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Pierre Guibentif, Reinhard Naumann, Rui Namorado, Sérgio Sousa Pinto, Vital Moreira, Vitalino Canas
Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 69/70 – Primavera/Verão 2010
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Apoio à Redacção: Sofia Nascimento
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ÍNDICE
O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL LIBERALISMO
A Esquerda como Problema e como Esperança
(Sobre a Crise de Imagem da Esquerda)
Eduardo Lourenço
7
República Moderna e Responsabilidade Social
Guilherme d’Oliveira Martins
19
Novas e Velhas Dimensões do Conflito Político
André Freire
27
A Crise da Liberal Democracia
Joaquim Jorge Veiguinha
43
O Futuro da Terceira Via: Tendências e Alternativas,
na Perspectiva de um Socialismo Cognitivo
José Nuno Lacerda da Fonseca
67
Democracia e Economia Social: Que Futuro?
Glória Rebelo
85
PARLAMENTO: A I REPÚBLICA E NÓS
Nós e a Primeira República
Augusto Santos Silva
93
O Partido Socialista nos Primeiros Anos da Ditadura
Constantino Oliveira Gonçalves
109
Afonso Costa e o Socialismo Integral
José Reis Santos
141
Bernardino Machado Visto por Luís Morote
António Ventura
161
MEMÓRIA
In Memoriam – Alfredo (Augusto) Margarido (1928-2010)
Fernando Pereira Marques
173
O Direito ao Sonho
Alfredo Margarido
175
Memória e Futuro dos Campos de Concentração
Alfredo Margarido
181
Os Malefícios do Luso-Tropicalismo
Alfredo Margarido
185
IDEIAS
191
Do Jovem Socialista ao “Elder Statesman”
– A Relação de Willy Brandt com os EUA
Karsten D. Voigt
197
Superar a Crise Global do Ambiente
Pedro Miguel Cardoso
213 Segurança, Ameaças e Respostas: O Ciberterrorismo
Carolina Antunes Barata Pires Varela
CULTURA
229 Carta Aberta à Ministra da Cultura
Fernando Mora Ramos
235 Ecos de um Perpétuo Desvanecimento
João Soares Santos
LIVROS
253 A Esquerda e o Socialismo
Joaquim Jorge Veiguinha
257 Para onde Vai a Social-Democracia?
Joaquim Jorge Veiguinha
265 As Direitas Radicais Portuguesas no Fim do Estado Novo
Beja Santos
269 A Odisseia do Consumidor que Queria Viver sem Causar Impacte Ambiental
Beja Santos
273 Estranho Quotidiano
Beja Santos
277 Joaquim Jorge Veiguinha – Inquérito ao Capitalismo Realmente Existente
Porto: Edições Afrontamento, 2009
Fernando Pereira Marques
COLABORAM NESTE NÚMERO
Eduardo Lourenço – Ensaísta
Guilherme d’Oliveira Martins – Jurista e Presidente do Tribunal de Contas
André Freire – Professor Universitário
Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta
José Nuno Lacerda da Fonseca – Engenheiro Agrónomo
Glória Rebelo – Professora Universitária
Constantino Oliveira Gonçalves – Investigador
Augusto Santos Silva – Sociólogo
José Reis Santos – Historiador
António Ventura – Professor Universitário
Fernando Pereira Marques – Professor Universitário
Alfredo Margarido – Professor Universitário
Karsten D. Voigt – Especialista em Questões de Segurança e Defesa
Carolina Antunes Barata Pires Varela – Professora Universitária
Pedro Miguel Cardoso – Formando da Fundação Res Publica
Fernando Mora Ramos – Encenador
João Soares Santos – Ensaísta
Beja Santos – Sociólogo
Carlos Brito – Cartoonista
O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL-LIBERALISMO
A Esquerda como problema e como esperança
(Sobre a crise de imagem da Esquerda)1
Eduardo Lourenço
Ao contrário do que é costume pensar-se, a tragédia não resulta de um
conflito entre o bem e o mal, mas do conflito entre duas ordens de bens.
Hegel
N
ão se pode ganhar uma partida de xadrez sem que o adversário
cometa erros. Esta máxima não é apenas verdadeira para o mais
subtil e cruel dos jogos que os homens inventaram. Se neste
momento a Esquerda europeia está, ou parece estar, numa
situação particularmente melindrosa, é talvez apenas por ter imaginado que
os erros ou pecados políticos, sociais e económicos só podiam ser cometidos
pela Direita ou, talvez melhor, que a Direita era a expressão, nessa ordem,
da História como pecado. Consciente e convicta — não sem fundas razões,
que convém repensar — de representar a consciência aguda da injustiça, da
opressão, do privilégio inaceitável, a Esquerda viveu-se durante os quase dois
séculos da sua manifestação histórica — justamente aquela que se materializou
na Convenção como primeiro movimento revolucionário moderno — como se
estivesse imune, por princípio, ao erro, ao desvio, à desfiguração, ou até à
traição ao ideário transparente com que se definiu.
Quando erros, desvios ou horrores demasiado gritantes afectaram esta
ideia imaculada de si mesma, a Esquerda tinha sempre a possibilidade de os
inscrever na categoria do acidental, do mal necessário, da inexperiência, ou
considerá-los como resposta à violência nunca extinta ou ao maquiavelismo
ingénito de um adversário, descrito de uma vez por todas como anti-História.
Este comportamento voluntarista, necessário para fazer face a essa Direita
— expressão efectiva de um poder discriminatório, dispensado de fornecer
as suas credenciais, simples emanação das forças hegemónicas no domínio
da produção, do seu usufruto social, legitimado ao nível do simbólico e do
1
Publicado em A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?. Lisboa: Gradiva, 2009, pp. 35-51. O texto foi originalmente redigido em 1986, mas mantém toda a sua actualidade.
A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA
cultural por uma ideologia que nem precisava de se exprimir, a tal ponto
se confundia com a natureza da vida social — acabou por perverter aos poucos
e enfraquecer por dentro a razão de ser de uma Esquerda que nascera como
consciência crítica e legítima desse poder. É necessário e urgente numa
Europa ao mesmo tempo transbordante de riqueza, de ciência e tecnologia
de ponta, e em crise, que a Esquerda, tal como ela nasceu da sua história
implacável, recupere, não a inocência e a transparência de sonho com que se pôde
teorizar e existir enquanto a Direita era a expressão histórica de desigualdades
sociais, de violência económica, social e política, palpáveis e visíveis a olho
nu, mas a sua função de contrapoder, e até de antipoder mesmo no poder.
Bem o precisa num momento em que sob roupagem mais sedutora, servida
por efeitos especiais dignos de um super-Spielberg, uma Direita repintada,
repensada, eficaz, se apresenta no palco da História contemporânea como a
solução inevitável e quase inelutável do nosso Destino.
Como foi possível que, num século, aquilo que para a intelligentsia
hegemónica da Europa era o espectro ou o somatório político e social de uma
visão alienante ou conservadora da sociedade, se tenha transformado, não
apenas em mal menor, mas, numa perspectiva dinâmica, em sintonia com
o ritmo imprevisível e fantástico de uma criatividade científica e tecnológica
de um género novo, recuperando, num passe de mágica, a referência mesma da
liberdade — de empreender, de imaginar, de surpreender sem fim — que é hoje
glosado em todos os tons pelos arautos de um liberalismo proclamado como
a essência mesma da Modernidade? Que sentido tem ainda o conceito e a
realidade da Esquerda num mundo que parece uma imensa máquina desejante,
sem autêntico sujeito, num mundo que produz o espectáculo do seu presente
com as cores do fantástico distribuído noite e dia a domicílio? Que vazio
pode preencher o ideal, tradicionalmente exigente e ascético de uma Esquerda
preocupada pela solução das misérias do mundo, quando esta Direita
europeia ou ocidental dos fins do nosso século tem os instrumentos e os
poderes de converter até essa mesma miséria em distracção e espectáculo?
Não é apenas na ordem económica e na ordem política que a imagem de
marca da Esquerda, e em particular do Socialismo, aceite, e imaginada ainda
há uns vinte anos como a mais adequada a uma solução histórica e social
conciliadora da Modernidade e da Liberdade, sofre neste momento um
eclipse manifesto no Ocidente europeu. Se na Península Ibérica isso se sente
EDUARDO LOURENÇO
ou se vê menos, talvez o devamos à distância que nos protege do centro do
ciclone neodireitista ou simplesmente porque o sol da História já não bate
de chapa no nosso rosto. Onde estávamos habituados a vê-lo brilhar sem
problemas, onde a Esquerda era escrita ou inscrição na História, a sua luz
empalideceu e alguns já a festejam como extinta. Não apenas os adversários
de sempre, a eterna e nunca defunta Direita orgânica que de Edmund Burke a
Joseph de Maistre, de Maurras a Salazar teorizou com talento a contra-revolução,
mas até aqueles que há uma dúzia de anos consideravam honroso rotularem-se
de sociais-democratas, se passaram com armas e bagagens para o, na aparência,
irresistível liberalismo. Quer dizer, mesmo na sua encarnação mais suave
de tigre doméstico, a Esquerda em geral desde a social-democracia àquela
que não renega a sua vocação socialista, vive horas difíceis, exceptuando
a sempre excepcional Suécia. Assim, pondo de parte aquelas áreas de
subdesenvolvimento económico e tecnológico, ou de herança não superada
de desenvolvimento tardio, como em muitos países da Ásia ou da América
Latina, a perspectiva de esquerda democrática de tipo europeu, sobretudo
sob a forma socialista, ou não existe, ou existe sob formas tão caricaturais
que nem é preciso ser reaccionário para a recusar como solução económica,
ideológica, política ou cultural, com um mínimo de futuro ou, pelo menos,
de espaço e aceitação. É a perspectiva de uma Esquerda democrática realmente
uma mera ilusão consoladora, um mito sem viabilidade histórica neste fim
do século xx?
A sessenta anos de distância, compreende-se hoje melhor, ou de
outra maneira, a famigerada fórmula estalinista do Socialismo num só país que
sintetizava, ao menos, a evidência de que, como projecto universal, a remoção
plausível das estruturas capitalistas do mundo mais desenvolvido era inviável.
Conhece-se, ou imaginamos conhecer, o preço histórico do famoso «Socialismo
num só país» que aliás era (é) mais do que um país: um continente potencial
onde podia ser levada até às últimas consequências uma escolha que, se não
mudou (ainda?) a face da História, a modificou e deslocou para horizontes
imprevisíveis. Maldito, inaceitável, contestado ou contestável em função de
uma outra tradição europeia de tipo socialista ou liberal, esse Socialismo
teve o mérito de existir como referência ideológica e caução histórica de
uma potência mundial que nestes últimos 70 anos se constituiu como um
império perto do qual o da Roma antiga ou da Inglaterra moderna pareciam
A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA
uma construção bucólica. Todas as Helenas d’Encausse, todos os Emmanuéis
Todd, mesmo o genial Alexandre Soljenitsine, puderam denunciar os defeitos
visíveis ou invisíveis dessa potência oficialmente socialista sem que tal império
se perspective como éclaté, ou em vias de deslocação interna ou externa. É
no interior dos seus limites, nas fronteiras das suas próprias possibilidades
histórico-militares, políticas e económicas, que esse Socialismo imperial ou esse
Imperialismo socialista encontra os seus obstáculos sérios e a sua utopia, geradora
de monstros e monstruosidades, aos poucos se corrige ou adoça, mas sem dar
mostras de se querer converter àquele modelo democrático que é coessencial à
tradição e ao projecto do Socialismo e da Esquerda na sua versão ocidental. Está este
condenado a estiolar-se entre a bigorna ultra-sofisticada do capitalismo e o
martelo rude do comunismo?
Se a versão socialista na sua encarnação soviética ou para-soviética perdeu
realmente a sua capacidade de fascínio e de exemplo, só no Ocidente e,
em particular, na expressão cultural hegemónica que lhe dava sentido, tal
versão se converteu no símbolo do inaceitável e todo o Ocidente politicamente
organizado e culturalmente significativo se encontra mobilizado noite e dia
para a recusar, refutar ou conter nos seus limites orientais, o paradoxo é que
um tal descrédito não redundou em reforço da versão não-soviética ou anti-soviética
do socialismo ocidental. Podemos — e devemos — lamentá-lo, mas o que não
há dúvida é que o Socialismo à europeia, o celebrado Socialismo de rosto humano,
não suscita hoje aquele entusiasmo ou pelo menos aquela esperança viva que
era ainda comum nos anos 60, a que emprestou a sua dinâmica a Maio de
68 e de algum modo ajudou a jovem democracia portuguesa dos anos 70 a
imaginar que um tal Socialismo era o seu óbvio e salutar destino. Tudo se passa
como se a derrocada cultural de referência marxista tivesse também ferido de
morte o outro Socialismo ou, pelo menos, o tivesse deixado sem alicerce teórico
convincente. E esta é, afinal, a tragédia da Esquerda, a nossa tragédia, aquela
que não devemos esconder. Ao contrário, devemos expô-da em plena luz, para
lhe encontrar o remédio e lhe insuflar um espírito autónomo, uma alma sem
a qual, por mais razões que nos assistam, essa Esquerda, esta que estamos
revisitando, será sempre uma perspectiva frágil, vulnerável, vivendo mais do que
recusa do que daquilo que propõe como solução histórica à altura dos tempos
que vivemos, como diria Ortega y Gasset.
Com efeito, não se creia que o actual crepúsculo da ideia e da prática
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EDUARDO LOURENÇO
socialistas em países altamente desenvolvidos do Ocidente, como a Inglaterra,
a Alemanha, a França, a Itália ou a Áustria, é um mero acidente de ordem
política, ao fim e ao cabo natural no quadro da democracia onde a alternância
no poder é uma instituição. O que está em crise não é o Socialismo apenas
como aposta política ritualizada nesse horizonte de real-pseudo-alternância (a
direita europeia nunca aceitou tal alternância, que é uma ilusão da «Esquerda»,
e nem de toda...). O que está em causa nem é sequer o Socialismo como utopia
ou perspectiva mais ou menos irrealista na ordem económica e, em especial,
na da economia-mundo, completamente revolucionada, da esfera ocidental. O
que está em crise é a ideia mesma do Socialismo — ou de uma certa tradição
socialista — e não vale a pena supor que iniciativas tão necessárias, tão urgentes
e tão vitais como aquela que aqui nos congrega, possam ter um começo com
sucesso sem o exame radical e incomplacente dessa crise da ideia e de ideal no
Ocidente. Sem esse exame, sem a reformulação a que fatalmente dará lugar,
não será possível mobilizar a fundo, e não apenas no quadro empírico da mera
política a prazo, milhões de homens e mulheres — todos nós — condenados
a viver passivamente uma outra espécie de crise — a crise estrutural de uma
sociedade em mutação vertiginosa — para a qual, durante mais de um século
imaginámos — e no fundo com razão — que o socialismo seria ao mesmo
tempo a leitura adequada e a solução histórica inevitável, razoável, racional
e libertadora.
Invejo, não só por isso, mas também por isso, os meus camaradas socialistas
que vivem em Portugal. Nem sempre estar na margem desta Europa onde
sempre imaginámos que a História com maiúscula se fazia, ou escrevia (em
especial, a da luta nunca desmentida por uma sociedade onde as relações
de classe fossem mais igualitárias ou menos injustas que na Península), é
uma desvantagem. Talvez nem os mais bem informados dos portugueses — e
todos o somos muito — tenham uma ideia realmente exacta da degradação, por
assim dizer semântica, da ideia, do modelo, da própria esperança com as
cores do Socialismo nesse país donde alguns (entre eles eu mesmo) esperavam
a partir de 1981 que a versão europeia do Socialismo ecoasse ou reforçasse as forças
de esquerda que se reclamavam do mesmo ou análogo ideário. Em Portugal,
caros camaradas, nós temos o privilégio de viver ainda o nosso estatuto de
homens de esquerda ou de socialistas, numa espécie de felicidade semelhante à
dos sonhos. À Revolução o devemos, naturalmente, ao capital de intervenção
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A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA
social então acumulado. A nossa Revolução serviu realmente para alguma
coisa de irreversível, mas não é possível crer cegamente que a nossa situação
relativamente confortável de homens de Esquerda e de socialistas — refiro-me à nossa recuperação da dignidade cívica, à sua expressão política, à
esperança de poder intervir com êxito no campo social — possa manter-se
sem vigilância extrema e renovação profunda neste cantinho preservado de
uma Europa que neste momento não é só pouco socialista, mas militante e
determinadamente anti-socialista.
O caso espanhol é uma ilusão. A alacridade do «Socialismo espanhol»,
o seu sucesso político, com tudo o que significa de positivo como
autodemocratização, só existe em função de um acordo tácito de todas as forças
do país vizinho de fazer de conta que é socialista a hábil versão de democracia
social em registo mínimo que a Espanha teve o bom senso ou a necessidade
de adoptar. Só não há crise do Socialismo europeu onde nunca houve, nem há,
um mínimo de mudança social inspirada no ideal socialista ou no que, até
hoje, passava por sê-lo. Nesses países nunca foi preciso meter o Socialismo
na gaveta porque nunca lá tinha estado. Como muitos de nós, certamente,
mas com a liberdade que me dava a minha irresponsabilidade militante,
indignei-me quando o antigo secretário-geral do PS e actual Presidente da
República empregou a fórmula tão famosa. Era apenas um gesto profético
ou uma intuição justa dos ventos da História que já não sopravam a favor do
Socialismo e não melhoraram muito desde então. É a Europa inteira — esta
Europa que inventou a noção de Socialismo e o sonho que nela existe — que
tenta rejeitar o Socialismo europeu, ou para sermos justos, que empurra o
que resta dele — e é ainda considerável — (esperemos que momentaneamente)
para a célebre caixa do lixo da História.
Não me atreveria a tão escandalosa alusão aos avatares recentes e deprimentes
do Socialismo como linha de fuga da Esquerda, se não pensasse que numa
outra perspectiva, mais séria, mais preparada, apesar das aparências em
contrário, o socialismo não constituísse ainda, nesta sociedade em mutação,
uma ideologia, uma prática da análise e intervenção social e uma leitura da
aventura humana, susceptível de credibilidade, de renovação e inventividade.
Em suma, para além da sua actual expressão política, uma cultura e, sobretudo,
uma aventura, quer dizer, uma opção sobre o imprevisível. Quero dizer,
penso, sobretudo, que é possível rectificar seriamente a actual imagem
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EDUARDO LOURENÇO
que a Direita modernista conseguiu, com algum sucesso, dar da Esquerda
e do Socialismo como soluções feridas de morte pelo seu arcaísmo. Nenhum
argumento é hoje utilizado com maior sucesso, em certos países — e, em
particular, em França, mãe de todas as modas — do que esse do arcaísmo, do
envelhecimento de uma proposta que, segundo ela, já nada diz nem pode
dizer a uma juventude que mal tem tempo para aderir, fruir, explorar e
explodir a sua energia desocupada num mundo que se oferece com um
presente inesgotável, mundo (ocidental) na aparência aproblemático, em que
a urgência e as necessidades vitais das gerações anteriores se encontram como
parecem postas entre parênteses e, por isso mesmo, tudo quanto é de ordem
ideológica resulta sem interesse nem função.
Tudo se passaria como se a essência mesma da cultura ocidental enquanto cultura
do espectáculo e do jogo, ou mesmo como cultura de uma civilização potencialmente
do não-trabalho, não pudesse sintonizar ou fosse incompatível com o antigo perfil
da exigência socialista de luta por uma sociedade mais racional, mais justa e,
pensava-se, mais livre. A liberdade, na sua forma imediata de não-responsabilidade, de
expressão mágica da pulsão jovem, é o que as novas gerações encontram, por
assim dizer, no berço, malgrado a angústia latente ou o pesadelo adiado da não
inserção social futura, que consciente ou inconscientemente as pode trazer à rua,
numa festa apolítica de um género novo, como anteontem em Paris e Madrid.
E o que explica que a paixão mítica, o sinal de baptismo da Esquerda europeia
e do socialismo na sua origem — a luta pela liberdade — tenha sido recuperada por
um pretenso liberalismo que ainda há cinquenta anos a Igreja condenava
como expressão da violência histórica de um capitalismo sem fé nem lei,
atentatória da dignidade Humana. Esta espectacular rasura da própria razão
de ser da Esquerda seria um mistério ou pura mistificação — o que também
é — se a única encarnação do «Socialismo» como expressão universal que
conhecemos não tivesse alargado ao máximo a contradição entre o ideal
de justiça social e de liberdade, sem que mesmo o sacrifício deste último
servisse de contrapeso ao sucesso do primeiro. No contexto de neutralização e
apagamento da ideia de liberdade no interior de um sistema ligado à versão
leninista-estalinista do Socialismo, a superioridade ética, a eficácia cultural do
discurso da Esquerda herdado do século XÍX, tinha fatalmente de perder o
seu condão e a sua magia. Primeiro, sob a forma virulenta ou sarcástica da
ideia mesma de liberdade (reduzida a conceito formal ou vazio) como no
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A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA
fascismo e no totalitarismo, e hoje, como arma-boomerang contra essa Esquerda
que se julgava identificada com ela para a eternidade.
É o Socialismo e a Esquerda em geral, uma ideologia historicamente
esvaziada, desconsiderada pelos seus efeitos e culturalmente morta e
indefensável? As revistas de luxo do liberalismo triunfante celebram todas
as semanas pelas plumas ágeis dos émulos indigentes dos Pauwels, dos Guy
Sorman à la page, dos próprios tenores da antiga ultra-Esquerda convertidos
pelos seus inimigos, Glucksmann e companhia, o descalabro, o fim dà
hegemonia cultural da Esquerda. Isto mostra ao menos até que ponto era
natural — e talvez demasiado óbvio e fácil — desde os bons tempos de Michelet,
de Hugo, de Tolstoi, de Brecht, de Thomas Mann, até aos de Malraux, Sartre
ou Gunter Grass, para não falar dos nossos Herculano, Antero, Eça, Oliveira
Martins ou Sérgio — não ser de Direita, tão flagrante era então a injustiça
social, a arrogância de casta ou de classe, a loucura objectiva e guerreira da
classe dirigente da alta burguesia europeia. Mesmo, os grandes homens de
«Direita» na ordem política, os Chateaubriand, os Balzac e os Proust, eram
de «Esquerda» na sua visão impiedosa da sociedade inumana que os cercava.
As excepções contam-se pelos dedos.
Alguma vez teria de chegar o tempo em que homens de Esquerda se
arrependeriam de o ser e, depois de algum namoro político com a Direita,
acabariam por ser os dignos faróis de uma nova cultura apóstata na demolição
da mitologia cultural de esquerda e, sobretudo, da de tradição socialista.
Estes últimos cinco anos, naquela mesma pátria que foi a da origem do
ideário socialista e terra de eleição das primeiras tentativas de inscrição prática
na vida social — 1848, comuna, leis sociais de 1936, nacionalizações do pós-guerra — assistimos a uma autêntica contra-revolução política e cultural, a uma
demolição que se deseja irreversível, não só de uma certa mitologia cultural
de Esquerda, mas de muitas conquistas mais exemplares e de irradiação
universal que desde há um século traziam a marca inequívoca do combate
ideológico e social da Esquerda. Escola laica gratuita, ensino secundário e
universitário acessível, em princípio, a todos, conquistas sindicais e sociais
que pareciam irreversíveis, tudo tem sido passado pelo crivo e pela crítica
eufórica da era do liberalismo-modelo USA, de súbito revestido das cores
adoráveis da liberdade, da defesa do indivíduo e da sua criatividade em todos
os domínios, ficando para a Esquerda o culto fúnebre do Estado como asilo
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EDUARDO LOURENÇO
ou caixa de previdência contra os riscos de uma existência digna de ser vivida,
máquina niveladora por baixo, Estado Providência pago em bilhetes de
prisão voluntária, resumo e explicação para uma sociedade decadente que, depois
de ter dominado e explorado o universo, quer dormir nos lençóis do baixo-império da droga na rua, ou da cultura como droga de luxo obrigatório e
álibi supremo da irresponsabilidade social e da total permissividade.
Sejamos justos: algumas destas críticas a um modelo de sociedade, mal ou
bem designado de social-democrata ou coberto com a referência da Esquerda,
não são totalmente infundadas. Por generosidade excessiva, por utopismo, a
esquerda tem muitas vezes tendência a imaginar que pode ir de Wagon-lit para
um futuro com as cores do Socialismo. Durante um século, a Esquerda como
cultura teve tendência a identificar-se com a História, a pensar essa história sua
como destino transparente e óbvio da humanidade e a conviver com ela como se
fosse sua amante complacente ou até criada de quarto. Não é de todo mau que
acordemos deste erotismo histórico-ideológico, desta ilusão de que é natural e fácil ser
esquerda, quando o contrário é que é exacto: é difícil, não é natural, e por não ser
nem fácil nem natural é que a Esquerda não é a filha, nem a amante querida
da História, mas a luta, mais que milenária, para que a História que não existe
senão como sombra das lutas e dos combates humanos se torne cada vez mais
humana. É a Direita nas suas históricas versões que ê natural, ou que se pensa
como conforme à Natureza, como expressão de uma vontade de poderio, de
triunfo da força sobre a fraqueza, como fazendo corpo com os privilégios de
toda a espécie, sejam de nascimento, de fortuna, de casta, de raça, de cor — ou
mesmo de valores positivos como os da inteligência, do talento, do génio ou da
beleza, mas assumidos e vividos como formas de privilégio social e linha de separação
da humanidade entre si. A Direita, nos seus expoentes clássicos, fez sempre o
processo do ressentimento, da inveja, da tentativa de inversão da desigualdade natural
dos homens, mas é a Direita o lugar histórico da divisão humana, é ela a instauradora
dos antagonismos e das barreiras, o lugar do poder por direito divino ou seus
avatares humanos, é ela a guerra instalada no corpo social e é contra essa pretensão
que a Esquerda se insurgiu ao longo dos séculos, demolindo sempre que pôde
essas barreiras puramente históricas, nada naturais, que a humanidade, na sua
dupla, face, instituiu dentro de si. Se é a isto que se chama Utopia, a Esquerda
é utópica e só poderá deixar de o ser quando a Direita deixar de se considerar
como a natureza social, o natural da sociedade.
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A ESQUERDA COMO PROBLEMA E COMO ESPERANÇA
Ao lado da boa consciência ou da mitologia cultural que a Esquerda
efectivamente gerou à medida que o seu combate cultural e político modificava
a realidade social e a face da História, a da Direita é uma montanha maciça,
inexpugnável. No fundo, o que realmente separa, histórica, ideológica,
política e metafisicamente, a Direita da Esquerda — apesar dos esforços que
a Esquerda, e a Esquerda só, fez ao longo dos séculos para unir em si como um
destino, único a História humana — é que a Direita é uma realidade sociológica,
uma expressão histórica e política da humanidade que não se pode realmente
pensar sem pôr em causa os fundamentos da sua boa consciência e da sua
legitimidade. Por isso foram vãos e gorados todos os esforços, todas as
astúcias, mesmo as mais sofisticadas, para outorgar uma dignidade teórica,
uma respeitabilidade social, à nova cultura, ao novo discurso neodireitista,
pseudoliberal, que imagina reenviar para um passado sem futuro plausível, a
história da Esquerda, e a Esquerda como História.
O único inimigo que a Esquerda tem, nas suas diversas modalidades, é
ela mesma enquanto inconsequente, enquanto esquecimento da sua própria
aventura, que nunca foi fácil nem mãe de facilidades, mas exigente, dura,
contraditória, enigmática, até porque a Direita, quer dizer, a tentação do
poderio, a ilusão de deter com a verdade que tem a Verdade toda, com a
cultura que é, o monopólio da cultura, está também aninhada no seu coração.
A luta pela Esquerda é também a luta contra essa Direita em nós. A outra, a que
nos combate por ser essa a sua fatalidade, por mais sinistra ou sedutora que
se apresente, nem sequer devia ser o objecto principal das nossas ocupações
e preocupações. Nesse sentido, e profundamente, como da Igreja disse um
dia João XXIII, a Esquerda não tem inimigos. Ela é o lugar histórico da tolerância, a
vitória lenta mas constante do diálogo imposto aos que não querem ou não
precisam de dialogar, ela é ou deve ser o lugar da máxima transparência de que uma
sociedade é capaz e se, por graça dos deuses, aqueles que se dizem de Direita ou
são de Direita partilham deste espaço de diálogo, são também, saibam-no ou
não, povo de Esquerda. Mas isso é problema dela e não nosso. O nosso, aqui,
de homens assumidamente de Esquerda democrática, num tempo na aparência
pouco propício, é o de lembrar que esse espaço de diálogo intra-humano
é o da esperança, não apenas meramente conjectural e política, mas de uma
esperança histórica, de uma solução plausível para um mundo de paz armado até
às estrelas, para uma humanidade dividida em duas pela presença numa delas
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EDUARDO LOURENÇO
dos espectros medievais da fome, da ignorância e da repressão, e na outra
pelo triunfo de uma Disneylândia de pacotilha, onde já não distinguimos
com um mínimo de senso o que nos perde e o que nos salva. O que se
espera de um modesto encontro como o nosso, de um país modesto mas
herdeiro de grande passado não é que salvemos o mundo que parece ninguém
estar em condições de salvar. O que se espera é que pensemos e repensemos a
Esquerda portuguesa na sua virtualidade dialogante e conciliadora, unificandonos por dentro antes de nos oferecer desarmados a unanimismos sem unidade
possível nem desejável. Se aqui recomeçamos esse trabalho de Penélope,
herdeiro do mais antigo e sempre inacabado combate do povo de Esquerda
através da História, ou simplesmente do Povo na sua definição de simples e
quotidiana humanidade em busca de si mesma, não teremos perdido nem o
nosso tempo nem o tempo de todos.
17
República Moderna e Responsabilidade Social
Guilherme d’Oliveira Martins
T
ornou-se quase um lugar-comum falar da crise do modelo
social-democrata e do socialismo democrático. Já em 1989
o tema veio à baila e agora, depois da crise de 2008, volta a
falar-se disso. Do que se trata é de cair na simplificação sobre
o Estado democrático moderno, a partir da ideia errónea segundo a qual
o Estado-Providência estaria esgotado e sem capacidade de regerneração.
É verdade que há uma crise do Estado-Providência, já diagnosticada há
muito por Pierre Rosanvallon e por Jurgen Habermas, no entanto essa
situação, decorrente da evolução demográfica do ocidente e da insustentabilidade dos sistemas universalistas de cobertura dos riscos sociais não pode
dar lugar à desistência relativamente às obrigações sociais ante o risco do
fundamentalismo do mercado e da ilusão contabilística que culminou no
“crash” do Outono de 2008. Há novas exigências que importa considerar
e que obrigam a que o Estado social contemporâneo se reforme a partir da
recomposição do Estado-Providência em ligação como o novo conceito de
Sociedade-Providência.
Os acontecimentos recentes no mundo da economia e das finanças obrigam
a que tiremos lições no campo da organização da sociedade. Depois dos “trinta
gloriosos anos” (1945-75) e da transição dos anos oitenta e noventa dominada
pela massificação e popularização da revolução tecnológica e pela ocorrência
da chamada “bolha imobiliária”, estamos chegados a um momento em que
é indispensável repensar os fundamentos das economias, sem a tentação de
recorrer a receitas uniformizadas nem ao erro de persistir nas soluções que
conduziram à grave situação a que chegámos. O fundamentalismo do mercado
revela-se incapaz de responder às exigências do desenvolvimento humano.
O estatismo centralizado e burocrático não permite a eficiência económica
e social e a equidade. Os modelos mistos, que se multiplicam, apresentam
tal variedade de soluções, que, só por si, não constituem respostas aos
problemas actuais – pelo que se torna necessário aproveitar a sua plasticidade
19
REPÚBLICA MODERNA E RESPONSABILIDADE SOCIAL
para que correspondam à complexidade das novas situações. Ao contrário
do que possa parecer à primeira vista, as mudanças a introduzir no contrato
social obrigam a uma tomada de consciência sobre a importância da coesão
económica, social e territorial, da confiança e do capital social, que terão de
ser salvaguardados, através da consideração das circunstâncias que mudam
e dos novos factores que a cada passo se manifestam. No Ano Europeu de
Luta contra a Pobreza e Exclusão Social (2010) estas questões têm de ser
pensadas, não isolando o tema da pobreza e da exclusão, mas integrando-o
na concepção e concretização das políticas públicas e das respostas sociais.
Nas sociedades europeias desenvolvidas, o Estado Social é afectado pela
evolução demográfica, pela descida das taxas de natalidade, pelo aumento
da esperança de vida, pelo envelhecimento da população e pela alteração
da relação entre os contribuintes e os beneficiários dos sistemas de cobertura de riscos sociais. Nas sociedades menos desenvolvidas as necessidades
fundamentais não se encontram satisfeitas e a pobreza, a fome, a doença e a
ignorância pesam tragicamente. Como afirma o próprio Papa Bento XVI:
«Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países
ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em
áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com
perduráveis situações de miséria desumanizadora. Continua «o escândalo
de desproporções revoltantes». Infelizmente a corrupção e a ilegalidade
estão presentes tanto no comportamento de sujeitos económicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No
número de quantos não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores,
contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também grupos de
produção local. As ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das
suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia
dos sujeitos doadores como na dos beneficiários.» (Caritas in Veritate, 22).
Se lermos autores como Norberto Bobbio, John Rawls, Michael Walzer e
Jurgen Habermas depressa percebemos que este «escândalo de desproporções revoltantes» obriga à acção no sentido da democracia e da justiça.
O fenómeno da fragmentação social, que é transversal, determina a
diferenciação e a complexidade dos problemas da sociedade com raízes
diversificadas – o desemprego estrutural nas faixas etárias mais elevadas a que
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GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
se soma o desemprego dos mais jovens, com especial incidência para os que
têm menores qualificações. A quebra das taxas de poupança (muito significativa em Portugal) e o aumento do endividamento geram fragilidades no
desenvolvimento das economias e nas perspectivas de crescimento potencial.
O mercado, só por si, e a lógica produtivista não têm respostas para estes
novos problemas.
As economias dos serviços não geram os recursos indispensáveis para a
sustentabilidade do desenvolvimento. O aumento das desigualdades e o agravamento das disparidades sociais exigem a adopção de medidas que reforcem
a justiça distributiva – ligando a livre iniciativa e a responsabilidade social. As
economias mistas têm de recusar, a um tempo, o excesso do centralismo do
Estado e a ilusão da concorrência mercantil – a propriedade privada, a livre
iniciativa económica, o respeito pelo mercado têm de ser completados pela
iniciativa social e pela economia solidária, que terão de encontrar instrumentos que favoreçam a criação, a inovação e a criatividade.
A crise do Estado-providência, a um tempo financeira, social e política, obriga a encontrar, através da diferenciação positiva, mecanismos de
repartição que garantam a igualdade de oportunidades e a correcção das desigualdades. A lógica universalista indiferenciada não permite corresponder às
situações reais de carência. A pobreza e a exclusão social obrigam à procura
das novas situações de injustiça, uma vez que a sociedade não descobre o
fenómeno espontaneamente. Daí a exigência de repensar o Estado Social,
a Economia Social e a Responsabilidade Partilhada. Mais iniciativa social é
condição necessária para responder às dificuldades, à pobreza e à exclusão
hoje sentidas. Como poderemos ficar indiferentes à persistência da grande
pobreza mundial, aos mecanismos injustos de apropriação da riqueza produzida, à perda ou ao enfraquecimento dos valores humanos básicos de verdade,
lealdade nos negócios, solidariedade, cooperação, serviço à colectividade ou
defesa dos mais fracos?
Em “La Legitimité Démocratique”, Pierre Rosanvallon (Seuil, 2008)
põe-nos perante os problemas suscitados pela institucionalização da democracia na sociedade contemporânea. Mais do que o tradicional dilema entre
democracia representativa e democracia participativa, Rosanvallon analisa
a sociedade complexa dos dias de hoje, à luz das mudanças ocorridas nas
últimas décadas, pondo sobre a mesa as questões suscitadas pela legitimação
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REPÚBLICA MODERNA E RESPONSABILIDADE SOCIAL
cidadã. O governo de maioria deve ser prosaicamente compreendido como
uma «convenção empírica». E essa convenção repousa numa legitimidade
imperfeita, que precisa de ser confrontada com outras formas de legitimação
democrática. Se há dualismo nas instituições (o consenso e o conflito), tem
de haver também dois pólos estruturantes da democracia como governo. As
reformas estruturais devem buscar o consenso e a durabilidade. De facto,
importa compatibilizar o geral e o particular, o global e o local – de um lado,
a democracia das decisões (decorrente da legitimidade do voto) e de outro a
democracia das condutas (ligada à legitimidade do exercício e à cidadania). E
é assim que a sociedade dos indivíduos livres e iguais tem de se articular com
um regime de soberania colectiva, a partir da clarificação da democracia das
decisões e da democracia das condutas. A democracia reúne, desse modo,
as múltiplas histórias de liberdade, de emancipação e de autonomia, que
marcaram a experiência humana. Essas experiências são fundamentais, em
cada um dos seus contributos e na sua diversidade. Não bastam fórmulas vagas
(poder do povo, soberania popular) nem referências a uma oposição entre
poder colectivo e garantia das liberdades pessoais. É fundamental perceber
a complexidade social, e ver a democracia como ordem de uma actividade
cívica, de um regime político, de uma forma de sociedade e de um modo
de governo. E o certo é que essa relação estabelece-se de modo separado,
concorrente ou simultâneo. Ora, a complexidade social obriga a integrar
estes diferentes aspectos a fim de que a legitimação se aperfeiçoe em nome da
representatividade, da participação, da confiança, da coesão e da eficiência.
Os mecanismos públicos são importantes, mas não podem ser exclusivamente estatais – Estado e sociedade civil precisam de se completar, através
de uma ideia renovada de “serviço público” não confundível com “serviço
estatal” nem redutível à opção Estado / mercado. A noção de “serviço público”
não é confundível com serviço do Estado – pelo que o Estado democrático
e de direito deve fortalecer-se e consolidar-se através das iniciativas sociais
autónomas e voluntárias. A justiça distributiva tem de se ligar à ideia de
diferenciação positiva – uma vez que quem é mais carenciado deve ser mais
apoiado, devendo a ideia de partilha de recursos prevalecer sobre o consumo
egoísta e o desperdício. As desigualdades sociais, a pobreza e a exclusão devem
ser combatidas através de instrumentos públicos e de iniciativas solidárias, do
sistema fiscal, da subsidiariedade, da participação activa dos cidadãos – quer
22
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
para defesa dos recursos disponíveis quer para salvaguarda da justiça, da
coesão e da confiança. O valor da poupança e do trabalho têm de ser enaltecidos e incentivados – por contraponto ao endividamento e em defesa da
equidade entre gerações. A luta contra a pobreza e a exclusão social obriga
ao primado do cuidado dos outros, que nos leva do mundo dos sócios aos
próximos, na expressão de Paul Ricoeur, factor fundamental na economia
social moderna.
Etimologicamente a palavra crise significa uma encruzilhada de situações que abrem oportunidades. Hipócrates falava da crise como o
momento em que o enfermo vencia a doença ou era vencido por ela. É
indispensável compreender-se que precisamos de usar a inteligência e
a capacidade criadora para superar as dificuldades perante as quais nos
encontramos. Se a situação que vivemos se deve à prevalência da ilusão
contabilística sobre a economia real, é tempo de ligar as estratégias de
inteligência e de criação à verdade.
Não poderemos continuar a usar meios que não temos nem a comprometer a equidade entre gerações. Daí que a responsabilidade social das
empresas e da vida económica tenha de entrar na ordem do dia como
elemento prioritário. A coesão e a confiança, o rigor e a sustentabilidade
têm de ocupar o lugar dos resultados fictícios. As pessoas e a sua dignidade,
a justa distribuição de recursos e a partilha de responsabilidades têm de se
tornar factores essenciais. Eis por que razão a responsabilidade social não
pode ser vista como uma abstracção, mas como um sinal de que a economia
é feita para as pessoas.
Em suma, a economia moderna não pode basear-se apenas na noção
de ganho individual ilimitado. Se é verdade que o incentivo da contrapartida material tem de existir na actividade económica, o certo é que a
melhor recompensa é de carácter pessoal – ligada à realização humana e à
entre-ajuda. Liberdade e justiça ligam-se, assim, intimamente. A ideia de
realização humana pressupõe equilíbrio entre os aspectos materiais e espirituais a considerar nos resultados obtidos. Se é certo que a utilidade obtida
para cada um tem um peso significativo, a realidade é que há sempre uma
relação biunívoca entre o dar e o receber, que conduz à entre-ajuda e à solidariedade. Em tempo de crise, quando há maiores carências e dificuldades,
a lógica da competição e da concorrência é insuficiente, uma vez que, nesses
23
REPÚBLICA MODERNA E RESPONSABILIDADE SOCIAL
momentos, se exigem estratégias cooperativas que considerem os sujeitos
mais frágeis.
O pensamento de António Sérgio ganha uma nova actualidade uma vez
que o Estado moderno e o novo contrato social tem de ser mais claramente
cooperativo. A capacidade inovadora da sociedade perante novos desafios
exigentes obriga à ligação forte entre a iniciativa individual e o espírito de
equipa, entre a liberdade e a cooperação. A necessidade aguça o engenho.
Assim, nas estratégias sociais inovadoras somos obrigados a uma sábia coordenação entre a competitividade e o espírito de risco, por um lado, e o
reforço da solidariedade voluntária e da cooperação activa, por outro. A
ideia de justiça exige, deste modo, a diferenciação e a responsabilidade: a
diferenciação, uma vez que o que é diferente tem de ser tratado diversamente, cabendo a cada um o que lhe é devido (diferenciação positiva), e a
responsabilidade, uma vez que tem de haver capacidade de resposta perante
os outros de modo a defender os interesses e valores comuns. As ideias de
Michael Walzer de esferas da justiça e de justiça complexa põem estes temas na
ordem do dia, recusando a lógica formalista da justiça distributiva e exigindo
uma mais efectiva responsabilidade e uma maior participação dos cidadãos.
Entende-se, deste modo, por que razão Norberto Bobbio insiste na importância da igualdade, como contrapartida natural e necessária da liberdade.
Nesta ordem de ideias se a responsabilidade social não for exercida no seio das
actividades económicas, a coesão e a confiança (de que fala Robert Putnam,
a propósito do “capital social”) são postas em causa – o que obriga a colocar
a dignidade humana e o bem comum no centro das preocupações de todos e
no horizonte do desenvolvimento humano. Eis por que motivo a sustentabilidade económica e financeira, o rigor e a prestação de contas, a salvaguarda
de qualidade de vida e o equilíbrio ambiental, a preservação do emprego,
a realização de investimentos reprodutivos e a consideração da ciência e da
cultura como factores de criação não são abstracções e fazem parte da responsabilidade social do Estado, da sociedade e da economia. É, deste modo, o
desenvolvimento humano, como noção qualitativa, que tem de estar em
causa como encruzilhada da disciplina, do rigor, da criatividade, da inovação
e da justiça. François Perroux falava, por isso, no primado da pessoa humana
e da sua dignidade como pedra angular de uma economia livre, igual e justa.
A responsabilidade social liga-se, pois, à justiça na distribuição de recursos,
24
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
mas também à verdade na prestação de contas, ao emprego, à formação, ao
investimento reprodutivo e à dignidade da pessoa humana – elemento essencial de uma economia em que o dom e a troca se articulem criativamente.
Muito sucintamente, e perante o que acaba de ser dito, importa tirar
sete conclusões da reflexão aqui formulada, em que temos vindo a insistir:
(i) O Estado moderno deixou de ter condições para garantir a cobertura
integral de compromissos sociais para o futuro, correspondentes a um
sistema universalista e exclusivamente assente num sistema não contributivo
e de repartição; (ii) A crise do Estado-Providência obriga a introduzir nos
sistemas de cobertura de riscos sociais correcções no sentido da consagração
do princípio da diferenciação positiva (tratando diferentemente o que é
diferente e centrando-se na resposta necessária aos mais carenciados) e da
adequação entre os compromissos sociais e a evolução social registada (p. ex.
esperança média de vida); (iii) Só há resposta à crise do Estado-Providência,
tornando a democracia um “mundo comum” que reconheça quais os valores
partilhados, que permitam regular conflitos e evitar as “guerras civis”. Daí a
distinção necessária entre instituições de consenso e de conflito – para que
se possa abrir caminho à consideração de equilíbrio entre a regulação social
imediata e a criação de condições duradouras aptas a favorecer a coesão; (iv) As
mudanças estruturais no sentido da diferenciação positiva e da justiça plural e
complexa obrigam à adopção de consensos políticos duradouros, envolvendo
governos e oposições – assentes na subsidiariedade (resolver os problemas o
mais próximo possível dos cidadãos), na liberdade, na coesão, na confiança,
na sustentabilidade e na igualdade; (v) O Estado moderno tem de se basear
na liberdade igual e na igualdade livre, de modo a superar as tensões entre
liberdade e igualdade e entre igualdade e diferença – a igualdade de oportunidades tem, pois, de ser corrigida momento a momento, de modo a que a
justiça realizada não seja puramente formal; (vi) Ao Estado-Providência do
pós-guerra temos de contrapor a ideia de Sociedade-Providência, em que a
noção de serviço público tem de deixar de se confundir com serviço estatal
– o moderno serviço público tem de envolver, além do Estado democrático,
a sociedade civil, a solidariedade voluntária e as instituições de cidadania,
voluntariado e cooperação. A subsidiariedade só funcionará de facto se o
serviço público se tornar serviço da sociedade toda; (vii) A sustentabilidade
do Estado democrático contemporâneo exige, deste modo, maior partilha de
25
REPÚBLICA MODERNA E RESPONSABILIDADE SOCIAL
recursos e responsabilidades em torno da ideia de serviço público, enquanto
serviço das pessoas. O povo eleitoral, o povo social e o povo-princípio
coexistem e completam-se, ora porque votam, ora porque vivem, ora porque
afirmam a igualdade jurídica e cívica. Impõe-se, assim, favorecer a expressão
de cada um desses domínios.
26
Novas e Velhas Dimensões de Conflito Político
André Freire
A importância da divisão entre esquerda e direita na política de massas
Desde a Revolução Francesa que a divisão entre esquerda e direita tem
uma importância fundamental na moderna política de massas, sobretudo na
Europa Continental, já que no universo anglo-saxónico a divisão liberal-conservador é mais comum e apenas durante a segunda metade do século
XX aquela outra terá ganho maior difusão1. Desde a Revolução Francesa,
portanto, que a divisão entre esquerda e direita funciona como um meio de
classificação das ideologias, permitindo reduzir a complexidade do universo
político (Fuchs e Klingemann, 1990, p. 205; Luhmann, 1982) e, por isso,
resultando como um mecanismo de redução de custos na recolha e processamento de informação, bem como na tomada de decisões. Adicionalmente,
funciona como um código na comunicação política.
Apesar de todas as teses sobre o “fim da ideologia” (Bell, 1960; Lipset,
1981; etc.), sobre o “fim da história” (Fukuyama, 1989 e 1992), sobre
uma certa superação da divisão entre esquerda e direita (Giddens, 1994),
a verdade é que estas mesmas teses se revestem de um carácter ideológico
e, pouco depois de serem formuladas foram sucedidas pelo aparecimento
de novas formas ideológicas ou pela acrescida saliência de ‘velhas’ ideologias
(Heywood, 2003, pp. 319-323; Eatwell, 2003a, pp. 279-290; Fernandes,
2007; Callinicos, 2002, pp. 93 e seguintes; Held e McGrew, 2002, pp.
98-117; Rodríguez-Araujo, 2004, pp. 190 e seguintes; Tormey, 2004,
especialmente pp. 38 e seguintes).
Adicionalmente, vários estudos têm documentado a importância crescente da posição dos eleitores na escala esquerda-direita enquanto factor
explicativo da sua opção de voto (Gunther e Montero, 2001, pp. 124-126;
1
Nas quatro primeiras secções deste artigo retomo parte das análises desenvolvidas em Freire, 2006 e 2001.
27
NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO
Franklin et al, 1992b; Eijk et al, 2005; Freire, 2006a, 2008, 2009a).
Tendo em conta o tema do dossiê deste número 69 da Finisterra, o qual
se propõe abordar o tema do “socialismo democrático perante o liberalismo
social”, pareceu-nos pertinente abordar a questão das velhas e novas dimensões do conflito político, seja em termos de temas, seja em termos de bases
sociais. Assim, na primeira secção do artigo analisamos as diversas perspectivas e significados associados à divisão entre esquerda e direita na Europa.
Na secção subsequente abordamos os correlatos da divisão esquerda e direita
em termos de clivagens, nomeadamente em termos da chamada ‘velha’ e
‘nova política’. Terminamos com breves notas conclusivas.
Raízes históricas da divisão entre esquerda e direita
Em termos históricos, a divisão entre esquerda e direita tem a sua origem
na Revolução Francesa de 1789 (Laponce, 1981, pp. 47-68; Eatwell, 1992,
pp. 32-37; Laver e Hunt, 1992, pp. 11-15). De acordo com Eatwell (1992,
pp. 33-34), no contexto imediato à Revolução Francesa o significado substantivo da divisão entre direita e esquerda concretizava-se em três áreas
fundamentais. Em primeiro lugar, no domínio político a primeira estava
associada à defesa da monarquia absoluta, enquanto que a segunda defendia
uma representação política baseada no sufrágio igual e universal; esta tendia
ainda a ser republicana e não monárquica. Segundo, em matéria económica
a direita defendia a ordem feudal e os monopólios governamentais, ao passo
que o pólo oposto se posicionava como defensor do mercado livre, ainda
que aceitando a acção governamental para defender os pobres. Finalmente,
na arena social a direita defendia o papel da Igreja e, mais geralmente, da
autoridade e da tradição; nesta matéria, a esquerda tendia a ser secular, por
vezes até ateísta, e colocava a razão e a expressão individuais acima da crença
religiosa e do dever.
Na perspectiva de Eatwell (1992, pp. 34-37), a utilização deste instrumento de simplificação do universo da política coloca quatro problemas
fundamentais. A primeira questão, surgida logo na França de finais do século
XIX, era a grande diversidade interna dos grupos e movimentos classificados
como sendo de direita. Um segundo problema está relacionado com o significado diverso daquela clivagem política nos diferentes países. Uma terceira
28
ANDRÉ FREIRE
questão está relacionada com o grau de difusão deste código enquanto instrumento de comunicação política. Tal instrumento era/é de uso frequente em
França e na Alemanha, mas raramente utilizado na Grã-Bretanha ou nos
EUA. O quarto problema fundamental com a utilização da dicotomia, ou
continuum, esquerda-direita tem a ver com a diversidade das posições em relações aos mesmos temas políticos, em diferentes épocas históricas, assumidas
por grupos políticos classificados na mesma área ideológica.
Perspectivas “essencialistas” e “plurais” sobre a divisão esquerda-direita
No seu estudo sobre a direita, Eatwell (1992, p. 33) define quatro enfoques básicos: uma abordagem histórica; uma visão baseada nas discussões
das ciências sociais; uma perspectiva que tenta encontrar uma base filosófica comum às diferentes tendências de direita (e outra para as de esquerda),
designada como “modelo filosófico essencialista”; ou um enfoque da direita
(e da esquerda) como sendo fundamentalmente plural(is), consistindo mais
em “estilos de pensamento surgidos como respostas aos desafios suscitados
pelas esquerdas” (pelas direitas).
Quanto às perspectivas essencialistas, deve sublinhar-se que todas elas
reconhecem a diversidade no seio dos vários grupos de esquerda e de direita.
Ou seja, aquilo que as distingue das perspectivas pluralistas é, em certa
medida, uma questão de ênfase nos traços comuns às diferentes correntes
de cada bloco ideológico. Pelo contrário, as perspectivas pluralistas enfatizam, sobretudo, as diferenças no seio de cada grupo ideológico e, por isso,
preferem falar em “direitas” e “esquerdas”.
Quadro 1: Conceitos associados com a divisão esquerda-direita de forma consistente
Contrastes políticos
Contrastes económicos
Contrastes religiosos
Orientação face ao tempo
ESQUERDA
DIREITA
Igualitária
Hierárquica
Pobre
Rico
Livre Pensamento
Religião
Discontinuidade
Continuidade
Fonte: Laponce, 1981, p. 119.
29
NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO
Laponce (1981) identificou os elementos nucleares e periféricos do
sentido da divisão esquerda-direita: à direita, a aceitação das hierarquias
sociais e religiosas; à esquerda, a afirmação da igualização das condições de
vida através do desafio da dominação de origem divina (“de Deus”) e secular
(“do Príncipe”) (Quadro 1). Como traços periféricos da divisão entre direita
e esquerda temos: para o primeiro sector político, o passado, o status quo, a
livre empresa e os EUA; para a segunda orientação ideológica, o futuro, a
mudança, a intervenção do Estado na economia e a URSS. Portanto, daqui
ressalta o carácter central da ordem (social, política e religiosa) hierárquica
para a definição desta divisão política, ao contrário das questões económicas
e relacionadas com o papel do Estado.
Bobbio (1994) apontou também os traços fundamentais da divisão
esquerda-direita (1994, p. 58). O critério fundamental para distinguir a
esquerda da direita é a diferença de atitude dos homens face ao ideal da igualdade (1994, pp. 76). Mas o filósofo italiano adverte que este conceito não é
absoluto. Por isso, supõe sempre a resposta a três questões fundamentais:
entre quem devem os bens ou os encargos ser repartidos? Quais os bens ou
encargos a repartir? Qual o critério usado na repartição? Segundo o autor,
as respostas a estas questões podem ser muito variadas e, por isso, o espectro
de respostas/ideologias pode ser bastante diverso, seja entre as filosofias mais
igualitárias, seja entre as mais inigualitárias:
“Os indivíduos podem ser todos, muitos ou poucos, ou um só; os
bens a distribuir podem ser direitos, vantagens ou facilidades económicas, posições de poder; os critérios podem ser o mérito, a capacidade,
a classe social, o esforço ou outros ainda, e mesmo, em última hipótese, a
ausência de qualquer critério, que caracteriza o princípio supremamente
igualitário, a que proponho seja dada a designação de «igualitarista»: «o
mesmo para todos» (Bobbio, 1994, 77-78).”
Para distinguir as várias famílias políticas no seio de cada área ideológica, Bobbio recorre a um critério adicional, “liberdade versus autoridade”,
relacionado com a atitude perante os procedimentos democráticos. Este
elemento permite diferenciar os extremistas dos moderados em cada campo:
na extrema-esquerda estão os movimentos simultaneamente igualitários
e autoritários, os jacobinos e seus continuadores; no centro esquerda está
30
ANDRÉ FREIRE
o ‘socialismo liberal’ e a social-democracia, simultaneamente igualitária e
‘libertária’; situados nos centro-direita estão os movimentos e doutrinas
simultaneamente ‘libertários’ e inigualitários; na extrema-direita situam-se
as famílias políticas antiliberais e anti-igualitárias (Bobbio, 1994, pp. 8894, especialmente 93).
Quadro 2: Temas essenciais na divisão entre direita e esquerda
DIREITA
ESQUERDA
Pessimismo antropológico
Optimismo antropológico
Anti-utopismo
Utopismo
Racionalismo
Linearismo evolutivo
Organicismo
Direito à diferença
Igualitarismo
Elitismo
Democratismo
Socialismo
Propriedade e anti-economicismo
Economicismo
Nacionalismo
Internacionalismo
Humanitarismo
Fonte: Pinto, 1996, pp. 30-43.
Jaime Nogueira Pinto fez também uma resenha dos traços essenciais da
divisão esquerda-direita (Pinto, 1996, p. 30): Quadro 2. Um elemento
fundamental de diferenciação reside no optimismo e no pessimismo antropológicos, respectivamente para a esquerda e a direita, princípios dos quais
decorrem várias outras características de cada uma das duas famílias. O pessimismo antropológico da direita consiste na recusa da visão de Jean Jacques
Rousseau sobre a “bondade natural do homem”, estando esta família política mais próxima da visão de Thomas Hobbes. Ou seja, a direita defende
que o estado da natureza seria não uma espécie de paraíso perdido, mas sim
uma situação caracterizada pela “luta de todos contra todos”. Daqui decorre
a rejeição da ideia sobre a possibilidade de construção racional da sociedade perfeita (utopia), bem como da concepção linear da evolução humana
e da crença no progresso (Pinto, 1996, p. 31). Pelo contrário, a esquerda
31
NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO
acredita que o “homem é um ser naturalmente bom” e, na senda do racionalismo iluminista, crê nas possibilidades de transformação da razão e acção
humanas. Daqui decorrem as crenças na possibilidade de construção de
sociedades idealmente perfeitas e justas (igualitárias), bem como na ideia de
progresso e de evolução linear da história.
Adicionalmente, a direita caracteriza-se por acentuar “a perspectiva hierárquica e elitista de qualquer sociedade e considera a anarquia e o igualitarismo
como utopias ou discurso justificativo de oligarquias dominantes que governam
sociedades desiguais em nome de tais «fórmulas políticas igualitárias»” (Pinto,
1996, p. 33). Esta família ideológica dá ainda prioridade às comunidades
«naturais» sobre o indivíduo: organicismo (Pinto, 1996, p. 32).
O contributo de Nogueira Pinto, para além dos méritos associados a uma
maior exaustividade na descrição da(s) direita(s) e da(s) esquerda(s), enferma de
duas limitações fundamentais. Primeiro, a tentativa de sumariar os elementos
essenciais de cada uma das duas famílias políticas apresenta um claro défice de
parcimónia. Segundo, é óbvio que muitos dos elementos caracterizam algumas
correntes de determinada família ideológica, mas são bastante parciais.
São estas e outras contradições internas nas abordagens essencialistas
da direita (e da esquerda) que levam Roger Eatwell (1992, pp. 48-59) a
defender que a forma mais adequada de entender a natureza da direita (e da
esquerda) é considerá-la em termos de “uma variedade de estilos de pensamento” (Eatwell, 1992, p. 60). Este autor vê dois problemas básicos com
as abordagens essencialistas. Primeiro, os conceitos usados em representações unilineares ou circulares da competição política são multi-facetados.
Segundo, as ideologias são dinâmicas e necessitam de um enquadramento
bastante mais complexo do que aquele que é normalmente fornecido pelas
representações espaciais da competição política.
Apesar das evidentes limitações em termos filosóficos e históricos, a
verdade é que, por um lado, as representações espaciais da competição política, sobretudo esquerda-direita, têm um forte poder heurístico, em termos
de explicação e predição de atitudes e comportamentos políticos dos eleitores. Por outro lado, vários cientistas sociais têm sublinhado a flexibilidade
da escala esquerda-direita para abarcar a multidimensionalidade da competição política (Inglehart e Klingemann, 1976; Laponce, 1981; Inglehart,
1984; Sani e Montero, 1985; Knutsen, 1995a-2000; Freire, 2006a).
32
ANDRÉ FREIRE
Clivagens sociais, conflitos políticos e divisão esquerda-direita
Em ciências políticas, quando falamos de fontes sociais do conflito político pensamos imediatamente em divisões nas estruturas socioculturais e,
sobretudo, em clivagens. As teorias sobre as clivagens remontam fundamentalmente aos trabalhos de Lipset e Rokkan (1967), sobretudo deste último
(Rokkan, 1999). Segundo este modelo, há quatro linhas fundamentais de
clivagem, extensíveis à generalidade das democracias Ocidentais, sobretudo
as europeias, as quais estão relacionadas com duas grandes revoluções.
O primeiro conflito político tem a sua origem na “revolução nacional” e
teve depois a sua tradução naquilo a que Lipset e Rokkan (1967) chamaram
a clivagem Estado-Igreja, ou religiosidade-secularização. Trata-se de uma
clivagem cujo impacto ainda hoje se faz sentir nas democracias modernas,
embora cada vez menos devido às tendências de secularização. Opõe geralmente as populações mais integradas no universo religioso aos indivíduos
mais secularizados. Geralmente, as primeiras tendem a posicionar-se à direita
no espectro ideológico e as segundas à esquerda, seja em termos ideológicos
estritos seja em termos de sentido de voto (Freire, 2001, pp. 24-40).
A “revolução nacional” esteve na origem de uma outra clivagem, entre
o “centro” e a “periferia” (Lipset e Rokkan, 1967b, pp. 13-14 e 23-43). Esta
clivagem resultou de uma reacção das periferias às medidas tendentes à uniformização impostas pelos “construtores nacionais”. Ou seja, as minorias linguísticas e
as populações culturalmente ameaçadas pela uniformização estatal opuseram-se
às elites nacionais dominantes gerando clivagens territoriais, muitas vezes com
uma base étnico-cultural. Porém, por um lado, na maioria dos países ocidentais esta dimensão de clivagem é actualmente pouco ou nada saliente, sobretudo
perante as outras três clivagens, embora não deixe de ter relevo nalgumas sociedades (Franklin et al, 1992b). Por outro lado, nos países onde ela é politicamente
saliente, usualmente corta transversalmente a divisão entre esquerda e direita.
A revolução industrial esteve na origem de outros dois tipos de clivagens:
urbano-rural e capital-trabalho. A defesa dos interesses rurais deu algumas
vezes origem à formação de partidos agrários, especialmente na Escandinávia
(Lane e Ersson, 1996: 263). Historicamente, esta clivagem encontrou
expressão na oposição “(...) entre os partidos conservadores-agrários e os
liberais-radicais” (Lipset e Rokkan, 1967: 189).
33
NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO
A clivagem capital-trabalho opôs as populações de assalariados, quer na
agricultura quer na indústria, aos proprietários e aos patrões: aqueles lutavam
contra a insegurança dos contratos, as baixas remunerações e a alienação
sociocultural a que estes os submetiam (Lipset e Rokkan, 1967, pp. 21). Desta
divisão surgiram os sindicatos nacionais e os partidos socialistas e comunistas,
que combatiam os partidos conservadores e liberais (Lipset e Rokkan, 1967,
pp. 21-22 e 46-50). Este conflito consubstancia-se principalmente em duas
ideias chave, nomeadamente em matéria de políticas económicas. Primeiro,
à direita, a forte valorização do mercado; dela decorre a defesa de um Estado
pouco interventor nas esferas económica e social, bem como a oposição às
noções de igualdade social e económica. Segundo, à esquerda, o sistema
de valores baseia-se, sobretudo, na concepção de que o Estado deve ter um
papel activo na prossecução de certos objectivos sociais, nomeadamente na
segurança económica dos cidadãos, na solidariedade social e na igualização
dos rendimentos, das condições de vida e das oportunidades entre as classes
e os estratos sociais (Knutsen, 1995a, pp. 160-162).
Quadro 3: Velha esquerda e velha direita versus temas centrais do conflito político
e base social de apoio preferencial
VELHOS TEMAS/
”VELHA POLÍTICA”
VELHA ESQUERDA
VELHA DIREITA
Temas
Socioeconómicos
Igualdade de oportunidades e
condições de vida; papel central
do Estado enquanto instrumento
de igualização das condições e
oportunidades de vida
Forte valorização do mercado;
defesa de um Estado pouco
interventor; oposição às noções
de igualdade social e económica
Temas morais
e religiosos
Crenças mais secularizadas:
crentes na capacidade transformadora da razão e acção
humanas
Crença numa ordenação natural
do mundo com origem divina;
deferência face à ordem social
existente e às autoridades seculares e religiosas
Bases sociais
Indivíduos de baixo estatuto
socioeconómico e secularizados
Indivíduos de médio e elevado
estatuto socioeconómico e com
um maior nível de integração no
universo religioso
Fonte: elaboração do autor
34
ANDRÉ FREIRE
Para uma síntese das principais características da velha esquerda e da velha
direita, isto é, daquelas famílias políticas cujos alinhamentos assentavam
primordialmente nas chamadas “velhas clivagens” sociais, ver Quadro 3.
Desde os anos 1970 que vários autores, nomeadamente Inglehart, têm
defendido o aparecimento de um novo eixo de conflito político entre valores
materialistas e valores pós materialistas, ou, mais recentemente, entre valores
modernos e pós-modernos (Inglehart, 1997; Freire, 2001, capítulo 4).
Outros autores têm contestado a teoria de Inglehart, nomeadamente a saliência
que este autor dá à divisão entre valores materialistas e pós-materialistas, e
têm defendido que a divisão fundamental associada à “nova política” é entre
valores “libertários” e “autoritários” (Flanagan, 1987; Kitschelt, 1988, 1994 e
1995; ver também Ignazi, 1992, e Flanagan e Lee, 2003).
Segundo a teoria da mudança de valores de Ronald Inglehart (19711997), os indivíduos socializados em ambientes de relativa escassez material,
ténues redes de protecção social e significativa insegurança física (guerras,
etc.) valorizam mais o crescimento económico e a segurança física e material
(valores materialistas). Pelo contrário, os cidadãos criados em ambientes de paz,
extensas redes de protecção social e relativa abundância de bens materiais, dão
maior importância relativa a questões como a qualidade de vida, a protecção
do ambiente, a expressão e realização individuais, e a uma maior participação
dos cidadãos na tomada de decisões nas empresas e nos sistemas políticos
(valores pós-materialistas). De acordo com o autor referido, as sociedades industriais avançadas têm conhecido um processo de crescente saliência dos valores
pós-materialistas, que atinge sobretudo as gerações mais jovens, mais escolarizadas, pertencentes às “novas classes médias” e oriundas de meios sociais de
nível socioeconómico elevado.
Estes dois últimos sistemas de valores, materialistas versus pós-materialistas,
ou modernos versus pós-modernos (Inglehart, 1997, pp. 74-81), têm
implicações nos vários domínios da vida. Por exemplo, no domínio da
política os valores associados a ambientes inseguros (insegurança física e
escassez relativa a nível material) tendem a enfatizar a necessidade de líderes
fortes, de ordem/autoridade nas esferas social e política, bem como a gerar
uma certa tendência para a intolerância perante os estrangeiros e imigrantes
(xenofobia), os quais são vistos como (mais) uma ameaça à segurança material
e à ordem social. Pelo contrário, as condições de segurança (sobrevivência
35
NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO
adquirida: bem estar material e paz) em que são criadas as gerações nascidas
nas sociedades pós-modernas (pós industriais) tendem a gerar uma certa
desconfiança e criticismo perante as autoridades políticas. Ou seja, de
acordo com esta perspectiva, cada vez mais os cidadãos comuns socializados
nestes ambientes tenderão a assumir-se como sujeitos activos nos processos
de tomada de decisões políticas. Os valores pós-modernos estão também
associados a uma tolerância maior perante os estrangeiros (imigrantes).
Para Flanagan, aquilo que ele designa como atitudes “libertárias” e outros
chamam valores pós-materialistas são duas coisas “essencialmente idênticas”
(1987, p. 1304). Nesta designação incluem-se itens que dão conta dos seguintes
temas: ênfase na liberdade pessoal e política; maior participação dos cidadãos (no
governo, na sociedade, no emprego); igualdade; tolerância face às minorias (e
opiniões divergentes); abertura a novas ideias e estilos de vida; protecção ambiental
e importância das questões ligadas à qualidade de vida. Para Flanagan, estes temas
fazem parte quer da síndrome pós materialista, quer da síndrome “libertário”,
embora o autor considere esta última designação como mais apropriada.
Quadro 4: Nova esquerda e nova direita versus temas centrais do conflito político e
base social de apoio preferencial
NOVA ESQUERDA
NOVA DIREITA
Novos temas/
“nova política”
Pacifismo; Ambientalismo; Direitos das
mulheres; Igualdade de direitos para
maiorias e minorias sexuais; Direitos dos
imigrantes; Maior participação dos cidadãos
nas decisões políticas e dos trabalhadores
na gestão das empresas; Igualdade socioeconómica, mas associada a uma crítica das
grandes organizações burocráticas (Estado,
etc.);Globalização alternativa: controle dos
movimentos de capitais (taxa TOBIN, etc.);
imposição de padrões básicos em termos
políticos, sociais e ambientais no âmbito do
comércio internacional: universalismo
Ênfase na ideia de autoridade social e
política; Defesa de líderes fortes; Defesa
das hierarquias sociais; Atitude xenófoba
face aos imigrantes; Defesa de valores
tradicionais (contra a liberdade de escolha
das mulheres no aborto, contra direitos iguais
entre maiorias e minorias sexuais, etc.); Ao
contrário da extrema-direita tradicional, que
associava autoritarismo com nacionalismo e
uma política económica corporativista, a nova
direita associa autoritarismo, particularismo
étnico e liberalismo económico; Globalização:
Proteccionismo e Particularismo étnico.
Bases sociais
Classe médias, jovens, grupos com maior
instrução; indivíduos secularizados ou
com baixo nível de integração no universo
religioso; minorias étnicas
Pequena burguesia, franjas mais inseguras
do operariado; indivíduos secularizados ou
com baixo nível de integração no universo
religioso; maiorias étnicas
Fonte: elaboração do autor.
36
ANDRÉ FREIRE
É sobretudo na definição do materialismo que as diferenças de Flanagan
(1987, pp. 1304-1305) perante Inglehart são mais relevantes. Flanagan
concebe o materialismo como estando apenas ligado à importância dada às
questões económicas, seja em termos de vida pessoal (emprego bem remunerado, habitação adequada, situação material confortável), seja em termos
da sociedade no seu conjunto (economia estável, crescimento económico,
estabilidade dos preços). Contudo, nas baterias usadas por Inglehart (1997:
apêndices 4 e 5), os indicadores que supostamente medem o materialismo
respeitam na verdade mais a orientações “autoritárias”: forças armadas fortes,
lei e ordem, combate ao crime. Para Flanagan (1987, p. 1305), as orientações
“autoritárias” dizem respeito aos seguintes temas: preocupações com a lei e
a ordem; respeito pela autoridade, disciplina e dever; patriotismo e intolerância face às minorias; apoio a valores morais e religiosos tradicionais.
Para uma síntese das principais características da nova esquerda e da nova
direita, isto é, daquelas famílias políticas cujos alinhamentos em termos
assentam primordialmente nas designadas “novas clivagens”, ver Quadro 4.
Desde os anos 1970 e 1980 que um conjunto de novos partidos políticos tem acedido à arena eleitoral e parlamentar das democracias ocidentais.
Na Europa estão nesta situação os chamados partidos “verdes” ou ecologistas (Lane e Ersson, 1999: 87-88). O aparecimento destes novos partidos
está claramente associado à mudança de valores pós materialista (Inglehart,
1997: 241-243), ou no sentido de um maior apoio aos valores libertários
(Kitschelt, 1988; March, 2008).
Por outro lado, alguns dos pequenos partidos de extrema-esquerda europeus, que já vinham dos anos 50 e 60, são também enquadráveis na clivagem
materialismo versus pós materialismo, ou entre valores libertários versus
autoritários, pelo menos a partir da sua reconversão ideológica operada nos
anos 60 e 70 (Knutsen, 1995: 478).
Mas os novos partidos situados na ala esquerda dos sistemas partidários
ocidentais não integram apenas temas pacifistas e ambientalistas nas suas plataformas políticas: situando-se numa linha ideológica claramente pós-moderna,
pós-materialista ou libertária, conforme as classificações que usemos, muitos
destes partidos advogam causas como o direito de as mulheres escolherem
livremente a opção do aborto; a igualdade de direitos para os grupos de
homossexuais e de lésbicas, face aos heterossexuais; a defesa dos direitos dos
37
NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO
imigrantes; a defesa de uma maior participação dos cidadãos nas decisões
políticas; a defesa de uma maior participação dos trabalhadores na gestão das
empresas (Inglehart, 1997: 237-252; Kitschelt, 1988; March, 2008).
Por outro lado, novos partidos de extrema-direita surgiram nos sistemas
partidários ocidentais durante os anos 70, 80 e 90: a Frente Nacional, em
França; os Partidos do Progresso nos países escandinavos; os Republicanos
na RFA; a Frente Nacional e o Vlaams Block, na Bélgica; etc. Também neste
caso as clivagens políticas são diversas da direita tradicional: defendendo
geralmente políticas económicas liberais, estes partidos caracterizam-se
também por uma atitude xenófoba face aos imigrantes e pela defesa de valores
tradicionais (contra a liberdade de escolha das mulheres no aborto, contra
a igualdade de direitos entre heterossexuais, lésbicas e homossexuais, etc.)
(Andersen e Bjorklund, 1990; Kitschelt, 1995; Inglehart, 1997: 237-252).
Ao contrário da extrema-direita tradicional, que associava autoritarismo
com nacionalismo e uma política económica corporativista, a nova direita
associa autoritarismo, particularismo étnico e liberalismo económico. Mais,
a proximidade com os padrões neofascistas é inversamente proporcional ao
sucesso dos partidos da “nova direita” (Kitschelt, 1995: 277).
Portanto, as mudanças nos sistemas partidários das democracias ocidentais, que se tem verificado desde os anos 60 e 70, reflectem uma mudança na
agenda política dos eleitorados e, sobretudo, nas suas prioridades valorativas.
Estas transformações deram origem não só ao aparecimento de novos partidos,
como a uma reorientação ideológica dos partidos tradicionais (Inglehart,
1971; 1977; 1985; 1990: 267-314; 1997: 237-266; Rohrschneider, 1993;
Kitschelt, 1995).
Em termos ideológicos e de identidades políticas, o novo eixo de polarização política não é exactamente perpendicular à tradicional clivagem
esquerda versus direita (Kitschelt, 1995; Inglehart, 1997: 246). Ou seja,
em muitos temas políticos há bastante maior proximidade entre a “nova
esquerda” e a esquerda tradicional do que entre estas e a direita tradicional e
a “nova direita”, nomeadamente em questões como a igualdade e a ênfase na
necessidade de mudança da ordem social estabelecida. Em resultado dessas
semelhanças, mas não só, o crescimento dos valores pós-materialistas tem
também beneficiado a esquerda tradicional (socialistas e sociais-democratas)
(Inglehart, 1990: 298-311).
38
ANDRÉ FREIRE
Todavia, em termos de base social há uma clara demarcação entre a esquerda
tradicional e a “nova esquerda”; tal como há uma muito clara demarcação
entre a direita tradicional e a “nova direita”. A esquerda tradicional granjeia os seus maiores apoios eleitorais entre os indivíduos com baixo estatuto
socioeconómico; a “nova esquerda” tem os seus constituintes preferenciais
nas gerações mais jovens, mais educadas, oriundas das “novas classes médias”
e que partilham valores pós materialistas (Inglehart, 1971:1009-1013; 1990:
267-314 e 339-373; 1997: 252-256). A direita tradicional tinha a sua base
social preferencial entre os eleitores com mais elevado estatuto socioeconómico, mais próximos do pólo do capital e com maiores níveis de integração
religiosa. A “nova direita” apresenta um eleitorado predominantemente
captado entre a pequena burguesia tradicional e entre as franjas mais inseguras e xenófobas do operariado, bem como entre as camadas sociais com
menor integração religiosa (Andersen e Bjorklund, 1990; Inglehart, 1997:
252-256; Kitschelt, 1995; Ignazi, 1992).
Notas conclusivas
Analisámos os vários significados da divisão esquerda e direita ao longo
do tempo, isto é, ao longo da história (desde 1789) e do espaço (sobretudo
dos diferentes países europeus). Deste pequeno excurso conclui-se que as
questões da imigração, dos direitos das minorias e da liberalização cultural/
de costumes têm uma especial relevância para a “nova esquerda”, bem como,
embora por motivos opostos, para os seus mais directos opositores no outro
extremo do espectro ideológico, a “nova direita”. Ou seja, a questão da
igualdade de direitos sociais e políticos para as minorias (sexuais, de género,
étnicas, imigrantes, etc.) é um tema que entrou no debate político sobretudo
por via dos novos movimentos sociais surgidos desde o final dos anos 1960,
bem como por via dos partidos da “nova esquerda” que lhes estão geralmente
mais próximos (“Verdes”, “partidos da esquerda libertária”, etc.).
