Capítulo 1 - NUPEA - Núcleo de Pesquisa em Ensino de Arte
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Capítulo 1 - NUPEA - Núcleo de Pesquisa em Ensino de Arte
Capítulo 1 Desdobramentos: artista-obra-público Desenvolvo aqui um traçado1 e um roteiro que atravessam determinados conjuntos de obras de artistas nacionais e internacionais que privilegiaram, a partir do final dos anos 1950 e início dos 1960 até a atualidade, a participação, o envolvimento do público com a obra. Uma vez que o foco desta pesquisa está na relação ARTISTA-OBRAPÚBLICO, seu processo de construção leva em conta um espaço para o acontecimento nas condições determinadas pela recepção, ou seja, a obra é pensada pela artista para ser executada parcialmente pelo público ou, ainda mais, a obra só ganha existência a partir da presença de um público, porque ele também a constrói. Nesses termos, pode-se pensar numa abertura não somente para os procedimentos receptivos – especialmente, da ordem da interpretação, e presentes mesmo nas obras destinadas à contemplação – bem como no desenvolvimento de uma obra co-dependente dos estados presenciais e ativos do público. 1.1. Movimentação internacional entre a participação e a interação. A partir da segunda metade do século XX, começaram a surgir correntes em que se pensava o público em contato mais direto com a arte. Esse público já não era passivo, ele experimentava junto com os artistas as possibilidades diversas de fruição da obra. Nesse sentido, o espectador participava, em certos casos, da própria construção. Para Couchot2 “a forma mais simples da participação foi a instalação. Instalando o espectador no centro da obra, o artista o convidava a adotar uma atitude diferente diante dela”. (Couchot, 1997, p. 136), podendo entrar na obra, sentir de um outro jeito, com um novo olhar diante dela. 1 Esse capítulo é uma linha do tempo para situar minha produção visual. Edmond Couchot é uma das maiores autoridades mundiais em arte eletrônica. Professor e pesquisador dirige o ATI, Art et Technologie de l’Image, Université Paris III, França. Tem diversas publicações sobre arte na era digital. 2 27 Vários foram os movimentos que adotaram esse tipo de arte, como Arte Pop, Arte Conceitual, Land Art com ambientes naturais, Arte Cinética, não se podendo esquecer das celebrações mais coletivas como happenings e performances. Todas essas correntes artísticas estavam – cada qual a sua maneira, a seu modo - em busca de uma participação mais íntima entre público e obra. Frank Popper3, no texto As imagens artísticas e a tecnociência (19671987), faz um percurso histórico, no campo de criadores de imagens que trabalham desde a década de 1960 até o final dos anos 1980, partindo das artes participacionistas até chegar às artes interativas, relacionando arte, ciência e tecnologia. Popper dá exemplos de algumas exposições que ele mesmo organizou, como a “Exposição Luz e Movimento”, no Museu de Arte Moderna de Paris em 1967. Para ele, “a grande maioria dos artistas estava na problemática estética saída do construtivismo e da abstração geométrica. Mas era precisamente graças aos meios técnicos empregados que poderiam ultrapassar essa problemática”. (Popper, 1993, p. 202). Empregando movimentos, luzes artificiais e outros elementos em suas obras, os artistas como Bury e Tinguely faziam dos novos meios técnicos recursos para criação de seus trabalhos. Nesse sentido, era mais cobrada, por parte dos artistas, a participação mental e física do espectador. Outro exemplo que Popper comenta é a exposição “Cinetismo, Espetáculo, Ambiente”, que se refere aos ambientes criados por Edmond Couchot. Em um deles foi montada uma piscina inflável animada por diversos elementos, fazendo apelo a todos os sentidos. Já outro ambiente, criado por Xavier Luccioni, envolvia o passante da rua numa rede de células fotoelétricas, tubos de néon e estruturas de aço. Nos anos 1970, a problemática do ambiente tornou-se mais presente entre as propostas dos artistas que buscavam, de certa forma, na época, dar mais ênfase às idéias do que ao objeto, causando a desmaterialização do objeto. Frank Popper considera que, nesse momento, “o essencial não é mais o objeto em si, mas a confrontação dramática do espectador a uma situação perceptiva”. (Popper, 1997, p. 212). 3 Professor da Université Paris VIII tem vários títulos publicados na área de Arte Tecnológica. 28 Arlindo Machado (1997), um importante especialista das novas tecnologias da imagem, bem como outros autores desse campo de pesquisa e atuação, insiste em apontar para um conjunto de artistas e suas produções como integrando as experiências e as reflexões acerca da participação e da interação: Calder, com seus Móbiles; os espetáculos coletivos do Living Theatre; o Happening; as celebrações coletivas; as instalações e ambientes imaginados por artistas como Donald Judd, Richard Serra ou Robert Morris; os poemas desmontáveis de Raymond Quenéar; até chegar a Lygia Clark, com os Bichos e os Parangolés de Hélio Oiticica. A idéia de trabalhos interativos abrange vários campos e persiste desde a década de 1930 até os dias de hoje. Arlindo Machado menciona que desde Bertolt Brecht (1932) já se falava de interatividade nos meios de comunicação, com participação direta dos cidadãos. Essas idéias começaram a se concretizar 40 anos depois, nas rádios e televisões livres da Europa. Nos anos 1970, Enzensberg (Machado, 1997, p.144) propunha a interatividade como mecanismo de trocas entre emissores e receptores. Raymond Willians (1979), nessa mesma época, chamava a atenção para as tecnologias vendidas e difundidas como “interativas” que não passavam de um processo em que o usuário escolhia uma resposta, muitas vezes, pronta e esperada. Pode-se observar tal fato até os dias de hoje, pois existem jogos ou programas de TV que usam essa terminologia “interativa” para aumentar o consumo de seus produtos. “Interatividade, excelente argumento de venda que, aliada às técnicas de comunicação, unem homens e máquinas”. (Sfez, 2000, p.121). Para Raymond Willians, interatividade implica respostas autônomas, criativas e não previstas. Entretanto, até hoje se criam arte interativa ou mídias (comunicação) interativas com vários equívocos. Nos anos 1980, as novas tecnologias, computadores, redes de comunicação, propuseram a ruptura com as pesquisas realizadas até então. É a partir dessa época “que se pode falar de uma arte da tecnociência, de uma arte em que intenções estéticas e pesquisas tecnológicas fundadas cientificamente parecem ligadas indissoluvelmente e, em todo caso, se influenciam reciprocamente”. (Popper, 1993, p. 203). 