De perto e de longe

Transcrição

De perto e de longe
De perto e de longe:
Guilherme Amaral Luz
Resenha do livro: PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros: novamente descoberta e aplicada
a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva
Avarenga e Bocage, São Paulo: EdUSP, 2001.
Se é certo que a historiografia brasileira contemporânea - em especial a voltada para
assuntos do período colonial ou da América portuguesa - tem se preocupado
crescentemente com o tema da retórica, seja como auxílio na crítica dos documentos ou
para redefinir seus estatutos, então, nomes como o de Alcir Pécora têm-se tornado cada vez
mais presentes em bibliografias de trabalhos historiográficos. É com este interesse
historiográfico em temas da retórica e da poética dos séculos XVI, XVII e XVIII que
gostaríamos de apresentar o mais recente livro de Pécora, Máquina de Gêneros (EdUSP,
2001). Felizmente, por tratar-se de um livro de ensaios capazes de serem lidos tanto em
isolado como em conjunto, uma exposição escolar do texto seria catastrófica. Para trazer
um pouco da força do livro diante dos olhos de seu leitor potencial, preferimos o caminho
do diálogo parcial com ele, apontando apenas alguns dos espinhos que o trabalho submete
aos historiadores.
Já na capa do livro, os espinhos se nos apresentam de uma forma curiosa: através da
imagem do porco-espinho, retirada de um escudo real, do qual eliminou-se os símbolos de
maior pompa como o escrito latino que dizia "de perto e de longe", insinuante de sentidos
altos para a escolha do animal, a princípio, tão baixo para representar a realeza. É
aproveitando da rudeza simulada pela figura do porco espinho - e estimulados por ela - que
gostaríamos de citar uma passagem da introdução do livro que se apresenta como um
recado agudo aos historiadores:
"Se o sentido de 'o real', em literatura, mescla-se ao 'efeito de sentido' ou ao 'valor
de uso' da 'realidade' que ela produz - este é o bloco sujo ou impuro que surge,
inteiro, diante da 'consciência' ou do 'auditório' -, o passo seguinte a dar é
reconhecer que o 'ambiente' não identifica uma verdade objetiva, no sentido de
indiferente ou estranha àquela permeada pelos efeitos de sentido obtidos
mediante a aplicação adequada de convenções e práticas datadas. O 'ambiente não
literário', assim, não deverá ser considerado senão como peça de um outro gênero
de argumentação em busca de acordos sobre o que deve ser julgado como 'o real'.
Uma ata de Câmara ou um despacho burocrático, nesse caso, não têm em relação
ao texto de ficção senão uma diferença de gênero retórico - com toda a distância
que isto implique, isto é, com a grandeza muito diversa de seus recursos de
linguagem, suas matrizes letradas, suas estratégias de avaliação de mérito, seus
âmbitos institucionais de vigência ou condições de performance" (p. 14).
A princípio, poderíamos ler a recusa da possibilidade de acesso a uma suposta
realidade histórica fora de textos ou de convenções retóricas como uma postura céptica em
relação a possibilidade do conhecimento histórico1. Entender o 'ambiente não literário'
como peça de um gênero outro de argumentação com o qual um texto particular deve ser
articulado é realmente distinto de uma postura "contextualista", segundo a qual os textos
adquirem sentido ao se explicitar o momento histórico em que foi produzido. No entanto,
não há nada aqui de uma recusa da História ou, menos ainda, da historicidade das
construções retóricas, não aplicada como imagem refletida na representação textual ou
como condições materiais de sua formulação, mas elaborada como convenções que
possibilitam o alcance e a compreensão de efeitos verossímeis de sentido e "realidade" para
o público ao qual cada texto se lança ao longo do tempo, nas suas durabilidade e finitude. O
estudo das convenções, contudo, não se faz pela mera exposição das peças retóricas em
bloco ou dos gêneros como preceptivas isoladas do tempo, mas dessas peças em
movimento ou desses gêneros como uma máquina em funcionamento vivo, pois, como diz
o autor:
"o gênero não tem de ser puro ou inalterável em suas disposições, assim como o
objeto não é idêntico à aplicação de um conjunto de prescrições encontradas em
determinada preceptiva do período (...). Ao contrário, a tendência histórica básica
1
Uma crítica exemplar deste tipo é a de Carlo Ginzburg em History, Rhetoric and Proof. Nele, o autor
denomina esta postura como pós moderna, identificando-a com correntes influenciadas por autores como
Nietzsche, Barthes e Foucault (Ver: GINZGURG, Carlo. History, rhetoric and proof: the Menahem Stern
Jerusalem lectures, Hanover: University Press of New England, 1999). O adjetivo pós moderno (vago,
pejorativo e mais negativo do que afirmativo) não se aplica ao livro de Pécora, que não pode, ainda, ser
tomado como um texto céptico em relação a possibilidade de conhecimento. O conhecimento é possível, mas
seu estatuto não é correspondente ao do "real" puro tal como ele ocorre. Antes, conhecimento é uma operação
histórica e provisória capaz de formular sentidos e efeitos verossímeis de realidade.