Foi, pelo menos em parte, como resposta ao «liberalismo cultural» associado a estes movimentos e partidos libertários, nomeadamente ao nível dos
estilos de vida, a que alguns chamaram uma “revolução silenciosa na Europa”
(Inglehart, 1971), que surgiu a resposta conservadora, isto é, a “nova direita”,
(Ignazi, 1992).
39
NOVAS E VELHAS DIMENSÕES DO CONFLITO POLÍTICO
Mais de três décadas passadas sobre o aparecimento dos primeiros movimentos sociais e dos primeiros partidos associados à “nova esquerda”, as
questões que eles propunham (bem como aquelas que, mais tarde, propuseram os seus opositores conservadores, a “nova direita”) entraram claramente
no centro do debate político, mesmo para as forças mais tradicionais dos
sistemas partidários europeus (ver, por exemplo, Freire, 2007). De qualquer modo, podemos dizer que os novos temas, de entre os quais surgem
com particular destaque o da imigração e o da liberalização de costumes,
têm pelo menos maior saliência nas agendas da “nova esquerda” (e da “nova
direita”) do que da “velha” esquerda e da “velha” direita.
Porém, por um lado, seja por influência das novas forças políticas (à
esquerda e à direita), seja por causa dos problemas demográficos e de sustentabilidade do Estado Providência na Europa, as questões da imigração têm
um lugar central nas agendas de todos os decisores políticos dos diferentes
países europeus e da UE, mesmo das forças mais mainstream. Por outro lado,
designadamente devido a uma certa convergência da “velha esquerda” socialista e social-democrata com o mainstream neoliberal em matéria de política
social e económica, as diferenças entre o centro-esquerda e o centro-direita
em matérias socioeconómicas esbateram-se significativamente (embora haja
diferenças notáveis nos diferentes países europeus resultantes, entre outras
coisas, da força ou fraqueza das ligações ao movimento sindical e da capacidade ou incapacidade de cooperação entre as diferentes esquerdas) – o que
não quer dizer que não existam, naturalmente, apenas que se reduziram substancialmente. Daqui surge a necessidade de diferenciação do centro-esquerda
face ao centro-direita por via de novos temas: pelo menos parte da ênfase
dos partidos socialistas e social-democratas nos novos temas socioculturais
(nomeadamente, a nova prioridade dada à igualdade de direitos sociais e políticos para as minorias sexuais, de género, étnicas, imigrantes, etc.) deve-se à
procura de novos temas de diferenciação face às direitas. Naturalmente que
a pressão dos movimentos sociais associados à defesa dos direitos das minorias (étnicas, sexuais, etc.), bem como a concorrência dos partidos da nova
esquerda libertária, são também factores que levaram a esquerda tradicional
(partidos socialistas e social-democratas) a dar maior atenção e prioridade a
estes novos temas.
40
ANDRÉ FREIRE
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42
A Crise da Liberal Democracia
Joaquim Jorge Veiguinha
A
crise financeira do capitalismo globalizado de 2008-09 revelou
em todo o seu esplendor a crise da liberal democracia. Esta
crise não surge, porém, por geração espontânea, nem pode
ser considerada uma simples consequência da crise das subprime
que, iniciada nos Estados Unidos da América de George W.Bush, atingiu a
União Europeia, onde as políticas monetaristas do Banco Central Europeu,
o predomínio dos governos de direita e a inconsistência política da corrente
social liberal dominante dos partidos social-democratas têm contribuído
para o seu agravamento. Desde os anos 80 do século passado, as desigualdades
sociais não têm parado de aumentar na Europa. Os anos 90 caracterizaram-se
por um agravamento ainda maior destas desigualdades em consequência da
implosão da União Soviética e da conversão das antigas democracias populares
a um modelo de capitalismo liberal sem dimensão social. A ascensão dos novos
países emergentes, de que se destaca a China, contribuiu para instaurar uma
competição a nível mundial que teve como principal consequência a degradação generalizada das condições de vida e de trabalho e uma pressão sobre os
salários das actividades deslocalizáveis nos países mais desenvolvidos.
Uma das características fundamentais da liberal democracia é a sua capacidade de institucionalização dos conflitos sociais. Centrada no sufrágio
universal, conquista do século XX nos países da Europa e da América do
Norte, esta forma de democracia permite, através do pluralismo político,
a representação dos interesses divergentes dos grupos e classes sociais que
se confrontam na sociedade civil. No entanto, não se pode considerar
que o resultado deste confronto seja a formação de um interesse geral que
concebe o Estado representativo, de que a liberal democracia é o regime
político, como entidade neutra, abstracta que, no fundo, conseguiu
superar as fracturas e diferenciações sociais que se reproduzem e alargam
na própria sociedade civil. Isto porque o Estado representativo e a liberal
democracia têm como fundamento a relação entre trabalho assalariado e
43
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
capital privado e, por conseguinte, reconhecem como elemento necessário
da sua reprodução as diferenciações sociais e económicas que resultam da
propriedade privada dos meios de produção.
Não restam dúvidas de que a estatização da propriedade dos meios
de produção nos países que se integravam na esfera do ‘socialismo real’
conduziu a um sistema económico ineficaz que acabou por implodir como
um castelo de cartas porque não conseguiu acompanhar a revolução científica e tecnológica do Ocidente capitalista em que um modelo intensivo
de acumulação centrado nas tecnologias light da informática substituiu um
modelo de crescimento extensivo centrado no trabalho operário tradicional
e nas indústrias pesadas. Além do mais, apesar das conquistas importantes
que o socialismo de Estado conseguiu no âmbito social – educação, saúde,
emprego para todos – situava-se, enquanto regime político, aquém da
liberal democracia que vigorava no Ocidente capitalista, já que a condição
da liberdade política e intelectual é o pluralismo político e o confronto
de argumentos tanto na sociedade civil como nas assembleias parlamentares. A situação do actual prémio Nobel da Paz chinês, Liu Xiaobo, preso
por delito de opinião, demonstra que a liberal democracia, como regime
político em que me é reconhecido o direito de discordar e criticar o poder
instituído, seja directamente através do exercício do meu direito à opinião,
seja indirectamente através do partido que me representa ou do movimento
social em que me integro, constitui o pressuposto da constituição de uma
sociedade em que a liberdade de cada um deve ser a condição da liberdade de todos. E uma coisa é certa: nenhuma democracia dita ‘popular’,
nenhum capitalismo de Estado de partido único podem garantir as condições para que todos possam assumir a célebre máxima kantiana na Resposta à
questão: o que é o «iluminismo»?: “Sapere aude! tem a coragem de te servires do teu
próprio entendimento”1.
As liberdades individuais que a liberal democracia garante aos cidadãos
não podem, porém, ser dissociadas da manutenção de um certo nível
de igualdade social. O Estado social europeu, que surgiu no período
posterior à Segunda Guerra Mundial e começou a declinar na segunda
1
Kant, Emmanuel - La philosophie de l’histoire (opuscules), Denoel/Gonthier, Paris, 1976, p. 46.
44
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
metade dos anos setenta do século passado, expressou um compromisso
entre as classes detentoras do poder económico e as classes trabalhadoras,
a que não foi seguramente estranho o contexto de competição ideológica
entre o capitalismo ocidental e o ‘socialismo real’ de inspiração soviética.
Este compromisso introduziu na liberal democracia clássica uma
componente de direitos sociais que eram, de certo modo, estranhos à sua
natureza. Assim, no plano laboral, difundiram-se os contratos colectivos
de trabalho que não se integravam nas concepções liberais clássicas que
nunca reconheceram a especificidade de um direito do trabalho baseado
no princípio de que as partes contratantes na relação laboral, apesar de
formalmente iguais, não detinham o mesmo poder económico. Os
trabalhadores desfrutavam também de um conjunto de direitos sociais – a
que o liberalismo clássico com a sua concepção de uma sociedade composta
de indivíduos-proprietários racionais e livres era também completamente
estranha – garantidos pelo Estado: protecção no desemprego, sistemas
públicos de saúde e educação, acesso a um sistema público de aposentação
baseado no princípio da solidariedade e da repartição.
Não podemos dissociar este compromisso ou ‘contrato social’ de três
importantes eventos. O primeiro, foi o elevado crescimento económico
dos trinta anos em que se construíram os alicerces do Estado social, e que
os dois choques petrolíferos de 1973 e 1978 puseram em causa, em consequência de um processo mais profundo que marcou a transição de um
modelo de acumulação extensiva para um modelo de acumulação intensiva, centrada nas novas tecnologias da informação e comunicação e no
desmantelamento e reestruturação das indústrias pesadas tradicionais que
estiveram na origem da fundação da Comunidade Europeia do Carvão e do
Aço (CECA), antepassada da Comunidade Económica Europeia (CEE). O
segundo, foi o predomínio do capital industrial sobre o capital financeiro,
facto que está indissociavelmente ligado à reconstrução da economia europeia no período posterior à segunda Guerra Mundial, particularmente da
indústria, mas que começou a inverter-se na primeira metade dos anos
oitenta do século passado com a crise da dívida e a propagação do fenómeno
da titularização que teve como principal consequência a desproporção
crescente entre o crescimento da capitalização bolsista e o crescimento do
PIB das principais economias do G 7. O terceiro foi o fortalecimento das
45
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
associações sindicais que beneficiavam do modelo extensivo de acumulação
centrado numa força de trabalho assalariada relativamente homogénea,
socialmente concentrada e em que crescia a componente operária herdeira
das grandes lutas pelos direitos sociais na União Europeia.
Neste contexto social, tornava-se possível a institucionalização da conflitualidade social, apesar do compromisso entre a fracção hegemónica do
capital industrial e os trabalhadores assalariados da indústria e uma parte dos
trabalhadores dos serviços, particularmente os da Administração Pública
– maioritariamente representados pelos sindicatos e pelos partidos socialistas e social-democráticos, com a excepção da Itália, em que se destacava
o Partido Comunista Italiano, dirigido por Enrico Berlinguer – deixarem
em mãos do capital industrial e dos managers o controlo da organização de
trabalho, baseada no modelo taylorista-fordista, e a gestão do processo de
acumulação de capital. Em alguns países – caso da França, Grã-Bretanha
e Portugal entre 1974 e 1986 – a existência de um sector empresarial do
Estado constituía um obstáculo ao predomínio exclusivo do capital privado
na economia e na sociedade. Noutros, caso da Alemanha, o consenso entre
o SPD e a CDU relativamente a uma economia social de mercado constituía, por sua vez, um obstáculo ao aumento das desigualdades sociais e uma
garantia de defesa dos direitos sociais.
O último vinténio do século XX assinalou uma alteração radical no relativo equilíbrio de forças sociais que vigorou até meados dos anos 70. Antes
de tudo, a hegemonia do capital industrial deu lugar à hegemonia do capital
financeiro. Esta transformação teve uma relevante importância estratégica,
já que coincidiu com a crise do modelo de acumulação extensiva e com a
emergência da terceira revolução científica e tecnológica que, nascida no
sector militar, potenciou a expansão meteórica dos mercados financeiros
que puderam negociar valores e títulos mobiliários à velocidade da luz graças
à ligação em rede das grandes praças financeiras. Trata-se de um fenómeno
inédito que permite aos mercados financeiros transformarem-se em protagonistas e alcançarem o estatuto de verdadeiros supra-sujeitos que ditam
as suas leis aos Estados e determinam em última instância, como acontece
actualmente, a elaboração dos orçamentos de Estado que constituíam no
passado um dos principais símbolos da sua soberania económica e política.
Esta hegemonia do capital financeiro encontra-se também associada a
46
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
um conjunto de transformações sociais e políticas que distorceram o sentido
de uma revolução científico-tecnológica que poderia ter criado condições
para uma redução generalizada dos horários de trabalho e para a emancipação
da força de trabalho de uma organização laboral centrada na separação entre
trabalho intelectual de direcção e trabalho de execução de tarefas rotineiras.
Uma primeira transformação de relevante importância é a fragmentação da
comunidade de trabalho que o modelo taylorista-fordista, apesar da fractura
entre trabalho intelectual e trabalho manual, não tinha posto em causa, pois
caracterizava-se fundamentalmente pela constituição de grandes estabelecimentos tanto na esfera da indústria como na esfera dos serviços concentrados
num determinado local. O novo modelo flexível instituído pela revolução
cibernética permitiu a formação de empresas mais pequenas estruturadas
em rede e repartidas por um vasto território. O modelo clássico de integração vertical foi substituído por um modelo de integração horizontal
em que os escalões intermédios que configuravam a tradicional empresa
taylorista-fordista com a sua organização piramidal cederam o lugar a uma
organização de trabalho fortemente polarizada: por um lado, um núcleo
duro extremamente exíguo de trabalhadores altamente qualificados e
considerados indispensáveis para a valorização do capital; por outro lado,
uma legião crescente de trabalhadores com contratos atípicos ou precários – temporários, intermitentes, etc. – que vêem o seu estatuto laboral
degradar-se cada vez mais e correm o risco de não conseguirem alcançar
durante toda sua vida activa um mínimo de estabilidade. À tradicional
contraposição entre capital e trabalho assalariado acrescenta-se uma nova
fractura entre uma elite de working rich e um grupo que tende a aumentar
cada vez mais de working poor. É de sublinhar ainda que estes não são apenas
trabalhadores de baixas qualificações, mas abrangem um cada vez maior
número de trabalhadores que, apesar de possuírem qualificações relativamente elevadas, dispõem de uma formação considerada redundante para a
valorização do capital e, por conseguinte, vêem degradar-se relativamente
as suas condições de existência.
Uma segunda transformação que nasceu no mundo anglo-saxónico, mas
acabou por generalizar-se foi a ascensão da corporate finance. Característica
fundamental desta transformação, foi a ruptura do compromisso social
que permitia aos trabalhadores assalariados representados pelos sindicatos
47
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
negociarem com as administrações das grandes sociedades anónimas,
representadas pelos managers, a melhoria das condições de trabalho, os níveis
salariais, bem como um conjunto de direitos que garantiam uma certa
estabilidade de emprego e o acesso à aposentação. Ao contrário do que
defendem as teorias tradicionais que se deixam encantar pelas aparências,
o novo modelo de organização empresarial transferiu o poder económico
para os conselhos de administração, que representam os ‘investidores’,
na prática, os grandes accionistas, convertendo os managers, nomeados por
estes conselhos, em meros agentes da valorização das acções detidas pelo
‘núcleo duro’ das sociedades anónimas. Uma das funções do manager já
não é, como acontecia anteriormente, negociar as condições de trabalho
com os sindicatos representativos dos trabalhadores assalariados. A sua
função exclusiva consiste em ‘criar valor’ para os accionistas sem nenhuma
consideração pelos direitos dos outros actores que participam na vida das
empresas. Uma das consequências deste novo modelo de gestão é a vaga
de fusões e reestruturações empresariais que se traduz geralmente em
despedimentos maciços saudados nos mercados financeiros pelo aumento
do valor das acções. Uma segunda consequência é o considerável aumento
do peso da componente financeira de curto prazo, já que os processos de
reestruturação se baseiam em empréstimos que para serem reintegrados
com os respectivos juros exigem retornos tão céleres quanto possível e, por
conseguinte, bloqueiam as perspectivas de investimento de longo prazo. A
terceira consequência são as formas de ‘contabilidade criativa’ ou, menos
eufemisticamente, o incentivo à fraude, pois os managers, tendo as suas
remunerações indexadas à valorização das acções não se livram da tentação
de empolar artificialmente os resultados líquidos das empresas que gerem,
declarando lucros inexistentes, mesmo quando estas se encontram à beira
da falência. O exemplo mais paradigmático deste tipo de comportamento
foi a falência da empresa norte-americana Enron, em 2001, que não
constituiu, porém, um caso isolado, já que no mesmo período rebentaram
uma série de escândalos financeiros em outras grandes empresas de que
se destacam o do grupo Vivendi de Jean Marie Messier e o da insuspeita
Deustche Telekom, presidida por Ron Sommer, que registaram dívidas
astronómicas.
A diminuição em termos tanto relativos como absolutos do operariado
48
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
industrial tanto na Europa Ocidental como nos Estados Unidos constitui
outro dos factores que contribuíram para a alteração da relação de forças
em que se baseava o compromisso social do período posterior à Segunda
Guerra Mundial. O fenómeno das deslocalizações do capital teve uma
importante influência nesta transformação que se traduziu num aumento
do operariado nos países emergentes, em que sobressai a China, convertida
em ‘fábrica do mundo’, e numa recomposição do trabalho industrial nos
países desenvolvidos: peso crescente das actividades imateriais situadas
a montante da produção directa – I&D, concepção e projecto, design,
mediação e coordenação estratégica; reconfiguração do operariado com
a emergência de categorias de trabalhadores industriais – engenheiros e
técnicos ligados ao controlo e à reparação dos novos sistemas automatizados
– e de trabalhadores dos sector de serviços que, embora não sejam operários
nem técnicos da indústria, elaboram o software e os sistemas operativos
sem os quais as novas máquinas não podem funcionar; desmantelamento
das grandes concentrações operárias e proliferação de uma multidão de
pequenos estabelecimentos organizados em rede e controlados pelos grandes
grupos económicos e financeiros. Paralelamente, as operações industriais
de rotina são cada vez mais deslocalizadas para os países emergentes em
regime de subcontratação.
No plano político, não podem ser esquecidos dois importantes eventos:
a contra-revolução conservadora dos anos 80 do século XX, capitaneada
por Margaret Thatcher e por Ronald Reagan, e a implosão do socialismo de
Estado de matriz soviética. A primeira foi responsável pela transformação
da Grã-Bretanha, pátria da primeira Revolução Industrial, num país de
serviços, de que se destaca a componente financeira, pela destruição dos
grandes bastiões do operariado britânico, fundamentalmente do sector
mineiro e da indústria pesada e pela privatização das empresas públicas
britânicas. O seu colega do outro lado do Atlântico contribuiu para a
desregulamentação dos sectores em que predominava o compromisso
social entre os sindicatos e as administrações empresariais – os casos das
telecomunicações e dos transportes aéreos são exemplos paradigmáticos –,
o que teve como principal consequência um debilitamento acelerado da
capacidade negocial dos sindicatos e uma quebra do número de sindicalizados
que, no entanto, já se tinha iniciado nos anos 70 do século passado. A
49
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
implosão do socialismo de Estado soviético e a conversão dos seus satélites
a um capitalismo inspirado no modelo norte-americano de Reagan
permitiram que os poderes económicos dominantes na Europa Ocidental
se desvinculassem do compromisso que sustentava o Estado social europeu.
De resto, estes poderes apenas tacitamente aceitavam o modelo social em
vigor na União Europeia, já que tinham consciência que um agravamento
das desigualdades e da conflitualidade social poderiam conduzir a uma
crise de legitimação que pusesse em causa o controlo que exerciam sobre
a organização do trabalho. De uma estratégia que até então era defensiva
passaram, ainda antes da implosão do socialismo de Estado soviético e com
a ajuda da contra-revolução conservadora, definitivamente à ofensiva.
Os partidos tradicionalmente implantados nas classes trabalhadoras
registaram também um processo de erosão que não pode ser dissociado da
redução do peso do operariado com as suas históricas tradições de luta na
estrutura social, da fragmentação dos estatutos laborais e dos processos de
recomposição e reconfiguração do tecido produtivo que, iniciados ainda
antes da implosão do socialismo de Estado soviético, puderam depois generalizar-se. Os partidos comunistas deixaram praticamente de constituir
uma força política na Europa, embora continuassem a manter uma forte
influência sindical, como o prova os casos italiano, francês, português e
espanhol. Os partidos socialistas e social-democráticos, até então beneficiários do contexto da Guerra Fria que lhes permitiu, simultaneamente,
desembaraçar-se das referências marxistas – como é confirmado pelo
Congresso de Bad Godesberg do SPD em 1959, exemplo paradigmático
de alcance universal – e defender o compromisso que sustentou durante
trinta anos o Estado social europeu –, registaram um processo de social
liberalização cujos exemplos mais paradigmáticos foram as ‘Terceiras Vias’
de Tony Blair e Gerard Schröder. Este processo caracterizou-se fundamentalmente por uma orientação política em que as questões da igualdade
e da justiça social surgiram diluídas numa concepção que tende a privilegiar
uma pretensa ‘igualdade de oportunidades’, a defesa das privatizações, que
tinham sido iniciadas pelos governos de Margaret Thatcher, e a redução das
funções e apoios sociais do Estado, apesar de algumas declarações de fidelidade pouco convincentes. Exemplo paradigmático desta nova orientação
política foi a redução significativa do acesso às prestações sociais impul50
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
sionada pelo governo social-democrático alemão de Gerard Schröder
e a doutrina do ideólogo da Terceira Via, Anthony Giddens, favorável a
um sistema de aposentação centrado na capitalização e não na repartição,
bem como na ideia peregrina, que deixou numerosos discípulos, de que o
subsídio de desemprego não constituía um direito, mas uma contrapartida
de uma prestação baseada na obrigatoriedade do trabalhador aceitar um
trabalho por salários cada vez mais miseráveis.
Entre Cila e Caríbdis
A crise financeira de 2008-2009 é apenas uma manifestação da crise
mais profunda da liberal democracia. Um das características fundamentais
desta forma de democracia é a sua relativa capacidade de evitar que os
conflitos sociais se transformem em guerra aberta e em explosões de
violência. Mas para isso deve renunciar a uma parte da sua herança liberal
nas questões sociais e económicas e promover políticas económicas e sociais
que visam atenuar as disparidades na repartição primária do rendimento.
No entanto, a ruptura do compromisso social que sustentava esta
orientação da liberal democracia conduziu ao fortalecimento das forças
que, anteriormente, por razões de ordem táctica, toleravam a sua dimensão
social. Este fortalecimento não pode, porém, ser separado da regressão
ideológica que grande parte dos partidos socialistas e sociais-democratas
sofreram na Europa. Em contraste com os partidos comunistas, cujo
declínio político se tornou praticamente irreversível após a queda do Muro
Berlim, estes afirmaram-se como ‘partidos interclassistas’, pois partiam
do pressuposto de que o declínio relativo do peso da classe operária na
estrutura socioeconómica conduziria necessariamente ao fortalecimento
das chamadas ‘classes médias’. Esta estratégia revelou-se duplamente
desastrosa. Primeiro, o agravamento das desigualdades conduziu a formas
de proletarização dos trabalhadores dos serviços – veja-se, por exemplo, o
caso dos call centers, e a proliferação dos estatutos precários no terciário com
o aumento dos prestadores de serviços pessoais precários que substituem os
trabalhadores de rotina do escritório taylorista-fordista expulsos do local
de trabalho pela informatização das tarefas tradicionais –, o que teve como
consequência fundamental a redução da heterogeneidade e diversidade
51
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
social que constituíam o argumento central da tese sobre o ‘interclassismo’.
Segundo, a experiência dos partidos socialistas e sociais-democráticos,
como partidos que exerceram (ou exercem cada vez menos na Europa) o
poder político, formatou-os no jogo político-institucional de mediação
e resolução de conflitos. O enfraquecimento destes mecanismos de
mediação institucional como resultado do agravamento das desigualdades
sociais conduziu a um processo de ruptura em maior ou menor grau com
as suas bases sociais de apoio – sobretudo com os sindicatos, de que os
exemplos mais paradigmáticos são a defunta ‘Terceira Via’ de Tony Blair
e o SPD de Schröder em que se registou uma cisão com a formação do
Partido da Esquerda –, em nome da governabilidade ou de uma suspeita
‘ética de responsabilidade’ weberiana que serviu apenas para legitimar a
mera gestão conjuntural do poder político e para o abandono das grandes
directrizes doutrinárias que visavam a construção de um mundo mais justo
e solidário.
Para marcarem a diferença relativamente ao conservadorismo e ao
neoliberalismo, não faltaram os que se deram ao trabalho de inventar uma
pretensa mudança de paradigma: os partidos socialistas e sociais-democráticos, para a além de se preocuparem menos com as questões relacionadas
com a justiça social – ‘ultrapassadas’ pelas novas necessidades, que não
podem ser negadas, de autonomia e criatividade individuais –, decidiram,
em nome do ‘interclassismo’, cortar o cordão umbilical que os ligava aos
sindicatos – esse ‘complexo de Édipo’ das políticas ‘populistas’ que importava erradicar – para se transformarem em partidos ‘progressistas’ na esfera
dos costumes: reconhecimento dos direitos dos homossexuais, das minorias étnicas, da igualdade de género, da interrupção voluntária da gravidez,
etc. No entanto, apesar do reconhecimento destes direitos ser inestimável
e constituir um enorme avanço cultural, não pode, de modo algum, ser
concebido como uma espécie de compensação para a regressão social liberal
nas questões económicas e sociais. Relativamente a estas, a maior parte dos
partidos socialistas e sociais-democratas europeus – provavelmente com a
excepção do Partido Socialista Francês ainda dirigido por Martine Aubry
– assemelham-se cada vez mais a uma personagem da peça teatral Um Inimigo
do Povo do grande dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, que afirma: “Não
mudei de posição, só me tornei mais moderado. O meu coração continua
52
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
com o povo; mas não nego que a minha razão se inclina no sentido dos
detentores do poder”2. Perante a viragem à direita nas questões económicas e sociais da generalidade dos partidos socialistas e sociais-democratas,
avançam as respostas da direita neoliberal e da esquerda ultra-radical à crise
da liberal democracia.
Relativamente às primeiras, podemos destacar um artigo de Anatole
Kaletsky, editorialista do diário londrino Times e publicado na revista
britânica Prospect. Significativamente intitulado O Estado já não tem os meios para
construir o social (segundo a versão francesa “l’État n’a plus les moyens de faire
du social” da revista Courrier International de 23 de Setembro de 2010), o
artigo centra-se também numa teoria da compensação, embora de espécie
diferente da que caracterizou a social liberalização dos partidos socialistas
e sociais-democratas europeus: os governos sobreendividados devem
privatizar a educação, os serviços de saúde e as aposentações para poderem
recuperar o controlo da gestão da economia e das finanças. Desde logo,
Kaletsky comete um erro muito frequente quando separa radicalmente o
económico do social: o económico é uma parte do social, já que a economia
se baseia num conjunto de relações entre classes e grupos sociais no processo
de produção e repartição da riqueza e não se reduz, como pressupõe a ciência
económica oficial, a um somatório de indivíduos que agem em função das
suas ‘expectativas racionais’ para maximizarem os seus interesses. Neste
sentido, a ‘compensação’ não pode necessariamente funcionar, revelandose, além do mais, absurda, pois o desmantelamento anunciado do Estado
social é completamente incompatível com a recuperação do controlo sobre
a gestão da economia e das finanças que acabaria por ser subordinada ao
princípio neoliberal da auto-regulação dos mercados responsável pela crise
financeira de 2008-09 e pela actual ditadura dos mercados financeiros e
das agências de rating sobre os Estados europeus mais endividados.
O argumento baseia-se numa lógica contabilística rudimentar: ao cortar-se
nas despesas sociais do Estado libertam-se recursos para a gestão da economia
e das finanças. No entanto, tudo aponta para que esta pretensa gestão se
limitará à adopção de políticas económicas esclusivamente orientadas para a
2
Ibsen, Henrik, Peças escolhidas,Vol. III, Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 63.
53
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
redução dos défices públicos, o que terá como consequências uma redução
generalizada do bem-estar social e do nível de vida da população laboriosa
e, consequentemente, um aumento do desemprego. Eis mais uma razão
que nos explica que o económico e o social não podem ser separados, mas
estão profundamente interligados. Apesar de reconhecer a maior eficácia
dos sistemas públicos de saúde da Europa Ocidental relativamente ao
sistema de saúde predominantemente privado norte-americano, o grande
‘dilema’ de Kaletsky é o envelhecimento generalizado da população nos
países desenvolvidos, o que se é verdade para os países da União Europeia
é absolutamente falso para países como os Estados Unidos, a Austrália e
o Canadá. Este envelhecimento serve-lhe de pretexto para recomendar
à esquerda a reforma do Sistema Nacional de Saúde britânico (NHS)
no sentido da sua ‘privatização parcial’ com o argumento de que “bons
estabelecimentos escolares e universidades acessíveis são mais importantes
para a prosperidade futura e para a justiça social do que hospitais, que
cuidam sobretudo de cidadãos envelhecidos cuja contribuição económica
é reduzida enquanto representam o grupo demográfico mais rico da
sociedade”3.
Estas considerações são completamente inaceitáveis, já que o cidadão
não pode ser reduzido ao homo oeconomicus e avaliado exclusivamente segundo
o critério da sua ‘contribuição económica’ – quais serão os que mais beneficiam com esta é uma questão que, apesar das crescentes desigualdades
sociais, nem sequer se coloca para Kaletsky – e uma sociedade mais justa
e solidária deve caracterizar-se pelo elevado nível de bem-estar dos seus
cidadãos mais idosos que já deram o seu contributo para a prosperidade
geral. Além do mais, os ataques aos sistemas públicos de pensões de reforma
– na Grã-Bretanha vigora um sistema misto, como nos Estados Unidos,
e os fundos privados de pensões encontram-se em situação deficitária4
– servem de pretexto para a introdução de esquemas privados centrados
na capitalização bolsista ou nas chamadas ‘contribuições definidas’ que
transferem o risco exclusivamente para o futuro pensionista que fica assim
3
Kaletsky, Anatole - “L’Etat n’a plus les moyens de faire du social”, Courrier International, Paris, 23 de Setembro de
2010, p. 23. Pelo contrário, em Portugal, uma grande parte da população idosa é pobre e excluída.
4
Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - Inquérito ao capitalismo realmente existente, Edições Afrontamento, Porto, 2009, pp. 103-04.
54
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
completamente dependente da instabilidade dos mercados financeiros.
Tem-se também verificado sensivelmente a partir dos anos noventa do
século passado que a população idosa é cada vez menos o estrato mais rico
da sociedade em consequência das contra-reformas que têm contribuído
não apenas para aumentar cada vez mais a idade máxima de aposentação,
mas também para reduzir brutalmente o valor das pensões.
Ironia das ironias são as considerações finais de Kaletsky. Depois de
‘recomendar’ à esquerda que deve privatizar parcialmente o NHS, alerta-a
para o facto de que, se esta não seguir os seus ‘bons conselhos’, “serão os
conservadores que defenderão com a maior veemência a responsabilidade
do Estado neste domínio, servindo-se do aumento inexorável das despesas
de saúde como um cavalo de Tróia para derrubarem todos os outros
programas públicos”5. Este argumento é completamente redundante. Em
primeiro lugar, porque basta abrir uma brecha privatizadora no sistema de
saúde pública para que esta se alargue cada vez mais, embora alguns sociais
liberais não o desdenhem completamente com a sua estratégia minimalista
defensiva reveladora de uma total falta de coragem e convicções ideológicas
resultantes da mera gestão voluntarista do poder político que apenas contribuiu para iniciar o desmantelamento do modelo social europeu, apesar
de agora, perante os ataques cada vez mais despudorados e violentos do
neoliberalismo, se arvorarem nos seus maiores paladinos e defensores. Em
segundo lugar, não se pode continuar a aceitar uma concepção de sociedade
que tem como horizonte exclusivo a produção e acumulação de riqueza e
considera como um custo insuportável a maximização do bem-estar social
e não a irracionalidade e o desperdício resultante da especulação financeira e da concentração da riqueza acumulada em mãos de um número
cada vez mais exíguo de possuidores que impõem à maioria da população
trabalhadora ritmos cada vez mais intensos de trabalho e condições de vida
cada vez mais precárias, instáveis e inseguras.
No pólo oposto, situa-se a esquerda ultra-radical e extraparlamentar
para a qual a crise institucional da liberal democracia abre novas perspectivas para a emergência de uma ‘nova esquerda’. O filósofo esloveno
5
Kaletsky, Anatole, Ib., p. 21.
55
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
Slavoj Zizek é uma das figuras representativas desta corrente. Num artigo
intitulado A permanent economic emergency (“Uma emergência económica
permanente”), publicado no número de Julho/Agosto de 2010 da revista
britânica New Left Review, considera que existem duas interpretações sobre
a crise actual. A primeira é a interpretação dos defensores do establishment
que propõe medidas regulatórias que não dependem de escolhas políticas,
mas dos imperativos de uma lógica financeira concebida como neutra e
despolitizada a que os países se têm necessariamente que submeter como
se fosse uma lei da natureza. Os segundos, que abrangem os trabalhadores, estudantes e pensionistas consideram que as medidas de austeridade
constituem mais um pretexto do capital financeiro internacional para o
desmantelamento do que ainda resta do Estado de bem-estar na Europa.
Para Zizek as duas interpretações, apesar de parcialmente verdadeiras, são
fundamentalmente falsas.
O argumento tende desde logo a desvalorizar a defesa do Estado social
através de um processo de fuga para a frente em que a principal culpada é a
“miséria da esquerda actual” acusada de não ter um “conteúdo programático positivo”, mas de se limitar a defender o Estado Social. Zizek considera
que tentativa de manter o “Estado de bem-estar dentro do sistema” constitui
uma “utopia”6. Pelo contrário, o que não é utópico é a “transformação
radical do sistema”. Para legitimar esta ‘postura’ Zizek não hesita em reinterpretar e reintroduzir as receitas de certos epígonos contemporâneos da
defuntíssima Revolução Cultural chinesa, destacando o filósofo francês
Alain Badiou que lhe serve de sistema de referência: “Seria simplista
acreditar que a crise actual continuaria a garantir um nível de vida relativamente elevado a um número crescente de pessoas. Seria realmente
estranha uma política radical, baseada numa expectativa que as circunstâncias continuarão a tornar inoperativa e marginal. É contra esta concepção
que devemos adoptar a palavra de ordem de Badiou, mieux vaut un désastre qu’un
désêtre: é melhor um desastre do que um não ser; devemos correr o risco
de fidelidade a um Acontecimento, mesmo se o acontecimento desemboca
num «desastre obscuro». O melhor indicador da falta de confiança da
6
Zizek, Slavoj -”A permanent economic emergency”, New Left Review, Londres, Julho/Agosto 2010, p. 86.
56
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
esquerda em si própria hoje em dia é o seu medo da crise. Uma verdadeira
esquerda assume a crise seriamente, sem ilusões. A sua perspectiva básica
é que, apesar das crises serem dolorosas e perigosas, são inevitáveis e são o
terreno em que as batalhas têm que ser travadas e ganhas. Eis a razão pela
qual hoje, mais do que nunca, é pertinente a velha palavra de ordem de
Mao Tse Tung: «Tudo sob o céu se encontra num caos completo; a situação é excelente»”7.
Estas considerações expressam claramente a ‘estratégia’ da extrema-esquerda e, sobretudo, o que é mais grave e totalmente condenável e
inaceitável, o reencontro com a sua vocação totalitária que se julgava
perdida. A estratégia é clara: apostar na polarização dos conflitos sociais
para ganhar posições e, consequentemente, recrutar um número crescente
de seguidores que possam abrir ‘brechas’ cada vez maiores no ‘sistema’, pois
só assim se poderão criar as condições necessárias para “a sua transformação
radical”. “Promover a catástrofe iminente sem os meios de a conjurar”cito a frase de outro célebre revolucionário mais sensato - é, no fundo, a
‘palavra de ordem’ de Zizek que não deixa de ser um passo de gigante para
a apologia de soluções extremistas antidemocráticas. Prova disso, é a frase
zizeckiana, inspirada no pós-maoista Alain Badiou, de que se deve “correr
o risco de fidelidade a um acontecimento, mesmo se este desemboca num
«obscuro desastre»”. Esta frase podia ser inteiramente subscrita pelos
partidários das ‘utopias perfeitas’ cujo exemplo mais trágico foi o regime
genocida de Pol Pot no Cambodja: era necessário erradicar a memória
histórica de um povo para começar a construir o ‘homem novo’, ou seja,
precisamente aquele cuja consciência pudesse ser redefinida e reescrita a
partir do zero como se fosse uma folha branca, para utilizar outra célebre
tirada do ‘Grande Timoneiro’ chinês.
A ‘alternativa’ proposta por Zizek é a ruptura com os mecanismos
institucionais da liberal democracia e, consequentemente, a apologia da
violência. O filósofo esloveno considera que a reforma política é manifestamente insuficiente, porque não exerce nenhuma influência sobre
a transformação das relações de produção que se situam fora da esfera
7
Ibidem, p. 87.
57
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
político-institucional. Se é verdade que a liberal democracia se baseia
no reconhecimento da propriedade privada dos meios de produção e no
controlo da organização do trabalho pelos detentores do poder económico
e financeiro, também é verdade que apenas um alargamento da componente social e económica da democracia poderá criar condições para que
os trabalhadores possam controlar as condições de trabalho e participar na
gestão das empresas. No entanto, Zizek não defende esta posição. Voltando
ao que parece ser o seu ‘maître à penser’ conclui: “Badiou tinha razão na
sua exigência de que o nome do derradeiro inimigo actualmente não é o
capitalismo, o império ou a exploração, mas a democracia. É a aceitação
dos «mecanismos democráticos» como último reduto que impede uma
transformação radical das relações capitalistas”8.
A “transformação radical das relações de produção capitalistas” passa
pela “desfetichização das «instituições democráticas»” o que, como não
poderia deixar de ser, conduz muito dialecticamente à “desfetichização”
do seu contrário: a “desfetichização” da violência. A proposta de Zizek,
de novo inspirado em Badiou, é o “exercício da violência defensiva” que
consiste na criação na sociedade de “zonas libertadas” do poder de Estado9.
Pressupõe-se que o alargamento destas “zonas libertadas” porá em causa
a ‘violência’ do Estado e criará as condições para a emancipação de todos.
Mas o que é uma ‘zona libertada’? As ‘banlieus’ parisienses com os seus
exércitos de casseurs serão ‘zonas libertadas’? Os infiltrados ultra-radicais
nas grandes manifestações sindicais e altermundialistas que provocam
deliberadamente a intervenção da polícia serão provenientes das tais
‘zonas libertadas’ ou meros provocadores a soldo da ‘violência do poder
de Estado’? E como é que se pode separar violência defensiva de violência
ofensiva? Também não será verdade que a ‘desfetichização’ da violência
contribui não apenas para alimentar uma estratégia de tensão que favorece
a extrema-direita e pode servir para legitimar soluções políticas que, em
nome da segurança, restrinjam as liberdades e os direitos individuais dos
cidadãos? Zizek ilude a resposta a estas questões quando afirma: “A palavra
8
Ibidem, p. 88.
9
Ibidem, p. 88.
58
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
de ordem standard liberal – que é, por vezes, necessário recorrer à violência,
mas nunca é legítimo – não é suficiente: para os oprimidos, a violência é
sempre legítima – já que o seu status é o resultado da violência – mas nunca
necessária: é sempre uma questão de consideração estratégica quando se
deve ou não utilizar a força contra o inimigo”10.
Importa saber – e Zizek não responde – quem define o momento estratégico ‘adequado’ para a utilização da violência. Será uma nova ‘vanguarda’
dos oprimidos que concebe a democracia como um mero instrumento
para conquistar o poder e acaba por instaurar uma ditadura feroz sobre as
classes oprimidas e exploradas que se comprometeu solenemente a emancipar? Considerando que o estabelecimento da “ditadura do proletariado”
está ultrapassada, não resta a Zizek outro recurso senão a solução voluntarista da acção pela acção, mesmo que tal conduza ao desastre que acabará
por ser inevitavelmente a destruição da própria democracia: “Hoje não
sabemos o que temos de fazer, mas devemos actuar agora, porque a consequência da não-acção pode ser desastrosa. Somo forçados a viver como «se
fôssemos» livres. Temos que arriscar passos para o abismo, em situações
totalmente inapropriadas; temos que reintegrar aspectos do novo, precisamente para conservarmos a maquinaria em movimento e mantermos o
que era bom no passado – a educação, a saúde, os serviços sociais básicos.
Em suma, a nossa situação é semelhante à que Estaline referiu a propósito
da bomba atómica: não é para os que têm nervos fracos. Ou a que Gramsci
referiu, quando caracterizou a época que se iniciou com a Primeira Grande
Guerra Mundial: «O velho mundo está a morrer, e o novo mundo luta
para nascer: agora é o tempo dos monstros»”11.
Afinal, ficamos a saber que o ‘velho Estado social’ é reintegrável no
‘abismo’ para onde Zizek arrisca conduzir-nos, o que não deixa de ser
contraditório, pois este é um enorme buraco negro. Mas o que se torna
completamente absurdo e inaceitável é a citação descontextualizada de
Gramsci. Os ‘monstros’ a que o autor dos Cadernos do Cárcere se refere não
surgiram, como se depreende das considerações de Zizek, do “arriscar
10
Ibidem, p. 89.
11
Ibidem, p. 95.
59
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
passos para o abismo”, mas da ascensão de movimentos e partidos de
extrema-direita que culminaram, em Itália, com a marcha sobre Roma
de Mussolini e a instauração do fascismo e, mais tarde, com a queda da
República de Weimar e a conquista do poder pelos nacionais-socialistas
de Hitler. Gramsci e outros sempre lutaram pela defesa da democracia e o
preço a pagar pela sua coragem cívica e política foi a prisão e a morte. Mas
aos contrário da estratégia suicidária de Zizek, estes sempre defenderam,
ao contrário de Estaline com a sua infame teoria do ‘social-fascismo’, que
seria necessário evitar uma estratégia de tensão centrada na polarização e
aprofundamento dos conflitos sociais, pois só assim se poderia prevenir a
eclosão do ‘tempo dos monstros’ que, de certo modo, o filósofo esloveno
considera uma espécie de inevitabilidade. Poder-se-á concluir então que
a esquerda ultra-radical, representada por Zizek com os seus arroubos
pseudo-libertários e a extrema-direita com a exploração dos sentimentos
xenófobos e racistas de algumas camadas da população, têm uma estratégia
política comum, apesar das suas diferenças ideológicas: o enfraquecimento
da democracia que apenas criará condições para o triunfo de regimes
ditatoriais baseados na supressão das liberdades individuais e políticas.
A alternativa à democracia só poderá ser mais democracia.
Retorno ao socialismo democrático
O historiador britânico Tony Judt escreveu um pouco antes da sua
morte prematura no jornal britânico Guardian um artigo intitulado A social-democracia como último bastião (na versão francesa da revista Courrier International,
“La social-démocratie comme dernier rempart”, 23 de Setembro de
2010) que é uma síntese do seu último livro Um tratado sobre os nossos actuais
descontentamentos (Edições 70, Lisboa, 2010). Na parte final do artigo do
Guardian, o historiador britânico reflecte sobre a questão que o social
liberalismo com a sua habitual vacuidade ideológica empurrou para
debaixo do tapete: “Que espécie de sociedade queremos e que espécie de
disposições estamos dispostos a adoptar para a fazermos nascer?”12. Judt
12
Judt, Tony - “La social-démocratie comme dernier rempart”, Courrier International, Paris, 23 de Setembro de 2010, p. 19.
60
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
rejeita o fascínio da esquerda pelos “românticos do século XIX, demasiado
impacientes em rejeitar o mundo antigo e oferecer-nos uma crítica radical
de tudo o que existia”. Admite que “uma crítica deste tipo é provavelmente
a condição necessária para uma transformação em profundidade, mas pode
extraviar-nos perigosamente”13. Que resta, então, fazer à social-democracia
apanhada no fogo cruzado da esquerda ultra-radical e da direita neoliberal?
Para Tony Judt não é certamente o social liberalismo com a sua estratégia
política defensiva e as suas cedências ao neoliberalismo nas questões
económicas e sociais que constitui a resposta: “Não é necessário reduzir
a social-democracia à preservação das instituições úteis, com o objectivo
de se defender contra outras opções mais nefastas. A linguagem política
tradicional é suficiente para apreender o essencial do que está mal no nosso
mundo: estamos intuitivamente familiarizados com as questões da injustiça,
da iniquidade, da desigualdade e da imoralidade – esquecemos simplesmente
como falar delas”14.
O grande escritor britânico George Orwell considerava que “«o que
aproxima os homens comuns do socialismo, o que faz com que estes estejam
dispostos a arriscar a pele por ele, a ‘mística do socialismo’, é a ideia de
igualdade»”15. Combatente republicano da Guerra Civil de Espanha,
de cuja experiência resultou esse extraordinário testemunho Homenagem à
Catalunha, o autor de 1984 sabia bem do que falava. Prova disso é o ensaio The
road to Wigan Pier, onde a questão da desigualdade é abordada através da análise
fundamentada da pobreza das classes laboriosas britânicas. Poder-se-á, no
entanto, perguntar: perante a social liberalização dos partidos socialistas
e sociais-democratas o que resta daquela ‘mística do socialismo’, o que
resta da ‘ideia de igualdade’? Infelizmente, pouco ou quase nada. O social
liberalismo dominante decidiu que a questão da igualdade devia reduzir-se à igualdade de oportunidades a que se acrescentaria uma dose cada vez
maior de meritocracia para completar o róseo quadro do seu conformismo
relativamente aos poderes económicos dominantes. É por demais
13
Ibidem, p. 19.
14
Ibidem, p. 19.
15
Cit. por Judt, Tony, Ibidem, p. 19.
61
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
evidente que a ‘igualdade de oportunidades’ não conduz necessariamente
à igualdade de resultados, já que as escolhas dos indivíduos são sempre
socialmente condicionadas e os que partem de posições socialmente mais
vantajosas têm sempre mais possibilidades de ascenderem socialmente e,
por conseguinte, de conseguirem empregos melhor remunerados ou de
exercerem funções de poder e predomínio sobre os outros. Além do mais,
a ideologia da ‘igualdade de oportunidades’ abre o caminho à meritocracia,
tão do agrado de alguns sociais liberais, que, como os neoliberais que lhe
servem de referência, se interrogam amiúde: não é verdade que os menos
favorecidos tiveram iguais chances de acesso ao sistema público de ensino,
mas não as souberam aproveitar, foram ‘preguiçosos’ e até ‘indolentes’,
não revelaram o ‘mérito’ dos que, graças apenas ao seu ‘esforço’ e
‘iniciativa’, conseguiram dar ‘o grande salto em frente’ nas suas aspirações?
Já existem até alguns ‘profundos pensadores’ que estabelecem uma subtil
distinção entre ‘desigualdades justas’ e ‘desigualdades injustas’ na base do
argumento de que cada um, independentemente da classe ou grupo social
a que pertence, é responsável pelas suas escolhas e, por conseguinte, quem
faz ‘más’ escolhas merece ser ultrapassado na corrida ao sucesso pelos que
fizeram as ‘boas’ escolhas.
A adesão do social liberalismo a estes ‘valores’ torna-o cada vez mais
um dos principais bloqueios à constituição de uma alternativa às receitas
neoliberais e um dos protagonistas da crise da liberal democracia que
alimenta a crescente polarização dos conflitos sociais e põe em causa a
democracia. É necessário então retomar a ideia de igualdade do socialismo
democrático. Esta ideia de igualdade tem como fundamento uma concepção
de sociedade como empreendimento cooperativo em que a liberdade de
cada um não é um obstáculo à liberdade dos outros, mas a condição da
sua liberdade. Isto significa que a luta pelo predomínio que caracteriza
o princípio da competitividade do neoliberalismo deve ser substituído
pelo princípio da inclusão que se centra na criação de políticas públicas
que visam precisamente reduzir o mais possível a desigualdade dos pontos
de partida de modo a que se possa criar verdadeiramente aquilo a que o
filósofo norte-americano John Rawls chamou ‘igualdade equitativa de
oportunidades’16.
Uma igualdade equitativa de oportunidades não opõe – como o faz
62
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
a ideologia neoliberal – igualdade a liberdade, mas concebe-as como
complementares. A redução da desigualdade dos pontos de partida permite
que cada um possa escolher mais livremente o que deseja fazer e reconhecer
as opções dos outros em função da cooperação de todos na realização de
um empreendimento comum. Isto significa uma mudança de paradigma
societário que não é compatível com o princípio da competição em que
cada um tenta aumentar o seu predomínio sobre os demais ou evitar que
estes o ultrapassem ou excluam da posição que alcançou. Significa também
uma nova concepção de sociedade que o grande socialista britânico
Robert Owen (1771-1858) enunciou em 1812, mas continua hoje mais
actual do que nunca: “Aquele Poder que governa e penetra o universo,
formou o homem de maneira a que ele tenha de passar progressivamente
de um estado de ignorância a um estado de inteligência, cujos limites não
compete ao homem decidir, e que nesse progresso ele descubra que a sua
felicidade individual apenas pode elevar-se e aumentar na proporção em
que ele se esforce activamente por aumentar e estender a felicidade de
todos à sua volta”17.
A nova concepção de sociedade pressupõe coragem e determinação
políticas e uma ruptura com as concepções sociais liberais no âmbito das
questões económicas e sociais. É necessário, antes de tudo, ter em conta
que ela integra o reconhecimento dos direitos das minorias, de que
os sociais liberais se ufanam de promover como algo que assinala a sua
‘diferença específica’ relativamente aos ‘velhos’ socialistas que, segundo
eles, permanecem prisioneiros do ‘mito da igualdade’. Pelo contrário,
apenas a exigência de uma maior igualdade poderá contribuir para reforçar
e ampliar o direito destas minorias. De facto, que sentido tem defender,
por exemplo, os direitos dos homossexuais se as desigualdades entre
16
“Na teoria da justiça como equidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento de natureza cooperativa que visa obter vantagens mútuas para os participantes. A estrutura básica é um sistema público de regras que
definem um sistema de actividades que leva os homens a agirem em conjunto de modo a produzir uma maior soma
de benefícios e que atribui a cada um certos direitos, que são reconhecidos, a uma parte dos resultados respectivos.
Aquilo que alguém faz depende dos direitos que as regras públicas lhe reconhecem e estes direitos, por sua vez,
dependem do que ele faz. A distribuição resulta da satisfação das exigências dos sujeitos, as quais são determinadas
por aquilo que eles empreendem à luz dessas legítimas expectativas” (Rawls, John - Uma teoria da justiça, Editorial
Presença, Lisboa, 1993, p. 85).
17
Owen, Robert - Uma nova concepção de sociedade, Textos Filosóficos, Braga, 1976, p. 105.
63
A CRISE DA LIBERAL DEMOCRACIA
homossexuais pobres e ricos, não cessa de aumentar como parte integrante
do aumento generalizado das desigualdades sociais e económicas? Eis como,
o último bastião do social-liberalismo cai por terra: a defesa dos direitos
das minorias sem uma política orientada para a promoção da igualdade
social, para além de se limitar a redistribuir os efeitos da desigualdade sem
atacar verdadeiramente as suas causas, acaba por alimentar a ignorância e o
preconceito social das camadas da população que convertem estas minorias
em bodes expiatórios dos seus medos e frustrações. É o que já acontece com
os imigrantes de origem turca na Alemanha e com a vergonhosa política
de Sarkozy em França relativamente à população cigana, ambas apoiadas
por amplos estratos da população francesa e alemã. Mas isto significa que
estas questões das minorias não são apenas questões de ordem cultural, mas
também – e fundamentalmente – questões sociais e políticas.
Perguntarão alguns: como é possível manter razoáveis níveis de igualdade social na Europa sem ter em conta a defesa da sua competitividade
económica? Não é verdade que o baixo crescimento na União Europeia
gera emprego insuficiente para manter a sustentabilidade do modelo social
europeu? Não é verdade que o envelhecimento da população europeia
põe em causa a manutenção dos sistemas públicos de aposentação? Não é
verdade que a competição de alguns países emergentes para onde são deslocalizados indústrias e mesmo alguns serviços de alto valor acrescentado gera
um nivelamento por baixo dos salários e das condições sociais tanto das
classes operárias como de amplos estratos das classes médias assalariadas dos
países da União Europeia e de outros países desenvolvidos?
Estas objecções tornam, é certo, mais difícil a tarefa de criar condições
de maior igualdade, mas não a tornam impossível. Antes de tudo, a União
Europeia nunca poderá ser ‘competitiva’ relativamente aos custos salariais
da China, nem mesmo se os cidadãos da ‘velha Europa’ permitirem que o
modelo social europeu seja totalmente desmantelado. Num mundo cada
vez mais globalizado em que a informação circula à velocidade da luz as
populações trabalhadoras dos países emergentes não poderão contentar-se
eternamente com longos horários de trabalho, baixos salários e precárias
condições de vida, mas exigirão cada vez mais participar na prosperidade
que contribuíram para promover e de que são excluídas. A vaga de greves
na China no Verão passado é já um sintoma de que algo está a mudar
64
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
nestes países. Isto significa que a competitividade económica não pode
ser utilizada como pretexto para reduzir os direitos sociais na Europa em
nome da preservação do essencial de um modelo social europeu que tende
a debilitar-se-se cada vez mais. A mudança de paradigma deve empreender
com a necessária coragem política a reforma dos sistemas fiscais e tributários
no sentido da sua maior progressividade, a abolição dos paraísos tributários
e a penalização dos países da ‘nova Europa’ que criaram uma taxa única de
imposto sobre o rendimento. Esta deve apostar também numa forma de
financiamento dos sistemas de aposentação centrado no valor acrescentado,
ideia já defendida pela dirigente socialista Martine Aubry, ou, como defende
Alfredo Bruto da Costa, numa reforma fiscal que não se centre exclusivamente
nos rendimentos do trabalho, mas englobe “todas as formas de rendimento”18.
É necessário também apostar na integração da população imigrante para
melhorar a sustentabilidade do sistema público de repartição. Uma coisa é
certa: não se pode continuar a considerar como inevitabilidades irreversíveis
as dificuldades do presente para evitar tomar as medidas necessárias para a
construção de um mundo não apenas mais justo e solidário, mas também
um mundo em que os indivíduos – todos os indivíduos – desfrutem de maior
autonomia e liberdade para realizarem as suas expectativas e o projecto de
vida que escolheram. Mas isto significa que o social liberalismo é cada vez
mais parte do problema e não da solução.
18
Ramos de Almeida, João - “«Comissão do livro branco» contra dedução em 0,25 pontos”, Público, 31.10.2010, p. 6.
65
O Futuro da Terceira Via
Tendências e Alternativas, na Perspectiva de um Socialismo Cognitivo
José Nuno Lacerda da Fonseca
S
egundo Anthony Giddens, a expressão “terceira via” terá sido criada
na passagem do século XIX, vindo depois a popularizar-se, curiosamente entre grupos de direita, por volta de 1920. Só mais tarde,
foi utilizada por social-democratas e socialistas, no pós-guerra. Em
1951, a Internacional Socialista usava esta expressão para designar uma via intermédia entre comunismo e capitalismo.
Mais recentemente, a expressão terá sido apropriada por Clinton (ligada aos
movimentos New Democrats, Reinventing Government e New Public Management), dos anos
80 e, também, por Blair, tornando-se uma teorização que muito tem influenciado o socialismo democrático.
A análise que aqui se fará irá centrar-se nos três livros de Giddens que mais
claramente se reclamaram da terceira via e a influenciaram (Para uma Terceira Via, A
Terceira Via e os seus Críticos e Over to you Mr. Brown).
I. As opções fundamentais
Após a análise dessas obras, parece ser de concluir que a terceira via se organiza em
torno de oito opções fundamentais, definindo o seu modelo de sociedade a atingir.
Contudo, Giddens não as identifica expressamente como tais, não as sistematiza e,
para muitas delas, escassamente as tenta fundamentar e argumentar. Não obstante,
parece claro que se trata dos seus postulados, em função dos quais propõe uma série
de estratégias mais operativas, essas sim ocupando a maior parte dos seus livros.
Uma das suas opções fundamentais é de que o mercado, protagonizado por
organizações privadas, é o melhor sistema de criação de riqueza, embora com
limitações que devem ser combatidas pelos governos, como a tendência para
crises cíclicas e para criar sociedades com muitas desigualdades.
A segunda opção fundamental é por um igualitarismo que não esteja centrado
na igualdade económica mas dê mais importância à luta contra a exclusão social
de vários grupos, bem como à igualdade de oportunidades. A saúde e a educação
67
O FUTURO DA TERCEIRA VIA
são entendidas como questões fundamentais da igualdade de oportunidades,
na esfera da responsabilidade do Estado, assim como a igualdade de género e a
inclusão social dos portadores de deficiências. Segundo o autor, a redistribuição
continuará a ser importante, embora se tenham de aceitar desigualdades como
sendo a outra face do crescimento económico, possibilitado pelo mercado e
pelos incentivos ao trabalho e ao espírito empreendedor.
A terceira ideia é trazer as questões ambientais para o primeiro plano, ao
contrário do que tinha sido a prática do movimento socialista.
Uma quarta ideia central é de que o Estado Providência foi longe de mais,
tendo protegido grupos que não precisam de protecção, promovido a desresponsabilização do indivíduo pelo seu futuro e incentivando um certo parasitismo
(embora Giddens nunca use esta última expressão, preferindo colocar a tónica
na frase “não há direitos sem deveres”).
Nunca aparecendo como um objectivo central é, contudo, reconhecida a
importância do controle do défice orçamental do Estado.
Embora sendo uma questão relativamente pouco abordada e tratada de
forma quase secundária, na terceira via, a questão da moral e dos costumes pode
ser considerada uma das questões centrais, não sendo claro, nas exposições
de Giddens, se é um fim ou se é, apenas, um meio de realização das quatro
opções fundamentais. Sobre esta temática parece existir uma tendência a favor
da modernização da moral e dos costumes, no sentido da flexibilização e pluralismo, embora salientando, também, a importância de se procurarem valores
comuns a toda a sociedade.
A questão da eficiência e reforma do Estado e da Administração Pública,
pode ser entendida já como um meio para atingir os quatro objectivos centrais
da terceira via. Contudo, a convicção de que é possível modificar substancialmente a eficiência e eficácia do Estado e da Administração podem, ainda, ser
consideradas a sexta e sétima das opções fundamentais da terceira via.
Por último, uma opção recorrente e com tão forte tónica que, embora possa ser
entendida como um meio para a realização das outras opções fundamentais, não
pode deixar de ser considerada, também, uma das opções fundamentais da terceira
via. Trata-se da convicção de que a sociedade civil (associações, comunidades locais,
instituições de solidariedade) tem um papel fundamental a desempenhar, substituindo e complementando o Estado em muita das suas funções, bem como sendo
parceiro das empresas para o desenvolvimento económico e a criação de emprego.
68
JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA
II. A evolução das opções centrais
II.1. Mercado
A opção por uma economia de mercado começa por ser apresentada como
a única opção óbvia, face ao falhanço das economias planificadas, não exigindo
qualquer argumentação a favor da superioridade do mercado. Só no segundo
livro Giddens começa a apresentar alguma argumentação a favor deste sistema de
organização económica (criação de riqueza, liberdade do consumidor, promoção
da paz). Já tardiamente, no terceiro livro, faz o autor uma análise comparativa
entre planeamento e mercado, afirmando que a competição torna o mercado
um mecanismo superior, pois é um mecanismo selectivo capaz de atribuir meios
de actuação económica a quem realmente mostra capacidade e iniciativa.
Apesar de, desde o primeiro livro, referir as limitações do mercado (desigualdades, monopólios, crises cíclicas), só no segundo livro parece optar pelo
neo-keynesianismo, enquanto forma de mercado parcialmente regulado pelo
Estado, aparentemente sob a égide de Paul Krugman. Nessa altura, acrescenta
a constatação de outras limitações dos mercados reais (imperfeição da concorrência e falhas de informação) como causa para as crises cíclicas, reconhecendo
a extrema gravidade das oscilações nos mercados financeiros e no crescimento
económico.
Depois de ao longo dos dois primeiros livros ter sido um entusiasta dos
mercados, embora de forma mais atenuada no segundo livro, acontece que, no
terceiro livro, constata que acabaram os tempos do triunfalismo do mercado,
refere que as empresas têm de ser mais responsáveis e que o mercado financeiro
tem de ser mais regulado e acompanhado.
A tendência do autor parece ser para a superação de uma adesão inicial,
muito entusiasta, para ir chegando a um conhecimento cada vez mais claro do
que é realmente positivo nos mercados (concorrência e livre iniciativa), embora
nunca vá mais longe do que o neo-keynesianismo e da constatação, aliás pouco
clara, de que falta criar algo que possa melhorar o mercado, de forma a superar
desigualdades, colmatar a tendência para monopólios e outras imperfeições da
concorrência e, sobretudo, evitar as crises cíclicas.
A reflexão sobre essas necessárias correcções ao sistema de mercado nunca vai
além de rápida referência ao neo-keynesianismo. Contudo, Giddens refere, logo
69
O FUTURO DA TERCEIRA VIA
no primeiro livro, a ideia do socialismo de mercado, muito superficialmente,
referindo apenas que já foi sinónimo de terceira via e aludindo a Ota Sik (embora o
nome de Oskar Lange costume ser o primeiro a associar a este conceito e actualmente
se refira John Roemer). Estranhamente, nunca explora esse conceito. Sendo
que o socialismo do mercado parece ser, embora superficialmente, conhecido
por Giddens e existindo a tendência do autor para um aprofundamento do
conhecimento crítico do que realmente é valido nos mercados, podia-se esperar
que a ideia de socialismo de mercado viesse a reemergir, como um dos possíveis
futuros para a terceira via. Apesar da pouca importância que Giddens lhe deu nos
três livros referidos, este conceito parece encerrar grande significado. Embora
existindo muitos modelos de socialismo de mercado, talvez se possa afirmar que
a sua ideia base é que o mercado é o melhor mecanismo de desenvolvimento
económico, devendo, todavia, este existir com capitais maioritariamente públicos.
Isto é, existindo efectiva concorrência entre empresas e liberdade de iniciativa
dos seus responsáveis, a eficiência fica assegurada, mesmo sem capitais privados.
Esta concepção parece chocar com a história de fracasso das empresas públicas,
sobretudo no sul da Europa. Contudo, o socialismo de mercado parece pressupor
que a selecção dos gestores das empresas públicas é feita de forma racional, em
função do mérito e dos seus projectos, sem nepotismo nem outorga de cargos de
gestão como forma de compensação por apoio político prestado. Nesta perspectiva,
a primeira tarefa, operativa, de um futuro para a terceira via seria a criação de
uma instituição, independente, capaz de recrutar gestores, para empresas
públicas, unicamente em função do mérito e das suas iniciativas de negócio. Esta
instituição poderá assumir uma forma de democracia participativa, pragmática,
na qual a nomeação de gestores e dos planos que eles propõem é feita por fóruns
participados pelo Estado e sociedade civil (representantes dos trabalhadores e
consumidores, instituições científicas da área da gestão e tecnologia, etc.), num
modelo relativamente próximo ao usado, há muito tempo, para a nomeação de
gestores de certas escolas, nos EUA e, também, recentemente, introduzido em
Portugal, durante a primeira administração Sócrates, nas escolas secundárias.
Trata-se de uma forma de democracia participativa (a extrema descentralização
deste processo obriga a níveis muito altos de participação), indirecta (os cidadãos
não se pronunciam sobre decisões de governança mas apenas escolhem os agentes
da governança) e segmentada (diferentes grupos de cidadãos decidem sobre
sectores diferentes e nenhum decide sobre a totalidade das nomeações nacionais).
70
JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA
Fica, obviamente, em aberto a possibilidade teórica de um modelo deste tipo
poder evoluir para formas de democracia participativa mais directa e abrangendo
todos os temas da governação de um país ou, mesmo, para formas de democracia
cognitiva (acesso a estes fóruns e ponderação de votos dependente do nível de
conhecimento específico de cada membro do fórum). Se com a democracia
segmentada estamos já em novos paradigmas de co-representatividade (a massa
dos cidadãos não escolhe um representante, apenas outorga a outros cidadãos,
constituídos em fóruns, a possibilidade de representarem os primeiros, desde que
essa outorga seja recíproca), estamos, também, em novos paradigmas de controlo
dos representantes, sobretudo no caso da democracia cognitiva. De facto, o
representado já não controla através da observação dos actos do representante
nem através da obtenção do mesmo nível de informação que o representante
tem (o que é a clássica linha de ultrapassagem dos problemas de “moral hazard” e
“adverse selection”, da teoria dos jogos) mas sim através de vinculação performativa
do representante aos interesses do representado (por exemplo, o representante
terá a sua remuneração matematicamente dependente da remuneração do
representado), bem como de testes que garantam o nível de conhecimento
adequado do representante. De notar que estes novos paradigmas, de vinculação
performativa e de teste cognitivo, podem, também, ser aplicados a formas clássicas
de democracia, como os parlamentos legislativos ou governos, escolhidos em
eleições nacionais de massas, podendo assim, eventualmente, melhorar a qualidade
da intervenção política no sistema económico, em geral. Sobre estes temas e, em
geral, sobre alternativas à terceira via, pode-se encontrar melhor fundamentação
em artigos publicados pelo autor destas linhas, em revistas como “Economia
Global e Gestão”, “Sociologia – Problemas e Práticas”, “Episteme”, “Economia
e Sociologia” e na “Finisterra”.
Sem criar um novo regime político, inspirado por experiências como as
de James Fishkin, as do Orçamento Participativo e de múltiplas novas formas
de governança (muito debatidas por autores como Norberto Bobbio, David
Held e Archon Fung, entre vários), com este desiderato de racionalidade nas
nomeações para instituições e empresas públicas, parecerá supérfluo debater
como se podem criar novas empresas públicas (eventualmente usando alguns dos
fundos públicos que têm vindo a subsidiar as empresa privadas), debater qual o
seu papel no financiamento do Estado Social, na estabilização do crescimento,
na circulação da informação e na contenção das desigualdades, nem, sequer,
71
O FUTURO DA TERCEIRA VIA
parecerá ter operacionalidade debater qual deve ser o papel futuro do capital
privado e das parcerias público/privado.
Num cenário de evolução da terceira via, para um conceito de socialismo
de mercado seria, ainda, obviamente, de exigir, a um socialismo democrático, humanista e, simultaneamente, realista, uma aturada reflexão sobre os
mecanismos e fases de transição para esse modelo, em respeito, democrático e
humanista, pela liberdade e expectativas de realização de todos os protagonistas
económicos, prevendo situações mistas e transições graduais que não façam
perigar o crescimento, o bem-estar e a paz social.
Além do socialismo de mercado existe um outro tema, capaz de fundamentar novos sistemas económicos, que é referido por Giddens, todavia,
também, muito superficialmente. Embora de uma forma muito crítica, existe
uma referência a empresas participadas pelos trabalhadores, no segundo livro,
logo condenadas por atrasarem excessivamente o processo de decisão. De uma
penada, Giddens parece afastar a reflexão sobre teorias democráticas e socialistas
da empresa, colocando-se no pólo oposto a autores como Russel Ackoff (sobretudo no seu livro intitulado The Democratic Corporation, de 1994). Aliás, ao contrário
do que fez para o socialismo de mercado, Giddens nem sequer refere qualquer
autor ou teoria socialista da empresa. Contudo, é evidente que a história da
empresa capitalista revela algumas dificuldades em motivar os seus trabalhadores, sobretudo na modernidade do trabalhador criativo e do trabalho em
equipa, não devendo esta temática ficar fora da reflexão socialista. É no contexto
da promoção da identificação do trabalhador com a empresa e com as equipas
que a constituem que são necessárias reflexões sobre a garantia do emprego e a
contratação a longo prazo, equilibradas com períodos de experiência antes dessa
contratação. Acrescem reflexões sobre o “downsizing “ expresso, unicamente,
na generalização do trabalho a tempo parcial e formação adicional, bem como
reflexões sobre participação, necessária, do trabalhador no capital da empresa
e sua representação nos conselhos de administração. São, ainda, temas da
teoria socialista da empresa, o sistema de “performance related pay” em função
dos resultados das diversas equipas, mini e macro, nas quais o trabalhador se
insere e, em complemento, do diferencial individual (muitas vezes só definível
democraticamente pelas próprias equipas, por conter componentes, subjectivos, nomeadamente de atitudes de cooperação). Por último, devem-se referir
reflexões sobre sistemas de registo de contributos e de formas de cooperação,
72
JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA
formação em ética, psicologia da motivação e comunicação, bem como vários
outros temas que constituem uma teoria socialista das empresas e das organizações (nomeadamente na administração pública).
Referidas as tendências evolutivas do pensamento da terceira via sobre a linha
do socialismo de mercado, assim como sobre a teoria da empresa (temas que
refere com considerável superficialidade), importa agora referir as temáticas
nas quais Giddens reconhece a necessidade de novas respostas sem, todavia,
sequer as ter esboçado (relativas à problemática das crises cíclicas), para neste
capítulo, por último, se abordarem temáticas que nem sequer são referidas nos
livros de Giddens em análise, apesar de fazerem parte, essencial, da tradição
da crítica socialista (soberania do consumidor, consumismo, planeamento
moderno sectorial) ou de constituírem questão fulcral da modernidade económica (economia do conhecimento), no que concerne ao pensamento sobre o
sistema de mercado.
Relativamente ao problema das crises cíclicas, não se pode deixar de reflectir
sobre como regular o mercado, de forma a superar as suas fraquezas cognitivas
que o levam a sobrevalorizar tendências de crescimento e de retracção. A sobrevalorização do crescimento ocasiona uma oferta excessiva que, em consequência,
origina uma desvalorização dos produtos que ficaram em excesso face à procura
solvente. Foi, reconhecidamente, o que aconteceu com a venda de um número
excessivo de imobiliário, no mercado dos EUA, génese da crise presente. Tal
excesso, com consequente desvalorização dos produtos em causa, resulta, ainda,
na desvalorização dos produtos financeiros que foram baseados nos produtos
em excesso, levando a falências e perda de confiança no sistema. Verifica-se, no
momento seguinte, uma outra fraqueza cognitiva do mercado que é a sobrevalorização das tendências recessivas, o que, por sua vez, leva a retracções do
investimento e do consumo, desaguando em crises profundas. Adicionalmente,
será de notar que o desenvolvimento tecnológico originará maior número de
mercados e produtos que serão, também, cada vez mais complexos, pelo que
a tendência para crises, devida às referidas fraquezas cognitivas, se poderá vir a
agravar com a continuidade do desenvolvimento tecnológico, constituindo um
dos mais graves paradoxos do mercado.
Os elementos de um novo sistema de mercado, cognitivamente superior,
poderão passar por um novo mecanismo regulador que diminua o número de
agentes no mercado, de forma a facilitar o seu controlo. A diminuição do número
73
O FUTURO DA TERCEIRA VIA
de agentes, ou seja a concentração do mercado, também propicia a dimensão que
é necessária, a cada agente, para que tenha capacidade para investir na obtenção
de suficiente conhecimento, sobre o mercado em que se move. Exemplos de
casos extremos de mercados fragmentados são o mercado accionista e o mercado
agrícola, onde, aliás, são frequentes avaliações excessivas de tendências.
Claro que, por evidentes razões de inovação e liberdade, deverá, sempre,
existir um número importante de pequenas empresas que, em dado momento
e em certas condições, serão absorvidas pelas grandes empresas concentradas
ou tornar-se-ão grandes empresas. As pequenas empresas poderão ser de capitais privados mas, também, de capitais públicos, aparecendo bancos públicos de
investimento a apoiar boas ideias de empreendedores. A regulação deve criar
condições para que uma pequena empresa que não mostre sinais de inovação
e crescimento constante seja, necessariamente, colocada em rede tutorada por
uma grande empresa concentrada.
Nesta perspectiva, devemos caminhar para uma economia bipartida ou dual,
constituída por vários sectores económicos bipartidos, regulados de forma as
que as PME constituam um pólo de inovação sem prejudicar a concentração e
consequente qualidade do mercado.
Este tipo de economia constitui, aliás, uma condição para a optimização de
reformas tendentes ao socialismo de mercado (com capitais públicos participando
nas grandes empresas) e à teoria socialista da empresa, pois um número menor
de empresas facilitará a percepção da realidade empresarial pelo reformador,
incluindo a percepção das reacções deste sistema às intervenções reformistas.
Como veremos, a seguir, este tipo de concentração dual, facilitaria, ainda,
outras reformas, relativas ao planeamento com consumidores, promoção da
economia do conhecimento e limitação das desigualdades.
Por último, no presente capítulo, resta abordar alguns temas completamente
ignorados por Giddens, como a soberania do consumidor, o consumismo, o
planeamento e a economia do conhecimento. Fica inexistente, na terceira via, a
reflexão sobre como o consumidor pode ter acesso a completa informação sobre
os produtos em concorrência. Em consequência, ficam de fora novas formas de
planeamento económico, por exemplo, mediante consumidores organizados de
forma segmentada (em diversos fóruns especializados), um pouco na sequência
das ideias de Robin Hahnel (sobretudo no seu livro Economic Justice and Democracy:
From Competition to Cooperation, de 2005) para definirem especificações de qualidade,
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JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA
níveis de impacto ambiental, implicações éticas e de segurança dos produtos, para
avaliarem comparativamente as diversas ofertas do mercado, eventualmente seleccionando algumas antes da entrada efectiva no mercado, bem como definirem o
tipo de informação a fornecer à globalidade dos consumidores (provavelmente
criando regras novas para uma publicidade menos manipuladora emocionalmente). Como se acabou de expor, a questão da soberania do consumidor pode
levar a nova visão sobre o papel do planeamento, não sendo questão descartável
numa reflexão reformista sobre as fragilidades, informativas, do mercado.
Acresce que a questão do consumismo é ainda mais lata do que esta questão da
informação dos consumidores. A ideia de que o atavismo cultural, prolongado
pela publicidade, influencia decisões irracionais do consumidor, ocasionando
um excessivo consumismo, a longo prazo contra os próprios interesses dos
consumidores, é uma velha ideia que pode ser rasteada desde Thorstein Veblein,
passando pela teoria crítica (Marcuse, Adorno, Habermas, etc.) e pelos pensadores das sociedades pós-escassez como Murray Bookchin (sobretudo no seu
livro intitulado Post-scarcity Anarchism, de 2004).
Será que uma consciência destes atavismos, nomeadamente da necessidade
de expressar status social através do consumo, aliada a uma menor pressão publicitária, levaria a decisões diferentes dos consumidores? Por exemplo, teríamos
consumos maiores na saúde, na cultura e na educação e menores em vestuário, habitação, viaturas, electrónica doméstica e vários outros? Teríamos
níveis maiores de poupança e consequente disponibilização de mais capital para
inovação tecnológica? Teríamos níveis maiores de qualidade de vida, pessoal
e social, que compensassem um menor consumo e crescimento económico
no curto e médio prazo? Existirão alternativas, mais interessantes, para os
efeitos de evasão psicológica e promoção de autoconfiança hoje realizados pelo
consumismo? Será que o consumidor mais informado não tende a investir em
produtos mais complexos, de mais difícil avaliação, de efeitos a longo prazo,
como saúde e educação? Será que o mercado não é um bom mecanismo para
alocar suficientes recursos para certos tipos de bens de segurança? Por exemplo,
como pode o consumidor expressar o seu interesse em diminuir a probabilidade futura de doenças, exclusão e violência social, já que não pode consumir
mais produtos de saúde, para além das suas necessidades imediatas, nem pode
consumir produtos de inclusão social em geral (para além de acções filantrópicas pontuais e não profiláticas)? Será esta questão determinante para que o
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O FUTURO DA TERCEIRA VIA
nível de provisão de serviços de segurança, saúde e inclusão seja definido, dominantemente, de forma política, com um apoio de fóruns de consumidores e de
cidadãos mais informados sobre políticas de coesão?
Está aqui em causa não só uma educação para o consumo mas a necessidade de complementar, institucionalmente, o mercado na sua capacidade para
decidir entre produtos do mesmo género (por exemplo, através dos já referidos fóruns de consumidores), bem como de alocar recursos entre sectores
muito diferentes (saúde, inclusão, vestuário, habitação, etc.) mediante fóruns
de consumidores muito amplos e de carácter inter-sectorial.
