UNIVERSIDADE POTIGUAR – UnP PRÓ
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UNIVERSIDADE POTIGUAR – UnP PRÓ
UNIVERSIDADE POTIGUAR – UnP PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO ALQUIMY ART CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ARTETERAPIA LUCIANA BORGES CAMAZANO VERPP ARTETERAPIA E SONHO: CONSTRUÇÃO DO SER TERAPÊUTA NATAL/RN 2009 LUCIANA BORGES CAMAZANO VERPP ARTETERAPIA E SONHO: CONSTRUÇÃO DO SER TERAPÊUTA Monografia apresentada à Universidade Potiguar – UnP, como parte dos requisitos para obtenção do título de Especialista em Arteterapia ORIENTADORA: Profª Margaret Rose B. Pela NATAL/RN 2009 C173a Camazano, Luciana Borges. Arteterapia e sonho: construção do ser terapêuta. / Luciana Borges Camazano. – Natal, 2009. 135f. Monografia (Pós-Graduação em ArteTerapia). – Universidade Potiguar. Pró-Reitoria de Pós-Graduação. Bibliografia.f. 133-135. 1. Arteterapia – Monografia. 2. Sonho. 3. Terapeuta. I. Título. RN/UnP/BSRF CDU: 615.85(043) Dedico este estudo aos que buscam contribuir para o entendimento e para a ampliação dos potenciais transformadores, curativos e reveladores da rica vida interior que habita no inconsciente. Que encontrem na Arteterapia uma ferramenta especial, eficaz e valiosa. AGRADECIMENTOS Agradeço ao Valesio pelo apoio, incentivo, pela escuta atenta e paciente, por me acompanhar nessa trajetória e compartilhar comigo os momentos de transformação que a Arteterapia é capaz de causar. Aos meus pais por me presentearem com este bem tão precioso e transformador que é a formação em Arteterapia. À Luzia, por sua generosidade e companhia durante todo o processo aqui apresentado, pelas suas palavras e idéias acertadas, no momento ideal. À Roberta, pelo companheirismo, por todos os desafios e construções compartilhados, pelas idéias criativas que puderam tomar forma. Por fazer parte da minha caminhada arteterapêutica. Às supervisoras Márcia Bottini, Cristina Osélia e Luciane Medeiros, pela sabedoria, escuta e acompanhamento atento e ativo. Pelos conselhos e momentos de aprendizagem real. À Cristina Allessandrini, por seu espírito pioneiro, forte e ousado, que permite que a Arteterapia se torne real para os que crêem nas potencialidades curadoras e transformadoras da Arte e do criar. Às meninas I, Jo, Ja, G, A, pelos momentos inesquecíveis durante as oficinas. Por serem peças ideais no processo de formação do ser terapeuta apresentado neste trabalho, e vivenciarem numa teia complexa de ações e mudanças a ampliação de potenciais criativos e pessoais em si e nas arteterapêutas dentro de seu período de formação no curso de especialização em Arteterapia. À instituição que cedeu espaço para o projeto de pesquisa durante o estágio supervisionado do curso. Aos colegas de turma, pelos ricos momentos de crescimento, compartilhar de conhecimentos, por estarmos juntos nesse período de formação/transformação. RESUMO Este trabalho aborda a formação do ser terapeuta a partir da experiência de L, 26 anos, durante o período da prática arteterapêutica em estágio supervisionado para o Curso de Especialização em Arteterapia. Objetiva comprovar a importância do atendimento pessoal do arteterapêuta em seu processo de formação ao demonstrar a troca benéfica que ocorre entre arteterapêuta e grupo em atendimento arteterapêutico, num processo de desenvolvimento mútuo e contínuo. Para tal apresenta a importância do trabalho dos sonhos no contexto arteterapêutico, ao usar a interpretação dos símbolos do material produzido por L no atelier arteterapêutico. A metodologia utilizada foi a Metodologia Retrodutiva, de Garcia (2002) e o formato das Oficinas Criativas® de Allessandrini (2000). Finaliza comprovando o uso dos sonhos dentro da Oficina Arteterapêutica como ferramenta importante no desenvolvimento do Ser Terapeuta. Palavras-chave: Arteterapia. Sonho. Ser terapeuta. Símbolo. ABSTRACT This paper work studies the formation process of a therapist from the experience of L, 26 years old, during her supervisioned internal ship for the Specialization Course in Art Therapy. It aims to emphasize the importance of the personal art therapist therapeutic attendance during the process of formation, when showing to the beneficial exchange that occur between art therapist and the group in art therapeutic assessment in the internal ship, a mutual and continuous development process; it presents the importance of dreams analysis in art therapeutic context, foccisung the interpretation of the symbols that arise from L production in the art therapeutic atelier. The methodology was drawn from Garcia’s Retrodutiva Methodology (2002) and from Allessandrini’s (2000) Creative Workshops framework. It reassures the use of dreams analysis inside Creative Workshop as an important tool in the development of the therapist. Key Word: Art Therapy. Dream. The therapist Being. Symbol LISTA DE ILUSTRAÇÕES Número Imagem página Figura 1 Lagarto e dinossauro .............................................. 36 Figura 2 Mão pintada ............................................................ 43 Figura 3 Jacarés e lagarto...................................................... 51 Figura 4 Dinossauro corpo inteiro.......................................... Figura 5 Bonecos utilizados durante a Oficina Arteterapêutica com crianças ................................. 53 59 Figura 6 Contato com a criança interior ................................ 63 Figura 7 Sombra, conteúdos internos e iluminação.............. 63 Figura 8 Mandala mundo ...................................................... 69 Figura 9 Hipopótamos ........................................................... 72 Figura 10 Sapo camiseta ........................................................ 73 Figura 11 Encontro com o mestre interior ............................... 73 Figura 12 Moedas e bagagem ................................................ 83 Figura 13 Conflitos – agressividade ........................................ 88 Figura 14 Mandalas ................................................................ 93 Figura 15 Mãe e espelhos ...................................................... 99 Figura 16 Mecanismos de acesso ao inconsciente................. 100 Figura 17 Criança interior: encontro e integração ................... 100 Figura 18 Arteterapêuta: cuidador curador ............................. 101 Figura 19 Local do inconsciente .............................................. 102 Figura 20 Ver e ouvir, ampliação de horizontes ..................... 109 Figura 21 Mandala Terra ....................................................... 112 Figura 22 Mandala Água ........................................................ 113 Figura 23 Integração e Transformação .................................. 117 Figura 24 Reencontro com os répteis...................................... 123 Figura 25 Morte, transformação e renascimento ................... 123 Figura 26 Jacaré argila ........................................................... 124 Figura 27 Descoberta de novos espaços ............................... 128 LISTA DE TABELAS Número Tabela Página Tabela 1 Lados do cérebro 46 Tabela 2 Simbologia de dedos e números apresentados 47 no sonho LISTA DE SONHOS Sonho Página Sonho 1 ............................... 35 Sonho 2 ................................ 42 Sonho 3 ............................... 51 Sonho 4 ............................... 57 Sonho 5 ............................... 61 Sonho 6 ............................... 71 Sonho 7 ............................... 71 Sonho 8 ............................... 82 Sonho 9 ............................... 87 Sonho 10 ............................... 92 Sonho 11 ............................... 97 Sonho 12 ............................... 107 Sonho 13............................... 112 Sonho 14 ............................... 115 Sonho 15 ............................... 121 Sonho 16 ............................... 127 SUMÁRIO 1 APRESENTAÇÃO...................................................................................... 14 2 JUSTIFICATIVA ......................................................................................... 17 3 A PESQUISA ............................................................................................. 18 4 O SONHO .................................................................................................. 20 5 ANÁLISE DE SONHOS E SÍMBOLOS ..................................................... 25 5.1 ANÁLISE E INTERPRETAÇÕES ........................................................... 26 5.2 ANÁLISE DO SONHO ALIADA À CRIAÇÃO DE IMAGENS – ARTETERAPIA ............................................................................................. 27 6 OFICINAS CRIATIVAS® E ACESSO AO PRIMITIVO – INSTINTOS ..... 31 6.1 PRIMEIROS MOMENTOS DE OFICINAS ARTETERAPÊUTICAS COM GRUPO ......................................................................................................... 31 6.2 ATENDIMENTO INDIVIDUAL DE L: INTER-RELAÇÕES COM ATENDIMENTO DO GRUPO DE PESQUISA .............................................. 33 6.2.1 Desenho Espontâneo ........................................................................ 53 7 O CONTATO COM A CRIANÇA INTERIOR: CURAR, CUIDAR,BRINCAR 57 7.1 SONHO E OFICINA ARTETERAPÊUTICA ............................................ 57 7.2 SONHOS, MENSAGENS E MUDANÇAS .............................................. 60 8 O CONTATO COM O MESTRE INTERIOR. O SELF ............................... 69 8.1 VIAGEM AO INCONSCIENTE NO FILME: TERRA – TERCEIRA PEDRA DO SOL ........................................................................................... 69 8.2 SIMBOLIZAÇÕES DO FILME FEITIÇO DE ÁQUILA .............................. 86 9 O SURGIMENTO DE MANDALAS NO SONHO ....................................... 91 9.1 MOMENTO DE REESTRUTURAÇÃO E ENTENDIMENTO ................... 91 10 FORMAS DO ‘EU’ E ATITUDES ............................................................. 97 11 MOMENTO DE REESTRUTURAÇÃO PARA AS MUDANÇAS – MANDALAS .................................................................................................. 112 12 O DISCURSO TRANSFORMADOR ARTETERAPÊUTICO MOSTRA-SE NO SONHO ................................................................................................... 115 13 RÉPTEIS, MORTE E RENASCIMENTO – INTEGRAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO ..................................................................................... 121 14 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 130 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 133 1 APRESENTAÇÃO A Arteterapia resgata o potencial criativo do homem, buscando a saúde e estimulando a autonomia e transformação interna na reestruturação do ser, ajudando-o a lidar melhor com o stress, experiências traumáticas, desenvolver aspectos cognitivos e emocionais. Utiliza a linguagem artística, sem finalidade estética, como base da comunicação entre o mundo interno e o mundo externo – consciente/inconsciente. Sua essência é a criação artística em prol da saúde e da elevação da qualidade de vida das pessoas. O interesse pela Arteterapia surgiu como uma necessidade de integrar em minha prática profissional áreas de interesse e atuação. Minha formação possui duas áreas principais: música (sou pianista e professora de piano) e artes plásticas, que pude desenvolver durante o curso de graduação em Educação Artística com Habilitação em Música - UnB e UFRN. Umas das áreas a qual também me dedico profissionalmente é o artesanato (pintura em tecido e macramê), que permite uma grande liberdade de exploração de formas, cores, temas e materiais para criação. Além das áreas de criação (tocar piano, pintar, produção artesanal) e educação (dar aulas de piano, pintura e artesanato) surgiu a curiosidade e a afinidade com temas relacionados ao desenvolvimento da consciência e dos potenciais pessoais vinculados a processos de cura e auto-cura. A Arteterapia apresentou-se, inicialmente, como uma nova área de conhecimento e atuação onde seria possível reunir de modo eficiente minhas áreas de interesse e atuação profissional. No decorrer do curso de Pós-graduação em Arteterapia da Universidade Potiguar, em parceria com o Alquimy Art, essa expectativa tornou-se concreta. Pude vivenciar o processo de tornar-me arteterapêuta e perceber que a Arteterapia não é só um caminho profissional, mas também uma forma de aprendizado, uma ferramenta de cura, para trabalhar o outro e a nós mesmos, que permite um olhar científico para observação das Oficinas Criativas® (ALLESSANDRINI, 1996, p.29) e é poderosa na transformação pessoal dos clientes e do arteterapêuta. Nesse sentido, o objeto de estudo deste trabalho trata da articulação entre meu processo de transformação, aliado ao atendimento pessoal com arteterapêuta, e a construção do ser terapeuta no decorrer do curso, dentro do estágio supervisionado, atendendo crianças em situação de risco social, entre cinco e sete anos, moradoras da Vila de Ponta Negra (Natal-RN). Os sonhos sempre fizeram parte da minha trajetória e história pessoal. Lembro deles desde os que ocorreram quando era criança, entretanto, havia uma atitude, não investigativa e mais voltada para superstições e adivinhações. Existia o medo das imagens estranhas que surgiam, e que ainda hoje são nítidas em minha memória. Na adolescência, momento em que os sonhos começaram a se apresentar com uma estrutura mais complexa, com enredo longo e rico em simbologia, ao buscar livros que falassem sobre sonhos, ocorreu o primeiro contato com os pensamentos de Jung sobre a análise de sonhos. Alguns autores sugerem que seja feito o registro escrito do sonho, logo que o sonhador desperta. Assim, nessa época, antes de começar meu atendimento pessoal arteterapêutico, fiz esse registro, porém, não havia um entendimento ou uma transformação através do conteúdo desses sonhos, que muitas vezes continuavam “misteriosos”. Ao se reportar à compreensão dos sonhos, Jung opina que: [..] quem quer que se detenha na recordação de um sonho perceberá este contraste, contraste este que é uma das principais razões para que os sonhos sejam de tão difícil compreensão para os leigos. Como não fazem sentido em termos da nossa experiência diurna normal, há uma tendência ou para ignorá-los ou para nos confessarmos desorientados e confundidos. (JUNG, 1996, p. 39) As transcrições descritas neste trabalho referem-se a um recorte do material onírico no período de estágio supervisionado. Durante toda essa etapa, tive sonhos muito interessantes, motivados pelo contato com o grupo de crianças, durante o estágio supervisionado do curso de especialização em Arteterapia, que mobilizaram diversos questionamentos e sugeriram a tomada de posturas. Os sonhos apresentados neste estudo mostram a contribuição da troca e do contato com a clientela atendida em ateliê arteterapêutico na formação do ser terapeuta da autora, uma vez que os conteúdos que emergiam nos sonhos eram trabalhados durante atendimento arteterapêutico pessoal e suscitavam reflexões capazes de promover mudanças e transformações. O desenho dos símbolos dos sonhos foi encorajado no trabalho arteterapêutico pessoal, e retrataram, visualmente, os momentos internos e as mudanças pelas quais passei. E também os reflexos desses sonhos nos dias atuais, como uma teia bastante entrelaçada O principal foco deste estudo é o uso dos sonhos no atendimento arteterapêutico: retratar e dialogar com os símbolos dos sonhos (criação e reflexão), instigada na prática de estágio supervisionado, que contribuiu sobremaneira para o processo de construção do ser profissional. 2 JUSTIFICATIVA A Arteterapia articula a linguagem simbólica inerente às linguagens artísticas, promove a emergência de símbolos, que, como mecanismos transformadores de energia, vão promover as construções e reconstruções psíquicas integrando consciente e inconsciente rumo à totalidade, executando o projeto do 1 Processo de Individuação. A união entre a prática profissional e o atendimento pessoal (cuidado pessoal) é um ponto fundamental na trajetória do arteterapeuta. Vivenciar as fases de fazer, experimentar materiais e propostas arteterapêuticas, criar, ver as imagens e dialogar com elas são ações necessárias imprescindíveis ao arteterapeuta para que possa percorrer a sua caminhada de transformação e ampliação de consciência e, assim, entender, na prática, questões referentes ao próprio diálogo entre consciente e inconsciente que promove transformações através da linguagem simbólica. Esta vivência e o cuidado do arteterapêuta consigo mesmo dão suporte para que sua prática seja mais completa e intensa ao cuidar do outro. O olhar atento aos enredos e imagens organizados pela mente durante o sonho é uma porta de entrada importante para a resolução de problemas e o entendimento da situação atual do sonhador. Nesse sentido, [...] dois pontos essenciais a respeito dos sonhos são os seguintes: em primeiro lugar, o sonho deve ser tratado como um fato a respeito do qual não se fazem suposições prévias, a não ser a de que ele tem um certo sentido; em segundo lugar, é necessário aceitarmos que o sonho é uma expressão específica do inconsciente. (JUNG, 1996, p. 32) Nesse contexto, a Arteterapia surge como um meio de ‘ver’ mais claramente questões relacionadas aos sonhos: o desenho e relato dos sonhos, juntamente com a reflexão que o símbolo desencadeia, numa visão arteterapêutica, são observáveis relevantes para o cliente e o arteterapêuta, dentro do atendimento, para alavancar mudanças. 1 TRUBBIANELLI, A. H. C.; GONÇALVES, T. F. Arte-engenharia: desenvolvimento diferencial e integral pela arte. Palestra proferida no VIII Congresso de Arteterapia em 13/11/2008. 1 CD. 3 A PESQUISA A pesquisa parte de uma visão Junguiana, reforçada pelo modelo de Oficinas Criativas® de Allessandrini, que norteou os atendimentos arteterapêuticos de L e do grupo de crianças. A presente pesquisa estuda o desenvolvimento e a estruturação do “ser arteterapêuta” dentro de um processo de transformações e autoconhecimento alavancados pelo participar e promover Oficinas Criativas®. Este estudo trata da formação do “eu terapeuta”, no período de prática do estágio supervisionado, tendo como foco principal o uso dos sonhos no atendimento arteterapêutico individual da pesquisadora L, 26 anos, e as transformações decorrentes do contato com o símbolo, o criar e refletir e a articulação com as vivências com grupo de atendimento. A hipótese é a de que o arteterapêuta, dentro de seu processo de formação, participando de oficinas arteterapêuticas (atendimento pessoal), passa por um processo de mudanças e reestruturação interna/externa (emoções, formas de agir, pensamentos), onde são trabalhados conteúdos relevantes em sua formação e trajetória de desenvolvimento, ao refletir, estimular e dialogar com as transformações observadas no atendimento em grupo durante o estágio supervisionado do Curso de Pós-Graduação em Arteterapia. O problema que se instaura é a importância do acompanhamento pessoal do arteterapêuta durante seu processo de formação, articulado com o olhar atento, investigativo sobre os sonhos dentro dos moldes da Oficina Criativa® - seu registro, criação simbólica e diálogo com a imagem. Esta pesquisa apresenta a produção de L (especificamente, o trabalho com sonhos, reflexões e experimentação de materiais) em seu processo de formação durante o curso de especialização em Arteterapia, dentro do ateliê arteterapêutico, no período de estágio supervisionado do curso, quando foram oferecidos atendimentos arteterapêuticos a um grupo de seis meninas na faixa etária entre 5 e 7 anos de idade, moradoras da Vila de Ponta Negra, em Natal/RN. Todos os procedimentos éticos para pesquisa com seres-humanos foram cuidadosamente realizados. Para análise dos dados, utilizou-se a metodologia retrodutiva, que propõe uma leitura construtivista do processo, conforme proposto por Garcia (2002), relacionando teoria e prática, de acordo com registros e dados colhidos previamente, em relatórios de estágio e registros de L, 26 anos, (textos e imagens) no decorrer de atendimento arteterapêutico pessoal. Ou seja, a pesquisa parte das etapas finais do processo e analisa retroativamente o desenvolvimento sucessivo das ações, em um ir e vir revelador. (GARCIA, 2002). Este estudo tem objetivo de: • Comprovar a importância do atendimento pessoal do arteterapêuta em seu processo de formação; • Demonstrar a troca benéfica que ocorre entre arteterapêuta e grupo de atendimento, num processo de desenvolvimento mútuo e contínuo; • Apresentar a importância do trabalho dos sonhos no contexto arteterapêutico. 4 O SONHO O sonho é um teatro em que o próprio sonhador é cena, ator, ponto, produtor, autor, público e crítico. (JUNG, 8, p. 509 apud WHITMONT E PERERA, 1995, p. 79) Os sonhos abordados nesta pesquisa são referentes aos sonhos que ocorrem durante o sono. Em estudos científicos de sonhos, somente a parte ou lembrança/registro claros são utilizados, e seu material é repleto de simbologia: Para o espírito científico, fenômenos como o simbolismo são um verdadeiro aborrecimento por não se poderem formular de maneira precisa para o intelecto e a lógica. [...] O problema com este tipo de fenômenos é que são fatos que não podem ser negados, mas que também não podem ser formulados em termos intelectuais. Para formulá-los precisaríamos ser capazes de compreender a própria vida, pois ela é a grande criadora de emoções e idéias simbólicas. (JUNG, 1996, p. 91) Nesse contexto, podemos inferir que o sonho é um fenômeno natural que trata da realidade do inconsciente e mostra o momento psicológico do indivíduo e aspectos de sua vida emocional. Quando o indivíduo encontra-se no estado de sono, ou seja, quando a consciência adormece, cenas, imagens e símbolos são criados em nossa psique. Este material não se parece com pensamentos racionais e as narrativas não possuem uma seqüência lógica como no estado de vigília, e, pode-se exercer uma organização consciente. Em seus estudos Jung (1996, p.43), afirma que: As imagens produzidas no sonho são muito mais vigorosas e pitorescas do que os conceitos e experiências congêneres de quando estamos acordados. E um dos motivos é que, no sonho, tais conceitos podem expressar o seu sentido inconsciente. Nos nossos pensamentos conscientes restringimo-nos aos limites das afirmações racionais – afirmações bem menos coloridas, desde que as despojamos de quase todas as suas associações psíquicas. Ao sonhar e recordar desses sonhos, refletir sobre eles, é estabelecido um diálogo entre consciente e inconsciente. Por outro lado, Foster e Mambert (1989, p. 58) comentam que o sonho é uma grande porta de entrada para os conteúdos internos: Os seus sonhos constituem a abertura mais disponível e conveniente para o seu acesso ao seu inconsciente, logo que você saiba compreender o que representam e como lidar com os seus conteúdos de modo inteligente. São eles, também, o mais vasto corpo de informações acerca do seu inconsciente que está ao seu alcance. São o “material” e a moeda corrente do seu mundo interior. Já Jung, em seu livro O Homem e Seus Símbolos (1996, p.52), comenta sobre essa ponte consciente/inconsciente mediada pelo sonho e sua importância para a saúde fisiológica, o equilíbrio mental e na caminhada de evolução do sonhador. A respeito do processo de evolução do indivíduo, Chevalier e Gheerbrant abordam esta questão: “O sonho, enfim, acelera os processos de individuação que regem a evolução de ascensão e integração do homem. Em seu nível, já tem uma função totalizadora”. (2002, p.846) Conforme se constata, os sonhos são de vital importância para preservar a saúde física e também, manter, preservar, restaurar e organizar estruturas psíquicas, ou seja, busca através de uma linguagem simbólica, manter um equilíbrio entre a vida consciente e inconsciente do indivíduo, concorrendo desse modo para seu crescimento e desenvolvimento pessoal. Marie-Louse von Franz fundamenta tal abordagem e ressalta que esse crescimento deve acontecer sem esforço, independente da vontade consciente. Literalmente, a autora diz que: [...] este crescimento psíquico não pode ser efetuado por esforço ou vontades conscientes, e sim por um fenômeno involuntário e natural, ele é freqüentemente simbolizado nos sonhos por uma árvore, cujo desenvolvimento lento, pujante e involuntário cumpre um esquema bem definido. (FRANZ, 1996, p.161) Trata-se de considerar os sonhos com um propósito definido e, sobre o qual não se pode exercitar a vontade. É imperativo sonhar. O indivíduo pode até não se recordar do sonho, no entanto, esse processo ocorre todas as vezes que se encontra em estado caracterizado por supressão da vigilância. Neste sentido, o sonho é um ingrediente significativo na ampliação da consciência e para o desenvolvimento total do ser, possibilitando o surgimento de uma personalidade mais completa e amadurecida. Certos acontecimentos passam despercebidos pelo consciente, mas são captados subliminarmente pelo inconsciente (JUNG, 1996, p. 50). Somente temos acesso a eles quando brotam do inconsciente, por meio de intuição, expressão plástica, intensa reflexão ou sob a forma de sonho. Porém esses conteúdos fazem uso da linguagem simbólica para se apresentar: [...] os sonhos tantas vezes se expressam sob a forma de analogias, por que uma imagem onírica se funde numa outra, e por que nem a lógica nem a escala de tempo da nossa vida diária parecem ter neles qualquer aplicação. Os sonhos tomam um aspecto natural para o nosso inconsciente porque o material de que são produzidos é retido em estado subliminar, precisamente desta forma. (JUNG, 1996, p. 63-64) Estudos sobre sonhos mostram que além de eles atuarem como reguladores dos processos psíquicos e físicos, eles exercem uma função de compensação/complementação: ele compensa as deficiências da personalidade do sonhador e previne contra perigos (JUNG, 1996, p.67). Outra tarefa do sonho é promover a reflexão e o contato com conteúdos relativos aos primórdios, às memórias da infância, à pré-história. A tarefa principal dos sonhos é trazer de volta uma espécie de ‘reminiscência’ da pré-história e do mundo infantil, ao nível dos nossos instintos mais primitivos. Em certos casos tais reminiscências podem exercer um efeito terapêutico notável, como Freud assinalou já há muito tempo. Esta observação confirma o ponto de vista de que um hiato nas lembranças da infância (a chamada amnésia) representa uma perda efetiva e sua recuperação pode trazer acentuada melhoria de vida e bem-estar. (JUNG, 1996, p.99) Estes conteúdos podem aparecer ligados aos arquétipos (resíduos arcaicos ou primordiais – tendências a formar representações de um motivo (JUNG, 1996, p. 67), que também são acessados e trabalhados no diálogo com os sonhos, apresentando caráter terapêutico e transformador: Reminiscências de memórias da infância e a reprodução de comportamentos psíquicos, expressos por meio de arquétipos, podem alargar nossos horizontes e aumentar o campo da nossa consciência – sob condição de que os conteúdos readquiridos sejam assimilados e integrados na mente consciente. Como não são elementos neutros, a sua assimilação vai modificar a personalidade do indivíduo, já que também eles vão sofrer algumas alterações. (JUNG, 1996, p. 99) No contexto desse entendimento, Foster e Mambert classificam os sonhos em várias categorias: Sonho de Sombra, de Persona, de Anima, de Animus, sonho de arquétipo ou arquetípico, Sonho de Superconsiente, de Ansiedade, de Felicidade, de Realização de Desejos, de Pós-Acontecimentos, de Prognóstico Pessoal, Com o Corpo ou a Saúde, de Experiência Sensorial, de Contestação, de Recriminação, Sonho Absurdo e Sonho Recorrente. (1989, p.158-168) O Sonho de Sombra (Foster e Mambert, 1989, p. 158-159) é tido como o mais comum. Nesse tipo de sonho os vários ‘eus’ ou aspectos da personalidade do sonhador, que podem ser parte negativa, reprimida ou pouco desenvolvida da personalidade; ou parte positiva, mais sensata e astuta, que tentam conseguir atenção, oferecer orientações, auxiliar na tomada de decisões, e serem integradas e aceitas por quem sonha. Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 845) classificam os sonhos como: Sonho profético ou didático, Sonho iniciatório, Sonho telepático, Sonho visionário, Sonho pressentimento e Sonho mitológico. Segundo Agostinho, [...] se a mente discorrer num sonho e com isso aprender alguma coisa, isso permanecerá imutável quando acordado [...]