundem e dificultam a percepção até mesmo para suas vítimas, minando seu bem-estar e sua autoestima e criando um estado de confusão e incapacidade. Por longo tempo foi negada a natureza pública da violência contra a mulher ligada à perspectiva das relações interpessoais de gênero, considerando-a um ato isolado e não um problema social; e ressaltado o seu caráter privado, como decorrência de os fatos ocorrerem preponderantemente no interior do domicílio. A máxima de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” implica a ideia segundo a qual esse tipo de problema – assim como a gestão de seu tratamento – não seja tomado como uma questão de ordem pública. Para as 9 mudanças nessa compreensão, Bandeira (In: Grossi et al, 2006, p. 240) destaca a contribuição do movimento feminista ao denunciar a violência contra a mulher. Segundo Bandeira, A partir do momento que houve a denúncia, deu-se visibilidade ao problema, e concomitantemente evidenciou-se que esse não era um problema que deveria ser tratado na esfera do privado, mas na esfera pública. Portanto, além da legitimidade, politizou-se a questão. É possível supor que, em função disso ou ainda da grande recorrência de casos, boa parte da literatura sobre o tema aborda uma espécie de relação direta do aspecto “doméstico” com o da violência contra a mulher. Com essa perspectiva o fato é também conhecido como violência doméstica, referindo-se “aos atos cometidos por um membro da família ou pessoa que habite, ou tenha habitado, o mesmo domicílio, como escrevem Schraiber et al (2005, p. 37). Ou ainda, “a violência que ocorre entre pessoas relacionadas por sangue, casamento ou direito consuetudinário”, caso que geralmente ocorre dentro de casa, na concepção de Buvinic e Morrison (2000, p. 23). Em sua maioria, as ocorrências de violência contra a mulher no espaço doméstico apresentam a superposição de suas formas física, psicológica e social. Entre os casos de violência física incluem-se os tapas, empurrões, sufocações, chutes, entorses nos braços, queimaduras propositais, cárcere privado, mordidas, bofetadas, beliscões, asfixia, ameaça com faca e tentativas de homicídio (Morrisson e Biehl: 2000, p.23; Schraiber et al 2005, p. 37). A violência psicológica é reconhecida nos atos de ameaças, destruição de pertences pessoais, submissão a gritos, humilhações, privações de liberdade, danos a animais de estimação e impedimento ao trabalho (Idem). Segundo Buvinic et al (In: Morrisson e Biehl, 2000, p. 23), “No contexto da violência contra mulheres, a violência psicológica é mais comum do que a física”. Miller (1999, p. 41-54) cita e descreve a Gaslighting – “o processo premeditado de, persistentemente, convencer uma pessoa de que ela é louca” –, a lavagem cerebral e o isolamento como alguns dos exemplos de abuso psicológico praticado por homens contra as mulheres, especialmente nas relações doméstico-familiares. Entre as principais ocorrências de violência sexual, encontram-se expressões verbais ou corporais que não são de agrado da pessoa, toques e carícias não desejados, relações sexuais forçadas, abuso sexual e participação forçada em pornografia (Morrisson e Biehl: 2000, p.23; Schraiber et al 2005, p. 37). 10 Sobre a violência não-física, Miller (1999. P. 55 -67 ) descrevem uma variedade de suas formas de expressão. A autora relata numerosos depoimentos que permitem compreender seus efeitos sobre a vida das mulheres que enfrentam tais fatos. Muitos desses efeitos decorrem do aspecto social desses abusos. “O homem socialmente abusivo emprega diversos meios para alcançar o seu objetivo, embora raramente se limite a um”, escreve Miller (1999, p. 59). E aponta que esses casos se expressam, dentre outras maneiras, proibindo o contato familiar (com pais e mães, por exemplo), proibindo o trabalho e a escola, trancando-as fora ou dentro de casa e o isolamento, dentre outros. Conforme ainda essa autora (1999, p. 39), “uma característica comum àqueles que praticam abusos emocionais é a habilidade para encontrar o ponto fraco da mulher, para utilizar como uma arma aquilo que lhes é mais importante. Em muitos casos, são os filhos”. Pode-se afirmar que, no domínio da discussão orientada neste trabalho, o assassinato de mulheres configura a extrema expressão de todas as formas de violência. Numerosos casos que derrocaram nessa situação foram pesquisados por Blay (2008), num estudo de análise das circunstâncias do assassinato de mulheres na passagem do século XX para o XXI no Brasil. As fontes são notícias de imprensa, boletins de ocorrência e processos criminais, por meio das quais a autora busca compreender a história de cada caso, examinando as relações entre vítimas e perpetradores, a maneira como a violência se instaura e se perpetua inclusive além da esfera doméstica e como ela repercute e é alimentada. Em suas conclusões, Blay concebe que a denominação ‘violência doméstica’ é insuficiente pra abarcar todas as formas de violência e de homicídios de mulheres por homens com quem se relacionam afetivamente (BLAY, 2008, p. 214) . Para uma definição mais direta dos conceitos de violência contra mulher, violência doméstica, violência intrafamiliar e violência de gênero, o trabalho mais detalhado foi elaborado por Almeida. Nessa obra por ela organizada, a autora destaca a incompletude conceitual de todas as formulações, mas estuda o fenômeno tomando a noção de violência de gênero, não sem antes analisar os prós e contra de cada uma das categorias supracitadas. O termo por ela explorado (2008, p. 24) “designa a produção da violência em um contexto de relações produzidas socialmente... o seu espaço de produção é social e seu caráter é 11 relacional”. Relativamente a tal categoria termo que explora, Almeida (2008, p. 26) afirma que a sua utilização apresenta o risco adicional1 de ter um caráter tão abrangente que, sendo aplicável a uma multiplicidade de fenômenos e de discriminações, deixe escapar as particularidades das relações de exploração e dominação que exercem nas relações intimas .... Não obstante, permite entender a violência no quadro das desigualdades de gênero (ALMEIDA, 2008, p. 26). O estudo ora em desenvolvimento trabalha com o conceito de violência contra a mulher. Portanto, é apropriado que sejam expostas as críticas apresentadas por Almeida a essa formulação. De acordo com a autora, Violência contra a mulher enfatiza o alvo contra o qual a violência é dirigida. É uma violência que não tem sujeito, só objeto; acentua o lugar da vítima, além de sugerir a unilateralidade do ato. Não se insere, portanto, em um contexto relacional (ALMEIDA, 2008, p. 25) Ademais, a autora (apud Gregori; Saffioti e Almeida; Almeida, 2008, p. 24) relembra o risco indicado pela literatura especializada de o uso desse conceito, “resvalar para uma perspectiva vitimista (...), levando a concepções de passividade e imobilismo”. Outro perigo contrário a esse seria asseverar sobre a impossibilidade de isolar a mulher como categoria descritiva e como alvo de estudo, análise e práticas sociais. Ainda nesse livro, Bandeira (In: Grossi et al, 2006, p. 241) expõe outra crítica ao conceito de violência contra mulher. Escreve Bandeira que tal categoria “é problemática porque não possibilita pensar fora de dicotomias”. A despeito dessas objeções, Almeida (2008, p. 24) ressalta fatores atuantes em prol dessa definição, sendo um deles o argumento de que é a categoria violência contra a mulher “a única a ressaltar de forma inequívoca a vítima preferencial de determinada modalidade e violência”. Noutra de suas obras, Almeida apresentou uma perspectiva distinta para definir o fenômeno em comento. Com o fito de politizar tal fato, a autora (1998, p. 1), trabalha com o termo “femicídio” – expressão que dá nome à obra –, entendendo que ele “designa o caráter sexista dos crimes conjugais, desmascarando a aparente neutralidade dos termos homicídio e assassinato”. Na ótica apresentada pela autora, o fenômeno em estudo integra uma política sexual 1 Outras desvantagens relativas ao conceito de violência de gênero são citadas pela autora. Uma delas diz respeito a sua suposta neutralidade, e, logo, facilitada assimilação no meio acadêmico. Segundo Almeida (apud Louis, 2007, p. 24), o que motiva essa suposição é o crédito de que o uso dessa formulação “deixa intocados os fundamentos da dominação patriarcal, contribuindo para a análise das relações de poder entre os sexos em proveito da neutralidade quanto aos mecanismos de opressão” 12 de apropriação das mulheres. O aspecto político dessa visão ocorre à medida que Almeida (1998, p. 1) estuda processos criminais para avaliar a gestão pública da violência de gênero em curso no Brasil e estabelece analogias entre esse tipo violência e a tortura política, afirmando que ambas, dentre outros aspectos comuns, ferem direitos humanos. Violência contra a mulher, doméstica, familiar, de gênero. Como visto, não há consenso quanto às definições. Há quem destaque essa amplitude de conceitos para o problema em questão como algo positivo. Este é o caso, por exemplo, de Bandeira (In: Grossi et al, 2006, p. 241), ao afirmar que “por um certo olhar, acho bom, pois,(sic) pode sempre dinamizar o conceito”. Do até então exposto, já se pode afirmar que o/a estudioso/a do fenômeno em avento deve se atentar a essas diferenciações conceituais. Pode ser notado que esses conceitos adotam abordagens estreitamente ligadas ao campo das relações interpesais. Não se deve perder vista, porém, que a violência feminina possui muitos outros aspectos. Ela se faz presente, dentre outras situações, nos espaços laboral e institucional, nas imagens midiáticas, nas instituições jurídicas e nos estupros cometidos em ocasiões de guerras. As limitações deste estudo impedem que sejam tratadas e consideradas todas as dimensões que perpassam e fundamentam essas variadas formas de conceituar o(s) tipo(s) de violência ora estudado. Entretanto, ao utilizar a noção de violência contra a mulher, esse trabalho não perde de vista os aspectos evidenciados nos outros tipos de formulações. Não há uma justificativa única e específica para a adoção desse conceito ao longo deste estudo, e isso, ao que parece, não fere o seu objetivo central, qual seja, o de promover uma revisão da produção bibliográfica sobre o tema da violência contra a mulher. 