DE SACERDOTES A FEITICEIROS
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DE SACERDOTES A FEITICEIROS
O IMPERATIVO MORAL DA LIBERDADE REFLEXÕES SOBRE A ENCÍCLICA CENTESIMUS ANNUS Rocco Buttiglione A encíclica Centesimus Annus (1991)1 representa o que poderia ser chamado de primavera da Doutrina Social da Igreja. Nesse momento vemos uma mudança tomar lugar na Doutrina Social, mas certamente, não no sentido de que algo que antes era verdadeiro, agora se torna falso. Os católicos romanos, e os demais cristãos, de um modo geral, acreditam que a verdade quanto à natureza humana não muda com o tempo, apesar de poder haver mudanças na forma como entendemos as conseqüências da verdade ao mudarem as circunstâncias. A Igreja Católica Apostólica Romana tem tomado ciência das novas circunstâncias sociais e econômicas, e as mudanças que ocorreram nesses meios tornaram fácil para a Igreja Católica ver a liberdade – especialmente a liberdade econômica – como um imperativo moral. A mudança que ocorreu na Doutrina Social da Igreja em resposta às mudanças sociais e econômicas se tornou evidente em duas áreas: na idéia de bem comum e na visão de livre mercado. 1 Ao longo do texto utilizaremos nas citações de todas as cartas encíclicas de João Paulo II a seguinte edição brasileira: JOÃO PAULO II, Papa. Encíclicas do Papa João Paulo II. [Edição organizada por Armando Casimiro Costa e Ives Gandra da Silva Martins Filho; apresentação do Cardeal Dom Cláudio Hummes; prefácio de Dom Lorenzo Baldisseri]. São Paulo: LTr, 2003. A NOÇÃO DE BEM COMUM Quanto a primeira noção, tem ocorrido um aprofundamento na idéia de bem comum, idéia central na Doutrina Social da Igreja, que sugere que as pessoas agem em busca de seus próprios fins, alguns dos quais têm tanto uma natureza individual quanto social. Por exemplo, quando alguém me pergunta quem eu sou, normalmente respondo à pessoa com meu primeiro nome, Rocco, e meu nome de família, Buttiglione, que significa que sou membro de uma família e que não posso realmente entender quem sou sem saber também algo sobre minha família. Esses relacionamentos são parte de minha identidade, e, porque minha identidade está fundamentada, até certo ponto, nos meus relacionamentos com outras pessoas, não posso dizer que algo é bom para mim se também não é bom para essas outras pessoas. Explico a idéia de bem comum para meus alunos usando o seguinte exemplo: Suponhamos que um amigo me telefone e me convide para ir com ele às montanhas. Já que sou casado, minha resposta habitual é a resposta de todos os bons maridos: “É uma boa idéia, mas dê-me um tempo para pensar sobre isso”. É claro, “um tempo para pensar sobre isso” significa “deixe-me perguntar à minha mulher”. Se ela está de acordo, então eu irei, mas caso ela não esteja, então, prefiro ficar com ela mesmo que quisesse ir às montanhas, porque ficar com ela é mais 26 O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus importante. Esse exemplo demonstra que há pessoas que são parte de minha vida, e que não posso saber o que quero, se não sei o que elas querem; não posso saber o que tenho vontade se não sei o que elas têm vontade. Eu pertenço a elas, e meu bem pessoal só pode ser determinado em relação a elas; portanto, o que é mau para minha mulher não pode ser bom para mim. Esse é o motivo pelo qual a idéia de bem comum está no centro da Doutrina Social da Igreja; de fato é tão importante que seria quase impossível ter doutrina social cristã sem essa idéia2. 