. Agostinho antecipou corretamente o que hoje aceitamos: que os sonhos falam numa linguagem que lhe é própria, a linguagem dos símbolos. (FOSTER e MAMBERT, 1989, p. 63) Quanto ao momento do sonho, esse pode ser rico não somente ao olhar o conteúdo posteriormente, mas possibilita real aprendizado enquanto ocorre. Neste sentido, o conteúdo escolhido pelo inconsciente para criar as imagens e o enredo do sonho podem dizer respeito a assuntos altamente relevantes para o sonhador dentro do período em que está vivendo e das questões que enfrenta naquele determinado momento, podendo promover, quando levado em conta, uma ampliação da compreensão dos fatos através de reflexão dos símbolos apresentados, atuando como alavanca de crescimento pessoal do sonhador. Ao olhar ou entrar em contato posteriormente com esses conteúdos – registros escritos e imagens, o sonhador pode enxergar novos conteúdos, e questões que lhe auxiliem, sendo, então, o sonho e o material produzido a partir dele fontes de transformação e enriquecimento do eu. 5 ANÁLISE DE SONHOS E SÍMBOLOS Assim como uma planta produz flores, assim a psique cria seus símbolos. E todo sonho é uma evidência deste processo. (JUNG, 1996, p. 64) O símbolo é parte decisiva no estudo dos sonhos e das imagens, dentro de um contexto arteterapêutico. O símbolo trata da imagem interna (mental), ou física, que representa e contém significados de tendências inconscientes. As palavras, assim como as imagens, também podem ser simbólicas, quando abordam significados e sentido além do óbvio, assumindo um caráter inconsciente, que nunca pode ser totalmente entendido ou explicado. A linguagem simbólica é a utilizada pelo inconsciente, para comunicar-se com a parte consciente do indivíduo, processo que faz parte do funcionamento natural da psique. Eliade escreve sobre o pensamento simbólico e sua função: O pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano; precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. (ELIADE, 1991, p. 8-9) Esta linguagem através do símbolo é a utilizada pelo inconsciente dentro do sonho. Durante este processo, o símbolo está totalmente articulado com o indivíduo (JUNG, 1996, p. 92), no que diz respeito ao seu universo cultural, aos desafios e ao momento atual. Chevalier e Gheerbrant referem-se à importância dos sonhos como uma das melhores fontes de informação sobre o estado psíquico de quem sonha. Assim sendo, coloca à disposição do sonhador um símbolo vivo, um retrato de sua situação existencial aqui/agora, e continua afirmando que: [...] ele é para quem sonha uma imagem freqüentemente insuspeitada de si mesmo; é um revelador do ego e do self. Mas ao mesmo tempo os dissimula, exatamente como um símbolo, sob imagens de seres distintos do sujeito. [...] (o sujeito) Pode ser representado com traços que não têm aparentemente nada em comum com ele, homem ou mulher, animal ou planta, veículo ou planeta etc. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 846) Diante do exposto, ressaltamos a importância dos sonhos quando rememorados – associados e ou amplificados -, e trazidos à luz da consciência para uma reflexão, podem contribuir para seu processo de individuação. 5.1 ANÁLISE E INTERPRETAÇÕES O presente estudo apresenta uma breve análise de símbolos relevantes dentro dos sonhos de L. Dialogar e refletir a respeito do sonho e seu conteúdo contribui para a evolução pessoal, dentro do “processo de individuação” e tem como objetivo “restituir a pessoa à sua identidade própria, descobrindo o sentido de suas alienações”. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 846) A análise [...] permitirá que entre em comunicação quase regular com a consciência e desempenhe então um papel de criador de integração em todos os níveis. Não apenas exprimirá a totalidade do ser, mas contribuirá para formá-la. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 846) Jung assim expressa seu pensamento em relação à relevância do conteúdo simbólico do sonho e o processo de individuação: Neste estado a que chamamos “o processo de individuação” [...] a interpretação dos símbolos exerce um papel prático de muito relevo, pois os símbolos representam tentativas naturais para a reconciliação e união dos elementos antagônicos da psique. (JUNG, 1996, p. 99) Para a análise do material/relato do sonho, Franz (2001) apresenta aspectos importantes a serem observados dentro da estrutura básica do sonho, para estabelecer diálogo e realizar sua interpretação. Segundo a autora, “A primeira sentença de um sonho em geral descreve a cena da ação e apresenta os protagonistas” (2001, p.48). A partir desses dados, o sonhador faz suas associações e então a relação destas informações com o momento atual da vida do sonhador. “O passo seguinte é nomear o problema”. Ao final, sabe-se a resolução, “o objetivo: uma solução, ou uma catástrofe [...] O final do sonho contém o aspecto que deve ser conscientizado” (2001, p.49). Von Franz também comenta sobre o sonhador olhar o próprio sonho:”Se alguém quiser interpretar o próprio sonho, o melhor é escrevê-lo numa folha de papel e anotar as associações a cada palavra do sonho, ou seja, o que vem à mente de forma espontânea, Em seguida, deve-se observar se há uma conexão entre o sonho e as associações. (2001, p. 49) A esse respeito, Jung também se posiciona, afirmando que: “Muitos sonhos podem ser interpretados com o auxílio do sonhador, que providencia tanto as associações quanto o contexto da imagem onírica por meio dos quais podemos explorar todos os seus aspectos”. (JUNG, 1996, p. 67) 5.2 ANÁLISE DO SONHO ALIADA À CRIAÇÃO DE IMAGENS - ARTETERAPIA Toda situação nova se apresenta, para a consciência, como um Caos a ser ordenado, e todo símbolo necessita germinar em solo propício para trazer à tona o seu potencial criador e renovador de nossa realidade psíquica. (BERNARDO, 2009, p.165) A interpretação de um sonho não deve ser confundida com a simples busca de significados em livros, deve-se levar em conta o olhar do sonhador neste diálogo com o material que emerge do inconsciente por meio do sonho. O que realmente importa é a maneira como este conteúdo se relaciona com o seu sonhador, pois, como afirma Jung: A interpretação de sonhos e de símbolos requer inteligência. Não pode ser transformada em um sistema mecânico que vai, depois, servir de recheio a cérebros desprovidos de imaginação. Pede tanto um conhecimento progressivo da individualidade de quem sonhou, quanto uma crescente percepção da parte de quem interpreta o sonho. (JUNG, 1996, p. 92) No presente estudo, além da transcrição e do diálogo com o sonho, propomos um momento de conferir uma forma aos símbolos mais significativos para o sonhador. Após esse momento, um diálogo com estas imagens, aliando as técnicas já empregadas por estudiosos à vivência arteterapêutica. Lusebrink destaca que, O papel único das imagens no processamento das informações é fornecer uma contrapartida ao processamento verbal. As imagens parecem estar mais intimamente ligadas à experiência individual do que os rótulos verbais dessas mesmas experiências. As imagens podem ser mais diretamente expressas visualmente do que verbalmente. (2003, p.2,3) O surgimento, das imagens é vivenciado internamente, independente de ser uma imagem interna, externa ou com origem em descrição verbal. No processo arteterapêutico, há o convite de conferir a essas imagens uma forma bi ou tridimensional. Esse registro permite um olhar objetivo à imagem, traz, muitas vezes, uma solução para uma situação aparentemente sem saída. Isso que contribui no processo de transformação e desenvolvimento do indivíduo. Ao reportar-se às imagens que surgem durante o sonho, Lusebrink (2003, p. 8) afirma que O conteúdo das imagens dos sonhos tende a mudar durante a noite. Sonhos logo após adormecer tendem a ser mais ligados à realidade e lidam com os resíduos do dia anterior. [...] À medida que os períodos de “REM” (Movimentos oculares rápidos) ocorrem durante a noite, os sonhos se tornam mais complexos e intrigantes, incorporando experiências visuais anteriores, com fortes conotações emocionais e lembranças (Molinari & Foulkes, 1969). Por outro lado, a atividade cerebral do hemisfério esquerdo aumenta durante a noite. Sonhar acordado, como o vivenciado durante o período da manhã, tem uma qualidade real e aquele que sonha está ciente de que ele tem algum controle sobre esses sonhos (LaBERGE, 1980) Ao sonhar, os dois hemisférios do cérebro são ativados. Conforme apresentado por Lusebrink, o hemisfério direito é eficiente na codificação visual, enquanto que o esquerdo lida com maior agilidade na codificação verbal. O trabalho desenvolvido com sonho em arteterapia auxilia no desenvolvimento da criatividade e exercita os hemisférios cerebrais, uma vez que possibilita o refazer verbal/narrativo do sonho e a produção imagética de símbolos mais significativos para o sonhador. Contextualizando com pensamentos de Lusebrink: As imagens dos sonhos também estão associadas às atividades do hemisfério direito, incluindo emoções fortes, a proeminência de objetos, espaço e ouvir música (Cohen, 1977) [...] As atividades do hemisfério direito podem contribuir também para criatividade nos sonhos e para o funcionamento da cognição-associação (Dimon & Beaumont,1974). Os dois hemisférios são complementares entre si, visto que o hemisfério esquerdo processa informações seqüencialmente e o direito de maneira paralela. A interação entre esses dois modos de processamento de informações aumenta a possibilidade de soluções criativas. (LUSEBRINK, 2003, p. 9) Assim, o fazer artístico torna-se imprescindível dentro do processo. Nesse aspecto, concordamos com Lusebrink quando garante que As expressões artísticas desenvolvem o funcionamento e a formação do imaginário no hemisfério direito e isso afeta a expressão. Imagens são expressas externamente através de meios visuais e a percepção das imagens visuais externas ativa o processo do hemisfério direito (LUSEBRINK, 2003, p.10). Diante do exposto, cabe salientar que, ao dar forma às imagens dos sonhos, o indivíduo permite que os conteúdos trabalhados internamente ao sonhar sejam reelaborados, ganhem novas camadas de significação e auxiliem o sonhador em sua caminhada de desenvolvimento. Para encerrar este capítulo, as palavras de Coutinho reforçam o aspecto transformador e relevante do dar forma ao conteúdo que emerge do inconsciente e nos sonhos, tidos por essa autora como “privilegiados canais de comunicação inconsciente/consciente”: O ato de criar [...], o prazeroso lidar com as cores, texturas, formas, e a descoberta das infinitas possibilidades que os materiais plásticos nos oferecem, possibilidades de liberação e de organização, que nos reestruturam internamente. Aos poucos vamos adquirindo novos ângulos para nos olharmos, descobrindo sentimentos e sensações. E este novo olhar virá da conscientização, nascida do contato com as formas criadas, que vão se descortinando, ao transformarem mensagens de conteúdo inconsciente em mensagens que poderão ser assimiladas pela consciência. (COUTINHO, 2007, p. 50) 6 OFICINAS CRIATIVAS® E ACESSO AO PRIMITIVO - INSTINTOS 6.1 PRIMEIROS MOMENTOS DE OFICINAS ARTETERAPÊUTICAS COM GRUPO Foram realizadas 22 Oficinas arteterapêuticas com um grupo de seis crianças, do sexo feminino, moradoras da Vila de Ponta Negra, em Natal/RN, na faixa etária entre 5 e 7 anos. O local que cedeu espaço para desenvolver o projeto foi uma instituição missionária evangélica, situada na própria Vila, um bairro com alto índice de criminalidade, tráfico de drogas, prostituição. As crianças participantes do projeto apresentam dificuldades de socialização, baixa autoestima, carência afetiva, sem acesso à educação de qualidade, resultando em atraso no desenvolvimento cognitivo e social. Todos os encontros seguiram os moldes das Oficinas Criativas® de Allessandrini (2000), que propõem o atendimento arteterapêutico grupal ou individual, seguindo etapas onde “o sujeito expressa criativamente uma imagem interna por meio de uma experiência artística para, posteriormente, organizar o conhecimento intrínseco a esse fazer expressivo” (ALLESSANDRINI, 1996, p. 41). A primeira etapa da Oficina Criativa® é a Sensibilização, na qual, através de proposta oferecida pelo arteterapêuta, o sujeito participante “estabelece uma relação diferenciada de contato com o mundo, apoiando-se na sensibilidade e percepção de seu eu e dos objetos que o cercam. Ele é convidado a tocar o “si mesmo” – o seu mundo INTRA [...]” (ALLESSANDRINI, 1996, p. 41)2. Esse momento de sensibilização pode apresentar atividades lúdicas, corporais (danças, massagens, exercícios de respiração, relaxamento), visualizações, explorações que envolvam o sensorial (sentir e experimentar objetos, cores, formas, texturas, sons), tendo como objetivo principal o envolvimento dos participantes na proposta, vivenciando ativamente o processo e preparando para a etapa seguinte, a Expressão Livre. 2 Grifos do original. Na Expressão Livre o sujeito é convidado a expressar seus conteúdos internos, suas emoções, pensamentos e o que foi vivenciado no primeiro momento da oficina, utilizando recursos artísticos e não verbais. Nesta etapa são oferecidos materiais como lápis de cor, giz de cera, argila, sucatas, tintas etc. “O que foi sentido, intuído, vivido inquietamente, provocando um pequeno caos interno, pode corporificar-se em contornos por vezes pouco delineados, mas densos e potencializadores de uma nova ação construtiva e diferenciada” (ALLESSANDRINI, 1996, p. 43). Na Elaboração da Expressão as imagens que surgiram com força e rapidez do inconsciente passam por uma re-elaboração, onde ganham forma mais definida e são retrabalhadas. Uma distância reflexiva começa a ser trazida à consciência e o indivíduo começa a elaborar. Esse momento é de um valor inestimável, pois cada um trabalha simbolicamente na qualidade do poder ser original, único e criativo dentro do encontrar recursos para clarear e delinear seu conteúdo pessoal. (ALESSANDRINI, 1996, p. 43). A Transposição de linguagem é a etapa seguinte, onde os participantes são convidados a falar/escrever sobre a imagem criada, quando são estimuladas funções de pensamento e raciocínio. Ao criar um texto ou falar organizadamente sobre sua criação, o individuo toma maior consciência do processo vivenciado e das questões ora trabalhadas, relevantes em seu processo. A etapa final da Oficina Criativa® trata do ‘rever’ o processo e recebe o nome de Avaliação: É tempo de olhar e poder “re-ver” cada etapa, re-elaborando conteúdos ainda não explicitados, ou avaliando a dimensão de significado simbólico da totalidade da experiência vivida. A distância reflexiva se completa, a gestalt se faz, oferecendo ao indivíduo a oportunidade de crescer dentro de um caminhar próprio e autêntico, no qual arriscar-se e romper o próprio limite pode ser vivido como unidade em algo que eu chamaria de “ser-sentir-criar-expressar-fazer-refletir-crescer”. Ou seja, essa avaliação envolve o conjunto de informações que permitem identificar os processos que foram significativos. (ALLESSANDRINI, 1996, p. 44,45). Nas primeiras oficinas, como sensibilização, foram utilizadas atividades com muito movimento, como dança de músicas infantis, ou brincadeiras associadas a músicas, como dança da cadeira ou imitações de animais. Era uma ocasião que as crianças gostavam muito. Em determinados momentos da oficina, expressavam o desejo de dançar mais. Em algumas oficinas o aquecimento com música era seguido por uma sensibilização, como ouvir uma história, exploração sensorial de materiais, brincadeiras. Foram oferecidos materiais estruturantes, como lápis de cor, giz de cera e colagens com figuras de revistas, para o momento de Expressão Livre. Na transposição de linguagem era proposto às crianças falar sobre sua criação, sobre as atividades durante a oficina, mas, em geral as participantes descreviam os elementos de seus desenhos, de modo bastante concreto. Ao final de cada oficina era solicitada uma palavra de encerramento, o que não ficava muito claro para elas, pois não entendiam esse conceito de “uma palavra”, visto que algumas ainda não eram alfabetizadas. Assim, neste momento de encerramento, as participantes falavam sobre as coisas que gostaram de fazer durante a oficina ou frases de cunho religioso. Vale ressaltar que a instituição que cedeu espaço para o projeto era de caráter religioso, e umas participantes não conseguiam separar e diferenciar as propostas arteterapêuticas dos trabalhos desenvolvidos de evangelização oferecidos para elas, inclusive na mesma sala de atendimentos arteterapêuticos. O grupo apresentava comportamentos agressivos, com baixo envolvimento nas atividades, pouca cooperação, discussões, individualismo, falta de limites, pouco respeito. O contato de L com este comportamento das integrantes do grupo de atendimento causou ansiedade, insegurança e medo em L, o que fez com que ela passasse por um período de adaptação e, assim, conteúdos relevantes foram tocados e despertados através dos sonhos e do trabalho arteterapêutico sobre eles. 6.2 ATENDIMENTO INDIVIDUAL DE L: INTER-RELAÇÕES COM ATENDIMENTO DO GRUPO DE PESQUISA [...] o sonho nunca diz o que você já sabe. Ele indica algo desconhecido, um ponto cego. (M-L Von Franz, 2001, p. 51) Durante o processo de formação do Arteterapêuta, conforme Philippini (2008, p. 27), o acompanhamento pessoal terapêutico é fator relevante para que o arteterapêuta construa e viva o processo artístico e terapêutico e possibilite a ampliação criativa de seus clientes. Segundo essa autora: “Para transformar-se em observador presente, ativo, empático companheiro nesta aventura do construir-se e transformar-se pela via das imagens, precisará o arteterapeuta do contínuo trabalho de auto desvelar expressivo do ateliê” (2008, p. 30) A seguir, serão apresentados os dados referentes a produções artísticas e escritas criativas de L, 26 anos, no decorrer de seu acompanhamento arteterapêutico individual, no período de estágio supervisionado dentro do Curso de Especialização em Arteterapia. Após iniciadas as sessões de atendimento arteterapêutico pessoal, em março de 2008, L expôs a ansiedade causada por sonho recente. Os atendimentos individuais de L também seguiam os moldes Oficinas Criativas® de Allessandrini, sendo a narrativa/escrita do sonho (e o próprio o sonho) o momento de sensibilização, em seguida, uma expressão livre com as principais imagens do sonho. Após a expressão livre, L criava um texto com suas impressões sobre a imagem, emoções, reflexões e outros detalhes sobre o sonho, a transposição de linguagem. Este molde traçou uma “diretriz” de como ocorreria este diálogo com os discursos e imagens que surgiam do inconsciente através dos sonhos, dentro de um contexto arteterapêutico.3 O sonho a seguir ocorreu três dias após o início das oficinas arteterapêuticas com as crianças em situação de risco social. A imagem intrigante que chamou a atenção de L era a de um dinossauro que a ameaçou: Dessa forma, L pôde vivenciar a Oficina Criativa® em vários níveis: como arteterapeuta, numa proposta grupal (organizando, oferecendo a vivência às crianças e refletindo sobre a prática), como cliente – em atendimento individual –, vivenciando o processo, e ainda como estudante e pesquisadora de seus resultados e benefícios. 3 Sonho 1 “Sonhei com minha colega de estágio, R. Andávamos numa rua observando os muros, os detalhes, tijolos costurados. Seguimos em frente e havia um muro comprido, com imagens pontuadas, como se tivessem sido feitas no computador e ampliadas, revelando os pixels. Aos poucos percebi que essas formas se transformaram numa bola de basquete no muro. Na esquina ao fim da rua, avistamos um aro branco para arremesso de bola de basquete. O dono da casa apareceu na rua e nos convidou para jogar com ele, parecia esperar a tempos por alguém com quem pudesse jogar. Ele arremessou a bola em nossa direção, eu desviei. R se entreteve um pouco com ele, eu tomei o caminho inverso, observando o que havia do outro lado da rua. Vi uma rampa de grama. R me alcançou e decidimos subir a rampa. Lá em cima havia uma cerca de madeira, subimos nela e avistamos um rio que passava logo em frente, abaixo. Tinha água transparente. R me falou sobre os perigos que havia neste rio. Vi um lagarto sobre uma pedra dentro do rio. Desci meu pé esquerdo, colocando-o no chão, permanecendo com o direito na grade. Logo em seguida, um dinossauro se aproximou, subiu e pegou, com força, usando sua magra e fina mão direita, meu pé esquerdo, perguntou: “você já foi comida?”. (Transcrição do sonho de 14/04/2009). Este sonho foi considerado por L como um pesadelo, que a fez acordar assustada e com medo: nunca havia sonhado com um animal como este. Franz (2001, p. 99) explica que o pesadelo é importante, pois serve para ‘acordar’ o sonhador para certas questões, e afirma que: [...] pesadelos são sonhos substancialmente, vitalmente importantes. Eles nos fazem acordar gritando; são eletrochoques que a natureza aplica em nós quando quer que despertemos. [...] O ponto do sonho em que despertamos é o choque através do qual o inconsciente diz: “Agora, é isso, preste atenção nisso!” O pesadelo é, portanto, uma verdadeira terapia de choque. A intenção é nos sacudir e arrancar de uma sonolência inconsciente a respeito de alguma situação perigosa. [...] O pesadelo então nos desperta. Sua característica é uma certa urgência, como se o inconsciente dissesse: “Olhe aqui, esse problema é urgente!” Referindo-se aos conteúdos que emergem nos sonhos, Jung destaca que: Estes conteúdos sobreviventes não são neutros ou apáticos; ao contrário, estão de tal maneira carregados de energia que às vezes não se limitam a causar mal-estar, chegando a provocar um medo real. E quanto mais reprimidos mais se irradiam através da personalidade inteira, sob forma de neurose. (JUNG, 1996, p. 98) Uma etapa importante nesse processo é justamente a criação da imagem, que vai alavancar todo o processo de transformação e o projeto pessoal do participante da Oficina Criativa®. Allessandrini opina sobre a importância de dar forma a esses conteúdos internos afirmando que: [...] toda experiência de criação [...] demanda do sujeito um contato com seu mundo interno. A princípio o objeto é, pois, interno. Porém, logo passa a ser interno e externo ao mesmo tempo, até transformar-se de tal modo que atinge sua forma final. Na verdade, esse objeto nunca chegará a ser totalmente externo ao sujeito, pois permanece em sua essência como expressão do simbólico, correspondente ao vivenciado. (ALLESSANDRINI, 2000: s/n) Eis a linguagem escrita após expressão plástica: “Ao centro – o lagarto sobre a pedra, em volta dele, as ondas da água, um pulsar, vibração: para cima, para baixo e para a direita. À direita, em baixo, fica a rua, o caminho, onde quica a bola, onde ocorre o jogo para acertar o aro sobre o muro. À esquerda: há uma subida, uma montanha com grades que protegem e Figura 1 – Lagarto e dinossauro Fonte: Sonho de L. separam da “água transparente, mas cheia de perigos, ‘monstros’”. Sobre a grade, eu e R. Ela está no primeiro degrau e fala sobre os perigos da água. Eu desço meu pé esquerdo que é agarrado pela mão direita do Dinossauro. Minha perna direita precisa se dobrar para que isso aconteça. O dinossauro à esquerda, acima de nós, fica feliz e pergunta se já fui comida. Mostra todos os seus dentes. Ao retratá-lo, fiquei muito confusa, porque se pareceu, somente com o contorno, com uma pessoa encoberta por um pano. Algo escondido – uma mistura de guerreiro com funerário egípcio – pelo “colar”. Os olhos são tranqüilos e também me lembrou ETs.” Este diálogo pessoal que, após a elaboração da imagem, é proposto pela Oficina Criativa® de Allessandrini, a transposição de linguagem, permite que durante o processo, a consciência das mensagens, dos símbolos, da experiência, dos personagens e contextos se ampliem, deixa que a mente envie as mensagens necessárias para os questionamentos do cliente/sonhador/criador, neste caso, também contribuindo para o desenvolvimento do ‘eu terapeuta’. [...] a transposição de linguagem, ou seja, a passagem daqueles conteúdos para uma nova linguagem. [...] Esse é um momento fundamental na Oficinas Criativas® , pois convida o sujeito a acionar um movimento na ordem do descontínuo, ou seja, em um outro nível de consciência energética interna. O que foi vivido é redimensionado, diante do sentido provocado pelo que evocou internamente. Algo é apreendido, per si, nessa ação. (ALLESSANDRINI, 2000, p. 84) Neste momento não havia entendimento sobre as questões e os simbolismos apresentados no sonho e na imagem produzida. A confusão causada pela imagem do dinossauro retratada revelou à L que este seria um caminho rico. Porém, o medo pelo tema apresentado no sonho não diminuiu, pois não houve uma compreensão. [...] uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto imediato. Essa palavra ou esta imagem têm um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a idéias que estão fora do alcance da nossa razão. (JUNG, 1996, p.20,21) Não somente por serem imagens impulsionadas por sonhos que têm essa característica complexa, ocorre por serem imagens e idéias simbólicas, que têm espaço para serem trabalhadas dentro das Oficinas Criativas® : No trabalho de Oficina Criativa o cognitivo e o simbólico presentificam a experiência em sua dimensão conceitual. Por vezes, as informações que emergem são complexas e demandam alto nível de elaboração. O pensamento operatório participa ativamente dessa etapa do processo. E a compreensão dos elementos que emergiram até então e sua organização seqüencial, ou sua inserção em contextos mais amplos de vida, ou então de simples reconhecimento de padrões pessoais de ação que ocorrem nessa etapa, podem ser desencadeadores de mudança de consciência, e, portanto, de aprendizagem. (ALLESSANDRINI, 2000, p. 87) Assim, as questões apresentadas neste primeiro sonho, trabalhadas e desenhadas, foram reapresentadas a L em outros sonhos e conduziram a pensamentos que trouxeram entendimento e transformação; esse entendimento gradativamente começou a se revelar em suas escritas e reflexões sobre os sonhos e as imagens produzidas. As mensagens e símbolos muitas vezes eram entendidos, ou ganhavam significado, após semanas ou meses, através de insigths que levavam a uma re-significação, descoberta e novo sentido. Os muros pelos quais L passeia na primeira cena do sonho são divisores e símbolos de limites entre o que está dentro e o que está fora, o que pode ser mostrado, proteção. Reportando-se ao significado de muro ou muralha, Chevalier e Gheerbrant, assim o fazem, colocando que: [...] é tradicionalmente a cinta protetora que encerra um mundo e evita que nele penetrem influências nefastas de origem inferior. Ela tem o inconveniente de limitar o domínio que nela encerra, mas a vantagem de assegurar a defesa, deixando, além disso, o caminho aberto à recepção da influência celeste. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 626). Em continuidade ao sonho, os tijolos são costurados, furados e unidos com linhas (elos) para formar uma estrutura sólida. O homem que estava esperando e convida ao jogo: o masculino como representação do lado racional, da força física, o atleta, o animus em seu primeiro estágio. De acordo com Jung, o pai de sexo oposto ao da criança é uma importante influência no desenvolvimento da Anima ou Animus, e todas as relações com o sexo oposto, incluindo os pais, são intensamente afetadas pela projeção das fantasias da Anima ou Animus. Este Arquétipo é um dos mais influentes reguladores do comportamento. Ele aparece em sonhos e fantasias como figuras do sexo oposto, e funciona como um mediador fundamental entre processos inconscientes e conscientes. (FRANZ, 1996, p. 177-195). No jogo proposto por este personagem dentro sonho, a bola é manuseada e deve-se ter precisão para acertar o alvo: uma cesta que está no alto. L desvia e não aceita o convite. Em Chevalier e Gheerbrant, o simbolismo do jogo trata do envolvimento: O jogo, para ser eficaz, deve com efeito engajar todo o ser, abrir todas as vias de comunicação. Libera, assim, uma intensa criatividade, uma energia que se ajusta sem cessar. Ele prepara para o futuro. É um símbolo vivo. [...] Brincar com alguma coisa significa dar-se ao objeto com o qual a gente brinca. Aquele que brinca investe de alguma forma sua própria libido na coisa com que brinca. Disso resulta que o jogo se faz uma ação mágica, capaz de despertar a vida... Brincar é lançar uma ponte entre a fantasia e a realidade pela eficácia mágica da própria libido; brincar é, então, um rito de entrada e prepara o caminho para a adaptação ao objeto real. (ADLJ, 102- 103, apud CHEVALIER, 2002, p. 521-520)4 Trata-se de um convite ao envolvimento, à brincadeira, a aspectos relevantes no processo de atendimento ao grupo de crianças. Ao fazer o caminho inverso, vendo o que há do outro lado, percebe elementos mais naturais. O rio pode simbolizar o inconsciente, é transparente e tem ‘monstros e perigos’. Segundo Chevalier e Gheerbrant, “o simbolismo do rio e do fluir de suas águas é, ao mesmo tempo, o da possibilidade universal e o da fluidez das formas (F. Schuon), o da fertilidade, o da morte e da renovação. O curso das águas é a corrente da vida e da morte” (2002, p.780)5. E o monstro é o “guardião de um tesouro, [...] dificuldades a serem vencidas, os obstáculos a serem superados, para se ter acesso, afinal, a esse tesouro, material, psicológico, espiritual.” (2002, p. 615). Sua simbologia, neste caso, é bem rica, associada ao contexto do sonho. Ele funciona como um chamamento interior. Apresentamos alguns trechos significativos do dicionário de Chevalier e Gheerbrant que podem completar e clarear o entendimento do surgimento dessa figura/imagem, neste período específico em que se encontrava L: Cabe ao sujeito passar por provas, dar a medida de suas capacidades e de seus méritos. É preciso vencer o dragão, a serpente, as plantas espinhosas, toda espécie de monstros, inclusive a si mesmo, para possuir os bens 4 5 Grifos do original. Idem. superiores que ele cobiça. [...] O monstro surge também da simbologia dos ritos de passagem: ele devora o homem velho para que nasça o homem novo. O mundo que ele guarda e ao qual introduz não se tem acesso a não ser por meio de uma transformação interior. [...] é ainda símbolo da ressurreição: ele devora o homem com o fim de provocar um novo nascimento. [...] Eles saem geralmente da região subterrânea, de cavidades, de antros sombrios; do mesmo modo as imagens do 6 subconsciente. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2002, p. 615-616) Prosseguindo com a descrição do sonho, o rio é delimitado por uma pequena barreira, uma grade de madeira, onde L e R se posicionam – é possível ver os movimentos das profundezas e os animais, elementos da natureza psíquica. R, pessoa de mesmo sexo de L, vem a representar uma parte da sonhadora que não é totalmente aceita e reconhecida, o que dentro da teoria de Jung é chamado de sombra, neste caso, ocorrendo uma projeção, como o autor explica: Através dos sonhos passamos a conhecer aspectos de nossa personalidade que, por várias razões, havíamos preferido não olhar muito de perto. É o que Jung chamou “realização da sombra”. [...] ela quase sempre aparece nos sonhos sob uma forma personificada. [...] representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego – aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderiam também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra pode, igualmente, consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo. (JUNG,1996, p. 168) O lagarto e o dinossauro lançam um indicativo da área que está sendo trabalhada e acessada: o cérebro reptiliano e questões primitivas. A esse respeito, Dryden e Vos, se pronunciam colocando que: Se você dissecasse seu cérebro, na base do crânio, encontraria um segmento quase idêntico àquele encontrado em um lagarto, em um crocodilo ou em um pássaro. Por causa disso, alguns cientistas o apelidaram de cérebro reptiliano ou reptílico. Esta parte do cérebro controla funções extremamente simples, porém importantes, como nossa respiração, batimentos cardíacos e muitos instintos básicos. (DRYDEN e VOS, 1996, p. 77) Observa-se que há um chamamento/questionamento. Para Chevalier e Gheerbrant, em relação ao lagarto: “Poder-se-ia considerar seu simbolismo como 6 Grifos do original. derivado do simbolismo da serpente. [...] Os hieróglifos egípcios escolheram sua imagem para significar benevolência. [...] simbolizaria assim a alma que busca humildemente a luz [...]” (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2002, p. 533).7 Carson e Sams (2000), que tratam da simbologia dos animais numa visão xamânica, contam que o lagarto está associado aos sonhos, ao sonhar, e sua presença dentro deles é um sinal para dar atenção aos sonhos, registrá-los e decodificar seus simbolismos: “O Lagarto lida com o lado sombrio da realidade, no qual os sonhos são reelaborados antes de se manifestarem no plano físico. A energia do Lagarto é a energia dos sonhadores” (CARSON e SAMS, 2000, p. 202) Marie-Louise Von Franz fala da presença dos animais nos sonhos e os relaciona com a parte primitiva do homem: ”O motivo animal simboliza habitualmente a natureza primitiva instintiva do homem. Mesmo os homens civilizados não desconhecem a violência dos seus impulsos instintivos e a sua impotência ante as emoções autônomas que irrompem do inconsciente” (FRANZ, 1996, p. 237) Por conseguinte, um olhar atento a esses animais que surgem simbolicamente dentro dos sonhos é relevante dentro do processo de transformação e evolução pessoal, uma vez que diz respeito a uma parte da natureza que deve ser reconhecida e integrada por L, pois: [...] no homem, o “ser animal” (que é a sua psique instintual) pode tornar-se perigoso se não for reconhecido e integrado na vida do indivíduo. O homem é a única criatura capaz de controlar por vontade própria o instinto, mas é também o único capaz de reprimi-lo, distorcê-lo e feri-lo – e um animal [...] quando ferido, atinge o auge da sua selvageria e periculosidade. Instintos reprimidos podem tomar conta de um homem, e, mesmo, destruí-lo. (FRANZ, 1996, p. 239). No sonho ora citado, a parte racional (base/pé direito) tem que se dobrar (ceder), permitir movimento, flexibilidade, para que o lado esquerdo (intuitivo, emocional) faça esse contato, através de uma energia mais básica e primitiva. Alguns meses depois deste sonho L percebeu a pergunta feita pelo dinossauro “Você já foi comida?” de forma mais ampla: a palavra “comida” a princípio foi encarada como parte do verbo: o sujeito sofria a ação da frase: ser 7 Grifos do original. literalmente comido, devorado pelo monstro. Essa palavra passou, posteriormente, através de insight, a ser encarada como um adjetivo: comida significando algo que é preparado, elaborado, passa por processos alquímicos de transformação e serve para nutrir e gerar energia. Como podemos observar, as imagens/símbolos que surgem no sonho foram associadas e consideradas; estabeleceu-se uma relação com elas, que, posteriormente, foram entendidas e apreendidas pelo sonhador conscientemente. Este sonho apresentou, após o primeiro contato com as crianças do grupo de atendimento arteterapêutico, conteúdos que, através da simbologia dos répteis, retratam os medos de L e a necessidade de olhar, conhecer, elaborar e integrar questões básicas, primitivas e instintivas, importantes para a formação do ser terapeuta. Juntamente, surge o convite ao jogo e ao envolvimento, ao brincar, pontos significativos ao trabalhar com crianças. Seguindo-se ao sonho apresentado, L escreve e desenha outro sonho com elementos próximos ao primeiro, onde ressurge a temática de répteis e água: Sonho 2 Sonho da mão: Era fim de semana. Estava indo com V8 para uma casa de praia um condomínio com chalés e piscina. Vimos pessoas da minha família lá brincando; meu pai, um irmão da minha mãe (tio) e um cunhado da minha mãe; estavam na piscina brincando com bola. Fui até o último chalé com V. Ele queria ficar lá dentro vendo TV e eu queria sair para conhecer o lugar. Saímos juntos, ele ficou com os outros homens e eu segui sozinha. Vi umas fendas no chão por onde entravam os barcos. Estávamos em época de guerra. O chão e a água flutuavam, estavam no mesmo nível. Fui até uma parte mais estreita e encontrei outro tio (P), que é da Marinha e mora em Brasília, conversei com ele. Ele não olhava para mim, sempre para frente. 8 V: marido de L Fomos até umas bancadas onde ele pintou meu braço direito. Andamos juntos por um caminho estreito, perguntei a ele se ia viajar e ele disse que sim. Separamo-nos. Reencontrei V dentro de uma sala de cinema, onde entregavam o Oscar. Uma atriz loira tinha ganhado os últimos 8 anos e achava que ganharia novamente; se levantou antes de dizerem o nome da vencedora, que era outra. Foi aí que percebi a pintura no braço e os números nos dedos. Tudo era muito brilhante, parecia pele de cobra. Levantei-me e fui até a cozinha, onde havia um tanque de lavar roupas e passei sabão de coco no braço. As cores saíram com facilidade, mas os números continuavam junto com outro desenho no lado escondido do braço. Eles são pretos, da mesma tinta. (Transcrição do sonho de 15/04/2008) Conforme recomendado, foi realizada a confecção da imagem referente ao sonho e a escrita, atentando para os detalhes da expressão: Há bordas vermelhas que separam a terra da água. O braço direito ocupa quase todo lado direito da folha. Os dedos “caminham” para o centro – os dedos com números me chamaram atenção por parecer uma seqüência, mas sem o 3. O braço tem “vários” tons ou cores, parece uma resposta ao que verbalizei no último encontro com Luzia. Gostaria que o lado direito tivesse mais Figura 2 – mão pintada Fonte: Sonho de L. cores (vida); também, pela textura, se misturou um pouco com a temática dos répteis do outro sonho. Agora, não estão fora de mim, me atacando ou amedrontando, são algo impresso em mim, no lado direito (fora). A casa, mais à esquerda, é a 1ª de sete casas – a que fiquei era a 7ª. Há poucas plantas e natureza nesse sonho – mais cimento, piso = cinzento. A água esteve mais presente. No enredo do sonho, percebe-se que há um conflito (período de guerra) ocorrendo internamente: A guerra interior tende a reduzir o mundo da dispersão, o das aparências e das ilusões, ao mundo da concentração, a única realidade; o múltiplo ao uno; a desordem à ordem. [...] É a confrontação das trevas e da luz no homem. Cumpre-se na passagem da ignorância para o conhecimento. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 481,482) Figuras masculinas novamente brincam com bola neste sonho, porém são personagens familiares a L. Esse brincar é dentro da água. Elementos da natureza: água e terra aparecem na temática do sonho, e num indicativo de igualdade: mesmo nível. Bernardo (2009) apresenta aspectos dos quatro elementos (terra, fogo, ar e água) no trabalho arteterapêutico e fala do aspecto simbólico de cada um deles. Segundo a referida autora, Em seu aspecto simbólico, o elemento Terra nos remete ao nosso corpo e a seus processos vitais, correspondendo à percepção que temos da realidade e nos oferecendo base e suporte para o crescimento. Seu simbolismo engloba a capacidade de escuta e reconhecimento das próprias necessidades, envolvendo também uma consciência dos limites [...]. Na Roda da Cura, a Terra aparece à Oeste, ligada à maturidade, ao Feminino, aos frutos, à capacidade de introspecção, de conexão com o santuário interior, para ali encontrar as próprias respostas. (BERNARDO, 2009, p. 103, 104) Nesta mesma obra, Bernardo relaciona os elementos às quatro funções Junguianas (Sentimento, Pensamento, Intuição e Sensação): [...] elemento Terra e à função Sensação [...], através da qual percebemos a realidade concreta e lidamos com ela de forma consistente e razoável, aprendendo a ficar de pé e firme diante dos revezes (provações) da vida, com dignidade, aprendendo a lidar com nossas decepções e a encontrar as nossas próprias respostas para as questões que se nos apresentam, nos responsabilizando pelo que nos acontece (pelas conseqüências de nossas escolhas). (BERNARDO, 2009, p. 41) O elemento Terra é colocado em igualdade com a Água no discurso apresentado pelo inconsciente para L, através do sonho. Bernardo relaciona o elemento Água à função Sentimento, à vida emocional e à flexibilidade, e coloca que a água é Elemento ligado simbolicamente à Lua, ao inconsciente, aos aspectos indefinidos e mutáveis da existência, às emoções profundas e à fecundidade, a Água nos remete aos nossos sentimentos, ao fluxo da vida com suas metamorfoses. No ventre materno, o feto vive num meio aquoso [...] e nesse sentido o elemento Água está ligado também à nossa capacidade de desenvolver a empatia e de compreender as necessidades alheias. Na Roda da Cura [...], esse elemento corresponde ao Sul, à cor vermelha (que é cor do sangue como a “água da vida”), à fé, à inocência e à infância, simbolizando semente que umedecida, começa a desenvolver-se. (BERNARDO, 2009, p. 116, 117). Nesse sentido, o sonho alerta e mostra características necessárias para lidar com o momento presente e as funções que estão sendo trabalhadas. A questão da lateralidade é colocada novamente neste sonho e está relacionada a uma vivência em ateliê arteterapêutico: ao participar de uma visualização onde foi feito um passeio pelo interior do corpo, L percebeu cores relacionadas às partes do corpo: cores luminosas de verdes e amarelos se relacionaram com o lado esquerdo do corpo, e um fechado azul escuro com o lado direito. Momento de autoconhecimento e surpresa. Para os celtas e os gregos, (Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 341-344) e durante a antiguidade clássica, o simbolismo dos lados direito e esquerdo estão relacionados a qualidades positivas e negativas: o lado direito pode estar associado ao que é de bom agouro, ao sucesso, à força; e o esquerdo ao que é nefasto, de mau agouro. Na bíblia, olhar à direita está relacionado ao que é bom, ao paraíso, já o lado esquerdo está relacionado com o inferno e o que é mau. Lados direito e esquerdo também estão relacionados ao corpo humano, no que diz respeito a características femininas e masculinas, em muitas tradições: Certos comentários rabínicos assinalam que o primeiro homem (Adão) não era só andrógino mas homem do lado direito e mulher do lado esquerdo. Deus o rachou verticalmente em duas metades quando da distinção 9 homem; mulher. (CHEVALIER e GHEEBRANT, 2001, p. 341) 9 Conforme original Para os orientais, essa distinção ocorre ao contrário: o lado direito é relacionado às mulheres, à Terra, ao mau agouro, às colheitas, aos alimentos e à estação do outono. Já o lado esquerdo, ligado ao masculino, à honra, ao Céu, ao que é nobre. Dryden e Vos (1996) fazem um estudo sobre os dois lados do cérebro, que são ligados inversamente aos lados do corpo, e colocam características para cada um deles: Tabela 1 - lados do cérebro Lado esquerdo enfatiza Lado direito enfatiza Linguagem Rima Lógica Ritmo Números Música Matemática Pintura Seqüência Imaginação Palavras Modelos O corpo caloso liga os dois (quadro em DRYDEN e VOS, 1996, p. 82) Assim, o lado direito do cérebro (esquerdo do corpo) fica responsável pelas ‘atividades criativas’ e também pelos sonhos. E o lado esquerdo do cérebro (direito do corpo) pelas atividades acadêmicas e de aprendizagem. L, durante a visualização, observou mais luz e cor no lado esquerdo de seu corpo, o que pode representar o lado que estava sendo acessado naquele momento: as qualidades e características mais desenvolvidas no seu processo até então – como a música, a pintura, a imaginação, os sonhos, o lado mais feminino. Surge o desejo de que o outro lado, relativo às questões lógicas e racionais, ganhe mais cor, vida e luz. Na escrita sobre o desenho surgem reflexões sobre o surgimento de um braço que é colorido no sonho. Há, assim, o indicativo de um trabalho pessoal, que surge através de visualizações e dos conteúdos oníricos – do inconsciente – e mostra que questões relativas a operações racionais, a linguagem, a lógica etc, eram trabalhadas durante este processo de formação do ser terapeuta de L. O personagem que faz a ação de colorir seu braço direito no sonho é um homem mais velho, que reside na capital do país (centro, decisões, local de poder) e está ligado à Marinha – comandante de navio. Nos dedos deste braço aparecem detalhes: números ligados aos dedos. No quadro a seguir, um paralelo entre o que foi apresentado em sonho, de acordo com o dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant (2002). Tabela 2 – Simbologia de dedos e números apresentados no sonho Dedo Número Indicador: dedo da vida, dedo do 1: unidade, inteireza, integração. senhor da palavra, dedo do juízo, da decisão, do equilíbrio, do silêncio, do autodomínio. Médio: da morte, da própria palavra, 2: afirmação da personalidade. reflexão, dualidade, conflito, contrabalança. Anular: e o mínimo estão ligados às 4: relaciona-se com o círculo, transição, funções de sexualidade, aos desejos unidade, e apetites. harmonia, equilíbrio, características femininas. Mínimo: força vital dos outros dedos, 5: são cinco sentidos, dois braços, duas dedo dos desejos secretos, dos pernas, mais a cabeça com os poderes do poderes ocultos, da adivinhação. raciocínio. Dois olhos, dois ouvidos, mais o cérebro = raciocínio. Polegar: símbolo do poder, da força Não apresenta número. física e mental; o auricular ou mínimo. O simbolismo da mão apresentado pelos referidos autores trata da individualidade e do poder, pode assumir valor mágico e servir à invocação, sendo um símbolo da maestria. Ao reportar-se a esse simbolismo, Chevalier e Gheerbrant acrescentam que “A mão é às vezes comparada com o olho: ela vê. É uma interpretação que a psicanálise reteve, considerando que a mão que aparece nos sonhos é equivalente ao olho” (2002, p. 592). Ainda conforme esses autores,”A mão direita é a mão que abençoa, emblema da autoridade sacerdotal, assim como a mão da justiça é o poder real. Embora não se trate de um princípio absolutamente constante, a direita corresponde mais, na China, à ação [...] (2002, p. 589)10 Marie-Louise Von Franz aborda a questão da lateralidade afirmando que [...] lado “direito” – o lado onde as coisas se tornam conscientes. Entre outras acepções, “direita” significa, muitas vezes, do ponto de vista psicológico, o lado da consciência, da adaptação, do que é “direito”, enquanto “esquerda” significa a esfera das reações inadaptadas e inconscientes ou, algumas vezes, de uma coisa “sinistra”. (FRANZ, 2001, p. 215) A temática de répteis é retomada pela pintura do braço, neste sonho, e é vista como a pele de uma cobra. Conforme Chevalier e Gheerbrant, a cobra ou serpente – “JUNH, 237, diz que a serpente é um invertebrado que encarna a psique inferior, o psiquismo obscuro, o que é raro, incompreensível, misterioso” (2002, p. 814), o que retrata a relação de L com o conteúdo que se apresenta, referente à própria corporeidade, relacionada ao psiquismo. Ela também é colocada como “arquétipo fundamental ligado às fontes da vida e da imaginação” (2002, p. 825). Diferentemente do sonho anterior, a pele de réptil não foi apresentada como algo malvado, amedrontador, o que possibilitou a continuidade da reflexão sobre a simbologia do réptil. Essa pele foi pintada pelo personagem mais velho da marinha, e limpa, retirada, durante o sonho, pela sonhadora, e somente os números e uma pequena pintura no interior do braço permaneceram, ou seja, deixaram registro. A limpeza ocorreu na cozinha, local de preparo e transformações de alimentos para o corpo físico. 10 Grifos conforme o original. Outros dois números são apresentados neste sonho: 7 e 8. Sete: símbolo antigo para a perfeição, “corresponde aos sete dias da semana, aos sete planetas, aos sete graus da perfeição, às sete esferas ou graus celestes, às sete pétalas da rosa, às sete cabeças da naja de Angkor, aos sete galhos da árvore cósmica e sacrificial do xamanismo” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 826). É o número da casa onde, no sonho, L se hospeda com seu marido. O número oito: relacionado à inovação, mudança. Durante oito anos uma atriz ganhou prêmio – foi dominante, pôde atuar, ou seja, foi a persona, ou face a ser mostrada – e agora, após ‘disputa’ outra atriz/papel/personagem tem chance de assumir. A simbologia do número oito por Chevalier e Gheerbrant: O oito é, universalmente, o número do equilíbrio cósmico. É o número das direções cardeais, ao qual acrescenta o das direções intermediárias: o número da rosa-dos-ventos [...] O verbo é, então, simbolizado pelo número oito, que engloba, além do mais, a água, o esperma, e o conjunto das forças fecundantes. [...] O homem, imagem do macrocosmo, é governado pelo número oito, não só no mecanismo da geração e na estrutura do corpo, mas também na criação e ordenação de tudo aquilo de que depende a sua subsistência. [...] Lembremos, para terminar, que o signo matemático do infinito é um oito deitado, e que a lâmina oito do tarô de Marselha representa A Justiça, símbolo da completude totalizante do equilíbrio [...]. 11 (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 651-653) . O termo Persona foi empregado por Carl Jung, e significa “máscara do ator”, no funcionamento dos comportamentos dos indivíduos, sempre em relação com objetos externos. Coloca uma máscara, sabendo claramente que ela corresponde, por uma parte, a seus propósitos e, por outra parte, às exigências e opiniões dos que o cercam, predominando umas vezes um desses fatores, outras vezes o outro. A essa máscara... dei o nome de persona. Com estas palavras era designada a máscara dos antigos atores. (JUNG, 1987, p. 478) A temática da atriz premiada toca na questão da representação de papéis de L e da mudança prestes a ocorrer, motivada pelos atendimentos arteterapêuticos oferecidos ao grupo de crianças e pelo trabalho pessoal de L com sonhos em ateliê arteterapêutico, para a formação do ser terapêuta. 11 Grifos do original Jung aponta que o núcleo em que se desenvolve a Persona é um arquétipo, uma forma de pensamento e representação universal, que cria imagens ou visões que correspondem com a identificação e originam-se, através das interações sociais, nas quais a afirmação de um papel social desenvolve a nossa personalidade. Trata-se de um processo natural de adaptação onde o indivíduo assume diversos papéis em diferentes situações (funciona como uma máscara), com a intenção de atender às expectativas em satisfazer uma imagem ideal, tal como ele quer ser. A Persona inclui papéis sociais, tipo de roupa e estilo, expressões pessoais e corporais. Ao representar esses papéis, conforme Hall e Lindzey (1973), algumas partes do eu são ocultadas e outras ressaltadas, revelando múltiplas máscaras. A persona é a máscara usada pelo indivíduo em respostas às solicitações da convenção e da tradição sociais e às suas próprias necessidades arquetípicas internas. É o papel que a sociedade lhe atribui, a parte que a sociedade espera que ele represente na vida. O propósito da máscara é produzir uma impressão definida nos outros e, muitas vezes, embora não obrigatoriamente, dissimula a natureza real do indivíduo. A persona é a personalidade pública, aqueles aspectos que ostentamos ao mundo ou que a opinião pública fixa no Indivíduo, em oposição à personalidade privada, que existe por trás da fachada social. (HALL e LINDZEY, 1973, p.101) Após os dois sonhos apresentados, L sonha novamente com a temática dos répteis. Desta feita, o sonho mostra uma pessoa do mesmo sexo da sonhadora que assume a aparência de animal. Neste sonho (Sonho 3), ela passeia por um jardim acompanhada por sua prima Ra, que se transforma em um lagarto e entra numa pequena lagoa circulada por pedras. L se aproxima para ver e percebe dois jacarés no fundo da água. Tenta avisar sua prima/lagarto para fugir, mas os jacarés mordem o seu rabo quando ela tenta escapar. Enquanto isso, L foge e sobe numa grade, apoiando-se com os braços. Após a narrativa do sonho, L fez uma imagem utilizando aquarela e escreveu sobre ela: Jacarés, lagarto e “eu”: enquanto estava fazendo a “poça” onde estão os animais, me lembrei das duas cartas que vi no atendimento arteterapêutico – sobre o espaço sagrado e o dos ciclos, principalmente pela presença das pedras e dos matinhos. Figura 3 – Jacarés e lagarto Fonte: Sonho de L. Os 2 jacarés estão no centro e mordem o rabo do “lagarto – Ra”, que tenta escapar. Os jacarés são mais “quadradões”, rígidos, mas pequenos, e o lagarto é mais arredondado. Há um grande contraste entre os 2 lados: o lado esquerdo, onde há a arquitetura e eu é mais “racional” o outro é mais livre e “natural’”. As duas formas femininas sentem medo, fogem e usam os braços para subir, fugir, querem preservar sua integridade. Os jacarés, masculinos, parecem não ter emoções, nem sentimentos, atuam calmamente. (transcrição da escrita sobre o desenho) Ao apresentar o sonho, o desenho e a escrita sobre eles em atendimento arteterapêutico, L fez associações de palavras: Jacaré – carnívoro, agressivo, predador, ameaçador, hostil, na água, aproveitador, (bem verde); Lagarto – menor, mais ágil, presa, ia ser caçado, mais terra, sinuosidade, mais frágil. Ra – ora vítima, ora agitada Também falou sobre o dinossauro do primeiro sonho, que ainda tinha presença bem marcante em sua mente: Dinossauro – pré-história, primitivo, carniceiro, tem garras, força, perverso. Ainda não consigo entender o significado do jacaré, do dinossauro, cobra, lagarto nos sonhos. Percebo que todos têm agressividade. O sonho aborda questões relativas aos instintos (sobrevivência/ fuga), ao cérebro reptiliano e o primitivo. Ra, que neste caso é sombra de L, assume forma de lagarto, mergulha nas profundezas da água (inconsciente) e entra em contato com ‘perigos’ e a parte ‘fria’ do cérebro, representados pelos dois jacarés. Chevalier e Gheerbrant (2002) tratam da simbologia do Jacaré/crocodilo/aligator. Símbolo da fecundidade e da malvadez, por ser um animal que vive na terra e na água (temática que retorna) é um ‘símbolo das contradições fundamentais’. Ele é [...] “portador do mundo”, divindade noturna e lunar, senhor das águas primevas, o crocodilo, cuja voracidade é a mesma da noite devorando diariamente o Sol, apresenta, de uma civilização – ou de uma época – a outra, muitas das inúmeras facetas dessa cadeia simbólica fundamental que é a das forças que dominam a morte e o renascimento. Se parece temível, é por exprimir uma força inelutável, como o é a noite para que venha o dia, ou como o PE a morte para que a vida possa voltar. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2002, p. 305-306) Os referidos autores, defendem que, nos sonhos dos ocidentais, uma imagem sobre estes animais prevaleceu: [...] o crocodilo é aparentado ao dragão quanto ao significado, mas encerra em si uma vida ainda mais antiga, mais insensível, capaz de destruir impiedosamente a do homem. É um símbolo negativo porque exprime uma atitude sombria e agressiva do inconsciente coletivo (AEPR, 275). 12 (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 307). No sonho, eles estão no centro da água, juntos. O número dois é um símbolo para os conflitos e também da multiplicação, potencialização, divisão: Símbolo de oposição, de conflito, de reflexão, esse número indica o equilíbrio realizado ou ameaças latentes. [...] Na antiguidade era atribuído à Mãe: designa o princípio feminino. [...] Uma imagem dupla na simbólica, dois leões, duas águias etc.,reforça, multiplicando-o, o valor simbólico da imagem, ou, inversamente, desdobrando-a, mostra as divisões internas que a enfraquecem. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 346) 12 Itálico do original. 