Capítulo 1 - NUPEA - Núcleo de Pesquisa em Ensino de Arte

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Capítulo 1 - NUPEA - Núcleo de Pesquisa em Ensino de Arte
Capítulo 1
Desdobramentos: artista-obra-público
Desenvolvo aqui um traçado1 e um roteiro que atravessam determinados
conjuntos de obras de artistas nacionais e internacionais que privilegiaram, a
partir do final dos anos 1950 e início dos 1960 até a atualidade, a participação,
o envolvimento do público com a obra.
Uma vez que o foco desta pesquisa está na relação ARTISTA-OBRAPÚBLICO, seu processo de construção leva em conta um espaço para o
acontecimento nas condições determinadas pela recepção, ou seja, a obra é
pensada pela artista para ser executada parcialmente pelo público ou, ainda
mais, a obra só ganha existência a partir da presença de um público, porque
ele também a constrói. Nesses termos, pode-se pensar numa abertura não
somente para os procedimentos receptivos – especialmente, da ordem da
interpretação, e presentes mesmo nas obras destinadas à contemplação – bem
como no desenvolvimento de uma obra co-dependente dos estados
presenciais e ativos do público.
1.1. Movimentação internacional entre a participação e a interação.
A partir da segunda metade do século XX, começaram a surgir correntes
em que se pensava o público em contato mais direto com a arte. Esse público
já não era passivo, ele experimentava junto com os artistas as possibilidades
diversas de fruição da obra. Nesse sentido, o espectador participava, em certos
casos, da própria construção. Para Couchot2 “a forma mais simples da
participação foi a instalação. Instalando o espectador no centro da obra, o
artista o convidava a adotar uma atitude diferente diante dela”. (Couchot, 1997,
p. 136), podendo entrar na obra, sentir de um outro jeito, com um novo olhar
diante dela.
1
Esse capítulo é uma linha do tempo para situar minha produção visual.
Edmond Couchot é uma das maiores autoridades mundiais em arte eletrônica. Professor e pesquisador
dirige o ATI, Art et Technologie de l’Image, Université Paris III, França. Tem diversas publicações sobre
arte na era digital.
2
27
Vários foram os movimentos que adotaram esse tipo de arte, como Arte
Pop, Arte Conceitual, Land Art com ambientes naturais, Arte Cinética, não se
podendo esquecer das celebrações mais coletivas como happenings e
performances. Todas essas correntes artísticas estavam – cada qual a sua
maneira, a seu modo - em busca de uma participação mais íntima entre público
e obra.
Frank Popper3, no texto As imagens artísticas e a tecnociência (19671987), faz um percurso histórico, no campo de criadores de imagens que
trabalham desde a década de 1960 até o final dos anos 1980, partindo das
artes participacionistas até chegar às artes interativas, relacionando arte,
ciência e tecnologia.
Popper dá exemplos de algumas exposições que ele mesmo organizou,
como a “Exposição Luz e Movimento”, no Museu de Arte Moderna de Paris em
1967. Para ele, “a grande maioria dos artistas estava na problemática estética
saída do construtivismo e da abstração geométrica. Mas era precisamente
graças aos meios técnicos empregados que poderiam ultrapassar essa
problemática”. (Popper, 1993, p. 202). Empregando movimentos, luzes
artificiais e outros elementos em suas obras, os artistas como Bury e Tinguely
faziam dos novos meios técnicos recursos para criação de seus trabalhos.
Nesse sentido, era mais cobrada, por parte dos artistas, a participação
mental e física do espectador. Outro exemplo que Popper comenta é a
exposição “Cinetismo, Espetáculo, Ambiente”, que se refere aos ambientes
criados por Edmond Couchot. Em um deles foi montada uma piscina inflável
animada por diversos elementos, fazendo apelo a todos os sentidos. Já outro
ambiente, criado por Xavier Luccioni, envolvia o passante da rua numa rede de
células fotoelétricas, tubos de néon e estruturas de aço.
Nos anos 1970, a problemática do ambiente tornou-se mais presente
entre as propostas dos artistas que buscavam, de certa forma, na época, dar
mais ênfase às idéias do que ao objeto, causando a desmaterialização do
objeto. Frank Popper considera que, nesse momento, “o essencial não é mais
o objeto em si, mas a confrontação dramática do espectador a uma situação
perceptiva”. (Popper, 1997, p. 212).
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Professor da Université Paris VIII tem vários títulos publicados na área de Arte Tecnológica.
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Arlindo Machado (1997), um importante especialista das novas
tecnologias da imagem, bem como outros autores desse campo de pesquisa e
atuação, insiste em apontar para um conjunto de artistas e suas produções
como integrando as experiências e as reflexões acerca da participação e da
interação: Calder, com seus Móbiles; os espetáculos coletivos do Living
Theatre; o Happening; as celebrações coletivas; as instalações e ambientes
imaginados por artistas como Donald Judd, Richard Serra ou Robert Morris; os
poemas desmontáveis de Raymond Quenéar; até chegar a Lygia Clark, com os
Bichos e os Parangolés de Hélio Oiticica.
A idéia de trabalhos interativos abrange vários campos e persiste desde
a década de 1930 até os dias de hoje. Arlindo Machado menciona que desde
Bertolt Brecht (1932) já se falava de interatividade nos meios de comunicação,
com participação direta dos cidadãos. Essas idéias começaram a se
concretizar 40 anos depois, nas rádios e televisões livres da Europa.
Nos anos 1970, Enzensberg (Machado, 1997, p.144) propunha a
interatividade como mecanismo de trocas entre emissores e receptores.
Raymond Willians (1979), nessa mesma época, chamava a atenção para as
tecnologias vendidas e difundidas como “interativas” que não passavam de um
processo em que o usuário escolhia uma resposta, muitas vezes, pronta e
esperada.
Pode-se observar tal fato até os dias de hoje, pois existem jogos ou
programas de TV que usam essa terminologia “interativa” para aumentar o
consumo de seus produtos. “Interatividade, excelente argumento de venda que,
aliada às técnicas de comunicação, unem homens e máquinas”. (Sfez, 2000,
p.121).
Para Raymond Willians, interatividade implica respostas autônomas,
criativas e não previstas. Entretanto, até hoje se criam arte interativa ou mídias
(comunicação) interativas com vários equívocos.
Nos anos 1980, as novas tecnologias, computadores, redes de
comunicação, propuseram a ruptura com as pesquisas realizadas até então. É
a partir dessa época “que se pode falar de uma arte da tecnociência, de uma
arte em que intenções estéticas e pesquisas tecnológicas fundadas
cientificamente parecem ligadas indissoluvelmente e, em todo caso, se
influenciam reciprocamente”. (Popper, 1993, p. 203).
