Revista Brasileira de História da Educação
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Revista Brasileira de História da Educação
Revista Brasileira de História da Educação Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime Revista Brasileira de História da Educação Publicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE Revista Conselho Diretor Dermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagas de Carvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo Campos Mendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ). Comissão Editorial José Gonçalves Gondra (UERJ); Marcos Cezar de Freitas (PUC-SP); Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (USP); Maurilane de Sousa Biccas (USP). Conselho Consultivo Membros nacionais: Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina Venâncio Mignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SEDMG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr. (UFU e Centro Universitário do Triângulo); Denice B. Catani (USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto Luiz Alves (UEMS); Jane Soares de Almeida (UNESP); José Silvério Baia Horta (UFRJ); Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS); Maria Arisnete Câmara de Moraes (UFRN); Maria de Lourdes de A. Fávero (UFRJ); Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI); Maria Helena Camara Bastos (UFRGS); Maria Stephanou (UFRGS); Marta Maria de Araújo (UFRN); Paolo Nosella (UFSCAR). Membros internacionais: Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Portugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); Dario Ragazzini (Itália); David Hamilton (Suécia); Nicolás Cruz (Chile); Roberto Rodriguez (México); Rogério Fernandes (Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina); Thérèse Hamel (Canadá). COMERCIALIZAÇÃO Editora Autores Associados Av. Albino J. B. de Oliveira, 901 CEP 13084-008 – Barão Geraldo Campinas (SP) Pabx/Fax: (19) 3289-5930 e-mail: [email protected] www.autoresassociados.com.br Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE A Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é uma sociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica de direito privado. Tem como objetivos congregar profissionais brasileiros que realizam atividades de pesquisa e/ou docência em História da Educação e estimular estudos interdisciplinares, promovendo intercâmbios com entidades congêneres nacionais e internacionais e especialistas de áreas afins. É filiada à ISCHE (International Standing Conference for the History of Education), a Associação Internacional de História da Educação. Diretoria Nacional Presidente: Diana Gonçalves Vidal (USP) Vice-presidente: Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) Secretária: Libânia Xavier (UFRJ) Tesoureiro: Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Diretores Regionais Norte: Titular: Maria das Graças Sá Peixoto Pinheiro (UFAM), Suplente: Andréa Lopes Dantas (UFAC) Nordeste: Titular: Ana Maria de Oliveira Galvão (UFPE) Suplente: Jorge Carvalho do Nascimento (UFSE) Centro-Oeste: Titular: Maria de Araújo Nepomuceno (UCG) Suplente: Regina Tereza Cestari de Oliveira (UFMS) Sudeste: Titular: José Carlos de Souza Araújo (UFU) Suplente: Rosa Fátima de Souza (UNESP) Sul: Titular: Maria Elisabeth Blanck Miguel (PUC-PR) Suplente: Flávia Werle (UNISINOS) Secretaria Centro de Memória da Educação Faculdade de Educação Universidade de São Paulo Av. da Universidade, 308 – Bloco B Terceira Fase – Sala 40 CEP 05508-900 – São Paulo-SP Tel.: (11) 3091-3194. E-mail: [email protected] ISSN 1519-5902 janeiro/junho 2004 no 7 H Revista Brasileira de ISTÓRIA da EDUCAÇÃO SBHE Sociedade Brasileira de História da Educação Revista Brasileira de História da Educação ISSN 1519-5902 1º NÚMERO – 2001 Editora Autores Associados – Campinas-SP EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA. Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira Av. Albino J. B. de Oliveira, 901 Barão Geraldo – CEP 13084-008 Campinas - SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930 e-mail: [email protected] Catálogo on-line: www.autoresassociados.com.br Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho” Dermeval Saviani Gilberta S. de M. Jannuzzi Maria Aparecida Motta Walter E. Garcia Diretor Executivo Flávio Baldy dos Reis Coordenadora Editorial Érica Bombardi Assistente Editorial Aline Marques Revisão Kelly Lima Cleide Salme Ferreira Osmar A. Savioli Junior Diagramação e Composição Ednilson Tristão Projeto Gráfico e Capa Érica Bombardi Impressão e Acabamento Gráfica Paym SUMÁRIO EDITORIAL 7 ARTIGOS Monteiro Lobato e seus leitores: livros para ensinar, ler para aprender Marco Antonio Branco Edreira 9 Educação e civismo: o movimento escoteiro em Minas Gerais (1926-1930) Adalson de Oliveira Nascimento 43 Diderot e o sentido político da educação matemática Maria Laura Magalhães Gomes 75 A Cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação Iole Maria Faviero Trindade O plano de estudos das escolas públicas elementares na Província do Paraná: ler e escrever, para Deus e o Estado Ariclê Vechia 109 135 A Reforma Universitária e a criação das Faculdades de Educação Macioniro Celeste Filho 161 Leowigildo Martins de Mello e a organização da Escola Normal de Cuiabá Elizabeth Figueredo de Sá Poubel e Silva 189 RESENHAS Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária Por André Luiz Paulilo 215 Relações de força: história, retórica, prova Por Irlen Antônio Gonçalves 223 ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 229 CONTENTS 231 Editorial A Revista Brasileira de História da Educação chega no seu sétimo número. Esta publicação da Sociedade Brasileira de História da Educação entra numa fase importante de sua consolidação, com apenas três anos de existência foi avaliada pela CAPES com um A Nacional. Pretendemos continuar investindo para que a “nossa” publicação alcance cada vez mais padrões de qualidade nacional e internacional. A adesão contínua da comunidade de historiadores da educação brasileira e a sua aposta neste projeto editorial foram fundamentais para conseguirmos este resultado. Assim, a revista reafirma-se como um lugar de destaque e de difusão dos trabalhos produzidos em história da educação no Brasil, garantindo a importante manutenção de sua periodicidade. Este número traz para os leitores e pesquisadores da história da educação sete artigos e duas resenhas de grande fôlego, com temáticas diversificadas e significativas para o campo. Foram abordados temas sobre: educação e civismo; educação matemática; planos de estudo de escolas públicas provinciais; cartilha maternal; práticas de leitura; reforma universitária e criação de faculdades de educação; e criação de escolas normais. A comissão editorial convida seus pares para que continuem fortalecendo este projeto acadêmico nacional, espaço de divulgação de resultados de pesquisas conclusas e em andamento, reafirmando assim o perfil do “nosso” periódico, aberto a consensos, a diferenças e ao diálogo de um campo de pesquisa plural, dinâmico e rico. Comissão Editorial Monteiro Lobato e seus leitores livros para ensinar, ler para aprender Marco Antonio Branco Edreira* Trata-se de um estudo sobre práticas de leitura de leitores de Monteiro Lobato que lhe enviaram cartas nas décadas de 1930 e 1940. Essas práticas estão relacionadas ao caráter didático dos livros infantis do escritor. A partir das idéias de Chartier e Certeau, foram analisadas as maneiras pelas quais o autor utilizou seus livros como forma de ensinar e os leitores utilizaram os livros para aprender. CARTAS DE LEITORES; PRÁTICAS DE LEITURA; LITERATURA INFANTIL; LIVRO DIDÁTICO; HISTÓRIA DA LEITURA. This is a research about practices of reading from Monteiro Lobato’s readers. These readers used to send him letters during the 30’s and the 40’s. These practices are related to the pedagogical character of the writer’s children books. Based on ideas of Chartier and Certeau, it was analysed how the author used his books like as a way to teach and how the readers used them to learn. READER LETTERS; PRACTICES OF READING; CHILDREN’S LITERATURE; SCHOOLBOOK; HISTORY OF READING. * Mestre em história e historiografia da educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). 10 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Introdução Todo estudo sobre a história do livro e da leitura tem algum interesse para história da educação, ainda que indireto. Compreender o uso do livro como instrumento de ensino e a prática de leitura vinculada ao aprendizado tem uma importância fundamental. Este artigo trata dessas duas questões a partir do estudo das características didáticas dos livros de Monteiro Lobato e das apropriações, relativas à aprendizagem, de um conjunto de leitores desses livros1. Trata-se de um conjunto de leitores comuns2 que se corresponderam com o autor nas décadas de 1930 e 1940. Sua faixa etária se estende dos 8 aos 16 anos e a procedência é muito variada, abrangendo todas as regiões brasileiras, com predominância da Região Sudeste. Suas cartas encontram-se arquivadas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB)3 e muitas fornecem indícios das apropriações relativas à aprendizagem através das leituras de Lobato. De acordo com Chartier, para a compreensão das práticas de leitura é necessário levar em conta a produção do texto, a produção do suporte no qual o texto está inscrito e a apropriação dos leitores. Daí a necessidade de reunir duas perspectivas, freqüentemente separadas: o estudo da maneira como os textos, e os impressos que lhes servem de suporte, organizam a leitura que deles deve ser feita e, por outro lado, a recolha das 1 2 3 Este artigo é composto, com algumas modificações, pelo terceiro capítulo da dissertação À caça do sentido: práticas de leitura de leitores de Monteiro Lobato (1926-1946). São Paulo: FEUSP, 2003. A denominação leitor comum é utilizada por Darnton em seu estudo sobre as cartas de um leitor de Rousseau, Jean Ranson. Para ele, esse leitor possui características que o faz assim, isto é, “desconhecido, que não tinha nada de extraordinário e que fala de suas leituras ao contar sua vida cotidiana” (Darnton, 1996, p. 144). As cartas fazem parte do Dossiê Monteiro Lobato, pertencente ao Arquivo Raul de Andrada e Silva. Este foi doado pelo sobrinho do titular, Guy R. de Andrada, em março de 1993, com inúmeros documentos, principalmente relativos ao trabalho do titular do arquivo. Raul de Andrade e Silva foi historiador e professor da USP. Nasceu em São Paulo em 1905 e morreu em 1991. Colaborou em revistas acadêmicas e jornais, além de membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Paulista de Letras (cf. Batista, pp. 55, 97). monteiro lobato e seus leitores 11 leituras efectivas, captadas nas confissões individuais ou reconstruídas à escala das comunidades de leitores [Chartier, 1988, pp. 123-124]. Para isso, mais tarde, o autor propõe que o historiador transite por diversas áreas: O historiador [da leitura] deve poder vincular em um mesmo projeto o estudo da produção, da transmissão e da apropriação dos textos. O que quer dizer manejar ao mesmo tempo a crítica textual, a história do livro e, mais além, do impresso ou do escrito, e a história do público e da recepção [Chartier, 1999, p. 18]. Por isso, é necessário tanto conhecer os livros do autor quanto as apropriações dos leitores indicadas nas cartas. Ambos os aspectos são importantes para compreensão dos sentidos dados pelos leitores. Assim, são apresentadas as características dos livros infantis de Monteiro Lobato que fazem deles supostamente um instrumento pedagógico, principalmente a partir de alguns estudos relativos ao autor e sua obra, mas também através das edições originais dos livros. Considerou-se importante, também, conhecer alguns aspectos da atuação do escritor que explicitam o vínculo estabelecido com a escola. Livros para ensinar O vínculo entre Lobato e a escola pode ser entendido pelas relações entre literatura infantil e escola. Historicamente, essa ligação parece ser inquestionável, como atesta Lajolo: Na tradição brasileira, literatura infantil e escola mantiveram sempre relação de dependência mútua. A escola conta com a literatura infantil para difundir [...] sentimentos, conceitos, atitudes e comportamentos que lhe compete inculcar em sua clientela. E os livros para crianças não deixaram nunca de encontrar na escola entreposto seguro, quer como material de leitura obrigatória, quer como complemento de outras atividades pedagógicas, quer como prêmio aos melhores alunos [Lajolo, 2002, p. 66]. 12 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Mas é preciso compreender como esse vínculo se dá através da obra infantil de Monteiro Lobato, isto é, como a estratégia4, tanto autoral como editorial, manifestou-se de modo a vincular-se à instituição escolar. O uso da escola como um dos componentes da estratégia do escritor começou através de sua atuação editorial. O vínculo mais explícito dessa atuação dá-se através da publicação do seu segundo livro infantil, Narizinho arrebitado, em 1921, produzido para ser usado nessa instituição. No entanto, vale observar que no primeiro livro, publicado um ano antes, A menina do narizinho arrebitado: livro de figuras por Monteiro Lobato com desenhos de Voltolino, pode-se observar uma pequena relação com uma possível concepção escolar de livro. É que esse primeiro livro foi feito, como o próprio nome diz, como um livro de figuras. Foi anunciado como álbum colorido, assim como Jeca Tatuzinho mais tarde. Esse tratamento dado ao livro pode ser associado ao surgimento, na França, em fins da década de 1920, dos álbuns do Pére Castor, de Paul Faucher. Segundo Coelho, esses álbuns são os primeiros do gênero e estão ligados ao movimento da Escola Nova. Tal como é hoje compreendido, o “álbum de figuras” nasceu em decorrência do movimento da Escola Nova (ou da Educação Renovada) que, basicamente, procurou criar atividades didáticas que levassem a criança a uma participação mais ativa no processo de sua própria educação. [...] A invenção/produção desses álbuns surgiu em conseqüência das atividades do educador e orientador pedagógico, Paul Faucher (1898-1967), desde os anos 20, trabalhando junto a órgãos oficiais, de controle para seleção e aprovação de livros didáticos, e por isso mesmo integrado no movimento da Escola Nova que, na época começava a se organizar na Europa [Coelho, 1987, pp. 135-136]. 4 Tomo o conceito na acepção de Certeau, para o qual estratégia é “...o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos de pesquisa)” (Certeau, 1994, p. 99). monteiro lobato e seus leitores 13 Faucher de fato esteve ligado às idéias da Escola Nova, atuando como editor. Procurou, através dos álbuns de leitura, uma forma de atingir as crianças antes e no início de sua atividade leitora, através de um livro em que houvesse preponderância das imagens e um caráter de atividade. A dominância de imagens de nada valeria se não houvesse uma interação entre elas e os textos, de tal maneira que levassem os leitores a “reunir informações, questionar, memorizar, fazer leitura da história – antes, durante e depois da ‘verdadeira’ leitura” (Chartier & Hébrard, 1995, pp. 417-418). Embora o livro de Lobato não tenha todas as características do futuro álbum do Pére Castor, já demonstra o mesmo tipo de preocupação que orientou Faucher. Mas é interessante notar que essa preocupação dissipa-se toda no próximo livro, feito como “segundo livro de leitura para uso das escolas primárias” e, portanto, com a preocupação explícita de entrar no mercado escolar. Manteve, para isso, como já foi visto, as mesmas características de livros infantis anteriores que já faziam sucesso na escola e que nada tinham a ver com a publicação de 1920. A grande preocupação em relação ao segundo livro foi a forma de distribuição. Ela foi impulsionada através da aquisição pelo governo de São Paulo de inúmeros exemplares em 1921: Buscando dar maior solidez à empresa, Lobato envereda pelo caminho já trilhado por quase todas as editoras, investindo no gênero didático, de consumo obrigatório. De início, lança um livro de leitura que, submetido à aprovação do governo de São Paulo, foi aceito e adotado para uso no segundo ano das escolas públicas. Sob o título Narizinho Arrebitado, acabou recebendo elogios da crítica e do professorado, figurando no balanço de 1921 com uma edição de cinqüenta mil exemplares [Azevedo, Camargos & Sacchetta, 1997, p. 130]. É comum, nas biografias de Lobato (Cavalheiro, 1962, p. 158; Lajolo, 2000, p. 61; Azevedo, Camargos & Sacchetta, 1997, p. 161), tratarem do episódio que marca sua entrada maciça no mercado infantil como um acontecimento fortuito. Os autores narram que Washington Luís, governador de São Paulo, visitava as escolas junto com Alarico Silveira, 14 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 secretário do Interior, em 1921, e observando um livro que estava escangalhado em todas elas, disse para comprá-lo, pois se estava assim era porque as crianças gostavam muito dele e o liam bastante. Esse livro era Narizinho arrebitado. Há que se verificar, entretanto, que Alarico Silveira era amigo pessoal de Lobato e mesmo o governador tinha antigas ligações com o autor. Koshiyama observa que: Antes do fim de 1921 a edição de 50.000 exemplares do Narizinho estava totalmente vendida, devido a um comprador providencial: o governo do Estado de São Paulo. [...] No seu relato [o episódio envolvendo o governador relatado acima], Lobato omitiu sua íntima amizade com Alarico Silveira e suas sempre ótimas relações com Washington Luís, a quem devia sua promoção ao cargo de promotor público de Areias, no distante 1907 [Koshiyama, 1982, p. 83]. Para divulgar o livro, o autor distribuiu, gratuitamente, 500 exemplares às escolas públicas de São Paulo (Azevedo, Camargos & Sacchetta, 1997, p. 161). Antes, aparentemente, Lobato via-se às voltas com o problema da venda dessa edição. Basta lembrar que o autor tinha uma edição de mais de 50 mil livros para escoar pelo mercado. E conseguiu, vendendo mais da metade ao governo de São Paulo. O autor não diz de que forma, isto é, com qual estratégia, mas dificilmente ele arriscaria fazer uma edição tão grande para o período sem garantia de que seria bem-sucedido.Talvez já houvesse algum acerto com o governo do estado. Nenhuma das pesquisas aponta essa questão, que entretanto seria de interessante investigação. É importante ressaltar, também, que a edição foi inteiramente dedicada às escolas. A intenção do autor foi a de que ela servisse como segundo livro de leitura. Monteiro Lobato teve o mérito de perceber a necessidade de conquistar um público exposto à produção alienígena. Para isso, tratou de cultivar o leitor infantil, inclusive introduzindo literatura nas escolas primárias, pois reconhecia a receptividade das crianças a quaisquer informações ministradas. O primeiro livro que editou para crianças, Narizinho Arrebitado, trazia o frontispício esclarecedor: “literatura escolar” [Koshiyama, 1982, p. 81]. monteiro lobato e seus leitores 15 Na verdade, como já foi visto, não se trata do primeiro livro de Lobato para crianças, mas do segundo. Dois anos depois, a entrada de Monteiro Lobato no mundo escolar parece consolidada. Ele comenta com Rangel: “Tomo nota do teu plano de traduções. Estamos refreando as edições literárias para intensificação das escolares. O bom negocio é o didático. Todos os editores começam com a literatura geral e por fim se fecham na didática. Veja o Alves” (Lobato, 1972, p. 260). E acrescenta mais tarde, em tom que não parece valorizar o uso dos livros considerados didáticos e, conseqüentemente, a escola: “Só cuidaremos agora de cartilhas, gramáticas, aritméticas – todos instrumentos de torturar crianças” (idem, p. 265). Não é à toa o reconhecimento da importância do negócio didático. Segundo relato de Koshiyama, a valorização do segmento dos didáticos no mercado editorial é muito grande: “Uma sondagem feita junto a 15 das 20 editoras de São Paulo, em 1920, mostrava a predominância dos livros didáticos, cerca de 600.000 exemplares num total de 900.000 editados” (Koshiyama, 1982, p. 82). A autora tenta explicar o que devem ser considerados livros didáticos na época, mas como será visto a seguir, essa não é uma tarefa tão simples. Pela nomenclatura usada na classificação dos livros editados pelas empresas paulistas, deduzia-se que livros didáticos eram os usados nos cursos primários e secundários. Pois havia os “livros didáticos” e os referentes a Direito, Medicina, comércio, literatura de cordel, os livros de conhecimentos úteis e os livros de literatura [idem, ibidem]. Ela ressalta, ainda, o fato de não ser explicado o que são os “livros de conhecimentos úteis”, mas que os livros de literatura são os considerados de “boa literatura”. Diz, também, que, apesar das deficiências do levantamento, ele “permite concluir que havia predominância do livro didático, seguindo uma tendência editorial, já observada no passado, de produzir para um público leitor previsível” (idem, ibidem). Na esteira desse mercado dos livros didáticos, além de Narizinho arrebitado, publica, em 1921, Fábulas de Narizinho. No ano seguinte, sai outra edição do mesmo livro, reformulado e com outro nome, Fábulas. Na folha de rosto dessa edição indica-se: “Obra aprovada pela Dire- 16 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 toria da Instrução Pública do Estado de São Paulo”. Quatro anos depois, em 1926, ainda expõe ao amigo Rangel seus vínculos com a instituição: “A edição do Hans Staden (recebeu?) foi um triunfo – 8.000 em três meses – e está entrando nas escolas” (Lobato, 1972, p. 291). Esse vínculo com a escola deve ser entendido também a partir das ligações com alguns expoentes da Escola Nova. No período em que ficou nos EUA, Lobato conheceu aquele que seria um dos maiores nomes associados a esse movimento, Anísio Teixeira, que para lá viajou fazendo cursos no Departamento de Educação da Universidade de Colúmbia. A amizade que fizeram nesse período durou a vida toda de Lobato. Cassiano Nunes, num estudo sobre as relações postais entre ambos, aponta a existência de 40 cartas, sendo 23 de Teixeira e 17 de Lobato, entre 1928 e 1946 (Nunes, 1986, p. 8). Essa relação parece ter contribuído para estreitar os vínculos de Lobato com a instituição escolar. Segundo o que relatam os leitores que fazem parte dos documentos analisados nesta pesquisa, por exemplo, os dois fizeram algumas visitas juntos à escolas do Distrito Federal à época em que o educador foi diretor geral do Departamento de Educação. Além de Anísio Teixeira, outros educadores também foram para os EUA. Foi o caso de Lúcia Casassanta, educadora mineira, que também viajou no ano de 1927 junto com outras quatro professoras de Minas Gerais. Era professora no estado e foi escolhida para um curso na Universidade de Colúmbia, mesmo local freqüentado por Teixeira. O grupo foi escolhido durante a gestão de Francisco Campos, então também identificado com os ideais escolanovistas. A ida desse grupo para os EUA demonstra que não foi por acaso a influência norte-americana nos educadores brasileiros. Segundo Maciel, a partir de levantamento de Vidal, foram 23 os professores e pesquisadores brasileiros que estudaram no Teacher’s College da Universidade de Colúmbia, incluindo Anísio Teixeira. Isso, por si só, demonstra claramente os Estados Unidos como um país de referência educacional no período. Muitos desses educadores depois tiveram preponderante papel na educação brasileira e foram os responsáveis por trazer muitas idéias vigentes naquele país para terras brasileiras. Ao menos foi esse o caso de Anísio Teixeira e de Lúcia Casassanta, que se especializou em metodologia da linguagem e foi monteiro lobato e seus leitores 17 responsável por influenciar diversas gerações em Minas Gerais. Autora de uma de uma importante cartilha na década de 19405, Anita Fonseca afirma, no prefácio de 1945, a importância de Casassanta na formação da área: Em Minas, desde algum tempo, se vem adotando o método global pelo processo de “contos ou historietas”. Devemos, porém, a sua divulgação entre nós, com técnicas mais aperfeiçoadas, à professora Lúcia Casassanta, que a partir de 1929, através de eficiente curso de Metodologia da Língua Pátria, ditado na Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte, vem imprimindo nova e inteligente orientação ao ensino desta matéria, baseando-a em sólidos princípios científicos [apud Leite, 2002, pp. 482-483]. O próprio Anísio Teixeira confirma a importância desse intercâmbio, em 1934: Os primeiros passos de uma nova política educacional brasileira, primeiros e indispensáveis, são os de buscar, fora do Brasil, elementos para a renovação de nossa cultura e de nossas técnicas. Remessa de estudantes de mérito para o estrangeiro e contrato de professores estrangeiros para novas escolas e novas faculdades. Não há como sair daí. [...] O problema brasileiro é o de readaptar a civilização ocidental ao nosso meio e às nossas condições. [...] Aí deveríamos, sempre, possuir algumas dezenas de professores e estudantes, como patrulhas avançadas da nossa curiosidade científica e do nosso empenho em progredir [Teixeira, 1935, pp. 25-28]. Mas não é só a Teixeira que o escritor estava ligado. Fernando de Azevedo, outra grande figura do movimento escolanovista, também fazia parte de suas relações. Em 1923, Lobato tornou-se o editor da Revista da Sociedade de Educação de São Paulo, da qual o educador fazia parte. Além disso, Azevedo foi o editor da coleção Biblioteca Pedagó- 5 Trata-se da cartilha O livro de Lili (método global), publicada pela editora Francisco Alves em 1945. 18 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 gica Brasileira, em que diversos livros de Lobato estavam presentes. O escritor conheceu Azevedo antes de Teixeira. Foi ele quem apresentou o amigo que conhecera nos Estados Unidos a Azevedo, como pode ser visto numa carta transcrita por Nunes. Ela é interessante, não apenas por isso, mas porque nela também fica evidente a influência decisiva que a experiência norte-americana teve em suas vidas: “... Anísio, creio, sentiu e compreendeu a América e aí te dirá o que realmente significa esse fenômeno novo do mundo. [...] Adeus, estou escrevendo a galope a bordo do navio que vai levar uma grande coisa para o Brasil: o Anísio lapidado pela América” (Nunes, 1986, pp. 4-5). Os textos Após deixar suas funções de editor, os vínculos de Lobato com a escola passam a ocorrer principalmente através dos textos. Uma das formas da escola estar presente nesses textos é uso de uma certa concepção pedagógica e do estabelecimento no Sítio do picapau amarelo de situações de ensino. Não é simples estabelecer essa análise, mas vale a pena enunciar aspectos destacados em alguns estudos. Para Melloni, há uma pedagogia implícita nos textos do escritor. Ela utiliza o exemplo do livro Serões... para exemplificar essa pedagogia: Ambiente e personagens operam de modo a garantir o confronto das experiências das crianças com a dos adultos, prefigurando uma espécie de processo construtivo, contínuo e natural de inserir-se as crianças no mundo da cultura. Em resumo, uma idéia de Pedagogia. [...] Aquele chamado “raciocínio” ou “reflexão” de criança inteligente, que todos os professores desejariam em seus alunos, aparece por todos os textos dos “serões”; não como produto de mera fantasia de autor, mas como uma amostra de que esse “raciocínio” pode ser seguido, induzido, respeitado e suscitado habilmente [Melloni, 1998, pp. 313-314]. A autora ainda ressalta um aspecto não destacado por nenhum outro autor. Para ela, um dos fundamentos da tal pedagogia de Lobato é o uso monteiro lobato e seus leitores 19 da fantasia: “Lobato evidencia não só que a imaginação é algo próprio da mentalidade infantil; ele faz recordar direta ou indiretamente que a Educação tem esquecido com enorme freqüência do valor de sonho nas suas lições” (idem, p. 365). Zilberman e Lajolo descrevem o caráter pedagógico do ambiente do Sítio do picapau amarelo e a inclusão nas histórias de uma concepção pedagógica: Com efeito, as terras de Dona Benta, sob certas circunstâncias, desempenham a função de uma escola, sendo a proprietária, a professora ideal, e os alunos, os moradores do sítio, ouvintes atentos e interessados que, como sempre, polemizam os temas, quando não decidem vivê-los in loco, abandonando temporariamente o lugar improvisado das aulas. O sítio metamorfoseia-se numa escola paralela, reforçando a versão do escritor pela instituição tradicional de ensino, cujas disposições física e psicológica o desagradavam. Trata de substituí-las, dando-lhe um arranjo diferente, ao mesmo tempo antigo e moderno. Antigo, porque o modelo é a escola grega, conforme a filosofia helênica a divulgou: um sistema de ensino que evolui através do diálogo, sem soluções pré-fabricadas ou conclusões previstas por antecipação. Além disso, não supõe um espaço determinado, fixo de antemão e classificado como sala de aula. [...] A partir do aproveitamento desse fator técnico, esclarece-se o conteúdo moderno desta prática pedagógica: vale-se de instrumentos procedentes da atualidade, usando a ciência e a tecnologia e vendo-as como os principais objetivos a alcançar. [...] Apoiando-se no diálogo, como metodologia de ensino, e no amor ao conhecimento, como finalidade, aponta um caminho pedagógico para a sociedade contemporânea, arejando-a com as idéias que motivam a atitude do ficcionista [Lajolo & Zilberman, 1987, pp. 76-77]. Penteado apóia-se em Rose Lee Hayden6, uma estudiosa americana de Lobato, para comentar as características pedagógicas de sua obra, 6 Trata-se de sua tese de doutorado: The children’s literature of José Bento Monteiro Lobato of Brazil: a pedagogy for progress, concluída em 1974, pela Michigan State University. 20 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 embora a autora não se refira apenas à parte da obra considerada didática por Penteado. Segundo ela, Lobato tinha um método de ensino com características semelhantes àquelas apontadas pelas autoras citadas anteriormente: é sobre a qualidade didática da obra que a autora concentra o foco do seu estudo, tendo concluído que Lobato se utilizava do método socrático de ensino e valorizava, sobretudo, o aprendizado informal, já que ele próprio assim absorvera a maior e melhor parte do seu conhecimento [Penteado, 1997, p. 221]. Segundo Penteado, Hayden aponta alguns princípios do que seria a pedagogia lobatiana: - Os conhecimentos a serem transimitidos devem-se relacionar com o campo de experiência do educando, ao que lhe é familiar; - Sempre que possível, os educandos devem participar ativamente do processo educativo. Isso é conseguido através de interações, fazendo experiências e viajando para examinar diretamente os fenômenos; - A experiência de aprendizado deve ser agradável e interessante.[...]; - Os tipos de conhecimentos devem ser transmitidos de forma adequada à idade do educando; - Para ser efetivo, o conhecimento deve ser transmitido de foram simples e clara, sem embelezamentos pretensiosos ou desnecessários; - Quando um educando assenhora-se de um fato ou conceito, eles devem ser reforçados positivamente, e isso deve ocorrer imediatamente à resposta correta [...] [idem, pp. 221-222]. É possível observar nesses princípios alguns vínculos com idéias relacionadas à Escola Nova, principalmente nos quatro primeiros itens. Isso também apontaria para a crítica do autor à escola formal. Hayden reconhece algumas passagens na obra de Lobato que se referem à escola, na maior parte das vezes, com muitas críticas: “Hayden conta 25 menções – em geral negativas – à escola formal, em 4.683 páginas de texto, e, em uma delas, Lobato usa o tradicional colégio Caraça, de Mi- monteiro lobato e seus leitores 21 nas Gerais, como uma espécie de prisão para crianças malcomportadas” (idem, p. 221). É necessário salientar que, apesar de perceber uma concepção pedagógica nos livros de Lobato, é preciso considerar que isto ainda não é uma forma de uso da escola; é apenas uma maneira de ver a educação e, dentro dessa, discordar da escola formal. É necessário, entretanto, considerar que a escola tem suas nuances, muito diferentes do ambiente do Sítio. Esse pode ser um espaço alternativo de educação, mas será que é possível pensar a escola a partir dele? O aspecto mais determinante do uso da escola através dos textos é a utilização de conhecimentos de disciplinas escolares como temas de alguns livros, como: História do mundo para crianças, Emília no país da gramática, Aritmética da Emília e Geografia de Dona Benta. Em carta a Vianna, Lobato demonstra nitidamente que essas escolhas não foram obra do acaso: A minha Emília está realmente um sucesso entre as crianças e os professores. [...] Vale como significação de que há caminhos novos para o ensino das matérias abstratas. Numa escola que visitei, a criançada me rodeou com grandes festas e me pediram: “Faça a Emília do país da aritmética”. Esse pedido espontâneo, esse grito d’alma da criança não está indicando um caminho? O livro como o temos tortura as pobres crianças – e no entanto poderia diverti-las, como a gramática da Emília o está fazendo. Todos os livros podiam tornar-se uma pândega, uma farra infantil. A química, a física, a biologia, a geografia prestam-se imensamente, porque lidam com coisas concretas. O mais difícil era a gramática e é a aritmética. Fiz a primeira e vou tentar a segunda. O resto fica canja [in Lajolo, 2002, pp. 95-96]. Os conteúdos indicados pelos títulos faziam parte das disciplinas ministradas nas escolas, como podemos observar em alguns autores. Bittencourt afirma, em seu estudo sobre o ensino de história no período de 1917 a 1939, que há poucos trabalhos sobre as disciplinas no currículo escolar (1990, p. 18). Entretanto, a autora aponta alguns aspectos que contribuem para compreensão das disciplinas no ensino primário. Ela afirma, a partir do caso de São Paulo, que após a República, somente em 22 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 1918 houve uma reforma do ensino primário, elencando as disciplinas do programa: Ao lado da Leitura e da Aritmética, os programas escolares do 1918 enfatizaram o ensino de Geografia e História do Brasil, acrescentando Instrução Moral e Cívica, Trabalhos Manuais, Música, Desenho, Ginástica, Ciências Físicas e Naturais e Higiene [Bittencourt, 1990, p. 120, grifos meus]. Nagle também descreve o conjunto de disciplinas do ensino primário. Ao comentar a reforma de Sampaio Dória, cita as disciplinas que constam na reforma de 1920. Como exemplo, serão aqui citadas as referentes ao 2o ano: leitura, linguagem, noções de francês, caligrafia, aritmética, geometria, história do Brasil, instrução moral e cívica, educação doméstica, ciências físicas e naturais, higiene, música, desenho, trabalhos manuais e ginástica (Nagle, 1974, p. 215). O autor cita e comenta, também, as mudanças curriculares do ensino primário na reforma do antigo Distrito Federal. Constam no programa as seguintes disciplinas: “linguagem oral e escrita, aritmética, geometria, geografia e história pátria, ciências físicas e naturais, higiene e puericultura, economia doméstica, desenho, caligrafia, música, ginástica e trabalhos manuais” (idem, p. 216). Ribeiro expõe o quadro das disciplinas do programa de 1925 para os grupos escolares e do programa mínimo para o curso primário de 1934. Como exemplo o 4o ano: leitura, caligrafia, linguagem oral, linguagem escrita, geografia, aritmética, geometria, desenho, história, instrução moral e cívica, ciências físicas e naturais, música e ginástica. E em 1934: leitura, linguagem oral, linguagem escrita, desenho, trabalhos manuais, música, aritmética, geometria, geografia, história e instrução moral e cívica (1996, p. 89). Esse conjunto de disciplinas dá uma idéia do corpo do currículo primário, pelo menos até meados da década de 1940. Comparando com os títulos de alguns livros de Lobato, elas são um indício do uso feito pelo escritor de um aspecto da instituição escolar, embora seja ainda necessária a análise mais detida dos conteúdos dos programas para uma melhor conclusão. Entretanto, não é só através das disciplinas escolares monteiro lobato e seus leitores 23 que percebemos a relação entre os textos de Lobato e a escola. Numa propaganda colocada na edição de 1934 do livro Hans Staden pode-se observar a explicitação de intenção de uso pedagógico do livro Emília no país... e um uso com críticas à forma de trabalhar da escola: Não houve bairro do País da Gramática que não visitassem [...] e o resultado de tudo foi que quando voltaram para o Sítio de Dona Benta estavam sabendo... gramática! Mas sabendo mesmo, de verdade, e tanto que deram vários quinaus num professor duma escola pública lá perto. Foi uma simples brincadeira, e no entanto lhes valeu mais para o conhecimento de coisas da língua do que um ano ou dois de escola com aqueles terríveis livros... [Lobato, 1934]. Essa posição contra a escola, contudo, deve ser vista para além de uma visão de educação, como uma forma de propaganda, pois contrapondo-se à escola, propõe-se como alternativa. O final do texto não deixa dúvidas: “E acabou-se a dificuldade das crianças aprenderem Gramática. Basta agora que comprem este livro...”. Os estudos sobre os livros infantis de Lobato apontam, também, que além daqueles com o nome explícito no título, há outras produções com pretensões didáticas. Segundo Penteado, é o caso de Serões de Dona Benta. O autor afirma que o livro veicula conhecimentos da área de ciências. Sua análise aponta o vínculo explícito com a escola: Serões retoma o modelo da narrativa de Dona Benta, dentro de casa, seguindo, de certa forma, o formato de livro-texto da matéria Ciências, como era ministrada nas escolas primárias e secundárias ao tempo da publicação do livro. É possível que Lobato estivesse convencido de que o milagre, que profetizara em Poço, não ocorreria numa sociedade tão pouco comprometida com o conhecimento e o estudo das ciências e quisesse, mais uma vez, dar sua contribuição para alterar a situação [Penteado, 1997, p. 198]. A relação com o livro-texto apontado por Penteado é central para compreender as relações com a pedagogia. Se de fato este vínculo ocorre da forma como é indicada, e mais, se este vínculo também ocorre em outros livros, pode-se notar o profundo relacionamento entre os livros 24 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 de Lobato e a instituição escolar. Entretanto, o caráter pedagógico dos livros não parece evidente em todos os casos. Penteado, por exemplo, estabelece um quadro, dividindo os livros de Monteiro Lobato em três categorias: fantasia, didáticos e recontados, como é possível observar a seguir (idem, p. 170): ANO FANTASIA 1920 A menina do narizinho arrebitado 1921 Narizinho arrebitado O saci 1922 1924 A caçada da onça 1927 1930 1931 Reinações de Narizinho 1932 Viagem ao céu 1933 As caçadas de Pedrinho 1934 1935 1936 1937 Memórias de Emília O poço do Visconde 1939 O picapau amarelo O Minotauro A reforma de natureza A chave do tamanho Os 12 trabalhos de Hércules 1941 1942 1944 DIDÁTICAS RECONTADAS Fábulas Hans Staden Peter Pan História do mundo para crianças Emília no país da gramática História das invenções Aritmética da Emília Geografia de Dona Benta Serões de Dona Benta O poço do Visconde D. Quixote das crianças Histórias de Tia Nastácia O quadro parece interessante e permite uma perspectiva abrangente dos livros. Ocorre, porém, que outros autores incluem algumas das obras monteiro lobato e seus leitores 25 de fantasia entre as didáticas, como por exemplo Zilberman e Lajolo: “Após a publicação da História do Mundo para Crianças, Lobato amplia o currículo escolar: A cada disciplina corresponde uma obra: [...] A reforma da natureza (1941), sobre Ciências Naturais” (Lajolo & Zilberman, 1987, p. 78). De fato, não parece fácil estabelecer essa divisão. O livro Fábulas, por exemplo, foi editado para uso das escolas, como se vê na folha de rosto da edição de 1922: “Obra aprovada pela Diretoria da Instrução Pública do Estado de São Paulo”. No final do livro ainda há uma advertência, que também o vincula à educação. No início está escrito: “As fábulas constituem um alimento espiritual correspondente ao leite na 1a. infância”. Além da discordância entre os estudiosos e das próprias escolhas do autor, alguns remetentes, como será visto, também consideraram didáticos alguns livros não incluídos pelo autor nessa categoria, como Viagem ao céu e Espanto das gentes. E há o caso contrário, como notase na carta de Tagea Bjönberg. Ao comentar alguns livros de aventuras que gosta inclui História do mundo... e diz: “São os meus prediletos porque tratam de aventuras fantásticas cheias de seres sobrenaturais que no entanto fazem-me crêr que existem realmente”7. O segundo livro publicado pelo autor também é outro exemplo interessante. Foi editado, como já foi visto, para uso das escolas primárias, entretanto, para Arroyo, A forma de aparecimento na fase de literatura escolar era um imperativo de desenvolvimento histórico da literatura infantil. Monteiro Lobato percebeu perfeitamente a dinâmica e daí ter feito concessões formais. Narizinho Arrebitado aparece como “segundo livro de leitura para uso das Escolas Primárias”, mas o conteúdo não é mais didático: é amplamente lúdico [1968, p. 202]. 7 ARAS-DML, Cp, Ci. – Cx. 1, P2, 11. Coqueiros – MG, 24.02.36. A partir das próximas notas, as referências às cartas do acervo não conterão a denominação ARAS-DML (Arquivo Raul de Andrada e Silva – Dossiê Monteiro Lobato), Cp (Correspondência passiva) e Ci (Cartas infantis), pois todas as correspondências fazem parte desse conjunto. Constarão apenas as referências ao número da caixa (Cx.), da pasta (P) e, logo em seguida, ao número do documento na pasta. Estas siglas foram extraídas da documentação do próprio IEB, tal como consta na listagem dos documentos do arquivo. 26 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Parece, portanto, mais correto procurar uma forma de reconhecer o caráter didático que vá além da análise do próprio livro. Assim, uma produção seria considerada didática quando fosse utilizada como tal. Percebendo a dificuldade dessa definição, Soares propõe duas formas de considerar o livro didático. Na primeira, a relação se dá pela apropriação que a escola faz da literatura. Esta torna-se assim uma “... apropriação, pela escola, da literatura infantil: nesta perspectiva, analisa-se o processo pelo qual a escola toma para si a literatura infantil, escolariza-a, didatiza-a, pedagogiza-a, para atender a seus próprios fins – faz dela uma literatura escolarizada” (Soares, 1997, p. 17). A outra forma é a produção da literatura já pensando no uso que a escola irá fazer. Nesse tipo de relação os autores e editores fazem uma “... produção, para a escola, de uma literatura destinada a crianças: nesta perspectiva, analisa-se o processo pelo qual uma literatura é produzida para a escola, para os objetivos da escola, para ser consumida na escola, pela clientela escolar – busca-se literatizar a escolarização infantil” (idem, ibidem). A autora utiliza, inclusive, essas perspectivas para definir a literatura infantil, possibilitando duas vias de interpretação: literatura destinada à criança ou que a ela interessa, da qual a escola, que trabalha com a criança, se apropria; ou a literatura produzida para escola, para “tornar literário o escolar” (idem, p. 18). Afirma que definir a literatura infantil a partir da escola não constituiu um problema e apresenta uma justificativa histórica para isso, citando Lobato: Este conceito de literatura infantil pode parecer, aos mais radicais, uma heresia – talvez seja, mas deve-se também reconhecer que sempre se atribui à literatura infantil (como também à juvenil) um caráter educativo, formador, por isso ela quase sempre se vincula à escola, a instituição, por excelência, educativa e formadora de crianças e jovens; lembrem-se, por exemplo, que Monteiro Lobato, quando publicou A menina do nariz arrebitado, em 1921 [sic], caracterizou-o, na capa como “livro de leitura para as segundas séries”, o livro foi anunciado como “um novo livro escolar aprovado pelo governo de São Paulo”, e a edição foi realmente vendida para o governo de São Paulo para que o livro fosse adotado nas escolas. monteiro lobato e seus leitores 27 Nessa mesma linha de raciocínio, é interessante observar como o desenvolvimento da literatura infantil e juvenil no Brasil acompanha o ritmo do desenvolvimento da educação escolar; basta citar o chamado boom da literatura infantil e juvenil, que coincide, não por acaso, com o momento da multiplicação de vagas na escola brasileira. Parece mesmo que, ao longo do tempo, a literatura infantil e juvenil foi-se aproximando cada vez mais da escola. Há autores que vêm apontando (ou denunciando?) a clara vinculação, atualmente, da literatura infantil e juvenil à escola: Marisa Lajolo fala do “pacto entre produtores e distribuidores”, isto é, entre autores que produzem e a escola que distribui... [idem, p. 19]. Livros para aprender Desejo a continuação da vossa boa saúde para que os vossos serviços em favor dos que estudam não sofram interrupção 8 [grifo meu]. As cartas analisadas a seguir ajudam a compreender as apropriações que os remetentes fizeram dos livros. Contudo, relacionando-se à escola, as cartas, além de apontarem apropriações táticas de leitura, apontam também táticas9 discentes, que utilizam os livros do autor como forma de lidar com as imposições escolares. Pouco mais da metade das cartas analisadas na pesquisa está de alguma maneira relacionada à instituição escolar. Interessa aqui aquelas 8 9 Cx.1, P1, 21. Distrito Federal, 01.09.1934. O conceito de tática aqui é tomado de Certeau: “... chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. [...] Ela não tem portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas” (Certeau, 1994, p. 100). 28 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 que demonstram como os leitores aprendem com os livros de Lobato. Já foi visto como o escritor usa a escola; é importante perceber também de que maneira os alunos se apropriam dos livros, a partir desse uso; como os alunos-leitores percebem e comentam a possibilidade de aprendizado através dos livros do autor. Certeau considera que os leitores produzem algo novo no ato da leitura, que é tática e, por isso, produz a partir da estratégia: “Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio [...], os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los” (1994, pp. 269-270). O autor considera ainda que essa produção é de difícil conhecimento, pois ao contrário da estratégia não deixa muitas marcas, é preciso percebêlas em vestígios, rumores: “A escritura acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar e multiplica sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva ou conserva mal a sua posse” (idem, p. 270). As cartas apresentam alguns vestígios de suas leituras. Nesses vestígios, percebe-se um tipo de prática de leitura que usa os livros de Lobato para aprender. Muitos leitores vinculam livros do autor a alguma disciplina escolar e algumas vezes a leitura parece apenas servir a este propósito. Há muitos enaltecimentos ao caráter instrutivo e de ensinamento dos livros do autor. Essa percepção do conteúdo didático dos livros não segue os mesmos critérios expostos por Penteado, quando os divide em didáticos, de fantasia e recontados. Grande parte das referências ao aprendizado remete aos livros do conjunto de didáticos como apontado por Penteado, mas alguns leitores incluem outros. Nice, de 15 anos, exalta a facilidade com que qualquer um aprende com os livros de Lobato, dizendo que costuma até incentivar sua mãe a ler: “Sempre que releio os seus livros digo: mamãe, você devia ler os livros de Monteiro Lobato, pois até você aprenderia. Ela confirma a minha opinião e só não lê, por falta de tempo”10. 10 Cx.1, P2, 26. Niterói – RJ, 29.05.42. monteiro lobato e seus leitores 29 José Maria, de 14 anos, lembra que Lobato ensina o que há de novo: “... além de vir adoçar a vida brasileira, ensinando a gente as últimas novidades”. E afirma a garantia do aprendizado: “No seu livro tudo, tudo se entende”11. Um leitor carioca diz que suas histórias são bonitas e instrutivas, e têm grande poder de influência sobre os estudos. Diz explicitamente que tem aprendido mais em seus livros do que nos do colégio. Nicean, um leitor amazonense, dá um depoimento, após a libertação de Lobato da prisão, no qual valoriza sua liberdade como possibilidade de continuar proporcionando conhecimento aos leitores: “Muito contente em saber que o sr. está livre e pode continuar assim a instruir às crianças brasileiras, produzindo ótimos livros. [...] tenho aprendido muito através de seus belos livros”12. Os livros do autor são vistos como fonte de conhecimento e muitos leitores citam explicitamente os livros em que aprenderam. Emília no país... foi editado em 1934. É um dos livros mais citados pelos remetentes para comentar o aprendizado de algum assunto, no caso a língua. É dividido em vários capítulos, cada um deles referindo-se a algum aspecto do ensino da gramática. As ilustrações são fartas, abrangendo tanto os personagens do Sítio viajando pelo país, quanto as letras e sinais de pontuação transformados em personagens. Vanda escreve, em 1945, com certa formalidade, para agradecer o que aprendeu com o livro, lembrando que isso sempre ocorre ao ler os livros do autor: “Acabo de ler o seu Emilia do País da Gramática e venho por meio desta agradecer ao sr. o muito que aprendi com ele [...] Já li 5 livros seus e cada vez gosto mais de lê-los porque sempre aprendo alguma coisa”. O livro sobre a gramática a motiva a pedir mais explicações sobre o assunto a Lobato, ou melhor, a Dona Benta, para um concurso que irá prestar, enviando até a lista dos assuntos que serão exigidos. Aqui a disciplina escolar aparece como uma exigência social, extrapolando os limites da instituição. Vanda solicita a Lobato 11 Cx.1, P1, 42. Barra do Piraí – RJ, 18.11.1936. 12 Cx.1, P2, 34. Manaus – AM, 14.04.41. 30 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 ...pedir a Dona Benta que me ensine mais alguma coisa de Português além do que ela ensinou no livro. [...] quero inscrever-me num concurso, e quase não sei Português [...] Tenho uma gramática, mas infelizmente leio, leio e não entendo nada. Preciso muito passar no concurso, pois o papai esta desempregado [...] e eu ganho “uma ninharia” onde trabalho. Tenho certeza de que se ela ensinar-me eu aprenderei. O pedido da leitora volta em outra carta, no mês seguinte, mostrandose agradecida pela resposta de Lobato, mas insiste querendo saber se Dona Benta a ajudará. Manifesta uma grande aflição quanto ao aprendizado da gramática: “Eu tinha vontade de ser um anjo porque assim não precisaria estudar português não é mesmo?”13. Alariquinho, filho de Alarico da Silveira, secretário do Interior quando da compra dos milhares de exemplares de Narizinho arrebitado pelo governo do estado de São Paulo, afirma que Emília no país... ajuda muito no estudo da gramática. Diz que só aprendeu o que a professora pediu depois de sua leitura: “Você fez bem em escrever este livro porque eu estou estudando gramática que é a coisa mais cacete do mundo. A professora mandou decorar uns verbos e quando eu li o seu livro aprendi tudo”14. A leitora que se identifica como “Rã-sizuda” descreve o que pretende fazer na aula a partir do que aprendeu com o livro, mostrando outra aluna levando idéias do autor para a escola: “Amanhã é dia de português. Vou outra vez boquiabertar o teacher. [...] Falarei [...] sôbre a modificação das palavras e sôbre a natural inclinação dela para a mais fácil linguagem – mais fácil e mais preguiçosa”15. Haroldo, leitor de 13 anos, comenta a opinião de seu tio, que ressalta a facilidade com que se aprende com o livro: “Um tio meu me disse que só há um meio ‘canja’ de aprender gramática: é ler ‘Emilia no país da Gramática’”16. Gilson, aos 10 anos, ressalta que leu o livro logo as- 13 14 15 16 Cx.1, P3, 26-27. Juiz de Fora – MG, 22.02.45 - 08.03.1945. Cx.1, P2, 2. Distrito Federal, 26.06.1934. Cx.1, P2, 28. Distrito Federal, 10.06.40. Cx.2, P1, 37. Curitiba – PR, 26.11.44. monteiro lobato e seus leitores 31 sim que comprou e aprendeu muito com ele: “Chegando em casa fui logo começando à ler. Aprendi ‘abéssa’”17. Assim como Edite, que afirma de passagem: “Não é por dizer, mas eu aprendi e compreendi gramatica com o seu livro”18. Outras referências ao livro ocorrem junto com outros livros do autor, como História do mundo..., outra obra muito citada como fonte de aprendizado escolar. Foi editada pela primeira vez em 1933. Adaptação do texto de Virgil Hillyer, não é um livro pequeno, pelo contrário, é o segundo mais extenso do autor, compondo 78 capítulos. Conta a vida humana desde a pré-história até a Segunda Guerra Mundial. Nas primeiras edições, lida por muitos dos remetentes, ela ia apenas até a Primeira Guerra e a Revolução Russa. As edições conhecidas pelos leitores eram fartamente ilustradas com figuras relativas à história sem alusão aos personagens do Sítio, mas o texto contém a participação dos personagens que, a todo momento, intervêm para opinar e tirar dúvidas. Manuel, que leu o livro um ano após o lançamento, já identifica o aprendizado através do mesmo, ressaltando estar essa característica presente em outros livros do autor: “De todos os livros os autores que eu elogio mais são os livros de V. Exa. porque são os que me despertam mais curiosidade. [...] História do Mundo para crianças que ensina muita coisa que ignorava inteiramente”19. Dora, representando uma turma da Escola Técnica Orsina da Fonseca, em 1935, comenta o caráter instrutivo dos livros, opinião influenciada possivelmente pela escola, pois a classe escreveu a pedido da professora. Lamenta que Lobato não escreva somente para crianças: “É pena! O sr. quer saber de uma coisa? Deve escrever muitos livros no gênero de História do Mundo para Crianças e Emilia no País da Gramática, porque além de recreativos são altamente instrutivos e têm muita saída”20. Em 1936, Maria Josefina, do quarto ano do Grupo Escolar Tiradentes, de Curitiba, também comenta a aquisição de novas informações: “Li 17 18 19 20 Cx.1, P1, 8. Distrito Federal, 12.07.34. Cx.1, P2, 14. Botucatu – SP, 10.01.37. Cx.1, P1, 4. S/l, 20.02.34. Cx.1, P2, 7. Distrito Federal, 04.05.35. 32 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 também outros, com o: História do Mundo para Crianças, e apreciei muito, pois daquilo quase nada eu sabia...”21. Mas é interessante notar como esse caráter didático pode não atingir a todos os leitores. Arnaldo diz que gostou de ler Reinações..., Viagem..., mas quando foi ler História... não gostou: “E quando chegou a vez da História do Mundo para Crianças não gostei, não tinha graça!”22. Para Bruno, aluno do primeiro ano do ginásio, do Recife, o livro é útil para os estudos de história da civilização, assim como Geografia... Como já aprendeu com estes, pede outro para ajudá-lo numa disciplina em que considera ter dificuldades: Depois li História do Mundo para Crianças que me tem sido de muita utilidade nos meus estudos de Historia da Civilização. A Geografia de Dona Benta também. Então com aqueles apartes de Emilia torna-se muito engraçado. [...] Sou muito imbecil para a Matemática e ficar-lhe-ia muito grato se o Snr. me mandasse a Arithmética de Emília23. Geografia de Dona Benta e Aritmética da Emília foram lançados em 1935, o primeiro como adaptação de Hendrik Van Loon, em que os personagens viajam pelos países para conhecê-los; o segundo como aulas do Visconde dadas à turma do Sítio, a partir de situações do cotidiano. Quanto a este, alunos de um grupo escolar da Cidade do Prata, mesmo enviando carta da escola, comentaram o quanto aprenderam brincando, livrando-se de um fardo: Guardaremos tudo isto [que pediram] como relíquia do melhor amigo que tivemos, que nos livrou das cacetes e antigas aulas de Português e Aritmética. [...] Os seus livros nos já os conhecemos. O preferido por nos é “Arithmetica da Emilia”, que viajando, comendo melancias, nos ensinou frações. Era esse ponto detestado por nos24. 