6.2.1 Desenho espontâneo Ao sair do atendimento arteterapêutico pessoal, L visualizou, ao dirigir, a imagem do corpo inteiro do dinossauro do 1º sonho. Sua forma lhe chamou atenção. Chegando a sua casa, L desenhou a imagem que visualizou no percurso e realizou escrita, à medida que observava a imagem: Seu corpo parece uma pêra. Pescoço, pernas, braços e dedos são finos, pernas curtas, braços longos, o direito (com verde) é mais comprido. O formato do corpo deve referir-se a qualidades femininas, o verde, coisas da natureza. Parece dizer “olhe para mim” – ou para o ‘corpo feminino’. Com o corpo junto, o impacto da forma da cabeça diminui um pouco. O que mais me chama atenção são os olhos em forma de setas, (triângulo de cabeça para baixo – indicação, direção); os dentes, também triangulares, o contraste entre formas Figura 4 – Dinossauro corpo inteiro Fonte: Registros de L. amplas e outras “finas”, a parte “gorda” do corpo, que parece macia. Assim como está não parece amedrontar e sim “ridículo”. O que dá o seu caráter “predador” são os olhos, a boca e os dedos finos. O resto parece ameno, pacífico. (transcrição da escrita sobre a imagem) Ao realizar esta imagem foi percebido que houve diminuição do medo da figura do dinossauro. L pôde pensar em outras características, e inclusive achá-lo engraçado, desengonçado. Nesta imagem, aspectos são identificados como pertencentes ao ‘feminino’, como o formato de pêra, fruta doce, frágil, de casca fina. Assim, o ‘dar forma’ ao dinossauro trouxe questões relevantes na formação do ser terapeuta em L: a figura do dinossauro ganha novas camadas e toca conteúdos importantes para seu processo: o contato com o feminino – fator significativo, pois o grupo de crianças do projeto arteterapêutico era constituído somente por meninas. Parte significativa nesta pesquisa é justamente a imagem que surge do sonho e traz para L formas de olhar as questões emergentes do inconsciente. A criação da imagem, o conferir uma forma a esses conteúdos através de diversos materiais dá possibilidade de que eles se ‘personifiquem’. Tal fato impulsiona o processo transformador. Maciel (2000) fala da importância de se dar forma ao conteúdo interno carregado de emoção, afirmando que: Como resíduos da Psique Objetiva, as emoções são provocadas por uma memória arcaica que se expressa fluentemente por meio de imagens. Configurar uma emoção através de qualquer forma de expressão plástica é reconhecer sua identidade e, ao mesmo tempo, dar a ela um contêiner para existir fora de nossa individualidade. (MACIEL, 2000, p. 175) O material utilizado para criar esta imagem foi giz pastel seco, que permite a mistura de cores com o uso dos dedos; é um material estruturante de cores vibrantes. Os olhos em formato de seta que aponta para baixo, ou triângulo invertido, despertaram a curiosidade de L. A simbologia do olho em Chevalier e Gheerbrant (2002) indica a percepção do real, da imagem do plano físico, da luz, (p.656), da percepção intelectual. Ele tem formato específico, o triângulo invertido, que, segundo os referidos autores, simboliza a água e o sexo feminino (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 904). É interessante observar que os dentes do dinossauro são duas camadas de triângulos em posições invertidas, para cima e para baixo, que simbolicamente, tratam de dualidades, como masculino e feminino, natureza humana divina (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 904). Nesse sentido, Chevalier e Gheerbrant assim os relacionam: As fileiras de dentes são como muros de fortaleza em relação ao ser humano: no plano dos símbolos, é o forte que guarda o espírito. [...] Para os bambaras, existe uma correspondência entre os dentes e o olho, ambos associados analogicamente aos conceitos de inteligência e universo. [...] Os dentes significam a perfeição com a qual dividem o alimento que recebem; porque cada essência intelectual, tendo recebido em dom de uma essência mais divina a intelecção unificadora, divide-a e multiplica-a providencialmente para elevar espiritualmente, e tanto quanto possível, a essência inferior que tem a seu cargo (PSEO, 239) (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 330). Em meio a esse contexto, pensamento e reflexões aconteciam impulsionando e sendo impulsionados pelos sonhos. O interesse por leituras, documentários, etc., referentes a imagens e símbolos, se fizeram presentes, tendo em vista a necessidade de encontrar alternativas e entendimento relativos às questões apresentadas neste trabalho. Essa busca foi muito significativa, visto que foi encontrado em documentário da Dra. Nise da Silveira, uma das precursoras da Arteterapia no Brasil, valioso material relevante para elucidação de personagens do sonho, conforme transcrição abaixo de L. R e Ra13 – podem representar partes de mim que não reconheço conscientemente. R: ‘a mãe’, ‘racional’, ‘sociável’ – um aspecto de mim que ora parece bem-resolvido e seguro, intacto, ora alheio, enclausurado. Ra: ‘infantilidade’, dificuldades, meiguice, ser ‘esportiva’, esportista – é mais frágil, ‘boba’, inocente. São minha sombra? Aspectos interiores – agressivos, instintivos, obscuros que querem que eu olhe para eles (animais – jacarés, cobra, dinossauro, lagartos). Fujo e sinto medo do contato com eles, somente a cobra parece ter outro papel. Sinto que há um ‘eu’ maior, que percebe coisas que conscientemente ainda não sei. Que me manda mensagens por estes sonhos e imagens. Parece haver uma tentativa de desestabilizar a ‘ordem existente’ e uma relutância do ‘ego’ de permanecer onde está. Quero encontrar uma nova ordem, ‘melhor’, estou aberta a suportar a desordem momentânea para a ‘ampliação’ do eu. (08/05/2008). 13 Ra, 13 anos: prima de L. Nesta reflexão, L começa a perceber seus sonhos como portadores de uma mensagem simbólica e passa a desvincular os personagens apresentados das pessoas reais, entendendo que são representações de aspectos do ‘eu’ – sombra – que não estão totalmente integrados e aceitos conscientemente e, desse modo, apresentam características específicas a serem observadas. Nesse instante, há também uma tentativa inicial de descobrir e entender a presença dos répteis nos sonhos, assim como a tomada de consciência da inteligência que rege todo esse processo de transformação. Um reconhecimento do caos e da necessidade de desestruturação interna, que possibilita a transformação e reorganização. O processo de individuação é, na verdade, mais que um simples acordo entre a semente inata da totalidade e as circunstâncias externas que constituem o seu destino. Sua experiência subjetiva sugere a intervenção ativa e criadora de alguma força suprapessoal. Por vezes, sentimos que o inconsciente nos está guiando de acordo com um desígnio secreto. É como se algo nos estivesse olhando, algo que não vemos mas que nos vê a nós – talvez o Grande Homem que vive em nosso coração e que, através dos sonhos, nos vem dizer o que pensa a nosso respeito. (FRANZ, 1996, p.162). Assim sendo, era necessário confiar nessa sabedoria interior que se fazia presente e refletir sobre as mensagens ocultas nos símbolos. 7 O CONTATO COM A CRIANÇA INTERIOR: CURAR, CUIDAR, BRINCAR 7.1 SONHO E OFICINA ARTETERAPÊUTICA As vivências arteterapêuticas, podem revelar partes ocultas do nosso “eu”, assim como os sonhos também podem ser reveladores de conteúdos desconhecidos pelo sonhador. O sonho a seguir, ocorreu no dia 10 de maio de 2008, praticamente decorrido um mês do inicio das sessões de arteterapia, antes de L ir ao grupo de estágio supervisionado. Antes de iniciar a narrativa do sonho, L escreve sobre sua percepção das sensações relacionadas ao momento da oficina com as crianças. Sonho 4 Antes de ir ao encontro com as crianças (estágio) Percebo que tenho ficado tensa sempre antes dos encontros. Às vezes começa no dia anterior. Hoje acordei muito agitada com um sonho que tive bem específico sobre a atividade que vamos fazer. R me perguntava sobre a música que íamos usar e eu não sabia qual. As duas sem saber o que fazer, na hora do encontro. Depois vi duas meninas: Jo e A brincando com os bonequinhos de dedo, (fantoche) uma sentada de frente para outra. Elas pareciam entretidas, mas em mim ficou uma interrogação interna: não era isso que tínhamos planejado. As coisas se transformaram num caos quando olhei para o lado esquerdo e vi que estávamos dento de uma sala de aula com mesas e cadeiras de madeira escura, com adolescentes de uniforme azul escuro, dos dois sexos. Ao fundo, estava sentado o Pastor A, da instituição nos observando. Fiquei confusa e pensei: todos vão ter que sair, está acima da faixa etária e há meninos também. R se aproximou de mim, como se estivesse feliz e bem enturmada com os jovens, e eu disse: “não acredito nisso!”. Virei-me para trás onde estava sentada uma menina morena de roupa laranja. Ela me xingou. Eu estranhei, e depois devolvi o mesmo xingamento. Ela ficou espantada e disse quem ia me bater. Então perguntei a ela se tinha gostado, o que tinha sentido. Ela disse que não gostou. Afirmei que ela não precisava ficar “espalhando pelo universo essas ondas tão negativas” e que ela era maravilhosa. Ela começou a chorar. A respeito do comentário transcrito por L, podemos observar as reflexões e decisões tomadas por ela no momento em que acorda: Levantei-me e fiquei pensando no sonho e no que devia fazer. Resolvi a questão da música que ainda não estava escolhida. Fiquei pensando nas meninas e em como me entrosar com elas para fazer a atividade. Aos poucos, fui ficando mais tranqüila e pude pensar em outros assuntos. Depois do almoço, me veio um questionamento levantado por Lz14 em nosso último encontro. Sobre a necessidade delas se moverem, dançarem e sobre o meu comportamento em relação à falta de limites delas. Lembro-me de quando tinha a idade delas e que brincar, correr, pular, dançar, tudo era muito natural, nadar também, e que eu não entendia os adultos tão parados, que tinham uma piscina na frente e não queriam nadar, que reclamavam e mandavam as crianças ficarem quietas. Há uma felicidade em fazer essas coisas. Gosto de brincar, até hoje. Sempre brinco com as crianças que vão à casa da minha mãe. Mas a brincadeira com brigas, discussões, desentendimentos e violência me faz perder toda a vontade de brincar. Principalmente as que são motivadas por questões de ego, de não aceitar a derrota ou o erro. Gosto de relacionamento e do clima agradável durante a brincadeira. Sei que uma das coisas que me faz afastar mais desses comportamentos egoístas e briguentos é a falta de aceitação e de paz, calma interior delas, coisas que há alguns anos venho trabalhando para melhorar. Principalmente quando 14 Lz: Arteterapêuta de L. percebo que elas não sabem que esse comportamento é prejudicial. Sei que a “melhora” vem com um movimento interno que deseja paz, não pode ser imposto ou falado, tem que ser vivido e descoberto. O sonho trouxe, neste dia, uma temática totalmente voltada ao grupo de atendimento arteterapêutico, apresentando, pela primeira vez, as crianças dentro do contexto da Oficina Criativa®, na sala de atendimento. O inconsciente abordou a necessidade de concluir as ‘tarefas’ para a organização do encontro, como a escolha da música para o momento da sensibilização e a reflexão sobre as ações dentro da oficina. No sonho, duas participantes, Jo, 5 anos e A, 5 anos, aparecem brincado com os materiais que seriam apresentados na oficina deste dia, durante a tarde, mas suas ações não condizem com o planejamento para a oficina: desenvolvem a atividade em dupla, enquanto que o que seria proposto era a apresentação individual com um boneco para cada uma das participantes. Figura 5 – Bonecos utilizados durante a Oficina arteterapêutica com crianças Fonte: Relatório de estágio Durante o encontro arteterapêutico, as participantes (crianças) propuseram fazer a apresentação dos bonecos em dupla. Relacionando o sonho ao desejo das crianças, houve tranqüilidade ao aceitar a mudança no planejamento da oficina. “[...] os sonhos podem adquirir um aspecto de antecipação ou de prognóstico, e quem os for interpretar deve levar em conta, sobretudo quando um sonho que tenha um sentido evidente não oferece um contexto que o explique satisfatoriamente” (JUNG, 1996, p. 76). Jung descobriu que também ao homem civilizado os sonhos podem dar orientação de que ele necessita para a solução de problemas da sua vida interior e exterior. Na verdade, muitos dos nossos sonhos dizem respeito, detalhadamente, à nossa vida exterior e ao nosso ambiente. (FRANZ, 1996, p. 208). Nos comentários do sonho, L reflete sobre questões da infância e comportamentos, acessando lembranças, trabalhando, assim, a criança interior. O brincar, a energia e a agitação são revistos, o que trouxe maior entendimento sobre o próprio agir das crianças em atendimento arteterapêutico. Trouxe também maior tranqüilidade e aceitação ao lidar com esses comportamentos. Ao olhar para a esquerda (lado mais feminino, sensível, relacionado à arte, à criatividade, mas que também pode oferecer ligação com o que é mau, o inferno), no sonho, L encontra uma situação de desordem, com a presença de pessoas que não faziam parte da proposta do projeto de pesquisa e oficinas arteterapêuticas: um ambiente escolar, adolescentes de ambos os sexos e a presença de um observador que intimidaria os participantes. Os adolescentes podem estar relacionados com a aventura, desafios, coragem; e por serem dos dois sexos (opostos), podem anunciar uma necessidade de integração desses dois lados de L que seria trabalhada mais adiante no processo, por estar em contato com este grupo. Eles se encontram em ambiente de aprendizagem, porém dentro de uma observação religiosa, ou seja, sob controle 7.2 SONHOS, MENSAGENS E MUDANÇAS Foi percebido pelas pesquisadoras que as oficinas oferecidas até então, enfatizavam atividades muito agitadas, danças e brincadeiras livres deixavam as participantes exaltadas, agressivas e desconcentradas. Por conseguinte, as pesquisadoras decidiram elaborar encontros com proposta mais introspectiva, uso de músicas instrumentais tranqüilas e ênfase no sensorial, o que permitiu uma ampliação da concentração e atenção das participantes e maior envolvimento na atividade arteterapêutica. Nesse período L sonhou com um bebê que era cuidado por um homem mais velho. No sonho, ela tinha vontade de se aproximar, de tocar a criança, mas o homem protegia o bebê com seu casaco azul marinho. Este bebê reapareceu no sonho mais duas vezes, com forma diferente, trazendo mensagens e reflexões significativas: Sonho 5 “Sonhei que estava em minha casa, onde havia uma janela onde não há (já sonhei isso antes). Entra uma luz amarela pela porta e pelas janelas. Não vejo o jardim, mas sinto que há plantas muito bonitas lá, diferente das que realmente há, e a sombra das folhas entra na casa e traz um colorido bastante especial e cheio de movimento (fica na parede). Recebo visitantes de viagem: homens mulheres e um bebê bem pequeno. Este bebê se torna uma figura importante no sonho, e reaparece várias vezes no sonho, de diferentes formas. Ele é bem pequeno, mas vivo, sua boquinha fica em formato de “O”. Ele fica de bruços e parece tentar equilibrar a cabeça, olhando para mim. Neste momento ele está sendo ‘cuidado’ e ‘protegido’ por um dos visitantes: um senhor mais velho. Sinto-me bastante atraída pelo bebê, tenho vontade de segurá-lo, sinto um carinho por ele, mas permaneço longe, intimidada pela quase “posse” que o velho demonstra em relação ao menino. Saio de lá e entro num palco de show de rock, com banda e um cantor. Eu sei que estou com aparência diferente neste momento: pele branca, cabelos mais claros, boca mais fina. Estou ali dublando, somente mexo a boca e o corpo, enquanto há um som gravado tocando. Parecia haver um acordo anterior sobre esta minha participação e todos nos sentimos à vontade nessa situação. Acabado o show, me sento com as pessoas da banda nas cadeiras do público (que já foi embora) e “assistimos” o que fizemos. Ali posso ver qual era a aparência que eu estava (física) e o gestos: até convenceu, parecia simpática, envolvida e feliz e também que o som gravado saía de mim. Quando acabamos de “ver” o passado: não vimos como numa TV, vimos como se fossem pessoas reais no palco, não havia nenhum aparelho. Um rapaz alto, de cabelo um pouco comprido e ondulado, preto, nos convidou para passar três anos na África. Pra mim, pareceu muito natural, não tive nenhuma objeção. As pessoas saíram e continuei lá no palco (branco, paredes brancas, sem móveis, só uma escadinha de três degraus). Era como se ali fosse a minha casa agora. Esperei V chegar para perguntar se ele topava ir pra África, e eu disse: “Por mim, não há nenhum problema, precisa ver se você quer passar os três anos lá”. E enquanto eu dizia, já estava arrumando as malas e por cima delas colocando sacos plásticos para protegê-las. Ele não respondeu, ficou de pensar no assunto. Vi uma mulher muito bonita, com uma roupa que parecia calça e saia rosa comprida, cheia de botões. Ela estava empurrando o carrinho do bebê. Observei por um bom tempo o seu “ir e vir”. Depois encontrei o bebê. Ele tinha o rosto com duas cores: em cima azul e em baixo cinza. Ele movia a boca, como se estivesse falando, mas não saía som. Eu me aproximei dele, o peguei no colo, ele estava nu. E me assustei: sua pele estava doente, cheia de bolotas, tive nojo, continuei segurando o bebê, mas fui até uma torneira para lavar as mãos: o segurava com uma mão, enquanto lavava a outra, depois trocava, e a ação não tinha efeito algum, porque eu tornava a tocar na pele dele com a mão que lavei. Uma mulher jovem, com roupa vermelha e cabelo comprido se aproximou e pegou o bebê. Assim pude lavar as duas mãos. Vi que ela estava saudável, mesmo pegando no bebê, e que eu poderia não me contaminar com sua doença” (Transcrição do sonho de 12/05/2008). Ao acordar, após escrever o relato do sonho, L realizou dois desenhos baseados nas experiências deste sonho, apresentados a seguir: Figura 6 – Contato com a criança interior Fonte: Sonho de L. Figura 7 – Sombra, conteúdos internos e iluminação Fonte: Sonho de L. “[...] os sonhos têm uma textura diferente. Neles se acumulam imagens que parecem contraditórias e ridículas, perde-se a noção de tempo, e as coisas mais banais se podem revestir de um aspecto fascinante ou aterrador”. (JUNG, 1996, p. 39) Reflexões escritas por L ao observar as imagens: A criança-bebê: O rosto azul com cinza me lembra a diretora da instituição do estágio e seu filho de 2 ou 3 anos. [...] É um rosto bastante frio e sintético. Um rosto redondo, me lembra gelo, frieza, raciocínio, inteligência. No sonho, o rosto do bebê parecia pintado com a mesma tinta que pintaram o meu braço (no sonho com braço de cobra). Era brilhoso. A figura deitada da criança tem uma grande inflamação na pele – com erupções amareladas. É frágil e doente, mas ainda assim, risonha e feliz. É uma forma bastante impactante. Talvez essa figura seja ou mostre o que eu sinto em relação às crianças do estágio: elas têm uma desarmonia que eu não entendo, e que parece grave e me dá vontade que outra pessoa me mostre que é possível interagir com a criança, mantendo saúde física e mental, o que me tranqüiliza – foi exatamente o que senti após voltar do último encontro – no dia seguinte fiquei irritada e um pouco deprimida. Achando que havia algo errado com nossa atuação (minha e de R), ou que elas têm distúrbios que iriam além do que esperávamos ou estamos preparadas para enfrentar. Fiquei um pouco mais tranqüila ao ler um texto de Allessandrini, onde ela separa em um grande quadro características das pessoas ao participar de Oficinas Criativas, e pude ver que ela já presenciou comportamentos como os que as meninas apresentam. Agora, eu e R percebemos algumas reações delas e que se apresentam, normalmente no momento de desenhar, quando aparecem os conflitos com as outras, o isolamento, a partilha, o egoísmo, a falta de concentração, o caminhar desordenado pela sala, a repetição de padrões e a falta de inovação – querem permanecer sempre fazendo o mesmo desenho, abandonam a atividade, querem sair e saem da sala, falam sobre ir embora, não voltar mais, voltam, ignoram o que falamos ou se opõem. Luz e janela: Essa janela, que não existe fisicamente na minha casa, provavelmente trata da consciência, do iluminar. No desenho, as sombras das árvores parecem uma fumaça, algo desordenado, cinzento, pouco claro, que recebe luz. Parece estar no espaço e não na parede. São como os meus sentimentos misturados ao grande barulho e à desordem das meninas. Aclarar essa nuvem de desordem e conflito. Somente após retratar as imagens do sonho foi possível estabelecer relações com as vivências do estágio e as atitudes necessárias para promover mudanças na prática arteterapêutica. A criança com corpo ferido relaciona-se com a criança interna de L e com as meninas em atendimento: todas com necessidade de cuidados, carinho, acolhimento, um envolvimento natural e sem medo. Os personagens internos que se apresentam no sonho (mulheres cuidadoras e homem mais velho) mostram formas de relacionar-se com essa criança, com sabedoria e posicionamento, oferecendo aquilo que ela precisa. “É necessário haver alguma coisa mais eficaz para que mudemos de atitude ou de comportamento. E é isto que a “linguagem do sonho” faz: o seu simbolismo tem tanta energia psíquica que somos obrigados a prestar-lhe atenção”. (JUNG, 1996, p. 49) Um desencadear de ações, imagens, reflexões e relações a partir da experiência vivenciada no sonho (inconsciente agindo), fez com que acontecessem novas posturas de L em relação às crianças em atendimento arteterapêutico e aos diretores desta instituição. O que mostra uma característica do funcionamento das transformações que podem ocorrer ao se observar e dar atenção ao sonho: ele age como uma alavanca eficaz na mudança de atitudes e posicionamentos. A escolha simbólica da mente em trazer este bebê com face bicolor no sonho, que, ao ser retratado pelas mãos de L, trouxe uma semelhança com as feições da diretora da instituição onde o projeto arteterapêutico ocorria, revelou uma atitude que deveria ocorrer no relacionamento com ela e os demais diretores da instituição: ter mente, olhar e ouvidos tranqüilos e atentos (azul); fala neutra e ponderada, sem permitir que as emoções dominassem (cinza). Ações igualmente necessárias ao cuidar da criança ferida. A criança, segundo Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 302), representa a inocência, a espontaneidade e pode estar relacionada a uma mudança interna: Na evolução psicológica do homem, atitudes pueris ou infantis – que nada se confundem com as do símbolo criança – assinalam períodos de regressão; ao inverso, a imagem da criança pode indicar uma vitória sobre a complexidade e a ansiedade, e a conquista da paz interior e da autoconfiança. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 302) Igualmente, a apresentação de um show onde L agia como um personagem que somente representa e dublava, com atitudes ‘combinadas e agradáveis’ revelava uma forma de agir diante de situações, que necessitava de mudanças, de olhar para o passado, assim como ocorreu no sonho. Nesse sentido, recorremos a Jung para complementar esses pensamentos, A função geral dos sonhos é tentar restabelecer a nossa balança psicológica, produzindo um material onírico que constitui, de maneira sutil, o equilíbrio psíquico total. É ao que chamo função complementar (ou compensatória) dos sonhos na nossa constituição psíquica. (JUNG, 1996: 49) Foster e Mambert, em seu livro Viagem ao Inconsciente, também tratam do tema do sonho tendo uma função de equilíbrio e comunicação entre inconsciente e consciente, para benefício e transformação do sonhador: [...] o sonhar tem, definitivamente, alguma função na proteção do equilíbrio e da estabilidade humana. Os sonhos não são somente reais, como têm uma finalidade e uma função, fazendo parte do mecanismo total humano. [...] os sonhos são os dramas da vida vividos no mundo interior do inconsciente humano. [...] eles formam uma tentativa de auto-ajustamento do mecanismo psíquico humano para unir, para mais intimamente relacionar e integrar, as nossas realidades interiores e exteriores, a fim de levarem uma existência harmoniosa. [...] um sonho é uma tentativa de estabelecer comunicação. É uma tentativa do nosso ser interior para transpor o fosso que separa o consciente do inconsciente, na busca da globalidade, da unidade e da harmonia, um instinto humano muito natural. Um sonho constitui uma mensagem. É o modo da sua mente inconsciente dizer-lhe coisas que ela “pensa” que você tem o dever de saber. [...] as coisas que o seu inconsciente pode estar dizendo-lhe são tantas e tão variadas quanto são os possíveis conteúdos dos seus próprios sonhos. (FOSTER, MAMBERT, 1989, p. 68) Assim, o desenho da luz que entra pela janela e provoca sombras na parede, revela através de imagem, o conflito interno que se processava em L. Uma luz era projetada sobre sombras confusas de belas árvores do jardim, aspectos reprimidos, chamados, na teoria de Jung, de Sombra. Questões que vinham à tona para serem elaborados e incorporados por L. É o conceito de sombra, que ocupa lugar vital na psicologia analítica. O professor Jung mostrou que a sombra projetada pela mente consciente do indivíduo contém os aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis (ou nefandos) da sua personalidade. Mas esta sombra não é apenas o simples inverso do ego consciente. Assim como o ego contém atitudes desfavoráveis e destrutivas, a sombra possui algumas boas qualidades – instintos normais e impulsos criadores. Na verdade, o ego e a sombra, apesar de separados, são tão indissoluvelmente ligados um ao outro quanto o sentimento e o pensamento. (HENDERSON, 1996, p. 118). E um fator que vem a representar mais claramente a situação interna de L foram os elementos dados no sonho para a idéia inicial da imagem, que a relaciona e esta simbologia da sombra dentro do conceito de Jung: No inconsciente encontramo-nos, infortunadamente, na mesma situação de quem pisa numa paisagem lunar: todos os seus conteúdos estão manchados, enevoados e mesclados uns aos outros, não se sabendo nunca exatamente o que é ou onde está determinada coisa, ou onde ela começa ou acaba (chama-se a isto “contaminação” dos conteúdos inconscientes). (JUNG, 1996, p. 173) Um fato interessante que diz respeito a este sonho, foi a sincronicidade: dois dias após este sonho, uma aluna de piano de L, que conhece a instituição do estágio, disse que sonhou que L contava a ela que ia viajar para a África, a convite de um dos diretores da instituição. Esta informação fez com que houvesse um olhar literal à informação do sonho, que meses depois ganhou um novo olhar, após a reflexão do que seria a África – suas características para L: um local onde há sofrimento, pobreza, e está ligado às origens e aos instintos mais primitivos do homem. Franz (1996) fala sobre os pensamentos de Jung a respeito desses acontecimentos e coincidências: [...] certos tipos de acontecimentos “gostam” de se agrupar em determinados momentos, começamos a entender a atitude dos chineses, cujas teorias a respeito de medicina, filosofia e mesmo de construção são baseadas em uma “ciência” de coincidências significativas. Os textos clássicos chineses não perguntam o que causa alguma coisa, mas sim que fato “gosta” de ocorrer juntamente com um outro. [...] Acontecimentos “sincronizados”, além de tudo, quase sempre acompanham as fases cruciais do processo de individuação. No entanto, muitas vezes passam despercebidos quando o indivíduo não aprendeu a observar tais coincidências nem a lhes dar um sentido em relação ao simbolismo dos seus sonhos. (FRANZ. 1996, p. 211) Cabe acrescentar que ao retomar este sonho, para análise e escrita deste texto, surgiu uma nova reflexão, que se encaixa com os dias atuais. Neste momento, L trabalha em uma casa de apoio a crianças com câncer, e este contato com crianças fisicamente mais próximas do bebê ferido tornou-se real. Um fato significativo é que as pessoas mais próximas que cuidam das crianças são moças de cabelos longos e claros, que usam jaleco vermelho. “No momento do sonho tal ocorrência ainda pode pertencer ao futuro. Mas, assim como nossos pensamentos conscientes muitas vezes se ocupam do futuro e se duas possibilidades, também ocorre o mesmo com o inconsciente e seus sonhos”. (JUNG, 1996, p. 76). A experiência intensa de mudanças e reflexões causadas por este sonho, em L, levou a uma mudança na prática arteterapêutica dentro das Oficinas Criativas® com grupo de crianças do projeto de estágio. A partir desse momento, o trabalho arteterapêutico pôde ser avaliado e optou-se por atividades mais introspectivas, com uso de músicas instrumentais tranqüilas e ênfase no sensorial. Segundo Philippini, Construir, manter, cuidar e ampliar espaços acolhedores ao processo criativo para que as subjetividades imagéticas, tenham vez e voz e, deste modo, cada um possa se reconhecer em sua própria produção expressiva. Favorecer a expressão das atividades criativas de cada cliente, através do convívio terapêutico, será facilitado também pela construção e ampliação das próprias vivências criativas do arteterapêuta. (PHILIPPINI, 2008, p. 29) Atitudes tais como serenidade, acolhimento e atenção, sem reprovação, o respeito pelo movimento do grupo, possibilitaram que as crianças ficassem mais tranqüilas ao dar vazão aos seus impulsos na interação com os materiais oferecidos. Essas atitudes de respeito, espera e acolhimento, relacionam-se intimamente com o conteúdo, o discurso, as imagens e reflexões provenientes do sonho apresentado anteriormente, qualidades importantes do Ser Terapêuta, que puderam, a partir dos dados apresentados, ser trabalhados e construídos em vários níveis, dentro das vivências arteterapêuticas de L ao vivenciar a oficina arteterapêutica em atendimento individual, bem como no contato com grupo de crianças do estágio supervisionado. 