dos mais diferentes gêneros é a de desenvolver formas 'mistas', com dinamicidade
relativa nos distintos períodos, que impedem definitivamente a descrição de
qualquer objeto como simples coleção de aplicações genéricas" (p. 12).
A História, assim, faz-se presente no texto de Pécora não como mero instrumento
metodológico interdisciplinar de um crítico literário ou professor de retórica. Ela invade o
texto como objeto de elaboração discursiva, rompendo as barreiras institucionais entre o
que é isto ou aquilo, mostrando-se aos historiadores como nova possibilidade de
investigação
alternativa
à
ilusão
realista
-
ora
camuflada
ora
combatida
contemporaneamente - da história que se narra "tal como ela efetivamente foi". A História
que se percebe nas considerações de Pécora sobre gêneros também não se resume ao fruto
dos desejos subjetivos daqueles que a fazem e escrevem. Ela é efeito de realidade que se
faz na formulação de lugares verossímeis formais que se estabelecem mediante a acordos
públicos e datados, sendo a sua eficácia proporcional à capacidade de convencer e persuadir
a audiência que lhe dá legitimidade. Esta historicidade inalienável das formas retóricas faz
dos gêneros, ao mesmo tempo, "atos de criação" e "efeitos criados", apresentando-se como
o espinho mais agudo para os historiadores acostumados a buscar a dimensão puramente
conteudística dos objetos culturais do passado.
Se, por um lado, o "historiador sugerido" do livro de Pécora recusa a historicidade
como reflexos do real no texto ou como sombras da realidade que vazam conteúdos nas
diversas formas genéricas apresentadas; por outro lado, o crítico literário recusa-se a isolar
os objetos textuais em questão de suas intenções éticas e aspirações intervencionistas no
mundo em que se inserem. Um dos ensaios do livro é paradigmático nesse sentido: "As
artes e os feitos", dedicado aos sermões de Pe. Antônio Vieira e aos Lusíadas de Luís de
Camões. Em ambos os casos, Pécora critica a formulação romântica de que eles seriam
cânones da "boa escrita" em língua portuguesa mesmo que suas artes fossem consideradas
fora de suas próprias práticas e aspirações de futuro. Isso não quer dizer que Vieira e
Camões não são grandes oradores ou escritores da língua portuguesa, mas suas artes, diria
Pécora, não podem ser dissociadas dos feitos a que estão associadas: o feito da pregação,
como no caso de Vieira, e os feitos ultramarinos portugueses, como no caso de Camões.
Tomando como exemplo Camões, a arte (as letras) funciona como complemento
necessário aos feitos grandiosos e, ao mesmo tempo, só tem valor maior quando encontrase com os feitos. De maneira resumida, poderíamos dizer que a epopéia precisa dos feitos
para ser realizada assim como os feitos precisam da epopéia para que o bem da proeza ser
integralmente cumprida. O motivo principal para esta função da epopéia estaria na
constatação camoniana de que não se pode compreender "toda a extensão do feito sem que
a penetração do engenho e o rigor da arte descubra nele o seu móvel superior e o proponha
como modelo de virtude heróica" (p. 151). O reconhecimento, portanto, do orador épico
pelo público é mais do que um reconhecimento de maestria estética. Dele depende o
sucesso do empreendimento político na sua integra. Em Vieira, pode-se pensar o
reconhecimento do pregador de forma semelhante. O que está em jogo em um sermão não é
o reconhecimento da competência estética do pregador, mas a produção de um efeito da
providência sobre a audiência devota que lhe faz tomar consciência do modelo de virtude
cristã, ainda que seja dolorosa e pelo caminho do desengano. Nos dois casos, os modelos de
virtude servem para efetivar, no futuro, o anúncio de um tempo promissor. No caso
camoniano, a formação do Império português ultramarino e, no caso de Vieira, a
propagação da fé para as quatro partes do orbe a ser encabeçada pelos portugueses.