29 Os aparatos tecnológicos também vêm contribuindo para a participação mais efetiva do espectador sob o termo “interatividade”, afirma Frank Popper (1993), e vêm dando significativos resultados desde os anos 1980. Gloria Collado, no seu texto sobre a Bienal de Lyon, afirma que ni el vídeo ni el ordenador han contribuido especialmente a la creación de la interatividad. Sólo en nuestro siglo los espectáculos dadá, los happenings o las acciones y performances inauguradas por los artistas fluxus han sido algunas de las manifestaciones que más han contribuido a la idea de lo que ahora há dado en llamarse interactividad.(Collado, 1995) Aquilo que parecia estar no fim em meados dos anos 1970, que é a participação do público nas obras, a partir dos anos 1980 volta com muita força, devido às diversas possibilidades encontradas nas imagens de sínteses (imagens numéricas), criadas em computadores com os projetos de arte interativa pelos artistas. Couchot4 acredita que as artes participacionistas foram sucedidas pelas artes interativas. Ele fala de arte interativa proporcionada pelas novas condições de acesso a informações oferecidas pelas possibilidades de imersão e exploração no campo da tecnociência, e entende que a obra interativa, só tem existência e sentido na medida em que o espectador interage com ela. Sem esta interação, da qual é totalmente dependente, ela estaria simplesmente reduzida a um gesto elementar, a obra permanece uma potencialidade– computacional, pois é feita de cálculos – não perceptível. (Couchot, 1997, p. 40). As criações envolviam novas tecnologias e o campo da ciência, construindo trabalhos ligados, a princípio, às relações humanas, e que se expandiram para diversas áreas como biologia, psicologia, física, matemática, química e outras. Conforme Popper aponta, a diferença entre a arte produzida por essas novas tecnologias e as artes plásticas tradicionais é que o importante para a arte tecnológica é a ênfase dada ao processo da construção do trabalho, enquanto o outro tipo de arte enfatiza a obra acabada, não importando o processo. 4 Para Couchot interatividade não espera. É um conjunto do sistema de produção, de difusão, de memorização das informações, construída em “tempo real”. 30 O artista, na arte tecnológica, busca fazer parcerias com profissionais de diversas áreas, como a música, as artes cênicas, a arquitetura, e se apóia em importantes teóricos da filosofia, antropologia e sociologia para concretizar seus projetos, construindo pensamentos e obras híbridas. Provoca assim mudanças na consciência cultural e na nossa maneira de pensar que se acham ao mesmo tempo modificadas e alargadas por hibridação de duas culturas, artística e científica. A imagem toma aí seu verdadeiro lugar, já que certos raciocínios científicos são efetivamente substituídos por demonstrações visuais. Por outro lado numerosas criações artísticas não podem mais passar sem cálculos e sistematização. (Popper, 1993, p. 204). Tudo isso é uma nova abertura no campo artístico, porque teorias científicas tornam-se construções visuais, associando os espectadores à produção da obra. Essa arte é aberta, instável e mutável. Faz do espectador um co-autor, tendo a responsabilidade de um autor, pois em várias situações a obra não existe sem o espectador. A existência da obra interativa depende do outro, não só do criador, mas daquele que vai introduzir questionamentos e ações, num diálogo que, para Edmond Couchot (1997), é quase instantâneo, em tempo real e não mais mental. Couchot aponta dois dispositivos interativos, recursos que os artistas atualmente estão utilizando para trabalhos de arte eletrônica. Os dispositivos fechados ou autônomos (off-line) e os outros dispositivos abertos ou interconectados em rede (on-line). Os dispositivos fechados caracterizam-se pelas relações entre espectadores e obra num espaço delimitado pelos aparatos técnicos e, conseqüentemente, pelo espectador. Esses aparatos podem ser capacetes, óculos usados por uma pessoa e conectados a um computador, que, por sua vez, faz aparecer animações com textos, sons, figuras. A pessoa que está conectada age de forma instantânea sobre as informações dadas pela máquina, através de dispositivos que registram gestos. O espectador “é convidado a entrar em universos virtuais mais ou menos complexos e a interagir com eles conforme um tipo de cenário ou percursos, não lineares, concebidos pelo autor”. (Couchot, 1997, p. 138). 31 Um dos exemplos mais comuns é o da obra de Jeffrey Shaw, que convida o indivíduo a passear por uma cidade cuja arquitetura é toda construída por letras que formam textos. Pedalando sobre uma bicicleta de verdade, o artista faz com que se enxergue não só com os olhos, mas com os próprios pés e pernas. Na medida em que pedala e inclina o guidom para o lado direito ou esquerdo, automaticamente vê imagens que dão idéias de uma esquina real. Nos dispositivos abertos, a relação obra e espectador acontece na rede, ou seja, as obras são criadas para circular na Internet, o que possibilita o alcance de uma dimensão coletiva, pois a obra está disponível para várias pessoas, em diferentes lugares, o dia todo. A participação do espectador, em muitos casos, se dá em forma de gestos, de textos, de imagens (e eventualmente de sons) e se inscreve na memória da obra cuja identidade muda e evolui constantemente, em torno de um núcleo preconcebido pelo autor que lhe assegura uma coerência e uma continuidade (Couchot, 1997, p. 142). Essas experimentações na rede, que crescem a cada dia, acontecem desde o início de 1980, com Roy Ascott, desencadeando um interesse de vários artistas por esse campo. Hoje é difícil fazer um levantamento certo e preciso dessa produção, porque é uma área que está num crescente desenvolvimento, principalmente por jovens artistas, devido às possibilidades de intercâmbio com áreas diversas. Mas não podemos deixar de citar o artista brasileiro Eduardo Kac, que vive e trabalha em Chicago: Pioneiro da arte digital e transgênica, Kac concebeu e desenvolveu a holopoesia a partir de 1983. A holopoesia é uma nova linguagem verbal/visual que explora