8 O CONTATO COM O MESTRE INTERIOR. O SELF 8.1 VIAGEM AO INCONSCIENTE NO FILME: TERRA – TERCEIRA PEDRA DO SOL. Aqui não há descanso, somente a mão suave e infatigável modelando os mundos, no ciclo da forma, tudo volta para mim. Chuvas, rios, de volta para mim. Na negra moção, 15 numa baía congelada, estou lá, no ciclo da forma. Em oficina Arteterapêutica, L assistiu ao filme “Terra- Terceira pedra do Sol”, película que estimulou um mergulho mais profundo e o surgimento de conteúdos do inconsciente. Neste capítulo são apresentados sonhos e reflexões de L a partir do contato com o filme. A seguir, reflexão de L após assistir ao filme: Lembrei de uma mandala que fiz em sala de aula do curso de pós-graduação em arteterapia, com massa corrida e pó xadrez – quando fui fazendo, vi que parecia um mundo, mas não entendi, não teve significado para mim [...]. Mas agora entendo, aquela mandala era uma metáfora sobre o meu mundo. Talvez visto de fora – com seu movimento próprio, o diálogo das cores – a água, o mar, a areia, a vegetação, as nuvens – a natureza interna. Agora ela ganhou um novo sentido e significado para mim, conseguiu me tocar, depois de tantos meses. Só agora consegui dialogar com essa forma que eu criei. Passei até a gostar um pouco mais dela. Assistindo ao filme: ver coisas por novos ângulos, não vistos antes. 15 Texto do filme Terra- Terceira pedra do Sol. Figura 8 – mandala mundo Fonte: registros de L durante o curso de Arteterapia A criança – personagem do filme, diz que, assim como eu, dos sonhos que nunca teve antes. [...]. Ciclo da forma – o mundo se transforma – a forma que vemos no mundo externo entra e nós a colocamos de volta para fora, transformada. Há ciclos e ritmo nas transformações: música; dança- ciclo das águas. Simbolicamente, o mundo representa [...] a recompensa, o coroamento da obra, a obtenção dos esforços, a elevação, o sucesso, a iluminação, o reconhecimento público e os eventos imprevistos benéficos. [...] Última lâmina do Tarô, O Mundo, [...] simboliza o desabrochar da evolução [...] ele corresponde ao conjunto daquilo que é manifestado, portanto, ao Mundo, resultado da ação criadora permanente. 16 (WIRT, 248) (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 625) Assim, entende-se que no momento em que L representou este mundo na mandala, estava ocorrendo uma elaboração inicial de seu mundo interno, em sua caminhada de ‘evolução’. Para Bernardo (2009, p. 163), referindo-se ao espaço sagrado e à criação do mundo, afirma que ela permite que “qualquer criação humana possa ser santificada, ou seja, se conectar com a força e o poder que vem dos Céus e que gera e mantém a vida, conferindo-lhe sentido”. O ‘transformar’ a forma, dar nova forma, que é um dos aspectos que chamam atenção de L ao ver o filme, tem íntima ligação com a proposta arteterapêutica e o próprio processo pelo qual L estava passando. A Arteterapia possibilita que os conteúdos que emergem - por haver uma forma, um registro e escrita ou fala sobre eles – sejam re-vistos e ganhem sempre novas camadas de entendimento, interpretações e uma gradativa ampliação da consciência pelo contato material com os símbolos e pelo ‘fazer’, que são transformadores. A seguir, transcrição do sonho que reflete a linguagem simbólica do filme, mensagens através dos sonhos e relações com o processo em curso. 16 Grifos do original. Sonho 6 Sobre estar dando uma aula sobre as oficinas que fizemos no estágio – selecionando fotos, separava as do estágio de outras da minha prima com amigos dela. Andar por um lugar onde o piso era de lama escorregadia – como argila molhada e dois hipopótamos ficavam no chão se confundindo com o piso – uma fêmea e um macho. Eles queriam nos comer – observavam meus passos – os dois armaram juntos um bote para me pegar – andei sobre o macho, que se ergueu enquanto a fêmea veio pelo lado direito. Estava dormindo na sala do estágio – V do meu lado – eu estava tranqüila, relaxada, de repente, comecei a ouvir a voz de uma mulher que dizia que era perigoso morar numa casa com o muro colado no muro da casa vizinha e sem forro no teto – aí me preocupei – lembrei que ali poderia ter escorpião, cobras, baratas e bichos andando em cima de mim – foquei no piso e chamei V, que dormia do meu lado direito. O local se iluminou mais. Achei que fosse uma barata perto das nossas roupas, que estavam penduradas na parede. Minha visão foi se aproximando e o animal foi crescendo – era um sapo e entrou na roupa de V e se vestiu com a camiseta dele. L acordou às três da madrugada e escreveu este sonho. Em seguida, volta a dormir e, ao acordar (sete e cinqüenta da manhã), transcreve outro sonho. Sonho 7 Eu e meu marido já éramos casados, mas morávamos em casas diferentes – eu vivia na casa dos meus pais em Natal e ele na casa dos pais dele no RS. (em um momento do sonho, fiquei no banheiro pensando em como morarmos juntos). Viajei para vê-lo. Andamos por muitos lugares a pé – vimos pessoas de outros lugares – como meu irmão e a mulher dele na casa da sogra dele (eles moram em MS). Em um momento do caminho, para chegar no final da “Integração” (onde estava o meu sogro e outras pessoas me esperando) – nome da rua – passamos por um local de conflito – uns garotos magros, morenos, sem camisa, jogavam tijolos bem pequenos (10x4) para acertar as cabeças das pessoas e matar. Havia muita gente. Fui a única com o reflexo de me abaixar cobrindo a cabeça com os braços; os outros corriam, gritavam, ficavam em pé olhando. Ao chegar lá, encontrei meu sogro, com cabelos grandes, barba e uma roupa que parecia de profeta. O que eu tinha de informação no sonho era que na outra vez que nos vimos, não tínhamos nos dado bem e ele fugia do encontro comigo agora. No final da integração, ao invés de ter a BR, havia uma lagoa muito tranqüila, rasa e transparente – Ele me levou até lá e disse: ‘quando não há minhocas, sabe o que eu faço?’. Pegou um punhado de areia mais vermelha do barranco e jogou dentro da água – as minhocas apareceram como se estivessem fervendo – gordas e agitadas – e completou: “ai eu pego as minhocas”. Depois ele me mostrou um punhado de moedas e pedras coloridas e me mostrou como as usava, disse: “eu as torno bem grandes, para mostrar como “PANAIÁ” é grande.” – e foi jogando o que tinha na mão (deixando cair no chão), enquanto andava de costas. Fiquei agradecida por ele me mostrar essas coisas. Após a escrita do sonho, L deu forma a alguns símbolos mais significativos e escreveu sobre eles: Sobre desenhos dos sonhos de 19/06 1 – hipopótamos. Eles deixam os olhos e o nariz para cima/fora, e as costas – eles observam e se camuflam. [...] já sabia que para fazer os hipopótamos queria papel marrom e pastel seco. O mais à esquerda me lembra um chocalho, kiwis, argila, montanhas, terra. No sonho há uma fêmea e um macho – o macho é o da esquerda, maior, foi sobre o qual andei. E a fêmea é menor, a da direita. Feminino e masculino usam táticas e inteligência para me “pegar”: fêmea: andou Figura 9 – Hipopótamos Fonte: Sonho de L. para trás, observando e contornou o caminho, sabendo aonde iria me encontrar. O macho: ficou estático, observando – como se eu não pudesse vê-lo. Andei sobre ele sabendo que estava pisando nele. Quando eu estava nas suas costas ele se levantou (subiu) para que fosse mais difícil eu pular e voltar ao chão, assim, juntos, ele e a fêmea, poderiam me ‘pegar’. Nadam, correm, força, peso, feroz. 2 – sapo. Também sabia o material que queria usar: papel camurça e pastel oleoso. E queria recortar o seu contorno, deixá-lo solto. Sapo e hipopótamos transitam entre terra e água, precisam dos 2 ambientes. O sapo nada, pula, dá saltos, dá o bote preciso somente com a língua – boca (palavras). Ele “veste a camisa” vermelha de V – o masculino, e na sala de estágio (onde eu ‘queria dormir’, mas estava acordada). Vermelho: cura, força. Masculino: força, ação, racional. Vestir a camisa e essas características no estágio. Achei o sapo simpático, nunca imaginei ver 1 Figura 10 – Sapo camiseta Fonte: Sonho de L. com camiseta vermelha. 3 – Papel azul claro. Esta figura tem um ar de tranqüilidade, dado pelo azul. A figura masculina, que no sonho era meu sogro, é um homem mais velho, com sabedoria, me pareceu, quando desenhei, com Jesus, um homem oriental (agricultor) e no sonho parecia um profeta, alguém respeitável, com poder. Ele demonstra um grande conhecimento e entrosamento com a natureza – o encontro com um ‘mestre’, guia, que me mostra o que eu preciso ver e saber – também ligado ao filme.17 17 Figura 11 – Encontro com o mestre interior Fonte: Sonho de L. Comentário inserido na escrita após assistir novamente ao filme Minhocas e terra – no desenho elas pareceram uma planta, alga – conhecimento natural – natureza, animais do interior da terra. Quando há algo que ele quer (minhocas), ele sabe a ação que deve ser feita para conseguir / fazer emergir o que está escondido. Quando conversei com V, ele disse que o pai dele realmente sabe como pegar minhocas no mar, só que agitando a terra com os pés. Pedras e moedas – coisinhas “sem valor”, pequenas – Ele as ‘estende’, aumenta, para mostrar a grandeza, o poder que está escondido – aquelas coisas ‘sem valor’ receberam valor e significados dados por ele, para um fim. São amarelas as moedas e lilás as pedras. Essas coisas juntas pareciam poucas, sem força – ele sabia como ativá-las – espalhando (não olhar o todo, e sim os detalhes, as partes como importantes). O local do nosso encontro – o final da Integração: onde há união, encontro de caminhos, encontro, integração com o universo, eus e pensamentos. O poder das pedras e do metal na água. Como se ele tivesse deixado cair sementes no interior da água, os ‘novos pontos’. Após a escrita sobre os desenhos, L buscou em dicionários o significado de “panaiá”, mas não encontrou, somente conseguindo alguma informação na internet, e anotou ao final da escrita sobre os desenhos. Em seguida, algumas anotações sobre novas percepções após re-assistir ao filme: “Panaiá” – em grego moderno “Nossa Senhora”. Ao re-assistir ao filme: lá, 2 vezes se fala sobre o “caminho que une” – no meu sonho, integração, uma rua. Eu não tinha percebido, antes, nenhuma ligação deste sonho com o filme. As baleias: “há uma estrada que sonhamos, é a estrada que une”. Ao final, o menino: “vou ficar e andar mais um pouco pela estrada que une”. O sonho 6, às três horas, inicia-se com aulas sobre o estágio. Ressurge a temática ligada ao contexto escolar, de aprendizagem, de comunicar o conhecimento e a experiência. O ato de selecionar e separar fotos relaciona-se com o registro dos fatos, dos momentos e a separação/discriminação desse estudo de aspectos pessoais e familiares. A sala de atendimentos arteterapêuticos reaparece: agora a temática do dormir/ sonhar é abordada dentro deste contexto: L dorme ali, mas, ao permanecer atenta aos ‘perigos’, observa um sapo que se desenvolve e cresce ali. Uma temática que retorna com outra roupagem e acrescida de novas simbologias: andar novamente em local onde a terra e a água se misturam na base. Arrien (1997) associa estes dois elementos a caminhos percorridos dentro de arquétipos que nos auxiliam a “viver em harmonia e equilíbrio com o meio ambiente e a própria natureza interior: o Guerreiro, o Curador, o Visionário e o Mestre” (p.23). Esses arquétipos são estruturas universais míticas que todos possuem em seu interior. A Terra faz parte do Caminho do Curador, cujo principal princípio é o poder do amor: Entre as culturas indígenas, esse símbolo apóia o princípio de prestar atenção ao que tem coração e significado. Os Curadores, nas maiores tradições, reconhecem que o poder do amor é a mais poderosa energia de cura de que o ser humano dispõe. O Curador efetivo, em qualquer cultura, é aquele que estende os braços do amor: reconhecimento, aceitação, 18 consideração, valor e gratidão. (ARRIEN, 1997: 49) . O arquétipo do curador trata da saúde emocional e espiritual, do cuidado, da atenção, do amor, questões importantes para L desenvolver uma atitude arteterapêutica. Arrien (1997) escreve que o coração, ligado às questões emocionais, afetivas – amor –, funciona como uma ponte entre Pai Céu e Mãe Terra. Para Chevalier e Gheerbrant, “A água é o símbolo das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e desconhecidas” (2002, p. 21-22) 18 Conforme original A Água é o elemento ligado ao Caminho do Mestre, à sabedoria, ao aprendizado: O Caminho do Mestre é a prática da confiança. Esta é a fonte de onde brotam as qualidades da sabedoria: clareza, objetividade, discernimento e desapego. A sabedoria está atuando quando nos encontramos abertos a 19 todas as opções. (ARRIEN, 1997, p. 85). Essas questões colocadas pelos arquétipos, associados aos elementos, tratam do desenvolvimento de atitudes e de reflexão sobre o comportamento de L ao tornar-se arteterapêuta: receber, acolher com carinho, amor, numa atitude curadora e estar aberto ao que surge, confiar. Os hipopótamos macho e fêmea também tratam da temática dos opostos, da união desses dois lados por um propósito. Simbolicamente, os hipopótamos têm significados bem distintos de acordo com o sexo. Conforme Chevalier e Gheerbrant, o macho, no Egito, relaciona-se com a manifestação das forças negativas e malignas, é um inimigo do homem. Já a fêmea é um símbolo da fecundidade (2002, p. 493). Trata-se das forças instintivas – o bruto, forte, selvagem, animal – que se transformam num pequeno trecho do caminho que L tem a percorrer: no momento em que L anda sobre as costas do macho no sonho, essas questões primitivas se mostram, surgem, elevam-se. O que está por trás e em cima, na superfície, este ‘conteúdo’ (tendo-o como base de sustentação, que funciona como piso, chão) emerge, e o feminino se aproxima, porém, não menos selvagem e ameaçador. A quantidade dos animais também é uma temática que retorna (rever terceiro sonho, com dois jacarés) e eles agem como uma ameaça, na tentativa de tomar o poder, matar. L traça uma estratégia de ‘fuga’ (que envolve, igualmente, questões instintivas de sobrevivência), mas diferentemente de sonhos anteriores, desta vez ela vai em direção à ameaça e passa sobre ela – entra em contato. Esses animais usam de táticas, ‘estratégias’, da visão e da respiração dentro do processo (nariz e olhos à mostra, conforme desenho de L). 19 Idem. Na escrita sobre o desenho dos hipopótamos, L relaciona as imagens a chocalhos. Arrien (1997, p. 27-34) associa o chocalho ao poder e à comunicação, características do ‘caminho do guerreiro’. Em seu livro, Arrien coloca que este instrumento era usado nas sociedades xamânicas, tendo três funções: recuperação da alma (ou para evitar a depressão, o abatimento), limpeza e purificação, e de ajuda na sessão de visionarização. (1997, p. 34). Este instrumento musical é um dos poucos objetos que as crianças de nossa sociedade ainda recebem ao nascer. Arrien afirma que Talvez o ser humano traga consigo o reconhecimento subliminar do chocalho como fonte primal de reconforto, revitalização e força que ainda se faz presente nos tempos atuais, para nos lembrar de fazer valer e recordar todas as partes que nos compõem. (ARRIEN, 1997, p.34) Outro animal que aparece neste sonho é o sapo (o embrião humano se ‘transforma’ em sapo, caso trate de embrião feminino. Ou um pequeno lagarto se for macho. Purificação, morte/renovação – Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 803-804), que também transita entre os elementos terra e água dentro do seu ciclo de vida – assim como o homem. L descreve algumas habilidades deste animal, durante a escrita sobre o desenho: “O sapo nada, pula, dá saltos, dá o bote preciso somente com a língua – boca (palavras).”. Este último trecho pode relacionar-se com a comunicação precisa. O sapo interage com outros símbolos: a camiseta vermelha e o masculino – Animus. A camiseta vermelha de V é tida por L, em sua escrita sobre o desenho do sapo, como um símbolo de cura e força; pertence ao elemento masculino, que se posiciona de seu lado direito. O fato de ser chamado (acionado) ilumina o ambiente. Sobre as vestes, Chevalier e Gheerbrant declaram que: A roupa é um símbolo exterior da atividade espiritual, a forma visível do homem interior. [...] A roupa – própria do homem, já que nenhum outro animal a usa – é um dos primeiros indícios de uma consciência de nudez, de uma consciência de si mesmo, da consciência moral. É também reveladora de certos aspectos da personalidade [...]. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 947, 949) A camiseta de cor vermelha, que para algumas escolas xintoístas, é símbolo de harmonia e expansão, é o recipiente onde o sapo cresce, desenvolve-se: Universalmente considerado como o símbolo fundamental do princípio de vida, com sua força, seu poder e seu brilho, o vermelho, cor de fogo e de sangue [...]. O vermelho-claro, brilhante, centrífugo, é diurno, macho, tônico, incitando à ação, lançando, como um sol, seu brilho sobre todas as coisas, com uma força imensa e irredutível. [...] encarnando o arrebatamento e o ardor da juventude, o vermelho também é, por excelência, nas tradições irlandesas, a cor guerreira [...]. com essa simbólica guerreira, parece que o vermelho perpetuamente é o lugar da batalha – ou da dialética – entre céu e inferno, fogo ctônico e fogo uraniano. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, 20 p. 944-946) Assim, o pequeno sapo, que passa por um ciclo de transformações físicas semelhante à do homem (água – terra), veste-se (externa o que há internamente) com roupa vermelha masculina, no sonho. O guerreiro, a força, o masculino, características da cor vermelha e da roupa na qual o sapo presente no sonho entra para desenvolver-se, indicam pontos importantes nesse estágio de desenvolvimento do ser terapeuta em L, questões que se envolvem diretamente com a simbologia do sapo, no que diz respeito ao ciclo de transformações e desenvolvimento de habilidades. O contato com a dialética colocado por Chevalier e Gheerbrant, a respeito da cor vermelha, também é ponto relevante dentro do contexto do atendimento arteterapêutico oferecido por L no estágio supervisionado: bem, maL; certo e errado pontos sempre discutidos pelas crianças do projeto de pesquisa, ao rotular o que era ou não de Deus. O personagem masculino mais velho, sábio, que vem trazer ensinamentos – pela palavra e pelo gesto –, dentro do sonho 7, para L, pode ser interpretado como o Animus em seu estágio mais elevado: [...] na sua quarta manifestação o animus é a encarnação do “pensamento”. Nesta fase superior torna-se (como a anima) o mediador de uma experiência religiosa através da qual a vida adquire novo sentido. Dá à mulher uma firmeza espiritual e um invisível amparo interior, que compensam a sua brandura exterior. O animus, na sua forma mais altamente desenvolvida, relaciona a mente feminina com a evolução espiritual da sua época, tornando-a assim mais receptiva a novas idéias criadoras do que o homem. (FRANZ , 1996, p. 194) 20 Negrito do original. Esta figura, nomeada como sogro de L, por ser uma imagem de um velho, atua como uma representação simbólica da parte mais profunda do inconsciente, do self: Tomar a forma humana, de um jovem ou de um velho, é apenas um dos muitos modos pelos quais o self pode aparecer em sonhos ou visões. O fato de adquirir várias idades mostra não só que nos acompanha por toda a nossa vida, como também que subsiste além do fluxo da vida de que temos consciência, de onde nasce a nossa experiência de tempo. (FRANZ, 1996, p. 199) Seu surgimento nos sonhos tem importância no contexto de conflito interno, favorecendo uma busca de equilíbrio para quem sonha e a resolução de problemas: Quando esta imagem surge nos sonhos de uma pessoa podemos ter esperanças de uma solução criadora para o seu conflito porque agora o centro psíquico vital está ativado (isto é, todo o ser encontra-se condensado em uma só unidade) de modo a vencer as suas dificuldades. (FRANZ, 1996, p. 200) Este personagem possui aparência, que é atribuída por L, como semelhante à de Jesus, ou um profeta, um agricultor, de grande ligação com a natureza. Por ter características ‘divinas’, e o conteúdo tratado por ele também se relacionar com a religiosidade, exerce uma função: Estas personagens divinas são, na verdade, representações simbólicas da psique total, entidade maior e mais ampla que supre o ego da força que lhe falta. Sua função específica lembra que é atribuição essencial do mito heróico desenvolver no indivíduo a consciência do ego – o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas – de maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida lhe há de impor. (HENDERSON, 1996, p. 110112) A temática apresentada por ele tem caráter religioso: trata do Sagrado Feminino, quando se refere a ‘Panaiá’– Nossa Senhora –, o que pode ser encarado como uma reverência do Sagrado Masculino ao Sagrado Feminino (“eu as torno bem grandes, para mostrar como “PANAIÁ” é grande.”) e um início da ‘integração’ ou do re-envolvimento desses dois aspectos em L. Este personagem, assim como os animais dos dois sonhos deste dia, possui uma ligação forte com água e terra. O material usado por este personagem no sonho é composto por elementos naturais: areia, pedra, metais (convertidos em moedas, objetos de valor). Ele trata da mescla esses elementos, como um modo alquímico de transformar a realidade, fisicamente, e empregando questões mais subjetivas e relativas, simbólicas. Suas experiências com areia e água fazem surgir o que ele busca: minhocas da água, que vivem sob a água e a terra. A simbologia da minhoca é semelhante à da cobra ou serpente. Conforme Chevalier e Gheerbrant, ela encarna a psique inferior, o que é raro, o psiquismo obscuro, incompreensível, misterioso. Trata do sagrado natural, material, freqüentemente surgindo das profundezas ou de fendas escuras, “para cuspir morte ou vida antes de retornar ao invisível” (2002, p. 815). Ao despejar as pedras e moedas, num gesto simbólico, o homem velho o faz com os pés na areia e dentro d’água, para que os objetos, ao cair, fiquem na terra e na água. A água apresentada, símbolo do inconsciente, do mundo psíquico, é transparente, rasa e tranqüila. A pedra, segundo Franz (1996), representa a união dos extremos opostos – a matéria e o espírito, e seu surgimento em sonhos desperta uma ordenação interna, assim como seu uso. As pedras utilizadas por ele também apontam para questões relativas ao Self: Talvez cristais e pedras sejam símbolos do self sobremaneira adequados devido à “exatidão” da sua natureza. Muitas pessoas não resistem ao impulso de apanhar pedras de cor ou forma pouco comuns para guardá-las, sem saber por que o fazem. É como se as pedras contivessem um mistério vivo que as fascina. Os homens colecionam pedras desde o início dos tempos, e aparentemente admitiram que algumas delas são receptáculos de força vital, com todo o seu conseqüente mistério. [...] Pois apesar de o homem ser, tanto quanto possível diferente da pedra, o seu centro mais íntimo é, de maneira estranha e muito especial, bastante semelhante a ela (talvez porque a pedra simbolize a existência pura, estando o mais possível distanciada das emoções, sentimento, fantasias e do pensamento discursivo do nosso ego consciente). [...] a pedra simboliza a experiência de algo eterno que o homem conhece naqueles fugazes instantes em que se sente inalterável e imortal. (FRANZ, 1996, p. 209) Aniela Jaffé ressalta esse simbolismo que as pedras despertam nos homens e faz menção ao seu uso conforme ocorreu no sonho: Arranjos de pedras brutas são, também, parte importante nos jardins altamente civilizados do zen-budismo. Sua disposição não é geométrica e parece devida ao mero acaso. São, no entanto, a expressão da mais refinada espiritualidade. (JAFFÉ, 1996, p. 233) O Centro, ou Self é várias vezes representado e sinalizado neste sonho: pelo homem sábio, pelas pedras e pela visita ao próprio Centro, um local, colocado como uma rua que une os caminhos: Integração. Essa estrada pode simbolizar o desejo de mudança, um movimento, crescimento. No início do sonho 7, L narra as condições em que os aspectos interiores feminino e masculino se encontram: juntos/casados, porém distantes. Esses dois aspectos fazem parte da ‘alma’ humana. Ao reportar-se a essa dualidade, Chevalier e Gheerbrant afirmam que “Essas duas palavras, masculino e feminino, não se limitam, portanto, à expressão da sexualidade. Elas simbolizam dois aspectos complementares ou perfeitamente unificados do ser, do homem, de Deus”. (2002, p. 599) A questão da guerra ou conflito interno é retomada neste sonho, no qual L atravessa um trecho de sua jornada onde pessoas são atacadas com objetivo de morte e ferimento. Nesse contexto, L percebe que sua parte consciente assume postura diferenciada em relação aos outros personagens internos, que agem com euforia ou falta de ação: ela assume uma atitude de proteção. Assim, assistir ao filme Terra, Terceira Pedra do Sol, foi um fato relevante dentro do processo de transformação e desenvolvimento de L, aliado à formação do Ser Terapeuta. A partir dessa vivência, L pôde acessar conteúdos mais profundos, e também trabalhar questões que envolvem o contexto do atendimento arteterapêutico oferecido ao grupo de crianças em estágio supervisionado. No sonho apresentado a seguir, a temática das moedas retorna, ainda com uma ligação direta com o filme ‘Terra, Terceira pedra do Sol’: Sonho 8 Moedas, elevador, malas, botões. Carreguei comigo a mala de “educação física” que usava no colégio – com roupas, tênis... E, durante o sonho, pensei “minha mala de educação física, nossa, quanto tempo não uso essas coisas!”