2.2 OS CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E O DEBATE NO CONTEXTO ATUAL Os caminhos que fizeram com que a questão da violência contra a mulher assumisse relevância no momento atual são diversos. Por uma via, essa 13 importância do tema ocorre como desdobramento do notável espaço que tem encontrado nas discussões cotidianas dos diversos meios de comunicação e da sociedade de maneira geral. Esse cenário se estruturou a partir dos trabalhos de diversos atores históricos que, ao longo das últimas décadas, ocuparam variados espaços de lutas – como universidades e movimentos sociais –, fortalecendo e dando corpo às discussões sobre as questões referentes a essa modalidade de violência. A partir de Grossi et al (2006, p. 369-381), ora podem ser citados exemplos de autores/as como Ana Flávia Lucas d’Oliveira, Analba Brazão Teixeira, Bárbara Musumeci Soares, Carmem Simone Grilo Diniz, Cláudia Fonseca, Climene Laura de Camargo, Débora Diniz, Estela Aquino, Eva Blay, Flávia de Mattos Motta, Guita Grin Debert, Heleiet Saffoti, Juliana Cavilha Mendes, Karla Galvão Adrião, Lia Zanotta Machado, Lilia Blima Schraiber, Lourdes Bandeira, Lucila Scavone, Maria Filomena Gregori, Maria do Rosário de Menezes, Normélia Maria Freire Diniz, Regina Lúcia Mendonça Lopes, Russel Parry Scott, Silvia Ramos e Simone Becker, que serão tratadas direta ou indiretamente ao longo deste estudo, uma vez que escrevem, organizam ou participam da escrita das obras para tanto pesquisadas. Um panorama mais específico e exato da violência contra a mulher no Brasil ainda está por se construir. Sobre este fenômeno é possível encontrar dados e informações direta ou esparsamente apresentados em um ou em outro levantamento, como, por exemplo, naqueles do Instituto Avon e do Instituto Ipsos ou no Mapa da Violência a serem apresentados a seguir. Os índices neles apontados ou abordam apenas algumas das perspectivas ou trabalham com a percepção das pessoas sobre o problema. Dentre as dificuldades ou empecilhos à construção de um levantamento mais sistematizado e abrangente pode ser destacado o fato de que um número expressivo dos casos de violência contra mulher não ser denunciados às autoridades. Tal ocultação ocorreria, por exemplo, entre as camadas socialmente mais privilegiadas, que optam por um encaminhamento diferente ao problema, como pode ser notado no boletim do SEADE (1987, p. 65); ou na obra de Blay (2008, p. 10; 91). Ou ainda porque, pelas dificuldades de encontrar a rota capaz de tirá-las da relação violenta ou não se disporem de meios viáveis a fazê-lo, como debatido por Schareiber et al (2005, p. 122-161 passim), muitas mulheres acabam ocultando a situação de violência a que estão submetidas. “Uma porcentagem 14 relativamente pequena das mulheres agredidas denuncia o crime ou busca alguma outra forma de ajuda”, escreve Schareiber et al (2005, p. 140). Com fundamento em dados e em informações, a autora compara um estudo realizado sobre a Zona da Mata pernambucana com outro sobre a cidade de São Paulo, e afirma que, A busca mais ativa de instituições em São Paulo parece deverse, em grande parte, a uma maior facilidade de acesso nessa cidade. Em são Paulo, à época da pesquisa (2002), havia nove DDMs (Delegacia de Defesa das Mulheres). Na Zona da Mata não havia nenhuma nos 15 municípios pesquisados. As mulheres precisariam deslocar-se até Recife para utilizar esse equipamento. Estudo do Ministério da Saúde (BRASIL, 2012, p. 126-134) – com certa sistematização correlacional – intitulado “Impacto da violência na saúde dos brasileiros” também expõe indicadores desse ocultamento da questão da violência por parte de suas vítimas. A base de boa parte dos dados é uma pesquisa de 2004 da Fundação Perseu Abramo, com 2.502 mulheres em 187 municípios de 24 estados das cinco macrorregiões brasileiras, na qual (2012, p. 126) “constatou-se, também, que as mulheres raramente fazem denúncias públicas e, em quase todos os casos de violência, mais de 50% não procuram ajuda”. Mesmo que as ocorrências tenham sido denunciadas, falta ainda ao poder público um trabalho de gerenciamento das informações necessário ao adequado processo de tomada de decisões. Um esforço sustentado e coordenado para o controle e prevenção da violência contra a mulher requer que a questão seja incorporada ao sistema estatístico do país, e que os dados e informações sejam coligidos sob diversos níveis – nacional e regional, por exemplo – e perspectivas – tipos de ações violentas: física, psicológica, moral e sexual, por exemplo. Blay (2008, p. 214) aponta as dificuldades resultantes da carência de uma melhor sistematização dos dados e informações sobre a questão da violência contra a mulher. Dentre tais dificuldades a autora descreve a impossibilidade de estabelecer certas relações úteis à compreensão do fenômeno; e de encontrar as possíveis correlações entre os atos violentos e julgamento dos perpetradores desses atos. Não obstante essas ressalvas, os números apontados conduzem à compreensão de que a situação é grave e de que, pelas implicações que possui, demanda considerada atenção. Heilborn et al (2010, p. 174) cita o caso de uma pesquisa histórica de âmbito nacional com dados sobre vitimização. Datada de 15 1988, a investigação constitui um suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio e contempla algumas perguntas sobre agressão física. As constatações são de que, então, 63% dos casos de agressão física no espaço doméstico tinham a mulher como vítima. A autora aponta ainda uma pesquisa internacional realizada pela Sociedade Mundial de Vitimologia, pela qual foi verificado “que no Brasil 23% de todas as mulheres estão sujeitas à violência doméstica”2. Como pode ser observado, o primeiro dos apontamentos limita-se a tratar dos casos de agressão, configurando, pois num tipo de levantamento limitado. O segundo, por sua vez, não informa o período em que a pesquisa foi realizada, além de abranger apenas a violência contra a mulher em sua dimensão doméstica. Ainda assim trazem números que revelam o caráter assustador do problema. Com base nesses percentuais, e, sabendo-se que, segundo o Censo 2010 – com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2011–, a população brasileira é formada por cerca de 98 milhões de mulheres (BRASIL, 2012), é possível afirmar que o número de mulheres brasileiras sujeitas a tal tipo de violência pode ser estimado em milhões. Essa extensão do problema pode ser encontrada nos dados do já citado estudo do Ministério da Saúde, revelando que (2012, p. 126), “A partir dos dados, a pesquisa fez uma projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo investigado (61,5 milhões), indicando que pelo menos 6,8 milhões de mulheres foram espancadas”. Um dos poucos casos em que é possível encontrar uma razoável sistematização dos dados relativos à violência contra a mulher é observado no Anuário das Mulheres Brasileiras, elaborado em 2011 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Nesse estudo do DIEESE (2011, p. 276-285), há um pequeno detalhamento que permite avaliar o dimensionamento do problema em termos, por exemplo, da distribuição das pessoas que foram vítimas de agressão física, por sexo, segundo local da agressão no Brasil e nas grandes regiões (no ano de 2009); da taxa e razão de homicídios por sexo, segundo o local de ocorrência da morte e estado civil no Brasil (também em 2009) e do número de registros de informação na Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 sobre a Lei Maria da Penha (entre os anos de 2007 e 2010). 2 Grifo no original. 