as flutuações formais, semânticas e perceptuais da palavra/imagem no espaço-tempo holográfico. Kac propôs e desenvolveu a arte da tele presença a partir de 1986, quando apresentou na mostra "Brasil High Tech", no Rio de Janeiro, um robô de controle remoto através do qual participantes interagiam. Kac projetou a arte da tele presença internacionalmente com o projeto "Ornitorrinco", desenvolvido a partir de 1989. A arte da tele presença é uma nova área de criação artística que se baseia no deslocamento dos processos cognitivos e sensoriais do participante para o corpo de um telerrobô, que se encontra num outro espaço geograficamente remoto. (http://www.ekac.org/kac2.html, acessado em 19/04/20050) 32 Couchot acredita que algumas experimentações ainda busquem uma reterritorialização, reivindicando o uso de uma língua e de sua cultura, no propósito de ir contra o poder da hegemonia anglo-americana, numa perspectiva que ele denomina monocultural. 1.2 O Brasil dos Neoconcretos e a problemática da participação do público: antecedentes, desdobramentos internos, rupturas e modelos de relacionamento com a obra. Os anos 1950, no Brasil, foram marcados por idéias e ideais vinculados ao movimento concreto, em busca de uma (re)construção da linguagem plástica moderna. A exploração da forma, enquanto geométrica, criando composições no plano e no espaço, fez com que o concretismo se tornasse uma racionalidade objetiva à obra. Os concretos, animados pela vontade de ultrapassar as limitações provincianas, realizam um grande esforço de compreensão das origens e evolução da arte abstrata filiada à vertente construtivista européia para aderir à sua última versão: a arte concreta. (Milliet, 1992, p. 24). Estabeleceram-se dois grupos concretos. O Grupo Frente (1954 a 1956), no Rio de Janeiro, foi liderado por Ivan Serpa e seus companheiros Hélio Oiticica, Décio Vieira, Abraham Palatnik, Lygia Pape, Aluísio Carvão, Weissmann e vários outros artistas, e a ele posteriormente se integrou Lygia Clark. Esse grupo5 era aberto a criações individuais e à liberdade de criação, sendo variada a produção dos artistas a ele ligados, pois não seguia um padrão, como o Grupo Paulista6, cuja produção e pensamento eram mais homogêneos7. 5 O grupo concreto carioca prega a experimentação de todas as linguagens, ainda que no âmbito não-figurativo geométrico e opõe uma articulação forte entre arte e vida - que afasta a consideração da obra como "máquina" ou "objeto". Dá maior ênfase à intuição como requisito fundamental do trabalho artístico. As divergências entre Rio e São Paulo se explicitam na Exposição Nacional de Arte Concreta (SP, 1956 e RJ, 1957), início da ruptura neoconcreta, efetivada em 1959. Fonte: www.itaucultural.org.br, acessado em 10/11/2004. 6 A pintura concreta propunha uma nova visualidade que, orientada em princípios geométricos organizados segundo critérios de Gestalt (Teoria Geral da Forma), proporcionasse ao espectador uma fruição objetiva - a composição observada no quadro deveria corresponder, exatamente, àquilo que o artista concebeu no projeto original da obra. Um quadro concreto, de acordo com Max Bill, seria a "concreção de uma idéia", uma "realidade que pode ser controlada e observada”. 33 Num plano geral, o grupo Paulista, mais radical do que o Grupo Frente, pensava o concretismo dentro de parâmetros da lógica operacional, criando normas e regras, condenando conteúdos que não iam ao encontro do seu pensamento, que era contra qualquer tipo de conteúdo “emocional, onírico ou libidinal na arte” (Milliet, 1992, p. 24), impedindo explorações fora do campo da teoria da Gestalt. Liderado por Waldemar Cordeiro8, cria o manifesto “Ruptura de 1952”, que deixa clara essa idéia. Os artistas Lothar Charroux, Geraldo de Barros, Kazmer Féjer, Leopoldo Haar, Luiz Sacilotto, Wladyslaw e o próprio Cordeiro assinaram esse manifesto. Palatnik (ver figura 7), artista brasileiro, entre os anos de 1949 e 1950 deu início a experiências com luzes e movimentos, gerando aparelhos cinecromáticos, pensando em levar para a pintura elementos da luz e do movimento no tempo e no espaço. O crítico argentino Jorge Romero Brest, mestre de várias gerações de críticos latino-americanos, em seu longo comentário sobre a I Bienal de São Paulo, publicado no número 26 da revista Ver y estimar, de Buenos Aires, em 1951, fala com entusiasmo da “curiosa máquina que sobre o princípio do caleidoscópio criou Abraham Palatnik" e na qual "vão se desenhando formas diversas, animadas por um colorido intenso que pode chegar a ser muito fino e sutil, estruturando-se como composições que a pintura propriamente dita quer obter mas Por iniciativa dos concretos paulistas, realizou-se no MAM /SP e no Ministério da Educação do Rio de Janeiro a I Exposição Nacional de Arte Concreta, que reuniu pinturas, desenhos, esculturas e poesias de artistas das duas cidades e contou com palestras e conferências. Pela primeira vez no país, foi apresentado um amplo panorama das artes plásticas e da poesia concreta, tendo sido lançado o Plano-Piloto da Poesia Concreta de Décio Pignatari. Entretanto, a mostra acabou por ressaltar as divergências flagrantes entre os concretistas. Para Roberto Pontual, "de um lado, propunha-se a concentração de esforços no conceito de pura visualidade da forma, na poesia como nas artes plásticas, eliminando dela toda e qualquer veleidade de dimensão simbólica. Do outro, acentuava-se a consideração da obra de arte como fato orgânico, e não como mera `máquina` ou `objeto`, embora sem deixar o âmbito não-figurativo geométrico". Como conseqüência dessa divergência, surge, dois anos depois, o Grupo Neoconcreto carioca (Enciclopédia Artes Visuais: www.itaucultural.org.br/AplicExternas/Enciclopedia/artesvisuais2003, capturado em 10/11/2004 as 16:53). 7 Criou-se uma idéia de que um grupo era mais homogêneo, programático e o outro tinha uma postura mais liberal. Existem várias pesquisas, de mestrado e doutorado, sendo realizadas nessa área, mas, como esse assunto não é meu objeto específico, não me aprofundarei nessa questão. 