2 A noção de bem comum permeia quase todos os debates sobre a justiça na tradição da filosofia moral ocidental, principalmente nos escritos dos autores cristãos da Idade Média, influenciando profundamente, assim, a Doutrina Social da Igreja. No período de Leão XIII a João Paulo II, quando os ensinamentos sociais da Igreja Católica são sistematizados, encontramos a preocupação com o bem comum nos seguintes documentos do magistério romano: as encíclicas Inscrutabili Dei Consilio (21 de abril de 1878), Quod Apostolici Muneris (28 de dezembro de 1878), Diuturnum Illud (29 de junho de 1881), Immortale Dei (1º de novembro de 1885), Sapientiae Christianae (10 de janeiro de 1890), Rerum Novarum (15 de maio de 1891) e Graves de Communi (18 de janeiro de 1901) de Leão XIII; as encíclicas Il Fermo Proposito (11 de junho de 1905), Notre Charge Apostolique (25 de agosto de 1910) e Singulari Quadam (24 de setembro de 1912) e o motu proprio Fin Dalla Prima (18 de dezembro de 1903) de São Pio X; as encíclicas Ad Beatissimi Apostolorum Pricipis (1º de novembro de 1914) e Pacem Dei Munus (23 de maio de 1920) de Bento XV; as encíclicas Ubi Arcano (23 de dezembro de 1922), Quadragesimo Anno (15 de maio de 1931), Non Abbiamo Bisogno (29 de junho de 1932), Acerba Animi (29 de setembro de 1932), Dilectissima Nobis (30 de junho de 1933), Mit Brennender Sorge (14 de março de 1937), Divini Redemptoris (19 de março de 1937) e Firmissimam Constantiam (28 de março de 1937) de Pio XI; as encíclicas Summi Pontificatus (20 de outubro de 1939) e Sertum Laertitiae (1º de novembro de 1939), a radiomensagem La Solennitá (1º de junho de 1941) e as radiomensagens natalinas de 1941, 1942 e 1944 a 1955 de Pio XII; as encíclicas Mater et Magistra (15 de maio de 1961) e Pacem in Terris (11 de abril de 1963) do Beato João XXIII; a constituição pastoral Gaudium et Spes (7 de dezembro de 1965) e a declaração Dignitatis Humanae (7 de dezembro de 1965) do Concilio Ecumênico Vaticano II; as encíclicas Ecclesiam Suam (6 de agosto de 1964) e Populorum Progressio (26 de março de 1967), a carta apostólica Octogesima Adveniens (14 de maio de 1971) e a exortação apostólica Evangelli Nuntiandi (8 de dezembro de 1975) de Paulo VI; as encíclicas Laborem Exercens (14 de setembro de 1981), Sollicitudo Rei Socialis (30 de dezembro de 1987) e Centesimus Annus (1º de maio de 1991) e as exortações apostólicas Ecclesia in Africa (14 de setembro de 1995), Ecclesia in America (22 de janeiro de 1999), Ecclesia in Asia (6 de novembro de 1999), Ecclesia in Oceania (22 de novembro de 2001) e Ecclesia in Europa (28 de junho de 2003) de João Paulo II; as instruções Libertatis Nuntium (6 de agosto de 1984) e Libertatis Conscientia (22 de março de 1986) e a nota doutrinal Sobre Algumas Questões Relativas à Participação e Comportamento dos Católicos na Vida Política (24 de novembro de 2002) da Congregação para Por causa dessa centralidade, devemos entender como a idéia de bem comum é expressa. Conforme uma formulação tradicional e objetiva, o bem comum de uma comunidade é a soma agregada dos bens particulares de cada indivíduo que dele participa. Portanto, é possível para alguém saber o que é bom para cada um e para todos os indivíduos, e desse conhecimento ser capaz de calcular o bem comum. Em outras palavras, a pessoa que sabe o que é bom para todos determina o bem comum. No período medieval essa pessoa era chamada de o “bom príncipe”. Entretanto, há uma objeção a essa determinação puramente objetiva de bem comum: Quem é o bom príncipe que sabe o que é bom para mim? Será que alguém, que está fora de mim, pode saber, melhor do que eu, o que é bom para mim? De certa forma é possível. Sei o que é bom para minha filha melhor do que ela, mas não é bom para ela fazer o que é bom simplesmente porque eu o sei. Fazer o que é bom deve ser uma expressão da interioridade dela. Eu posso escolher o melhor homem do mundo para casá-la, mas se ela não se apaixonar por ele, o casamento não será bom. Da mesma forma, o bem comum não pode ser determinado por um simples cálculo agregado feito por um “bom príncipe”, independente da participação do povo. A liberdade e a interioridade também devem fazer parte da conta. Podemos explicar isso com um exemplo da obra História do historiador grego Herôdotos