16 Já no ano de 2012, foi divulgada uma pesquisa com o objetivo de traçar um panorama da evolução do homicídio de mulheres entre 1980 e 2010. Com o nome Mapa da Violência 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil, a pesquisa foi feita com apoio da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais - FLACSO - e do Instituto Sangari, e coordenada pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz. É parte de um estudo do próprio autor, intitulado Mapa da Violência 2012: os Novos Padrões da Violência Homicida no Brasil. Um de seus grandes feitos é o de apontar o grau de maiores ocorrência desses crimes por estados e por municípios do país. Dentre os dados e informações destacáveis, pode-se apontar (2012, p. 1617) o fato de Brasil ter o sétimo maior índice de homicídios de mulheres entre 84 países. A base dessa colocação, segundo ainda a pesquisa, é a taxa do que o estudo chama de “feminicídio” no Brasil, que ficou em torno de 4,4 vítimas para cada 100 mil mulheres. Do ponto de vista da percepção das pessoas quanto ao fenômeno da violência contra a mulher, uma ampla pesquisa foi realizada pelo Instituto Avon e pelo Instituto Ipsos (2012) e divulgada no ano de 20113. Alguns dados deste estudo serão ainda analisados ao longo deste trabalho. Em termos da recorrência das situações de violência contra a mulher, vale destacar o fato de que 6 em cada 10 entrevistados conhecem alguma mulher que sofreu violência doméstica; que 59% dos entrevistados declararam conhecer alguma mulher que já sofreu agressão física ou psicológica; e que 27% das mulheres declaram ter sofrido agressão grave. Outros números mais esparsos, mas mais direcionados ajudam a entender a dimensão deste fenômeno. Segundo dados e informações levantadados a partir de estudo realizado pelo Departamento de Informática do SUS – Datasus (2012), a cada 4 (quatro) minutos uma mulher é agredida em seu próprio lar, por uma pessoa com quem mantém uma relação de afeto. Conforme o mesmo apontamento, as estatísticas disponíveis e os registros nas Delegacias Especializadas de Crimes contra a Mulher demonstram que 70% dos incidentes acontecem dentro de casa e que o agressor é o próprio marido ou companheiro. Mais de 40% das violências resultam em lesões corporais graves decorrentes de 3 A pesquisa deve ser considerada no contexto da campanha Fale sem Medo – Não à Violência. A campanha procura compreender as razões daquilo que representa uma das maiores dificuldades da pessoa que enfrenta a violência: falar a respeito. 17 socos, tapas, chutes, amarramentos, queimaduras, espancamentos e estrangulamentos. Descrições assim caracterizadas e dados como os da pesquisa acima sinalizam o estado atual da questão, em que o debate sobre o problema da violência contra a mulher é ampliado tanto na esfera do poder público como na de setores representativos da sociedade civil. Neste sentido, como será discutido no próximo capítulo, é evidenciada a preocupação do poder público em promover certas políticas públicas para enfrentar o problema; o reforço dessas ações por parte de instituições organizadas não governamentais; e a atuação da mídia quer na exposição e na denúncia dos casos de violência contra a mulher, ou mesmo no convite à sociedade como um todo a desempenhar o papel de agente de combate desse fenômeno. Apesar dessa configuração contextual presente favorável à ampliação do debate, uma breve revisão bibliográfica possibilita o entendimento de que a historicidade do tema da violência contra a mulher pode ser encontrada em um passado bastante remoto. De acordo com Blay (2008, p. 33), “homicídios de mulheres fazem parte da realidade e do imaginário brasileiro há séculos, como mostra a variada literatura de caráter jurídico, histórico e sociológico”. Para a autora (2008, p. 215), “a violência contra a mulher está enraizada na cultura brasileira e vem sendo denunciado há mais de um século”. Já no começo do século XX, escritoras, jornalistas, intelectuais e feministas que dispunham de meios como jornais e livros conduziam os questionamentos à realidade de violência perpetrada contra as mulheres. E a própria literatura não escapou de apresentar esse fenômeno, por exemplo, com os chamados “crimes de amor” ou “assassinatos por amor”, bem retratado na obra de João do Rio (2007, p. 83), A alma encantadora das ruas. Todavia, é possível afirmar que a partir das três últimas décadas o assunto vem à tona de uma forma específica. Na medida em que se ampliam o debate e a investigação em torno desse fenômeno nos mais variados campos do saber, tal especificidade vai se constituindo, porquanto nesta fase o tema passa a ser pensado em si mesmo, como uma questão dotada de aspectos específicos, os quais merecem análise e estratégias de ações próprias e não como um fato meramente integrante da violência comumente considerada. Numa perspectiva de mão dupla, pesquisadores de áreas como psicologia, direito, serviço social, enfermagem, 18 gestão de políticas públicas, dentre outras, se debruçam sobre o assunto com vistas a entender os aspectos que o compõem e, na medida dessa atuação, acabam por definir as proporções que a questão da violência contra a mulher passa a assumir. O quadro que assim se configura estende suas raízes ao movimento feminista, mais diretamente ao chamado “feminismo de segunda onda”4, por assim dizer, no conjunto das lutas e conquistas remontantes a essa fase. É sabido que, como um todo, esse movimento buscou desconstruir concepções culturais, comportamentos e práticas sociais e possibilitou a desnaturalização do modo como se constituem as relações entre homens e mulheres em variadas sociedades e que, ao questionar e discutir determinadas assimetrias que aí se estabelecem, contribuiu consideravelmente na redefinição dos arranjos de gênero delas decorrentes. O feminismo de primeira onda e o feminismo de segunda onda são apontados como sendo duas fases em que se distinguiram as marcas e as bandeiras levantadas no seio da organização de mulheres. O feminismo de segunda onda possui foco no aspecto socialmente construído das concepções do feminino e do masculino e é identificado a partir da década de 1960. Constituiu uma fase importante para a compreensão do conceito de gênero como categoria socialmente construída. Segundo Heilborn et al (2010, p. 195), esse foi um período de consolidação e de legitimação do feminismo como prática política e proposta filosófica de compreensão do mundo com notáveis impactos sobre diversas esferas do saber científico. Por um lado, esse foi um contexto reconhecidamente marcado pelo tema da luta de classe e da necessidade de transformação das relações sociais. Por outro, fortaleceu-se o ativismo em termos de demandas das mulheres, repercutindo-se na ideia de que os direitos humanos das mulheres constituem direitos humanos universais. Conforme a autora, A frase clássica de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher”, expressou a ideia básica do feminismo: a desnaturalização do ser mulher. Com a categoria gênero, 4 Fundamentalmente para fins didáticos, o movimento feminista tem sido divido em “ondas” distintas conforme o momento histórico e a pauta de lutas. Segundo Heilborn et al (2010, p. 174) A primeira delas remonta ao século XIX, em torno da luta pelo sufrágio universal e da extensão de outros direitos advindos de revoluções como a Francesa de 1789. Nesse processo, destacaram-se as lutas e as conquistas pelo acesso à educação de nível médio e superior e ao trabalho remunerado e pelo direito de votar e ser votada. Destaca-se nesse sentido o trabalho de Simone de Beauvoir de questionamento das raízes culturais da desigualdade entre mulheres e homens em favor destes. 19 enfatizou-se a construção social da diferença sexual. Não se tratava mais de abordar o poder masculino submetendo às mulheres – uma espécie de guerra dos sexos – mas pensar como está organizada na sociedade a diferença sexual, que se baseia no binarismo, associando o poder ao polo masculino e a submissão ao polo feminino, como se inscritos na sua própria natureza. (HEILBORN ET AL, 2010, p. 195). A demarcação da categoria de gênero a partir das contribuições do movimento feminista nos anos 1970, referindo-se à maneira de representação sobre as diferenças atribuídas ao ser homem e ao ser mulher construídas pela sociedade e que produzem ou reforçam relações de poder foi de importância destacável. De acordo com Heilborn et al, por considerar o caráter social naturalizado da diferença sexual, a emergência do conceito de gênero implicou a ruptura radical entre a noção biológica de sexo e a noção social de gênero. O gênero passou a ser analisado enquanto fenômeno histórico, determinado e produzido ao longo do tempo. Ao se considerar o caráter construído da dimensão de gênero, o feminismo de segunda onda também permitiu a concepção da pluralidade dos femininos e masculinos. Neste sentido, potencializou as articulações de feministas e a interseção com múltiplas agendas, como o combate ao racismo e à heteronormatividade (HEILBORN ET AL, 2010, p. 48). Barsted (In: Almeida, 2008, p. 119-137) debate o papel de importante interlocutor representado pelo movimento feminista brasileiro diante do Poder Legislativo desde a década de 1970, e o impacto do movimento internacional de mulheres nas Nações Unidas e em outras instituições internacionais. Para a autora, essas articulações e demandas possuem a importância de terem decorrido em notáveis resultados em termos de conquistas no campo das políticas públicas contra a violência contra a mulher. Além disso, resultaram em significativos tratados, convenções e conferências que denunciaram a violação dos direitos humanos das mulheres e repercutiram positivamente na legislação de diversos países, nos quais se inclui o Brasil. O capítulo final deste trabalho apontará algumas das formas em que se deram as repercussões resultantes dessas articulações promovidas pelo movimento feminista especialmente com o Poder Legislativo brasileiro. Na avaliação de Heilborn et al (2010, p. 174), as conquistas decorrentes da organização de mulheres puderam ser sentidas principalmente a partir da década 20 de 1980, quando o Estado brasileiro passou a efetivar algumas respostas às demandas formuladas pelo movimento feminista. Algumas questões abordadas por estes programas (como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – PAISM, em 1984), seminários, conferências etc. tornaram-se polos de aglutinação ou bandeiras comuns – como a denúncia da violência doméstica tornaram-se polos de aglutinação ou bandeiras comuns – como a denúncia da violência