8 O manifesto, redigido por Cordeiro e diagramado por Haar, e que parece ter causado maiores reações do que o próprio trabalho apresentado, estabelece uma posição firme contra as principais correntes da arte no país. Pretende-se romper com o “velho”, a saber: “todas as variedades e hibridações do naturalismo; a mera negação do naturalismo, isto é, o naturalismo ‘errado’ das crianças, dos loucos, dos ‘primitivos’, dos expressionistas, dos surrealistas etc., o não-figurativismo hedonista, produto do gosto gratuito, que busca a mera excitação do prazer ou do desprazer”. Se, por um lado, a oposição contra qualquer forma de figuração não é nova, por outro, a não aceitação da abstração informal é inédita e ajuda a compreender a posição do grupo. (Manifesto “Ruptura”, em A. Amaral (org.), Projeto Construtivo Brasileiro na Arte: 1950-1962. Rio de Janeiro – São Paulo, 1977, p. 69). 34 não obtém (Frederico Morais acessado em 10/11/2004). In: www.macniteroi.com, Em vários trabalhos Palatnik envolvia o espectador de maneira lúdica e envolvente, como, por exemplo, na obra de 1959, “Mobilidade IV”, em que as bolinhas de madeira se movimentavam. Esse trabalho, em 1983, foi retomado e transformado em um objeto lúdico, que era uma base circular de vidro, de formas geométricas de cores diferentes, acionadas diretamente pelo espectador por um bastão magnetizado. Vale dizer, utilizou os pólos positivos e negativos dos ímãs para atrair ou repelir as formas geométricas que constituíam fragmentos de uma estrutura maior a ser armada pelo espectador a partir do uso do bastão magnetizado. Para Frederico Morais, os aparelhos cinecromáticos de Palatnik não apenas se anteciparam à vertente construtiva, que eclodiu com os grupos Ruptura (São Paulo, 1952) e Frente (Rio de Janeiro, 1954) para se consolidar com o Concretismo (1956) e Neoconcretismo (1959), como fundou a vertente tecnológica da arte brasileira (www.macniteroi.com, acessado em 12/10/2004). Em 1957, Lygia Clark, em seu diário, fez um desabafo sobre as formas seriadas dos concretos e a maneira “falsa de dominar o espaço” (Milliet, 1992, p. 25). Clark, nessa época, já pensava na idéia do espectador participante e da obra aberta à interferência imediata do espectador: “A obra (de arte) deve exigir uma participação imediata do espectador e ele, espectador, deve ser jogado dentro dela” (Milliet, 1992, p. 25). O Neoconcretismo surgiu dessas divergências de pensamento entre os dois grupos concretos, foi um caminho proposto pelos artistas do grupo carioca, os quais pensavam numa produção menos elitista, sem fórmulas, e no espectador como parte da obra, não mais um ser que contemplasse passivamente, e sim um ser que entrasse na obra ativamente. É importante aqui relatar alguns pontos do manifesto Neoconcreto: Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquinas’ nem como ‘objetos’, mas como um quase-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica. Neste ponto podemos elucidar com a série de obras de Lygia Clark intitulada “bichos”, estruturas metálicas com dobradiças, onde a presença do espectador se torna fundamental, pois a manipulação das partes pode e deve ser feita, o que mantinha 35 a obra “sempre viva”, ou, nas palavras do manifesto, a “realidade não se esgota nas relações exteriores’. Conseqüentemente, ao contrário do concretismo racionalista, que toma a palavra como objeto e a transforma em mero sinal ótico, a poesia neoconcreta devolve-a a sua condição de ‘verbo’, aqui transmite a separação também no âmbito da poesia,rejeitando o ‘objetivismo mecanicista’, pregando a ‘espacialização do tempo verbal’. Na poesia neoconcreta a ‘espacialização’ se faz presente dentro dos livros-poemas nos quais o leitor/espectador faz parte do poema, sua presença é fundamental. (Martinho Alves da Costa Junior, 2003 In: www.itaucultural. org.br, acessado em 12/11/2004). Esses pensamentos serviram como ponto de partida para produções de diversos artistas dessa geração, principalmente Lygia Clark e Hélio Oiticica9, que lhes deram continuidade recuperando a poética na obra de arte, fazendo transcender a própria materialidade da arte e levantando questionamentos a respeito da individualidade do artista. Os “Casulos” (1958), de Lygia Clark, mostram o desdobramento do plano. São obras que estão entre a pintura10 e a escultura, rompem com a pintura e criam a partir daí objetos livres de bases, suportes e são envolventes, como os “Contra-relevos de ângulo”, presos aos cantos das paredes e suspensos no espaço, trazendo o espectador para dentro da obra. Os “Bichos”, de 1960, “... nome tão brasileiro, entidade abrangente, animal síntese, mito que atemoriza e atrai...” (Milliet, 1992, p. 65), definição de Lygia Clark para essa criação de planos geométricos de metal articulados e de tanto interesse aos olhos e ao tato dos espectadores, são objetos que demonstram as inquietações da artista. Clark (ver figura 8 e 9) negava a contemplação da obra e privilegiava a visão associada ao tato, ou seja, o sensitivo, a descoberta do corpo. Criou os “objetos relacionais” e várias experiências sensórias/motoras, preocupadas 9 Para Oiticica, construtivos são os artistas que fundam novas relações estruturais na pintura (cor) e na escultura e abrem novos sentidos de espaço e tempo. 10 A partir de 1960, quando Lygia Clark se convenceu da “morte do plano” (...) e caiu da parede para o chão, com seus “bichos”, sua obra adquire cada vez mais um conteúdo filosófico-religioso. Foi a fita de Moebius que lhe sugeriu a precariedade do plano. Seu “caminhando” é uma fita que o espectador, agora criador, corta, numa experiência pessoal e intransferível. A tesoura segue a picada, “a resposta vem à medida que o espectador opta”. O final (o fim da picada) é a floresta, isto é, o “vazio pleno”, o espectador, ele mesmo. Antes no bicho, a relação espectador/obra era dualista e metafórica. “Agora, no caminhando, torna-se existencial, pois, como diz a própria artista, o ‘único sentido da experiência é fazêla’, donde o que se tem é o caráter absoluto do ato da imanência”. (Morais, Frederico de Artes Plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 22). 