de Halicarnassôs (480-425 a.C.). Depois que três líderes da revolta persa foram bem sucedidos em retirar um usurpador do trono, tiveram uma discussão entre eles para escolher a forma perfeita de governo para o novo Doutrina da Fé; a diretriz A Doutrina Social da Igreja na Formação Sacerdotal (30 de dezembro de 1988) da Congregação para Educação Católica; além do Compêndio de Doutrina Social da Igreja (2 de abril de 2004), os documentos A serviço da comunidade humana (27 de dezembro de 1986), O que fizeste ao teu irmão sem teto? (27 de dezembro de 1987), Para uma melhor distribuição da terra (22 de fevereiro de 1997) e Comércio, desenvolvimento e luta pela pobreza (18 de novembro de 1999) da Pontifícia Comissão Justiça e Paz; o documento A fome no mundo (4 de outubro de 1996) do Pontifício Conselho Cor Unum; bem como no Catecismo da Igreja Católica (11 de outubro de 1992) e no Código de Direito Canônico (23 de janeiro de 1983). Rocco Buttiglione Estado. O primeiro deles propunha a monarquia; acreditava que o rei era o único que poderia estabelecer e realizar o bem comum. O segundo objetou e disse que não só uma pessoa, mas alguns poucos – a reunião dos melhores – deveriam governar o povo, já que há mais sabedoria em muitas cabeças do que em somente uma. O terceiro objetou a ambos e defendeu a democracia, mas sua argumentação foi considerada a mais fraca das três pela improbabilidade de se achar sabedoria dentre muitos3. Não obstante, o terceiro líder tinha um argumento muito bom relativo ao bem comum. Ele percebia que os homens são por natureza livres, que essa liberdade corresponde à sua dignidade, e que devem obedecer à lei para a qual livremente consentiram. Em outras palavras, o terceiro líder entendeu que o bem comum das pessoas não pode ser realizado sem a participação delas. Esse endosso da democracia não garante, é claro, a crença de que as pessoas irão entender o bem comum sem conflitos. No entanto, isso significa que o bem comum diz respeito à dignidade humana – que as pessoas devem, ao menos de alguma forma, controlar-se e obedecer à razão. Além disso, pressupõe que a razão possa ser explicada às pessoas, pois a democracia se baseia na idéia de que todos têm o potencial para entender, caso lhes seja dada uma adequada explicação dos assuntos. O entendimento da Igreja Católica Apostólica Romana sobre a importância da democracia para a determinação do bem comum está aumentando, mas isso não quer dizer que a Igreja Católica aceite a ideologia democrática formulada no século XIX. Para dar um exemplo bem conhecido, a forte crítica do estadista e filósofo francês Conde Joseph De Maistre (1753-1821) à democracia é totalmente válida: o governo popular não é 3 Esse debate fictício de Herôdotos sobre as formas de governo é considerado por muitos especialistas a primeira reflexão política escrita na cultura ocidental. Tal narrativa se encontra nos capítulos 80 a 83 do Livro III da obra História (Historíai). Em língua portuguesa essa obra foi publicada em diversas edições, dentre as quais destacamos, pela fidelidade da tradução e pela qualidade do aparato crítico, a seguinte: HERODOTOS. História. [introdução, tradução do grego e notas de Mário da Gama Kury]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª edição, 1988. 27 intrinsecamente um bom governo. Entretanto, já que o bem comum da comunidade não pode ser determinado sem democracia, não é possível a ninguém renunciá-lo e aceitar uma forma de governo não democrática. A Igreja Católica entendeu isso e tem considerado a democracia como a pior forma de governo, exceto quando comparada a todas as outras4. Realmente, a democracia não é perfeita. A solução democrática aos problemas nem sempre são as melhores soluções porque, às vezes, as pessoas querem coisas que são erradas em si e para si mesmas. Então, deveríamos impor alguma regra autoritária? Para ajudar a