O elemento axiológico dos textos e gêneros tratados no livro de Pécora é um eixo
capaz de articular todos os ensaios. Em todos eles, há um compromisso dos textos com os
temas éticos de seu tempo. As cartas jesuíticas são exemplares de estratégias inacianas de
reunião das partes da Companhia dispersas pelos vários cantos do mundo em um único
corpo de ação comprometido com a evangelização do mundo; o Galateo de Giovanni Della
Casa é paradigmático das aspirações de vida política civilizada com base na lapidação do
uso da razão pelos bons hábitos de convivência em companhia; o Diálogo de Manuel da
Nóbrega faz parte da formulação dos caminhos mais adequados para a propagação da fé
entre os índios da América portuguesa e, como um último exemplo, as máximas de La
Rochefoucald funcionam como possibilidade de descoberta, pelo "homem honesto", de sua
própria dimensão a despeito da representação grandiosa que seu amor próprio faz de seus
merecimentos, colaborando para testemunhar "o fracasso do remédio da sociedade para
domar a má inclinação do homem" (p. 132). Em todos os casos, para além desses poucos
exemplos que selecionamos, as formas genéricas estão totalmente inseridas nas
preocupações éticas de seus mundos, formulando seus limites e desenhando seus caminhos
futuros.
Uma questão pode ser, neste momento, colocada. Como pode o historiador ou o
crítico literário avaliar a inserção das formas genéricas em seu mundo, quando reconhecese uma distância qualitativa bastante considerável entre o mundo dos textos e o mundo em
que o historiador ou crítico está inserido? A postura modesta do porco-espinho é uma
metáfora possível para a maneira que Pécora insinua sua resposta para essa pergunta. Ao
assumir-se na sua própria baixeza, o porco-espinho recusa o poder supra histórico ou
teológico de formular verdades perenes para o passado, atacando, de longe, a ilusão de
recuperação de um passado tal como ele foi. Todo conhecimento produzido sobre o passado
é considerado no seu valor de uso presente, ou seja, o que se produz de conhecimento sobre
Vieira, Castiglione ou Silva Avarenga hoje é o que se interessa dizer sobre eles no interior
das preocupações atuais. Por outro lado, ataca-se de perto as imagens anacrônicas
formuladas ao longo de tradições críticas a respeito dos objetos do passado, adotando-se
uma postura de desconfiança com o reconhecimento imediato de sentidos atuais em formas
passadas e com os reflexos de desejos de uma poética do presente sobre uma outra que lhe
é distante.
Um bom exemplo de postura crítica em relação aos anacronismos está na busca
quase obsessiva do autor em precisar os sentidos dos conceitos mais chaves de cada gênero
em evidência, diferenciando do sentido atual que a mesma palavra teria hoje em línguas
modernas. No ensaio sobre o Galateo de Della Casa, percebe-se este esforço com a palavra
"companhia". No ensaio sobre as máximas de La Rochefoucauld, o mesmo acontece com
palavras como "homem honesto" e, em cada ensaio, muitas outras palavras de uso corrente
no português atual vão sendo (re)apresentadas ao leitor de uma maneira diferente e nova e
de acordo com o conjunto da qual fazem parte no interior dos discursos próximos a elas no
tempo. Ao lado disso, Pécora incansavelmente aponta como poetas e críticos posteriores
leram os textos que apresenta de acordo com as poéticas que propunham e com a ética com
as quais se comprometiam. Por exemplo, critica Fernando Pessoa, ao considerar Vieira
simplesmente como "Imperador da língua portuguesa", e Oscar Wilde, ao tomar as
máximas como tendo um poder crítico à moral burguesa, ainda inexistente quando La
Rochefoucauld escrevia no século XVII.
A identificação de anacronismos e sua repulsa, no entanto, só é possível porque há
diferenças entre as leituras no tempo. O crítico contemporâneo não é um ser tão poderoso a
ponto de contrapor essas leituras ao suposto referencial puro dos textos no passado do qual
teria total conhecimento. O que ele pode fazer é um esforço hermenêutico e crítico de
confrontação do que imagina atualmente como verdadeiro sobre um texto do passado com
os sentidos novos e verossímeis que podem vir à tona mediante a um trabalho mais detido
de avaliação do conjunto dos resíduos de sentido do passado. De perto e de longe, a
máquina de gêneros apresentada por Pécora dá sinais de funcionamento ao leitor e, na
fricção produzida por suas peças, oferece a possibilidade de visualização dos movimentos
que fazem surgir e desaparecer certezas sobre textos escritos há 500, 400, 300 anos de
distância de nós.