36 com a recuperação da memória do corpo através desses objetos que trazem experiências talvez nunca sentidas pelas pessoas ou até sensações obtidas na infância. O que interessava para a artista nesse momento não era mais o objeto em si e sim as relações construídas entre o objeto e o receptor. A partir de 1964, o envolvimento ativo do público tornou-se o cerne de suas preocupações. Abandonando a construção de objetos, tornou-se improdutiva, no sentido material da produção e, como conseqüência, ausente do mercado. (Milliet, 1992, p. 94). Alguns artistas dessa época negavam as instituições e recusavam a comercialização de suas criações, e buscando trabalhar numa produção coletiva no contato direto com o público, que é o caso específico de Clark e Oiticica. Lygia Clark, com seus objetos, trabalhava diretamente com grupos e ou indivíduos, num contato profundo com suas vivências psíquicas. Produziu criações coletivas vividas e sugeridas por ela e realizadas pelos participantes em espaços sensoriais, como é o caso das obras O Eu e o Tu, A Cesariana, Túnel, Baba Antropofágica, Canibalismo, Camisa de Força, A Casa é o Corpo e várias outras. Esse último trabalho, Lygia Clark o descreve como Uma estrutura de oito metros de comprimento, com dois compartimentos laterais. O centro desta estrutura se constitui de um grande balão de plástico. As extremidades são fechadas em elásticos e as pessoas ao se encostarem a eles provocam as mais variadas formas. Ao penetrar no labirinto, o visitante afasta os elásticos da entrada, sentido um rompimento semelhante ao de um hímen complacente e tendo acesso assim ao primeiro compartimento chamado “penetração”. Nesta cabine a pessoa pisa numa lona estendida pouco acima do chão e perde o equilíbrio: no escuro ela apalpa as paredes que cedem, da mesma forma que o chão. Perseguindo o caminho através do tato, encontrará uma passagem semelhante à entrada e a pessoa chega na “ovulação”, espaço igual ao anterior, cheio de balões. Ao prosseguir, o visitante alcança o amplo espaço central, onde é possível ver e ser visto do interior. Neste local há uma imensa boca através da qual a pessoa entra na “germinação”, ali tomando as posições que lhe convier. De volta ao túnel, continuando o passeio, penetra no compartimento da “expulsão”, que, além das bolinhas macias de vinil espalhadas pelo chão, possui uma floresta de pêlos pendentes do teto. Hélio Oiticica (figuras 10, 11 e 12), a partir do movimento neoconcreto, começou a propor saída para o espaço, desintegrando o quadro e a pintura, 37 numa liberdade de pensamento e experimentação, como ele mesmo afirma: parti para criações de novas ordens (...) Para mim foi uma abolição cada vez maior de estruturas de significados, até eu chegar ao que considero a invenção pura: “Penetráveis”, “Núcleos”, “Bólides” e “Parangolés” foram o caminho para a descoberta do que eu chamo de “estado de invenção”. (Hélio Oiticica, entrevista a Ivan Cardoso, 1979 In: Favaretto, 2000, p. 47) Oiticica propunha a igualdade entre público e artista e planejou algumas manifestações nas ruas do Rio de Janeiro em que público e artistas pudessem criar juntos. Quebrando a noção de gênio, surge uma nova inscrição da produção artística correspondente, um novo espaço estético, onde tudo pode surgir, tudo pode relacionar-se com tudo em jogo permanente. (Favaretto, 2000, p.19) Buscando cada vez mais a integração entre espectador/participador e o espaço, criava-se a experiência dos Penetráveis, que acabou se desenvolvendo em toda a sua trajetória. Para Oiticica, no Penetrável a relação entre o espectador e a estrutura-cor se dá numa integração completa e de caráter coletivo, porque a partir dessa experiência é que, afirma Favaretto, as relações plásticas são transformadas em vivências: vivência da cor, do espaço cotidiano estetizado, gerando experiências em que o próprio participador se transforma. O primeiro Penetrável era uma construção de madeira, com porta deslizante, em que o participador se fechava de cor. Invadia-se de cor, sentia o contato físico da cor, ponderava a cor, tocava, pisava, respirava cor. (Pedrosa, Rio de Janeiro, 1965 IN: Oiticica, 1986, p.11) Na ânsia de liberdade e de novas experiências, Oiticica passou conviver com as pessoas do morro da Mangueira, e esse encontro foi de grande importância para as suas obras, como afirma Mário Pedrosa: após a iniciação de Oiticica ao samba, o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para uma experiência de tato, movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade. Os Parangolés, 1964, eram panos de cor que se movimentavam de acordo com o percurso do espectador, numa profunda relação com a dança. A 38 obra veste o corpo, depende do corpo do espectador/participador para existir num espaço-tempo, numa incorporação do corpo na obra e da obra no corpo. Na experiência da Tropicália, 1967, Oiticica deu ambientação a uma série de Penetráveis anteriores. A Tropicália surgiu numa necessidade dele de criar um ambiente tropical, e que envolveria o próprio comportamento do participador. Oiticica descreve a obra: “o ambiente foi totalmente tropical, como um fundo de chácara, e, o mais importante, havia a sensação de que se estaria de novo pisando a terra. Esta sensação sentia eu anteriormente ao caminhar pelos morros, pela favela, e mesmo o percurso de entrar, sair, dobrar ‘pelas quebradas’ da Tropicália”. (Oiticica, 1986, p. 99). Nas experiências espaciais pessoais e coletivas, sensoriais, participativas e relacionais que encontramos nas obras de Oiticica e Clark, o que acontece é uma nova noção de comunicação entre artista, público e obra. E esses trabalhos só têm sentido se houver a participação ativa do espectador. Todos eles são criações que possibilitaram a interferência do público, rompendo com a noção de arte contemplativa e de artista como gênio. De certa forma, essas obras pressupunham a intervenção de quem as observava, convidando o sujeito a interagir com elas. Esse traçado e os estudos das obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica me motivaram a pensar e elencar outros artistas11 em cujas obras o corpo está presente, tais como: Diana Domingues, Cang Xin, Joel-Peter Witkin, Orlan, Salvador Dali, Sarah Jones, Vanessa Beecroft, Spencer Tunick, Hudinilson Jr., Arno Rafael Minkkinen, Raymond Depardon, John Coplans, Lucian Freud, Jenny Saville, Lucimar Bello, Pierre Radisic, Vicente de Mello, Zhang Huan, Robert Davies, Andres Serrano, Luis Hermano, Gerhard Richter, Sally Mann, Sergei Isupov, Xu Bing, Tian Miao, Francis Bacon, Gerard Schlorser, Daisy Xavier, Piotr Uklánski e artistas que participaram do projeto Quietude da Terra: Cláudia Andujart, Domenico de Clario, Janini Antoni, Mario Cravo Neto e Tunga. 