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Os aparatos tecnológicos também vêm contribuindo para a participação
mais efetiva do espectador sob o termo “interatividade”, afirma Frank Popper
(1993), e vêm dando significativos resultados desde os anos 1980.
Gloria Collado, no seu texto sobre a Bienal de Lyon, afirma que
ni el vídeo ni el ordenador han contribuido especialmente a la
creación de la interatividad. Sólo en nuestro siglo los
espectáculos dadá, los happenings o las acciones y
performances inauguradas por los artistas fluxus han sido
algunas de las manifestaciones que más han contribuido a
la
idea
de
lo
que
ahora
há
dado
en
llamarse
interactividad.(Collado, 1995)
Aquilo que parecia estar no fim em meados dos anos 1970, que é a
participação do público nas obras, a partir dos anos 1980 volta com muita
força, devido às diversas possibilidades encontradas nas imagens de sínteses
(imagens numéricas), criadas em computadores com os projetos de arte
interativa pelos artistas.
Couchot4 acredita que as artes participacionistas foram sucedidas pelas
artes interativas. Ele fala de arte interativa proporcionada pelas novas
condições de acesso a informações oferecidas pelas possibilidades de imersão
e exploração no campo da tecnociência, e entende que a obra interativa,
só tem existência e sentido na medida em que o espectador
interage com ela. Sem esta interação, da qual é totalmente
dependente, ela estaria simplesmente reduzida a um gesto
elementar,
a
obra
permanece
uma
potencialidade–
computacional, pois é feita de cálculos – não perceptível.
(Couchot, 1997, p. 40).
As criações envolviam novas tecnologias e o campo da ciência,
construindo trabalhos ligados, a princípio, às relações humanas, e que se
expandiram para diversas áreas como biologia, psicologia, física, matemática,
química e outras.
Conforme Popper aponta, a diferença entre a arte produzida por essas
novas tecnologias e as artes plásticas tradicionais é que o importante para a
arte tecnológica é a ênfase dada ao processo da construção do trabalho,
enquanto o outro tipo de arte enfatiza a obra acabada, não importando o
processo.
4
Para Couchot interatividade não espera. É um conjunto do sistema de produção, de difusão, de
memorização das informações, construída em “tempo real”.
30
O artista, na arte tecnológica, busca fazer parcerias com profissionais de
diversas áreas, como a música, as artes cênicas, a arquitetura, e se apóia em
importantes teóricos da filosofia, antropologia e sociologia para concretizar
seus projetos, construindo pensamentos e obras híbridas.
Provoca assim mudanças na
consciência cultural e na nossa maneira de pensar que se
acham ao mesmo tempo modificadas e alargadas por
hibridação de duas culturas, artística e científica. A imagem
toma aí seu verdadeiro lugar, já que certos raciocínios
científicos são efetivamente substituídos por demonstrações
visuais. Por outro lado numerosas criações
artísticas
não
podem mais passar sem cálculos e sistematização.
(Popper, 1993, p. 204).
Tudo isso é uma nova abertura no campo artístico, porque teorias
científicas tornam-se construções visuais, associando os espectadores à
produção da obra.
Essa arte é aberta, instável e mutável. Faz do espectador um co-autor,
tendo a responsabilidade de um autor, pois em várias situações a obra não
existe sem o espectador. A existência da obra interativa depende do outro, não
só do criador, mas daquele que vai introduzir questionamentos e ações, num
diálogo que, para Edmond Couchot (1997), é quase instantâneo, em tempo real
e não mais mental.
Couchot aponta dois dispositivos interativos, recursos que os artistas
atualmente estão utilizando para trabalhos de arte eletrônica. Os dispositivos
fechados ou autônomos (off-line) e os outros dispositivos abertos ou
interconectados em rede (on-line).
Os
dispositivos
fechados
caracterizam-se
pelas
relações
entre
espectadores e obra num espaço delimitado pelos aparatos técnicos e,
conseqüentemente, pelo espectador. Esses aparatos podem ser capacetes,
óculos usados por uma pessoa e conectados a um computador, que, por sua
vez, faz aparecer animações com textos, sons, figuras.
A pessoa que está conectada age de forma instantânea sobre as
informações dadas pela máquina, através de dispositivos que registram gestos.
O espectador “é convidado a entrar em universos virtuais mais ou menos
complexos e a interagir com eles conforme um tipo de cenário ou percursos,
não lineares, concebidos pelo autor”. (Couchot, 1997, p. 138).
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Um dos exemplos mais comuns é o da obra de Jeffrey Shaw, que
convida o indivíduo a passear por uma cidade cuja arquitetura é toda
construída por letras que formam textos. Pedalando sobre uma bicicleta de
verdade, o artista faz com que se enxergue não só com os olhos, mas com os
próprios pés e pernas. Na medida em que pedala e inclina o guidom para o
lado direito ou esquerdo, automaticamente vê imagens que dão idéias de uma
esquina real.
Nos dispositivos abertos, a relação obra e espectador acontece na rede,
ou seja, as obras são criadas para circular na Internet, o que possibilita o
alcance de uma dimensão coletiva, pois a obra está disponível para várias
pessoas, em diferentes lugares, o dia todo.
A participação do espectador, em muitos casos, se dá em forma
de gestos, de textos, de imagens (e eventualmente de sons) e se
inscreve na memória da obra cuja identidade muda e evolui
constantemente, em torno de um núcleo preconcebido pelo autor
que lhe assegura uma coerência e uma continuidade (Couchot,
1997, p. 142).
Essas experimentações na rede, que crescem a cada dia, acontecem
desde o início de 1980, com Roy Ascott, desencadeando um interesse de
vários artistas por esse campo. Hoje é difícil fazer um levantamento certo e
preciso dessa produção, porque é uma área que está num crescente
desenvolvimento, principalmente por jovens artistas, devido às possibilidades
de intercâmbio com áreas diversas.
Mas não podemos deixar de citar o artista brasileiro Eduardo Kac, que
vive e trabalha em Chicago:
Pioneiro da arte digital e transgênica, Kac concebeu e
desenvolveu a holopoesia a partir de 1983. A holopoesia é uma
nova linguagem verbal/visual que explora as flutuações
formais, semânticas e perceptuais da palavra/imagem no
espaço-tempo holográfico. Kac propôs e desenvolveu a arte
da tele presença a partir de 1986, quando apresentou na mostra
"Brasil High Tech", no Rio de Janeiro, um robô de controle
remoto através do qual participantes interagiam. Kac projetou a
arte da tele presença internacionalmente com o projeto
"Ornitorrinco", desenvolvido a partir de 1989. A arte da tele
presença é uma nova área de criação artística que se baseia no
deslocamento dos processos cognitivos e sensoriais do
participante para o corpo de um telerrobô, que se encontra num
outro espaço geograficamente remoto.