21 22 23 24 Cx.1, P1, 50. Curitiba – PR, 28.10.36. Cx.1, P3, 12. São Paulo – SP, 29.09.44. Cx.1, P1, 46. Recife – PE, 04.07.36. Cx.1, P2, 12. Cidade do Prata – MG, 15.05.1936. monteiro lobato e seus leitores 33 Muitos remetentes referem-se a diversos livros que lhe serviram como fonte de aprendizado. Julio, em 1945, escreve que considera a maioria dos livros de Lobato educativos e que eles ajudam muito a “juventude”... “pois esta muito aprende com seus magníficos livros, que na maioria são todos educativos, tais como História do Mundo para Crianças, Poço do Visconde, Emilia no País da Gramática, Aritmética da Emilia, Minotauro, Viagem ao Céu, Doze Trabalhos de Hércules e outros”25. Alguns livros citados como fonte de aprendizado não são incluídos por Penteado em sua relação de livros considerados didáticos. Edite Canto, por exemplo, genericamente, diz que há muitos ensinamentos em O minotauro26. Liliana entende que Reforma da Natureza é um livro didático, ou com muita ciência, como diz, pois pede para não fazer mais livros como ele: “... tem muita ciencia e eu não entendo pois fiz 9 anos dia 18 de junho”27. Vilma, em 1945, cita D. Quixote como um livro que ensina, ressaltando também o humor. Importante ainda é que diz gostar dos livros do autor por estar na escola que está: “Tenho 12 anos e curso o 2o ano do Ginásio Campos Sales. É por isso que admiro seus livros que ensinam e divertem. É essa, sem dúvida, a melhor maneira de ensinar. O modo pelo qual o senhor escreve seus livros como D. Quixote é bem acessível às crianças”28. Haroldo, que se referiu também a Emília no país..., comenta o quanto aprendeu com Visconde no livro Espanto das gentes, editado em 1941, depois reunido com o livro A reforma da natureza, num só volume. Exalta a possibilidade de aprendizado rápido: O livro das glândulas (a glandulologia?) facilita extraordinariamente o estudo e a compreensão de assuntos complicados. O que a minha mãe quebrou a cabeça, sem que ela nunca pudesse entender, eu entendi em 2 tempos. Á sua custa a criançada do meu tempo pode ilustrar-se mais do que os adul- 25 26 27 28 Cx.1, P3, 34. São Paulo – SP, 29.10.45. Cx.1, P2, 15. Botucatu – SP, 12.11.39. Cx.1, P2, 48. Belo Horizonte – MG, 23.06.42. Cx.2, P1, 45, São Paulo – SP, 12.05.1945. 34 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 tos modernos e antigos [...] Um 1945 cheio de aventuras instrutivas e divertidas de todos os seus heróis29. Cordélia comenta que aprendeu lendo Os doze trabalhos..., diz que já está pronta para discutir mitologia grega com o Visconde e conclui, pelas atitudes de Hércules, que: “Se a massa bruta se encontrar algum dia com a inteligência, vai saindo bem encolhidinha”30. Mas há os que citam exatamente aqueles com características didáticas, como os que já foram referidos. Sylvio, que diz ter ficado maravilhado ao ler História..., Geografia..., Emília no país.., Aritmética..., quer aprender mais com um livro sobre ciências – talvez sem ter lido Serões...–, pois gosta da matéria: “Ocorreu-me a idéia de lhe escrever, porquê, com seus livros, aprende-se brincando! É duro decorar aqueles nomes de músculo, tecidos, etc. Mas com um livro ‘da Emilia’ quem não aprende?”31. Um livro de ciências é justamente o citado por Modesto Marques. O remetente conta que pegou “amor ao saber” lendo Serões de Dona Benta 32. São comuns os pedidos de livros referentes a assuntos do currículo escolar. Sarah, de 12 anos, diz que estuda história do Brasil e quer um livro para poder aprendê-la melhor: Estou estudando História do Brasil e como acho muito cacete, peço por favor que o sr. escreva, um livro, sobre o assunto. Acho que o senhor não quer escrever porque Viriato Corrêa plagiou dos seus contos, escrevendo logo a História do Brasil. Mas por mim pode escrever porque certamente já o tinha imaginado e mesmo eu não gosto dos livros que Viriato Corrêa faz. Prefiro os seus33. Esse é o mesmo desejo de Severino, de 9 anos: “... desejo que Dona Benta apareça com um bonito livro de ilustrações dando lições a gente 29 30 31 32 33 Cx.2, P1, 37. Curitiba – PR, 26.11.44. Cx.1, P3, 7. Belo Horizonte – MG, 17.02.45. Cx.2, P2, 22. São Paulo – SP, 23.04.1946. Cx.1, P2, 39. Tatuí – SP, 11.11.45. Cx.1, P2, 23. Distrito Federal, 26-18.05.1937. monteiro lobato e seus leitores 35 sobre História do Brasil. Os seus livros me têm ensinado muita coisa da História de minha Patria com minha querida Dona Benta”34. Para alguns leitores, o interesse não é meramente escolar, pois pedem assuntos que não faziam parte, ao que parece, do currículo escolar. É o caso de um aluno que quer aprender sobre o petróleo. Depois de dizer: “Tenho lido quasi todos os seus livros e aprendido muita cousa”, escreve que quer aprender como se tira petróleo no novo livro que seu primo disse que irá sair: Emília tira petróleo35. Esse livro foi editado em 1937, com o título O poço do Visconde. É importante lembrar que, em algumas referências ao aprendizado, os leitores comentam o quanto é divertido aprender com os livros do autor, como o caso de Maria Josefina: “Em Viagem ao Céu, por, exemplo, eu aprendi e diverti-me imensamente com aquele pedaço que a Emilia acha o anjinho de aza quebrada e quando o Pedrinho cai do astro em que êle estava montado”36. Bruno comenta o mesmo aspecto, opondo a idéia de livro que ensina e de humor, como se os livros de Lobato fossem uma exceção: “Esses livros que o Snr. faz e Emilia figura são gozados. Apesar de serem instrutivos fazem rir”37. A leitura de Monteiro Lobato não é vista somente como algo útil à vida escolar. Ela pode também ser vista, não como complemento para o que é ensinado na escola, mas como alternativa ao difícil trabalho escolar, servindo como fonte de prazer. Edite Canto diz que, por estar fazendo exame de final de ano, “regalou-se” mais com o livro O Minotauro. Há um conflito quanto à definição do livro. No início diz haver ensinamentos nele, para depois dizer que não, pois o que há é diversão. Os ensinamentos ali contidos são inúmeros; as piadas não só da Emilia como dos outros, são muito engraçadas. Não ensinamento, mas distração. Estive e ainda estou fazendo os meus exames orais para completar a terceira série e, enjoada de exames como ando, regalei-me (si é possível) mais ainda com seu 34 35 36 37 Cx.1, P3, 21. Distrito Federal, 19.02.45. Cx.1, P1, 53. São Paulo – SP, 25.11.36. Cx.1, P1, 50. Curitiba – PR, 28.10.36. Cx.1, P1, 46. Recife – PE, 04.07.36. 36 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 livro. [...] Não vou amola-lo mais com minhas tolas palavras e também eu tenho de estudar38. Além das referências ao uso dos livros como fonte de aprendizagem, há dois leitores que expressam a ajuda direta que os livros do autor prestaram à vida escolar. Eumira, em 1942, escreve que lê o autor desde os primeiros anos de estudo e que seus livros foram a forma encontrada para entender aquilo que a escola não conseguiu ensinar: Desde os meus primeiros anos de estudos, comecei a ler os vossos admiráveis trabalhos dedicados á infância brasileira. Apoderou-se de mim um grande entusiasmo para enviar agradecimentos pelo muito que tendes indiretamente concorrido para o esclarecimento de minha compreensão nessa série de dificuldades que encontramos no decorrer de nossa vida escolar. Agora, já me encontro na 3a. série ginasial, com os meus 13 anos de idade, pretenciosa de que já posso exprimir os meus sentimentos, devo dizer-vos quanto têm sido úteis os vossos livros que me têm muitas vezes, tirado de sérias dificuldades. Freqüentemente quebro a cabeça estudando lições que não há meios de assimilar. Acontece que, depois de algum tempo tenho a oportunidade de encontrar em alguns livros de vossa autoria o assunto que tanto me torturava e, num instante, encontro a chave do problema39. Modesto, também no fim do curso ginasial, expressa seu reconhecimento. Afirma que concluiu o ginásio graças aos livros do autor. Este leitor diz ter mudado sua maneira de ver o mundo através dos livros de Lobato, mesmo assim viu na obra a possibilidade de extrair uma utilidade prática: aprender alguns conhecimentos que o ajudassem na escola: “Acabo de passar para o 2o. ano do antigo pré, agora 3o. ano do Colégio. Isso significa que já sou bacharel do Ginásio (graças aos ‘teus livros’)”40. Para esse remetente, no entanto, os livros do escritor foram muito mais do que uma ajuda à travessia escolar. Eles levaram a uma identifi- 38 Cx.1, P2, 15. Botucatu – SP, 12.12.1939. 39 Cx.2, P1, 19. Uberlândia – MG, 14.07.42. 40 Cx.1, P2, 42. Tatuí – SP, 17.12.1945. monteiro lobato e seus leitores 37 cação profunda com o autor, levando-o a querer agir como o mestre. Nesses casos, aquele que ensina oferece não só informações e conhecimentos, mas um sentido para a vida (Gusdorf, 1987). Na primeira carta que enviou em 1941, diz que Emília o libertou e que ela era responsável por uma nova visão de mundo que adquiriu. “Agora que você me libertou da rotina mental em que eu vivia há 8 anos atrás, quero falar-lhe de libertado para libertador”. Diz que antes ria das palavras dela, mas “hoje que sou emiliano [o personagem sendo adjetivado], medito profundamente nas suas palavras”. Parecendo guiar-se realmente pela boneca, pergunta se “para salvar a pátria abandonaria família e amigos. Não me considere louco: minha intenção nem você minha libertadora, entenderá”. Essa maestria exercida por Emília é evidenciada no início e no fim da carta, no PS: “Você foi a minha princesa Isabel”. Explica uma das atitudes que passou a ter: “...a duvidar de tudo que não me parecesse lógico e a investigar a verdade nos próprios absurdos”. Aprendeu também com Emília: “seja esperto” 41. Essa adesão continua ainda quatro anos depois, quando já tem 16 anos, mas o leitor desvia o foco para outra personagem, Dona Benta, que assume o papel de mestra: Sabe uma conclusão que eu tirei? Que a senhora é uma pedagoga revolucionária, utópica possível. [...] Revolucionária porque o seu “método de camaradagem” não existe ainda no Brasil (talvez mesmo no mundo). Utópica, porque, com a mentalidade dos tais adultos, o ensino é uma coisa tão sisuda, tão vital, tão obrigatória, que nos aborrece. [...] Se eu for alguém algum dia, se algum dia eu tiver ou poder, ou riqueza, ou fama, eu juro em nome de Monteiro Lobato, meu pai espiritual, que mandarei erguer uma grande estátua em sua honra, que será o mesmo que à Cultura e à Pedagogia. [...] Quero com isso pagar não o quanto aprendi, mas apenas a Nova Visão da vida que os seus livros me deram42. 41 Cx.1, P2, 38. Tatuí – SP, 28.11.1944. 42 Cx.1, P2, 37. Tatuí – SP, 10.12.1945. 38 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Em Nova Visão, o grifo é meu, para ressaltar a importância do conjunto da obra e do conhecimento de modo geral e não somente de algum aspecto isolado que lhe tenha sido importante ou interessante. Vale notar que assim como Modesto ofereceu uma reação à escola e passou a ter problemas com ela, outros leitores não entraram em conflito com a instituição pelas idéias do autor, agindo, para retomar a expressão, com táticas diferentes. O próprio Modesto relata uma atitude completamente contrária a de outro leitor sobre o mesmo assunto. Comenta, ao escrever porém no início de uma frase da própria carta enviada, que o professor orientou-o a não fazê-lo, mas ele não se importa, afinal de contas aprendeu com Lobato a não dar importância para isto43. Já Carlos, remetente da capital, pede desculpas pelos acentos que deixou em sua carta, mas diz ter que usá-los, pois, como estudante, deve fazer o prescrito pela escola, senão repete o ano: “Eu espero, Dr. Lobato, que o senhor me perdoe êsses acentos, se estão aí, é porque acostumei-me a eles. Espero que o senhor se recorde de que sou estudante portanto tenho que obedecer ao professor de português ou levarei ‘bomba’”44. Nos dois casos, não são as estratégias as determinantes. O primeiro poderia ter a mesma atitude do segundo diante do “erro”, contudo preferiu aderir a Lobato e renegar o ensinamento escolar. O segundo também não precisaria obedecer ao professor – não numa situação como a da carta, ao menos –, pois não estava na escola. Mesmo assim, preferiu dizer que deve obediência à escola nesta matéria. Contudo não desmereceu o autor. Todos esses trechos das cartas demonstram um modo de compreender os livros de Monteiro Lobato, que leva em conta a possibilidade de aprendizado através dos livros. Elas apresentam algumas nuances diferentes, como a valorização do humor, o uso escolar ou pessoal, por exemplo. Nota-se uma correspondência entre as intenções estratégicas apontadas nos estudos sobre Lobato e as táticas dos leitores. Entretanto, essas táticas não se esgotam nas estratégias apontadas. Muitos leitores 43 Cx.1, P2, 41. Tatuí – SP, 12.12.1945. 44 Cx.1, P3, 35. São Paulo – SP, 19.11.1945. monteiro lobato e seus leitores 39 aprendem mesmo com os livros que estão fora do conjunto daqueles indicados para ensinar e não necessariamente aprendem do modo como foi pensado pelo autor. A escolha de um escritor e o uso feito pela escola não definem totalmente o modo como o leitor usará determinado livro, ainda que exerçam uma grande influência. Referências Bibliográficas ARROYO, Leonardo (1968). Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos. AZEVEDO, Carmen Lucia de; CAMARGOS, Marcia & SACCHETTA, Vladimir (1997). Monteiro Lobato: furação na Botocúndia. São Paulo: Editora SENAC São Paulo. BATISTA, Marta Rossetti (1997). ABC do IEB: guia geral do acervo. São Paulo: EDUSP. BITTENCOURT, Circe M. F. (1990). Pátria, civilização e trabalho: o ensino de história nas escolas paulistas (1917-1939). São Paulo: Edições Loyola. CAVALHEIRO, Edgar (1962). Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Brasiliense. CERTEAU, Michel de (1994). A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes. CHARTIER, Roger (1988). A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel. . (1999). A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial. 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Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação. 42 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Educação e civismo movimento escoteiro em Minas Gerais (1926-1930) Adalson de Oliveira Nascimento* O artigo apresenta um estudo sobre a trajetória do movimento escoteiro em Minas Gerais, durante a gestão do presidente do estado Antônio Carlos Andrada (1926-1930), quando se implementou uma reforma da instrução pública. Pesquisei o apoio estatal ao movimento educacional criado pelo militar inglês Baden-Powell, num contexto de valorização do nacionalismo, do civismo e de militarização infantil e juvenil. ESCOTISMO; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; MINAS GERAIS; REFORMA DE ENSINO; ANTÔNIO CARLOS ANDRADA. The article describes the scouting developed in Minas Gerais, during the Antônio Carlos Andrada governor years (1926-1930), when a reformulation was carried out in the public education. I have researched the assistance of state to the education movement created originaly by the British military Baden-Powell, in a context that reenforce nationalism, civilianship and militarization of children and teenagers. SCOUTING; HISTORY OF EDUCATION; MINAS GERAIS; TEACHING REFORM; ANTÔNIO CARLOS ANDRADA. * Mestre em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), bacharel e licenciado em história pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. 44 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Neste artigo1, estudo as formas pelas quais o governo de Minas Gerais, durante a gestão do presidente Antônio Carlos Andrada (1926-1930), contribuiu para a consolidação do movimento escoteiro no estado a partir da reforma educacional proposta por Francisco Campos, então secretário do Interior responsável pela pasta da educação2. Esta reforma educacional ficou conhecida por trazer ao ensino primário novas práticas pedagógicas baseadas nos preceitos da chamada Escola Nova. Várias inovações pedagógicas foram discutidas e introduzidas nos grupos escolares, dentre elas foram criados grupos escoteiros vinculados aos grupos escolares e o Estado passou a incentivar o escotismo através da formação de chefes escoteiros, do apoio financeiro e da propaganda sobre suas “vantagens”. O escotismo, das primeiras décadas do século XX, tem sido pouco estudado pela historiografia brasileira. As pesquisas já realizadas são recentes e abordaram a trajetória do movimento em São Paulo. É o caso do trabalho de Rosa Fátima Souza, intitulado A militarização da infância: expressões do nacionalismo na cultura brasileira e de Judith Zuquim e Roney Cytrynowicz, Notas para uma história do escotismo no Brasil: a “psicologia escoteira” e a teoria do caráter como pedagogia de civismo. O escotismo, movimento educacional de caráter militar e cívicopatriótico, foi criado pelo general inglês Robert Stephenson Smyth Baden-Powell, em 1907. Rapidamente se expandiu por todo o mundo. No Brasil, o movimento se tornou bastante expressivo nas décadas de 1910 e 1920. Ele foi vinculado ao sistema escolar público, e ficou sob tutela governamental em vários estados brasileiros. Através do escotismo, durante as décadas de 1910 e 1920, diversos grupos políticos, preocupados com a valorização do sentimento nacional entre a juventude, doutrinaram crianças e jovens. Neste sentido, o estudo 1 2 Sou grato aos professores Rodrigo Patto e Luciano Mendes que, através de sugestões e da leitura do texto, muito contribuíram para elaboração deste trabalho. O artigo apresenta parte de minha pesquisa desenvolvida durante o curso de bacharelado em história do Departamento de História da UFMG. A pesquisa, já concluída, resultou na monografia intitulada Sempre alerta! O movimento escoteiro em Minas Gerais (1926-1930). educação e civismo 45 do movimento pode revelar importantes aspectos da cultura política e educacional daquele momento. Para compreendermos o sucesso da doutrina escoteira e o incentivo de sua aplicação nos grupos escolares mineiros, é necessário conhecer seus pressupostos e o contexto de seu surgimento. Surgimento do escotismo Os anos finais do século XIX foram marcados por uma grande insegurança social acarretada pelas transformações porque passava o continente europeu, além de uma forte depressão econômica e moral. Nesse momento de crise, surgiu um tipo de nacionalismo específico, desenvolvido por ideólogos e políticos de direita. Esses grupos voltaram o discurso nacionalista contra estrangeiros, liberais e socialistas e propunham uma expansão agressiva de seus próprios Estados, sendo esta a principal característica de tais movimentos. A difusão e a aceitação desta ideologia política de valorização do aspecto nacional foi, para Hobsbawm (1988, p. 206), uma resposta à crise pelo qual passava o Velho Mundo. O escotismo foi criado em 1907 pelo general inglês Baden-Powell3. Nascido em 1857, Baden-Powell ingressou no exército britânico em 1876, onde fez carreira. Foi autor de vários livros nos quais discorre sobre técnicas militares de avanço em terreno inimigo, dentre eles, Reconnaissance and scouting4, lançado em 1884 e Aids to scouting for 3 4 Informações sobre a biografia de Baden-Powell podem ser encontradas no livro 250 milhões de escoteiros, de Laszlo Nagy. A palavra scout, em inglês, significa explorador, batedor ou espião militar, ou, ainda, sentinela avançada, vedeta. Pode ser empregada também com o sentido dos verbos explorar, reconhecer, descobrir. O movimento escoteiro foi criado sob o nome de Boys Scout em 1907 e, ao que tudo indica, até 1914, não havia tradução direta para o termo no Brasil. Mario Cardim, ativo militante do movimento escoteiro paulista na década de 1910 teria sido o criador, em janeiro de 1914, dos termos “escotismo” e “escoteiro”. Até início da década de 1930, no Brasil, além de “escotismo”, era comum o emprego do termo “escoteirismo” ou “scoutismo”. 46 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 non-commissioned officer and men, de 1900. Baden-Powell “sugeriu a formação de pequenos grupos de treinamento, possibilitando-os desenvolver suas próprias dinâmicas. Introduziu a idéia de jogos – na maioria deles, idealizados por ele mesmo – como método educacional” (Nagy, 1987, p. 42). Mais tarde, esses livros foram referência para o treinamento e a dinâmica do movimento escoteiro. A partir de sua vivência no exército e preocupado com a formação da juventude inglesa foi que Baden-Powell elaborou um “plano para formação de rapazes, que seguia de perto o programa dos exploradores militares” (Baden-Powell, 1986a, p. 51). Foi naquele contexto, marcado pelo discurso nacionalista da direita política que via no fortalecimento da nação uma solução para crise pela qual passavam os países europeus, que surgiram as organizações paramilitares destinadas ao treinamento da juventude, que deveria estar preparada para defender a nação. Estas organizações utilizavam-se, na maioria das vezes, da ginástica e dos esportes para treinar a juventude para ser “mais viril, mais apta a suportar a vida militar, mais preparada para enfrentar um longo conflito sem perder a coragem” (Weber, 1988, p. 259). Em agosto de 1907, Baden-Powell, juntamente com cerca de vinte rapazes, fez um acampamento na Ilha de Bronwnsea, na Baía de Poole; ali eles colocaram em prática a proposta de educação do militar inglês. O sucesso alcançado naquele primeiro acampamento foi seguido do lançamento de seis fascículos intitulados Scouting for boys, em 1908. Esses fascículos continham todas as prerrogativas do movimento que estava sendo criado e foram também publicados posteriormente em forma de livro. Vários eram os objetivos, mas, basicamente, Baden-Powell queria formar uma juventude desenvolvida, física e moralmente, que, com suas virtudes, pudesse contribuir para o desenvolvimento da nação inglesa. Ao se referir à finalidade do movimento, ele diz: [...] procurar melhorar o padrão dos futuros cidadãos, especialmente seu caráter e sua saúde. Era preciso descobrir os pontos fracos do caráter nacional e esforçar-se por erradicá-los, substituindo-os por virtudes equivalentes que educação e civismo 47 os programas escolares não mencionavam. As habilidades manuais, as atividades ao ar livre e o serviço ao próximo estavam na vanguarda desse programa [escoteiro] [Baden-Powell, 1986b, p. 53]. O objetivo do movimento seria alcançado a partir do aprendizado da “arte mateira” (técnicas de sobrevivência na natureza em condições adversas). A partir desta concepção é que Baden-Powell criou o escotismo. Durante os acampamentos, os jovens participavam de jogos e atividades recreativas e ouviam “palestras” sobre questões morais; este momento de conversas e de reflexão era chamado no Brasil de “fogo do conselho”. Outras atividades eram realizadas nas cidades, tais como trabalhos assistenciais e encontros de estudo de temas morais e de técnicas relacionadas à sobrevivência no campo. Acredito que o movimento teve, no período estudado, forte característica militar. Sua própria origem revela isto, pois sua base foi pensada e gestada para o treinamento de militares; o que ocorreu depois foi uma “adaptação”: a pedagogia se voltou para crianças e jovens. “O escotismo, enquanto pedagogia de civismo, condensou diversas vertentes de movimentos de intervenção extra-escolar na educação de crianças e jovens desde o século XIX, que enfatizavam a insuficiência da escola na formação de ‘caráter’ e a necessidade de constituição de uma nacionalidade ‘forte’” (Zuquim & Cytrynowicz, 2002, p. 45). A doutrina badeniana no Brasil Durante as décadas de 1910 e 1920, importantes políticos e intelectuais brasileiros apoiaram o escotismo. Num período onde a preocupação era “integrar e controlar as massas” e formar uma consciência de nação brasileira, o escotismo era visto como uma solução para a educação das crianças e jovens. A primeira entidade representativa do escotismo no Brasil foi criada em 1914, a Associação Brasileira de Escoteiros (ABE). Instalada em São Paulo, nela atuavam figuras políticas importantes, militares de alta patente e pessoas de destaque social. Seu primeiro vice-presidente foi 48 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Washington Luiz, que mais tarde ocupou os cargos de prefeito e governador de São Paulo e presidente da República (Blower, 1994)5. Já nos primeiros anos da chegada do escotismo ao Brasil o movimento ganhou força. Em 1917, o decreto federal n. 3.297 considerou de utilidade pública as associações brasileiras de escoteiros com sede no Brasil, comprovando o status alcançado pelo movimento. Acredito que o sucesso do escotismo no Brasil, nas décadas de 1910 e 1920, assim como na Europa, está relacionado a um contexto de crise e de valorização da idéia de nação e de nacionalismo e de surgimento de novas práticas pedagógicas que valorizavam atividades inovadoras na formação moral dos educandos6. O Brasil viveu, no início do século XX, uma crise do regime e das idéias liberais. Esta crise está diretamente relacionada ao agravamento da questão social, que passou a representar o grande problema a ser resolvido. Era preciso reforçar o controle sobre as massas e integrá-las politicamente. Nesse sentido germinaram idéias nacionalistas vindas da Europa e reinterpretadas no Brasil. Os grupos de intelectuais e ideólogos brasileiros nacionalistas propunham a criação e difusão de uma nova identidade, uma identidade coletiva. O movimento escoteiro era visto como uma possibilidade de educação voltada para os interesses nacionalistas naquele momento. Assim como Baden-Powell, os nacionalistas brasileiros acreditavam que o escotismo criaria cidadãos responsáveis, capazes de enfrentar as adversidades, conscientes de seus deveres para com a pátria, além de proporcionar um treinamento pré-militar, importante no caso de eventuais conflitos entre nações. Em termos pedagógicos, o Brasil vivia, nas décadas de 1910 e 1920, um momento de implementação de novas idéias e métodos. “O escotismo surgiu em uma época em que brincadeiras e jogos adquiriram um novo significado para os educadores. A recreação tornou-se uma ferramenta a 5 6 Informações factuais sobre o escotismo brasileiro no período de 1910 a 1924 podem ser encontradas no livro de Bernard David Blower, História do Escotismo Brasileiro (1910-1924), os primórdios do escotismo no Brasil. Sobre este assunto, ver o trabalho de Judith Zuquim e Roney Cytrynowicz “Festa de escotismo, Programma”, 1917, em Blower (1994, p. 127). educação e civismo 49 mais na formação do caráter, o que refletia não apenas novos modelos pedagógicos mas também novas atitudes em relação ao brincar e jogar” (Zuquim & Cytrynowicz, 2002, p. 50). Na década de 1910, surgiram no Brasil diversos movimentos de valorização do civismo e do nacionalismo. Os movimentos mais conhecidos e estudados são a Liga de Defesa Nacional, a Liga Nacionalista de São Paulo, ambos paulistas, a Propaganda Nativista e a Ação Social Nacionalista, com sede no Rio de Janeiro. Dentre esses movimentos, o mais importante foi a Liga de Defesa Nacional. Criada em 1916, a Liga defendia a elevação da consciência cívica através da educação e do serviço militar obrigatório. Estes movimentos tinham a educação como ponto central para a implementação de seus projetos políticos. O poeta Olavo Bilac, principal fundador da Liga de Defesa Nacional, tinha um grande trânsito entre as elites civis paulistas e se aproveitou disto para promover a idéia da instrução militar como solução para os “problemas nacionais”. As idéias de Bilac criaram a concepção “cidadão-soldado”, que pressupunha que o exército e a educação marcial seriam uma boa saída para o enfrentamento da desorganização e dos conflitos sociais e para a produção de cidadãos aptos a “defenderem” a nação brasileira. Ao citarmos a Liga de Defesa Nacional, o que mais nos interessa é sua relação com o movimento escoteiro. Se para os adultos a Liga propunha o serviço militar, para as crianças e os jovens ela propunha o escotismo. Um trecho de seu estatuto, citado por Horta (1994, p. 11), expõe alguns dos objetivos: “[...] difundir a instrução militar nas diversas instituições, desenvolver o civismo, o culto do heroísmo, fundar associações de escoteiros, linhas de tiro e batalhões patrióticos [...] difundir nas escolas o amor à justiça e o culto do patriotismo”. Bilac foi um ardoroso defensor do serviço militar obrigatório e do escotismo. Ele acreditava que o movimento criado por Baden-Powell, assim como o militarismo, teria uma ação educadora benéfica na sociedade brasileira. Para Bilac, a dinâmica do movimento escoteiro estava relacionada às artes marciais e daí o incentivo da Liga à criação de “associações de escoteiros”. O poeta via no escotismo a possibilidade de grandeza da pátria: 50 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 No escotismo a idea de honra define-se: é a honra do individuo e a honra do cidadão; o desinteresse e a magnanimidade não são apenas gestos formosos; são acções justas e uteis, – justas para a perfeição humana, e util para a grandeza da Patria [Blower, 1994, p. 127]. Bilac, juntamente com outro poeta de renome, Coelho Netto, prefaciou o primeiro manual escoteiro lançado no Brasil, em 1916, intitulado O livro do escoteiro. Assim como Olavo Bilac, outras figuras de destaque apoiavam o escotismo e dele faziam propaganda. Em São Paulo, a Associação Brasileira de Escoteiros (ABE) recebeu todo apoio da Liga de Defesa Nacional. A entidade de escoteiros era filiada à Liga, que por sua vez incentivava grupos de escoteiros de outros estados a se filiarem à ABE. No Rio de Janeiro, surgiram durante as décadas de 1910 e 1920 diversas entidades representativas do movimento escoteiro. Em 1924, as entidades com sede na capital federal se reuniram e fundaram a União dos Escoteiros do Brasil (UEB). A partir de 1924, a UEB se tornou reconhecidamente a entidade máxima representativa do escotismo brasileiro, posição que ocupa até hoje. O primeiro presidente da UEB foi Afonso Pena Júnior, então Ministro da Justiça. Ele sempre foi ligado ao escotismo e em 1936 publicou o livro A educação pelo escotismo. O escotismo fazia parte do discurso político de diversos segmentos da sociedade, principalmente daqueles que defendiam o nacionalismo como estratégia para construção de uma identidade brasileira. A Igreja católica também atuava de forma marcante no movimento escoteiro7. Em 1921 foi criada a Associação de Escoteiros Catholicos do Brazil (AECB), cujos estatutos diziam: A Associação de Escoteiros Catholicos do Brazil tem por fim desenvolver na juventude, o vigor e a destreza physica, o espirito de iniciativa, a rapidez nas 7 O livreto Sobre o escotismo, da coleção Documentos Pontifícios, publicado pela editora Vozes, traz documentos produzidos pelos Papas Bento XV, Pio XI e Pio XII relacionados ao escotismo. educação e civismo 51 decisões, a coragem, o sentimento da responsabilidade e dignidade pessoal, a honra, e o patriotismo por meio dos methodos creados pelo General BadenPowell, e sob inteira obediência aos princípios, dogmas e leis da Egreja Catholica8. Além dos “nacionalistas” e da Igreja, o exército também se interessava pela doutrina de Baden-Powell. Prova disso é a grande quantidade de chefes escoteiros militares. O Estado também tinha simpatia pelo movimento. Em 1928, o governo federal, através do decreto n. 5.497, assegura a UEB “o direito de porte e uso de todos os uniformes, emblemas, distintivos, insígnias e lemas que forem adaptados pelos seus regulamentos, aprovados pelo Governo da República, como é necessário para a realização dos seus fins”. Vale lembrar que o presidente da República, Washington Luiz, que assina o decreto, havia sido vice-presidente da ABE em anos anteriores. Esse decreto também previa o apoio institucional do governo ao escotismo: “O Governo promoverá a adoção da instrução e educação escoteiras nos colégios e institutos de ensino técnico e profissional mantidos pela União”9. Também a Associação Brasileira de Educação, criada em 1924, e que, segundo alguns analistas, teria sido um catalisador do movimento renovador da educação, tinha grande simpatia pela doutrina de Baden-Powell. “O escotismo – fusão exemplar de vida saudável e moralizada – era iniciativa que contava com todo o apoio da Associação Brasileira de Educação” (Carvalho, 1998, p. 180). Prova disto é a presença de teses defensoras do movimento nas “famosas” Conferências Nacionais da Educação. Podemos concluir que, durante as décadas de 1910 e 1920, o escotismo recebeu o apoio de diversos grupos políticos, inclusive do governo federal, que viam no movimento a possibilidade de educação e dou- 8 9 ESTATUTOS E REGIMENTO INTERNO DA ASSOCIAÇÃO DE ESCOTEIROS CATHOLICOS DO BRAZIL, 1921, p. 3. A partir de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas, o escotismo receberá um apoio ainda maior do governo federal. Legalmente, esse apoio é oficializado com a lei n. 342, de 12 de dezembro de 1936, que “institui o escotismo nas escolas primárias e secundárias do país”. 52 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 trinação da juventude de acordo com valores considerados necessários naquele momento. Há diversas afinidades entre as idéias políticas de organização social propostas pelos intelectuais do nacionalismo brasileiro e o movimento escoteiro. Teóricos como Oliveira Viana, Azevedo Amaral e Francisco Campos, ícones intelectuais da corrente nacionalista na primeira metade do século XX, não pensavam de forma idêntica, mas há um conjunto de princípios que os une. Eles concordavam acerca da necessidade de construção de uma identidade coletiva brasileira e suas teorias apresentam uma crítica ao presente com propostas de mudança para a construção desta “identidade” (Fausto, 2001, p. 48). O movimento escoteiro seria uma das “organizações” sociais capazes de auxiliar a promoção dessa mudança necessária, educando crianças e jovens patriotas e integrando-os à vida social e política brasileira. A idéia de que o movimento escoteiro formaria jovens integrados à pátria, de acordo com o pensamento dos autores citados anteriormente, pode ser percebida em diversos documentos do período. Temas como eugenia, trabalho, integração social e política das massas aparecem com constância nos discursos produzidos pelo movimento e sobre o movimento. O Ementario do escoteiro, bosquejo de instrucção theorica, publicado pela ABE em 1920, foi elaborado em forma de perguntas e respostas. Uma delas é a seguinte: Por que e para que ser escoteiro? Para se tornar, quando homem, um cidadão util á Pátria e aos outros homens; preparado para lucta da vida; firme na sua vontade e no seu caráter; resoluto na sua iniciativa; cumpridor dos deveres que lhe incumbem ou tiver de assumir; forte, enfim, no corpo e na alma, patriota sem bairrismos, economico sem avareza, generoso sem desperdicios, corajoso sem bravatas, altivo sem soberba e respeitador incondicional dos fracos e dos velhos, das creanças e das mulheres, das flôres, das aves, de todos os animaes e dos direitos próprios e alheios [ABE, 1920, p. 6]. O documento deixa claro que a primeira virtude de um escoteiro é: “se tornar, quando homem, um cidadão util á Pátria”. O escoteiro também educação e civismo 53 seria um cumpridor de seus deveres e patriota “sem bairrismos”, o que contribuiria para a criação da tão sonhada “identidade nacional”. Fica claro também a valorização do escotismo enquanto promotor de uma coesão social, o que, na época, era visto como uma necessidade urgente, no intuito de garantir o controle sobre as “massas”. Noutro trecho, ao explicar parte do juramento escoteiro, invoca-se novamente o patriotismo, além da valorização da importância do trabalho para a pátria: Amar a minha patria e servil-a fielmente na paz e na guerra. Sim! O escoteiro deve ter sobretudo bem vivo o amor de sua patria, desejal-a forte, livre, respeitada e gloriosa. Para assim a poder ver, é mister que pela pratica constante de seus deveres, o escoteiro de hoje possa ser o cidadão de amanhã, obreiro do progresso e amigo da ordem; e, no dia em que a Pátria precisar de defeza, ser o soldado forte e valoroso, que pela Pátria se sacrifique e a defenda com o seu corpo e com a sua alma! Até lá o escoteiro servirá a patria com a sua actividade e o seu trabalho [idem, p. 14]. O Guia do escoteiro, um dos manuais escoteiros mais populares da década de 1920, também se refere ao patriotismo: O escoteiro é patriota. Está sempre prompto para servir ao paiz. Respeita voluntariamente as leis e as autoridades costituidas e esforça-se para que todos as respeitem. Conhece a historia, a organização patria, desde a sua origem. Prepara-se com interesse para poder cumprir bem os seus deveres de cidadão quando attingir a sua maioridade. Tem orgulho de ser brasileiro e procura seguir o exemplo dos que se dedicaram e morreram pelo Brasil [Velho Lobo, 1925, p. 18]. Aqui novamente invoca-se a idéia de que o escotismo é uma escola que forma cidadãos patriotas e integrados à sociedade. Um novo elemento é a valorização dos “heróis” brasileiros, aqueles cujo exemplo deve ser seguido. A associação entre escotismo e eugenia também foi marcante naquele período. O discurso do chefe Antônio Pereira da Silva, proferido em Barbacena e publicado pelo Diário da Manhã em 1927, mostra-nos isto: 54 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 O escoteirismo, podemos dizer, é o cadinho onde procuramos apurar a nossa raça; é a pedra de toque do futuro cultivo das populações, porque, nesta escola, a mocidade vae beber os principios salutares de um triplice caracter: physico, moral e intellectual. Educar a creança na escola do são escoteirismo é preparal-a para encarar com serenidade e impavidez a defeza da Patria10. A idéia de educação integral também está presente nos discursos acerca do escotismo. A educação integral – educação física, intelectual e moral –, apela para a indissociabilidade entre corpo e espírito e para a necessidade do processo educativo seguir as mesmas leis da natureza (Souza, 2000, p. 107). Um resumo do discurso de Afonso Pena Júnior durante uma cerimônia no Palácio da Liberdade (sede do governo mineiro), publicado no jornal Minas Gerais, aponta para a questão da formação integral através do escotismo: “O escoteirismo não é simples gymnastica não é mero esporte, nem é apenas educação militar. É a preparação do homem integral, pela completa fortaleza physica, civica e moral, de cujo esforço possa a patria esperar confiadamente”11. Como demonstrei, Baden-Powell acreditava que a vida “rústica” praticada no escotismo propiciaria uma boa formação para os jovens. Ele contrapunha a modernidade das grandes cidades à vida bucólica dos campos. No Brasil, Alberto Torres – um dos precursores do pensamento nacionalista autoritário – influenciado por teóricos da direita européia como Barrès e Maurras, contrapunha campo e cidade com sinais, respectivamente, positivo e negativo (Fausto, 2001, p. 26). Uma das virtudes do escotismo seria possibilitar esta volta ao campo, idéia presente na Europa e na sociedade brasileira e expressa nos discursos acerca do movimento: E avulta ser o escoteirismo, uma reacção contra o viciado e depauperador espirito das “urbs” que ameaça degenerar a mocidade, enfraquecel-a, aniquilal-a. 10 Associação dos Escoteiros de Barbacena. Diário. 11 “Sete de Setembro”, Minas Geraes, Belo Horizonte, 9 set. 1927. educação e civismo 55 Com o escoteirismo, a creança, libertando-se do circulo de influencia do espirito urbanista, irá vitalizar-se nos campos, longe do “struggle-for-life” da cidade, garantido-nos dest’arte, uma nova raça, pujante e victoriosa12. Portanto, durante as décadas de 1910 e 1920, o movimento escoteiro encontrou grande apoio na sociedade brasileira. Este “sucesso” da doutrina de Baden-Powell no Brasil, ao nosso ver, se explica pela crença no movimento como uma oportunidade de se implementar projetos políticos e concepções pedagógicas vigentes na época, principalmente aqueles de valorização da nação, do patriotismo e da idéia da necessidade de criação de uma identidade nacional. Escotismo em Minas Gerais Em Minas Gerais, a partir da segunda metade da década de 1920, surgiram grupos escoteiros organizados nas principais cidades, graças ao apoio do governo estadual. Nesse período foi organizada também a Federação Mineira de Escoteiros (FME), órgão máximo do escotismo mineiro, filiada à UEB e a ela subordinada. Meu objetivo é demonstrar como o escotismo se desenvolveu e se estruturou em Minas, nos anos de 1926 a 1930, graças à reforma educacional proposta por Francisco Luiz Campos, então secretário do Interior responsável pela área da educação do governo de Antônio Carlos. Essa reforma previa a criação de grupos escoteiros vinculados aos grupos escolares e destinados a difusão do escotismo através da participação dos alunos matriculados nas escolas. O “apoio” dado ao escotismo mineiro se insere num contexto mais amplo de valorização do movimento ocorrida em todo Brasil. O escotismo era visto como uma escola para formação das crianças e jovens de acordo com princípios ideológicos e pedagógicos vigentes à época. 12 “Escoteirismo”, Diario de Minas, Belo Horizonte, 8 jan. 1928. 56 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Durante a década de 1910 e início da de 1920, o movimento escoteiro brasileiro esteve concentrado, principalmente, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Há notícias de grupos no resto do país, mas no Rio e em São Paulo eles existiam em maior número e contavam com entidades representativas. Em Minas Gerais encontramos diversas notícias sobre o escotismo no período anterior a 1926. As informações revelam a existência de poucos grupos e a falta de articulação do escotismo mineiro. Foi no governo de Fernando Melo Viana (1922-1926) que o escotismo saiu dos discursos políticos patrióticos para se tornar um movimento doutrinário e educacional dos jovens, organizado e com o apoio oficial do estado. O regulamento do Gymnasio mineiro, de 30 de janeiro de 1926, previa: Art. 170 – A cargo do professor de educação physica e sob a direcção do reitor, que organizará instrucções adequadas será instituida no Gymnasio a escola de escoteiros. O Gymnasio mineiro dividia-se num externato com sede em Belo Horizonte e num internato em Barbacena. Em Belo Horizonte, foi criado em 30 de maio de 1926 o grupo escoteiro previsto no regulamento do Gymnasio, sob orientação do professor de educação física Antônio Pereira da Silva. Em 14 de julho do mesmo ano foi criada a Associação de Escoteiros do Gymnasio Mineiro13. Em 25 de novembro de 1926 foi fundado, por iniciativa de chefe Pereira, o Grupo de Escoteiros Populares, independente do Gymnasio mineiro. Esses foram os dois primeiros grupos surgidos em Belo Horizonte nesta “nova era” de apoio estatal14. Em setembro de 1926, Antônio Carlos Andrada assumiu a presidência do estado. Durante seu governo o escotismo se fortaleceu não apenas em Belo Horizonte, mas em toda Minas Gerais. A reforma educacional implementada por Francisco Campos, reconhecido teórico do pensa- 13 “Recordando”, Estado de Minas, Belo Horizonte, 11 maio 1928. 14 Idem. educação e civismo 57 mento nacionalista brasileiro, enquanto secretário de Estado do Interior do governo de Andrada, foi o grande reconhecimento estatal da importância do escotismo para a formação das crianças e jovens. A partir de 1927, o chefe Pereira, sempre acompanhado de escoteiros belorizontinos, iniciou viagens pelo interior do estado com o intuito de divulgar a doutrina de Baden-Powell. Em janeiro ele foi a Barbacena fundar o grupo de escoteiros daquela unidade do Gymnasio mineiro, como previsto no regulamento da instituição. Em maio, os escoteiros belorizontinos estiveram em Juiz de Fora onde já existiam grupos escoteiros. Em julho, novamente os escoteiros voltaram a Barbacena. A convite do doutor Amando Brasil de Araújo, presidente da Câmara Municipal, realizaram-se duas reuniões para a reorganização da Associação de Escoteiros de Barbacena. O discurso de chefe Pereira, publicado no Jornal de Barbacena, na ocasião, nos dá mostras do interesse do governo na fundação de grupos escoteiros: É desejo do exmo. sr. dr. Antonio Carlos, intensificar o movimento escoteiro em nosso Estado e assim já foram fundadas em Juiz de Fora e Bello Horizonte associações escoteiras, que vão em franco progresso, mostrando grandes resultados. [...] Já certa vez, por esforço e enthusiasmo do nosso conterraneo, dr. Brasil de Araújo, foi aqui fundado um grupo de escoteiros, que, infelizmente, não logrou progresso por faltar o necessário apoio governamental. Agora, porem, graças ao espirito lucido e pratico do nosso presidente e seus auxiliares; homens que encaram os grandes problemas nacionaes, bem comprehenderam a necessidade, na epocha, da introducção em nosso meio, de tão uteis ensinamentos. Felizmente, o movimento cresce dia a dia e assim em breve teremos a alegria de ver uma nova geração de moços fortes, disciplinados e patriotas, graças aos ensinamentos do grande General Baden-Powell15. 15 “Associação dos Escoteiros de Barbacena”, O Jornal de Barbacena, Barbacena, 14 jul. 1927. 58 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 O jornal publicou ainda o texto de um telegrama enviado por Amando Brasil ao presidente Antonio Carlos: “com viva satisfação tenho a honra de communicar a v. exc. haver-se fundado hoje, em reunião por mim convocada, presente professor Pereira da Silva, a Associação Barbacenense de Escoteiros, acudindo assim patriotico appello sua plataforma”. Note-se que Amando Brasil diz ter criado a associação de escoteiros de acordo com a plataforma do presidente Antônio Carlos. A revista Anaúê, publicada em 1928, traz uma reportagem intitulada “O escoteirismo e o sr. presidente do estado”. Na matéria, relembra-se o apoio dado pela gestão de Antônio Carlos à doutrina de Baden-Powell. Ela traz também trechos de um discurso proferido por Antônio Carlos quando ainda candidato a presidência, em 23 de janeiro de 1926: Pela instituição do escoteirismo tenho a mais decidida sympathia, convencido de que nela se encontra o complemento natural e a cooperação eficaz para a obra da escola primaria. Tal sympathia e tal convicção derivam dos fins a que essa instituição se entrega e que são os de pugnar pela educação da mocidade, despertando-lhe, principalmente os sentimentos moraes e civicos, o espírito de iniciativa e de bondade, a abnegação e a alegria, ao mesmo tempo cuidando do seu aperfeiçoamento physico, dando aos moços conhecimentos directos da natureza, infundido-lhes ao caracter os predicados de intrepidez e disciplina, praparando-os, enfim, para a vida do trabalho intenso e para a exacta compreensão e pratica concetaneas aos deveres civicos16. Esta simpatia declarada ao escotismo por Antônio Carlos ficou explícita quando foi eleito presidente. A reforma educacional implementada em seu governo valorizou o movimento, incentivando a criação de tropas escoteiras através da divulgação dos valores positivos do escotismo e do apoio institucional do Estado. O ano de 1927 foi marcado por uma vasta campanha de incentivo a criação de grupos escoteiros em diversas cidades do interior de Minas e 16 Anaúê, Belo Horizonte, Associação Mineira de Escoteiros, n. 1, jul. 1928. educação e civismo 59 em todos os grupos escolares da capital, como veremos a seguir. Oficialmente, o apoio estatal surgiu a partir da aprovação do Regulamento do Ensino Primário proposto por Francisco Campos. Esse regulamento foi a base de uma ampla reforma no ensino primário no Estado. Com relação ao escotismo, ele previa a existência da Inspetoria de Educação Física subordinada a Inspetoria Geral da Instrução Pública, que era encarregada de auxiliar o governo na direção e administração do ensino primário. O regulamento dizia: “art. 94 – A Inspectoria da Educação Physica terá por fim: [...] h) incentivar e orientar a organização do escoteirismo nas escolas publicas, formando e preparando o necessario corpo de instructores”. Este regulamento previa ainda, na parte VI, “Das instituições escolares e das instituições complementares da escola”, a criação de instituições escolares complementares da escola. O escotismo é declarado uma destas instituições: Art. 207 – Será instituido entre os alumnos das escolas primarias, com caracter facultativo e como instrumento de educação physica, moral e cívica, o pequeno escoteirismo. Parag. 1º – A instrucção será ministrada por instructores escoteiros, fóra dos dias de funccionamento escolar, de accordo com as instrucções organizadas pela Inspectoria de Educação Physica. Parag. 2º – O director do estabelecimento, assim como o medico escolar, deve sempre ser ouvido sobre o horario, a duração e a natureza dos exercícios e scientificados dos alumnos que devem delles participar. O programa do ensino primário, aprovado pelo decreto n. 8.094, de 22 de dezembro de 1927, se refere ao escotismo da seguinte forma: Será instituido, diz o art. 207, do regulamento, entre os alumnos das escolas primarias, com caracter facultativo e como instrumento de educação physica, moral e civica, o pequeno escoteirismo. O escoteirismo é uma admiravel escola de educação, já consagrada nos mais importantes paizes do mundo pelos seus fructos grandiosos, alguns dos quaes se mostram vicejantes em nosso proprio paiz. 60 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Bem fariam os professores em conhecer o manual de Baden-Powell, notavel general inglez, que fundou o escoteirismo em 190817. Toda esta legislação demonstra o interesse do governo do presidente Antônio Carlos em difundir o escotismo no sistema público educacional. Esse apoio ao escotismo em Minas Gerais se insere num contexto de idéias nacionalistas que propunham uma educação cívico-patriótica e com aspectos militares. É interessante notar que em outros estados brasileiros, como no Rio de Janeiro, o escotismo se desenvolveu muito em função de um atrelamento a instituições militares. Mesmo em Minas Gerais temos o exemplo de Juiz de Fora que, talvez por contar com a maior presença de instituições militares, já possuía em 1927 vários grupos escoteiros em funcionamento. Mas, no estado como um todo, o escotismo só veio a se desenvolver a partir da reforma educacional de 1927. Chefe Pereira teve importante participação no encaminhamento desta política. Ele foi encarregado de orientar a formação de grupos e de instrutores para atuar junto aos grupos escoteiros. Sua ação ocorreu em Belo Horizonte e no interior. Para a realização dos objetivos do governo era necessário despender recursos para financiar viagens do chefe Pereira, juntamente com escoteiros da capital, ao interior, além da participação dos escoteiros mineiros em encontros fora do estado e até mesmo fora do país. Era necessário, também, a compra de equipamentos e investimento nas “tropas” escoteiras. Para “bancar” essas despesas, o governo de Antônio Carlos previu em seu primeiro ano de mandato uma verba destinada a subvenção do escotismo. Pela lei n. 1.003, de 21 de setembro de 1927, que fixou a despesa e orçou a receita para o exercício de 1928, foi garantido o Auxílio ao escoteirismo no valor de 100:000$000 (cem contos de réis). Este valor, se comparado, por exemplo, ao destinado ao pagamento de todo pessoal empregado no ensino superior durante o ano 1928, 17 Minas Gerais, “Decreto n. 8.094, de 22 de dezembro de 1927: approva os programmas do ensino primário”, em Collecção das Leis e Decretos, 1927, vol. III. Belo Horizonte, Imprensa Official do Estado, 1928. educação e civismo 61 119:000$000 (cento e dezenove contos de reis), demonstra ser uma quantia razoável para gastos com o escotismo em um ano18. A partir da legislação podemos notar como se deu o apoio institucional ao escotismo em Minas Gerais, principalmente durante o governo de Antônio Carlos. Esse incentivo, previsto na legislação, fortaleceu o movimento no estado. A partir de então fundaram-se diversos grupos e uma entidade representativa e organizacional do movimento, que o estruturou em “bases mais sólidas”, como veremos a seguir. Em julho de 1927, a fusão do grupo Associação de Escoteiros do Gymnasio Mineiro ao Grupo de Escoteiros Populares deu origem a Associação Mineira de Escoteiros (AME)19. Dentre suas responsabilidades estava a formação de chefes escoteiros para atuarem junto aos grupos escolares e a manutenção do antigo grupo de escoteiros do Gymnasio mineiro. Ainda neste mesmo mês, em telegrama datado do dia 19, o conselho diretor da União dos Escoteiros do Brasil informou ao chefe Pereira sua nomeação para delegado da UEB em Minas Gerais, em virtude de sua “efficiente acção digna todo louvor pro escotismo mineiro”. A criação da AME sob a direção de chefe Pereira e sua nomeação como representante da UEB em Minas indicam marcos importantes: a criação de uma entidade representativa do escotismo mineiro e sua inserção na estrutura de organização nacional do movimento. Em Belo Horizonte foram criadas, no decorrer de 1927, “tropas” escoteiras em todos os grupos escolares. Um jornal de agosto noticia um bivaque20 na “Caixa de Areia” (localizada na Serra do Curral), promovido pela AME, com a participação de 400 escoteiros21. Surgiram grupos vinculados a outras escolas como Colégio Arnaldo, Escola Italiana Dante Alighieri, Escolas Reunidas Lucio dos Santos. 18 Minas Gerais, “lei n. 1.003, de 21 de setembro de 1927: fixa a despesa e orça a receita para o exercicio de 1928”, em Collecção das leis e decretos, 1927, vol. I. Belo Horizonte, Imprensa Official do Estado, 1928. 19 “Recordando”, Estado de Minas, Belo Horizonte, 11 maio 1928. 20 “Bivaque” era o nome dado ao dia em que os escoteiros iam para o campo desenvolver atividades diversas. 21 “Escotismo”, Minas Geraes, Belo Horizonte, 17 ago. 1927. 62 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Foi criado também um grupo no America Football Club. A criação desses grupos, fora da tutela do estado, demonstra a simpatia da sociedade pelo movimento. Nas escolas estaduais, a princípio, somente os meninos participavam das atividades escoteiras. O sucesso do movimento levou a criação de grupos femininos, em julho de 1927. Em 28 de agosto de 1927, foi realizada uma “imponente cerimônia cívica dos escoteiros” belorizontinos. Na praça da Liberdade – com a presença do presidente do estado, de todos os secretários de estado, do presidente da Câmara dos Deputados, do prefeito, de vários oficiais do exército e da força pública, senadores, deputados e jornalistas – foram entregues 30 estrelas numa cerimônia onde 76 noviços juraram a bandeira22, com a presença de 267 escoteiros. Este tipo de cerimônia foi comum durante o governo de Antônio Carlos e acontecia não só em Belo Horizonte, mas também no interior. No interior foram várias as visitas realizadas por chefe Pereira e seus escoteiros a fim de fundar grupos. Nos anos de 1927 e 1928, além de Barbacena e Juiz de Fora, já citadas, chefe Pereira esteve em Oliveira e em Palmyra. O primeiro aniversário do governo de Antônio Carlos foi marcado por grandes festividades. Nesse dia se reuniram em Belo Horizonte escoteiros de todo estado. Os acontecimentos foram amplamente divulgados não apenas pela imprensa mineira. O Jornal do Brasil noticiou o apoio do estado ao escotismo: Os (grupos) escoteiros com que conta actualmente o Estado de Minas Geraes, foram na maioria, fundados e agrupados pelo governo, sendo que pelo mesmo já foram uniformisados e equipados 1.750 escoteiros, além de diversos outros auxilios prestados as tropas escoteiras23. 22 A “estrela” era um distintivo entregue ao escoteiro de acordo com o tempo de militância no movimento. O juramento da bandeira ocorria quando os “noviços” eram aceitos no movimento, após cumprirem uma série de provas. 