doméstica e o combate a todas as formas de violência contra as mulheres, a luta antirracista, assim como a luta pela saúde, os direitos sexuais e reprodutivos e a descriminalização do aborto. (HEILBORN ET AL, 2010, p. 174). Por razões como essas, o movimento feminista brasileiro é apontado como uma importante força social para despertar a consciência das mulheres para os seus problemas e para questões que as cercam e as afetam direta e indiretamente. Entretanto, há certa diferença nos apontamentos dos/as autores/as quanto à inserção do tema da violência contra a mulher no debate liderado pelo movimento feminista. Para Machado (In: Grossi et al, 2006, p. 179-82), o movimento feminista brasileiro destacou a questão da violência, por meio, por exemplo, do duro combate aos homicídios contra mulheres e a absolvição dos agressores. A autora destaca que “No Brasil, o grande tema específico agregador em torno dos direitos das mulheres, (sic) é a violência”. E compara esse quadro com aquele constituído em países como a França, onde a abordagem prevalecente foi aquela relativa aos direitos individuais e aos direitos sexuais propriamente ditos. No caso brasileiro, esse quadro foi se reorientando nas décadas seguintes, como aponta Machado: Talvez uma das especificidades do movimento feminista brasileiro seja a permanência da questão da violência na pauta política e, por outro lado, ao contrário, a continuação do exercício da violência na pauta cotidiana brasileira. Bem depois de criadas as Delegacias Especializadas, e recentemente, o movimento feminista propõe a mudança na escuta judiciária: novos procedimentos, mais proteção à vitima e criação de varas especializadas para a violência doméstica contra as mulheres. (GROSSI ET AL, 2010, p. 48). De acordo com Schraiber et al (2005, p. 113), não obstante trazer à tona instrumentos que reafirmavam o direito à igualdade política e ao exercício dos direitos reprodutivos, muitas questões específicas relativas ao feminino permaneciam invisibilisadas. Como escreve a autora, “o direito à não interferência do Estado no lar e na família não considerou, então, a violência doméstica como 21 questão”. Por essa compreensão, a violência cotidiana que mulheres sofrem no espaço doméstico ficou invisível. Tal entendimento coaduna com aquele – ou pode ser analisado à luz daquele – apresentado por Heilborn et al (2010, p. 196-8), que destaca a ideia de que, já no conjunto dos temas da luta de classe e de modificação das relações sociais permeados pela perspectiva marxista, foram levantados questionamentos à busca por mudanças com enfoque exclusivo nas desigualdades de classe. Tratarse-ia, pois, de uma instante em que as demandas específicas das mulheres tinham representatividade menor que aquelas ligadas aos chamados interesses gerais contestatórios à ordem social então estabelecida. Com isso, os elementos fundamentais das demandas abordam aspectos mais amplos, negligenciando aqueles mais ligados ao plano das relações domésticas. Neste sentido, mesmo ao longo da década de 1970, diferentes correntes e ideologias políticas do feminismo brasileiro se envolveram na contestação ao regime autoritário em vigor, e a questão da defesa da autonomia das mulheres diante dos homens, da família e do Estado basicamente tangenciou a pauta de reivindicações desses grupos, em geral marcadas pela luta para a construção de uma sociedade democrática, senão pelo combate à tortura e outras formas de opressão. Como visto na primeira parte deste capítulo, a própria terminologia “violência contra a mulher” é um dos desdobramentos importantes desse processo de resistência e denúncias operado pelo movimento feminista. A partir das formulações teóricas daí emergentes, a condição da mulher no arranjo familiar existente passa a ser analisada e as questões das relações de gênero passam a ser tomadas em conta com base nos conflitos e violência. Para Heilborn et al (2010, p. 29), a expressão acima destacada surge como consequência da individualização da mulher processada pelo movimento feminista nos anos 1970. O apontamento de Heilborn et al (2010, p. 196-8), como a concepção apresentada por Schraiber et al (2005, p. 113), notadamente dá ênfase à chamada violência doméstica. Por outro lado é possível assinalar que outras formas de violências contra a mulher foram condenadas na luta desse período. Afirmação de Blay (2008, p. 214) destaca o papel do feminismo contemporâneo na denúncia, desde a década de 1970, da violência que atinge física, psicológica e moralmente a mulher – que também engloba aquela praticada no âmbito doméstico ou dela se compõe. 22 Embora sejam diferentes os caminhos que vieram a fortalecer o interesse pelo campo de pesquisa sobre a violência contra a mulher, um dos mais notórios é aquele formado por militantes feministas. Grossi et al (2006, p. 13) afirma que tal militância buscara “entender academicamente aquilo que os discursos militantes não davam mais conta”. À medida que esse processo foi se intensificando, configurou-se um cenário favorável ao fortalecimento do debate em torno das questões distintas que envolvem a temática da violência contra a mulher. Tem-se assim o contexto atual de crescente interesse pelo tema, como foi apresentado na parte inicial deste capítulo, e que foram ou ainda serão distintamente tratados no decorrer de todo este trabalho. 2.3 CAUSALIDADES OU AS MÚLTIPLAS BASES DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Outro ponto notadamente discutido na bibliografia considerada neste levantamento diz respeito à busca de um nexo explicativo para o fenômeno da violência contra a mulher. O problema possui numerosos componentes constituintes e sustentadores, e a compreensão prevalecente é de que a atuação ou intervenção sobre eles exige a explicitação de suas causalidades. Trata-se de reconhecer que há múltiplas motivações definindo as práticas e os comportamentos violentos, mas que é possível apreender fatores comuns dando pretexto às suas variadas maneiras de expressão. É importante observar que as fundamentações estabelecidas pelos/as autores/as pesquisados/as não se baseiam simplesmente numa perspectiva do tipo causa-efeito. Entende-se, sim, que há algumas raízes às quais o problema se vincula, e que é possível e viável estabelecer uma base elucidativa que possa desvelar as múltiplas correlações que o envolve. Em boa medida, a produção bibliográfica explora esse aspecto como a maneira mais atualizada de se ampliar o foco da discussão em torno da violência 23 contra as mulheres, qual seja, compreendendo-a como uma das formas de violência de gênero. Com já fundamentado na parte anterior deste trabalho, a expressão gênero possui união direta com o chamado feminismo e se vincula, conceitual e politicamente, com o movimento de mulheres contra a secular opressão patriarcal que tem limitado para as mulheres o alcance às plenas condições de equidade em diversas feições da vida humana. Categoria demarcada pelo pensamento feminista dos anos 1970, gênero se refere à maneira de representação sobre as diferenças atribuídas ao ser homem e ao ser mulher construídas pela sociedade, e que produzem ou reforçam relações de poder. Publicação da Fundação SEADE (1987, p. 2) indica que “cada vez mais consolida-se a convicção de que é no plano das relações assimétricas de poder entre homem e mulher que devem ser buscados os fundamentos que produzem e reproduzem esta forma de violência observada (contra a mulher)”. Embora não deva ser perdida de vista a crítica de Almeida – apontada no primeiro capítulo deste trabalho – quanto à incompletude de uma análise totalmente centrada na categoria de gênero, é adequado citar o escrito pela autora, para quem (2007, p. 27) “A violência de gênero só se sustenta em um quadro de desigualdades de gênero”5. Desenvolvido, esse raciocínio significa que essas desigualdades baseiam-se e fertilizam-se a partir da matriz hegemônica de gênero. Para Almeida (2007, p. 27) “Isto é, de concepções dominantes de feminilidade e masculinidade, que vão se configurando a partir de disputas simbólicas e materiais, processadas, dentre outros espaços, nas instituições cuja funcionalidade no processo de reprodução social é inconteste”. Como exemplos são citados os casos marcantes da família, da escola, da igreja e dos meios de comunicação. Essa explicação que estabelece uma relação direta entre poder e masculinidade tendo como matriz hegemônica as relações sociais de gênero é evidenciada também no estudo de Blay. Os assassinatos por ela pesquisados têm em sua ascendência uma relação direta entre poder e masculinidade, a qual se desenvolve na matriz relacional hegemônica das relações sociais de gênero. É essa a lógica das equações causais quer do ponto de vista material ou simbólico que se desencadeiam nos assassinatos de mulheres analisados pela autora, e que permeia 5 Grifo no orginal. 