(http://www.ekac.org/kac2.html, acessado em 19/04/20050)
32
Couchot acredita que algumas experimentações ainda busquem uma
reterritorialização, reivindicando o uso de uma língua e de sua cultura, no
propósito de ir contra o poder da hegemonia anglo-americana, numa
perspectiva que ele denomina monocultural.
1.2 O Brasil dos Neoconcretos e a problemática da participação do
público: antecedentes, desdobramentos internos, rupturas e
modelos de relacionamento com a obra.
Os anos 1950, no Brasil, foram marcados por idéias e ideais vinculados
ao movimento concreto, em busca de uma (re)construção da linguagem
plástica moderna. A exploração da forma, enquanto geométrica, criando
composições no plano e no espaço, fez com que o concretismo se tornasse
uma racionalidade objetiva à obra.
Os concretos, animados pela vontade de ultrapassar as
limitações provincianas, realizam um grande esforço de
compreensão das origens e evolução da arte abstrata filiada
à vertente construtivista européia para aderir à sua última
versão: a arte concreta. (Milliet, 1992, p. 24).
Estabeleceram-se dois grupos concretos. O Grupo Frente (1954 a 1956),
no Rio de Janeiro, foi liderado por Ivan Serpa e seus companheiros Hélio
Oiticica, Décio Vieira, Abraham Palatnik, Lygia Pape, Aluísio Carvão,
Weissmann e vários outros artistas, e a ele posteriormente se integrou Lygia
Clark. Esse grupo5 era aberto a criações individuais e à liberdade de criação,
sendo variada a produção dos artistas a ele ligados, pois não seguia um
padrão, como o Grupo Paulista6, cuja produção e pensamento eram mais
homogêneos7.
5
O grupo concreto carioca prega a experimentação de todas as linguagens, ainda que no âmbito não-figurativo
geométrico e opõe uma articulação forte entre arte e vida - que afasta a consideração da obra como "máquina" ou
"objeto". Dá maior ênfase à intuição como requisito fundamental do trabalho artístico. As divergências entre Rio e
São Paulo se explicitam na Exposição Nacional de Arte Concreta (SP, 1956 e RJ, 1957), início da ruptura
neoconcreta, efetivada em 1959. Fonte: www.itaucultural.org.br, acessado em 10/11/2004.
6
A pintura concreta propunha uma nova visualidade que, orientada em princípios geométricos organizados segundo
critérios de Gestalt (Teoria Geral da Forma), proporcionasse ao espectador uma fruição objetiva - a composição
observada no quadro deveria corresponder, exatamente, àquilo que o artista concebeu no projeto original da obra. Um
quadro concreto, de acordo com Max Bill, seria a "concreção de uma idéia", uma "realidade que pode ser controlada
e observada”.
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Num plano geral, o grupo Paulista, mais radical do que o Grupo Frente,
pensava o concretismo dentro de parâmetros da lógica operacional, criando
normas e regras, condenando conteúdos que não iam ao encontro do seu
pensamento, que era contra qualquer tipo de conteúdo “emocional, onírico ou
libidinal na arte” (Milliet, 1992, p. 24), impedindo explorações fora do campo da
teoria da Gestalt. Liderado por Waldemar Cordeiro8, cria o manifesto “Ruptura
de 1952”, que deixa clara essa idéia. Os artistas Lothar Charroux, Geraldo de
Barros, Kazmer Féjer, Leopoldo Haar, Luiz Sacilotto, Wladyslaw e o próprio
Cordeiro assinaram esse manifesto.
Palatnik (ver figura 7), artista brasileiro, entre os anos de 1949 e 1950
deu início a experiências com luzes e movimentos, gerando aparelhos
cinecromáticos, pensando em levar para a pintura elementos da luz e do
movimento no tempo e no espaço.
O crítico argentino Jorge Romero Brest, mestre de várias
gerações de críticos latino-americanos, em seu longo
comentário sobre a I Bienal de São Paulo, publicado no número
26 da revista Ver y estimar, de Buenos Aires, em 1951, fala
com entusiasmo da “curiosa máquina que sobre o princípio do
caleidoscópio criou Abraham Palatnik" e na qual "vão se
desenhando formas diversas, animadas por um colorido intenso
que pode chegar a ser muito fino e sutil, estruturando-se como
composições que a pintura propriamente dita quer obter mas
Por iniciativa dos concretos paulistas, realizou-se no MAM /SP e no Ministério da Educação do Rio de
Janeiro a I Exposição Nacional de Arte Concreta, que reuniu pinturas, desenhos, esculturas e poesias de
artistas das duas cidades e contou com palestras e conferências. Pela primeira vez no país, foi apresentado
um amplo panorama das artes plásticas e da poesia concreta, tendo sido lançado o Plano-Piloto da Poesia
Concreta de Décio Pignatari. Entretanto, a mostra acabou por ressaltar as divergências flagrantes entre os
concretistas. Para Roberto Pontual, "de um lado, propunha-se a concentração de esforços no conceito de
pura visualidade da forma, na poesia como nas artes plásticas, eliminando dela toda e qualquer veleidade
de dimensão simbólica. Do outro, acentuava-se a consideração da obra de arte como fato orgânico, e não
como mera `máquina` ou `objeto`, embora sem deixar o âmbito não-figurativo geométrico". Como
conseqüência dessa divergência, surge, dois anos depois, o Grupo Neoconcreto carioca (Enciclopédia
Artes Visuais: www.itaucultural.org.br/AplicExternas/Enciclopedia/artesvisuais2003, capturado em
10/11/2004 as 16:53).
7
Criou-se uma idéia de que um grupo era mais homogêneo, programático e o outro tinha uma postura
mais liberal. Existem várias pesquisas, de mestrado e doutorado, sendo realizadas nessa área, mas, como
esse assunto não é meu objeto específico, não me aprofundarei nessa questão.
8
O manifesto, redigido por Cordeiro e diagramado por Haar, e que parece ter causado maiores reações do
que o próprio trabalho apresentado, estabelece uma posição firme contra as principais correntes da arte no
país. Pretende-se romper com o “velho”, a saber: “todas as variedades e hibridações do naturalismo; a
mera negação do naturalismo, isto é, o naturalismo ‘errado’ das crianças, dos loucos, dos ‘primitivos’, dos
expressionistas, dos surrealistas etc., o não-figurativismo hedonista, produto do gosto gratuito, que busca
a mera excitação do prazer ou do desprazer”. Se, por um lado, a oposição contra qualquer forma de
figuração não é nova, por outro, a não aceitação da abstração informal é inédita e ajuda a compreender a
posição do grupo. (Manifesto “Ruptura”, em A. Amaral (org.), Projeto Construtivo Brasileiro na Arte:
1950-1962. Rio de Janeiro – São Paulo, 1977, p. 69).