. Eu estava com o uniforme do colégio e me dirigindo para o elevador – (no meu colégio não tinha elevador), fui para o da esquerda, ele já tinha passado, andei no corredor para chegar ao outro, à direita, ele se fechou na minha frente, com antigas amigas de colégio dentro, voltei ao 1º. E pude entrar, uma outra garota entrou comigo, perguntei a ela aonde queria ir – e os andares eram selecionados pelo que iríamos fazer neles: comida/ xadrez, aulas, recreação, jardim. Ela escolheu o dela e eu escolhi o da comida. Desci com minha mala, mas ela estava diferente: maior e com listas verdes (o que eu carrego comigo). Quando abri, encontrei lindas e brilhantes moedas antigas, sem valor nenhum, uma moeda de 25 centavos e uma de 10 centavos que ainda valem. Algumas eram “raridades antigas” em excelente estado, do tamanho de um CD, todas muito bem guardadas em caixas aveludadas azul-escuras. Há coisas que carrego dentro de mim, consideradas no passado de grande valor, mas agora não servem mais, (só para colecionador). Eu as descobri e também percebi que precisavam ser trocadas por coisas de valor hoje. (Estava carregando peso que não serve). Os botões de acesso ao que se quer fazer – e preciso saber para onde ir e o que fazer lá para dar o comando, é interessante a escolha pelo andar da comida, eu fiquei sozinha nele – como se fosse de acesso ao meu andar de fazer aquilo – e não comi, fiquei mexendo na mala e nas coisas dela. As moedas também estavam no sonho anterior e eram também sem valor. “O valor vai ser dado por mim de acordo com a ação, o fim”, foi o que pensei no anterior. O que eu quero carregar? Também foi interessante a parte das “amigas do passado” deixá-las ir no caminho delas, e seguir o meu, diferente, com escolhas e descobertas. Segue a escrita no momento da transposição de linguagem: Antes de começar o desenho, já sabia que queria usar giz pastel seco metálico – o lápis de cor veio pela necessidade da cor e do traço, fino e preciso. Na grande moeda da esquerda há uma figura que transita entre o masculino e o feminino – pensei em algo francês, pela boina. Minha intenção era fazer um homem, como vi na moeda do sonho, mas na hora de fazer, a figura era vaga na minha lembrança. Fiz as moedas em escala real e os botões do elevador, mas a mala ficou bem reduzida, como símbolo mesmo. As moedas antigas eram bem brilhantes “novinhas” – renovação das coisas do passado. O que é antigo, ancestral e estava guardado, fechado, esquecido, olhar para essas coisas que são minhas e eu nem sabia, interagir com o que está guardado. Também me lembra pilhas de relógio. No filme, Varua pergunta: se vai se render ao que mais valoriza ou vai juntar o que foi esquecido – para achar o que está procurando e foi perdido. Figura 12 – moedas e bagagem Fonte: Sonho de L. No início do sonho 8, ao andar pelo corredor, para entrar no elevador, indo de um lado a outro, pode-se entender que o que ocorre é um trânsito entre os dois hemisférios cerebrais. O local de acesso se encontra, neste sonho, à esquerda, hemisfério ligado a questões racionais, lógicas. O andar escolhido por L no elevador trata do alimento, pode referir-se a um local de preparação e transformação dos alimentos, e à sobrevivência, ao cuidado com o corpo físico, nutrição. Fato reforça a idéia de cuidado com o corpo físico é a mala que L carrega: de educação física. Na escrita do sonho e na reflexão sobre a imagem, surgem pensamentos sobre a simbologia das moedas. Neste sonho, há a descoberta de moedas antigas, carregadas por L, porém ainda ‘novas’ e brilhantes. Juntamente a essa percepção, vêm pensamentos sobre a escolha do que é útil e de valor, relacionados à fala de um personagem do filme, Varua, que ao encontrar-se com o protagonista do filme, questiona: “Algo de grande valor se perdeu. O que fará para recuperar? Vai se render ao que mais valoriza? Vai juntar o que foi abandonado?”21 A temática do sonho aborda o autoconhecimento, a capacidade de olhar para si e reconhecer os valores que servem para o momento atual, na caminhada de transformação e ampliação da consciência. Do mesmo modo, apresenta o olhar ao passado, aquilo que é sua bagagem, carregada em uma mala. Ação importante dentro do processo de transformação e solidificação do ser terapeuta para L. Assim como no sonho 7, as moedas têm ligação com a temática feminino/masculino e a relação destes dois lados. Essa questão retorna na escrita sobre a imagem realizada: a moeda funciona como uma mandala (conceito mais trabalhado em capítulos seguintes), espaço sagrado, onde é colocada uma representação humana que, segundo L, está entre o feminino e o masculino. Em seus estudos sobre símbolos, Chevalier e Gheerbrant afirmam que a moeda seria como uma imagem da alma, “pois traz impressa a marca de Deus, como a moeda traz a do soberano. [...] eram carregadas de símbolos, partindo de influências espirituais. Existia, então, um controle da autoridade espiritual sobre o valor das moedas.” (2002, p.613). Assim, este sonho e sua expressão plástica trabalharam questões que envolvem o Self, a trajetória de L até o momento, e as decisões para a nova etapa do caminho, o reconhecimento de um caminho próprio e o desapego ao que não serve mais; o encontro de coisas de valor de caráter ancestral e a integração dos aspectos feminino e masculino. 21 Conforme texto do filme. A partir da vivência dos três sonhos apresentados, influenciados pelo filme “Terra, terceira pedra do Sol”, e de reflexões e imagens criadas, L escreve um texto sobre sua percepção do mecanismo de funcionamento de sua mente ao captar e transformar conteúdos do filme em temas relevantes ao seu momento atual, por meio da narrativa do sonho e das imagens produzidas com recursos artísticos: Reflexões sobre a semana de 17 a 23/06: O que mais me surpreendeu no processo desta semana foi a forma como a minha mente subconsciente assimilou detalhes tão específicos do filme, que, conscientemente, eu não havia percebido, ou dado importância. Depois ela converteu em sonhos, aos quais eu dei forma, pensei sobre eles, descobri mensagens que acreditei não estarem conectadas ao filme. Mas, ao re-assistí-lo, vi que todos eles estavam ligados ao filme, e de forma bastante específica, como o nome da rua (integração), a presença de um “guia” ou pessoa mais velha, o sonho com as moedas – o que é de valor ou o que foi esquecido – para achar o que estou procurando, a presença dos animais – instintos, sentidos, a presença da natureza, cortar os trajes – sapo com camiseta –, dar forma. O que eu não consegui captar e entender no momento de assistir ao filme entrou em mim, foi transformado, tomou forma a partir da minha ação, ganhou novo significado, trouxe “entendimento”. Características das estações ligadas a fases e atitudes/animais que transitam entre terra e água. No livro “o caminho quádruplo”: Água e outono Terra e primavera O caminho do mestre O caminho do curador Estar aberto aos resultados Correta comunicação Ritmo adequado/ossos Estar atento/criaturas de 4 pernas Sabedoria Amor O filme Terra Terceira Pedra do Sol, mostrou-se, assim, uma ferramenta importante no processo de formação do ser terapeuta em L, pois facilitou o acesso e a elaboração de conteúdos relevantes no momento específico que L passava. Conteúdos profundos, relativos à natureza e sabedoria interiores tornaram-se conscientes, assim como mecanismos de funcionamento da própria mente de L. A integração e o diálogo entre aspectos interiores femininos e masculinos foram bastante profunda, assim como a percepção da recorrência dos elementos Terra e água nos sonhos de L, fato que fez com que ela pesquisasse, buscasse referências e significados em textos, para entender e dialogar com o material apresentado nos sonhos 6 a 8. Neste período, o grupo de crianças do estágio supervisionado passa pela vivência de propostas arteterapêuticas com uso de materiais variados, que provocam os aspectos sensoriais em vários níveis, como flores desidratadas, retalhos de linhas, areia colorida, massinha de modelar, grãos. Para apresentar esses materiais às crianças, L também os experimentou e criou imagens com eles, o que permitiu o desenvolvimento de seus potenciais criativos juntamente com o desenvolvimento das crianças, o que revela a importância do contato e da troca do arteterapêuta em formação com o grupo de atendimento, para a formação do ser terapeuta. O grupo apresenta, nesta fase, maior envolvimento nas atividades e é levado a experimentações criativas através dos materiais propostos. Dentro das oficinas são trabalhadas questões relevantes neste grupo, como a integração das participantes, a colaboração, o compartilhar, o brincar. 8.2 SIMBOLIZAÇÕES DO FILME FEITIÇO DE ÁQUILA Outro filme apresentado a L em atendimento pessoal foi “O Feitiço de Áquila”. Os conteúdos deste filme foram igualmente absorvidos pelo subconsciente, elaborados e re-transmitidos a ela em nova organização, dentro de sonho. Novos dados e esclarecimentos ocorrem ao aliar esses conteúdos ao trabalho arteterapêutico, pois a imagem palpável torna possível ver o que antes eram somente imagens mentais. Seguindo a proposta arteterapêutica, L, ao acordar, escreveu o sonho, fez imagem e dialogou com ela: Sonho 9 SONHO – 24/06/08 - Após ver o filme. – [...] encontrei V. e fomos até o portão da casa; era como se fosse a casa e a rua da casa onde morei na Bolívia, quando éramos crianças – 7 a 9 anos. Vimos uma figura estranha fantasiada de coelho branco e com uns óculos de aros pretos e lentes bem grossas, como fundo de garrafa, que não dava para ver os olhos. Ela corria atrás de um coelho de verdade, para matá-lo, atravessou a rua e não conseguiu pegá-lo, tirou, então, um grande e largo martelo e matou o coelho com grande força – eu me virei para não ver. V se irritou ao ver a cena, atravessou o portão e foi lutar com essa figura, que apareceu sem a fantasia de coelho: agora tinha forma de mulher, magra, mais forte, com músculos. Os cabelos eram pretos, lisos e curtos. Os 2 lutaram do lado de fora do portão. Entrei na casa e peguei 2 facas: uma bem afiada e fina e a outra era uma serra de pão (não muito afiada, mas grande) – as 2 tinham cabo de madeira e são facas que a minha mãe tem. Quando voltei ao portão, a mulher e ele ainda lutavam, ela estava com as costas encostadas na grade do portão – eu enfiei a faca fina nas costas dela 2 vezes. Ela se irritou comigo, virou-se para mim, vi que não saía nenhum sangue. Eu e V parecíamos querer feri-la, matá-la. Percebi que nada acontecia, só ficavam os furos, mas ela não sentia dor e nem sangrava. Torcemos os braços dela e a levamos para dentro da casa. Fiquei com ela amarrada e deitada no chão, enfiei a faca vária vezes no lugar do seu coração e vi que isso não a matava. Fui mostrá-la para meu pai, ele não deu muita importância e disse para eu “me livrar disso”, achamos que ela fosse um robô – agora a vejo como o “feminino” e minhas atitudes, em conjunto com o lado masculino em relação ao feminino. Quando ela se soltou, tive medo, sabia que ela era forte e que não conseguia feri-la – corri e me escondi dentro de um banheiro com porta de mármore, perto de onde minha mãe estava, me lembro bem de ver seus braços fortes e musculosos. Figura 13 – Conflitos - agressividade Fonte: Sonho de L. Escrita sobre o desenho do sonho: Mulher fantasiada de coelho, com óculos de lente muito grossa, ela seguia o coelho. Vestir uma fantasia – de ‘fofinho, inofensivo’, mas está disposta a destruir esse lado “real”, do coelho, esmagar. À direita, as “feridas” que fiz nela e não sangraram. A imagem que surgiu do sonho 9, retratada por L é dividida em três setores e dá enfoque a aspectos dessa personagem feminina forte, musculosa, agressiva: à esquerda estão as feridas na pele na figura feminina, ao centro, o conflito entre masculino e feminino, à direita encontra-se a personagem fantasiada, prestes a matar o coelho com um martelo. Essa figura feminina presente no sonho possui característica que nos permite relacioná-la ao ciclo de Trickster apresentado por Henderson no livro “O Homem e seus Símbolos”, de Jung: O ciclo de Trickster corresponde ao primeiro período de vida, o mais primitivo. Trickster é um personagem dominado por seus apetites; tem a mentalidade de uma criança. Sem outro propósito senão o de satisfazer suas necessidades mais elementares, é cruel, cínico e insensível (nossas histórias do Irmão Coelho ou da Raposa Reynard perpetuam o que há de mais especial no mito Trickster). [...] Este personagem, que inicialmente aparece sob forma de um animal, passa de uma proeza maléfica a outra. Mas ao mesmo tempo começa a transformar-se e no final da sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um homem adulto. (2002, p. 112) Ainda conforme o autor, pode-se pensar em “uma referência à forma de evolução criadora que começa, evidentemente, numa escala de existência préconsciente, infantil ou animal” (HENDERSON, 2002 p. 126). Essa parte agressiva e primitiva do Eu surge, nos primeiros momentos do sonho, fantasiada de animal, coelho, perseguindo o animal real e matando-o. No filme “O Feitiço de Áquila” a personagem feminina aparece perseguindo um coelho para matá-lo e alimentar-se. A simbologia do coelho/lebre está ligada à velha divindade Terra-Mãe, ao simbolismo das águas fecundantes e regeneradoras, ao da vegetação, da renovação perpétua da vida sob todas as formas. Também se relaciona simbolicamente à puberdade, término da infância, e à produção de seus primeiros frutos. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 541), Por participar do que não pode ser conhecido, do inacessível, [...] o coelho ou a lebre míticos são um intercessor, um intermediário entre este mundo e as realidades transcendentes do outro. [...] A lebre que, como a Lua, morre para renascer, tornou-se por esta razão a preparadora da droga da imortalidade, no taoísmo. Ao observar as crueldades da personagem no sonho, V, Animus, estabelece conflito físico com ela. Durante e após o sonho L percebe que há algo diferente nessa mulher. Seu primeiro pensamento foi sobre ela ser um Robô, por sua frieza, força e falta de sensibilidade à dor. Ao acordar e escrever o sonho, L pôde refletir e percebê-la como “o feminino”, uma força maior, com características além das de uma mulher comum e real. Ao estar fantasiada, a personagem usa óculos com lentes grossas, o que pode ser interpretado como uma ferramenta para enxergar melhor o mundo físico, real. Após as atitudes cruéis de L e V contra a personagem, ao ver que ela estava livre, L sentiu medo e se protegeu em um banheiro com porta resistente, de mármore. Além das agressões físicas, o lado masculino, representado por V e pelo pai de L tem uma atitude de desprezo em relação à personagem feminina. Este sonho vem mostrar a L características de seus lados interiores masculino e feminino e sua atitude em relação a um aspecto de sua sombra: o lado feminino que é forte, agressivo, e vinha sendo rejeitado, aprisionado; e não pode ser destruído, deve ser reconhecido e integrado. As características desse lado feminino rejeitado por L estão mais evidentemente presentes nas crianças do grupo de atendimento arteterapêutico. Assim, através do sonho, de sua narração, criação de imagem e escrita reflexiva sobre ele, L pôde entrar em contato com este seu lado reprimido e reconhecer em si as características dessas crianças, tidas por ela como muito diferentes de si. Isso fez com que ela entendesse e aceitasse melhor o comportamento das crianças, fato que auxiliou as transformações pessoais de L e das crianças do projeto de estágio supervisionado. Um momento importante no processo de formação do ser terapeuta de L. 9 O SURGIMENTO DE MANDALAS NO SONHO Ao desenhar uma mandala, criamos algo sagrado. [...] O campo de força de uma mandala modifica a nossa energia em vários níveis. Ele estimula a mente, equilibra as emoções e ativa os processos físicos, ajudando a restabelecer sua função plena. A mandala é uma fonte de cura [...] (FIORAVANTI, 2003, p. 7-8) 9.1 MOMENTO DE REESTRUTURAÇÃO E ENTENDIMENTO As mandalas possuem propriedades terapêuticas por proporcionar ao indivíduo um espaço onde se possam organizar conteúdos em torno de um centro. A mandala serve a um propósito conservador – isto é, restabelece uma ordem preexistente; mas serve também ao propósito criador de dar forma e expressão a alguma coisa que ainda não existe, algo de novo e único. O segundo aspecto é [...] na maioria dos casos o que restaura a antiga ordem envolve, ao mesmo tempo, algum elemento novo de criação; na nova ordem, o esquema antigo retorna em um nível mais elevado. O processo lembra uma espiral ascendente, que cresce em direção ao alto enquanto retorna, simultaneamente, ao mesmo ponto. (FRANZ, 1996, p. 213) O surgimento da mandala nos sonhos é bastante significativo, pois indica que é um momento de reorganização do todo, de paz interior. Nesse aspecto, concordamos com Franz quando afirma que A contemplação de uma mandala deve trazer paz interior, uma sensação de que a vida voltou a encontrar a sua ordem e o seu significado. A mandala também produz este sentimento quando aparece espontaneamente, nos sonhos do homem moderno, que não está influenciado por qualquer tradição religiosa deste tipo e nada sabe a este respeito. Talvez o efeito positivo seja até maior em tais casos, já que conhecimento e tradição por vezes confundem ou mesmo bloqueiam a experiência espontânea. (FRANZ, 1996, p. 213-215) Bernardo fala mais claramente do uso da mandala num contexto arteterapêutico, referindo-se ao espaço sagrado delimitado pela forma circular, ressaltando suas propriedades benéficas dentro do processo de ampliação da consciência e seu poder transformador: Essa noção de espaço sagrado também é relevante para qualquer processo que vise uma ampliação de consciência a partir do contato com a dimensão simbólica, em que o auto-conhecimento seja promovido [...], como no processo arteterapêutico, possibilitando que o que for vivenciado possa ter um significado para a pessoa,enriquecendo seu mundo interno e expandindo-se para as suas relações. A sua criação correspondente à criação de um espaço continente e sensível ao momento da pessoa para que ela possa sentir-se segura e confiar no processo. (BERNARDO, 2009, p.165) Esse era um momento bastante significativo para L, que transcreve a seguir como as mandalas começam a surgir em seus sonhos. Sonho 10 Não teve enredo, somente vi as formas das mandalas – uma era inteira de marrom, como se feita de chocolate, e veio a “frase”: mandala de chocolate. Depois vi outras duas: uma com estrela de quatro pontas e outra com várias dela salpicadas. Escrita sobre mandalas criadas a partir das imagens visualizadas no sonho: Desenho: Antes de começar a figura, já imaginei como distribuiria as mandalas no papel. [...] Comecei pela grande, não tinha a cor de marrom que eu queria, foi preciso misturar o pastel oleoso marrom com o preto, o que deu uma textura um pouco diferente do que eu imaginava. Comecei pelo lado de fora, indo para o centro. Foi preciso bastante tempo e força para “preenchê-la”/ Parece que está girando. Segundo o livro de mandalas (FIORAVANTI, 2003.), essa mandala inteira com cor escura pode ser considerada uma “mandala vazia” e que representa a “penetração da consciência na matéria”. Ela leva “à fonte de toda a criação divina, de onde tudo emana para o reino material” –é o que está por vir – “é a representação da surpresa” diante das 1ªs descobertas de um mundo que a pessoa nem sabia existir. Achei interessante a seqüência delas – estão interligadas. Na 1ª “Quem cria uma Mandala vazia pode estar num momento de evolução no qual está a ponto de dar um passo em direção ao que irá libertar sua alma da opressão ou da alienação”. [...] A “comida” se transformando pela mistura e pelo fogo. A 2ª foi a do canto superior direito. Há um fundo vazio e várias estrelas de 4 pontas, cada uma com 1 lado preto e outro marrom – as mesmas cores da mandala grande. Pelo livro, ela é uma mandala do universo – “representa o local onde as células ficam antes de serem fecundadas ou logo após isso”. Tudo suspenso, flutuante, livre. “Representa a infinita quantidade de caminhos a seguir, a variedade de possibilidades apresentadas para sua evolução: É também um local de acolhimento, proteção e reabastecimento. Necessidade de 1 direcionamento,acolhimento Figura 14 – mandalas Fonte: Sonho de L. – fase de muitos sonhos. (A 1ª mandala também lembra uma mandala de alvo – uma meta, um objetivo a seguir – energia concentrada e direcionada). A última mandala foi a com estrela de 4 pontas, com laterais pretas e marrons. Ela “encerra” o ciclo das 3, pois é uma mandala de direções. As anteriores são consideradas femininas e esta é masculina, ligada ao racional. Nesta há também uma divisão para cada direção, uma + escura, mas estão “juntas”, caminham juntas, porém divididas. Há em todos os setores em cima/em baixo, direita/esquerda. Mas todos esses pólos estão reunidos pelo centro e dentro de um contexto. Segundo o livro: “As conquistas materiais e palpáveis são a meta simbólica desta mandala” – necessidade de criar uma estrutura sólida “de modo que as pressões materiais sejam aliviadas, passando a abrir espaço para buscas mais leves”. “Ao desenhar uma mandala assim, a pessoa expressa sua determinação de alcançar a estabilidade e a segurança. Sobre a 1ª – É possível que eu a tenha visualizado com esse nome no meu sonho por ter feito muitas comidas com chocolate nos últimos dias [...]. No sonho, parecia um chocolate derretido recentemente e colocado sobre um fino disco de isopor, também cobria as laterais e eu o segurava com a mão esquerda. As outras duas mandalas ficavam flutuando. A com várias estrelas, quando a vi durante o sonho, me lembrei de ter visto umas parecidas no livro de mandalas, mas não me lembrava do significado. [...] Ao fazer as pequenas estrelas pensei em cata-ventos, flores e cruzes. Juntas elas parecem contar uma história (as 3 mandalas) Algo que está se misturando, tentando conseguir uniformidade - uma meta, construindo, cozinhando, preparando. Tem uma força que lembra o universo. As 15 estrelas parecem pássaros. E a presença dessas muitas direções se transformará em uma grande estrela, que apresenta polaridades, direções, firmeza, materialização, opostos – não vejo como uma integração entre os diferentes lados, somente uma “convivência, coexistência”. Há nesta última o uso dos materiais das 2 anteriores: pastel oleoso e canetinha. As duas se transformam na última. De forma mais “organizada”. Mas, estando juntas, as 3 vibram ao mesmo tempo, talvez mostrando um caminho a percorrer ou, somente, a situação atual. Diferentemente de sonhos anteriores, neste houve pouco enredo e personagens, e somente uma construção verbal que surgiu em forma de pensamento no sonho, um sonho rápido e contemplativo. Ao refletir sobre o sonho 10, L buscou um livro que a ajudasse a entender a simbologia das imagens visualizadas durante o sonhar. Ao final, tentou estabelecer uma união entre os significados das mandalas que aparecem simultaneamente em sua expressão plástica. A lembrança de ter visto uma imagem semelhante a uma das mandalas visualizadas num livro e não lembrar significado a fez rever e tornar conscientes esses conteúdos que haviam sido registrados no inconsciente e retornaram em forma de sonho e, neste caso, foram entendidos ao criar a imagem, dialogar com ela e reler trecho do livro. A imagem da mandala trata do contato com o self, o centro interior, o núcleo psíquico sobre a mandala divida em quatro setores, última mandala representada por L em seu desenho, Franz afirma: Entre as representações mitológicas do self quase sempre encontramos a imagem dos quatro cantos do mundo, e muitas vezes o Grande Homem, representado no centro de um círculo dividido em quatro. Jung usou a palavra hindu mandala (círculo mágico) para designar este tipo de estrutura, que é uma representação simbólica do “átomo nuclear” da pisque humana. (FRANZ, 1996, p. 213) A mandala possui um caráter curativo, relacionado à saúde psíquica, seu uso na Arteterapia é positivo, pois atua como um fator de reorganização e possibilita mudanças. Nessa perspectiva, para Fioravanti: “A prática de colorir mandalas é terapêutica e pode transformar estados emocionais ou físicos negativos. O mais interessante é que a influência curativa da mandala atua sem que se perceba; ela é resultado do campo de força criado pela mandala”. (2003, p. 16,17) Desse modo, o surgimento espontâneo dessas mandalas no sonho de L revela um momento de reorganização interior, de estruturação em sua caminhada de formação do ser terapêuta. Após as escritas referentes ao sonho e ao desenho, L escreveu uma reflexão unindo conteúdos anteriormente apresentados em seus sonhos, com intenção de perceber a simbologia dos alimentos em seu material onírico. Reflexão: Essa questão da comida foi retomada – me lembrei do sonho com dinossauro – onde ele me perguntou “você já foi comida?” – em outro sonho, com as moedas, fui para o andar da comida – neste, a mandala é de comida [...]. A questão da NUTRIÇÃO, alimentação, preparação – Ser a própria comida – misturar os ingredientes, aquecer, mexer, alterar os conteúdos e transformar em algo novo, com novo sentido e significado, através de ações. Percebi, também, que houve um aumento das figuras masculinas nos sonhos, mas as femininas ainda estão presentes. Essa escrita pode revelar o contato com o self. Transformações que estão acontecendo em L, possibilitando, desse modo, novas formas de agir e reagir frente a situações, dando um significado a sua vida. 10 FORMAS DO ‘EU’, ATITUDES A riqueza que contém o material onírico é reveladora, e quando assimilada conscientemente, promove grandes mudanças nas atitudes, nas formas de ser e agir do indivíduo perante o mundo. Esse fato pode ser observado na transcrição e reflexão do sonho que se segue. Sonho 11 Estava numa grande sala branca, desci as escadas, encontrei minha mãe com outras 2 mulheres, estavam tentando organizar a decoração do espaço – as paredes – fiquei com um bonito espelho de moldura dourada nas mãos,observando as coisas que já estavam penduradas: quadros com flores e outros espelhos. Não gostei da disposição em que elas colocaram as coisas: um espelho de frente para o outro, e havia a última pela que era o espelho que eu segurava. Eu não disse nada, mas fiquei mentalmente julgando onde seria melhor. Não houve uma definição nesse assunto, saí de lá e fui para outra cena. [...] Caminhei e cheguei numa área onde 2 homens limpavam uma piscina.Conversei com V e minha tia Al perto da piscina. Ele falava sobre um cliente [...] Sem que percebêssemos, nós 3 andamos para dentro da piscina, e ficamos sobre a água, sem afundar. Percebi quando já estávamos lá. Podia ver o fundo da piscina com pequenos azulejos brancos, e com sujeira preta nos rejuntes. Fui andando para a borda novamente, lentamente, sem dizer nada para eles, que me acompanharam, e quando saímos, eles perceberam. A piscina ficou num nível mais alto (altura do ombro). Coloquei minha mão na água – havia uma barreira, que parecia de vidro a uns 3 cm de profundidade. Bati e era duro. Nós 3 ficamos impressionados com o que aconteceu. Conforme os homens da limpeza se aproximavam limpando (eles também andavam sobre a água), com compridos aspiradores de sujeira, uma fenda se abria para o equipamento descesse. Escrevendo isso, percebo que se relaciona com profundezas, inconsciente e consciente, mecanismos de funcionamento: um equipamento que puxa o que está no fundo, através de 1 pequena abertura. Saí de lá, andei para um pátio num andar mais abaixo – crianças (inclusive duas do estágio: Jo e I) brincavam de roda: 2 rodas: uma menor que estava dentro e girava para a direita, outra maior, que girava para a esquerda. Participei da roda externa, de mãos dadas com Jo, que olhava para mim. Elas brincavam felizes, se havia música, não eram elas que cantavam. Quando saí da roda, a cabeça de I veio para as minhas mãos, sem pescoço e com o cabelo somente rente à cabeça. Ela continuava falando vivamente comigo – me assustei – parecia ter um pouco de sangue onde era o pescoço. A entreguei para outra pessoa (com um pouco mais de tranqüilidade, depois do susto) E segui em frente. Encontrei novamente V, estávamos num lugar desconhecido para nós, comentamos que era a 1ª vez que íamos “ao fundo do terreno”, onde havia um jardim escuro com chão de pedras, cimento e areia. Meu pé estava descalço. Vimos um portão branco, que dava para uma rua iluminada. Caminhamos lentamente olhando para o portão de madeira pintada. Do lado de fora, na rua, havia um poste que iluminava bastante. Senti uma coisa tocando meu pé, no dedinho, quando vi, era uma barata. Susto. V, que estava com sapatos, pisou nela. Depois vimos outras duas, que ele matou [...] Ouvimos barulhos do outro lado do portão – fomos ver o que era: um grupo de rapazes, uma gangue e um grande cachorro Fila – ele era tão grande que sua cabeça bege ficava da altura da cabeça dos homens. Íamos abrir o portão para sair. V ficou na fenda do portão entreaberto, para “proteger-nos” e evitar a entrada dessas pessoas. Eu me escondi num canto escuro do jardim, à direita do portão. Observei as cabeças deles passando e conversando e o meu medo foi de ter que ficar frente a frente com aquele grande cachorro que estava solto na rua. Preferi esperar que eles passassem, para que pudéssemos passar pelo portão em segurança. Após a escrita, L materializa as imagens internas do sonho em cinco expressões plásticas. Compõe os próximos parágrafos o material descrito, juntamente com a transposição de linguagem de cada imagem: Desenho 1 Na figura estamos: eu (de costas e projetada nos espelhos – refletida) e minha mãe – de frente para mim. Na sala não há móveis, somente coisas na parede – um espaço novo sendo “decorado”, arrumado. Há 2 quadros de flores: 1 com girassóis e outro com rosas. 