24 os componentes circunstanciais e situacionais da motivação masculina para cometê-los. Nestes termos, São as diferenças culturais e históricas criadas e prescritas para os homens e mulheres que mascaram e disfarçam o uso de práticas violentas, misóginas e de muitas expressões de ódio e de repulsa contra as mulheres, legitimando-as como sendo um direito masculino e, ao mesmo tempo, honrando os homens em sua virilidade (BLAY, 2008, p. 9). Também a obra escrita por Herman (2008, p. 1) possui uma parte totalmente dedicada a explorar as vinculações entre relações de gênero e desigualdade entre homens e mulheres. A autora destaca a inter-relação entre os aspectos biológicos e sociais para a constituição e manutenção das assimetrias originadas dessa relação. A partir especialmente da leitura de Richard Dawkins, Hermann fundamenta o entendimento de que as desigualdades naturais são geradas a partir de uma base biológica. O desequilíbrio entre masculino e feminino não é um fenômeno exclusivamente social; tem origem biológica. Resulta primitivamente de diferenças entre os sexos, construídas e demarcadas pela evolução e não-exclusivas da raça humana (HERMANN, 2008, p. 23). Somando-se a isso, a “exploração da fêmea” (2008, p. 25) possui também uma componente que se liga ao seu maior investimento genético em termos de funções reprodutivas entre as espécies. Disso decorre simplesmente o fato de que (2008, p. 25) “é o fundamento genético-biológico que, na espécie humana, deu origem às diferenças de socialização, convivência e atribuições entre homens e mulheres, denominadas diferenças de gênero”. A partir dessa fundamentação a autora debate temáticas como sexualidade feminina e preconceito, o chamado paradigma cartesiano e o racionalismo masculino, emergência e vigência do patriarcado e relações de poder e dominação patriarcal. De uma forma ou de outra esses aspectos se fazem presentes e fundamentam, isolada ou conjugadamente, os pilares explicativos que os/as autores/as apresentam para o fenômeno em estudo. Não há como negar nessa discussão, porém, o peso assumido pela questão do chamado patriarcado como um dos elementos considerados mais presentes na sustentação das relações assimétricas de gênero de que decorrem as manifestações diversas de violência contra a mulher. Com mais ou menos detalhes, a conceituação de patriarcado é trabalhada em praticamente todas as obras pesquisadas neste estudo. De forma simplificada, 25 ele se refere “às estruturas de poder nas quais a dominação masculina é exercida”, como escreve Almeida (1998, p. 156). Nesta sua obra, a autora traça uma discussão que explora profundamente as críticas teóricas contra esse modelo explicativo da distribuição diferencial de poder. Uma das críticas resgatadas aponta que a “teoria do patriarcado” apoia-se (1998, p. 156) “no entendimento de que a dominação da mulher se dá através (sic) da apropriação do seu trabalho reprodutivo e da sua reificação sexual”. De fato, é essa a perspectiva que pode ser encontrada no trabalho de Hermann (2008, p. 48-58), na qual a autora resume o histórico da passagem da estrutura de sociedade primitivamente pautada no matriarcalismo para outra predominantemente patriarcal. O protagonismo feminino primordialmente matricêntrica das primeiras culturas conhecidas – e desvelado nos estudos feministas partir da década de 1960 – se atrelava a dois fatores distintos, notadamente ligados à crítica retomada por Almeida acima indicada. Segundo Herman (2008, p. 49), O primeiro era a forma de subsistência, centrada na coleta de frutos e outros vegetais e na caça de pequenos animais, atividades que não exigiam força física e agressividade. O segundo era o poder gerador de vida da mulher (HERMANN, 2008, p. 49). Nessa fase de desenvolvimento da humanindade, nem homens nem mulheres sabiam do papel masculino na procriação. Isso começaria a mudar, conforme a autora (2008, p. 49), há aproximadamente vinte mil anos, quando os homens descobriram a sua função reprodutora, intensificou-se a afirmação do patriarcado. (...) A dominação tornou-se predominante: o homem passou a dominar; e a mulher, a ser dominada. (...) Estava plantada a semente da violência no seio das relações de gênero6 . (HERMANN, 2008, p. 49). Poder-se-ia aqui estender numerosas páginas descrevendo como cada autor/a define os embasamentos desse nexo entre relações de poder e violência contra a mulher – assim como as críticas a ele apresentadas – mas isso escapa aos objetivos deste trabalho. É fundamental destacar, entretanto, que o fenômeno da violência em comento possui sua explicação ligada não ao patriarcado em si, mas à crise pela qual esse modelo de organização social vem passando. Esse ponto é tocado diretamente por Schraiber et al (2005, p. 75), que assim escreve: “Partimos da hipótese de que a violência entre homens e mulheres 6 Grifo nosso. 26 reflete rupturas ou fissuras nos tradicionais padrões culturais de base patriarcal presente na maioria das sociedades”. Como seu foco é mais voltado para a violência doméstica, a autora trabalha com a noção de “casa-família”, para expressar o espaço das relações de parentesco. Essa unidade onde se localiza a família seria uma das mais afetadas pelas transformações supramencionadas, fundamentalmente por ser também o lócus privilegiado de composição e expressão dos padrões culturais patriarcais. No desenvolvimento histórico atual da sociedade, processos de ordem econômica e social infundem novos valores e padrões de comportamento nas relações afetivo-conjugais. Isso tem levado ao questionamento ou rompimento prático com o controle e domínio da mulher pelo homem baseado no maior poder conferido aos homens pela sociedade. Schraiber et al bem explora esse panorama, revelando os aspectos dominantes do debate defensor da existência de uma crise sem precedente na instituição família. Critica (2005, p. 89), entretanto, a ideia de que a violência contra a mulher como produto direto ou destino certo das mudanças processadas nas casas-famílias. Defende ainda um repensar sobre a noção de família e de relações familiares, desmistificando sua padronização, linearidade e fixidez. Não obstante essa consideração, defende (2005, p. 89) que não deve haver impedimento para que “todas essas mudanças trazem profundas alterações nas relações entre homens e mulheres e que estas podem, sob outras dinâmicas, influenciar o surgimento de episódios e contextos de agressões e abusos”. Os desafios colocados pelo novo panorama de questionamentos dos paradigmas referentes às assimetrias culturais e históricas prescritas para homens e mulheres estão também na causa dos assassinatos de mulheres apontadas por Blay (2008). A autora avalia que as práticas e pensamentos masculinos ainda se mostram refratários à aceitação e efetivação de novas relações sociais entre homens e mulheres. Em função disso os muitos exemplos trazidos pela autora em sua pesquisa evidenciam o quanto ainda os chamados ‘crimes de legitima defesa da honra respondem pela expressão do ódio à mulher, seja pela perda de poder e de controle sobre o corpo feminino, seja pelo uso que a mulher possa fazer de seu corpo desafiando os papeis, desempenhos e normas sociais que lhe foram prescritos, seja nas relações de conjugalidade, seja na condição de pessoa ou de indivíduo (BLAY, 2008, P. 10). 27 Aos/às estudiosos/as do assunto, requer atenção esse entendimento de que a violência contra a mulher possui estreito vínculo com esse contexto de metamorfoses e de redefinição dos padrões de socialização fundados na lógica patriarcal. Esse é o convite que está contido na noção de Almeida (1998, p. 162), segundo a qual, “Como não se demonstrou historicamente que o patriarcado, como estrutura de exploração-dominação da mulher, tenha sido superado, descartá-lo como paradigma significa negar as bases e a gênese da subordinação feminina”. Deve-se, pois, buscar melhor compreender as variadas dimensões desse modelo, sua condição de elemento histórico e não de uma estrutura rigidamente definida, na medida em que é permanentemente ressignificado pela intervenção de sujeitos também históricos. Outra obra que contribui para a compreensão das lógicas que fundamentam a existência e perpetuação do fenômeno da violência contra mulher nas diversas sociedades ao longo do tempo foi organizada por Morrison e Biehl. Num dos capítulos, Gonzales de Olarte e Llosa apontam uma perspectiva que em certa medida se difere daquela baseada no componente patriarcal. Em seu estudo (2000, p. 59) sobre as violências domésticas do tipo física, psicológica e sexual, realizado na área metropolitana de Lima, os autores concluem que devem se pensar em variáveis distintas e conjuntas para constituição do fenômeno. Todavia, que suas análises “mostram que a existência de relações violentas está estreitamente relacionada a três fatores: pobreza, desemprego e falta de uma rede de apoio social”. Os dois estudiosos detalham cada um desses elementos, chamam a atenção para a necessidade de pesquisas que investiguem melhor a atuação de tais aspectos como causadores dessa modalidade de violência, e concebe maior relevância à questão da pobreza. As conclusões corroboram com tese inicial de que (2000, p. 51) “A pobreza parece ser um fator importante, mas o quão importante é difícil determinar”; pois expressam (2000, p. 60): “o resultado de nossa pesquisa mostram que a pobreza é um importante fator para a violência, mas está longe de ser o único”. Quanto ao Brasil, o já citado estudo do Instituto Avon/Ipsos (2011, p. 6) aponta que os fatores relacionados à pobreza são percebidos como fortes componentes de causalidade no tocante à violência contra a mulher. Podem ser citadas como percepções destacáveis o fato de que as condições econômicas e a 28 preocupação com os filhos são indicados como principais fatores que mantêm a mulher na relação violenta. E ainda, na lista de estímulo, aparecem os problemas financeiros; e dentre as respostas estimuladas, as duas principais razões para uma mulher permanecer nesse tipo de relação, segundo homens e mulheres, são: falta de condições econômicas para se sustentar (27%) e falta de condições para criar os filhos (20%). Gonzales de Olarte e Llosa fazem ressalvas a essa correlação causal entre violência contra a mulher e níveis de pobreza. Indicam a existência de análises indicadoras de que o fenômeno ocorre em todas as classes sem distinção. Com isso, a incidência aparentemente maior de violência entre os pobres deve-se a uma tendência de metodologia de coleta de dados: grupos da população de renda mais alta estão mais aptos a preservar sua privacidade do que os dos setores pobres. Segundo essa visão, a violência domestica não prevalece entre os pobres, apenas é mais óbvia (MORRISON E BIEHL, 2000, p. 51 ). Ponto de vista semelhante pode ser formulado com base no retrato da violência contra a mulher, elaborado pela Fundação SEADE. Um dos aspectos destacados como explicativos da perpetuação do fenômeno está ligado à ideia de que a total dependência econômica da mulher pode ser um dos fatores determinantes da violência doméstica. (SEADE, 1987, p. 47). Tal afirmativa se sustenta sobremaneira porque é encontrada maior concentração de casos em grupos posicionados na base da pirâmide social (donas de casa e empregadas doméstica, por exemplo). Tanto aqueles que cometem os atos de violência como as mulheres vítimas pertencem às camadas inferiores da estrutura social o que permite diversas conclusões se se promove um estudo mais detalhado a partir de agrupamentos sociais. Essa compreensão de que as mulheres vítimas de violência, cujo perfil foi criteriosamente agrupado no levantamento, compõem-se majoritariamente de pessoas das classes populares possui reserva análoga àquela assinalada por Gonzales de Olarte e Llosa. É o que pode ser notado a partir de uma das conclusões do estudo, segundo o qual (SEADE, 1987, p. 65), “a violência contra a mulher não é uma ‘prerrogativa’ das camadas socioeconômicas mais baixas, 29 podendo ocorrer também em outras camadas sociais”. Entretanto, o segmento composto pelas classes mais privilegiadas tenderia a buscar um encaminhamento diferenciado para o conflito, privatizando os meios de tratamento da problemática, recorrendo aos serviços, por exemplo, de psicólogos e advogados, dificultando, assim, a visibilidade do fenômeno. A baixa proporção de casos de violência entre mulheres de camadas mais altas se comparada às suas congruentes de camada mais baixa é discutida também por Blay. De acordo com a autora (2008, p. 91), “os assassinatos de mulheres por homens e a tentativas de cometê-los ocorrem em todas as classes sociais”. Porém, a própria autora explica a percepção equivocada em relação a esse quadro de ocorrências ao afirmar que, Entre os fatores que fazem parecer que a violência é própria da camada baixa está no ocultamento dos crimes pela camada alta, que recorre a advogados de renome e coma habilidade. Criminosos com condições econômicas e sociais mais elevadas podem fugir ao flagrante e até mesmo desaparecer, auxiliados por advogados, clínicas de saúde ou amigos influentes (BLAY, 2008, p. 91). Lado outro, os assassinatos de mulheres podem enfrentar o processo que Blay (2008) chama de “espetacularização” midiática. Segundo a autora (2008, p. 67), “o assassinato de mulheres ocorre em todas as classes sociais”. Contudo, uma dimensão bem destacada no texto são os tratamentos desiguais oferecidos pela mídia (2008, p. 12), “Sobretudo quando envolvem pessoas de projeção ou de status social, evidencia-se o comportamento diferenciado da mídia”. Os noticiários midiáticos destinam destaques quantitativamente diferentes dependendo de quem são os/as personagens envolvidos/as nos casos. Os resultados encontrados da pesquisa evidenciam que esse tratamento é determinado pela condição socioeconômica das partes. Além desses aspectos apontados, há outras formas de pensar as causalidades do fenômeno da violência contra mulher. Especialmente nos anos mais recentes, o uso do álcool (embora este também seja indicado como atenuante) e da droga tem sido apontado como fatores precipitantes da violência (SEADE, 1987, p. 48). Esses pontos ainda requerem estudos mais detalhados, de 30 modo que possa compreender suas dimensões e sobre elas atuar em vista de uma atuação mais efetiva em termos de enfrentamento do problema. 3 CUSTOS E ENFRENTAMENTO 3.1 AS DIVERSAS ORDENS DE IMPACTOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Outro ponto bastante recorrente nos estudos sobre a violência contra a mulher diz respeito aos impactos desse fenômeno direta ou indiretamente para as vítimas dele, assim como para a sociedade como um todo. Estudos nesse sentido indicam que, além de numerosos, tais impactos são de ordens variadas. Eles atingem a mulher do ponto de vista pessoal, com danos à sua saúde, ao seu universo familiar e profissional, quando não assumem a forma de fatalidade. Com isso, implicações sobre a sociedade se manifestam principalmente na esfera social e econômica. Assim, fundamentalmente devido às perdas significativas de saúde física e mental por parte vítimas da violência, o fato é classificado como um problema de saúde pública. No campo psicológico, por exemplo, esse tipo de violência ocasiona danos à auto-estima feminina e pode levar a mulher a doenças psicossomáticas ou até mesmo ao suicídio. Em um estudo voltado para casos nos Estados Unidos, Miller (1999) descreve a experiência de numerosas vítimas da chamada violência não-física. Os relatos revelam o extremo sofrimento e a devastação existencial das mulheres sujeitas a abusos não-físicos perpetrados pelos indivíduos seus parceiros. De acordo com a autora (1999, p. 20), “a violência que não envolve dano físico ou ferimentos corporais continua num canto escuro do armário, para onde poucos 31 querem olhar”. Na análise, são detalhadamente trabalhadas as dimensões de cada um dos tipos de abusos considerados, dentre eles, o emocional, o psicológico, o social e o econômico. O livro possui ainda o feito de ajudarem as mulheres a identificarem a violência não-física, possibilitando a elas atuar sobre seus efeitos, assim descritos por Miller (1999, p. 21): “O abuso não-físico, de qualquer tipo, é a destruição acumulada do bem-estar emocional, psicológico, social e econômico de uma mulher”. Palazzo et al (apud Palhonni, 2012) aponta variados danos de natureza psicológica às mulheres vítimas de violência. Conforme a autora, a violência é capaz de desencadear ansiedade, fobias, depressão, transtornos de estresse pós-traumático, uso e abuso de drogas lícitas ou ilícitas, tentativa de suicídio, dentre outras, afetando, dessa forma, a qualidade de vida. (PALHONNI, 2012, p. 16) No tangente às repercussões da violência na saúde das mulheres que a experimentam, Schraiber et al (2005, p. 91 - 97) dedica boa parte de sua obra em apontar e descrever as maneiras como elas se efetivam para suas vítimas. Dentre os danos apontados se encontram os adoecimentos, que acometem não só em diferentes partes do corpo, mas também a mente; ou ainda perdas mais gerais, como sofrimentos, transtornos mentais diversos ou dores especificadas ou não. Também Blay (2008, p. 219) discorre sobre os numeráveis malefícios e dificuldades enfrentadas pelas mulheres quando condicionadas a um quadro de violência em suas relações interpessoais. Segundo a autora, com recorrência ainda a Almeida (apud Blay, 2008, p. 219), em experiências assim configuradas, A mulher se depara com reais dificuldades financeiras e o medo de não conseguir sobrevivência e a manutenção dos filhos, além de terror de ficar ao desabrigo. Este quadro paralisa a reação, e garante a reprodução de uma rotina de violência suportada por anos, que pode levar à sua morte. (...) A mulher submetida a tais violências se sente “culpada” por não conseguir ter um relacionamento harmonioso e (...), ela aprende a não reagir, torna-se passiva. É o “desamparo aprendido”7. Submetida a todas essas pressões, a mulher se torna depressiva, ansiosa, sente-se fisicamente mal (BLAY, 2008, p. 219). 7 De acordo com Blay (2008, p. 219), essa expressão que descreve a situação exposta foi corretamente cunhada pro Lenore Walker e citada por Almeida. Grifo no original. 