Um último tema ignorado por Giddens, apesar da sua grande importância e
actualidade, é a questão da economia do conhecimento e dos novos paradigmas
que poderá trazer a especificidade do conhecimento enquanto mercadoria,
questão que esteve na origem das reflexões sobre a economia do conhecimento,
com Kenneth Arrow, Paul Romer e vários outros.
Não havendo aqui oportunidade para analisar estas especificidades, devemos,
contudo, reparar que a mercadoria “conhecimento” não deve ser retida por
patentes ou outras formas de secretismo, pois isso, obviamente, dificulta a sua
disseminação, prejudicando a produtividade económica global. Que outros
incentivos se podem atribuir aos criadores do conhecimento que não sejam a sua
monopolização de certo saber, embora temporária, nomeadamente através das
referidas patentes? Nesta perspectiva, a questão é apurar se será viável que sejam
os utilizadores do conhecimento (por exemplo as empresas de um certo sector
económico) a avaliar o impacto dos diversos criadores de saber e dos inovadores,
possibilitando que lhes possa ser atribuída uma recompensa devida, estando esse
saber e essa inovação, sempre, ao dispor de todo o público, sem quaisquer restrições. Estaria, assim, criado um ambiente no qual as patentes seriam desnecessárias
e que, também, propiciaria o funcionamento de várias outras instituições importantes para assegurar uma economia de vasta transparência. Como exemplos, destas
instituições da transparência, devem-se citar:
- Instituições de debate e de suporte, científico e econométrico, à definição e
aplicação dos critérios de recompensa dos inovadores;
- Um mercado de empresas de “benchmarking” e divulgação dos saberes inovadores, actuando nomeadamente, através de empresas modelo e empresas-escola,
podendo ter acesso a todo o conhecimento e informação de qualquer organização,
de forma a divulgar amplamente;
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JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA
- Um mercado de empresas de prospectiva e adaptação da inovação a cada organização concreta, etc. De notar que os mesmos mecanismos que podem avaliar o
impacto de cada inovador podem, também, avaliar estas empresas da transparência,
de forma a recompensá-las através de prémios de desempenho, o que possibilitaria
que os serviços destas empresas fossem públicos e gratuitos, portanto acessíveis a
todas as pessoas e organizações, independentemente do seu poder aquisitivo.
Deve-se reparar que esta economia de transparência seria muito facilitada
por uma economia dual, como atrás referida, actuando, aliás, a economia de
transparência como um verdadeiro mecanismo de concorrência cooperativa,
ao veicular saberes das empresas mais fortes para as mais fracas, assim possibilitando a estabilidade do tecido económico, evitando falências e desemprego.
Configura-se assim um paradigma da economia de transparência, cujas
bases são a gratuitidade (dos bens informativos) e a democracia na avaliação dos
serviços em concorrência, ao invés dos habituais paradigmas mercantilistas.
Depois de feita esta exposições sobre as concepções e omissões da terceira
via sobre o tema do mercado, podemos concluir que, ao reflectir sobre este
tema, esta o faz com considerável superficialidade e estreiteza cultural. Ignora,
também, contributos fundamentais da tradição socialista, bem como dos mais
relevantes factos da economia moderna, restringindo-se a uma reflexão, com
limites muito apertados, centrada, unicamente, sobre a oposição, monolítica e
artificial, entre mercado selvagem e neo-keynesianismo, da qual, obviamente,
nada de inovador poderia sair e, muito menos, algo que se pudesse apelidar
de inovação socialista, num sentido mais amplo que o mero e bem conhecido
neo-keynesianismo.
Não obstante esta pobreza cultural dos fundamentos da terceira via, a existência de referência ao socialismo de mercado e algumas outras problemáticas
constituem uma importante porta para o seu desenvolvimento, num sentido
mais claramente socialista e inovador.
II.2. Igualdade e Incentivo
No que concerne à temática da igualdade, desde o primeiro livro da terceira via
que se identificam como prioritárias a igualdade de oportunidades e a luta contra a
exclusão social de vários grupos desfavorecidos, nomeadamente os desempregados.
A questão da promoção de sociedades mais igualitárias através da redistribuição do
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O FUTURO DA TERCEIRA VIA
rendimento dos mais abastados é, inicialmente, descartada. Giddens considera
que a possibilidade de enriquecer é importante para motivar as pessoas talentosas.
Portanto, limitar as desigualdades será limitar o incentivo para as pessoas darem o
seu melhor. Teríamos de nos restringir a apelar aos mais abastados para se interessarem pelos problemas da sociedade e cumprirem os seus deveres éticos e de
responsabilidade social. Pouco mais se poderia fazer a favor da igualdade.
A questão da justiça social, que foi a tónica de John Rawls em reflexões que
marcaram, indelevelmente, este tema e as políticas do último terço do século
XX, bem com o repensar, em termos modernos, do antigo conceito de exploração do trabalho, nem sequer são abordadas por Giddens. Tal como em relação
às suas teses sobre o mercado, a argumentação a favor das suas opções sobre
a questão da coesão, é muito escassa, dando a impressão de que se restringe a
identificar e postular algumas ideias que se foram massificando e que poderão
ser facilmente aceites, para o autor poder, rapidamente, sobre elas, construir
ideias mais operacionais para um programa eleitoral.
Contudo, ao longo dos três livros vai aparecendo alguma argumentação a
favor das suas posições, num aprofundamento progressivo e num afastamento
do simplismo inicial. Logo no segundo livro, é clarificada a ideia de que uma
política centrada, unicamente, na igualdade de oportunidades e de inclusão
não é suficiente, devendo manter-se uma preocupação com a redistribuição
do rendimento. Dois argumentos são apresentados a favor da redistribuição.
Primeiro, as desigualdades criadas numa geração vão criar desigualdades de
oportunidades na geração seguinte. Segundo, é reconhecido que haverá sempre
pessoas para quem as oportunidades serão limitadas, pelo que ficarão para trás.
A estes não deve ser negada uma vida realizada.
Ainda no segundo livro, surge um outro novo enriquecimento das posições
iniciais. Giddens chama a atenção para o facto das desigualdades serem exponenciais. Dá o exemplo do ténis, em que o melhor do “ranking” ganha milhões
de vezes mais do que está cem lugares mais abaixo no “ranking”. Apesar de
não voltar a estas questões no terceiro livro (onde, aliás, coloca como primeira
prioridade a luta contra a pobreza infantil, restringindo-se assim, novamente,
ao quadro da luta pela igualdade de oportunidades), parece claro que o autor
lançou duas questões que não concluiu mas que parece considerar importantes
(a fundamentação da importância social da igualdade e a reflexão sobre modelos
em que, embora a desigualdade surja como incentivo, esta seja minimizada).
78
JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA
Estas duas questões passam a ser o tema do presente capítulo.
O futuro da terceira via passará, portanto, primeiro, por esclarecer as razões
que nos levam a valorizar a igualdade. Aliás, algo com que a velha esquerda nunca
se preocupou muito, provavelmente devido à influência excessiva dos pensamentos
marxistas sobre a exploração do trabalho e o devir histórico. Na reflexão sobre
argumentos a favor da igualdade ou contra ela, não podemos esquecer o contributo de Rawls, ao afirmar a prioridade da liberdade sobre a igualdade. As duas
questões não podem, de facto, ser pensadas em separado. A síntese entre liberalismo e socialismo poderá ser feita na afirmação da igualdade enquanto condição
para uma efectiva liberdade (de facto, grandes concentrações de poder são um risco
para a liberdade), assim como numa verdadeira liberdade negocial, no campo
económico, enquanto promotora da igualdade, como se analisará adiante.
Em relação ao referido aspecto da igualdade como garante da liberdade,
teremos de perguntar se alguém se pode sentir seguro numa sociedade em que
os poderosos têm tanto poder que podem, com relativa facilidade, ultrapassar
a lei e manipular informação a seu favor. Como escreveu Montesquieu, os
governos existem para que nenhum homem tenha de temer outro, condição
muito longe de ser realizada pelo actual capitalismo oligárquico e pelas actuais
formas de democracia muito debilitadas face ao poder económico.
Em relação ao referido aspecto da liberdade negocial, geralmente menos
focado, teremos de perguntar se existe verdadeira liberdade, ao negociar os
termos do contrato de trabalho, quando uma das partes (detentores de capital
ou de qualquer outro recurso escasso, como um talento especial) é infinitamente mais forte, do ponto de vista negocial, do que a outra (detentores de
recursos muito menos escassos, como o trabalho).
Portanto, a argumentação a favor da igualdade não deve ser restrita à igualdade de oportunidades e aos casos extremos de exclusão, onde Giddens parece
querer fechá-la, indo, ainda, muito para além do marxismo clássico e de uma
oposição, simplista, entre liberdade ou promoção de sociedades mais igualitárias. Embora não seja aqui o momento de sistematizar esta argumentação,
é interessante lembrar uma outra argumentação, do economista Pigou, que
afirmou que a mesma soma de bens tem mais importância para um pobre do
que para um rico, baseando-se no conceito de utilidade marginal, conceito este
tão utilizado pelos chamados neoliberais para fins argumentativos opostos.
79
O FUTURO DA TERCEIRA VIA
Teremos de passar já à segunda questão levantada por Giddens, sobre esta
temática da igualdade. Trata-se da referida questão da importância da desigualdade
ao actuar como incentivo para as pessoas darem o seu melhor. Embora a
desigualdade seja uma componente de sistemas de incentivo, devemos perguntar
se, de facto, será necessária tanta desigualdade para motivar as pessoas a darem
o seu melhor. O caso do ténis, referido por Giddens, é idêntico a tantas outras
actividades, onde se poderá perguntar se os mais bem colocados no “ranking”
precisariam de tanta recompensa para darem o seu melhor. Não bastaria o mais
bem colocado no ranking, de uma certa profissão, ganhar um pouco mais do que o
segundo e assim sucessivamente, alcançando-se assim muito menor desigualdade
entre todos? Será possível montar sistemas redistributivos em função dos
“rankings” de cada profissão? A resposta a ambas as perguntas parece ser positiva,
pois estaria garantida a existência de incentivo para todos darem o seu melhor
e, simultaneamente, maximizada a igualdade possível. Claro que não seria fácil
a definição de quanto seria o rendimento máximo a auferir, efectivamente, pelo
melhor colocado no ranking de cada profissão, bem como não seria fácil definir qual
o diferencial de rendimentos entre todos os profissionais de um dado “ranking”.
Contudo, tais definições poderão ser ajudadas pelo conhecimento de indicadores
do risco, esforço e desgaste em cada profissão e para aceder a ela, como a esperança
de vida e problemas de saúde, bem como pela participação, nessa definição, de
indivíduos conhecedores dessa profissão (profissionais reformados, profissionais
de profissões afins e em contacto, especialistas neste tipo de definições que tenham
passado por várias profissões, etc.)
Por exemplo, um sistema da remuneração dos gestores, das empresas
concentradas do sistema económico dual, atrás referido, no qual a remuneração
de cada um seja função da sua posição num ranking de resultados empresariais, a
longo prazo, pode limitar exageros remuneratórios sem perturbar o incentivo
para obter os melhores resultados, introduzindo, complementarmente, uma
lógica de longo prazo e sustentabilidade empresarial.
Aliás, devidamente desenhado, este sistema poderá mesmo evitar conluios
oligopolistas, não obstante num ambiente de maior comunicação inter-empresarial que deverá, mais facilmente, ser promovido num sistema dual.
A limitação de desigualdades poderá incidir não só nas remunerações dos
gestores e trabalhadores das empresas, todos submetidos a rankings comparativos,
mas também, evidentemente, nas remunerações do capital.
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JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA
Contudo, neste último caso, seriam bem maiores as dificuldades para definir
a remuneração mínima compatível com o incentivo. De facto, parece que um
observador externo dificilmente poderá ajuizar o que pode compensar o risco
de se perder capital próprio que se investiu, a não ser que efectivamente o possua
e, portanto, não será um observador imparcial. Isto é, não se pode determinar
qual a remuneração justa do capital investido, em termos de maximizar,
simultaneamente, o incentivo e a igualdade social. Tal pode ser argumento
para a inexistência de qualquer intervenção, estatal, redistributiva sobre as
remunerações de capital mas também, em sentido contrário, pode ser argumento
para a dominância de capitais públicos ou argumento a favor da dissociação cabal
entre a figura do investidor e do gestor, num modelo de, progressivo, socialismo
de mercado. Neste modelo o mercado definiria as taxas gerais de remuneração
do aforro e o Estado definiria as diferenciações conforme o grau de riqueza de
cada aforrador, privilegiando a promoção da igualdade. Esta definição, pelo
Estado, terá de ser interactiva, visando obter a melhor combinação entre nível
de poupança e nível de consumo, para promover o crescimento económico,
sem prejudicar a promoção da igualdade. De facto, níveis muito baixos de
remuneração percentual da poupança dos cidadãos mais abastados pode resultar
em excessivo consumo e pouca poupança o que, em certas ocasiões, pode não ser
o mais estimulante para o crescimento económico.
Existindo, portanto, modelos económicos de promoção da igualdade que,
simultaneamente, são eficientes, conclui-se que a maior dificuldade na promoção
de igualdade não é uma dificuldade técnica, relacionada com a racionalidade do
incentivo, mas sim uma dificuldade política, ao contrário do que tem afirmado
a fé propalada pelo chamado neoliberalismo. De facto, a dificuldade reside em
limitar um excessivo poder negocial das grandes concentrações de capital, face a
trabalhadores negocialmente debilitados pelo seu muito maior número, dificuldades de intercomunicação e organização, bem como menor capacidade
financeira para resistir a suspensões das suas actividades profissionais. Este excessivo poder negocial é, hoje, expresso, nomeadamente, na vitimização dos Estados
Sociais, mediante a ameaça de deslocalização num mundo globalizado e pela
cobrança de juros excepcionalmente elevados sobre a dívida pública, actuando as
empresas de rating como processos virtuais de coordenação oligopolista.
Como oposição a este excessivo poder negocial, será possível, num sistema
de empresas concentradas, como no atrás referido sistema dual, que os gestores
81
O FUTURO DA TERCEIRA VIA
fiquem fora destas pressões dos detentores de grandes massas de capital, pelo
facto dos gestores serem nomeados não só por estes detentores mas, também,
pelo Estado, em parceria com trabalhadores das empresas, entidades científicas
e ambientais e, ainda, representantes dos consumidores e outros stakeholders,
num modelo de democracia mais participativa, já aqui referido.
Adicionalmente a estes processos de limitação das desigualdades sociais, pode-se
recorrer a outros mecanismos que podem ser coerentes com estes, como impostos
sucessórios que, aliás, parecem formas mais humanistas e menos desequilibrantes
do que nacionalizações, mesmo quando estas sejam parciais e progressivas.
Mediante os referidos rankings remuneratórios, reequilíbrios do poder negocial e impostos sucessórios será de esperar, tendencialmente, uma economia de
capitais públicos, coexistindo com capitais privados pertencentes, sobretudo, a
criadores de empresas inovadoras.
Para encerar esta temática, dos novos processos de promoção da igualdade,
interessa reparar que as regras específicas de regulação (processos e amplidão da
nomeação de gestores, tipos de rankings, grau de imposto sucessório, etc.) devem
variar de país para país, pois só uma meta-competição, entre diferentes sistemas
de regulação do mercado, pode ajudar a seleccionar os melhores sistemas.
A esta reflexão, economicista e no pressuposto da necessidade de compatibilizar a questão da promoção de mais igualdade com a questão da motivação
e do incentivo, não podemos deixar de juntar a perspectiva cultural. De facto,
haverá que considerar não só as motivações externas, de carácter materialista e
financeiro, como a vontade de ter estatuto superior (vontade de hierarquia e
domínio, tão bem ilustrada na sociobiologia de Edward Wilson) e o seu contraponto de altruísmo e responsabilidade social mas, também, se devem considerar
as motivações internas, expressas no gosto de criar, realizar e aperfeiçoar, realçadas logo no início da chamada “teoria crítica” por Herbert Marcuse. Este autor
inspira-nos a pensar numa sociedade que ajude o indivíduo a tomar consciência
dos seus impulsos para o poder, identificando traumas e atavismos, de forma a
libertar os impulsos mais internos, para a beleza da realização, económica social
e profissional e, segundo Marcuse, para a realização do Eros, através das formas
de actividade e trabalho.
Em suma, a terceira via parece limitar a questão da igualdade à questão da
igualdade de oportunidades e aos casos extremos, de exclusão. Ao longo dos
textos de Giddens não se detecta uma tendência clara para afirmar uma maior
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JOSÉ NUNO LACERDA DA FONSECA
valorização da igualdade nem para a promoção de sistemas de impostos que
possibilitem “rankings” mais igualitários. Contudo, estas duas questões foram
introduzidas nos livros de Giddens, como uma problematização das posições
iniciais da terceira via, estando o seu debate já posicionado na rota do futuro
conceptual da terceira via.
III. Conclusão
Embora a terceira via pouco argumente as suas opções fundamentais, acabando
por fazer opções na ignorância de parte do pensamento moderno e da tradição
socialista e que, aliás, pouco mais longe vão do que o liberalismo do século XVIII
e o neo-keynesianismo, levanta várias outras questões que, embora não consiga
integrar no pensamento que leva às opções que assume, constituem vectores de
abertura à evolução do pensamento socialista. Como já aqui se escreveu, fica-se
com a impressão de que a terceira via pretendeu, sobretudo, clarificar algumas
ideias que já estavam massificadas e que poderiam ser facilmente aceites, para
ficar em condições de, rapidamente, sobre elas, legitimar ideias mais operacionais para um programa eleitoral. Em artigos posteriores pretende-se vir a
analisar a evolução das outras opções fundamentais, como aqui já se fez para as
opções sobre o mercado económico e sobre a temática da igualdade. Pretendese, também, vir a analisar as opções operacionais da terceira via que, embora
feridas por se situarem entre as palas da pobreza das opções de base, constituem,
mesmo assim, um amplo e importante menu de possíveis políticas modernas.
Posteriores escritos de Giddens serão, também, integrados na reflexão.
28/11/2010
83
Democracia e Economia Social: Que Futuro?
Glória Rebelo
“O primeiro cuidado da Democracia é levar a ideia do
Governo (…) para dentro do espírito do cidadão”
in António Sérgio (1974), Ensaios – Tomo VII, Obras
Completas, Lisboa, Clássicos Sá da Costa: 238.
1. Introdução
A viver as sequelas de uma fortíssima crise do capitalismo financeiro – que
rapidamente contagiou a economia real – parece consensual afirmar que a
União Europeia (UE) necessita de um projecto de renovação da agenda económica e social, apta a melhor responder a crises de idêntica ou maior dimensão.
De facto, assistimos a um ambiente económico inteiramente novo, em que
países – e consequentemente pessoas – se encontram sujeitos (no trabalho e na
vida quotidiana) à volatilidade da informação desencadeada pela ‘revolução das
redes tecnológicas’ e pela expansão da internet e à perscrutação constante dos
mercados financeiros.
Para acompanhar as novas realidades na economia é preciso saber identificar
quais as exigências de articulação institucional capazes de responder de forma
eficaz a estes desafios. Na chamada ‘Nova Economia’ não pode continuar a
existir descomprometimento algum que conduza a situações de elevados níveis
de incumprimento legal.
O desconcerto que, em 2008 e 2009, afectou os mercados financeiros e
arrastou a economia real, originando consideráveis danos sociais – designadamente um aumento significativo do desemprego e um acentuar das situações de
desigualdade social, de pobreza e de exclusão social1 – exige dos poderes públicos
a assunção de um papel decisivo em matéria de intervenção e correcção destes
desregramentos e consequentes desigualdades.
Contudo, e volvidos mais de dois anos, ante uma ainda (inexplicável) ausência de
1
Foi, aliás, num contexto de crise que o International Labour Office da Organização Internacional do Trabalho (ILO-OIT)
apresentou, em Outubro de 2008, um relatório intitulado World of Work Report 2008: Income inequalities in the age of financial globalization
onde se conclui que em 51 países (num universo de 73) a “parte salarial” no rendimento total dos agregados familiares tem
vindo a retroceder nas duas últimas décadas. Além do mais, constata-se – em 18 dos 27 países analisados – um progressivo
alargamento do fosso entre os trabalhadores mais bem pagos e os menos bem pagos. Esta tendência é particularmente visível
na Hungria, na Polónia, em Portugal e nos EUA, mas afecta também países até agora considerados verdadeiros “modelos
de equidade social” como, por exemplo, a Dinamarca e a Suécia. Ainda de acordo com este estudo, estas desigualdades
resultam de um processo de globalização financeira e da consequente liberalização internacional dos fluxos de capitais que,
desde a década de 1990, têm propiciado um aumento das crises do sistema financeiro mundial e, consequentemente,
maior instabilidade económica, com inevitáveis repercussões no mercado de trabalho.
85
DEMOCRACIA E ECONOMIA SOCIAL: QUE FUTURO
reforma do sistema financeiro internacional e o agudizar das situações orçamentais
dos países europeus, Portugal vive – à semelhança do que acontece por toda a UE –
os efeitos desta crise sem precedentes e com graves repercussões quer no plano social,
em especial no emprego, quer no plano da economia real e das finanças públicas.
Neste contexto, todos temos a consciência de esta crise exige respostas económicas e sociais renovadas e uma mobilização colectiva no sentido de contribuir
para a sua superação.
É, deste modo, que a economia social pode desempenhar um papel essencial
em Portugal.
Por exemplo, no plano do emprego, o rescaldo deste período de pós-crise
financeira e económica internacional aponta mais de 30 milhões de empregos
destruídos em todo o mundo2. E Portugal também não ficou incólume a esta
destruição. Segundo dados do Eurostat, se no início desta década, em 2000 e
2001, a taxa de desemprego média anual era de 4,0% e 4,1%, respectivamente
(muito inferior à média anual do conjunto dos países da UE, de 8,7% em 2000
e de 8,5% em 2001, respectivamente) e em 2008 era de 7,7%, ao longo de 2010
vem já ultrapassando os 10% e, em Setembro de 2010 situava-se nos 10,6% (registando, relativamente a Setembro de 2009, uma subida homóloga de 0,4%).
Ora, aqueles que pugnam pela Democracia e pela manutenção do Estado
Social – ainda que exigindo uma continua correcção das suas imperfeições –
sabem que assegurar a sua sustentabilidade é cuidar do futuro.
Como defendia António Sérgio, “as relações da Democracia política e da
Democracia social são recíprocas. A instauração progressiva da Democracia social
pressupõe instituições de democracia política: mas o perfeito funcionamento
da Democracia política pressupõe um certo grau de Democracia social (…).”
E prossegue: “Que entendemos nós por Democracia Social? Entendemos
um sistema de vida económica inspirado de facto pela vontade geral, que é a
vontade dos cidadãos como consumidores (…). O instrumento de realização
de democracia social (por meios privados e não políticos – fora do Estado – tem
certa analogia com o regime parlamentar: (esse instrumento) é a cooperativa
de consumo, desenvolvida até produzir o que distribuirá pelos sócios, fornecendo-lho pelo custo de produção3 (Sérgio, A., 1974a: 91-92).
2
Dados anunciados, em 1 de Novembro último, na abertura do Fórum Internacional do Desenvolvimento Humano,
em Agadir, pelo director-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn.
86
GLÓRIA REBELO
Assim, na concepção deste autor, o cooperativismo – enquanto regime
económico em que é soberano o consumidor – é o sistema em que se não
realiza a produção para alcançar um lucro para o produtor (como sucede no
capitalismo) mas sim, e exclusivamente, para satisfazer uma necessidade do
consumidor, sem lucro para quem quer que seja (Sérgio, A., 1974a: 78). E,
nesta medida, “o Estado, em boa doutrina democrática, nem deve pretender
substituir a iniciativa dos indivíduos, nem abandoná-la à sua sorte: deve estimulá-la e ampará-la” (Sérgio, A. 1974a: 97).
Ora, na actualidade, e à semelhança do que já vai acontecendo na economia
europeia, as respostas no âmbito da economia social vêm demonstrando uma
relevante capacidade de criar emprego de qualidade, reforçando, concomitantemente, a coesão social, económica e regional4, uma vez que, ao aliar
rentabilidade e solidariedade, geram um importante capital social, promovendo a cidadania activa e a solidariedade social.
Parafraseando António Sérgio, “o grande problema da sociedade de hoje
é (todos o sabemos) coarctar as depravações da organização capitalista (…)
(Sérgio, A., 1974b: 226). E, como se sabe, as entidades que integram o sector
social desenvolvem actividades essenciais no domínio da acção social, em especial através da prestação de serviços de assistência de proximidade e da integração
social activa de grupos vulneráveis contribuindo, desse modo, para a criação de
emprego e para o desenvolvimento local e a coesão social.
Por estas razões, o reforço do sector social poderá constituir um inquestionável pilar do desenvolvimento socioeconómico do nosso País.
Esta aposta funda-se no reconhecimento de que este sector da economia
contribui de forma decisiva para a promoção de inovação social, criando riqueza,
emprego e, em grande medida, promovendo, simultaneamente, a coesão social e
a racionalização dos recursos públicos, atenta a sua capacidade de gerar mais oferta
social a custos inferiores.
Nesta perspectiva, o reforço da aliança entre o Estado e as organizações da
economia social é crucial face à sua capacidade de desenvolver, no interior das
3
Cabe referir que António Sérgio não entendia a ideia cooperativa numa perspectiva exclusivista, advogando “não é
necessário que a economia de um povo entre toda no molde da ideia cooperativa para que as sociedades cooperativas que
nele funcionam realizem de facto uma revolução profunda, obrigando o sector capitalista da economia a corrigir-se em
grande parte da sua injustiça (Sérgio, A., 1974a: 290).
4
Aliás, na linha do que também sublinha a Resolução do Parlamento Europeu 2008/2250 (INI), de 19 de Fevereiro de 2009.
87
DEMOCRACIA E ECONOMIA SOCIAL: QUE FUTURO
economias de mercado, redes de solidariedade, dinâmicas e espaços de resolução de problemas, numa base de proximidade. Além do mais, revitaliza novos
modelos de interacção entre o Estado, a sociedade civil e o mercado.
2. Que estímulo ao desenvolvimento da Economia Social?
Constitucionalmente consagrado, o sector cooperativo e social constitui um dos
pilares fundamentais da organização económico-social do Estado e um dos sectores
de propriedade dos meios de produção, nos termos do disposto na alínea f) do
artigo 80.º e no n.º 4 do artigo 82.º da Constituição da República Portuguesa.
Além de apoiar o desenvolvimento sustentável e a inovação social, ambiental
e tecnológica, o sector social chama as pessoas a um primeiro plano, dado que
a presença e intervenção na economia das organizações de economia social se
baseia em princípios de interesse público, isto é, na defesa dos interesses colectivos e em mecanismos de cooperação e de solidariedade.
Atendendo a esta circunstância, e no sentido do fortalecimento deste sector,
desde 2005, têm vindo a ser adoptadas diversas medidas públicas.
Desde logo, a aprovação da resolução do Conselho de Ministros n.º 124/2005,
de 4 de Agosto, mediante o qual o Governo criou o Programa para a Reestruturação
da Administração Central do Estado (PRACE), com os objectivos de modernizar e
racionalizar a Administração Central e dialogar com o cidadão5. Depois, em 2006,
através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 39/2006, de 21 de Abril – que
procedeu ao enquadramento estratégico, a avaliação organizacional simultânea
da macroestrutura de todos os ministérios, através da concretização e avaliação
das suas atribuições, competências e estruturas administrativas e dos seus recursos
financeiros e humanos – o Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, I. P.
(INSCOOP) deixa de integrar a Administração Central do Estado6.
Em 2009 – e reconhecendo que o sector cooperativo e social constitui um
sustentáculo fundamental da organização económica nacional – foi criada, pelo
5
Este programa estabeleceu o intento de promover economias de ganhos de eficiência pela simplificação e racionalização de
estruturas, melhorando a qualidade do serviço a prestar a cidadãos, empresas e comunidades, por via da descentralização,
desconcentração, fusão ou extinção de serviços.
6
Isso mesmo foi consagrado na orgânica do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, aprovada pelo Decreto-Lei
n.º 211/2006, 27 de Outubro, alterada pelo Decreto-Lei n.º 326-B/2007, de 28 de Setembro, que prevê, no n.º 2 do seu
artigo 39.º, a externalização do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, I. P. (INSCOOP), através da aprovação de
novo enquadramento jurídico. Autorizou-se, assim, que a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social sucedesse
ao INSCOOP no exercício das suas competências e na prossecução das suas atribuições de serviço público.
88
GLÓRIA REBELO
Decreto-Lei n.º 282/2009, de 7 de Outubro, a Cooperativa António Sérgio
para Economia Social7. Esta cooperativa concebe condições institucionais favoráveis ao alcance dos objectivos de reforço e dinamização do papel da economia
social, promovendo o envolvimento e responsabilização de todos os intervenientes e beneficiando do contacto privilegiado com as circunstâncias que
reclamam o exercício da autoridade pública.
Ainda em 2009 foi concretizado um programa específico de estágios profissionais,
o INOV-Social, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 112/2009,
de 26 de Novembro, visando a colocação de jovens quadros qualificados junto das
instituições de economia social, com vista ao reforço da sua gestão e modernização8.
Mais recentemente, já em 2010, de mencionar ainda, a consagração – através
da Resolução do Conselho de Ministros n.º 16/2010, de 4 de Março – de um
conjunto articulado de medidas de estímulo ao desenvolvimento da economia
social, por via da aprovação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da
Economia Social (PADES), assim como o lançamento do programa nacional
de microcrédito no montante global de € 15.000.000, como uma significativa medida de estímulo à criação de emprego e ao empreendedorismo entre as
populações com maiores dificuldades de acesso ao mercado de trabalho.
Aliás o PADES tem como objectivo permitir o acesso a programas específicos
de desenvolvimento das suas actividades de natureza social e solidária às entidades
que integram o sector social, ou seja, as instituições particulares de solidariedade
social, as mutualidades, as misericórdias, as cooperativas, as associações de desenvolvimento local e outras entidades da economia social sem fins lucrativos.
Por fim, em Agosto último, foi criado o Conselho Nacional para a Economia
Social, órgão consultivo, de avaliação e de acompanhamento ao nível das políticas
ligadas à dinamização e ao crescimento da economia social. Este órgão será ainda
responsável pela criação de estruturas e de mecanismos específicos de apoios
e de incentivos ao exercício da sua actividade e ao seu desenvolvimento e visa
7
Tratando-se de uma Cooperativa de Interesse Público de Responsabilidade Limitada, sob a figura de régie cooperativa,
esta instituição resulta de uma parceria entre o Estado, que detém 60% do capital social, e de “actores” da designada
economia social, como a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, União das Misericórdias Portuguesas,
União das Mutualidades Portuguesas, Confederação Cooperativa Portuguesa, Confederação Nacional das Cooperativas
Agrícolas e do Crédito Agrícola, e Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local.
8
Acresce que esta iniciativa visa a inserção de jovens quadros qualificados em instituições da economia social e em empresas
e instituições cuja actividade se integre nas áreas da mediação sociocultural, da promoção da inclusão e do combate à
pobreza e à exclusão social, tendo em vista apoiar a modernização das instituições e o emprego jovem.
89
DEMOCRACIA E ECONOMIA SOCIAL: QUE FUTURO
concretizar mais uma medida de reforço do sector social constituindo, assim,
mais um inquestionável pilar do desenvolvimento económico e social do nosso
país, traduzindo a intervenção estratégica que o Governo prossegue nesta área.
3. Considerações Finais
Reconhecido na Constituição Portuguesa, é inquestionável o posicionamento
central do sector cooperativo e social como sector de propriedade dos meios de
produção e pilar importante da organização socioeconómica do Estado português.
Claramente em consonância com os princípios orientadores do modelo de
governação das políticas públicas – que hoje reclamam novas formas de relacionamento entre o Estado, os cidadãos e as instituições da economia social e do terceiro
sector em geral – o objectivo de pensar a democracia social e, a par, a economia
social (na medida em que também é um instrumento de realização da democracia
social) será também o propósito de criar emprego, reforçar a coesão social, económica e regional e promover uma cidadania activa, incrementando a solidariedade.
Trata-se de salientar, no plano da economia, importantes valores democráticos que – para além de apoiar o desenvolvimento sustentável e a inovação social,
ambiental e tecnológica – colocam as pessoas em primeiro lugar.
Acresce que, no âmbito da actual Estratégia “Europa 2020” e do intuito de
assumir para Portugal um rumo de desenvolvimento sustentável no quadro da
definição de uma agenda para a competitividade e crescimento europeia, através
da adopção de um modelo de sustentabilidade económica e ambiental, convirá
que o relançamento da nossa economia passe, identicamente, pela criação de valor
e de emprego qualificado no sector da economia social, sector potenciador de um
desenvolvimento socioeconómico mais solidário e, neste contexto, essencial no
domínio da acção social, em especial através da prestação de serviços de assistência
de proximidade e da integração social de grupos vulneráveis.
Por outro lado, e dado que a presença das organizações do sector social no
domínio económico se baseia em princípios de defesa dos interesses colectivos e
em mecanismos de cooperação e de solidariedade, importa reforçar a intervenção
estratégica a prosseguir nesta área, quer ao nível da qualificação e formação profissional quer da criação de estruturas e de mecanismos específicos de apoios e de
incentivos ao exercício da sua actividade e ao seu desenvolvimento.
Independentemente da diversidade de estatutos jurídicos que podem adoptar,
as organizações da economia social partilham princípios e valores comuns,
90
GLÓRIA REBELO
designadamente o espírito de iniciativa e de entreajuda, determinantes para o
fortalecimento da Democracia e para a construção de uma sociedade mais solidária, e capazes de induzir uma maior intervenção cívica e maior responsabilização
colectiva na promoção do bem-estar social.
Nesta perspectiva, o fortalecimento da aliança entre o Estado e as organizações
da economia social – nomeadamente pelo incremento da actividade em áreas existentes ou em novas áreas de intervenção e na modernização dos serviços prestados
às comunidades – face à sua capacidade de desenvolver redes de solidariedade,
dinâmicas e, numa base de proximidade, revitalizar novos modelos de interacção
entre o Estado a sociedade civil organizada e o mercado.
Assim, a dinamização da economia social – mediante o reforço da gestão e a modernização das instituições da economia social, em especial considerando o potencial de criação
de emprego por parte deste sector, ao promover a colocação de jovens quadros qualificados
junto das mesmas e ao enfatizar os valores da sua matriz fundadora como a cooperação, a
solidariedade, a ligação ao território e às comunidades9 – será, pois, um decisivo passo em
prol da nova estratégia de reconhecimento e de valorização do sector social.
Referências bibliográficas
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Lisboa, Inscoop-Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo.
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Homem, Obras Completas, Lisboa, Clássicos Sá da Costa.
Sérgio, A. (1974b), Ensaios – Tomo VII, Obras Completas, Lisboa, Clássicos Sá da Costa.
9
Aspecto que as torna altamente merecedoras da confiança das populações e essenciais para o desenvolvimento das políticas
sociais. Assim, alargar o reconhecimento social desta realidade, fomentar a participação das instituições da economia social
na produção de bens e serviços, na criação de emprego, na qualificação dos recursos humanos e na capacidade de inovação
são os objectivos centrais de uma renovada aposta neste sector.
91
PARLAMENTO: A I RÉPUBLICA E NÓS
Nós e a Primeira República
Augusto Santos Silva
1. O debate sobre o valor da Primeira República
Faz certamente todo o sentido assinalar a passagem das horas e pontuá-la regularmente com marcas comemorativas. A comemoração remete para
a memória colectiva e para a celebração formal de eventos passados, e uma
comunidade estruturada precisa de uma e outra coisa para forjar e consolidar a sua identidade. Não será seguramente o melhor quadro de referência
da pesquisa científica propriamente dita, tal o risco de anacronismo que
potencia. Mas pode e deve favorecer as condições práticas para a sua realização e, sobretudo, constituir uma oportunidade para a maior divulgação
pública dos seus métodos e resultados.
Não confundamos, pois, a análise histórica das estruturas e acontecimentos
passados e a elaboração reflexiva sobre o seu sentido, de acordo com as perspectivas e os critérios de hoje. Claro que a segunda deve incorporar elementos
da primeira e colher dos seus ensinamentos, assim adquirindo densidade. Mas
a reflexão sobre o sentido contemporâneo da história – o sentido da história
para os nossos contemporâneos – é uma construção normativa, alicerçada
nos nossos valores de agora, devedora do nosso enfoque e interesse. E, como
nenhum destes ingredientes da vida social é uniforme, aquela reflexão só pode
conceber-se a si mesma como um lugar e eixo de debate, que são múltiplas as
perspectivas, os valores, os interesses e as apreciações possíveis.
Faz, portanto, todo o sentido aquilatar, hoje e para o Portugal de hoje,
do sentido da Primeira República. Mas atentas três prevenções fundamentais: que essa avaliação é plural, como confronto intelectual e político sobre
os múltiplos significados que podemos atribuir à experiência republicana;
que essa avaliação não subsume nem substitui o plano específico e autónomo
da historiografia, cujos termos de referência são outros; e que, todavia, não
deve ignorá-la, antes considerá-la, que o conhecimento não é obstáculo mas
sim precioso apoio para a memória e a identidade colectiva.
93
NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA
A minha hipótese é simples, diz-se em três frases. A referência ao regime
democrático que é o nosso, depois do 25 de Abril de 1974, é um bom modo de
abordagem do sentido da Primeira República – dá-nos distância face a questões que foram então estruturantes mas nós conseguimos ultrapassar (já não
precisamos de nos definir se pró se contra Afonso Costa, e isso faz toda a diferença), e apetrecha-nos com um bom conjunto de critérios de avaliação (os
critérios próprios de uma democracia pluralista, laica e europeia). A melhor
maneira de ponderar o 5 de Outubro de 1910 é recusarmos a sua mitificação –
é uma data-chave, na formação histórica do Estado e da sociedade portuguesa,
mas combinada com outras datas também relevantíssimas, como 1820, 1834 e
1851, para a fundação liberal, 1890, por causa do Ultimato, 1961, o início da
guerra em África, ou o par 1974-1986, que efectiva a vinculação europeia do
Portugal democrático. E, finalmente, os termos de uma indagação contemporânea da República hão-de considerá-la, não apenas no período histórico
de 1910 a 1926, mas também antes e depois dele: antes, para compreender
a génese e o conteúdo do ideário republicano; depois, para reter a acção
republicana na resistência ao Estado Novo e, simultaneamente, o que há de
desenvolvimento e o que há de ruptura, ou superação dialéctica, no quadro
democrático actual face à ideologia e ao regime republicano.
2. O ideário republicano
Ao longo da segunda metade do século XIX e com especial intensidade
na última década do século XIX e na primeira do século XX – até se tornar
hegemónico no campo intelectual e no espaço público português – o ideário
republicano e o movimento social que lhe deu corpo afirmaram e fizeram
valer um conjunto de princípios que, para o que nos interessa aqui, podem
ser organizados em quatro linhas fundamentais.
A primeira é justamente a defesa da República como a consequência lógica
do liberalismo político, isto é, da fundação do Estado na representação dos
cidadãos. O republicanismo inscreve-se na linhagem do liberalismo radical,
aquele que procura democratizar o regime representativo. Por duas vias:
recusa de outra legitimidade política que não a assente na igualdade de
direitos políticos e na escolha dos cidadãos – e, portanto, eliminação dos
órgãos do Estado devedores ainda de outras fontes de legitimidade, desde
94
AUGUSTO SANTOS SILVA
logo a monarquia e o pariato; e alargamento do universo dos que escolhem,
através da instituição do sufrágio universal (masculino).
É preciso conhecer o contexto histórico fini-oitocentista para compreender o que de transformador havia, então, nestas orientações que hoje, com
a evidente excepção da exclusão das mulheres, nos parecem óbvias. Note-se
que a monarquia constitucional portuguesa investia o rei de poderes efectivos na regulação das instâncias executiva e legislativa (através por exemplo da
nomeação de pares, da indigitação e demissão do governo e da concordância
com a convocação de eleições); que o universo eleitoral era muito restrito,
significando, à data de 1910, cerca de 12% da população (Rosas, 2009: 24,
citando Pedro Tavares de Almeida); e que a eleição propriamente dita era
mais a confirmação do governo em funções do que a escolha de um novo, tal
a regularidade com que a ganhava o governo que a “fazia”.
Percebe-se, assim, melhor a associação matricial do republicanismo à
vontade de eliminar privilégios políticos de status, estender a igualdade política e favorecer a participação cívica. E também se perceberá porque é que
acabou por prevalecer, salvo no interregno sidonista, a orientação tipicamente parlamentarista, que se recusava a conceder ao presidente da República
outra legitimidade eleitoral que não a escolha indirecta pelo Congresso.
A segunda linha fundamental do republicanismo é a defesa do primado
da questão política. Para os seus ideólogos e líderes, a resolução da questão
institucional, do regime político, constituía uma condição prévia e necessária
da superação dos problemas que aquelas que a si próprias se consideravam
“gerações modernas” iam persistentemente identificando no (como diria
Oliveira Martins) “Portugal contemporâneo”: o problema do desenvolvimento económico, o problema da sintonia com o tempo europeu da criação
artística e cultural, o problema da justiça social. O sistemático desencontro
entre republicanos e socialistas, dos anos 1860 até ao pós-Grande Guerra,
repousava, do ponto de vista doutrinário, nesta divergência básica: para os
primeiros, a questão política precedia e prevalecia sobre a questão social;
para os segundos, a lógica estava no inverso. No plano da acção antimonárquica, este desencontro não impediu a mobilização maciça dos trabalhadores
urbanos da indústria, comércio e serviços em torno da causa republicana; e,
mesmo depois do 5 de Outubro, mau grado a ruptura entre o novo poder
e o movimento operário e sindical, este nunca colocará em dúvida a forma
95
NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA
do regime. Mas a liderança republicana pertence a uma classe média liberal-radical, que é mais liberal do que socializante no plano económico e social e
centra o essencial da sua acção nas instituições políticas, ao passo que os activistas socialistas e sindicais desvalorizavam a questão da conformação do regime
político – o que, entre outros factores, ajuda a explicar porque vários dos seus
mentores foram receptivos, no último quartel do século XIX, às propostas de
reforma política antiliberal (na onda do “socialismo catedrático”), ou porque
é que o movimento sindical começou por manifestar não-hostilidade, senão
até apoio, a Sidónio Pais.
Há uma terceira ideia-força do ideário republicano, a necessidade e
viabilidade da “regeneração” do País. O termo e o tema são tipicamente
oitocentistas, mas o que os republicanos lhes acrescentam, na última década
desse século e na primeira do seguinte, é a ênfase positiva na possibilidade.
O Ultimato de 1890 foi o acontecimento-choque que exprimiu traumaticamente a desvalia portuguesa, comparada com as potências que contavam
na cena internacional colonial; e o republicanismo foi buscar muita da sua
força à capacidade de responder positivamente a esse sobressalto, puxando
para si a causa e a retórica patrióticas e propondo um nacionalismo democrático, baseado na ideia romântica do povo como sujeito da história. Os
republicanos reivindicavam para si a concepção adequada, porque integradora, da nação; identificavam no “povo português” (à maneira de Teófilo
Braga) o sujeito colectivo fazedor da sua história; e propugnavam um novo
orgulho nacional assente na capacidade, que prometiam, do novo regime
para mobilizar os portugueses no pleno aproveitamento dos seus recursos,
com destaque para as colónias.
Esta visão positiva está por sua vez amparada num projecto que se inscrevia
a si próprio na matriz iluminista, pretendendo constituir-se como projecto
político-cultural (Catroga, 1991: 168-171): quer dizer, sustentado na razão e
no conhecimento (“positivo”) e empenhado em fazer do Estado a instância de
produção de uma nova ordem cívica e social. Esta convicção na inelutabilidade
do progresso não desviava, contudo, os republicanos da acção política, não só
porque esta era justamente pensada como condição necessária de mudança
social, mas também porque a sua orientação era tipicamente confrontacional:
se era possível vencer o atraso e conformar o futuro, era necessário, para que
essa possibilidade se concretizasse, combater os factores e as forças do atraso.
96
AUGUSTO SANTOS SILVA
E o que tornava possível vencer o atraso era a possibilidade de identificar,
confrontar e derrotar as forças por ele responsáveis. A denúncia do ultramontanismo e o anticlericalismo militante não constituíram apenas motivos
oportunos para uma propaganda e uma mobilização social bem sucedidas
(Bonifácio, 2010: 163-165); eram também a consequência prática de uma
“mundividência” para a qual o “obscurantismo” e a negação da autonomia
pessoal resultavam de uma influência demasiada do confessionário sobre a
consciência, isto é, da tutela do clero sobre os indivíduos. Correlativamente,
a apologia da educação laica, seja como generalização da instrução, seja como
vinculação sua ao saber e à ciência, seja como inculcação de uma moral secular,
era o esteio fundador da nova ordem cívica.
Portanto: radical, na linhagem do vintismo, vinculada a uma inclinação
democratizante e laica; nacionalista, progressista e optimista, paladina das
capacidades colectivas para melhorar a sorte do país e do seu povo; orientada para a acção e a confrontação, isto é, enunciando politicamente os
problemas, os adversários e as estratégias e forçando, consoante os casos, a
resistência, a mobilização, a ruptura e o exercício do poder – esta cultura
política republicana consolidar-se-á, desde os fins do século XIX, como um
eixo persistente da visão do mundo defensora da mudança em Portugal e,
pode dizer-se mesmo assim, sobreviverá ao teste da realidade entre 1910 e
1926, acabando por ganhar novo fôlego, enquanto referência paradigmática, na oposição ao Estado Novo.
3. As decepções da República
Plano bem diferente é o da prática da República. Aferida pelos critérios da
sua própria cultura política – teste da coerência – e pelos critérios associados
à nossa concepção democrático-institucional de hoje – teste da actualidade
– a Primeira República portuguesa tanto evidencia progressos significativos
como é assombrada por múltiplas decepções.
Quatro decepções fundamentais.
A primeira e talvez a mais excruciante, porque tocou no cerne do ideário
republicano, foi a renúncia, logo em 1911, à aprovação do sufrágio universal.
97
NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA
A lei eleitoral republicana manteve o sufrágio restrito, reduzindo o direito de
voto aos homens chefes de família alfabetizados – e o universo eleitoral até viria
a ser, proporcionalmente, inferior àquele que a monarquia liberal havia atingido na década de 1880 (Matos, 2010: 115-116). Apesar da importância da
emancipação feminina como tema e corrente do movimento republicano, o
novo regime recusou qualquer passo rumo à extensão do sufrágio às mulheres.
E, mesmo nos homens, manteve as exclusões fundadas no estado civil e na
instrução. Só no sidonismo, e com propósitos plebiscitários, foi alargado o
sufrágio, até atingir potencialmente todos os elementos do sexo masculino.
Mas o retorno da lógica parlamentar operou de novo a restrição eleitoral.
Esta inversão não correspondia apenas ao incumprimento de uma
promessa-chave dos tempos da propaganda. Foi também um erro profundo
dos republicanos, que os impediu de transformar a legitimidade revolucionária original, do 5 de Outubro, numa legitimação social (Matos, 2010: 81). E
decorria de uma visão muito arreigada na liderança republicana. Mesmo após
a Primeira Grande Guerra, que é o momento em que muitos países da Europa
Ocidental optam pela ampliação do sufrágio e, em particular, pela sua extensão
às mulheres, a República Portuguesa manteve uma atitude muito defensiva,
receando o conservadorismo e a tutela católica sobre o povo e daí deduzindo
que entregar-lhe o voto equivaleria a pôr em causa o próprio regime. Mas,
evidentemente, este receio demonstrava uma tal descrença do regime em si
próprio que era, em si mesmo, um poderoso factor da sua deslegitimação.
A este incumprimento outros se somaram, ainda quanto ao sistema político. Um foi o da promessa da descentralização – a qual, em algumas vozes
e momentos, chegara a assumir as vestes do federalismo municipalista. A
República pouca iniciativa viria a ter na descentralização, no Continente,
embora avançasse realmente na capacitação institucional das colónias. O
outro foi – por mais estranho que pareça hoje a quem esteja muito influenciado pela mitologia republicanista – o incumprimento da promessa de
alargamento das liberdades políticas. Pelos seus próprios critérios, os republicanos no poder (e, em particular, o Partido Democrático) evidenciaram
demasiadas vezes autoritarismo, intolerância, intimidação e violência política (cf. também Valente, 1976).
Podemos falar, em segundo lugar, no que toca às decepções do regime
republicano, nas rupturas excessivas em que se envolveu. Não há aqui espaço
98
AUGUSTO SANTOS SILVA
para dirimir a questão das responsabilidades relativas das partes em confronto.
Mas bastará assinalar que a própria orientação confrontacional da facção
mais radical do republicanismo, aliás nele hegemónica, a afonsista, levou
sistematicamente a que se envolvesse nessas rupturas excessivas, ou porque
activamente as promovesse, ou por não dispor do talento táctico indispensável para evitá-las. E falo em rupturas excessivas não perante qualquer
fantasmático juízo da história, mas sim perante os interesses e necessidades
de ancoragem social do novo regime. É apenas neste sentido que creio ser
indisputável que foi excessivamente fracturante a questão religiosa e, sobretudo, a hostilidade permanente face ao movimento operário sindical. A
primeira, porque prejudicou o alargamento da base social de um regime que
tinha sido preparado e imposto pelas classes médias e populares, de Lisboa e
do Porto. A segunda, porque rompeu este mesmo bloco urbano.
Igualmente contraditórias com os valores e as promessas do ideário republicano foram certas linhas de continuidade em relação à última monarquia.
E a mais flagrante ocorreu no domínio eleitoral. Uma das mais poderosas
críticas dos republicanos ao regime do rotativismo liberal era a distorção do
significado político do processo eleitoral. Em vez de ser a eleição a determinar a composição do governo, era a natureza do governo a determinar o
resultado eleitoral, visto não haver memória de um governo que organizasse
eleições as haver perdido. O que estabelecia a alternância não era, pois, a
vontade do eleitorado, mas sim o mecanismo da “rotação”: um ministério
“gastava-se” e, quando a erosão atingia certo nível e/ou a pressão oposicionista subia a um certo patamar, o rei substituía-o por outro, que, quando
necessitava de convocar eleição confirmadora, invariavelmente a ganhava (cf.
Magalhães, 2009: 19, 31-33).
Ora bem: mutatis mutandis, este controlo do governo sobre a eleição
prolongar-se-á pela Primeira República fora, sendo aliás agravado pela
persistente hegemonia do Partido Democrático face aos seus concorrentes e
pela reversão a seu favor da rede clientelar e da lógica caciquista de Oitocentos.
Só uma vez, em 1922, a regra da vitória eleitoral do governo incumbente foi
quebrada – sintomaticamente, quando o governo não era Democrático.
Deve, enfim, acrescentar-se outro motivo de decepção, no sentido que
aqui atribuímos à palavra, isto é, outra falta de correspondência da prática ao
ideário que a inspirava. Tem ela a ver com insucessos, absolutos ou relativos,
99
NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA
face a objectivos prosseguidos. Primeiro, quanto à estabilidade política: aos 20
governos em 20 anos que conhecera a monarquia (Serra, 2009: 107) na sua
última fase acrescentou a República o impressionante registo de 48 governos
em 16 anos – e o traço mais marcante até nem estará aí, mas na indiferença
dos partidos e lideranças por este factor de desestruturação do regime (Matos,
2010: 103). Segundo, quanto à participação na Grande Guerra, que colocou
Portugal do lado das nações democráticas e também por aí contribuiu para a
consolidação da forma republicana, mas fez-se em condições deploráveis de
preparação militar, precipitou a crise social e política, e não logrou para o
país, na hora da paz, qualquer benefício relevante, associado à sua condição
de membro da coligação vitoriosa (cf. Meneses 2009a, Meneses 2009b,
Teixeira, 2010). E até, terceiro, o insucesso que conheceu a República numa
das suas causas essenciais, o combate ao analfabetismo: a redução da proporção
de analfabetos foi apenas de quatro pontos percentuais entre 1911 e 1920
(Proença, 2009: 178), o que, mesmo ponderando a fragilidade da informação
estatística, mas tendo em conta a dimensão social do problema (75% de
analfabetos em 1911) e a extrema importância política que os republicanos lhe
haviam concedido, representa indubitavelmente um malogro.
4. As realizações da República
A avaliação da Primeira República, tal como proponho que a façamos
– da perspectiva do nosso próprio tempo e quadro democrático – não
pode contornar o extenso rol de insucessos, incumprimentos e desilusões. A República falhou a democratização política pelo sufrágio eleitoral,
sabotou os seus próprios fundamentos por demasiado distanciada do movimento sindical urbano, prejudicou a extensão dos alicerces por demasiado
intolerante perante as formas religiosas do país rural, esmoreceu ou pura
e simplesmente não conseguiu levar até ao fim a sua ambição de alfabetização universal, e perdeu a sua aposta estratégica na participação na Grande
Guerra. Mas importa também salientar o seu lado solar, as realizações que
obteve, e foram várias, no plano das liberdades e direitos civis, das instituições políticas e das estruturas sociais.
Assim, a República defendeu e aprofundou o parlamentarismo. Não
ainda aquele que hoje conhecemos e praticamos. Basta recordar a restrição
100
AUGUSTO SANTOS SILVA
do sufrágio; o menosprezo pelo processo eleitoral; a frouxa “indicação
parlamentar”, como então se dizia, e fez com que, por várias vezes, a assembleia chegasse a “sustentar governos de orientação política oposta à maioria
parlamentar” (Matos, 2010: 103); ou a extrema instabilidade dos executivos. Mas, ao eliminar as instâncias não representativas, em sentido estrito,
como a realeza e o pariato, a República tornou clara a fonte da legitimidade,
vinculou-a à escolha dos cidadãos e consolidou a representação plural dos
diversos interesses e segmentos como a base de sustentação do sistema político. Como sabemos, a dupla eleição directa da assembleia legislativa e do
presidente da República não constitui, por si só, entorse à centralidade da
instituição parlamentar; mas a corrente hegemónica da Primeira República
foi coerente com o seu visceral parlamentarismo ao preferir a eleição indirecta do Presidente pelo conjunto do Congresso.
Portugal avançou bastante, entre 1910 e 1926, na concretização da ideia
tipicamente moderna e democrático-liberal de que a integração nacional se faz
pela representação livre, plural e conflitual das diferentes correntes políticas
e sociais que, constituindo a nação, devem estruturar o seu sistema político.
Concomitante e correspondentemente, progrediu também na doutrina
e na prática da cidadania. Na época de oposição à Monarquia, o Partido
Republicano já se havia destacado como o primeiro partido de massas português (Catroga, 1991: 11), fazendo pleno uso dos instrumentos de mobilização
social e da sua cenografia, com os seus órgãos de imprensa, as estruturas locais
de recrutamento, formação e enquadramento, a propaganda, os actos cívicos,
manifestações e comícios. Foi assim construindo uma base social e política
no meio urbano de Lisboa e Porto, liberal-radical na orientação e pequenoburguesa e operária na ancoragem popular, que verdadeiramente fez triunfar
em Outubro de 1910, quando foi chegada a hora das incertezas e hesitações, a
revolução republicana. Este exercício constante e, nos termos da época, muitas
vezes agitado e violento, da cidadania, como intervenção activa nos destinos do
país, foi uma marca de toda a história da Primeira República, aquela que se
fez quase sempre só na cidade de Lisboa. Contou com os ingredientes institucionais próprios, como os partidos políticos, as associações de interesses, os
movimentos sociais, as sociedades secretas, e influenciou a Marinha, o Exército
e a novel Guarda Republicana. Debateu apaixonadamente as questões públicas,
desde logo a do regime, mas também a educação, o trabalho, a religião, o
101
NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA
fomento, a colonização, as artes, a ciência, o “homem novo”. E fê-lo num
espaço público que nunca antes havia existido com tal pujança e dimensão.
Coerentemente, a grande obra da República pode dizer-se que foi a
libertação do indivíduo face à tutela religiosa. É este o efeito estrutural da
instituição do registo civil, que, retirando à Igreja Católica o monopólio do
conhecimento e legitimação dos marcos mais relevantes do trajecto pessoal
e familiar de vida, estabeleceu uma área de autonomia intransponível para
cada indivíduo-cidadão. A modernização do direito de família, incluindo
a regulação do divórcio, vai no mesmo sentido e a respectiva legislação é
uma das mais avançadas na sua época, à escala internacional. E, mesmo que
descontemos o lado mais panfletário e agressivo (excessivo na fractura, como
atrás sustentei) da Lei da Separação do Estado das Igrejas e das hostilidades
de parte a parte, nos primeiros anos do regime, o facto é que a afirmação
da natureza laica das instituições públicas, civis e políticas, inscreve-se neste
mesmo movimento de autonomização plena da esfera pública e de prossecução de uma moral cívica e de uma formação elementar desvinculadas da
linguagem e dos valores religiosos.
Também por isso, é matricial à Primeira República, não só a elaboração
de uma “utopia demopédica” (Pintassilgo, 2010), como a concepção e a
implantação de um sistema nacional, laico e moderno, de educação. Tem sido
apropriadamente notado que, neste como noutros planos, o traço mais característico da prática republicana foi mesmo a continuidade, aqui com o apostolado
dos grandes pedagogos fini-oitocentistas (muitos deles republicanos) e com as
reformas empreendidas ou tentadas pelos governos da monarquia (incluindo
o primeiro de João Franco), desde os anos de 1890. Por outro lado, já verificámos que, na crueza dos números, só se pode qualificar como malogrado o
esforço republicano de combater, com a energia e envergadura requeridas pela
enormidade do problema, o analfabetismo. Mas não é menos verdade que é a
República que, em primeiro lugar, coloca a “instrução pública” no cerne da
doutrina e da agenda política; e, depois, que acarinha a educação popular e a
modernização pedagógica, acentua a centralidade da formação e do estatuto
dos professores do ensino primário, incrementa o nível secundário e a fileira
técnica e profissional, funda as duas novas universidades de Lisboa e do Porto,
promove a escolarização das raparigas e lança as bases de uma formação cívica
elementar, para todos os jovens estudantes.
102
AUGUSTO SANTOS SILVA
5. A República revalorizada pelos seus adversários
Há, pois, múltiplos e variados bens a colocar no prato da balança da
República que pesa as suas realizações. Mas a República não foi “una”, nem,
como ideia, movimento, acção e cultura política, se esgotou com o 28 de
Maio de 1926.
Foi, desde logo, marcada pela conjuntura da participação na Grande
Guerra e do fim desta. A primeira liderança do regime – e, desde logo,
Afonso Costa – acabou por se afastar, e emergiu uma nova esquerda republicana que, sem deixar de ser republicana, quis ser reformista e aberta à
social-democracia, trazendo para o programa e a acção política a questão
social, procurando reatar os laços com o operariado, impondo avanços na
legislação laboral – e fazendo a revisão crítica, por vezes aguda, da doutrina e
prática da sua própria família. É essa esquerda republicana, seja no seu plano
mais político, com José Domingues dos Santos e outros, seja sobretudo no
seu plano intelectual e ideológico, com o grupo da Seara Nova (António Sérgio,
Raul Proença, Jaime Cortesão…), que muitas vezes nos serve de referência
principal quando procuramos valorizar, hoje, o legado republicano.
Há quem sustente que a afirmação pública desta corrente republicana
e, em geral, o esforço de redireccionamento do regime na sequência do
armistício e da morte de Sidónio Pais, com a promessa de uma “República
Nova”, constitui uma espécie de regeneração. Falhada até 1926, que os arreigados vícios da instabilidade política, do sectarismo partidário e do recurso
à violência contra adversários políticos, somados à hostilidade dos interesses
económicos, tudo isso que fez, nos termos da época, que acabasse por se
tratar de uma “Nova República Velha”, criou o caldo favorável ao triunfo do
movimento anti-republicano e ao sucesso do golpe militar do 28 de Maio
e da clarificação que se lhe seguiu, em rumo antiliberal. De modo que a
regeneração da cultura e do movimento republicano far-se-ia verdadeiramente após a Primeira República, na imediata oposição à Ditadura Militar e
ao Estado Novo (Rosas, 2010: 237-239).
Esta apreciação tem algum fundamento. A larguíssima maioria dos republicanos não se enganou de campo, durante o salazarismo. E, logo que se tornou
clara a direcção para que se caminhava após o 28 de Maio, multiplicaram-se
os actos de insurreição e resistência (cuja dimensão foi, aliás, durante bastante
103
NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA
tempo desconhecida ou desvalorizada, mesmo no meio historiográfico). Os
reformistas críticos do pós-Grande Guerra e os velhos liberais-radicais dos
primórdios do movimento e do regime encontraram-se na resistência – e
aí encontraram também alguns dos que promoveram ou pactuaram com o
sidonismo e dos que defenderam, nos anos de estertor, a chamada “ditadura
de competências”. Os direitos e garantias pessoais, as liberdades políticas,
as eleições pluripartidárias, as instituições representativas, a autonomia do
poder judicial, a independência sindical, etc., fabricaram ao mesmo tempo o
cimento ideológico agregador do republicanismo pós-República e a linha de
divisão intransponível com o salazarismo. Nesse longo combate sem tréguas
até 1974, o republicanismo encontrou uma nova razão de ser.
Se quisermos compreender plenamente esta renovação, devemos, a meu
ver, introduzir ainda dois elementos adicionais.
O primeiro deriva de que a construção ideológica do salazarismo se fez
radical e frontalmente contra o republicanismo, na medida em que ele constituía o prolongamento do liberalismo nacional. Fazia parte desse odioso
século XIX tão vilipendiado pelos ideólogos do fascismo à nossa maneira.
Num certo sentido, um pouco cínico mas objectivamente incontornável, os
republicanos não podiam mudar de campo porque o outro campo sempre
os repeliu como inimigos. Esta verdade histórica – que os republicanos
se inscrevem na corrente radical do liberalismo, de inspiração jacobina e
filiação portuguesa “vintista” – sempre foi assumida, até à caricatura, pelos
salarazaristas, que a ela intencionalmente encostaram a direita liberal em que
se reconheciam os evolucionistas e os unionistas da República, procurando
reduzir todo o liberalismo à sua matriz franco-jacobina. É exactamente
por isto, porque o republicanismo representou, no tempo da resistência à
Ditadura, o pólo do liberalismo democrático – dos direitos humanos, das
liberdades políticas e das instituições eleitoralmente representativas – que
ele persistiu e se reforçou. E foi o extremismo anti-republicano da primeira
fase do Estado Novo, levado ao paroxismo na apologia das virtudes do analfabetismo (Mónica, 1977), que fez, por exemplo, com que à República ficasse
atribuído um empenhamento convicto na educação pública para todos - uma
medalha que, à luz dos factos, ela não merecera inteiramente…
O outro elemento a ter em conta, para a plena compreensão disso a que
venho chamando a renovação do republicanismo na resistência ao Estado
104
AUGUSTO SANTOS SILVA
Novo, é a sua abertura e interacção com outras correntes políticas de oposição, e
designadamente com o socialismo. A ideologia não é estática, mas sim dinâmica
e, ao longo das cinco décadas de ditadura, a causa republicana foi-se transformando. Em particular, e sem perder a sua típica vinculação liberal-radical,
aprendeu a enunciar de forma mais integradora a questão económico-social e
a actualizar os termos (e o nível de prioridade) da questão religiosa.
6. Nós, distantes e próximos da República
Eis, pois, o caminho que foram fazendo e refazendo o republicanismo e
a República, de meados do século XIX até aos nossos dias – o caminho que
os trazem até nós, o caminho que, como sustentei no início deste texto, me
parece ser o melhor enquadramento para ver e representar bem o valor da
experiência do regime republicano de 1910 a 1926.
Nós, que pensamos a República cem anos depois do seu advento, estamos
muito distantes dela.
Em primeiro lugar, porque compreendemos o distanciamento que os
impasses práticos do regime suscitaram nos seus próprios defensores. Por
todos, António Sérgio exprimi-lo-á bem, ao dizer, em 1929, que o facto é que
os republicanos não tinham feito uma verdadeira república (citado por Pereira,
2010: 123). Isto é: o ideário ficara por realizar, a mudança de regime político
não tinha servido, ao contrário da promessa dos tempos da propaganda, de
alavanca para a reforma económica, social e cultural. E nós, que olhamos para
a Primeira República da perspectiva da Segunda, que realmente conseguiu
articular democratização política, integração europeia, modernização cultural
e desenvolvimento social, somos capazes de perceber esse desalento.
Um mundo nos separa, também, do vanguardismo da liderança da
Primeira República. Ela foi atravessada por uma divergência essencial entre os
que, seguindo Afonso Costa, entendiam que a República como que pertencia
aos republicanos e os que, seguindo António José Almeida, sustentavam que
a República devia pertencer a todos os Portugueses (cf. Matos, 2010: 126128). A longa prevalência do primeiro entendimento, que cindia o país entre
o “povo republicano” de Lisboa e o restante, implícita ou explicitamente
diminuído como conservador, não-instruído, não-esclarecido, suposta
presa fácil de clérigos e senhores, e que reservava aos militantes republicanos
105
NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA
uma espécie de direito de propriedade, acabou por impedir que a República
transformasse a sua legitimidade revolucionária original numa legitimidade
institucional, que integrasse a população por via do alargamento do sufrágio
e que ampliasse o consenso social em torno de si própria. Pelo contrário,
a ruptura com o movimento operário e sindical e as clivagens internas ao
campo republicano fizeram com que mesmo o bloco social e a plataforma
política que fizeram o 5 de Outubro se reduzissem e enfraquecessem.
O contraste com a República democrática e europeia do Portugal pós-25
de Abril não poderia ser maior – e a favor deste, que soube integrar os vários
interesses e correntes políticas num quadro institucional pluralista e inclusivo,
e soube criar e consolidar espaços de compromisso e concertação social. Neste
sentido, a promessa de uma República democrática, enunciada e não cumprida
pelos republicanos de 1910, foi plenamente realizada pelos democratas de 1974:
a universalização do sufrágio, a liberdade de imprensa, associação e reunião, a
competição livre e pública entre correntes políticas, a alternância no poder, a
limitação e a interdependência dos poderes, a estabilidade das instituições, o
compromisso do Estado laico com a liberdade e o pluralismo religioso, tudo
o que nós damos por garantido, em Portugal, de diferentes e progressivas
formas, desde 1974 (com o derrube da Ditadura), desde 1976 (com o fim da
transição revolucionária), desde 1982 (com a plena consagração constitucional
de uma democracia civil) e desde 1986 (com a integração europeia), tudo isso
nos coloca bem longe da Primeira República.
Não há nenhuma razão para esconder ou menorizar esta distância. Mas ela é
ainda, a seu modo, uma proximidade. A Segunda República é bem diferente da
Primeira República também porque a Primeira se fez a partir de um ideário que é
mais largo e denso do que as realizações práticas que inspirou, porque a Primeira
República existiu como regime, com os seus êxitos e bloqueamentos, em circunstâncias que em nenhum momento foram de facilidade, e porque a Primeira
República sobreviveu a si mesma, como uma das razões e um dos programas para a
resistência e o combate à ditadura que a derrubou e substituiu. E estes factos foram
outras tantas possibilidades de advento e consolidação de uma nova República,
essa sim, segundo os nossos critérios de hoje, estritamente democrática.
Assim, e desde logo, a Segunda República prosseguiu e ampliou o processo de
institucionalização de um regime republicano, laico, liberal e parlamentar, que
esteve na matriz da Primeira República – democratizando-o plenamente.
106
AUGUSTO SANTOS SILVA
Depois, a Segunda República superou duas das questões fundadoras de
1910 – e as fracturas que uma polarização excessiva dos seus termos tinha
causado na sociedade portuguesa – porque de certa forma as encerrou, isto é,
as levou à sua conclusão lógica e politicamente inclusiva. Uma foi sem dúvida
a questão religiosa, que foi central na Primeira República e foi resolvida
pela Segunda. Esta, com a opção institucional por um Estado laico mas não
anti-religioso, o respeito pela pluralidade das confissões e a valorização delas
no espaço público e nas formas de organização social, tornou anacrónica a
antiga antinomia entre jacobinismo e ultramontanismo. A outra questão foi
a da educação, que pôde deixar de ser a bandeira de uma facção e a promessa
da fundação de um “homem novo” animado por uma espécie de religião
laica, para ser um tópico de consenso social e um tema de políticas públicas
para o desenvolvimento pessoal e social, a participação cívica, a qualificação
dos recursos humanos e a competitividade.
Finalmente, a Segunda República pode ir mais longe do que a Primeira
porque a Primeira a desafia. Como bem notou Salgado de Matos (2010: 9,
137-138), o impacto da Primeira República foi e é muito forte, mas no plano
simbólico. E, quando procuramos perceber os fundamentos desse impacto, é
difícil não notar que estão na ideia de cidadania e no sentimento de confiança
nacional. Na ideia da cidadania como fonte do governo da comunidade
política, na forma republicana, isto é, sem nenhuma instância subtraída
à vinculação, directa ou indirecta, às escolhas dos cidadãos; e na ideia de
cidadania como autogoverno dessa comunidade, sem tutelas estranhas à sua
própria estruturação. E no sentimento de confiança nacional, nessa vontade
de agir e nessa fé na capacidade do país para mudar, progredir, identificar e
afrontar os factores de atraso e explorar e concretizar as suas potencialidades,
que fez do republicanismo a força de mobilização e a proposta de reencontro
da nação consigo mesma, após a experiência traumática do Ultimato, e que
orientou muito do que a República procurou fazer, mesmo que sem êxito,
incluindo a participação na Grande Guerra do lado das democracias e,
subsequentemente, a sua própria auto-regeneração.
No tempo presente, em que o espaço público português é tão hegemonizado
pela retórica da lamúria (como bem lhe chamou, na Presidência, Jorge
Sampaio) e pela hipervalorização de tudo o que possa parecer sintoma
de desvalia e prova de incapacidade própria, de nós Portugueses, para
107
NÓS E A PRIMEIRA REPÚBLICA
desenharmos o nosso futuro, este desafio que nos vem dos primeiros
republicanos talvez seja a sua “lição” mais fecunda.
E não é isso o que nós buscamos quando procuramos compreender o
nosso presente dialogando com o nosso passado com os olhos do nosso
presente – desafios, problematizações que nos inspirem, quer dizer, que nos
inquietem e motivem?
Referências bibliográficas:
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108
O Partido Socialista
nos Primeiros Anos da Ditadura*
Constantino de Oliveira Gonçalves
O Partido desde o seu nascimento ao fim da I República
Dir-se-ia que em vão entrou em Portugal, por alturas da segunda metade
do século XIX, o “Manifesto Comunista”. Simplesmente, porque não existia
a classe do operariado, sua legítima destinatária. Oficinas caseiras entremeadas
com indústrias de trazer por casa, eis o panorama geral num pano de fundo
de ruralidade arraigadíssima com pontos de modernidade isolados, mais em
Lisboa menos no Porto, só resquícios além.
A esta quase ausência de proletariado, junta-se a fortíssima marca da miséria,
eterno apanágio dos trabalhadores portugueses. Analfabetismo nos 79%,
mortalidade infantil de 238‰, condições de trabalho de todo degradantes,
permanente instabilidade no emprego1. É neste cenário que vai fermentar o
Partido Socialista.
E esta desgraçadamente debilitada massa operária, reduzida no número e no
potencial reivindicativo, aliada à falta de capacidade que o partido vai demonstrar na conquista de um espaço político próprio, serão os estigmas de que o
socialismo português não se livrará até à sua autodissolução em 19332. Recuemos
aos primórdios:
Em 1852 tínhamos a criação do “Centro Promotor dos Melhoramentos das
Classes Laboriosas”, alimentado por um grupo de socialistas utópicos. Bebiam
doutrina em Fourier e Saint-Simon e “aspiravam à fraternidade e igualdade entre
os homens e sonhavam com uma sociedade formada em moldes cooperativos e
federativos”. Pretendiam a transformação do país “numa comunidade composta
*
Com a autorização do autor, publicamos os quatro primeiros capítulos da tese de Mestrado “O Partido Socialista nos
Primeiros Anos da República”, defendida em Março de 2007 por Constantino Oliveira Gonçalves. A Finisterra, agradece ao
seu autor a oportunidade que lhe foi gentilmente concedida para a publicação deste excelente texto.
1
PEREIRA, M. Halpern, Livre Câmbio e Desenvolvimento Económico, Sá da Costa, Lisboa, 1983, p. 40.
2
Entalado que irá permanecer sempre entre os anarco-sindicalistas, os republicanos e os fascistas.
109
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
por pequenos proprietários, auto-administrando-se sem a intervenção do poder
central. Odiavam a civilização industrial e o Estado centralizado”3.
No ano de 1866 parece ter acontecido o primeiro empenho do Conselho
Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores na árdua missão de
contactar e converter os trabalhadores portugueses. Apesar de se desconhecer,
contudo, qualquer resultado dessa investida, o certo é que cinco anos depois
sempre é constituída a secção portuguesa da A.I.T. por intercessão de três dirigentes espanhóis, internacionalistas e foragidos à justiça do país vizinho4.
Corria o calendário de 1872 quando, finalmente, os portugueses aderem à
Internacional, transferida esse ano por Marx e Engels para Nova Iorque mas,
de resto, agonizante devido à repressão que se seguira à comuna e às intermináveis querelas entre bakouninistas e marxistas5. Paulo Lafargue representa-os no
Congresso de Haia, tendo estado em Lisboa e travado relação com os Membros
da Fraternidade Operária6.
Um ano depois, é a vez de Antero tentar formar um partido com a “cor
dominante de democrático-socialista e republicano como subcor”, como
explica a Oliveira Martins. Mas o projecto terá falhado porque os mais
3
O Eco dos Operários, Lisboa, 1850. Citado por MÓNICA, Maria Filomena, O Movimento Socialista em Portugal (1875-1934),
Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1985, p. 33.
Para Alberto Machado da Rosa, a chamada geração de 1852 (termo de Vítor Sá) reporta-se menos à divulgação de ideias
socialistas coevas, imprecisas e confusas em toda a parte, ainda mais em Portugal, que à promoção de uma autêntica
aproximação cultural com a Espanha e da Federação Ibérica. (Joaquim de Carvalho, Socialismo em Portugal há um Século, Seara
Nova, Novembro de 1970).
4
O Anselmo Lorenzo, Gonzalez Morago e Francisco Mora, que vieram a Lisboa logo em seguida à revolução de 18 de Março.
5
Segundo os moldes da Aliança da Democracia Socialista, fundada por Bakounine, a qual, após um ano de existência,
contava, em Lisboa com 10 000 filiados, no Porto com 8 000 e, no resto do país, com mais alguns milhares. (in,
NOGUEIRA, César, Notas para a História do Socialismo em Portugal, Vol. II, Colecção Portugália, Lisboa, 1966, p.179).
No entanto, Gneco afirma que “A secção portuguesa era uma coisa que não era coisa nenhuma”. Entretinha alguns
militantes. Não assustava ninguém. (in, MÓNICA, Maria Filomena, op. Cit. P. 37).
6
A secção portuguesa tem conhecimento do Congresso através do jornal Morning Post. (in, MÓNICA, Maria Filomena,
op. cit. p. 37). Refira-se, por curiosidade, que, Lafargue, marido de Leonor Marx, filha de Carlos Marx, declarara ao
redactor do Vorwarts, Edmond Peluso, em 1909, que os antepassados de Carl Marx eram judeus de origem portuguesa. (In,
NOGUEIRA, César , op. cit. p. 138).