34
não obtém (Frederico Morais
acessado em 10/11/2004).
In:
www.macniteroi.com,
Em vários trabalhos Palatnik envolvia o espectador de maneira lúdica e
envolvente, como, por exemplo, na obra de 1959, “Mobilidade IV”, em que as
bolinhas de madeira se movimentavam. Esse trabalho, em 1983, foi retomado
e transformado em um objeto lúdico, que era uma base circular de vidro, de
formas geométricas de
cores diferentes, acionadas diretamente pelo
espectador por um bastão magnetizado. Vale dizer, utilizou os pólos positivos e
negativos dos ímãs para atrair ou repelir as formas geométricas que
constituíam fragmentos de uma estrutura maior a ser armada pelo espectador a
partir do uso do bastão magnetizado.
Para Frederico Morais, os aparelhos cinecromáticos de Palatnik não
apenas se anteciparam à vertente construtiva, que eclodiu com os grupos
Ruptura (São Paulo, 1952) e Frente (Rio de Janeiro, 1954) para se consolidar
com o Concretismo (1956) e Neoconcretismo (1959), como fundou a vertente
tecnológica da arte brasileira (www.macniteroi.com, acessado em 12/10/2004).
Em 1957, Lygia Clark, em seu diário, fez um desabafo sobre as formas
seriadas dos concretos e a maneira “falsa de dominar o espaço” (Milliet, 1992,
p. 25). Clark, nessa época, já pensava na idéia do espectador participante e da
obra aberta à interferência imediata do espectador: “A obra (de arte) deve exigir
uma participação imediata do espectador e ele, espectador, deve ser jogado
dentro dela” (Milliet, 1992, p. 25).
O Neoconcretismo surgiu dessas divergências de pensamento entre os
dois grupos concretos, foi um caminho proposto pelos artistas do grupo
carioca, os quais pensavam numa produção menos elitista, sem fórmulas, e no
espectador como parte da obra, não mais um ser que contemplasse
passivamente, e sim um ser que entrasse na obra ativamente. É importante
aqui relatar alguns pontos do manifesto Neoconcreto:
Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquinas’ nem
como ‘objetos’, mas como um quase-corpus, isto é, um ser cuja
realidade não se esgota nas relações exteriores de seus
elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise,
só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica.
Neste ponto podemos elucidar com a série de obras de Lygia
Clark intitulada “bichos”, estruturas metálicas com dobradiças,
onde a presença do espectador se torna fundamental, pois a
manipulação das partes pode e deve ser feita, o que mantinha
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a obra “sempre viva”, ou, nas palavras do manifesto, a
“realidade não se esgota nas relações exteriores’.
Conseqüentemente, ao contrário do concretismo racionalista,
que toma a palavra como objeto e a transforma em mero sinal
ótico, a poesia neoconcreta devolve-a a sua condição de ‘verbo’,
aqui transmite a separação também no âmbito da
poesia,rejeitando o ‘objetivismo mecanicista’, pregando a
‘espacialização do tempo verbal’. Na poesia neoconcreta a
‘espacialização’ se faz presente
dentro dos livros-poemas
nos quais o leitor/espectador faz parte do poema, sua presença
é fundamental. (Martinho Alves da Costa Junior,
2003
In:
www.itaucultural. org.br, acessado em 12/11/2004).
Esses pensamentos serviram como ponto de partida para produções de
diversos artistas dessa geração, principalmente Lygia Clark e Hélio Oiticica9,
que lhes deram continuidade recuperando a poética na obra de arte, fazendo
transcender a própria materialidade da arte e levantando questionamentos a
respeito da individualidade do artista.
Os “Casulos” (1958), de Lygia Clark, mostram o desdobramento do
plano. São obras que estão entre a pintura10 e a escultura, rompem com a
pintura e criam a partir daí objetos livres de bases, suportes e são envolventes,
como os “Contra-relevos de ângulo”,
presos aos cantos das paredes e
suspensos no espaço, trazendo o espectador para dentro da obra.
Os “Bichos”, de 1960, “... nome tão brasileiro, entidade abrangente,
animal síntese, mito que atemoriza e atrai...” (Milliet, 1992, p. 65), definição de
Lygia Clark para essa criação de planos geométricos de metal articulados e de
tanto interesse aos olhos e ao tato dos espectadores, são objetos que
demonstram as inquietações da artista.
Clark (ver figura 8 e 9) negava a contemplação da obra e privilegiava a
visão associada ao tato, ou seja, o sensitivo, a descoberta do corpo. Criou os
“objetos relacionais” e várias experiências sensórias/motoras, preocupadas
9
Para Oiticica, construtivos são os artistas que fundam novas relações estruturais na pintura (cor) e na
escultura e abrem novos sentidos de espaço e tempo.
10
A partir de 1960, quando Lygia Clark se convenceu da “morte do plano” (...) e caiu da parede para o
chão, com seus “bichos”, sua obra adquire cada vez mais um conteúdo filosófico-religioso. Foi a fita de
Moebius que lhe sugeriu a precariedade do plano. Seu “caminhando” é uma fita que o espectador, agora
criador, corta, numa experiência pessoal e intransferível. A tesoura segue a picada, “a resposta vem à
medida que o espectador opta”. O final (o fim da picada) é a floresta, isto é, o “vazio pleno”, o
espectador, ele mesmo. Antes no bicho, a relação espectador/obra era dualista e metafórica. “Agora, no
caminhando, torna-se existencial, pois, como diz a própria artista, o ‘único sentido da experiência é fazêla’, donde o que se tem é o caráter absoluto do ato da imanência”. (Morais, Frederico de Artes Plásticas: a
crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 22).
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com a recuperação da memória do corpo através desses objetos que trazem
experiências talvez nunca sentidas pelas pessoas ou até sensações obtidas na
infância. O que interessava para a artista nesse momento não era mais o
objeto em si e sim as relações construídas entre o objeto e o receptor.
A partir de 1964, o envolvimento ativo do público tornou-se o cerne de
suas preocupações. Abandonando a construção de objetos, tornou-se
improdutiva, no sentido material da produção e, como conseqüência, ausente
do mercado. (Milliet, 1992, p. 94).
Alguns artistas dessa época negavam as instituições e recusavam a
comercialização de suas criações, e buscando trabalhar numa produção
coletiva no contato direto com o público, que é o caso específico de Clark e
Oiticica.