11 As imagens das obras desses artistas citados se encontram no capítulo dois, Ensaio Visual: Corpo 39 1.3 Algumas questões contemporâneas em torno da arte antropológica e da estética relacional. Outra maneira que o público tem de participação e experimentação com a obra está no que Nicolas Bourriaud denominou, nos anos 90, de Arte Relacional, termo criado por ele para sustentar obras de arte em que o que se privilegia é um modo de se relacionar com a obra, estabelecendo um espaço para a convivência e para a geração de trocas de caráter simbólico entre artistas e público, seja pela coleta de depoimento, seja pela troca de elementos pessoais, seja pelo contato físico entre artista(s) e público. O termo “Relational Aesthetics” foi criado por Nicolas Bourriaud como título de seu primeiro livro em 1997, a partir de observações de alguns artistas como, por exemplo, Rirkrit Tiravanija (ver figuras 13,14,15 e 16), Philippe Parreno, Liam Gillick, Pierre Huyghe, Maurizio Cattelan, Vanessa Beecroft, todos eles participantes da exibição “Traffic”, Capc Bordeaux, 1996, organizada por Bourriaud12. Os artistas com os quais Bourriaud13 trabalhava no final da década de 1990 mostravam uma tendência de localizar suas práticas não em relação aos aparatos próprios da arte, mas nos metafóricos espaços colonizados pela massa e pela cultura de espetáculo. “Relational Aesthetics” é uma tentativa de decodificar o tipo de relação que o espectador produz a partir do trabalho de arte. 12 As referências que permitem fazer estas afirmações podem ser encontradas nos seguintes sites, todos eles acessados no período de agosto a novembro de 2004. Sobre Bourriaud http://www.stretcher.org/archives/r3_a/2002_11_13_r3_archive.php, acessado em 04/08/2004 http://www.findarticles.com/p/articles/mi_m0268/is_8_39/ai_75830815/pg_2, acessado em 04/08/2004 ArtForum, April, 2001, acessado em 20/08/2004 www.sanalmuze.org/etkinliklereng/nicolasbourriaod.htm acessado em 20/08/2004 Site Internet: www.palaisdetokyoo.com acessado em 20/10/2004 PHILIPPE PARRENO http://www.portikus.de/ArchiveA0111.html#, acessado em 20/010/2004 Rirkrit Tiravanija http://www.mip.at/en/dokumente/1164MAuriziocattelanhttp://www.eyestorm.com/feature/ED2n_article.asp?article_id=32&artist _id=95 acessado em 05/10/2004 13 Bourriaud foi curador, crítico de arte e codiretor, com Jérôme Sans, do Palais de Tokyo em Paris, museu voltado para a criação de Arte Contemporânea. Criou o termo “estética relacional” para uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social, mais do que a 40 “Relational Aesthetics” é um caminho que Bourriaud considera produtivo para a existência do espectador na arte, ou seja, o espaço da participação que a arte pode oferecer. Para ele arte é um espaço de imagem, objetos e parte humana. Nicolas Bourriaud não tem a pretensão de explicar a década e nem de fazer história. Essa teoria, na verdade, é um instrumento para análise e crítica de arte no contexto das artes, trabalhando com aspectos relacionais nas obras de arte contemporânea. Na obra de arte relacional, a preocupação é com o espaço: instalação mais performance. É uma mistura de várias linguagens para se formar o espaço, sendo este um locus que determina um contexto de interpretação de vivência, de experiência. É neste espaço que acontece a recepção. A artista pensa a partir da relação dele, do público com o espaço. Para o artista relacional, a obra é construída com um diálogo com o ambiente sociocultural, natural e humano e nesse sentido ela só acontece porque existe o público. Bourriaud cita o trabalho do DJ14, que usa objetos da cultura de massa como trabalho de arte: I seems to me that to find a connection between the objects is the most important part of the profession I carry out now. The artist and the artist’s activities remind the activity of D.J.’s, because of a very simple reason. Because a D.J. plays a long play and mix the long plays and carries out his/her work starting with an existed material. In other words what is discussed is not compose something and play it with an instrument, nowadays it is needed to play the culture, like playing an instrument as ‘just play it’, it is needed to create some routes in the culture, to pave some ways between the signs. We can call this application as ‘semiology’. ‘Semiotical’, I mean signs, and ‘notos’ are notes, in other words people traveling between the signs, determining the way, the route. (Bourriaud, 2001, p. 06)15. afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado “(Pierre-Henri Casamayou In: www.ambafrance.org.br, acessado em 10/11/2004). 14 DJ, segundo o Dicionário de Música: O disc jockey (DJ) é o responsável pela apresentação e execução de músicas em clubes e discos, e também em emissoras de rádio e TV dedicadas à exibição de videoclipes. 15 Parece-me que encontrar a conexão entre os objetos é a parte mais importante da profissão que abraço. O artista e as atividades dos artistas remetem às atividades dos D.J., por causa de uma razão muito simples. Porque um D.J. toca um disco e mistura os discos e realiza seu trabalho a partir desse material existente. Em outras palavras, o que é discutido não é compor alguma coisa e tocá-la com um instrumento, hoje em dia é necessário tocar as culturas, como se tocasse um instrumento, justamente, apenas tocá-lo. É necessário criar alguns caminhos na cultura, pavimentar alguns caminhos entre os sinais. Nós podemos chamar isso de ‘semiologia’. 41 Para Jean-Phillipe Uzel16, a Estética Relacional é a convivência entre as pessoas, a obra é a relação do objeto com o espectador numa relação de troca e negociação. Os artistas acreditam na relação da cultura de massa e a arte para buscar interesse nas pessoas numa mistura de culturas: cultura de massa/cultura popular/cultura erudita, possibilitando a continuidade da arte contemporânea. Uzel aponta para o prazer estético como o locus em que se estabelece a relação. Com o exemplo de obra de Arte Relacional, há o trabalho de Massimo Guerrera de Montreal. Ele sai às ruas e oferece comida para as pessoas. O artista Thomas Hirschhorn, em "Precarious Construction" 1997 (Wood, plastic, plexiglas, neon tubes, cardboard), cria um espaço com objetos do cotidiano, montado na rua para que as pessoas possam entrar e vivenciar o espaço. Inúmeras obras são criadas e pensadas para atingir o público, no sentido de deixá-lo participativo diante da obra. A Estética Relacional toma parcialmente estratégias etnográficas para a construção de interações entre público e obra e estabelece trocas