responder essa questão, devemos recordar a história do Rei Filipe de Damasco, que um dia, quando estava bêbado, tinha de tomar uma decisão sobre um assunto civil. Um de seus amigos tinha ofendido um cidadão comum e esse cidadão queria justiça. O rei disse ao cidadão: “Eu não darei o que você quer, porque meu amigo é um bom camarada, então, deixe-me em paz”. Insatisfeito com o julgamento, o cidadão comum pediu para apelar. “Uma apelação! A quem? Eu sou o rei!” berrou. “Uma apelação a Filipe, o sóbrio”, disse o cidadão. Da mesma forma, endossar a democracia não é dizer que as pessoas estão sempre certas; é o endosso de 4 Desde a Revolução Francesa de 1789 até nossos dias, a posição da Igreja Católica vai mudando lentamente como fruto da própria evolução do ideal democrático. Quando a democracia estava intrinsecamente relacionada ao anticlericalismo dos jacobinos, a anarquia e as ditaduras da América Latina, e ao terror produzido pelas revoluções na França e na Itália, o magistério romano se opôs veementemente a essa forma de governo. Com a gradativa transformação da democracia num processo pacifico de mudança dos governantes, os pontífices passaram a tolerá-la até sua aceitação em nossos dias. O posicionamento do Magistério Romano acerca da democracia no período posterior a Revolução Francesa e anterior aos ensinamentos de Leão XIII foi apresentado nos seguintes documentos do magistério romano: a encíclica Charitas (13 de abril de 1791) de Pio VI; a encíclica Diu Satis (15 de maio de 1800) de Pio VII; a encíclica Ubi Primum (5 de maio de 1824) de Leão XII; a encíclica Traditi Humilitati (24 de maio de 1829) de Pio VIII; as encíclicas Cum Primus (9 de junho de 1832), Mirari Vos (15 de agosto de 1832) e Commissum Divinitus (17 de maio de 1835) de Gregório XVI; as encíclicas Nostis et Nobiscum (8 de dezembro de 1949), Qui Nuper (18 de junho de 1859) e Nullis Certe Verbis (19 de janeiro de 1860) do Beato Pio IX. Para melhor compreender as mudanças na visão da Igreja Católica sobre a democracia aconselhamos consultar, além dos documentos anteriores a Leão XIII citados acima e aos documentos enumerados na nota número dois, as encíclicas Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993) e Evangelium Vitae (25 de março de 1995) de João Paulo II. 28 O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus um sistema que permite às pessoas ignorantes e desinformadas, convencidas por falsas idéias, apelar às pessoas esclarecidas, que possuem a correta informação. pontifício antes o fizera6, ao passo que, ao mesmo tempo, critica agudamente os defeitos e falhas da democracia aliada ao relativismo moral7. Entretanto, para funcionar, a democracia não pode estar baseada no relativismo moral. Se não há verdade moral que transcenda tempo e lugar, então a verdade se torna qualquer coisa que as pessoas queiram que seja, e não há potencial para o esclarecimento5. A Igreja Católica se move no sentido da democracia, reconhecendo sua importância no estabelecimento do bem comum, como vemos na encíclica Centesimus Annus, que endossa a democracia como nenhum outro documento Além de rejeitar o relativismo no processo democrático, a sociedade deve confiar naqueles que tentam ver e dizer a verdade ao povo. Essa foi a grande descoberta dos romanos, e não dos gregos. O filósofo grego Platão (427-348 a.C.) não gostava da democracia porque pensava que o filósofo nunca teria sucesso em instigar as pessoas, pois elas sempre agem conforme as paixões, e frente a isso, o filósofo é impotente8. O estadista e escritor romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), entretanto, propunha que o orador – um filósofo capaz de falar às pessoas, um bom homem que as conhecesse e amasse – poderia ajudá-las a tomar boas decisões9. 