23 “Concentração em Bello Horizonte”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 set. 1927. educação e civismo 63 O Jornal do Brasil fala na presença de dois mil escoteiros durante as festividades, enquanto o Correio da Manhã 24 anuncia quatro mil. O fato é que estiveram presentes grupos de escoteiros de Barbacena, Montes Claros, Juiz de Fora, São João Del Rei e Curvelo, além dos belorizontinos. O evento marcou de forma acentuada a reafirmação de duas idéias, seja através dos discursos proferidos, seja através das publicações da imprensa: a lembrança de que o escotismo se desenvolveu em Minas através do apoio do governo estadual e a importância do escotismo para a formação das crianças e jovens. Ainda durante as comemorações do primeiro aniversário do governo de Antônio Carlos, no dia 8, os escoteiros de Montes Claros fizeram uma visita ao presidente no Palácio da Liberdade, onde homenagearamno. Atendendo a um pedido de Antônio Carlos, Afonso Pena Júnior, então presidente da UEB, proferiu um discurso em saudação aos escoteiros. O Minas Geraes publicou um resumo do discurso, ao que tudo indica, elaborado pelo próprio jornal: Disse que náo havia ainda um anno que, pela primeira vez, se fizera ouvir em Minas, pelo escoteirismo, a palavra de um grande chefe, e os resultados já eram aquelles que Bello Horizonte, há dois dias, vinha premiando com o mais quente aplauso e o mais ardente enthusiasmo de seu civismo. O presidente Antônio Carlos, o grande chefe a que se referia, fazendo o que tem feito, com exito pleno, pelo escoteirismo, deixou evidenciado que não pregara por essa cruzada de patriotismo, com palavra van, em busca de popularidade, mas como é do feitio do eminente estadista, com palavra convencida,com palavra nascida do coração e da sinceridade. [...] O escoteirismo não é simples gymnastica não é mero esporte, nem é apenas educação militar. É a preparação do homem integral, pela completa fortaleza physica, civica e moral, de cujo esforço possa a patria esperar confiadamente. Saudando os escoteiros de Montes Claros, o voto que formulava era por que o enthusiasmo daquelles jovens patricios se communicasse avassalador, como 24 “Primeiro anniversário do Governo Antonio Carlos”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 9 set. 1927. 64 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 a chamma de um incendio grandioso de civismo, ao espirito de toda a mocidade mineira, porque assim acontecendo, Minas terá um novo, poderoso, inestimavel elemento populsor do progresso e da grandeza da nossa terra25. As festividades funcionaram como um marco para o escotismo mineiro, pois foi a primeira grande concentração de escoteiros de todo o estado. Além disto, essa foi a oportunidade de divulgação para todo Brasil do progresso encontrado pelo movimento em Minas Gerais e de glorificação da atitude do governo de Andrada ao investir na escola badeniana. O ano de 1928 foi marcado pela consolidação da política de investimento no escotismo em Minas Gerais. No decorrer do ano os grupos continuaram desenvolvendo atividades diversas, com grande entusiasmo. Durante a última semana de abril de 1928 foi comemorada a Semana Escoteira. Em Belo Horizonte foram várias as festividades e daqui saiu, no dia 25, um grupo de 102 escoteiros para participar das comemorações no Rio de Janeiro. Os escoteiros mineiros ficaram acampados no Parque Fagundes Varella, em Niterói, durante alguns dias, juntamente com grupos cariocas26. Essa foi a primeira participação dos escoteiros mineiros num evento fora do estado e serviu para divulgar nacionalmente a política adotada pelo governo de Antônio Carlos com relação ao movimento. No decorrer da semana escoteira carioca, chefe Pereira foi batizado com o codinome “Onça Pintada”. Simbolicamente, esse batismo, ocorrido entre os chefes cariocas, marca a entrada de chefe Pereira nesse grupo. Era no Rio de Janeiro que estava instalada a sede da UEB e o escotismo já era bastante consolidado no estado. Portanto, esse evento marca mais uma etapa da “evolução” do escotismo mineiro: a participação dos grupos mineiros no movimento em nível “nacional” e o reconhecimento por parte dos dirigentes da importância do novo momento vivido em Minas. 25 “Sete de Setembro”, Minas Geraes, Belo Horizonte, 9 set. 1927. 26 “Escoteiros em Nitheroy”, O Estado, Niterói, 27 abr. 1928. educação e civismo 65 A visita dos escoteiros mineiros foi retribuída no mês de setembro; durante as comemorações do dia 7, vinte escoteiros do Rio de Janeiro e quarenta de Petrópolis estiveram em Belo Horizonte. Acompanhando os escoteiros cariocas estavam os chefes Jensen, Guilherme Azambuja e Gabriel Skinner, que eram figuras importantes do movimento escoteiro brasileiro à época. Numa cerimônia ocorrida no Parque Municipal, os chefes cariocas entregaram ao chefe Pereira o “distintivo máximo do escotismo”, a cruz suástica27, concedido a pessoas que prestavam relevantes serviços ao movimento28. Ainda em 1928, a Associação Mineira de Escoteiros passa a se chamar Federação Mineira de Escoteiros (FME) por sugestão de Azambuja Neves, presidente da UEB29. A FME passou a atuar como entidade de representação do escotismo mineiro junto a UEB. A partir de 1929 podemos notar uma certa desmobilização das tropas escoteiras em Belo Horizonte. Já nos primeiros anos da década de 1930, não mais existiam os grupos de escoteiros vinculados aos grupos escolares. Esse processo de enfraquecimento do movimento foi gradual e acredito ter relação com dois fatores: o decréscimo do apoio dado pelo governo de Antônio Carlos Andrada e, em 1930, a ascensão de Olegário Maciel, que não previa em seu programa um incentivo tão grande ao escotismo como o dado por Andrada. Apesar dessa “desmobilização” ocorrida a partir de 1929, o governo ainda dava provas de seu interesse pelo escotismo. Um grupo de 19 escoteiros de Minas Gerais foi, juntamente com outros 35 escoteiros brasileiros, participar do 3º Jamboree Mundial 30, na cidade de Birkenhead, Inglaterra, no mês de agosto. A delegação mineira foi para o encontro graças a uma subvenção de 90 contos de réis dada pelo governo mineiro. O jornal do grupo Guia Lopes, de 1933, traz um pequeno artigo analisando o movimento em Minas: 27 Em minha monografia, já citada, fiz um estudo sobre os símbolos e ritos presentes na dinâmica do movimento escoteiro. 28 “Escoteirismo”, Diario de Minas, Belo Horizonte, 11 set. 1928. 29 “Escoteirismo”, Estado de Minas, Belo Horizonte, 31 out. 1928. 30 Jamboree é o encontro internacional de escoteiros. Ocorre até hoje, periodicamente. 66 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 O escotismo mineiro tem tido no decurso de 1928 para cá uma boa dose de infelicidade. Passamos a explanar os motivos porque assim dizemos: Há 6 anos, Pereira da Silva fez de mil jovens da nossa capital, mil batalhadores da grandiosa obra de Baden Powel. Depois Pereira organiza a Federação Mineira de Escoteiros, a Federação Mineira de Escoteiros não apoiou o escotismo como deveria. E com isso nosso escotismo, tão bem levantado por Pereira da Silva, caiu quase em franca decadencia e sinão assim, porque essa mesma figura a quem o escotismo já devia a sua fundação e propagação em nossa terra ainda soube tira-lo dos escombros em que jazia31. Nesse artigo passa-se a idéia de que a FME, órgão que possuía a função de estimular e coordenar o movimento escoteiro em Minas não o fazia de forma satisfatória. A figura do chefe Pereira é vista como de essencial importância para o movimento; ele, pessoalmente, teria sido o responsável por impedir que o movimento morresse. É preciso compreender qual é a “infelicidade” do movimento escoteiro em Minas a partir de 1928, citada no jornal. A reforma educacional, implantada pelo governo de Antônio Carlos em 1927, dava grande importância ao escotismo, que passou a ser subvencionado e apoiado pelo estado. Num primeiro momento, em 1927 e 1928, houve a criação de diversos grupos que funcionavam “a todo vapor”. Já no ano de 1929 houve uma estabilização e o movimento deixou de crescer tanto, o que pode ter sido confundido com uma queda, já que o movimento vinha num processo de amplo crescimento, seja através da criação de grupos, seja através do desenvolvimento de atividades próprias do escotismo. Prova da força que o movimento mineiro ainda tinha em 1929 foi a participação no Jamboree na Inglaterra com o “patrocínio” estatal. Em setembro de 1930, o governo de Antônio Carlos chega ao fim e com ele esta “era” de desenvolvimento e apoio ao escotismo. Não quero dizer que o escotismo em Minas sucumbiu a ponto de voltar a ser o que 31 “De ves em vês”, O guia Lopes, Belo Horizonte, 15 jan. 1933 educação e civismo 67 era antes de 1926, pelo contrário, durante a gestão de Antônio Carlos o movimento se articulou em todo estado. Com o final da gestão, desapareceram diversos grupos escoteiros ligados aos grupos escolares. Mas, talvez para “compensar” o fim desses grupos, surgiram outros grupos independentes que não contavam com o apoio estatal. O impulso dado ao escotismo durante a presidência de Antônio Carlos foi essencial ao movimento, pois a partir daí a escola de Baden-Powell se tornou conhecida em Minas Gerais. Após o fim do governo de Antônio Carlos, a ação desenvolvida pelos escoteiros durante os conflitos que levaram a ascensão de Getúlio Vargas demonstra que os escoteiros continuavam mobilizados. Em matéria no jornal Estado de Minas, intitulada “A acção efficaz dos escoteiros da Associação Guia Lopes”, noticia-se a mobilização dos escoteiros para ajudar as pessoas durante aqueles dias. “Há tres dias que esses bravos jovens prestam o seu concurso á assistência, em geral.[...] O chefe geral dos escoteiros, Pereira, está sempre no grupo escolar ‘Rio Branco’ a fim de dirigir mais outros serviços que se destinem a socorros de qualquer natureza e a qualquer pessoa”32. O jornal A Tarde assim se refere a participação dos escoteiros: “Sempre alertas, sempre garbosos, sempre altivos, os soldados da flôr de lys estão dando as melhores das suas energias para a victoria da causa que empolga e arrasta a nacionalidade – a causa da legalidade! Bravos, valentes escoteiros!”33. Um artigo do escoteiro Herbert Brant Aleixo, publicado no Jornal do Brasil em 1933, faz uma análise da situação do movimento em Minas a partir da década de 1930: Há cerca de dois anos, o escotismo mineiro, talvez mesmo por influencia do periodo latente por que passava a instituição em todo o Brasil, sofreu grandemente, tanto em seu enthusiasmo quanto em seu trabalho. A FME, a quem competia fazer viver e vibrar o escotismo no nosso meio, não dando cumprimento aos seus fins, pelo desinteresse da maioria dos seus elementos, 32 “A acção efficaz dos escoteiros da Associação ‘Guia Lopes’”, Estado de Minas, Belo Horizonte, 8 out. 1930. 33 “Os escoteiros e a revolução”, A Tarde, Belo Horizonte, 24 out. 1930. 68 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 ainda mais aumentava a decadência por que passava o nosso escotismo. Os grupos desappareceram como fruto do desinteresse da FME, e muito também pela falta de apoio material e mesmo moral do actual Governo Mineiro... Só funcionavam os grupos Guia Lopes e o Barão de Macahubas quando Pereira da Silva ficou doente. Aparece então o amor pela causa e o esforço dos que a compreendem e a admiram. Em Outubro do anno passado (1932), surge na capital uma Associação Escoteira (Associação Auxiliar do Escotismo). O seu programa, se bem que não seja completo não é mau. Há esforço e boa vontade. Há entre gente leiga na nossa causa, pessoal antigo34. Este artigo nos ajuda a entender algumas questões sobre a crise pela qual passou o escotismo mineiro a partir de 1930 e lança a idéia de que este momento se insere num contexto maior de dificuldades do escotismo nacional. Herbert reforça a idéia de que a FME se omitiu no apoio que deveria dar ao escotismo; além disso, ele afirma que grupos desapareceram “tambem pela falta de apoio material e mesmo moral do actual Governo Mineiro...”. Essa fala reforça minha afirmação de que com a saída de Antônio Carlos e a eleição de Olegário Maciel o escotismo perdeu prestígio dentro do governo e, conseqüentemente, as verbas e o “apoio moral” diminuíram35. No início de 1932, chefe Pereira foi para Barbacena fazer um tratamento médico e ficou afastado durante quase um ano. Nesse período, o grupo Guia Lopes e o da Escola Barão de Macahubas encerram suas atividades. Estes eram os dois únicos grupos remanescentes da década de 1920 que ainda atuavam. O Guia Lopes, que era o antigo grupo do Gymnasio mineiro, fundado ainda no governo de Mello Viana, chefiado por Pereira da Silva, reaparece no final de 1932 graças a mobilização de antigos escoteiros que mesmo sem a presença do antigo chefe retomam 34 “O Escotismo Mineiro, breve histórico”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 jan.1933. 35 Com o fim do governo de Antônio Carlos Andrada, houve um “retrocesso” na política educacional mineira. Várias ações e práticas inovadoras, implementadas por Andrada, foram suspensas após 1930. Sobre este assunto, ver o artigo de Ana Maria Casasanta Peixoto, “Triste retrato: a educação mineira no Estado Novo”. educação e civismo 69 as atividades do grupo. Sem dúvida, a doença de chefe Pereira, no início de 1932, foi um novo fator que levou à desmobilização ainda maior do escotismo mineiro. Herbert aponta ainda uma terceira questão para explicar a situação do escotismo mineiro: “[...] há cerca de dous annos, o escotismo mineiro, talvez mesmo por influencia do periodo latente por que passava a instituição em todo o Brasil, soffreu grandemente, tanto em seu enthusiasmo quanto em seu trabalho”. De fato, no início da década de 1930, houve uma crise nacional do escotismo. Em novembro de 1932 foi organizado no Rio de Janeiro um grande “fogo do conselho” destinado a marcar o “reerguimento do escotismo patrio”36. Não se sabe ao certo que motivos levaram a esta crise do escotismo nacional mas, ao que tudo indica, está relacionada com o momento político conturbado pelo qual passou o país no ano de 1930 e a mudança do grupo político no controle do estado. O fato é que a crise nacional tem relação com a crise no estado de Minas. Esse é um tema para um trabalho mais amplo e que pretendo estudar durante a pesquisa de mestrado que estou cursando. Neste artigo, procurei analisar a formação e disseminação do movimento escoteiro em Minas Gerais nos anos de 1926 a 1930. Pode-se concluir que o escotismo estava inserido num contexto republicano de renovação educacional, em que o civismo e a formação pré-militar faziam parte de programas de ensino primário. A defesa do escotismo não se restringiu aos programas educacionais, vários grupos e organizações políticas apoiaram o movimento. Ele esteve presente nos discursos políticos e recebeu o apoio institucional de diversas esferas governamentais. Em meu trabalho, detive-me no estudo do escotismo em Minas, mas também em São Paulo os ensinamentos de Baden-Powell fizeram “grande sucesso”; em 1921, uma Reforma da Instrução Pública decretou: “todos os alunos matriculados nas escolas públicas seriam considerados aspirantes a escoteiros” (Souza, 2000, p. 112). 36 “Extraordinaria concentração escoteira promovida pelo Correio da Manhã na explanada do Castelo”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 nov. 1932. 70 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 No Brasil, os anos de 1910 e 1920 foram marcados por discursos sobre a necessidade de controle social e de construção de um sentimento nacional e de um povo (raça) forte, viril, patriota. A educação era tida como um espaço privilegiado para a busca destes objetivos; o escotismo foi uma das “instituições auxiliares educacionais” com este intuito. Acredito que a grande difusão do movimento foi uma resposta social a um momento em que, através da educação, tentava-se reverter os males da degeneração física e moral causada pelas condições sociais da vida moderna. Neste sentido, o movimento possuía caracteríscas da direita política; concordo com Zuquim e Cytrynowicz, “[...] embora de certa matriz identificada com o conservadorismo, o escotismo é peculiar em sua configuração ideológica, compartilhando, inclusive, valores e ideais [...] com movimentos de espectro socialista e comunista” (2002, p. 51). Em todo o mundo, a doutrina, os valores e a ritualística do movimento escoteiro estavam ligados a um contexto de emergência do nacionalismo e da busca pela construção de identidade e formação das nações. Nesse contexto, o escotismo se encaixou “como uma luva” para a formação das crianças e adolescentes. A dinâmica do movimento procurava criar nos jovens o patriotismo e a coesão do grupo e, acima disso, o fortalecimento do sentimento de pertencimento à nação. Referências Bibliográficas BADEN-POWELL, Robert Stephenson Smyth (1986a). Escotismo para rapazes. Brasília: Editora Escoteira da União dos Escoteiros do Brasil. . (1986b). Lições da escola da vida, auto-biografia de BadenPowell. Brasília: Editora Escoteira da União dos Escoteiros do Brasil. BLOWER, Bernard David (1994). História do escotismo brasileiro: os primórdios do escotismo no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Cultural do Movimento Escoteiro. BOULANGER, Antonio (2000). O chapelão, histórias da vida de Baden-Powell. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora. CAMPOS, Francisco (1941). Educação e cultura. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. educação e civismo 71 CARVALHO, Marta Maria Chagas de (1998). Molde nacional e fôrma cívica: higiene, moral e trabalho no projeto da Associação Brasileira de Educação (19241931). 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ESTATUTOS E REGIMENTO INTERNO DA ASSOCIAÇÃO DE ESCOTEIROS CATHOLICOS DO BRAZIL. Rio de Janeiro, Brasil, 1921. 74 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Diderot e o sentido político da educação matemática Maria Laura Magalhães Gomes* A historiografia das idéias pedagógicas destaca Denis Diderot (1713-1784) como um defensor do ensino científico, em oposição ao literário, como a base da educação. No Plano de uma universidade, proposto por Diderot a Catarina da Rússia, o conhecimento matemático tem uma posição privilegiada. Neste artigo, discutimos algumas idéias do enciclopedista sobre a educação matemática e procuramos colocar em evidência a ligação entre essas idéias e o pensamento político do autor. DIDEROT; MATEMÁTICA; EDUCAÇÃO MATEMÁTICA; HISTÓRIA DAS IDÉIAS PEDAGÓGICAS; INSTRUÇÃO PÚBLICA. The historiography of pedagogical ideas presents Denis Diderot (1713-1784) as a thinker who struggles for scientific education, in opposition to literary education, as the basis of public instruction. In the Plan of an University, written by Diderot in an answer to the empress Catherine of Russia, mathematical knowledge plays a very important role. In this article, we discuss some of Diderot’s ideas about mathematical education and try to emphasize the connections between those ideas and the author’s political thinking. DIDEROT; MATHEMATICS; MATHEMATICAL EDUCATION; HISTORY OF PEDAGOGICAL IDEAS; PUBLIC INSTRUCTION. * Doutora em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (2000). 76 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Introdução As referências a Denis Diderot (1713-1784) em alguns textos que focalizam a história da educação enfatizam especialmente sua defesa da instrução pública organizada e dirigida pelo Estado independentemente da Igreja, fundamentada no predomínio do ensino científico sobre o ensino literário. Diderot vê na educação um fator primordial para a vida individual e social e afirma que a instrução deve dar oportunidades a todos de acordo com seus méritos e capacidades. Contudo, embora sublinhe a importância da educação, Diderot procura também relativizar uma possível confiança ilimitada em seu papel, considerando que nela influem de maneira decisiva as faculdades e disposições naturais de cada indivíduo (Abbagnano & Visalberghi, 1995; Boto, 1996; Luzuriaga, 1990; Snyders, 1977). Autores como Manacorda (1997) e Snyders (1977) acentuam, além desses aspectos, o reconhecimento do valor das artes mecânicas por parte do principal editor da Enciclopédia, destacando seu esforço pela compreensão das relações entre cultura e trabalho ou, num vocabulário mais afeito ao Século das Luzes, entre a geometria das academias e a das oficinas. Em 1775, Diderot enviou à imperatriz Catarina II a encomenda feita por ela de um projeto de instrução pública para a Rússia, o Plano de uma universidade (ou de uma educação pública em todas as ciências); nesse escrito, o filósofo expõe suas idéias a respeito da escola a que deveriam ter acesso, após alguma instrução primária1, todos os filhos de uma nação. Ao apresentar sua proposta para o primeiro curso de estudos da Faculdade das Artes2, Diderot dispõe na primeira classe – precedendo os estudos relativos às demais ciências, às línguas, à literatura, à 1 2 Nas palavras de Diderot: “Suponho que aquele que se apresenta à porta de uma universidade saiba ler, escrever e ortografar corretamente sua língua; suponho que ele sabe dispor os caracteres da aritmética; o que ele deve ter aprendido ou na casa de seus pais ou nas escolas primárias” (Diderot, 2000, p. 284). Diderot, embora condene radicalmente o modelo da Sorbonne, organiza a universidade de acordo com a estrutura francesa: todos os estudantes freqüentariam primeiramente a Faculdade das Artes, em três cursos de estudos que durariam de sete a oito anos. Os que terminassem tais cursos entrariam em seguida em uma das três faculdades superiores – medicina, direito ou teologia. diderot e o sentido político da educação matemática 77 metafísica, à religião e à história – a aritmética, a álgebra, o cálculo de probabilidades e a geometria, escrevendo: Eu começo o ensino pela aritmética, pela álgebra e pela geometria, porque em todas as condições da vida, desde a mais elevada até a última das artes mecânicas, tem-se necessidade desses conhecimentos. Tudo se conta, tudo se mede. O exercício de nossa razão se reduz freqüentemente a uma regra de três. Não há objetos mais gerais do que o número e o espaço [Diderot, 1875, t. III, p. 452]. Nessa passagem podemos constatar o lugar privilegiado da educação matemática na proposta diderotiana; essa posição nos remete tanto à busca da compreensão das relações entre a pedagogia de Diderot e a matemática quanto à pesquisa das ligações do editor da Enciclopédia com a matemática. A historiografia da matemática faz poucas menções a Diderot e em geral tende a considerar que o enciclopedista não contribuiu significativamente na produção do conhecimento matemático. Entretanto, Diderot não desconhecia totalmente o campo, e a prioridade que concede aos temas matemáticos em sua proposta curricular de estudos para todos os filhos de uma nação não é acidental, pois seus escritos em diferentes fases da vida atestam sua reflexão constante sobre questões epistemológicas próprias da matemática, bem como sobre questões ligadas à metodologia, à psicologia e, sobretudo, às finalidades e aos valores da educação matemática3. Neste artigo vamos analisar, em alguns escritos de Diderot, aspectos que nos parecem fundamentais à compreensão de seu pensamento no que concerne à educação matemática. Quero evidenciar, especialmente, a integração desse pensamento à filosofia política de Diderot. Começo pelo exame da localização e da caracterização da matemática na árvore dos conhecimentos da Enciclopédia. 3 Venturi (1988), além de destacar, como outros estudiosos de Diderot, o fato de ter o filósofo, em sua juventude, se sustentado dando aulas particulares de matemática, escreve que talvez tenha sido esse conhecimento aquilo que de mais profundo e duradouro lhe deixou a passagem pela escola. Venturi enfatiza o interesse de Diderot pela matemática durante toda a sua vida. 78 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 A localização e o estatuto da Matemática na Enciclopédia O exame da Explicação detalhada do sistema de conhecimentos humanos (Diderot & D’Alembert, 1989) – que originalmente completava o Prospecto da Enciclopédia – mostra a localização da matemática na divisão geral dos conhecimentos humanos proposta pelos dois editores, seguindo a divisão do Chanceler Francis Bacon (1561-1627): ela comparece no ramo da filosofia, que é associado à faculdade da razão4. Esse ramo, considerado por Diderot e D’Alembert o mais extenso e importante de seu sistema5, bem como o mais diferenciado em relação à árvore dos conhecimentos de Bacon, divide-se, por sua vez, em Ciência de Deus, Ciência do Homem e Ciência da Natureza6, e essa última subdivisão é composta pela matemática e pela física7. Torna-se importante chamar a atenção para a classificação da matemática como Ciência da Natureza, tendo em vista que ao introduzir o ramo da filosofia ou ciência, os editores afirmam que o homem aprendeu a história da natureza mediante o uso de seus sentidos exteriores, enquanto o conhecimento de Deus foi alcançado pela “reflexão sobre a História Natural e sobre a História Sagrada” e o do homem “pela consciência ou sentido interior” (Diderot & D’Alembert, 1989, p. 117). Eis o que diz a Explicação sobre a Ciência da Natureza: Alcançamos através dos sentidos o conhecimento dos indivíduos reais: Sol, Lua Sírio etc., Astros; Ar, Fogo, Terra, Água etc., Elementos; Chuvas, Neves, Granizos, Trovões etc., Meteoros; e assim para o resto da História Natu- 4 5 6 7 Na proposta de Diderot e D’Alembert, a divisão das ciências origina-se nas três faculdades principais do entendimento – a memória, a razão e a imaginação – das quais surgem, respectivamente, a história, a filosofia e a poesia. Darnton (1996) afirma que a filosofia não era um ramo, mas o tronco principal da árvore da Enciclopédia. Segundo Darnton (1996), os editores da Enciclopédia submetem a religião à filosofia, e elevam a Ciência da Natureza, excluindo de sua obra aquilo que não pudesse alcançar a razão através dos sentidos. Para Diderot e D’Alembert, a física é constituída pela zoologia, com seus vários ramos; pela astronomia física e pela astrologia; pela meteorologia; pela cosmologia; pela botânica; pela mineralogia e pela química (Diderot & D’Alembert, 1989). diderot e o sentido político da educação matemática 79 ral. Tomamos, ao mesmo tempo, conhecimento dos abstratos: cor, som, sabor, odor, densidade, rarefação, calor, frio, moleza, dureza, fluidez, solidez, rigidez, elasticidade, peso, leveza etc.; figura, distância, movimento, repouso, duração, extensão, quantidade, impenetrabilidade” [idem, p. 119]. Na disposição da matemática no subramo da filosofia chamado Ciência da Natureza, podemos observar a influência da doutrina de John Locke (1632-1704): a fonte e a matéria do conhecimento são a sensação (a percepção dos sentidos) e a reflexão (a percepção de nós mesmos). Como Ciência da Natureza, a matemática é considerada como um conhecimento produzido pelo homem por sua reflexão a partir da experiência sensível, e seu objeto é um dos abstratos, a quantidade, que é “uma propriedade mais geral dos corpos, e que todas as outras supõem”. As noções de quantidade e de grandeza se confundem: “Chama-se quantidade ou grandeza tudo o que pode ser aumentado ou diminuído”8 (idem, ibidem). Três diferentes modos de se considerar a quantidade produzem três tipos de matemática: a matemática pura, que advém de se considerar a quantidade sozinha ou independentemente dos indivíduos reais e abstratos dos quais nos vem seu conhecimento, ou seja, trata da quantidade abstrata; a matemática mista considera a quantidade nesses indivíduos reais ou abstratos; a física matemática analisa a quantidade em seus efeitos a partir de causas reais ou supostas. Enquanto os dois primeiros tipos são subdivididos e detalhados no texto da Explicação, o terceiro 8 Também em outro contexto, o do manual inacabado que iniciou para o ensino da matemática (Primeiras noções sobre as matemáticas para uso das crianças, ou Primeiro livro clássico do primeiro curso de estudos) visando o Plano de uma universidade, Diderot define as matemáticas como todas as ciências cujo objeto é a quantidade ou a grandeza, e acrescenta: “Por essas palavras – quantidade ou grandeza – entende-se tudo aquilo que se pode conceber como composto de partes, tudo o que é, por conseguinte, suscetível de aumento ou de diminuição” (Diderot, 1975, p. 366). Schubring (2000) comenta que as definições de “grandeza” e “quantidade” na Enciclopédia mostram grande aproximação, e que mesmo hoje em dia não se distinguem claramente os dois termos. Esse autor refere-se ainda à crítica de D’Alembert à definição de grandeza como tudo aquilo que é suscetível de aumento ou diminuição: D’Alembert considera que a luz, que pode ser diminuída ou aumentada, seria impropriamente considerada uma grandeza de acordo com essa definição. 80 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 não é subdividido ou pormenorizado, seja nesse texto, seja no Sistema figurado dos conhecimentos humanos (idem). Analisando o detalhamento que é apresentado para a matemática pura e a matemática mista na Explicação, constatamos que essa última inclui algumas ciências que hoje situaríamos no campo da física, como a mecânica, a astronomia, a ótica, a acústica, ou ainda em outros campos, como a geografia, a perspectiva, a navegação, a arquitetura naval e a arte de conjecturar (a probabilidade ou análise dos acasos). A matemática pura, que lida com a quantidade abstrata, compreende os tópicos que nos são mais familiares quando temos como referência os conteúdos da matemática escolar. Com exceção do cálculo das probabilidades, estão nessa subdivisão da matemática os itens enumerados para a educação matemática que Diderot propõe a Catarina II – os temas integrantes da primeira classe da Faculdade das Artes, a ser cursada por todos. Na Explicação detalhada do sistema de conhecimentos humanos, ao deter-nos na apresentação da matemática pura, constatamos mais duas divisões quanto à natureza da quantidade abstrata focalizada: a aritmética, cujo objeto é a quantidade abstrata enumerável, e a geometria, que tem por objeto a quantidade abstrata extensa. A primeira tem mais subdivisões: aritmética numérica ou por algarismos, e álgebra ou aritmética universal por letras. A álgebra, que ainda pode ser separada em álgebra elementar e álgebra infinitesimal, de acordo com a natureza das quantidades às quais é aplicada,“não é outra coisa senão o cálculo das grandezas em geral, e cujas operações não são propriamente senão operações aritméticas indicadas de uma forma abreviada: pois, para falar com exatidão, somente há cálculo de números” (idem, p. 119). Quanto à geometria, o texto da Explicação esclarece que seu objeto primitivo são as propriedades do círculo e da linha reta (geometria elementar) ou ainda de qualquer tipo de curva (geometria transcendente). O cálculo das probabilidades, muito valorizado na primeira classe do Primeiro Curso de Estudos do Plano de uma universidade, é apresentado brevemente na Explicação como a ciência da matemática mista na qual a quantidade é considerada na possibilidade dos acontecimentos. Na Observação sobre a divisão das ciências do Chanceler Bacon (Diderot & D’Alembert, 1989), Diderot põe em destaque que a Enciclo- diderot e o sentido político da educação matemática 81 pédia adota a divisão baconiana das matemáticas em puras e mistas. De fato, em sua obra Progresso do conhecimento, ao discutir as matemáticas, Bacon as divide em puras e mistas, numa concepção muito semelhante à do texto da Explicação: As matemáticas são puras ou mistas. Às matemáticas puras pertencem aquelas ciências que lidam com a quantidade determinada, apenas separadas de quaisquer axiomas da filosofia natural, e elas são duas – a geometria e a aritmética – uma aborda a quantidade contínua e a outra a quantidade dividida9. A matemática mista tem como tema alguns axiomas ou partes da filosofia natural, e considera a quantidade determinada, já que as auxilia e a elas se refere. Pois muitas partes da natureza não podem ser concebidas com suficiente argúcia, demonstradas com suficiente clareza, ou adaptadas ao uso com suficiente habilidade sem a ajuda e a intervenção das matemáticas: são desse tipo a perspectiva, a música, a astronomia, a cosmografia, a arquitetura, a engenharia e diversas outras [Bacon, 1952, p. 46]. A leitura da Explicação detalhada do sistema de conhecimentos humanos nos mostra, portanto, que para Diderot o objeto da matemática é a quantidade, um abstrato que os sentidos exteriores percebem; a partir dessa percepção, o entendimento produz o conhecimento pela reflexão. A reflexão operada pelo entendimento, no entanto, não é desinteressada; de fato, no Plano de uma universidade, que funda a seleção dos conteúdos a serem ensinados em sua utilidade, Diderot cita a matemática como uma ciência nascida da necessidade ou da carência, assim como a física, a medicina e o direito. O estatuto do conhecimento matemático é, então, o de um saber construído pelo homem em decorrência de necessidades de sua vida social. Todavia, se na Explicação, texto integrante da Enciclopédia, a matemática é uma das duas divisões da Ciência da Natureza, em outros escritos Diderot faz fortes restrições à fidelidade do reflexo que o conhe9 Para maior clareza, cito parte do texto de Bacon no original: “... and these are two, geometry and arithmetic; the one handling quantity continued, and the other dissevered”. 82 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 cimento matemático oferece quanto a essa mesma natureza. É esse o tema que focalizaremos a seguir. A matemática é insuficiente na interpretação da realidade física: ordem natural versus ordem intelectual. A condenação da abstração do conhecimento matemático por Diderot pode ser ilustrada pela seguinte passagem, na qual o filósofo critica de modo particular a apresentação consagrada por Euclides: Não existe na natureza nem superfície sem profundidade, nem linha sem largura, nem ponto sem dimensão, nem qualquer corpo que tenha essa regularidade hipotética do geômetra. Desde que a questão que se lhe propõe o faça sair do rigor de suas suposições, desde que ele seja forçado a fazer entrar na solução de um problema a avaliação de algumas causas ou qualidades físicas, ele não sabe mais o que faz; é um homem que coloca seus sonhos em equações, e que chega a resultados que a experiência quase nunca deixa de destruir [Diderot, 1875, t. XVI, pp. 475-476]. O exame dessa posição de Diderot remete-nos a Aristóteles (1952), em sua distinção entre física e matemática: os corpos físicos possuem superfícies e linhas que, não existindo separadas de sua encarnação material, são focalizadas pelo matemático não como limites desses corpos, mas de um modo isolado, mediante a eliminação de todas as suas qualidades sensíveis e o estudo exclusivo dos aspectos da quantidade e da continuidade. Essa atitude faz com que Aristóteles recuse explicações dos fenômenos naturais com base matemática e considere que a aritmética e a geometria não tratam “das realidades” (Guthrie, 1993). É sobretudo na obra Da interpretação da natureza, publicada pela primeira vez em 1753, portanto após o lançamento dos primeiros textos da Enciclopédia (ocorrido em 1750-1751), que Diderot expressa seu ponto de vista quanto à insuficiência da geometria10 no que se refere ao mundo físico: 10 É importante assinalar que no século XVIII as palavras “geometria” e “geômetra” são muito freqüentemente usadas, em sentido amplo, para designar, respectivamente, o conhecimento matemático em geral e o matemático. diderot e o sentido político da educação matemática 83 a região das matemáticas é um mundo intelectual no qual aquilo que se toma por verdades rigorosas perde totalmente essa vantagem quando se o transporta para o nosso terreno. Concluiu-se daí que cabia à filosofia experimental retificar os cálculos da geometria, e essa conseqüência foi reconhecida até mesmo pelos geômetras. Mas para que corrigir o cálculo geométrico pela experiência? Não é mais fácil ater-se ao resultado dela? Donde se vê que as matemáticas, sobretudo as transcendentes, não conduzem a nada de preciso sem a experiência; que é uma espécie de metafísica geral na qual os corpos são despojados de suas qualidades individuais; que restaria fazer, pelo menos, uma grande obra que poderia se chamar a Aplicação da experiência à geometria ou Tratado da aberração das medidas [Diderot, 1875, t. II, p. 10, grifo meu]. O contraste entre a matemática e a natureza, de acordo com Diderot, é posto em relevo por Schmitt (1997) ao citar uma passagem do Diálogo entre D’Alembert e Diderot na qual o último afirma que há um fim para a possibilidade de divisão da matéria na natureza, ainda que não exista termo para essa divisibilidade no entendimento. Assim, “o matemático trabalha sobre uma quantidade contínua, sobre um espaço divisível até o infinito, enquanto o mundo nos oferece uma quantidade descontínua, um espaço que justamente não é divisível até o infinito, uma extensão que não tem nada da homogeneidade, da imutabilidade daquela do geômetra” (Schmitt, 1997, p. 155). Na leitura de Crocker (1974), em Da interpretação da natureza, o ataque de Diderot ao enfoque da matemática devido à ausência de uma relação entre ela e a realidade física reflete sua concepção desse conhecimento como representante de “uma ordem intelectual, auto-contida, peculiar à mente humana” (Crocker, 1974, p. 14). Essa ordem se opõe à ordem da natureza, que só pode ser apreendida a partir da evidência experimental. Para Diderot, acrescenta Crocker, a falta de correspondência entre a ordem da natureza e a da matemática não se encontra apenas no aspecto convencional e circular da prova matemática, mas também no caráter imutável e estático das verdades que ela desenvolve. Essa posição parece atestada pela identificação, por parte do filósofo, da matemática com um jogo e do gênio matemático com o espírito 84 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 do jogo, e é por essa razão que ele chega até mesmo a considerar como esgotada a ciência matemática11. Ainda segundo Crocker, a matemática, na visão diderotiana, é “uma ordem criada pelas necessidades e pelo modo de operação do intelecto” (Crocker, 1974, p. 14). Retomaremos mais adiante o tema da ordem em Diderot para interpretar a preferência do enciclopedista pela colocação da matemática em primeiro plano na organização dos estudos que propõe a Catarina da Rússia. O posicionamento de Diderot quanto à insuficiência da matemática na interpretação da realidade física, entretanto, já havia se manifestado antes da publicação dos primeiros textos da Enciclopédia, na Carta sobre os cegos, em 1749. Considerando a abstração como a separação, pelo pensamento, das qualidades sensíveis dos corpos, Diderot refere-se à ocorrência, nas questões físico-matemáticas, de enganos provenientes da excessiva simplificação dos objetos. A Carta sobre os cegos é apontada por muitos autores como um marco na evolução do pensamento diderotiano – como nota Romano (1996a), ela sinaliza uma aventura do espírito na qual dissolve-se a 11 Projetando no passado o seu conhecimento sobre a matemática desenvolvida até meados do século XX, Mayer (1959, p.101) vê essa consideração diderotiana a respeito do esgotamento das possibilidades de novos conhecimentos matemáticos como um “erro evidente” do enciclopedista. Para esse estudioso de Diderot, a explicação para tal ponto de vista estaria na falta de intimidade do filósofo com as renovações introduzidas na matemática a partir dos trabalhos de Newton e Leibniz no campo do cálculo diferencial e integral. Todavia, parece-nos necessário dizer, em contraposição a Jean Mayer, que no século XVIII, até mesmo quem estivesse familiarizado com os desenvolvimentos do cálculo diferencial e integral poderia defender a afirmação sobre o esgotamento da matemática. Na verdade, somente no século seguinte surgiram, por exemplo, os trabalhos concernentes às geometrias não-euclidianas e à álgebra que desmentiram essa afirmação. Como assinala Grabiner (1974), as preocupações quanto aos diferentes aspectos da matemática mudam com o tempo, e uma mudança fundamental marca a transição entre os séculos XVIII e XIX. Jean Mayer, entretanto, levanta dois outros argumentos para explicar a atitude de Diderot: o primeiro é o de que o ataque do enciclopedista às ciências racionais decorreria de seu entusiasmo pelas ciências experimentais; o segundo é o da possibilidade de existência de um sentimento de frustração de Diderot em relação a uma ciência na qual não era um profissional como seu amigo D’Alembert. diderot e o sentido político da educação matemática 85 metafísica e abre-se a via para o mundo físico e humano. Chama-nos a atenção a passagem a seguir, em que Diderot rejeita a doutrina filosófica pitagórica, não só por seu distanciamento do mundo físico, mas por sua inacessibilidade à capacidade humana: Há uma espécie de abstração da qual muito poucos homens são capazes, pois ela parece reservada às inteligências puras; é aquela pela qual tudo se reduziria a unidades numéricas. É preciso convir que os resultados dessa geometria seriam bem exatos, e suas fórmulas bem gerais, porque não há objetos, seja na natureza, seja no possível, que essas unidades simples não possam representar – pontos, linhas, superfícies, sólidos, pensamentos, idéias, sensações, e... se, por acaso esse fosse o fundamento da doutrina de Pitágoras, poder-se-ia dizer dele que fracassou em seu projeto, já que essa maneira de filosofar está demasiado acima de nós, e demasiado próxima da do Ser supremo que, segundo a expressão engenhosa de um geômetra inglês12, geometriza perpetuamente no universo. A unidade pura e simples é um símbolo demasiado vago e demasiado geral para nós. Nossos sentidos nos conduzem a signos mais análogos ao alcance de nosso espírito e à conformação de nossos órgãos [Diderot, 1951, p. 855, grifo meu]. Na passagem anterior, podemos observar que Diderot se afasta da concepção de Locke em relação à apreensão humana da unidade numérica, uma vez que para o inglês Entre todas as idéias que temos, como não há nenhuma outra sugerida ao espírito de mais maneiras, não existe nenhuma mais simples que a de unidade ou um – nela, não há sombra de variedade ou composição: todo objeto em relação ao qual empregamos os sentidos, toda idéia em nosso entendimento, todo pensamento de nossas mentes traz consigo essa idéia. E, portanto, é a mais íntima aos nossos pensamentos, bem como, por seu acordo a todas as outras coisas, a idéia mais universal que temos [Locke, 1952, p. 165]. 12 Guinsburg (Diderot, 2000) anota que Diderot refere-se a Joseph Rason, um discípulo de Newton. 86 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Nas palavras finais da Carta sobre os cegos, Diderot realça a incerteza de qualquer conhecimento, questionando até mesmo as verdades geométricas: Interrogai matemáticos de boa fé, e eles vos confessarão que suas proposições são todas idênticas e que tantos volumes sobre o círculo, por exemplo, se reduzem a nos repetir de cem mil maneiras diferentes que é uma figura na qual todas as linhas traçadas do centro à circunferência são iguais [Diderot, 1951, pp. 890-891]. Schmitt (1997) qualifica de “fundamental” essa última passagem da Carta, analisando com profundidade a posição de Diderot, o qual chama a atenção para o caráter da demonstração de uma proposição matemática – ela consiste essencialmente em fazer ver que a proposição é tautológica a proposições já admitidas. Para Diderot, portanto, a certeza da matemática reside no raciocínio que emprega, e não em suas idéias. Não há, contudo, identificação entre o pensamento do enciclopedista e as concepções cartesianas quanto à clareza da matemática estar fundada no inatismo das idéias que a ela se referem na mente humana. Como já foi dito, Diderot considera que o conhecimento matemático resulta, em sua base, da experiência dos sentidos. É interessante registrar a retomada da idéia relativa à matemática como arte de estabelecer identidades no Plano de uma universidade, pois nesse contexto, em vez de sublinhar um aspecto desfavorável, Diderot parece estar mais preocupado em salientar as vantagens, por sua simplicidade, do conhecimento matemático na formação dos jovens quando diz que É sobretudo nas matemáticas que todas as verdades são idênticas; toda a ciência do cálculo não é senão a repetição deste axioma – um e um são dois – e toda a geometria não é mais do que a repetição deste – o todo é maior que sua parte [Diderot, 1875, t. III, p. 454]. Mayer (1959) adverte-nos no sentido de não acentuar demasiadamente as falas diderotianas a respeito do convencionalismo da matemá- diderot e o sentido político da educação matemática 87 tica e da limitação de suas aplicações13. Isso porque é o mesmo Diderot quem critica os seus próprios excessos quando os percebe na afirmação de Helvétius (1715-1771) de que todos aceitam a verdade das demonstrações geométricas por serem indiferentes à verdade ou à falsidade dessas demonstrações. De fato, na Refutação de Helvétius14, o principal editor da Enciclopédia enumera muitos profissionais cujo trabalho se fundamenta na geometria – o arquiteto, o pintor, o desenhista de perspectiva, o encarregado de finanças, o engenheiro, o mecânico, o construtor de navios, o óptico, o agrimensor, o geógrafo, o astrônomo – para argumentar contra o engano de Helvétius. Também no verbete Arte da Enciclopédia, a despeito de sublinhar a indispensabilidade dos conhecimentos físicos aos artesãos e afirmar que “aquele que só tem a geometria intelectual, ordinariamente é um homem bastante inábil”, Diderot diz que “um artista que tem apenas a geometria experimental é um obreiro muito limitado” (Diderot, 1989, p. 154). Em Diderot convivem, assim, duas tendências opostas: a crítica ao conhecimento matemático por seu distanciamento em relação ao mundo físico e por seu traço característico de repetidor de identidades, e o reconhecimento simultâneo do valor desse conhecimento. Mesmo vista como esfera intelectual ou espécie de metafísica que afasta o homem da natureza, a matemática tem um posto de enorme relevância na proposta pedagógica do enciclopedista. Como veremos, para Diderot a matemática é um conhecimento fundamental na educação requerida pelo contexto do século XVIII; seus resultados têm imenso valor prático; seu método 13 Rashed (1974) chama a atenção para diferenças entre os enciclopedistas quanto às relações entre as proposições matemáticas e as proposições empíricas, atribuindo a Buffon (1707-1788) e a Diderot a ênfase no aspecto convencionalista da matemática (nessa visão a certeza não está necessariamente ligada ao uso da demonstração matemática). Em contraposição, Rashed assinala que D’Alembert (1717-1783) e Condorcet (1743-1794) compartilham de outra concepção – a de que um conhecimento é verdadeiro somente quando se conforma ao raciocínio matemático e se submete ao controle do instrumento do geômetra. 14 Esse trabalho de Diderot, composto em 1773-1774, teve seu texto completamente publicado somente em 1875 (Dictionnaire des auteurs de tous les temps et de tous les pays, vol. II, pp. 14-15, 1989). 88 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 e sua linguagem tornam-na particularmente apropriada a formar o homem necessário à sociedade de seu tempo. Assim, é sobretudo no interior da reflexão política de Diderot que seu projeto pedagógico insere, de maneira indispensável, a educação matemática. Para compreender essa inserção, vamos nos dedicar em primeiro lugar, nesta ordem, ao enfoque da posição da educação matemática na proposta curricular e ao exame das potencialidades dos conteúdos matemáticos que Diderot nos oferece. A partir dessa análise, procuraremos situar suas concepções quanto à educação matemática sob a perspectiva de seu pensamento político. A posição da educação matemática na organização dos estudos proposta por Diderot Eu me ergo contra uma ordem de ensino consagrada pelo uso de todos os séculos e de todas as nações; e espero que me seja permitido ser um pouco menos superficial a respeito deste assunto DIDEROT, 2000, p. 310 A epígrafe anterior, transcrita do Plano de uma universidade, integra a introdução das considerações de Diderot sobre a oitava classe – “O grego e o latim. A eloqüência e a poesia ou o estudo das belas letras” – do primeiro curso de estudos da Faculdade das Artes no Plano de uma universidade. Observemos que o autor faz aí sobressair um traço básico de sua proposta pedagógica, sua oposição a uma ordem de ensino consagrada por todos os tempos e lugares; essa ordem confere, na formação dos jovens, a maior prioridade aos estudos literários e, de modo particularmente notável, ao estudo do grego e do latim. Se, como vimos, na Explicação detalhada do sistema de conhecimentos humanos publicada quando do lançamento da Enciclopédia, a matemática tem uma posição privilegiada – é uma das duas divisões da Ciência da Natureza, ramificação destacada do tronco mais prestigiado da árvore dos conhecimentos de Diderot e D’Alembert –, essa posição importante é mantida na formulação da proposta diderotiana de educa- diderot e o sentido político da educação matemática 89 ção pública para Catarina da Rússia, como salientei na introdução deste texto. A ordem dos estudos no Plano de uma universidade, afirma seu autor, tem como diretriz caminhar “da coisa fácil para a coisa difícil, ir desde o primeiro passo até o último, do que é mais útil para o que é menos; do que é necessário a todos ao que é apenas para alguns” (idem, p. 276). Como nem todos seguirão até o fim a avenida dos estudos, e o número de estudantes diminuirá à medida que nela avançarem, a primeira lição deve ser aquela que convém a todos, independentemente de sua condição social. Até o final dos estudos, os conhecimentos devem ser ordenados em ordem decrescente de sua utilidade. Vejamos mais de perto como, segundo esse princípio, Diderot estabelece sua seqüência de abordagem dos conteúdos. Conforme já foi dito, a matemática constitui a primeira classe do primeiro curso de estudos da Faculdade das Artes. A segunda classe compõe-se de conhecimentos da física (mecânica e hidráulica); a terceira classe aborda a geografia e a astronomia; a quarta classe refere-se à história natural e à física experimental; a quinta classe envolve a química e a anatomia. As três classes restantes do primeiro curso focalizam, nesta ordem, a lógica, a crítica e os princípios gerais de todas as línguas; a língua russa e a eslavônica; o grego, o latim, a eloqüência e a poesia. Paralelamente15 ao primeiro curso, Diderot propõe três outros, com menos classes, nos quais se encontram conhecimentos diversos: metafísica, moral, religião, história, geografia, economia, perspectiva, desenho, música, dança, esportes. Tendo em vista a pedra angular do edifício que projeta para a instrução pública – o princípio de utilidade – é clara a posição de Diderot: os 15 O Plano prevê que o segundo, o terceiro e o quarto cursos serão seguidos durante o mesmo tempo de duração do primeiro (Diderot, 2000). Explica Dolle (1973): todos os alunos passariam pelas classes desses três últimos cursos enquanto freqüentassem o primeiro. O primeiro curso constitui o ensino de base, e é completado pelo segundo, que deve ser seguido por todos os alunos até sua saída da Faculdade das Artes. Além disso, Diderot enfatiza que a importância do segundo curso reside na formação religiosa, cívica e moral dos estudantes. O texto do Plano deixa claro que as classes do primeiro curso teriam lugar pela manhã, e as do segundo à tarde. 90 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 conhecimentos científicos, presentes nas cinco primeiras classes do primeiro curso, são mais úteis do que os conhecimentos literários, que formam as três últimas. É importante assinalar que, assim como toma de empréstimo a Bacon a divisão dos conhecimentos humanos, o enciclopedista adota a proposta baconiana de inversão da hierarquia tradicional dos saberes (Luzuriaga, 1990; Oliveira, 2000). Além do princípio de utilidade, a ordenação dos estudos no Plano obedece à ligação entre as ciências16: assim, a mecânica e a hidráulica vêm após a aritmética, a álgebra e a geometria; os conteúdos da terceira classe são “puramente geométricos” e podem ser acompanhados porque “os alunos aprenderam tudo o que se faz necessário para se aplicar a eles” (Diderot, 2000, p. 298); a física experimental está na quarta classe porque “não há mecânica sem geometria; não há física experimental sem alguma tintura de mecânica” (idem, p. 300). A posição dos conteúdos matemáticos no conjunto dos temas científicos significa, à luz do princípio de utilidade que norteia a disposição dos estudos no Plano, que a aritmética, a álgebra, a geometria e o cálculo das probabilidades são os conhecimentos mais úteis, aqueles que devem ser aprendidos por todos. Interpretemos a utilidade da matemática como a sua dimensão prático/instrumental, isto é, aquela que se refere tanto ao serviço que o conhecimento matemático presta à vida social e às diversas ocupações ou profissões quanto ao fato de esse conhecimento possibilitar o acesso a outras ciências. Acreditamos que é essencial uma reflexão mais profunda acerca do peso que essa utilidade tem na prioridade que Diderot defende para a educação matemática. À primeira vista, parece que esse aspecto prático/instrumental tem completa preponderância sobre o potencial formativo dos conhecimentos matemáticos na proposta diderotiana. Diderot se afastaria, então, do Platão da República, o qual vê na potencialidade formadora da matemática o maior valor da educação matemática (Jaeger, 1979; Manacorda, 1997; Marrou, 1966; Miguel, 1995). Contudo, ainda que Diderot de 16 É oportuno lembrar que a palavra “enciclopédia” significa encadeamento das ciências. Etimologicamente, ela é composta de εν (em), κικλοσ (círculo) e παιδεια (ciência) (Diderot & D’Alembert, 1989, p. 139). diderot e o sentido político da educação matemática 91 fato acentue o valor prático/instrumental da matemática por sua presença nas artes mecânicas que tanto enaltece na Enciclopédia e pela necessidade desse conhecimento para a fundamentação das outras ciências, na leitura mais detida de seus escritos constatamos também a presença inequívoca de outro tipo de visão – aquela que põe em destaque as potencialidades formadoras do saber matemático. Vamos examinar as manifestações desses dois aspectos no trabalho do filósofo. As potencialidades dos conhecimentos matemáticos na educação: o prático/instrumental e o formativo no interior de um projeto político A importância da matemática como ferramenta para as ciências e as técnicas é ressaltada, como dissemos anteriormente, no verbete Arte da Enciclopédia e na Refutação de Helvétius. No Plano de uma universidade, o texto referente à primeira classe de estudos inicia-se pela colocação, por seu autor, da necessidade dos conhecimentos da aritmética, da álgebra e da geometria em todas as condições da vida, da mais elevada até a última das artes mecânicas, pelo fato de tudo se contar, tudo se medir. Mais adiante, no mesmo texto, Diderot faz questão de acrescentar à aritmética, à álgebra e à geometria, a ciência das combinações, ou o cálculo elementar de probabilidades. O conhecimento da aritmética, “de todas as ciências, a mais útil e a mais fácil” (Diderot, 2000, p. 285), junto com a alfabetização, é necessário a todos: “do primeiro-ministro ao último camponês, é bom que cada um saiba ler, escrever e contar” (Diderot apud Dolle, 1973, p. 20). Romano (2001) comenta que Diderot coloca o cálculo aritmético como algo que contribui para a afirmação da cidadania, uma vez que as classes mais desfavorecidas, dominando-o, não se deixarão enganar pelos poderosos. Diderot chama a atenção para o fato de que os conhecimentos da matemática são freqüentemente solicitados na vida social: as crianças, desde que nasceram até entrarem na escola, “não cessaram de somar, de subtrair, de medir” (Diderot, 1875, t. III, p. 453, grifo meu) porque vivem num mundo que demanda constantemente essas ações. 