A Associação Fraternidade Operária era uma confederação de secções e ofícios organizada por José Fontana e que
haveria de desaparecer, em especial devido às contínuas e repetidas greves sem plano, nem prévia combinação. Os cofres
esgotaram-se, as subscrições vieram a tornar-se infrutíferas, o desânimo acabou por se apoderar de todos e o brilhante
movimento caíu. (In, FONSECA, Carlos da, História do Movimento Operário”, IV, Greves e Agitações Operárias (1ª Parte), Publicações
Europa-América, Viseu, 1982, p. 50).
Refira-se ainda que, nas palavras de Joaquim de Carvalho, “o único país meridional a emparceirar com os vencedores
de Haia foi Portugal (…) raríssimos foram os portugueses que ouviram falar do que se discutia e menos ainda os que
entenderam do que se tratava”. E acrescenta: “A distância de um século, as reuniões e congressos internacionalistas de
1874 a 1892 e as divergências que ali vieram à superfície, representam apenas um elemento básico mas parcial para se
compreender a situação complexa e confusa, em que as personalidades contam por vezes mais que as ideias” (Joaquim de
Carvalho, O Socialismo em Portugal há um Século, Seara Nova, Novembro de 1970).
110
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
“colectivistas”, onde pontuariam Gneco (que em Outubro desse ano funda
a Associação dos Trabalhadores da Região Portuguesa, cujos estatutos são
publicados no nº 55 d’O Pensamento Social), Fontana e França não o teriam
aceite. Era a dicotomia Socialismo-República, metas para uns indissociáveis
mas de todo distintas para outros. Uma situação confusa e, sobretudo,
confundida7.
É neste contexto que surge, por fim, em 1875 o Partido Socialista como
um ramo da I Internacional. Estávamos a 10 de Janeiro, em Lisboa, num
antigo palácio da Carreira do Socorro, hoje rua Fernandes da Fonseca.
A proposta sai de Eudóxio Azedo Gneco desde logo suportado no apoio
decisivo de José Fontana (cujas palavras tinham um enorme peso no meio
operário), de Jaime Batalha Reis e Antero de Quental8. À sua frente
estavam, além de Gneco, José Nobre França, Caetano da Silva, Agostinho
da Silva e António José de Oliveira9.
Começava nesse ano a publicar-se O Protesto (processado em tribunal
logo em Outubro), com Gneco à cabeça10. Um ano passaria até se assistir ao
nascimento do “Partido Republicano Português”, facto importante. Muito
importante mesmo, que desde logo se constituiu numa sombra permanente a competir com a já de si parca base social de apoio dos socialistas e
que, como se sabe, acabará por ofuscá-los a partir, sobretudo, da última
década do século. É por essa altura que se funda em Oeiras a Associação
Socialista 12 de Março11.
O I Congresso Socialista há-de reunir-se em 1877 onde será redigido o primeiro programa do partido, redigido por José Correia Nobre
França12 e que merecerá os aplausos de Benoit Malon. Trabalho e justiça são,
7
França, Fontana e Gneco acham tão odiosa a República como a monarquia pois há muito aquela tinha mostrado lá fora
nada fazer pelas classes trabalhadoras. Mas a distinção não será nunca de todo clara, mesmo nas reacções do pós-movimento
revolucionário do 5 de Outubro, como adiante veremos.
8
Ver, SOARES, Isabel, Cem anos de Esperança, Edições Portugal Socialista, Lisboa, 1979, p. 9.
9
Há-de juntar-se depois Luís de Figueiredo que, com Fontana há-de representar uma corrente mais obreirista, por
oposição ao “socialismo político”, obra de intelectuais.
10
Seria ainda este dirigente, um dos melhores oradores, com conferências notáveis, quem apareceria, em 1908, à frente do
República Social, hebdomadário desde aí verdadeiro porta-voz do partido, como precisaremos mais à frente.
11
Refira-se que nesta base inicial de apoio pontuavam os serralheiros, fundidores, torneiros, chapeleiros, carpinteiros,
tabaqueiros e alfaiates, sobretudo de Lisboa e Porto, operários especializados, porquanto, os restantes, ocupados em
sobreviver, não eram mobilizáveis politicamente.
111
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
em resumo, os ideais que o inspiram, adivinhando-se, nas entrelinhas, o federalismo de Proudhon, segundo o qual, em cada município, os trabalhadores seriam
chamados a resolver directamente os seus problemas com limitada intervenção do
poder central. Antero acabará por aderir ao partido nesse mesmo ano, numa altura
em que, sob a sua orientação, Eça e Batalha Reis, “quietos à banca, com os pés,
em capachos, como bons estudantes,” liam Proudhon com fervor13. Logo no ano
seguinte vai fundir-se com as organizações sindicais da Associação de Trabalhadores
e muda o nome para “Partido dos Operários Socialistas de Portugal”. Mas, passado
outro, já Pinto Barbosa encabeçaria uma cisão dando origem à União Democrática
Social. Foi no II Congresso, em Fevereiro de 1878 que o partidose fundiu com
a ATPR, nascendo o POSP14. São já aqui delimitáveis duas correntes: a marxista
e a possibilista, esta dando corpo aos desejos de autonomia nacionalista, a acção
adaptada às conjunturas nacionais com estratégias próprias, fora das pretensões
hegemónicas do marxismo na outra. Era uma tendência inspirada em Malon e
Brousse, cá liderada pelo pragmático Luís de Figueiredo e que há-de perdurar no
partido sendo mais tarde incorporada no sindicalismo15.
Esta periclitante coabitação de tendências há-de acentuar a sua fragilidade ao
12
Tipógrafo. Dos contactos com Engels e Lafargue resulta uma aproximação ao marxismo. É o primeiro secretário da
Secção Portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores, faz parte do grupo dos fundadores da Associação dos
Trabalhadores da região Portuguesa e do PS, a cuja direcção pertence. Há-de aproximar-se da corrente republicana e
exercer o jornalismo (em 1910 adere ao Partido Republicano Independente, de Machado dos Santos). Sobre este
Congresso ver O Pensamento, em Agosto de 1932. Na mesma revista e entre Outubro e Novembro do mesmo ano publicamse as histórias dos congressos seguintes, grosso modo, de periodicidade anual. A primeira Conferência Nacional do Partido
tem lugar em Janeiro de 1882 com 9 delegados representando 12 agrupações (ver, O Pensamento de Janeiro de 1933). A
segunda Conferência Nacional foi em tomar, em Outubro de 1895 (ver, O Pensamento de Fevereiro de 1933).
13
QUEIROZ, Eça de, Notas Contemporâneas, Lisboa, Livros do Brasil, p. 268.
14
A cisão de Pinto Barbosa tem a ver com o não apoio do partido às lutas operárias e à greve dos chapeleiros por estar
envolvido na luta eleitoral de 1878. É apoiado neste exemplo que Ramiro Costa diz que não era um partido operário mas
eleitoralista (In, COSTA, Ramiro, Elementos para a História do Movimento Operário em Portugal, 1820-1975, Vol I, Assírio e Alvim,
Lisboa, 1979, p. 54).
15
Luís de Figueiredo e Viterbo de Campos representarão, em 1889, a Associação dos Trabalhadores da Região Portuguesa
no Congresso de Paris (de facção possibilista, sendo que o outro Congresso era de orientação marxista revolucionária). Em
1896 é Azedo Gneco quem representa o PSP no Congresso de Londres.
É pertinente reflectir acerca do cariz proudhoniano que sempre marcou a tendência mestra do socialismo em Portugal.
Não seria, por certo, alheia a isso a tradicional permeabilidade em relação à cultura francesa em geral e à sua língua em
particular. Malon, Gauchet e Jaurés eram mais lidos que Marx. E foran ilustres as nossas figuras com influências de
Proudhon, desde Antero a Oliveira Martins, passando por Eça. Mas isso tinha também a ver com a essência da personalidade
lusitana. Leiamos Alberto Machado Rosa: “Proudhon, quando não tratava de doutrina e metafísica, tinha o verdadeiro
instinto do revolucionário – adorava Satã e proclamava a anarquia. É possível que, em teoria, Marx tivessse chegado a um
sistema de liberdade mais racional que o de Proudhon – mas faltava-lhe o instinto de Proudhon. Como alemão e judeu
é autoritário da cabeça aos pés. Daí provém dois sistemas: o anarquista de Proudhon, alargado e desenvolvido por nós e
libertado de toda a sua bagagem metafísica, idealista e doutrinária, aceitando a matéria e a economia social como base de
todo o desenvolvimento na ciência e na história. E o sistema de Marx, cabeça da escola alemã dos comunistas autoritários”.
112
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
ponto de, em 1895 o partido se cindir. Surge o “Partido Socialista Português”,
com Gneco à frente e mantém-se o “Partido dos Operários Socialistas”, liderado por Figueiredo16.
Quase desprezível nos surge o papel dos divididos socialistas. Quase impermeável à causa da luta política nos parece o grosso do miserável proletariado
português17. Entre 1878 e 1895, período em que o sistema permitia o voto
alargado, não alcançaram qualquer votação significativa mas – justo se impõe
sublinhá-lo – terá sido em boa parte pela sua acção que, paulatinamente, se
foi formando o movimento operário português e se foram organizando as
primeiras Associações de Classe. Afinal, não de todo de desprezar no contexto
do Portugal do fim de oitocentos. Ao mesmo tempo vai-se tornando consistente uma verdadeira cultura operária, obra inegável dos socialistas que vão, com
paciência, conferências, saraus, festas e jornais, criando uma cultura prenhe de
laicismo e espírito de contestação. Emerge, paralelamente, um profundo anticlericalismo e ódio ao grande capital, solidificado à mistura com uma defesa
dos valores do progresso e da revolução numa esperança que envolvia o sonho
da dignidade do trabalhador. Vem já desta altura uma atitude de verdadeira
compensação psicológica pelos desaires sofridos, através da imprensa socialista,
que exaltava, em delírio, os êxitos dos seus congéneres estrangeiros, tentando
arrastar as hostes à mobilização sempre adiada.
Apesar de cedo se ter percebido que as eleições não levariam longe o partido
na conquista do poder, deve registar-se a apreciável mole humana reunida
aquando da homenagem póstuma a Fontana. 20000 trabalhadores mobilizados,
71 organizações populares18. Notável! Ou com os 50000 operários postos em
acção no primeiro de Maio de 189719. Contudo, diga-se, nunca descarrilando
(In, Seara Nova, Novembro de 1970). Isto reflectia-se em todas as esferas da acção política. Em Julho de 1909, Jaurés vem
a Lisboa, onde é principescamente recebido. Vale a pena ver o excerto de uma carta que escreve à mulher, encantado: “Jái
été reçu ici avec beaucoup de sympathie et de grands honneurs. Le ministre des Affaires Étrangères est venu me prendre
à l’hôtel , et quand jái été à la séance de la Chambre Portugaise, dans la tribune du corps diplomatique, tout la chambre,
a ma surprise, s’ést levée en criant: «Viva Jaurés! Viva la republica francesa!» Cela a dure plusieurs minutes. Et puis, le
président m’a conduit à um fauteuil de député, derrière les ministres. J’ai siégé un moment comme deputais portugais”
(In, AUCLAIR, Marcelle, La Vie de Jean Jaurés ou la France D’avant 1914, Voici, Saint-Amaud, 1969, p. 389).
16
Em 1897, nova divisão surgiria: aparece a “Aliança Republicano Socialista”, com Ernesto da Silva e Teodoro Ribeiro, por
cisão com Gneco ao advogarem uma maior aproximação aos republicanos.
Hão-de voltar a unir-se em 1907, só que aí será demasiado tarde...
17
Sublinhe-se, contudo, que não era só em Portugal que os socialistas estavam divididos.
18
FONSECA, Carlos da, História do Movimento Operário, I cronologia, Publicações Europa América, Viseu, 1982, p. 83.
113
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
da serenidade mais ordeira, com pendões, com filarmónicas, com paz.
É no rescaldo do turbilhão despoletado pelo ultimato de 1890 que vão os
socialistas surgir mais acirrados na luta contra os republicanos20. No alvoroço
destravado que sacudiu o país, desprezavam-nos no seu discurso precipitado,
prenhe de entusiasmo e romantismo. Mas é este o discurso que apaixona as
massas e o movimento socialista vai estancando com multiplicadas sangrias de
dirigentes e correligionários de que nunca recuperará21.
Em 1901, temo-lo decepado, sem corpo directivo. Acode-lhe a Conferência
de Coimbra de Junho desse ano transferindo para o Porto o Conselho Central,
renovado em 1904 e, por fim, dissolvido em Junho de 190922. Remendando
tão naufragado cenário, deliberam em desespero um acordo com as Juntas
Regionais do Sul e Norte. Nomeia-se um novo Conselho Central, com sede em
Lisboa, até à convocação rápida do Congresso Nacional. O que só aconteceria
a 23 de Abril de 191023.
Fora-se assim esbatendo a identidade do partido. Inevitável, digamos, pois
que, levado na onda de destravado ódio ao regime monárquico é, como oposição,
confundido com o republicanismo. Esta confusão eleva-se até aos quadros dirigentes do partido que, amolecidos pela força da corrente dominante, chegaram
a aceitar que “o Partido Socialista é essencialmente antimonárquico e tem por
fim a implantação da República Social”24. Este entusiasmo que parira aliança
com os republicanos já esfriara, contudo, em 1907, quando estes vetaram um
conhecido socialista do Porto para deputado. Decidiu-se mudar a estratégia.
Separaram-se. Perderam. Gneco vem a obter 200 votos em 1910 pelo Porto
19
MÓNICA, Maria Filomena, op. cit. pág. 73.
20
A revolta republicana de 1891 há-de passar com os socialistas ausentes, como, de resto, a classe operária cujo apoio não
é procurado.
21
Como em 1899, quando, opondo-se a uma decisão do Conselho Central, os socialistas do Porto decidem apoiar os
republicanos nas eleições numa lista que virá a ganhar...
22
Entretanto, em 1906 tinha-se reunido a I Conferência Extraordinária Nacional Socialista em Tomar.
23
Azedo Gneco, que presidiu a este Conselho, viu-se a braços com graves dificuldades, posto que quase todas as forças
vivas do país estavam empolgadas pelo embate entre monárquicos e republicanos, limitando-se a sua esfera de acção quase
só ao expediente.
Só que o Conselho Central que então tomara posse não conhecia os elementos com que contava pois, como desabafava
ele em carta a António Mendes de Alcântara, datada de 6 de Julho de 1910 “desde 1901 em que o Partido Socialista elegeu
novo Conselho Central, que organizou a Conferência de Coimbra, na qual outro Conselho foi eleito com o título de Junta
central, com sede no Porto e composto por elementos residentes naquela cidade e em Gaia; e assim esteve o directório do
Partido quase 9 anos deixando correr tudo à revelia, com as melhores intenções do mundo, mas com o pior resultado
imaginável” (In, Seara Nova, 19-26 de Agosto de 1950).
114
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
enquanto Lisboa se envolve num efervescer de ansiedade, pois que o povo,
como se lamenta César Nogueira, cego, desconhecedor da essência da questão
social, foi na enxurrada, batendo-se pela construção da República25. Os socialistas recebê-la-ão num misto ambíguo de júbilo e suspeita26. Pulido Valente
regista que foi com excesso de boa vontade que não achavam “desagradável” a
perspectiva de uma revolução republicana e que, portanto, nunca “serviriam
de sustentáculo a tronos”. Mas acrescenta que “a lenda do seu conluio com
a direita monárquica continuou viva, e bem viva, por muitos anos de luta e
sofrimento”27.
É, enfim no novo regime que, em 1911, que o PS, à tangente, há-de eleger o
seu primeiro deputado28. Poisada a poeira, da festa, viu-se pouco, de apagadote
se revelar o eleito. Como apagado continuou o partido nos tumultuosos
24
Resolução do 1º Congresso da Federação Regional do sul do Partido Socialista Português em 1905.
É importante mastigar esta incapacidade de demarcação que os socialistas sempre expuseram para com os republicanos.
Sem quebrar a tradição colonialista, sem organizar os assalariados nem os camponeses, vão descobrir-se no mesmo campo,
sob o toldo comum do legado liberal. Quem acaba por ter que investir na demarcação é o lado republicano que passa ao
ataque. Gneco, por exemplo, chega a ser acusado de concluio com o rei, a propósito da acção provocatória de Monteverde,
um agente real que se aproximara dos socialistas…
25
NOGUEIRA, César, op. cit. p.17.
Sobre estas últimas eleições monárquicas e para percebermos melhor os interstícios do partido, tem muito interesse ver
excertos de Azedo Gneco. Aconselhava ele antes da sua realização: “Alguma cousa se fará, porém, com homogeneidade
própria dum partido; e embora seja cousa de pouca monta, não ha de deixar no esquecimento o nome dos socialistas. E
para o momento actual é o que mais importa”.
E, já depois da derrota, desabafava sobre os votos dados aos republicanos em carta a Luís de Figueiredo: “No círculo de
Setúbal, por exemplo, poderíamos levar votos em Aldegalega, Almada Seixal e Setúbal; aí uns 50, ao todo; mas tínhamos,
para isso, que fazer despesas com que não podíamos e desenvolver uma actividade superior às nossas forças. (…) melhor
pareceu abandoná-lo”.
Explicando a vitória dos republicanos ao Grupo Operário de Propaganda (Coimbra), ensinaria em Agosto: “Mas quem
lhe deu essa superioridade política e social? – Foi o povo operário, foi a gente da nossa classe, que em vez de engrandecer o
seu partido, foi dar o seu curso à burguesia democrata”.
Citemos por fim um ofício dirigido à Junta Regional do Norte em 7 de Setembro em eu dizia: “ O Partido Republicano
passou por cima do nosso partido, quanto à oportunidade revolucionária (…) não nos pode ser agradável o reconhecimento
deste facto, mas temos que o reconhecer com grande mágoa ou sem ela”. (In, Seara Nova, 19-26 De Agosto de 1950).
26
“Desde o momento, porém, que a República foi proclamada em Portugal, o nosso dever é defendê-la a todo o transe de
quaisquer ataques reaccionários e procurar consolidá-la”, (In, NOGUEIRA, César, op. cit. p. 21).
Também a inspiração ideológica que se importava não ajudava muito já que, enquanto na Alemanha, a social democracia,
puramente marxista, não admitia, ante o critério do socialismo, diferenças em apreciar os actos dos governos burgueses,
quer fossem monárquicos quer republicanos, na França não se pensava assim. A acção da franco-maçonaria actuava muito
na opinião do socialismo francês pelo que defendia a República Portuguesa.
27
VALENTE, Vasco Pulido, O Poder e o Povo, Moraes Editora, Lisboa 1974, p. 67, 68.
28
Manuel José da Silva. Salientamos, no seu mandato, a apresentação à Constituinte de um projecto de organização em
Portugal do Instituto de Reformas Sociais, um outro de entregar a uma cooperativa os serviços telefónicos e a implementação
de um imposto proibitivo sobre as touradas, enquanto considerava de somenos a questão do reconhecimento constitucional do
direito à greve já que a sua inexistência nunca tinha impedido o recurso a essa forma de luta. Com curiosa actualidade a proposta
de acabar com o pagamento da portagem, à altura sobre o Douro, na ponte D. Luís... ficou-se pela aprovação de um projecto
do Ministro das Finanças que punha fim, somente, ao pagamento do imposto sobre os peões. Pertinente porque significativo
da atitude que vimos a conotar com o partido, o voto em lista branca, aquando da eleição do Presidente da República.
115
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
tempos que se vão seguir e em que os republicanos não mais deixarão de
protagonizar a iniciativa, só secundarizados, em capacidade de mobilização, pelos
anarco-sindicalistas que não param de ganhar poder, conseguido que estava o
objectivo de derrubar o rei. Haja em vista as greves dos dois primeiros anos
de República, ante a prudência dos socialistas. Prudência e indecisão fruto
de contradições internas que voltarão a aflorar com os mesmíssimos sintomas
aquando da questão da participação no conflito de 1914. A actividade, por
esta altura reduzia-se a sessões culturais, excursões e conferências, numa
modorrice que só os congressos e efemérides combatiam.
Em Junho de 1911 foi a vez do quarto daqueles que, em Lisboa, deveria
acertar a atitude definitiva do partido perante o novo regime. Não acertam
mas, dois anos passados, aquando do V Congresso, e apesar de não ser maior
a clareza das posições do partido, nem mais pacíficas as posições (Martins
Santareno apresentava-se em explosiva oposição ao Conselho Central),
contam-se 128 delegados, representando 50 agrupações e 12 jornais, o que
mostra que, em dois anos, as forças organizadas do partido tinham mais que
duplicado29.
Azedo Gneco morrera em 1912, ano em que se decidira a entrada no Bureau
Internacional30. Mas o mote definitivo da divergência no seio dos socialistas ainda
era coisa do futuro: nasceria no VI Congresso Nacional, na Covilhã, de 3 a 5 de
Outubro de 1915. Agitado e efémero, tratou a questão da guerra, como vimos,
de forma inconclusiva. A corrente radical, que reaparece em força neste período
com reduto no norte e encabeçada por Ladislau Batalha, opõe-se à guerra e à
participação portuguesa; a direcção do partido é pró-aliada e pró-intervenção...31
O certo é que, no meio da agitação infernal que os acontecimentos imprimem a
todos os sectores da sociedade, sacode também o pequeno partido que se vê mais
crescido no dinamismo. A 21 de Novembro desse ano realizam-se as eleições
29
Em 1911 teria cerca de 1 500 membros; em 1913, 6 000, entre os quais 73 mulheres... (In, NOGUEIRA, César, op. cit.
p. 28). Em termos de resultados eleitorais temos: 1911 - 3 308 votos (1 eleito),1913 - 1 974 votos (eleições suplementares),
1 915 - 5 173 votos (1 eleito). (Idem, p. 259).
Oliveira Marques cita, para 1915, um total de 5 141 votos, correspondendo a 1% dos recenseados e a 2% dos votantes. (In,
MARQUES, A. H. Oliveira, História da I República Portuguesa; as estruturas de base, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1978, p. 84).
Em Março de 1933, segundo números lidos por Alfredo Franco no Congresso de Coimbra, teria: 10 400 filiados, sendo
2 200 contribuintes, 2 600 inscritos nas Casas do Povo, e 5 600 nos sindicatos de orientação socialista. (In, O Século, 12
de Março de 1933).
30
O pedido de filiação entrara a 7 de Dezembro de 1912. A quota de 200 Francos (cerca de 40$), ao tempo quantia elevada
para os cofres do partido, não foi dos óbices menores. É aceite na reunião de Londres de 14 de Dezembro de 1913.
116
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
complementares sem que o PS tome parte por julgá-lo inútil para a sua acção
eleitoral. Contudo, nas eleições legislativas seguintes, elegem um deputado32.
Mas as dúvidas e equívocos voltarão, dentro em pouco, a ensombrar a “aceitação
oficial” de Sidónio Pais, que é, não só apoiado durante os primeiros tempos
como, numa fase já avançada, leva a que sejam aceites cargos na direcção de
diversos organismos administrativos oferecidos pelo “presidente-rei”, como
lhe chamou Pessoa33.
Realizara-se ainda antes disso um Congresso extraordinário e extraordinariamente confuso, que havia acabado com a demissão do Conselho
Central. Em Junho de 1917 caberia a Coimbra albergar o VII Congresso,
mas a situação do 5 de Dezembro gerou um campo de perseguição demasiado violenta o que obrigou o Partido Socialista Português a retirar os seus
membros dos cargos administrativos, regressando então Nunes da Silva aos
trabalhos do Conselho Central34.
Com a queda do regime de Sidónio Pais, é organizado um governo
nacional, em 1919, e, José Relvas, para espanto de todos, anunciava a entrada
31
O documento aprovado afirmava “...a solidariedade com todos os trabalhadores de todo o mundo, tornando
responsável da guerra o capitalismo...”. (In, NOGUEIRA, César, op. cit. p. 261). Mas exponhamos excertos
significativos da desorientação que caracterizou, durante todo o conflito, a postura do partido:
Ao votar na assembleia, o deputado socialista anuncia, como declaração de voto, de acordo com o Conselho Central do
Partido, o seguinte: “Declaro aprovar a autorização pedida pelo governo para prestar o concurso militar de Portugal
à Inglaterra, mas na hipótese de que esse concurso tenha sido solicitado, e salientando que esse concurso deve ser
harmónico com o espírito da aliança” (Idem, p. 253).
Só que, às organizações filiadas no partido, foi lido um aviso, no qual, logo no primeiro ponto, se explicava “de franca
e aberta manifestação contra a guerra, em harmonia com as resoluções dos congressos internacionais e nacionais”
(Ibidem, p. 325).
Nos congressos nacionais extraordinários, em 1916 e 1917 constava, de facto, como primeira resolução “a manutenção
das relações com todas as organizações socialistas de todos os povos beligerantes, sem preferência de país...”. Na 2ª
conferência socialista de Londres, em 1917 (para onde seguiram dois representantes ainda sem certeza se com o apoio
do partido que acabou por chegar por telefone mas sem aprovação unânime), os portugueses votam contra uma
proposta de Hyndman, do Partido Socialista Nacional Inglês, que se pronunciara contra a conferência de Estocolmo
enquanto a Alemanha continuasse a ocupar os territórios invadidos...(Ibidem, p. 169). De qualquer forma, nos dois
Congressos Regionais do Norte e do Sul igualmente foram votadas resoluções de protesto contra a guerra. O partido
organiza mesmo manifestações públicas contra a guerra em Lisboa e Porto, respectivamente nos dias 1 e 5 de Agosto
de 1914 que foram dissolvidas pela polícia. (Ibidem, p. 256).
32
O Dr. Costa Júnior. Pensou-se mesmo inicialmente que seriam dois, mas Manuel José da Silva não chegaria ao
parlamento por o governo ter decidido contar os votos do candidato evolucionista que considerara nulos. O partido teve
uma votação de 4 652 votos.
Curioso o facto de a campanha ter sido subsidiada com 814 marcos (206$750 réis) pelos socialistas alemães. (In,
NOGUEIRA, César, op. cit. p. 112).
33
Ver, TELO, António José, Decadência e queda da I República, Vol. II, A Regra do Jogo, Lisboa, 1980, pp. 177, 178.
34
O que se passa na prática é que o Conselho Central colaborava com a ditadura, enquanto o grosso dos socialistas,
acaudilhados por Dias da Silva, vão lutar contra ela.
117
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
de um socialista no governo35. Apesar de ter melhor fama como fadista que
como governante, deu novo fôlego ao partido, o que, aliado à ofensiva popular
do ano anterior e à acção das massas contra as tentativas restauracionistas dos
monárquicos nas eleições legislativas desse ano, conseguem elevá-lo ao melhor
resultado de sempre36. Mas nem por isso se deixaria de assistir, em Outubro
desse mesmo ano, na Figueira da Foz, a mais um congresso explosivo: pela
oitava vez as rubras hostes se esgotariam em peleja de desusada discórdia. Desta
feita, segundo César Nogueira, terá brotado clara e definitivamente a confusão
de princípios que não mais deixaria de impecilhar a vida política do partido:
além de não sair qualquer decisão dos trabalhos, não se especificaria sequer se
se aderia à segunda ou terceira Internacional... Há-de ainda reunir-se neste
ano, em Lisboa, o IX Congresso, não menos atrabiliário que os anteriores e é,
digamos, em plena contenda, durante o ano de 1920, que Ramada Curto entra
também para o governo37.
Era numa altura em que a face da República, envelhecida de uma década
de poder, causava menos paixão. Estava desgastada e o interesse dos trabalhadores em definitivo divorciado do poder. Surge, por este tempo, o Partido
Comunista, sem, contudo, evitar que em 1924 a esquerda apareça moribunda
e descredibilizada, dividida entre republicanos de esquerda, socialistas, anarquistas e comunistas.
Entretanto, o partido penava a sua saga, num calvário de congressos que iam
descongraçando tudo e todos. O décimo de entre eles teve Tomar por cenário.
Estava-se em 1922 e, com a saída acordada do artº 65 do Regulamento Geral do
Partido, saía também, demitindo-se, César Nogueira, com o desabafo de que
se dera em Tomar a última machadada nas tradições revolucionárias do partido.
Estava, de facto, aberta a porta para a participação socialista (os “sucios” para os
comunistas, em crescendo de importância) nos governos burgueses sem mais
35
Augusto Dias da Silva, ministro do trabalho. Era o “Camarada Augusto”, a quem se ficou a dever a construção do
Bairro Social do Arco do Cego, a lei que estabeleceu a jornada de 8 horas e farta campanha pela nacionalização das
indústrias. (In, SOARES, Isabel , op. cit. p. 14).
36
Quatro deputados por Lisboa e dois pelo Porto. César Oliveira, In, O Movimento Sindical Português, a Primeira Cisão, (Pub.
Europa-América, Lousã, 1983. p. 43) resume, em interessante aparte, os factores que explicavam a incapacidade
crónica dos socialistas nas eleições. A saber: o reduzido número de eleitores, os grandes níveis de abstenção eleitoral e a
elevada percentagem de analfabetismo nas massas trabalhadoras (grande número das quais vivia à margem das estruturas
sindicais).
37
É também ministro do trabalho num governo chefiado por Domingos Pereira.
118
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
reservas38. As teses ditas intervencionistas, assim vencedoras, não teriam senão
de afastar-se por não lhes haver sido franqueada a desejada porta do governo. De
fora, com mais razão ainda, estavam também os vencidos. Praticamente todos os
organismos estavam paralizados. A crise era de impôr respeito.
Foi por estes tempos que Ladislau Batalha, velho militante radical, socialista aventuroso, se devota à peregrina ideia de organizar um Congresso das
Esquerdas Sociais, de “carácter puramente nacional, sem a menor feição partidária”. Iria levantar os ânimos e fazer renascer o velho PS dos primeiros tempos
da República. Estava ele à época director de O Protesto que por conseguinte havia
virado jornal ferocíssimo, crítico insuportável mesmo para os socialistas. Que
airosamente deixam cair o Batalha, entregando-lhe a venenosa pasta do grandioso Congresso. Não daria em nada este39. Ficaria no comando do desmandado
periódico Ramada Curto que não tardaria a amansá-lo40.
O Porto assistiu ao X Congresso. Em Junho de 1924. O velho partido
reduzia-se a um pequeno grupo de intelectuais e empregados urbanos com
pouco peso no operariado. Só no sector dos tabacos e dos têxteis ainda se
exercia alguma influência, sem que existissem perspectivas ou estratégias
assentes. Na prática, o Congresso representou o domínio das tendências
conciliadoras, interessadas na busca de uma aliança com os democráticos
do tipo da estabelecida em 1919 e que abrisse o caminho para lugares na
administração local, nas câmaras e talvez até no governo… Foi também aqui
que se abandonou de vez a III Internacional (já anteriormente decidida) e se
aprovou a filiação na Internacional Socialista41.
É assim que encontramos o operariado no fim da I República: desnorteado
e fraco, se bem que já unido sob a direcção de Ramada Curto e Amâncio de
Alpoim. É assim que deixamos o proletariado: perdido e muito mais pobre
38
Dispunha o referido artigo o seguinte: “Em caso nenhum dentro dos partidos burgueses poderão os membros do
Partido fazer parte do governo”. César Nogueira há-de voltar em 1925.
39
O grão-mestre da maçonaria, Magalhães Lima, aceita ser seu presidente honorário, juntamente com o velho
propagandista Teófilo Braga.
40
Com Ladislau Batalha, foi toda a corrente sindical que renasceu em força no jornal: Mário Silva, Mário Barros, etc.
Depois do seu afastamento, ficaria para o futuro o República Social, do Porto, como o representante da facção mais radical
do partido, contra o sul moderado.
41
Havia nesta altura certa busca das posições sindicais perdidas em 1914, aproveitando-se o desmoronamento da CGT,
mesmo que isso implicasse certa unidade com os comunistas, como à frente veremos. (Ver, TELO, António José,
Decadência e Queda da I República Portuguesa, Vol. I, A Regra do Jogo, Lisboa, 1980).
119
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
do que nos tempos do aparecimento do PSP. E, sobretudo, desanimado e
desmobilizado42.
O programa
O primeiro programa do PSP foi aprovado, como dissemos já, no Congresso
de Lisboa em 1877. Oliveira Marques chama-o de “transitório”43. Vigora até à
primeira conferência de delegados partidários de Lisboa e Porto, onde se aprova
um “Programa e Regulamento Geral do Partido Operário Socialista” definitivo. Da Conferência de Tomar, em 1895, saíu redigido sobretudo por Azedo
Gneco, um novo “Programa do Partido Socialista Português”. Era este que,
com ligeira revisão na Conferência Regional do Sul, em 1907, vigorava por
alturas do 28 de Maio de 1926 e é sobre ele que nos passaremos a debruçar44.
Há duas ideias principais que vão ganhando forma consoante se avança na
análise do projecto do partido: por um lado o que apelidaríamos de défice de
originalidade, acossados que somos, em permanência, pela ideia de um ‘dejá vu’,
aqui por um propósito com ares de anarco-sindicalista, além por um projecto
de tons comunistas, à frente por uma ideia a tresandar a republicanismo; por
outro, a persistência estranha da impressão de que estamos perante escritos,
digamos, destinados a destino nenhum. Impressões, de resto, relacionadas que,
justiça seja feita, lutas das quais o partido sempre fez bandeira, acabaram por
passar a conotadas com outras forças só porque, entretanto, o superaram em
protagonismo e capacidade de mobilização de massas.
Com efeito, quer remontemos à tomada de posição do partido abertamente
antigreve de 190245, que o demarcou, de facto, da práxis contestatária que os
42
Num relatório confidencial de 1922, para ser apresentado na III Internacional, resume-se a situação: “A sua desorganização
é grande. Não há propaganda. Não sabemos quantos são os filiados. As estatísticas foram abandonadas. (...) Não tem
orçamento porque a contribuição partidária é quase nula. (...) Sobre a orientação internacional, não há nada resolvido.
O Congresso da Figueira da Foz (1919) e o extraordinário (1920) afirmaram a adesão, em princípio à 3ª Internacional, ao
mesmo tempo que expressaram orientações reformistas. Puro confusionismo!” (In, NOGUEIRA, César, op. cit. p. 295).
43
MARQUES, A. H. de Oliveira, op. cit. p. 570.
O autor vê na essência totalmente utópica do programa socialista a principal razão - aliada à pouca representatividade
do operariado português - a principal razão que terá obstado ao crescimento do partido “em ritmo comparável ao dos
chamados partidos burgueses” (idem, p. 573).
44
Em 1913 o partido adopta um programa municipal e outro agrário, completando assim o programa político de 1895
e 1907-08.
45
Resolução aprovada no Congresso Nacional das Associações de Classe, reunido em Aveiro sob a direcção do Partido Socialista.
120
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
trabalhadores, na generalidade, adoptaram; ao Congresso Nacional Operário
de 190946, ao Congresso de Tomar de 191447, ou à formação da CGT, em
191948; o certo é que o poder de intervenção se foi esvaindo, num crescente
divórcio entre as bases, que passam muitas vezes a apoiar propósitos idênticos
sob outros estandartes mais sintonizados com a realidade vivida, e as cúpulas,
auto-alimentando-se de polémicas vazias49.
De molde a enquadrarmos com mais fundamento esta crescente discrepância
entre o conteúdo do programa político socialista e a credibilidade que lhe era
inerente, espécie de “potencial de aplicabilidade”, demoremo-nos em algumas
reflexões acerca da interacção do documento programático nos seus destinatários
naturais e vice-versa. Jorge Borges de Macedo, num ensaio que publicou sobre
o assunto, defende que “o conceito de programa, como recurso orientador ou
aglutinador de grupos politizados ou como veículo ordenador da coerência de
acção e de argumento nos partidos ou correntes de opinião é, no regime liberal,
um fenómeno sociológico de efectivo significado prático”50. Veremos que assim
é, mesmo numa conjuntura bastante posterior ao cenário que fundamentou o
estudo. Historiemos, para já, um pouco da evolução do conceito.
Estamos no pós guerra civil, com um país prenhe de mazelas e desordem.
Apreciado e abusado o poder criador da liberdade, urgia o regresso ao poder
estimulante da ordem. Passos Manuel ensaia-o, Costa Cabral impõe-no de
facto. Ou tenta porque, face ao susto da “Maria da Fonte”, fica assente que, com
cautelosa antecedência, “deviam publicar-se todos os planos da administração,
46
A Federação Sindical de Lisboa, em colaboração com o Partido Socialista, tomou, por pouco a dianteira aos aguerridos
militantes sindicalistas e o Congresso reuniu-se em Lisboa a partir de 4 de Julho, de resto, com limitada representatividade e
que acabaria por levar ao abandono dos sindicalistas revolucionários que convocariam um congresso cisionista que se reuniria
em Setembro e onde se haviam de discutir a protecção do trabalho de crianças e mulheres que, como adiante veremos, não
é citado nos estatutos dos socialistas.
47
Donde vai sair confirmado que as Federações reformistas (FGT) já não tinham qualquer contacto com o movimento real
dos trabalhadores, contrariamente às Uniões revolucionárias (UGT).
48
O Partido Socialista havia desaparecido na órbita do parlamentarismo republicano. Os sidicalistas-revolucionários afastam
o anarquismo da ideologia oficial do movimento e enquadram, de facto, o operariado.
49
Talvez por não estarem ainda suficientemente estudadas as condições em que se fundiram os vários segmentos ideológicos
num sindicalismo revolucionário quase homogénio, há teorias díspares acerca do ponto que marcou a viragem decisiva para
a sua área de influência em prejuízo do reformismo socialista. Manuel Villaverde Cabral, por exemplo, defende que terá
sido com a greve dos tecelões do Porto, em 1903. (CABRAL, Manuel Villaverde, Portugal na Alvorada do Século XX, Ed. Presença,
Lisboa 1988, p. 125).
50
MACEDO, Jorge Borges de, O Aparecimento em Portugal do Conceito de Programa Político, IDL - Instituto Amaro
da Costa, Lisboa, 1981, p. 5.
121
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
determinadas as suas finalidades, o modo como iriam ser postas em prática e o
escalonamento que propunham”51. Saíra caro o subalternizar da reacção dos
habitantes. O poder central aprendera a lição: o princípio do programa político impõe-se, generaliza-se, evolui. Os partidos passam assim a escorar-se na
opinião pública e o programa promove-se a elo aglutinador de uma corrente de
ideias que se constitui em partido e passa mesmo a ser a base da adesão. Só que,
rapidamente, ao contrário da facção no poder, a agitação e a propaganda de
quem pretende tomá-lo usa o processo na sua plenitude utópica, aumentando
de forma desmesurada a carga ideológica e afastando-se proporcionalmente dos
problemas nacionais, em distância tanto maior quanto mais longe estava das
cadeiras desse mesmo poder. Advém daí um óbvio desgaste ideológico com a
consequente transformação da experiência política da opinião pública que passa
a padecer de desconfiança radical por tudo o que, na esfera dos programas, se diz
ou promete. Cava-se assim uma dualidade doentia entre quem propõe a ideologia e quem se acautela na sua recepção; entre quem emite proponentes positivas
e quem faz a crítica ideológica; entre quem aponta um governo pré-programado e
quem responde com agitação. Ganham deste modo forma dois conjuntos sociais
cada vez com menos contacto entre si.
Cabem estas vestimentas à história do Partido Socialista. Porque se deixou
ir consumindo por uma mentalidade política essencialmente utópica e dedutivista que o foi divorciando inexoravelmente das bases. Daí que das roupagens
do seu programa fique a teimosa sensação de termos já visto aquelas mangas na
prática dos sindicalistas, ou aquele corte na acção dos republicanos... coroada
pela impressão fantasmagórica de ser um fato que, na realidade, não servia a
ninguém. A cada vez mais reduzida base social de apoio prova-o.
O conjunto do programa ordena-se em função de pontos de vista gerais
implícitos. Sente-se a preocupação dos redactores em mostrarem claramente
que interpretam as potencialidades infinitas do socialismo. Vejamos.
Subtitulada de “fins”, a primeira parte do Programa Geral do partido cita
um rol de generalidades de que se destaca, por encimar todo o documento o
“objectivo de cooperar com os partidos socialistas de todo o mundo nas reformas
das sociedades humanas”. É a reafirmação dos socialistas como os mandatários
de um ideário supra-nacional, postura tão cara ao partido quanto preciosa e
51
Idem, p. 11.
122
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
encorajadora lhes era a torrente de avanços, lutas e vitórias que não paravam de
chegar lá de fora e que, cá, regavam com abundante viço uma imprensa padecente da morrinha triste que brota à falta de feitos.
Segue-se depois a definição do objectivo base: “a abolição do Estado em
todas as suas formas históricas e o estabelecimento da República Social”. Nas
bases para a sua persecução começa por referir-se à reorganização dos municípios, mas, a esses, voltaremos adiante, que assim se passa também com o
documento. Alude-se à “Federação Municipal” que teria por centro uma
assembleia composta de representantes directos dos municípios, subordinados
aos seus eleitores e que iria, por sua vez, eleger uma “administração de negócios
públicos” que substituiria qualquer forma de governo e de Estado.
Só depois aparece a apologia do sufrágio universal, directo, com igualdade
de direitos e deveres para todos os indivíduos, tanto de um como de outro sexo,
num sistema de voto obrigatório52. Apanágio desta sociedade, a negação do
vínculo a qualquer religião, a educação gratuita a todas as crianças “sem previlégios ou prerrogativas de grau ou sexo” e a salvaguarda de toda a iniciativa de
trabalho individual, numa visão nitidamente proudhoniana mas em oposição
aos comunistas em cujo programa se defendia uma economia mista e planificada53. Faz-se ainda o mais sumaríssimo propósito de assistência social nos
termos que transcrevemos: “creanças, doentes e adultos inválidos a cargo da
sociedade, sempre que fôr reclamado” e coroa-se toda esta primeira parte com
uma síntese em dois princípios:
– Radical socialização das riquezas, da sciência e da autoridade.
– Máxima expansão dos indivíduos dentro do respeito ao indivíduo dos outros.
Ataca-se – então sim – o Programa Municipal que compreende, de per si,
o grosso do texto total e eleva o municipalismo a pedra de toque de toda a acção
socialista, seja investindo no município de molde a beber nele a influência e
a força que o guindariam ao poder, seja projectando-o como base estrutural
52
Em 1911 podiam votar os chefes de família analfabetos casados há mais de um ano, mas em 1913 já não votam...um
dos sintomas de recuos da república que vai acentuando a décalage entre os operários que a instalaram e a burguesia que
a vai conduzindo.
A igualdade entre os sexos aparece salvaguardada no que toca à educação, ao direito a votar e ao direito de beneficiar de
“leis de carácter económico-agricola em benefício da pequena propriedade”.
Nenhuma alusão ao problema da igualdade no trabalho que, na altura, era um problema com toda a actualidade pela
forma como a mulher participava crescentemente no trabalho assalariado industrial e dos serviços e que despoletou
acesa luta nos sindicatos.
53
Apesar das enormes expectativas, a República, de facto, só acabará com o ensino privado.
123
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
de toda a acção política, social e económica que se propunham aplicar ao país.
Comum ao programa dos republicanos, este municipalismo (assim como
o federalismo, pois já Félix Nogueira tinha os olhos postos no exemplo dos
Estados Unidos e da Suiça) teve outros defensores, desde os integralistas até
Oliveira Salazar.
É no aspecto do código administrativo que a extensão das prerrogativas municipais melhor ostenta o seu real alcance54. Alude-se à completa autonomia do
município em relação ao poder central, no que hoje apelidaríamos de política
regionalista, criando-se nas franjas dessa administração independente do poder
central as condições para o exercício da verdadeira cultura democrática. Esta
licitaria, não só a orgânica estrutural do poder local mas, sobretudo, ganharia
prática efectiva numa permanente ligação às massas que teriam os mecanismos de
protagonismo assegurados através do sufragar, pelo voto de medidas “de alcance
político, social ou económico” que pudessem influir com peso na situação do
agregado municipal. Defendia-se deste modo uma verdadeira lei de finanças
locais com as câmaras a gerirem fundos próprios decorrentes de impostos
directos, bem como larga liberdade de manobra no sentido de acordos intermunicipais ou federações de municípios, fora da alçada do poder central.
É neste desiderato que surgem as especificidades das várias linhas de actuação política executáveis: a política social, as finanças, a instrução e educação,
a assistência social, a higiene pública e habitação e a municipalização e serviços.
O subcapítulo do programa agrário é outro que merece um relevo aparte, quer
pela forma autónoma que adquire na estrutura geral do programa, quer pela
extensão e profundidade que merece. Vejamos, necessariamente de relance,
todos estes aspectos.
Na política social, destaque para a existência do imperativo do salário
mínimo e da jornada de trabalho de 8 horas55. Seguem-se uma série de artigos
especificando a extensão das liberdades de organização de classe, abrangendo
os direitos de associação, sindicalização, recurso a tribunais do trabalho e
54
A estrutura municipalista seria consignada na Constituição e na lei eleitoral.
55
Trata-se de uma luta que unira todas as energias dos militantes sindicais no último período da monarquia e cuja
vitória se associa ao republicanismo (em 1919 estende-se a todo o território o máximo de 8 horas por dia). Mais tarde,
em período de crise económica, “nos anos 20, surgem com insistência reivindicações de diminuição do horário de trabalho para menos de 8 horas,
ou a recusa de horas suplementares” (In, FREIRE, João, Anarquistas e Operários, Ed. Afrontamento, 1992, p. 142).
Nem foi pois luta conduzida pelo partido, nem surge com grande actualidade (pese embora o facto de a lei tardar muito
a ser aceite).
124
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
vigilância das cláusulas dos contratos e segurança dos trabalhadores. Nas
finanças, prioridade ao nivelamento social possível através da abolição de todos
os impostos sobre géneros de consumo, substituindo-os por outros sobre
artigos de luxo, bem como impostos sobre os rendimentos sem trabalho,
e sobre terrenos incultos ou casas desocupadas. Refira-se em ordem ao item
“instrução e educação” a defesa da instituição de cantinas escolares assegurando
gratuitamente a distribuição de refeições, vestuário, calçado, livros e material
escolar, para além da gratuidade do ensino propriamente dito a que já acima
aludimos e a organização do ensino profissional e industrial56. Fala-se em cuidar
do desenvolvimento físico da criança e especifica-se que, intelectualmente, o
seu avanço se faça por combate à cultura de dogmas religiosos57. Defendem-se
as bibliotecas,58 a criação de jardins infantis, o acesso ao ensino superior por
quem vocacionado e as prelecções práticas “no campo e nos estabelecimentos
fabris e scientíficos”. No campo da “assistência social”, alude-se à máxima
protecção às instituições de previdência e mutualidade59 e corporações de
salvação pública; serviço médico gratuito, farmácias municipais com pequena
margem de lucro, orfanatos, maternidades, dispensários e asilos (municipais ou
inter-municipais). Quanto à “higiene pública e habitação”, propõe-se a criação
de um serviço de higiene e de inspecção sanitária, com acção sobre as habitações,
fábricas, via pública e géneros de alimentação. Estipula-se a construção de
balneários e lavadoiros públicos60, municipalização gradual da propriedade
territorial de molde a poderem abrir-se novas artérias, parques e habitações
baratas, “decentes e formosas”; vigilância dos preceitos higiénicos e estéticos das
56
Refira-se a ausência a qualquer medida restritiva ao trabalho de menores, prática corrente, bem como o excesso
de cargas físicas, práticas fortemente combatidas pelos sindicatos, tendo merecido, por exemplo, no congresso de
Santarém da CGT, vasta referência.
57
Curiosamente, o reforçar da dimensão do corpo, cujo culto foi largamente difundido por outras doutrinas tão
díspares como o integralismo ou o próprio fascismo, sobretudo na sua manifestação espanhola e italiana.
58
Quando a ditadura, nas primeiras medidas de restrição orçamental fechar algumas salas de leitura em Lisboa, há-de
ser violentamente desancada no República Social.
59
N’O Princípio Federativo (cap.XI), Proudhon definia o conceito: pela mutualidade, os distintos produtores, guardando
a sua independência, garantem uns aos outros a produção e a circulação a um justo preço, e associam-se para as tarefas
a que não alcança a simples iniciativa individual e para os serviços comuns (seguros, créditos, construção de vivendas,
etc.). Como o mesmo nome indica, trata-se de conseguir a ordem sem recorrer a medidas coactivas ou à acção do
Estado - ainda que não se exclua esta - graças a um acordo de vontades, a uma cooperação voluntária.
60
Embora possa parecer pormenor desprezível para constar de um programa político, os lavadoiros (como os chafarizes,
os banhos públicos ou as sedes dos clubes recreativos, culturais, políticos e sindicais), eram lugares importantíssimos da
vida colectiva do bairro operário.
125
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
construções, derrube dos bairros insalubres e rastreio das casas desocupadas61.
Na rubrica “municipalização de serviços”, propala-se a exploração directa pelo
município, (ou federação de municípios), dos serviços de interesse público,62:
viação, redes telefónicas, água, iluminação, força motriz, mercados, postes e
caixilhos anunciadores, etc; ainda os seguros contra a invalidez, doença, fogo,
etc. Prevê também a instalação de armazéns de víveres despidos de intuitos
mercantis e que acudiriam a regularizar os preços, a assegurar a boa qualidade
dos produtos e a socorrer os pobres nos momentos de crise e carestia63.
Por fim o “programa agrário”, cuja importância destacamos já noutro passo
e que passa pelo reconhecimento de que “é necessária uma larga difusão dos
princípios socialistas entre o operariado agrícola, incitando-a á lucta contra a
sociedade burgueza, única responsável das suas misérias e sofrimentos”. Importa
a prática de princípios associativos, apropriação da terra e dos instrumentos de
trabalho com a consequente colectivização de todas as riquezas sociais. Toda a
política agrícola assenta no primado da pequena propriedade64 e da organização
associativa e cooperativa. Para isso, ter-se-ia que partir da nacionalização do
solo, para o que se teria de mobilizar o operariado agrícola para a luta aberta.
A legislação operária seria aplicada aos operários agrícolas na medida em que o
permitirem os encargos da produção agrícola65. Assim também quanto à regulamentação das horas de trabalho, do descanso semanal, dos acidentes de trabalho,
seguros de doença, invalidez, velhice e falta de trabalho; higiene, salário mínimo.
Prevista a elaboração de regulamentação acerca dos contratos de trabalho, taxa
61
Impera uma quase promiscuidade generalizada, mais grave ainda nas “vilas”, “pátios” e “ilhas” de condenação geral.
A construção civil, por exemplo, no seu congresso regional do Sul, realizado em Setúbal em 1918, reclama medidas em
tudo iguais a estas. (In, FREIRE, João, op. cit. p. 184).
62
À época privatizados.
63
Mais tarde, anunciará o Estado Novo a sua obra: “Estão promulgadas as leis que garantem e estabelecem os direitos
dos trabalhadores: são contractos colectivos de trabalho que conduzem à harmonia entre este e o capital, são casas
económicas que facilitam o conseguimento da habitação própria; são as casas do povo e dos pescadores, são tantas outras
regalias, são, numa palavra, os problemas vitais de tão grande alcance social que as suas efectivações, sendo já realidades,
quási não se acreditam (In, PEREIRA, José Ribeiro, op. cit. P. 5).
64
É curioso que este primado há-de vir a ser entusiasticamente defendido por Salazar, no início do seu mandato. “o
problema não é dividir, parcelar a grande propriedade; é constituir, consolidar a pequena ou média” (Salazar por António
Ferro, Edições Fernando Pereira, Lisboa, 1982, p. 105).
As cooperativas eram vistas com desconfiança pelos trabalhadores em geral e pelos sindicalistas libertários em particular.
A desprezível expressão “socialismo de merceeiros” (que seria corrente à época), diz tudo sobre o que muitos pensavam
a tal respeito.
65
Sublinhe-se o carácter vago da condicionante.
126
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
dos arrendamentos e fixação das garantias aos rendeiros para assegurar o seu
capital-trabalho; a pequena propriedade seria protegida, enquanto os impostos
indirectos abolidos, sendo criado outro penalizador dos incultos que, findo um
prazo, reverteriam para o município que as exploraria no sistema de colónias
agrícolas, as atribuiria às cooperativas agrícolas, ou promoveria a “exploração
agrícola municipal ou nacional”, o que constituiria o princípio da propriedade
colectiva comum. As cooperativas agrícolas seriam promovidas e subsidiadas
pelo município com o fim da compra de adubos, sementes e alfaias (os municípios, com o concurso do Estado, comprariam “o grande mecanismo agrícola”66
e as alfaias que poriam à disposição dos pequenos proprietários e rendeiros,
mediante pequena percentagem...); de apoiar a transformação e venda dos
produtos; de alcançar a produção colectiva ou comum. Os terrenos municipais,
baldios ou comuns tornar-se-iam inalienáveis67, enquanto as hipotecas seriam
nacionalizadas juntamente com a criação de um “banco nacional agrícola”.
Ainda constavam propósitos generalistas como o de difundir os diversos meios de
comunicação em todo o país, ou o de impulsionar o fomento agrícola em todos
os seus aspectos; ou tão específicos como a redução das taxas de transporte ou a
municipalização ou nacionalização das forças hidráulicas e de todas as riquezas
minerais. Por fim preconiza-se a instrução geral e profissional, a propagação
dos modernos processos de técnica agrícola e a abolição dos mercados de moços
e, consequentemente, organização das Bolsas de Trabalho68.
É pois este o programa que, supostamente, deveria ser manejado como arma,
sobretudo de ataque, mas que se separa com facilidade da conveniência que lhe
devia ser intrínseca, de analisar concretamente os recursos para serem postas em
execução as medidas nele enumeradas. Aparece inquinado pelas declarações de
princípio, pelas promessas irreais, pelo enunciado utópico, pelas insinuações
insurreccionais ou pela falta de clareza voluntária quanto à legalidade preconizada.
66
Se na agricultura, por praticamente não ter passado de um propósito, a maquinaria não chegou a ser problema, já
na indústria foi sempre fonte de contradições: se por um lado simbolizava o progresso, por outro era violentamente
odiada pelo operariado que via na máquina a personificação do desemprego e da exploração do grande capital. Não é
assim citada no programa socialista, quando aplicada à indústria.
67
O republicano Ezequiel de Campos havia apresentado um projecto de utilização dos baldios que representavam cerca
de 38% do território, mas até 1925 ninguém ousa mexer na propriedade privada.
68
As bolsas de trabalho e os serviços de mutualidade são enfatizadas no congresso sindicalista de 1911, assim como a
educação dos trabalhadores profissional ou técnica, ou educação de ordem geral são desde sempre imperativos dos
sindicalistas libertários. (FREIRE, João, op. cit. p.157)
127
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
Onde estão, de facto, as posturas claras em relação ao problema do ultramar,
ou as traves mestras da política externa, ou a posição no complexo problema da
protecção à indústria e agricultura, ou o programa de jurisprudência criminal?..
Não lhe foi assim possível alcançar o efeito de consciência de governo, mas,
mais grave ainda, não lhe foi sequer dado o direito da dúvida, do questionamento. Na verdade, tanto mais se agudizava o divórcio entre as classes dirigentes
e os legítimos destinatários das suas linhas programáticas, mais o partido se
consumia em questiúnculas internas de intrigas entre cúpulas, se esgotava em
polémicas dentro da classe dirigente. E nos vários congressos, como adiante
veremos, potenciais reuniões magnas de reacerto de planos e estratégias, repetia-se o vazio interno, num triste espelho do partido real navegando numa irreal
dimensão e ultrapassado, inapelavelmente, pela própria realidade.
Não deixará de ser curioso reflectirmos sobre esta persistente divergência
entre elites e bases compaginando-a com o que, paralelamente, se passava com
os republicanos. Havendo arrebatado paixões, num movimento a todos os níveis
ímpar na nossa história, os líderes do regime instaurado vão progressiva e paulatinamente investindo esforços no controle dessa massa amorfa de operários
rebeldes à sua governação e que urgia trazer de volta ao redil, num misto de investimento na educação, por um lado, e de um crescendo repressivo por outro. Se
no contagiante furor revolucionário da República servira de mola e de cimento
aglutinador um ódio partilhado a uma monarquia desacreditada e mãe de todas as
frustrações, vencida esta luta faltara aos cabecilhas do movimento um referencial
programático em que o povo se revisse para que se envolvesse. E foi esse português, carente dos poetas como clamava Cortesão, saudoso de um messias como
dizia Pessoa, amorfo e degenerado fora da Pátria e da família, como explicava
Pascoais, herdeiro de uma raça e milenar cultura, como lembrava Sardinha que
ficou de fora da nova ordem, do novo Portugal sem rei. Não se revendo nas instituições que se vão impondo69, as massas serão catalisadas por um discurso muitas
vezes coincidente com o que temos vindo a analisar, mas lustrado com a alma que
lhes faltara, aportuguesado, numa reinvenção do patriota semeada com o integralismo lusitano e limada pela visão de Salazar que conciliaria o possível num
69
Trata-se de uma imposição de facto, sobretudo depois da Grande Guerra, quando emerge mais claramente a
prioridade da ordem por exemplo com a dureza de Afonso Costa a carregar sobre os movimentos operários, a invadir
vezes sem conta a Confederação Geral dos Trabalhadores e a prender operários. É um futuro de verdade e de progresso
imposto à maioria, ainda que esta se oponha.
128
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
contexto de país real. Ainda que o possível ficasse muito próximo do sobrenatural, não tivesse ele escrito no prefácio para um dos seus discursos, em Fevereiro
de trinta e cinco – “As ideias destes discursos são igualmente conhecidas: posso
mesmo dizer que não são minhas, mas da colectividade, ou porque as fui beber às
profundezas da consciência nacional ou porque, correspondendo ao estado de
espírito do País, este as adoptou e fez suas”.
Será, porventura, esta desespiritualização suprema que emana do texto socialista que o estigmatiza de ininteligível, quase irreal para o país concreto, com
75% de camponeses, iletrado, impulsivo e tradicionalista, capaz de se converter
e amansar por um apelo ao sentimento que lhe aquecesse a alma, ou de explodir
em desabrida luta por uma causa imediata. Foram as cordas vibradas pela ditadura e pelos anarquistas, arriscávamos a concluir: pelos que conseguiram fazer,
de verdade, escola política neste período70.
Sob este prisma, para o português comum, daqueles que Bordalo Pinheiro
soube retratar como ninguém, não há motivos de conversão sincera no “objectivo de cooperar com os partidos socialistas de todo o mundo nas reformas das
sociedades humanas”. É abstracto é distante, frio e calculado, como abstractas e
distantes eram as elites que os propalavam. Ninguém morreria por um programa
assim. E terá sido essa a morte do partido.
A reacção dos socialistas ao golpe do 28 de Maio
Em resposta ao golpe do 28 de Maio, o partido Socialista emite uma nota
oficiosa em que reconhece que os acontecimentos “são a lógica consequência das
faltas e erros dos partidos republicanos divididos por simples personalismos e
falhos de qualquer ideal”, exprime o desejo de que “os factos consumados pelo
exército não sirvam a assegurar o predomínio de qualquer facção política sobre
outras” e sugere aos correligionários “que se conservem na expectativa”71. N’O
70
Não se ponha, contudo, em dúvida a integral ortodoxia socialista do programa. César Nogueira há-de vir a público chamar
à atenção para o facto de o mesmo já se não poder dizer do texto aprovado em 1933. (Ver, O Pensamento de Janeiro de 1934).
71
NA redacção da nota era a seguinte:
“Reuniu a Secção Norte do Secretariado Nacional do P.S.P. resolvendo:
1º- Manifestar-se abertamente contra o estabelecimento de qualquer ditadura que vise a restrição das liberdades
públicas.
2º- Aconselhar os filiados no Partido a aguardarem as decisões que sobre os acontecimentos deverá tomar a
Confederação Nacional, cuja reunião extraordinária resolveu sugerir de harmonia com o disposto no artigo 38º do
estatuto partidário.
129
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
Protesto saem, contudo, opiniões menos complacentes e resignadas. Sem querer
discutir a Nota Oficial, Martins Santareno explica que a atitude do jornal (de
que é director) é “expressamente contra todas as reacções”. Que os socialistas não
se podem amoldar a situações equivocas. Que, perante elas, só lhes resta lutar
altivamente contra qualquer defensor do sistema capitalista, como era o caso dos
presentes adversários com a farda do exército.
Mas, na sequência da ideia de inevitabilidade do golpe que a anarquia levada
à exaustão deixara amadurecer, a saída mais espontânea é a de se demarcarem das
responsabilidades pelo sucedido. “Nada de confusões!”, os partidos republicanos é
que são os responsáveis... por sua vez o exército, imiscuído até à medula no sistema
decadente, não teria a idoneidade que ora se alvitrava para redimir a Pátria enferma...
entretanto, aguardasse-se com serenidade72. Nesta linha há quem defenda mesmo o
adiamento do congresso previsto para Junho. Entretanto, aguarda-se que o tempo
esclareça os acontecimentos73. Afinal, a figura meio carismática, meio pitoresca de
Gomes da Costa não disparara um tiro, não suprimira um jornal, não fechara uma
associação. Fechara “aquilo” a que se chamava parlamento e estava a governar com
apoio militar mas declarando que nem era militarista... Relembra-se que o partido
é contra o estabelecimento de qualquer ditadura que vise a restrição das liberdades
públicas mas não se proclama qualquer desobediência geral ou a guerra aberta ao
sistema imposto. Aliança com os republicanos, causadores da situação, também
não entram no horizonte socialista (os esquerdistas apoiavam ostensivamente a situação; os nacionalistas até tinham no governo o comandante Cabeçadas; os radicais
tinham a colaborar com eles todos os seus elementos militares). Há quem defenda
a aliança com as esquerdas sociais, sindicalistas e comunistas, voltando a falar-se na
necessidade de uma frente única74. Mas o fecho do parlamento, “com mais aspecto
72
José Telo resume assim: ”OPS não tem de tirar as castanhas do lume ao PD e já que este não quis levar até ao fim a aliança
com os socialistas é normal que agora o partido procure a melhor maneira de aproveitar a situação” (In, Decadência e Queda da I
República Portuguesa, Vol. II, A Regra do Jogo, Lisboa 1980, p. 134). E generaliza mesmo: “Quando poucos anos depois, o velho
partido se autodissolve, essa decisão burocrática não passou, ao fim e ao cabo da aceitação oficial de uma situação que existia de
facto desde 1926. (Idem, p.135). Noutro passo ainda explica que o grande projecto de aliança com o PD tinha falhado, não
estando o governo disposto a deixar crescer o pequeno partido. Como a direcção conciliadora de ramada Curto e Amâncio
de Alpoim sabia que o partido só tinha hipótese de recuperar a sua força com o apoio do Estado, como acontecera em 1919,
restava só esperar pela queda deste governo e procurar um acordo com os novos detentores do poder. Houvera pois certa
simpatia para com o 28 de Maio… (ibidem, p. 134). Mas isso é coisa para irmos nós vendo em pormenor.
73
Os únicos objectivos oficiais da revolução eram: “sanear a administração pública, emendando erros dos partidos políticos
que se têem revesado no poder e passar por cima de esses partidos, que pareciam apostados em levar o paíz à ruína”.
74
Mário Santareno, O Protesto 13-06-1926.
130
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
de taberna frequentada por ébrios do que de tabernáculo das leis”, nem aos socialistas terá deixado saudades. O sentimento geral era de que a revolta militar era
um compasso de espera na acção política dos partidos. E a ditadura militar que se
anunciava não era mais condenável do que a ditadura democrática exercida desde a
proclamação da República75. Centram-se pois as atenções no congresso do partido
que havia de pôr a ansiada ordem na polémica orgânica interna e reacertar respostas
à situação que, por sua vez, se precipitava na pressa de uma revolta sem o norte ainda
bem definido76. Enquanto isso, publicam-se notas enaltecendo o Partido Socialista
como uma força isenta dos pecados dos partidos republicanos que haviam enxovalhado a democracia, uma força suprapartidária, como tal, não abrangível pela
censura que se anunciava.
Contudo, há quem ataque denodadamente a ditadura. Num artigo assaz
violento no República Social, pergunta-se “o que é um triunvirato senão um
governo mais ou menos despótico de três indivíduos encarnando: a vaidade, a
ambição, o capricho, o orgulho, a usura, o egoísmo, a maldade e a tirania em
todas as suas manifestações...”. E, acossados pelas primeiras medidas no sentido
de reintroduzir nas escolas o ensino religioso, atiçam o ódio ao exército donde
teriam desde sempre saído os piores políticos: “toda a tirania, vem-nos da farda
e da sotaina, da cruz e da espada”.
Mas a sombra ditatorial ia-se firmando consoante os acontecimentos se
precipitavam e esclareciam. A 9 de Julho, três dias depois de uma crise ministerial que o afastara do poder, Carmona, num golpe de Estado, derruba o general
Gomes da Costa que parte para o exílio. Era a terceira fase da ditadura. O partido
responde à evolução dos acontecimentos mantendo a posição defendida na nota
do dia um, enquanto remete para o Congresso, no início do mês seguinte, a
publicação do pensamento dos socialistas sobre a crise política.
Paulatinamente, as liberdades públicas, a cuja restrição o partido se opusera
desde o início com frontalidade convicta, vão sendo coarctadas. A 13 de Julho
são dissolvidos os órgãos de todas as colectividades locais. A 15 são promulgados
75
O sentimento geral de que o regime instaurado era uma fase transitória com breve retorno ao processo democrático está
bem patente na grande diferença que haveria entre o “pronunciamento” militar português e a “pata del gran Senhor que
domina a Espanha e o seu rei” realçada na imprensa socialista aquando do boato de que na anunciada viagem de Afonso XIII
a Portugal viria também Primo de Rivera.
76
Desta impossibilidade de reagir em cima dos acontecimentos é exemplo caricato a publicação de uma carta aberta ao Dr.
Oliveira Salazar, recém empossado ministro das finanças, e que quando é publicada no República Social em 19 de Junho, já ele
não era ministro havia dois dias...
131
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
três decretos favoráveis à igreja. A pausa para o Congresso é assim como que
pretexto e justificação para um desconcerto de resposta de facto, fosse porque
o trauma colectivo interiorizado por anos de parlamentarismo anarca despira
de convicção dirigentes e hostes que outrora se tinham batido pela liberdade,
fosse, simplesmente, porque perdido nos meandros de um doutrinarismo
pouco firme e, decididamente, afastado das massas populares, o partido perdera
protagonismo e capacidade de acção; não mostrando postura nem poder capaz
de incomodar, em definitivo, o regime que se estabelecera.
Havia, pois, justificada expectativa na reunião magna da rua do Benformoso.
Ali se prometiam confrontar desde as tendências mais apaziguadoras, próximas do
colaboracionismo, até aos que mais apaixonadamente defendiam o combate sem
quartel ao regime opressor. Adivinha-se a emoção alvoroçada, quiçá aspergida do
medo e desconfiança que as forças dominantes iam fomentando mesmo entre os
próprios congressistas na hora do início dos trabalhos. Sintomático terá sido o
facto de A Revolução Nacional, um periódico da situação, ter publicado uma notícia
segundo a qual uma comissão proposta pelo partido para ir a Belém pedir ao
general Gomes da Costa o imediato regresso dos deportados para a Guiné, teria
aproveitado para oferecer ao senhor general colaboração e apoio, o que, apesar de
desmentido, não terá deixado de causar mal estar e incómodas suspeitas77.
O Congresso de 1926
Pela singularidade do momento político, pela importância das decisões
em jogo e pela quantidade de delegados e organismos que se fizeram representar, era o maior congresso alguma vez feito pelo partido78. A primeira sessão
foi, aparentemente, de pacífica rotina, aprovados que foram os relatórios dos
anos anteriores79, combinadas que ficaram as diligências na ânsia de tornar o
partido conhecido no estrangeiro, reiterados que permaneceram os votos de que
77
A comissão era composta por José Augusto Machado, José Henriques, João Borges, Mariano Pereira e Joaquim da
Silva. Este, em declarações ao JN desmente o citado apoio à ditadura mas o jornal não publica essa passagem.
78
Contavam-se 160 Delegados de todo o país.
79
Do Relatório da secção norte constavam de dois anos de propaganda, um comício pró paz na Casa do Povo do Porto,
obedecendo às resoluções da Internacional Operária e Socialista; uma série de conferências no Porto e arredores com
Ramada Curto, Amâncio de Alpoim e Herlander Ribeiro; participação na União dos Interesses Sociais com outras
forças políticas (extinguira-se entretanto); participação no Comité das Esquerdas Sociais (também de duração curta) e
participação nas comemorações do 1º de Maio.
132
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
regressassem os deportados na Guiné, apoiada que foi, enfim, a tese da Liga da
Mocidade Socialista (organismo de criação recente) no sentido de ser facilitada
a construção em vários pontos do país doutros núcleos do mesmo género80. Mas
a expectativa inicial fora gelada logo no início dos trabalhos: Nunes da Silva, ao
ler o relatório do Secretariado da Zona Sul, culpa essa área de indolência total
no interregno entre o Congresso do Porto e o presente. Acusam-no de Mário
chorando sobre as ruínas de Cartago mas era, de facto, a antecipação da quase
ruína do partido que só irá sair mais dilacerado da contenda que o caso abria.
A fecunda polémica resume-se a um pormenor de organização interna.
Duas facções de contornos esclarecidos desde bem antes do Congresso: a tese
do Centro Socialista de Lisboa propõe que a Junta Directiva passasse a ser substituída pelo Conselho Central, restabelecendo-se as Confederações Regionais
(o que representava um retorno ao antigo regulamento) e dos que defendiam
que deveria ser mantida a actual Junta Directiva e o Secretariado Nacional81.
Instala-se a confusão, para gáudio de toda a imprensa não socialista que não
se cansará tão cedo de descrever um partido rasgado por discussões intestinas,
sem ordem, sem acordo e sem clareza. A assembleia, irritada e irritante, fervia
de tensão enquanto os oradores se digladiavam: “ou se remodela a organização
central dando-lhe actividade em contacto directo e permanente com as outras
organizações agrupadoras da massa partidária ou em Lisboa e sua jurisdição
regionalista o partido não passará de um pequeno número de indivíduos divididos em pequenas fracções”82. Oliveira Pinto, do Secretariado do Norte, leva
à mesa uma terceira proposta: A Confederação seria mantida, continuando
a mesma divisão quanto ao Secretariado e Junta directiva; simplesmente, os
membros desta seriam aumentados, em vez de dois passariam a ser cinco, eleitos
no Congresso e mais um por cada Federação Municipal. Entre tumultos e
80
É interessante conhecer as posições que defendem quanto à educação. Voltaremos ao assunto adiante.
81
Esta posição era defendida, entre outros, por Joaquim Silva, José d’Almeida, Oliveira Pinto. Aquela por Bento da
Cruz, João Graça, Martins Santareno, Joaquim Cabral.
A base do aparelho partidário antes do golpe de 26, consistia no seguinte:
Secretariado Nacional composto do secretário para o estrangeiro, secretário para o país, secretário para a acta, um
tesoureiro e dois vogais (o conselho Central reuniria em dia e local certos).
A Junta Directiva era composta por dois indivíduos, sendo um deles também membro do Secretariado.
Deputados e vereadores não deviam acumular esses lugares com o de dirigentes do Partido e o Congresso teria lugar de
dois em dois anos.
82
Tese do Centro Socialista de Lisboa, em que se propunha que a Junta Directiva passa-se a ser substituída pelo
Conselho Central. In, República Social, 17-07-1926.
133
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
desordem geral acaba por ser aprovada uma solução em que continuava a existir
a Junta Directiva, cujo número aumentava de dois para quatro e o Secretariado
Nacional, com as secções Norte e Sul, aumentando-se de três para cinco a Secção
Sul e de dois para três a Secção Norte83. Estava de novo consumada a divisão na
desavinda família socialista, esgotada e perdida em discussões de foro interno
que secundarizavam para um âmbito marginal aquilo que seria, certamente o
cerne das preocupações das massas trabalhadoras: a reacção à situação política.
A ela se chegaria por fim. Mas o mote dos trabalhos estava dado e, mais uma vez,
como veremos, as conclusões não seriam mais que inconclusivas.
Defendem-se várias propostas sobre a forma de lidar com o governo vigente.
João Graça e Ramada Curto defendem que todos se deviam abster de colaborar
com a situação e Sousa Neves diz mesmo que é necessário agitar a opinião pública
a favor dos princípios socialistas. Mas razão tinha quem acusava o partido de
“não ser mais que uma pequena patrulha dentro da política portuguesa”... bem
indisciplinada, por sinal, acrescentaríamos.
Importava, na prática, “saber se amanhã os socialistas, convidados a entrar
nas câmaras municipais ou nas juntas de freguesia, deviam aceitar o convite”84. A
maior parte entendia que esse convite não podia ser aceite; mas deitou-se água na
fervura, apelando-se para os interesses e conveniências locais. E o caso foi relegado para a Junta Directiva que é quem passa a ter que descalçar a bota85. Os reais
estragos na estrutura partidária haviam de vir à tona muito em breve. De facto,
quando a 21 de Julho vão tomar posse no Centro Socialista de Lisboa os novos
corpos sociais, Nunes da Silva e Júlio Silva, alegando motivos de ordem material
e por terem pertencido ao antigo secretariado, não aceitam o cargo; Fernandes
Alves invocava a sua doença para ser dispensado das reuniões; Ramada Curto,
que presidia, pede “licença para se afastar durante algum tempo da acção directiva
do partido” para se dedicar à advocacia e “por falta de condições directivas”; José
Augusto Machado, eleito para o secretariado nacional, rejeita, impedido pelos
83
Continuava Ramada Curto e Amâncio de Alpoim. Eram nomeados, de acordo com as alterações, Fernandes Alves
e Nunes da Silva.
Pela secção sul o nome de Alfredo Franco, Joaquim Cabral, Ferreira Batista, Bento da Cruz e Reinaldo Vilas. Pela
secção norte, Joaquim da Silva, Alberto Carneiro e Porfírio de Freitas.
84
Vários correligionários vinham sendo convidados para fazer parte das comissões administrativas que se iam criando
pela ditadura.
85
A moção, proposta de Amâncio de Alpoim, constava do seguinte: “O Congresso confia na Junta Directiva eleita para
que, em acordo com os princípios e interesses partidários, oriente a acção e táctica do Partido.”
134
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
seus afazeres... De fora fica também Amâncio de Alpoim, a contas com problemas
como membro da administração da Caixa Geral de Depósitos, de onde é demitido, surgindo n’O Século a notícia de que fora também expulso do partido...86. De
sete eleitos, aguentavam-se Augusto Dias da Silva e Alfredo Franco. Uma direcção
profundamente desfalcada (dos suplentes, só Almeida Abrantes compareceram).
Um secretariado onde as coisas não iam melhor (se não se registavam escusas,
atacavam as faltas): sobrevive-se agarrando uma disposição dos Estatutos - Junta
Directiva e Secretariado Nacional passam a tentar servir em conjunto.
Estava-se num momento crucial para o desenlace do futuro político da Nação,
um tempo ímpar para compensar a moleza inofensiva herdada desde longe,
para o serenar das levianices, para o curtir da garra, o temperar da abnegação, o
amadurecer da firmeza. Nada: o Partido Socialista, não só não define empenho
nem clareza de resposta imediata ao “fardado golpe de 28 de Maio”, como se
autoconsome em questiúnculas internas e jogos de interesse, assumindo-se
“como partido essencialmente doutrinário e orientado, simplesmente, numa
base moral, não oferecendo aos seus prosélitos mais do que a beleza das suas
doutrinas”. Dúbias de resto, quando se tratava de acções concretas. É o desajuste
para com as reais ansiedades da classe trabalhadora que justificará a confirmação
do movimento anarquista como os verdadeiros protagonistas da oposição ao
regime, como os acontecimentos subsequentes hão-de confirmar.
Divorciada desta ideologia pequeno-burguesa, as massas mobilizáveis não são,
por sua vez, factor de pressão na postura dos dirigentes no congresso que, com
posições vagas e hesitantes, não perturbam de nenhum modo o curso da ditadura.