entre artistaobra-público para possibilitar essas relações e interações. No caso desta pesquisa podemos classificá-la em três situações de troca: artista– pesquisadora e grupo de artistas, obra e público, público e público, sem descartar a possibilidade de relações entre grupo de artista e público, artista– pesquisadora e público. Nesse caso é necessário buscar conceituações teóricas sobre o conceito de troca, e a antropologia é a disciplina que mais se dedica aos estudos das economias da troca simbólica. Muitos autores contribuem para abordar o tema, e o teórico Mauss é uma boa escolha pelo fato de envolver no contexto da troca o desenvolvimento de determinadas tecnologias corporais que acompanham a ritualização dos relacionamentos sociais – a culturalização das relações sociais e físicas. ‘Semiótica’, para mim são sinais, e ‘notos’ são notas, em outras palavras, pessoas viajando entre os sinais, determinando o caminho, a rota15. (tradução da autora) 16 Jean-Philippe Uzel é professor da UQAM no Canadá. Ministrou curso no período de 16/06 a 18/06/2003 na Universidade Federal de Goiás/Goiânia para os mestrandos do programa de Pósgraduação em Cultura Visual da UFG. 42 A teoria de Marcel Mauss17 favorece a compreensão das relações de troca e o modo como as diferentes sociedades direcionam determinados comportamentos e relacionamentos do uso do corpo para estabelecer relações de troca. Para Mauss, a troca tem três obrigações: dar, receber e retribuir, que consiste no sistema de dádiva. As coisas trocadas no sistema da dádiva não se limitam a bens materiais. Mauss estabeleceu que, virtualmente, tudo, “serviços, favores sexuais, festivais, danças, etc. (...) é atraído para dentro do sistema”. (Lechte, 2002, p. 38). A troca tem que ter importância sociológica e não ser meramente de um objeto, como afirma Mauss. Não se trocam apenas propriedades, troca-se dignidade, cargos, privilégios. As trocas de presentes, comidas, ritos, bens, festas e até materiais estabelecem um jogo de relações de diferentes sentimentos entre as pessoas, porque “misturam-se as almas nas coisas. Misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas e eis como as pessoas e as coisas misturadas saem, cada uma, das suas esferas e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca”. (Mauss, 1950, p. 67). É nessas relações de trocas entre sentimentos, acontecimentos, ritos, contratos corporais que se pensa e se constrói esta pesquisa, envolvendo o visitante numa mistura e, ao mesmo tempo, nas trocas de sensações, envolvimentos e relações humanas entre obra, artista e público, buscando referências na Antropologia da Arte, utilizando para coleta de imagens e materiais estratégias etnográficas para construir a obra. A troca maussiana envolve um sistema de prestação e contra-prestaçao, dádiva e contra-dádiva. A troca nunca se passa num plano meramente horizontal de relação. Ela desenvolve um descompasso que pode constituir mesmo uma hierarquia entre os sujeitos envolvidos no processo. Isto deve ser demonstrado, na medida em que a troca proposta pela artista pressupõe uma devolução do público – uma dívida do público para com a dádiva do artista? Ou uma dívida do artista para com a presença-dádiva do público, sem o qual a obra instalacional participativa não poderia existir? Essas 17 Marcel Mauss “nasceu em Epinal, em 1872, e morreu em Paris, em 1950, cresceu em uma atmosfera judaica ortodoxa.Em 1902 tornou-se um maître assistant na Escole Pratique des Hautes Etudes Quinta Seção, onde lecionava na área de “história das religiões de povos incivilizados”. Alistou-se como voluntário no início da primeira Guerra Mundial, servindo como intérprete no exército britânico. Sua 43 questões foram geradas a partir das leituras e reflexões sobre as relações estabelecidas com as obras de arte relacional e a teoria de Mauss. E serão respondidas ao longo da construção do segundo e terceiro capítulos. As estratégias etnográficas fazem parte de uma etnografia visual, que é uma descrição visual das observações do grupo observado, segundo definição do dicionário de filosofia: “etnografia visual é uma descrição visual baseada num processo temporal de observação e de análise visual de grupos humanos considerados por suas particularidades, visando a restituição do cotidiano deste grupo”. (Durozoi, 1998, p.171). No Brasil encontramos instituições que estimulam esse tipo de trabalho em Artes Visuais e vários artistas que têm seus trabalhos inseridos nesse contexto. O Centro Cultural Banco do Brasil possui vários projetos de exposições nessa linha de pensamento que, no caso específico da produção artística brasileira, encontra relações com o trabalho da artista plástica Rosana Palazyan. Esta artista, em sua exposição O Lugar do Sonho, nos meses de julho a setembro de 2004, realizada no CCBB de São Paulo, desenvolveu, a partir do tema da violência urbana, uma reflexão entre arte e vida, fazendo denúncias de questões de traumas, perdas, política e histórias conflituosas de jovens. Palazyan buscou um ‘terreno’ movediço: uma instituição para recuperação de jovens em conflito com a lei, lugar da suspensão do sonho e do futuro – mas talvez não do desejo (Roupa de Marca). (Paulo Herkenhoff, 2004). Um exemplo de trabalho nessa linha de pensamento é o projeto A Quietude da Terra. Esse título faz parte de um processo que vem se desdobrando em forma de vários projetos internacionais e paralelos. No Brasil, dele participam Vida cotidiana, arte contemporânea e Projeto Axé, coordenado por France Morin - curadora, museóloga, artista e educadora - através do Museu de Arte Moderna da Bahia. Envolveram-se no projeto dezenove artistas, incluindo a coordenadora do projeto, que se instalaram em Salvador/Bahia, de abril a outubro de 1999, e colaboraram com o Projeto Axé, que é uma entidade que trabalha com meninos de rua da cidade. O artista é essencialmente o pedagogo da humanidade, pois sua arte provoca nas pessoas mudanças profundas de mentalidade, experiência no exército deu-lhe a oportunidade de estudar as diferentes técnicas corporais observadas nas tropas britânica, australiana e francesa”. (Lechte, 2002, p.38). 