5 É inerente a doutrina da Igreja Católica a defesa da verdade moral cristã como única e verdadeira fonte da liberdade humana. A verdade moral defendida pela Igreja Católica está fundamentada em absolutos morais, não se sujeitando as interpretações errôneas do historicismo, do ecletismo, do cientificismo, do utilitarismo e do pragmatismo. Toda a Doutrina Social da Igreja se sustenta nesta relação de necessidade entre verdade e liberdade. Logo, a verdade é précondição para o esclarecimento da ação da pessoa no mundo, fato que coloca o pensamento social cristão como um ensinamento eminentemente religioso e moral sobre temas sociais, não podendo ser entendida como uma proposta alternativa de modelo político ou econômico, nem como uma ideologia, mas como uma orientação prática para a vida dos cristãos e de todos os demais homens de boa vontade. Para ter uma visão mais aprofundada das inúmeras críticas do Magistério Romano ao relativismo, ao ceticismo e ao indiferentismo, bem como sobre a defesa da relação entre verdade e liberdade, no período de Pio IX a João Paulo II, consultar, principalmente, os seguintes documentos pontifícios: as encíclicas Qui Pluribus (9 de novembro de 1846), Quanto Conficatur Moerore (10 de agosto de 1863) e Quanta Cura (8 de dezembro de 1864) do Beato Pio IX; as constituições dogmáticas Dei Filius (24 de abril de 1870) e Pastor Aeternus (18 de julho de 1970) do Concílio Vaticano I; as encíclicas Aeterni Patris (4 de agosto de 1879) e Libertas Praestantissimum (20 de junho de 1888) de Leão XIII; as encíclicas E Supremi Apostolatus (4 de outubro de 1903) e Pacendi Domini Gregis (8 de novembro de 1907) de São Pio X; as encíclicas Casti Connubii (31 de dezembro de 1930) e Caritate Christi Compulsi (3 de maio de 1932) de Pio XI; a encíclica Humani Generis (12 de agosto de 1950) de Pio XII; a encíclica Ad Petri Cathedram (29 de junho de 1959) de João XXIII; a constituição dogmática Lumen Gentium (21 de novembro de 1964) do Concílio Ecumênico Vaticano II; a encíclica Humanae Vitae (25 de julho de 1968) e a exortação apostólica Evangelli Nuntiandi de Paulo VI; as encíclicas Redemptor Hominis (4 de março de 1979), Dives in Misericordia (30 de novembro de 1980), Dominum et Vivificantem (18 de maio de 1986), Centesimus Annus, Veritatis Splendor, Evangelium Vitae, Ut Unum Sint (25 de maio de 1995), e Fides et Ratio (14 de setembro de 1998) de João Paulo II; as instruções Libertatis Nuntium, Libertatis Conscientia, Donum Vitae (22 de fevereiro de 1987) e Donum Veritatis (26 de julho de 1990), e a declaração Dominus Iesus (6 de agosto de 2000) da Congregação para Doutrina da Fé. A Igreja Católica reconhece que há verdade na severa crítica da democracia feita por Platão no oitavo e nono livro da República, onde argumenta que por faltar adequada autoridade, a democracia leva à corrupção10. As instituições da cidade são, eventualmente, tão desprezadas pelo povo que o tirano chega e faz uso da incapacidade dos líderes democráticos para defender o bem comum, tornando-se o senhor da cidade11. Mas esse destino, diz a Centesimus Annus, não é o 6 A aprovação ao regime democrático é expressa na Centesimus Annus da seguinte forma: “A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor de seus interesses particulares ou de objetivos ideológicos” (§46). 7 As criticas de João Paulo II à fundamentação da democracia no relativismo moral se encontram em passagens das seguintes encíclicas: Centesimus Annus (§46), Veritatis Splendor (§101) e Evangelium Vitae (§§69-70). 8 PLATÃO. A República. [Introdução, tradução do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira]. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 7ª Edição, 1993. Livro IX, §§572c592b. 9 CÍCERO, Marco Túlio. Da República. [Tradução e notas de Amador Cisneiros]. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção “Os Pensadores”, Volume V: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca & Marco Aurélio). Livro III, capítulos 2-3. 