3 espelhos: 1 eu seguro (provavelmente está refletindo a imagem da minha mãe nele), os outros dois estão frente a frente e refletem a minha figura. Uma janela. Para chegar a esta nova sala é preciso descer. Mulheres mais velhas cuidam dela (minha mãe e suas amigas), o que não me agrada (o gosto e as escolhas delas). A sala tem paredes circulares e o piso em diagonal – tudo branco. A mesma fileira de pedras de piso toca os meus pés e os da minha mãe. Eu pareço mostrar para ela o espelho. Ela se reflete ‘em mim’ e a ‘realidade’ (os espelhos) mostram ‘lados’ meus. Ainda não vejo minha face. Minha mãe se mostra de Figura 15 –Mãe e espelhos Fonte: Sonho de L. frente, parece tranqüila, observando. As figuras e os reflexos: juntas formam um quadrado ou um círculo. Parece que estamos em ‘poses’ bem-estruturadas para formar essa figura: Algo esquemático: “VEJA!”, parece dizer. No sonho, os espelhos não me refletiam. Havia bastante claridade. [...] A arte está presente entre nós- flores retratadas em pinturas – a beleza da natureza que se multiplica e é passageira, eternizada pela ação de alguém, na arte. A janela ilumina, leva à luz, o contato com o exterior. Os quadros: girassol: busca luz, vai sempre à direção do sol. Rosas vermelhas – amor, afetividade, presente. Desenho 2 Pessoas “sobre” a piscina. Os dois homens à esquerda limpam a piscina- têm roupa clara e a ferramenta que puxa o que está “sujo no fundo”. Uma fenda se abre para isso. V está ao centro da figura [...] Mais à direita estou eu, de lado, com vestido – mostro a palma da mão esquerda. Estou descalça, junto com a tia Al, a única de frente. As figuras parecem felizes. A tia, mulher mais velha, assim como minha mãe no outro desenho, está de frente, se mostra e olha francamente. Ao invés de parecer que estamos sobre a água, parece que estamos no fundo dela. Parece um chão, uma grama, um vidro. Limpeza do fundo, sugando. Há ‘agentes’ encarregados disso. Figura 16 – Mecanismos de acesso ao inconsciente Fonte: Sonho de L. Desenho 3 Foi trabalhoso e demorado, mas eu queria VER como ia ficar e FAZER. Durante o fazer, em muitos momentos, me desanimei, pensei muito como organizar as figuras e as ações para fazê-las, foi um pouco cansativo. Quando terminei, gostei do visual, é um desenho sobre crianças que parece infantil, mas foi preciso muito pensamento para fazer, o que o torna um desenho “adulto”.[...] Para mim, o principal nesta figura é a Figura 17 – Criança interior: Encontro e integração Fonte: Sonho de L. união no círculo, a brincadeira, o lado infantil e as direções diferentes. [...] Há muita cor. União, integração, sincronicidade de movimentos opostos internos e externos. Não coloquei rostos com olhos, boca, nariz, pelo material ser “tosco” e um pouco difícil de trabalhar coisas pequenas, mas foi o que considerei (pastel oleoso) o mais fácil de fazer o todo. Em algumas crianças, mesmo sem os traços do rosto, é possível sentir pelo ‘movimento corporal’ sua felicidade e leveza ao brincar. Reunião, encontro social. Desenho 4 No sonho, a cabeça em minhas mãos era de uma das meninas do estágio, I, 7 anos. No desenho ficou bastante diferente, a cabeça é pequena como de um pequeno bebê, mas as feições são adultas. As mãos acolhem e cuidam dessa cabeça, segurando, me lembra figuras esotéricas. Também parece que essa cabeça é uma força, uma energia ativada, um poder. Ela é observadora e tranqüila – não tenho sensações ruins ao ver a imagem. Estar “nas mãos”: vida, personalidade nas ações, segurar, cuidar, acolher, curar – mas sinto que essa imagem tem mais a ver comigo do que com a criança (I). Ela (a imagem) veio para ‘me curar’. Olhos profundos que olham francamente. Essa imagem foi muito mais rápida de fazer do que a das crianças em círculo. Ao sair do círculo (união, consagração), ou, após participar disso, a cabeça veio parar em minhas mãos (troca de energia). O contato com as outras ‘crianças’ ativou ou tornou isso possível. Uma cabeça, mente, que ‘sobrevive’ sem Figura 18 – Arteterapêuta: cuidador curador Fonte: Sonho de L. o corpo. E que também é extremamente ativa, viva. Este rosto que fiz não tem a mesma agitação que a menina do sonho. As mãos também parecem um adorno, chapéu, uma capa que desce para o ‘pescoço’ – vestir-se com um poder curador e de ação, criação. Se for uma capa, me lembra roupas de rituais, festas, cerimônias de índios (de ouro) Os dois dedões me lembram cobras. Dedos apontam para cima. Alguns se encontram e se tocam. Alguns me lembram as colunas dos templos gregos, mas pendendo, na diagonal – conseguem manter-se equilibrados mesmo assim. Desenho 5 Papel é dividido em dois setores – O da direita: um local – é de noite, escuro, a luz à direita vem de um poste, mas ficou parecendo que veio da Lua. A figura central é o portão branco, uma passagem, terra e cimento no chão, muros escuros. Por trás do portão os topos das cabeças e a mais clara, perto da luz é a do cachorro. [...] Esses vultos talvez indiquem complexos, coisas a serem resolvidas, medos, instinto, agressividade. Portão: além de separar (ou interligar) dentro e fora, também faz essa “conexão” entre céu e terra. À esquerda: as três baratas - quis retratá-las mortas, pisadas, mas elas parecem bastante “vivas” – [...] ao fazer, tive nojo delas e até mesmo de tocar a parte do papel onde elas estavam. Figura19 – Local do inconsciente Fonte: Sonho de L. Parecem reais, asquerosas. As três são diferentes, como no sonho. [...] Neste desenho há uma separação grande entre direita e esquerda e tipos de representação, escala. Ao concluir a criação das imagens do sonho, L escreveu uma reflexão sobre o fazer: Percebo que para representar cada cena, cada símbolo, tive que transitar por materiais diferentes – que talvez se relacionem com cada assunto e com diversos “tipos” de representação: algumas mais infantis, outras mais racionais. Interessante observar as figuras humanas, como elas parecem pertencer a fases diferentes de “desenvolvimento” e até mesmo parecem ter sido feitas por “pessoas diferentes”. Os esquemas visuais que aparecem no sonho são distintos do que realmente vi neles, são transformados. Mas essas imagens trazem informações mais ricas do que somente o relato e a escrita deles (os sonhos). Interessante observar que nas expressões deste sonho surgem várias formas humanas. L se vê e retrata-se com diversas formas e atitudes, porém, não se mostra por inteiro, ou de frente. A primeira imagem trata das diferentes formas de percepção da realidade e das projeções. Na sala representada, forma-se um espaço circular, no qual as figuras (quatro) se posicionam estrategicamente em Norte, Sul, Leste e Oeste. L se coloca em frente à sua mãe, momento em que ocorre o encontro e a aceitação da imagem da própria mãe dentro de si. Seus lados, direito e esquerdo, são refletidos pelos espelhos, e mostram, cada um, um lado de L, porém não a totalidade, ou o real. A simbologia da mãe está ligada ao mar e à terra, elementos, que, segundo Chevalier e Gheerbrant (2001, p. 580) são símbolos do corpo materno. Conforme opinam esses autores, “Na análise moderna, o símbolo da mãe assume o valor de um arquétipo. A mãe é a primeira forma que toma para o indivíduo a experiência da anima, isto é, do inconsciente” (p. 581). Nesse sentido, a imagem da mãe de L é simbólica e trata de questões relevantes dentro do ambiente arteterapêutico, quando L entra em contato com crianças carentes de afeto, que enxergam nela um adulto cuidador, atencioso e amoroso, capaz de atender ao pedido de colo. O esquema presente no desenho revela que é momento de L perceber em si e despertar características da ‘grande mãe’, ou do arquétipo da mãe no contato com essas crianças do estágio supervisionado. Os reflexos de sua imagem nos espelhos foram dados importantes para a reflexão sobre os conteúdos abordados no sonho, sendo acrescidos no momento da criação das expressões plásticas. Chevalier e Gheerbrant (2001) afirmam que o espelho é um instrumento de Iluminação, símbolo da sabedoria e do conhecimento. Ele inverte a realidade. Os referidos autores apresentam o pensamento dos sufistas sobre o que constitui o Universo: [...] um conjunto de espelhos nos quais a Essência infinita se contempla sob múltiplas formas ou que reflete em diversos graus a irradiação do Ser único; os espelhos simbolizam as possibilidades que tem a Essência de se determinar a si mesma, possibilidade que ela comporta de maneira soberana em virtude de Sua infinitude. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 22 2001,p. 396) Assim, a representação desta sala com espelhos em várias posições, refletindo a realidade de diferentes ângulos, mostra a necessidade de conhecer-se mais completamente. Do mesmo modo, pode entende-se que é uma metáfora do próprio funcionamento do Universo retratado no esquema do desenho de L. Para acessar este local, é preciso descer uma escada, que aparece no desenho de L. Franz considera que A idéia básica de diferentes sistemas de pensamentos foi projetada na escada. Mas em todos esses casos, ela simbolizava uma conexão contínua e constante com os poderes divinos do inconsciente. Poderíamos dizer que o próprio sonho é uma escada. Ele nos liga às profundezas desconhecidas da psique. Cada sonho é, por assim dizer, um degrau de uma escada. (2001, p. 71) Na segunda imagem relativa ao sonho, a piscina com camada transparente onde é possível posicionar-se e observar o trabalho das duas figuras de roupas brancas, para emergir o que está nas profundezas, através de mecanismo e organização já estabelecidos e atuantes. A forma como L, V e tia Al chegam a se posicionar sobe a água (inconsciente) é quase automática ou involuntária. L percebe e “cuida” dos outros personagens, 22 Grifos do original. para que eles possam se posicionar em local onde seja possível observar esse funcionamento interno. As formas humanas à direita do papel (animus, consciência e mulher mais velha) são mais rígidas e, ao serem retratadas, mostram atenção a direções distintas. Os dois homens, à esquerda, realizam seu trabalho sem envolvimento emocional (um trabalho ‘físico-racional’) e têm corpos e movimentos mais flexíveis. O material escolhido por L para essa expressão foi aquarela, talvez por se tratar de um ambiente úmido (com água no cenário). A terceira imagem, com duas rodas de crianças, se refere mais diretamente às questões relacionadas ao estágio desenvolvido com grupo de crianças, havendo, inclusive, a presença de duas delas na brincadeira durante o sonho. L se refere, na escrita sobre esta imagem, à sincronicidade de movimentos opostos internos e externos, processos que ocorrem simultaneamente. O brincar de roda e a expressão em formato circular também se referem à simbologia da mandala, da criação de um espaço sagrado, no qual ocorre a união, o encontro e o brincar. Conforme Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 783), a roda, em seu simbolismo, pode relacionar-se com os ciclos, momentos de renovação e reinícios. Este desenho e o seguinte (figuras 17 e 18), no qual L acolhe a cabeça de uma das participantes do estágio, já revelam uma nova postura de L em relação à criança interior. Neste momento, suas atitudes durante o sonho mostram que já é possível interagir, brincar, acolher. Essas imagens surgem no sonho e ganham ‘vida’ ao serem fisicamente representadas, tornando perceptíveis a L suas mudanças internas e externas no decorrer do processo. A quarta imagem assinala um acolhimento curador. As mãos de L recebem a cabeça de I, participante do projeto arteterapêutico. L faz referência, em sua escrita sobre a imagem, à diferença do rosto de I em relação ao rosto retratado na expressão. Este assume um caráter mais simbólico. L afirma que “essa imagem tem mais a ver comigo do que com a criança (I). Ela (a imagem) veio para ‘me curar’”. Chevalier e Gheerbrant consideram o rosto como substituto do indivíduo todo, uma vez que é mais revelador que o resto do corpo. Desse modo, afirmam que “O rosto é o símbolo do que há de divino no homem, um divino apagado ou manifesto, perdido ou reencontrado. O rosto, símbolo do mistério, é como uma “porta para o invisível”, cuja chave se perdeu”. (2002, p. 790, 791). A atitude receptiva das mãos de L, que, no desenho se posicionam de forma a que o observador seja o “dono” das mãos, a observá-las. L escreve, ao observar a imagem, que esta parece referir-se a um poder, uma energia ativada a partir do brincar e do contato com as crianças. Chevalier e Gheerbrant, ao comentar sobre os gestos das mãos e seus simbolismos, indicam que “a mão aberta avançando para frente, com a palma voltada para o céu, [representa] a pacificação, a dissipação de todo o medo” (2002, p. 590). Mala, nos estudos sobre a energia curadora das mãos, afirma que [...] a força das nossas mãos, sem dúvida, não se manifesta apenas como uma força física para disposição do nosso espaço vital, mas manifesta-se já aqui [...] a sua força psíquica, com a qual igualmente concedemos ao nosso meio social espaço e estrutura. Em sua forma mais sutil e pura podemos, por outro lado, experimentar a energia das mãos como uma força restauradora e vivificante através das mão de uma pessoa habilidosa em curas. (1993, p.11) No quinto desenho, L mergulha mais profundamente em seu inconsciente, chegando a um local ao qual nunca havia ido, mas sabia que existia (o final do terreno). Ali, depara-se com animais do subterrâneo, ‘sujos e resistentes’ – baratas -, pessoas e instintos animais amedrontadores. O cão enorme, animal que desperta medo em L, está ligado, à trilogia terra – água – lua, segundo Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 176). Dois dos elementos citados se fazem presentes neste momento do sonho. Na imagem, é retratada a noite, a “lua”, o que indica uma visita a conteúdos do inconsciente profundo. A Lua, como símbolo dos ritmos biológicos, da renovação e do crescimento, é privada de luz própria, refletindo o brilho do Sol. Ela representa a água, o frio e o conhecimento progressivo, indireto. Chevalier e Gheerbrant consideram que A Lua, cujo disco aparente é do mesmo tamanho do Sol, tem na astrologia um papel especialmente importante. Simboliza o princípio passivo, mas fecundo, a noite, a umidade, o subconsciente, a imaginação, o psiquismo, o sonho, a receptividade, a mulher e tudo que é instável, transitório e influenciável, por analogia com seu papel de refletor da luz solar. (2002, p. 564) Fato que chama a atenção L é o próprio fazer artístico, com materiais, estilos e traços variados. Nos comentários sobre os desenhos deste sonho há a referência a um diálogo entre diferentes faixas etárias das personagens apresentadas: mãe e filha; tia e sobrinha; adulto e criança. Esta última aparece de forma mais marcante nas escritas sobre os 3º e 4º desenhos, quando L menciona que a imagem 3 parece ser feita por criança/adulto, e a cabeça da criança no desenho 4 aparenta a de um adulto, mas com tamanho de bebê. Os conteúdos relativos à criança interior e papéis, como filha, arteterapêuta, esposa, sobrinha são trabalhados neste sonho. Exceto a 4ª imagem, todas as outras produzidas a partir deste sonho retratam um local e relacionam-se com materiais artísticos escolhidos por L. O desenho de rosto retorna no sonho apresentado a seguir, sonho 12. Este sonho foi motivado por conflitos existentes entre as participantes do grupo de crianças, que incluíam agressões físicas e verbais. As pesquisadoras refletiram sobre essa questão, em busca de um relacionamento mais agradável e harmonioso entre as meninas. Assim, o sonho apresentado a seguir foi influenciado pela necessidade de compreensão e ajuste destes conflitos no grupo. Durante a narrativa do sonho já surgem reflexões sobre o tema e a relação do sonho com o estágio. Sonho 12 Em casa – GY (ex-mulher de J), conhecidos e familiares dela “invadiram” nossa casa em Brasília. A presença deles não era bem-vinda e nem foi “convidada”. Foram todos ao meu quarto, remexeram minhas coisas – materiais de arte e meu caderno com anotações e trabalhos de “clientes” (meninas do estágio). Usaram pastel oleoso para rabiscar a parede. Eu gritei: “não!” Todos pararam e olharam para mim e eu disse: “meu pai acabou de pintar essa parede!”. Eu me aproximei da parede, e vi, como se tivesse um Raio X, os desenhos que estavam em baixo da pintura. GY estava do meu lado e pôde ver também. Mas então eu deixei que eles rabiscassem [...] Os papéis eu juntei todos, com muita indignação e raiva, sem acreditar que eles estavam invadindo tudo daquele jeito. Saí desse quarto com GY e fui para outro. Estava tentando conversar com ela, ser amigável, vi que seu brinco estava para cair, e fui terminar de tirar. Ela disse “Não!” e recuou. E conseguiu ver atrás da orelha, com a maior facilidade e ajeitou o brinco. Depois comentou sobre uma cirurgia que tinha feito nos olhos para as laterais. Eu observei o resultado da cirurgia, e vi que ficou uma pele melecada e brilhosa nas laterais externas dos olhos, mas que isso possibilitava a ela uma visão mais ampla, como ninguém tinha. (visão do Real). Mas nós nos desentendemos e começamos a brigar com toda a nossa raiva, tapas e gritos, ameaças, dizendo verdades. Quando acordei, percebi que essa nossa briga foi igual à que as meninas do estágio tiveram no último sábado. Eu e R decidimos que vamos ter que fazer algo para tentar ajudar na solução do conflito das duas meninas. E sei que o sonho me diz que para saber como ajudar, primeiro eu vou ter que resolver o meu, que já se arrasta por mais de 8 anos. A distância ameniza um pouco isso, mas sei que com o encontro as ações dela me irritam muito. Antes eu seria capaz de chamá-la de inimiga, hoje é só algo que tenho que resolver. Quatro dias após o sonho, ao diálogo com a imagem, segue escrita e comentários reflexivos. A figura, em geral, não se parece muito com GY, mas a entendo como um símbolo, uma mensagem. Quis retratar e ver esses olhos aumentados, como eu os faria. Passei alguns dias pensando sobre isso antes de escrever. Trata-se de ter uma visão expandida. Olhar para novos lados da questão do conflito que leva a um ato agressivo, violento (físico). Durante a semana, no dia seguinte ao sonho, sonhei com a outra figura feminina com quem eu seria capaz de me irritar o suficiente para chegar a uma agressão. Pensei sobre esses conflitos e o sentimento que tenho por essas 2 pessoas. Descobri que eu me altero porque elas têm sensações negativas por mim, têm prazer em fazer algo ruim que me afete. [...] A figura desenhada, quando comecei, a Figura 20 – Ver e Ouvir, ampliação de horizontes Fonte: Sonho de L. 1ª coisa que fiz foi o ouvido. – e acho que OLHAR e OUVIR são os sentidos que devem se destacar nesse processo, junto com o PENSAR (cabeça/atividade mental, reflexão). No sonho, GY conseguia “ver o que está por trás da orelha”, ou, ver o que realmente incomoda, para poder entender, resolver esses conflitos dentro de mim e, assim, poder ajudar as meninas (crianças) Neste caso, o sonho serviu como um meio de L vivenciar o conflito de modo “real”, com sensações, emoções e ações, sem que tivesse que entrar em conflito físico com alguém. O sonho foi utilizado pelo inconsciente para trabalhar a questão que se apresentou durante o estágio e também levar a uma reflexão mais profunda e transformadora, fazendo com que L percebesse que no conflito há questões internas que são projetadas no outro. Os maus sentimentos dessas outras pessoas vêm como um reflexo do mundo interno de L, do que ela é capaz de sentir de negativo sobre si. GY, pessoa com quem L não tem amizade nem bom relacionamento, foi retratada no desenho (figura 20) com um rosto semelhante ao de L: mais um fato importante para aceitação desses conteúdos rejeitados é ver a forma do antigo “inimigo” ser retratada com a forma aproximada do “eu”. Foi um meio de o inconsciente fazer com que sonho e a criação da imagem sejam entrelaçados e juntos revelem uma mensagem completa. GY surge como uma parte de L que é rejeitada e encontra-se na sombra. Sua imagem torna concreta a figura que acrescenta dados para a reflexão e transformação de L. Assim como a elaboração dessas questões ocorreu para L durante a semana, o mesmo se deu entre as participantes do grupo, que no encontro seguinte já estavam bem, e, inclusive, fizeram juntas a atividade em dupla proposta na oficina arteterapêutica, o que melhorou o relacionamento do grupo. Olhar e ouvir são as ações ressaltadas por L em sua escrita a respeito do sonho e do desenho características que se mostram importantes tanto para resolver e entender esses conflitos pessoais e entre as crianças, como também na atuação do arteterapêuta, contribuindo, assim, para a formação do ser terapeuta de L. O ouvido é símbolo da comunicação, uma matriz e um canal da vida espiritual, órgão da compreensão. (Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 661, 662). Chevalier e Gheerbrant expõem que “O olhar aparece como o símbolo e instrumento de uma revelação. Mais ainda, é um reator e um renovador recíproco de quem olha e de quem é olhado. O olhar de outrem é um espelho que reflete duas almas” (2002, p. 653). Segundo os estudos desses autores, a simbologia do olho se relaciona com o conhecimento e a percepção sobrenatural. Mais diretamente relacionada à imagem do sonho, olhos com aberturas laterais ampliadas, afirmam que A abertura dos olhos é um rito de abertura ao conhecimento, um rito de iniciação. Nas culturas indígenas, abrem-se os olhos das estátuas sagradas para vivificá-las [...]. O olho, de todos os órgãos dos sentidos, é o único que permite uma percepção com um caráter de integralidade (ZAHB). A imagem percebida pelo olho não é virtual, constitui uma cópia, um duplo, material, que o olho registra e conserva. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 653, 656). Nesse sentido, a mensagem do sonho torna-se explicita para a sonhadora L: é preciso entender de modo mais abrangente os conflitos e as questões que envolvem as disputas entre os diferentes lados. Ao transportar o aprendizado que surge a partir das reflexões deste sonho, L pôde igualmente ter uma visão mais ampla sobre os desentendimentos das crianças no ambiente de atendimento arteterapêutico, percebendo que o fato de esses conflitos se fazerem presentes durante a oficina era significativo, pois revelava uma necessidade ou um pedido de ajuda das crianças para ordenar suas relações, uma vez que em vários encontros participantes reclamavam às pesquisadoras que as demais crianças não queriam ser suas amigas. 11 MOMENTO DE REESTRUTURAÇÃO PARA AS MUDANÇAS - MANDALAS As Mandalas ressurgem nos sonhos de L, e atuam como uma ferramenta aliada na integração e reorganização dos conteúdos trabalhados nos últimos sonhos. A seguir, a transcrição do sonho: Sonho 13 Acordei de madrugada, após um sonho um pouco confuso com duas mandalas com elementos. Pensava: ‘Ah, primeiro todos os elementos na terra, depois todos na água’. A sensação de que o sonho estava relacionado com um filme que vi antes de dormir. Pela manhã, L realizou as expressões sobre o sonho: duas mandalas. Observa-se na escrita sobre as mandalas o retorno de algumas temáticas trabalhadas anteriormente em outros sonhos. Mandala 1 Ao fazê-la, me lembrei de figuras indígenas, incas, maias e suas esculturas em pedras. [...] raios de fogo e de luz. As flechas que apontam para o centro, dos 4 elementos, lembram pontas de bico de pena e flechas indígenas. Há uma parte que lembra taco de golfe com bola, ou um animal, com olho. Figura 21 – Mandala Terra Fonte: Sonho de L. Há quatro setores, parece uma hélice que tem direção para girar, relógio marcando o tempo, as bolinhas lembram pedras de marcação, me lembro da ficha que vi em atendimento arteterapêutico sobre o Espaço Sagrado. Sóis e raios irradiam entre os quatro setores vizinhos, como se houvesse uma transformação, alquimia, mistura. [...] Esta seria a mandala da Terra, mas que lembra mais fogo e luz. Mandala 2 Há muitos raios que parecem cabelos, minhocas. Na lateral que circula a mandala também penso em marcações de tempo. As setas, que vão para fora agora, são trançadas e lembram vidro colorido, uma cruz, tudo irradia. A água, em baixo, parece girar. Forças cósmicas do Universo agindo, com vida, irradiantes. As duas mandalas me fazem pensar em ativar os 4 elementos. A 1ª: movimento, caminhada, direcionam-se para o centro que os transforma em energia e sai. Na 2ª, a energia sai para ser captada pelos “receptores” na lateral do círculo. Figura 22 – Mandala água Fonte: Sonho de L. Os elementos Terra e Água são representados e visualizados em duas mandalas, que apresentam divisões em quatro setores principais, sendo consideradas por Fioravanti (2003) como mandalas com base numérica 4 e Mandalas de Quatro Direções. A base numérica 4 é mais voltada à vida material e à construção de base sólida, e se relaciona com o fazer, concretizar, planejar e imaginar. É ligada ao trabalho e à perseverança. Segundo Fioravanti (2003, p. 28), “O número 4 também está ligado ao conceito de organização, escolhas equilibradas, determinação de vencer e criação de uma base sólida para o futuro”. Ao falar das Mandalas das Quatro Direções, Fioravanti afirma que esse tipo de estrutura imagética liga-se a conceitos masculinos e racionais. Tal tipo de mandala trata da “construção de uma estrutura sólida e permanente, que gera a estabilidade e a segurança, é o elemento que dá impulso à atividade”. (FIORAVANTI, 2003, p. 141) Segundo L, em sua escrita sobre as mandalas referentes ao sonho, os elementos apresentados dialogam com outros, como no caso da figura 21, representativa do elemento Terra, que, visualmente, fazem L pensar em luz e fogo. Ainda durante a escrita, L se refere ao movimento existente dentro de cada mandalas, revelando uma direção oposta: duas características da Natureza interna ou dos processos internos. Diante do apresentado, o surgimento dessas imagens em forma de mandala durante o sonho mostra o movimento interno que ocorre neste momento em L: uma nova organização interna, aliada a ações, posicionamento, realização e revela uma solidificação do ser terapeuta em L. 12 O DISCURSO TRANSFORMADOR ARTETERAPÊUTICO MOSTRA-SE NO SONHO O sonho apresentado neste capítulo teve a influência de um filme a que L assistiu antes de dormir. O discurso arteterapêutico de transformação e integração de conteúdos pelo fazer artístico faz parte do enredo do sonho. Sonho 14 Este sonho teve muita influência do filme que assisti antes de dormir: “Desventuras em série’. No filme há 4 figuras principais: o tio malvado, uma garota, um garoto e um bebê. Essas figuras apareceram no sonho e eu fui adicionada aos personagens. O bebê era um menino com ou 5 anos. O tio nos perseguia e tinha um empregado que lutava com a gente. No filme, a grande arma do tio malvado era uma lente presa em armação com formato de olho. Com ajuda da luz do sol ele fazia incêndios com a lente. No sonho, havia um grande coração vermelho, de energia, que ficava no céu escuro. Somente quando as nuvens saíam e eu me colocava de frente para o coração os “poderes” eram ativados. Era uma forma de proteção e de neutralizar a maldade do tio. Um raio de luz vinha do coração no céu, batia no meu Plexo Solar, rebatia 1º no tio, depois nos outros 3 personagens. Em um momento, nós fizemos um círculo. Eu pedi que eles pensassem em algo feliz e fizessem um pedido. O tio disse que não conseguia fazer isso, e não fez. Seu empregado vinha correndo para lutar novamente. Pedi que o tio o impedisse. O empregado, então, ficou somente ali, observando. Eu fiquei vendo os 4 (tio de crianças) pintarem com tinta a óleo em uma grande tela na parede. Fiquei em pé, do lado esquerdo do tio, que estava sentado num banco. Ele fazia uma árvore, somente colocando a tinta de qualquer jeito no dedão da mão direita. Ele não gostou do resultado. O empregado disse que era bom que ele passasse novamente o dedo nas folhas da árvore. O tio fez pequenos toques horizontais e foi ajeitando a árvore. Ficou muito bonita, conforme ele subia, ficávamos todos muito felizes. Quando ele terminou, foi capaz de dar um grande sorriso. Foi como se tivéssemos “feito as pazes”. Ele só conseguiu expressar seu ‘lado bom’, feliz, quando fez arte, transformar-se. Somente com palavras e intenções ele não conseguiu. Olhei, então, para o céu e vi 5 argolas unidas, como as das Olimpíadas, mas sabia que se tratava de nós 5, agora unidos e integrados em um todo. Eu e ele (o tio transformado) andamos pela rua, vimos as argolas no céu, conversamos, depois apareceu, ao meu lado direito, próximo a um pequeno muro de pedras, um disco luminoso vermelho-alaranjado, como se fosse de neon. Mas ainda estava se materializando, era transparente e piscava. Eu mostrei para ele e perguntei: “você também está vendo isso?” Ele disse que sim. Então eu tentei pegar o disco e ele ficou mais sólido. Ficamos maravilhados com ele, e eu o observei bastante, ele devia ter uns 40 a 50 cm de diâmetro. Dentro, os círculos encaixados lembravam engrenagens que trabalham juntas para