92 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Quanto à álgebra, embora não seja explícito, quer sobre seu uso prático, quer sobre suas vantagens no sentido formativo, o autor do Plano, a partir da concepção desse saber como aritmética generalizada, insiste sobre o fato de ser ela um conhecimento acessível: A Álgebra, cujo nome não assusta mais, não é senão uma aritmética mais geral que a dos números, tão clara quanto ela e mais fácil; são somente as mesmas operações, porém mais simples [idem, ibidem]. Em relação à geometria, já mencionamos a referência de Diderot à presença da medida nas práticas quotidianas da infância. No texto incompleto que deixou para a instrução das crianças em matemática, ao destacar a etimologia do termo “geometria” – “duas palavras gregas que significam medida da terra” (Diderot, 1975, p. 369), nosso autor chama a atenção mais uma vez para a origem prática dessa ciência: É, com efeito, bastante natural pensar que o primeiro uso que os homens dela fizeram logo que se encontraram reunidos em sociedade, tenha sido medir seus campos e verificar a sua extensão [idem, ibidem]. Porém, Diderot esclarece que, ainda que tenha sido esse o objetivo das primeiras operações geométricas, o uso dessa ciência se tornou muito mais universal – a ela concerne tudo o que é extenso, ou ainda, ela se refere às grandezas cujas partes são contínuas, isto é, unidas e ligadas entre si17. Mais adiante veremos que, mais do que a ênfase sobre o uso prático da geometria nas medições, é o papel formativo do conhecimento geométrico na educação moral e intelectual do homem necessário a uma sociedade em transformação que terá grande parte da atenção do enciclopedista. A parte relativa ao cálculo das probabilidades no Plano de uma universidade põe em relevo utilidades práticas menos imediatas da matemática do que as invocadas em favor da aritmética e da geometria: 17 Um todo composto por partes separadas umas das outras é, por sua vez, uma quantidade que se exprime por números, e é objeto da aritmética (Diderot, 1975). diderot e o sentido político da educação matemática 93 Eu acrescentei à aritmética, à álgebra e à geometria a ciência das combinações ou o cálculo das probabilidades, porque tudo se combina e porque, fora das matemáticas, o resto não é senão probabilidade; porque essa parte do ensino é de um uso imenso nos negócios da vida; porque ela envolve as coisas mais graves e as mais frívolas; porque ela se estende às nossas ambições, aos nossos projetos de fortuna e glória, e aos nossos divertimentos... [Diderot, 1875, t. III, p. 456]. O texto prossegue com a enumeração das aplicações da ciência das probabilidades às matérias de legislação, aos seguros, às loterias, à maioria dos objetos de finanças e comércio. As noções do cálculo das probabilidades são, então, introduzidas no currículo de Diderot da escola para todos, em grande parte, porque podem ser usadas em muitas situações práticas da vida. Ressaltemos ainda, nestes comentários sobre o papel prático/instrumental da matemática nas concepções diderotianas, a indicação da essencialidade da apropriação de seus conteúdos para o acesso às outras ciências úteis, como a mecânica, a hidráulica e a física experimental. O filósofo chama a atenção, no caso dessa última, situada na quarta classe, para a necessidade dos conhecimentos das duas primeiras: sem eles, “os alunos verão os fenômenos, mas ignorarão sua razão” (Diderot, 2000, p. 300). Como se pode perceber, os usos práticos e instrumentais da matemática são amplamente enfatizados por Diderot. A recomendação do estudo da matemática como prioritário reflete sua concepção básica de que a educação deve ser utilitária: ela deve responder às necessidades da sociedade, e isso significa, em grande parte, que deve servir como preparação à vida profissional (Dolle, 1973). Ao configurar o primeiro curso da Faculdade das Artes com a inversão na prioridade usual dos estudos desse nível de ensino na França, Diderot combate abertamente a educação de seu país, que privilegia o grego e o latim, a retórica, a lógica e a metafísica. Contra o latim e o grego, idiomas mortos, inúteis a quase todos, contra a retórica, que ensina “a arte de falar antes da arte de pensar, e a do bem dizer antes que a de ter idéias” (Diderot, 2000, p. 271); contra uma abordagem da lógica que 94 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 enche a cabeça de sutilezas e inutilidades, Diderot investe com as armas da matemática e das ciências. Em contraposição a um sistema de ensino que rejeita as ciências da natureza como inúteis ou prejudiciais para a formação de bons cristãos, propõe essas mesmas ciências porque leva em conta sobretudo as necessidades e as condições básicas ao bom funcionamento da sociedade. Diderot é explícito: as línguas antigas, especialmente, são úteis somente “aos poetas, aos oradores, aos eruditos e às outras classes de literatos de profissão, isto é, aos estados da sociedade menos necessários” (idem, p. 313, grifo meu). Uma nação também tem necessidade de homens de letras, porém esses, que devem ser em número pequeno, deverão sua existência mais ao talento natural do que à instrução: “É mister haver oradores, poetas, filósofos, grandes artistas, mas filhos do gênio, bem mais do que do ensino, seu número deve e não pode deixar de ser muito pequeno” (idem, p. 310). O filósofo chama a atenção para um outro aspecto – os estudos literários pouco contribuem para a educação moral: “As belas-letras não fazem os bons costumes; são apenas o seu verniz” (idem, ibidem). Da educação centrada no conhecimento do grego e do latim resultam padres e mestres da retórica – “muito perigosos para que se multiplique sua espécie” (Diderot, 2000, p. 282). Essas idéias integram o que Durkheim (1969) e outros autores identificam como a pedagogia realista, na qual as coisas prevalecem sobre as palavras18. A formação de cidadãos úteis envolve o domínio de conteúdos aplicáveis às diferentes situações da vida, como os da matemática, que devem ser ensinados a todos na instrução pública. A prioridade da educação matemática quando se considera sua dimensão prático/instrumental justifica-se, então, no projeto diderotiano de bom funcionamento da sociedade. Todavia, seria uma visão incompleta desse projeto, particularmente no que diz respeito à educação matemática, a que se restringisse ao utilitarismo do conhecimento matemático, ainda que esse seja um aspecto evidente e muito explícito no Plano de uma universidade. A 18 Billy (1948, p. 370) cita a seguinte passagem de Diderot numa carta a Catarina II: “Em geral, no estabelecimento das escolas tem-se dado importância e espaço demasiados ao estudo das palavras; é preciso substituí-lo pelo estudo das coisas”. diderot e o sentido político da educação matemática 95 abertura do texto das Primeiras noções sobre as matemáticas para uso das crianças mostra a importância formativa que Diderot atribui a esse conhecimento: Estamos em um século no qual seria supérfluo estender-se sobre a utilidade das matemáticas: ninguém ignora de que auxílio elas são nas artes, e a vantagem ainda mais inestimável que elas têm de formar o espírito acostumando-o a raciocinar de forma correta, porque nelas não se caminha jamais senão de conseqüência em conseqüência [Diderot, 1975, p. 365, grifo meu]. Mais adiante, no mesmo trabalho, ao expor sua “idéia geral das matemáticas”, Diderot escreve: As matemáticas se estendem sobre quase todos os conhecimentos humanos: elas servem para distinguir o falso do verdadeiro, para convencer o espírito de verdades já conhecidas, para descobrir novas e para levar com inteira certeza a perfeição a todas as ciências que o homem pode adquirir apenas por sua razão [idem, p. 367]. A potencialidade formativa da matemática é especialmente evidenciada naquilo que se refere à geometria, que é qualificada por Diderot como a mais simples das lógicas no Plano de uma universidade. Nesse texto, a parte reservada à lógica – situada, lembremos, na sexta classe do primeiro curso de estudos da Faculdade das Artes – principia pela afirmação da relevância dessa arte de pensar corretamente, ou de fazer um uso legítimo dos sentidos e da razão; de certificar-se da verdade dos conhecimentos recebidos; de bem conduzir o espírito na busca da verdade; e de desemaranhar os erros da ignorância, e os sofismas do interesse e das paixões, arte sem a qual todos os conhecimentos são talvez mais prejudiciais do que úteis ao homem que por eles se torna ridículo, tolo e malvado [Diderot, 2000, p. 304]. Para o filósofo, esse é um ensino tão importante que é por ele que cumpriria começar, desde que sua abstração fosse acessível às crianças. No entanto, alocando-o na sexta classe, após as classes de matemática e 96 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 ciências, acredita que ao atingi-la os alunos já terão sido preparados por um exercício suficiente de sua razão. A matemática é particularmente adequada a modelar o espírito na direção do saber, do bem e da verdade por sua simplicidade, e essa idéia assim é exposta na parte do Plano que focaliza a primeira classe de estudos: Não se pode começar cedo demais a retificar o espírito do homem, mobiliandoo com modelos de raciocínios da primeira evidência e da verdade mais rigorosa. É a esses modelos que a criança comparará em seguida todos aqueles que lhe proporcionarem e cuja força ou fraqueza terá de apreciar, em qualquer matéria que seja. É sobretudo nas matemáticas que todas as verdades são idênticas; toda a ciência do cálculo não é senão a repetição deste axioma – um e um são dois – e toda a geometria não é mais do que a repetição deste – o todo é maior que sua parte. A geometria é a melhor e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria a dar inflexibilidade ao juízo e à razão [Diderot, 1875, t. III, p. 454, grifo meu]. Mais: o ensino da geometria é recomendado especificamente no combate à ignorância e à superstição, e se o método geométrico não deve ser aplicado a tudo, não deve jamais ser perdido de vista, pois é “a bússola de um bom espírito, é o freio da imaginação” (idem, p. 454). Se Diderot distingue os objetos da geometria, representantes, na interpretação de Crocker (1974), de uma ordem intelectual, dos da vida (ordem natural), não deixa de ver o estudo dos primeiros como propedêutica do entendimento, já que o raciocínio usado na geometria é um modelo para a argumentação em qualquer campo: Nada do que é obscuro pode satisfazer uma cabeça geométrica. A desordem das idéias lhe desapraz e a inconseqüência a fere. Se com freqüência se censurou o geômetra por ter o espírito equivocado, é que, por estar todo entregue ao seu estudo, as coisas da vida lhe são desconhecidas. Todos os raciocínios do geômetra findam por estas palavras: o que era preciso demonstrar (cqd). Todos os raciocínios que se fazem, seja ao discorrer, seja ao escrever, deveriam terminar pela mesma fórmula [Diderot, 2000, pp. 293-294, grifo meu]. diderot e o sentido político da educação matemática 97 Encontra-se aqui, na preferência pela matemática e, em particular, pela geometria, em que pese a sua consideração às vezes desfavorável – espécie de metafísica, repetição de verdades idênticas – por Diderot, uma manifestação do paradoxo referido por Romano (2002): embora não exista ordem no universo, de acordo com o enciclopedista “somos dirigidos pelo desejo da ordenação legal, da regularidade, do sentido”. Em relação ao potencial formativo da geometria, esse paradoxo comparece ainda com outra roupagem em mais uma passagem diderotiana: vimos que as verdades geométricas são questionáveis na epistemologia do enciclopedista, no trecho final da Carta sobre os cegos transcrito anteriormente. Entretanto, o conhecimento da geometria possibilita a quem o detém maior competência para avaliar o que lhe dizem seus próprios sentidos: segundo uma das passagens finais da Carta, uma pessoa instruída em geometria que enxergasse desde o nascimento e não possuísse o sentido do tato, se passasse a tê-lo, saberia discernir um cubo de uma esfera, mesmo com os olhos vendados. Porém, caso ignorasse a geometria, essa pessoa teria a mesma dificuldade que um cego de nascença a quem tivesse sido restituída a visão se lhe fosse proposto o mesmo problema. Eis as palavras de Diderot: É evidente que a geometria, caso nela fosse instruído, lhe forneceria um meio infalível de assegurar-se se os testemunhos de seus dois sentidos são ou não contraditórios. Ele não teria senão que tomar o cubo ou a esfera entre suas mãos, demonstrar a alguém qualquer uma de suas propriedades, e pronunciar, se o compreendessem, que vê-se cubo aquilo que ele sente cubo, e que conseqüentemente é cubo aquilo que ele segura. Quanto àquele que ignorasse essa ciência, penso que não lhe seria mais fácil discernir, pelo toque, o cubo da esfera que ao cego do senhor Molineux19 distingui-los pela vista [Diderot, 1951, p. 890]. 19 O físico irlandês William Molineux (1656-1698) propôs o problema aqui referido, que é o centro da Carta sobre os cegos: um cego de nascença que tivesse aprendido a identificar pelo tato um cubo e uma esfera construídos com o mesmo material conseguiria, passando a enxergar, reconhecê-los se não pudesse tocá-los? 98 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 O comentário de Venturi (1988) a respeito dessa passagem nos parece iluminar mais um pouco o pensamento diderotiano acerca da matemática e, em especial, da posição de destaque que ela ocupa na organização dos estudos proposta pelo filósofo. De fato, ao chamar a atenção para a afirmação de Diderot de que o cego geômetra certamente seria capaz de distinguir o cubo da esfera, o comentador italiano salienta a “verdadeira função” do saber matemático – “tornar inteligível a nossa sensação”, ou ainda, atuar como um “instrumento de conhecimento da natureza” (Venturi, 1988, p. 238). É oportuno assinalar que Mayer (1959) considera que a matemática, que Diderot cultivou durante dez anos desde o término de seus estudos na universidade, teve um papel importante na constituição de seu rigor científico. A qualificação da matemática e especialmente da geometria como um conhecimento cuja contribuição é fundamental na construção do pensamento correto nos remete às idéias platônicas. É interessante comparar as colocações de Diderot com a seguinte fala de Sócrates a Glauco no livro VII da República: Portanto, meu nobre amigo, [a geometria] conduzirá a alma em direção à verdade e disporá a mente do filósofo para que ele eleve seu olhar para o alto em vez de dirigi-lo para as coisas inferiores, que agora contemplamos sem dever fazê-lo [Platão, 1969, p. 786]. Ao considerar a matemática particularmente adequada à preparação do espírito, Diderot se aproxima, pois, de Platão, mesmo não compartilhando de sua concepção quanto a esse saber (nem da que se refere à necessidade de elevar o olhar para o alto) – para Platão, como é bem conhecido, o conhecimento matemático reside no interior da consciência e não no campo do que é perceptível pelos sentidos. A valorização da matemática como propedêutica para a verdadeira ciência nos parece, dessa maneira, um exemplo daquilo que Romano (2000) denomina platonismo invertido do enciclopedista. Um balanço das aproximações e desvios de Diderot em relação a Platão no que concerne à educação matemática nos mostra, portanto, diderot e o sentido político da educação matemática 99 que o enciclopedista se afasta do pensamento platônico quanto às concepções sobre a localização e os modos de acesso do indivíduo ao conhecimento matemático, e se aproxima do filósofo grego ao conceder importância primordial à potencialidade formativa da matemática. A diferença essencial nesse aspecto está em que Platão, contrário à democracia, propõe a educação matemática como base para a aristocracia que deve governar a pólis (Miguel, 1995), enquanto Diderot, favorável à democracia, deseja que essa educação matemática seja propriedade do povo, o verdadeiro soberano. É importante ainda indicar uma outra conexão: trata-se do questionamento por Diderot (como por Platão) a respeito dos equívocos da linguagem verbal e da retórica. Romano (1996a) chama a atenção para as relações acentuadas entre linguagem e matemática em Diderot – para combater as ambigüidades e enganos da fala e da escrita comuns, a ciência matemática é útil e serve como parâmetro: Se nossos dicionários fossem bem feitos, ou o que dá no mesmo, se as palavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras “ângulos” e “quadrados”, restariam poucos erros e disputas entre os homens. É a esse ponto de perfeição que todo trabalho sobre a língua deve tender [Diderot, 1875, t. III, p. 455]. Outros trabalhos diderotianos põem em destaque a precisão da linguagem geométrica. Na Refutação de Helvétius, ao referir-se às dificuldades de comunicação das sensações entre as pessoas devido a seu caráter subjetivo, Diderot coloca entre as poucas coisas comunicáveis todas as ciências matemáticas. Na Carta sobre os surdos e mudos, escreve que é impossível traduzir um poeta para outra língua e que é mais comum entender bem um geômetra do que um poeta. Nesse mesmo texto, ao apresentar sua idéia da decomposição de um homem em uma sociedade formada por seus cinco sentidos, Diderot diz que todos esses sentidos poderiam entender-se maravilhosamente somente em ge- 20 Embora veja nessa passagem que até a linguagem geométrica não escapa da desconfiança de Diderot, Romano (1996a) afirma ser possível acreditar que o filósofo, 100 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 ometria20. Romano (2001) comenta que as preocupações com a linguagem verbal são um traço característico dos pensadores democráticos do século XVIII, e especialmente de Diderot – todos eles “afirmavam que para instaurar a democracia, seria preciso a mudança na língua do povo” pois este,“acostumado à distorção das leis e dos vocábulos, realizada pelos tiranos, acostumara-se a ouvir uma coisa e entender outra” (Romano, 2001, pp. 424-425). Eis mais uma relação a ser enfatizada – o relevo que a matemática adquire na proposta pedagógica de Diderot devido às vantagens da linguagem dessa ciência está ligado ao pensamento político do enciclopedista. Contudo, se a geometria é, entre os conteúdos propostos por ele para o Primeiro Curso de Estudos da Faculdade das Artes, aquele que é mais mencionado quanto ao papel formativo, Schmitt (1997) nos chama a atenção para uma passagem em que Diderot tece um vínculo entre um outro estudo – o das probabilidades – e a educação moral. Agora, o ganho está em uma maior aproximação com os negócios da vida: Com o instinto da precisão sente-se, nos próprios casos de probabilidade, os desvios maiores ou menores em relação à linha do verdadeiro: apreciam-se as incertezas, calculam-se as chances, faz-se a própria parte e a da sorte; e é nesse sentido que as matemáticas se tornam uma ciência usual, uma regra de vida, uma balança universal, e que Euclides21, que me ensina a comparar as vantagens e desvantagens de uma ação, é ainda um mestre de moral [Diderot apud Schmitt, 1997, p. 160]. devido ao seu entusiasmo pelas ciências, confia mais (ou desconfia menos) nessa mesma linguagem. 21 Eric-Emmanuel Schmitt indica que essa passagem pertence a uma carta dirigida por Diderot à condessa de Forbach em março de 1772 (Schmitt, 1997, p. 315). Nesse trecho, ao qual não tivemos acesso direto, uma aparente contradição se manifesta caso tomemos literalmente a figura de Euclides como o educador moral a que Diderot se refere, uma vez que a obra do grego não contempla as probabilidades. No entanto, parece-nos que Diderot, ao nomear Euclides como seu mestre de moral, identifica-o com o conhecimento matemático, em particular com o conhecimento referente às probabilidades – esse último, sem dúvida, ensina a comparar as vantagens e desvantagens de uma ação. diderot e o sentido político da educação matemática 101 O comentário de Schmitt lança luzes sobre a simpatia diderotiana pelo cálculo das probabilidades – esse autor cita um trecho escrito pelo próprio filósofo em uma apresentação crítica de um trabalho de D’Alembert sobre o assunto. Nesse trecho, Diderot acentua o estatuto ambíguo das probabilidades, escrevendo que elas podem ser consideradas como uma ciência abstrata ou como uma ciência físico-matemática. Nessa segunda alternativa, as probabilidades aproximam matemática e realidade física e social, e parece-nos que aí se pode explicar o valor que Diderot confere a seu conhecimento, associado à incerteza e à conjectura. Consideramos, anteriormente, o papel da potencialidade prático/instrumental da matemática em relação ao preparo requerido pelas ocupações e profissões necessárias ao bom funcionamento da sociedade no pensamento de Diderot. Procuramos também, em várias de suas passagens, evidenciar a valorização que ele confere ao papel formativo da matemática, papel esse que passa despercebido em trabalhos mais gerais relativos à história das idéias pedagógicas (Cambi, 1999; Luzuriaga, 1990; Manacorda, 1997), os quais sublinham especialmente o utilitarismo do principal editor da Enciclopédia. Esse papel formativo, posto em destaque principalmente no Plano de uma universidade, também deve ser ligado ao projeto de reforma política e moral da sociedade que Diderot propõe. Composto em 1775, o Plano pertence a um período da vida de Diderot no qual se acentua, de acordo com vários autores (Crocker, 1974; Dolle, 1973; Stenger, 1994), o desejo ordenador do filósofo na esfera política. Mais radicalmente no início dos anos 70 do século XVIII, os escritos de Diderot enfatizam a desordem da “bela máquina que [os legisladores] eles chamaram sociedade” (Diderot apud Crocker, 1974, p. 126), arquitetada exatamente para criar a ordem. Concebendo como solução para essa desordem um governo regido por um código de leis elaboradas pelos representantes (fonte do poder político) do povo (base da soberania da nação), Diderot pensa na educação pública como um meio imprescindível para preparar cidadãos capazes de exercer suas responsabilidades nessa sociedade. Dolle (1973) afirma que a educação é, para Diderot, a essência da organização política. Por essa perspectiva, somente habilitar ao exercício de uma profissão é insuficiente, ou seja, a ordem social depende também de o povo 102 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 ter assegurada, na instrução de responsabilidade do Estado, a oportunidade de desenvolver a capacidade de pensar corretamente, rigorosamente, eticamente, e saber eleger representantes competentes para elaborar e reformar, sempre que necessário, o código de leis da nação. Nesse contexto é que Diderot escolhe as ciências e a matemática como o alicerce dos estudos. Particularmente a ordem intelectual representada pela matemática é considerada por ele como uma contribuição indispensável, mesmo padecendo das características de abstração, alheamento da realidade física e certeza puramente formal que lhes aponta. Assim, pode-se interpretar tanto o papel instrumental quanto o papel formativo da matemática, reconhecidos por Diderot, como constituintes essenciais a seu projeto pedagógico, e responsáveis pela prioridade que ele lhes concede. Mostra Dolle (1973) que esse projeto é, no todo, consonante com a filosofia política do principal editor da Enciclopédia. Nesta seção, ao focalizar o estatuto privilegiado da educação matemática no mesmo projeto, procurei argumentar no sentido de que esse privilégio também está em harmonia com o pensamento político de Diderot. Algumas considerações gerais sobre a proposta diderotiana para a educação matemática Neste artigo, expus e comentei idéias relacionadas à educação matemática em diversos trabalhos de Diderot. Particularmente, procurei inserir essas idéias no contexto de seu projeto político de reforma de uma sociedade em desordem. Na proposta pedagógica do filósofo da Enciclopédia, não se pode perder de vista a proximidade entre os saberes – primordialmente os científicos e técnicos – e os ideais democráticos: não existe verdadeira democracia sem povo instruído (Romano, 1996). Ao mesmo tempo, uma nação não progride em nenhum sentido se o Estado não proporcionar essa instrução a todas as classes sociais. Chamando a atenção para a desigualdade entre as capacidades naturais dos indivíduos, Diderot é claro: para funcionar bem, a sociedade precisa do trabalho da maior parte dos cidadãos (que constituem o públicoalvo de seu projeto pedagógico), os quais precisam dominar conheci- diderot e o sentido político da educação matemática 103 mentos úteis como a matemática. Mas uma nação não pode se dar ao luxo de perder as potencialidades dos mais capazes – daí a exigência de que as portas da escola se abram indistintamente a todos os filhos dessa nação. É essencial a seguinte passagem, freqüentemente citada do Plano de uma universidade, na qual o autor explica essa concepção: Eu digo indistintamente, porque seria tão cruel quanto absurdo condenar à ignorância as condições subalternas da sociedade. Em todas, há conhecimentos dos quais a gente não poderia se privar sem conseqüências. O número de choupanas e de outros edifícios particulares estando para o dos palácios na relação de dez mil para um, há dez mil para apostar contra um que o gênio, os talentos e a virtude sairão antes de uma choupana do que de um palácio [Diderot, 2000, p. 267]. Como vimos, a inserção privilegiada do conhecimento matemático na escala dos saberes se dá de forma associada a duas diretrizes principais – o princípio de utilidade e o princípio de ligação entre as ciências. A matemática, sendo necessária a todas as ciências e fundamentando as artes mecânicas que satisfazem necessidades humanas de tipos variados, é um saber cujo domínio é imprescindível à vida social e profissional no Século das Luzes. É, pois, um conhecimento essencial no contexto da Europa, e particularmente da França desse período, no qual o quadro social e político encontra-se defasado dos progressos econômicos, científicos e técnicos. Não é possível deixar de notar a consciência de Diderot em relação às demandas que começam a se constituir em decorrência da influência dos desenvolvimentos da ciência e da técnica sobre os meios de produção. Por outro lado, Diderot, como foi sublinhado, vê mais vantagens no método de raciocínio da matemática do que em suas idéias, já que amiúde a ela se refere como uma espécie de arte da repetição de proposições idênticas, e mesmo como a um “tecido de verdades internas” (citado por Schmitt, 1997, p. 152). É precisamente esse método, ao qual ele relaciona explicitamente a perfeição do conhecimento matemático em seu esboço de livro didático de geometria, que desempenha um papel fundamental na formação do pensamento. Ao concluir este artigo, é importante 104 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 ressaltar mais uma vez esse aspecto ligado à educação matemática dentro da obra política de Diderot. Certamente podem-se levantar questionamentos quanto à forma que ele propõe para essa educação no Plano, levando em conta, como observa Dolle (1973), que, figurando na primeira classe do primeiro curso de estudos, os conhecimentos matemáticos, mesmo com a vantagem de ter garantida sua abordagem na instrução dos que não pudessem prosseguir nos estudos, seriam focalizados exclusivamente nesse nível, não sendo retomados depois para aprofundamento. Dolle levanta também dúvidas quanto à possibilidade de um aprendizado efetivo da matemática em tão pouco tempo – uma classe de estudos – a menos que Diderot tivesse pensado, para a aplicação de seu plano, somente em um programa reduzido. Todavia, não se pode negar a ousadia de Diderot em relação ao que se fazia na educação da época e mesmo ao que se propunha então como reforma, como ressalta também Dolle. A proposta diderotiana de fixar as ciências em lugar das letras, e especialmente em lugar das línguas antigas, como base da instrução, se apóia não só no tão enfatizado princípio de utilidade, mas também, em grande parte, em uma argumentação sobre a capacidade dos jovens para assimilar os conhecimentos científicos e, particularmente, a matemática. Dolle assinala o que diferencia Diderot de outros proponentes de mudanças na educação de seu tempo da seguinte maneira: Diderot nega não somente a prática tradicional dos Colégios e Faculdades das Artes, mas também os planos de seus contemporâneos. Não somente subverte a ordem habitual colocando as línguas antigas no fim do ciclo dos estudos, mas instaura o plano de uma “educação pública em todas as ciências”. Há, portanto, nele, qualquer coisa de mais radicalmente inovador, e até mesmo revolucionário, que em seus predecessores, que são, quando muito, reformistas [Dolle, 1973, p. 161]. Focalizando a matemática nesse contexto, pode-se terminar reiterando que para o grande vulgarizador das ciências que foi o enciclopedista, esse conhecimento, embora não possa ser criado por todos, é o mais diderot e o sentido político da educação matemática 105 fácil, o mais útil e o necessário a um maior número de pessoas. Vista como um saber produzido a partir da experiência sensível, constitui-se de idéias que suprem carências sociais e cujo domínio é importante na formação do espírito do homem. É certo que seu valor para a educação reside, em primeiro plano, nas aplicações práticas e no mundo material; contudo, repito ainda: Diderot considera sempre sua contribuição para o desenvolvimento do pensamento como uma justificativa relevante para propor o seu ensino aos cidadãos de uma sociedade livre na qual as luzes são um direito de todos. Passados mais de 250 anos desde a publicação dos primeiros volumes da Enciclopédia, esses ideais ainda não se encontram realizados no Brasil. É oportuno lembrar que os Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Médio (Brasil, 2000) apresentam como ponto básico de seu discurso a necessidade de “desenvolver o saber matemático, científico e tecnológico como condição de cidadania e não como prerrogativa de especialistas”, ressaltando a importância da matemática para as ciências e as tecnologias do mundo contemporâneo. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI, A. (1995). Historia de la pedagogía. México: Fondo de Cultura Económica. ARISTÓTELES (1952). “The works of Aristotle”. In: Great Books of the Western World. Chicago: Encyclopedia Britannica. BACON, Francis (1952). “Advancement of learning”. In: Great Books of the Western World. Chicago: Encyclopaedia Britannica. BILLY, André (1948). Vie de Diderot. Édition revue et augmentée. Paris: Flammarion. BOTO, Carlota (1996). A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista. BRASIL (2000). 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A Cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação* Iole Maria Faviero Trindade** Da ótica dos Estudos Culturais e campos afins, analiso estratégias implementadas pelos representantes do governo do estado do Rio Grande do Sul de importação da obra didática do autor português João de Deus, a Cartilha maternal, cujo método de ensino da leitura fora adotado oficialmente. Inicialmente, apresento a crítica dos representantes do governo gaúcho às “contrafações inconvenientes”, discutindo, após, a aceitação de adoção de cartilhas que mais se aproximassem da obra lusa. Finalizo a análise mostrando as marcas de sua aculturação, ao se adaptar a necessidades locais do estado gaúcho. CARTILHA MATERNAL; ACULTURAÇÃO; RIO GRANDE DO SUL; PRIMEIRA REPÚBLICA; ESTUDOS CULTURAIS. From the perspective of the Cultural Studies and related fields, I analyse strategies implemented by Rio Grande do Sul state officers on importing the didactic work developed by the Portuguese author João de Deus, Cartilha maternal, whose method to teach reading was officially applied. Firstly, I have provided the critique formulated by the Rio Grande do Sul government officers concerning “unsuitable counterfeits”, and after that, the acceptance of primer uses most closer to the Portuguese work. I conclude the analysis by showing its acculturation marks, as it fits to the local needs of this southern Brazilian state. MATERNAL PRIMER; ACCULTURATION; RIO GRANDE DO SUL; EARLY REPUBLIC; CULTURAL STUDIES. * Versão modificada de trabalho (apoiado pelo CNPq – processos n. 520.810/89-8, 200.674/00-5 e 4.791.123/01-2) apresentado na 26ª Reunião da ANPED, em Poços de Caldas/MG, out. de 2003. Este trabalho corresponde à combinação parcial dos capítulos 4 e 5 de livro a ser publicado pela Universidade São Francisco (EDUSF), em 2004, como obra integrante da coleção de estudos CDAPH, série Historiografia. ** Professora adjunta do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, linha Estudos Culturais em Educação, Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 110 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Introdução Até hoje me assombra periodicamente a memória uma frase dum livro de texto escolar: “Ó Pedro, que é do livro de capa verde que te deu o avô?”1. Só agora na velhice é que começo a compreender o sentido transcendental dessa pergunta: “Ó Érico, onde está o livro de capa verde?” Fico pensando: Que fiz desse volume que não li? Rasguei-o? Queimei-o? Dei-o de presente a alguém? VERISSIMO, 1981, p. 86 Ao analisar as cartilhas2 como artefatos culturais, discuto suas posições e relações em uma cadeia de produção cultural, na medida em que esses artefatos não interessam por si mesmos, mas pelo sentido que recebem nas práticas culturais e ao constituir outras mais. Nos estudos culturais, há um redobrado interesse pelas práticas e pelos artefatos culturais. Podemos examinar, então, as cartilhas como artefatos que cristalizam de certa forma significados e representações de determinadas épocas e de diversos grupos em cada época, bem como em que cadeias de produção cultural elas se situam. Para entender a cadeia discursiva em que as cartilhas se encaixam, procuro recuperar um pouco das práticas dentro das quais esses artefatos significavam um instrumento importante, isto é, uma ferramenta funcional para ensinar/aprender e um sinal da própria escolaridade, do ser 1 2 Essa frase mencionada por Erico Verissimo é a frase inicial do primeiro texto da Cartilha maternal. A definição do que seriam cartilhas em contextos e períodos diversos pode auxiliar a entender esses deslizamentos, isto é, a produção de novos significados. A tradição lusa dessas obras didáticas as reconhecia inicialmente como cartas ou cartinhas, e estas, ainda no final do século XIX e início do século XX, circulavam pelo Brasil comumente apresentadas como livros de primeiras letras. Essas obras têm sua origem nos catecismos e silabários manuscritos que foram utilizados no ensino da leitura no final do século XV (Fernandes, 1998), consistindo, então, em pequenos livros que continham o abecedário, o silabário e rudimentos do catecismo. EscolanoBenito (1997) nos informa que a denominação cartilha tem origem em expressões como “cantar” ou “ler a cartilha” para alguém. Já a denominação primeiro livro de leitura está associada às séries cíclicas de livros “compostas de textos de diferentes níveis de complexidade, dispondo os conteúdos, geralmente, os mesmos, em cada etapa do processo, de forma gradual” (ESCOLANO-BENITO, 1997, p. 34). a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 111 aluno/a e, também, do ser letrado/a ou aprendiz de letrado/a. Essa breve contextualização histórica nos permite recuperar também o valor dado às cartilhas e aos métodos de ensino da leitura e da escrita que as orientam, fazendo ambos parte de uma rede de discursos e representações que podem ser localizados como produtos culturais de uma determinada época3. Considerando que os estudos culturais se valem de uma bricolage de campos do conhecimento, neste texto privilegiarei as contribuições do próprio campo dos estudos culturais, associadas às de outros campos, como o pós-modernismo, o pós-estruturalismo, e os estudos da análise crítica do discurso, em sua versão foucaultiana. O campo dos Estudos Culturais é marcado por uma identidade cambiante, delineada pelas transformações na concepção de cultura. Ao opor-se à concepção de cultura como conjunto de grandes obras cuja produção e apreciação são privilégio de um grupo restrito de pessoas, os estudos culturais propõem uma nova interpretação de cultura que corresponde ao modo de vida global de uma sociedade. Tal interpretação do conceito de cultura permite examinar as cartilhas como textos culturais, isto é, explorar a produção, recepção e os usos desses textos contextualmente. O campo dos estudos pós-modernos permite examinar as cartilhas como artefatos constituídos por discursos que vigoravam à época, bem como constituidores de novos discursos. O sujeito deixa de pensar, falar e produzir, passando a ser pensado, falado e produzido (Silva, 1999). O campo dos estudos pós-estruturalistas, por sua vez, permite examinar a centralidade da linguagem, ao enfatizar a análise de discursos e textos. Para tal campo de estudos, conhecer e representar são processos inseparáveis. A representação é compreendida como inscrição, marca, traço, significante e não como processo mental. É a face material, palpável do conhecimento (idem). A análise crítica do discurso se associa a esses campos de co3 Estudos como os de Pfromm Netto, Rosamilha e Dib (1974), Magnani (1996, 1997), Mortatti (1999) e Monarca (1994) foram extremamente importantes para a compreensão da trajetória de métodos de alfabetização e de cartilhas adotadas na instrução pública do nosso país, entre império e república, auxiliando, assim, na identificação de obras didáticas adotadas, seus autores e sua circulação por diversos estados brasileiros, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. 112 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 nhecimento, especialmente ao pós-estruturalismo, em sua vertente foucaultiana, ao descrever o caráter construtivo da linguagem. Assim, textos e discursos passam a ser vistos como artefatos produtivos, construtivos de formações sociais, comunidades e identidades sociais dos sujeitos. Dessa forma, os textos são considerados artefatos do trabalho dos sujeitos na produção do significado, isto é, momentos de intersubjetividade entre escritores, leitores, falantes e ouvintes, cujas intenções não são evidentes sem recorrer a outros textos (Luke, 1996). Como esses textos se conectam uns aos outros, se referem uns aos outros, às vezes sistematicamente, às vezes através da escolha e deliberação do autor e às vezes através da coincidência, podem ser vistos como multidiscursivos, ou seja, guiados por uma variedade de discursos, campos de conhecimento e vozes. Os estudos culturais, por sua vez, não possuem uma metodologia distinta, que possam reivindicar como sua; fazem uso de uma diversidade de métodos, em que a escolha de práticas de pesquisa é pragmática, estratégica e auto-reflexiva (Nelson, Treichler & Grossberg, 1995). É, portanto, essa abordagem que me permite examinar as cartilhas como artefato cultural de uma determinada época, de uma determinada cultura, para proceder a uma análise descritiva, histórica e contextualmente específica. Os textos examinados, representando fragmentos retirados das próprias cartilhas ou das atas, da legislação e dos relatórios, fazem parte de uma rede de discursos e representações que podem ser localizados como produtos culturais de uma determinada época. A análise desses artefatos culturais permitiu, dependendo do ponto que se examina (determinações legais, métodos de ensino da leitura e escrita circulantes, produção e circulação de cartilhas, bem como conceitos de alfabetização/ alfabetismo que vigoravam), responder a questões que surgem da sua própria análise e da tentativa de reconstituir um passado marcado concomitantemente por diferenças, transformações, mutações e continuidades (Kendall & Wickham, 1999). Este trabalho é um recorte de uma pesquisa mais ampla4. Nele detenho-me na discussão das tentativas implementadas pelos representantes 4 Cf. Trindade (2001a, 2001b, 2002a, 2002b). a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 113 do governo do estado do Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas da Primeira República, de importação da obra didática do autor português João de Deus, a Cartilha maternal, cujo método de ensino da leitura fora adotado oficialmente nesse período. Inicialmente, apresento a crítica dos representantes do governo gaúcho às “contrafações inconvenientes” que surgem logo após, discutindo a aceitação de adoção de cartilhas que mais se aproximassem da obra lusa. Destaco, então, para análise, a inclusão da letra cursiva e o uso do Português Brasileiro nas lições da obra gaúcha. Finalizo a análise dessa cartilha, transplantada de Portugal, contexto onde foi produzida, para o estado do Rio Grande do Sul, mostrando algumas marcas de sua aculturação ao se adaptar às necessidades locais, reconhecendo as cartilhas como textos culturais que tornam evidentes a intertextualidade e interdiscursividade de uma época. As “contrafações inconvenientes” da Cartilha maternal Ao longo de toda esta seção e da próxima, teremos a presença das “vozes impressas” daqueles/as que eram responsáveis pela orientação política e pedagógica da Instrução Pública gaúcha à época. Essas vozes se fazem presentes a cada relatório anual da Secretaria dos Negócios do Interior e do Exterior e também na maioria das reuniões dos conselhos responsáveis pelo exame das obras pedagógicas. Considero que os diferentes lugares ocupados por esses sujeitos na Instrução Pública do governo republicano gaúcho da Primeira República foram determinantes para a produção de certos discursos e para a interação que se estabelece entres eles. Popkewitz (1994, p. 196), ao abordar a constituição dos discursos e o descentramento do sujeito, alerta que boa parte daquilo que é dito pelas vozes “que nos falam” foi construído anteriormente, pois quando usamos a linguagem, pode ocorrer que não sejamos nós, eles ou eu, que estejamos falando, e sim “a linguagem que nos foi dada através de formações sociais que ocorreram no passado”. Na seção “Livros escolares” dos relatórios dos representantes do governo, a voz do inspetor 114 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 geral de instrução Manoel Pacheco Prates, por exemplo, marca uma discussão da época: a das cartilhas que vinham sendo adotadas no Rio Grande do Sul, relacionando essa adoção à unidade de métodos e de doutrinas: Tenho examinado cuidadosamente não só os livros que encontrei adoptados, mas outros consagrados pela aceitação em outros Estados da União. Nesta escolha subordino-me á mais escrupulosa unidade de methodo e de doutrina, que parece não ter outr’ora presidido ás deliberações do conselho diretor neste sentido; de modo que encontrei adoptados, com prévia approvação do conselho, livros e compendios que se repellem pela radical divergencia de methodo e doutrina, no ensino de uma mesma matéria. Começando pelo primeiro livro, que é o livro por excellencia do menino da escola e o que mais deve prender a attenção dos modernos educacionistas, a divergencia de doutrina neste ponto toca as raias do inverosimil, pois existem approvados cinco destes e cada um com uma doutrina, e são: 1º João de Deus – Cartilha Maternal5. 5 João de Deus Nogueira Ramos (1830-1896) nasceu em São Bartolomeu de Messinis. Simplificou depois seu nome para João de Deus Ramos e, a partir de 1868, reduziu-o apenas a João de Deus (Nunes, 1896). Formou-se em direito, mas acabou se tornando poeta ao mesmo tempo em que se dedicou à criação de sua cartilha e de seu método de ensino da leitura. Na minha tese de doutorado (Trindade, 2001a), ao examinar o método de ensino da leitura que orienta a Cartilha maternal, analiso discursos e representações circulantes em Portugal no final do século XIX. Constato que, pelo menos, três obras servem de referência para a análise da produção didática na área da alfabetização em Portugal – a Cartinha com os preceitos da Santa Madre Igreja (Barros, 1539), o Método português (Castilho, 1850) e a Cartilha maternal (Deus, 1876). O antigo método alfabético de ensino da leitura, ou de soletração antiga, caracterizado pelo ensino simultâneo de todas as letras, caracterizava a Cartinha de João de Barros. Já o Método português e a Cartilha maternal irão propor o ensino do alfabeto por partes, rompendo assim, com os velhos processos de soletração “antiga” (através nome das letras) e “moderna” (através de seus valores). Ao olhar para esses três autores “didáticos” portugueses – João de Barros, o gramático, e os poetas António Feliciano e João de Deus – e suas obras, métodos de leitura e cartinhas ou cartilhas que expressam esses métodos, observo o quanto seria leviano acusar o método alfabético de simplório ou os métodos fonéticos de estreitos ante o universo complexo da língua escrita. João de Barros produziu tal método de leitura quando as línguas vernáculas e, no caso, o português, a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 115 2º Hilario Ribeiro – Cartilha Nacional6. 3º Abilio – Primeiro livro de leitura7. 4º Ubatuba8. 5º Samorim de Andrade – Primeiro livro9 [Relatorio, 1896, p. 302]. 6 7 8 9 estava começando a se sobrepor ao latim vulgar e estava sendo composta uma gramática que lhe fosse própria. Por sua vez, os métodos de António Castilho e de João de Deus mostram, de diferentes formas, uma possibilidade de reflexão sobre a relação entre língua oral e escrita a partir de uma de suas unidades lingüísticas: a palavra. Gaúcho, Hilário Ribeiro (1847-1886) era reconhecido nacionalmente, desde o período imperial, por sua produção didática. Além das atividades de professor e escritor didático, foi poeta, dramaturgo e biógrafo (Martins, 1978). Seus compêndios foram adotados nas escolas públicas do município da Corte e nas províncias de Minas, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Rio de Janeiro e outras (Ribeiro, 1887). Continuaram populares na República, sendo bastante usados até a década de 1930. Foram premiados em 1883, com o “Diploma de 1ª Classe”, em importante exposição pedagógica que se realizou na capital do país. Mais tarde, em 1887, receberam a mesma premiação na Exposição de Objetos Escolares, sendo finalmente consagrados, com “Medalha de Prata”, na Exposição de Paris, de 1889. Pfromm Neto, Rosamilha e Dib (1974) observam que as obras didáticas de Hilário Ribeiro disputavam com as de Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, a preferência dos/as professores/as primários/as. A última edição do silabário é de 1941 (123. ed.) e da cartilha é de 1943 (236. ed.), pela Francisco Alves (Villas-Boas, 1974). Em nota introdutória que acompanha a Cartilha nacional, Hilário Ribeiro (s.d.; 1887; 1919) explica que escreveu essa cartilha para substituir esse primeiro livro (silabário) que era, então, bastante adotado. O baiano Abílio César Borges (1824-1891) trocou a carreira de médico pela de professor. Para Pfromm Neto, Rosamilha e Dib (1976), o primeiro livro de leitura do “Método Abílio” representou um surpreendente salto na pedagogia brasileira, pois, até então, a aprendizagem da leitura se iniciava com abecedários manuscritos, papéis de cartório e “toscas cartilhas”. Esse primeiro livro, ao mesmo tempo que adotava a silabação, se opunha à soletração de sílabas sem sentido. Maiores referências sobre Ubatuba encontrei em uma das atas das sessões do Conselho de Instrução Pública. Um dos primeiros livros examinados por esse conselho, já no regime republicano, corresponde ao silabário de Arthur Trajano Ubatuba (Atas..., 1891, p. 189). Professor de português, francês, italiano, matemática e escrituração mercantil, foi também autor de livros didáticos. Escreveu a Cartilha mestra para aprender-se a ler com rapidez ou primeiro livro de leitura, identificando sua orientação de leitura com o “genuíno methodo João de Deus” (Andrade, 1919, capa). Esta obra foi “adoptada não só nas escolas publicas do Estado do Rio Grande do Sul, Ceará e Rio Grande do Norte, mas também para as escolas regimentaes do exército” (ANDRADE, 1919, capa). A Cartilha mestra foi premiada na Exposição Nacional de 1908, no Rio de Janeiro, com medalha de prata. 116 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Assim, o inspetor geral considerava que excluindo algumas affinidades existentes entre a primorosa “Cartilha maternal” de João de Deus e a “Cartilha nacional” de Hilario Ribeiro (porque esta é uma inconveniente contrafacção daquella), estes livros se repellem pela profunda diversidade de doutrina e método [idem, 1896, pp. 302-303]. Como esse governo julgava que a unidade pretendida era garantida com a adoção de livros de mesmo autor para a mesma matéria, buscou formas de “construir” essa unidade através de algumas estratégias de adaptação às contingências. Podemos constatar o uso de tal estratégia quando o inspetor geral, ao reconhecer que os livros de Hilário Ribeiro eram adotados pela maioria dos/as professores/as, concluiu que, dessa forma, pelo menos a unidade de método e doutrina estaria garantida: Felizmente este erro não tem ainda produzido todos os seus máos fructos porque quasi a totalidade do professorado pede livros de Hilario Ribeiro, estabelecendo-se assim uma tacita combinação. Jámais adoptarei livros de methodo e doutrinas oppostas para o ensino de uma mesma matéria [idem, p. 303]. Assim, seguindo o pensamento de Prates, mesmo que as obras adotadas não fossem as desejadas, pelo menos o critério da unidade de ensino estaria de certa forma garantido através da adoção das “contrafações inconvenientes”. Outro exemplo da adaptação das estratégias governamentais de celebração da referida unidade, a menores custos, estaria na intenção de substituir a Cartilha maternal pela sua edição em “ponto grande”, que seriam os mapas murais a serem usados na primeira seção da primeira classe (idem, ibidem). Eis algumas argumentações do inspetor geral nesse sentido, em 1896: Tenho observado que as crianças inutilisam quatro exemplares deste livro antes de aprendel-o, ao passo que os mappas se conservam por muitos annos. Assim, além de economica, é esta medida exigida pela moderna pedagogia; della depende a definitiva implantação nas nossas escolas dos modos de en- a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 117 sino simultaneo e mixto, os unicos que a escola publica póde com vantagem empregar; e além disso são os regulamentares conforme estatúe o artigo 54 do regulamento [idem, ibidem]. E em 1897: podemos adquirir uma edição baratissima dos mappas muraes, da Cartilha Maternal e do segundo livro (Deveres dos filhos): e mais que, mediante uma razoavel remmuneração, conseguiriamos da digna viuva do illustre autor a concessão necessaria para ser tirada uma edicção daquellas obras, eliminandose da Cartilha Maternal as longas explicações e o volumoso appendice que tornam carissima e que só servem para o professor aprender o grande e importante methodo. Os mappas servirão para ensinar a ler á primeira classe e a Cartilha será distribuida aos alumnos de leitura da segunda secção da primeira classe. A cada professor fornecerá o Estado um exemplar da Cartilha com todas as explicações e com o appendice para servir de guia indispensavel [Relatorio..., 1897, pp. 410-411]. Podemos observar através da voz de Prates diversas estratégias pensadas pelo governo gaúcho para adquirir e distribuir a cartilha, o guia, os mapas murais e o segundo livro do poeta luso nas aulas públicas, bem como localizar a preocupação com contrafações da obra de João de Deus, em outro fragmento de seu relatório para o Secretário do Interior e Exterior, João Abbott: Reitero o que sobre este assumpto tive a honra de dizer vos em meu relatório do anno passado. Continúa o mesmo mal; penso, porém, tomar serias providencias a respeito na proxima reunião do conselho escolar, porque pretendo nomear uma commissão de membros daquella corporação para examinar os livros em uso e dar parecer fundamentado sobre os que julgar mais em condições de serem adoptados. Nessa escolha se terá em vista a unidade da doutrina e os methodos. Impressionado com as péssimas consequencias da diversidade de livros escolares de que vos falei no meu relatorio do anno passado, tomei a resolução de dirigir-vos officio n. 266, de 3 de abril do corrente anno, no qual eu pon- 118 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 derava que desde que fôra publicada a primorosa e inimitavel Cartilha Maternal do inolvidavel João de Deus, começaram a aparecer as contrafacções, com grande prejuizo para o ensino, porque todas, visando somente o escopo mercantil, deturpavam o maravilhoso invento. Infelizmente estas contrafacções (como sempre sóe acontecer) repelliram do mercado brazileiro a grandiosa obra do grande homem; e o nosso Estado, como todos os da União, tem sido forçado a distribuir pelas escolas publicas as referidas contrafacções. Penso, porém, que podemos conseguir emancipar o ensino desses maús livros [idem, ibidem]. Acredito que foram exatamente os pontos que diferenciavam as duas cartilhas gaúchas – Nacional e Mestra – da cartilha produzida por João de Deus – Maternal – que levaram os representantes do governo a localizar aí a diversidade de doutrinas e métodos, reconhecendo-as, então, como “contrafações inconvenientes” da obra lusa. Isto sugere que eles acreditavam ser possível produzir-se uma contrafação conveniente, ou melhor, uma cópia adequada da referida cartilha portuguesa. De forma bastante resumida, poderíamos dizer que o método João de Deus e a Cartilha maternal permitiam a exploração da face fônica da língua e de sua relação com a escrita a partir da análise de palavras, tendo a originalidade de manter a unidade gráfica das palavras e, facilitando, assim, a sua análise estrutural; a Cartilha nacional se diferencia da cartilha portuguesa e da outra cartilha gaúcha – a Mestra –, por privilegiar o ensino simultâneo da leitura e da escrita; a Cartilha mestra, por sua vez, se diferencia das outras duas obras – Maternal e Nacional –, por privilegiar o uso da imagem no ensino da leitura; tanto a Nacional quanto a Mestra se distinguiam da Maternal por apresentarem frases desde as primeiras lições e por conterem uma seqüência diferenciada dessa obra para o ensino das letras e seus valores, especialmente a partir das consoantes incertas. a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 119 Surge, enfim, a possibilidade de adotar cartilha gaúcha “mais aproximada” ao método João de Deus Ao enfatizarmos as contingências, em vez das causas, na análise dos fragmentos dos relatórios de instrução, podemos entender o surgimento de determinados eventos históricos, não previstos, como resultado de uma série de relações complexas com outros eventos (Kendall & Wickhan, 1999). Essa ênfase nas contingências é fundamental para que possamos realizar análises conjunturais, isto é, análises que estejam imersas em seu meio, que sejam descritivas, históricas e contextualmente específicas (Nelson, Treichler & Grossberg, 1995). Cabe observar também que a análise cultural nos permite localizar artefatos culturais que trazem as marcas de discursos pedagógicos que eram mais valorizados pelos representantes do governo gaúcho à época, considerando que, para dar conta da reorganização política no regime republicano, haviam discursos que eram reconhecidos como verdadeiros à época, bem como aqueles sujeitos que eram considerados qualificados para enunciá-los. Inspirada em Foucault (1998), observo que determinados rituais definiam a qualificação que deveriam possuir os indivíduos que falavam e as posições que ocupariam na ordem do discurso. A análise das atas do Conselho Escolar permite que se ouça, através das vozes de seus membros, discursos sobre educação, alfabetização, infância, escola etc., que conduziram o exame e a adoção de certas obras didáticas. Tais vozes, ao mesmo tempo que foram produzidas nessa moldura histórica, participaram da produção do sujeito moderno, republicano, brasileiro e, no nosso contexto, gaúcho, conformado por essa diversidade de discursos e representações. Tal produção passa a ser vista como fluida e incerta, já que não existe uma verdade única, mas verdades que foram construídas cientificamente, como os métodos de alfabetização, por exemplo. Representações, indícios, sinais e marcas desses discursos são examinados a seguir em alguns fragmentos das atas do Conselho Escolar, tendo presente que nem os artefatos por si próprios – cartilhas, relatórios, legislação – nem os usuários da linguagem – autores/as, editores/as, governantes, professores/as, alunos/as – podem fixar sentidos únicos na linguagem. 120 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Entre os livros apresentados para exame pelo Conselho Escolar no ano de 1902, estavam os “Livros de leitura – 1º e 2º – por um professor, que se achavam adoptados provisoriamente” (ATAS..., 1902, p. 36). Tal adoção ocorreu a partir da autorização concedida pelo conselho, no ano de 1901, para que o inspetor geral adotasse quaisquer livros para o ano de 1902, a título de experiência, apresentando-os posteriormente ao conselho para que recebessem parecer, como podemos constatar a seguir. O Sr. Inspector Escolar declarou que, tendo o Conselho em sua ultima reunião, consedido-lhe autorização para titulo de esperiencia, destribuir pelas escolas, adoptando provisoriamente, quaesquer livros de leitura (1º e 2º) que mais se aproximassem do Methodo João de Deus, não havia se utilizado d’essa autorização: não só por que não appareceram ditos livros: porem que si o conselho assim o entendesse, poderia ratificar á autorização a respeito. O Sr. Brandão Junior, tomando a palavra propoz que não só se ratificasse aquela autorização, quanto aos mencionados livros como quaesquer outros que o Sr. Inspector Geral julgar de conveniência para o ensino, apresentando-os depois ao Conselho para sobre elles elaborar parecer. Foi approvada esta proposta por todos os Srs. Presentes [ATAs..., 1901, p. 34]. Os pareceres dados pelo conselho, no ano de 1902, a essas duas obras de autor anônimo adotadas provisoriamente como Cartilha primária e 2° livro em continuação da mesma por um professor, permitem observar o uso das duas denominações para a mesma obra: Posto em discussão o parecer sobre os livros Cartilha primaria e 2º livro em continuação da mesma, por um professor. Tomou a palavra o Sr. João Maia e, achando acceitavel a cartilha, apontou diversos erros do 2º livro, mostrando não poder ser o mesmo approvado. Tomando a palavra o Sr. Toscano apresentou o seguinte substitutivo: “A commissão teve a seu cargo o estudo dos 1° e 2° livros de leitura por um professor, depois da discussão do parecer por ella elaborado e das ponderações feitas pelo Sr. Dr. Inspector Geral, a respeito, propõe como substitutivo ás conclusões do mesmo: 1° – Que seja approvado o primeiro livro. 