Lygia Clark, com seus objetos, trabalhava diretamente com grupos e ou
indivíduos, num contato profundo com suas vivências psíquicas. Produziu
criações coletivas vividas e sugeridas por ela e realizadas pelos participantes
em espaços sensoriais, como é o caso das obras O Eu e o Tu, A Cesariana,
Túnel, Baba Antropofágica, Canibalismo, Camisa de Força, A Casa é o Corpo e
várias outras. Esse último trabalho, Lygia Clark o descreve como
Uma estrutura de oito metros de comprimento, com dois
compartimentos laterais. O centro desta estrutura se constitui de
um grande balão de plástico. As extremidades são fechadas
em elásticos e as pessoas ao se encostarem a eles
provocam as mais variadas formas. Ao penetrar no labirinto, o
visitante afasta os elásticos da entrada, sentido um
rompimento semelhante ao de um hímen complacente e tendo
acesso
assim
ao
primeiro
compartimento
chamado
“penetração”. Nesta cabine a pessoa pisa numa lona estendida
pouco acima do chão e perde o equilíbrio: no escuro ela apalpa
as paredes que cedem, da mesma forma que o chão.
Perseguindo o caminho através do tato, encontrará uma
passagem semelhante à entrada e a pessoa chega na
“ovulação”, espaço igual ao anterior, cheio de balões. Ao
prosseguir, o visitante alcança o amplo espaço central, onde é
possível ver e ser visto do interior. Neste local há uma imensa
boca através da qual a pessoa entra na “germinação”, ali
tomando as posições que lhe convier. De volta ao túnel,
continuando o passeio, penetra no compartimento da “expulsão”,
que, além das bolinhas macias de vinil espalhadas pelo chão,
possui uma floresta de pêlos pendentes do teto.
Hélio Oiticica (figuras 10, 11 e 12), a partir do movimento neoconcreto,
começou a propor saída para o espaço, desintegrando o quadro e a pintura,
37
numa liberdade de pensamento e experimentação, como ele mesmo afirma:
parti para criações de novas ordens (...) Para mim foi uma abolição cada vez
maior de estruturas de significados, até eu chegar ao que considero a invenção
pura: “Penetráveis”, “Núcleos”, “Bólides” e “Parangolés” foram o caminho para
a descoberta do que eu chamo de “estado de invenção”. (Hélio Oiticica,
entrevista a Ivan Cardoso, 1979 In: Favaretto, 2000, p. 47)
Oiticica propunha a igualdade entre público e artista e planejou algumas
manifestações nas ruas do Rio de Janeiro em que público e artistas pudessem
criar juntos. Quebrando a noção de gênio, surge uma nova inscrição da
produção artística correspondente, um novo espaço estético, onde tudo pode
surgir, tudo pode relacionar-se com tudo em jogo permanente. (Favaretto,
2000, p.19)
Buscando cada vez mais a integração entre espectador/participador e o
espaço,
criava-se
a
experiência
dos
Penetráveis,
que
acabou
se
desenvolvendo em toda a sua trajetória. Para Oiticica, no Penetrável a relação
entre o espectador e a estrutura-cor se dá numa integração completa e de
caráter coletivo, porque a partir dessa experiência é que, afirma Favaretto, as
relações plásticas são transformadas em vivências: vivência da cor, do espaço
cotidiano estetizado, gerando experiências em que o próprio participador se
transforma.
O primeiro Penetrável era uma construção de madeira, com porta
deslizante, em que o participador se fechava de cor. Invadia-se de cor, sentia o
contato físico da cor, ponderava a cor, tocava, pisava, respirava cor. (Pedrosa,
Rio de Janeiro, 1965 IN: Oiticica, 1986, p.11)
Na ânsia de liberdade e de novas experiências, Oiticica passou conviver
com as pessoas do morro da Mangueira, e esse encontro foi de grande
importância para as suas obras, como afirma Mário Pedrosa: após a iniciação
de Oiticica ao samba, o artista passou da experiência visual, em sua pureza,
para uma experiência de tato, movimento, da fruição sensual dos materiais, em
que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra
como fonte total da sensorialidade.
Os Parangolés, 1964, eram panos de cor que se movimentavam de
acordo com o percurso do espectador, numa profunda relação com a dança. A
38
obra veste o corpo, depende do corpo do espectador/participador para existir
num espaço-tempo, numa incorporação do corpo na obra e da obra no corpo.
Na experiência da Tropicália, 1967, Oiticica deu ambientação a uma
série de Penetráveis anteriores. A Tropicália surgiu numa necessidade dele de
criar um ambiente tropical, e que envolveria o próprio comportamento do
participador. Oiticica descreve a obra: “o ambiente foi totalmente tropical, como
um fundo de chácara, e, o mais importante, havia a sensação de que se estaria
de novo pisando a terra. Esta sensação sentia eu anteriormente ao caminhar
pelos morros, pela favela, e mesmo o percurso de entrar, sair, dobrar ‘pelas
quebradas’ da Tropicália”. (Oiticica, 1986, p. 99).
Nas
experiências
espaciais
pessoais
e
coletivas,
sensoriais,
participativas e relacionais que encontramos nas obras de Oiticica e Clark, o
que acontece é uma nova noção de comunicação entre artista, público e obra.
E esses trabalhos só têm sentido se houver a participação ativa do espectador.
Todos eles são criações que possibilitaram a interferência do público,
rompendo com a noção de arte contemplativa e de artista como gênio. De certa
forma, essas obras pressupunham a intervenção de quem as observava,
convidando o sujeito a interagir com elas.
Esse traçado e os estudos das obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica me
motivaram a pensar e elencar outros artistas11 em cujas obras o corpo está
presente, tais como: Diana Domingues, Cang Xin, Joel-Peter Witkin, Orlan,
Salvador Dali, Sarah Jones, Vanessa Beecroft, Spencer Tunick, Hudinilson Jr.,
Arno Rafael Minkkinen, Raymond Depardon, John Coplans, Lucian Freud,
Jenny Saville, Lucimar Bello, Pierre Radisic, Vicente de Mello, Zhang Huan,
Robert Davies, Andres Serrano, Luis Hermano, Gerhard Richter, Sally Mann,
Sergei Isupov, Xu Bing, Tian Miao, Francis Bacon, Gerard Schlorser, Daisy
Xavier, Piotr Uklánski e artistas que participaram do projeto Quietude da Terra:
Cláudia Andujart, Domenico de Clario, Janini Antoni, Mario Cravo Neto e
Tunga.