10 PLATÃO. Op. cit. Livro VIII, §§555b-566d & Livro IX, §§571a-592b. 11 Idem. Ibdem. Livro VIII, §§562c-566d. Rocco Buttiglione destino de toda democracia, mas somente daquelas que estão vivas para o relativismo moral; que não vêem valores nas elites que dizem ao povo a verdade; que fingem que não há verdade, ou que acreditam que o que a maioria quer é a verdade12. Por isso, a democracia endossada pela Centesimus Annus é o tipo de democracia desenvolvida pela tradição anglo-saxã – o tipo de democracia que encontramos na obra O Federalista13 – em vez da democracia continental da Revolução Francesa14. Se olharmos para os estadistas norteamericanos Alexander Hamilton (1757-1804) e James Madison (1751-1836), ou para o estadista e filósofo francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), o grande professor da teoria da democracia americana15, podemos notar que todos poderiam ter sido leitores de De Maistre. Tocqueville realmente leu De 12 A noção de totalitarismo como fruto do relativismo moral fica evidente nas passagens das seguintes encíclicas de João Paulo II: Centesimus Annus (§47), Veritatis Splendor (§99) & Evangelium Vitae (§70). 13 Todas as referências à obra O Federalista serão feitas com base na seguinte edição brasileira: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. [Introdução por Benjamin Fletcher Wright; tradução de Heitor Almeida Herrera]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984. 14 O tipo de democracia representativa vigente nas nações que foram influenciadas pela tradição anglo-saxã submete a vontade dos governantes e dos governados aos princípios do Estado de Direito, que no plano ético se caracteriza pelo respeito aos direitos humanos, no plano jurídico se realiza pela rigorosa delimitação constitucional dos poderes públicos, pela submissão da lei ao princípio da isonomia e pela eficácia da justiça, e no plano administrativo é orientado pela descentralização, pela imparcialidade e pela transparência dos poderes públicos. O modelo de democracia defendida pelos revolucionários franceses e vigente nos paises do terceiro mundo, em especial na América Latina, é guiada apenas pela vontade da maioria, podendo ser definida como uma ditadura plebicitária, onde o povo escolhe periodicamente o demagogo que, por um determinado período, irá tiranizar a sociedade, controlando uma maquina estatal corrupta e ineficiente. No pensamento social do papa João Paulo II o endosso ao modelo anglo-saxão de governo fica explicito na demonstração da relação de necessidade entre Estado de Direito e democracia (Centesimus Annus §46 / Ecclesia in America §56), na defesa das noções de Estado como protetor e promotor dos direitos individuais e de lei civil como continuidade da lei moral (Veritatis Splendor §101 / Evangelium Vitae §71), e na exigência da transparência administrativa por parte dos governantes (Veritatis Splendor §101). 15 Todas as referências à obra A Democracia na América de Alexis de Tocqueville serão feitas com base na seguinte edição brasileira: TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. [Prefácio de Antônio Paim; tradução e notas de Neil Ribeiro da Silva]. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1987. 29 Maistre, mas Hamilton não, pois morreu antes que a obra de De Maistre chegasse à América. No entanto, De Maistre leu Hamilton e O Federalista. Todos esses pensadores tentaram levar em conta as críticas à democracia e as usaram para ajudar a criar um estado de liberdade ordenada, um estado onde as condições de ajudar o povo a fazer escolhas boas e sadias possa ser construído numa base democrática. Como resultado, os pais-fundadores da ordem política americana pensavam que uma Câmara de Deputados eleita por dois anos era necessária para saber o que o povo pensa e quer num momento16, mas sem que as paixões sejam capazes de assumir o comando de forma imediata. Por isso os