2° – Que o segundo livro, tal como se acha, não pode ser approvado” [ATAS..., 1902, p. 40, grifos meus]. a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 121 Não tive acesso a nenhuma obra didática que tivesse a denominação Primeiro livro por um professor ou Cartilha primária, mas pude examinar quatro exemplares de livros didáticos da editora Selbach, sendo dois exemplares da Cartilha maternal e dois do Segundo livro de leitura. Dos quatro exemplares, uma edição da cartilha e uma do segundo livro são de autor anônimo, mas os outros dois exemplares aparecem com a autoria reconhecida, pertencendo a um mesmo autor, José Carlos Ferreira Gomes10. O exame desses quatro exemplares e as denominações recebidas por essas obras em diversos documentos permite reconhecer a Cartilha maternal como sendo a Cartilha primária em sua edição no Rio Grande do Sul. Vemos a seguir a referência que seu autor faz à Cartilha maternal pelo methodo João de Deus na folha de rosto de um dos exemplares examinados de seu segundo livro, e que me permite fazer tal afirmação: Aos meus Collegas Tendo escripto a “Cartilha Maternal” pelo Methodo “João de Deus”, pareceume necessário este pequeno segundo livro, em qual se observasse ainda uma parte daquele methodo e facilitasse a passagem da formação de syllabas e das palavras, para uma leitura fácil. O Auctor [Gomes [?], s.d., p. 2, grifo meu]. 10 O autor da Cartilha maternal, edição da Selbach, é José Carlos Ferreira Gomes. Ao que parece, Gomes foi Diretor do Almoxarifado da Instrução Pública, pois assinava mapas demonstrativos dos objetos recebidos e distribuídos pela Instrução Pública, juntamente com o almoxarife responsável por sua distribuição, como podemos constatar em mapa de 1898, anexado ao final de relatório da Instrução Pública (RELATORIO..., 1898). Outra referência a esse autor didático encontramos em ata do Conselho Escolar, constando que, por iniciativa de um dos membros do conselho, o inspetor da 5. Região, sr. Manoel da Costa Brandão Jr., apoiado pela unanimidade dos demais membros do mesmo conselho, “resolve lançar na acta de seus trabalhos imaugurses da sessão de 1093 um voto de sincero pesar pelo passamento de seu secretario, o cidadão José Carlos Ferreira Gomes, cuja dedicação, inteligência e probeidade, exercitadas em longa e laboriosa carreira de funcionário publico se apraz em constatar solesmente, como uma legitima homenagem á sua carreira respeitosa” (ATAS..., 1903, p. 43). 122 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Merece atenção nesse momento, frente à possível constatação da existência de uma contrafação que mais se aproximava da Cartilha maternal (Deus, 1996)11 de João de Deus, a questão dos direitos autorais. Desde 1827, existia no Brasil uma lei imperial defendendo os direitos autorais e instituindo o “privilégio exclusivo da obra” por dez anos para quem produzisse compêndios das matérias a serem ensinadas nas Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda (A luta..., 2001). Em 1830, o Código Criminal estabelecia sanções penais para infratores de contrafação, que correspondia à “reprodução não autorizada de obra intelectual” (idem, p.1). Em 1891, com a Constituição republicana, a matéria foi contemplada e aprimorada e, em 1916, o Direito de Autor saiu do campo teóricojurídico para ingressar na esfera prática, com a criação das associações arrecadadoras (idem). Com o Código Civil de 1916, estendeu-se o prazo para a duração dos direitos autorais, fixado em sessenta anos após a morte do/a autor/a, desde que em consonância com a legislação do país onde a obra tivesse sido editada pela primeira vez (Torresini, 1999, p. 48). Ao discutir a pirataria dos direitos autorais, Hallewell (1985) observa que não existiu proteção internacional dos direitos autorais no Brasil até 1912, sublinhando que essa situação tinha sido de fundamental importância para a sobrevivência das editoras nacionais. O autor observa também que o artigo 261 do Código Criminal de 1830, já citado, que rezava que seria crime “imprimir, gravar, litographar ou introduzir quaesquer escriptos ou estampas que tivessem sido feitos, compostos ou traduzidos por cidadãos brazileiros enquanto estes viverem e dez annos depois de sua morte se deixarem herdeiros” (Hallewell, 1985, p. 171), parece ter permanecido letra morta. Além disso, informa que nem a constituição de 1891 ou a lei n. 946, de 1º de agosto de 1898, indicariam a participação do Brasil em um acordo internacional sobre os direitos autorais, garantindo apenas proteção a obras de cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país. Ou seja: os direitos autorais de estran- 11 O exemplar da Cartilha (Deus, 1996) utlilizado para análise nesta seção corresponde à cópia fac-similada da 1ª edição, publicada em 1876. a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 123 geiros e de brasileiros estavam se constituindo entre o final do século XIX e início do século XX. Ainda segundo Hallewell (1985), a execução da lei de direitos autorais se tornará quase uma opção dos estados com o advento da República, o que permitiu que algumas editoras fizessem da publicação ilegal sua principal atividade. Para esse autor, em nenhum outro estado isso ficou mais evidente do que no Rio Grande do Sul. Ele identifica que as obras de autores portugueses eram particularmente atraentes para reprodução indevida, pois, assim, evitavam-se os custos de uma tradução, citando Borba de Moraes (idem, p. 311), que creditou ao primeiro governo republicano gaúcho o desrespeito aos direitos autorais: “No Brasil, em fins do século XIX e princípios deste, os editores rio-grandenses, protegidos por uma constituição positivista, imprimiam toda sorte de livros sem autorização dos editores legítimos e sem pagar direitos autorais”. Ainda que Hallewell pontue que firma alguma é mencionada à época por Moraes, este autor reconheceria como principal culpada a editora gaúcha mais importante dessa época, que seria a livraria Americana. Quanto à livraria Selbach, de J. R. da Fonseca & Cia., que editou e distribuiu a Cartilha maternal para as aulas públicas na Primeira República, não há nenhuma menção no seu estudo sobre possíveis publicações irregulares de obras estrangeiras. Em estudos sobre o direito autoral, Quartucci e Pereira (2001) enfatizam a importância do uso dos verbos reproduzir ou utilizar, e tal argumentação me permite interpretar que, nesse período, as contrafações corresponderiam à reprodução e não à utilização da obra de determinado/a autor/a. Poderíamos interpretar, então, que as contrafações gaúchas da Cartilha maternal não seriam a reprodução da obra original, mas o uso de seu método, que ainda não era penalizado como cópia, já que eram diferentes da obra original, embora essas diferenças fossem aparentemente discretas. Chartier (1998, p. 53) nos auxilia a prosseguir nessa argumentação ao referir que havia traços, já nos livros impressos do século XVI, que manifestariam “a atribuição do texto a um indivíduo particular, designado como seu autor”, sendo que “a mais espetacular dessas marcas [segundo ele, seria] a representação física do autor, em seu livro”, através de sua 124 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 foto. A nova edição da Cartilha maternal, publicada em 1925 ou anteriormente, traz no verso da folha de rosto: “Ficam reservados todos os direitos garantidos pela lei”, e a 96ª edição, que é posterior à década de 1930, já que segue o acordo ortográfico de 1931 e o decreto nacional de 1938, apresenta no verso da folha de rosto a foto de João de Deus, com sua assinatura abaixo. Devo observar que no primeiro exemplar citado o autor não é mencionado, o que apontaria para João de Deus se, no segundo exemplar, não aparecesse o nome de José Carlos Ferreira Gomes. Assim, a Cartilha maternal, em sua edição gaúcha, inicialmente de autor anônimo e, depois, com autoria identificada, não desrespeitaria o direito do autor, pois não seria considerada reprodução por apresentar na sua materialidade diferenças em relação à obra original e porque “utiliza” o método criado por João de Deus legalmente amparado, já que a “espiritualidade de criação do autor” não era vinculada, ainda, ao direito autoral (Quartucci & Pereira, 2001). Resumindo: problemas quanto ao fornecimento de livros, associados ao preço e à necessidade de que estes atendessem à determinação governamental de adoção do método oficial de leitura, mostram como uma contrafação – a Cartilha primária/Primeiro livro por um professor – torna-se aproximação da Cartilha maternal, permitindo inclusive sua adoção e, ao que parece, sem o descumprimento dos direitos autorais. Temos aqui um redimensionamento do discurso sobre a Cartilha maternal, pois determinadas contrafações dessa obra permanecem como “inconvenientes”, enquanto o governo aventa a possibilidade de surgirem no mercado editorial cartilhas que representem melhores “aproximações” do método oficial. Novos deslizamentos: quando a Cartilha maternal vira “adaptação” da Cartilha maternal O método João de Deus sofre aculturações ao ser transplantado de um contexto onde foi produzido, Portugal, para o estado do Rio Grande do Sul, onde foi reapropriado segundo necessidades locais, como por exemplo, a sua “adaptação” ao português falado e escrito no Brasil, a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 125 através da adoção de uma cartilha reconhecida como “similar”, que materializaria esse processo. Vejamos, nesta seção, como isso ocorre ao localizarmos tanto a cartilha gaúcha quanto a portuguesa como textos multidiscursivos. Considerando texto como linguagem em uso, ou seja, qualquer exemplo de linguagem escrita e/ou falada que tenha coerência e significados codificados e, ao localizar esses textos, de modo mais geral, como visuais, audiovisuais e gestuais. Luke (1996) reconhece-os como artefatos do trabalho dos sujeitos na produção do significado, isto é, como momentos de intersubjetividade entre escritores, leitores, falantes e ouvintes, cujas intenções não são evidentes sem recorrer a um outro texto. Ressaltando que os textos não são aleatórios, nem arbitrários, nem unidades solitárias que requerem que comecemos de um esboço em cada evento discursivo, o autor observa que os textos se conectam uns com os outros e se referem uns aos outros, às vezes sistematicamente, às vezes através da escolha e deliberação do autor e às vezes através da coincidência. Assim, “todos os textos são, na verdade, multidiscursivos, ou seja, eles se guiam por uma variedade de discursos, campos de conhecimento e vozes” (Luke, 1996, p. 15). Os discursos, por sua vez, ao serem concebidos como práticas sociais, imbricam-se em outras práticas sociais. Dessa forma, o discurso se vê conformado pelas situações, estruturas e relações sociais etc. e, por sua vez, as conforma e incide sobre elas, consolidando-as, questionando-as (Rojo, Pardo & Whittaker, 1998). As autoras ressalvam, ainda, que a noção de discurso presente nestas investigações não pode ser a do discurso como reflexo dos acontecimentos, das relações sociais e dos sujeitos. Ou seja, o discurso é interpretado como “conjunto de enunciados que se apóiam em formações discursivas, que são definidos em um determinado quadro de condições de existência” (Costa & Silveira, 1997, p. 10). Dessa forma, dependendo de como olhamos para determinadas questões, podemos dar respostas diversas ou, pelo menos, podemos compreendê-las de outra forma, como no caso do desrespeito aos direitos autorais. Na verdade, a edição gaúcha da Cartilha maternal teve a cartilha portuguesa e seu método como referência, como aconteceu com essa 126 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 obra em relação a obras didáticas francesas, já que o método de ensino da leitura de João de Deus, publicado em 1876, se aproximaria também do método de Régimbeau, publicado em 1866, ao apresentar as letras por seus valores fônicos. Ou seja, novas conexões ou rearticulações dependem de condições concretas de existência – para que apareçam de alguma maneira –, e as mesmas podem ser desarticuladas, conforme determinadas circunstâncias (Hall,1998), como podemos constatar através da análise de um outro fragmento dos relatórios de instrução, em que o inspetor geral retoma mais uma vez a discussão da compra da Cartilha maternal, buscando relembrar as dificuldades de sua aquisição por preço mais acessível, ao mesmo tempo que indica a adoção da Cartilha primária: Ainda no anno passado vos ponderei que por motivos de ordem econômica, era-me impossível fornecer ás escolas a “Cartilha Maternal”, de João de Deus. Tenho diversas vezes dito que o livro actualmente fornecido não satizfaz as exigências do methodo ordenado pela lei; mas emquanto não desapparecerem as razões apontadas em outros relatorios ou emquanto não tivermos outro livro que mais se aproxime do methodo legal, estamos forçados a distribuir pelas nossas escolas actuaes 1º e 2º livros de Samorim. Dizia-vos eu, então, que logo que me fosse possivel, de acordo com a lei, cumpria as vossas ordens, fazendo a substituição lembrada. No fim do anno passado, appareceram no mercado a “Cartilha Primária” e o “Segundo Livro” pelo methodo João de Deus, por um professor rio-grandense. Com auctorisação do Conselho, distribui, como experiência, pelas escolas, estes dois livros, recomendando a diversos professores competentes que me communicassem os resultados obtidos com os referidos livros. Deixo de manifestar-me sobre o merecimento dessas obras por não terem ellas sido ainda definitivamente aprovadas pelo Conselho Escolar. Abstrahindo do ensino da lettra manuscripta, a “Cartilha Primaria” adoptou ou procurou adoptar o methodo de João de Deus aos usos e costumes da língua portugueza fallada no Brazil [RELATORIO..., 1902, pp. 212-213, grifo meu]. O próprio Prates reconheceu que o que distinguia a Cartilha primária (Cartilha maternal, edição da Selbach, e todas as demais nomeações a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 127 que obteve), obra que mais se aproximaria da Cartilha maternal, edição portuguesa, era a adoção do ensino da letra manuscrita, pois, como já vimos, João de Deus se ateve, com seu método e sua cartilha, ao ensino da leitura. Neste fragmento de relatório, pode se perceber também a preocupação do governo com a adequação das cartilhas adotadas ao português falado no Brasil. Ou seja: a cartilha reconhecida como a que mais se aproximaria da obra de João de Deus levaria em conta o português falado no Brasil, e não mais o português escrito em Portugal. A presença da letra manuscrita na Cartilha maternal, edição da Selbach, nos mostra que tal cartilha estaria privilegiando o ensino simultâneo da leitura e da escrita e que, portanto, estaria mais de acordo com as prescrições governamentais determinadas para a primeira seção da primeira classe do programa do ensino elementar no ano de 1899. A Cartilha maternal, edição portuguesa, na medida em que privilegiava somente a arte da leitura, não atenderia a essas determinações, tanto que, em Portugal, levou a que um amigo de João de Deus criasse um método de ensino da escrita (Arcozello, 1879) para contemplar o ensino da leitura. Dessa forma, uma imagem de alfabetismo pode ser visibilizada na estrutura que as cartilhas recebiam de seus autores. Embora João de Deus considerasse as habilidades da leitura e da escrita como processos diversos que merecessem atenções diversas, histórica e contextualmente, as marcas dos apetrechos disponíveis para essas aprendizagens nos permitem constatar que a leitura antecedia a aprendizagem da escrita ou que, pelo menos, até o final do século XIX, era mais acessível. A Cartilha maternal, edição da Selbach, em quaisquer dos exemplares examinados (Gomes [?], s.d.; Gomes, s.d.), apresentava a mesma seqüência das lições da cartilha original, excluindo o guia dos exemplares gaúchos. Quando Prates afirma que a Cartilha primária, que venho considerando como a Cartilha maternal, edição da Selbach, privilegiaria o português falado no Brasil, devia estar mencionando que algumas palavras receberiam a ortografia mais usada à época no Brasil, como vae, doe, pôde, póde, pões, dispões, feijão, pássaro, óculo, lágrimas, pêssego (Gomes [?], s.d.) diversamente de Portugal, como vai, doi, poude, põi, dispõis, feijães, passaro, oculo, lagrima, pecego (Deus, 1996), e a inclusão de algumas palavras nas edições da Selbach, que não constam 128 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 na obra “original” portuguesa e que seriam fatiota, data, datada, lata, abalada, bolo, lobo, avô, fouce, coca, gúela, uso, xarope, acção, brinca, honra, horizonte, hesitar, herdar etc. O número de palavras de cada lição nos exemplares da Selbach examinados é igual ou maior que o número de palavras do exemplar examinado da cartilha portuguesa. A Cartilha maternal, edição da Selbach, nos apresenta o ler e o escrever juntos na mesma página e aponta para a simultaneidade dessas aprendizagens; o contar é deixado para as páginas finais da cartilha. Tal divisão pode indicar uma aprendizagem que se sucederia ao ler e ao escrever (que aparecem na mesma página), uma vez que exigiria o uso de outros símbolos, ideográficos, diferenciando-se, portanto, da representação alfabética da língua portuguesa. Os dois exemplares da Selbach incluíam seis alfabetos ao final, em letras manuscritas e de imprensa, maiúsculas e minúsculas, como também os algarismos de 1 a 100 e as tabuadas de somar, subtrair, multiplicar e dividir. Na 96ª edição da Cartilha maternal, edição da Selbach, em conseqüência de alteração na ortografia de algumas palavras, alguns valores fonéticos passam a ser representados por outros grafemas, como no caso das letras simples (k, y, w) e duplas (th, rh, ph), que tiveram palavras deslocadas para outras lições: quilometro, cristo, fósforos etc. Houve também a inclusão do acento em palavras que até então não eram acentuadas. A nota que acompanha a 39ª edição do segundo livro traz essas informações sobre a reforma ortográfica e o acordo realizado entre Brasil e Portugal. As datas do acordo (1931) e da nova legislação (1938) nos permitem concluir que a 96ª edição da Cartilha maternal pela Selbach só pode ser do final da década de 1930 ou posterior. Os editores informam sobre esse acordo ao fim do Segundo livro de leitura, de José Carlos Ferreira Gomes (s.d.), que, como já vimos, seria o mesmo autor da Cartilha maternal, editada pela Selbach. Nota ao professor O dec.-lei 292, de 23 de fevereiro de 1938, tornou obrigatório o uso da ortografia nacional, resultante do acordo a que se refere o dec. 20-108, de 15 de junho de 1931, entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa, e deu outras providências. a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 129 Em virtude desta disposição legal, foram proscritas as letras K, W, e Y. Deverá o sr. Professor explicar, ao aluno, a razão de ser desta supressão, bem como a permanência das citadas letras nos vocábulos estrangeiros geográficos ou derivados de nomes próprios e na abreviatura das palavras: “quilo”, “quilômetro” e “quilolitro”. Assim, também, fará ver que se devem conservar os nomes próprios alienígenas na sua forma vernácula respectiva, dando preferência, entretanto, se as houver, às formas vernáculas correspondentes, já incorporadas ao patrimônio da nossa língua. Os editôres. Tal acordo visibiliza a afirmação do Português Brasileiro e sua diferenciação do Português de Portugal, com a materialização desse processo através de prescrições criadas pela Academia Brasileira de Letras e pelo acordo dessa corporação com a Academia de Ciências de Lisboa, em 1931, que se tornou conhecido pelo decreto-lei citado, de 1938. Guimarães (1996, p. 135) interpreta tais discussões sobre a unificação da ortografia do Português como uma forma de garantir “a unidade do Português de Portugal e do Brasil, sob o pretexto da necessidade de troca cultural entre os dois países (e os demais países de Língua Portuguesa)”. Ao que parece, a cartilha reconhecida como “mais aproximada”, a edição gaúcha da obra lusa, materializou esse processo. Conclusões A análise de cartilhas como textos culturais torna evidente a intertextualidade e interdiscursividade de uma época, em que obras reconhecidas como originais se perdem em novas obras que também seriam reconhecidas de tal forma. Dito de outra maneira, isto significa que, quando as cartilhas são vistas como contrafações da Cartilha maternal, mostram nas nuanças apresentadas antes a sua diversidade, o que faz com que possam ser reconhecidas como contrafações “inconvenientes” ou “similares” da obra original não pelo desrespeito aos direitos autorais, como poderíamos imaginar, mas pela maior ou menor aproximação à obra original. 130 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Assim, entre prescrições e contingências, entre discursos e suas representações, foram produzidas tais obras em contextos diversos e tempos mais ou menos próximos. A aquisição da Cartilha maternal, por meio de contatos com a família do autor, é marcada por impedimentos nem sempre claros, registrados nos relatórios da Instrução Pública do Estado. Os custos aos cofres públicos de sua importação foram discutidos nesses relatórios, bem como as formas de garantir sua edição a um valor mais acessível. O uso de uma contrafação que se assemelhasse bastante à Cartilha maternal e a seu método acabou se impondo. Embora não haja em tais relatórios qualquer indicação sobre o uso da Cartilha maternal, de João de Deus, para construir a universalização da língua portuguesa, eram exaustivos os relatos quanto a preocupações com o ensino da língua portuguesa como se fosse uma língua estrangeira nas escolas das áreas coloniais alemãs do Rio Grande do Sul12. A constituição do português como língua única e nacional corresponderia a uma ação homogeneizadora do Estado pela via do ensino, com o ensino do português apagando todas as outras línguas faladas no Brasil. Ou seja, a língua portuguesa se impunha como a legitíma, a nossa, a língua pátria, através de um instrumento da sua universalização, o livro didático, iniciando pelo primeiro livro escolar, a cartilha. Arrisco pensar que a análise fonética da palavra, própria do método João de Deus, pudesse ser considerada como elemento facilitador do idioma português nas regiões coloniais do estado, onde a língua vernácula seria o alemão ou o italiano. Logicamente, a língua portuguesa não era mais lusa, mas “abrasileirava-se”, o mesmo ocorrendo com a Cartilha maternal gaúcha, que ao virar contrafação da lusa, adaptava-se aos usos e costumes do português falado e escrito no Brasil. 12 Cf. Trindade (2002b). a cartilha maternal e algumas marcas de sua aculturação 131 Referências bibliográficas CHARTIER, Roger (1998). A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília. COSTA, Marisa Vorraber & SILVEIRA, Rosa Maria Hessel (1997). Produzindo subjetividades femininas para a docência: uma análise da revista Nova Escola. Porto Alegre: UFRGS. 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RELATORIO apresentado ao Sr. Dr. Julio Prates de Castilhos, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. João Abbott, Secretario d’Estado dos Negocios do Interior e Exterior em 31 de julho de 1896. Porto Alegre: Officinas a Vapor da Livraria Americana, 1896. RELATORIO apresentado ao Sr. Dr. Julio Prates de Castilhos, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. João Abbott, Secretario d’Estado dos Negocios do Interior e Exterior em 30 de julho de 1897. Porto Alegre: Officinas a Vapor da Livraria Americana, 1897. RELATORIO apresentado ao Sr. Dr. Julio Prates de Castilhos, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. João Abbott, Secretario d’Estado dos Negocios do Interior e Exterior em 30 de julho de 1898. Porto Alegre: Officinas Typographicas da Livraria do Globo, 1898. RELATORIO apresentado ao Sr. Dr. Antonio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. João Abbott, Secretario de Estado dos Negocios do Interior e Exterior em 20 de agosto de 1902. Porto Alegre: Officinas Typographicas de Emilio Wiedemann & Filhos, 1902. RIBEIRO, Hilário (s.d.). Cartilha nacional: ensino simultâneo da leitura e da escripta. Rio de Janeiro: Livraria Garnier. O plano de estudos das escolas públicas elementares na Província do Paraná ler e escrever, para Deus e o Estado Ariclê Vechia* O texto analisa os planos de estudo das escolas públicas elementares no período do Paraná Provincial, tomando como fonte principal os relatórios dos presidentes da província e os relatórios dos inspetores gerais da Instrução Pública. Emancipada de São Paulo, a Província do Paraná precisava firmar-se política e administrativamente. Para tal, o presidente da província elegeu a educação e a uniformização do ensino como metas prioritárias de seu governo. Estes objetivos deveriam ser atingidos pela adoção de um plano de estudos único, direcionado para a formação do indivíduo, implicando o cultivo dos valores do Estado, visando uma educação nacional, e dos princípios da moral cristã, ou seja, da doutrina da religião católica. INSTRUÇÃO PÚBLICA; ENSINO ELEMENTAR; PLANO DE ESTUDOS; PARANÁ PROVINCIAL; SÉCULO XIX. This work analizes the programs of study of the public elementary schools during the time when Paraná was a province, using as its main source the reports of the Presidents of the Province and of the General Inspectors of Public Instruction. Once disassociated from São Paulo, the Province of Paraná sought to establish a political and administrative identity. The President of the Province identified as a priority of the government the creation of a uniform educational system. This objective would to be achieved through the adoption of a unique program of studies that was oriented to the development of the individual, and included the cultivation of the values promoted by the State. The result was an educational system that was based on the principles of Christian morals, that is, on the doctrine of the Catholic religion. PUBLIC EDUCATION; ELEMENTARY EDUCATION; SYLLABUS; PARANÁ; NINETEENTH CENTURY. * Doutor em história social pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná. Projetos de Pesquisa: 1- O currículo da escola secundária brasileira: 1838-1900, 2- A educação dos imigrantes em Curitiba: 1853-1889. 136 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Introdução As lutas políticas para elevar a 5a Comarca de São Paulo à condição de província duraram vários anos. O governo paulista dedicava pouca atenção aos problemas e às necessidades da distante Comarca, uma vez que as reivindicações no sentido de separação de parte do território vinham de longa data. Deixar a 5a Comarca em estado de letargia era uma forma de impedir o movimento separatista. O ensino público, a mola propulsora do desenvolvimento, não escapou desse descaso. Zacarias de Góes e Vasconcellos, logo após assumir a presidência da Província do Paraná, em 1853, enviou um relatório à Assembléia Legislativa Provincial expondo o estado de precariedade em que se encontrava a Instrução Pública da recém-criada província. A Província do Paraná precisava firmar-se como uma unidade política e administrativamente autônoma diante das demais províncias, e Curitiba, o centro das decisões políticas, precisava também assumir a primazia cultural e educacional frente às demais cidades e vilas dessa nova unidade política. Curitiba, apesar de ter sido escolhida como capital, não apresentava qualquer nível de desenvolvimento nos setores econômico, cultural ou educacional que a destacasse como capital. No tocante à educação, padecia de todos os males comuns à província; havia falta de escolas, falta de professores habilitados e baixa freqüência escolar. Reconhecendo o problema, o presidente Zacarias de Góes e Vasconcellos elegeu a educação como meta prioritária de seu governo. Depois de mandar proceder um balanço da real situação do ensino, principalmente na capital, o presidente da província e o inspetor geral da Instrução Pública, Joaquim Ignácio Silveira da Motta, passaram a estabelecer e a colocar em prática um programa de desenvolvimento da educação pública elementar para a província. Dentre as inúmeras metas estabelecidas para tal, destacava-se a questão da uniformização do ensino em todo o território paranaense, que deveria ser atingida pela adoção de um plano de estudos que traçaria os conteúdos a serem trabalhados, os livros didáticos a serem adotados e as orientações metodológicas que deveriam nortear o ensino de cada matéria. As orientações metodológicas apontavam que o ensino deveria ser direcionado para a formação do o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 137 indivíduo, implicando no cultivo de valores do Estado, visando uma educação nacional e dos princípios da moral cristã, no caso específico, da doutrina da religião católica. Estabelecendo um plano de estudos Apesar de política e administrativamente emancipada, a província do Paraná continuou sendo regida pela legislação paulista no que se referia aos assuntos educacionais, porém, com algumas alterações. A lei em vigor, à época, era a de n. 34 de 16 de março de 1846, que previa escolas específicas para cada um dos sexos e havia instituído a divisão da instrução primária em dois níveis: escolas elementares e escolas superiores ou de segunda ordem, onde seriam ensinadas matérias diferenciadas para um e outro sexo e graduadas de acordo com o nível de ensino a que eram destinadas. Previa também, nos seus artigos 7º e 8º, a existência de escolas públicas chamadas promíscuas nos lugares onde não existisse número suficiente de alunos para abrir escolas para cada um dos sexos, bem como a existência de escolas particulares ditas de “primeiras letras” onde se ensinasse somente a leitura, a escrita, a prática das quatro operações e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião do Estado. O plano de estudos para as escolas primárias elementares públicas do sexo masculino compreendia: a leitura, a escrita, teoria e prática da aritmética até proporções, inclusive, as noções mais gerais de geometria prática, gramática da língua nacional e princípios da moral cristã e da doutrina da religião do Estado. Para as escolas primárias superiores, deveriam ser adicionadas: noções gerais de história e geografia, especialmente do Brasil; noções das ciências físicas aplicáveis aos usos da vida. As matérias para as escolas primárias elementares para as meninas seriam as indicadas para os meninos, com a exclusão da geometria, limitação da aritmética à teoria e prática das quatro operações e inclusão das prendas domésticas. Nas escolas primárias superiores deveriam ser adicionadas noções gerais de história e geografia e música (Paraná, 1846). 138 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 A divisão da escola primária em dois níveis, bem como o plano de estudos proposto, tinham inspiração na lei francesa de 2 de julho de 1833. No entanto, segundo o presidente Zacarias de Góes e Vasconcellos, a lei de 1846 mutilou o pensamento de Guisot, uma vez que omitia várias matérias do plano de estudos, tais como o sistema de pesos e medidas. O presidente sugeriu várias alterações, entre elas a inclusão do ensino de pesos e medidas e a exclusão de geometria prática, do que a lei mandava dar noções. Em relação ao ensino primário superior, opinava por sua ampliação. Cumpre ele, que além do objeto do ensino elementar abranja todas ou a maior parte das seguintes matérias: O desenvolvimento da aritmética e suas aplicações práticas. A leitura explicada dos evangelhos e notícia da história sagrada. Os elementos da história e geografia, principalmente do Brasil. Os princípios das ciências físicas e da história natural aplicáveis aos usos da vida [Paraná, 1854b, p. 15]. Esse rol de matérias, contudo, não necessitava ser adotado na íntegra em todas as escolas primárias de segundo grau, antes deveria servir de base para atender às características e aos recursos de cada localidade.O presidente Zacarias considerava que deveria ser escolhido aquele que melhor se adaptasse à realidade de cada classe. Em relação ao método de ensino, o professor poderia optar pelo individual, simultâneo, mútuo ou lancasteriano, ou utilizar uma combinação de dois ou mais. Porém, em 27 de dezembro de 1856, o vicepresidente da província mandou que fosse observado nas escolas de primeira ordem o seguinte plano de divisão do ensino, proposto pelo inspetor geral da Instrução Pública: Art. 1º. As escolas serão divididas em três classes, cada uma das quais, menos a terceira, terá primeiro e segundo banco, conforme o grau de adiantamento dos alunos. Essa divisão porém, poderá ser alterada em uma ou em todas por ordem especial do inspetor geral. Art. 2º. A divisão do ensino pelas classes nas escolas primárias inferiores do sexo masculino será feita do modo seguinte: 1ª classe, consistirá de 2 bancos o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná em frente da cadeira do professor, uma esquerda outro a direita, separados por um espaço que permitia a passagem. No primeiro ensina-se a conhecer as letras, e retê-las na memória fazendo estudo pela vista e decorado, acabando por fazer junção de letras e formação de sílabas. No segundo banco ensina-se a soletrar e a decompor as palavras em sílabas, bem como a conhecer os números: começam os meninos a fazer linhas retas e curvas sobre o quadro preto, recebendo as mais fáceis noções para se instruírem na diferença de uma e de outra. Nesta classe não há mesa; cada banco terá meia hora de lição do professor, que fará as suas explicações no quadro preto, mandando os alunos procurar nas cartas, que terão à vista, as letras, as sílabas ou palavras, que escrever, deixando tempo suficiente para os do segundo banco fazerem exercício de traço no quadro. A segunda classe também consta de primeiro e segundo banco, colocados por de trás da primeira. Primeiro banco: ensina-se leitura de impresso e manuscrito, exercícios de espírito e de memória, taboada de Pitágoras, começo de cálculo, principiando pela soma de números dígitos, diminuição e multiplicação; começam os meninos a fazer traços finos e grossos sobre o papel e doutrina cristã duas vezes por semana. Segundo banco, leitura, aritmética, a saber: noções de quantidade e unidade, regra de diminuição, teoria e prática das quatro operações; escrita por traslado de letras grandes e pequenas; catecismo de moral cristã com explicações racionais, que desenvolvam os princípios de criação; doutrina da religião do estado, duas vezes por semana, como no banco precedente, noção de moral civil e conjugação de verbos. Nesta classe tanto no primeiro como no segundo banco, se farão explicações sobre o quadro preto, quando se tratar de pontuação, conjugação de verbos e aritmética: durarão as lições o mesmo tempo que na classe antecedente. Terceira classe: constará de um só banco que fecha o fundo do anfiteatro e ensina-se leitura metódica de prosa e verso, escrita ad libilum tirada do livro que se lê na classe, ou determinada pelo professor para exercício de ortografia e análise das partes da oração aritmética, teoria, prática e quebrados, até a regra de três inclusive, gramática, exercício de memória, com repetição de poesia, geometria, prática (as noções mais gerais). As explicações de ortografia, aritmética e geometria prática, dará o professor sobre o quadro preto. A lição dura meia hora e os alunos dessa classe trazem escritas de casa, fazendo-as na escola para análise gramatical. Art. 3º. Ao começar a lição da terceira classe despedem-se os alunos da primeira. 139 140 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Art. 4º. A divisão nas escolas femininas será a mesma, com a diferença de que se omitem as noções de linhas na primeira classe, assim como outras noções geométricas na terceira classe, ensinando de aritmética somente teoria e prática de somar e diminuir na segunda classe, e de multiplicar e repartir na terceira. Também o tempo do ensino é menor em cada banco, sendo vinte minutos para cada um, menos o da terceira classe que terá meia hora, a fim de que os 40 minutos, que restam para preencher o tempo legal da escola, sejam empregados no ensino do trabalho de agulha [Paraná, 1856, apud Paraná, 1858a]. O plano proposto especificava os passos que deveriam ser adotados nas aulas segundo o método simultâneo1. Era uma tentativa de uniformizar o método de ensino em toda a província. Até então, nenhuma regra havia sido estabelecida também para a adoção dos livros nas escolas primária elementares. Sua escolha dependia unicamente do critério do professor. Conseqüentemente, a seleção era arbitrária, resultando em variedade e falta de unidade na propagação dos conhecimentos e na educação pública. Em muitas escolas da província, eram adotados apenas a cartilha do padre Ignácio ou de Pimentel, jornais e a leitura de manuscritos em cartas particulares. Para imprimir ao ensino o caráter de uniformidade, o inspetor geral da Instrução Pública arrolou livros que deveriam ser adotados em cada matéria e deu algumas orientações metodológicas que deveriam nortear cada uma delas. [...] adotei a “Gramática de Coruja” que, posto que se ressinta de alguns defeitos foi a que mais adaptada achei para dar as primeira noções, para ligar e combinar as palavras e saber delas fazer uso e emprego. Para a leitura adotei 1 Método de ensino desenvolvido em fins do século XVIII, sob inspiração de La Salle (1651-1718). Nesse método, o agente de ensino é o professor, que instrui e dirige simultaneamente diferentes classes de alunos, que realizam os trabalhos ao mesmo tempo. O ensino é coletivo e apresentado aos grupos de alunos reunidos em função da matéria a ser ensinada. A reunião dos alunos em grupos ou classes é feita de acordo com o grau de aquisições e conhecimentos (Pierre Lesage, “La Pedagogie dans les Écoles Mutuelles au XIX siecle”, Revue Française de Pedagogie, p. 62, em Bastos & Faria Filho, 1999, pp. 96-97). o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná as “Lições de História do Brasil” do mesmo autor, no intuito de auxiliar o progresso intelectual dos alunos com o moral. Aí vão eles apanhar a cadeia de sucessos mais notáveis que ocorreram desde as primeiras peregrinações da civilização na nossa terra. Assim se pratica em outros países onde se proporciona a puericia com o conhecimento da língua o da história do seu país. No mesmo intuito e no de exercitar a leitura animada, com entonação e metrificação da voz, mandei fazer uso, para as classes mais adiantadas, das poesias escolhidas do padre Caldas. Proscrevo das escolas o uso das fábulas, porque as suas ilações morais estão fora do alcance da inteligência das crianças e julgo menos sensato que se procure tão desviado caminho para com ficção se ensinar a verdade. Também proscrevo as epístolas particulares para exercícios de leitura de manuscrito, porque além de se não poderem evitar erros de ortografia e de linguagem em que podem abundar, ocupam o espírito das crianças com frivolidades e às vezes com reserva que não convém violar. Sob proposta minha foi adotado o compêndio de Aritmética de Manoel Augusto de Figueiredo [...]. Falta-nos algum livro que instrua a mocidade com noções claras de moral civil. Estas idéias precisam os meninos aprenderem na escola, porque elas completam o fim de um plano geral de educação nacional [...]. Para o ensino religioso está adotado pela Assembléia paulistana o Catecismo de Fleury, traduzido pelo conselheiro Manoel Joaquim do Amaral Gurgel; esse Catecismo para moral religiosa e para a moral e doutrina a Cartilha de Pimentel são as obras que ora faço usar nas escolas [...]. Convém dirigir o ensino na parte religiosa de modo que o professor não só faça um ensino geral de moral cristã, como outro positivo moral e dogmático – só assim a educação atingirá seu maior grau de perfetibilidade promovendo a propagação das luzes e de virtudes pela fé e crença religiosa, porque se as escolas populares se preocuparem do desenvolvimento do espírito, sem levá-lo aos sentimentos de amor e justiça para com seu Criador e Redentor, próprio a dirigi-lo em suas ações; estas escolas fariam mais mal do que bem [...]. Para o ensino da geometria prática penso que pode-se adotar as noções mais gerais tiradas da obra de Ottoni [...]. Não tenho me pronunciado sobre os silabários [...]. Para o ensino da caligrafia mandei vir as coleções de traslados caligráficos de Ciryllo Dilermando da Silva e recomendei a adoção do compêndio de Ventura. Também já submeti a V. Exa. a bela tradução da obra 141 142 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 inglesa: Fáceis lições sobre matéria de dinheiro, para uso da mocidade. Julgo que se pode adotar esse livro para leitura da última classe porque embora pareça sugerido pelo industrialismo britânico adaptado aos seus hábitos, ele fornece noções econômicas exatas e certas que a todos convém saber [Paraná, 1856, pp. 25-28]. As orientações metodológicas dadas pelo inspetor geral da Instrução Pública são indicadores dos objetivos e da abordagem que deveria ser dada ao ensino ministrado na escola primária elementar. Primeiramente, sugeria a integração dos conteúdos da língua portuguesa com os de história do Brasil, visando não só ao desenvolvimento intelectual mas também ao aspecto moral do aluno; as aulas de catecismo não deveriam ser dogmáticas, antes, deveriam ser voltadas para o desenvolvimento moral. Enfim, todas as matérias deveriam ser direcionadas para a formação do indivíduo, implicando o cultivo de valores de acordo com a moral cristã, no caso específico, com a religião católica; não apenas para a transmissão de conhecimentos pura e simplesmente, uma vez que a meta maior a ser atingida era um plano de educação nacional. Os professores públicos de Curitiba, ao que parece, seguiam, em parte, as disposições legais. Em 1854, a professora Maria do Carmo de Morais, além do ensino da aritmética, da leitura, da escrita e da gramática da língua nacional, ensinava o catecismo para as meninas, porém, o método adotado visava apenas a transmissão dos dogmas da Igreja católica, que eram decorados pelas alunas. Segundo a relação de alunas daquele ano, muitas sabiam “toda a doutrina de cor”, outras sabiam o “Credo”, “os mandamentos”, “artigos de fé” e a “Oração Dominical” (Paraná, 1854a, p. 60). Em 1857, o inspetor da Instrução Pública, Bento Fernandes de Barros, em sua visita de inspeção à escola do professor João Batista Brandão de Proença, constatou que este seguia as disposições regulamentares, exceto uma, por impossibilidade da disposição de um banco fechando o fundo do anfiteatro, na forma das instruções de 27 de dezembro de 1856. Embora o inspetor não fizesse menção de que o professor ensinava catecismo e moral cristã, este fato está implícito, uma vez que afirmava que o professor seguia as disposições regulamentares e indicou a única não cumprida (Dezenove de Dezembro, 1857, p. 4). o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 143 A tarefa do professor era bastante árdua. Congregava em um mesmo espaço alunos de diferentes níveis de aprendizagem; em cada banco era ensinado um conteúdo diferente e o tempo dedicado aos alunos de cada banco era de apenas vinte ou trinta minutos. Outros fatores intervenientes afetavam o aproveitamento dos alunos. Não havia casas escolares próprias, em geral as escolas funcionavam na residência do professor, sendo quase sempre desprovidas de móveis e utensílios, tais como mesas, cadeiras, bancos, quadro de giz, lousas, tinteiros e demais materiais (Paraná, 1856, pp. 25-28). O Regulamento para as escolas de Instrução Primária de 1857 propôs novo plano de estudos para as escolas de primeira e de segunda ordem, distinguindo-o por sexos, como segue: Art. 3º. As escolas de primeira ordem no seu ensino compreendem: § 1º Para o sexo masculino; Leitura, e caligrafia, gramática da língua nacional, religião – princípios de moral cristã, e doutrina, noções de geometria, teoria e prática de aritmética até regra de tres, sistema de pesos e medidas do império. § 2º Para o sexo feminino: São as mesmas matérias, com exclusão da gramática e limitado à aritmética, ao ensino das quatro operações de numeros inteiros; completando o plano de ensino os trabalhos de agulha. Art. 4º. As escolas de segunda ordem para o sexo masculino, compreendem mais o ensino de noções gerais de história e geografia, especialmente do Brasil e noções de ciências físicas aplicadas aos usos da vida; e para o sexo feminino, noções de história geográfica, música e língua francesa [Paraná, 1857, pp. 61-62]. Esse plano estava embasado nas disposições da lei n. 34 de 1846 e no traçado pela reforma Couto Ferraz de 1854, que estabelecia o Regulamento do ensino primário e secundário no Município da Corte. Os dois planos, por sua vez, tinham inspiração nas idéias educacionais difundidas na França e traduzidas nas reformas de Guisot de 1833, na qual se baseou a lei paulista de 1846, e na de Falloux de 1850, que 144 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 serviu de matriz para a Reforma de Couto Ferraz2. O plano adotado pela Província do Paraná, no entanto, era mais sintético que o de Couto Ferraz; em linhas gerais era um plano conservador, uma vez que manteve praticamente o mesmo de 1846, que já vinha sendo implementado nas escolas da capital. O ensino seria ministrado pela manhã e à tarde, durando cada sessão duas horas e meia, sendo que na abertura e no encerramento das aulas os alunos deveriam recitar uma oração. O método indicado continuava sendo o simultâneo por classes, ficando ressalvado o direito do professor de exercitar qualquer outro método de ensino, conquanto fosse autorizado pelo inspetor geral. Nas escolas públicas e particulares só seriam admitidos livros e compêndios autorizados pelo inspetor geral. O acesso de uma classe para a outra seria feito via exame e o exame final de habilitação seria realizado no mês de dezembro, de acordo com as instruções expedidas pelo inspetor geral. Os alunos do segundo banco da primeira classe poderiam ser examinados ao final de cada mês, de acordo com solicitação do professor, e os de segundo classe a cada dia 15 dos meses de abril, junho e outubro. Os exames de primeira classe consistiam em soletrar palavras, decompô-las em sílabas, leitura de nú- 2 Os planos de estudos estabelecidos para o ensino primário na França e no Município da Corte eram idênticos. Plano Francês (1850): A instrução primária compreende: a instrução moral e religiosa; a leitura, a escrita e elementos da língua francesa; o cálculo, o sistema legal de pesos e medidas. Pode compreender também: aritmética aplicada às operações práticas; elementos de história e geografia; noções de ciências físicas e de história natural, aplicáveis aos usos da vida; instruções elementares sobre a agricultura, indústria e higiene; agrimensura; nivelamento e desenho linear, canto e ginásticas. Plano do Município da Corte (1854): O ensino primário nas escolas públicas compreende: a) a instrução moral e religiosa; b) a leitura e a escrita; c) as noções essenciais de gramática; d) os princípios elementares da aritmética; e) o sistema de pesos e medidas do município. Pode também compreender: a) o desenvolvimento da aritmética em suas aplicações práticas; b) a leitura explicada dos Evangelhos e notícia da história sagrada; c) elementos de história e geografia, principalmente do Brasil; d) os princípios das ciências físicas e da história natural aplicáveis aos usos da vida; e) a geometria elementar; f) agrimensura; g) desenho linear; h) noções de música e exercícios de canto; i) ginástica; j) em estudo desenvolvido do sistema de pesos e medidas, não só do Município da Côrte, como das províncias do Império e das Nações com que o Brasil tem mais relações comerciais (cf. Buisson, s.d.; Chizzotti, 1975, p. 49; Rio de Janeiro, 1854). o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 145 meros e traçado de linhas retas e curvas no quadro negro. Os de segunda classe, cópia de palavras, pontuação, acentuação em períodos, leitura do Compêndio moral e conjugação de verbos. O exame de aritmética versava sobre definições, unidade, número, numeração e exercícios das quatro operações. Havia ainda exame sobre o catecismo, orações, doutrina histórica e dogmática (Paraná, 1860, pp. 45-46). Os exames para alunos da terceira classe nas escolas primárias iniciavam em 1º de dezembro ou em data anterior, de acordo com o requerido pelo professor. Eram realizados perante uma comissão composta pelo professor da classe, por um outro designado pela Inspetoria Geral e presidido pelo inspetor de distrito ou pelo subinspetor da escola. Havia uma prova escrita onde seriam verificadas a letra, a ortografia e a pontuação e uma prova oral que incluía leitura de períodos da História do Brasil ou das Cartas seletas do padre Antonio Vieira, perguntas de sintaxe e conjugação de verbos. Havia, também, exercícios de aritmética, teóricos e práticos, além de questões de geometria, catecismo e doutrina histórica e moral. O tempo para cada uma das etapas da prova era de dez minutos por aluno. Para o sexo feminino, o exame de aritmética era limitado à prática das quatro operações e posteriormente havia exame de algum trabalho de agulha (idem, pp. 2-3). A Inspetoria Geral da Instrução Pública, em 1858, alterou o plano e a divisão do ensino nas cadeiras de instrução primária de segunda ordem para o sexo feminino. Seriam respeitadas as instruções de 1856, porém com as adições e alterações seguintes: Art. 1º § 1º. Às matérias daquele programa se adiciona o ensino da música, língua francesa, geografia, noções elementares de geografia, matemática, física e política, com especialidade a do Brasil; história e noções preliminares, os grandes períodos, as datas notáveis, história Santa e história do Brasil. Art. 2º. O estudo das matérias necessárias se dividia pelas classes do modo seguinte: § 1º A música começar-se-á a ensinar desde a 2ª classe pelas noções de arte, exercícios de tons para a formação da gama; na 3ª classe, música vocal e instrumental com solfejo, vocalização e canto; nas classes superiores, aperfeiçoamento dos exercícios de transposições. 146 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 § 2º Na terceira classe inicia-se o estudo da língua francesa, versão de pedaços fáceis de prosa, havendo uma lição por dia, de sorte que na sessão da tarde aprendam as alunas as noções gerais de geografia, matemática e da história as noções preliminares, grandes datas e em seguida a história Santa. Na 4ª classe: tradução de francês, prosa e verso, geografia física e política, especialmente a do Brasil e história deste. Art. 4º. As alunas que não quiserem concluir o estudo das matérias desta cadeira, poderão pedir exame de instrução elementar no fim da 3ª classe [Paraná, 1858b, pp. 136-137]. Os livros a serem adotados eram: para música, Método de piano de Hunten; língua francesa, Gramática de Sevene; tradução e leitura de prosa de Morceaux choisies, de Fenelon ou Petit Carême, de Massition; de versos, Art-poetique de Boileau; geografia e história, Manual do ensino primário de Semel; e para o estudo especial de história e geografia do Brasil, a obra de Coruja e a do padre Pompeo na parte que tratava do assunto. Para o ensino de francês, ficava autorizado o método de Burgain (idem, p. 137). Também, complementando o Regulamento de 1857, o inspetor Joaquim Ignácio Silveira da Motta propôs um Regulamento para a inspeção da Instrução Pública, aprovado em 24 de abril de 18573. A província foi dividida em distritos conforme a divisão das comarcas, tendo na liderança de cada um deles um inspetor e junto a cada escola um subinspetor. Foi criado um Conselho Literário de Distrito composto dos párocos, dos presidentes das Câmaras e dos subinspetores. Esse conselho presidido pelo inspetor ocupar-se-ia de todos os negócios relativos à instrução primária e secundária, ordem de ensino, plano geral de estudos, livros, habilitação dos professores, além de outras funções. Aos vigários competia a inspeção sobre o ensino religioso, moral e intelectual, podendo estabelecer normas e instruções, bem como exigir que os estabelecimentos particulares de educação cumprissem o preceito do artigo 95o do regulamento, e propor multa nos casos de infração. 3 Esse Regulamento da Inspeção Pública também estava embasado no Regulamento para o Município da Corte de Couto Ferraz. o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 147 Segundo o inspetor geral, “[...] a influência religiosa simbolizada por um de seus ministros, fazia falta nas escolas; todos os países católicos a tem consagrado, e no interesse das nossas crenças convinha encher essa lacuna. A Prússia, que serve de modelo nesse assunto da inteira adesão a intervenção do pastor nas suas escolas” (Paraná, 1856, pp. 21, 24, 44). Alguns anos depois, o inspetor continuou suas considerações afirmando que os párocos não estavam compenetrados da justa participação que deviam ter na educação pública. “O que é com efeito o apostolado e o título de vigário de Jesus Cristo senão a função santa de concorrer à formação das gerações para a sociedade?” (Paraná, 1858c, p. 5). Advertia que esses ministros da religião não deveriam ficar indiferentes à propagação das verdades que aprenderam e que constituem o verdadeiro critério da magnífica aliança das duas potências: inteligência e fé. Em fins de 1858, o inspetor considerava prematura a introdução de reformas no ensino enquanto não fosse possível analisar os reais resultados obtidos com a organização então vigente. A sugestão de se adotar um outro método de ensino para a leitura – o método Castilho – foi vista com cautela. Para fazer uma experiência com o novo método, foi convidado o professor do ensino particular Cândido José Pereira, que encontrou dificuldades em sua aplicação (idem, pp. 11-12). Em 1860 foi expedido um novo catálogo de livros que deveriam ser adotados nas escolas de instrução primária de primeira ordem: Para a 1ª classe, 1º e 2º banco – o alfabeto de Roquette até a página 33; para a 2ª classe, 1º banco – História de animais, do mesmo alfabeto da página 34 até 66 e manuscritos do professor, tirados dos Rudimentos de Moral Religiosa, tradução de Galvão, para o 2º banco – Catecismo de Doutrina Cristã, Rudimentos de Moral Religiosa do Manual de Lunel, traduzido pelo professor Galvão, História do Brasil de Coruja, Gramática de Cavalcanti e Aritmética de Figueiredo; para a 3º classe, Poesias do Padre Caldas e Epitome de geometria prática de Albuquerque [Catálogo..., 1860, p. 4]. Demonstrando a vinculação da Igreja com o Estado e preocupado com o indiferentismo e com a situação pouco satisfatória do ensino reli- 148 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 gioso, o Governo Imperial, por meio da Circular do Ministério dos Negócios do Império, de 11 de março de 1865, aos bispos de todas as dioceses do país, chamava a atenção das autoridades eclesiásticas para o cumprimento dos deveres paroquiais e solicitava que fossem tomadas as medidas necessárias para a realização de tão alto desideratum (Circular..., 1865, p. 1). Em 1869, o inspetor geral Ernesto Francisco de Lima Santos recomendava o cumprimento da lei imperial n. 1.157 de 26 de janeiro de 1862, que mandava incluir no plano de estudos das escolas de instrução primária, quer públicas, quer particulares, o ensino do sistema métrico; exigia dos professores exame e aprovação em metrologia e solicitava do governo autorização para a compra de compêndios de metrologia para distribuí-los pelas escolas (Paraná, 1869, p. 11). No ano seguinte, o presidente Antonio Luiz Affonso de Carvalho expedia ordem para compra de quinhentos exemplares desses compêndios, bem como igual número do Manual prático das escolas, A ciência do bom homem Ricardo, Desenho linear, Catecismo e história pátria e Cartas de “a, b, c” (Paraná, 1870b, p. 14). O método de ensino simultâneo continuava em vigor na década de 1860, sendo seguido rigorosamente por alguns professores4. Porém, começava a ser questionado por outros. Religião: A alma da escola Em fins de 1870, o inspetor geral Bento Fernandes de Barros informava ao recém-empossado presidente Venâncio de Oliveira Lisboa o estado da instrução pública. Segundo ele, o ensino, na prática, estava restrito à leitura, à caligrafia, ao cálculo e a algumas fracas noções de gramática e de doutrina cristã. Esse ensino apenas fornecia os elementos 4 O professor João da Costa Vianna, por exemplo, professor da primeira cadeira do sexo masculino em Curitiba, em seu relatório de 1866 informava que em sua escola mantinha a divisão de três classes, sendo que a primeira e a segunda eram constituídas por dois bancos e a terceira com um banco (DEAP, s.d., fl. 61). o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 149 primários, mecânicos, para a aquisição de conhecimentos e de noções de moral (Paraná, 1870a, p. 4). Considerava objetivo do ensino a transmissão às novas gerações das crenças, idéias e dos sentimentos que animaram a vida das gerações passadas; “[...] educá-las nas verdades morais e religiosas que são para o indivíduo a condição essencial do seu desenvolvimento e para a sociedade a lei de sua conservação” (idem, p. 7). Segundo Bento Fernandes, o ensino primário não possuía o caráter religioso que deveria ter; a escola apenas transmitia algumas noções repetitivas da doutrina do catecismo, sem incutir no coração o espírito do cristianismo. Recomendava o ensino da Bíblia nas escolas e o estabelecimento de uma aliança entre o desenvolvimento do sentimento religioso e o desenvolvimento intelectual. Sua proposta tinha inspiração na educação praticada nos Estados Alemães, onde o conhecimento da verdade religiosa era a base do ensino para todos. A religião era vista como o ponto central do ensino – a alma da escola; em torno da qual giravam os outros objetos de estudo. Este ensino centrado na religião era adotado tanto pelos católicos quanto pelos protestantes, com excelentes resultados (idem, pp. 8-9). Essas ponderações do inspetor geral certamente influenciaram a reforma de ensino efetuada no ano seguinte. Em 1871, o presidente Venâncio José de Oliveira Lisboa, mediante a lei n. 290 de 15 de abril daquele ano, reformulou o ensino primário, mandando que fosse observado novo regulamento. O plano de estudos estabelecido pelo Regulamento da Instrução Pública, de 13 de maio de 1871, estava assim organizado: Art. 2º. O ensino nas escolas compreende: § 1º A instrução moral e educação, tendo por objeto os deveres fundados na autoridade dos dogmas cristãos; § 2º A instrução religiosa, tendo por objeto as orações, o catecismo, compreendendo o velho e novo testamento. § 3º A leitura e a caligrafia. § 4º A gramática da língua nacional. § 5º A aritmética até proporções inclusive e o sistema métrico de pesos e medidas. 