Ramada Curto, contagiado, como vimos, acaba por encolher também
os ombros: “A imprensa creou a atmosfera da ditadura, parte do operariado
auxiliou a revolução militar, os cafés deliraram com o advento dela (...) A
coisa chegou a tal ponto que eu – eu e outros – houve um momento em que,
resignadamente pensamos: pois seja! Vamos lá a ver!..”87. E explica como este
estado de alma não se compadecia com as responsabilidades de uma direcção
partidária. Nem precisava explicar. Tempos complicados, estes. José Telo,
86
Se bem que o República Social venha a desmentir a notícia, o facto é que o partido deixou de contar com ele por uns
tempos. Virá a ser preso dali a dois anos, altura em que era director do periódico A Notícia que fica suspenso. Há-de
acabar a abrir banca no Brasil.
87
O Protesto, 14-11-26.
135
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
resume que “com o decorrer dos tempos, a posição da direcção do PS mantém-se hesitando entre o apoio à ditadura, para a qual tudo indica inclinar-se, e o
medo da reacção da corrente de esquerda dentro do partido caso um tal apoio se
concretizasse”88. Afunda-se assim mais o partido na espécie de limbo para que é
relegado ou de onde não sabe nem quer sair. Afunda-se assim mais o país com
a névoa da indiferença a ir pousando nos cantos que se lhe adivinhariam menos
afoitos e a minar um Portugal a acomodar-se à mordaça como ainda alardeiam
alguns articulistas mais lúcidos, mais corajosos e menos cuidados pelos ainda
inseguros censores. A análise desta aquiescência quase geral para com as “forças
vivas” – como na época era expressão corrente – não deixaria de exceder em
muito o escopo deste trabalho. Mas raciocinemos em rápido sobrevoo.
É certo que a verdadeira barafunda subjacente a toda a 1ª República foi de
molde a criar, digamos, anticorpos para com os políticos em particular, os
partidos no seu todo e mesmo a política em geral89. Daí, a facilidade com que, em
dezoito meses, Salazar funda o Estado Novo (ele próprio recordava que não se
pode governar contra a vontade persistente de um povo). É igualmente um facto
que o panorama europeu, no geral, tendia à proliferação de ditaduras autoritárias
um pouco por toda a parte90; como é ainda verdade insofismável o efeito decisivo
do peso colossal da influência da igreja por um lado e o carácter secularmente
amolecido de um povo brando, de sebastiânico atavismo e de todo carecido de
um pai, por outro. Mas, pensando detidamente no tema, vemos que até nem
deixava de sobrar espaço, mesmo assim, para o partido medrar com outro arrojo.
Razões para que assim se tenha feito a história, havemos de continuar a discuti-las
adiante. Fiquemo-nos para já com a sentença de António Sérgio, em entrevista
à “Vida Mundial” vinte anos depois destes arrazoados: “Se existisse em 1910 um
partido Socialista que se houvesse mantido bem distinto no seu campo próprio
88
TELO, António José, Decadência e queda da I República Portuguesa, II Vol., Biblioteca de História, A Regra do Jogo, Lisboa
1980, p. 134.
89
Numa circular, queixava-se mais tarde a Liga da Mocidade Socialista de Lisboa de que “existe uma certa malcrença por
‘aquilo’ a que chamam Socialismo, por aquilo que, longe de perverter, somente conseguirá elevar os povos à máxima
perfeição humana, à disciplina e ao respeito pela humanidade”. (In, O Povo, 14-01-1929).
90
Se bem que seja comummente aceite o peso da ruralidade na economia portuguesa como justificação da ausência de
um proletariado capaz de fazer frente às forças reaccionárias de cariz autoritário, o aparecimento deste regime não pode
ser dissociado do processo de modernização que a partir de finais do século XIX o país sofreu. Só poderemos entender
a natureza e as características do regime saído do golpe de 28 de Maio se o contextualizarmos entre a irrupção de um
processo de industrialização tardio e brusco, acompanhado por uma forte mobilização social, cultural e política a que
não são estranhos os movimentos migratórios populacionais. (Ver: PAIS, José Machado, O Estado Novo - das origens ao fim da
autarcia, 1926-1959, Vol I, ed. Fragmentos, Viseu, 1987).
136
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
– no das reformas económicas parciais, realizáveis por simples republicanos,
estudando-as pelo exame concreto das realidades nacionais, reclamando-as dos
governantes – melhor teria sido o destino do nosso povo”91. Outro garbo poderia
pois ter tido o movimento socialista para enfrentar a robustez da ditadura. Não o
teve no imediato, como vimos. Não o viria a ter nunca, como veremos.
Deixáramos lá atrás o partido a esvaír-se em ideias e gentes que sumiam como
se a militância fosse um perigo a afastar. Doença que, de resto, só parece ter
tendência para alastrar: Manuel José da Silva, principal redactor do República
Social, demite-se em Agosto92, Porfírio de Freitas, do Secretariado Nacional, fálo no mês seguinte, Martins Santareno em Outubro porque apoiava o Socorro
Vermelho… para já não falar sequer nas bases... Não é, contudo, a morte do
partido de Fontana e Gneco. Ainda. Teimosamente, os mais combativos mexemse em iniciativas de vária índole. Aparece por esta altura o “Núcleo Excursionista
Civil Azedo Gneco”, organização tipo Círios Civis, que procura unir a tresmalhada
prole sob o signo dos passeios organizados93. Organiza-se também uma homenagem a Ramada Curto e Amâncio de Alpoim, enquanto a Liga da Mocidade
Socialista brada por “diversões e recreios educativos como meios práticos de exortação juvenil dentro da organização partidária” e se festeja, com pouco brilho, é
certo, o 5 de Outubro. N’O Protesto - que desde Agosto passa a sair com regularidade variável por graves problemas financeiros - aparece o primeiro repto sério
ao recurso à política de alianças como forma de enfrentar a situação94. Mas o seu
tempo não era ainda chegado. As grandes cartadas do futuro do país continuariam
91
In, SOARES, Isabel, op. cit. p. 22.
92
Manuel José Dias da Silva entrega no semanário do partido um artigo que sai publicado sem a sua assinatura (havia sido
suspenso). Agride Joaquim da Silva que se demite levando à convocação da Confederação Nacional…
93
O “Movimento Socialista dos Círios Civis” era um órgão de luta anticlerical e anti-religiosa. Inicia-se em 1894. Uma
Federação coordenava a actividade geral dos círios, enquanto a actividade particular era deixada à iniciativa de cada um deles.
As conferências anti-religiosas eram os principais e mais frequentes meios de actuação pedagógico-militante.
Constava do Artº I do Regulamento Geral: “Com o título de Federação dos Círios Civis, é fundada em Lisboa uma
instituição permanente civil e destinada a fazer a máxima propaganda anticlerical e cooperar para a realização do programa
do Partido Socialista votado em Tomar”.
94
O1º- Que se convidem os altos corpos partidários a que de futuro só procurem alianças para o Partido nos partidos e
agrupamentos da esquerda política e social.
2º- Que, quando por virtude de acontecimentos excepcionaes o Partido se tenha que aliar com outro agrupamento procure
sempre que dessa aliança não resulte uma diminuição no seu prestígio, principalmente aos olhos da classe trabalhadora e que
da sua acção política não se venha a apropriar exclusivamente um outro partido político.
3º- Que se saúdem todos os agrupamentos políticos ou económicos que estão connosco do mesmo lado da barricada e
principalmente a C. G. T. e o partido comunista. (In, O Protesto, 22-08-26).
O desânimo para com a situação na imprensa estará bem expresso por Alfredo Franco ao afirmar no final desse ano: “a
tiragem de hoje é a de ontem, sem esperança de melhorar amanhã”. (In, República Social, 04-12-1926).
137
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
a ser jogadas por actores estranhos ao PS que, combalido, impotente e atónito,
tartamudeava comentários e leituras políticas pouco frontais, nem sempre claras
e, a espaços, contraditórias. Provaremos que assim foi com os acontecimentos do
Fevereiro de 1927; assim também com todo o processo que levaria Salazar à cabeça
do Estado Novo.
Muitos socialistas terão visto passar o “pé descalço” e os marinheiros, comandados por Agatão Lança, para o embate com as tropas da ditadura, no Largo
do Rato95. Estava-se no momento decisivo de enraizamento da ditadura ou de
um retroceder no processo, até aqui ainda plausível. Um ou outro resultado da
mais séria contenda do século na lusa história (150 mortos, 800 feridos) era
melindroso para uma força que, sem ter sido ouvida nem achada96, se assumia
como espectadora definitiva dos acontecimentos. E têm sabor a camarote as
reacções que vão saindo. Atordoados de acordar num país diferente, estranham
e incomodam-se com os “hossanas vitoriosos” dos monárquicos, clamam por
bom senso, pedem perdão para os vencidos e... queixam-se de flagrante injustiça já que, num primeiro momento, também os socialistas viram os seus centros
encerrados e arrolados os seus haveres. À laia de desforra, enxameiam artigos
na sua imprensa ridicularizando os comunistas, “enfezadinhos e doentes”, que
haviam desaparecido sem deixar qualquer rasto. O real significado do que se ia
passando é que ninguém terá percebido de imediato. De facto, da mesma forma
que o 28 de Maio constituíra o ponto de referência cronológica que marcara o
fim da experiência liberal, um projecto que se tinha vindo a esgotar lentamente,
o movimento revolucionário do Fevereiro de 27 impunha-se como o ponto de
viragem numa marginalização crescente da República em relação ao seu bloco
social de apoio. Ora, a alternativa que se busca já não se procura no quadro das
instituições políticas nem no seu modelo económico. Na sociedade portuguesa
desta altura, atingida por um longo período de crises subsequentes à Primeira
Guerra Mundial, mundo de contradições onde se chocam os vários interesses
socioeconómicos, só uma coisa parecia certa - a necessidade de um Estado forte,
capaz de evitar conflitos e de abrir uma via de desenvolvimento económico.
95
Ver, FERNANDES, Vasco da Gama, Depoimento Inacabado, Pub. Europa América, Lisboa, 1975.
96
Eles próprios assim se definiam (ver, República Social, 02-04-1927).
138
CONSTANTINO DE OLIVEIRA GONÇALVES
Na altura, o rescaldo arrasta-se penoso e inglório. Saneamento do funcionalismo, encerramento de associações secretas, supressão do direito à greve... Não
bastasse o aperto da situação a tolher decididamente o espaço de manobra política
e o flagelo económico que se faz sentir com mais força (60% do orçamento da
Nação ia para o Ministério da Guerra e Marinha), nascem dos destroços intrigas,
divisões, mal entendidos. Alfredo Franco e Mário Silva chegam a ser dados como
presos (o que acaba por ser desmentido, se bem que o venham a ser, de facto, um
ano mais tarde, exilando-se depois este em Paris), Manuel Pulqueiro, da Liga da
Mocidade Socialista é deportado para África. Um mês depois, Alfredo Franco
afasta-se da direcção para onde só no fim do ano entraria Amâncio de Alpoim.
Sobra José Augusto Machado a quem é confiada a Secretaria Geral, por entre
démarches para reabrir os centros que haviam sido encerrados97.
Ganhava outra força a forma como se insinuava a pressão do regime autoritário, sobretudo ao nível da imprensa, veículo por excelência da propaganda e
mobilização política. O periódico Batalha, sob suspeita de ali se imprimirem manifestos clandestinos de apoio à revolta, deixa de sair logo a 5 de Fevereiro; O Protesto
não sai durante duas semanas; a CGT é extinta, a própria Seara Nova é degolada.
Entretanto, nem todos terão perdido o tino de adivinhar que, com os comunistas sem espaço e sem base de apoio, bem o Fevereiro de 27 poderia abrir
a oportunidade de, finalmente, ser dada a vez aos socialistas – o Secretariado
Nacional lança desesperados apelos a todos os que já tinham sido filiados no
partido para que se filiassem de novo. Mas o país jazia apático e atordoado,
dir-se-ia no ponto para assistir, num futuro ali já perto, à posse de Carmona
na própria sede das Câmaras republicanas extintas e a aceitar e a sossegar com
o novo ministro que discursaria de olhar fixo, como que hipnotizado, a boca
severa e desdenhosa, a frase lapidar: “Sei muito bem o que quero e para onde
vou.” Ninguém ainda ousara assim dizer, na República; alguém o teria podido
dizer ou saber – desde João Franco, vinte anos atrás?.. entretanto, por essa
altura, Ramada Curto fala longamente ao JN sobre a “actual crise teatral”.
O desânimo era notório e confesso. A onda de despropositado pacifismo
“mataria de desgosto os grandes iniciadores do partido se estes pudessem
cá voltar”. Ao fazer o balanço do ano, Fernandes Alves desabafa que “nada
se realizou, tanto no campo sindical como no campo da política socialista”.
97
Em Junho já nem Augusto nem Alpoim estão nos seus postos.
139
O PARTIDO SOCIALISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
Com evidente exagero, diga-se, pois que, por paradoxal que pareça, é precisamente nesta altura que se começam a notar claros sintomas de progresso na sua
imprensa. Era o justo prémio da ditadura para a tão alardeada inocência nos
acontecimentos de Fevereiro: anarco-sindicalistas, comunistas e boa parte dos
republicanos mais progressistas tinham sido perseguidos, deportados e, sobretudo, emudecidos pela suspensão dos seus periódicos.
Assim, contrastando, tremendamente, com este panorama, O Protesto afirma
ter quintuplicado a tiragem, o União (jornal da província) passa a semanário, O
Trabalho, dedicado à parte sindical, mantém-se e o República Social propunha-se
melhorar todos os seus serviços98.
Esmiucemos um pouco mais detalhadamente toda a parafernália socialista que, se bem não tendo nunca alcançado o brilho dos seus congéneres de
outros países (em tempo algum se chegou a estar sequer perto do simbólico
sonho do jornal diário), não deixou de ser o seu rosto mais visível, quiçá o mais
conseguido.
98
Era normal os periódicos esconderem as tiragens. O dado mais preciso que encontramos vem inserido no República
Social de 27-08-32 e refere mais de seis mil assinantes... como é aproximadamente a partir desta altura que passa de novo
a reduzir-se a quatro páginas, deduzimos que os números devem coincidir com o ponto alto da imprensa do partido.
140
Afonso Costa e o Socialismo Integral
José Reis Santos
Introdução
Encontrando-nos em pleno ciclo comemorativo do centenário da I República
portuguesa e num momento de (quase) total hegemonia cultural e política do
modelo neo-pós-liberal, interessa, talvez, requentar outras visões do mundo e
da sociedade. Neste sentido, julgamos de interesse mergulhar no pensamento
politico daquele que foi, indubitavelmente, um dos maiores políticos portugueses dos finais do século XIX e inícios do século XX, personagem ímpar (e
polémica) da vida nacional, e ícone do progressismo português: Afonso Costa.
Afonso Costa destacou-se, na vida portuguesa da viragem para o século XX,
como activista político, parlamentar e advogado de sucesso. Aliado a uma vivência
recheada de dinamismo e labor, desenvolveu em sua volta um verdadeiro clima
de euforia e fé, assumindo-se como paladino das causas dos socialmente mais
desfavorecidos (na sua actividade de parlamentar, na de activista político, mas
principalmente como advogado1), como profeta da queda do regime monárquico
e arauto do advento da República. Raul Rego intitulou-o «o maior estadista
português deste século [XX]»2, e Cunha Leal «um romântico mascarado de intelectual seco»3. Para nós, Afonso Costa foi um bardo de tempos novos, núncio do
Futuro, advogado de Portugal. Um Socialista, Republicano e Laico.
Cedo entendeu que para a necessária alteração de regime político em
Portugal, não chegava o pensamento; era urgente acção. Isso nos dá a entender
nos seus primeiros (e ainda um pouco imberbes) textos publicados no jornal
académico O Ultimatum, produto reactivo dos jovens estudantes coimbrões à crise
1
Lembre-se aqui o papel de Afonso Costa como advogado na defesa constante de casos envolvendo os socialmente
desfavorecidos, como os 25 pescadores de Gontilhães (1900-01), 4 jovens do movimento operário português (1901),
homens de Candosa (1901), o operário Bartolomeu Constantino (1904), etc.
2
Raul Rego, Afonso Costa. Discursos proferidos em Seia e no Porto na inauguração das estátuas ao estadista da República, s.e., Lisboa, 1988, pp. 5.
3
Francisco Cunha Leal, As minhas Memórias, 3 volumes, s.e., Lisboa, 1966-68.
141
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
de 1891. No entanto, anos mais tarde (1895) – quando concluiu as suas provas
doutorais –, Afonso Costa presenteia-nos com uma obra de grande dimensão
teórica e politica: A Igreja e a Questão Social. Neste escrito, onde desenvolvia as suas
teses doutorais, apresenta-nos o seu quadro teórico, assente no Socialismo
Integral desenvolvido por Benoit Malon, e introduzido em Portugal, essencialmente, pela pena de Magalhães Lima4.
Esta vertente do socialismo, enquadrada na reflexão larga que este movimento
de ideias produzira no último quartel do século XIX, acabaria por não suscitar
grande entusiasmo, talvez por nunca ter conseguido nem obter a hegemonia
cultural de outras vertentes ou por não ter conseguido expandir os seus propósitos
teóricos para situações práticas, isto apesar de Afonso Costa ter tido a oportunidade
de o introduzir como elemento ideológico definidor da I República Portuguesa.
Este curto texto pretende explorar então a proposta do Socialismo Integral,
como apresentada por Afonso Costa e contextualizá-la no quadro das ideias socialistas no Portugal do dealbar do século XX. Pretende ainda distinguir as principais
características do pensamento político do Homem que marcaria grande parte da
produção legislativa e intervenção pública da nossa I República, partindo essencialmente da sua intervenção intelectual e académica (1890-95) de onde se destacam
o artigo d’O Ultimatum “A Federação Académica5” (1890), a apresentação da sua tese
de doutoramento (em Coimbra , 1895)6; e, principalmente, a publicação da sua
obra de maior teor ideológico A Egreja e a questão social7 (1885).
Breve história do Republicanismo em Portugal
Qualquer história do republicanismo em Portugal identifica três gerações: a
de 1848, a geração de 70 e a geração do Ultimatum8. A primeira geração, a progenitora, destaca-se pelo carácter descentralizador, municipalista, federativo e
4
Magalhães Lima, O socialismo na Europa, prefaciado por Benoit Malon, citado em Affonso Costa, A Egreja e a questão social,
ob. cit., pp. 79.
5
O Ultimatum, nº 1, de 23 de Março de 1890, pp. 1; retirado de A. H. de Oliveira Marques, Afonso Costa, ob. cit. pp. 267.
6
Affonso Costa, Theses ex Universo Jure (…), Imprensa da Universidade, Coimbra, 1895.
7
Affonso Costa, A Egreja e a questão social, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1895
8
Cf. Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de Outubro de 1910. vol. I e vol. II, Faculdade de Letras,
Coimbra, 1991.
142
JOSÉ REIS SANTOS
associativista de Henriques Nogueira ou de Alexandre Herculano; preconizando
uma República Federativa, socialista (à maneira de Fourier e Louis Blanc9) no
quadro de uma federação ibérica livre. Subjacentes a estes desígnios – onde são
patentes as influências ideológicas de Proudhon, Tocqueville, do federalismo dos
EUA e da Suíça - detectavam-se os ideais da Revolução Francesa (no que respeita
ao livre associativismo e à ideia de liberdade) e os ecos das revoluções de 1848.
A geração de 70, liderada por Teófilo Braga, Oliveira Martins, Antero de
Quental (entre outros), reapreciaria os ideais de 48, sofrendo, novamente,
influências doutrinárias externas. Desta feita foram atraídos pela experiência republicana espanhola (1868-73), pela comuna de Paris (1871), pela
III República Francesa e, por negação, pelo primeiro concílio do Vaticano
(1869-70)10. Seria, no entanto, a influência da filosofia positivista a principal
contribuição doutrinária, inaugurando esta a certeza científica em relação
ao advento e perfectibilidade do regime republicano, ao mesmo tempo que
contribui para iniciar a definição do clima anti-religioso, anti-ultramontano
em Portugal11. Como principais influências ideológicas destacaríamos as de
Comte (positivismo Teofiliano) e Proudhon (Antero).
Já a geração de 90, ao contrário das suas progenitoras, seria essencialmente
influenciada por acontecimentos internos. Sofrendo do amadurecimento
ideais de 48 e da reflexão da geração de 70, a geração de 90 despoleta para
a actividade política com o ultimatum inglês. É, portanto, um acontecimento
traumático que estará na génese formadora da consciência política de um
grupo de jovens universitários republicanos e que os dotará de uma atitude
revolucionária, activa, que os diferenciaria das gerações anteriores. Afonso
Costa, António Maria da Silva, João de Meneses seriam os porta-vozes desta
nova geração, mais virada para a luta que para a elaboração teórica. Em
termos ideológicos mostram-se também bem informados, assim como os
seus precursores, seguindo atentamente a evolução dos debates europeus em
relação à grande questão da época – a questão social; como aliás o reconhece
9
Fernando Catroga, idem; Afonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit, pp. 87-89.
10
cf. A. H. de Oliveira Marques, A primeira República Portuguesa (alguns aspectos estruturais), Livros Horizonte, Lisboa, 1980 (3ª
edição), especialmente capítulo V; e A. H. de Oliveira Marques, Afonso Costa, Cadernos F.A.O.J, série C; 1978.
11
Para este clima também terão contribuído as principais resoluções apresentadas pelo primeiro concilio do Vaticano,
onde se reafirmava a infalibilidade do Papado e o centralismo de Roma.
143
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
Carvalho Homem12. Dentro das suas influências detectamos Marx, Engels,
Blanqui, Malon, e outros, o que demonstra que a sociedade cultivada portuguesa, interessada e activa, se mostrava actual e contemporânea.
Podemos detectar algumas linhas de continuidade entre as diferentes gerações, uma vez que todas plasmam ideais de democracia política, descentralização,
municipalismo, e federalismo. A complexidade do combate aguçaria a luta, mas,
no fundo, os grandes objectivos da geração de 90 eram os mesmos de Henriques
Nogueira e da geração de 70: a instauração em Portugal de um regime liberal
democrático, progressista, descentralizador, que permitisse a modernização
do país e o encurtamento das várias assimetrias patentes, quase geneticamente,
na sociedade portuguesa. Podemos, em síntese, afirmar que de um republicanismo ingénuo de 48, e de um cientismo de 70 se alcança o radicalismo de 90;
evolução, aliás, concordante com a experiência socialista europeia.
Outro debate paralelo tem a ver com o advento das ideias socialistas em
Portugal, e com o grau da sua consistência; até porque Rui Ramos aponta para
uma diluição ideológica entre os principais oponentes políticos da monarquia
constitucional; relativizando a ideologia em relação à política e destacando as
«preocupações sociais» de praticamente todo o espectro político13. Já Oliveira
Marques refere que «de certa maneira, poder-se-ia dizer que o Republicanismo
português se fez “socialista” em princípio, mas burguês na prática», apontando para a latente desarrumação ideológica e uma falta de categorização do
pensamento republicano português ao longo do século XIX14; enquanto César
Oliveira, fixando o seu objecto na análise ao pensamento marxista em Portugal,
refere-nos a falta de substância ideológica do operariado português e dos
seus líderes; destacando a parca influência dos principais textos doutrinários
marxistas em Portugal, e realçando Afonso Costa como um dos poucos leitores
da obra do filósofo alemão15. César Oliveira aponta, com alguma razão, que as
12
Carvalho Homem refere as «importantíssimas contribuições doutrinais» que a geração de 90 dotará o pensamento
republicano, nomeadamente no que respeita ao alargamento doutrinário e ideológico, apontando para a pertinência
intelectual e doutrinária destes novos actores. cf. Amadeu Carvalho Homem, ob. cit., especialmente capítulo III.
13
Rui Ramos, A Segunda Fundação (1890-1926), Historia de Portugal: sexto volume, direcção de José Mattoso, Circulo de
Leitores, Lisboa, 1993.
14
A. H. de Oliveira Marques, A primeira República Portuguesa (alguns aspectos estruturais), Livros Horizonte, Lisboa, 1980 (3ª edição).
15
César Oliveira, O Socialismo em Portugal. 1850-1900, Afrontamento, Porto, 1973.
144
JOSÉ REIS SANTOS
principais causas da pouca importância do socialismo na elite social e intelectual
portuguesa se deveu, fundamentalmente, a dois motivos: a inexistência de uma
verdadeira classe do proletariado devido à inexistência de processos industriais
suficientemente acelerados que permitissem a criação de ‘massas críticas’ que
poderiam absorver a ideologia marxista; e, por outro lado, à falta de leituras de
Marx, fruto da inexistência de uma classe proletária suficientemente numerosa,
activa e instruída e de um desprimor intelectual e ideológico a que Marx era
sujeito16. Em todo o caso, e sem querer contribuir para este debate, parece-nos
evidente que a elite intelectual portuguesa se encontrava genericamente informada e seguia os grandes debates teóricos e políticos da época, procurando neles
intervir, na dimensão nacional.
A questão social: a Europa na viragem do século XX.
O grande tema que dominava os debates políticos europeus por altura da
viragem de novecentos era a questão social, ou a necessidade de desenvolver na arena
política um processo de articulação entre o Trabalho, o Capital e as Instituições
Políticas. Desde as revoluções de 1848 que estas questões se põem, a fundo, e estão
relacionadas – sucintamente – com o brutal desenvolvimento industrial que parte
da Europa atravessa desde princípios do século XIX, com os reflexos do ímpeto
revolucionário francês e das contra-revoluções absolutista e conservadoras, com
o advento de novas tecnologias de comunicação e de transporte, com o acesso
à educação e alfabetização de um conjunto mais alargado da população e com a
consequente consciencialização política de novos grupos sociais.
Sem procurar aprofundar, resumiríamos os principais desenvolvimentos
deste debate agrupando-os em quatro grandes correntes generalistas: uma
marxista, que se desenvolve no seio da AIT (ou primeira internacional –
1864/76) e nos países do norte da Europa e que procura dotar ao operariado
industrial uma consciência de classe e um plano político para a sua emancipação.
Desta corrente, que nos parece a mais significativa, saíram relevantes derivações
que procurarão rever alguns dos parâmetros iniciais de Marx17. Uma segunda
16
César Oliveira, ob. cit.
17
cf. Élie Halévy, ob. cit; Jacques Droz e Armand Colin, ob. cit. ; e Jacques Droz (direcção), História geral do socialismo, ob. cit.
145
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
corrente, mais confusa e dispersa, será a francesa; onde o marxismo ortodoxo
pouco sentido fazia e pouca importância tinha numa sociedade pouco consciencializada para estas questões específicas. Esta corrente, com pouca influência
de Marx (até aos anos 1880/90) e com ascendência de Proudhon, de Blanqui
e mesmo de Bakunine (que impeliam para a acção directa, muitas vezes descoordenada), caracterizava-se pelos seus contornos colectivistas, comunitaristas,
libertários, anarquistas e revolucionários.
Um outro caso é o inglês, onde, partilhando espaço com as ideias de Marx,
se desenvolvia a tradição das trade unions. Estas procuravam, não somente através
da luta aguerrida contra o sistema capitalista, a melhoria das condições de vida e
de trabalho para os seus associados dentro do próprio sistema liberal. Por fim,
e fruto de uma percepção tardia mas consciente por parte do Vaticano, desenvolver-se-ia, a partir de 1891 e da encíclica Rerun Novarum (de Leão XIII), uma
reacção da direita conservadora, que daria origem à democracia-cristã. Esta
corrente procuraria estabelecer situações de compromisso entre as partes em
conflito e construir pontes entre o patronato e o operariado, sob o beneplácito
da Igreja católica.
Estas diferentes correntes de opinião, maioritariamente anti-sistémicas,
dispunham de quatro grandes linhas estratégias para influenciar as decisões
políticas ou para alcançar o poder: a legalista, a revolucionária, a anarquista,
e a integralista. Assim, e muito sucintamente, a via legalista era aquela que
pretendia organizar-se partidariamente e entrar, através da participação política, no sistema, reformando-o por dentro. Era o caso do SPD alemão, do
Labour Party inglês, do PS francês e dos diversos partidos sociais-democratas
do norte da Europa. Era também esta a posição que Bernstein assumiria teoricamente em 1889 e que alteraria o objectivo final do socialismo18. A missão a
atingir já não seria a destruição total do sistema capitalista, mas a sua reforma.
A via revolucionária, também organizada partidariamente, pretendia-se
sectária e fora do sistema capitalista-liberal. A função do Partido seria a de
preparar a classe trabalhadora para a luta, para a tomada do poder e para a sua
autoconsciencialização. Apontava para destruição do sistema capitalista e faseava
18
A partir de 1889, com a publicação da obra Premissas do Socialismo, Bernstein dá corpo teórico ao revisionismo marxista
que se afasta da lógica destrutiva que o marxismo impele aos seus movimentos e a substitui por uma via reformista,
sistémica, do capitalismo.
146
JOSÉ REIS SANTOS
a criação do novo paraíso em três estádios: a tomada do poder, a ditadura do
proletariado e a construção da sociedade sem classes. Era esta a visão de Marx
e dos seus discípulos. A visão anarquista, de Sorel, Bakunine ou de Jean Grave
diferenciava-se da marxista na medida em que não considerava necessária a
ditadura do proletariado para a construção de uma sociedade comunista. Para
os anarquistas qualquer pretensão de elaboração de um aparelho estatal não
fazia sentido na busca das soluções libertárias e colectivistas. Enfatizavam a acção
directa e, na sua organização política, privilegiavam em vez dos partidos políticos, o movimento sindical. Aí, e através da luta directas (greve geral, ataques
bombistas, etc.) atingiriam os seus objectivos.
Uma terceira via era a apresentada pelos integralistas, que preconizavam a síntese
de todas «as actividades progressistas da humanidade». É a tese apontada por
Benôit Malon e que pretende, em última instância, a instauração de uma República
Social, apostada em parâmetros politicamente democráticos e economicamente
socialistas; pretendendo a «separação entre o Estado e as Igrejas, a substituição
das festas religiosas por festas cívicas, a universalização do ensino, a substituição do
exército permanente por milícias nacionais, a abolição dos privilégios19».
Naturalmente que os governos nacionais não se encontravam desfasados
destas reivindicações e também reagiriam, reformando-se ou reprimindo. Neste
sentido, são diversos os governos que promoveriam vias reformistas; e que, cedendo
perante a pressão por parte da sua população industrial (mas não só20), acediam
aos seus protestos e legislavam no sentido de regularizar e melhorar as condições
gerais de vida e de trabalho21. Esta posição foi tomada, em graus distintos, um
pouco por toda a Europa (Portugal com João Franco, França na III República,
Alemanha de Bismark numa primeira fase, Bélgica, Holanda, etc.). Opção inversa
era a repressão; e também esta via se mostrou muito comum um pouco por toda
a Europa, alterando-se com a posição reformista em virtude da intensidade e da
forma dos protestos por parte do operariado, por um lado, e com a benevolência
19
Benoît Malon, Le Socialisme intégral, vol. I, pp. 393, Paris 1892 (4ª edição) ; citado em Henrique Cardoso, A crise portuguesa
e os partidos revolucionários, Porto, 1899, retirado de César Oliveira, ob. cit., pp. 319-346.
20
De facto as reivindicações não eram exclusivas do operariado urbano/industrial; boa parte daquilo que se designou
de pequena/média burguesia urbana, por um lado, e ‘operariado rural’ (ou campesinato ou assalariados rurais), por
outro, juntavam-se frequentemente ao rol dos descontentes e inconformados.
21
Geralmente essas questões rodeavam assuntos como o horário de trabalho (8 horas), o dia de descanso semanal, a
regulamentação do trabalho infantil e feminino, etc.
147
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
dos governantes, por outro. Por fim, uma terceira opção, a do compromisso, era
a sugerida pelo Vaticano e descrita na Encíclica Rerun Novarum; que procurava criar
mecanismos de cooperação entre o patronato, o operariado e o poder político no
que poderíamos descrever como um sistema pré-corporativista.
Um jovem (e revolucionário) académico.
Em 1890 Afonso Costa publicava um pequeno artigo n’O Ultimatum, jornal
académico ligado à Universidade de Coimbra. Intitulado “A Federação
Académica”, eram identificadas as causas da degeneração da Pátria com a
monarquia, com a Casa de Bragança e com a moralidade reinante. Afonso
Costa clamava pela a necessidade da revolução para combater estas causas, que só
seriam erradicadas se se instalasse em Portugal um regime republicano, solução
pretendida para a desejada regeneração moral (e política) da Pátria. «Obras,
muitas obras, sangue, muito sangue seria preciso para conseguir um desideratum
assim»22, diria. Uma vez instaurado o novo regime, revolucionariamente, seria
necessário «em seguida instruir, edificar, moralizar o povo».
Seguindo os preceitos positivistas apregoados pelos seus professores Teófilo
Braga e Emídio Garcia, o espírito do jovem universitário demonstra a percepção
da inevitabilidade da instauração de um regime republicano; defendendo que
as sociedades modernas deveriam caminhar ao lado do progresso científico e
social para formas de Governo que permitissem o natural desenvolvimento
da contemporaneidade em busca da felicidade colectiva e da concretização do
sentido histórico, pátrio, reservado à nação. «Não será isto mais curial, mais
científico?», questiona mesmo Afonso Costa23.
Por outro lado, a atenção demonstrada, cedo, pelos aspectos educativos
da população (ou do povo), completam o ramo teofiliano e inscrevem definitivamente o jovem beirão na genealogia republicana portuguesa. A atenção
ao processo formativo, na sua dupla vertente social e individual, indicavam a
partilha da ideia de regeneração e de criação de um Novo Homem, de uma
Nova Sociedade, de um Novo estado moral, social e político para a nação portuguesa. Afonso Costa ao se referir a este aspecto indiciava já um entendimento
22
O Ultimatum, nº 1, de 23 de Março de 1890, pp. 1.
23
Idem.
148
JOSÉ REIS SANTOS
claro da complexidade da sociedade portuguesa em que se inseria e preocupava-se em se colocar ao lado daqueles que identificavam a educação como a grande
ferramenta, capaz impulsionar os potenciais projectos transformadores, o que
se convencionou identificar como pedagogia republicana.
De salientar, também, a preocupação cedo demonstrada em se demarcar
das atitudes passivas das gerações anteriores: «(…) a Academia vai emancipar-se das antigas rapaziadas vergonhosas ou ridículas, tem a obrigação de não se
tornar platónica (…)», afirma. Acção, e não pensamento; luta, e não reflexão,
defende. Aparte da intenção de se demarcar de gerações passadas e de conquistar
um espaço político e intelectual próprio, Afonso Costa preocupava-se também
em de distanciar daqueles que, no passado, prostraram o seu dinamismo em
divagações ascetas e infrutíferas. De certa maneira entendia que o tempo de
reflexão terminara, de que seria necessário incutir mais vitalidade no movimento
republicano português, de forma a aproveitar o capital de descontentamento no
regime monárquico, a potenciar o fim da monarquia bragantina e possibilitar a
instauração em Portugal de um regime que possibilitasse o definitivo afirmar da
nação portuguesa na esfera da modernidade: a República.
Em suma, apoiado num revolucionarismo arquétipo da juventude universitária, e denotando certas apropriações filosófico-políticas do positivismo teofiliano,
Afonso Costa apresenta-se ao palco político português como anti-monárquico
convicto, bardo da República e ardina da revolução. Não terá, ainda, um pensamento político construtivo e elaborado, mas destaca-se pela veemência com que
pretende inaugurar uma nova era do combate político português, apostado na
revolução e no combate e não na pura divagação intelectual e no debate.
Em 1895, Afonso Costa doutorava-se, cinco meses após ter terminado a sua licenciatura em direito. No espaço de tempo entre o que escrevera o líder estudantil em
1890 e 1895, dois acontecimentos marcariam a política portuguesa e internacional:
a tentativa insurreccional republicana de 31 de Janeiro, no Porto; e a publicação da
encíclica Rerum Novarum, ambos em 1891. No campo das ideias Benoit Malon publicara a obra Socialismo Integral (1892) e no combate pelo hegemonia socialista era
mais visível a divisão entre a linha ‘possibilista’ e a ‘marxista’ (e a anarquista)24.
24
De facto, aquando da criação, em 1889, da II internacional, realizaram-se em Londres dois congressos: um suscitado pelos
possibilistas e tradeunions inglesas e o segundo pelos guedistas (de Jules Guesde) e anarquistas, ao que se juntaram os sociais-democratas
alemães. Dentro do segundo Congresso (o que dominaria o debate internacional) em breve se distanciariam anarquistas de
marxistas, possibilitando a estes, finalmente, o domínio da organização. Ver Jacques Droz, ob. cit. (especialmente volume 4).
149
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
As teses apresentadas na Faculdade de Direito intitulavam-se A Egreja e a
Questão Social; um conjunto de definições e conceitos sintéticos onde Afonso
Costa se apresenta informado e polémico, exibindo interessantes leituras
da literatura contemporânea dos ramos da ciência política, da sociologia e,
claro, do direito. Prontamente afirma que «a sociologia não pode deixar de
ser fundamentalmente socialista»25, defendendo uma ligação umbilical entre
Sociologia e o Socialismo; para depois reflectir sobre o estado dos direitos políticos consagrados na Monarquia Constitucional, indicando a necessidade do
voto universal e a reformulação das definições cívicas existentes. Nestes pontos,
e considerando que «em Portugal a restrição do direito de sufrágio é inútil
e perigosa»26, defende a necessidade da representação parlamentar «dos
órgãos da actividade social»27 e a indispensabilidade de reforma do «direito
político português» no sentido de se «eliminar a distinção entre cortes ordinárias e constituintes»28; assunto onde é interessante apreciar a contemplação
de estratégias reformistas, considerando possível a reforma do sistema político
através de revisões constitucionais (afastando-se, de certa maneira, do ímpeto
exclusivamente revolucionário defendido em 1890). Por fim, e numa linha, o
doutorando insurge-se no campo que o celebrizará:
«os meios que Leão XIII (Encyclica Rerum Novarum, de 15 de Maio de 1891)
indica para ser resolvida a questão social são inteiramente ineficazes»29.
Uma vez doutorado, Afonso Costa desenvolveria as suas teses na obra A Igreja
e a questão social; onde apresentaria, de forma sistemática e articulada, a sua argumentação e o seu contributo em volta do assunto em voga (a questão social),
naquele que seria o seu contributo teórico de mais fulgor. A obra, polémica
há época, procurava desenvolver um ataque às disposições elencadas pela encíclica Rerun Novarum, ao mesmo tempo que pretendia transpor para a actualidade
intelectual portuguesa o estado do debate europeu sobre as diversas vertentes
25
Affonso Costa, Theses ex Universo Jure (…), ob. cit. pp. 9.
26
Idem.
27
«Defendemos o regimem parlamentar com representação equitativa dos órgãos da actividade social», Idem.
28
«N’uma reforma do direito político portuguez deve eliminar-se a distincção entre côrtes ordinárias e constutuintes», Idem.
29
Idem, pp. 11.
150
JOSÉ REIS SANTOS
do socialismo, contextualizado numa longa história geral do socialismo. Seria
n’A Igreja e a questão social que Afonso Costa defenderia as leituras desenvolvidas por
Benoit Malon e pelo seu Socialismo Integral, como adiante verificaremos.
A Egreja e a questão social (1895).
Como já referimos, Afonso Costa publicava, em 1895, a sua obra de maior
teor teórico, contribuindo – à escala lusa – para o debate corrente sobre a questão
social. Em termos organizativos A Egreja e a questão social divide-se em três partes:
‘Introdução’, ‘Exposição’ (I parte) e ‘Crítica’ (II parte). Em anexo é também
publicada a encíclica Rerum Novarum30. Na Exposição, Afonso Costa dedica uma
parte ao ‘Socialismo’ e outra à ‘Igreja de Cristo’; e divide o Socialismo em
‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’. Aponta depois, para o passado, três períodos:
o “Socialismo Inconsciente” (1º período), o ‘Socialismo Utópico e Metafísico’
(2º período) e o ‘Socialismo Científico’ (3º período).
Nestas páginas Afonso Costa deambulará sobre a história do pensamento
socialista, dos seus primórdios ‘linguísticos’31 às suas origens históricas (os sofistas,
Platão); passando pelos ensinamentos cristãos primordiais, pelos utopismos
seiscentistas (socialismo utópico de Thomas More, Campanella ou Meslier),
pelas origens oitocentistas do socialismo moderno (Saint Simon, Fourier,
Robert Owen), pelo socialismo científico (Marx, Lassalle) até se debruçar na
contemporaneidade, onde passa em revista as principais escolas dominantes
do pensamento socialista europeu, e a realidade política vivida pelos principais
Partidos e Movimentos socialistas nos diferentes “palcos de conflito”.
Numa análise superficial, Afonso Costa propõe-nos uma viagem de vários
séculos, através de dezenas de pensadores, impressionando a miríade de citações
que transcorrem o texto, carregando o leitor pelo seu saber enciclopédico e
erudito. Esta será, sempre, uma importante conclusão a retirar: Afonso Costa
havia percorrido quilómetros de papel na construção asfaltada do seu saber.
Impressiona ainda a pertinência e a actualidade das suas citações, a profundidade
30
Publicada na sua versão latina (conforme a versão apresentada por Anatole Leroy-Beaulieu em La papauté, le socialisme
et la democratie, 4ª edição, Paris, 1893) e na portuguesa (conforme apresentada pelo Bispo de Bragança, D. José Alves de
Mariz, na sua pastoral de 15 de Outubro de 1891). Cf. Idem, pp. 211-307, especialmente pp. 213-215.
31
«A palavra socialismo só existe desde em 1838 Pierre Leroux a inventou por contraposição à palavra “individualismo”»,
cf. Afonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 21.
151
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
das suas leituras e, talvez o aspecto mais surpreendente, a actualidade dos seus
comentários e das suas observações políticas. Se dúvidas pudessem existir em
relação à consistência ideológica de Afonso Costa, por se julgar desterrado
no nosso jardim atlântico, longe da informação, fora dos grandes círculos
de debate, elas dissipar-se-iam nas primeiras páginas. O seu saber era actual,
moderno, transversal e comparado32.
Uma análise mais atenta permite, no entanto, matizar o contributo teórico
de Afonso Costa; uma vez que o autor remete-se à apresentação de uma análise
acrítica e maioritariamente descritiva. Afonso Costa apresenta-nos, é verdade,
uma sucessão de exemplos concretos, bem escolhidos e superiormente documentados, mas assemelha-se mais a um condutor de uma mise en scene repleta de
personagens e de texto, que deambulam pelos palcos das ideias, com pauta, mas
sem maestro. Afonso Costa nunca pega na batuta, e quando toma o pulso ao
debate fá-lo-á pela mão de Benôit Malon e do seu socialismo integral33.
Nas páginas iniciais, Afonso Costa apressa-se a esclarecer o seu posicionamento politico, e ideológico; afirmando, de forma clara que: «[o socialismo]
hoje está perfeito»34. No detalhe, explica:
«(...) partilho das ideias socialistas, hoje firmemente apostolizadas por muitos
espíritos reflexivos e serenos, e vigorosamente impulsionadas, primeiro, pelas
instantes necessidades da grande maioria sofredora e faminta e, depois, pelos
princípios da filosofia da história, da economia social, da ciência toda»35.
A identificação com o socialismo integral do communard francês, recebido
via Magalhães Lima36, é evidente; e de facto Benôit Malon apresentava-se para
Afonso Costa como um autêntico profeta do futuro. O seu socialismo integral conseguira, na perspectiva de Afonso Costa, libertar-se das contradições
32
É interessante observar que, juntamente com um elevado conhecimento teórico acerca dos principais momentos do
socialismo, Afonso Costa também nos brinda com uma erudição impar no que toca à doutrina cristã e à actualidade
do debate epistolar.
33
Benoit Malon será a principal referência contemporânea de Afonso Costa, mas também são vulgares as recorrências
a outros autores quer na crítica como na elaboração teórica de alguns pressupostos (socorre-se, por exemplo,
frequentemente a Magalhães Lima).
34
Idem., pp. 91.
35
Idem, pp. 13-14 (nota de rodapé).
36
Magalhães Lima, O socialismo na Europa, prefaciado por Benoit Malon, citado em Affonso Costa, A Egreja e a questão social,
ob. cit., pp. 79
152
JOSÉ REIS SANTOS
internas do marxismo e das suas correntes sectárias, apresentando um produto
final verdadeiramente inovador na sua universalidade, no seu humanismo
progressista e na sua aplicabilidade prática; até porque possuía a virtude de:
«ao mesmo tempo que fala aos proletários dos seus apetites e do direito que
lhes assiste de os satisfazer, entretem-os com a justiça e a moral social, e a
fraternidade universal (…)37».
O Socialismo Integral seria, então, o culminar coerente e científico das
profecias positivistas, até porque «a escola integralista é a mais perfeita, a mais
conciliadora, a mais sociológica, e a mais viável»38. Para Afonso Costa, então, o
Socialismo Integral continha as ideias que:
«(...) trarão, em sólida contextura, - para a filosofia, uma concepção moral que se
harmonizasse com as descobertas cientificas e necessidades éticas do século, - para a economia política, um
sistema de produção, repartição e circulação das riquezas, que garanta a cada um a subsistência e aos
que trabalham o produto integral do seu esforço, deduzidos os encargos gerais,
- e para a política uma federação planetária formada sobre sucessivas e cada vez mais largas federações de povos, raças, grandes regiões e continentes, tendo por base única a República Social39”.
Em relação ao futuro, Afonso Costa encontrava-se convicto que «[o socialismo] hoje está perfeito». À doutrina económica de Marx «que é o apoio teórico
de todos os socialistas militantes da Europa e da América», juntara-se, graças a
Paepe40, Malon, etc., «um outro elemento, que não vem combater, destruir ou
ferir aquela, mas apenas completa-la, ou antes facilitar a anexação, a essa doutrina
económica», uma doutrina «mais geral, mais compreensiva dos meios e das múltiplas necessidades da humanidade, melhor adaptada à concepção actual da história a
às aquisições recentes da ciência»41. Esse elemento seria o Direito e a sua expressão:
a «Justiça». Os seus princípios seriam a «Liberdade» e a «Igualdade»42.
37
Affonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 78-79.
38
Idem, pp. 78.
39
Idem, pp. 14 (nota de rodapé); sublinhado nosso.
40
Líder do Partido Socialista Belga.
41
Affonso Costa, A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 91-92.
42
Idem, pp. 92.
153
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
Assim, «(…) o socialismo integral, o socialismo do futuro, não se apoia
apenas na necessidade económica de destruir o capitalismo: vai mais longe e
mais alto: torna-se mais compreensível e mais elevado: firma-se também sobre
a justiça social. Por isso, nada admira que os socialistas possam colocar ao serviço
do Estado de amanhã todas as aquisições científicas e aspirações humanas»43; e
neste sentido, «(…) os socialistas não se limitarão a fazer apelo aos interesses da
classe do proletariado», mas deverão invocar simultaneamente «todas as forças
sentimentais e morais que residem no espírito humano»44.
O Socialismo Integral
O Socialismo Integral defendia propostas estatistas, colectivistas, comunitaristas e
federalistas. O Estado deveria procurar «por todos os meios ao seu alcance, melhorar
a sorte dos operários», suprimir «todos os monopólios», extinguir «todas as
dívidas da nação e das comunas» e promover a nacionalização da riqueza45. No
campo económico, defendia-se a «apropriação colectiva, mais ou menos demorada, da terra e dos instrumentos da produção e da troca»46, a tributação das grandes
fortunas47, a «Organização cooperativa comunal (ou para nós municipal) e geral, da
produção e da troca»48, a «Faculdade para cada trabalhador de gastar como melhor
entenda o equivalente da mais valia por ele criada»49, e o «Direito ao desenvolvimento integral para as crianças, direito à existência para os incapazes de trabalhar, e
certeza garantida da que a todos os inválidos se dará um trabalho remunerado à sua
escolha e conforme tanto quanto possível com as suas aptidões»50. Nesta dimensão,
43
Idem, pp. 92.
44
Idem, pp. 93.
45
Que, na opinião de Afonso Costa, «far-se-ia assim gradualmente, sem abalos nem violências e marcando cada passo
uma melhoria na sorte dos proletários». cf. A Egreja e a questão social, ob. cit., pp. 79.
46
Idem, pp. 93.
47
«(…) que se conserve e retenha uma parte das heranças e que se chegue assim a organizar o exercito do trabalho com
um domínio e um crédito que permitam às corporações eliminar pouco a pouco o regime do salariado». cf, A Egreja e a
questão social, ob. cit., pp. 79.
48
Idem, pp. 94.
49
Idem, pp. 94; sublinhado do texto.
50
Idem, pp. 94.
154
JOSÉ REIS SANTOS
são facilmente identificadas algumas influências marxistas, comunitaristas e mesmo
comunistas, apesar de Afonso Costa esclarecer que «o que o colectivismo integral difere do comunismo», pois «este põe em comum as forças produtivas e os
produtos, e é o Estado que se encarrega de gerir tudo, ao passo que naquele [no
comunitarismo integral], somente se colocam sob a tutela do estado as forças produtivas (…)»51.
No campo moral entendia-se que «o socialismo, com a abolição da propriedade individual e do capital, dá um golpe decisivo no egoísmo e interesses individuais, que
dominam todos os pensamentos dos homens de agora», pretendendo substituir
«esses tão perigosos moveis dos maiores crimes pelo interesse social», e instaurar
«uma sociedade que se fundirá sobre a justiça, e nas forças comuns e alegrias
perfeitas da solidariedade»52; sendo, neste sentido, defendidas a paridade de
géneros, consagração do divórcio e a legitimação jurídica e moral da criança.
No plano político, são requeridas algumas reformas. Assim, «o socialismo
integral estabelecerá (…) as modificações ao parlamentarismo, que mais se
acharem conformes à ciência política moderna e com as exigências da representação equitativa dos diversos órgãos sociais», propondo-se «a divisão da
câmara em Política e Económica». Pretende-se ainda uma «perfeita liberdade de imprensa, de reunião e de associação; a refundição dos códigos, de
modo a simplifica-los; a abolição das congruas e das despesas com os ministros
de qualquer religião, com a separação das Igrejas e do Estado e a substituição
das festas religiosas por festas cívicas de um alto carácter moral; a gratuidade da
justiça». No basto elenco de reformas politicas, clama-se ainda pela «reformas
do sistema de prisões (…); abolição das ordens privilegiadas e da venalidade
dos ofícios (…); substituição dos exércitos permanentes por milícias nacionais
(…); legislação internacional do trabalho (horário de oito horas, proibição do
trabalho para menores de 14 anos, supressão do trabalho nocturno, proibição
de trabalho profissional às mulheres em certos casos, descanso obrigatório de
um dia em cada semana, etc.)»53.
O Socialismo Integral, segundo Malon, concorda então com Berthelot que
51
Idem, pp. 94.
52
Idem, pp. 95.
53
Idem, pp. 96-98.
155
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
«as forças morais são o principal impulsionador dos homens e das nações»,
com Proudhon que «para mudar a constituição de um povo, basta actuar ao
mesmo tempo sobre todo o conjunto e sobre cada uma das partes do corpo
político» e com Hector Denis que «há correlação entre a evolução económica
e a evolução moral». Desta forma, devem – estes socialistas - «em consciência», participar em «todos os combates destinados ao melhoramento das
condições e das relações sociais: reforma familiar, reforma educativa, reivindicações políticas, elaboração filosófica, doçura dos costumes, etc; porque, para eles, a questão contemporânea não
é somente social, é também moral»54. Esta síntese interventiva, contextualiza doutrinariamente algumas áreas reivindicadas pelos republicanos portugueses, que mais
tarde sofrerão intervenção de António Costa: reforma familiar (futuras leis da
família), reforma educativa (demopedia republicana) e reivindicações política
(democracia política).
Bem dentro do seu tempo, o socialismo integral procurava, assim, assumir-se (à semelhança da encíclica Rerum Novarum) como uma terceira via entre a linha
marxista ortodoxa desenvolvida não só no seio da II internacional mas como
um pouco por toda a Europa e a linha anarquista desenvolvida na sequência de
Blanqui, Bakunine e Sorel. Por um lado não partilha da definição de classe de
Marx e por outro não admite a falência do Estado, à boa maneira anarquista.
Num outro sentido, também não comunga das posições demasiado reformistas
que alguns movimentos socialistas vinham desenvolvendo (e que culminarão nas
propostas de Bernstein) nem das paternalistas recomendações papais.
Sintetizando, o Socialismo Integral no aspecto económico mantêm, na
essência, os pressupostos marxistas (apropriação da propriedade individual,
colectivização da produção), deixando para a iniciativa privada a responsabilidade da distribuição. No aspecto moral é óbvia a apropriação de parâmetros
colectivistas (mesmo neo-Rousseaunianos); na família, a ascendência liberal é
notória (primazia do direito individual à vida e à dignidade humana); e na política são evidentes as influências positivistas, por um lado, jacobinas, por outro e
liberais, por fim. Era, em suma um ser híbrido; e não espanta que, por esta cacofonia ideológica, o Socialismo Integral apenas tenha assumido ofício menor na
oficina das ideias, sem nome de rua, ou título de grémio.
No entanto, e temendo a injustiça, importa realçar a pertinência e actualidade
54
Idem, pp. 93; sublinhado nosso.
156
JOSÉ REIS SANTOS
de algumas propostas. Assim, realçamos a atenção que o problema laboral
assume; que a questão da família merece; e que as insistentes reivindicações
políticas patenteiam. Padece, é certo, de algumas incoerências internas e
de alguma falta de corpo ideológico (como já referimos); e menospreza, ao
contrário de algumas ideologias compostas, a vertente prática da obtenção da
hipótese de concretização. Por outras palavras, sem algum mecanismo descrito,
explícito, sobre como levar a bom porto a moção apresentada, como instaurar
um Estado Socialista Integral? Por uma via reformista? Revolucionária?
Bom, a verdade é que em 1910 implanta-se, pela via revolucionária, a
República em Portugal. Apesar de não estarem totalmente satisfeitas as dúvidas
existentes em relação à sua participação nos preparativos ou no eclodir da revolução do 5 de Outubro55, Afonso Costa assume, desde a primeira hora, um
papel importante na condução dos assuntos do novo regime. Assume funções de
Ministro da Justiça e dos Cultos no Governo Provisório, liderado por Pinheiro
Chagas; e é neste período (1910-1911) que publica as leis relativas à separação
do Estado e da Igreja, Lei do Divórcio e Lei da Família; e instaura o Registo
Civil. Neste resumo legislativo daquele que ainda é, hoje, uma referência
ministerial, fica o registo de uma coerência ideológica com algumas das bases
do Socialismo Integral. De facto, relendo A Igreja e a questão social, e especialmente
as suas propostas político-sociais, encontramos, com 15 anos de desfasamento,
as principais linhas políticas dos primeiros ministérios afonsistas: separação do
Estado e da Igreja, necessidade do registo civil (Estado laico), modernização das
relações familiares. Por razões de táctica politica, nunca o Partido Republicano
– ou o seu sucessor Partido Democrático – levará a bom porto as reformas politicas tantas e tantas vezes reivindicadas, nomeadamente as respeitantes ao acesso
ao sufrágio. Desta forma, a República acabou por se encurralar entre a direita
conservadora, ultramontana e reaccionária e a esquerda operária; o que impossibilitou a construção de uma rede alargada de apoio ao novel regime e justifica
(parte) da permanente instabilidade vivida entre 1910 e 1926. Claro que a
leitura desenvolvida por parte da elite do Partido Republicano (e Democrático),
e subscrita por Afonso Costa, para o não alargamento do sufrágio assentava
55
Refira-se, em resumo, que as opiniões da historiografia portuguesa acerca da participação de Afonso Costa na
Revolução de 5 de Outubro de 1910 variam desde a não participação de todo (a este exemplo veja-se Júlia Leitão de
Barros, ob. cit; onde, no capítulo sobre o 5 de Outubro, a presença de Afonso Costa é caracterizada como sendo ‘o
grande ausente’); à possível e provável participação (esta é a posição de Oliveira Marques); e à mais que certa influência
directa (ao nível organizativo ou apenas como colaborador activo) como defende Rui Ramos.
157
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
na verificação do grau de analfabetismo da maioria da população portuguesa
e na falta de cultura cívica generalizada. Neste sentido, a solução preconizada
passaria por uma fase de educação da população para que, uma vez dotada esta
de maior ‘civilidade’ pudesse, então, ter um papel activo na vida politica portuguesa. Mesmo assim, verificamos que Afonso Costa mantém alguma coerência
nas suas ideias e disposições intelectuais e ideológicas, nunca abandonando a
intervenção no campo da acção social.
Conclusões
Afonso Costa foi, sem dúvida, um Homem de convicções e um Homem do
seu tempo; um homem fin de siécle que, preocupado com o mundo que o rodeia, e
que o vê em constante deterioração, procura nele intervir. Nas suas apreciações
joviais da causa da decadência portuguesa (e civilizacional, de certa maneira) cedo
identifica com a Monarquia, em geral, e com a casa de Bragança, em particular,
as principais origens de tal melanoma; diagnóstico ao qual junta rapidamente
uma cura: acção, luta, revolução. Não se definiria (nos seus anos de Coimbra)
como um pensador; tinha, aliás, algum desdém daqueles que só pensavam, que
só reflectiam e debatiam. Procurava, antes, demarcar-se da tradicional apatia e
inépcia que rodeava aqueles que se prostravam anti-sistémicos, republicanos e
‘progressistas’. Batalhando pelo acto, Afonso Costa, produto da geração de 90
e da melhor linhagem e casta republicana, mas de vintage própria, apresenta-nos
todavia, no campo das ideias, uma grande obra: A Igreja e a questão social. Não cremos
que seja uma obra de um pensador genial ou produto original de um ideólogo
novecentista; mas serve para matricular um conjunto de reflexões informadas
que possibilitaram que Portugal se registasse no Hotel da contemporaneidade
doutrinária europeia e marcasse para si um pequeno quarto nos andares térreos
da intelectualidade do velho continente.
Ao demonstrar o interesse temático, a actualidade intelectual e a destreza
deíctica patenteada em A Igreja e a questão social, Afonso Costa ajuda a destruir o mito
do isolacionismo intelectual tão veemente perpetuado no imaginário português; procurando elaborar uma mescla de nacionalismo luso e de humanidade
federal e planetária. Não seria um ideólogo ou um grande filósofo, mas certamente um intelectual, um pensador e um doutrinador, com uma coerência
quase linear com ideias expostas nos seus verdes anos universitários. Adoptando
158
JOSÉ REIS SANTOS
o socialismo integral de Benôit Malon, Afonso Costa cedo nos preveniu das suas
intenções. Esta terceira via, que dentro do socialismo se demarcava do marxismo
puro e do sindicalismo revolucionário, procurava conciliar uma visão marxista
da economia com preocupações sociais quase liberais; ou, como refere o autor
«para a filosofia, uma concepção moral que se harmonizasse com as descobertas cientificas e necessidades éticas do século, - para a economia política,
um sistema de produção, repartição e circulação das riquezas, que garanta
a cada um a subsistência (…) - e para a política uma federação planetária
formada sobre sucessivas e cada vez mais largas federações de povos, raças,
grandes regiões e continentes, tendo por base única a República Social»56.
Ou seja, na filosofia: o positivismo; na economia: o socialismo integral de
Malon; na política: a República Social.
Na sua prática política procurará seguir algumas das premissas apontadas
pelo communard francês, descartando-se das questões económicas (e mesmo das
políticas) em prol das preocupações sociais. Neste sentido, e ainda durante o
período da Monarquia Constitucional, concentrava o seu discurso e actuação
públicas no ataque à casa de Bragança, e em torno da defesa dos direitos dos
mais desfavorecidos (como advogado), na doutrinação (dentro dos mecanismos
criados pelo Partido Republicano), e na criação de condições para que a inevitabilidade da República se tornasse evidente, apostando simultaneamente na luta
sistémica e no apelo à revolução e à ruptura.
No mesmo sentido, Afonso Costa defendia do socialismo integral as suas
características híbridas e a sua adaptabilidade política e institucional. Assim, não
espanta que concilie a participação nas instituições criadas pelo sistema político
que tanto abominava57 com um apelo constante à acção directa58. A verdade é
que Malon não especificara, na sua proposta, a via a tomar para o poder. Ao
contrário de outras ideologias, totalitárias, o socialismo integral não previra que
trilho traçar para alcançar os seus propósitos: se um caminho revolucionário
se um reformista, e, com tais parâmetros, Afonso Costa não sentiu dificuldade
56
Afonso Costa, A Igreja e a Questão Social, ob. cit, pp. 14 (nota de rodapé); sublinhado nosso.
57
O parlamentarismo monárquico da Monarquia Constitucional.
58
Nas suas intervenções parlamentares, nas suas dúbias convivências com grupos secretos armados e revolucionários,
nas suas incursões activas em processos pré-revolucionários.
159
AFONSO COSTA E O SOCIALISMO INTEGRAL
em acariciar ambas as soluções. No mesmo sentido, Afonso Costa nunca
procurou implementar as propostas federalistas de Benoit Malon; sendo que,
em plena constituinte, e enquanto outros defendiam tais propósitos, a decisão
por um Estado unitário prevaleceu e vingou. Também no plano político, os
argumentos em relação ao alargamento das capacidades cívicas antes defendidos
(voto universal) cederam perante necessidades estratégicas relacionadas com a
sustentação do regime republicano, erguido a partir de 1910. Neste tópico, e
sem detectarmos mágoa, Afonso Costa evoluiu na direcção de muitos dos seus
correligionários, justificando o atraso cívico do povo português para a nega
empregue aos que eram discriminados politicamente e continuaram a sê-lo. Em
vez de confiar no povo, os republicanos (e Afonso Costa) sentiram a necessidade
de serem criadas as condições necessárias para que este se pudesse assumir como
politicamente activo; seria essencial educá-lo, primeiro, e reconhecer-lhe
direitos políticos, depois.
Na economia, como na política, Afonso Costa distancia-se do postulado
‘Malonista’; ideias de uma colectivização económica, de um papel estatal agregador do sector económico não figuravam nos seus desassossegos primários,
afastando-se definitivamente, de qualquer intuito marxista aplicado ao caso
português. Ou seja, dos apostolados do Socialismo Integral, Afonso Costa
seguiria a proposta social, modificaria a política e abandonaria a económica.
No entanto, a República Social, tantas vezes anunciada a apregoada, ficaria por
cumprir. Até hoje...
160
Bernardino Machado visto por Luís Morote
António Ventura
N
os anos que antecederam a proclamação da República, a situação política portuguesa era seguida no estrangeiro, surgindo
na imprensa internacional referências mais ou menos detalhadas, consoante a ocorrência de eventos mais ou menos
relevantes ou até sensacionais. Numa Europa que foi fértil, nesses anos iniciais
do século XX, em actos violentos como atentados, movimentos sociais, revoluções e até guerras, Portugal só podia ser notícia pela ocorrência de qualquer
coisa de extraordinário como foi o Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908. Nos
anos que antecederam a proclamação da República e nos primeiros anos do
novo regime foram publicados alguns livros de autores estrangeiros, quase
todos jornalistas que se deslocaram a Portugal como correspondentes. Foi o
caso do livro Delle Monarchia alla Republica – Lettere Portoghesi, publicado em Milão
em 1910, da autoria do deputado italiano Romolo Murri. Natural de Ascoli,
onde nasceu em 1870, Murri foi ordenado sacerdote em 1893. Fez parte do
movimento católico democrático, fundando a Liga Nacional Democrática e
as revistas Vita Nuova e Cultura Sociale. Em 1906 o movimento foi proibido por
Pio X, o que suscitou a indignação de Murri que escreveu diversos artigos
contra tal decisão, acabando por ser excomungado. Abandonou então a
vida sacerdotal contraindo matrimónio em 1910. Dedicou-se à política e
foi eleito como deputado liberal. Reconciliou-se mais tarde com a Igreja
e morreu em Roma em 1944, tornando-se então uma figura de referência
para a Democracia Cristã italiana.
Romolo Murri esteve em Portugal numa curta viagem em vésperas da
proclamação da República, mais exactamente entre 6 e 13 de Setembro de
1910. No seu livro analisa a situação portuguesa antes e depois da mudança
de regime. Quando entrou em Portugal trazia cartas de recomendação
para alguns dirigentes republicanos portugueses: Bernardino Machado,
Afonso Costa, um coronel do Estado Maior não identificado e um antigo
deputado franquista, cujo nome também não revela.
161
BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE
Outro livro interessante, La Republique Portugaise1, publicado em 1914, foi escrito
por Phileas Lebesgue, o conhecido lusitanista francês, tão ligado a Portugal e com
um reconhecimento tão profundo da nossa cultura e da nossa realidade. Divide-se em três partes: «O Sentimento Nacional», onde trata do papel de Portugal
no Mundo e da sua acção no contexto da civilização moderna: «Os Obreiros do
mundo moderno», sobre a escola de Coimbra e os seus mais notáveis representantes intelectuais; na terceira e última parte, «A República viva», aborda a
proclamação do novo regime e a sua obra de reconstrução nacional, que Lebesgue
considera um verdadeiro renascimento, fundamental para o futuro de Portugal.
Esta curiosidade internacional por Portugal manteve-se depois do 28 de
Maio de 1926, como prova o livro de George Guyomard La Dictadure Militaire au
Portugal, Impressions d’un Français de Retour de Lisbonne, publicado em 1927.
De entre os vários países europeus, era natural que a Espanha, dada a sua
vizinhança, seguisse com maior atenção o evoluir da política lusa, e que por
isso mesmo ali se publicassem algumas obras de referência. São essas obras
que vamos analisar de forma sumária.
A Ilustração Portuguesa de 5 de Agosto de 19072 publicava a reportagem fotográfica de uma homenagem a Bernardino Machado, com clichés Bobonne e Benoliel.
Ali encontramos fotografias dele, de sua mulher com o filho António Luís, de
grupos de alunos da Escola Oficina nº 1 e da Sociedade Promotora de Creches,
de alunas do Centro Eleitoral Castelo Branco, que o foram saudar a sua casa.
Outras, mostram republicanos que participaram na homenagem, isoladamente
ou em grupo: Alexandre Braga, o decano José de Sousa Larcher, António José de
Almeida, José de Castro, e até o Conselheiro José de Alpoim, dissidente progressista. Também surge um jornalista espanhol, Luís Morote, do Heraldo de Madrid.
O jornalista espanhol Luís Morote esteve em Portugal em plena ditadura franquista e escreveu o livro De la Dictadura a la República (La Vida politica en Portugal)3. Embora
não apresente data de edição, a referência ao Regicídio que aparece no final, como
tendo ocorrido nesse preciso momento, permite-nos datá-lo do início de 1908.
Luís Morote y Greus foi um jornalista e escritor espanhol com vasta obra,
muito conhecido em Espanha e na América. Nasceu em Valência, em 1862, e
1
Phileas Lebesgue, La République Portugaise, Paris, Bibliothèque Internationale d’Édition, s.d. [1914], 391.
2
«Homenagem a Bernardino Machado», A Ilustração Portuguesa de 5 de Agosto de 1907, pp. 161 a 163.
3
Luís Morote, De la Dictadura a la República, Madrid-Valência, F. Sempere y Compañía, Editores, s.d.
162
ANTÓNIO VENTURA
morreu em Madrid em 1913. Dedicou-se ao jornalismo desde muito cedo, ao
mesmo tempo que se formou em Direito na Universidade de Madrid. Estreou-se
em El Mercantil Valenciano, exercendo simultaneamente a advocacia. Correspondente
daquele jornal em Madrid, conseguiu um lugar destacado na redacção de El Liberal,
para onde fez reportagens das primeiras manifestações operárias em Barcelona,
incluindo as do 1º de Maio. Quando ocorreram os graves incidentes em Melilla,
em 1893, foi para aquela praça africana como correspondente convertendo-se,
involuntariamente, em protagonista dos acontecimentos. Encontrava-se no
forte de Cabrerizas quando este foi atacado pelos rebeldes marroquinos, participando de armas na mão na sua defesa e assistindo à morte do general Margallo.
Acompanhou depois a expedição do General Martínez Campos, por proposta
de quem foi agraciado com a Cruz de Carlos III.
Em Setembro de 1896, Luís Morote partiu para Cuba, mais uma vez
como correspondente de El Liberal, para cobrir a campanha das forças
espanholas contra os independentistas cubanos. Conseguiu entrar no
acampamento de um dos chefes rebeldes, Máximo Gómez, escapando
por pouco à execução sob acusação de espionagem. Antes de regressar a
Espanha, passou por Nova Iorque, e entrevistou o Presidente MacKinley.
Uma das especialidades que cultivou e que desenvolveu foi justamente a
entrevista, para o bom êxito da qual muito contribuiu a sua vasta cultura e
a elegância do seu estilo. Em 1899 deixou El Liberal e entrou para a redacção
do Heraldo, devido à sua ligação com Canellejas. Dirigiu depois La Noche
e La Mañana, colaborou em La Publicidad, de Barcelona, La Nación, de Buenos
Aires, e El Mundo, de Havana, entre muitos outros.
Luís Morote foi um liberal com ideias avançadas, abraçando o republicanismo. Eleito deputado às Cortes em 1898, pelo Distrito de Guamajay,
Cuba, e depois em 1905 e 1907, como deputado republicano por Madrid,
manteve uma dura polémica com o ministro da Marinha, sobre a construção de uma nova esquadra, retirando-se então da vida pública, mas por
pouco tempo. Os seus amigos da Gran Canária elegeram-no deputado
por aquela ilha, iniciando então uma viragem que causou alguma surpresa.
Proferiu declarações claramente monárquicas e passou a colaborar com o
partido de Canellejas. Uma das causas pela qual lutou no parlamento foi pela
abolição da pena de morte. Mau grado a mudança política, nunca deixou
de ser considerado e respeitado como jornalista e como escritor. Este livro
163
BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE
de Luís Morote sobre Portugal, escrito numa época em que era republicano,
reveste-se do maior interesse. Trata-se de um olhar crítico sobre a situação
política nacional. Viajou de Salamanca para o Porto, dirigindo-se depois
para Lisboa. Ao longo da obra alude a João Franco - «o ditador louco» - aos
republicanos do Porto - «cidade revolucionária» - a Guerra Junqueiro, - «o
Vitor Hugo português» -, que conhecera em 1904. No campo monárquico,
alude à morte de Dias Ferreira e de Hintze Ribeiro, à dissidência progressista,
entrevista José Maria de Alpoim, e comenta a nova liderança regeneradora de
Júlio de Vilhena. Também entrevistou Augusto Fuschini, como exemplo de
um monárquico independente. Morote não esquece outros temas candentes
como a lei de imprensa – lei das rolhas – a questão académica, a propósito da greve de 1907, ouvindo Brito Camacho, caracteriza sumariamente a
imprensa em Lisboa e Porto, e realça o significado da célebre entrevista de D.
Carlos ao Le Temps. Quanto às eleições marcadas, prevê que serão uma espécie
de «Aljubarrota monárquica». Teófilo Braga é entrevistado a propósito da
ideia de uma federação latina e uma nota final, já escrita depois de o livro estar
quase concluído, dá notícia do regicídio, intitulando-a significativamente
de «tragédia final». Um dos capítulos mais interessantes deste livro é dedicado a Bernardino Machado, que o autor já conhecia, sublinhando mesmo
a «grande amizade» existente entre ambos. O título do capítulo é revelador:
«Hablando com Machado. El futuro presidente»4. Morote não podia ser
mais elogioso, desafiando o mais implacável inimigo dos republicanos a dizer
mal de Bernardino Machado, em Lisboa, Porto ou Coimbra, e a sair vivo de
tal experiência: «seguramente se sairia mal, sendo objecto de um verdadeiro
linchamento, porque os portugueses tem pelo ilustre professor um intenso e
sincero culto»5. Depois de ter saído do governo em 1893, Bernardino dedicou-se à sua cátedra de Antropologia na Universidade de Coimbra, «trabalhou
como ninguém nos problemas do ensino», e o seu pensamento político
evoluiu, classificando Morote essa mudança de «verdadeira revolução». Só
voltou à política activa em 1903, declarando-se republicano, entrando nas
fileiras do Partido Republicano como um simples soldado da Democracia, sem
fazer valer o seu passado. Essa adesão foi bem recebida, como não podia deixar
4
Luís Morote, De La Dictadura á la Republica, Valencia/Madrid, F. Sempere y Compañía, s.d. [1908], pp. 142 a 167.
5
Idem op. cit., p. 142.
164
ANTÓNIO VENTURA
de ser: «não é todos os dias que uma personalidade eminente da Monarquia,
e que para além disso tinha governado, foi ministro, se passa com armas e
bagagens para o campo da oposição»6. Elogiou o ter renunciado a um papel
destacado no Partido Republicano, apostando nos jovens que começavam a
dar nas vistas, e que surgiam como candidatos a deputados. A greve académica
de 1907 não foi esquecida, e muito menos a posição corajosa que Bernardino
Machado então adoptou, fazendo causa comum com os estudantes: «direi
que neste momento Bernardino Machado está fora da sua cátedra e fora da
Universidade. Conhecendo o seu amor ao professorado, ao qual consagrou
toda a sua vida, compreender-se-á a violência, a amargura, a profunda pena
que lhe terá produzido demitir-se da sua cátedra»7.
Para Luís Morote, a vida de Bernardino Machado foi uma sucessão de sacrifícios – da sua carreira política, ao perder a posição destacada que alcançara na
Monarquia; sacrifício ao renunciar a ser eleito; sacrifício da sua cátedra. E o
jornalista espanhol descreve uma experiência inesquecível: passear pelas ruas
de Lisboa acompanhado por Bernardino Machado: «equivale a ir em constante triunfo e apoteose. Todos se descobrem à sua passagem, todos disputam
a honra de lhe apertar a mão»8.
A prova do reconhecimento popular de que Bernardino era alvo, Luís Morote
recolheu-a quando caminhavam pelo Bairro Alto em direcção à redacção do
diário Vanguarda, de Magalhães Lima. Um homem do povo, avistando-o, aproximou-se, dirigiu-se a ele exclamando – «Oh! Senhor Conselheiro!» – e,
mostrando uma garrafa de vinho do Porto, em cujo rótulo se via o retrato de
Bernardino Machado, insistia para que todos provassem o precioso néctar...
Perante as manifestações de respeito, admiração e carinho que por todo
o lado testemunhou, Luís Morote não tinha dúvidas de que todos reconheciam em Bernardino o futuro Presidente da República Portuguesa.
O povo acostumou-se a ver nele o Chefe do Estado, por amor e não por
ódio, como se fosse eleito por um plebiscito nacional. Nem nas épocas de
maior fé monárquica, quando os reis ainda eram aplaudidos e vitoriados
pelo povo, conseguira algum monarca português tais entusiasmos populares.
6
Idem, p. 144.
7
Idem, p. 145.
8
Idem, p. 146
165
BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE
Seria até possível que alguém o saudasse como se saudava um rei. E Morote
explicava que, em boa verdade, em Portugal, o trono estava vago de facto
embora não de direito. No seu lugar, o povo colocara alguém digno de ser
rei, um magistrado, um grande patriota, Bernardino Machado. Mas também
realçava a sua moderação, comentando que, sem ele, muitos dos que então
mandavam e triunfavam, não teriam a cabeça sobre os ombros. Bernardino
Machado, antes de ser republicano, era um homem. Para ele, sem dúvida,
podia aplicar-se o epíteto de «santo da humanidade», que nos faz lembrar o
célebre e polémico quadro pintado por António Baeta em 1907, exibido nos
Armazéns Grandela, hoje no Museu Bernardino Machado de Famalicão, no
qual Bernardino está representado ao lado de Jesus Cristo.