32 Os aspectos relacionados aos impactos no campo social e psicológico são explorados de forma mais ou menos detalhada em praticamente todas as obras deslindadas neste estudo. Uma dimensão apenas vagamente abordada e com carência de pesquisas mais aprofundadas diz respeito aos custos econômicos da violência contra a mulher. Ao longo das obras, poucas referências são dadas a essa questão, não havendo, pois, maior aprofundamento em termos de dados ou informações mais precisos sobre os efeitos econômicos da violência contra a mulher. Embora não diga respeito diretamente ao Brasil, Morrison e Orlando descrevem algumas dessas conseqüências, definindo-as sob a forma de custos. Para esses autores, a amplitude de seus efeitos se percebe no campo econômico e social, se expressando, por exemplo, nos valores anuais dos bens e serviços empregados nos tratamentos médicos e na perda de produtividade ou de salários. “Há evidências insofismável (sic) procedentes de nações desenvolvidas de que mulheres que sofreram de maus-tratos padecem de pior estado de saúde e situação econômica de que aquelas que não sofreram”, escrevem Morrison e Orlando (2000, p. 64). Outra sinalização de que são altos os custos econômicos da violência contra a mulher foi referida Briceño-León (apud Palhoni, 2012), apontando alguns dados concretos. Segundo o autor, os cálculos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estimam que 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro são gastos em custos diretos com a violência, três vezes mais elevados do que os investimentos com Ciências e Tecnologias. Dessa forma, entende-se que, mesmo de maneira indireta, a vida da sociedade é afetada pela violência, pois gasta-se muito com ela, ao passo que esses recursos poderiam ser destinados ao investimento em necessidades sociais que de fato promovam uma melhoria na qualidade de vida das pessoas. (PALHONNI, 2012, p. 17) Esse quadro indica possibilidades de novos estudos aos/às interessados/as pelo tema da violência contra a mulher. Notadamente, é indiscutível a presença de prejuízos dela decorrentes em campos como o do trabalho, reduzindo a participação das mulheres na força de trabalho (aumento do absenteísmo, 33 decréscimo de produtividade e perda do emprego) e, consequentemente, nos rendimentos salariais familiares; e nos da saúde, com os vultosos gastos com tratamentos e aquisição de medicamentos, ainda que permaneçam muitas das sequelas de alguns dos atos violentos. Acrescente-se a esses os impactos no campo escolar, como apontado no estudo desenvolvido por Morrison e Orlando, e suas conclusões (MORRISON E BIEHL, 2000, p. 82 ) de que “crianças de lares onde ocorre violência contra a mulher são significativamente mais propensos a ter problemas disciplinares na escola do que crianças de lares sem violência. Como os estudos desses autores se referem às cidades de Santiago (Chile) e Manágua (Nicarágua), convém pesquisar a presença desses fatores no Brasil e dimensionar o seu peso em termos de custos econômicos para as pessoas em si e para o país como um todo. Morrison e Orlando apontam informações neste sentido na realidade econômica de países como os Estados Unidos e o Canadá, onde as estimativas indicam milhões ou bilhões de dólares sendo empregados nos efeitos diretos e indiretos da violência contra a mulher 8. Visto que a incidência desse tipo de violência é tão representativa no Brasil, é possível supor montantes semelhantes para o país, não devendo ser desconsiderados os posicionamentos econômicos desses três países – e, consequentemente, os efeitos na realidade de cada um deles – na configuração econômica global. Algo a ser, pois, ainda examinado em novos estudos. Estudos (SEADE, 1987, p. 45) têm tratado de outras consequências da violência contra a mulher, especialmente quanto a seu desenvolvimento no âmbito familiar. Como a violência na família é considerado um padrão de comportamento adquirido, o destaque é dado para o fato de que a presença dos/as filhos/as durante a situação de violência possa interferir negativamente na formação psicossocial, formando futuros agressores ou ainda vítimas em potencial. 8 Morrison e Orlando apontam estimativas neste sentido na realidade econimica dos Estados Unidos e do Canadápara os casos também dos Estados Unidos e do Canadá. 34 3.2 UM BALANÇO DAS AÇÕES DE ENFRENTAMENTO E A LEI MARIA DA PENHA A temática das intervenções sobre a violência contra a mulher, tanto para inibir a expansão desse fenômeno como para assegurar proteção às suas vítimas, possui ampla abordagem na bibliografia estudada. Nesse sentido, os/as autores/as destacam as diversas mobilizações historicamente constituídas em diversas esferas para intervir no problema em questão. Tais estudos abordam principalmente o esforço de grupos ligados às causas femininas para que a questão da violência contra a mulher fosse assumido como um problema a ser enfrentado. Exploram também a maneira como as demandas nesse sentido foram sendo incluídas na pauta de organismos internacionais como a ONU e tomando corpo nos documentos reguladores editados por esses órgãos e sancionados pelas nações. Além disso, apontam também a mobilização de variados segmentos para a incorporação dessas reivindicações no âmbito das políticas públicas sociais, pois se reconhecia a importância de medidas dessa natureza para a formalização de direitos garantidos em lei. Enfim, outro importante destaque foi dado às respostas legislativas à violência contra as mulheres. Como pontuado no segundo capítulo, Blay (2008) situa o quadro de denúncias contra o tipo de violência retratado neste trabalho como um processo que perfaz mais de um século. Até os anos 1930, foram escritoras, jornalistas, intelectuais e feministas com acessos a espaço em jornais e livros que conduziram as denúncias às situações de violência. Depois desse período, houve um interregno até a década de 1960, quando novamente tomaram corpo as exigências para que os homens fossem punidos pela agressão e pelos numerosos assassinatos de mulheres. Nesse período se configura o panorama, também descrito no segundo capítulo, em que ganha força a atuação do movimento feminista brasileiro. Sobremaneira após os anos 1970, em meio a outras reivindicações desse movimento assume papel destacável o tema da violência contra a mulher, como destacado na afirmativa de Lia Zanotta Machado, na obra organizada por Grossi et al. 35 Foi importante o fortalecimento do movimento de mulheres contra esse tipo de violência nessa ocasião – décadas de 1970 e 1980. Segundo Gadoni-Costa e Dell'Aglio (2009, p. 153), “Esse movimento foi fundamental para o processo de mudanças sociais e de legislação”. O desenrolar desse processo coincidiu com a implantação das primeiras políticas públicas no Brasil. Políticas públicas podem ser entendidas como um processo que norteia as decisões de governos democráticos em benefício dos governados. Essa noção foi desenvolvida por Helborn et al (2010, p. 14-56), para quem as políticas públicas são compostas de diversas etapas nas quais são definidos os atores, os destinatários, o momento de sua elaboração e o acompanhamento dos resultados por meio da avaliação e do monitoramento. A marca desse processo como um todo, e que o faz merecer o título de política pública, é a submissão ao debate público antes que se torne política governamental. Assim, não obstante a presença de vários/as atores/atrizes e dos e níveis de decisão, a atuação dos governos será decisiva na instrumentalização da política pública. A partir dos modelos explicativos/classificatórios das políticas públicas, Souza escreve que a política pública, embora tenha impactos no curto prazo, é uma política de longo prazo; envolve processos subseqüentes após sua decisão e proposição, ou seja, implica também implementação, execução e avaliação (SOUZA APUD HEILBONR ET AL, 2010, p. 20). Portanto, no campo das discussões acerca da violência contra a mulher, pode-se compreender as políticas públicas como uma maneira de se legitimar e fortalecer os pressupostos delineadores da busca pela constituição de direitos ou pela efetivação daqueles direitos já garantidos em lei. Um dos feitos do movimento feminista no Brasil a partir da década de 1970 foi, segundo Almeida (2007, p. 119), o de “desenvolver sua capacidade de estabelecer diálogo com o Poder Legislativo na propositura de leis que completassem a cidadania feminina”. É seguro afirmar que muitos dos instrumentos para o enfrentamento da violência contra a mulher resultaram dos esforços para manter esse diálogo aberto. Assim foi, por exemplo, na década de 19809, época em que foram criadas, no âmbito estadual, as Delegacias de Defesa das Mulheres, que nos anos 1990 passaram a ser chamadas de Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres 9 De acordo com Gadoni-Costa e Dell'Aglio (2009, p. 153), em 1985, foi criada no Brasil a primeira delegacia de policia de atendimento à mulher, em São Paulo, e nos anos seguintes, em outros estados. 36 (DEAM). Blay (2008) destaca o fato de essas delegacias logo terem se tornado objeto de estudo nos mestrados e doutorados das universidades, embora esses estudos não considerassem os aspectos culturais e políticos das sociedades a que estavam ligadas. “Estas importantes ferramentas passaram a ser analisadas sem se levar em conta os limites estruturais de uma delegacia”, escreve Blay (2008, p. 215). Essa estudiosa do assunto em explanação considera o caráter revolucionário representado por essas delegacias. as mulheres que anteriormente se sentiam constrangidas diante do machismo e da incompreensão nas delegacias em geral, passaram a receber um atendimento diferenciado. Essa mudança na relação de subordinação de gênero configurou-se como o início de uma revolução nos papéis sociais (BLAY APUD GADONI-COSTA E DELL'AGLIO, 2010, p. 153). Por outra via, essa atuação na esfera acadêmica trouxe benefícios na adoção de mais medidas de combate à violência contra a mulher. Assim figura, para Schraiber et al (2005, p. 137) o surgimento de instituições como os Conselhos da Condição da Mulher e as Coordenadorias da Mulher em administrações municipais e estaduais, e a assinatura pelo país de diversas conferencias internacionais, comprometendo-se em desenvolver ações de enfrentamento. Além disso, destacam-se as Casas Abrigo, os Serviços de Atendimento à Violência Sexual, os Centros de Referencia, e instituições governamentais e não-governamentais de diversos setores que foram criados e passaram atender meninas e mulheres em situação de violência. Serviços dirigidos aos homens também foram criados, como é o caso da organização masculina o Laço Branco, muito atuante em Pernambuco, e que trabalha com a questão da masculinidade e da não-violência contra mulher, como apontado por Blay (2008, p. 216). Outras formas destacadas de intervenção sobre o problema da violência contra