150 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Nas escolas de sexo feminino, além das matérias prescritas, seriam ensinados os trabalhos de agulha [Paraná, 1871b, p. 7]. Algumas mudanças importantes foram verificadas: o Regulamento de 13 de maio de 1871, que reformulou o Regulamento de 18575, extinguia a classificação de escolas primárias de primeira e de segunda ordem; incluía o ensino do sistema métrico; mantinha a maioria das matérias propostas pelo Regulamento de 1857, com exceção de noções de geometria e música. Contudo, o aspecto mais importante era o enfoque que deveria ser dado ao ensino primário. De acordo com o art. 2º da lei n. 290 que o reformulou, o ensino religioso deveria constituir a base do ensino primário (Paraná, 1871a, p. 1). A direção do mesmo ficaria confiada aos párocos, os quais teriam não só o direito de inspecioná-lo e esclarecê-lo, mas também de dar instrução religiosa nas escolas de sua paróquia (idem, pp. 5-10). Em consonância com esse enfoque dado ao ensino primário, os professores teriam que professar a religião do Estado como requisito para ingressar no magistério público. Por esse regulamento, foi mantido o método de ensino simultâneo; porém, ficaria livre a adoção de qualquer outro, desde que houvesse uma representação dos professores junto à Inspetoria do Ensino e a aprovação do inspetor e do presidente da província. Os livros didáticos adotados seriam aqueles autorizados pela presidência, ouvido o inspetor geral. O ensino continuava a ser ministrado pela manhã e à tarde, com duração de duas horas e meia cada sessão: das nove e meia ao meio dia e das duas e meia às cinco horas. Na abertura da escola pela manhã e no encerramento das aulas à tarde as crianças deveriam recitar uma oração religiosa. O calendário escolar previa aulas de 6 de janeiro a 8 de dezembro, sendo feriados apenas os domingos, dias santos, os de festa nacional, carnaval, Semana Santa do domingo de ramos até o da Páscoa. A final de cada ano, de 1º a 8 de dezembro, seriam realizados os exames para os alunos que estivessem preparados nas matérias de ensi- 5 Muito embora o proposto no Regulamento de 8 de abril de 1857 tivesse sofrido alterações, em diversos aspectos o regulamento continuou em vigência até a reforma de 1871. o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 151 no. Os exames seriam presididos pelos inspetores paroquiais, de distrito e por duas pessoas por eles nomeadas. Em agosto de 1874, o presidente Frederico Cardoso de Araújo Abranches sancionou um novo regulamento para a Instrução Pública Primária e Secundária. Entre outras disposições, incluiu a obrigatoriedade do ensino e criou um Conselho de Instrução Pública da Província. O inspetor geral João Manoel da Cunha traçou suas atribuições e destacou a importância da participação dos padres como conselheiros, “sua inspeção caridosa à escola não deixará costumes sem doutrina, faltas sem censura, desalento sem conforto. Continuará aí as protetoras funções de pastor do inexperto e infantil rebanho” (Circular..., 1874, p. 1). O Regulamento de 1874 pouco mudou o plano de estudos para o ensino primário, porém alterou as suas finalidades, diminuindo a ênfase dada ao ensino religioso. Art. 2º. O ensino nas escolas compreende: § 1º A instrução intelectual, a educação e o ensino moral e religioso. § 2º A leitura e a caligrafia. § 3º A gramática da língua nacional. § 4º Aritmética até proporções inclusive e o sistema métrico de pesos e medidas. § 5º A instrução religiosa, terá por objeto a doutrina da religião do Estado, compreendendo o velho e o novo testamento. Nas escolas do sexo feminino, além das matérias prescritas se ensinarão os diversos trabalhos de agulha [Paraná, 1874, p. 198]. Os dispositivos relativos ao método de ensino, ensino religioso, livros didáticos, período de ensino e calendário escolar e requisitos para o professor ingressar no magistério público, foram mantidos como no regulamento anterior. Com relação aos exames, contudo, ficou estabelecido que todos deveriam prestá-los ao final do ano para se conhecer o grau de adiantamento de cada aluno. O regulamento, além de incluir alterações quanto à obrigatoriedade do ensino, classificou os professores e conseqüentemente as escolas em quatro categorias: a) de cidade; b) de vila; c) de freguesia; d) de bairros. 152 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Mudança de enfoque: ampliando o plano de estudos As idéias relacionadas à instrução pública na província continuavam em constante efervescência. Em 16 de julho de 1876, a Assembléia Legislativa Provincial aprovou e o presidente da província sancionou o Regulamento Orgânico da Instrução Pública que alterou profundamente a instrução pública nos mais diversos âmbitos. As alterações relativas ao plano de estudos do ensino primário elementar foram poucas, porém fundamentais. Segundo o art. 9o, o ensino primário elementar seria composto: 1º De instrução moral e religiosa. 2º De leitura e de escrita. 3º De noções gerais de gramática nacional. 4º De elementos de aritmética e desenho linear, compreendendo o estudo do sistema métrico. 5º De prendas domésticas para o sexo feminino. 6º De geografia e história, particularmente da província [Paraná, 1878, p. 4]. O regulamento estabeleceu, ainda, diversas normas relativas à organização do ensino. O calendário escolar sofreu pequena alteração, o ano letivo começava em 8 de janeiro e terminava em 30 de novembro. A instrução religiosa passou a ser dada em um dia da semana determinado pelo professor. No ensino em geral, só seriam admitidos livros e compêndios autorizados pelo conselho literário. O método do ensino continuava a ser o simultâneo por classes; para a divisão das classes e programa de ensino de cada uma, o conselho literário ficava encarregado de formular um regimento interno das escolas. Os alunos só passariam de uma classe para outra depois de aprovados em exame de habilitação, que ocorriam de três em três meses e eram assistidos pelos inspetores paroquiais. Uma vez por ano, em novembro, eram realizados os exames finais das matérias. Os diretores da instrução deveriam receber com um mês de antecedência a relação dos que eram considerados aptos ao exame, que era realizado diante do diretor da instrução ou do inspetor paroquial por um examinador convidado. Os resultados eram divulgados pela imprensa. o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 153 O regulamento introduziu profundas alterações no plano de estudos. Incluiu o ensino de “desenho linear” e “história e geografia”, principalmente da província. Estas duas matérias haviam constado do plano de estudos de 1857, porém como parte dos estudos de segundo grau. O mais importante, contudo, foi o direcionamento dado ao ensino primário. Muito embora a instrução religiosa continuasse fazendo parte do plano de estudos, ela deixou de ser o núcleo central, em torno do qual as demais matérias deveriam girar. Em consonância com essa mudança de enfoque, a exigência de que o professor professasse a religião do Estado deixou de constar do regulamento. E foi mais além, o artigo 157o, facultava a dispensa de instrução religiosa aos alunos não-católicos, desde que a pedido dos pais. Essa nova abordagem dada ao problema religioso refletia questões levantadas em um amplo debate em nível nacional, principalmente os ocorridos visando à reforma do ensino na Corte em 1875. Alguns parlamentares defendiam a liberdade de religião, no ensino, tendo em vista os preceitos constitucionais e o incentivo à entrada de imigrantes no país, muitos dos quais não católicos6. Esse regulamento continuou em vigor até o final do período provincial, porém não sem alterações. A lei n. 603 de 16 de abril de 1880 autorizava o governo reformular a instrução pública, no entanto, o presidente 6 Os deputados Cunha Figueiredo e Tarquinio de Souza exigiam dos professores a profissão de fé católica por temer que outras idéias e sentimentos fossem adquiridos pela mocidade. Na realidade, temiam a disseminação de crenças religiosas diversas da religião do Estado. Contudo, parlamentares como Teixeira da Rocha e Cunha Leitão salientavam o dispositivo constitucional que consagrava a liberdade de crenças e apelavam para os interesses da colonização. “Em um país como nosso, cuja constituição sabiamente tolera e permite a liberdade de cultos, a liberdade de crenças; em um país que chama para aumentar a sua população estrangeiros de toda parte do mundo, sem distinção de religião, [...] pode exigir do mestre escola a condição de ser católico; pode-se-lhe impor a obrigação de missionar o catolicismo aos meninos confiados a seus cuidados, filhos de pais que não crêem na religião?”. Cunha Leitão apresentou uma emenda ao projeto João Alfredo que dispensava os filhos de famílias protestantes que freqüentassem escolas públicas do estudo da religião do Estado e de quaisquer atos religiosos praticados na escola. O projeto João Alfredo, bem como essas emendas, caíram no esquecimento na Côrte (Haidar, 1972, pp. 168-170). 154 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Carlos Augusto de Carvalho, depois de visitar inúmeras escolas, concluiu ser inócua uma nova reforma que procurasse atender às idéias pedagógicas então propagadas. Citando Froebel, que defendia que a idéia de que o professor é o espírito da escola, Carlos de Carvalho argumentou que dado o nível do pessoal docente não havia conveniência em fazer qualquer mudança no ensino elaborando um novo plano de estudos. No entanto, por ato de 2 de maio de 1882, alterou-se o Regulamento de 1876 no que se referia à prática da inspeção do ensino. Art. 1º. O diretor geral da instrução pública será substituído em todos os seus impedimentos pela pessoa que for designada pelo presidente da Província. Art. 2º. O inspetor paroquial da capital será de livre escolha do presidente da Província. Art. 3º. Os inspetores paroquiais devem visitar e inspecionar as escolas pelo menos uma vez por mês. Art. 4º. As aulas primárias funcionarão todos os dias compreendida a quinta feira, das 9 horas da manhã a uma da tarde [Paraná, 1882, p. 87]. A única alteração no plano de estudos tratava da inclusão do ensino de ginástica nas escolas primárias do sexo masculino. Por ato de 30 de junho de 1882, justificou-se a inclusão da matéria no plano de estudo e se estabeleceu as diretrizes metodológicas. O presidente da Província, atendendo à conveniência de melhorar a educação física das crianças do sexo masculino e considerando que a ginástica, desenvolvendo a musculatura e a vitalidade gerais tende a estabelecer o equilíbrio, como ensinam os higienistas, entre todas as funções, entre as aptidões físicas e a capacidade intelectual, resolve: Art. 1º. Os professores das escolas primárias do sexo masculino são obrigados a ensinar ginástica aos alunos três vezes por semana e por tempo que não exceda uma hora. Art. 2º. Enquanto a Província não fizer distribuir os instrumentos e aparelhos necessários, o ensino da ginástica será feito pelo método do professor Schreber, de Leipsig – devendo os professores guiar-se exclusivamente pela ginástica o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 155 doméstica, médica e higiênica desse professor, traduzida por Júlio Magalhães [idem, p. 91]. Em 1883, o presidente Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, imbuído das idéias pedagógicas de Pestalozzi, Herbart e Froebel, teceu severas críticas em relação aos métodos de ensino adotados. Os métodos pelos quais se educa e se instrui nas escolas da província são esses antiquados, proscritos à porfia pelas lições da pedagogia, como processos negativos da real cultura do espírito e do caráter. Atuando só na memória, lidando por incrustar nela mecânica e impertinentemente umas quantas noções abstratas, sintéticas e nulas, geram esses conhecimento – “verdadeiros” cogumelos, na frase de Pestalozzi, que brotam nos dias de inverno e de pronto fenecem aos primeiro sol. [...] O método intuitivo, o que embebe o espírito da criança na realidade da natureza, na expressão de Froebel, o que estuda o objeto e não a palavra, as causas e não as noções abstratas, o mundo e seus fenômenos e não o jornalismo doutrinal e inane dos compêndios [...] [Paraná, 1883, p. 33]. O presidente continuou criticando o ensino livresco, a falta de prática da ginástica escolar e o ensino mecânico do catecismo e da moral. “Daí o definhamento da raça e os vícios do caráter de que sofre a nacionalidade brasileira, eivada na educação das gerações, que a sucedem, de tibieza, atonia, irresolução e automatismo” (idem, p. 33). Classificou o ensino moral e religioso ofertado pelas escolas de ridículos e descreveu um episódio verificado em uma visita que fez a uma escola, quando pediu à professora que fizesse uma das alunas rezar a oração dominical, “o riso acolheu a lembrança: – Elas se envergonham de rezar –, disse-nos a mestra” (idem, p. 34). Argumentou que embora o regulamento vigente preceituasse a educação religiosa e moral, as crianças se envergonhavam da religião e os professores não sabiam ensinar convenientemente, porque o método que aprenderam e que executavam não os havia habilitado a praticá-la. Convencido da necessidade da cultura moral, religiosa e cívica nas escolas da província, como fatores educativos e atendendo à disposição 156 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 do Regulamento de 1876, destinou o dia de sábado para a instrução moral, religiosa e cívica e recomendou aos professores que adotassem o método intuitivo para o seu ensino (Paraná, 1884, p. 37). Ao final do período provincial, a rede escolar pública e subvencionada passou por um processo de retração acentuado. Atendendo a decisão da Assembléia Provincial, pela lei n. 917 de 31 de agosto de 1889, o então presidente da província Balbino Cândido da Cunha alterou a classificação das escolas; extinguiu muitas cadeiras de ensino elementar na capital e nos seus arredores; suspendeu as subvenções aos professores de escolas particulares, que haviam sido criadas no período de 1853 a 1889; as metas prioritárias estabelecidas por ocasião da criação da província foram praticamente abandonadas. Novos eventos estavam soprando em todo o país e a partir do final do ano de 1889, a educação no estado do Paraná tomaria novos rumos. Considerações Durante todo o período provincial, os planos de estudos e as orientações metodológicas que nortearam o ensino público elementar na Província do Paraná giraram em torno das duas finalidades básicas estabelecidas pelo primeiro presidente, Zacarias de Góes e Vasconcellos, e seu nomeado inspetor geral da Instrução Pública, José Ignácio Silveira da Motta. De uma forma ou de outra, todos os presidentes da província e os inspetores gerais da Instrução Pública, no período de 1853 a 1889, perseguiam os mesmos princípios e idéias políticas e educacionais, prevalecentes por ocasião da emancipação política da província e que, de certa maneira, impulsionaram o ensino elementar no Paraná. O Brasil, logo após a sua independência, necessitava criar a idéia de nação, e a Província do Paraná, recém-emancipada, precisava ratificar sua autonomia política e administrativa. Uma educação nacional, que visasse a formação do cidadão pelo cultivo dos valores do Estado e os princípios da moral cristã, era vista pelos políticos e intelectuais brasileiros e paranaenses como o principal mecanismo para o atendimento dessas necessidades prementes. Para as autoridades educacionais o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 157 paranaenses, esse objetivo só seria concretizado pela uniformização do ensino, que deveria ser alcançada pela adoção de um plano de estudos único em todo o território paranaense. Ainda mais, para imprimir ao ensino público o caráter de uniformidade, foram indicados os livros que deveriam ser adotados em cada matéria, bem como as orientações metodológicas que deveriam nortear seu ensino. Muito embora houvesse um embaciamento entre Igreja e Estado, posto que a doutrina da religião católica era a oficialmente adotada, em determinados momentos o fator religioso se sobrepunha ao político, no plano de estudos e vice-versa. Esta questão esteve presente em todo o período provincial. Preocupado com o indiferentismo religioso em muitas localidades, o Ministério do Império, em 1865, solicitava a tomada de medidas para estimular o “espírito” religioso nas escolas. Temia-se que com a entrada de imigrantes no país, muitos deles alemães protestantes, houvesse a disseminação de crenças religiosas diversas da religião do Estado e fossem abalados os alicerces do país, até então latino e católico. A lei provincial n. 290 de 15 de abril de 1871, ao adotar uma posição radical em seu artigo 2º, quando declarou o ensino religioso a base da instrução primária, de certa forma colocava empecilhos para que os filhos dos imigrantes não-católicos freqüentassem a escola pública. Essa questão, tema de amplo debate nacional, foi, aos poucos, se arrefecendo. Em meados da década de 1870, parlamentares argumentavam que em um país cuja Constituição tolerava a liberdade de cultos e que incentivava a entrada de imigrantes, sem distinção de religião, era inconcebível impor, às crianças filhas de não-católicos, a religião oficial do Estado. As reformas verificadas na escola pública elementar da Província do Paraná inseriam-se no contexto educacional do país. O Ato Adicional de 1834 delegou às províncias a responsabilidade de ofertar e manter o ensino primário e o secundário, ficando o Governo Imperial encarregado apenas de oferecer o ensino superior em todo o Império e o secundário no Município da Corte. O país atravessava uma grande fase de transformação social e a Província do Paraná, recém–emancipada, carecia de recursos de toda a ordem para ofertar educação gratuita à todos. Vários fatores impediam que as diversas reformulações dos planos de estudos da escola pública elementar fossem implementados com 158 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 sucesso. A falta de professores com as habilitações necessárias era, freqüentemente, apontada como causa do problema. Porém, outros fatores contribuíram para que o estabelecido nos Regulamentos de Ensino fosse “letramorta”. Faltava uma política de formação de professores, que realimentava o problema; falta de uma atuação efetiva por parte da Inspetoria da Instrução Pública que garantisse o cumprimento da determinação legal mas, principalmente, falta de recursos financeiros para adotar medidas que visassem a melhoria da qualidade do ensino. Referências Bibliográficas BASTOS, Maria Helena & FARIA FILHO, Luciano Mendes (1999). A escola elementar no século XIX: o método monitorial/mútuo. Passo Fundo: Ediuf. BUISSON, Ferdinand Edouard (1911). Nouveau dictionnaire de pedagogie et d’instruction primaire. Paris: Hachette. CHIZZOTTI, Antonio (1975). As origens da instrução pública no Brasil. Dissertação (Mestrado) – PUC/SP, São Paulo. HAIDAR, Maria de Lourdes M. (1972). O ensino secundário no Império do Brasil. São Paulo: Grijalbo. VECHIA, Ariclê (1998). Imigração e educação em Curitiba: 1853-1889. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. Fontes “CATÁLOGO de livros para as escolas de instrução primária”. Dezenove de Dezembro, n. 201, p. 4, 7 mar. 1860. “CIRCULAR aos Conselhos de Instrução Pública da Província”. Dezenove de Dezembro, n. 1.561, p. 1, 5 dez. 1874. “CIRCULAR do Ministério dos Negócios do Império, de 11 de março de 1865”. Dezenove de Dezembro, n. 574, p. 1, 22 mar. 1865. DEAP (s.d.). Correspondência do Governo. vol. 5, ap 243, fl.61. o plano de estudos das escolas públicas elementares na província do paraná 159 DEZENOVE DE DEZEMBRO, n. 17, p. 4, 20 jun. 1857. PARANÁ (1846). Lei n. 34 de 16 de abril. Arts. 1º, 2º e 4º. . (1854a). Correspondência de Governo: Ofícios. vol. 5, AP 006, p. 60. . (1854b). Relatório do presidente da Província do Paraná, Zacarias de Góes e Vasconcellos, à Assembléia Legislativa Provincial, em 15 de julho de 1854. Curitiba: Tip. Paranaense, p. 15. . (1856). Relatório do inspetor geral da Instrução Pública, Joaquim Ignácio Silveira da Motta, ao vice-presidente José Antonio Vaz de Carvalhaes, em 31 de dezembro de 1856. Curitiba: Tip. Paranaense, pp. 21, 24-28, 44. . (1857). “Regulamento de ordem geral para as escolas de Instrução Primária”. In: Leis e Regulamentos da Província do Paraná. Curitiba: Tip. Paranaense, t. IV, pp. 61-62. . (1858a). “Instruções contendo o plano e divisão do ensino nas escolas de primeira ordem”. In: Colleções das Leis, Decretos, Regulamentos e Deliberações do Governo da Província do Paraná. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, t.5. . (1958b). “Instruções sobre o plano e divisão do ensino nas cadeiras de instrução primária de 2ª ordem para o sexo feminino”. In: Coleção das Leis, Decretos, Regulamentos do Governo da Província do Paraná: Rio de Janeiro: Tip. Nacional, t.5, pp. 136-137. . (1858c). Relatório do inspetor geral da Instrução Pública, Joaquim Ignácio Silveira da Motta, ao presidente da Província, Francisco Liberato de Mattos, em 31 de dezembro de 1858. Curitiba: Tip. Paranaense, p. 5. . (1860a). “Instruções para o exame de que trata o artigo 16 do Regulamento de 8 de abril de 1857”. In: Coleção das Leis da Província do Paraná. Curitiba: Tip. Paranaense, pp. 45-46. . (1860b). “Instruções para o exame geral das escolas de 1ª ordem, de que trata o artigo 18 do Regulamento”. In: Dezenove de Dezembro, n. 192, pp. 2-3, 4 fev. . (1869). Relatório do inspetor geral Ernesto Francisco de Lima Santos ao presidente da Província Antonio Augusto da Fonseca, em 6 de março de 1869. Curitiba: Tip. Paranaense, p. 11. 160 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 . (1870a). Relatório do inspetor geral da Instrução Pública ao presidente Venâncio José de Oliveira Lisboa, em 29 de dezembro de 1870. Curitiba: Tip. Cândido Lopes, p. 4. . (1870b). Relatório do presidente da Província, Antonio Luiz Affonso de Carvalho, à Assembléia Legislativa, em 15 de fevereiro de 1870. Curitiba: Tip. Cândido Lopes, p. 14. . (1871a). “Lei nº 290, Artigos 33 e 36, 15 de abril de 1871”. In: Lei e Regulamento da Instrução da Província do Paraná. Paranaguá: Tip. Comercial, pp. 5-10. . (1871b). “Regulamento da Instrução Pública de 13 de maio de 1871”. In: Lei e Regulamento da Instrução Pública da Província do Paraná, Paranaguá: Tip. Comercial, p. 7. . (1874). “Regulamento da Instrução Pública de 26 de agosto de 1874”. In: Leis e Regulamentos da Província do Paraná. Curitiba: Tip. Paranaense, t. 21, p. 198. . (1878) Regulamento Orgânico da Instrução Pública da Província do Paraná. Curitiba: Tip. Viúva Lopes, p. 4. . (1882). Relatório do presidente da Província, Carlos Augusto de Carvalho, à Assembléia Legislativa do Paraná, em 1º de outubro de 1882. Curitiba: Tip. Perseverança, p. 87. . (1883). Relatório do presidente da Província, Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, à Assembléia Legislativa do Paraná, em 1º de outubro de 1883. Curitiba: Tip. Perseverança, p. 33. . (1884). Relatório do presidente da Província, Luiz Alves de Oliveira Bello, ao passar a administração, em 22 de agosto de 1884. Curitiba: Tip. Perseverança, p. 37. RIO DE JANEIRO (1854). “Decreto n. 1.331-A de 17 fevereiro”. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1854. t.XV, parte 1. Nac. A Reforma Universitária e a criação das Faculdades de Educação Macioniro Celeste Filho* Este trabalho apresentará a discussão sobre os destinos das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras na década de 1960 como ponto crucial da Reforma Universitária brasileira. Além dos debates no Conselho Federal de Educação, utilizou-se como fonte privilegiada os relatos registrados pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – instituição que tratou dos interesses de algumas áreas científicas durante o processo de reformulação universitária. A criação das Faculdades de Educação será tema final deste texto, tratada como decorrência dos embates anteriormente mencionados. REFORMA UNIVERSITÁRIA; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO; FACULDADE DE EDUCAÇÃO. This study presents the discussion about the future of the Faculties of Philosophy, Sciences and Literature at the 60’s as decisive point to the Brazilian Universitarian Reform. Besides the discussions at Federal Board of Education, the reports recorded by the Brazilian Society to Progress of Science – institution responsible for the concerns of some scientific sectors along the universitarian reformation process – have been privileged. The creation of the Faculties of Education is the theme of this study, as a result of those discussions. UNIVERSITARIAN REFORM; HISTORY OF EDUCATION; UNIVERSITY OF SÃO PAULO; FACULTY OF EDUCATION. * Mestre em educação pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; doutorando em educação pelo mesmo Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC-SP. 162 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Ao tratar da universidade e de sua constituição, Anísio Teixeira comparou a situação brasileira com a norte-americana. Citando Hutchins, este intelectual comentou ironicamente que a universidade nos Estados Unidos talvez fosse uma série de escolas e departamentos separados, apenas unidos por um comum sistema de aquecimento central. Na década de 1960, com a importância adquirida pelo automóvel, a universidade norte-americana poderia ser vista sarcasticamente como um grupo de empresários-professores unidos por uma reivindicação comum em torno de espaço para estacionar. Ao descrever a universidade brasileira e sua integração, Anísio Teixeira não foi menos contundente. No Brasil, segundo o autor, a universidade era composta por uma série de congregações isoladas e independentes, unidas por uma reivindicação comum em torno do orçamento, feito e votado fora da universidade1. Este exemplo é elucidativo dos questionamentos pelos quais passava a universidade brasileira em meados da década de 1960. O que lhe conferia unidade? Como integrá-la com eficácia? Quais os equívocos que o modelo aqui adotado apresentava? Enfim, como reformá-la? Desde a década de 1930, as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) tiveram a incumbência de se tornarem pólo aglutinador das universidades brasileiras. Esta faculdade deveria conferir unidade à universidade. Esta concepção de universidade integrada pela FFCL foi descartada na década de 1960 pelos principais intelectuais que formularam a Reforma Universitária. O que fazer com as FFCL era, portanto, a questão básica de como se reformar a universidade. Embora o desfecho deste debate ocorra no final da década de 1960, a questão foi suscitada desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). 1 Anísio Teixeira, “A universidade de ontem e de hoje”. Ciência e cultura, vol. 17, n. 2, p. 348, jun. 1965. Trata-se do texto da conferência proferida pelo autor na XVI Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ocorrida em julho de 1964 em Ribeirão Preto-SP. Este texto também foi publicado na Revista brasileira de estudos pedagógicos, Rio de Janeiro: INEP, n. 95, pp. 2747, jul.-set. 1964. Neste caso, a citação encontra-se na página 44. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 163 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Na LDB de 1961 – como ficou conhecida a lei n. 4.024 de 20 de dezembro de 1961 – em seu artigo 79, a definição de universidade propunha originalmente que ela fosse constituída, no mínimo, de cinco estabelecimentos de ensino superior, sendo que um deles deveria ser a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Esta obrigatoriedade da formação universitária em torno da FFCL foi vetada. A universidade foi definida como a reunião, sob administração comum, de cinco ou mais estabelecimentos de ensino superior. Foram apresentadas duas razões para esta mudança de concepção universitária: A rede nacional do ensino superior conta, já, com mais de 70 faculdades de filosofia, que vêm exercendo, salvo raras exceções, exclusivamente, a função de formar professores de grau médio. Nessas circunstâncias, a exigência de que toda universidade mantenha uma dessas faculdades torna-se desnecessária. Acresce que as funções de órgão integrador que se deseja atribuir a tais faculdades também podem ser exercidas por outros órgãos tais como Institutos Centrais que já vêm sendo estruturados em algumas universidades federais2. No início da década de 1960, a recente criação da Universidade de Brasília era exemplo de alternativa de organização universitária que prescindiu da FFCL3. Com a redação final do artigo 79, a LDB abre a discussão sobre o destino a ser dado às Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras; isto é, inicia o debate sobre a Reforma Universitária. É correto atribuir a Valnir Chagas e a Newton Sucupira – dois dos mais atuantes membros do Conselho Federal de Educação (CFE) – destaque no encaminhamento das propostas sobre a Reforma Universitária. 2 3 “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 12, p. 86, mar. 1963. Beatrice Laura Carnielli do Nascimento. A Reforma Universitária de 1968: origem, processo e resultados de uma política para o ensino superior. Tese (Doutorado) – Rio de Janeiro: UFRJ, 1991, p. 47. 164 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Ana Maria Fernandes chama a atenção para um terceiro protagonista de grande importância neste debate: Maurício Rocha e Silva – presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de 1963 a 1969 e membro do CFE desde sua criação até 1965. Segundo a autora, desde 1962, Maurício Rocha e Silva articulou propostas em parceria com Valnir Chagas e Newton Sucupira4. A primeira, assinada pelos três, foi o parecer n. 43/62: “A investigação científica dos currículos normais dos institutos de ensino”. Neste parecer, Maurício Rocha e Silva analisa a redação do artigo 66 da LDB, onde se destaca que o ensino superior tem por objetivo a pesquisa e o desenvolvimento da ciência, entre outros. Segundo o autor: Trata-se de um artigo revolucionário, que deve entrar como uma cunha em nosso anacrônico sistema universitário, e que, por si só, justificaria uma imediata e radical reforma da universidade brasileira, tornando, por assim dizer, ilegal o sistema até agora posto em prática. Pareceu evidente a intenção do legislador de inverter a ordem de valores existente em nossas universidades. Se tomarmos a seqüência de valores estabelecida pelo artigo 66, em que primeiro se menciona a pesquisa, o desenvolvimento das ciências, das letras e das artes como a base do ensino, o que pretendeu o legislador foi sugerir uma reforma profunda em nosso sistema universitário e estabelecer a pesquisa como a base em que se deve assentar o ensino. É a reforma por que todos nós ansiamos, a única que poderá vir a tornar a universidade o verdadeiro esteio do desenvolvimento do país. [...] Mas, agora, demos uma olhada ao panorama universitário brasileiro. Onde e como teriam os alunos oportunidade de aprender a pesquisa, o método científico5? 4 5 Ana Maria Fernandes. A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília: UnB, 1990, pp. 130-131. Agradeço a Maria das Graças Marcelo Ribeiro por ter recomendado a leitura deste livro. Valnir Chagas, Maurício Rocha e Silva e Newton Sucupira. “A investigação científica dos currículos normais dos institutos de ensino”. Documenta. Rio de Janeiro: MEC, n. 3, pp. 168-169, maio 1962. Os três autores escreveram partes diferentes e separadas do parecer n. 43/62, denominadas 43A, 43B e 43C. A citação é de Maurício Rocha e Silva, da parte 43B. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 165 Como visto anteriormente, o veto à obrigatoriedade das FFCL como órgão integrador das universidades baseava-se na suposta constatação de que elas exerciam, quase exclusivamente, a função de formadoras de professores de grau médio. Se a prioridade deveria ser a pesquisa e o desenvolvimento das ciências, onde e como isto poderia ser feito? Esta questão de Maurício Rocha e Silva – presidente da SBPC durante o período da Reforma Universitária – balizará as propostas de destino das FFCL. O simpósio sobre a estrutura das Faculdades de Filosofia Em março de 1963, o terceiro número da revista Alfa, órgão do Departamento de Letras da FFCL de Marília (SP), traz o texto intitulado “Simpósio sobre a estrutura das Faculdades de Filosofia”: Organizado pela Diretoria do Ensino Superior do Ministério da Educação e Cultura, em boa hora realizou-se em Brasília, entre 13 e 15 de fevereiro do corrente ano, este Simpósio sobre a Estrutura das Faculdades de Filosofia. O conclave, que reuniu os diretores de diversas Faculdades do Brasil, além dos convidados especiais, destinava-se a um amplo debate em torno do papel das Faculdades de Filosofia no contexto universitário brasileiro atual, daqui o haver sido adotada a seguinte seqüência nos tópicos a serem discutidos: I – Origem e evolução da faculdade de filosofia no Brasil. Sua estrutura atual. Legislação vigente. Relator: Prof. Valnir Chagas. II – A faculdade de filosofia no contexto da reforma universitária. Crítica da estrutura e dos métodos de funcionamento das faculdades de filosofia. Restabelecimento ou redefinição de seu plano original. Relator: Prof. Valnir Chagas. III – O ensino das ciências na universidade e nas escolas superiores isoladas; grupo A (ciências matemáticas, físicas e naturais) – relator: Prof. Paulo Sawaya; grupo B (ciências humanas) – relator: Prof. Darcy Ribeiro. IV – O ensino das letras na universidade e escolas superiores isoladas. Relator: Prof. Heron de Alencar. V – Formação de professores do ensino médio e de especialistas em educação. Relator: Prof. Newton Sucupira. Aliás, sob o mesmo aspecto, cou- 166 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 be ao Prof. Florestan Fernandes apresentar um sugestivo trabalho intitulado “A formação de profissionais e especialistas nas faculdades de filosofia”. Até a revista da Organização dos Estados Americanos (OEA) – La Educación – informou sobre este simpósio6. Surpreendentemente, a Documenta – órgão oficial do Conselho Federal de Educação – não menciona o simpósio em parte alguma; não publicou uma única linha sobre ele. Trata-se de um daqueles “silêncios ensurdecedores” que afetaram periodicamente a revista mensal do CFE. Se não fosse tema consensual, não deveria merecer espaço na publicação oficial. Isto é, a Documenta não publicava polêmicas; como órgão oficial do CFE, apresentava as resoluções consensuais deste conselho. O silêncio absoluto da Documenta acerca do “Simpósio sobre a estrutura das Faculdades de Filosofia” demonstra quanto este encontro deve ter sido conflituoso. Por haver sido organizado pela Diretoria do Ensino Superior do MEC, algo sobre este simpósio poderia ter sido publicado por este ministério. A revista MEC, publicação bimestral do Setor de Divulgação do MEC, não registrou nada a respeito do simpósio sobre as FFCL. O periódico Arquivos MEC, publicação trimestral do Serviço de Documentação do MEC, inicia sua edição apenas no final de 1965. Entretanto, pode-se inferir o que foi tratado no simpósio sobre as FFCL por outras publicações. Pouco depois do encontro em Brasília, Newton Sucupira escreveu o editorial da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Neste editorial, trata da possibilidade da criação de institutos de pesquisa nas universidades. O autor constata que isto seria incompatível com o sistema de cátedras de então e com a configuração das FFCL: Ora, para que tais institutos pudessem ser introduzidos nas universidades já existentes tornar-se-iam necessárias certas modificações de sua estrutura e, sobretudo, da mentalidade de nossos catedráticos. Doutra forma teríamos a existência de sistemas concorrentes, sobretudo no que diz respeito às facul- 6 “Estructura de las Facultades de Filosofia”. La educación. Órgão do Departamento de Asuntos Educativos da Unión Panamericana. Washington D.C., Organización de los Estados Americanos, n. 33, ene.-mar. 1964, p. 145. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 167 dades de filosofia. Com efeito, a missão dessas faculdades não é somente a de formar professores de ensino médio, mas também a de promover a pesquisa científica básica e exercer a função integradora da universidade. Infelizmente a tradição de nosso ensino superior à base de faculdades profissionais não permitiu que ela pudesse realizar sua missão desde quando foram fundadas. Por isso mesmo tornou-se ela uma faculdade como as demais, profissionalizou-se como as outras. Em princípio uma reforma universitária poderia ser orientada no sentido de restituir às faculdades de filosofia seu verdadeiro papel dentro da universidade, reorganizando-se em departamentos que centralizariam toda pesquisa científica básica. Contudo, nesta altura cremos que seria muito difícil quebrar uma tradição já bem cristalizada7. O autor se refere às FFCL com a nostalgia de quem contempla o seu declínio. Seriam “necessárias certas modificações de sua estrutura”. A Reforma Universitária poderia salvá-las, mas Newton Sucupira não acredita mais nisto. Da forma em que se configuraram, as FFCL não poderiam ser apenas reformadas: “Contudo, nesta altura cremos que seria muito difícil quebrar uma tradição já bem cristalizada”. É provável, frente às discussões ocorridas no simpósio em Brasília, que Newton Sucupira vislumbrasse o fim das FFCL na reformulação universitária iminente. O texto acima menciona a “mentalidade de nossos catedráticos”; a discussão sobre o sistema de cátedras e a busca de sua transformação, embora de suma importância para a compreensão da Reforma Universitária, não será objeto deste trabalho. Paulo Sawaya, um dos fundadores da SBPC, professor do Departamento de Fisiologia Geral e Animal da FFCL da Universidade de São Paulo e um dos relatores durante o simpósio sobre as FFCL do tema referente ao ensino da ciência na universidade, foi mais claro sobre suas conclusões. Em julho de 1963, proferiu em Campinas (SP) conferência na XV Reunião Anual da SBPC. O autor cita explicitamente, mais de 7 Newton Sucupira. “Institutos universitários e a pesquisa científica”. Revista brasileira de estudos pedagógicos, Rio de Janeiro: INEP, n. 91, p. 4, jul.-set. 1963. 168 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 uma vez, que apresentava reflexões provocadas pelos debates do Simpósio sobre as Faculdades de Filosofia do qual participara recentemente. O autor constata algo ressaltado anteriormente neste trabalho: A Lei de Diretrizes e Bases no seu artigo 79 retirou a obrigatoriedade de as universidades se constituírem como uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Com isto, estas Faculdades perderam, nos casos de universidades que as não possuírem, a faculdade integradora que delas tanto se exige por ministrarem o ensino básico8. Paulo Sawaya apresenta o que gerou maior tensão no simpósio sobre as FFCL; o que se propôs como solução para a situação destas faculdades: Voltando ainda ao Simpósio de Brasília devo lembrar que, a meu ver, e pode ser que me engane, ali se procurou antes mostrar as deficiências das Faculdades de Filosofia que os seus êxitos. Houve acesa discussão sobre o destino das Faculdades de Filosofia, propondo alguns a sua substituição pelos Institutos Centrais, outros a bipartição em Faculdades de Ciências e Faculdades de Filosofia e Letras, outros a tripartição em Faculdades de Filosofia, Faculdades de Ciências e Faculdades de Educação9. As diversas soluções encontradas pelos intelectuais que participaram deste simpósio sobre os destinos das FFCL provavelmente foram a principal referência da Reforma Universitária brasileira. De qualquer maneira que se interprete os escritos sobre o simpósio, fica evidente que as FFCL não permaneceriam sem reformulação de sua estrutura e de suas incumbências. Neste simpósio, realizado no início de 1963, encontra-se a configuração inicial da Reforma Universitária que possibilitará a criação das Faculdades de Educação. A Ditadura, implantada em 1964, in- 8 9 Paulo Sawaya. “As Faculdades de Filosofia em face da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”. Ciência e Cultura, vol. 15, n. 4, p. 344, dez. 1963. Idem, pp. 342-343. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 169 terrompeu momentaneamente a Reforma Universitária; ela será retomada dois anos depois. No âmbito deste trabalho não será possível tratar do destino de todas as FFCL. Optou-se por acompanhar a discussão sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP). A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP Franklin Leopoldo e Silva destacou a necessidade de maiores pesquisas sobre o esfacelamento da FFCL-USP no processo da Reforma Universitária: A USP comprometeu-se prematuramente e atabalhoadamente com a onda das reformas. A questão é saber se as coisas poderiam ter ocorrido de outra forma. Em meados dos anos 60 a USP, embora jovem, já possuía uma densidade razoável, e um acúmulo de experiência enriquecida sobremaneira pelas missões estrangeiras que vieram instalar os cursos. Em teoria, seria o momento de voltar-se reflexivamente sobre si mesma, reapossar-se de sua história, avaliar o passado e entender que o que já tinha consolidado poderia servir de apoio para enfrentar as escolhas do futuro. Na prática, o golpe de 64 colocou a Universidade diante de uma situação, inesperada ou não, em que ela se viu apanhada pelo movimento histórico, no torvelinho da barbárie e da violência, na urgência das escolhas em que, no limite, até mesmo a alienação de sua autonomia podia aparecer como estratégia necessária à sobrevivência. Em todo caso, e isto é algo que ainda está por ser analisado com profundidade requerida pelo assunto, no decorrer da discussão das reformas, algumas vezes as reivindicações de professores e estudantes estiveram inexplicavelmente próximas das propostas governamentais, ou de grupos comprometidos com o status quo. A extinção da cátedra é um exemplo, mas há outros bem mais complicados, como a divisão da FFCL. Talvez o caráter conservador da modernização não aparecesse ainda com suficiente nitidez para todos os agentes envolvidos. Talvez o lugar da reflexão – a FFCL – já tivesse a esta altura perdido a radicalidade crítica, ou o poder de exercê-la de modo a alcançar a totalidade da instituição. O certo é que a Reforma Universitária da 170 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 USP provocou muito mais a adaptação da instituição a um processo de modernização que ela ainda nem tivera tempo de pensar em todo o seu alcance, do que uma transformação da Universidade nascida de um movimento interno e orgânico de reconstituição de si mesma10. Para este autor, existe algo de nebuloso e ambíguo na confluência de tantos interesses pelo esfacelamento da FFCL-USP; no mínimo, uma história a ser esclarecida. A análise de Franklin Leopoldo e Silva demonstra quanto a Reforma Universitária da USP ainda carece de pesquisa. No entanto, existem alguns estudos importantes. Já em 1971, na recém inaugurada Faculdade de Educação da USP, Heladio César Gonçalves Antunha defende sua livre-docência com a tese intitulada Universidade de São Paulo: fundação e reforma. Heladio Antunha, ao tratar da Reforma Universitária, analisou o desmembramento da FFCL-USP. O autor chama a atenção para o fato de que tanto se exigia que a FFCL fosse a instituição aglutinadora da USP, que nem se atentou que esta faculdade não conseguira integrar-se nem a si própria, decompondo-se, na prática, em inúmeras seções, subseções e cursos afastados espacial e filosoficamente11. Heladio Antunha exemplifica numericamente a massificação sofrida pela FFCL, onde a expansão no número de alunos levara esta faculdade a se transformar em algo desproporcional para os parâmetros da USP. Por exemplo, em 1969, ano da Reforma, o número de vagas de primeiro ano da FFCL era praticamente a metade do total de vagas neste ano para toda a USP. Para se ter uma idéia da expansão da FFCL durante a década, o autor cita que em 1969 esta faculdade apresentava um número de vagas de primeiro ano superior ao de toda a USP no recente ano de 196312. O autor caracteriza a divisão da FFCL como resultado de sua expansão; 10 Franklin Leopoldo e Silva. “A experiência universitária entre dois liberalismos”. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP. São Paulo: FFLCH-USP, vol. 10, n. 2, pp. 20-21, out. 1998. 11 Heladio César Gonçalves Antunha. Universidade de São Paulo: fundação e reforma. São Paulo: CRPE do Sudeste, 1974, p. 152. 12 Idem, p. 160. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 171 fato a dificultar sua administração. A insuficiente produtividade científica também seria motivo de descontentamento: Resumindo nossas observações das últimas páginas, parece-nos possível afirmar: 1º – a Universidade de São Paulo atingiu, no final da década de 60, um ponto crítico em seu processo de desenvolvimento quantitativo. Impunha-se, pois, em conseqüência de sua rápida expansão numérica, a realização de uma reforma básica em sua estrutura técnica, administrativa e curricular, a fim de evitar-se a continuação do crescimento desordenado, não planejado e, sobretudo, as ameaças de gigantismo de certos setores, e de burocratização de seus serviços essenciais de ensino e de pesquisa. 2º – não obstante a sua grande produtividade técnica e científica, manifestada através dos inúmeros concursos, nela realizados, para a obtenção de graus acadêmicos, pelas publicações, investigações e pelos trabalhos técnicos que promoveu e realizou, a verdade é que o seu rendimento em termos dos tipos de cursos oferecidos e do número de conclusões de cursos e de diplomados manteve-se aquém da expectativa. O autor cita também o enfrentamento político dos estudantes como motivo para a Reforma Universitária. Heladio Antunha descreve o movimento estudantil numa perspectiva que realça sua manipulação por radicais que colocariam em perigo a própria universidade. O clímax ocorrera quando da luta pela entrega do poder universitário às comissões paritárias: Como nunca, a universidade brasileira esteve, então, ameaçada em um dos seus princípios fundamentais: na idéia de que a autoridade e a hierarquia universitárias devem basear-se na evidência do mérito objetivamente comprovado e na maior experiência e maturidade. A instituição das comissões paritárias – e algumas chegaram a funcionar “de fato”, mesmo na USP, como um poder paralelo ao dos órgãos tradicionais como o Conselho Universitário, as Congregações e os Conselhos de Departamento – representava na prática a transferência da autoridade e do governo universitário para os estudantes mais radicais e aos professores a eles associados, criando-se, assim, os elementos indispensáveis para se transformar a instituição num instrumento de luta política, num bastião ideológico e numa base logística para as incursões revolu- 172 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 cionárias contra o regime vigente. O período das paritárias foi, na realidade, em muitos casos, um momento de delírio coletivo, em que estudantes e alguns professores chegaram a “posar para a história” e pronunciar frases de efeito, que a crônica da USP merece registrar: “São as minorias que fazem a história”. “Todo o poder para as paritárias”, e outras de teor semelhante13. Por ter sido escrito em 1971, o texto de Heladio Antunha serve como fonte privilegiada de observação do horror que o movimento estudantil provocava em boa parte do corpo docente da USP; inclusive justificando neste setor a necessidade de desmembramento da FFCL, onde se concentrava a maioria do corpo discente. As manifestações estudantis de fins da década de 1960 eram recentes quando Heladio Antunha escreveu seu texto. O autor demonstra aversão profunda quanto à quebra da hierarquia universitária baseada até então no mérito acadêmico comprovado pelos mecanismos institucionais da universidade. Para este autor, conceder o poder às assembléias paritárias, onde alunos opinariam em posição de igualdade com os professores, seria subverter a própria essência da universidade – instituição calcada no saber objetivamente auferido por títulos comprovadores do conhecimento e da maturidade do corpo docente. É possível que outros professores também percebessem sua autoridade intelectual e institucional ameaçada pelo movimento estudantil. No final da década de 1960, é provável que o horror provocado pelo movimento estudantil em Heladio Antunha também fosse compartilhado por outros professores da USP. Heladio Antunha – como diversos outros autores que posteriormente trataram da Reforma Universitária da USP – analisou o Relatório Ferri, como ficou conhecido o Memorial de Reestruturação da USP. Este relatório, elaborado entre 1966 e 1968, propunha que todas as faculdades da USP fossem transformadas em institutos, aos moldes da Universidade de Brasília. Heladio Antunha destaca que o Relatório Ferri tem importância somente como curiosidade histórica, pois não elaborou formalmente nenhum projeto de reforma dos Estatutos da USP. O Rela- 13 Idem, pp. 183-184. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 173 tório Ferri apenas apresentou sugestões a serem encaminhadas ao Conselho Universitário, que não as levou em grande consideração; demonstra isto o fato deste conselho ter demorado cerca de um ano para elaborar a proposta de reformulação dos Estatutos da USP14. Mário Guimarães Ferri, reitor em exercício da USP quando da elaboração do relatório que ganhou seu nome, era diretor licenciado da FFCL. Se o grupo, que sob sua administração, elaborou proposta que pretendia que todas as faculdades da USP fossem convertidas em institutos, é provável que o Conselho Universitário tenha achado apropriado criar institutos universitários apenas na faculdade onde Ferri era diretor, isto é, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Ao analisar os resultados da Reforma Universitária, Heladio Antunha conclui que a função integradora que era atribuída à FFCL agora passa a ser desempenhada por dois órgãos administrativos criados pelos novos estatutos da USP: o Conselho Técnico-Administrativo (CTA) e o Conselho de Ensino, Pesquisa e Serviços à Comunidade (CEPE). O “aquecimento central” mencionado metaforicamente por Anísio Teixeira no início deste texto passaria a ser, na USP, o CTA e o CEPE, além do antigo Conselho Universitário. Estes órgãos deliberativos e decisórios de cunho administrativo – CTA, CEPE e Conselho Universitário – substituíram a incumbência integradora da FFCL, demonstrando uma concepção que privilegiava a organização burocrática da universidade. Heladio Antunha, professor da FFCL desde a década de 1940, com seu esfacelamento foi para a recém-criada Faculdade de Educação. O autor, em 1971, tem esperanças de que esta nova faculdade possa vir a exercer uma “integração terminal” do corpo discente, anteriormente atribuição das ações de ensino básico da FFCL: As funções integradoras anteriormente atribuídas à Faculdade de Filosofia foram repartidas entre os organismos centrais já mencionados (CTA e CEPE) e as novas instituições criadas, de tal maneira que os Institutos, ao promoverem os cursos básicos, passam a desempenhar uma função integradora inicial 14 Idem, p. 216. 174 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 dos estudantes, isto é, antes de sua vinculação às diversas habilitações profissionais. À Faculdade de Educação, por meio de sua escola de professores, isto é, por seu curso de licenciatura que, nos últimos anos de graduação, chega a reunir milhares de alunos das diversas unidades, foi reservada uma especial tarefa de integração terminal: a de congregar em cursos comuns estudantes em fase final de estudos, que se destinam ao magistério secundário15. Nenhuma análise sobre a Reforma Universitária da USP deixa de se referir ao trabalho de Heladio Antunha, mesmo após três décadas de elaboração desta tese de livre-docência. Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon, outra especialista na história da USP, destaca que a idéia de desmembramento da FFCL-USP é bem anterior à crise estudantil de 1968. A proposta de esfacelamento da FFCL não adveio como fruto dos Estatutos da USP de 1969, mas os precede de vários anos. Esta autora trabalha novamente com os números apresentados por Heladio Antunha e conclui que o gigantismo da FFCL assustara as demais faculdades da USP. No final da década de 1960, a FFCL chega a ter quase 70% das matrículas em relação às demais unidades; em 1969, enquanto as outras dezessete unidades da USP tinham um total de 11.170 matrículas, somente a FFCL tinha 7.76416. Este gigantismo lhe foi fatal: Desintegrada internamente pelas sucessivas acomodações de seu modelo originário; vítima da indiscriminada abertura de cursos e vagas para a Licenciatura, sem uma adequada reestruturação nem da Universidade, nem dela mesma (totalmente inadequada, que era, à função profissionalizante que acatara como expediente de sobrevivência); surpreendida, ademais, por um gigantismo incompatível com os padrões em que se estruturara; e, finalmente, incapaz de competir (no interior da própria Universidade), em prestígio e 15 Idem, p. 220. O autor escreveu também artigo sobre as origens históricas da Faculdade de Educação da USP: “As origens da Faculdade de Educação da USP”. Revista da Faculdade de Educação. São Paulo: FE-USP, vol. 1, n. 1, pp. 25-41, dez. 1975. 16 Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon. Subsídios para o estudo da Universidade de São Paulo. Tese (Doutorado) – FE-USP, São Paulo, 1986, vol. 2, p. 678. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 175 poder por sua auto-preservação e pela auto-condução de seus destinos – a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras acabará, ao final de trinta anos, por desmembrar-se e extinguir-se melancolicamente tentando reformar-se17. A autora traz algo novo para a análise da Reforma Universitária da USP: seu sentido de facilitadora de ascensão na carreira acadêmica. Utilizando como fonte o depoimento do professor João Eduardo Rodrigues Villalobos, a autora explicita estes interesses de carreira docente: Declarou ainda o Professor Villalobos que o desmembramento da Faculdade de Filosofia ampliou muito a possibilidade de fazer-se carreira na Universidade – desdobraram-se cargos de alta administração, congregações etc, e abriu-se a possibilidade de mais rápido trânsito na carreira, pela democratização da cátedra. Segundo o mesmo professor, essas motivações foram decisivas para a implantação quase pacífica da reforma, auxiliada que foi pelas circunstâncias políticas de então18. A tese de Beatriz Fétizon reúne a principal documentação oficial sobre a Reforma Universitária da USP. Heladio Antunha e Beatriz Fétizon dedicaram-se a problematizar a história de toda a USP; outros autores estudaram especificamente a FFCL-USP. Por tratar diretamente da história da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, existem dois estudos recentes que merecem destaque. O trabalho de Kalliópi Alexandra Aparecida Katsios19 e a recém-concluída tese de Bruno Bontempi Júnior20. 17 Idem, p. 679. 18 Idem, p. 681. A autora escreveu também artigo sobre as origens históricas das Faculdades de Educação: “Faculdades de Educação: antecedentes e origens”. Estudos Avançados, São Paulo: USP, vol. 8, n. 22, pp. 365-373, set-dez. 1994. 19 Kalliópi Alexandra Aparecida Katsios. Um estudo sobre o curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (19401949). Dissertação (Mestrado) – PUC-SP, São Paulo, 1999. 20 Bruno Bontempi Júnior. A cadeira de História e Filosofia da USP entre os anos 40 e 60: um estudo das relações entre a vida acadêmica e a grande imprensa. Tese (Doutorado) – PUC-SP, São Paulo, 2001. 176 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Kalliópi Katsios pesquisou o curso de pedagogia da FFCL entre as décadas de 1940 e 1960. A autora descreve como o Instituto de Educação da USP foi incorporado pela FFCL e como o curso de pedagogia da FFCL se desenvolveu durante a existência desta faculdade, quer seja como Quarta Seção da FFCL, quer seja como Departamento de Educação na década de 1960. Infelizmente, para os propósitos deste atual trabalho, a autora não se aprofundou no estudo da criação da Faculdade de Educação da USP. Este episódio é tratado como conseqüência natural da especialização acadêmica proporcionada pela Reforma Universitária. A tese de Bruno Bontempi Júnior é o mais importante trabalho produzido até agora sobre a história da FFCL-USP. A história desta faculdade não é seu objeto específico; porém, de sua pesquisa sobre uma de suas cátedras, constrói-se um rico panorama do que era a FFCL-USP. A interpretação que o autor faz das transformações pelas quais passou a cadeira de história e filosofia da educação, as disputas internas da FFCL e da própria USP recria o ambiente intelectual e as lutas políticas do período abordado. Novamente, para infelicidade deste atual trabalho, o autor não analisou a segunda metade da década de 1960. Algo análogo ao esforço empreendido por Bruno Bontempi Júnior a respeito das primeiras décadas de existência da FFCL-USP e que se dedicasse aos seus anos finais ainda está por ser feito. Bruno Bontempi Júnior destaca que as disputas acadêmicas articulam-se com as disputas políticas. Para compreender estas ligações, o autor pesquisou a grande imprensa, privilegiadamente o jornal O Estado de S. Paulo. Outra possibilidade de compreender amplamente os conflitos inerentes às disputas acadêmicas pode ser analisá-las de maneira articulada com o cenário que extrapola a FFCL-USP e mesmo a própria USP. Por exemplo, compreender como as disputas envolvendo a dissolução da FFCL-USP estavam inseridas no contexto acadêmico nacional. A SBPC e a Reforma Universitária O esfacelamento das FFCL possibilitaria que as ciências exatas e biológicas ganhassem autonomia em institutos universitários próprios. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 177 A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência teve participação ativa no desenrolar da Reforma Universitária nesta direção. Como abordado no início deste trabalho, Maurício Rocha e Silva – presidente da SBPC – articulou propostas de reformulação universitária em parceria com Valnir Chagas e Newton Sucupira desde o início da década de 1960. Acompanhar como a SBPC discutiu a Reforma Universitária pode esclarecer o papel centrífugo que os cientistas desempenharam na dissolução das FFCL. Em 9 de julho de 1967, Maurício Rocha e Silva fez o discurso inaugural da XIX Reunião Anual da SBPC, realizada no Rio de Janeiro. Este discurso foi posteriormente publicado como editorial da revista Ciência e cultura, órgão oficial da SBPC. O tema da reunião e de seu discurso de abertura foi a Reforma Universitária. Nesta ocasião, Maurício Rocha e Silva analisou os decretos n. 53, de 18 de novembro de 1966 e n. 252, de 28 de fevereiro daquele ano. Segundo o presidente da SBPC, esses dois decretos lançaram as bases da verdadeira Reforma Universitária no país. Segundo Maurício Rocha e Silva, o decreto-lei n. 53 tornara obsoleta no regime federal de ensino superior a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O autor demonstra júbilo ao comentar que o presidente da XIX Reunião Anual da SBPC e reitor da UFRJ – Raymundo Moniz de Aragão – provavelmente falaria naquele encontro sobre sua contribuição pessoal na elaboração destes decretos: Esperamos com ansiedade o discurso do Presidente desta Reunião que nos dirá da sua contribuição pessoal para a elaboração dos dois Decretos mencionados21. A questão é: embora as ciências exatas e biológicas pudessem se separar das FFCL, organizando-se em institutos universitários autônomos, os futuros químicos, matemáticos, físicos, biólogos não poderiam mais exercer a profissão de professores? A solução encontrada foi enfatizada pelo presidente da SBPC: 21 Maurício Rocha e Silva. “A Reforma Universitária”. Ciência e cultura, São Paulo: SBPC, vol. 19, n. 3, p. 541, set. 1967. 178 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 A formação do professor secundário será feita através de um sistema análogo ao da formação de qualquer outro profissional, que terá que completar os seus créditos nas unidades fundamentais para ter acesso às unidades do Ciclo profissional. Vê-se aqui a grande superioridade deste sistema sobre o superado sistema de Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Até agora, todo esse complicado sistema de Faculdade de Filosofia, tinha como função precípua formar professores secundários, o que, convenhamos, era o método mais caro e absurdo de formar professor secundário num país que precisa dele a mancheias. [...] Um professor de química para o curso secundário terá a sua formação básica nas unidades fundamentais e fará créditos de acordo com o que for estabelecido pela sua unidade profissional, que será a Faculdade de Educação, mas a sua formação será totalmente distinta da do químico que vise ao doutoramento em Química ou que se encaminha para uma das profissões cuja base é a química. O mesmo se poderia dizer para o professor de Física, de Biologia, de Matemática, de Filosofia, de Letras22. Maurício Rocha e Silva reforçará esta solução no número seguinte da revista Ciência e Cultura: A Faculdade de Filosofia, na sua função de formar professores secundários, sobreviverá numa Escola ou Faculdade de Educação que terá a mesma importância ou status das outras unidades profissionais23. Em 1963, Paulo Sawaya, ao descrever na XV Reunião Anual da SBPC os resultados do simpósio sobre as FFCL, relatou que alguns participantes propuseram a repartição das FFCL em duas: Faculdades de Ciências e Faculdades de Filosofia e Letras, pressupondo que as ciências humanas ficariam nesta última. Porém, se isto ocorresse, os químicos e biólogos, por exemplo, que desejassem também ser professores 22 Idem, p. 540. 23 Maurício Rocha e Silva. “Reforma Universitária”. Ciência e cultura, São Paulo: SBPC, vol. 19, n. 4, p. 633, dez. 1967. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 179 teriam de cursar disciplinas pedagógicas na Faculdade de Filosofia e Letras. Portanto, provavelmente tenha sido este o motivo pelo qual, em 1963, alguém tenha proposto a divisão em três: Faculdades de Filosofia, Faculdades de Ciências e Faculdades de Educação. Assim, as Faculdades de Educação seriam espaço comum dos herdeiros da FFCL. Como as ciências exatas e biológicas almejavam se ordenar em institutos universitários, esta solução também foi viável – ao menos no caso da Universidade de São Paulo. Os defensores da universidade como formadora de pesquisadores e cientistas não desejavam que estes perdessem a possibilidade de ocupar a carreira de professores secundários. Em julho de 1967, o discurso de Maurício Rocha e Silva na abertura da XIX Reunião Anual da SBPC confirma esta preocupação. Em decorrência dos decretos n. 53/66 e n. 252/67, o Conselho Federal de Educação aprovou em 9 de maio de 1968 a indicação n. 11: Para reduzir os efeitos do descompasso acima referido entre as necessidades da escola média e a deficiência de professores regularmente formados, sugere o aproveitamento, no magistério em nível médio, de portadores do diploma de curso superior mediante freqüência das matérias pedagógicas em Faculdades de Educação. As disciplinas em que a carência de professores é mais aguda são: Matemática, Ciências Físicas e Biológicas, Física, Química e Biologia, bem como as disciplinas específicas do ensino médio técnico24. Esta indicação visava aumentar o número de professores secundários. Ela legitimava que graduados em institutos de ciências, após o fim das FFCL, pudessem se tornar professores. Entretanto, da maneira como foi redigida, abria a possibilidade de graduados de outras áreas que não as da FFCL também cursarem a Faculdade de Educação, obtendo assim acesso à carreira docente no ensino médio. Graduados em direito ou em engenharia, por exemplo, também poderiam cursar a Faculdade de Educação. A quem se destinava a Faculdade de Educação? 24 José de Vasconcellos. “Faculdades de Educação e formação de professores”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 86, p. 132, maio 1968. 180 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 O III Seminário de assuntos universitários e a criação das Faculdades de Educação Com esta questão em pauta, entre outras, realiza-se em agosto de 1968 o III Seminário sobre assuntos universitários. Este encontro com representantes das principais universidades brasileiras debateu dois temas: I – A expansão do ensino superior; II – A Faculdade de Educação: teoria e implantação na universidade. O relator e o coordenador deste segundo tema foram respectivamente Newton Sucupira e Valnir Chagas. Para os propósitos deste trabalho não será abordado o tema da expansão do ensino superior. Todos os reitores das universidades brasileiras foram convidados para o III Seminário sobre assuntos universitários. Quase a totalidade deles esteve presente. Mário Guimarães Ferri – reitor da USP – não compareceu e nem enviou representante. Estava por demais ocupado com os distúrbios na FFCL-USP que desembocaram em outubro daquele ano nos conflitos da rua Maria Antônia. O Conselho Federal de Educação e seu órgão – a Documenta – geralmente não se pronunciavam sobre polêmicas. Não foi este o caso. Em outubro de 1968, a Documenta publica a versão dos embates da rua Maria Antônia com o sugestivo título “A invasão da Universidade Mackenzie”. Neste texto, a reitora do Mackenzie – Ester de Figueiredo Ferraz – apresenta a versão de como os estudantes da FFCL-USP, que “estavam armados e foram encontrados de metralhadoras nas mãos”, tentaram invadir e depredar a Universidade Mackenzie. Isto só não ocorreu devido “à presença e à solidariedade dos seis mil estudantes da Universidade Mackenzie”. Ao final, os estudantes da FFCL-USP não conseguiram invadir aquela universidade; “quando a horda se retirou, os estudantes [da Mackenzie] hastearam a bandeira do Brasil e cantaram o Hino Nacional”25. É oportuno ressaltar que o autor deste atual trabalho não partilha desta visão dos acontecimentos. Esta versão é apresentada apenas no intuito de de- 25 José Borges dos Santos. “A invasão da Universidade Mackenzie”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 92, pp. 136-137. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 181 monstrar como o CFE divulgou os episódios da rua Maria Antônia. Esta postura de parte do CFE em relação à FFCL-USP não surge em outubro de 1968; ela é anterior. Tal predisposição negativa do CFE em relação à FFCL-USP serve de exemplo dos motivos de Mário Guimarães Ferri não ter comparecido em agosto de 1968 ao III Seminário sobre assuntos universitários organizado por este conselho; o reitor da USP tinha assuntos mais importantes a resolver. Para uma visão confiável dos acontecimentos da rua Maria Antônia, recomenda-se consultar O livro negro da USP26. O III Seminário sobre assuntos universitários, no que se refere às Faculdades de Educação, apresentou para discussão quatro trabalhos, cujos autores foram Celso Kelly, Valnir Chagas, José Farias Góes Sobrinho e Newton Sucupira. Quanto à questão proposta anteriormente – a quem se destinava a formação nas Faculdades de Educação – aparentemente as faculdades que não compunham a antiga FFCL não perceberam a chance de também formar docentes para o ensino médio. Celso Kelly era favorável a que graduados em outras faculdades também tivessem acesso à carreira do magistério de grau médio: Desdobradas as faculdades de filosofia e acentuadas as tendências à inclusão de disciplinas e atividades vocacionais no ginásio, bem como a crescente transformação de colégios acadêmicos em colégios técnicos, coloca-se o problema da preparação de professores para as disciplinas específicas, hoje ainda fora do âmbito das faculdades de filosofia, mas reclamando soluções mais generalizadas, que atendam a imensa procura por parte do mercado de trabalho. Demais, não existem razões de diferenciação entre professores, dedicados à mesma tarefa de formação da adolescência27. Esta posição, segundo os registros da Documenta, não provocou debates. Provavelmente, o exame desta possibilidade tenha sido adiado 26 ADUSP. O livro negro da USP. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1979. 27 Celso Kelly. “Faculdades de Educação”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91, p. 112, set. 1968. 182 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 para a esfera das discussões do Conselho Federal de Educação. É necessária pesquisa das resoluções do CFE sobre pedidos concretos de faculdades fora do âmbito das FFCL referentes ao acesso à docência de grau médio. Com acompanhamento das decisões do CFE pode-se responder qual foi o consenso alcançado neste conselho sobre esta questão. Valnir Chagas apresentou trabalho que fora publicado anteriormente, no início de 1967, no n. 105 da Revista brasileira de estudos pedagógicos. Trata-se de seu texto de 1946 editado originalmente em Washington D. C. pela Organização dos Estados Americanos. Neste trabalho, o autor afirma que é preciso que as escolas sejam sempre melhores que as anteriores, não só pelas exigências da sociedade moderna, mas também pelo novo aluno que a freqüenta, proveniente das camadas populares, ainda sem tradições familiares de estudo e sequioso de êxito em curto prazo. A educação leva necessariamente a mais educação. Há cada vez mais o que ensinar e a quem ensinar, exigindo níveis cada vez mais altos de formação para professores e especialistas: Essa evolução é via de regra lenta e acidentada, talvez por ser a educação um dos setores onde mais fortemente atuam os mecanismos sociais de resistência à mudança. Entretanto, as fases de processo tendem a suceder-se com grande regularidade, permitindo mesmo alguma generalização. Por exemplo: 1 – coexistindo com a ausência de qualquer preparo específico do professor de todos os seus escolares, inicia-se a formação de mestre primário em cursos normais de grau ginasial ou equivalente; 2 – prossegue a formação ginasial e reduz-se a proporção de mestres primários inteiramente leigos, iniciando-se o seu preparo também em grau de colégio; 3 – desaparece o professor inteiramente leigo e desenvolve-se o preparo do mestre primário em grau de colégio, iniciando-se a formação de especialistas em nível pós-colegial; 4 – reduz-se a proporção de mestres primários com preparo ao nível de ginásio e firma-se como norma a escola normal colegial, iniciando-se a formação específica, em grau superior e ao nível de graduação, (a) de professores de disciplinas profissionais no ensino normal de grau colegial e pós-colegial, (b) dos especialistas de Educação e (c) dos professores de ensino médio em geral; a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 183 5 – desaparece o professor primário de nível ginasial, ao tempo em que prosseguem e se desenvolvem as demais características da fase anterior; 6 – coexistem as características da fase anterior com o início de formação de professores primários em grau superior, ao nível de graduação, e dos especialistas para todos os graus ao nível de pós-graduação; 7 – reduz-se a proporção de mestres primários e especialistas com preparo de grau colegial ou pós-colegial, iniciando-se a formação dos professores de ensino médio em geral ao nível de pós-graduação; 8 – desaparecem os professores primários e especialistas com preparo colegial ou pós-colegial e fixa-se, assim, todo o ensino pedagógico em grau superior, aos níveis de graduação e pós-graduação, começando-se inclusive a exigir alguma formação específica, para o magistério, do professor universitário que atue nos demais setores, e assim por diante. Em países como o Brasil, a fase típica no momento é a quarta, embora existam regiões onde se recua até a segunda e outras que já se delineia a sexta. Mas esta, com algum alcance sobre a sétima, caracteriza sobretudo o estágio de desenvolvimento educacional da Nova Europa e da União Soviética, tal como a sétima, aflorando à oitava, já pode ser encontrada nos Estados Unidos. Seja como for, a tendência geral é definir e institucionalizar a educação como atividade profissional de nível superior; e onde isto ainda não ocorre, existe pelo menos a nítida consciência de que as soluções em prática não representam mais que etapas de transição para este objetivo final28. Para Valnir Chagas, a criação da Faculdade de Educação é apresentada como etapa num longo processo de escolarização da sociedade, em que a tendência geral é definir e institucionalizar a educação como atividade profissional de nível superior. A Faculdade de Educação promoveria a renovação do ensino superior em duas direções: Uma nasce da pesquisa e se expressa pela realização de estudos que o situem numa exata perspectiva educacional; outra provém do ensino e consiste na 28 Valnir Chagas. “Faculdade de Educação e a renovação do ensino superior”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91, pp. 92-93, set. 1968. 184 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 formação de professores e especialistas para muitas das atividades docentes e didático-administrativas; e ambas convergem para a idéia central de que ensino superior é também educação – ou mais precisamente, como observamos na primeira parte deste ensaio – apenas um caso do processo geral de escolarização. A muitos esta afirmativa parecerá ambiciosa, a outros soará como repetição do óbvio. No fundo, porém, ela corresponde a uma realidade que só nos últimos tempos se vai tornando patente29. O autor define quais as tarefas imediatas da Faculdade de Educação no seu processo de renovação do ensino superior: A Faculdade de Educação alcançará ao mesmo tempo os três itens que de início arrolamos entre os meios de assegurar a excelência: (a) formará docentes para os setores básicos de outras escolas, quando ela mesma já não centralize tais setores; (b) oferecerá cursos pedagógicos para os professores universitários em geral; e (c) encarregar-se-á do preparo de especialistas que deverão coordenar as atividades de escolas, professores e alunos, reunindo novos fatos que levarão a subseqüentes estudos e aperfeiçoamentos30. Valnir Chagas pretendia que seu texto de quinze páginas fosse o suporte teórico das discussões sobre o papel da Faculdade de Educação no contexto da universidade brasileira. Os textos de José Faria Góes Sobrinho e de Newton Sucupira expõem questões mais pragmáticas da ordenação institucional desta nova faculdade. José Faria Góes Sobrinho – coordenador de planejamento da Faculdade de Educação da UFRJ – apresenta como a Faculdade de Educação seria organizada nesta universidade: Sete Departamentos estamos a propor que se venham a instituir na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Departamento de Fundamentos Sociais e Filosóficos da Educação Departamento de Biologia Educacional, Higiene Escolar e Educação de Saúde 29 Idem, p. 99. 30 Idem, p.100. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 185 Departamento de Psicologia e Orientação Educativa Departamento de Didática Departamento de Administração Escolar Departamento de Estatística Educacional, Avaliação e Metodologia da Pesquisa Departamento de Educação Especial31. O autor afirma que é urgente a recomposição do desfalcado quadro de professores da Faculdade de Educação, de modo a capacitá-la para bem responder aos imperativos que motivaram a sua criação. Newton Sucupira preocupou-se em estabelecer a grade curricular da Faculdade de Educação. O autor afirma que no momento havia incerteza e diversidade de critério quanto às matérias que deveriam compor o quadro das disciplinas desta faculdade. O que tradicionalmente se denominava pedagogia geral era a utilização de elementos provenientes da filosofia e das ciências humanas no estudo da educação. Assim, a psicologia da educação e a sociologia da educação continuavam, em sua essência, psicologia, história, sociologia, filosofia. Do ponto de vista prático, e para atender ao princípio de não duplicação que rege nossa organização universitária, pergunta-se: estas matérias devem permanecer nos departamentos de matérias correspondentes? Se assim procedêssemos, a Faculdade de Educação ficaria praticamente esvaziada. Em nosso entender por suas vinculações estritas com a educação as matérias citadas devem constituir patrimônio da Faculdade de Educação32. Newton Sucupira apresenta sua proposta curricular para a Faculdade de Educação: Sem a pretensão de apresentar uma lista completa das disciplinas ou áreas de estudos que, a nosso ver, deveriam integrar a Faculdade de Educação, enumeramos as seguintes: 31 José Faria Góes Sobrinho. “A Faculdade de Educação: sua implantação na universidade”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91, p. 106, set. 1968. 32 Newton Sucupira. “Conteúdo da Faculdade de Educação e organização departamental”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91, pp. 83-84, set. de 1968. 186 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 1 – Psicologia da Educação 2 – Sociologia da Educação 3 – História da Educação 4 – Filosofia da Educação 5 – Administração Escolar 6 – Estatística Educacional 7 – Métodos e Técnicas da Pesquisa Pedagógica 8 – Educação Comparada 9 – Higiene Escolar 10 – Currículo e Programa 11 – Técnicas Audiovisuais da Educação 12 – Técnicas à Orientação Educacional 13 – Instrução Programada 14 – Teoria e Prática da Escola Primária 15 – Teoria e Prática da Escola Média 16 – Planejamento Educacional 17 – Economia da Educação 18 – Política Educacional 19 – Legislação Escolar 20 – Didática Geral 21 – Didáticas Especiais ou Métodos de Ensino33. O autor sugere também a composição departamental da Faculdade de Educação: Cremos que seria razoável a formação de quatro departamentos com as seguintes denominações: 1 – Departamento de Fundamentos Sócio-fisiológicos da Educação 2 – Departamento de Psicologia Educacional e Orientação Educativa 3 – Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional 4 – Departamento de Métodos e Técnicas da Educação34. 33 Idem, pp. 84-85. 34 Idem, p. 85. a reforma universitária e a criação das faculdades de educação 187 O III Seminário de assuntos universitários utilizou-se destes quatro trabalhos como ponto de partida de suas discussões. As divergências e sugestões podem ser acompanhadas nas quatro páginas que compõem o relatório da comissão sobre a Faculdade de Educação35. Entretanto, analisando este relatório, constata-se a inexistência de discordâncias polêmicas. É provável que este seminário tenha servido para aparar arestas quando da formulação do currículo mínimo do curso de pedagogia36. Além, é claro, de tentar estabelecer um mínimo de unicidade na organização institucional das Faculdades de Educação nas diversas universidades brasileiras. É necessário analisar a configuração dos diversos cursos de pedagogia e das diversas Faculdades de Educação no final da década de 1960 e início da década seguinte levando-se em consideração os debates ocorridos em agosto de 1968 sobre a estruturação destas faculdades. Para melhor compreensão da institucionalização acadêmica durante a Reforma Universitária é apropriado relacionar as especificidades internas de cada instituição com o debate amplo que ocorre em torno dos seminários organizados pelo Conselho Federal de Educação. Neste trabalho, pretendeu-se demonstrar como a Reforma Universitária e a criação das Faculdades de Educação são temas de longa duração nos debates educacionais brasileiros da década de 1960. O destino das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras ocupou papel privilegiado na discussão sobre a Reforma Universitária – muitas vezes confundindo-se mesmo com ela. Além do Conselho Federal de Educação, deve-se atentar a outros fóruns de debate sobre a Reforma Universitária. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência desempenhou papel de destaque nos embates que definiram a configuração universitária no final da década de 1960, sendo que algumas áreas científicas exerceram função centrífuga no desmembramento das FFCL. Embora tais cientistas privilegiassem uma visão da universidade como formadora de pesquisadores e promotora das ciências, não desejavam abrir mão da possibilidade de carreira docente no ensino médio. As Faculdades de 35 “Faculdade de Educação: relatório final da segunda comissão”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 91, pp. 116-119, set. 1968. 36 Vide Nair Fortes Abu-Merhy. “Currículo de pedagogia”. Documenta, Rio de Janeiro: MEC, n. 100, pp. 101-139, abr. 1969. 188 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Educação foram desmembradas das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras para fornecer aos graduados do que sobrou desta faculdade a formação necessária ao magistério. Além, é claro, de prosseguir na graduação específica em pedagogia – o que já faziam como departamentos das FFCL. É necessário relacionar os acontecimentos específicos de cada instituição de ensino superior com o debate mais amplo da Reforma Universitária nacional para compreender satisfatoriamente a configuração universitária brasileira do final da década de 1960. Pesquisar a história única de cada universidade pode ser fértil se acompanhada dos debates do Conselho Federal de Educação, dos Conselhos Estaduais de Educação, da SBPC, da CAPES, do CNPq, do INEP, do CBPE, dos CRPEs, entre outros, relatos em sua respectivas publicações. Referências bibliográficas ADUSP (1979). O livro negro da USP. São Paulo: Brasiliense, 2. ed. ANTUNHA, Heladio César Gonçalves (1974). Universidade de São Paulo: fundação e reforma. São Paulo: CRPE do Sudeste. BONTEMPI JÚNIOR, Bruno (2001). A cadeira de história e filosofia da USP entre os anos 40 e 60: um estudo das relações entre a vida acadêmica e a grande imprensa. Tese (Doutorado) – PUC-SP, São Paulo. FERNANDES, Ana Maria (1990). A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília: UnB. FÉTIZON, Beatriz Alexandrina de Moura (1986). Subsídios para o estudo da Universidade de São Paulo. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, USP, São Paulo. KATSIOS, Kalliópi Alexandra Aparecida (1999). Um estudo sobre o curso de pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1940-1969). Dissertação (Mestrado) – PUC-SP, São Paulo. NASCIMENTO, Beatrice Laura Carnielli do (1991). A Reforma Universitária de 1968: origens, processo e resultados de uma política para o ensino superior. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. SILVA, Franklin Leopoldo e (1998). “A experiência universitária entre dois liberalismos”. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, São Paulo: FFLCHUSP, vol. 10, n. 2, out. Leowigildo Martins de Mello e a organização da Escola Normal de Cuiabá Elizabeth Figueredo de Sá Poubel e Silva* O presente artigo trata da Escola Normal de Cuiabá, criada e organizada por um professor paulista, Leowigildo Martins de Mello, que se formou na Escola Normal Caetano de Campos e se deslocou para Mato Grosso atendendo à solicitação do governo, com a finalidade de reorganizar a instrução pública do estado. Através da análise da estrutura organizacional e curricular dessa instituição, buscou-se estabelecer confronto entre o modelo escolar paulista, representado por Mello, e a forma pela qual tal modelo foi incorporado, tendo em vista a realidade educacional, social e econômica do estado do Mato Grosso. HISTORIOGRAFIA; EDUCAÇÃO; FORMAÇÃO DE PROFESSORES; MATO GROSSO; ESCOLA NORMAL. This study analyses the Normal School in Cuiabá, created and organized by a teacher from São Paulo, Leowigildo Martins de Mello, who was graduated by the Normal School “Caetano de Campos” and that moved to Mato Grosso at the request of the local Government, with the objective of structuring the public instruction in the State. Based on the analysis of the organizational and curricular structure of that institution, I tried to establish a comparison between the São Paulo scholar model, represented by Mello, and the form in which such model was incorporated taking into account the educational, social and economic reality of the State of Mato Grosso. HISTORIOGRAPHY; EDUCATION; TEACHERS FORMATION; MATO GROSSO; NORMAL SCHOOL. * Mestre em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e doutoranda em educação na Universidade de São Paulo (USP). 190 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 A Escola Normal de Cuiabá, mais conhecida como Escola Normal “Pedro Celestino”, tem um significado especial na história da educação do estado de Mato Grosso. Faz parte da memória dos muitos educadores que, por ela formados, se espalharam por todo estado para lecionar e para ocupar cargos administrativos na educação. Ansiada e reclamada pelos governantes e pelos diretores gerais de ensino do estado durante muitos anos consecutivos, esta instituição, apesar de várias tentativas de implantação no século XIX, não teve o êxito esperado. No início do século XX, o discurso da formação de professores foi retomado, porém para atender aos interesses do grupo liberal republicano. O governo de Mato Grosso autorizou a reorganização da Instrução Pública do estado através da lei n. 533 de 4 de julho de 1910. Era necessário que Mato Grosso organizasse o ensino público de forma a adequá-lo ao movimento da sociedade. Segundo Rodrigues (1988), a formação do professor, nesse processo, adquire fundamental importância por se considerar que através da sua ação direta se imprimiria uma nova moral, modificadora de hábitos e costumes, criando as condições indispensáveis ao progresso da região. Desta maneira, investir na formação do professor era fundamental para a efetivação do “progresso social”, pois sua ação eficaz eliminaria a ignorância, traria a civilidade e a ordem social1. Os Presidentes de Estado demonstravam, em suas mensagens, que a formação dos professores naquele período não era adequada e que tais profissionais não eram capazes de cumprir o papel a eles destinados2. A 1 2 Corrêa da Costa, primeiro vice-presidente do estado de Mato Grosso, em sua mensagem dirigida à Assembléia Legislativa no dia 13 de maio de 1910 fez a seguinte afirmação: “Convencido da necessidade urgente de cuidarmos do futuro da instrução popular, base fundamental de todo o verdadeiro progresso social, que é tanto que o primeiro passo a dar para esse fim é a formação de bons professores...”. A situação do professorado do estado é relatada pelos Presidentes de Estado em suas mensagens à Assembléia Legislativa nos anos de 1897, 1898, 1899, 1907 e 1909. Na mensagem de 1907, o doutor Manoel José Murtinho foi enfático ao afirmar que “as escolas, regidas por professores mal preparados e sem a indispensável vocação para o magistério, estão longe de satisfazer as necessidades do ensino, da educação da infância que as freqüenta”. leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 191 reforma proposta deveria iniciar pela formação dos professores, entendendo que todas as inovações dependiam da ação docente e que esta deveria estar qualificada para tal finalidade. Sendo assim, o governo autorizou a contratação de dois normalistas paulistas para reformularem o ensino mato-grossense. A importância atribuída à Escola Normal de São Paulo deve-se ao fato de esta, desde a sua reforma em 1890, ser considerada como referência para as demais, como pólo irradiador de um novo ideário pedagógico de alcance rápido para combater o analfabetismo e a ignorância (Amâncio, 2000). Em execução das leis nº 508, 1908 e 1910, dei começo à reorganização do ensino oficial do Estado. A instrução primária foi moldada pelos métodos seguidos em São Paulo, que incontestavelmente, no nosso país, ocupa a vanguarda na formação intelectual e na educação cívica da infância e da mocidade. Ali foram postos em prática os processos pedagógicos preferidos nos países mais adiantados da Europa e nos Estados Unidos da América do Norte [Mato Grosso, Mensagens..., 1911]. Segundo Carvalho (2000, p. 226) “[...] viagens de estudo a esse estado e empréstimo de técnicos passam a ser rotina administrativa na hierarquia das providências com que os responsáveis pela Instrução Pública de outros estados tomam iniciativas de remodelação escolar na Primeira República [...]”. Leowigildo Martins de Mello e Gustavo Kuhlmann, normalistas formados em 1909 pela Escola Normal Caetano de Campos, em São Paulo, foram então contratados pelo governo do estado com a responsabilidade de remodelar o ensino de Mato Grosso, que se encontrava, segundo eles, disperso e sem parâmetros organizacionais (Mato Grosso, Relatórios..., 1911). Iniciaram o trabalho fazendo visitas aos distritos para diagnosticar o ensino no estado, solicitando, logo após, a criação de grupos escolares e da Escola Normal. Na Escola Normal, foram depositadas as esperanças do sucesso dessa reforma de ensino, na medida que a referida escola conferiria a habilitação necessária do pessoal para a regência das escolas primárias. 192 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Desta forma, foi criada a Escola Normal de Cuiabá e instalada no dia 1º de fevereiro de 1911, na rua 1º de Março, n. 16 sob a direção do professor Leowigildo Martins de Mello, fato este que foi saudado pelo coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa, primeiro vice-presidente de estado, por ser de seu conhecimento que a carreira do magistério era ocupada, em sua maioria, por professores interinos sem preparo nem conhecimentos pedagógicos. Segundo ele, essa instituição “[...] veio já sanar uma das mais sensíveis dessas lacunas no preparo do pessoal docente, diminuto na capital e quase nulo no interior [...]” (idem). A pesquisa realizada acerca da organização administrativa e curricular dessa instituição, narrada no presente artigo, se deteve ao período em que Mello esteve na sua direção, de 1910 a 1916, quando então se travou um confronto entre as propostas educacionais do professor paulista e a realidade educacional, social e econômica do estado de Mato Grosso. I. Organização administrativa 1.Instalação física e recursos materiais Durante o Império, em Mato Grosso, as escolas públicas funcionavam em casas alugadas adaptadas para esse fim. Muitas vezes, a casa era uma extensão da residência do professor, portanto, não oferecia espaço adequado para a organização das salas de aula. Padre Ernesto Camilo Barreto, em relatório, discorria sobre o estado de abandono em que se encontravam as escolas: [...] sem casas adaptadas, sem mobília, sem materiais para aprender e ensinar a ler, escrever e contar, a escola é, sempre, uma irrisão [...] Mas, se é certo que o professorado, entre nós, não corresponde à missão que lhe é confiada, como convém, também não é menos exato que, nas condições em que a província o tem conservado e conserva, seria um milagre se correspondesse [Leite, 1970, p. 47]. No entanto, gradativamente, educadores e autoridades passaram a defender espaços específicos para o serviço escolar. Porém, os problemas leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 193 persistiam, tornando-se constantes as reclamações referentes a telhados, reforma dos prédios, construção de sanitários etc. Esta realidade ainda não havia se alterado no período de instalação das Escolas Normal e Modelo anexa, que foram instaladas numa casa alugada na antiga rua 1º de Março, hoje chamada rua Galdino Pimentel, consideradas por Mello sem condições pedagógicas e higiênicas (Mato Grosso, Relatórios..., 1911). Foi para liquidar esta situação que o governo investiu na construção do Palácio da Instrução, sob a direção do engenheiro doutor Miguel Carmo de Oliveira, sendo este prédio localizado no centro da cidade, com instalações adequadas para abrigar o Liceu, a Escola Normal e a Escola Modelo anexa. O Palácio da Instrução era um prédio majestoso para a época, digno do nome que recebera. Souza (1998, p. 124) afirma que “a política de construções escolares promovida pelos governos republicanos no estado de São Paulo elevou os edifícios escolares à altura da importância atribuída à educação naquele momento histórico”. Não fora diferente em Mato Grosso. Desta forma, tiveram a instrução primária e a Escola Normal, pela primeira vez, um prédio com salas de aula construídas para este fim, provido de mobiliários completos, mandados vir da América do Norte, contendo carteiras duplas e individuais, armários, cadeiras, mesas e relógios de parede (Mato Grosso, Mensagens..., 1912). Apesar do investimento na parte arquitetônica, tornando-o um prédio agradável e funcional, era necessário que atendesse também às exigências pedagógicas de uma escola concebida nos termos do método intuitivo e enciclopédico. Era preciso então a criação de outros espaços e a aquisição de equipamentos que atendessem às necessidades pedagógicas. De acordo com o posicionamento teórico metodológico, o relatório de 1912 foi enviado ao Secretário de Estado dos Negócios do Interior, Justiça e Fazenda solicitando os seguintes espaços e equipamentos: o Gabinete de antropologia pedagógica e psicologia experimental, para os estudos da cadeira de pedagogia e psicologia; o Gabinete de física e química, para os estudos experimentais destas matérias, o Museu de história natural e de anatomia psicológico-descritiva animal e vegetal, 194 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 para o estudo das ciências naturais, a coleção completa de sólidos geométricos e demais aparelhos para o uso da geometria; e quadros murais ou ideografias históricas, geográficas e astronômicas para os estudos de história, geografia e cosmografia. Dos gabinetes solicitados, foi implantado somente o Gabinete de física e química, equipado com um microscópio e um esqueleto humano (Mato Grosso, Mensagens..., 1915). Embora o espaço físico das Escolas Normal e Modelo tivesse melhorado, a direção ainda encontrou, em 1915, alguns requisitos a serem alterados, como a construção de um muro ou gradil para que as crianças da Escola Modelo tivessem recreações durante o intervalo, impossíveis no momento, por atrapalharem as aulas da Escola Normal e do Liceu; e a falta de iluminação, impedindo o funcionamento do prédio no período noturno e o possível funcionamento de uma biblioteca. Acerca de tais solicitações, Amâncio (2000, p. 113) chama atenção para a função social da escola, considerada “instância cultural a serviço da difusão da cultura e dos valores cívico-patrióticos. E que nenhum impedimento de ordem física deveria fechar as portas da escola para a irradiação da cultura”. 2. Direção, corpo docente e discente Outro fator importante a ser analisado é o quadro administrativo da escola, suas funções e relações de poder. Paulista de Itararé, tinha Mello 21 anos quando assumiu a responsabilidade, juntamente com Kuhlmann3, da reforma educacional do estado de Mato Grosso. Segundo Mello, com a finalidade de conhecerem a realidade educacional da capital do estado, procederam visitas às escolas primárias, tendo ficado o 1° distrito sob sua responsabilidade e a do 2° distrito à cargo de Kuhlmann. 3 Gustavo Kuhlmann assumiu a direção do Grupo Escolar Senador Azeredo, localizado no 2° Distrito. Escrevia e publicava as suas Conferências Pedagógicas na revista A Nova época. leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 195 Com a inauguração da Escola Normal, Mello4 acumulou a função de diretor dessa instituição, da Escola Modelo e de professor da cadeira de pedagogia. Era considerado, pelos que conviviam com ele, como um profissional distinto entre os mais exímios da atual geração de educadores. [...] jornalista adestrado na arte difícil; de levar o público ao convencimento da justeza dos ideais que defendesse; orador fluente, possuidor do segredo de elevar as multidões; inteligente; simpático; maneiroso; quem estaria em melhores, em o mais favoráveis condições de propugnar, com imediata vantagem, pelo melhoramento da cultura geral em nosso meio, intensificando a campanha benfazeja contra o analfabetismo [Corrêa Filho, 1923, p. 33]. As concepções pedagógicas de Mello e Kuhlmann encontraram opositores veementes na sociedade cuiabana, ambos sofreram difamações e agressões por parte dos jornais de procedência religiosa. Em Cuiabá, os normalistas residiram, constituíram família com mulheres de famílias cuiabanas tradicionais e criaram raízes. Tudo indica, porém, que foram inúmeras as dificuldades com as quais se depararam esses professores paulistas. Dificuldades que, diga-se de passagem, extrapolavam o âmbito das questões educacionais. Os jornais da época registraram com detalhes riquíssimos as muitas polêmicas provocadas, e muitas vezes alimentadas pelos dois jovens professores, “republicanos convictos” (conforme eles próprios se intitulavam) que, inserindo-se na vida político-cultural de Cuiabá, conquistaram rapidamente tanto amplo espaço na imprensa local quanto alguns inimigos ferrenhos, representados pelo grupo do jornal católico A Cruz5. Ao questionar Maria de Arruda Müller, aluna da segunda turma de formandos da Escola Normal, sobre as características da personalidade do diretor da Escola, a mesma respondeu: “Leowigildo era muito rígido, duro, mas muito competente” (Müller, Entrevista, 1998). 4 5 Esteve ele à frente da Escola Normal desde sua implantação, sendo demitido em 1916. Após sua demissão exerceu a função de advogado provisionado, vindo a falecer aos trinta e três anos de idade. Cf. Amâncio, 2000, p. 89. 196 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Este perfil era próprio da atribuição conferida ao diretor, de garantir a ordem e a disciplina, como se pode observar nas atas das reuniões da Congregação, as quais presidia. Na reunião de maio de 1915, Mello levou ao conhecimento dos presentes que a Escola estava sofrendo uma série de “calúnias”. Em virtude de tal fato, decidiu-se criar uma comissão formada por alguns docentes da Escola para abrir inquérito e apurar os fatos. A maioria das acusações feitas se referiam ao próprio diretor que, segundo os “caluniadores”, “não orienta nem visita as aulas da Escola Modelo”, “que, por intermédio da Inspetora, fez com que as alunas se parcializassem no depoimento sobre o já tão falado caso do professor de francês”, “que o ponto é abonado dos professores faltosos” e, por último, que “o regulamento da Escola é vontade do seu diretor e a Escola é o seu feudo” (Mato Grosso, Atas..., 1915, pp. 81-82). A última acusação foi considerada uma afronta pelos docentes, pois segundo eles, “para que o regulamento seja a vontade do Diretor e a Congregação o seu feudo é preciso que os professores sejam uns títeres nas mãos do mesmo Diretor e a Congregação uma nulidade” (idem, p. 82). Na reunião seguinte, em 21 de maio do mesmo ano, tomaram conhecimento do resultado do inquérito instaurado com o objetivo de apurar as denúncias feitas, concluindo que tais denúncias não procediam, sendo tal relatório aprovado por todos os presentes. As críticas acerca das ações de Mello, feitas através de comentários, comprovam os conflitos existentes no interior da Escola Normal em relação às ações hierárquicas que privilegiavam uns em detrimento de outros. No entanto, pelo fato da Congregação ser formada exclusivamente por docentes, a decisão tomada sempre favorecia a categoria, sendo extremamente parcial e autoritária, em nome da disciplina e do cumprimento do regulamento em vigor. Negar a participação dos professores nos encaminhamentos e nas decisões tomadas seria desfazer da posição deles na hierarquia existente na Escola, e isso eles não poderiam permitir. O quadro docente, no primeiro ano de funcionamento, era constituído de profissionais masculinos da sociedade mato-grossense que, na sua leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 197 totalidade, lecionavam sem qualquer formação pedagógica, nomeados pelo governo. No ano seguinte, em 1912, a grade curricular sofreu alteração, modificando também o quadro de professores. Pela primeira vez uma mulher lecionou na Escola Normal, porém, assumindo a aula de música, e não uma cadeira de cunho científico. Essa mulher era Azélia Mamoré de Mello, esposa do diretor. Por não terem formação acadêmica específica, os professores mudavam de cadeira conforme lhes era conveniente. Este fato aconteceu em 1912, quando o doutor Aprigio dos Anjos removeu-se da cadeira de português para a de história natural, e também nos anos posteriores, ocasionando o pedido da direção, em 1915, ao diretor geral da Instrução Pública, para a realização de um concurso visando ao provimento das cadeiras da Escola Normal, alegando a instabilidade do quadro docente devido ao grande número de nomeações, exonerações, licenças e transferências. No entanto, prevendo a intervenção política no concurso, ele alertou que seria necessário. [...] que aos concursos presidam toda justiça, completo critério e perfeita ponderação sobre a idoneidade e capacidade educativa dos concorrentes, pois que é bem mais preferível um péssimo interino, remissível por um simples ato do Governo, do que um mau lente vitalício [Mato Grosso, Relatórios..., 1915]. O Presidente de Estado, em sua mensagem à Assembléia Legislativa, ciente da realidade política existente no estado, afirmou que o que fazia mal ao ensino público era: [...] o contágio da politicagem, fazendo do professor público o servidor de um partido, o galopim eleitoral, que escreve a ata e é o agente da cabala eleitoral. O que faz mal ao ensino é essa intromissão malsã do patronato nos concursos para provimento dos lugares do magistério [Mato Grosso, Mensagens..., 1915]. O concurso realizado contou com apenas quatro candidatos para as cadeiras de português, física, química, matemática e geografia, porém 198 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 só foi aprovado o doutor Pedro Laurentino de Araújo Chaves, que concorreu para lecionar a língua portuguesa, sendo que os outros nem mesmo conseguiram completar as provas (Mato Grosso, Mensagens..., 1916). Desta forma, o quadro docente da Escola Normal continuou sendo formado, majoritariamente, de interinos indicados pelo governo. Em seu relatório, Mello, embora tenha reconhecido a dedicação dos professores, os descreveu como neófitos, sem prática de ensino (Mato Grosso, Relatórios..., 1911). Ele justifica sua preocupação constante com os professores, pois tinha ciência de que a qualidade do resultado da formação proposta pela Escola Normal, de sua responsabilidade, estava nas mãos, principalmente, dos docentes, não só dos que lecionavam na Escola Normal, como também na Escola Modelo anexa, onde os normalistas tinham suas aulas práticas. Para que esta instituição desempenhasse bem o papel a ela confiado, tornou-se necessário, além de investir no quadro docente, selecionar bem os discentes que seriam os futuros professores primários. Assim, para ingressarem na Escola Normal, era necessário que os candidatos fossem submetidos a um exame, no qual deveriam demonstrar conhecimentos nas seguintes áreas: gramática elementar da língua portuguesa, leitura de prosa e verso, escrita sobre ditado, caligrafia, aritmética, morfologia geométrica, desenho a mão livre, moral prática e educação cívica, geografia geral e história do Brasil, noções de cosmografia, noções de ciências físicas, químicas e naturais, e leitura de música e canto. Por ser o ensino laico, já não era exigido o conhecimento da doutrina cristã, pré-requisito da Escola Normal de 1874. Segundo o art. 32. do regulamento, era necessário que os alunos apresentassem documentos que comprovassem: idade de 14 anos para o sexo feminino e de 15 anos para o masculino, moralidade, ter sido vacinado ou ter sofrido de varíola, não padecer de nenhuma doença contagiosa, licença do pai, tutor ou marido quando casada. O magistério primário abriu um espaço para que as mulheres ingressassem no mercado de trabalho. Mesmo com baixos vencimentos, esta habilitação possibilitava às mulheres experimentarem um pouco de liberdade, ainda que vigiada, pois a sua formação não poderia colocar em risco a hegemonia masculina. Segundo o Presidente do Estado: leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 199 Presentemente já se vai a tendência para se confiar à escola primária, de preferência as mulheres, consoante as leis da pedagogia [...] Pensa que a mulher é que compete o magistério primário, visto como esse magistério é um prolongamento da educação familiar, na qual a família exerce a sua função educativa como a disciplina, o exemplo e o ensino [Mato Grosso, Mensagens..., 1916]. O número de alunos matriculados era em sua maioria do sexo feminino. Quadro I ALUNOS MATRICULADOS NA ESCOLA NORMAL DE CUIABÁ (1911-1916) Anos Alunos Alunas Total 1911 1912 1913 2 7 8 14 36 27 16 43 35 1914 1915 12 12 34 61 46 73 1916 Total 6 47 59 231 65 278 Fonte: Mensagem do Presidente de Estado doutor Francisco de Aquino Correa à Assembléia Legislativa em 7 de setembro de 1919. Quadro II PROFESSORES FORMADOS NO PERÍODO 1913-1916 Ano 1913 Feminino 5 Masculino 1 Total 6 1915 1916 7 5 2 1 9 6 Total 17 4 21 Fonte: Mato Grosso, AEEPM, livro n. 1 de registro de diplomas da Escola Normal de Cuiabá (1914-1925). 200 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Embora fosse admitido um número considerável de alunos, muitos ficavam pelo caminho, terminando o curso um número bem inferior ao que iniciara. Nos primeiros seis anos de funcionamento, a Escola Normal colocou no mercado de trabalho 21 novos professores, como mostra o quadro II, número ainda insuficiente ante as necessidades do estado. II. Organização curricular Desde a década de 1870, as críticas em relação à instrução popular sugeriam a necessidade de reformulação da escola primária existente sob as bases dos padrões educacionais considerados modernos. Sendo assim, o método intuitivo foi o símbolo dessa renovação e modernização do ensino. [...] os métodos intuitivos e os estudos da natureza deslocavam para observar a antiga arte de ouvir e repetir [...] A pedagogia “do ouvir” deslocava-se para a “do olhar” no final do século XIX, ao mesmo tempo que a arte de memorizar perdia o seu prestígio [Vidal, 1994, p. 11]. A implementação da reforma educacional de Mato Grosso, em 1910, procurou consolidar a presença do método intuitivo no seu ensino público, estando seus organizadores harmonizados com a metodologia propagada pela Escola Normal de São Paulo e com a bibliografia pedagógica do período. Para que as inovações propostas surtissem o resultado esperado, tornava-se necessário que houvesse mudanças não só na estrutura organizacional da escola pública primária, como também no seu cotidiano escolar e na prática docente, sendo os professores os verdadeiros agentes de introdução de tais mudanças. Com a finalidade de formar professores conhecedores desta “nova” metodologia foi então (re)organizada a Escola Normal de Cuiabá. Em seu relatório, Mello expõe a fundamentação teórico-metodológica da Escola Normal: leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 201 Seu programa de ensino, cuja orientação é, como bem disse Pestalozzi [...] ensinar a fazer, fazendo, e não, ensinar a fazer, dizendo como se faz. [...] É lei fundamental de pedagogia, que, em aquisição de conhecimentos, os fenômenos devem sempre partir do consciente para o inconsciente, mediando, entre essas duas frases extremas da evolução físico-psíquica, o termo médio-consciente – inconsciente, ou, por outras palavras, a ação educadora deve partir do concreto para atingir ao abstrato, mediante a transição natural pelo concreto-abstrato [Mato Grosso, Relatório...,1912]. Os mestres tinham a tarefa de preparar e apresentar os conteúdos ao educando, sempre partindo do particular, utilizando os órgãos dos sentidos, e, após a impressão sensorial, os conhecimentos adquiridos seriam traduzidos em exercícios graduados. Algumas orientações foram dadas através do Regulamento da Escola Normal a respeito da metodologia a ser adotada nas aulas, com a finalidade de inserir no cotidiano dos normalistas um ensino através da observação. §2- Na organização dos programas os lentes deverão desenvolvê-los o mais possível, atendendo aos seguintes princípios: a) O ensino das línguas vivas terá um cunho principalmente prático, para o que os usos lexicológicos e sintáxicos deverão ser deduzidos da leitura e da interpretação de escritores notáveis, visando o correto manejo das línguas e uma fácil e lógica sistematização gramatical. b) O ensino das disciplinas científicas deverá ser graduado em ordem a que, conjuntamente com a aquisição de conhecimentos, os alunos adquirem o método a seguir na transmissão dos mesmos. c) O ensino das disciplinas artísticas será organizado de maneira a fornecer aos alunos os meios necessários à concretização das noções ministradas nas escolas primárias [Mato Grosso, Regulamento..., 1914, p. 7]. Os programas de estudo também foram organizados com este propósito, porém, na prática, embora o discurso fosse fundamentado no ensino sensorial, principalmente através da observação, o método de ensino se resumia em memorização de dados visando disciplinar as faculdades mentais e formar hábitos. Segundo Mello (Mato Grosso, Relató- 202 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 rio..., 1912), por falta de preparo para a docência, os professores eram obrigados a um estudo rápido e superficial, onde a decoração, por parte dos alunos, substituía a natural assimilação por compreensão. A fundamentação metodológica ficava sob a responsabilidade das aulas práticas na Escola Modelo anexa, o que justifica a grande preocupação de Mello em orientar os professores dessa escola, tendo em vista que, segundo ele, eles se encontravam adstritos ao pernicioso método da decoração, ao ensino tratadista. Além das dificuldades de aplicação do método devido ao pouco ou nenhum preparo dos docentes, a direção queixava-se constantemente da falta de materiais. [...] por mais boa vontade que tenha o educador para cumprir seus deveres, a sua ação é constantemente cercada por falta de meios. Pela mesma razão por que o mais hábil operário, falta de seus instrumentos, só consegue obras toscas e imperfeitas, o educador, sem o aparelho escolar completo e perfeito, só pode conseguir educação imperfeita, anormal, atrofiadora das faculdades infantis [idem]. Em seu relatório, Mello solicitou às autoridades os materiais necessários para a aplicação do método intuitivo, porém, não consta na relação do almoxarifado a entrada ou saída de nenhum dos materiais solicitados. A direção escolar, ciente da importância da Escola Modelo para a prática dos alunos da Escola Normal, esmerou-se em obedecer a uma organização pedagógica bem definida. Para isso, organizou o programa escolar expondo detalhadamente o desenvolvimento das matérias, ressaltando o ensino através da observação. A grade curricular da Escola Normal foi estruturada com base no Regulamento Interno do curso Normal de 1874, ainda em vigor na época. Desta forma, o curso continuou organizado em três anos, sendo suas cadeiras distribuídas da seguinte forma (Mato Grosso, Relatório..., 1911): 1ª cadeira – português e literatura; 2ª cadeira – francês, caligrafia e desenho; 3ª cadeira – aritmética, álgebra e geometria plana; leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 203 4ª cadeira – física, química e história natural; 5ª cadeira – geografia do Brasil, geografia geral e cosmografia; 6ª cadeira – pedagogia, educação moral e cívica, direção de escolas, trabalhos manuais, e educação física; 7ª cadeira – história universal e do Brasil; 8ª cadeira – música e educação doméstica. No entanto, os conteúdos de ensino moral e religioso foram abolidos, sendo substituídos pelos conteúdos de educação moral e cívica, ministrados por Mello. A troca das disciplinas foi justificada da seguinte forma: Nos tempos idos da monarquia, em que a religião era unida ao Estado, a educação moral se realizava por meio do ensino do catecismo católico romano aos alunos. Proclamada a República e com esta liberdade de cultos, foi banido da escola o ensino religioso. Desde então se fez mister nova orientação para a educação moral. [...] Esta última educação é o tipo da escola leiga moderna. É uma escola humana, sem religião, mas não é contra Deus; e tanto assim é, que reconhece e observa o dever de deixar a cargo da família do educando, o direito de ensinar a este a religião que melhor lhe pareça. [...] Levado por tais e tão ponderosas considerações, não poupei esforços para que a educação moral e cívica fosse realmente desenvolvida na escola a meu cargo. [...] teoricamente pelo ensino dos direitos e dos deveres do homem, [...] tornando-se as crenças outros tantos elos dessa simpática, amorável cadeia cívica, que liga o passado ao presente e prepara, pelo amor e respeito à Sociedade, os homens de amanhã, a Pátria futura [Mato Grosso, Relatório..., 1912]. A educação moral e cívica era uma disciplina tida como essencial para os liberais republicanos, pois era através dela que eram repassados os deveres que cada um tinha para consigo, para com os seus, para com a sociedade e para com a Pátria. Segundo Mello, “[...] isso se faz pelo estímulo do patriotismo, ministrando ao aluno o conhecimento dos heróis verdadeiros, daqueles que, por seus méritos e virtudes cívicas, dignos se fizeram do nosso amor e do nosso respeito” (Mato Grosso, Relatório..., 1911). 