11
As imagens das obras desses artistas citados se encontram no capítulo dois, Ensaio Visual: Corpo
39
1.3 Algumas
questões
contemporâneas
em
torno
da
arte
antropológica e da estética relacional.
Outra maneira que o público tem de participação e experimentação com
a obra está no que Nicolas Bourriaud denominou, nos anos 90, de Arte
Relacional, termo criado por ele para sustentar obras de arte em que o que se
privilegia é um modo de se relacionar com a obra, estabelecendo um espaço
para a convivência e para a geração de trocas de caráter simbólico entre
artistas e público, seja pela coleta de depoimento, seja pela troca de elementos
pessoais, seja pelo contato físico entre artista(s) e público.
O termo “Relational Aesthetics” foi criado por Nicolas Bourriaud como
título de seu primeiro livro em 1997, a partir de observações de alguns artistas
como, por exemplo, Rirkrit Tiravanija (ver figuras 13,14,15 e 16), Philippe
Parreno, Liam Gillick, Pierre Huyghe, Maurizio Cattelan, Vanessa Beecroft,
todos eles participantes da exibição “Traffic”, Capc Bordeaux, 1996, organizada
por Bourriaud12.
Os artistas com os quais Bourriaud13 trabalhava no final da década de
1990 mostravam uma tendência de localizar suas práticas não em relação aos
aparatos próprios da arte, mas nos metafóricos espaços colonizados pela
massa e pela cultura de espetáculo. “Relational Aesthetics” é uma tentativa de
decodificar o tipo de relação que o espectador produz a partir do trabalho de
arte.
12
As referências que permitem fazer estas afirmações podem ser encontradas nos seguintes
sites, todos eles acessados no período de agosto a novembro de 2004.
Sobre Bourriaud http://www.stretcher.org/archives/r3_a/2002_11_13_r3_archive.php, acessado
em 04/08/2004
http://www.findarticles.com/p/articles/mi_m0268/is_8_39/ai_75830815/pg_2,
acessado
em
04/08/2004
ArtForum, April, 2001, acessado em 20/08/2004
www.sanalmuze.org/etkinliklereng/nicolasbourriaod.htm acessado em 20/08/2004
Site Internet: www.palaisdetokyoo.com acessado em 20/10/2004
PHILIPPE PARRENO http://www.portikus.de/ArchiveA0111.html#, acessado em 20/010/2004
Rirkrit Tiravanija http://www.mip.at/en/dokumente/1164MAuriziocattelanhttp://www.eyestorm.com/feature/ED2n_article.asp?article_id=32&artist
_id=95 acessado em 05/10/2004
13
Bourriaud foi curador, crítico de arte e codiretor, com Jérôme Sans, do Palais de Tokyo em Paris,
museu voltado para a criação de Arte Contemporânea. Criou o termo “estética relacional” para uma arte
que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social, mais do que a
40
“Relational Aesthetics” é um caminho que Bourriaud considera produtivo
para a existência do espectador na arte, ou seja, o espaço da participação que
a arte pode oferecer. Para ele arte é um espaço de imagem, objetos e parte
humana.
Nicolas Bourriaud não tem a pretensão de explicar a década e nem de
fazer história. Essa teoria, na verdade, é um instrumento para análise e crítica
de arte no contexto das artes, trabalhando com aspectos relacionais nas obras
de arte contemporânea.
Na obra de arte relacional, a preocupação é com o espaço: instalação
mais performance. É uma mistura de várias linguagens para se formar o
espaço, sendo este um locus que determina um contexto de interpretação de
vivência, de experiência. É neste espaço que acontece a recepção.
A artista pensa a partir da relação dele, do público com o espaço. Para o
artista relacional, a obra é construída com um diálogo com o ambiente
sociocultural, natural e humano e nesse sentido ela só acontece porque existe
o público. Bourriaud cita o trabalho do DJ14, que usa objetos da cultura de
massa como trabalho de arte:
I seems to me that to find a connection between the objects is
the most important part of the profession I carry out now. The
artist and the artist’s activities remind the activity of D.J.’s,
because of a very simple reason. Because a D.J. plays a long
play and mix the long plays and carries out his/her work
starting with an existed material. In other words what is
discussed is not compose something and play it with an
instrument, nowadays it is needed to play the culture, like playing
an instrument as ‘just play it’, it is needed to create some routes
in the culture, to pave some ways between the signs. We can
call this application as ‘semiology’. ‘Semiotical’, I mean signs,
and
‘notos’ are notes, in other words people traveling between
the signs, determining the way, the route. (Bourriaud, 2001,
p. 06)15.
afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado “(Pierre-Henri Casamayou In:
www.ambafrance.org.br, acessado em 10/11/2004).
14
DJ, segundo o Dicionário de Música: O disc jockey (DJ) é o responsável pela apresentação e execução
de músicas em clubes e discos, e também em emissoras de rádio e TV dedicadas à exibição de
videoclipes.
15
Parece-me que encontrar a conexão entre os objetos é a parte mais importante da profissão
que abraço. O artista e as atividades dos artistas remetem às atividades dos D.J., por causa de
uma razão muito simples. Porque um D.J. toca um disco e mistura os discos e realiza seu
trabalho a partir desse material existente. Em outras palavras, o que é discutido não é compor
alguma coisa e tocá-la com um instrumento, hoje em dia é necessário tocar as culturas, como se
tocasse um instrumento, justamente, apenas tocá-lo. É necessário criar alguns caminhos na
cultura, pavimentar alguns caminhos entre os sinais. Nós podemos chamar isso de ‘semiologia’.
41
Para Jean-Phillipe Uzel16, a Estética Relacional é a convivência entre as
pessoas, a obra é a relação do objeto com o espectador numa relação de troca
e negociação. Os artistas acreditam na relação da cultura de massa e a arte
para buscar interesse nas pessoas numa mistura de culturas: cultura de
massa/cultura popular/cultura erudita, possibilitando a continuidade da arte
contemporânea. Uzel aponta para o prazer estético como o locus em que se
estabelece a relação.
Com o exemplo de obra de Arte Relacional, há o trabalho de Massimo
Guerrera de Montreal. Ele sai às ruas e oferece comida para as pessoas. O
artista Thomas Hirschhorn, em "Precarious Construction" 1997 (Wood, plastic,
plexiglas, neon tubes, cardboard), cria um espaço com objetos do cotidiano,
montado na rua para que as pessoas possam entrar e vivenciar o espaço.
Inúmeras obras são criadas e pensadas para atingir o público, no sentido de
deixá-lo participativo diante da obra.