a mulher foram instituídas no campo da legislação. Um dos fatores desse passo rumo ao maior acesso à cidadania por parte das mulheres foi a substituição, em 2003, do Código Civil Brasileiro de 1996, o qual discriminava a mulher em várias situações, como ao possibilitar que o homem movesse ação para anular o casamento no caso de descobrir que sua mulher não era virgem; ou ainda, permitia que pais ou mães expulsassem a filha da casa paterna em caso de “desonestidade” praticada por esta praticado. Heilborn (2010, p. 175) aponta que, com a aprovação do novo Código Civil, foram instituídas a lei de criminalização do assédio sexual 37 (Lei 10.224/2001), a de probição de discriminação contra a mulher na legislação trabalhista (Lei 9.029/1995) e a de notificação de casos de violência contra mulheres atendidas no serviços de saúde pública e privados (Lei 10.778/2003). Nesse quadro também devem ser destacadas a leis que incluíram em seus dispositivos preceitos de repúdio à violência contra a mulher. Almeida (2007, p. 125-137) discute detidamente esse panorama, e cita como exemplos, a Lei 8.930 / 94, que incluiu o estupro entre os crimes hediondos, considerados inafiançáveis; a Lei 9.250 / 97, que revogou dispositivos processuais penais que impediam à mulher casada exercer o direito de queixa criminal contra o marido e a Lei 11.340/2006, a chamada Lei Maria da Penha. O destaque cedido a esse dispositivo legal é um sinal do marco representativo que ele se constitui no sentido de atuar sobre a questão da violência contra a mulher. As obras analisadas neste trabalho destacam os alcances e limites dessa lei como instrumento de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher – mostrado como a forma mais frequente de violação dos direitos humanos da mulher. Segundo Almeida (2007, p. 135), o texto da lei sancionada em 2006 define “não apenas o que é violência doméstica e familiar contra as mulheres, mas, também, as linhas de uma política de prevenção e atenção ao enfrentamento dessa violência”. A autora destaca ainda que a Lei Maria da Penha trouxe ainda a preocupação com a articulação das ações de União, Estados, Municípios e do Distrito Federal, por meio da integração operacional do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública com áreas da segurança pública, assistência social, saúde, educação, dentre outras. De forma conclusiva, a autora (2007, p. 136) arremata que “a aprovação da Lei Maria da Penha é um caso exemplar bem-sucedido de articulação política entre a sociedade civil/movimento de mulheres e poderes constituídos – Executivo e Legislativo”. Esses e outros aspectos são profundamente discutidos por Hermann (2008), em sua obra totalmente dedicada à análise dessa lei, avaliando o contexto em que ela se frutificou assim como os seus impactos sobre o processo de combate e prevenção à forma de violência definida no texto e a interpretação a ser concedida a cada artigo. Para a autora, Em termos de ordenamento jurídico, a Lei Maria da Penha constituiu avanço e retrocesso. É avanço na medida em que traça diretrizes importantes para incremento de sistema protetivo integrado e coordenado de atenção e valorização da 38 vítima e de prevenção às práticas violentas no âmbito das relações domésticas e familiares. É retrocesso na proporção em que sobrevaloriza a repressão penal, retomando o sistema penal duro como arena privilegiada para enfrentamento da violência doméstica, numa ótica que vigorou até a criação dos Juizados Especiais Criminais pela Lei 9090 / 95, ou seja, por mais de cinquenta anos, se resultados efetivos em termos de prevenção e proteção às vítimas. (HERMANN, 2008, p. 251) Enfim, a bibliografia avaliada neste estudo destaca a necessidade de reforçar as ações institucionais de modo a tornar efetivos os sistemas de proteção legal para o combate à violência contra a mulher. Isso facilitado por meio da criação e reforço dos programas e das redes que atuam em defesa e proteção das vítimas. As propostas nesse sentido não devem perder de vista o componente cultural que o fenômeno em estudo possui. Componente este que necessita de outras formas de atuação muito além daquelas que normas e leis podem definir. 4 Conclusão Este estudo teve como escopo analisar um conjunto de obras sobre o tema da violência contra a mulher. Uma breve revisão bibliográfica apontou que algumas dessas obras eram mútua e frequentemente citadas pelos/as estudiosos/as do assunto. Esse critério orientou a escolha dos livros analisados e citados no decorrer deste trabalho. Indicou ainda uma série de eixos temáticos abordados pelos estudiosos/as que se debruçaram na pesquisa sobre essa questão a partir de variadas fontes e com suas perspectivas teóricas e metodológicas diversas, como é sabido existir no universo acadêmico. A presença maior desses eixos temáticos foi a base prevalecente na escolha dos assuntos a serem elencados e discutidos neste trabalho. A ampla e diversificada abordagem deve ser a tônica dos levantamentos bibliográficos. Haveria campo para isso neste estudo? A resposta é, seguramente, sim. Uma simples consulta às páginas de busca de universidades brasileiras revela que a questão da violência contra a mulher, com toda a variedade que foi apresentada, tem sido amplamente tratada, até mesmo mais do que se pode inicialmente imaginar. São artigos e monografias, para ficar somente em poucos 39 exemplos, que têm buscado deslindar esse fenômeno na expectativa de gerar conhecimento que possa inclusive atuar para que se elimine o problema e seus efeitos. Não obstante a concentração de esforços, este trabalho pode ter perdido de vista muitos dos aspectos importantes que esse tema abrange. Com isso, autores/as mais destacáveis no debate deste tema podem ter sido negligenciados nas análises. Assim como também há o risco de ter sobrevalorizado algumas dimensões temáticas em detrimento de outras mais importantes. Este é um dos aspectos que deve ser levado em conta ao se avaliar os alcances obtidos neste levantamento e análise de produção bibliográfica sobre o tema da violência contra a mulher. Aspecto este que funciona, como pode ser notado, como limitação. Como alcance propriamente dito, podem ser considerados os variados aspectos trabalhados. Eles podem servir na orientação de novos estudos sobre o tema em comento, na medida em que seja percebida a dimensão de seu tratamento nas diversas obras, as lacunas que ainda devem ser preenchidas, e os novos olhares que sobre eles podem ser lançados. Algumas dessas lacunas já foram citadas ao longo do trabalho, e outras podem aparecer ainda nessa parte conclusiva. Uma das conclusões a ser lembradas é que a violência contra mulher tem um elevado componente cultural que não é facilmente superada por meio de normas e leis. Suas raízes fincadas no patriarcalismo e na chamada dominação masculina levam ao entendimento de que, nas estratégias utilizadas para combater e erradicar a violência contra as mulheres, é necessário discutir e explorar melhores maneira de incorporar os homens nas iniciativas contra a violência de gênero, reconhecendo que estas estratégias são diversas e devem refletir a diversidade existente entre os homens. Outro ponto importante a ser pensado é que, além de ampliar os programas de enfrentamento e envolver mais agentes do poder público e da sociedade civil organizada, deve ser empreendidos esforços para evitar a descontinuidade entre os diferentes serviços disponíveis no país. Essa perspectiva exige ação articulada entre instituições jurídico-policiais; e dos sistemas de saúde e judicial, promovendo a melhor efetividade dos serviços oferecidos. Para tanto, as políticas a serem adotadas devem ser pensadas a partir da perspectiva da transversalidade, da intersetorialidade e da interseccionalidade, de modo a articular os principais 40 agentes e garantir a continuidade das políticas de enfrentamento do fenômeno da violência contra a mulher. Devem-se ainda serem discutidos e reforçados os trabalhos de qualificação e capacitação de gestores e outros profissionais para lidar na condução das políticas de combate à violência contra a mulher, inclusive com apoio psicológico e social para profissionais de saúde que lidam com a violência. Da mesma forma, é adequado que se busque reforçar as experiências que geraram ou vem gerando resultados positivos, e envolver os gestores na disseminação dessas experiências nas mais diversas esferas de atuação que podem alcançar, como família, igrejas e instituições jurídico-policiais. Aprofundar o conhecimento desse fenômeno pode ser o passo inicial para se atingir o objetivo de uma sociedade de paz e respeito aos direitos humanos, algo que vem sendo profundamente impedido pela perpetuação da violência contra a mulher. 41 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Suely Souza de. Femicídio: algemas (in)visíveis do públicoprivado. Rio de Janeiro: Revinter, 1998. ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de gênero e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. BLAY, Eva Alterman. Assassinato de mulheres e direitos humanos. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2008. Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SP). Um retrato da violência contra a mulher :2038 boletins de ocorrência / Fundação SEADE, Conselho Estadual da Condição Feminina. São Paulo: SEADE, 1987. BRASIL. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766 . Acesso em 10 de maio de 2012. 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