que o todo funcione. Escrita com reflexão sobre as imagens simbólicas do sonho retratadas por L: Quis retratar o que achei mais importante, simbolicamente, no sonho. O coração que “vem do céu” e é preciso estar alinhado dom ele para receber seu raio e refleti-lo. Na seqüência, ele toca em mim, no tio, no bebê e nos outros 2. Esse toque, essa luz (de amor) começou a “harmonização”, transformação, integração, cura. Mas somente quando o aspecto “negativo, destrutivo, perturbador e “chato” pôde se expressar criando (no sonho foi com arte) pôde transformar-se, melhorar-se, ser aceito e ter felicidade. Achei interessante porque ele usou somente o dedão da mão direita, um ‘distribuidor de energia’, mas que também nos identifica – digital. Ele fez uma árvore que lembrava um pinheiro, com folhas horizontais. Em seguida, após a transposição, aceitação desse aspecto, ele pôde integrarse conosco. Essa união “aqui” transformou o que irradiava no céu, que passou, também, a transmitir essa união recente. O disco, a grande mandala vermelha, luminosa, lembra fractais: o todo repetido nas pequenas formas dentro do todo – a realidade dos seres, das coisas, dos materiais. Também se assemelha a rolos de filme de cinema. A figura (o desenho) ficou bastante “narrativa”. O discurso do sonho foi bastante “arteterapêutico”. Figura 23– Integração e transformação Fonte: Sonho de L. No sonho 14, a proposta e o fazer arteterapêuticos surgem como ferramenta/meio/processo de transformação pessoal. O inconsciente utilizou, durante o sonho, imagens e símbolos do filme Desventuras em série modificados, para se adequarem a um discurso preciso para o momento vivenciado por L. Tal fato revela que o agir arteterapêutico já estava ‘corporificado’ mentalmente e fisicamente (no fazer) em L. No que L chama de “discurso arteterapêutico”, em sua escrita, está incluída a transformação do tio malvado (personagem que representa características reprimidas e negativas do ‘Eu’), que ao final do sonho a acompanha e segura símbolos de integração, união, ciclos, engrenagens de funcionamento, o que revela a aceitação, e integração dessas características e a harmonização e convivência com essa parte de si mesma. Durante o sonho, é lançada uma energia ou Luz de Amor que vem de um coração posicionado no céu. Para Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 280-282), o coração representa o centro, por ser o órgão central do corpo humano; centro da vida, da vontade e da inteligência. É também símbolo dos sentimentos, da afetividade, do amor e do espírito. Liga-se ao nascimento espiritual e possui características femininas, por ser semelhante a um triângulo invertido23. O Amor, conforme Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 46,47), é fonte de progresso, trata da união dos opostos, e não somente da aproximação ou de um elo superficial. O ciclo de transformação pelo qual o personagem do tio malvado passa se refere, também, ao próprio processo vivenciado por L no contato intenso com a Arteterapia. No sonho, ocorre a seguinte seqüência: A energia de amor, vinda de um coração que está no céu, é o primeiro passo para a transformação. Essa luz encontra primeiramente a parte consciente (representada por L), que, ao se alinhar com essa força que vem ‘do centro’, permite que a energia transformadora e curativa seja refletida para outras partes do ser. O personagem do sonho consegue ter mudança de perspectiva e atitude após reconhecer suas limitações e sua ‘essência’ e, somente quando cria, através de recursos artísticos, consegue completar seu ciclo de crescimento, podendo, assim, integrar-se com os outros, viver melhor socialmente, ter ações mais positivas. A imagem criada por esse personagem é uma árvore. A árvore, segundo Chevalier e Gheerbrant, é “símbolo da vida, em perpétua evolução e em ascensão para o céu” (2002, p. 84). Ela representa a comunicação entre os três níveis: o subterrâneo, ou as raízes, o que há nas profundezas; a superfície, o tronco/sustentação/corpo; e as alturas, os galhos que sobem em direção aos céus e à luz. A árvore é um ambiente de vida, de transformação e de convivência de múltiplas formas. Um símbolo que integra todos os elementos da Natureza: Répteis arrastam-se por entre suas raízes; pássaros voam através de sua ramagem [...]. Reúne todos os elementos: a água circula com sua seiva, a terra integra-se a seu corpo através das raízes, o ar lhe nutre as folhas, e dela brota o fogo quando se esfregam seus galhos um contra o outro. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 84) 23 Simbologia apresentada no primeiro deste estudo. A árvore, de acordo com estudos de Chevalier e Gheerbrant (2002), representada é um pinheiro, árvore resistente, símbolo da imortalidade no Oriente. Esses autores afirmam que O pinheiro aparece, na arte, como um símbolo de poder vital. [...] da verdade manifesta [...] de uma força inquebrável [...] símbolo também dos homens que souberam conservar intactos os seus pensamentos, apesar das críticas que os cercavam, porque o pinheiro, ele mesmo, sai vencedor dos ataques do vento e da tempestade (CHEVALIER e GHEERBRANT, 24 2002, p. 718, 719) . Assim, pode-se fazer uma referência ao sonho 13, anteriormente apresentado, no qual as mandalas indicavam a necessidade ou um momento de construção sólida e segura, forte. O sonho ora analisado vem revelar o surgimento de transformações através da criação que representa essas características (o pinheiro). Além dessa temática, a presença dos elementos da natureza é reforçada e reapresentada por meio da simbologia do pinheiro desenhado pelo personagem que sofre transformação no sonho. O dedo polegar da mão direita é a ‘ferramenta’ utilizada para criar a imagem do pinheiro. Esse dedo pode ser considerado uma referência à identidade do indivíduo, uma vez que sua digital é usada como símbolo de individualidade e identificação em documentos, ou como assinatura – uma marca pessoal e única. Para Chevalier e Gheerbrant (2002) esse dedo é o símbolo do poder pessoal, sendo o dedo que permite ao homem pinçar, pegar objetos, esse é o dedo que se opõe aos outros e os encontra. Mala (1993) acrescenta que O Polegar, catalisador na manipulação da energia das mãos, equivale [...] à expressão da vitalidade e ao desejo natural de autoafirmação. Outras características de seu potencial energético são: a presença física, a perseverança, a força de transformação, a intuição e a 25 emoção primitiva. (MALA, 1993, p. 42, 43). 24 25 Grifos do original. Idem. Este sonho (14) fez referências ao processo de transformação pela arteterapia, no qual L surge, dentro da narrativa do sonho, no papel de arteterapêuta, o que mostra que o ser terapeuta está atuante internamente em L, e seu subconsciente informa e reforça as características efetivas da transformação pela Arteterapia. 13 RÉPTEIS, MORTE E RENASCIMENTO - INTEGRAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO Após meses, os répteis ressurgem nos sonhos de L: assim como nos primeiros sonhos (sonhos 1, 2 e 3), eles mantêm atitude ameaçadora. L, para proteger-se, foge, e novas ações ocorrem para que essa etapa seja encerrada, assim como o período de atendimento arteterapêutico ao grupo de crianças, abrindo espaço para uma nova etapa. A seguir, transcrição do sonho: Sonho 15 Eu estava em um shopping com meus pais, meus avôs, era uma cidade do interior, estávamos viajando. Anunciaram que iria acontecer um concurso [...] na cidade. Minha mãe e meu avô se animaram com a idéia e me convenceram a participar. Subi a escada rolante. No andar de cima parecia uma casa com sol de fim-de-tarde entrando. Fui procurar uma roupa para vestir e participar. Vi um grande rabo de jacaré próximo ao chão, parecia de papel marche, com cores pastéis. Escolhi meu vestido (um que tenho [...]) Passei pelo rabo e disse, brincando: “vou pegar esse rabo de jacaré!” e me abaixei, simulando que pegaria. Mas não queria tocá-lo, não queria que ele me visse. Porém, ele me viu, veio me seguindo (eu percebi), acelerei e entrei no banheiro para me trocar e me proteger dele. Cheguei lá e vi que o banheiro era público e tinha abertura dos dois lados, como um corredor, com as portas com um grande vão em baixo. Pensei que não seria um lugar seguro, afinal, o jacaré poderia entrar por baixo. Vi uma porta que era totalmente vedada: era a última, perto do outro lado. O jacaré chegou pelo lado + próximo a essa porta, já transformado em dinossauro, e andando em 2 patas. Corri para a porta, mas pegamos a maçaneta juntos, entrei. Minha mãe pegou uma espingarda e atirou para me defender. Matou o dinossauro, mas também me acertou. Ela e meu pai abriram a porta e nos viram lá. Nesse momento eu soube que (eu) havia morrido. “Minha” cabeça estava lá, solta, parecia de boneca, em meio à pele do dinossauro. Meus pais ficaram em dúvida, viram um furo no meio da minha testa, perceberam que ele havia atravessado toda a cabeça. Eu fiquei como observadora da cena, olhando de “longe” e pensando: “se eu morri, como vou continuar o que ia fazer?”. Então decidi me arrumar e ir para o concurso. Acabei ganhando. Ao final fiz um desenho azulado com uma árvore, parecia giz de cera. [...] Entrei em um corredor, cheguei a um apartamento que estava todo no cimento. Encontrei V e alguns homens e mulheres. Ficamos ali, conversamos. [...] Aos poucos as pessoas foram desaparecendo. Meu avô chegou e colocou sobre uma mesinha o desenho que fiz depois do concurso. Observei o desenho e pensei “quando ele poderia voltar a ser meu?”. O local foi ficando mais estruturado. As paredes ficaram beges e já havia cômodos, uma sala de refeições perto da porta que dava para o corredor do prédio. Todos sumiram e ficamos eu e uma ruiva. Conversamos sobre a morte das outras pessoas (as que estavam lá), foram morrendo 1 a 1. Uma mulher + velha, gorda, cabelos curtos e roupas pretas chegou com uma prancheta, veio conversar com a ruiva. Essa mulher parecia não gostar de mim. Eu fiquei sentada, comendo um pão com manteiga e ouvido a conversa. A velha perguntava à ruiva se ela estava tendo um caso com “ele”. Nesse momento, “ele” chegou. Era o Miguel Falabela. Ele percebeu que seria interessante ouvir a conversa e ficou ouvindo do corredor. Eu fingi que não percebi. Ele entrou usando o que ouviu da conversa, chamando a ruiva de “meu amor, querida...” A gorda fingiu ir embora e ficou ouvindo a conversa dos 2 no corredor. Eu me levantei, ainda comendo o pão, fui ao corredor e disse a ela: “ele ouviu a conversa de vocês” e voltei. Decidi que eu tinha que sair dali, provavelmente seria a próxima a morrer. Fui até a escada (que me lembrou a escada do pensionato de freiras onde morei), vi umas luvas avermelhadas aparecendo entre os degraus, umas vozes femininas que diziam que os outros morreram ali – o chão estava meio rosado. Percebi que não poderia passar por ali. Voltei. Depois resolvi encontrar uma saída e voltei à escada, tentei dialogar, as cabeças apareceram, me disseram que o Falabela e a gorda eram amiguinhos. Eu perguntei a elas quanto ganhavam e se ganhavam bem. Elas se mostraram um pouco mais e disseram, insatisfeitas, que era muito pouco. Ofereci dinheiro se elas me deixassem passar. Fizeram um acordo e aceitaram. Consegui descer as escadas. Escrita sobre duas imagens expressadas após o sonho: 1 - À esquerda, o rabo do jacaré e o dinossauro, à direita minha mão e a do dinossauro pegando a maçaneta. Tive muito medo ao vê-lo no sonho, queria me salvar, me proteger. Achei interessante “morrer” e continuar e depois ser ameaçada de morte e negociar para driblá-la. O rabo do jacaré parece uma cobra, uma pinça. Minha mãe nos matou com um tiro. O dinossauro ficou parecendo um desenho animado, não parece tão ameaçador. Antes de começar, eu sabia que queria fazer a cena com as nossas mãos abrindo a porta. [...] Figura 24 – Reencontro com os répteis Fonte: Sonho de L. Juntos abrimos a porta – para um refúgio e para um fim, morremos juntos, mas continuo meu caminho. 2 – Este desenho foi bastante revelador. Comecei pela escada [...] As mãos têm luvas e saem entre os degraus, são perigosas, seguem um comando pelo interesse de outros, pelo dinheiro. À esquerda: comecei pela cabeça, achei que parecia uma cabeça de Buda, com 3º olho (o furo do tiro) – Fiz a cabeça (o lado de trás). Figura 25 – Morte, Transformação e Renascimento Fonte: Sonho de L. Em seguida comecei a contornar a cabeça com o verde. Lembrei do sonho em que eu segurava a cabeça da menina. Depois foi surgindo o CORPO do dinossauro. Não tinha planejado isso, fiquei um pouco relutante, principalmente porque estava desproporcional. Mas depois achei ‘revelador’: parecia que a cabeça surgia de uma fantasia de dinossauro, quis fazer, ao final, a cabeça do dinossauro. [...] Apesar de ser a minha cabeça morta, com dinossauro morto, parece um surgimento, e o furo parece um adorno, ou símbolo de iluminação. [...] A cabeça parece meditando, adormecida, serena. Consegue tirar a fantasia e se mostrar – o que há por dentro do lagarto: conhecimento e sabedoria. Dias depois, ao experimentar material para oficina arteterapêutica com as crianças, outra imagem foi realizada por L sobre este sonho, utilizando argila e massa acrílica colorida em tons pastéis (figura 26). A experimentação de materiais e modelos Figura 26 – Jacaré argila Fonte: Sonho de L. de oficinas por L foi intensa durante todo o período de estágio supervisionado, para poder oferecer os recursos artísticos e propostas adequados e compreendendo as possibilidades e o manuseio do material. A experimentação é bastante recomendada durante o curso de especialização em Arteterapia, e alguns autores, como Coutinho (2007, pp. 45-50), falam dessa postura e ação necessárias ao Arteterapêuta, que oferece intimidade com os materiais, evitando frustrações e ansiedade dos clientes e do arteterapêuta, que saberá, assim, propor atividades e materiais adequados durante as oficinas arteterapêuticas. Durante a narrativa do sonho 15, elementos já trabalhados em sonhos anteriores retornam, como a fuga, utilizando a porta do banheiro para proteger-se. O ‘dar forma’ a uma árvore ocorre novamente (sonhos 9 e 14). Desta vez, L a faz em tons azulados, após vencer concurso. Na tentativa de assumir o poder, personagens internos traçam estratégias para eliminar L. Esta necessita usar a palavra e a comunicação em negociações financeiras com seus prováveis assassinos. Isso mostra o movimento interno dos vários personagens interiores, que tentam ganhar voz e ação. L utiliza argumentos e o lado racional durante esse processo, ao invés do medo, o que demonstra haver uma nova habilidade nessa fase após a ‘morte’ no sonho. A morte é um tema abordado várias vezes durante o sonho: primeiro L e o dinossauro morrem juntos, com tiro disparado pela mãe da sonhadora. Em seguida, durante o período de estruturação do ambiente físico em que L se encontra (surgimento de cor, paredes, móveis), personagens do sonho morrem e ela se vê novamente ameaçada de morte, por outros personagens e mãos vermelhas. “Uma vez passado o teste inicial e entrando o indivíduo na fase da maturidade da sua vida, o mito do herói perde a relevância. A morte simbólica do herói assinala, por assim dizer, a conquista daquela maturidade”. (HENDERSON, 1996, p. 110-112). A simbologia da mãe pode estar associada à vida e à morte, Segundo Chevalier e Gheerbrant, seu simbolismo é [...] destrutivo na medida em que é a origem de todos os instintos... a totalidade de todos os arquétipos... o resíduo de tudo o que os homens viveram desde os mais remotos inícios, o lugar da experiência supraindividual. [...] Devido à superioridade relativa que procede de sua natureza impessoal e da sua qualidade de fonte, ele pode voltar-se contra o inconsciente nascido dele, e destruí-lo: seu papel é, então, o de uma mãe devoradora, indiferente ao indivíduo, absorvida unicamente pelo ciclo cego da criação. (2002, p. 581, 582) No sonho 15, porém, numa atitude de proteção, cuidado, a mãe mata o que ameaça sua filha, e acaba por atingi-la. A fonte criadora, representada pela figura da mãe, libera a energia necessária para essa mudança/transformação, morte e renascimento. Houve, também, a percepção e representação, através das imagens produzidas por L, principalmente a figura 25, da parte reptílica como pertencente a si mesma, ocorrendo o ‘despir a fantasia de réptil’ e o revelar dessa integração e união, no momento em que o ‘eu’ do sonho e o réptil se unem ao abrir uma passagem (porta) e passam a uma nova condição juntos. A mão, segundo Chevalier e Gheerbrant, pode se transformar em um símbolo de morte e sacrifícios de sangue. A mão é como uma síntese, exclusivamente humana, do masculino e do feminino; ela é passiva naquilo que contém e ativa no que segura. Serve de arma e de utensílio; ela se prolonga através de seus instrumentos. Mas ela diferencia o homem de todos os animais e serve também para diferenciar os objetos que toca e modela.[...] Mesmo quando indica uma tomada de posse ou uma afirmação de poder [...] ela distingue aquele que ela representa, seja no exercício de suas funções, seja em uma situação nova. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2001, p. 592) Este sonho indica o surgimento de uma nova postura de L, uma ‘morte’ ou a troca de atitudes, o renascimento para uma nova fase. Segundo Franz A morte do sonhador significa uma mudança radical, não restando nada da velha pessoa ou da velha atitude. Assim, se você sonha que é assassinado, que leva um tiro [...], ou seja lá qual for o tipo de morte, isso sempre indica que uma mudança radical está próxima. (FRANZ, 2001, p. 59) Esse contexto de morte e renascimento pode ser transportado para as questões mais significativas pelas quais L passava, dentro de seu estágio supervisionado e no seu processo de formação como arteterapêuta. Entende-se, assim, que o sonho indica o início de uma nova fase para as experiências de L, a necessidade de conversa e argumentação para seguir a diante depois da mudança de atitude. Vinte dias após o sonho 15, L tem outro sonho, o último apresentado neste estudo, pois antecede o período de finalização do projeto de pesquisa com as crianças da Vila de Ponta Negra, encerramento de um ciclo e do contato com o grupo. A seguir, a transcrição do sonho: Sonho 16 Havia muita bagunça no meu quarto. Meus pais haviam se mudado: compraram uma enorme casa antiga. Separaram para mim e V um quarto. Nesse quarto tinha um grande armário marrom escuro. Estávamos morando lá há alguns meses. Comecei a arrumar o armário, porque estava com pouco espaço para colocar roupas e materiais de trabalho, criações das meninas do estágio. Peguei uma escada, subi e comecei a tirar as coisas que estavam no maleio do armário. Quando liberei, pude ver, ao fundo, um novo andar, com uma grande sala, armários em todas as paredes. Nessa hora, me lembrei de ter visto isso antes, só que sobre o armário do quarto da minha mãe. Coloquei a mão no “piso” do maleiro do armário e vi que era de cerâmica alaranjada, um piso firme. Subi e andei por lá, maravilhada e feliz com a descoberta desse novo lugar, cheio de espaço para colocar as coisas (minhas e das crianças). Senti que era uma passagem secreta. E que algumas coisas que eu guardava impediam que eu visse tudo isso que já estava lá, construído. Desci, animada, chamei meus pais para verem. Subi a escada, mas foi um pouco mais difícil de entrar lá, meus pais me deram um empurrãozinho. Depois apareceram em cima, comigo. Assim como eu, eles exploraram o lugar, maravilhados e surpresos. Para a direita, descobri novos cômodos, era uma casa inteira, secreta, construída acima da nossa. Sobre o quarto em que eu dormia havia outro quarto, espaçoso, com uma cama de casal e amplas janelas, uma varanda. Tinha uma salinha decorada com peças em tons de verde e cerâmica, madeira. Algumas esculturas de gnomos e objetos ‘exóticos’ que faziam sons, um parecia um separador de ovos, outros anteninhas, eram metálicos. Achei o lugar interessante e bonito. Descobri, ainda, outro quarto, que ficava sobre o da minha mãe e um banheiro. Vi uma escada de cimento que descia para um local com grama, ainda dentro da casa. A grama estava verde e, onde batia o sol, estava seco. Fiquei pensativa sobre essa escada, ela descia para o nível da casa que conhecíamos, mas ao andar pela casa, não a víamos, estava em um lugar, no centro da casa, cercado por paredes. Todos descemos essa escada. Ela dava para em uma sala com paredes e portas de vidro. Algumas pessoas chegaram e fizemos um almoço lá. [...] Acordei. Fiquei muito feliz com o sonho, as descobertas, partilhá-las, os novos espaços, um novo ‘nível’. Escrita sobre a expressão plástica referente ao material onírico apresentado: Quis fazer o momento da descoberta do novo espaço. Quando terminei o desenho, pensei: fiz o armário em cima e o de baixo, mas esqueci que a passagem era pelo maleiro. A ‘descoberta’ ficou exposta no desenho e não enquadrada pelo maleiro. Fiz os armários limpos e espaçosos, prontos para uso. Logo que acordei, lembrei de um livro de sonhos que tenho, que fala sobre a descoberta de novos cômodos: “encontrar um cômodo diferente significa dar vazão a um potencial oculto. Esse tipo de sonho é um convite para sentir a alegria de descobrir novos talentos e capacidades [...] Se você encontrar toda uma ala nova numa casa que julgava conhecer bem, terá pela frente um período de grande expansão na vida. Isso pode estar associado ao começo de um novo Figura 27 – Descoberta de novos espaços Fonte: Sonho de L. relacionamento ou projeto, ou a um grande e profícuo desenvolvimento da consciência”26. 26 In: DENING, 2000, p.28,29. Este último sonho, que ocorreu no período próximo ao término do projeto arteterapêutico com as crianças em situação de risco social, revela uma ampliação da consciência de L e o encontro de uma construção sólida e pronta para uso, num nível mais elevado. Neste sonho, L descobre novos cômodos e o espaço necessário para guardar/armazenar o que foi produzido pelas crianças do estágio. O armário pode referir-se à própria mente de L, que revela, neste momento, a construção de novos espaços mentais, organizados e amplos, após meses de trabalho pessoal e atenção aos sonhos, à criação, aos processos arteterapêuticos, dentro de sua construção do ser terapeuta. Em sua narrativa do sonho, L fala de sua felicidade ao acordar, o que destaca que o sonho e seu conteúdo simbólico são capazes de alterar o humor do sonhador, e revelar aspectos, dando um direcionamento na interpretação do sonho (por exemplo, se o conteúdo foi considerado positivo ou negativo na perspectiva do sonhador). Sobre este aspecto, Jung, em seu livro O Homem e seus Símbolos, coloca que [...] o homem civilizado pode, por vezes, observar que um sonho (de que talvez ele nem se lembre) é capaz de piorar ou melhorar seu humor. O sonho foi “compreendido”, só que de uma maneira subliminar. E é isto, aliás, que acontece habitualmente. (JUNG, 1996, p. 52) Surge, na narrativa do sonho, a vontade e a ação de L em compartilhar, socializar, sua descoberta, vivenciando, assim, um momento de união e integração. No período em que o sonho 16 ocorreu, L e sua colega de estágio, R, decidiram encerrar o período de atendimentos arteterapêuticos ao grupo de crianças, abrindo espaço para um fase de reflexão, análise e criação de textos e articulação de idéias sobre as vivências compartilhadas com o grupo, surgindo um olhar mais claro, que promoveu entendimento e crescimento. 14 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao concluir este trabalho, ressalto a importância do trabalho com sonhos como ponte para o inconsciente no processo arteterapêutico. De igual relevância é o significado das mensagens e imagens simbólicas que emergem nesse movimento e revelam o mundo interno do sonhador e suas questões. A expressão plástica do conteúdo interno permite que este seja revelado, e abre espaço para o diálogo, a compreensão e a integração, para que, assim, se efetive o crescimento da personalidade como um todo. Os dados apresentados neste trabalho mostram que o contato com as crianças do projeto de estágio, aliado ao atendimento arteterapêutico individual de L criaram condições necessárias para que conteúdos relevantes emergissem nos sonhos de L e fossem trabalhados e integrados num movimento intenso de transformação, criação e autoconhecimento. Esse processo arteterapêutico possibilitou um desenvolvimento dos potenciais criativos de L, uma vez que realizou experimentações de materiais artísticos diversos para oferecer ao grupo de estágio, e criou as imagens dos sonhos, que, sem a referência dessas imagens internas ao sonhar, talvez não ocorressem com tal intensidade e materialidade. No processo de formação do ser terapeuta em L, várias questões foram trabalhadas por meio da arteterapia, que utilizou de modo intenso, dentro da Oficina Criativa, o trabalho com sonhos. No decorrer do processo, atitudes de L como medo, ansiedade e preocupação foram abrindo espaço para uma atitude mais centrada, de acolhimento, escuta, leveza, flexibilidade e atenção ao momento presente, características importantes para o arteterapêuta, revelando, assim, a construção sólida do ser terapeuta neste processo. Em todos os sonhos, as etapas da Oficina Criativa® foram importantes para tornar a experiência de L algo efetivo e transformador. Escrever, desenhar e dialogar com os conteúdos provenientes dos sonhos, numa visão arteterapêutica, foi significativo, pois todos esses registros e criações trouxeram questões específicas e variadas dentro de um mesmo sonho, muitas vezes criando uma teia complexa e revelando diferentes níveis e camadas de acesso ao conteúdo do inconsciente. Durante a trajetória de formação do ser terapeuta em L descrita neste trabalho, foi possível notar que os sonhos apresentaram, no momento exato, as temáticas necessárias para o desenvolvimento do ser terapeuta, e promoveram o entendimento e as transformações necessárias da sonhadora a partir do diálogo com os conteúdos emergentes nessas vivências arteterapêuticas, e, durante o processo, este olhar e dialogar foi, aos poucos, lapidado, aperfeiçoado e aprofundado. Para ressaltar essa característica importante do diálogo interno com os conteúdos do inconsciente que são acessados durante o sonho, e trazem questões significativas para o sonhador no momento exato, Franz reforça que O sonho é sempre único, e sempre vem no momento certo. É uma mensagem dos poderes do instinto, os poderes do inconsciente coletivo, uma mensagem que chega num momento preciso durante uma certa noite, dirigida especificamente para o sonhador. Os alquimistas diriam que é uma mensagem do único para o único. Quer dizer, do centro divino da psique para o indivíduo único que vive numa situação única. (2001, p. 83) Os últimos sonhos, imagens e reflexões de L mostram que houve um momento de transformação, de mudança de atitude e ampliação da consciência. A vivência intensa deste processo ocorreu em vários ambientes e contextos: durante os módulos do curso de Especialização em Arteterapia, no atendimento pessoal de L, na realização do projeto arteterapêutico com as crianças, nas reflexões de L, ao dormir e sonhar, escrever, desenhar e dialogar com os sonhos. Isso fez com que se criasse uma teia que entrelaçou conteúdos e experiências e ‘iluminou’ os pensamentos de L, contribuindo para uma transformação efetiva e verdadeira. As crianças participantes do projeto de estágio supervisionado do curso de Arteterapia apresentaram, ao final do processo, atitude participativa, entrega e envolvimento com a proposta, maior respeito aos limites e regras dentro do ambiente arteterapêutico, maior atenção e a capacidade de compartilhar tarefas e materiais com harmonia. Finalmente, de acordo com os resultados obtidos nesta pesquisa sobre o processo de formação do ser terapeuta de L dentro da prática em ateliê terapêutico, durante o período de estágio supervisionado, atendendo ao grupo de crianças em situação de risco social, L, ao expressar material onírico, visualizar, dialogar, interagir, re-significar e dar novos sentidos aos conteúdos emergentes de seu inconsciente, possibilitou tocar seu “eu”, o íntimo de seu ser, e espaços desconhecidos de sua mente, e, desse modo, contribuir significativamente na construção do ser ou eu terapeuta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALLESSANDRINI, Cristina Dias. 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