A Estética Relacional toma parcialmente estratégias etnográficas para a
construção de interações entre público e obra e estabelece trocas entre artistaobra-público para possibilitar essas relações e interações. No caso desta
pesquisa podemos classificá-la
em três situações de
troca: artista–
pesquisadora e grupo de artistas, obra e público, público e público, sem
descartar a possibilidade de relações entre grupo de artista e público, artista–
pesquisadora e público.
Nesse caso é necessário buscar conceituações teóricas sobre o
conceito de troca, e a antropologia é a disciplina que mais se dedica aos
estudos das economias da troca simbólica. Muitos autores contribuem para
abordar o tema, e o teórico Mauss é uma boa escolha pelo fato de envolver no
contexto da troca o desenvolvimento de determinadas tecnologias corporais
que acompanham a ritualização dos relacionamentos sociais – a culturalização
das relações sociais e físicas.
‘Semiótica’, para mim são sinais, e ‘notos’ são notas, em outras palavras, pessoas viajando entre
os sinais, determinando o caminho, a rota15. (tradução da autora)
16
Jean-Philippe Uzel é professor da UQAM no Canadá. Ministrou curso no período de 16/06 a
18/06/2003 na Universidade Federal de Goiás/Goiânia para os mestrandos do programa de Pósgraduação em Cultura Visual da UFG.
42
A teoria de Marcel Mauss17 favorece a compreensão das relações de
troca e o modo como as diferentes sociedades direcionam determinados
comportamentos e relacionamentos do uso do corpo para estabelecer relações
de troca. Para Mauss, a troca tem três obrigações: dar, receber e retribuir, que
consiste no sistema de dádiva. As coisas trocadas no sistema da dádiva não se
limitam a bens materiais. Mauss estabeleceu que, virtualmente, tudo, “serviços,
favores sexuais, festivais, danças, etc. (...) é atraído para dentro do sistema”.
(Lechte, 2002, p. 38).
A troca tem que ter importância sociológica e não ser meramente de um
objeto, como afirma Mauss. Não se trocam apenas propriedades, troca-se
dignidade, cargos, privilégios. As trocas de presentes, comidas, ritos, bens,
festas e até materiais estabelecem um jogo de relações de diferentes
sentimentos entre as pessoas, porque “misturam-se as almas nas coisas.
Misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas e eis como as pessoas
e as coisas misturadas saem, cada uma, das suas esferas e se misturam: o
que é precisamente o contrato e a troca”. (Mauss, 1950, p. 67).
É nessas relações de trocas entre sentimentos, acontecimentos, ritos,
contratos corporais que se pensa e se constrói esta pesquisa, envolvendo o
visitante numa mistura e, ao mesmo tempo, nas trocas de sensações,
envolvimentos e relações humanas entre obra, artista e público, buscando
referências na Antropologia da Arte, utilizando para coleta de imagens e
materiais estratégias etnográficas para construir a obra.
A troca maussiana envolve um sistema de prestação e contra-prestaçao,
dádiva e contra-dádiva. A troca nunca se passa num plano meramente
horizontal de relação. Ela desenvolve um descompasso que pode constituir
mesmo uma hierarquia entre os sujeitos envolvidos no processo.
Isto deve ser demonstrado, na medida em que a troca proposta pela
artista pressupõe uma devolução do público – uma dívida do público para com
a dádiva do artista? Ou uma dívida do artista para com a presença-dádiva do
público, sem o qual a obra instalacional participativa não poderia existir? Essas
17
Marcel Mauss “nasceu em Epinal, em 1872, e morreu em Paris, em 1950, cresceu em uma atmosfera
judaica ortodoxa.Em 1902 tornou-se um maître assistant na Escole Pratique des Hautes Etudes Quinta
Seção, onde lecionava na área de “história das religiões de povos incivilizados”. Alistou-se como
voluntário no início da primeira Guerra Mundial, servindo como intérprete no exército britânico. Sua
43
questões foram geradas a partir das leituras e reflexões sobre as relações
estabelecidas com as obras de arte relacional e a teoria de Mauss. E serão
respondidas ao longo da construção do segundo e terceiro capítulos.
As estratégias etnográficas fazem parte de uma etnografia visual, que é
uma descrição visual das observações do grupo observado, segundo definição
do dicionário de filosofia: “etnografia visual é uma descrição visual baseada
num processo temporal de observação e de análise visual de grupos humanos
considerados por suas particularidades, visando a restituição do cotidiano
deste grupo”. (Durozoi, 1998, p.171).
No Brasil encontramos instituições que estimulam esse tipo de trabalho
em Artes Visuais e vários artistas que têm seus trabalhos inseridos nesse
contexto. O Centro Cultural Banco do Brasil possui vários projetos de
exposições nessa linha de pensamento que, no caso específico da produção
artística brasileira, encontra relações com o trabalho da artista plástica Rosana
Palazyan. Esta artista, em sua exposição O Lugar do Sonho, nos meses de
julho a setembro de 2004, realizada no CCBB de São Paulo, desenvolveu, a
partir do tema da violência urbana, uma reflexão entre arte e vida, fazendo
denúncias de questões de traumas, perdas, política e histórias conflituosas de
jovens. Palazyan buscou um ‘terreno’ movediço: uma instituição para
recuperação de jovens em conflito com a lei, lugar da suspensão do sonho e do
futuro – mas talvez não do desejo (Roupa de Marca). (Paulo Herkenhoff, 2004).
Um exemplo de trabalho nessa linha de pensamento é o projeto A
Quietude da Terra. Esse título faz parte de um processo que vem se
desdobrando em forma de vários projetos internacionais e paralelos. No Brasil,
dele participam Vida cotidiana, arte contemporânea e Projeto Axé, coordenado
por France Morin - curadora, museóloga, artista e educadora - através do
Museu de Arte Moderna da Bahia. Envolveram-se no projeto dezenove artistas,
incluindo a coordenadora do projeto, que se instalaram em Salvador/Bahia, de
abril a outubro de 1999, e colaboraram com o Projeto Axé, que é uma entidade
que trabalha com meninos de rua da cidade.
O artista é essencialmente o pedagogo da humanidade, pois sua
arte provoca nas pessoas mudanças profundas de mentalidade,
experiência no exército deu-lhe a oportunidade de estudar as diferentes técnicas corporais observadas nas
tropas britânica, australiana e francesa”. (Lechte, 2002, p.38).
44
atitudes, hábitos e comportamentos que são os grandes
resultados de todo processo criativo (Morin, 2000, p. 10).
O projeto Quietude da Terra: Vida cotidiana, arte contemporânea e
Projeto Axé levanta uma discussão sobre cidadania e política. Minha afinidade
com o projeto Quietude da Terra está nas relações humanas, em como os
artistas se relacionaram com essas crianças e jovens construindo vínculos
entre eles e enriquecendo o processo de criação de ambos.