Luís Morote prossegue com o elogio de Bernardino Machado, a quem
chama profeta, exaltando a sua formação moral tolerante com toda a gente,
mas intransigente no plano dos princípios: «nunca sai dos seus lábios a
menor injúria, nem se deixa arrebatar pelo mais pequeno movimento
passional. Sempre o vi sereno, imparcial, cumprindo as suas obrigações
como as cumpriria um cristão dos primeiros séculos»9.
Nessa época, Bernardino Machado deu uma entrevista ao enviado especial do jornal Le Matin. Morote transcreve esse longo texto que fixa de modo
exemplar o pensamento do político republicano em vésperas do Regicídio.
A primeira pergunta que lhe foi colocada incidia sobre a importância da
liberdade como condição para a felicidade do povo português. A resposta foi
uma longa digressão sobra a liberdade como factor de desenvolvimento pleno
do ser humano: «Sem liberdade política não há propriamente filosofia,
ciência, progresso intelectual». E apontava como exemplo um conjunto diversificado de países, Monarquias e Repúblicas, onde a liberdade era respeitada
e cultivada: a Suíça, tão dividida, alcançou a tranquilidade «graças ao entranhado culto da liberdade»; a França, que cada vez avançava mais na senda das
reformas sociais e democráticas; pequenas nações como a Bélgica e a Holanda
podiam conservar a sua independência e até as suas colónias, se respeitassem
a liberdade. Até a Inglaterra, que perdeu as colónias da América do Norte,
pacificou pela liberdade o Canadá sublevado, foi pacificando a Irlanda com a
liberdade religiosa, económica e política, e na África do Sul, onde travara uma
9
Idem, p. 147.
166
ANTÓNIO VENTURA
sangrenta guerra há poucos anos, mesmo ali, concedeu um governo representativo ao Transvaal.
Em Portugal, a situação era bem diferente. No passado, o poder uniu-se
estreitamente às Cortes e aos municípios na luta contra o clericalismo e contra
o feudalismo. Tudo mudou com o fim das Cortes e o enfraquecimento do
municipalismo. Como exemplo apontava o governo de Pombal, que combateu
o despotismo clerical e senhorial, promovendo ainda uma profunda reforma
do ensino que preparou um futuro de liberdade. O grande problema daquele
governo é que não emanava da soberania popular mas sim do poder real. A
revolução de 1820 veio trazer de novo esperança aos portugueses, dando início
a um processo que conheceu avanços e recuos. Segundo Bernardino Machado,
o mais notável período de liberdade e de desenvolvimento que Portugal
conheceu foi entre 1851 e 1885, porque correspondeu a uma ampliação da
liberdade com os dois actos adicionais à Carta Constitucional, de 1852 e de
1885. Com eles deu-se representação às minorias na Câmara dos Deputados,
introduziu-se o elemento electivo na Câmara dos Pares, descentralizou-se a
administração, ampliou-se a liberdade de imprensa, decretou-se o registo
civil, aboliu-se a escravidão nas colónias, acabou-se com a pena de morte.
Como momentos negativos nesse quadro liberal, assinalava os períodos
miguelista, cabralista e agora, o franquista.
Bernardino Machado dava um maior relevo a João Franco e à sua acção
nefasta, por uma questão de oportunidade. Enquanto o cabralismo era uma
referência histórica e o miguelismo apenas subsistia como reminiscência
arqueológica no panorama político português, João Franco governava naquele
momento e governava em ditadura. Não era inimigo apenas dos republicanos,
era o adversário implacável da liberdade: «politicamente destruiu os actos
adicionais de 1852 e de 1885, fazendo-nos retroceder até à Constituição de
1826; atacou o princípio electivo na Câmara dos Deputados e no município,
no distrito, na paróquia; suspendeu o Parlamento; extinguiu concelhos;
dissolveu as associações populares, suprimindo as responsabilidades das
autoridades públicas; promulgou a lei celerada de 13 de Fevereiro»10.
Mas, se João Franco era o principal responsável pela grave situação nacional,
os partidos monárquicos também não estavam isentos da sua quota-parte de
10
Luís Morote, op. cit., p. 151.
167
BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE
uma culpa que se estendia ao próprio regime: «a Monarquia, depois de ter
anulado os homens, anulou os próprios partidos»11.
Apontava, como excepções, alguns políticos monárquicos que ousaram desafiar o sistema e as suas regras, como José Maria de Alpoim, Emídio Navarro e
Mariano de Carvalho. Para a Monarquia, o talento era um crime, conduzindo
inevitavelmente à marginalização de valores como Serpa Pinto, Capelo, Ivens,
António Cândido... «uns suicidaram-se, como Mouzinho de Albuquerque,
que com a sua espada tinha conquistado Moçambique; outros morreram de
tédio e de pena, em resultado da ingratidão, como Oliveira Martins»12.
Para Bernardino Machado, o franquismo era incompatível com a Monarquia
liberal, o Franquismo jamais poderia ser liberal, porque isso colidia com a sua
própria essência. Ao Partido Republicano não restava outro caminho senão lutar
contra João Franco e tudo o que ele representava, mas os limites dessa luta estavam,
em seu entender, bem definidos: «temos feito propaganda, mas não conspirações nem revoltas»13. Bernardino recusava, desta forma, as responsabilidades do
Partido Republicano nos tumultos que ocorreram em Alcântara. Mas, mesmo que
neles tivessem participado republicanos, isso era apenas o reflexo de um sentimento
de repúdio generalizado entre a população pelo Presidente do Conselho. Estas
declarações de Bernardino Machado são curiosas. Ele recusava, liminarmente, a
via revolucionária para o derrube da Monarquia: «O Partido Republicano tem
dado sobejas provas do seu sentido de ordem em todas as suas campanhas, em
todos os seus actos. Nos últimos tempos deixou de ser um partido de complot e de
revolta sistemática, para ser um partido de propaganda e de governo»14.
Sabemos que naquela época a via revolucionária ganhava cada vez mais
adeptos nas fileiras republicanas e que a Carbonária crescia, criando novas
estruturas dentro do Exército e da Armada. Nessa perspectiva, como se
explicam as declarações de Bernardino? Podem muito bem ter sido declarações tácticas, intencionalmente moderadas, dirigidas a um jornal estrangeiro
e, por isso mesmo, com o objectivo de credibilizar externamente o Partido
11
Idem, p. 152.
12
Idem, p. 153.
13
Idem, p. 158.
14
Idem, Ibidem.
168
ANTÓNIO VENTURA
Republicano. Se muitos republicanos não estavam de acordo com as palavras
do seu prestigiado correligionário, onde todos seguramente convergiam era
na afirmação de que o Partido Republicano era um partido de governo.
Bernardino analisou em detalhe o recente conflito académico de Coimbra,
criticando duramente a posição do Chefe do Governo.
Quanto ao futuro, considerava que era favorável ao Partido Republicano,
que via alargar-se quotidianamente a base social de apoio, especificando tal
crescimento: «nós vamos crescendo, crescendo sem parar. Temos connosco
todos os intelectuais que pretendem que a razão e a consciência pública, e
não o arbítrio, governem. Temos connosco a grande maioria, a massa de
industriais e de comerciantes de que se compõem os grandes centros populacionais, principalmente em Lisboa e no Porto, cidades bem republicanas
(...). Temos connosco um número cada vez maior de proprietários rurais
que vêm para a República (...). Temos connosco todos os homens de religião, os que seguem e professam uma religião natural, de honra, e os que
seguem qualquer religião revelada, mas que não podem dar o seu apoio a
um regime cujos governantes renegam da sua palavra (...). Temos connosco
o exército liberal, que sente na sua alma as penas da Pátria, contemplando a
dissolução da sua organização (...). Temos, enfim, todas as forças actuais da
sociedade portuguesa, e também as forças históricas da Nação»15.
Para Bernardino Machado a República não devia ser uma ruptura dramática, mas sim a continuação de uma tradição histórica interrompida:
«Somos os continuadores da obra de engrandecimento nacional frente
à obra de engrandecimento do poder real. Somos os herdeiros dos grandes
liberais da época gloriosa do constitucionalismo português»16.
Como apontamento final, Bernardino enumerava os objectivos do
Partido Republicano nos planos político, económico e religioso:
– Que todos possam intervir livremente no governo da Nação através do
sufrágio universal, pela proporcionalidade eleitoral, pela eleição dos representantes locais e nacionais. Só terminando com todas as ditaduras a opinião
pública poderá governar, com imprensa livre, tribuna livre e cátedra livre.
– Os pobres não devem contribuir para os ricos, mas sim o contrário,
15
Luís Morote, op. cit., 163 e 164.
16
Idem, p. 165.
169
BERNARDINO MACHADO VISTO POR LUÍS MOROTE
suprimindo-se os impostos de consumo, incluindo o de arrendamento de
casas, bem como o imposto de transmissão. Protecção aos mais pobres nos
acidentes de trabalho, na doença, invalidez e velhice, e estabelecimento de
legislação sobre o contrato colectivo de trabalho.
– Liberdade religiosa de culto, não sendo permitido a nenhuma instituição
a invasão da esfera civil e política, «respeitando escrupulosamente em todas
as suas justas prerrogativas as Igrejas e especialmente a Igreja Católica, que foi
dos nossos pais e que ainda hoje é a de quase todas as nossas mulheres»17.
No plano internacional, Bernardino Machado defendia que Portugal
devia alinhar com o bloco das nações liberais, citando a Inglaterra, a França e
a Espanha. Mas para que o nosso país entrasse nesse bloco teria que ser antes
proclamada a República, condição imprescindível para um bom relacionamento com as outras potências, nomeadamente com a Espanha, com a qual
compartilhamos a «grata missão de nos amarmos e conhecermos»18. Com a
Inglaterra, seria loucura aliarmo-nos com ela enquanto existisse Monarquia
em Portugal: «é impossível casar a tirania com a liberdade, a ditadura portuguesa com o Habeas Corpus e o self-government. De forma que, para ser fecunda a
aliança com a Inglaterra, Portugal tem que viver em República»19. Se assim
não fosse, poderíamos ficar destinados a ser um protectorado, uma espécie
de novo Egipto.
Luís Morote alude no seu livro a outros políticos monárquicos e republicanos – Augusto Fuschini, José Luciano, Júlio de Vilhena, João de Meneses,
Teófilo Braga... – mas a nenhum é dado o relevo conferido a Bernardino
Machado. Mesmo no plano político, o jornalista espanhol não tem qualquer dívida em escrever que, em Portugal «a República tem um poeta,
Guerra Junqueiro; a República tem um político, Bernardino Machado; a
República tem um filósofo e um historiador, Teófilo Braga»20.
Esta relevância dada a Bernardino tem a sua lógica. A adesão de
Bernardino Machado ao Partido Republicano Português teve um profundo
17
Luís Morote, op. cit., p. 166.
18
Idem, Ibidem.
19
Idem, op. cit., p. 167.
20
Idem, pp. 226 e 227.
170
ANTÓNIO VENTURA
significado em três planos complementares. Foi, em primeiro lugar, o
resultado de um longo processo de reflexão, documentado, aliás, pelo
próprio Bernardino no livro Da Monarquia à República. Essa adesão nada teve
a ver com o fenómeno de adesivagem que alastrou após o 5 de Outubro de
1910, em que o novo regime foi invadido por uma avalancha de oportunistas que procurava assegurar um lugar à mesa do orçamento republicano,
como sucedera com a situação anterior. Bernardino Machado mudou de
trincheira quando ninguém podia prever a vitória republicana, a qual
não passava de um horizonte longínquo, demasiado longínquo, no qual
poucos acreditavam. Nessa perspectiva, vindo de quem veio, foi um acto
de coragem, de quem teve tudo, em termos políticos, e de quem pouco
ou nada esperava, pelo menos no curto prazo. Finalmente, a adesão de
Bernardino Machado ao Partido Republicano Português converteu-se num
factor de credibilização do Partido e também de moderação, condições
essenciais para que o PRP se transformasse em alternativa de poder. Era
necessário convencer a opinião pública nacional, e ainda mais os governos
estrangeiros, de que os republicanos portugueses não eram um grupo de
revolucionários empenhados em tudo destruir, e que apenas pretendiam
a queda da Monarquia. Pelo contrário, queriam substituir um regime
caduco por outro, que julgavam mais justo, constituindo uma verdadeira
alternativa, com valores e competências que podiam tomar nas suas mãos o
governo da Nação.
A filiação de Bernardino Machado no PRP foi um elemento decisivo
na construção dessa imagem, o que foi sublinhado por um conjunto de
autores estrangeiros que estiveram em Portugal a partir de 1907 e logo
depois do 5 de Outubro, e se debruçaram sobre o caso.
A transição processou-se paulatinamente, foi tão suave que monárquicos e republicanos o aplaudiam, pensando ambos os bandos que ele
estava entre eles. Finalmente, a 23 de Julho de 1903, Bernardino Machado
aderiu ao Partido Republicano. E, quando todos esperavam que fizesse
revelações sensacionais, ele que desempenhara cargos de tanta responsabilidade na Monarquia, surpreendentemente, fez uma dissertação sobre
questões económicas, políticas e religiosas...
171
MEMÓRIA
In Memoriam
- Alfredo (Augusto) Margarido (1928-2010)
Fernando Pereira Marques
D
esde o lançamento da Finisterra que o nome de Alfredo Margarido
consta da lista dos seus colaboradores – de início no Conselho
Editorial, depois no Conselho de Redacção. E raro será o
número em que não há um texto seu, entre artigos mais substanciais e muitos “Soltos” (inspirados do “Journal à plusieurs voix” da revista
francesa Esprit), como estes que ainda tínhamos em carteira e que aqui publicamos, enquanto boa ilustração do seu humanismo e visão do mundo. Porque,
Alfredo Margarido, intelectual na acepção mais pura do termo, verdadeiro
espírito renascentista na sua insaciável procura de saber e de questionar, senhor
de uma cultura enciclopédica que não se confundia com a simples erudição,
mantinha ainda aquela atitude do jornalista que também foi (por exemplo
no “Diário Ilustrado”) pelo que, até ao fim e enquanto pôde escrever, ele
ia comentando, analisando, intervindo, reflectindo, sobre os mais diversos
factos da nossa política caseira ou internacional, sobre as pequenas ou as relevantes coisas do quotidiano, sobre os mais díspares temas sociais ou culturais.
Muitas vezes incómodo, algumas quase provocador, sempre inteligente, incisivo, original, nunca cinzento ou neutral.
A actividade que desenvolveu durante a sua vida situar-se-ia em múltiplas
áreas: no jornalismo – já o dissemos - , na tradução (Kafka, Faulkner, Melville,
Alejo Carpentier, Pratolini, só para falarmos da ficção e a título de exemplo),
no ensaísmo (uma precursora biografia de Sartre, outra de Pascoaes, estudos
sobre Fernando Pessoa, só para citarmos estes), na ficção (com, entre outros
títulos, No Fundo deste Canal, ou A Centopeia, inspirados do nouveau roman que introduziu em Portugal e sobre o qual escreveu em conjunto com Artur Portela
Filho), na poesia (uma antologia está há muito para ser publicada na Imprensa
Nacional), nas artes plásticas, na história (dirigiu uma colecção na já desaparecida editora A Regra do Jogo onde deu a conhecer autores como François Furet
ou Daniel Guérin, e escreveu, por exemplo, A Introdução do Marxismo em Portugal sob
a chancela da Guimarães Editores), na sociologia, na antropologia (elaborou,
173
IN MEMORIAM – ALFREDO (AUGUSTO) MARGARIDO (1928-2010)
com a Prof. Isabel Castro Henriques, um original estudo sobre a História das
Plantas no contexto da expansão portuguesa, nas Publicações Alfa).
Mas de entre esta vasta produção, composta de muitos títulos, na sua
maioria esgotados, e grande parte dela ainda necessitando de ser reunida
e sistematizada, dever-se-ão sobretudo, ou ainda, destacar os contributos
fundamentais que deu ao estudo das culturas africanas e, nomeadamente,
das literaturas de expressão portuguesa. Pois África foi uma das suas grandes
paixões que já se manifestara, inclusive, pela forma como, jovem activista
da Casa dos Estudantes do Império, pugnaria pela libertação dos povos das
antigas colónias onde chegou a viver (em Angola e em São Tomé e Príncipe)
e com que mantinha fortes laços afectivos e intelectuais.
Recordemos que foi também companheiro de muitas das principais figuras
da cultura portuguesa do século XX, desde os surrealistas que frequentavam o
célebre Café Gelo, em Lisboa, a outras de gerações mais recentes.
Obrigado ao exílio em França devido às suas actividades antifascistas e anticolonialistas, escreveria em revistas como a já citada Esprit ou na Revue des Annales e marcaria
gerações de estudantes que puderam usufruir dos seus vastos conhecimentos em
universidades francesas, tendo sido investigador na École Pratique des Hautes
Études, depois École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde foi amigo de
nomes como o de Marc Ferro. Refira-se, ainda nesse país, a sua intervenção de
carácter mais propriamente político-ideológica, virada para Portugal, nos Cadernos
de Circunstância (com Manuel Villaverde Cabral, Fernando Medeiros, entre outros)
ou nos Cadernos do Círculo de Reflexão Política (um pequeno grupo de refugiados
animado por José Silva Marques, Luís Matias, Júlio Henriques, só para referir
estes). Após a reinstauração da democracia em 1974, além de multiplicar as suas
participações em colóquios e conferências – em Portugal e no estrangeiro –,
leccionaria no Brasil e em Portugal, incluindo, na fase final da sua carreira, na
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias desde os anos 90.
Muitos dos que fazem a Finisterra perderam um amigo, e a revista, que já ultrapassou os vinte anos de existência, perdeu um colaborador que sempre lhe foi fiel
e que enriquecia as suas páginas. Que outra homenagem lhe poderíamos prestar
senão a de publicar estes textos já escritos com muita dificuldade na sua velha
máquina ruidosa, onde alguns dos caracteres, cansados pelo uso, só deixavam
uma ténue marca no papel obrigando a um aturado trabalho de decifração dos
originais? Alfredo Margarido deixou-nos em 12 de Outubro de 2010.
174
O direito ao sonho
Alfredo Margarido
N
ão ficará certamente mal consagrado, neste número, alguns
parágrafos a um dos elementos mais perturbadores que caracterizam a gestão dos regimes totalitários, sejam eles inspirados
pelas forças armadas, sejam eles o resultado das intolerâncias religiosas: regista-se, em todos eles, o receio da criação artística, ou,
se quisermos dizê-lo de outra maneira, verifica-se um medo quase pânico
face às manifestações do imaginário. É certo que ainda se não inventou uma
polícia dos sonhos, mas há muito que se patinha na fronteira de tal controlo,
na medida em que o sonho ainda permite que os homens consigam evadir-se
das formas de dominação mais brutais.
Os dois grandes momentos do controlo do imaginário foram, na nossa
história recente, do realismo socialista, e os da arte degenerada criada pelo
nazismo alemão. Não será difícil observar que não me preocupo com valores
idênticos, pois o primeiro é criador, isto é, fornece um programa que deve
ser respeitado pelos artistas, ao passo que o segundo se caracteriza apenas pela
destruição ou ocultação da criação literária e plástica da Alemanha e, num
plano muito mais lato, da Europa ocidental com as suas ramificações: as
russas, travadas pelo próprio estalinismo, e as americanas, ainda demasiado
embrionárias.
Trata-se todavia das faces complementares do mesmo monstro: o nazismo
eugenista rejeita com veemência toda e qualquer visão que não respeite a
perfeição ideal dos corpos e das paisagens. Por essa razão, a grande figura
mítica das artes plásticas nazis é certamente o “ceifeiro”, que revela a fecundidade da terra e do trabalho, permitindo que o regime se empape na terra
materna (não deixa de ser curioso verificar que o nosso realismo-socialista
também passou pelo ceifeiro, como se verifica por exemplo na obra de Júlio
Pomar, o mais vigoroso representante português do realismo-socialista, o
nosso neo-realismo).
Os ceifeiros remetem para o campo mítico, mas revelam a relação
175
O DIREITO AO SONHO
fecundadora com a terra que se desdobra nas messes douradas – que já
tinham fornecido o meio trágico em que se suicidou Van Gogh – e no esforço
físico do ceifeiro (que podemos todavia encontrar no cinema soviético, já
industrializado na Linha Geral de Sergeï Eisenstein). Hoje mais do que ontem
sabemos, graças a Martin Heidegger, que o camponês foi durante muito
tempo o próprio modelo da relação do nazismo com a terra, devendo ouvir-se com a atenção necessária, a manifestação do saber veiculado pelos velhos
camponeses (resumo aqui algumas afirmações precoces, nos começos dos
anos trinta, do próprio Heidegger).
Mas este regresso à terra deve fazer-se mantendo a visão ordeira das coisas,
repelindo por isso toda e qualquer interpretação violenta, o que condena
imediatamente alguns impressionistas finais, mas sobretudo todos os pintores
modernos a partir do “fauvismo”. A lista dos quadros e dos artistas degenerados
inclui todos os pintores desse grupo, como se a visão da natureza pusesse em
perigo a própria concepção do mundo. O nazismo mostrou-se impiedoso, e há
alguns anos atrás a reconstituição da exposição consagrada pelo governo nazi à
“arte degenerada” (conceito usado no sentido que lhe deu, no século XIX, o Dr.
Max Nordau, militante sionista extremamente activo), revelou ao mundo e aos
historiadores, a importância dos vazios, das obras que não puderam ser localizadas e que tudo leva a crer foram, também vítimas de um forno crematório
consagrado às produções artísticas dos criadores pouco ortodoxos.
A destruição dos homens encontra por isso um precedente na identificação
das obras de arte que recusavam a norma repressiva, que permitisse que os
museus fossem purgados, recuperando a pureza plástica sonhada pelo antigo
aluno de Belas Artes, Adolf Hitler. Qual o risco corrido pelo regime totalitário? Certamente o mais profundo, na medida em que os artistas rejeitavam
a norma da criação para encarar o mundo de acordo com novas possibilidades
de criação. Fico hoje com a impressão de que os comentadores da vida politica, não conseguiram dar sentido à caça à criação, levada a cabo pelo nazismo,
arrastados pelos concepções então em voga que faziam dos artistas elementos
forçosamente marginais e marginalizados da sociedade. Ora é evidente que o
nazismo, com muita razão, de resto, considera que, a visão perturbadora dos
artistas é incompatível com a “ordem” ideológica prevista nos textos teóricos,
e mais particularmente no Mein Kampf.
Está ainda por fazer o balanço desta intervenção destruidora, que expulsou
176
ALFREDO MARGARIDO
da criação um certo número de criadores: alguns foram deportados, outros
exilaram-se, alguns conseguiram esconder-se na própria Alemanha, mas o
essencial não reside apenas nas pessoas, mas antes na criação de um clima
repressivo, graças ao qual o nazismo pretendeu liquidar para sempre as pulsões
criadores que não coincidiam com a sua norma simultaneamente arcaica e
repressiva. Tudo se passa como se o nazismo quisesse arrancar aos homens o
direito ao sonho, que, infelizmente, não está expressamente previsto na Carta
dos Direitos do Homem. Só aceitamos, com Freud, que o sonho é o lugar
onde o homem consegue resolver alguns dos seus problemas mais traumatizantes, verificamos que ao procurar destruir a própria produção provinda do
imaginário, o nazismo reforçava os seus crimes contra a humanidade.
Começa agora, na Europa, a fazer-se a história da criação artística durante
o período da segunda guerra mundial. Os historiadores franceses põem em
evidência a gravidade da lacuna existente, que contudo não deve surpreender-nos por aí além: o fascismo de Vichy aceitou piamente as regras destruidoras
do nazismo alemão, embora se não tenha registado nenhuma exposição consagrada à arte degenerada. Todavia, uma parte importante dos criadores ou
abandonou a França ou passou os anos de guerra e de ocupação em condições
precárias, não só devido à falta de materiais, mas também face à desaparição de
mercados ou de incentivos. A acção destruidora do nazismo não podia deixar
de se alargar à criação artística, não sendo possível conceber formas que não
coubessem nos manuais de bom comportamento nazista: ora estas regras só
podiam acreditar no fascínio da destruição do Outro.
Dir-se-á que o estalinismo (preferia designá-lo como sendo o que realmente foi, o leninismo-estalinista, com alguns pozinhos de Trotsky, o tão
cruel como necessário dirigente do Exército vermelho) não procura alcançar
os mesmos resultados. E não faltará quem se refira à obra e sobretudo à intervenção política de Lunacharky para procurar absolver o “terrorismo” artístico
do estalinismo, sem o qual será sempre possível compreender as razões que
levaram Victor Maïakovsky ao suicídio. O objectivo é certamente convergente: trata-se de pôr a criação artística e por isso os artistas, ao serviço do
projecto revolucionário. Não me parece indispensável proceder ao inventário
das soluções plásticas existentes, embora convenha assinalar que, mais do que
quaisquer outros, os criadores e os responsáveis políticos soviéticos, compreenderam a importância do cinema como arma de análise e de propaganda.
177
O DIREITO AO SONHO
O mais significativo reside todavia nas regras impostas aos criadores, que
se quiseram inteiramente livres, convencidos de que a revolução só podia
ser servida e apoiada, quando não defendida, por uma libertação total das
forças criadoras tanto da sociedade como do homem. Simplesmente, semelhante liberdade não se podia coadunar com as regras estritas do Partido, que
pretendia sobretudo que a arte servisse o projecto “revolucionário” soviético. Se bem que o realismo socialista só intervenha de maneira dogmática e
teorizada a partir de 1936, a verdade é que já anteriormente, mas sobretudo a
partir da eliminação de Lunacharsky, se impunham regras a que chamaremos
utilitárias, para servir a revolução.
A concepção pesadamente “naturalista” das artes plásticas condenou os
artistas que, alguns anos depois, os nazis classificariam como degenerados: ou
seja, partindo de premissas teóricas algo diferenciadas, os dois regimes totalitários acabam por condenar os mesmos artistas e as mesmas obras, apostando
nas mesmas soluções plásticas que pretendem representar a vida real, e que,
no plano da escultura, multiplicam os monumentos às grandes figuras oficiais
da Revolução, e aos corpos sempre magníficos dos trabalhadores, como não
puderam deixar de fazer os alemães, cujo artista mais oficial foi Arno Becker.
O mais singular reside certamente no carácter quase siamês de uma certa
produção plástica nazi e soviética, embora ainda se tenha de esperar o trabalho
comparatista que não poderá deixar de se registar nos próximos anos.
O peso do realismo socialista fez-se sentir em todo o mundo onde se registava a existência de partidos comunistas. Com a notável excepção da França
que só depois de 1945 acabou por registar um surto literário, mas sobretudo
plástico dominado por essa corrente, teorizada sobretudo por Louis Aragon
(desgraçadamente, no prefácio que redigiu para a edição quase total da reflexão
consagrada por Louis Aragon à criação plástica, Jacques Leennardt não conseguiu compreender a importância da intervenção de Aragon, sobretudo na sua
relação com Fougeron). Os seus efeitos foram reduzidos, mas fizeram sentir-se em certas obras públicas, encomendadas e bem pagas pelos presidentes das
câmaras comunistas, no período que se termina à volta de 1950-1952.
A repressão estalinista não podia deixar de atingir também os criadores,
literários ou plásticos, pelo que se regista uma multiplicação das formas mais
arcaicas da representação do mundo, entendido este na sua articulação: a do
quotidiano pragmático, e a da imaginação sem fronteiras. O arame farpado
178
ALFREDO MARGARIDO
da repressão desmantelou os esforços que a primeira fase do poder revolucionário permitira para criar uma arte autenticamente revolucionária. Mas podia
compreender-se a lição; a criação repele sempre a ordem excessiva. Se não
pode haver criação sem uma determinada ordem, a verdade também é que o
excesso de ordem está sempre destinado a esterilizar os esforços dos criadores.
Fiz, mais atrás, uma referência às formas religiosas totalitárias, que se
empenham na destruição das criações dos criadores que não respeitem a ortodoxia. Podíamos, é claro, recorrer ao nosso exemplo doméstico da Inquisição
que não hesitou em censurar e até em prender os criadores, até muito tarde:
não foi o próprio Manuel Maria Barbosa du Bocage preso já nos anos finais
do século XVIII, em nome da norma do acompanhamento, mas sobretudo
porque ousara injectar nos seu poemas uma fracção da luz revolucionária
que a França irradiou pela Europa a partir de 1789? Mas se não quisermos
recorrer a tal exemplo doméstico, podemos referir a situação sempre
precária de Salman Rushdie que continua ameaçado pela “Fatwa” iraniana.
Se as autoridades políticas iranianas declaram que suspenderam essa decisão,
esquecem-se contudo de dizer que, tratando-se de uma condenação religiosa,
ela não pode ser realmente suspensa.
Que nos diz esta situação? Confirma o que já aprendêramos, ou seja que
os regimes totalitários receiam acima de tudo os resultados da criação, que
sendo sempre um acto individual, não pode deixar de implicar a sociedade no
seu todo. Não foi Ferdinand de Saussure que se lembrou que na língua estão
sempre presentes os elementos que representam os “costumes”? Escrever
numa determinada língua, para descrever as situações sociais, implica forçosamente a análise dessas situações, tal como exige a emergência de soluções.
Os criadores perturbam o conformismo e são por isso, quando são capazes
de concentrar as pulsões próprias e colectivas, as forças que denunciam o que
não pode ser aceite. O criador é sempre um agente crítico, mesmo quando
aparentemente o não sabe.
Não será esse o caso de Salman Rushdie, que se limita a descrever com
a terrível força do imaginário, as condições em que vivem os crentes e os
não crentes em sociedade que lhes não pertenciam originariamente e que
impõem as suas regras terríveis? Não pretendo proceder aqui a uma leitura da
obra romanesca de Rushdie, que me parece contar entre as mais importantes
produzidas pelos autores que se exprimem em inglês pois o meu objectivo é
179
O DIREITO AO SONHO
mais limitado: salientar a inevitabilidade do choque entre os criadores e as
soluções políticas totalitárias. O que nos permite proclamar a necessidade de
reforçar a importância do direito ao sonho, como elemento indispensável
à própria criação artística. Não há mil e uma noites que não dependam do
sonho: como se o homem só pudesse alcançar a sua própria totalidade, graças
ao sonho que tudo permite transformar. O sonho e as suas metamorfoses que
não podem deixar de denunciar a rigidez do existente.
180
Memória e Futuro
dos Campos de Concentração
Alfredo Margarido
A
socialização dos homens tem sido caracterizada no Ocidente
cristão pela multiplicação de instrumentos violentos, como
mostra a simples etimologia de trabalho que, nas línguas neolatinas, deriva de tripalium, um instrumento de contenção utilizado
para domesticar os quadrúpedes. E sabemos, graças a Hesíodo – ver Os trabalhos
e os dias – que ainda entre os gregos o lavrador devia mostrar-se prudente com
os bois jovens, pois podiam não estar ainda suficientemente domesticados.
Ora Platão diz-nos alguma coisa muito significativa neste plano: o treino
para caçar os grandes animais, isto é os mamíferos como o urso ou o javali,
também serve para caçar homens. Esta animalização dos homens a que
procede Platão põe sobretudo em evidência a existência de um laço íntimo
e constante entre todos os mamíferos, cuja domesticação exigiu os currais,
isto é, a concentração dos animais impedidos de deslocações erráticas pela
natureza fora.
Há já muitos anos tive, como todos os amadores de cinema, a surpresa de
descobrir, num western-spaghetti de Sérgio Leone, os campos de concentração
criados durante a guerra de Secessão. É certo que Leone mandara organizar
investigações cuidadas, que já tinham trazido para o ecrã os guardas-pó dos
cowboys que se vestiam como os merceeiros até muito tarde. O importante era
poupar o fatinho, devendo despir-se o guarda-pó para assegurar o carácter já
burguês da existência dos vaqueiros.
Ora os filmes de Leone propuseram também analisar por dentro a imensa
concentração de homens quase sempre jovens, muitas vezes feridos, esperando o desenrolar das operações e visando sempre, como acontece em todas
as prisões, a fuga e o eventual regresso ao combate. A violência desses campos
de concentração não surpreendia: afinal a Europa fora capaz de permitir a
organização dos campos de concentração nazis, tal como levara a denunciar o
funcionamento do gulague soviético.
O que me surpreendeu foi o recurso a pequenas orquestras para dissimular
181
MEMÓRIA E FUTURO DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO
os gritos ou os uivos dos prisioneiros torturados, já que tais concentrações
de homens estão destinadas a suscitar a violência, ou destinadas a humilhar
tendo em vista obter informações. E fiquei com uma dúvida, pois já se sabia
então que em alguns campos de concentração instalados na Europa de leste,
como Terezyn, os carrascos alemães tinham organizado excelentes orquestras,
dado o número elevadíssimo de músicos judeus que sofriam e esperavam a
morte e os fornos crematórios.
Esta genealogia dos campos de concentração conheceu um reforço durante
a guerra anglo-boer, que mobilizou a África do Sul, e que acabou pela derrota
militar dos bóeres, que contudo, puderam impor ao país as regras do apartheid que tinham começado a ser aplicadas já à volta de 1840, no Estado do
Natal. E a Inglaterra regozijou-se com a fuga do jovem jornalista Winston
Churchill, assim promovido a agente da derrota dos “camponeses” de boa
cepa neerlandesa.
Estamos agora ameaçados pelo recurso já previsto a novos campos de
concentração, mesmo se o peso da história aconselha a deixar de lado uma
designação tão brutalmente denunciadora, pelo que se recorre a formas mais
delicodoces: campos de trânsito, por exemplo. Na verdade, a situação demográfica europeia preocupa não só os demógrafos, mas mais profundamente os
gestores políticos, pois a redução constante da taxa de reprodução das mulheres
europeias, ou com elas aparentadas, está em via de provocar o despovoamento
de muitas regiões, tendo como resultado uma quebra da própria actividade
produtora. O único remédio que se encontrou reside por isso na importação
de casais jovens, em condições não só de trabalhar, mas de se reproduzir.
Podemos assim dar-nos conta de um paradoxo europeu, pois, por um
lado, regista-se a necessidade urgente de homens e de mulheres capazes
de compensar a redução dos nascimentos, mas, pelo outro lado, repele-se
violentamente a massa dos imigrantes, que não são apenas diferentes, sendo
sobretudo inferiores, carregando consigo todos os defeitos, entre os quais
conta também o facto de muitos adorarem Mafoma. É de resto um dos efeitos
mais preocupantes: o crescimento entre nós, que ao aderir de maneira crescente aos princípios da jihad – a guerra santa – só pode contribuir para a
destabilização do Ocidente, tanto provindo do latim como do cirílico.
O Mediterrâneo, do qual estamos afastados por Gibraltar, tornou-se um
mar das pateras (as chatas) e de outras embarcações, como já se verificara a partir
182
ALFREDO MARGARIDO
de 1945, quando a comunidade judia, ainda incapaz de medir a vera dimensão
do desastre nazi, decidiu instalar-se na Palestina, mau grado a oposição das
tropas inglesas, encarregadas de impedir o desembarque dos judeus salvos dos
campos de concentração. Ainda hoje o conflito entre muçulmanos e judeus
na Palestina conserva as marcas da violência, acirradas pelo peso da Shoa.
Será a Europa veramente incapaz de encontrar uma maneira de normalizar
as relações com os muitos Outros que, empurrados pela miséria frequentemente provocada pelas escolhas repressivas do Ocidente, procuram um
interstício que lhes permita alcançar o Eldorado? E se a “invasão” da Europa
se processa por via marítima, encontramos o seu “ pendant” na fronteira dos
Estados Unidos, onde os chicanos procuram os defeitos da couraça protectora
para se infiltrar no país das notas verdes, com ou sem “green card”.
Se associarmos os campos de concentração ao arame farpado teremos à
nossa disposição as arquitecturas que recusam a dignidade do Outro, considerando-o sempre como na excrescência perigosa, mesmo se o funcionamento
normal de algumas sociedades como a francesa, a inglesa, a alemã, a luxemburguesa, a italiana, e agora a portuguesa e a espanhola, só podem funcionar
de maneira eficaz graças ao trabalho dos imigrantes. Se faltam homens à
Europa, também podemos dar-nos conta, de que lhe faltam ideias e soluções
menos repressivas.
Ou o Ocidente – europeu e americano – se mostra capaz não só de conter
sobretudo erradicar a miséria, um dos alicerces da inferioridade do Outro, ou
chegará o momento em que não será suficiente multiplicar as ratoeiras, isto
é, os campos de retenção, pois – como sublinhava John Steinbeck a propósito
da ocupação alemã na Noruega – , as moscas não podem ocupar o papel pegamoscas! O prazer sádico de rejeitar o Outro, o diferente e por isso o sujo, o
feio, o doente, está condenado a desaparecer, pois quando há necessidade de
trabalhadores para dar ao capital os lucros, quer dizer o poder, que lhe são
indispensáveis, encontram-se as soluções que considerarei inevitáveis.
A aparição e a expansão do famoso dialecto globish – o falso inglês reduzido a 1500
palavras – são a plena confirmação do vigor desta vaga que não liquida as línguas
vernáculas, mas permite uma falsa diglossia por meio do recurso a um dialecto
que todos podemos ouvir nas várias reuniões das instâncias internacionais.
Quando é que os governos e as polícias, fiéis às condições de funcionamento dos campos de concentração, organizarão concertos aos que esperam
183
MEMÓRIA E FUTURO DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO
amargurados a possibilidade de organizar a vida normal urbana que as burguesias começaram a criar já nos começos do século XI? Se foi a burguesia que
pôs em movimento o próprio processo da globalização, a ela cabe a tarefa
indispensável de assegurar não direi a felicidade – e, já agora, porque não?
– mas pelo menos o equilíbrio físico e psíquico dos nossos semelhantes.
184
Os Malefícios do Luso-Tropicalismo
Alfredo Margarido
E
stávamos – o colectivo refere-se à comunidade nacional, como
se deve depreender – no direito de esperar que o fim da guerra
colonial – que outros conhecem e designam como sendo a guerra
da independência – nos levasse a considerar os aspectos mais
trágicos da política colonialista adoptada pelo regime fascista, mas aprovada
por milhões de portugueses.
Não aconteceu assim: pôs-se em evidência a importância da descolonização, apresentada não como o resultado do próprio golpe de Estado de 25
de Abril, mas como uma oferenda feita pelos portugueses àqueles que tinham
colonizado, explorado e assassinado. O carrasco manejava em seu proveito os
mecanismos da metamorfose, utilizando as astúcias do poder e recorrendo
aos media para aparecer como o único agente activo do processo.
Pouco importa o facto de se não ter verificado a existência de grandes e
decididos movimentos anticolonialistas. Não que estes não tenham existido,
sobretudo – quando não exclusivamente – entre os mais jovens, que forneceram também as dezenas de milhares de refractários disseminados sobretudo
na Europa democrática. Não sem mal, não sem dificuldades, sobretudo
por não se dispor de nenhum calendário, capaz de permitir saber em que
momento a tortura da guerra acabaria.
Nos dias de hoje, celebram-se algumas figuras e algumas decisões administrativas; a passagem pelo Ministério das Colónias do Prof. Adriano Moreira permite
atribuir a este dirigente político decisões fundamentais, que teriam permitido
uma revisão do sistema, em plena guerra colonial. Muito curiosamente, ninguém
se lembra que o Ministro do Ultramar – que prefiro designar como sendo das
Colónias, para respeitar tanto a lógica como a tradição – era também aquele que,
por inerência, dirigia a Polícia Política que agia nas colónias.
Já alguém perguntou o que fez Sua Excelência, durante o período em
que dirigiu a politica colonial, o que fez para reduzir, ou mesmo eliminar
as malfeitorias da polícia política? Como é possível que os falsos analistas
185
OA MALEFÍCIOS DO LUSO-TROPICALISMO
valorizem um dos aspectos da situação, menospreze inteiramente o outro,
que provocou tantas e tantas vítimas inocentes, que só tinham cometido o feio
pecado de terem nascido em África, em território gerido por portugueses?
Todavia esta exaltação de algumas figuras políticas e de algumas decisões
legislativas, aparece envolvida num tecido policromo onde se confundem falsos
conceitos e muitas pérolas ideológicas, nenhuma das quais isenta de mancha.
Quero – já o adivinharam! – referir-me ao luso-tropicalismo. Foi-lhe recentemente consagrado uma reunião secreta, quando não quase secreta, na
Sociedade de Geografia de Lisboa, tendo entretanto sido publicado em Actas.
O luso-tropicalismo seria assim a grande, a formidável contribuição
teórica do sócio-antropólogo brasileiro Gilbert Freyre – que tão orgulhosamente sublinhava a origem galega dos Freyres – para explicar a legitimidade
das operações coloniais portuguesas, marcadas por uma integração genésica
entre os dois grupos, o que teria permitido o aparecimento e a multiplicação
dos mulatos. Como sublinhou Roger Bastide, a colonização portuguesa teria
recusado a cruz assim como o gládio, para os substituir pelo sexo. Ou como
diz chulamente – o termo pertence-lhe – o Prof. Florestan Fernandes, na
óptica de Freyre, repetido por Bastide, a pica, o sexo masculino, seria uma
arma suficiente.
O sociólogo brasileiro António Cândido, autor de uma análise tão elegante
como eficaz, salienta que esta operação genésica não surtiu o menor efeito,
por não se realizar no centro duro do sistema mas antes na periferia. O que,
de resto, é posto em evidência pela existência da “casa grande”, e da “senzala”.
Os agentes masculinos da primeira podem instalar-se livremente no espaço
feminino da segunda, mas jamais o inverso.
A dominação social é completada pela violência sexual, não pelo mero
assédio sexual, agora felizmente denunciado, mas por formas muito mais
brutais, que têm também como consequência, salientou em tempos Cruz e
Costa, o facto de os homens de cor, africanos ou índios, serem despojados
das suas mulheres. E, acrescento, despojados da sua descendência potencial,
assim recuperada pelos machos da comunidade branca patroa.
Compreende-se que, nestas circunstâncias, a banalização do luso-tropicalismo
tenha sido um mau serviço prestado aos colonizados, embora tenha permitido
“lavrar” os comportamentos violentos, brutais até, adoptados pelos colonos
nas suas relações com os africanos. A banalização desta teoria, confirmando
186
ALFREDO MARGARIDO
o carácter excepcional dos comportamentos adoptados pelos portugueses nas
regiões tropicais, não podia deixar de desvalorizar a maneira como os africanos denunciavam as práticas coloniais.
Não foi difícil, à administração portuguesa, convencer largos estratos
políticos e culturais da legitimidade e da própria indispensabilidade da dominação, na medida em que nela permitia a interpenetração e a interacção dos
dois grupos. Mesmo se ficava de fora toda e qualquer referência à violência
das técnicas utilizadas para assegurar estas formas de assimilação e de integração. Os primeiros, quando não os únicos, a acreditar nas qualidades do
luso-tropicalismo, foram os europeus os seus associados.
Não só esta teoria lhes fornecia uma explicação de carácter genésico, que os
transformava em machos exemplares, que não se deixavam deter pelas simples
características físicas das vítimas – não vejo que outro nome se lhes possa dar
– mas antes extraíam dessas circunstâncias uma sobrevalorização do sexo e do
ego. Quanto mais mulheres de cor na tua cama, mais capacidade genésica
pões em evidência, tal podia ser a lição aforística a extrair da situação.
Ou seja, a teoria não permite a análise das situações existentes, sendo apenas
destinada ao uso privado dos brancos, na medida em que justifica – ou até
impulsiona – a dominação sexual das mulheres não brancas. Podemos ainda
hoje encontrar o eco desse fantasma nas páginas dos anúncios dos jornais onde
se fazem ofertas sexuais: as mulatas, que algumas vezes se dissimulam como sendo
moreninhas, possuem sempre seios generosos e sublinham a sua desinibição.
Para satisfação dos portugueses, pode acrescentar-se que não são os únicos que
continuam a acalentar, nesta retirada para o continente europeu, os fantasmas
sexuais: os jornais espanhóis, sobretudo em Barcelona, consagram um espaço
considerável às ofertas ternamente sexuais, onde as dominicanas e as cubanas,
e ainda mais as havanesas, fornecem um dos contingentes mais solicitados e,
espero, mais bem pagos. Da violência da senzala, passa-se ao comportamento
discreto – soft? – dos apartamentos nas avenidas mais elegantes.
Mas, nesse caso, onde estão os malefícios? Pois precisamente nesta
dissolução da violência histórica, substituída pela relação sexual. Se as vítimas
não podiam acreditar nessa lenda, já os utilizadores estavam sempre dispostos
a fazer das suas actividades sexuais a prova da dupla superioridade: a do país,
a do indivíduo. Estes siameses, satisfeitos com a situação, não podiam ouvir
as queixas das vítimas: esta surdez psicológica foi reforçada pela violência
187
OA MALEFÍCIOS DO LUSO-TROPICALISMO
utilizada sempre que se registava a menor contestação.
Satisfeitos com a situação, os portugueses forneceram as centenas de
milhar de mancebos indispensáveis a tais guerras. Há hoje, entre nós, diz-se,
cerca de 50.000 homens vítimas dos traumatismos psíquicos provocados pela
guerra colonial. Trata-se certamente de um número considerável de pessoas
que devem ser assistidas, tanto mais que, em parte pelo menos, são vítimas
do luso-tropicalismo que permitiu fazer durar a guerra, onde os portugueses
deviam fazer prova da sua excepcional competência colonizadora.
Mas, do outro lado, já alguém se preocupou em estabelecer o inventário das
milhares de vítimas causadas pelas operações coloniais, que envolveram populações
que apenas pretendiam viver em paz, pedindo apenas que lhes fossem reconhecidos
os direitos de se autogerir, sem intervenção do génio luso-tropicalista? O pior,
nestas circunstâncias, é que não pode haver luso-tropicalismo se não houver
indivíduos para civilizar.
Para manter a flama do luso-tropicalismo, foi indispensável a guerra
colonial que permitiu, entre o mais, verificar que os militares portugueses
são excelentes face às derrotas. Não sei se as podemos incluir no quadro do
luso-tropicalismo já que, a partir das campanhas de 1916-1918, as tropas
portuguesas só puderam combater em situações claramente luso-tropicalistas.
Daí que os nossos corajosos combatentes tenham passado a vida a cortar
cabeças aos africanos, para as espetar em paus que deviam ser exibidos como
prova acabada das excelentes relações entre as duas comunidades.
É claro que o luso-tropicalismo está cada vez mais mitificado na medida
em que deve permitir a exaltação dos novos mitos nacionais, que não hesitam
em demonstrar a indispensabilidade dos portugueses na realização das tarefas
africanas. Não falta quem, mesmo nas fileiras dos socialistas, diga e repita que
os portugueses devem ser os interlocutores preferenciais entre Europa e a
Africa, devido ao seu trabalho colonizador que, naturalmente, está amplamente consubstanciado no luso-tropicalismo.
O que já fora um simples delírio no período colonial, pode transformar-se em forma específica de agressão nos dias de hoje, na medida em que o
luso-tropicalismo só pode afirmar a sua elevada qualidade quando se regista a
existência de bons indígenas, quer dizer aqueles que, joelhos em terra, esfolados, esfolam também as mãos nas latentes arenosas, para poder homenagear a
excelência do comportamento dos luso-tropicalistas. Até quando irá durar este
188
ALFREDO MARGARIDO
véu que torna impossíveis as relações entre iguais? Porque, não o esqueçamos,
o luso-tropicalismo sempre constituiu uma arma contra a igualdade que deve
enfim impor-se nas relações entre os diferentes grupos sociais que assumem as
tarefas indispensáveis à superação das sequelas provocadas pelas “guerras”.
Se o governo tivesse coragem, e se o Presidente Sampaio não gerisse as
ordens militares e civis tão mal como o Dr. Mário Soares, já se teria proposto
que fossem retiradas a Gilberto Freyre as condecorações que lhe foram atribuídas. Ou, então, ter-se-ia mantido esta situação, mas justificando a sua
atribuição de outra maneira, sublinhando por exemplo que o sociólogo de
Apipucos permitiu que os portugueses pudessem delirar, considerando-se
– porque Freyre assim o dissera – os únicos homens capazes de actividades
sexuais eficazes nos trópicos.
189
IDEIAS
Do Jovem Socialista ao “Elder Statesman”
- A Relação de Willy Brandt com os EUA
Karsten D. Voight
Nota Biográfica
Herbert Karl Frahm Brandt, conhecido por Willy Brandt, nasceu em Lubeque em
1913 e faleceu perto de Bona em 1992. Jovem socialista radical não se submeteu ao nazismo
tendo-se refugiado na Noruega em cujo exército se bateu durante a Guerra. Posteriormente
aderiu ao SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha), vindo a tornar-se uma das suas
figuras mais destacadas e seu líder. Depois de governar a cidade-Estado de Berlim onde
recebeu John Kennedy, aquando da célebre visita deste último, foi Chanceler da República
Federal da Alemanha de 1969 a 1974. Defensor de uma política de diálogo e de cooperação entre os países desenvolvidos do Norte e menos desenvolvidos do Sul, foi igualmente
um activo partidário da Ostpolitik, ou seja, de uma política de desanuviamento com o Leste
europeu. Em 1971 ser-lhe-ia atribuído o Prémio Nobel da Paz e desde 1976 dirigiria,
durante muitos anos, a Internacional Socialista.
Amigo pessoal de Mário Soares deslocar-se-ia a Portugal para participar em várias
iniciativas do Partido Socialista que sempre apoiou desde a fundação em 1973. A sua última
visita ao nosso país teve lugar em Outubro de 1990 onde, a convite da Fundação Friedrich
Ebert, realizaria na Gulbenkian uma histórica Conferência sobre o tema: “Indissociáveis:
Alemanha e Europa”. Por essa ocasião, o então Presidente da República, Mário Soares,
recebê-lo-ia no Palácio de Belém.
Karsten Vogt, que neste artigo evoca a figura de Willy Brandt, foi Deputado e é um destacado
membro do SPD, especialista em questões de Segurança e de Defesa, temas sobre os quais realizou
recentemente várias conferências no nosso país.
F.P.M
Conheci pessoalmente Willy Brandt em 1969 e ao longo dos anos mantive
com ele conversas relativamente frequentes, bem com algumas discussões,
sobre os Estados Unidos e os seus políticos e políticas. Naturalmente, durante
esse longo período eu nunca me pude ocupar exaustivamente com todos os
aspectos das suas relações com os EUA. Por isso mesmo, a conclusão da edição
completa em dez volumes dos documentos de Willy Brandt, publicada em
Berlim, representa uma ocasião soberana para poder estudar e analisar os textos
191
DO JOVEM SOCIALISTA AO “ELDER STATESMAN”
aí publicados de uma forma mais cuidadosa do que o faria se ela não estivesse
disponível. Além disso, as 564 páginas do trabalho de Judith Michel sobre “A
Imagem e a Política Americanas de Willy Brandt - 1933-1982”1 contribuíram
também, de um modo decisivo, para alargar o meu horizonte e completar – e
em alguns casos isolados também corrigir - as minhas recordações pessoais.
Na introdução do seu livro, Judith Michel escreve que a imagem dos EUA
de Willy Brandt se alterou por várias vezes ao longo dos anos. Isso não é
de espantar. No entanto, há que acrescentar que também os EUA e o seu
papel para a política de Willy Brandt sofreram várias alterações ao longo das
décadas. Até por experiência própria eu consigo compreender muito bem
todos esses processos: durante a guerra do Vietname a minha avaliação da
política norte-americana foi predominantemente negativa, enquanto que
na altura da reunificação da Alemanha ela foi predominantemente positiva.
Há também uma grande diferença entre o modo como um jovem socialista
- como o era Willy Brandt na década de 30 e eu nos anos 60 - encarou os EUA
como modelo para os próprios esforços de concretização de um socialismo
democrático e o modo forçosamente diferente como o Willy Brandt da década
de 40, portanto desde os seus primeiros anos em Berlim, encarou a relação
com os EUA. O mesmo viria a suceder comigo desde a minha eleição para o
Bundestag, nos anos 70. Os próprios cargos que desempenhámos obrigaram-nos
a salvaguardar acima de tudo os interesses da Alemanha e de Berlim.
Durante a segunda guerra mundial e nos tempos que se seguiram Willy
Brandt escreveu relatórios para a embaixada dos Estados Unidos em Estocolmo
e, pelo menos indirectamente, também para a OSS, a antecessora da actual
CIA. Para ele, como para muitos outros opositores ao nacional-socialismo
entre os emigrantes alemães, essa colaboração deveu-se ao seu interesse pela
construção de uma Alemanha democrática no pós-guerra. No entanto, a
sua vontade de cooperação nunca excluiu, nem nessa altura nem mais tarde,
uma avaliação crítica dos EUA, sempre que a política norte-americana não
correspondia às suas convicções. Por isso, tanto para o jovem Willy Brandt
como para mim, durante a juventude, sempre existiu uma relação de tensão
entre a apologia da democracia e da liberdade nos Estados Unidos e a
simultânea crítica das consequências negativas do capitalismo americano.
1
“Willy Brandts Amerikabild und – politik 1033-1982”, de Judith Michel
192
KARSTEN D. VOIGT
Essa ambivalência terminou com o começo da Guerra Fria. Em seu lugar
impôs-se, ao nível da política externa, uma clara tomada de partido pelos
EUA e pelo Ocidente no seu todo. Para Willy Brandt, tal como para a maioria
dos partidos social-democratas da Europa ocidental, isso foi consequência da
política da União Soviética em relação aos países da Europa central e do leste.
Em 1977 Richard Löwenthal comentou essa tomada de posição no prefácio
do seu livro “Para Além do Capitalismo”2, publicado pela primeira vez em
1947 sob o pseudónimo “Paul Sering”: “A afirmação da autonomia e as suas
futuras possibilidades não eram possíveis como terceira força, mas apenas
como ala esquerda de uma frente de oposição do Ocidente liderada pelos
Estados Unidos.”
Quando em 1954 Willy Brandt viajou pela primeira vez para os EUA, era já
considerado mais pró-americano do que outros representantes social-democratas
da política externa. Isso não significou que o seu interesse pelos desenvolvimentos culturais, económicos e sociais dentro dos EUA tivesse diminuído,
a partir do momento em que passou a assumir funções relevantes ao nível
da política externa. No entanto, para ele - tal como para outros políticos
alemães durante a guerra-fria – o papel dos EUA para a segurança de Berlim,
da República Federal Alemã e da parte ocidental da Europa assumiu uma
relevância maior do que o interesse pelos desenvolvimentos sociopolíticos
internos nos Estados Unidos. Isso fez com que Willy Brandt mais tarde,
enquanto burgomestre de Berlim, não se tenha manifestado de um modo
crítico em relação à política seguida pelos EUA no Vietname. Na altura, essa
não tomada de posição constituiu um motivo de desapontamento, não só
para mim como para uma grande parte da minha geração.
Por outro lado, depois de se ter demitido do cargo de chanceler federal e
enquanto presidente da Internacional Socialista e da comissão Norte-Sul, Willy
Brandt criticou frequentemente a posição dos EUA, perante os inquietantes
desenvolvimentos em África e na América Latina. E fê-lo de uma forma bem
mais radical do que eu, que era então porta-voz da fracção da SPD no Bundestag
e membro da Assembleia Parlamentar da NATO. Na altura, eu próprio fui
por ele mandatado para defender em Washington, no México, na Nicarágua
e no Vaticano o seu conceito de uma solução pacífica para os conflitos em El
2
“Jenseits des Kapitalismus”
193
DO JOVEM SOCIALISTA AO “ELDER STATESMAN”
Salvador e na Nicarágua. Em determinadas alturas, Brandt também ajuizou a
política de segurança da União Soviética durante a era de Brejnev de uma forma
menos céptica do que eu próprio. Essa ligeira alteração da perspectiva política
foi acompanhada por um olhar extremamente crítico sobre a administração
Reagan e a sua política.
A administração Reagan nunca fez qualquer segredo da sua rejeição
ideológica da Internacional Socialista. Quando em 1980, no contexto de
uma conferência sobre “Eurosocialism and America”, planeada ainda durante a
administração Carter, se reuniram em Washington inúmeros líderes social-democratas europeus, entre os quais vários chefes de governo, foi notória
a desconfiança com que todos eles foram confrontados. Na altura eu representava a SPD no comité de preparação da conferência e a impressão com
que fiquei foi que após a conferência o olhar de Willy Brandt sobre a administração Reagan e a sua política se tornou ainda mais crítico. A isso há a
acrescentar o facto de que, ao contrário do que sucedia em Washington,
em Moscovo e nas outras capitais da Europa do leste Willy Brandt gozava,
enquanto presidente da SPD e da Internacional Socialista, da mesma atenção
que era concedida a um chefe de governo.
Entre os exuberantes festejos com que os nova-iorquinos saudaram Willy
Brandt na Broadway, a 10 de Fevereiro de 1959, e o desprezo revelado pela
administração Reagan em 1980 parece que existem mundos. Durante os anos
em que exerceu o cargo de burgomestre governante de Berlim e durante a
presidência de Kennedy as suas relações com os EUA pareceram ser, por vezes,
ainda mais estreitas e amigáveis do que as do chanceler federal Adenauer. Em
1983, pelo contrário, quando Willy Brandt discursou numa demonstração em
Bona contra o estacionamento das armas de médio alcance, foi acusado, tanto
pelos americanos como pelos conservadores alemães, de anti-americanismo.
No entanto, em ambos os casos as suas motivações foram idênticas e visaram
a preservação dos interesses alemães. No fundo, essa foi a bitola com que ele
sempre mediu as respectivas administrações americanas e as suas políticas,
tanto na condição de burgomestre de Berlim como na de presidente do
SPD. Durante as crises de Berlim e no ponto mais alto da Guerra Fria Willy
Brandt viu no apoio da política norte-americana a condição indispensável
para a manutenção da segurança e da liberdade em Berlim ocidental. Por
alturas da construção do Muro de Berlim ele desejou uma reacção mais firme
194
KARSTEN D. VOIGT
da administração Kennedy contra a União Soviética. Pessoalmente, a sua
atitude decidida contra a construção do Muro, bem como os inícios da sua
concepção de desanuviamento político constituíram motivos importantes para
a minha filiação no SPD em 1962. Em 1983, pelo contrário, Brandt achou
que a política da administração Reagan podia pôr em perigo as conquistas da
política de desanuviamento para Berlim, bem como as relações entre os dois
Estados alemães. Foi por isso que não se absteve de criticar – tal como o SPD
no seu todo – a política a seu ver demasiado agressiva dos EUA. O facto de Willy
Brandt ter sido considerado por Henry Kissinger como “nacionalista”, devido
à sua consequente defesa dos interesses berlinenses e alemães, não deixa de
revelar uma certa ironia: na verdade, o próprio Kissinger sempre se mostrou
orgulhoso por, ao longo de toda a sua vida, ter sabido defender os interesses
americanos de uma forma o mais realista possível, sem demasiado idealismo.
Apesar de Willy Brandt, enquanto jovem socialista e mais tarde também
como presidente do partido, ter sentido, sem dúvida, uma maior proximidade para com as ideias sociopolíticas dos democratas, tanto o burgomestre
de Berlim como o chanceler federal não deixaram de cultivar um relacionamento com os republicanos liberais. Neste contexto, a sua avaliação da
administração Reagan foi tão negativa quanto positiva foi a sua apreciação do
papel da administração de George Bush no final da Guerra Fria e durante
todo o processo de unificação alemão. Enquanto Brandt apoiou, durante
os anos de Reagan, o fortalecimento da capacidade de intervenção europeia
com toda a convicção, em 1989/90 demonstrou confiar mais nos EUA do
que nos vizinhos da Alemanha, nomeadamente a Grã-Bretanha e a França.
Nos últimos anos de vida de Brandt conhecem-se inúmeras declarações
positivas sobre os EUA e a sua política. No fundo, elas mais não fazem do
que manifestar a sua esperança de que através da política de Washington, sob
a liderança de Bush, e de Moscovo, sob a liderança de Gorbachev, o conflito
Ocidente-Leste e a cisão não só da Alemanha como da própria Europa
pudessem ser superados globalmente, graças à intervenção de políticos construtivos na Europa Ocidental e de reformadores democráticos fora e dentro
dos partidos comunistas do leste europeu.
Mesmo durante os anos em que a sua crítica à política dos EUA esteve em
primeiro plano, Willy Brandt nunca deixou de se sentir como um representante da tradição libertária e democrática do Ocidente, a qual, naturalmente,
195
DO JOVEM SOCIALISTA AO “ELDER STATESMAN”
também incluía os EUA. Ao assumir esses princípios, Willy Brandt soube
personificar, apesar de toda a individualidade da sua biografia e da sua
personalidade, as tradições políticas do SPD, que após a sua fundação no
século XIX e durante a época da República de Weimar foi criticado, tanto pela
extrema-direita como pelos comunistas, como sendo um partido pró-americano.
Para Wilhelm Liebknecht, um dos fundadores do SPD, a América era o país mais
livre do mundo. No final da primeira guerra mundial o SPD alimentou grandes
expectativas em relação ao empenhamento americano na Europa e ao papel do
presidente Woodrow Wilson. Muito embora essas expectativas tivessem sido em
grande parte frustradas, as tendências pró-americanas não deixaram de prevalecer no seio do partido. Simultaneamente, porém, também existiram reservas
dentro do SPD, sempre que os EUA se impuseram como potência capitalista. Esse
elemento crítico no contexto de uma imagem da América em princípio positiva
manifestou-se também no jovem Willy Brandt durante o exílio escandinavo.
Eu estou seguro de que essa atitude positiva em relação aos EUA continua
a existir entre uma grande maioria dos jovens alemães, para lá de toda a crítica
que se possa manifestar em relação a certos aspectos específicos. O mesmo
deve acontecer aliás em relação àqueles que, inversamente, se vêem como
amigos da Alemanha nos EUA, e que, não obstante, não deixam de criticar a
política e os políticos alemães, sempre que assim o entenderem.
Por outro lado, não deixa de ser verdade que a eleição de Obama para
presidente fez crescer as simpatias pelos Estados Unidos, nomeadamente
entre os sociais-democratas. Quando agora se constata nos EUA o recrudescimento de correntes radicais conservadoras e populistas da direita é de
esperar que o questionamento dos Estados Unidos volte também a fazer-se
sentir com mais intensidade. Isso, no entanto, em nada altera o facto estratégico de que os EUA continuarão a ser o principal parceiro da Alemanha
fora da União Europeia.
196
Superar a Crise Global de Ambiente
Pedro Miguel Cardoso
Introdução
A globalização deve ser vista como um fenómeno complexo e multidimensional. É um processo histórico resultante da inovação humana e do progresso
tecnológico. A sua dimensão económica (talvez a mais visível) está relacionada
com o aumento da integração das economias de todo o mundo, nomeadamente no que diz respeito às trocas comerciais e financeiras. Também está
relacionada com o movimento de pessoas e conhecimento através das fronteiras internacionais.
Este conceito é usado desde os anos 80 do século XX, nomeadamente
desde os avanços tecnológicos que facilitaram e aceleraram as transacções
comerciais e financeiras internacionais. No fundo, ocorreu um prolongamento para além das fronteiras nacionais das mesmas forças de mercado que
durante séculos operaram a todos os níveis da actividade económica humana
(nos mercados rurais, nas indústrias urbanas e nos centros financeiros).
Actualmente é possível beneficiar de mercados mais vastos em todo o mundo,
ter maior acesso aos fluxos de capital e tecnologia, e beneficiar de importações
mais baratas e mercados de exportação mais amplos.
Devido a estas dinâmicas e fluxos globais surgiram novos riscos económicos, políticos e sobretudo ambientais. Ulrich Beck considera que o processo
de industrialização é indissociável do processo de produção de riscos e uma
das principais consequências do desenvolvimento científico industrial é a
exposição dos indivíduos a riscos. Eles são gerados sem que os novos conhecimentos sejam capazes de trazer uma diminuição, controlo ou monitorização
eficaz desses mesmos riscos. Para Beck estamos a assistir à passagem de uma
sociedade industrial para uma sociedade de risco (Navarro e Cardoso, 2005).
No âmbito desta temática da globalização vou em seguida debruçar-me sobre
alguns dos principais riscos ambientais contemporâneos. Atravessamos uma
crise ambiental sem paralelo na história, precisamente por ser global.
197
SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE
2. A crise ambiental contemporânea
Nas últimas décadas, as preocupações ambientais tornaram-se assunto
residente da agenda mediática e subiram a um patamar inédito de prioridade política e internacional. Como salienta Soromenho - Marques (1998),
“a problemática ambiental já ultrapassou, no plano internacional e nacional,
a prova de fogo que distingue as preocupações estruturantes das meras modas
conjunturais” (p. 109). Este autor aponta cinco razões que fundamentam
esta ideia de que a crise de ambiente não é apenas um problema passageiro
e simplesmente funcional: primeira razão, trata-se de uma crise planetária;
segunda razão, o ritmo actual de ruptura dos ecossistemas só tem paralelo com
as extinções maciças ocorridas há milhares de anos; terceira razão, a sua preocupante dimensão cumulativa torna difícil ou impossível a recuperação dos
ecossistemas; quarta razão, a insensibilidade aos alertas; quinta e última razão,
a distância entre a complexidade do problema e o carácter redutor dos nossos
instrumentos de representação e da nossa capacidade de mobilização.
De facto, a crise ambiental contemporânea é mais profunda do que possa
parecer a um observador menos atento. Ela é um reflexo dos valores e práticas
dominantes à escala global. É uma consequência de um modelo social e
económico baseado no crescimento económico, no aumento contínuo de
bens e serviços e no consumo. Os sintomas avolumam-se.
2.1. Alterações climáticas
Em 1990, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas
declarou que as actividades humanas estão a contribuir para um aumento substancial da concentração atmosférica de gases com efeito de estufa (GEE) e que
o calor por eles captado origina de facto alterações climáticas (IPCC, 1990).
A temperatura média da Terra resulta de um equilíbrio entre o fluxo de
radiação solar que chega à sua superfície e o fluxo de radiação infravermelha
enviada para o espaço. Os GEE, que representam menos de 1% dos gases
presentes na atmosfera, composta principalmente de azoto e de oxigénio,
controlam os fluxos de energia na atmosfera e são responsáveis pela temperatura da Terra (Comissão para as Alterações Climáticas, 2002). Na sua
ausência, a temperatura média global seria de -18ºC em vez dos actuais 15ºC.
198
PEDRO MIGUEL CARDOSO
Esta diferença de 33ºC resulta de um efeito de estufa natural que favorece de
modo decisivo as condições de habitabilidade do planeta (Santos, 2004).
Os primeiros gases identificados como responsáveis pelo aumento desse
efeito são o CO2, o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O) – ver Tabela 1.
Mais recentemente foram considerados outros GEE, os compostos halogenados (os HFCs ou hidrofluorcarbonos, os PFCs ou perfluorcarbonos e o
SF6 ou hexafluoreto de enxofre), que têm contribuído para o agravamento
deste problema (Comissão para as Alterações Climáticas, 2002).
GEE
Aumento da concentração desde 1750 (%)
Contribuição para o
aquecimento global (%)
CO2
31
60
CH4
151
20
N2O
17
6
Uso de fertilizantes, produção de
ácidos e queima de biomassa e
combustíveis fósseis.
--
14
Indústria, refrigeração, aerossóis,
propulsores, espumas expandidas e
solventes.
Compostos
halogenados
(HFC, PFC e
SF6)
Principais fontes de emissão
Uso de combustíveis fósseis, desflorestação e alteração dos usos do solo.
Produção e consumo de energia
(incluindo biomassa), actividades
agrícolas, aterros sanitários e águas
residuais.
Tabela 1: Aumento da concentração de CO2, CH4, N2O e compostos halogenados (em %) desde 1750, sua contribuição para o aquecimento global e principais fontes de emissão.
Fonte: Comissão para as Alterações Climáticas (2002).
O CO2 é um dos principais gases a contribuir para o efeito de estufa. Os
estudos indicam que desde o início da revolução industrial (em meados do
século XVIII) a concentração de CO2 atmosférico aumentou mais de 32%
(Santos, 2004). Trata-se provavelmente do valor mais elevado atingido nos
últimos 420 mil anos. As próximas Figuras (1 e 2) ilustram isso mesmo. 199
SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE
Figura 1: Concentração atmosférica global de CO2 - 1870 a 2000.
Fonte: United Nations Environment Programme/GRID-Arendal.
Figura 2: Estimativas da temperatura e concentração de CO2 na atmosfera ao longo dos últimos 400 mil anos.
Fonte: United Nations Environment Programme/GRID-Arendal.
200
PEDRO MIGUEL CARDOSO
Segundo os dados fornecidos pelo IPCC (2001), desde 1861 (ano em que se
iniciaram os registos) observa-se um aumento significativo na temperatura média global
e durante o século XX o nível dos mares subiu, em média, entre 10 e 20 centímetros.
Os glaciares e a neve das montanhas têm diminuído em média em ambos
os hemisférios (IPCC, 2007). O recuo dos glaciares das montanhas tem-se
acelerado desde 1980. No hemisfério norte, “a área dos gelos permanentes na
região do Pólo Norte está a diminuir 3% por década. Na Gronelândia os glaciares
estão a fundir e a área de gelos que fundem durante o verão está a aumentar de
modo preocupante; de 1979 a 2003 aumentou 16%” (Santos, 2004, p. 18).
No hemisfério sul (na Antárctida) “a fusão está a provocar o desprendimento de
gigantescos blocos de gelo dos glaciares periféricos, como por exemplo, o icebergue
de Larsen B com uma área de 3275 Km2” (Santos, 2004, p. 20). Novos dados
apresentados (IPCC, 2007) mostram que as perdas dos gelos na Gronelândia e
Antárctida têm contribuído muito provavelmente para a subida do nível do mar.
E esse nível subiu a uma taxa média de 1,8 milímetros por ano entre 1961 e 2003,
quase duplicando entre 1993 a 2003 (cerca de 3,1 milímetros por ano).
Há outros sinais de que a temperatura está a subir. Os episódios de precipitação intensa e as consequentes inundações aumentaram nas latitudes altas e médias,
enquanto aumentaram as secas nas latitudes subtropicais, sobretudo na África e na
Ásia (Santos, 2004). O quarto relatório do IPCC (2007) refere por exemplo que ao
longo dos últimos 50 anos, dias frios, noites frias e geadas têm sido menos frequentes,
enquanto, dias quentes, noites quentes e ondas de calor têm sido mais frequentes. Além
disso existem evidências do aumento da actividade dos ciclones tropicais no Atlântico
Norte desde 1970, que pode estar relacionada com o acréscimo das temperaturas à
superfície dos mares tropicais. O que sucederá se continuarmos a emitir quantidades
cada vez maiores de GEE e o aquecimento da Terra continuar a acelerar?
O Relatório Stern (2006) refere que caso não sejam tomadas medidas
para a redução das emissões, a concentração dos GEE poderá atingir o dobro
do seu nível pré-industrial já em 2035, sujeitando-nos praticamente a uma
subida de temperatura média global de mais de 2ºC. A longo prazo, existe uma
possibilidade de mais de 50% de que a subida da temperatura exceda os 5ºC.
Esta subida seria de facto perigosa, equivalente à mudança das temperaturas
médias desde a última era glacial até ao presente. Uma tal mudança resultará em
alterações importantes na geografia humana, no local onde as pessoas vivem e no
seu modo de vida, sujeitando as populações humanas a novos riscos e pressões.
201
SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE
2.2. (In) segurança alimentar
Nos últimos 40 anos a população humana global duplicou, atingindo os 6,5
mil milhões de pessoas. As previsões apontam para que em 2050 esse valor esteja
nos 9 a 10 mil milhões. Isto significa que com uma população global a crescer, a
produção alimentar vai ter que aumentar e muito para satisfazer as necessidades
globais de consumo. Segundo Green et al. (2005) entre 1961 e 1999 o crescimento na produção global de alimentos superou o crescimento populacional,
em resultado de um aumento de 12% da área agrícola global e de uma subida de
10% da área permanente de pastagem. A produção alimentar por unidade de
área cresceu globalmente cerca de 106%, mas este crescimento esteve relacionado com uma subida de 97% da área irrigada e aumentos significativos no uso
de fertilizantes de azoto (+638%), fertilizantes de fosfato (+203%) e produção
de pesticidas (+854%). A Figura 3 apresenta algumas dessas tendências.
Figura 3: Tendências globais na produção de cereais e carne; uso total de fertilizantes de fosfato e azoto; aumento
da irrigação; produção total global de pesticidas.
Fonte: United Nations Environment Programme/GRID-Arendal.
202
PEDRO MIGUEL CARDOSO
De acordo com um modelo económico básico que remonta aos economistas clássicos (Ricardo) e aos primeiros neoclássicos (Marshall), pode-se
fazer face ao aumento da procura de alimentos de duas maneiras: aumentando
a intensidade de utilização agrícola e pastoril das terras (margem intensiva) e/
ou aumentando a extensão da área utilizada pela agricultura e pelo pastoreio
(margem extensiva) (Santos, 2008). No entanto estas opções têm consequências e há limites para além dos quais os fertilizantes e pesticidas deixam de
surtir efeito restando apenas os seus impactos ambientais negativos. Existem
estudos que referem que a principal causa directa de perda de biodiversidade
a nível global é a destruição de habitats resultante da conversão e intensificação do uso de áreas para a agricultura. Por isso surgem as questões: como
poderemos satisfazer o aumento da procura de alimentos com um mínimo
de impacto sobre a biodiversidade? Deveremos intensificar a produção em
áreas já convertidas para a agricultura, reduzindo a necessidade de converter
os restantes habitats intactos? Ou deveremos aumentar a área agrícola promovendo uma agricultura extensiva mais amiga do ambiente?
É de salientar que a produção agrícola é sensível aos efeitos directos do clima,
da temperatura, do fluxo de água, da composição atmosférica (especialmente
dos níveis de CO2) e dos eventos meteorológicos extremos. É também sensível
aos efeitos indirectos do clima, na qualidade da luz solar, na incidência de
doenças das plantas e nas populações de insectos e de ervas daninhas (McMichael
et. al, 1996). Com o aumento da temperatura média global a produtividade
agrícola terá tendência a aumentar nas latitudes médias e altas e a diminuir
nas latitudes baixas. Se o aumento for superior a 3 ºC a produtividade à escala
mundial irá decrescer (IPCC, 2007). Os estudos sugerem que a produção
agrícola global poderá ser mantida ao longo dos próximos 100 anos com uma
mudança climática moderada (abaixo dos 2 ºC). No entanto, os efeitos regionais serão diferentes e alguns países vão sofrer reduções de produção mesmo
que adoptem medidas de adaptação. Nas áreas onde populações de baixos
rendimentos estão dependentes de uma agricultura de subsistência qualquer
decréscimo na produtividade pode ter consequências negativas.
203
SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE
2.3. Poluição
A poluição é outra das ameaças que pairam sobre a vida na Terra. Segundo
Odum (1988) a poluição consiste em alterações indesejáveis nas características
do ar, do solo ou da água, que afectam prejudicialmente a vida do Homem
ou a de espécies desejáveis. Este autor define dois tipos básicos de poluição: a
poluição por poluentes não degradáveis, que são materiais e venenos que ou
não se degradam ou apenas o fazem muito lentamente no ambiente natural;
e a poluição por poluentes biodegradáveis, como o esgoto doméstico, que
podem ser rapidamente decompostos por processos naturais.