204 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 O movimento de exclusão do ensino religioso e a defesa de ensino laico e do conhecimento científico de base experimental não foram pacíficos. A Igreja católica, através dos jornais A Cruz e Domingo, teceu críticas severas. Porém, os reformadores, com uma concepção contra o adestramento religioso, entendiam que a educação tinha por fim a formação do indivíduo participante do processo produtivo e da organização política do país, educando-o a fim de prepará-lo para a vida através de um ensino prático que partisse do universo conhecido por ele para o desconhecido. Nessa perspectiva, a preparação para a vida centrava-se numa proposta metodológica que concebe o desenvolvimento a partir da experiência sensorial. Por isso, a principal preocupação na formação do futuro professor estava relacionada ao método de ensino. O desenvolvimento intelectual, moral e físico dos normalistas se dava através dos conhecimentos inseridos nos programas. No estudo das línguas, português e francês, as aulas tinham caráter eminentemente prático. As aulas de português constituíam-se de leituras expressivas de livros de prosadores e poetas contemporâneos de Portugal e do Brasil e análise do trecho lido na seguinte ordem: fonologia; interpretação; exercícios ortográficos; recitação e composição. No programa da disciplina consta a seguinte observação: “As lições, apesar de sua posição prática, serão acompanhadas de explicação, pelo processo intuitivo, das regras essenciais” (Mato Grosso, Atas..., 1911-1919). O estudo da língua francesa era prático e ministrado por meio de conversação, dividido em três etapas: 1ª) educação do ouvido e dos órgãos vocais, aquisição de vocabulário elementar, ensino principalmente oral e através da imagem; 2ª) ampliação do vocabulário elementar e precisão dele no espírito dos alunos, conhecimento intuitivo das leis da língua, leitura explicada onde o aluno lê e explica em francês o que leu; 3ª) conversação e leitura explicada sobre a França, povo que habita, seus costumes, teoria lexicológica francesa. A evolução fisiológica e psicológica, e a importância do fortalecimento do corpo eram trabalhadas através do ensino da educação física, leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 205 que era lecionado pelo professor de pedagogia (o próprio diretor), com exercícios diferenciados para os sexos, sendo mais brandos para as mulheres, e para os homens através de exercícios calistênicos, buscando formar indivíduos cultos e saudáveis para a vida. Mello fez algumas considerações sobre a educação física: Estudando a evolução fisiológica do homem, bem como a psicológica, podemos asseverar que todos os seus atos físicos têm profundas relações com a sua vida orgânica. Em nenhum momento da vida os fenômenos físicos se apresentam como essencialmente diferentes e independentes dos psicológicos. Estudando a educação, na sua mais ampla acepção, podemos afirmar que ela é um todo indivisível que, na frase de Montaigne, não tende desenvolver uma inteligência ou um corpo, mas sim um todo, como parelha de cavalos, atrelado ao mesmo carro. Não seria portanto natural que a escola cuidasse dos educandos moral e intelectualmente, desprezando a educação física [Mato Grosso, Relatório..., 1911]. Além da alteração das disciplinas, Mello propôs a ampliação da duração do curso de três para quatro anos, tomando como referência o projeto pedagógico de sua escola de origem. Em seu relatório endereçado ao Secretário de Estado dos Negócios do Interior, Justiça e Fazenda, o diretor acusou a incapacidade dos alunos de compreenderem os conteúdos, porque os professores não tinham tempo necessário para trabalharem de maneira satisfatória, sendo obrigados a fazer um estudo superficial, às pressas. Desta forma, segundo ele, o programa deveria ser dividido em cadeiras, que seriam constituídas de matérias científicas; e em aulas, formadas de matérias relacionadas às artes, sendo as aulas de educação doméstica somente para o sexo feminino, as de trabalhos manuais para o sexo masculino, e as demais para ambos os sexos. Posteriormente, o regulamento da escola foi reformulado através do decreto n. 353 de 13 de janeiro de 1914, aprovado pela lei n. 679 de 22 de julho do mesmo ano. As alterações propostas pelo novo regulamento atendiam às solicitações feitas pela direção da Escola Normal quanto à distribuição das matérias e a sua subdivisão em cadeiras e aulas. Os conteúdos específicos de cada matéria eram de responsabilidade dos professores das disciplinas, sendo estes apresentados à Congrega- 206 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 ção e submetidos à aprovação do governo, conforme consta no artigo 8o do Regulamento. No primeiro ano de funcionamento, os professores apresentaram os conteúdos das disciplinas lecionadas no curso, porém, nos anos subseqüentes, conforme relatório da direção da Escola de 1915, os professores não organizaram tais conteúdos, tornando-se necessário que houvesse a intervenção por parte da diretoria6. É notória a preocupação em oferecer aos professores primários um ensino enciclopédico de informação científica, a fim de garantir uma educação naturalista do universo, considerada o objeto de toda boa educação. Para isso, o plano de ensino deteve-se a uma base científica, deixando à cargo da Escola Modelo o preparo prático do futuro professor primário, através de observação e prática pedagógica no terceiro e no quarto ano da Escola Normal. Os programas da Escola Modelo foram organizados nos moldes das escolas de São Paulo. Segundo Mello, seu diretor: Os programas desenvolvidos nos diversos anos do curso preliminar da Escola Modelo são, verbum ad verbum, os mesmos institutos congêneres de São Paulo, que foram mandados adaptar por decreto do executivo, provisoriamente, mas que estão em vigor ainda, sendo que o decreto que os adaptou, é de agosto de 1910 [Mato Grosso, Relatório..., 1912]. Ele percebeu que os alunos que ingressavam da Escola Modelo para a Escola Normal, amparados pelo artigo 15 do 2º capítulo do Regulamento Interno do Curso Normal (1874)7, não apresentavam as condições necessárias para ingressarem em um curso secundário, por isso, propôs o acréscimo de mais um ano na Escola Modelo, visando preparar os alunos para o ingresso na Escola Normal, que passou a vigorar imediatamente. Além da mudança do tempo de duração do curso, sugeriu a 6 7 Tal problema é relatado no Relatório da Escola Normal e Modelo anexa, 1915, na página 6, pelo diretor interino professor Philogônio de Paula Corrêa. No Regulamento de 1910 tal direcionamento se repete no capítulo 5, art. 29o, parágrafo único, dispensando do exame de suficiência os pretendentes à matricula que tiveram o curso completo da Escola Modelo anexa. leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 207 Quadro III PROGRAMA DA ESCOLA NORMAL DE CUIABÁ Matérias Número de Aulas 1º Ano Português Francês Aritmética Caligrafia e desenho Trabalhos manuais Ginástica escolar 3 3 4 2 2 1 2º Ano Português Francês Caligrafia e desenho Trabalhos manuais Álgebra Geografia geral Ciências naturais Música 3 3 2 1 3 3 2 2 3º Ano Português Ciências naturais Geometria plana Física e química Pedagogia Geografia do Brasil História do Brasil Trabalhos manuais 3 2 3 2 2 2 2 1 4º Ano Português Música Geometria plana Física e química História da civilização Pedagogia Educação moral e cívica Fonte: Regulamento da Escola Normal de Cuiabá, 1914 (3ª seção – art. 7o) 3 2 3 3 2 3 2 208 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 organização definitiva do programa da Escola Modelo, tendo em vista que, segundo Mello, “os que possuímos, feitos para estabelecimentos de outro Estado, se bem que de categoria e orientação pedagógica idênticas aos nossos, não são, in totum, aplicáveis ao nosso meio” (idem). O professor buscava adequar o modelo escolar paulista à realidade mato-grossense, embora as orientações pedagógicas continuassem as mesmas. Mello, ciente da importância e da dupla missão da Escola Modelo, servir de prática aos alunos da Escola Normal e de padrão para os demais grupos do estado, se preocupava com isso, tendo em vista que os professores que lecionavam nessa instituição não tinham domínio do método intuitivo e nem materiais para trabalhar dentro desta proposta metodológica. Foi, então, necessário orientar os professores primários sobre a nova metodologia adotada, num período de três meses após a sua inauguração. Segundo Amâncio (2000), a capacitação dos docentes também se dava através da leitura de conferências pedagógicas escritas na revista A Nova Época por Kuhlmann e, às vezes, por Mello. Esse periódico, do qual se tem notícia pelos comentários de jornais do período, parece ter sido o canal para que os normalistas paulistas pudessem divulgar, ainda que por pouco tempo, seus ideais republicanos e pedagógicos, mediante a transcrição de suas palestras e conferências. A atuação dos normalistas era obrigatória no terceiro ano, quando determinado pelo diretor, e no quarto ano em horário estipulado pela Congregação. Em 1915, o horário destinado à prática era terça, quinta e sábado, das 11h00 às 13h00 (Mato Grosso, Atas..., p.70). Este era o momento em que o futuro professor primário tinha contato com a prática do método intuitivo. Para mensurar os conhecimentos apreendidos, tornou-se necessário investir na avaliação da aprendizagem. As provas eram aplicadas ao final de cada mês, sendo os alunos avaliados e os resultados das sabatinas e exercícios práticos apresentados à Congregação e à Secretaria da Escola. Somava-se a esses resultados os dos exames anuais que aconteciam três vezes ao ano, nos meses de maio, agosto e novembro (Mato Grosso, Regulamentos..., cap. 5). leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 209 Os exames das matérias classificadas como cadeiras, realizados em maio e agosto, eram escritos, e os realizados em novembro, orais e escritos, sendo destinadas até duas horas para os exames escritos e quinze minutos para os orais. Já os exames das matérias classificadas como aulas eram práticos, adequados a tais disciplinas e realizados em junho e novembro. Sendo a avaliação um instrumento de controle e poder, reafirma o professor como aquele que controla o conhecimento e o comportamento dos alunos, enquadrando-os nas condutas sociais do contexto escolar e, conseqüentemente, da sociedade. A organização do tempo escolar também demonstrou ser de extrema importância, educando o aluno à obediência e aos hábitos de ordem e de trabalho através da racionalização das atividades escolares. O ano letivo, na Escola Normal, iniciava no dia 15 de fevereiro e encerrava no dia 15 de novembro. Essas datas estavam previstas no seu Regulamento, capítulo 3 artigo 14. É importante ressaltar que em momento algum o número de dias letivos estava previsto na legislação, apenas alertava para que a escola funcionasse em todos os dias úteis. Com relação aos horários escolares, seu regulamento estipulava: §1 – Esse horário, que será organizado pelo Diretor e submetido a aprovação da congregação, será feito de modo que as aulas não excedam de uma hora, mediando entre umas e outras um intervalo de 10 minutos, no mínimo, e de 15 minutos, no máximo. Os horários elaborados pela direção eram apresentados na reunião da Congregação no início do ano letivo para apreciação. Eram, juntamente com os programas, encaminhados para a publicação na folha oficial. A sua organização correspondia ao número de aulas semanais determinado a cada disciplina estipulada pelo regulamento interno. O horário aprovado para o primeiro ano de funcionamento da Escola Normal foi organizado no período de quatro horas, das 7h00 às 11h00, sendo que cada aula tinha a duração de uma hora, todos os dias da semana, incluindo os sábados. 210 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Quadro IV HORÁRIO DA ESCOLA NORMAL DE CUIABÁ – 1911 2ª Feira Aritmética 3ª Feira Álgebra 4ª Feira Aritmética 5ª Feira Álgebra 6ª Feira Aritmética Sábado Álgebra 8:00 às Caligrafia desenho Francês Trabalhos manuais Francês Caligrafia desenho Francês 9:00 9:00 Pedagogia Geografia Pedagogia Geografia Pedagogia Geografia Português Ed. física Português Ed. física Português Trabalhos manuais 7:00 às 8:00 às 10:00 10:00 às 11:00 Fonte: Ata da Congregação 10/1/1911, p. 1. Em 1915, já funcionando os quatro anos do curso, o horário ficou organizado da forma mostrada no quadro V. As aulas deste ano foram organizadas de acordo com a disponibilidade dos professores, pois a Escola Normal tinha apenas um docente de cada disciplina, deixando, desta forma, um quadro de horário repleto de aulas vagas e os alunos sem uniformidade de horário no ingresso na Escola. É interessante observar que os normalistas não tinham um horário destinado ao recreio, ou mesmo intervalo entre as aulas, mas, com exceção do terceiro ano, eles não permaneciam na Escola durante as cinco horas de seu funcionamento. Além do calendário escolar, outras interrupções de ordem social, como as festividades, também intervinham no processo de ir e vir à Escola. As férias escolares no meado do ano não foram previstas no Regulamento, porém, para justificar a necessidade de um recesso escolar de quinze dias nesse período, Mello usou os seguintes argumentos em seu relatório: leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 211 Quadro V HORÁRIO DA ESCOLA NORMAL – 1915 Dia da semana Horário 1º Ano Segunda-feira 11:00/12:00 12:00/13:00 13:00/14:00 Matemática 14:00/15:00 Francês 15:00/16:00 Trabalhos Terça-feira 11:00/12:00 12:00/13:00 13:00/14:00 Português 14:00/15:00 Desenho Quarta-feira Quinta-feira 15:00/16:00 Trabalhos 11:00/12:00 12:00/13:00 13:00/14:00 Matemática 14:00/15:00 Francês 15:00/16:00 11:00/12:00 12:00/13:00 13:00/14:00 14:00/15:00 Sexta-feira Sábado Português Desenho 15:00/16:00 11:00/12:00 12:00/13:00 13:00/14:00 Matemática 14:00/15:00 Francês 15:00/16:00 11:00/12:00 12:00/13:00 13:00/14:00 Português 14:00/15:00 Desenho 15:00/16:00 Fonte: Livro de Atas da Congregação, 1915. 2º Ano 3º Ano 4º Ano Português Matemática Pedagogia Português Francês Geografia Hist.do Brasil Trabalhos Desenho Trabalhos Física Ciên. naturais Ciên.naturais Prática Português Matemática Prática Desenho Francês Pedagogia História da civilização Trabalhos Física e química Português Matemática Pedagogia Português Francês Geografia Hist. do Brasil Desenho Cosmografia Física Ciên. naturais Ciên. naturais Prática Português Matemática Prática Desenho Francês Pedagogia Música História da civilização Trabalhos Física e química Português Pedagogia Português Matemática Geografia Hist. do Brasil Francês Desenho Cosmografia Trabalho Física Ciên. naturais Ciên. naturais Prática Matemática Prática Português Francês Ed. Cívica Desenho História da civilização Música Música Física e química 212 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 O mês de junho, sobremodo festivo em nosso meio, é um perturbador da freqüência escolar nos meados do ano letivo. E nisto, como em tudo, há sua razão de ser. Junho é o mês das festas essencialmente populares, festas a que o povo empresta a lei da tradição. Não há família, por mais pobre que seja, para quem julho festivo não seja portador de alviçareiras alegrias. Ora, as crianças são, em geral, por natureza e por hábito, festivas por excelência. É natural, pois, que por ocasião das festas de junho, e consentimento paterno e a sua índole mesmo, façam-nas afastar da Escola. E, assim, os últimos quinze dias de junho despovoam a escola. Esta razão bastaria para justificar uma quinzena de férias por essa ocasião, medida que viria regularizar a freqüência e a marcha do ensino [...]. Os professores, pelos meados do ano letivo, sentemse extenuados, e o seu organismo reclama repouso. A falta deste prejudica seriamente o ensino, pois o educador, cansado já não é tão solicito, como antes, no cumprimento dos seus deveres. A necessidade física sempre vence a obrigação moral [Mato Grosso, Relatório...,1912]. A festividade de São João, comemorada no final de junho por diversas famílias, ocasionando uma variedade de festas espalhadas pelos distritos, envolvia um grande número de pessoas, por vários dias, diminuindo a freqüência dos alunos nesse período, fato este que levou a direção da Escola a suspender as aulas durante as festividades. No entanto, não eram somente os compromissos sociais que intervinham no calendário escolar. Em 1913, próximo ao término das atividades letivas, os alunos, através de um documento, solicitaram à direção a permissão de gozarem férias de 10 a 15 dias a fim de estudarem para as provas finais, pedido este que foi consentido pela Congregação, suspendendo as aulas no período de 20 a 31 de outubro. Mesmo utilizando o modelo paulista como referência, a organização curricular da Escola Normal de Cuiabá, especificamente a sua metodologia, programas, avaliação e organização do horário escolar, sofreu alterações em face da realidade na qual estava inserida a instituição, bem diferenciada da realidade do estado de São Paulo. leowigildo martins de mello e a organização da escola normal de cuiabá 213 Conclusão A Escola Normal de Cuiabá foi (re)organizada e dirigida por um normalista paulista, fato este que não era incomum na época. Mello, entretanto, mesmo demonstrando através de vários documentos de sua autoria a intenção de utilizar a escola na qual foi formado como modelo para orientar a legislação e a organização administrativa e curricular, “esbarrou” com a realidade socioeconômica e cultural do estado de Mato Grosso. Ao propor o uso do método intuitivo, Mello encontrou professores sem a devida formação e a falta de materiais pedagógicos para a organização dos Gabinetes, devido aos parcos recursos financeiros do Estado. Na implantação do ensino laico, encontrou forte resistência por parte dos católicos. A organização dos horários escolares foi adaptada ao número de professores existentes e a sua disponibilidade de tempo, e o calendário letivo adaptou-se às festas culturais e a fatores de outras ordens. Podemos afirmar que o confronto entre o modelo proposto e a realidade do estado resultou numa cultura escolar própria, fruto de conflitos e negociações, fazendo nascer um curso de formação de professores com uma organização jamais vista até então em Mato Grosso. A estrutura curricular e organizacional da Escola Normal de Cuiabá foi concebida para que o aluno-mestre se instrumentalizasse através da educação moral, cívica, de cunho científico e metodológico, visando à formação de cidadãos republicanos mato-grossenses com vistas a participarem do processo produtivo e da organização política do país. Referências Bibliográficas AMÂNCIO, Lázara Nanci de Barros (2000). Ensino de leitura na escola primária no Mato Grosso: contribuição para o estudo de aspectos de um discurso institucional no início do século XX. Tese (Doutorado em Ensino na Educação Brasileira) – Instituto de Educação, Universidade Estadual Paulista, São Paulo. CARVALHO, Marta Maria Chagas de (2000). “Reformas na Instrução Pública”. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes & VEIGA, Cyntia Greive. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica. 214 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 CORRÊA FILHO, Virgilio (1994). História de Mato Grosso. Várzea Grande: Editora da Fundação Júlio Campos. LEITE, Gervásio (1970). Um século de Instrução Pública (história do Ensino Primário Público em Mato Grosso). Goiás: Rio Bonito. RODRIGUES, Maria Benicio (1988). Educação escolar como instrumento de mediação da relação estado/povo: a Reforma Mato-Grossense em 1910. Dissertação (Mestrado em Filosofia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. SOUZA, Rosa Fátima (1998). Templos de civilização. São Paulo: UNESP. VIDAL, Diana G. & SOUZA, Maria Cecilia C. C. (orgs.) (1999). A memória e a sombra – a escola brasileira entre o Império e a República. Belo Horizonte: Autêntica. Documentação MATO GROSSO. Atas da Congregação da Escola Normal e Modelo Anexa, 19111919, Arquivo da Escola Estadual Presidente Médice. . Mensagens do Presidente do Estado à Assembléia Legislativa, 1911-1912-1915-1916-1919, Arquivo Público de Mato Grosso. . Registro de diplomas da Escola Normal de Cuiabá, Livro n. 01, 1914-1925, Arquivo da Escola Estadual Presidente Médice. . Regulamento Interno do Curso Normal da Província de Mato Grosso, 1874, Arquivo Público de Mato Grosso. . Regulamento Interno da Escola Normal de Cuiabá, 1914, Arquivo Público de Mato Grosso. . Relatórios da Escola Normal e Modelo Anexa, 1911-1912-1915, Arquivo da Escola Estadual Presidente Médice. Depoimento oral MÜLLER, Maria de Arruda: depoimento (dez. 1998). Entrevistadora: Elizabeth Figueiredo de Sá Poubel e Silva. Cuiabá – MT, 1998. Resenhas Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária autor cidade editora ano Edward P. Thompson Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Edward Palmer Thompson é uma referência absoluta no campo da história. Realizar a leitura de A formação da classe operária inglesa, de Senhores e caçadores, de A miséria da teoria ou de Costumes em comum é conhecer um dos capítulos mais criativos da historiografia contemporânea. Não faltam erudição, revisão teórica ou rigor metodológico nas páginas que ele escreveu. É igualmente evidente nas suas obras a habilidade para investigar ações, crenças e os mais diversos aspectos da vida social e intelectual de amplos espectros populacionais. Elas geraram, por tudo isso, uma outra direção para os estudos históricos, criaram um domínio satisfatório de análise das condições de produtividade e de liberdade das pessoas. E, assim, entre as noções de estrutura social e os vestígios das ações de uma vida, Thompson fez da sua obra uma espécie de antologia de experiências. Talvez dizer desse modo seja reduzir as circunstâncias pelas quais a reflexão histórica de Thompson adquiriu significado. Ainda assim, parece ser uma boa chave de decifração dos estudos realizados pelo autor sobre a literatura romântica da década de 1790, reunidos em livro por Dorothy Thompson e que a editora Civilização Brasileira lançou traduzido recentemente. Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária é uma composição de tramas acontecidas entre 1790 e 1818. Seus personagens dominantes são, por um lado, dois poetas românticos, Samuel Taylor Coleridge e William Wordsworth, e, por outro, dois pensadores reformistas, William Godwin e John Thelwall. No entanto, é inteiramente perpassado pelas figuras eminentes do pensamento radical inglês: Tom Paine, Joseph Priestley, Hazlitt. Isto porque trata do drama político que foi o jacobinismo na Inglaterra por ocasião da Revolução Francesa. Em parte, busca a inserção das idéias filosóficas e das teo- 216 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 rias desses homens no tecido social britânico. Mas também informa sobre o tipo de sociabilidade a que tais idéias e teorias arrastavam seus representantes. E, por fim, encontra as dificuldades de compreender historicamente o que representa para alguém a negação daquilo que em algum momento orientou a construção da sua auto-estima, da sua reputação, senão, da sua própria identidade. Para os quatro homens com os quais Thompson lida mais de perto, a histeria contra o jacobinismo produziu efeitos diversos. Para os poetas, a preocupação em exorcizar o fantasma jacobino de seus passados. Para os reformistas, a necessidade de um novo refúgio para a ação. O que tornou o jacobinismo incômodo para a política inglesa foram tanto as ações do Comitê de Salvação Pública no período do Terror, 1791-1793, na França, quanto as ofensivas de Napoleão sobre a Europa e a Inglaterra. A matança revolucionária desencadeada pelo governo de Robespierre e pelas guerras napoleônicas tem sua repercussão na Inglaterra, capturada por E. P. Thompson a partir das transformações da sensibilidade poética de Coleridge e Wordsworth e das dificuldades políticas enfrentadas por Godwin e Thelwall. O ano de 1794 foi de notórios julgamentos por traição, sendo o ano seguinte, 1795, a data de publicação dos Two Acts, lei contra as organizações populares e assembléias consideradas perturbadoras. Dois anos mais tarde, a maré intelectual que havia tornado William Godwin uma referência política importante tinha virado com força. A história que Thompson conta sobre Godwin inicia-se em 1793, quando saiu publicada a primeira edição de Political justice, marco de uma revisão drástica de posições. As exigências por perfectibilidade cederam espaço para a busca da boa vontade universal, o desagrado por quaisquer reformistas revolucionários cresceu e o seu trabalho filosófico coexistiu com uma postura social já aprovada, predeterminada. Esse recuo chegou ao limiar do utilitarismo com a segunda e terceira edições, ambas de 1796. No interstício estão Breves críticas à acusação feita pelo Lorde Presidente do Supremo Tribunal Eyre ao Grande Júri, de 1794, e Considerações, de 1795, que, apesar de criticar os Two Acts, parecia justificar a proibição governamental de palestras inflamadas. Peças de filosofia política e moral reformistas que se afastam do novo caráter que Godwin deu às novas edições de Political justice, nas quais Thompson identifica o modo como a moralidade e o sistema de conduta deixaram de ser resenhas pensados como resultantes de uma experiência de auto-aprovação dos próprios atos por parte do indivíduo para tornar-se subserviente à utilidade pública. Assim, o recuo foi também um escorregão que aproximava os principais filósofos radicais dos principais conservadores e causava repúdio à sensibilidade romântica: esses raciocínios rasos e não elaborados são ineficazes contra nossos hábitos, eles não conseguem formá-los, diria Wordsworth sobre a segunda edição de Political justice. De outro tipo foi o recuo de John Thelwall. O herói reformista dos dias de caça aos jacobinos foi tomado por E. P. Thompson como caso exemplar da experiência da derrota política e do retiro intelectual entre os reformistas ativos. Alvo direto dos Two Acts de 1795, Thelwall resistiu-lhe até março de 1797, burlando a proibição de palestras políticas com conferências sob o disfarce de dissertações sobre a história romana. No período, os incidentes se sucederam em tentativas de seqüestro, algazarras e perseguições infindáveis. Como efeito, as divisões, os partidarismos e a animosidade pessoal cresciam onde minguava o apoio. Submetido à repressão, John Thelwall assistiu ao aumento dos distúrbios na Irlanda e à crescente ameaça de invasão francesa em retirada. Em Stowey encontrou-se com Coleridge e depois, em Alfoxden House, visitou William e Dorothy Wordsworth junto aos quais procurou instalar-se. Se alojou numa pequena fazenda em uma aldeia isolada. Foi onde Thompson encontrou o cadáver político de Thelwall: de fazendeiro a estudioso da elocução, passando pela poesia, estava, em 1803, ferido até o âmago em sua auto-estima, na sua reputação literária e em seu próprio meio de vida (p. 256). A crítica espirituosa ao seu Poems chiefly written in retirement, o rompimento de Coleridge e a indiferença egoísta de Wordsworth deram-no a medida do desdém que se podia abater sobre as esperanças e estratégias políticas por demais envolvidas com o resultado de acontecimentos em outros países. As juventudes de Coleridge e Wordsworth também estiveram envolvidas com o jacobinismo. Sob o impacto da Revolução Francesa, dos Rights of man e das reivindicações políticas por égalité, Coleridge e Wordsworth abraçaram as idéias republicanas; produziram poemas contra a guerra; tiveram aspirações de liberdade, fraternidade e igualdade. Quando, em 1794, os julgamentos por traição se iniciaram, compartilharam do cuidado com a expressão de 217 218 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 opiniões políticas. E, também, tomaram parte de grupos democratas pequenos e pessoais. Até 1797, a ofensiva editorial e o entusiasmo político dos jacobinos estariam amainados pelo movimento contra a imprensa e pela prisão de Gilbert Wakefield, uma das últimas vozes públicas da Inglaterra jacobina. Em 1798, tudo parecia mudado para os dois poetas: foi o vórtice de contradições insuperáveis; o momento em que lado a lado conheceram os custos da defesa da Revolução Francesa e o nojo com o curso que ela tomou, o desejo de abraçar a causa do povo e o medo que a multidão pudesse se voltar contra homens de seu tipo (p. 56). Pudera, pois foi o ano da rebelião irlandesa o ano da primeira execução por traição, o ano da crescente ameaça da invasão francesa, enfim, o período militarmente crítico que Godwin e Thelwall também viveram. O Diretório cedera lugar a Napoleão, na França, fazendo a guerra contra a Inglaterra perder o caráter de defesa da República. Foi um momento de desapontamento para Wordsworth e Coleridge. A partida à Alemanha para fugir ao recrutamento, a ambigüidade das experiências políticas e o tenso impulso criativo do período marcam, para Thompson, uma viragem de opinião nos poetas, lançando-os à beira da apostasia e ao rompimento da amizade. Samuel Taylor Coleridge conheceria primeiro o fracasso moral e imaginativo produzido por um estado desse tipo. Thompson foi capaz de observar Coleridge degradando-se. Já em 1808, Coleridge havia deixado para trás a luta da juventude para conciliar sua simpatia pelo jacobinismo com sua alienação intelectual em relação à gente do povo. Ao contrário, estava mais estático, tinha uma espécie de ciúmes de Wordsworth, era dependente de drogas, não tinha dinheiro e possuía uma saúde precária. O relacionamento com a casa dos Wordsworth foi-lhe pessoalmente ruinoso. Foi um momento de paixões inoportunas, entorpecimento artístico e agonia criativa. Thompson produz um entendimento do desastre emocional de Coleridge que faz o rompimento com Wordsworth e a perda de força criativa coincidirem a favor das grandes instituições religiosas e do cristianismo tradicional. Entremeios, os efeitos foram mais perversos quando redundaram no desengano político com o jacobinismo. Thompson examina dois deles: a perversidade e o nacionalismo. Primeiro a perversão: Coleridge abandona a liça política e os companheiros de luta tornando-se autor de denúncias e ataques exacer- resenhas bados àqueles que mantinham posições que antes tinham sido suas. Igualmente, pediu nova guerra contra a França após a Paz de Amiens. Mas, quando ela chegou, deixou a luta para os outros: “voltou a seus velhos manuscritos e ao cenário pacífico do distrito dos lagos. Tinha defendido seus princípios” (p. 206). O nacionalismo de Coleridge teve alcance mais duradouro que a guerra contra a França. A denúncia sistemática da selvageria das conquistas de Napoleão como exorcismo da sua juventude revolucionária reverteu sobre um sentimento nacional e um patriotismo inteiramente morais e santificados sempre que se tratasse dos ingleses. Thompson destaca a conseqüência que isso teve para a alienação entre as culturas inglesa e irlandesa: uma contribuição ativa. A sensibilidade de Thompson ainda foi capaz de notar a ausência, nos ensaios políticos produzidos por Coleridge entre 1798 e 1818, de registros generosos para com os amigos de sua juventude jacobina. A crise de Wordsworth teve outra intensidade. Para Thompson, o “odioso democrata” que foi Wordsworth existiu até depois da Paz de Amiens. Isto é, nos anos iniciais do século XIX fica para trás a crença numa fraternidade universal. Seguem-se os anos de desengano. Foi o tempo em que o poeta enfrentou a si mesmo, uma profunda reflexão sobre suas antigas alianças ou aliados. Ao contrário do que ocorreu com Coleridge, não houve deslealdade, apenas uma contração do coração. Thompson foi capaz de buscar uma interpretação histórica para esse momento na literatura que Wordsworth produziu entre 1797 e 1814. E, então, percebe que entre o Prelude, finalizado em 1805, e Excursion, publicado em 1814 existe uma diferença de método que é fundamental para o entendimento do fracasso moral e imaginativo de Wordsworth. Os dez anos de trabalho sobre o Prelude parecem a Thompson um momento de recuperação e superação em arte da experiência jacobina de Wordsworth. O Prelude aparece-lhe, assim, como uma transmutação das reivindicações políticas de igualdade em vida interior, como uma confrontação com o quadro triste do fracasso das expectativas utópicas do poeta. Tratava-se de uma auto-revelação que não expulsava da sensibilidade o jacobinismo e a perda do ideal do passado. Excursion, ao contrário, lhe parece uma autonegação do poeta. Nove anos depois de finalizado o Prelude, identifica um declínio das energias e da autenticidade poética de Wordsworth, que resulta não apenas na 219 220 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 negação de si mesmo, mas também da possibilidade de ação política racional. O fracasso do alter ego jacobino de Wordsworth arrastaria, nos seus versos, as virtudes públicas para fora do processo histórico. O que sensibiliza na análise que Thompson elabora acerca desse recuo é que ela identifica uma vítima. O Solitário que aparece em Excursion tem duas interpretações importantes no texto de Thompson. Ambas atribuem a John Thelwall o principal e mais significativo modelo para esta personagem. A interioridade do tema, contudo, não conduz a um problema de identificação, mas, sobretudo, de conduta: trata-se de alguém que sofreu todas as vicissitudes da vida e não conseguiu reagir. Entretanto, diferentemente daquilo que Wordsworth procura mostrar com seu Solitário, Thompson argumenta que Thelwall foi arrastado a uma desconsolada solidão não apenas em virtude de suas próprias fraquezas e ilusões desfeitas, mas pelo peso de toda a cultura e todo o poder tradicionais sobre ele. Em meio à manipulação e ao falseamento da sua própria experiência, Wordsworth teria perpetrado, segundo o entendimento de Thompson, a autotraição quando desiste de colocar seu leitor diretamente na presença da crença para dizer-lhe em que acreditar. Em meio a tudo isso, a experiência que Thompson buscou compreender foi constitutiva de horizontes sociais importantes. Ele insiste, com propriedade, sobre o modo como a experiência modifica todo o processo educacional e influencia as atitudes de aquisição cultural. E, assim, reconheceu no período de maturidade romântica o momento de uma separação fundamental entre a educação e a experiência. Suas observações acusam, mais que uma origem, a maneira como essa separação pôde ser aceita como peça do processo educacional a ponto de aparecer como uma peça inteiramente natural, evidente, indispensável. Thompson denuncia a farsa da trama em que isso se deu, mostra sua precariedade, faz aparecer não o seu arbitrário, mas a complexa ligação com processos históricos múltiplos. Deste ponto de vista, atrevo-me a dizer que as atitudes que tornaram possível essa confrontação repercutiram sobre a percepção e apreciação dos rumos do jacobinismo na política inglesa, sendo, por isso, decisivas para a compreensão do modo como Thompson analisou o recuo intelectual de Godwin, a solidão imposta a Thelwall, a apostasia de Coleridge e o desencantamento de Wordsworth. resenhas A trama produzida por Thompson dá conta de uma história intelectual cheia de vivacidade política. No centro da tentativa para fazer valer, em seus direitos e em seu devir, a experiência romântica da política na decifração do trabalho de criação de Godwin, de Thelwall, de Coleridge e de Wordsworth, há o reflexo de uma experiência mais contemporânea. Thompson abraçou as idéias socialistas, filiou-se ao comunismo e teve aspirações de igualdade num momento muito incômodo para essas posições políticas na Inglaterra: o clima da Guerra Fria, a denúncia da matança stalinista, a repressão soviética da Primavera de Praga, o recrudescimento conservador da política britânica. A desintegração do socialismo realmente existente e o avanço neoliberal completa o período em que os estudos foram escritos, 1968-1992. E muito daquilo que questiona aos seus homens percebe-se nele. Afinal, não esteve ele às voltas com esperanças e estratégias políticas por demais envolvidas com o resultado de acontecimentos em outros países do mesmo modo que Thelwall? Como interpretar suas críticas a Althusser em A miséria da teoria? E sua desfiliação do Partido Comunista? Tanto quanto Coleridge e Wordsworth, Thompson teve de superar o fracasso das suas expectativas utópicas, rever suas posições políticas e reajeitar a própria vida. De algum modo, também experimentou o desencantamento e a apostasia que Coleridge e Wordsworth experimentaram. Até certo ponto, experimentou o apedrejamento que Thelwall experimentou. E se não conheceu a solidão e a autotraição foi porque encontrou outras soluções para os problemas que estudou nos trabalhos que vêm reunidos nesse volume. Percorrer os oito trabalhos que compõem Os românticos é, de algum modo, enfrentar o espelho. Pelo menos este é um convite insistente no livro. Um exemplo está no modo como Thompson aproximou a reestruturação interna experimentada por Coleridge entre 1798 e 1818 das coerções políticas experimentadas pelos intelectuais ingleses entre 1956 e 1989. Ele olhou com ironia os escritores que, de uma época comparável, decidiram tratar o apóstata com apetite voraz por ódios e vitimado pela ruína intelectual, que era Samuel Coleridge, como um grande pensador político: “esse sempre foi um caso de má identificação, às vezes efetuada defronte de um espelho” (p. 212). Outro exemplo foi mais pessoal e envolveu a própria prática docente de Thompson. Seu registro sobre as relações entre 221 222 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 educação e experiência traz indicações do que está em jogo na relação professor–aluno: o contato de diferentes mundos de experiência, no qual idéias são trazidas para a prova da vida. A delicadeza da tarefa de ensinar parece-lhe estar justamente no modo como essas coisas se relacionam quando está em jogo, por um lado, as qualidades educacionais e, por outro, o valor moral das pessoas. O modo como Thompson entendeu sua tarefa de professor implicava evitar a cumplicidade com a desistência intelectual de seus alunos. Não ver, tarde da noite, no espelho, o professor que “fica contente em aceitar o valor moral de seus alunos no lugar de seus ensaios” (p. 39). O diálogo com a própria experiência parece dar os limites da reflexão de Thompson sobre o romantismo. Nesse sentido, a excelente história da intelectualidade inglesa na virada do século XVIII para o XIX contada em Os românticos espelha uma temática que atravessa a consciência e a vida de seu autor. Aquilo que ele escreveu sobre Godwin, Thelwall, Coleridge e Wordsworth atravessa muito das experiências que viveu durante o período da Guerra Fria (1945-1989). Em parte, é o resultado da história que o viu escrever. Mas também é a história que pôde e quis escrever, a história das experiências políticas similares à sua própria época. André Luiz Paulilo Doutorando em educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE-FEUSP) resenhas 223 Relações de força: história, retórica, prova autor cidade editora ano Carlo Ginzburg São Paulo Companhia das Letras 2002 O historiador Carlo Ginzburg configura-se com destaque no cenário internacional, e no Brasil há alguns anos seus escritos têm sido recebidos com muita atenção pelo público, pela particularidade com a qual se dedica aos ensaios historiográficos produzidos e postos a circular para os seus leitores interessados. Entre as suas principais obras1, a que se tornou mais conhecida entre os brasileiros é O queijo e os vermes. Relações de força: história, retórica, prova é o seu mais recente lançamento no Brasil, inclusive contando com a sua presença em palestras nas universidades do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em Relações de força, Carlo Ginzburg traz à baila um debate bastante contundente e polêmico, sem perder a elegância e a seriedade que marcaram a sua trajetória de escritor. Entra no debate atual da historiografia com o propósito de problematizar a visão pós-moderna da abordagem da história como prática retórica, desobrigada do seu caráter de objetividade. O esforço do autor, e aqui a sua intencionalidade se fez com muita clareza e acuidade, foi o de, a partir da busca genealógica do pós-modernismo, desmontar a visão pós-modernista presente nos vários âmbitos da cultura e da vida pública que incluem a história e a reflexão historiográfica. Sua perspicácia estará no movimento de busca das pistas do argumento pós-moderno. 1 Traduzidas para o português são as seguintes: O queijo e os vermes (1987); Os andarilhos do bem (1988); Mitos, emblemas e sinais (1989); História noturna (1991); Olhos de madeira (2001) (traduzidas pela Companhia das Letras) e Indagações sobre Piero (1989) (traduzida pela Paz e Terra). 224 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Nesse sentido, Ginzburg chegará aos tempos da juventude de Nietzsche, quando numa releitura do pensador alemão sobre a retórica irá contrastar a sua compreensão de retórica como sistema de tropos, isto é, “de figuras de linguagem, no qual uma noção rigorosa de verdade não tem lugar” (p. 25), o que reduz a verdade ao argumento do falso ou do verdadeiro. Contra esse argumento, Ginzburg apontará uma vinculação entre retórica e prova, uma retórica baseada na prova, não apenas uma detecção de falsidade que de verdade, mas de mostrar que o que está fora do texto está também dentro dele, “abrigado entre as suas dobras” (p. 42). Nesse caso, a retórica baseada na prova tem a função de descobrir no texto o histórico e fazê-lo falar. Aí consiste a relação de força. Ao citar a exortação de Walter Benjamin2, que afirmava a necessidade de “escovar a história ao contrário”, o autor confirma que “é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força como aquilo que é redutível a elas” (p. 43). O trabalho do historiador consiste em problematizar (ou analisar, como trata Ginzburg) as fontes. É nesse exercício que o esforço de compreensão das relações de força se fará presente, pois o “conhecimento possível” (p. 45) será apreendido no trabalho de construção de uma retórica baseada na prova. Uma retórica que se “move no âmbito do provável, não no da verdade científica (como a concebida pelo positivismo) e numa perspectiva delimitada, longe do etnocentrismo inocente”. Para Ginzburg, a análise construtiva das fontes requer um tratamento que as concebam não como “janelas escancaradas, como acreditam os positivistas”, nem como “muros que obstruem a visão, como pensam os céticos” (p. 44), mas como “espelhos deformantes” que exigem interdições e possibilidades com vistas à construção histórica. A sua tese que vincula retórica e prova, marco do seu distanciamento da visão pós-moderna da historiografia, será baseada em três exemplos que irão possibilitar alcançar o objetivo da defesa de “que, no passado, a prova era considerada parte integrante da retórica” e que hoje deixada de lado por alguns, “implica uma concepção do modo de proceder dos historiadores” (p. 13). Uma questão que pas2 Walter Benjamin, Concetto di storia, Torino, 1997. resenhas sa por uma preocupação metodológica, mas com implicações que dizem respeito à convivência e ao choque de culturas, dadas as tensões existentes entre narração e documentação. Os três exemplos tomados, “a leitura de um trecho famoso da Educação sentimental, de Flaubert”, o “relato setecentista sobre uma revolta nas ilhas Marianas” e a “análise do quadro Demoiselles d’Avignon de Picasso”, encaminham-se na demarcação da crítica ao relativismo céptico, que distancia narração e documentação e que concebe “uma idéia de retórica não apenas estranha, mas também contraposta à prova” (p.15). A partir desses exemplos, Ginzburg propõe a redescoberta da retórica de Aristóteles, que ao se basear na combinação entre retórica e prova, evidencia esta última, atribuindo-lhe um papel essencial na produção historiográfica. No primeiro e segundo capítulos do seu livro, dedica-se à discussão sobre a herança aristotélica da retórica, perseguida na retomada que Lorenzo Valla faz, em 1357, da passagem na qual Aristóteles observa: “Dorieu venceu os jogos olímpicos”. Nessa passagem, dentro da realidade grega, não estava a preocupação com aquilo que se encontrava em jogo na competição, a coroa de louros, pois todo mundo já sabia, era óbvio. A observação pressupõe um saber compartilhado e não declarado que na sua forma oculta revela um saber tácito evocado, o que levará Lorenzo Valla a compreender que a retórica de Aristóteles se move no âmbito do provável. Um historiador distanciado dessa realidade precisará fazer a leitura do que não foi dito, que para ele não é óbvio, não está no texto, está fora dele, num espaço em branco que precisa ser decifrado. É como um dito que está na voz do outro e não é compreendido por aquele que está ouvindo, uma voz estranha, “que provém de um lugar situado fora do texto”. Na leitura de um trecho famoso da Educação sentimental, de Flaubert, Ginzburg constrói o seu capítulo “Decifrando um espaço em branco”. Nesse capítulo, irá tratar da retórica visual, tipográfica, pois será no espaço em branco deixado pelo autor na divisão dos capítulos da Educação sentimental que Ginzburg criticará o trabalho historiográfico que valoriza os modelos narrativos que intervêm “apenas no final, para organizar o material coletado”(p. 44). Para ele, ao contrário, deve-se considerar, ou melhor, deslocar a atenção do produto final do documento acabado para as questões presentes no 225 226 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 documento, as frases preparatórias, o interdito que não está dito, os espaços em branco. Lembrando Lucien Febvre, Ginzburg chama a atenção para o trabalho com as fontes: “as fontes históricas não falam sozinhas, mas só se interrogadas de maneira apropriada” (p. 114). Nesse caso, a mediação entre questões e fontes atribui às narrativas uma posição provisória, possibilitando modificações no transcurso do processo de pesquisa. No capítulo que trata do relato setecentista sobre uma revolta nas Ilhas Marianas, o autor irá problematizar “que uma maior consciência da dimensão literária de um texto pode reforçar as ambições referenciais que, no passado, eram compartilhadas tanto pelos historiadores quanto pelos antropólogos”. Ao recorrer a uma passagem tirada do livro escrito por Charles Le Gobien3, em 1700, que descreve a primeira fase de uma revolta desenvolvida pelos indígenas das Ilhas Marianas, Ginzburg ressalta que por baixo da superfície da retórica narrativa é possível perceber “uma voz diversa, uma voz dissonante, não domesticada [...] que provém de um lugar situado fora do texto” (p. 98). E isso para enfatizar que os textos contêm fendas e das suas “fissuras, sai algo inesperado” (p. 99). Essa afirmativa pode ser percebida na narrativa de Le Gobien sobre o discurso do indígena Hurao, líder de uma conjura, que incita o seu povo a rebelar-se contra os espanhóis e a expulsá-los da ilha. O discurso do indígena estará identificado com o discurso do próprio narrador, pois segundo Mably, citado por Ginzburg, “o historiador esconde-se por trás de uma máscara tomada de empréstimo” (p. 95). Ao narrar o ímpeto contra a população colonizadora, tomará de empréstimo o discurso narrado para, por meio dele, expressar “a profunda ambigüidade que ele compartilhava com a ordem religiosa de que fazia parte”. Essa leitura somente poderá ser feita caso o historiador, no contato com a documentação que estará trabalhando, consiga analisar as estratégias do autor que se encontra por detrás das muralhas de proteção na qual se esconde. Na “análise do quadro Demoiselles d’Avignon de Picasso”, Ginzburg coloca em relevo o diálogo necessário entre as culturas 3 Histoire des Iles Marianes, nouvellement converties à les religion chrestienne; et de la mort glorieuse des premiers missionnaires qui y ont prêché la foy. resenhas 227 que, segundo ele, hoje está relegado a um plano secundário. A apropriação que Picasso faz das “culturas figurativas não européias” levou-o a inaugurar um novo tempo na história da arte, quando consegue decifrar “os códigos das imagens africanas”, o que vai permiti-lo criar Demoiselles d’Avignon. A criação é, sem sombra de dúvida, a quebra da relação de força entre as culturas, portanto ação de uma multiplicidade cultural capaz de gerar a produção de um novo modelo ( paradeigma), de inaugurar um novo tempo. Relações de força: história, retórica, prova é um livro bastante instigante, como o é o próprio Ginzburg, autor e precursor do paradigma indiciário. Na mesma medida, é também um livro complexo, cheio de armadilhas, até mesmo pela sua organização editorial, que não se produziu com a intenção de ser propriamente um livro. Seus capítulos foram produzidos em tempos diferentes, com especificidades diferentes. Mas isso não o faz ser menos interessante, ao contrário, desafia o leitor a uma relação, também de força, com a produção de uma nova maneira de fazer história, sem perder, por um lado, o rigor científico e, por outro, as virtudes de uma escrita clara e cativante. Irlen Antônio Gonçalves Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais 228 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 Orientação aos Colaboradores A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos, resenhas, traduções e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionados à história e à historiografia da educação, de autores brasileiros ou estrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o direito de encomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devem apresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexão teórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdo da obra e efetuar um estudo crítico, além de poder versar sobre textos recentes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura devem trazer uma notícia de publicação recente. Seleção dos trabalhos Os artigos são submetidos a dois pareceristas ad hoc, sendo necessária a aprovação por parte de ambos. No caso de divergência dos pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. A primeira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome e inserção institucional do autor. Deve conter também o resumo em português ou espanhol e o resumo em inglês (abstract), com extensão máxima de sete linhas, e cinco palavras-chave em português ou espanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar o título completo do artigo em português e em inglês, seu nome, titulação e instituição a que está vinculado, projetos de pesquisa dos quais participa, endereço, telefone e e-mail. As resenhas e notas de leitura são avaliadas pela Comissão Editorial. Normas gerais para aceitação de trabalhos Os originais devem ser encaminhados em três vias impressas e uma cópia em disquete, observando-se o formato: 3 cm de margem superior, inferior e esquerda e 2 cm de margem direita; espaço entre linhas de 1,5; fonte Times New Roman no corpo 12. Os trabalhos remetidos devem respeitar a seguinte padronização: Extensão mínima e máxima, respectivamente: • Artigos – de 30 mil caracteres a 60 mil caracteres (aproximadamente de 15 a 30 páginas). Cada resumo que acompanhar 230 revista brasileira de história da educação n° 7 jan./jun. 2004 o artigo deverá ter, no máximo, 700 caracteres (contando espaços). Para contar os caracteres no Word, no item “Ferramentas”, a opção “Contar palavras”. Para as palavras-chave, consultar as Bases de Dados: Lilacs, Medline, Sport Discus. • Resumos e abstracts – os resumos e abstracts dentro de cada artigo não devem ter mais de 4 linhas cada. • Resenhas – de 8 mil caracteres a 15 mil caracteres (aproximadamente de 4 a 8 páginas). • Notas de leitura – de 2 mil caracteres a 4 mil caracteres (aproximadamente de 1 a 2 páginas). As indicações bibliográficas, no corpo do texto, devem vir no formato sobrenome do autor, data de publicação e número da página entre parênteses, como, por exemplo, (Azevedo, 1946, p. 11). As referências no final do texto devem seguir as normas da ABNT NBR 6023:2000. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem ter caráter explicativo. Vale notar que todas as citações devem vir entre aspas e não devem estar em itálico, salvo trechos que se deseja destacar. A Comissão Editorial não aceitará originais apresentados com outras configurações. A revista não devolve os originais submetidos à apreciação. 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CONTENTS EDITORIAL 7 ARTICLES Monteiro Lobato and his readers: books to teach, read to learn Marco Antonio Branco Edreira 9 Education and civilianship: the scouting in Minas Gerais (1926-1930) Adalson de Oliveira Nascimento 43 Diderot and the political sense of mathematical education Maria Laura Magalhães Gomes 75 Cartilha maternal and its acculturation marks Iole Maria Faviero Trindade The programs of study of the public elementary school in Paraná: read and write, for God and the State Ariclê Vechia The Universitarian Reform and the creation of the Faculties of Education Macioniro Celeste Filho Leowigildo Martins de Mello and the organization of teacher’s education in Cuiabá Elizabeth Figueredo de Sá Poubel e Silva 109 135 161 189 BOOK REVIEWS Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária By André Luiz Paulilo 215 Relações de força: história, retórica, prova By Irlen Antônio Gonçalves 223 GUIDES FOR AUTHORS 229