44 atitudes, hábitos e comportamentos que são os grandes resultados de todo processo criativo (Morin, 2000, p. 10). O projeto Quietude da Terra: Vida cotidiana, arte contemporânea e Projeto Axé levanta uma discussão sobre cidadania e política. Minha afinidade com o projeto Quietude da Terra está nas relações humanas, em como os artistas se relacionaram com essas crianças e jovens construindo vínculos entre eles e enriquecendo o processo de criação de ambos. Um exemplo de pesquisa que envolve o artista, o visitante, a instituição, o espaço é o Projeto Urubu na Ilha do Fundão, de Gisele Ribeiro – EBA/UFRJ, uma dissertação de Mestrado em Linguagens Visuais. A artista se refere ao lugar onde a arte habita: o espaço indeterminado aberto pela morte na relação cultura/natureza. Cria três células (nome dado pela autora), que são dependentes ou independentes entre elas: se separadas são cada uma um conjunto ou juntas um novo conjunto a partir de suas relações. Podem ocupar o mesmo espaço ou não. As três células: Célula 1 = Projeção em vídeo: imagens de urubus e imagens da Terra capturadas via satélites, que se transforma numa instalação. Ponto de interesse: relação com a morte degradação - decadência. O urubu é o personagem do trabalho, espaço aberto, relação homem/animal, cultura/natureza. Imagens da terra = deslocamento de visão do espaço, reposicionamento do olhar sobre o lugar. As imagens da terra são usadas como mapas, tornando-se banco de dados e produzindo um acesso direto e ao mesmo tempo transformando o espaço em objeto. O vídeo dá uma falsa imortalidade. Célula 2: Terra – relação sobre o lugar que se está pisando, relação física com um lugar. Célula 3: Áudio de ruídos e vozes. Pensando nas relações que os trabalhos anteriores estabelecem com a linguagem verbal. Registro do som (vozes e ruídos do próprio trabalho em ação), este som é capturado e gravado a cada dia sempre por cima do anterior. A morte: o projeto pretende passear pelo “espaço entre” indeterminado aberto pela morte entre vários campos, não fixos/não estáveis. Pode ser vista como o toque da natureza na cultura e vice-versa. A idéia de morte que circula não é central, ela circula junto com outras questões que permeiam, tocam o campo da arte: as imagens do animal e do humano, da natureza e da cultura, sob a figura do urubu e as imagens urbanas da terra; a transitoriedade da história, o posicionamento do visitante; o problema da instituição gerado pela visão fixa. 45 Ficção: investe na ficção para se trabalhar não só a morte mas também com a idéia de um contrato entre trabalho e visitante. O trabalho precisa do interesse, da decisão do visitante para funcionar. Para elaborar e construir estratégicas desse interesse forma estudados os discursos do artista Joseph Beuys: “Todo homem é artista”, criando uma réplica para essa frase “todo homem quer ser artista?” e o outro o crítico Thierry De Duve: julgamento estético: isto é arte? Criou-se a réplica: “isto não é arte”. O artista, o visitante, a instituição, o espaço: relações que compõem a ficção do projeto. A artista personagem mediador ou manipulador atua em conjunto com o visitante interessado. O papel da instituição: o curso de mestrado já está inserido na narrativa do trabalho, a Ilha do Fundão situa a Escola de Belas Artes/UFRJ....e vários espaços físicos em decadência e vários prédios institucionais.(Ribeiro, 2002, p.41) Na pesquisa do antropólogo Luiz Eduardo R. Achutti18 no campo da Antropologia Visual sobre cotidiano, lixo e trabalho em Porto Alegre, o pesquisador utilizou o método clássico da Antropologia, que é a etnografia, mas o foco de sua descrição foram as imagens coletadas e não a palavra escrita. Ele registrou a estética, o sentimento e a vivência de cada um, sem deixar as questões poéticas e sociais de fora, e transcreveu a vivência comum desse grupo de maneira poética e narrativa. Por meio de suas fotografias e associações com as técnicas antropológicas, Achutti construiu as identidades contidas naquele lugar, imergindo na população numa busca de trabalhar a imagem como descritiva, comparando o olhar antropológico com o de um viajante: O olhar que não descansa sobre a paisagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões descontínuas, desconcertadas pelo estranhamento. (Cardoso, 1999:349 apud Achutti, 1997, p. 37). A mostra Yanomami: o espírito da floresta, outro projeto que utilizou estratégias etnográficas como processo de construção de trabalho e que foi promovido pelo CCBB do Rio de Janeiro, aconteceu entre os meses de abril e junho de 2004. Uniu 13 artistas brasileiros e internacionais, envolvendo as experiências xamânicas da aldeia Yanomami conhecida como Watoriki. 18 Luiz Eduardo R. Achutti é fotógrafo desde 1975, fotojornalista desde 1979, formado em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social em 1996, atualmente professor da UFRGS. 46 Raymond Depardon, um dos artistas participantes da mostra, um dos maiores fotógrafos e cineastas franceses, filmou um grupo de caçadores e um grupo de xamãs. Durante horas, acompanhou o percurso de uns e as sessões de cura dos outros, esforçando-se para “encontrar seu lugar” neste universo outro – entre floresta e espíritos: Os Yanomami sabiam que estavam sendo filmados, mas isso não os fazia mudar nada. Eu era um visitante de passagem. Fui acolhido, recebido e até mesmo querido. Assim, eles ofereceram sua imagem a alguém que, até esse momento, sequer sabia de sua existência. Sustentei meu papel de passeiro, eu sou um passeiro. (Depardon, 2000, p.74) Assim como no trabalho com a Maria Pé no Chão19: ela é uma passante das ruas da cidade onde vive, e a artista-pesquisadora outra passante que passou pela vida da mulher Maria. A instalação Maria Pé no Chão relatada na introdução é um exemplo de reflexões estéticas no campo das poéticas visuais envolvendo o conceito da antropologia da arte num caráter etnográfico visual. A pretensão de fazer esse traçado é retirar desses conceitos elementos que ajudarão a construir a obra. Os artistas aqui mencionados contribuem para esta construção juntamente com os outros artistas20, tais como: Alan Kath, Christina Holstad, Tony Oursler, Vicent Beaurin, Wenda Gu, Huang Yong Ping, Kasahara Emiko, Morataz Nassr-Eddin, Naoki Takizana, Ricardo Bausbaum, Nelson Miranda Azola, Orimoto Tatsumi, Gary Hill, Yayooi Kusama e os artistas participantes do projeto Quietude da Terra Alberto Pita, Cai Guo-Qiang, Chen Zhen, Vik Muniz, Wille Cole, Kara Walker e Rirkrit Tiravanija. 20 As imagens das obras desses artistas citados se encontram no capítulo 3, Ensaio Visual: Troca.