Os oceanos, por exemplo, têm sofrido com estes dois tipos de poluição. Se
as descargas de esgotos em pequenas quantidades parecem não causar efeitos
nefastos de relevo, Nybakken (2001) aponta ameaças significativas com que
se deparam os ecossistemas marinhos: a poluição por petróleo que resulta de
acidentes ou da lavagem de depósitos em alto mar; a poluição por químicos
produzidos pelas indústrias; a poluição por metais residuais provenientes da
extracção mineira e das indústrias de produção e processamento de metais;
os materiais radioactivos de testes nucleares e os desperdícios de combustíveis
nucleares; a introdução de espécies invasoras; a mortalidade de várias espécies marinhas relacionada com doenças; a eutrofização, um fenómeno que
conduz ao aparecimento de zonas mortas e que tem origem num excesso de
nutrientes gerados pela actividade humana; e a construção de barragens em
rios que afectam os oceanos pela redução do carregamento de sedimentos,
levando à erosão dos deltas e redução das pescas.
2.4. Desertificação
As Nações Unidas definem “desertificação” como sendo a degradação
da terra nas zonas áridas, semi-áridas e sub-húmidas secas, em resultado de
vários factores, incluindo variações climáticas e actividades humanas. Segundo
Silva (2004) esta definição, apesar de ser um pouco vaga e simplificadora, não
deixa de salientar alguns conceitos essenciais: a desertificação é um processo e
não um estádio, o de que os fenómenos em causa resultam de factores naturais
e antropogénicos, e o de que o termo se deve circunscrever a regiões climáticas
específicas nisso se diferenciando de outras formas de degradação dos solos.
204
PEDRO MIGUEL CARDOSO
Os processos de desertificação resultam de uma interacção complexa entre
causas naturais e antropogénicas que se desenvolvem, por vezes, de forma
lenta e descontínua. Como salienta Johnson (1977) a desertificação interliga
factores físicos e humanos, de maneira que é difícil separar a causa do efeito.
É um processo interactivo, produto de flutuações no ambiente natural e
mudanças nas actividades das populações humanas, que procuram sobreviver
e subsistir em condições difíceis e incertas de aridez.
No entanto, é importante distinguir entre “desertificação física” que se
refere aos processos físicos e biofísicos que conduzem à degradação dos solos e
“desertificação humana” que se refere aos processos de abandono progressivo
por parte das populações que procuram noutros locais formas mais promissoras de se integrarem no tecido económico e social das sociedades em que
vivem. A desertificação física, ou simplesmente desertificação, tem normalmente uma componente antropogénica, enquanto a desertificação humana,
ou simplesmente despovoamento, pode resultar de outros factores que não
sejam uma alteração das condições físicas do meio (Silva, 2004).
Podem ser definidas duas categorias de causas de desertificação: as directas
e as indirectas. Como principais causas directas temos a sobre-exploração
agrícola, o sobrepastoreio, os incêndios, a desflorestação, as práticas de rega
incorrectas e a ocorrência de secas prolongadas (factores climáticos). As causas
indirectas são aquelas que conduzem a práticas do uso do solo ou da água que
desencadeiam as causas directas e são sobretudo socioeconómicas e políticas (ex.
forte pressão do turismo e o deficiente ordenamento do território). É importante salientar que o solo é um recurso com taxas de formação e regeneração
extremamente lentas, mas com taxas de degradação potencialmente rápidas.
2.5. Esgotamento dos combustíveis fósseis
Vivemos num mundo que consome cada vez mais energia (ver Figura 4). O
crescimento económico, a circulação de bens, o crescimento populacional, as
aspirações crescentes da população mundial faz com que estejamos a produzir
e a consumir mais energia. As principais fontes energéticas são os combustíveis
fósseis: o petróleo, o gás natural e o carvão. A energia nuclear e as energias renováveis (que inclui a energia hidroeléctrica) também têm algum peso mas a realidade
é que as economias e sociedades humanas dependem dos combustíveis fósseis.
205
SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE
No entanto, as reservas de combustíveis fósseis são limitadas e sabemos que
não vão durar para sempre (apesar de não se saber ao certo a dimensão das
reservas que podem ainda estar por descobrir, sabe-se que elas são finitas).
A tendência para o aumento do consumo mundial de energia (em especial
pelas economias emergentes, como a China e a Índia) vem acelerar o fim destas
reservas. O actual padrão de crescimento da produção e consumo de energia
é insustentável. Actualmente, por exemplo, aproximamo-nos se não do fim
do petróleo, pelo menos do fim do petróleo barato. Este facto torna vulneráveis as economias dependentes destes recursos uma vez que os encargos com as
importações tendem a crescer de forma imprevisível. Além de que as reservas
de combustíveis fósseis, sobretudo do petróleo, estão concentradas em poucas
regiões do mundo. O controlo dessas reservas por poucos faz com que a maioria
dos países tenha dependência económica e política desses países, muitas vezes
portadores de graves conflitos internos e grande instabilidade política.
Figura 4: Aumento no consumo global de energia.
Fonte: United Nations Environment Programme/GRID-Arendal.
206
PEDRO MIGUEL CARDOSO
2.6. Perda de biodiversidade
A biodiversidade designa os organismos que constituem o mundo vivo,
o seu número, variedade e variabilidade. A diversidade biológica manifesta-se em três níveis de organização biológica: os genes, as espécies e
os ecossistemas. A diversidade genética resulta da variação genética entre
indivíduos e entre diferentes populações da mesma espécie. A diversidade
das espécies representa os diferentes tipos de animais, plantas e outros
organismos que habitam uma dada região e a diversidade dos ecossistemas
representa a variedade de habitats (Santos, 2007).
A biodiversidade garante um diversificado conjunto de serviços
essenciais à vida. Um dos seus maiores benefícios é providenciar novos
medicamentos. Mais de uma centena de drogas importantes na medicina
actual são extraídas exclusivamente de plantas e novas descobertas são feitas
todos os anos, ao investigar-se uma enorme variedade de organismos que
vão desde os fungos às árvores (Santos, 2007).
A biodiversidade está sujeita actualmente a pressões enormes. Segundo
o IPCC (2007) a resiliência de muitos ecossistemas será provavelmente
excedida este século por uma combinação sem precedentes de alterações climáticas e distúrbios associados (ex. inundações, secas, incêndios
violentos, insectos, acidificação dos oceanos) e outras mudanças globais
(ex. uso dos solos, poluição, sobre-exploração dos recursos). Por exemplo,
um pouco mais de metade de todos os stocks monitorizados de peixe estão
actualmente completamente explorados, produzindo capturas perto dos
limites máximos de sustentabilidade sem espaço para futuras expansões.
Cerca de um quarto estão sobre-explorados, esgotados ou recuperando
lentamente. Os restantes stocks estão sub-explorados ou moderadamente
explorados. O elevado número de stocks que estão ou completamente ou
sobre-explorados indicam que o potencial máximo de capturas de peixe
marítimas está a ser alcançado e que medidas de gestão são necessárias para
reduzir a exploração (www.greenfacts.org). Estimativas recentes (Myers,
2003; citado por Santos, 2007) permitem concluir que o oceano global
perdeu cerca de 90% dos grandes predadores – atum, espadarte, espadim,
bacalhau, raia e solha – desde o inicio da industrialização da pesca na
década de 1950.
207
SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE
3. Superar a crise
Perante a crise ambiental têm sido adoptados diferentes atitudes e discursos.
Por um lado temos o discurso ambiental prometaico que se baseia numa
confiança ilimitada na capacidade do Homem, por meio da ciência e tecnologia, resolver todos os problemas colocados pelo paradigma do crescimento.
Por outro, temos o discurso dos limites que considera que o paradigma do crescimento conduz mais tarde ou mais cedo a situações de crise e colapso. O planeta
é finito logo há limites ao crescimento. Existe também o discurso do desenvolvimento sustentável, que afirma que a humanidade tem a capacidade de assegurar
que se satisfaçam as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das
gerações futuras assegurarem a satisfação das suas próprias necessidades. Embora
reconheça a existência de limites ecológicos acredita que através de uma gestão
equilibrada e inteligente dos sistemas humanos e naturais é possível continuar
a crescer (Santos, 2007). Qual é a melhor atitude? A mais optimista, a mais
prudente ou aquela que procura aliar prudência e optimismo? Como poderemos promover uma transição para um paradigma sustentável?
Sou daqueles que pensam que são necessários novos modelos de desenvolvimento, conceitos alternativos de bem-estar que não se centrem apenas
na prosperidade material, capacidade de consumo e Produto Interno Bruto.
Como salienta Tietenberg (1992) as escolhas que temos que fazer vão testar a
criatividade das nossas soluções e a resiliência das nossas instituições sociais. É
importante ter presente que os problemas ambientais já transcenderam as fronteiras geográficas e geracionais. O Estado-Nação já não consegue sozinho fazer
face às complexidades dos problemas ambientais. A cooperação internacional é
fundamental e são necessários acordos internacionais vinculativos e justos para
que se produzam os efeitos desejados. As políticas nacionais devem ser economicamente viáveis e flexíveis e têm que incorporar a solidariedade para com as
gerações futuras, por mais difícil e imperfeita que seja essa incorporação. É de
salientar a ineficiência de muitas das actividades económicas actuais e os desperdícios de recursos que geram. Os incentivos económicos podem ser usados não
apenas para reduzir o conflito entre desenvolvimento económico e protecção
ambiental, mas podem fazer do desenvolvimento económico o veículo para se
alcançarem níveis maiores de protecção ambiental. Este autor sugere quatro
princípios base para uma transição gradual para a sustentabilidade:
208
PEDRO MIGUEL CARDOSO
Segundo o princípio do custo total todos os utilizadores de recursos
ambientais devem pagar o seu real custo. Os produtos produzidos por
processos ambientalmente destrutivos devem ser mais caros, enquanto aqueles
que são produzidos por processos amigos do ambiente devem ser mais baratos.
Segundo o princípio do custo/eficácia, o objectivo deverá ser alcançado ao
menor custo possível. Por exemplo, o comércio de licenças de emissões de GEE
é uma abordagem interessante para implementar este princípio uma vez que
fornece oportunidades de partilha de custos. Segundo o princípio dos direitos
de propriedade, deve-se assegurar que as comunidades locais tenham acesso
a benefícios pela preservação dos valores naturais que estejam dentro das suas
fronteiras. Segundo o princípio da sustentabilidade, todos os recursos devem
ser usados de maneira a respeitar as necessidades das gerações futuras. Restaurar
a justiça intergeracional no uso de recursos escassos é um bom ponto de partida.
Neste âmbito pode ser interessante criar fundos para compensar as gerações
futuras pelo uso de recursos escassos, incluir na contabilidade nacional de
rendimentos, a depreciação do capital natural e todos os outros custos.
Em alternativa a esta transição moderada que acabei de descrever,
Tietenberg (1992) baseando-se nas ideias de Herman Daly, aponta uma
outra abordagem, a da transição forçada e rápida para o desenvolvimento
sustentável. Para Daly a meta a atingir seria o estado estacionário, no qual o
desenvolvimento poderia e deveria ocorrer. O estado estacionário e o crescimento económico zero não são necessariamente a mesma coisa. Ele propõe
três criações institucionais para alcançar este objectivo: uma instituição para
estabilizar a população, uma instituição para estabilizar o stock de riqueza e o
fluxo de recursos e energia, e uma instituição que assegure que a riqueza e os
rendimentos são justamente distribuídos pela população.
Parece-me que a transição gradual é uma abordagem mais realista para o
desafio que enfrentamos e para o mundo em que vivemos. As criações institucionais propostas por Daly seriam dificilmente acordadas no actual contexto
político internacional. Tivemos recentemente o exemplo de Copenhaga, em
que apesar da pressão da opinião pública e do consenso político em torno do
essencial não foi possível chegar a um acordo global vinculativo para a redução
das emissões de GEE. De facto e como salienta Tietenberg (1992) as instituições propostas seriam caras de implementar e necessitariam de grandes staffs
burocráticos para a definição de quotas e fiscalização do seu cumprimento.
209
SUPERAR A CRISE GLOBAL DE AMBIENTE
Penso que independentemente dos diferentes planos e soluções que se
podem propor, necessitamos sobretudo de consciencialização, determinação e acção colectiva. É necessário fazer da sustentabilidade uma prioridade
nacional e internacional.
4. Considerações finais
O desafio da sustentabilidade é provavelmente o desafio crucial do século
XXI e de outros vindouros. As preocupações que sustentam este desafio não
são de agora, houve um lento despertar para a problemática do desenvolvimento sustentável. Há hoje uma maior consciência para as profundas relações
existentes entre a história da humanidade, o desenvolvimento das suas sociedades e o ambiente.
No entanto, o desafio é enorme e as resistências à mudança também. Não
sabemos ao certo onde está a “linha vermelha” para lá da qual se poderá dar o
colapso da civilização tal como a conhecemos. Talvez tenhamos que cair para
sentirmos a dor e depois mudar de vez. As catástrofes são muitas vezes o catalisador da mudança. Mas podemos fazer as coisas de outra maneira. Em nome
do princípio da precaução, da solidariedade intergeracional e do respeito pelo
planeta que habitamos, torna-se um imperativo ético uma acção colectiva e
determinada. Enquanto espécie temos uma capacidade de adaptação significativa e podemos, compatibilizando responsabilidade e liberdade, construir um
futuro sustentável. Devemos continuar a apostar na educação e na produção e
disseminação do conhecimento, reduzir as desigualdades sociais e internacionais, valorizarmo-nos e valorizarmos a Natureza. Segundo Jamieson (1992),
devemos encarar esta questão como um desafio fundamental para os nossos
valores e não tratá-la como se fosse apenas mais um problema técnico para ser
gerido. É importante desenvolver uma mais profunda compreensão do que
somos e da nossa relação com a Natureza.
210
PEDRO MIGUEL CARDOSO
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212
Segurança: Ameaças e Respostas
O Ciberterrorismo
Carolina Antunes Barata Pires Vilela
A Era da Informação – Novo ambiente operacional
A globalização, entendida como um processo conducente a uma interdependência económica, cultural, política e tecnológica levou à emergência
da Era da Informação – globalização da informação/comunicação – que
gerou um ambiente estratégico caracterizado por um novo e ainda pouco
explorado teatro de operações, a Internet1.
Como refere Manuel Castells, “a Internet é o tecido das nossas vidas”
com capacidade para “distribuir o poder da informação por todos os
âmbitos da actividade humana”2.
No mesmo sentido, o General Loureiro dos Santos considera que, “a
Internet constitui talvez o mais expressivo artefacto tecnológico que enfatiza o ambiente estratégico caracterizador da Era da Informação”3.
Sucintamente, a Internet pode ser apresentada como uma rede mundial
de sistemas informáticos, constituída por servidores e clientes, “uma estrutura em forma de rede, um poder de ligação distribuído entre os diversos
nós e uma redundância de funções na rede”4.
Existindo um grande número de redes independentes, desde as mais
simples às mais complexas, a informação vai circulando através das redes
até atingir o seu destino e, dado que o sistema tem a característica de ser
aberto, um utilizador, desde que localizado na rede, em qualquer nó, pode
aceder a recursos em qualquer uma dessas redes.
1
Cfr. José Loureiro dos Santos, As guerras que já aí estão e as que nos esperam se os políticos não mudarem, Reflexões sobre Estratégia VI,
Publicações Europa-América, 2009, p.53.
2
Cfr. Manuel Castells, A Galáxia Internet, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, p.15.
3
Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.56.
4
Cfr. José Carlos Lourenço Martins, A internet como factor de transformação social e das relações de poder, Pós-Graduação em Guerra
de Informação e Competitive Intelligence, Academia Militar, Lisboa, Fev.2006, p.5.
213
SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS
As sociedades modernas encontram-se organizadas em rede, com
células interligadas e interdependentes. Isto significa que a destruição de
uma das células tem consequências nas restantes e, dada a extensão das
redes, a destruição de uma célula significa repercussões em vastos espaços e
a obtenção de efeitos em grandes dimensões.
As redes de transportes, de energia, de distribuição de água, de actividades financeiras e de dados transmitidos pela Internet, são exemplos de
redes mantidas neste sistema interligado e interdependente, comandadas
por sistemas computadorizados.
Tomando novamente as palavras do General Loureiro dos Santos, “a
vida moderna depende da Internet, nas suas mais importantes actividades.
O apoio da engrenagem social foi ou está a ser transferido para o ciberespaço: o funcionamento dos governos, da segurança e das informações
(intelligence), os sistemas financeiros, de transportes, de produção e distribuição de energia, de saúde, de controlo de stocks de toda a ordem (como
alimentos, medicamentos, sobressalentes de todos os artefactos, material
militar e policial)”5.
A Era da Informação, através da Internet e do progressivo desenvolvimento de novas tecnologias, multiplicou as vias de informação e originou
o aparecimento de novos espaços operacionais, onde os actores podem
utilizar esta facilidade de distribuição de informação para “paralizar actividades estratégicas de uma ou mais sociedades”6. Dada a acessibilidade geral
à utilização das tecnologias, qualquer actor tem acesso a estas vias de informação e pode usá-las em seu proveito e de acordo com os seus interesses.
Novos espaços operacionais
Tradicionalmente, ao pensarmos em espaços operacionais, associavamos apenas três: o terrestre, o marítimo e o aéreo. Porém, com a era da
globalização, e nomeadamente, da globalização da informação e da comunicação, surgiram três novos espaços: o espaço exterior, o espaço mediático
5
Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.56.
6
Cfr.Idem, ibidem, p.60.
214
CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA
e o ciberespaço. Estes novos espaços operacionais exercem influência e têm
implicações nos espaços operacionais tradicionais, visto que os conflitos se
apoiam nestes novos espaços ou decorrem neles.
Por outro lado, estes novos espaços possuem uma característica que
implica desafios, a sua dimensão global. Significa que os conflitos locais
passam a ser um potencial conflito global, ou seja, “o aparecimento de
três novos espaços de operações (...) que se reforçam mutuamente e se
tornaram indispensáveis à batalha nos teatros de operações tradicionais,
teve duas consequências de monta: em primeiro lugar, fez com que todo o
teatro de operações seja potencialmente um teatro global (...) Em segundo
lugar, confere uma nova dimensão à representação na guerra, pelas possibilidade de circulação de informação que os três novos espaços operacionais
conjugados permitem”7.
Neste sentido, com o aparecimento destes três novos espaços operacionais, a noção de guerra assumiu novos contornos e uma importância
acrescida, visto que, o desenvolvimento tecnológico não pára e vão surgindo
novos desafios à segurança que exigem novas respostas.
Novos Actores e Novas Ameaças
O actual ambiente operacional é também marcado pelo aparecimento
de novos actores estratégicos e por novas ameaças.
Além dos actores estratégicos tradicionais, os Estados, surgiram outros
actores no tabuleiro internacional, entre os quais, os actores erráticos,
entidades caracterizadas como actores das relações internacionais aos quais
falta pelo menos uma das componentes de identificação clássica do poder,
nomeadamente, a forma ou a imagem, a sede e/ou a ideologia8.
No âmbito do presente estudo, importa-nos referir as denominadas
organizações transnacionais de actividades ilícitas, entre as quais constam as
organizações de tráficos ilícitos e as organizações terroristas. Caracterizam-se por
não possuirem base territorial, pela sua natureza transnacional, estruturadas em
7
Cfr. Idem, ibidem, p.125.
8
Cfr. Adriano Moreira, “Poder Funcional e Poder Errático”, in Nação e Defesa, Lisboa, Instituto de Defesa Nacional,
nº12, 1979; e idem, Ciência Política, Lisboa, Bertrand, 1979, p.72.
215
SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS
redes imateriais, com objectivos de natureza política (organizações terroristas)
ou com finalidade criminosa mas que podem repercutir-se politicamente
(organizações transnacionais do crime organizado).
Quanto às ameaças, mantêm-se as ameaças tradicionais relacionadas
com a lógica westefaliana mas, surgindo novos espaços, foram criadas
condições para o aparecimento de novas ameaças ou para a sua utilização
por ameaças organizadas já existentes9.
As novas ameaças, não substituíram as chamadas velhas ameaças, mas
“actuam ao seu lado, reforçando-as, ou mesmo (...) actuando individualizadas, por si e com objectivos específicos capazes de colocar em causa os
actores internacionais agentes das velhas ameaças”10.
Na generalidade, é considerado que a principal ameaça que se coloca à
ordem internacional é a do terrorismo global, e que os actores das novas
ameaças são basicamente de duas naturezas, criminosa e política.
Terrorismo
Historicamente, o terrorismo não é um fenómeno contemporâneo.
Etimologicamente, o termo terrorismo advém do período que se sucedeu
à Revolução Francesa de 1789, o qual ficou para a história como o Reino
do Terror. Contudo, esta não é a única definição do significado de terrorismo e, talvez começando com uma definição elementar de terrorismo,
possamos dizer que este é “o ataque indiscriminado a inocentes e a tentativa de introduzir o medo e o terror na vida quotidiana”11.
Não existe um consenso quanto à conceptualização do termo, daí que
para prosseguirmos com a respectiva análise, consideremnos fundamental
codificarmos conceptualmente quais os conteúdos inseridos no termo
“terrorismo”, recorrendo às definições utilizadas nos EUA e pela NATO,
complementando-as com os contributos de alguns teóricos.
9
Cfr. José Loureiro dos Santos, Convulsões, Ano II da “Guerra” ao Terrrorismo, Reflexões sobre Estratégia IV, 2ª ed, Publicações
Europa-América, 2004, p.115.
10
Cfr. Idem, ibidem, p.200.
11
João Vieira Borges, “O Terrorismo Transnacional e a Estratégia” in Terrorismo: razões da ausência de um conceito comum, IDN,
Newsletter de Abril de 2006.
216
CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA
Os EUA utilizam três definições, designadamente as do Departamento
de Estado, do Departamento de Defesa e do FBI. O primeiro afirma que o
terrorismo, com o objectivo de influenciar uma audiência, consiste no uso
premeditado da violência, executada contra alvos não-combatentes, por
agentes subnacionais ou clandestinos.
Para o Departamento de Defesa Americano, o terrorismo é o uso
calculado da violência ou da ameaça da violência, contra indivíduos ou
propriedades, para difundir o medo, com a intenção de intimidar governos
ou sociedades, com o fim de perseguir objectivos que geralmente são políticos, religiosos ou ideológicos.
A definição usada pelo FBI afirma que o terrorismo se define num uso
ilegal da força ou violência contra pessoas ou para intimidar ou coagir um
governo, população civil, com a intenção de alcançar objectivos políticos
ou sociais.
A NATO define o terrorismo utilizando uma fórmula intermédia,
considerando terrorismo o uso ou ameaça do uso ilegal da força ou da
violência, contra pessoas ou propriedades, com a intenção de condicionar
ou intimidar os governos ou sociedades para conseguir objectivos políticos, religiosos ou ideológicos.
Em 2001 o Conselho da União Europeia propôs-se detalhar uma série
de acções que poderiam estar incluídas no conceito de agressão terrorista.
Acções ou actos internacionais, que pela sua natureza e contexto, podem
causar danos a um país ou uma organização internacional, cometidas
com o propósito de intimidar uma população, persuadir indevidamente
um governo ou organização internacional a levar a cabo ou omitir determinada acção, ou desestabilizar seriamente ou destruir as estruturas
políticas, constitucionais, económicas ou sociais de um país ou organização
internacional12.
Para Walter Laqueur, o terrorismo é definido como “o uso de ameaça
ou o uso da violência como um meio de combate, ou uma estratégia para
conseguir certos objectivos, e pretende infundir nas vítimas um estado de
12
Cfr. Posição comum do Conselho, de 27 de Dezembro de 2001, sobre o combate ao terrorismo, Jornal Oficial nºL 344 de
28/12/2001 p.0092, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2001:344:0093:0096:
PT:PDF, consultado a 12/02/2010.
217
SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS
medo, que é impiedoso e se encontra à margem de toda a regra humanitária, (...) e a propaganda é um factor essencial da estratégia terrorista”13.
Como refere o Professor Adriano Moreira, “o terrorismo, em vez de
enfrentar os exércitos, ataca brutalmente as populações inocentes para
quebrar o pilar da confiança que as liga ao poder legítimo”14, colocando
em causa “o princípio firmado em Westefália, de ser o Estado não só o
único legítimo titular da violência, mas também de facto a única entidade
de fazer a guerra”15.
Tomando as palavras do Professor António de Sousa Lara, podemos
considerar que “todo o terrorismo é um acto político; o terrorismo é
instrumental, ou seja, é um meio e não um objectivo final; para o entendimento da lógica do terrorismo há que considerar, em separado, os seus
propósitos imediatos e mediatos, (...); e o critério do benefício objectivo é
fundamental para a definição da lógica do terrorismo”16.
A Rand Corporation afirma que “o terrorismo tornou-se mais sangrento;
desenvolveu novos recurso financeiros, encontrando-se menos dependente
de Estados responsáveis; desenvolveu novos meios de organização; consegue
envolver campanhas globais; explorou eficazmente as novas tecnologias de
comunicação, e alguns terroristas passaram das tácticas para a estratégia,
apesar de nenhum ter alcançado os seus objectivos de longo prazo”17.
Em suma, aqui reúnem-se as principais conceptualizações que definem
o que é o terrorismo. Embora muitos autores avancem ainda com numerosas tipologias referentes à metodologia aplicada, aos objectivos, áreas
de acção, e alvos, há que realçar a natureza essencialmente subversiva de
indivíduo, grupo ou organização terrorista que pela sua acção, visa alterar
o equilíbrio político, económico e social vigente, com vista a atingirem
objectivos específicos.
13
Cfr. Walter Laqueur, No End to War: Terrorism in the 21st Century, NY & London, Continuum, 2003, pp.11-29.
14
Cfr. Adriano Moreira, Terrorismo, coord. de Adriano Moreira, 2ª ed., Setembro 2004, Almedina, p.9.
15
Cfr. Idem, ibidem, p.8.
16
Cfr. António de Sousa Lara, Ciência Política – Estudo da Ordem e da Subversão, Lisboa, ed. ISCSP, 2005, pp.452-453.
17
Cfr. RAND Corporation, “The New Age of Terrorism”, disponível em http://www.rand.org/pubs/reprints/2006/
RAND_RP1215.pdf., T. do a.
218
CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA
Fazendo uso do desenvolvimento tecnológico, da globalização e do facto
de as sociedades estarem organizadas em rede, o terrorismo pode agora
levar as suas acções a efeito “com instrumentos de combate improvisados a
partir de artefactos facilmente acessíveis que façam parte do nosso quotidiano”18, conseguindo originar grandes danos para os Estados e para as
sociedades, alcançando os seus objectivos com elevado impacto mediático e
com grandes efeitos estratégicos.
Ciberterrorismo
Os bens e serviços adquiridos devido ao desenvolvimento tecnológico são
da fácil acesso, baixo custo, facilmente utilizáveis, sofisticados e eficientes.
Disponíveis a todos, também se encontram ao dispôr de organizações de
crime organizado e de organizações terroristas, que recorrem a estes bens e
serviços generalizados como recursos para perpetrar os seus objectivos.
A Internet foi desenhada como “uma tecnologia de comunivação livre”19
e aberta e, nesse sentido, o ciberespaço é aberto a todos, sejam quais forem
as suas intenções. É um espaço aberto tanto a actores estatais como a hackers,
gangs do crime organizado e organizações terroristas20.
A primeira referência à ameaça de ataques terroristas através de sistemas
informáticos surgiu em 1979, num relatório do governo sueco.
O vocábulo ciberterrrorismo aparece na década de 80 do século XX,
em relatórios norte-americanos produzidos por especialistas informações
militares. O ciber-terrorismo vai ganhando cada vez maior destaque, e na
década de 90 surge nos EUA a ideia de um Pearl Habor electrónico.
O FBI define ciberterrorismo como “um ataque premeditado, politicamente motivado contra informação, sistemas computacionais, programas
e dados que resultam em violência contra alvos não-combatentes por parte
de grupos nacionais ou agentes clandestinos”21.
18
Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.113.
19
Cfr. Manuel Castells, ibidem, p.19.
20
Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.56.
21
Cfr. Mark Pollitt, “Cyberterrorism: Fact or Fancy?” in Proceedings of the 20th National Information Systems
Security Conference, 1997.
219
SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS
Procurando definir o conceito de ciberterrorismo, Mark Pollitt definindo-o como “um acto criminoso perpetrado através de computadores que resulta
em violência, morte ou destruição e quer gerar terror, com o objectivo de
coagir um governo a alterar as suas políticas”22.
No mesmo sentido, Dorothy Denning, define o ciber-terrorismo
como “um ataque cirúrgico, ou a ameaça de tal ataque, a sistemas informáticos, redes, e à informação neles contida, com o objectivo de ameaçar
governos e sociedade” ou a “prossecução, sobre eles, de objectivos políticos”. Segundo a autora, estes ataques deverão ser dirigidos contra pessoas,
propriedades, ou, pelo menos, provocar danos suficientes que criem um
sentimento de ameaça. Salienta que exemplos de acções ciberterroristas
poderão ser ataques que resultem em mortes, explosões, catástrofes aéreas,
contaminação de águas, profundos danos económicos ou ataques contra
infraestruturas críticas23.
Percebemos que dada a estrutura em rede da sociedade a destruição de
uma célula “provoca efeitos tão profundamente desastrosos, que a sua recuperação será extramente demorada, senão quase impossível, e com custos
incomportáveis”24 e, nesse sentido, Solange Ghernaouti-Helie, refere que
a cibercriminalidade ganha cada vez mais contornos de ciber-terrorismo.
Segundo a autora, os recursos informáticos dos sistemas vitais para o
funcionamento do Estado, tais como a energia, água, transportes, telecomunicações, banca e finanças, serviços de saúde, instituições governamentais,
encontram-se disponíveis na internet e a tomada de controlo desses serviços
é hoje o alvo preferido dos ciberterroristas25. Isto porque ao acederem a estes
sistemas e os bloquearem ou afectarem algumas das suas células, permite uma
paralização das actividades que são imprescindíveis para o Estado, as sociedades ou empresas.
22
Cfr. José Manuel Freire Nogueira, Pensar a Segurança e Defesa, Ed. Cosmos, Lisboa, IDN, 2005, p.139.
23
Cfr. Dorothy E. Denning, Cyberterrorism – Testimony before the Special Oversight, Panel on Terrorism Committee on
Armed Services U.S. House of Representatives, Georgetown University, May 23 2000, disponível em http://www.
cs.georgetown.edu/~denning/infosec/cyberterror.html, consultado a 12/02/2010.
24
Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.58.
25
Cfr. Jean-François Mayer, Le cyberterrorisme – une nouvelle menace?, 26 de Setembro de 2002, disponível em http://www.
terrorisme.net/info/2mm2/025_cyberterrorism.htm, cosultado a 12/02/2010.
220
CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA
Nesta perspectiva, e com vista a submeter o adversário à vontade de
quem procura estes fins, a utilização de ciberataques pode ser tão demolidora como os ataques armados26.
A cibercriminalidade existe actualmente mas o ciberterrorismo ainda se
apresenta como uma hipótese. Segundo Dorothy Denning, embora a probabilidade da ocorrência de um verdadeiro ataque ciberterrorista em larga
escala não seja elevada, embora é, de todo, impossível. A autora considera
que a ameaça ciberterrorista irá crescer devido ao desenvolvimento informático e tecnológico e que esta ameaça deve ser seriamente considerada.
A título de exemplo, em 2009, foram registadas vinte e cinco milhões de novas
ameaças, difundidas sobretudo através de redes sociais na Internet e, de acordo
com um relatório da NetWitness, um mega ciberataque informático permitiu
controlar setenta e quatro mil computadores em 196 países, tendo atingido 2.411
organizações entre as quais administrações federais e locais, empresas dos sectores
bancário, tecnológico e energético, estabelecimentos de ensino, entre outras27.
De acordo com o El País, as entidades governamentais e os serviços de
inteligência espanhóis foram alvo de quarenta ataques informático graves
no ano de 2009. Esta constatação e percepção da ameaça levaram Espanha
a reforçar as defesas contra os ciberataques28.
Até ao momento centrámo-nos num tipo de ciberterrorismo directo,
que se centra no objecto, ou seja, cuja acção é aplicada directamente. Porém
não podemos esquecer que o ciberterrorismo também pode ser entendido
como visando uma acção indirecta, ou seja, centrado na conquista de seguidores ou mesmo na instrução por exemplo para o fabrico de bombas.
A Internet facilita a comunicação entre os membros deste tipo de organizações que, estando dispersos, conseguem através desta via, transmitir
rápida e facilmente missões e operações. Podem também usar este meio
para recrutar novos combatentes e simpatizantes, para os incentivar e
informar para e sobre os seus objectivos e missões.
26
Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem, p.56.
27
Cfr.Megaataqueatinge196países,inTDSNews,disponívelemhttp://www.xmp.com.pt/tdsnews/510.3256.0.0.1.0.phtml
de 23.02.2010, consultado a 25/02/2010.
28
Cfr.ElPais,disponívelemhttp://www.elpais.com/articulo/reportajes/Espana/blanco/cuarenta/ciberataques/elpepusocdmg/
20100124elpdmgrep_1/Tes de 24/01/2010, consultado a 22/02/2010.
221
SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS
Estratégias de Combate
Existem ineficiências no campo da prevenção e combate ao ciberterrorismo visto que, os ciberataques têm aumentado em número e gravidade
nos últimos anos. Percebendo a vulnerabilidade e o risco da ameaça, todos
os Estados e também a NATO estão a investir e desenvolver iniciativas nesta
área. Através da criação de escolas e de centros de investigação, estão a ser
preparados especialistas para enfrentar a ameaça.
Como exemplo podemos referir, nos EUA, a preparação de especialistas
nas escolas de formação de quadros das Forças Armadas, a criação de um
Comando para a ciberguerra nos Pentágono e a criação de uma Agência
para a cibersegurança na Casa Branca. Com uma visão de médio prazo, a
National Security Agency tem vindo a desenvolver programas de information systems
security (INFOSEC) estimados em três mil milhões de dólares.
Também a NATO desenvolveu neste âmbito, um Centro de Excelência para
as actividades de segurança no ciberespaço na Estónia e criou um Comando
para a cibersegurança, o NATO Cyber Defence Management Authority (CDMA).
Segundo o General Loureiro do Santos, em Portugal, as medidas de
segurança do ciberespaço têm sido desenvolvidas pontual e sectorialmente,
o que afecta a eficiência dos esforços, advogando que uma união destas
iniciativas seria mais rentável.
Têm sido desenvolvidos esforços pelas forças policiais, pelos serviços
de informações, em algumas estruturas da administração pública e pelas
Forças Armadas e, neste sentido, o país dispõe de alguns militares e civis
que desenvolvem as suas actividades e estudos centrados na segurança
ciberespacial e, também no sector privado, a preocupação levou ao investimento nesta área.
A nível governamental, foi criado o Programa de Segurança Económica
(PSE) do Serviço de Informações de Segurança (SIS), no âmbito do qual
foram desenvolvidas medidas preventivas de sensibilização e alerta para que
as organizações criem uma cultura de segurança.
Por outro lado, ao nível das Forças Armadas existe experiência no tratamento e análise de informação relativa à Guerra de Informação.
Nas palavras do Ministro Rui Pereira, “As novas tecnologias de informação e Comunicação assumem uma importância especial em duas
222
CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA
valências: por um lado, a informática e as suas tecnologias modernas,
em geral são importantes para os estados se defenderem, mas por outro,
paradoxalmente, também são utilizados por terroristas para perpetrar
atentados e ameaçar os Estados”29. Rui Pereira sublinha ainda que “a
ordem jurídica portuguesa se tem preocupado com a criminalidade cometida através da informática. Tem previsto novos crimes, tem contemplado a
responsabilidade não só das pessoas singulares, como, também, das pessoas
colectivas”30.
E é precisamente quanto a este ponto legal que a revista The Economist de
27 de Maio de 2007 se refere quando realça que “a questão real com que
os países industrializados se confrontam é como criar uma textura legal que
inclua a ciberagressão (...) como uma grave infracção ao que a lei impõe,
por motivo de actos de terrorismo, do crime internacional organizador,
ou de agressão contra um Estado”31.
Do exposto, os Estados devem investir numa defesa preventiva, protegendo as suas infra-estruturas críticas de forma garantir uma boa resposta
em caso de ciberataque, criar legislação eficiente e continuar a formação
de especialistas na área.
Para protecção dos sistemas críticos, Lukasik, Goodman e Longhurst
propõem o seguinte modelo cíclico32:
1. Prevenir o ataque ao sistema;
2. Em caso de ataque com sucesso, tentar esquivar-se aos propósitos do
atacante;
3. Se forem infligidos danos, proceder à limitação dos mesmos;
4. Após o sofrimento de danos, proceder à reconstrução do sistema;
5. Aprender com o ataque, melhorando o sistema de prevenção.
29
Cfr. entrevista a Rui Pereira, MAI, a 13.09.2007, in TDS News – Newsletter de inteligência económica das tecnologias
de defesa e segurança, disponível em http://xmp.com.pt/tdnews/aid=578.phtml, consultado a 15/02/2010.
30
Cfr. Idem.
31
Cfr. “Cyberwarfare is becoming scarier” in The Economist, disponível em http://www.economist.com/world/international/
displaystory.cfm?story_id=9228757 , consultado a 18/02/2010.
32
Cfr. Stephen J. Lukasik, Seymor Goodman, David W. Longhurst, “Protecting Critical Infrastructures Against CyberAttack”, in Adelphi Paper # 359, Institute for International Strategic Studies, 2003, p.16.
223
SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS
Por outro lado, será importante a sensibilização das organizações e dos
utilizadores do sistema, para a criação de uma cultura de segurança, para
que a falha humana seja evitada ao máximo.
As organizações e os utilizadores deverão evitar a falha e proliferação
de informação dos seus dados organizacionais e pessoais, bem como ter
atenção para não instalarem software não previamente assinado.
Considerações Finais
A globalização permitiu a emergência de um novo ambiente operacional, deu importância a novos actores e novas ameaças que implicam
novos desafios à segurança exigindo novas respostas.
Em conclusão, o ciberterrorimo é uma forma mais económica de
obtenção dos fins e o material a que recorre é legal e acessível.
É executado de forma anónima e conduzido remotamente, sendo que
o número de alvos possíveis é muito vasto, bem como o número de pessoas
que podem ser atingidas.
Aparentemente, as exigências para a opção ciberterrorista são apenas a
necessidade de formação informática dos seus membros ou a captação de
hackers para as suas organizações.
Como refere o General Loureiro dos Santos, “ao mesmo tempo que o
ciberespaço se tornou indispensável nas sociedades modernas, ele transformou-se numa das suas maiores vulnerabilidaddes actuais”33.
Acresce o facto do “elevado grau de incapacidade de previsão dos serviços
de informação quanto à ocorrência de ataques aos sistemas informáticos,
de incerteza quanto aos efeitos produzidos e da real impossibilidade de
resposta em tempo útil por parte das autoridades”34.
Compreendendo que “o ciberterrorismo é, neste momento, uma das
ameaças mais complexas que impende sobre o mundo ocidental”35, a defesa
da informação passou, e adivinha-se que passará ainda mais a ser, uma acção
33
Cfr. José Loureiro dos Santos, ibidem (2009), p.302.
34
Cfr. Pedro Borges Graça, A ameaça do ciber-terrorismo, in Informações Estratégicas, Jornal de Negócios, 22 de Junho de 2007.
35
Cfr. Idem, ibidem.
224
CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA
estratégica. Neste sentido, dada a dependência dos sistemas de informação,
os Estados já apostam numa postura mais pró-activa nesta defesa e adivinha-se que apostem cada vez mais no controlo e domínio do ciberespaço.
Como refere John Chipman, director do Instituto Internacional de Estudos
Estratégicos (IISS), o conflito entre Estados pode vir a ser caracterizado pelo
uso de técnicas assimétricas, destacando a internet e a guerra cibernética como
forma de abalar e lesar as infraestruturas e informações de um país, alertando
que alguns países estão a apostar nesta estratégia dado o anonimato dos ataques
e a falta de regulamentação internacional nesta temática36.
36
Cfr. TDS News, Ciberguerra comparável a ameaça nuclear, disponível em http://www.xmp.com.pt/tdsnews/
507.3265.0.0.1.0.phtml de 23.02.2010, consultado a 24/02/2010.
225
SEGURANÇA: AMEAÇAS E RESPOSTAS
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226
CAROLINA ANTUNES BARATA PIRES VILELA
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Entrevista a Rui Pereira, MAI, a 13.09.2007, in TDS News – Newsletter de inteligência económica das tecnologias de defesa e segurança, disponível em http://xmp.com.
pt/tdnews/aid=578.phtml;
Ciberguerra comparável a ameaça nuclear, in TDS News, disponível em http://www.
xmp.com.pt/tdsnews/507.3265.0.0.1.0.phtml de 23.02.2010;
227
CULTURA
Carta Aberta à Senhora Ministra da Cultura
Fernando Mora Ramos
Exma. Senhora Ministra Gabriela Canavilhas,
Em encontro recente a coreógrafa Graça Bessa teve a gentileza de me
dizer que numa audiência que Vossa Excelência lhe concedeu se terá referido
que sendo signatário, enquanto companhia, dos documentos da chamada
Plataforma do Teatro – creio que uma estrutura informal – apoiaria uma
posição sobre as subvenções ao teatro e as modalidades respectivas defendida
por tal Plataforma que se traduziria na ideia primária e antidemocrática de
que todas as companhias de teatro deveriam estar nas mesmas condições de
partida nos chamados concursos, o que não corresponde à verdade, pois a
nossa participação – Teatro da Rainha – no protesto foi apenas contra os cortes
de financiamento anunciados, sabendo-se aliás, por estar publicado e amplamente divulgado (em Livro, no Monde Diplomatique, no jornal Público, na Revista
de Eduardo Lourenço, Finisterra, na Revista Adágio, etc., e em inúmeros documentos de trabalho nos últimos trinta anos) o que defendemos.
Em primeiro lugar, sou contra os concursos, isto é, penso que são inúteis
e que haveria formas mais profundas, e sérias, de determinar o que é teatro
do sector público e o que não é, o que são estruturas de criação e o que não
são, o que deve ser subvencionado regularmente e o que não deve ser por não
ser arte, o que é estável e construtor da democracia e o que é pontual ou tão só
barulho das luzes, como se diz, o que é teatro e o que é espectáculo – de algum
modo parafraseando Jean Jourdheuil quando afirma que o teatro é grego e o
espectáculo é romano.
Sou contra esta inaceitável continuação na pós-modernidade da política
do circo e do pão, sabendo-se agora que o que mais se come é mesmo comida
visiva ou mental, se preferir, e que o pão metafórico, e literal, do apotegma
implícito, desde que o fast food impera, é ele próprio também apenas circo.
Todos sabemos que os Centros Dramáticos em Espanha e França são estruturas estáveis cujas equipas o Ministério e as Regiões escolhem, que na Alemanha
229
CARTA ABERTA À SENHORA MINISTRA DA CULTURA
os Teatros de Estado são Teatros Nacionais em todos os Estados Regionais e que
todas as cidades têm teatros públicos e mais que um – Pina Bausch estava em
Wuppertal e dirigia um Teatro Público. Assim é na Inglaterra, na Holanda, na
Finlândia, etc. É simples de perceber que estes países consideram o TEATRO
uma parte da democracia, uma parte orgânica. Sem ela a democracia estaria
incompleta, como estaria sem o Parlamento – que cobre todas as regiões – ou
sem os Tribunais – que também cobrem todas as regiões, ou mesmo sem as
Escolas e Hospitais que obviamente são estruturas nacionais. Não é por acaso
que o fim de parte da rede escolar, lá onde no interior se diz que não se justifica
por razões demográficas, dá o brado que tem dado e não é certo, de facto, que
as recentes medidas tomadas não sejam a favor da desertificação.
O problema é claro: a Constituição diz que as populações e os cidadãos em
geral devem aceder à arte e à cultura. O que se pode fazer por duas vias, pela
via da aprendizagem da criação e pela via da capacidade de ler as linguagens
das artes, pela via do vir a ser artista e pela via da escola do espectador. Ora,
em democracia, isso significa que o Estado deve criar as estruturas de materialização destes princípios (a Constituição democrática é de 1976 e estamos
longe de praticar o que enuncia) e que estas estruturas devem cobrir o território como instrumento de desenvolvimento (de qualificação, de crescimento
“interior”, subjectivo e colectivo, dos portugueses) generalizado. Assim sendo,
devem cobrir o território geográfica e demograficamente. Lá onde o interior
é pobre e desertificado devem ser instrumento de combate da desertificação
e lá onde a demografia é massiva e a barbárie a norma (e estamos a falar das
dificuldades conhecidas da educação nas periferias) instrumentos de combate
das novas formas de analfabetismo e violência social.
Esta deve ser a posição do Estado e aos governos cumpre levar adiante o que
a Constituição afirma e que é democraticamente ainda futuro por vir, UM
dado FUTURO. O que não significa que os artistas não desenvolvam nestas
organizações programas artisticamente autónomos e que deva imperar uma
qualquer homogeneização programática e estética, submetida a objectivos
sociais – os artistas cumprem objectivos sociais e culturais realizando projectos
artísticos, a arte não é pedagógica por ser pedagogia mas por ser arte.
Há, no entanto, formas diversas de materializar princípios a que todos devem
estar obrigados, por exemplo uma postura anti nazi. Por outro lado, sabemos que
em cada região há solicitações e imperativos de acção, diferenciados. Obviamente
230
FERNANDO MORA RAMOS
que os artistas, sendo artistas e as equipas de criação sendo equipas, devem
submeter os seus projectos a um debate aberto com os espectadores, nos locais
de implantação e estes devem ser objecto de uma negociação e contratualização
com os governos, caso a caso, verificando-se o seu acordo com os princípios
do Estado democrático e o potencial artístico da sua incidência social/cultural
– não há projecto artístico que se possa remeter para a insociabilidade ou para a
inutilidade social por “razões artísticas”. E tudo isto se mede, em números por
certo, mas fundamentalmente em dinâmica real, em movimento comunitário
nos ambientes de inserção, em transformação cultural. São estes, os processos
abertos da negociação e do debate, formas complementares, uma profissional
e técnica, a outra política e democrática, sendo simultaneamente formas do
“controle”, isto é, formas de avaliação constantes e formas de animação dos
programas nas comunidades de destinatários.
Em síntese: isso significaria um estudo do país cultural feito com os
melhores pensadores culturais, pessoas competentes fora das lides partidárias, sem interesses envolvidos e promover a criação, no plano das regiões
diferenciadas – há quem defenda 10, outros defendem 5 ou 6 – de estruturas
de acção teatral globalmente capazes de exercer as diversas componentes do
todo teatral, com responsabilidades de intervenção nas áreas de implantação e
no território nacional, lusófono, europeu e global.
Não estou a defender UMA estrutura por região, as formas podem ser várias
e diferentes, elas próprias descentralizadas e complementares, é uma questão
de inteligência e racionalidade. Defendo que se perceba o que é a região e que
se dê uma resposta racional articulando o existente com o que é necessário
inventar. E há muito por inventar porque o existente é absurdamente lacunar
e em muitos casos gangrenado. Assim poderíamos falar de FUTURO. Não
há alternativa a este desenho que seja interessante, útil e democrática. Este
é um desenho com prova histórica em termos europeus e corresponde ao
modelo matricial da democracia, de que o teatro fez parte com o Parlamento
e os Tribunais. Por estranho que pareça ainda há nessa forma grega um valor
prospectivo, sendo verdade que a nossa democracia é, neste aspecto das artes,
um simulacro. Hoje em dia, o projecto de um Serviço Nacional de Cultura,
nas condições portuguesas, por contágio com a expressão Serviço Nacional
de Saúde, não seria mal pensado, já que o nosso atraso é enorme e a situação actual de verdadeiro coma, a desqualificação dos portugueses um mal
231
CARTA ABERTA À SENHORA MINISTRA DA CULTURA
geral – mesmo os licenciados, e os de últimas levas por certo, são analfabetos
culturalmente, dominando mal a língua mãe e por isso tendo limitações de
potência de pensar, como diria Agamben.
A este modelo corresponderia um mecanismo concursivo quase residual
visto que o essencial estaria garantido e os concursos corresponderiam apenas
ao emergente, àquele território em que se situam os que chegam de novo –
repare Vossa Excelência que falo de projectos e não de jovens. Este território
seria um território alimentar de toda a estrutura base e, eventualmente, o
espaço emergente de gestação de equipas que pudessem vir a responsabilizar-se pelos programas dos teatros públicos, sendo que estes teriam obviamente
equipas com contratos a tempo definido, com mandatos predeterminados
temporalmente – no máximo três de 3/4 anos. Este esquema de articulação
entre teatros públicos e privados – é este o nome, embora muitas companhias, na actualidade, fazendo Serviço Público substituam o Teatro Público
inexistente – traria muita estabilidade ao sistema e pouca turbulência catártico/dramática em períodos de concurso, esse actual totobola de ansiedades
e promiscuidade. Nada mais democrático nem mais dinâmico. Quem
não quisesse entrar neste esquema teria então de ir a concurso, mas de ir a
concurso numa parte da estruturação da democracia teatral que não seria da
responsabilidade do Estado democrático como orgânica, mas consequência
das liberdades civis e portanto da responsabilidade da liberdade individual
e colectiva, o que, portanto, não obrigaria o Estado a qualquer sustentação
financeira de tipo integral.
Esta é a proposta EUROPEIA. O resto são discussões informais infundadas, sem base teórica fundada, sem modelo, pura especulação, conversa
interminável a que temos assistido vai para mais de 35 anos.
Para que fique claro gostaria de referir porque penso, por outro lado,
que os concursos são uma forma de apoio antidemocrática e clientelar. Direi
porquê:
1. Os Júris são um conjunto de personalidades reunido aleatoriamente,
nomeadas de forma discricionária e que, como conjunto, não são uma
equipa, não tendo história nem capacidade de aprofundar a matéria que
têm de julgar, não a conhecendo sequer, reconhecendo-a apenas nos
formulários, sendo à partida um absurdo a sua existência – só de forma
continuada se podem exercer funções que implicam estudo e conhecimento
232
FERNANDO MORA RAMOS
de projectos que, em muitos casos, têm décadas e que implicam matérias tão
complexas como a análise de autores, textos, elencos, formas dramáticas e
espectaculares, espaços, arquitecturas, linguagens de cena, isto é actividade
real no terreno e principalmente a adequação de tudo isso como projecto
coerente a uma dada comunidade de destinatários na perspectiva de
uma qualificação cultural dessas comunidades e de um aprofundamento
das possibilidades de respiração democrática e da liberdade, a qualificar
esteticamente.
2. Em muitos casos – tem acontecido com frequência – as decisões dos
Júris são decisões de parte do meio teatral contra outras partes do meio
teatral e aconteceu já que membros dos Júris tivessem atribuído dinheiros a
projectos em que estavam envolvidos mesmo que fosse indirectamente. Em
muitos casos a promiscuidade foi provada e explícita, como muitos evidenciaram em protestos sucessivos sob forma escrita, protestos que caíram no
saco roto da irresponsabilidade continuada de diversos serviços, que não
reagem sequer ao protesto cidadão numa vulgar política de avestruz.
3. Eles, os Júris, são um álibi para a fuga do Estado às responsabilidades
e só fariam sentido para uma parte residual do sistema, depois da parte
estabilizada dar forma à democracia na organização teatral. É um esquema
que não tem prospectiva nem dinâmica possível e que está montado para
produzir o MESMO, a mesma situação bloqueada, o mesmo atraso, a
regressão na continuidade, agora adaptada a novas formas de iliteracia
convergente, entre o que o Estado promove, as escolas praticam e muito
analfabeto/artista desenvolve.
4. Julgar projectos e programas teatrais tendo em consideração apenas
papéis, é como teorizar sobre gastronomia sem fazer nenhum tipo de prova
física de paladares. Na realidade os Júris são como uma espécie de bloco
de censores que aprova uns tantos que conhece, que conhece mal outros
pois não viu os espectáculos ou nem sequer viu nenhum, não conhece os
elencos, desconhece as condições técnicas de trabalho artístico, as espaciais, a história anterior, etc., e que distribui, mais ao menos num registo
de reprodução do statu quo vigente – seria desejável um statu quo de lógica
constitucional como acima se defendeu – uns dinheiros que previamente
estavam destinados a essa reprodução do sistema incongruente que existe.
Os Serviços, hoje em dia, desmontados e a agir sem memória, estão lá para
233
CARTA ABERTA À SENHORA MINISTRA DA CULTURA
cumprir esse mínimo reprodutor, como peça de uma mecânica indiscutível e fechada.
5. Resta dizer que julgar os papéis nos formulários impostos, como se
fossem um suposto exame de competência informática e de gestão económica releva do princípio de acção mais burocrático e autoritário que existe,
já que em nenhuma circunstância encontramos, do outro lado, um rosto
e muito menos alguém responsável para esclarecer o que quer que seja,
mesmo que fosse apenas responder informando disfunções constantes ou,
num outro plano, dando a cara pelas panes e atrasos. Está aliás provado
que a informática não tem simplificado a burocracia do Estado, pelo
contrário. O que tem sido estudado e confirmado por especialistas. E que
este mecanismo, o dos suportes informáticos, tal como tem sido usado,
para além de introduzir comportamentos de incompetência constantes e
uma distância conveniente do poder para com os candidatos é, como se
sabe, o negócio de inúmeras empresas ligadas aos aparelhos partidários,
cujos dinheiros poderiam servir a organização da competência dos serviços
e os próprios serviços já que, ao contrários dessas empresas de fora, os
Serviços têm estes problemas como objectivo, é para isso que existem e não
para produzir lucro.
Poderia continuar a evocar outras disfunções do sistema e outros males
profundos de natureza ética e ético/estética mas a carta vai longa e creio que
suficientemente clara no que ataca e defende, explicitando um caminho, o
caminho europeu necessário.
Entenda Vossa Excelência este “papel” como uma contribuição para a
mudança necessária. Se assim for sentir-me-ei de alguma maneira útil.
A bem do país e da cultura,
O Director
Fernando Mora Ramos
Caldas da Rainha, 30 de Agosto de 2010
234
Ecos de um Perpétuo Desvanecimento
João Soares Santos
«Je me perds dans ma pensée en vérité comme on rêve.»
Antonin Artaud
«O actor deve ser como um pintor que pensou meticulosamente todos os detalhes da sua
pintura e tem uma mão tão firme e segura que a execução da pintura nada mais exige dele que
a aplicação mecânica de várias camadas de tinta.»
Stanisław Ignacy Witkiewicz
1. O teatro, a dança e actividades concernentes só podem ser entendidas
num enquadramento cultural específico, sujeito a mutações e que se cruza
com espaços de saber e comportamentos aprendidos mais amplos. Estudar
estas artes implica uma reflexão sobre os sistemas de pensamento daqueles
nelas envolvidos. A actividade mental não pode ser desprendida da vida. As
elaborações do raciocínio são extensões e projecções dessa experiência do
indivíduo se perpetuar no tempo. Qualquer penetração intelectual séria no
quadro das artes cénicas da Ásia, na inteligência dos seus discursos, na sua
inscrição contextual, nas órbitas que definem a sua singularidade, devolve-nos
sempre, com maior ou menor impacto, os trâmites conceptuais da cultura de
referência do investigador. A consciência dos modelos de conhecimento e
cambiantes de usufruto do Outro, obriga a reflectir sobre o modo como somos
e como a nossa subjectividade apreende e lida com a diferença. A arte enaltece
o Homem pelas suas qualidades distintivas, pelo modo especial, particular
ou extraordinário de criar ou de considerar algo. Da tentativa de decifrar a
multidimensionalidade de aspectos e campos de significação das artes da Ásia,
emergem interrogações sobre as aprendizagens de quem as estuda, sobre os
condicionamentos de inteligibilização com os quais está familiarizado, sobre
como se tem percebido e explicado essas alteridades diversas.
Pela arte o homem evidencia os seus anseios, os movimentos da sua
identidade, as suas aptidões e destrezas na utilização dos recursos cognitivos
e materiais. Num texto o Homem demonstra como a voz do seu raciocínio apreende e avalia um assunto. A sua ousadia e minúcia interpretativa
permitem igualmente reconhecer as latitudes e restrições das suas capacidades intelectuais, da sua individualidade culturalmente modelada. O texto
escrito é uma notação, uma fixação gráfica, uma combinação expressiva de
235
ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO
vocábulos através dos quais assoma ou transparece uma certa veracidade
humana. A leitura depreende uma escuta interior. Do pormenor ou da ideia
vão nascendo os elementos construtivos da sua compacidade. Deles surge
a proposta, o motivo da concertação e perspicácia do discurso a elaborar e
uma crescente complexificação e amplitude do assunto. As linhas sinuosas da
exposição verbal vão gradualmente deixando um rasto de pistas, de elos e de
complementaridades. Ao longo dela vão-se repercutindo conteúdos, recuperando motes, acrescentando intensidades, inserindo noções, insinuando
e articulando afinidades e contrastes, destacando peculiaridades, apontando
ou seguindo outras direcções. Por vezes a nitidez torna-se difusa e o nebuloso dissolve-se em clareza. Perante as coreografias e dramatizações a que
nos referimos, bem como as suas cintilações e ressonâncias, não podemos
cair na contingência da exposição literal, da formalização disciplinadamente
objectiva. Estas artes não podem admitir uma dispersão preguiçosa no meramente tangível, numa verbalização límpida e regular capaz de prescindir da
convulsão, do desvio, do misterioso, do hiato ou do precipício. Elas arrastam
quem as estuda para uma saída dos limites, para as margens da racionalidade,
para a desfocagem sublime. O prazer de praticar, de desfrutar ou de analisar
estas artes implica um desejo de aperfeiçoamento, de superação. Elas testemunham a integralidade do conhecimento humano, o prazer de contemplar
e de procurar o ínfimo e o infinito da realidade. Estas artes são o pretexto
para um voo paciente sobre a natureza humana, sobre os comportamentos
e os substratos. Uma deslocação que, nada pretendendo excluir, conduz e
detém-nos sempre em novos pontos de partida e a uma vontade de recomeço
e de avanço. O acessível é uma matriz para o transcendente. O visível não é
apenas aparência. A morfologia exige que observemos a sua ausência. Por
isso o tema inicial parece expandir-se para uma integralidade osmótica, para
uma ubiquidade cheia de refulgências, para uma inefabilidade que é própria
daquilo que é profundo e universal. A forma sugere o informal. O sonho de
um poeta só mais plenamente pode ser sentido e entendido se o destinatário
for também alguém com o dom de devanear.
Tentar compreender as artes significa pois uma imersão nos mecanismos
e no exercício do razoar pessoal e colectivo. O inebriamento que causam
eleva-nos da lembrança ontológica, extraem-nos de uma vida em que fomos
colocados mas que muitas vezes não é sentida como nossa. Os seus instantes
236
JOÃO SOARES SANTOS
de usufruto transportam o esquecimento dos problemas e defeitos.
Uma antiga história indiana relata como apareceu a arte dramática. Certa
vez, os deuses assistiam no firmamento a uma peça intitulada «A Escolha
de Casamento de Lakshmi» («Lakshmisvayamvara») na qual, dançando e
cantando maravilhosamente, Urvashi interpretava o papel de consorte de
Vishnu. Concentrada no seu desempenho, a uma dada altura, a Apsara, como
que encarnada pela personagem, numa divagação poética sobre o seu amado,
atrapalhou-se no diálogo. Indra, com um semblante severo, irritado pela
interrupção, puniu-a com o exílio na terra. Este castigo infligido a Urvashi
permitiu que a arte teatral fosse divulgada e conservada entre os humanos1.
Instruídos na arte coreográfica e da representação dramática, eles passaram a
experimentar um enlevo que inicialmente só era da exclusividade dos deuses.
Adquiriram esta informação para assim poderem trazer e interagir com as
divindades na terra. Os humanos engrandeceram-se com a evanescência
proporcionada pela dança. Na Índia, o seu desígnio é guiar as disposições mentais ao ponto de atingir a «essência», o «deleite», o «sumo», a
«seiva» (Rasa). Quer o intérprete quer o espectador podem saborear essa
emancipação, essa perda de laços com a ilusória realidade. Ultrapassam-na
em absoluto e encontram uma superlativa beatitude, uma genuinidade sem
vestígios mundanos, sem apegos, um vácuo do sensório e do intelectual, uma
indefinição dos filamentos que os ligam às coisas exteriores.
Os balineses crêem que os seus corpos concentram uma pujança sobrenatural (Sakti) apta a os robustecer e a garantir incolumidade face aos
acometimentos de forças perniciosas. Estas procuram as debilidades advindas
das vicissitudes pessoais para causar danos. Alguns possuem a capacidade de
agregar mais Sakti que outros. Os que acogulam mais dessa energia são os
mais dotados e hábeis para exercer a actividade sacerdotal ou artística. Esta
magnitude é sentida ou transmitida a quem lhes serve de destinatário. A
autoridade e reputação de um marionetista (Dalang) dependem do grau de
Sakti presente em si. A sua perícia e subtileza assumem a responsabilidade
de ser algo mais do que é comum ou normal. A realidade deve apagar-se na
arte. O que ocorre em cena não pode ser igual ao que se passa no mundo do
espectador. Na Índia, o bailarino ou bailarina devem estar absortos naquilo
que estão a elaborar e a evocar, devem ter a atenção a convergir para dentro,
ignorando o que lhes é externo. Devem estar ocupados pela força da sua arte
237
ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO
quase ou como num êxtase de fusão, como se deixassem de ser, abdicassem
de si mesmos para que a arte possa nascer e deslumbrar, para que as suas
verdades íntimas sejam uma verdade sublime.
Poderá então quem estuda comportamentos deste teor plenamente
alcançá-los e traduzi-los pela escrita? Poderá ela com fidelidade evidenciar
as gradações do estético, do artístico ou do religioso? Pode o signo linguístico do investigador transmitir essas provações, elucidar sem intermitências
a participação do indivíduo nestes enredamentos únicos ou especiais, manifestar com inteira certeza os dados essenciais do funcionamento mental? As
palavras restringem a realidade a um simulacro. São o artifício possível que
almeja ser credível. Instauram um âmbito relativo para a ausência do que
procuram cingir e designar. Não sendo o que versam ou o que as inspira,
não sendo o nome a coisa nomeada, o discurso substitui aquilo que o motiva
a existir como tal. O que sai é uma transformação do que entra. Uma análise
nunca exprime completamente a natureza do motivo que a origina. É enganoso julgar conseguir comunicar com objectividade a experiência de um
bailarino em cena. Como expressar adequadamente o que não é igual ao
que vulgarmente acontece neste mundo senão ousando uma aproximação
poética, senão desafiando as musas, senão tentando levar o leitor para um
domínio celeste?
A perscruta de um assunto tão abrangente não se pode satisfazer com uma
finitude conclusiva ou com a contingência objectivada da linguagem que a
veicula. O fascínio causado por um tema com esta abrangência obriga a que
o seu minucioso averiguar se retarde para manter intacta a quididade daquilo
que suscitou o interesse e a vontade de imbuição e transporte. O estudo encadeia nexos, ramificações e ressonâncias mas não permite que o assunto se
esgote, que a perplexidade se extinga. O texto firma uma conivência entre o
autor e o destinatário. O leitor partilha pela imaginação aquilo que este lhe
vai emitindo, aquilo que despertou a sua admiração e entrega. Para dignificar
este enleio do autor e o seu compromisso com o receptor, o material escrito
tem de ser algo mais que o prosaico concreto dos próprios vocábulos e os
conteúdos em questão, mais do que a mera diligência de obter um desfecho.
O autor exigente adia mas não subtrai, espera algo mais do que o trivial necessário ou razoável. Na tangibilidade faz fulgurar o esplendor da abstracção, no
poético engendra a lucidez que a incidência comum não consegue.
238
JOÃO SOARES SANTOS
A exposição verbal que reflecte sobre a arte, a sua filosofia, conjunto de
valores e práticas, não pode deixar de se dirigir às representações do mundo e,
por isso, às operações cognitivas e discursivas. Se a arte introduz o numinoso
num quotidiano utilitarista, um texto que a pondera não pode contentar-se
com um espaço de literalidade, não pode dispensar o efeito afectivo, não
pode deixar de se atrever a ir até às orlas, entrando na dimensão última ou
recôndita da expressão linguística, no estímulo à sensibilidade e emoção, na
sabedoria poética.
2. Encobrindo-se e revelando-se na personagem, o actor, bailarino ou
marionetista entra no mundo, explora e inquire as qualidades humanas,
veicula e experimenta com os seus conhecimentos a natureza daquilo que
representa. Alterado, age muitas vezes de um modo quase mecânico, sem
pensar conscientemente no que patenteia, desempenha o seu papel como
um autómato, algo que se move por si mesmo, convencendo-se ou dando a
impressão de não se aperceber do que está a fazer. Guiado e dirigido por um
vento que por ele passa e impele, procede quase involuntariamente, como se
estivesse absorto num sonho da sua pessoa. O acto de criar foi muitas vezes
comparado a uma instigação extasiante, a um estado mental de inebriamento
que supera as tangibilidades do que é comum. Na inspiração artística o indivíduo costuma ser descrito como invadido por uma espécie de demência,
por uma repentina exaltação que o modifica, permitindo tornar perceptíveis
dimensões que não parecem pertencer à sua identidade, que transcendem a
sua condição habitual. Na arte teatral e coreográfica as condutas humanas e
as suas tensões são problematizadas numa ambitude filosófica, psicológica e
religiosa. Muitos géneros asiáticos tradicionais estão enquadrados por festividades nas quais são invocadas entidades sobrenaturais, servem de lenimento
para quem assiste ou como abonação para preservar a saúde, garantir a prosperidade, a fertilidade e repelir influências causadoras de desgraça.
Na «Arte do Marionetista», Pak Jaya, referindo-se ao Wayang javanês,
afirmou que as figuras simbolizam o mundo dos homens, o marionetista
(Dalang), emblematizando a verdade e o sentido, é o espírito dos mesmos.
O ecrã é o mundo invisível superior sobre o qual se movimentam as personagens recortadas em couro. A lâmpada pendente exprime o irradiar da
força omnipotente do ente supremo. O público receptor é o homem sábio
239
ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO
que almeja tudo compreender. A arca onde estão guardadas as marionetas
de sombra é o sepulcro, o lugar em que todos os papéis cessam, o lugar de
regresso à inércia, o fim inevitável de todas as coisas e seres, a união derradeira com a causa que as gerou e deu alento.2
A noção de temporalidade está intrinsecamente ligada à actividade teatral.
O que acontece em cena surge num fluxo cronológico, numa desaparição
sucessiva de instantes dramáticos da trama que se desenrola, numa espécie de
interrupção mítica ou onírica do real mundano. Troços encadeados de sons
e de visualidades concretas aparentam ser suportadas por uma continuidade
legitimadora não restringida a esse real, por uma prevalência excluída das
mutabilidades empíricas da acção. O teatro estende as suas particularidades
na consciência de lapsos progressivos, advertindo para um fundamento
intemporal, remetendo para uma substância essencial para além daquilo que
tem princípio e fim. Há um tempo finito que decorre num tempo perene.
Os momentos de real, de causa e efeito, processam-se nos intervalos de uma
permanência eterna, de uma inerência nebulosa coordenadora que reduz
o real e as suas transitoriedades a uma ilusão de passado, presente e futuro.
Vyasa, comentando Patanjali, realçou que a noção de tempo (Kala) implica
as próprias operações intelectivas, sendo a consequência das modificações do
pensamento e, por isso, uma elaboração germinada por uma mente em constante mutabilidade. O teatro versa sobre as vicissitudes da existência e, nela,
cada instante que acaba é o começo de outro, precipitando os seres numa
morte certa. O que é novo está sempre a tornar-se velho. Gradualmente
tudo se transforma, nada persiste tal como era antes. O indivíduo sabe que
a sua inaptidão para contrariar o efeito do tempo traduz a sua vulnerabilidade. Do nascimento à morte, sabe que tem uma duração restrita na duração
mais ampla da humanidade. A memória conserva, localiza e associa registos
passados. Necessitando dela, o raciocínio, ao encadear as suas operações,
testemunha só por si essa temporalidade. Com vários planos e matizes subjaz a
todas as artes, como ingrediente estético, a ideia de prolongamento, de antes
e de depois, de fracções periódicas conjugadas com a mudança. Nas artes
cénicas da Ásia quando as divindades ou figuras míticas de épocas recuadas
são ritualmente convocadas, quando se apresentam à audiência e ocupam o
corpo de actores, marionetas, manipuladores ou narradores, instauram um
ambiente propício para as leis vulgares do espaço e do tempo serem abolidas.
240
JOÃO SOARES SANTOS
O poema dialogado «Yogavasishtha Ramayana» equipara este último a um
actor que entra e sai de cena para interpretar o seu papel numa intriga.
Nestas artes a acção envolve um pretérito que coincide com um agora.
Gera-se um interregno no qual uma antecedência se actualiza e projecta
no futuro. Há uma dilação suspensiva da brevidade linear do tempo, uma
indefinição que imobiliza ou sustém o seu ritmo. Pelos instantes que transitam seguimos no rumo do perecimento. As artes dramáticas, coreográficas
e musicais fixam a atenção e aliviam o espectador daquilo que é imprevisível
e constante. Concentrado nelas, ele olvida para se deixar arrebatar. Ficando
fora de si, o seu encanto e abalo emocional abre um lapso de desprendimento mental. Durante o enleio causado pela arte, o tempo retarda o seu
curso, priva-o da sua volatilidade. Nessa pausa, figuras míticas, antepassados,
heróis e potestades reúnem-se com os intérpretes e o público.
Em Kelantan, o Dalang antes de começar a sua representação é apossado
pelo esquecimento (Lupa). O vocábulo depreende o sânscrito «Lopa» que
significa «perda», «desaparição», «interrupção», «ausência», «quebra»
e, nesta região da Malásia, corresponde a um intervalo de transe, de extravio
da consciência habitual, para assim estabelecer contacto com o predecessor
da sua linhagem, identificado com o protagonista da narrativa, o príncipe
Ino. Sendo ocupado por esta figura e deixando-a agir e falar com o seu
corpo durante horas, por várias noites consecutivas, posteriormente afirma
não se recordar de nada. Tudo o que aconteceu não foi num lapso da realidade empírica comum mas num tempo primordial, de omissão mnésica, no
qual as relatividades se apagam. O tempo variável da intriga e de apreensão
parecem fundir-se numa simultaneidade intransitiva.3
No Japão os conceitos estéticos estão imbuídos da sugestão de existência
mutável, um antes e um depois que se repercute numa vontade de evo. O actor
de Nô frequentemente personifica alguém falecido que aparece para rememorar o seu percurso na vida. A sua presença em palco evoca uma dimensão
excluída da materialidade cronológica usual, procurando abarcar as camadas
mais inefáveis da compreensão do destinatário. Zeami (1363-1443) referiu
que os espectadores de Nô por vezes sentem aprazimento quando ficam
perante momentos de imobilidade da figura dramática, insinuando estes,
talvez, uma perpetuidade para a além dos gestos e que resultam da pujança
espiritual inata do mesmo.4
241
ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO
A «Narrativa dos Heike» («Heike Monogatari»), escrita entre 1202
e 1221, obra muito adaptada para peças de teatro Nô, principia com uma
alusão ao transcurso do tempo e à mudança concernente. «O som do sino
do templo (Shôja) de Gion ecoa a inconstância de todas as coisas. A pálida
tonalidade das flores da teca revela a verdade de que aqueles que prosperam
irão declinar. Como um sonho numa noite de Primavera, os orgulhosos
não durarão muito tempo. Também os poderosos perecerão no final, como
poeira diante do vento».5
Na língua nipónica «Naru» alude ao fluxo mutativo das coisas, ao tempo
enquanto mobilidade influenciadora, movimento concreto que altera,
energia que corrompe e renova, que dá e tira. Factor implícito no sentimento
de beleza, no discernimento de gosto, está associado à decadência suscitada
pela mudança que provoca, à incapacidade de as coisas não resistirem ao
esvaecimento, de não conservarem infindavelmente a mesma configuração.
«Naru» está conectado com o termo «Dô» («via») e este com a noção
chinesa de Tao (Dao). O tempo impulsiona e modela e os homens a essa força
submetidos, aprendem a viver segundo restrições criativas, segundo normas
ou rituais, segundo processos estetizados que conduzem a um determinado usufruto. A cerimónia do chá (Cha Dô ou Chanoyu) é um exemplo desse
comportamento e envolvimento disciplinado para «apenas ferver água, fazer
a infusão do chá e bebê-lo».6
«Sabi» é um vocábulo que remotamente denotava desolação ou solidão
e, subsequentemente, adquiriu o significado de «envelhecer», inferindo um
agrado melancólico obtido pela contemplação daquilo que avançou no tempo,
o deleitoso efeito da decrepitude ou emurchecimento. Deriva de «Sabu»
(«desvanecimento, «decadência») e focaliza-nos nas cambiantes originadas
pela circulação do tempo. Da constatação desse declínio ou despojamento
pode emanar Yûgen, um misterioso e profundo encanto, difícil de verbalizar,
o indizível deslumbre que consiste no superlativo propósito do Nô.
«Yû» significa «obscuridade», «sombrio» e «Gen» «trevas», «escuridão». Este termo (Yûgen) provém do chinês «Youxuan» (algo portador de
uma extrema penetração e que não pode ser compreendido). «Sabi» veio
a confundir-se com «Wabi» («langor», «definhamento»). Esta segunda
palavra procede de «Wabu» («esmorecer», «degenerar», «murchar»,
«desvanecer») e implica um deliciar causado pela serenidade ou harmonia
242
JOÃO SOARES SANTOS
percepcionada nas coisas simples, no que tem uma existência sem artifícios.
Pode-se atingir Yûgen na arte através do recurso à impressão de Sabi, a qual,
por seu turno, pressupõe Naru. Directa ou indirectamente os numerosos
conceitos estéticos japoneses estão conectados com implicações afectivas
acerca do tempo. «Aware» começou por ser uma interjeição, a reacção
provocada por uma coisa, um substituto expressivo para a ausência de palavras face a um incidente surpreendente. Depois veio qualificar um impacto
vagamente desgostoso motivado por algo belo. Mas esse maravilhamento, esse
pretexto que serviu inesperadamente para seduzir e assombrar, não deixa de
ser um motivo fugaz. Em Aware há o prazer de um entristecimento resignado
advindo da variabilidade que comove, do nexo da flutuação cronológica
portadora de âmbitos de interdependência e mutação.
As artes cénicas criam na vigília do espectador uma provação onírica. Nelas
se suprime a lógica trivial do tempo. Há muitas alturas no Kabuki japonês em
que o actor congela numa pose (Mie), trava a sua acção num instante alargado.