Um exemplo de pesquisa que envolve o artista, o visitante, a instituição,
o espaço é o Projeto Urubu na Ilha do Fundão, de Gisele Ribeiro – EBA/UFRJ,
uma dissertação de Mestrado em Linguagens Visuais.
A artista se refere ao lugar onde a arte habita: o espaço indeterminado
aberto pela morte na relação cultura/natureza. Cria três células (nome dado
pela autora), que são dependentes ou independentes entre elas: se separadas
são cada uma um conjunto ou juntas um novo conjunto a partir de suas
relações. Podem ocupar o mesmo espaço ou não.
As três células:
Célula 1 = Projeção em vídeo: imagens de urubus e imagens da
Terra capturadas via satélites, que se transforma numa
instalação. Ponto de interesse: relação com a morte degradação - decadência. O urubu é o personagem do trabalho,
espaço aberto, relação homem/animal, cultura/natureza.
Imagens da terra = deslocamento de visão do espaço,
reposicionamento do olhar sobre o lugar. As imagens da terra
são usadas como mapas, tornando-se banco de dados e
produzindo um acesso direto e ao mesmo tempo transformando
o espaço em objeto.
O vídeo dá uma falsa imortalidade.
Célula 2: Terra – relação sobre o lugar que se está pisando,
relação física com um lugar.
Célula 3: Áudio de ruídos e vozes. Pensando nas relações que
os trabalhos anteriores estabelecem com a linguagem verbal.
Registro do som (vozes e ruídos do próprio trabalho em ação),
este som é capturado e gravado a cada dia sempre por cima do
anterior.
A morte: o projeto pretende passear pelo “espaço entre”
indeterminado aberto pela morte entre vários campos, não
fixos/não estáveis. Pode ser vista como o toque da natureza na
cultura e vice-versa. A idéia de morte que circula não é central,
ela circula junto com outras questões que permeiam, tocam o
campo da arte: as imagens do animal e do humano, da natureza
e da cultura, sob a figura do urubu e as imagens urbanas da
terra; a transitoriedade da história, o posicionamento do visitante;
o problema da instituição gerado pela visão fixa.
45
Ficção: investe na ficção para se trabalhar não só a morte mas
também com a idéia de um contrato entre trabalho e visitante. O
trabalho precisa do interesse, da decisão do visitante para
funcionar. Para elaborar e construir estratégicas desse interesse
forma estudados os discursos do artista Joseph Beuys: “Todo
homem é artista”, criando uma réplica para essa frase “todo
homem quer ser artista?” e o outro o crítico Thierry De Duve:
julgamento estético: isto é arte? Criou-se a réplica: “isto não é
arte”.
O artista, o visitante, a instituição, o espaço: relações que
compõem a ficção do projeto. A artista personagem mediador
ou manipulador atua em conjunto com o visitante interessado. O
papel da instituição: o curso de mestrado já está inserido na
narrativa do trabalho, a Ilha do Fundão situa a Escola de Belas
Artes/UFRJ....e vários espaços físicos em decadência e vários
prédios institucionais.(Ribeiro, 2002, p.41)
Na pesquisa do antropólogo Luiz Eduardo R. Achutti18 no campo da
Antropologia Visual sobre cotidiano, lixo e trabalho em Porto Alegre, o
pesquisador utilizou o método clássico da Antropologia, que é a etnografia,
mas o foco de sua descrição foram as imagens coletadas e não a palavra
escrita. Ele registrou a estética, o sentimento e a vivência de cada um, sem
deixar as questões poéticas e sociais de fora, e transcreveu a vivência comum
desse grupo de maneira poética e narrativa.
Por meio de suas fotografias e associações com as técnicas
antropológicas, Achutti construiu as identidades contidas naquele lugar,
imergindo na população numa busca de trabalhar a imagem como descritiva,
comparando o olhar antropológico com o de um viajante:
O olhar que não descansa sobre a paisagem contínua de um
espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos interstícios
de
extensões
descontínuas,
desconcertadas
pelo
estranhamento. (Cardoso, 1999:349 apud Achutti, 1997, p.
37).
A mostra Yanomami: o espírito da floresta, outro projeto que utilizou
estratégias etnográficas como processo de construção de trabalho e que foi
promovido pelo CCBB do Rio de Janeiro, aconteceu entre os meses de abril e
junho de 2004. Uniu 13 artistas brasileiros e internacionais, envolvendo as
experiências xamânicas da aldeia Yanomami conhecida como Watoriki.
18
Luiz Eduardo R. Achutti é fotógrafo desde 1975, fotojornalista desde 1979, formado em Ciências
Sociais, mestre em Antropologia Social em 1996, atualmente professor da UFRGS.
46
Raymond Depardon, um dos artistas participantes da mostra, um dos
maiores fotógrafos e cineastas franceses, filmou um grupo de caçadores e um
grupo de xamãs.
Durante horas, acompanhou o percurso de uns e as sessões de
cura dos outros, esforçando-se para “encontrar seu lugar” neste
universo outro – entre floresta e espíritos: Os Yanomami sabiam
que estavam sendo filmados, mas isso não os fazia mudar
nada. Eu era um visitante de passagem. Fui acolhido, recebido
e até mesmo querido. Assim, eles ofereceram sua imagem a
alguém que, até esse momento, sequer sabia de sua
existência. Sustentei meu papel de passeiro, eu sou um
passeiro. (Depardon, 2000, p.74)
Assim como no trabalho com a Maria Pé no Chão19: ela é uma passante
das ruas da cidade onde vive, e a artista-pesquisadora outra passante que
passou pela vida da mulher Maria. A instalação Maria Pé no Chão relatada na
introdução é um exemplo de reflexões estéticas no campo das poéticas visuais
envolvendo o conceito da antropologia da arte num caráter etnográfico visual.
A pretensão de fazer esse traçado é retirar desses conceitos elementos
que ajudarão a construir a obra. Os artistas aqui mencionados contribuem para
esta construção juntamente com os outros artistas20, tais como: Alan Kath,
Christina Holstad, Tony Oursler, Vicent Beaurin, Wenda Gu, Huang Yong Ping,
Kasahara Emiko, Morataz Nassr-Eddin, Naoki Takizana, Ricardo Bausbaum,
Nelson Miranda Azola, Orimoto Tatsumi, Gary Hill, Yayooi Kusama e os artistas
participantes do projeto Quietude da Terra Alberto Pita, Cai Guo-Qiang, Chen
Zhen, Vik Muniz, Wille Cole, Kara Walker e Rirkrit Tiravanija.
20
As imagens das obras desses artistas citados se encontram no capítulo 3, Ensaio Visual: Troca.

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