O movimento extingue-se e, numa pausa de postura concentrada, numa
hirteza paroxísmica, num congestionamento apoteótico, enfatiza a intensidade da disposição psíquica da personagem. Este retesamento corporal dilata
o momento para o espectador melhor conservar a reminiscência da imagem
poderosa que exprime a sua condição e natureza dramática. Também a
música serve para encurtar os hiatos cronológicos e espaciais. Na Birmânia,
as alterações nestas dimensões são feitas pela orquestra acompanhante a
pedido do actor. Antes de uma cena se transferir para outro tempo e lugar,
a personagem interpela o chefe da orquestra: «meu Senhor da orquestra,
indica-me o caminho da floresta para a qual me devo conduzir». A composição tocada depois pelos músicos transporta a audiência para o local ditado
pelo entrecho. Outras vezes o actor solicita: «meu Senhor dos tambores e
flautas, usai os vossos ágeis dedos e tocai uma melodia que me indique o
caminho a seguir» ou «uma melodia que, estimulando a minha força e
coragem, me faça sair vitorioso do combate que vou travar com os meus
inimigos».7
Muitos reforços de percepção são conseguidos com o apoio de um ónus
afectivo na elocução verbal, na mobilidade ou nas sonoridades acompanhantes, transmitindo sensações, emoções ou sentimentos da personagem
e funcionando como uma extensão psicológica do tempo. Analisando a
243
ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO
humanidade, apreciando as relações éticas e morais estabelecidas entre o
sujeito e a família, os amigos ou a sociedade, a comicidade, sempre presente
nestas formas artísticas, delata muitas vezes aspectos de uma interioridade
endurecida por práticas rotineiras, de indivíduos apenas preocupados com a
satisfação utilitarista dos seus desejos, pessoas incapazes de ver os seus deméritos, de sair dos seus impasses, de superar as suas limitações, de se purgarem
das torpezas e estreitezas mentais. No riso relampeja o receio do cadáver
potencial que somos e a sua excitação alerta-nos para a vacuidade desses interesses egoístas, para o desperdício de condutas que antecipam a morte na
vida. O cómico edificante explora com as suas técnicas a dor e os sofrimentos
para assim os desbloquear, para nos tornar mais resistentes às experiências
tormentosas. Depreciando ou negando, responsabiliza, força o sentido de
justiça, procura conciliar-nos com o que somos ou com o que não podemos
ser. Há uma comicidade que condena para apaziguar e absolver, que repta
para pacificar, que é impiedosa para ser indulgente, que lança a injúria por
respeito aos valores deteriorados pelas convenções ou pelos apetites. Só
poderia ser motivo de troça alguém que não achasse graça a nada. O riso é
um assunto sério nas representações asiáticas e nelas é frequente haver uma
tipologia de personagens e uma adequação destas a uma graduação dos diferentes atributos de carácter pensados em função de exemplos absolutos de
probidade.
Uma classificação orientadora do Wayang Kulit javanês tem como modelo
o soberano Watugunung, as suas três mulheres e vinte e sete filhos. Frases
metafóricas enunciam distintas matrizes do procedimento humano: Indra
veio à terra como eremita; o brilho do sol; a bela montanha vista à distância;
Noz-moscada pendendo nas ramagens; o resplandecente arco-íris; raios e
trovões por toda a parte; a árvore coberta por trepadeiras parasitas; o ruído
de um tremor de terra; flores crescendo por toda a parte; flores de hibisco
vermelho; a ave elevando-se nas alturas; os salpicos de uma fonte; o ruído
de um vulcão; uma pedra negra e uma grande árvore com raízes profundas;
uma embarcação no mar; uma ilha vista à distância; as grandes águas de uma
inundação; um jardim de flores com uma vedação em redor; um elefante
enlouquecido puxando a sua corrente; a rola descobrindo uma montanha; o
desmoronamento de uma montanha; o fogo de uma espingarda misturado
com o fumo de pólvora; estrelas vislumbradas entre nuvens de chuva; a
244
JOÃO SOARES SANTOS
excelente lâmina; chuva fora de estação; o amplo firmamento; a lâmpada
que arde; orvalho pingando na água; a bela vedação à volta do palácio; a lua e
as estrelas surpreendidas pelo dia.8
Filho de Dewi Sinta, cônjuge do monarca Palindriya de Purwacarita, Jaka
Wudug ou Radite nasceu na floresta. O seu apetite voraz e constante pedido
de alimento esgotou certa vez a paciência da mãe e, não suportando mais
a sofreguidão da criança, agrediu-a na cabeça, deixando-a ferida. Radite
fugiu e tornou-se um temível guerreiro. Conquistou o reino próximo de
Gilingwesi e ascendeu ao trono como rei Watugunung. A sua ânsia de poder
levou-o, sem saber a sua genealogia, a atacar Purwacarita, a chacinar o pai e
a desposar as viúvas, mormente a própria mãe da qual teve dezanove filhos,
num total de vinte e sete. Um dia Sinta descobriu a cicatriz na cabeça do
marido e percebeu com opróbrio que ele era o próprio filho. Não se resignando à vergonha da relação incestuosa, engendrou um plano redentor.
Incentivou Radite a instar a permissão dos deuses para casar com sete Apsaras.
Os deuses não gostaram nada da ideia e rejeitaram o pedido. Watugunung
desafiou-os então para um combate de adivinhas, acabando derrotado por
Wisnu. Watugunung com as suas esposas, o progenitor morto e os filhos
foram transformados em períodos do calendário. Converteram-se nos dias
da semana e nas fracções de trinta e sete dias (Wuku ou Pawukon) da ordem
temporal javanesa. Esta história («Lakon Watugunung») é proferida no
Wayang Kulit Purwa. O mito de uma era antiga é recordado no nome de cada
divisão cronológica do quotidiano e na arte do Wayang de «épocas recuadas»
ou «do princípio» (Purwa).
3. O faisão possui uma plumagem colorida mas não ultrapassa a distância
de cem passos após o seu primeiro voo. Tem uma anatomia roliça e pouca
força. A águia, com uma postura mais nobre, graças à sua pujante ossatura
e fogosa energia, executa um voo vertiginoso. Esta comparação feita por Liu
Xie (456 - c.522) aplica-se às obras literárias e, por extensão, às artes em
geral. No texto «O Dragão Esculpido no Coração da Literatura» («Wen
Xin Diao Long») salientou que, nesta arte, a combinação gradativa desprovida de uma ossatura e de sopro será semelhante a estas aves com um belo
revestimento cromático mas incapazes de ascender e de se deslocarem com
facilidade no ar 9. O faisão faz um esforço para levantar voo e não sobe muito
245
ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO
alto, não tem a naturalidade e a simplicidade da águia que paira no espaço de
asas abertas, ao sabor do vento. A escrita permite que a imaginação se eleve e
que o nosso espírito seja permeado pelas coisas. Para que as aptidões artísticas
de um autor se evidenciem nas qualidades essenciais do que redige é necessário ter adquirido um vasto conhecimento, desenvolvido treino e afinação
do raciocínio, ter estudado as suas experiências e delas ter obtido refinamento. Só assim o talento pode rivalizar com o vento e as nuvens. A matéria
literária traduz o pensamento do seu criador e, tal como um corpo, tem de
possuir em primeiro lugar uma ossatura, uma armação estrutural interna
ou seja, manifestar uma exactidão que resulta do atenuar ou suprimir o que
não é límpido ou verdadeiro. Este suporte harmonioso é necessário para se
acrescentar uma latitude espiritual, uma sagacidade profunda que clarifica os
sentimentos em questão. O pó-de-arroz e a pintura facial de uma senhora
servem a sua beleza embora o seu genuíno encanto não esteja na maquilhagem usada mas sim na graça natural que de si se desprende como, por
exemplo, quando sorri. A expressão sincera do seu sorriso tem uma carga
mais decisiva para exercer o seu poder de sedução do que os adornos cosméticos. Por isso, na literatura, a honestidade do sentimento é a corrente que
sustenta o emprego da verbalidade saída da razão.
No tratado «O Verdadeiro Caminho para a Flor» («Shikadô»), Zeami
considera três planos no trabalho do actor de Nô: o osso, a carne e a pele. O
primeiro consiste na força natural que este imprime na dramatização e que
advém das suas faculdades inatas ou talento herdado, o segundo nas habilidades
adquiridas no canto e na dança e o terceiro na aparência elegante em palco.10
Ao ensinar o filho a compor poesia, Lu You (1125-1210) disse: «se estás
determinado a redigir poemas tens de trabalhar arduamente em muitas outras
coisas para além da escrita.»11 Os versos de muita da poesia chinesa parecem
conjugar-se de um modo desconexo. São frases que expõem de um modo
sugestivo imagens cujo fio de ligação é tecido pela imaginação do leitor. Há um
deliberado hiato, uma incompletude no relato lírico, nos quadros pintados
com o léxico para que «o rio subterrâneo que corre silenciosamente entre
os versos»12 seja sentido. Interessa o tempo de elaboração onírica do leitor,
o seu divagar no vazio situado entre as palavras. O que não é proferido tem a
mesma importância do que é. A elocução quando vem do interior deixa uma
neblina de insondabilidade, um vácuo a ser preenchido pela sensibilidade
246
JOÃO SOARES SANTOS
do destinatário. A observação poética das mudanças do mundo congemina
vocábulos que descobrem lacunas na sua coerência sequencial, urdem
uma abscência, uma quebra ofuscante na sua continuidade. Exprimindo a
sinceridade da emoção, a voz e a fala emudecem, o discurso não encontra
morfologias verbais e, por isso, solta a sua própria indefinição, mostra a sua
insuficiência na omissão, no cancelamento poético. A agilidade da escrita
obriga a ter a serenidade de se sustentar nas alturas, de planar de asas estendidas
e, como a águia, no momento certo, apontar para o seu alvo. Resistindo às
oscilações do ar, permanece imóvel flutuando no vento.
Na época Shang (c. 1600 a.C. – 1028 a.C.), o vento (Feng) parece ter sido
uma divindade em forma de ave chamada Feng Bo. Esta entidade sobrenatural modelava pelo dom da transformação tudo aquilo com que contactava.
Feng poderá estar ainda associado com loucura e a designação «espelho de
vento» (Fengjian) equivalia a um profeta ou adivinho. No passado chinês
o vento dirige a passagem do tempo e regula os ritmos da metamorfose.
Entender as suas deslocações consentia o acesso aos segredos da alterabilidade. Ele impulsionava padrões de cadência no mundo natural aos quais
o indivíduo se deve ajustar. O Homem deveria inserir-se na ordem cíclica
em consonância com os movimentos eólicos e temporais. A primeira das
quatro partes do «Livro das Odes» ou «Livro dos Cantos» («Shi Jing»,
entre c. 840 e 620 a.C.) intitula-se «Ventos dos Estados» («Guo Feng»).
«Feng» pode, no contexto, também indicar «melodia» ou «poema».
Posteriormente o mesmo termo serviu para indicar um artista letrado
e «Feng Huang» para referir a Fénix que, segundo a hipótese de alguns
autores, seria primitivamente um deus conectado com os fenómenos atmosféricos. Na antiguidade deste país era o monarca que estabelecia o calendário,
era ele o responsável pelo correcto funcionamento da disposição cronológica
e práticas sazonais. A sociedade estava regida por uma ordem de dias, festividades e rituais consoante uma suposta coerência natural determinada por
forças que ultrapassavam a compreensão humana trivial. Sugeriu Laozi no
«Dao De Jing» que uma das qualidades do governante sábio era de deliberar ou proceder com sentido de oportunidade. Evitar atritos nas ondas de
propagação temporal, intervindo no momento adequado e sem uma intromissão escusada da sua autoridade. Por dilatação ou encurtamento, a justa
duração não pode ser abreviada ou alargada, não pode ser perturbada na
247
ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO
sua propriedade. Cada começo ou término não pode ser constrangido, sob
o risco de surgirem desacordos na continuidade da sua índole, rupturas na
persistência própria dos eventos e fenómenos. Os segmentos temporais e de
mutação são como ramagens que despontam, articulam e florescem de uma
raiz invisível. A realidade ontológica fica sujeita à cronologia e à transformação. A longevidade subentende a habilidade de se conservar nessa relação
com a mudança, não travar ou impedir a fluência do seu decorrer para se ter
uma morte na altura aprazada. Viver segundo uma táctica de concordância,
de escrupulosa pontualidade com as sucessivas etapas dessa orgânica absoluta,
dessa espécie de suprema e dúctil verdade que impulsiona a diversidade e a
transição. O sábio não intervém e por isso não destrói. Se pensarmos num
Tao da arte podemos aplicar de novo a metáfora de Liu Xie. Como a águia no
céu, o artista perspicaz não constrange o voo, não força as morfologias que
concebe, deixa-as balancear nas turbulências das auras interiores. O que o
move é a genuinidade do vento que em si sopra e que o leva.
A estética literária da ópera chinesa radica-se na busca de uma linguagem
sincera e luminosamente inteligível, sem enfeites que dispersem a atenção do
que é significativo no discurso. Nesta pureza verbal está implícita uma abertura proba do coração, uma apresentação sem rodeios ou astúcias do que é
autêntico e efectivo. O aroma poético emana deste princípio, dessa substância
íntima sobre a qual se particulariza o simulacro do actor, a sua empatia com
a personagem e a adesão do público. A eloquência edifica-se a partir desta
legitimidade intrínseca para assim evitar o lugar-comum ou a vulgaridade.
Esta base de verdade é o receptáculo de todas as possíveis máscaras. A fantasia
deve ser descrita como se fosse real para que o real pareça uma fantasia.
O actor desta manifestação artística não deve fingir que é uma personagem
mas proceder como se a personagem fosse ele. O público e o intérprete não
se contentam apenas em ver a literalidade de um simulacro. Querem que o
simulacro os convença que não estão perante uma situação ardilosa. Na peça
«Bimuyu» de Li Yu (1611 - c. 1680), duas das figuras dramáticas, a actriz
Liu Miau Gu e o actor Tan Chuyu, amam-se, estão casados e representam
juntos no palco. Nas cenas em que têm de exprimir esta inclinação, para não
deixarem transparecer a sincera conivência afectiva existente entre ambos,
fingem representar. O que as personagens proferem e aparentam sentir não
pode ser igual à própria vida, senão não seria arte. Por isso, fingindo que se
248
JOÃO SOARES SANTOS
amam, experimentam a verdade do amor intenso sentido. Fingem para que
a verdade se converta em arte e em simultâneo são autênticos para que a arte
comunique pelo artifício o que não é falso. «No palco ele adora-me como
sua verdadeira mulher enquanto eu o amo como meu verdadeiro marido
e tudo vem do fundo do coração e vai para o fundo do coração. Os outros
pensam que estamos apenas a representar mas de facto o que estamos a fazer
é genuíno. Quando uma representação se torna a própria vida, quando os
actores são as pessoas mais felizes do mundo nos seus papéis, nada pode evitar
que essa seja a melhor representação que existe».13 Os dois artistas fingem
assim ser as personagens embora não estejam num desempenho. Fingem
que estão numa intriga teatral para poderem estar a ser autênticos. Convém
recordar que a actriz (que pode ser um homem a assumir esta personagem)
enuncia este monólogo em palco. Diz as palavras inventadas pelo autor e, ao
contracenar com um colega, simula que o ama como se fosse o seu marido,
equiparando o acontecimento a algo real. O ápice da dramatização resultará
deste requinte que deixa a assistência deliciadamente perplexa, silenciosamente estupefacta. O sublime florescerá quando o próprio actor olvida que
está a fingir, perde a noção de separação entre si e a dramatis persona e o
público confunde o fictício com o real.
O capítulo XVI («Xiangzi entra no Submundo para Examinar os
Registos da Vida e da Morte») da «História de Han Xiangzi» («Han
Xiangzi Quanzhuan»), um dos oito imortais taoistas, figuras muito apreciadas no repertório dramático dos períodos Yuan (1279 - 1368) e Ming
(1368 – 1644) começa com um enigmático raciocínio: «a verdade é ilusória,
a ilusão verdade, por isso a verdade é também ilusão; a ilusão é verdadeira,
a verdade ilusória, todavia a ilusão não é verdadeira. A tua natureza original
não conhece a distinção entre verdade e ilusão. Quando rires para o mundo
de pó, a ilusão e a verdade tornam-se claras».14 Este riso aqui referido parece
inferir um desprendimento superior, um desdém ou uma abnegação dos
interesses pessoais que incitam a desejar e a recear a perda. Um riso desenhado por uma lucidez profunda sobre o inane das formas no tempo,
sinalizando a incolumidade ou o distanciamento de alguém ciente que neste
mundo de câmbios e interacções nada fica na mesma. Como o riso de uma
marioneta pensada e conduzida por uma força motriz externa e que a faz agir
com se imaginasse estar viva.
249
ECOS DE UM PERPÉTUO DESVANECIMENTO
À semelhança de um sonho, os ventos sopram sem intenção, como a vida
ou o destino, imprevisível e inconstante, sugeriu Zeami na peça «A Boca de
um Poço» («Izutsu»). Nela, no segundo acto, uma personagem feminina
(interpretada por um homem), o fantasma atormentado de Ki no Aritsune,
com uma indumentária masculina, a de Ariwara no Narihira, seu falecido
marido, evocando em dança a história de amor entre este e ela, surge durante
o sonho de um sacerdote budista. No final ela olha-se no poço e vê reflectida
na água a sua figura com traje de homem.
Tudo não passou de um sonho de personagens no sonho da vida que é o
teatro, enquanto nós espectadores e actores das fantasias do mundo vemos
no palco a imagem reverberada dos nossos artifícios.
«Sete dias nas montanhas são mil anos na terra».15
250
JOÃO SOARES SANTOS
Referências:
1 – R. K. Yajnik, «The Indian Theatre, George Allen & Unwin, London, 1933
2 – Mencionado por Sri Mulyono Djojo Supadmo, «Human Character in the Wayang»,
Gunung Agung, Singapore, 1981
3 – Jean Cuisinier, «Le Théatre d’Ombres a Kelantan», Gallimard, Paris, 1957
4 – Zeami Motokiyo, «Jûrokubushû Hyôshaku», mencionado na obra «Sources of
Japanese Tradition» (Compilação de Ryusaku Tsunoda, Wm. Theodore de Bary e Donald
Keene), Vol. I, Columbia University press, New York, 1964
5 - «The Tale of the Heike» (Tradução de Helen Craig McCullough), Stanford
University press, Stanford, 1988
6 – Sen no Rikyû (1522-1591), mencionado por Donald Richie, «A Tractate on Japanese
Aesthetics», Stone Bridge press, Berkeley, 2007
7 – Camille Poupeye, «Problèmes de la Mise en Scène dans les Vieux Théatres de
l’Extrême Orient», «La Revue Theatrale», Nº. 6, Éditions Bordas, Paris, Junho-Agosto
de 1947
8 - Sri Mulyono Djojo Supadmo, opus cit.
9 – Lieou Hsié (Liu Xie), «Le Dragon Sculpté sur le Coeur de la Littérature» (Tradução
de Ho Ju), «Littérature Chinoise», Nº. 3, Beijing, 1964
10 - Zeami Motokiyo, «Shikadô», incluído na obra «On the Art of the Nô Drama:
the Major Treatises of Zeami» (Tradução de J. Thomas Rimer e Yamazaki Masakazu),
Princeton University press, New York, 1984
11 – Lu You (ou Lu Wuguan), mencionado na obra «Traditional Chinese Culture»
(Editado por Zhang Qizhi), Foreign Languages press, Beijing, 2007
12 - Mencionado na obra «Traditional Chinese Culture», opus cit.
13 – Li Yu, mencionado em «Chinese Theories of Theater and Performance» (Editado
e Traduzido por Faye Chunfang Fei), The University of Michigan press, Ann Arbor, 2005
14 – Yang Erzeng (activo entre 1590 e 1602), «The Story of Han Xiangzi» (Tradução
de Philip Clart), University of Washington press, Seattle, 2007
15 - Idem
251
252
LIVROS
A Esquerda e o Socialismo
Joaquim Jorge Veiguinha
N
um artigo publicado
no jornal Público, em
11 de Outubro de
2010, e significativamente intitulado Apologia do Capital,
a historiadora Maria de Fátima
Bonifácio defende que, perante a
falência das “sociedades organizadas e dominadas pelo Estado”
e cujo último bastião era “a Cuba
de Fidel de Castro que a esquerda
europeia, apesar de tudo, continuava
olhar como um episódio comovente
e romântico da luta dos pobres contra
os ricos”, apenas o capital privado
poderá proporcionar aos indivíduos
tanto a “liberdade” individual, como
a “afluência”. Neste sentido, a autora
considera que Margaret Thatcher tinha
razão quando dizia há trinta anos que
“«sem os ricos não haverá esperança
para os pobres»”.
Se bem me lembro, Moreira
Baptista, ministro do Interior de um
marcelismo em processo de esgotamento, foi bem mais modesto: não
ousou fazer, como Fátima Bonifácio,
uma ‘apologia do capital’, mas
limitou-se a um elogio dos capitalistas.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades”, dirão alguns. Ou talvez não,
quem sabe?! Mas o artigo de Maria de
Fátima Bonifácio desperta-nos a atenção
para o livro de Eduardo Lourenço, A
esquerda na encruzilhada ou fora da História?
(Gradiva, Lisboa, 2009) que nos
oferece um panorama crítico sobre a
esquerda e o socialismo. Constituído
em grande parte por artigos publicados
na revista Finisterra entre 1989 e 2005,
bem como por algumas crónicas em
jornais diários e semanários, o autor
considera que “durante três quartos
de século, a Esquerda viveu-se a si
mesma como actriz e horizonte de um
movimento histórico que tinha no
socialismo o seu discurso legitimador
e a sua utopia” (Lourenço, Eduardo,
ib., p. 89). Ao contrário de Fátima
Bonifácio, o nosso maior ensaísta
não toma como pretexto os crimes e
a ausência de liberdade nos regimes
que se reclamavam do socialismo,
desde os gulagues da União Soviética
de Estaline, passando pelas monstruosidades maoistas da ‘Revolução
Cultural’ e pelos ‘campos da morte’ do
Cambodja de Pol Pot, para concluir
253
A ESQUERDA E O SOCIALISMO
que apenas resta à parte mais pobre da
humanidade confiar nos ricos para,
finalmente, ascenderem à ‘afluência’.
Eduardo Lourenço tem consciência que o refluxo da esquerda e do
socialismo na Europa está indissociavelmente ligado à queda do Muro
de Berlim e à implosão da União
Soviética. No entanto, não considera que este evento seja o ‘dobre de
finados’ de ambos, mas uma oportunidade soberana para reflectir sobre
as suas causas e para repensar o seu
futuro. Ponto fundamental da argumentação do autor é que a esquerda
socialista no Ocidente limitou-se a ser
um mero contraponto ao “espectro
do colectivismo” do seu antagonista, oferecendo-lhe uma espécie
de “resistência passiva”. O desabamento do Muro de Berlim deixou-a,
de certo modo, orfã de si própria e
refém da sua passividade, cercada por
um “oceano de liberalismo”(Ib. p.
92). Sem narrativa própria, esta transformou-se em esquerda soft - alguns
utilizam a designação de ‘esquerda
caviar’ - incapaz de se contrapor ao
liberalismo triunfante, arvorado em
ponto culminante e inultrapassável da
história humana, primeiro no plano
económico e financeiro, depois no
plano político e cultural. Será então –
interroga-se o autor – que “o projecto
do Socialismo e da Esquerda” com a
254
sua aspiração a uma igualdade e justiça
sociais que sejam compatíveis com a
preservação das liberdades individuais
e políticas está “condenado a estiolar-se entre a bigorna ultra-sofisticada
do capitalismo e o martelo rude do
comunismo?” (Ib., p. 40).
Eduardo Lourenço tem consciência que o liberalismo constitui hoje
em dia “uma máquina infernal”,
isto é, “um dispositivo incontrolável e fatal, para destruir o que nós
somos ou nos supomos como seres
que dominam o seu destino” (Ib.
p. 163). De uma forma perspicaz, o
autor apercebe-se que o motor desta
‘máquina infernal’ é a “produção
alienante” que - confirma justamente
- ninguém “analisou melhor que
Marx” (Ib., p. 165) e que, poderemos
acrescentar, está presente em toda a
obra do autor do Capital, apesar de
Althusser e seus discípulos dos anos
70 do século passado considerarem
- erradamente - que o conceito de
‘alienação’ se circunscrevia às suas
obras de juventude. A ‘produção
alienante’ é uma produção desumanizada que instaura uma competição
entre os homens para não serem
excluídos dos paraísos artificiais do
consumismo, espécie de compensação fugaz para perda de soberania
sobre as suas próprias condições de
trabalho e de vida: “Nós somos o
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
que consumismos, mas não temos
nenhuma capacidade de escapar à
sedução dessa droga, desde a mais
conforme ao nosso próprio sonho de
mobilar o mundo que encontrámos
(inventando o automóvel e o avião)
até à mais sofisticada oferta cultural de
bens de pura diversão tornados mais
necessários que a nossa antiga dependência da terra, do ar, da água, do
fogo há muito domesticados através
de uma vitória sobre eles que não era
ainda a nossa derrota” ( Ib., p. 165).
É verdade – poderemos dizer – que
os progressos da medicina moderna
permitiram que triunfássemos sobre
as epidemias de peste bubónica da
Idade Média, mas estão inexoravelmente associados ao aparecimento de
novas doenças e epidemias algumas
das quais tendem a tornar-se incontroláveis. Com isto pretendemos
dizer o que já está subentendido na
reflexão de Eduardo Lourenço: o
progresso não é linear, nem significa
que a ‘libertação’ relativa da nossa
dependência da natureza se transmute magicamente na libertação das
formas de predomínio do homem
sobre o homem, das desigualdades
e exclusões sociais, como pensavam,
ingenuamente, os iluministas do
século XVIII e como contestaram
criticamente Max Horkheimer e
Theodor Adorno na sua Dialéctica do
Iluminismo. Infelizmente, criaram-se
apenas novas formas de servidão mais
sofisticadas do que as precedentes.
Retornando ao tema, o que caracteriza
a ‘máquina infernal do liberalismo’,
constituindo, por assim dizer, a
sua ‘diferença específica’, é levar os
menos favorecidos a submeter-se
voluntariamente a cargas de trabalho
mais intensas e alienantes para
acederem à compensação ilusória do
estatuto de “consumidores privilegiados” (Ib., p 166). Esta espécie de
‘nova servidão voluntária’ é o traço
dominante do actual capitalismo
planetário – a chamada ‘globalização’ que, para Eduardo Lourenço,
rima com ‘americanização’ – que
“transformou a injustiça gritante das
antigas desigualdades entre «ricos»
e «pobres» (mas, apesar de tudo,
integrados negativamente no sistema
a que serviam de sangue) numa
perfeita máquina «infernal» capaz
de reciclar as suas próprias falhas”
(Lourenço, Eduardo, Ib., p. 167).
Perante estas novas condições,
apenas nos restam duas escolhas:
ou fazemos, como Maria de Fátima
Bonifácio, a ‘apologia do capital’
porque este não ‘sufoca’ a liberdade
individual de que “eu, por exemplo,
preciso para viver e ganhar a minha
vida” (Público, 11. 10. 10, p. 29)1 e
desistimos de lutar pela igualdade e
255
A ESQUERDA E O SOCIALISMO
justiça social, mesmo sabendo que,
no passado, este projecto se realizou
distorcidamente com a supressão
das liberdades individuais e políticas
nas sociedades inspiradas nos ideais
Revolução de Outubro de 1917, ou
tentamos repensar a esquerda e o
socialismo para construirmos uma
alternativa à ‘máquina infernal do
liberalismo’. Como não poderia
deixar de ser, foi esta a opção de
Eduardo Lourenço. Num período
em que a esquerda social liberal se
deixou contaminar pela mera gestão
conjuntural do poder, é imperioso
retomar a ideia de que o que demarca
a esquerda da direita é não apenas a
luta contra as desigualdades económicas e sociais, mas “a sua função
de contrapoder, e até de antipoder
mesmo no poder” (Ib. p. 37). Mas
a esquerda não pode ser dissociada
do socialismo que não é uma religião, mas a aspiração dos indivíduos
associados a libertarem-se dos constrangimentos sociais alienantes da
opressão e da exploração e a uma
sociedade mais justa e mais humana,
situada neste mundo e não num mais
além transcendente: “Marx poderá
ser mais realista que os seus contempo1
râneos Proudhon ou Fourier – pelo
menos é a sua versão – mas não é
menos utópico, se com o conceito
de utopia se entende a suposição ou
invenção de um lugar outro – não fora
da História e do Tempo –, mas desta
História e deste Tempo –, quer dizer
de uma sociedade outra, configuração
concreta dos desejos e sonhos mais
radicais da humanidade sem a qual
a ideia mesmo de Socialismo perde
todo o sentido toda a coerência, para
designar apenas uma entre várias
ideologias meramente pragmáticas
que a sociedade capitalista ocidental
tem gerado” (Ib., p. 21).
Presume-se que esta liberdade é, de certo modo inerente, à personalidade de Maria de Fátima Bonifácio. Mas seria
uma generalização abusiva inferir, como se depreende das suas considerações, que um número cada vez maior de
pessoas no actual capitalismo, com o seu cortejo crescente de trabalhadores precários e desempregados, dispõe da
mesma liberdade que ela de viver e ganhar a vida.
256
Para onde Vai a Social-Democracia?
Joaquim Jorge Veiguinha
P
ouco antes da sua morte
prematura, o historiador
britânico Tony Judt
escreveu o que poderia ser
chamado o seu “testamento político”
sobre o futuro das liberais democracias e o agravamento das desigualdades
sociais e económicas que põe em causa o
consenso e compromisso social em que
se baseava o Estado-providência, nascido
na Europa Ocidental no período posterior à Segunda Guerra Mundial e nos
Estados Unidos com o New Deal rooseveltiano. Ill fares the land é o título do
original britânico que foi traduzido e
publicado pelas Edições 70 de modo
muito original e significativo como
“Um tratado sobre os nossos actuais
descontentamentos”, em Outubro
de 2010. Logo na Introdução da sua
derradeira obra o historiador britânico faz uma amarga constatação:
“Os sociais-democratas de hoje
pedem desculpa e estão à defesa. Têm
deixado sem refutação os críticos que
afirmam ser o modelo social europeu
demasiado caro e economicamente
ineficaz. E contudo o Estado-providência mantém a popularidade de
sempre junto dos seus beneficiários.
Em lado algum na Europa existe
um eleitorado a favor da abolição
dos serviços de saúde públicos, do
ensino gratuito ou subsidiado ou da
diminuição da prestação pública dos
transportes e outros serviços essenciais” (Judt, Tony - Um tratado sobre os
nossos actuais descontentamentos, Edições
70, Lisboa, 2010, p. 21).
Poder-se-á dizer que a “estratégia
defensiva” da social-democracia está
indissociavelmente ligada a um avanço
da direita política e social a que não é
estranha a difusão de uma concepção
fatalista que considera a desigualdade
como um dado adquirido contra a
qual é inútil lutar. A ‘nova mentalidade’ teve também os seus defensores
precisamente no outro lado do
espectro político. De facto, as teorias
pretensamente inovadoras sobre a
‘responsabilidade pessoal’ dos desempregados pela sua situação emergiram
na América de Bill Clinton e propagaram-se à Grã-Bretanha do Governo
da ‘Terceira Via’ para atingirem a
Noruega e o modelo escandinavo, em
que a direita substituiu os partidos
257
PARA ONDE VAI A SOCIAL-DEMOCRACIA
social-democráticos que durante
muito tempo constituíram o modelo
e paradigma do Estado social. Estas
teorias baseiam-se num princípio
simplista que se pretende de alcance
universal. Rotulado pomposamente
como ‘Lei da Responsabilidade
Pessoal e Oportunidade de Trabalho’
durante a Administração de Bill
Clinton, consiste em “retirar a assistência a quem não tivesse procurado
(e aceite) emprego remunerado (...)
por quase qualquer salário” (Ib., p.
37). Mas isto significa antes de tudo
um retorno ao século XIX em que
o desempregado era considerado
responsável pela sua sorte, em consequência da sua má conduta ou por
ausência de iniciativa. Em segundo
lugar, o subsídio de desemprego
deixa de ser um direito, mas a mera
contrapartida de uma prestação a que
o desempregado está obrigado sob
pena de perdê-lo. E last but not least tem
o efeito perverso de contribuir para
financiar os baixos salários e a degradação generalizada das condições de
trabalho. Tony Judt, ao contrário de
muitos social-democratas contemporâneos, interroga-se justamente
sobre a validade deste argumento:
“Mas quem tem o direito de dizer,
e baseando-se no quê exactamente,
que alguém está melhor a trabalhar
por um salário baixo na Wal-Mart do
258
que a receber o subsídio de desemprego no modelo europeu? É claro
que a maioria das pessoas preferia
trabalhar. Mas a qualquer preço?”
(Ib., p. 84).
A interrogação é legítima, mas
é apenas uma das manifestações da
ruptura de um consenso social que se
manteve durante cerca de trinta anos
na Europa não comunista e começou
a declinar nos anos oitenta do século
passado. Este consenso, que se estendia
também aos adeptos norte-americanos
do New Deal rooseveltiano, de que se
destacou Lyndon Johnson, abarcava
os defensores alemães da economia de
‘mercado social’, o Partido Trabalhista
britânico e ainda algumas franjas situadas politicamente à direita – certas
correntes da democracia cristã e o
gaullismo, só para citar os exemplos
mais emblemáticos – e baseava-se
na partilha de “uma fé comum no
Estado activista, planeamento económico e investimento público em
grande escala” (Ib., p.59). O mesmo
consenso abrangia a progressividade
fiscal e a segurança e assistência sociais:
“A tributação elevada não era vista
nesses anos como uma afronta. Pelo
contrário, taxas acentuadas de imposto
progressivo sobre os rendimentos eram
vistas como um expediente consensual
para retirar recursos excessivos aos
privilegiados e aos inúteis e colocá-los
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
à disposição dos que mais necessitavam
deles, ou dos que melhor uso lhes
podiam dar (...) Graças ao provimento
universal da assistência social, o único
benefício do serviço doméstico a longo
[prazo] – a presumível generosidade
do patrão com o seu criado doente –
tornara-se redundante” (Ib., p. 70).
Não se pense, porém, que o
início do declínio do consenso social
que sustentava o Estado-Providência
proveio da direita. Antes de
Margaret Thatcher enunciar a sua
célebre frase de que «sociedade é
uma coisa que não existe, existem
só indivíduos» e Reagan afirmar
que «o governo já não era a solução
– era o problema», os anos sessenta
do século passado foram marcados
pela emergência de uma ‘nova
esquerda’ libertária que anunciou
um novo paradigma. Enquanto a
‘velha esquerda’ mergulhava as suas
raízes numa classe operária concentrada, sindicalizada e tutelada pelos
partidos sociais-democratas e comunistas a cuja disciplina se submetia
voluntariamente, a ‘nova esquerda’
manifesta-se sobretudo contra a
“tolerância repressiva” da ordem
capitalista não tanto em nome da luta
contra as injustiças sociais, mas sobretudo em nome de um novo tipo de
‘individualismo’ centrado na “afirmação da exigência de cada pessoa
da máxima liberdade privada e da
liberdade irrestrita para a expressão
de desejos autónomos e de vê-los
respeitados e institucionalizados pela
sociedade em geral” (Ib. p 92-93).
Deste modo, o ‘paternalismo tutelar’
da ‘velha esquerda’ começa a ser
posto em causa, fenómeno a que não
foi certamente estranho não apenas
a reconfiguração da classe operária
com o avanço da automatização, mas
a emergência de movimentos, grupos
e categorias sociais – jovens universitários radicais com as suas exigências
de emancipação das relações familiares tradicionais e de ‘liberalização’
das relações amorosas, feministas,
homossexuais que visavam o reconhecimento dos seus direitos – que
já não se reconheciam nas formas de
mobilização e nas reivindicações da
‘velha esquerda’.
Como refere justamente Tony
Judt, a ‘velha esquerda’ era, como
a direita, ‘conservadora’ na questão
cultural e na esfera dos costumes e
assistia estupefacta às novas reivindicações de liberdade e autonomia
individual dos novos movimentos
sociais. O que a distinguia da direita
não eram as reivindicações sobre um
novo modo de viver a vida na esfera das
relações interpessoais, mas as questões relacionadas com a intervenção
do Estado para reduzir as assimetrias
259
PARA ONDE VAI A SOCIAL-DEMOCRACIA
sociais. E mesmo neste aspecto, uma
parte da direita pré-thatcheriana
e pré-reaganiana aceitava tacitamente o Estado-providência num
contexto social e político em que a
competição com a União Soviética e
os países da Europa de Leste a colocava na defensiva. Mas esta viragem
‘libertária’ teve os seus custos, já
que – como afirma perspicazmente
Tony Judt – conduziu ao declínio
de um projecto de vida que unia um
grande número de indivíduos pouco
diferenciados uns dos outros num
conjunto de reivindicações comuns:
“Outrora procurava-se na sociedade
– ou classe, ou comunidade – o vocabulário normativo individual: o que
era bom para todos era por definição
bom para qualquer um. O inverso,
porém, não é válido. O que é bom
para uma pessoa pode ter, ou não ter
valor para outra” (Ib., p. 93).
A ‘nova direita’ contribuiu para
‘fechar o círculo’ que tinha sido
aberto pela ‘nova esquerda’. Inspirada
nas doutrinas dos austríacos von
Mises e sobretudo Friedrich Hayek,
para quem a liberdade individual era
incompatível com as ideias de justiça
distributiva, o ataque ao Estado-providência e ao modelo social
europeu, bem como aos herdeiros
do New Deal rooseveltiano exprimiu
a ruptura do consenso social que
260
durante trinta anos constituía o
sustentáculo do ‘capitalismo social’
no velho continente e na América
do Norte. Margaret Thatcher e
Ronald Reagan foram apenas os
‘executores testamentários’ deste
consenso social a que também
não foi seguramente alheio o
debilitamento dos países integrados
na esfera do ‘socialismo real’. A
‘nova direita’ teve como orientação
dominante o culto da privatização na
base do argumento da ‘ineficiência’
do sector público. No entanto, as
privatizações desencadeadas na Grã-Bretanha por Margaret Thatcher
e que, mais cedo ou mais tarde,
se estenderam a outros países,
para além de terem um reduzido
efeito no crescimento económico
a longo prazo, transformaram os
contribuintes em financiadores dos
accionistas e outros investidores
privados que se apropriaram a baixo
preço de serviços anteriormente
prestados pelo Estado. A privatização
dos caminhos-de-ferro britânicos
é um exemplo emblemático desta
estratégia que se revelou desastrosa.
Mas apesar disto, os privados podiam
sempre contar, como actualmente os
banqueiros, com a ajuda do Estado
se as «coisas corressem mal», pelo
que a sua exposição ao risco era
sempre mínima. A privatização dos
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
serviços públicos foi completada pela
delegação a firmas privadas de funções
anteriormente desempenhadas pelo
Estado, uma espécie de retorno ao
sistema de concessão a particulares
da cobrança de impostos que vigorava
na monarquia absoluta francesa.
A emergência do ‘novo’ paradigma privatizador não teve apenas
consequências na esfera económica,
mas contribuiu para introduzir um
‘défice democrático’ e para estimular
o cepticismo dos cidadãos perante
a ‘coisa pública’. Ao contrário do
que defendiam os ‘libertários’ da
‘nova direita’ o recuo das funções
sociais do Estado não contribuiu
em nada para o desabrochamento
das liberdades individuais, mas,
pelo contrário, para o aumento dos
“poderes irrestritos do Estado superpoderoso” (Ib., p. 120). De facto, o
enfraquecimento dos vínculos sociais
garantidos pelo Estado-providência
e a redução da sociedade civil a “uma
fina membrana de interacções de
indivíduos privados’ (Ib. p. 120),
aspecto comum tanto à ‘nova direita’
como à ‘nova esquerda’, conduziu
à perspectiva weberiana do Estado
como «monopólio legítimo da
força». Esta perspectiva tornar-se-á
tanto mais ‘legítima’ quanto maiores
forem as desigualdades sociais que
trazem consigo o aumento da crimi-
nalidade, o medo e a insegurança dos
cidadãos com os seus ‘bodes expiatórios’, de que se destacam as minorias
éticas e os imigrantes. Mas isso
significa que quando “deixamos de
valorizar o público sobre o privado,
com o tempo viremos decerto a ter
dificuldades em perceber porque
deveríamos valorizar a lei (o bem
público por excelência) em relação
à força” (Ib. p. 129).
A implosão da União Soviética e
o desabamento do ‘socialismo real’
completou o quadro. Ao contrário
do que defendiam os partidários do
‘fim da História’ a falência de um
sistema social e político não confere
automaticamente razão e legitimidade ético-política a um capitalismo
sem dimensão social: poderemos,
de facto, estar perante dois erros de
sinal contrário. Por mais repressivo
e autoritário que fosse o ‘socialismo
real’, a sua dissolução teve uma
enorme repercussão desestabilizadora sobre a ‘velha esquerda’, pois
a ‘nova’, passados os ‘ardores’ da
juventude, já tinha, de uma forma
ou de outra, feito o seu ‘aggiornamento’ e se tinha convertido ao
social liberalismo. A ‘velha esquerda’
mergulhou no vácuo, pois perdeu
historicamente as suas referências:
os partidos comunistas entraram
num declínio que não tem cessado
261
PARA ONDE VAI A SOCIAL-DEMOCRACIA
de se acentuar no plano político; os
partidos sociais-democratas foram
obrigados a jogar à defesa para defenderem o que restava do compromisso
social que sustentava o Estado-providência. Os ideais sociais-democratas
do passado cederam cada vez mais o
lugar à gestão conjuntural do poder
político em regime de alternância
e, por vezes, em coligação com
partidos mais à direita em nome
da ‘governabilidade’ e ‘estabilidade
política’. Mas isso teve uma consequência paradoxal, perspicazmente
enunciada por Tony Judt: “A social-democracia, de uma maneira ou de
outra, é a prosa da política europeia (...) Os sociais-democratas na
Europa nada têm para oferecer que
os distinga: na França, por exemplo,
até a sua propensão para privilegiar o Estado mal os diferencia dos
instintos colbertianos da direita
gaullista. Hoje o problema não reside
nas políticas sociais-democratas, mas
na sua linguagem exausta. Desde que
o desafio autoritário da esquerda prescreveu, a ênfase na «democracia» é
redundante. Hoje todos somos democratas” (Ib. p. 140).
Perante este quadro quais são
as alternativas? Para Tony Judt, a
social-democracia, é apesar da sua
crise ideológica e programática, no
exíguo leque de opções disponíveis a
262
melhor de todas, já que a esquerda
radical limita-se a uma estratégia
de contestação sem propor verdadeiramente medidas credíveis para
ultrapassar os actuais impasses e
bloqueamentos. No entanto, para
além de não se deixar influenciar
pelo mito da ‘mudança’ em que
hipoteca a sua herança histórica
perante uma direita sem memória,
esta deve apostar numa “nova narrativa moral” caracterizada por numa
“descrição intrinsecamente coerente
que atribua sentido às nossas acções
de uma maneira que as transcende”
(Ib. p. 174). A especificidade da
social-democracia relativamente ao
socialismo autoritário que faliu foi a
aceitação do capitalismo e da democracia parlamentar no contexto do
Estado-providência. Herdeiro de
uma tradição anglo-saxónica em
que a palavra ‘socialismo’ desperta,
sobretudo nos Estados Unidos da
América, reacções de repulsa – falar
em ‘socialismo’ é como “se tivesse
caído um tijolo na conversa” (Ib. p.
211), segundo a imaginativa fórmula
de um jovem participante numa
conferência de Judt em terras do Tio
Sam –, o autor oferece-nos como
alternativa política o que se poderia
chamar um programa minimalista:
“Quando a «social-democracia» em
vez do «socialismo» é introduzida
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
numa conversa na Europa Ocidental,
Canadá ou Nova Zelândia, não caem
tijolos. Pelo contrário, é provável que
a discussão dê uma volta intensamente
prática e técnica: ainda podemos
pagar planos de reforma universais,
compensação do desemprego, artes
subsidiadas, ensino superior acessível, etc., ou será que esses benefícios
e serviços são agora demasiado caros
para os manter? Se é assim, como é
que eles podem ser tornados acessíveis? Quais são indispensáveis, se
algum o é?” (Ib., p. 213).
A direita já começou a fazer o seu
‘trabalho de casa’ para provar que os
grandes pilares do Estado social se
tornaram demasiado caros, enquanto
a ‘nova esquerda’ libertária anda
demasiado preocupada em lutar pelo
reconhecimento dos novos direitos,
atitude louvável, mas que tende a
subalternizar as questões substantivas
da justiça e da igualdade sociais sem as
quais os novos direitos não poderão
concretizar-se efectivamente. No
entanto, o minimalismo político de
Judt é provavelmente o ponto mais
fraco desta pequena-grande obra
que marcará seguramente o século
XXI: uma ‘nova narrativa moral’ tem
tendência a cair também no vazio
se a alternativa política que propõe
não for mais longe. Isso implica
também questionar criticamente
o compromisso social em que se
baseava o Estado-Providência dos
‘Trinta Gloriosos’ anos dourados:
em troca da protecção e dos direitos
sociais garantidos pelo Estado, a
social-democracia, aceitou que a
organização do trabalho permanecesse sob o controlo grande capital
privado e dos seus representantes
directos, os managers. No que foram
seguidos de perto pelos partidos
comunistas que com a sua concepção
de uma classe operária tutelada por
um partido de vanguarda não viam
com bons olhos as teorias não muito
difusas, é certo, que defendiam a
autogestão e o controlo das condições
de trabalho por parte dos trabalhadores. Foi, de facto, esta a ‘falha
tectónica’ da ‘velha esquerda’ que
limitou o alcance do ‘contrato social’
e cimentou em bases pouco sólidas
o Estado-providência1. Eis a razão
pela qual o modelo social europeu
é cada vez mais parte do problema e
não da solução. E isto não no sentido
reaganiano do termo, mas como um
desafio à esquerda – a toda a esquerda
– para criar um modelo social
melhor. Mas este modelo terá necessariamente que passar pela conquista
da soberania dos trabalhadores sobre
a organização de trabalho, o que
significa que a questão da propriedade privada como ‘direito de usar
263
PARA ONDE VAI A SOCIAL-DEMOCRACIA
e abusar’, mesmo sob a cobertura
‘benévola’ das legislações laborais
mais ‘progressistas’, deve ser questionada: a democracia não pode
cessar quando entramos nos locais
de trabalho.
1
De certo modo, o ‘contrato social’ dos Trinta Gloriosos tem pontos comuns com o contrato baseado em
“razões especiosas” de Rousseau na Origem e fundamento das desigualdades entre os homens e que visava fundamentalmente o
reconhecimento do direito de propriedade: “Unamo-nos”, disse-lhes, “para garantir os fracos da opressão, para
conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence. Instituamos regulamentos de justiça e de paz
a que todos sejam obrigados a conformar-se, que não façam acepções de pessoas e que de algum modo reparem os
caprichos da sorte, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Numa palavra, em vez de voltarmos
as nossas forças contra nós próprios, reunamo-las num poder supremo que nos governe de acordo com leis sábias,
que proteja e defenda todos os membros da associação, afaste os inimigos comuns e nos mantenha numa eterna
concórdia” (Europa-América, Lisboa, 1976, p 67).
264
As Direitas Radicais Portuguesas
no Fim do Estado Novo
Beja Santos
O
Estado Novo de
Salazar e Caetano
conhece na década
de 60 uma evolução
tumultuosa, decorrente das eleições de
1958, da contestação do colonialismo
à esfera internacional e nacional,
da reorganização das oposições, da
movimentação estudantil das várias
famílias da esquerda, de um processo
de desenvolvimento que vai afastando
progressivamente o regime dos diferentes ideários a que se propusera dos
anos 30 em diante. No fundo, uma
mudança dramática da modernização
da economia e da sociedade e a escalada das frentes africanas que foram
erodindo o regime, lançando-o no
ocaso. “Império, Nação, Revolução,
As Direitas Radicais Portuguesas no
Fim do Estado Novo (1959-1974)
” é um livro precioso – pelo rigor e
abrangência – para compreender o
comportamento da extrema-direita
mais ou menos neofascista, em
Portugal, quais as suas forças motrizes
ideológicas, as suas motivações imperiais, quais as suas relações com as
estruturas do mando ao tempo de
Salazar e Caetano (por Riccardo
Marchi, Texto Editores, 2009).
A primeira manifestação estudada pelo investigador é a revista
Tempo Presente, impulsionada por
discípulos de Alfredo Pimenta,
um intelectual de referência dos
neofascistas (Pimenta tem uma esclarecedora correspondência trocada
com Salazar, que permite perceber
como o ditador era muito sensível
às suas mensagens). Intelectuais da
direita radical como Amândio César,
António José de Brito, Fernando
Guedes, Couto Viana e Goulart
Nogueira convergem para o projecto
da revista Tempo Presente. O regime,
através do SNI, irá financiar a revista.
A publicação revelará qualidade,
pauta-se pelos ideais nacionalistas,
entrará mesmo nalguma colisão com
os sustentáculos do regime que, no
Verão de 1961, levarão à sua extinção.
A Tempo Presente era uma publicação
cultural com uma relativa abertura:
revelou o abstraccionismo geométrico do pintor Fernando Lanhas, a
poesia experimental, as vanguardas
poéticas anglo-saxónicas, do mesmo
265
AS DIREITAS RADICAIS PORTUGUESAS NO FIM DO ESTADO NOVO
modo que retomou os mitos do
fascismo como Ezra Pound ou Drieu
La Rochelle e Robert Brasillach.
Não se escondia a defesa do Estado
totalitário, o corporativismo e faziase a contestação política do que se
passava na Europa do pós-guerra,
advogando-se um nacionalismo
de carácter universalista como se
supunha ser o português, denominado a Euráfrica. A Europa é que
estava em crise, a sua raça branca
perdera o sentido de missão.
A questão colonial irá envolver
a Tempo Presente, os seus editores
irão apoiar as decisões de Salazar,
no início de 1961. A revista participa
em vários eventos e entrará em polémicas com os meios monárquicos
e com ortodoxia do regime. Alguns
destes nacionalistas radicais, como
António José de Brito, revelam-se
teóricos verrinosos, alertam para
os perigos que assediam o catolicismo, o personalismo cristão, a
abertura democrática, a tolerância
liberal. Brito irá revelar-se indiscutivelmente um teórico com produção
autónoma em torno do nacionalismo, definindo-o sem hesitar
como antiliberal, antidemocrático,
antipartidário, adepto da homogeneidade racial e anti-semita. Assim,
vai-se caminhando para o conceito
imperial que é o suporte do Portugal
266
do Minho a Timor.
Importância menor teve a criação
do Centro de Estudos Alfredo
Pimenta, fundado em 1972. Para ele
convergem figuras da outra geração
como João Ameal e Amândio César,
António José de Brito, Fernando
Guedes, entre outros. É uma referência para o meio neofascista, nele
irão intervir figuras como David
Gagean, Manuel Múrias, Artur
Anselmo, colaboracionistas fascistas
franceses, entre outros.
O Movimento Jovem Portugal
marca, no início dos anos 60, a
ascensão de um nacionalismo revolucionário desta nova geração,
liderado por Zarco Moniz Ferreira.
Os promotores deste Movimento
atacam as Nações Unidas e a sua
política de descolonização, criam a
revista Ofensiva (sempre com ligações
ao neofascismo europeu), recebem
apoios da Legião Portuguesa e de
altos dirigentes da PIDE, Zarco vive
constantemente em fricções com
os outros elementos da direcção.
Aparece depois uma outra publicação,
Ataque, que não terá projecção, e o
movimento envolve-se em contenda
com os grupos de esquerda em meios
universitários, assaltando mesmo a
Sociedade Portuguesa de Escritores,
depois da atribuição de um prémio a
Luandino Vieira. Os problemas do
BEJA SANTOS
Jovem Portugal serão infindáveis, até
porque Zarco vai propor o Nacional-Sindicalismo (cópia das doutrinas
de Primo de Rivera) como a única
oportunidade face ao marxismo e
ao capitalismo. O que na verdade
se estava a passar era os neofascistas
sentirem a abertura do regime de
Salazar ao capitalismo internacional
como tentativa de modernização, o
que eles consideravam intolerável.
Mais próximo do regime estava
a FEN – Frente dos Estudantes
Nacionalistas, que também teve uma
história curta e que implodiu por
incapacidade de diálogo entre as suas
facções. O regime queria organizações
nacionalistas respeitáveis susceptíveis
de atrair a massa estudantil apolítica
e à PIDE interessava uma organização
operativa até com capacidade para
recolher informações no ambiente
estudantil. Outra organização que
surgiu ao tempo das lutas emancipalistas em Angola foi o Jovem Europa,
copiado de uma experiência belga
e que constituía numa proposta de
um nacionalismo revolucionário
europeu capaz de conter as superpotências instaladas no Continente.
Todos estes grupos tiveram más relações entre si, agrediam-se nas suas
publicações e nunca foram capazes de
estabelecer em concreto uma plataforma ideológica.
Coimbra constituiu um caso
aparte no fenómeno nacional-revolucionário. É no meio académico
que nasce a revista Combate a que está
ligado Valle de Figueiredo, nome
importante do neofascismo português, colaborador das revistas 57,
Cidadela e Itinerário, esta, dirigida, entre
outros, por João Conde Veiga, autor
de uma poesia importante para estes
neofascistas:
Não fugi à guerra, não fui para Paris,
Não fugi da terra, não traí o povo, ´
Eu fui ao combate debaixo do sol
E voltei de novo
Poso aquecer-me com o sol mais quente,
Que me enche as veias, vinho de raiz,
Não se vai à guerra e volta de novo
Sem se sentir dentro a voz do país.
Riccardo Marchi explica detalhadamente toda a luta do movimento
associativo coimbrão, nas diferentes
fases da crise académica, e revertendo
sempre para a noção de Império,
questão central destes movimentos
neofascistas.
Após identificar um conjunto
de organizações menores da direita
radical, o autor detém-se no semanário Agora, igualmente subsidiado
pelas forças do regime. O anti-semitismo e o antiamericanismo vão ser
267
AS DIREITAS RADICAIS PORTUGUESAS NO FIM DO ESTADO NOVO
duas constantes do jornal, várias
vezes suspenso pela censura, Salazar
não aceitava este excesso de críticas.
Em Coimbra, os neofascistas ganham
novo alento com o aparecimento de
dirigentes mais jovens como José
Miguel Júdice, Cruz Vilaça e Lucas
Pires. Igualmente a vida deste movimento é pormenorizada tal como a
revista Cidadela e o Centro de Estudos
Sociais Vector, este de âmbito mais
alargado e com sede em Lisboa. No
fim da década de 60 surge a revista
Política cujo director será Jaime
Nogueira Pinto, sempre com apoios
do regime (por exemplo, assinaturas feitas pela PIDE/DGS). Política
procura um grande arco político do
nacionalismo português, apresentase como uma frente nacional fiel ao
Ultramar, contestará a tendência
liberal de Caetano e os seus projectos
da reorganização ultramarina, com
certa tinta emancipadora. Com
tónica menor, o autor regista ainda
como expressões das direitas radicais o Movimento Vanguardista e o
periódico Vanguarda (financiados pela
PIDE) e finalmente o I Congresso
dos Combatentes, a última batalha
dos nacionais-revolucionários.
Este valioso estudo de Riccardo
Marchi permite captar em cheio o
que foram as minorias em que se
organizaram as direitas radicais e
268
como, de um modo geral, estabeleceram um relacionamento equivoco
com os regimes de Salazar e Caetano.
Tiveram poucos ideólogos de grande
mérito, a sua grande maioria desapareceu ou está agora inactiva. Na
ribalta, devidamente reciclados, estão
José Miguel Júdice e Jaime Nogueira
Pinto. O que os uniu sempre foi um
princípio intransigente, o de nunca
querer sacrificar o Império, espírito
e forma do “Portugal eterno”.
A Odisseia do Consumidor que Queria Viver
sem Causar Impacte Ambiental
Beja Santos
“Impacto Zero” (por Colin
Beavan, Editora Objectiva, 2009)
não deixa de ser um livro surpreendente, provocatório do princípio
ao fim, e ousado no sentido mais
nobre do termo. Começa por dizer
na capa que vai tratar das aventuras de
um cidadão comum que tenta salvar
o planeta e aprende muito sobre si
próprio e o nosso estilo de vida. Na
contracapa procura aliciar-nos com
os seguintes dizeres: “Que grau de
felicidade retiramos dos produtos
que consumimos e que esgotam os
recursos do planeta? Será possível
viver de forma ecológica na cultura
moderna? Estaremos todos condenados à extinção, ou seremos capazes
de inverter o rumo do aquecimento
global se repensarmos o nosso estilo
de vida e implementarmos pequenas
mudanças? “Impacto Zero” é um
testemunho fascinante de um homem
que decidiu viver durante um ano,
em plena cidade de Nova Iorque,
sem causar impacto no ambiente.
Por outras palavras, tentou viver
sem produzir lixo, sem poluir a água
com toxinas, e sem usar coisas como
elevadores, metro, ar condicionado, televisão, produtos embalados,
detergentes e papel higiénico”. Com
tanta promessa, a leitura tornou-se
um imperativo.
A leitura é estimulante, o testemunho é sincero, os resultados são
surpreendentes e deverão ser tomados
em consideração como viagem (quase)
plausível em direcção ao consumo
sustentável. Um casal faz um acordo
para ir reduzindo o impacte ambiental.
Vivem, Colin Beavan, mulher e filha,
na parte baixa da Fifth Avenue, em
Greenwich Village. Tudo começou
por uma apreciação sobre o aquecimento global e sobre as possibilidades
individuais de agir no mundo que
caminha para uma tragédia ambiental.
Com a ingenuidade de um prosélito,
o autor confessa: “Queria ajudar
a mudar as mentalidades. Queria
encontrar uma forma de incentivar
uma sociedade um pouco menos
egoísta e um pouco mais amiga dos
outros e do ambiente”. Colin Beavan
decidiu mudar-se a si próprio e enveredar por uma experiência ao modo
de vida familiar, levando uma vida
269
A ODISSEIA DO CONSUMIDOR QUE QUERIA VIVER SEM CAUSAR IMPACTE AMBIENTAL
o mais amiga do ambiente possível.
Oiçamo-lo de novo: “O meu objectivo não era adoptar meias-medidas
amigas do ambiente de fácil implementação. O meu objectivo não era
simplesmente mudar as lâmpadas ou
reciclar com rigor. O meu objectivo era ir o mais longe possível e
tentar ao máximo não ter qualquer
impacto sobre o ambiente. O meu
fito era conseguir zero emissões de
carbono mas também zero resíduos
para o solo, zero de poluição atmosférica, gastar zero recursos da terra,
expelir zero toxinas para a água. Eu
não queria simplesmente reduzir as
emissões de carbono, eu não queria
causar qualquer impacto”. Assim se
iniciou a aventura. Primeira etapa:
descortinar como viver sem produzir
lixo; a seguir, utilizar meios de transporte que não emitissem carbono;
mais adiante, descobrir como causar
o mínimo impacto com as escolhas
alimentares; seguidamente, passar às
etapas que envolviam causar o mínimo
impacto possível no ambiente no
que diz respeito às compras, operações domésticas, como aquecimento
e electricidade e utilização de água e
poluição. Na implementação de cada
etapa, procedia-se à avaliação dos
resultados.
Nos primeiros dias, o pensar e o
agir em prol do melhor ambiente
270
andaram à volta do uso do papel,
das fraldas, da reciclagem em geral.
Começou a perplexidade: “Um
estudo afirmava que a energia dispendida a lavar chávenas de cerâmica é tão
prejudicial para o ambiente como a
utilização de copos de plástico descartáveis que só irão degradar-se ao fim
de mil anos. Outro estudo defendia
que a utilização de água quente e
detergente para lavar toalhas de pano
é mais prejudicial para o planeta do
que o abate de árvores para o fabrico
de toalhetes de papel. Se eu fosse a
prestar atenção à sabedoria propagada, tudo era prejudicial”. O autor
apercebeu-se que neste nicho de
mercado pululam os vendedores da
banha de cobra. Começou a estudar,
aprendeu a separar os lixos, o objectivo
fundamental passou a ser acabar com
a produção de lixo. Tece uma enorme
reflexão sobre a reciclagem, sobretudo sobre as embalagens alimentares
e também concluiu que o ideal, a
prazo, era evitar o seu uso recorrendo
a produções locais, acabando com os
alimentos congelados ou conservados.
A batalha da reciclagem começava por
produzir menos lixo, fazer desaparecer o supérfluo e quase tudo quanto
viesse embalado. Seguiu-se a redução
da pegada de carbono, abolindo
viagens de longo percurso, reduzindo
até o uso de transportes públicos. O
BEJA SANTOS
casal ia ponderando os benefícios e
custos de dispensar a viatura privada,
fugir aos engarrafamentos do trânsito, passaram a viajar de trotineta.
Campo de escolha bastante
renhido foi o das opções alimentares, procurou-se uma alimentação
sustentável com base na produção
num raio de 400 quilómetros.
Ultrapassados vários escolhos, a
família adaptou-se bem à comida
de proveniência local. A experiência do impacto zero começou
a provocar sensação na opinião
pública. Todos queriam saber como
é que se arranjava tempo para cozinhar, ir às compras, fazer iogurte,
cozer pão, fazer chucrute e preparar
as refeições para a família. Como é
que era possível viver sem televisão,
recusar tantas comodidades da civilização moderna, fugir dos elevadores,
pensar até se é possível prescindir da
electricidade. O projecto seguia de
vento em popa, eliminara-se o lixo,
os transportes e a alimentação insustentável, agora procurava-se escolher
a redução no impacto na aquisição de
todos os bens, desde o vestuário até
aos artigos domésticos, tudo dentro
da concepção de encontrar algum
equilíbrio entre a qualidade de vida
e o consumo de recursos. Instalara-se a guerra contra o consumismo:
não comprar produtos novos, pedir
emprestado, evitar os entretenimentos
de massas, encontrar alternativas
para todos os produtos descartáveis.
Chegara a hora de avançar para a
sustentabilidade energética, de cortar
com a electricidade encontrando
fórmulas alternativas para lavar a
roupa, tomar banho e arranjar a casa.
Consolidava-se o novo modo de vida,
a mentalidade da família pautava-se pela exigência e o respeito pelo
ambiente, a procura de alternativas
passou a ser uma constante de uma
família dominada pelo impacto zero.
Ao fim de um ano, a família assentara a sua existência em novos hábitos,
dominada pela simplicidade e pela
solidariedade planetária.
O livro possui inúmera bibliografia
e, insiste-se, é de uma sinceridade
desarmante. Não se deve perder este
testemunho e esta reflexão sobre o
impacto zero!
271
Estranho Quotidiano
Beja Santos
A
todos os títulos, e sem
margem para ambiguidades, o quotidiano é
o território de eleição
da sociedade de consumo: nele se
prepara o calendário dos espectáculos
das festas, das compras, dos eventos
de entretenimento, já que a sociedade de consumo é pré-estabelecida
ou pré-preparada (para não dizer
que é programada); mas o quotidiano imiscui-se de muitas outras
formas na organização do mercado
de consumo e no comportamento
dos consumidores: porque, pela
primeira vez na História, é-se consumidor toda a vida, de manhã à noite
e pela própria imprevisibilidade da
condição humana nesse quotidiano.
Sendo assim tão vasto o seu âmbito,
só pode ser percebido através da
convergência de múltiplas disciplinas,
pelo que é natural que nos limitemos
a querer perceber o quotidiano
através dos nossos desejos e necessidades, mantendo-nos na ignorância
quanto à construção da máquina de
sonhos, à função dos negócios nas
nossas decisões e a tremenda força da
vaga cultural envolvente, onde têm
expressão coisas como a cozinha, os
espaços da cavaqueira, o papel dos
media, a vida do bairro, a dinâmica da
estrutura familiar... todos se sentem
atraídos por esse estranho, resvaladiço quotidiano, cada um, sempre
que pode, lhe lança um olhar profissional, dá a sua interpretação ao
incomensurável mosaico, sempre em
movimento.
Um psiquiatra, José Luís Pio Abreu,
escreveu artigos durante dois anos no
jornal Destak. Em escassos parágrafos,
foi registando as suas opiniões sobre
matérias aparentemente tão diversas
como sejam: os valores familiares e a
cidadania; a sociedade de imagem e o
funcionamento da comunicação na
rede dos Media, a estranha aliança entre
a comunicação social e os aparatos da
justiça; o valor da pessoa no primado
do económico. São, pois, apontamentos que podem ser desenvolvidos
por outros olhares profissionais, naturalmente tentados pelo quotidiano,
curtas chamadas de atenção, pensamentos de cidadania nos emaranhados
da cidade (“Estranho Quotidiano”
273
ESTRANHO QUOTIDIANO
por J. L. Pio Abreu, Publicações Dom
Quixote, 2010).
O que seduziu o psiquiatra?
Decidiu não falar sobre a saúde
mental: “Continuo sem saber o que
isso é, mesmo após uma vida a tratar
doenças ditas mentais. O problema é
que a saúde mental se refere sempre
á natureza humana, e esta depende
dos sistemas culturais. Com a vertiginosa aceleração cultural dos últimos
tempos, também a mente humana vai
mudando vertiginosamente”. Dirigiu
por isso o seu olhar para outros lados:
o consumismo, a globalização, a crise
económica, a administração da justiça,
a imagem do consumo de imagens,
por exemplo. É um conjunto organizado de olhares que vale a pena
conhecer, como se passa a sintetizar.
Primeiro, a ascensão da mulher na
esfera do privado e do público. Tenho
cá para mim que sem se entender o
que se passou não se percebe as novas
andanças da sociedade de consumo:
com o protagonismo da mulher era
imprescindível que houvesse uma
recombinação dos papéis familiares,
com a independência da mulher, com
o investimento do casal na educação
dos filhos, aconteceu o inesperado:
mudaram as decisões do consumo, a
tecnologia mitigou o pavor da morte
ou o temor da doença, as crianças
tendem a ocupar hoje o lugar de
274
Deus (infelizes crianças!), redesenhou-se a intimidade (inverteu-se
o público e o privado), o mercado
de trabalho tomado de assalto pelas
mulheres é um permanente desafio
para as ciências comerciais. Este é
um dos ângulos do prisma, para mim
incontornável.
Segundo, a comunicação e a imagem.
Temosaculturadasubjectividade(anossa
imagem vende sempre, na família, no
emprego, no grupo, na política...) toda
a gente trabalha para a imagem, desde o
autarca ao executivo. Mas comunicamos
pouco porque vemos muito, regra geral
de uma forma acrítica, mergulhados em
permanência no tumulto das imagens.
Geramos assim a figura do robô, um
autómato dependente da televisão, dos
rumores, da banalidade permanente.
Deixámos de ter os olhos nos olhos, só
temos olhos nas imagens, a explorar
freneticamente capacidades electrónicas, apavorados se nos põem um livro
nas mãos e nos fecham num espaço
sem outras imagens, sem telemóveis,
sem ecrãs, sem sons. A maior parte da
comunicação que connosco interfere é
espectáculo e circo. Daí, conversarmos
com cada vez maior dificuldade.
Terceiro, o inferno burocrático é administrado para vários usos:
julgamentos na praça pública; as
peixeiradas das entrevistas, o sucesso
dos programas que cultivam a mons-
BEJA SANTOS
truosidade ou o disse que disse. É a
privacidade travestida de protagonismo público. O que levanta questões
tão poderosas como estas: o valor da
pessoa humana; o cinismo quando
falamos da transparência ou da sinceridade; a manipulação do sentido da
crise; o paradoxo das economias que
são montadas em grandes empresas
com lucros que não têm investimentos
produtivos, estes assentam em pequenas
e discretas empresas, a trabalhar para as
grandes. Alimentamo-nos destes paradoxos, alguns deles insanáveis.
Este vasto e estranho quotidiano
não se confina a artefactos, crises,
pragmatismos políticos, terrores pandémicos. O que Pio Abreu traz nesta
colectânea de crónicas não é a vida
das cozinhas, nem o sentido do pão e
vinho, a memória das fomes ou valores
da competitividade. Trabalhando com
saúde mental, obrigado a múltiplas
intervenções, questiona o animal e
o anjo, a alegria e a dor, a ironia e o
infortúnio. Não se trata de uma fatalidade, é um dos olhares possíveis sobre
o estranho quotidiano, decorre da sua
profissão e da sua cultura. Nenhum
estranho quotidiano cabe numa enciclopédia, quanto mais num livro. O
que é exaltante é equacionar com ironia
fina os problemas de base e o nosso
nível de conhecimentos e procurar
responder à genética, ao estado de
Direito e à crise económica. E é muito
bom quando somos confrontados
com alguém que observa com originalidade, divertindo-nos a reflectir sobre
um mundo de diferenças e de gente
diferenciada.
275
Joaquim Jorge Veiguinha
– Inquérito ao Capitalismo Realmente Existente.
Porto: Edições Afrontamento, 2009
Fernando Pereira Marques
Como muitas áreas da nossa
actividade económica, a da edição
(de livros) é movida por uma estranhíssima lógica e escapa, em grande
medida, a qualquer racionalidade:
aparecem e desaparecem chancelas;
qualquer dissertação de mestrado
(mais ou menos “bolonhês”) é dada à
estampa, muitas vezes não sendo mais
do que um exercício de copy paste (para
não falar de teses de doutoramento);
a propósito do Centenário da
República, excluindo umas quantas
obras de facto inovadoras, multiplicaram-se os plágios, as colagens
de textos, evidenciando sobretudo
um apurado sentido comercial por
parte desta súbita inflação de especialistas no tema. Se a isto juntarmos
a produção maciça de best sellers
e a imensidade de Dan’s Brown’s,
estrangeiros e nacionais, que poluem
as livrarias, percebemos, facilmente,
porque é que ensaios como o de
Joaquim Jorge Veiguinha passam
praticamente despercebidos.
Na linha do que é a sua reflexão
desenvolvida pertinazmente nas
páginas da Finisterra, Veiguinha, antigo
discípulo de Umberto Cerroni,
associa uma sólida formação económica a uma não menos sólida
formação na história das ideias políticas. Este ensaio constitui, assim,
uma importante desmontagem do
capitalismo “realmente existente”
que, como qualquer um de nós pode
constatar abrindo a carteira e olhando
o recibo do seu salário/ordenado ou
pensão, está a conduzir as sociedades
a um beco de onde não se sabe bem
como vamos sair.
Depois de historiar o processo de
desenvolvimento do modo de produção
capitalista e de divisão do trabalho, até às
actuais fases da mundialização/globalização, acompanhadas ainda pelo
fenómeno de hipercomunicação alienante, o autor enuncia três lógicas que
caracterizam o estádio atingido actualmente pelo sistema: a lógica do capital
financeiro; a lógica do capital-mercadoria; a lógica da comunicação. O que
sintetiza da seguinte maneira: “ A lógica
277
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA – INQUÉRITO AO CAPITALISMO REALMENTE EXISTENTE
do capital financeiro ou do capital
fictício intensifica ou prolonga as
jornadas laborais ao mesmo tempo
que restringe a base produtiva. A lógica
do capital-mercadoria segmenta os
mercados segundo as diferenças de
rendimento, converte o supérfluo
em necessário e o necessário em
supérfluo, instaura uma competição
produtivista e consumista a nível
mundial que se torna ecologicamente
insustentável e que tem como principal estímulo o aprofundamento das
desigualdades e das diferenças sociais.
A lógica da comunicação vai buscar a
ambas o seu alimento e contribui para
a sua reprodução. Esta lógica baseia-se na fragmentação e desintegração
do espaço público.” (p.164)
A estas três lógicas o autor opõe,
como proposta de doutrina e de acção,
várias “contralógicas” ou caminhos
para uma alternativa possível: a do
retorno à política para a superação de
uma situação de grave crise e que deverá
passar, inevitavelmente, pela requalificação da Democracia, através do
alargamento da sua dimensão social; a
da justiça fiscal e das políticas sociais, o
que significa que há que combater as
mistificações em torno dos sistemas de
Segurança Social pública que, mesmo
que imponham medidas para garantir
a sua sustentabilidade, estão no cerne
do adquirido civilizacional expresso
278
na ideia de Estado-Providência duramente construído, sobretudo no
pós-Guerra, e que está ser desmantelado; a das políticas laborais que têm
sido caracterizadas pela generalização
da precariedade e pelo recurso às deslocalizações que geram novas formas de
exploração dos países menos desenvolvidos, neste âmbito importando
equacionar os modelos de organização
sindical e de luta dos trabalhadores,
inclusive introduzindo a velha reivindicação humanista de redução do
tempo de trabalho; a da questão
do espaço público ou do modo de
vida, indissociável dos aspectos anteriores, que torna necessário um novo
contrato social, a passar pela educação
(para a cidadania) e pela cultura, de
forma a terminar com a comunicação
unidimensional do capitalismo. Estas
“contralógicas” redundam na necessidade de definição de um novo modelo
de desenvolvimento, de uma nova
ordem económica, de que depende
a defesa da própria democracia posta
em causa por esta situação bloqueada
e cada vez mais degradada a que
conduziu o “capitalismo realmente
existente”.
Torna-se imperioso, diz o autor,
um pensamento crítico que rompa
com a hegemonia ideológico-cultural
que pretende justificar o injustificável da desordem social e económica
FERNANDO PEREIRA MARQUES
predominante. E porque é que os
movimentos sociais e políticos de
esquerda não conseguem capitalizar
os efeitos da crise e retomar a ofensiva? Devido, precisamente, a essa
hegemonia e à rendição de grande
parte da esquerda institucional ao
statu quo neoliberal e à ditadura dos
mercados. Uma nova tomada de consciência colectiva se impõe portanto,
a qual tem de passar pela vontade de
mudança transformada em ideologia,
pela recusa do conformismo, pela
renovação política de uma esquerda
que, em especial nos últimos anos, se
deixou colonizar e atrofiar.
Como se vê, questões que não
podiam ser mais actuais e que tornam
este ensaio um contributo de grande
importância para ajudar a pensar e a
agir. Antes que seja tarde e que se bata
no fundo, o que pode fazer ressuscitar reacções radicais e autoritárias
que alguns ingénuos ou tontos, úteis
aos interesses dominantes, pensam
estar relegadas para um passado definitivamente passado.
279
REVISTAS RECEBIDAS
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 3º Trimestre 2009
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 4º Trimestre 2009
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 2º Trimestre 2010
Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 3º Trimestre 2010
Humanística e Teologia, Universidade Católica Portuguesa, Porto, Dezembro 2009
Paralelo, Fundação Luso-Americana, Lisboa, Outono/Inverno 2010
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Junho 2009
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Setembro 2009
ParoleChiave, Carocci Editore, nº41, Roma, 2009
ParoleChiave, Carocci Editore, nº42, Roma, 2009
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Dezembro 2009
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Março 2010
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Junho, 2010
Revista de Assuntos Eleitorais, Direcção Geral da Administração Interna, Lisboa, Setembro 2010
Tempo Exterior, Baiona (Pontevedra), Julho/Dezembro 2009
Tempo Exterior, Baiona (Pontevedra), Janeiro/Julho 2010
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Novembro/Dezembro 2009
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Janeiro/Fevereiro 2010
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Julho/Agosto 2010
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O SOCIALISMO DO FUTURO*
DOSSIER EUROPA
A IDEIA DE REVOLUÇÃO
REVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZ
O INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIA
A EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONAL
DAS PRESIDENCIAIS AO GOLFO
DEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA?
O REGRESSO DOS NACIONALISMOS
A EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO?
O FIM DA POLÍTICA?
AMÉRICA! AMÉRICA!
A ALEMANHA E A EUROPA
A EUROPA, NÓS E OS OUTROS
A ESPANHA E NÓS
O FIM DE UM CICLO
A EUROPA E NÓS
VÁRIOS TEMAS
POR UMA EUROPA À ESQUERDA
O ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO?
O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃO
REGIONALIZAÇÃO E O PAÍS
O REGRESSO DO POLÍTICO
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOIS
A GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULO
O ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA
ESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA?
JUSTIÇA FISCAL
A GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO
A EUROPA DEPOIS DE NICE
A DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIO
O MUNDO EM CRISE
SER MINORIA, HOJE
A ESQUERDA NA ENCRUZILHADA
A CRISE MUNDIAL
UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA
O ISLÃO E A MODERNIDADE
EDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS?
OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESA
ESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇAS
LIBERALISMO E DEMOCRACIA
PODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVIL
A EUROPA DEPOIS DE LISBOA
QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?
O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA
O SOCIALISMO DEMOCRÁTICO PERANTE O SOCIAL LIBERALISMO
1989
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*O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10
anos antes, publicados no nº 1)
NOTA: Os assinantes que queiram adquirir números antigos e anteriores à sua assinatura beneficiam de
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«Finisterra»: a Revista de Reflexão e Crítica
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