pais-fundadores estabeleceram um Senado eleito por seis anos, no qual um terço dos membros é reeleito a cada dois anos, assegurando, portanto, que as modificações importantes possam acontecer se a mesma opinião dominar o povo por três eleições num período de seis anos17. Os paisfundadores também queriam um judiciário independente, então, mesmo se o Senado e a Câmara dos Deputados quiserem fazer algo errado, ainda há alguém para os controlar18. Como sabemos, o judiciário é nomeado pelo presidente, mas não é dependente dele ou dos eleitores e, portanto, é uma autoridade independente, mas para criar estabilidade nessa autoridade, ele é mudado somente quando as pessoas investidas nos cargos ficam muito velhas ou morrem. Essa forma de democracia e de instituições de liberdade ordenada pode ajudar o governo popular a trabalhar com um mínimo de virtude e, ainda assim, a tomar decisões sábias. Isso é necessário porque a virtude não é mercadoria facilmente encontrada; via de regra, não há muita virtude em qualquer grupo de pessoas. Esse é o porquê da constituição política dever trabalhar bem com um mínimo de virtude, mas 16 HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigos 49-61, p. 407-478. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 1ª Parte, capítulo v, p. 71-72, e capítulo viii, p. 95-97. 17 HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigos 62-66, p. 479-515. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 1ª Parte, capítulo v, p. 71-72, e capítulo viii, p. 95-97. 18 HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigos 78-83, p. 575-622. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 1ª Parte, capítulo vi, p. 82-87, e capítulo viii, p. 110-119. 30 O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus caso as pessoas não possuam nem mesmo esse mínimo, estão perdidas. Se o povo continuar a querer algo errado por um longo período de tempo, nenhuma lei ou forma de governo pode salvar o país. A democracia não pode trabalhar sem a virtude; essa é a idéia de liberdade verdadeira ou ordenada. A primeira mudança importante que encontramos na Centesimus Annus é o forte endosso de uma democracia com as características de liberdade ordenada. Isso muito se aproxima daquilo que a Igreja tem tradicionalmente chamado governo misto. Até mesmo no século XIX, quando a Igreja se opunha à democracia, ela não endossava o absolutismo. A idéia que a Igreja apoiava era, mais precisamente, a de um governo misto – aliando as vantagens da monarquia, do povo e da aristocracia – onde os melhores pudessem contribuir com sua sabedoria para a determinação do curso de ação tomado pelo estado19. Se considerarmos a Constituição americana ao ler O Federalista, vemos que Hamilton tenta fundamentar todas as formas criativas de governo baseado nos princípios democrático-mistos20. A Suprema Corte é uma 19 A noção de governo misto surge com os primeiros analistas do sistema político romano, sendo a obra História (Historíai) do historiador grego Políbios (200-120 a.C.) o mais antigo relato conhecido sobre a temática. A defesa do ideal de governo misto ganha sua mais significativa teorização no mundo clássico na já citada obra de Marco Túlio Cícero, cujo pensamento influenciou significativamente todos os escritores latinos posteriores, deixando, assim, marcas profundas no pensamento político de Santo Agostinho (354-430), que promoveu a primeira grande síntese entre as culturas judaicocristã e grego-romana e lançou as bases da filosofia medieval. Durante a Idade Média a defesa do ideal de governo misto, assim como a crítica ao absolutismo, se encontra no pensamento político de Santo Tomás de Aquino (1225-1274), Johannes Duns Scotus (1265-1308), Dante Alighieri (12621321), João Quidort (1270-1306), Marsílio de Pádua (12751343) e William de Ockham (1285-1349). A crítica desses autores ao absolutismo tem suas raízes na cultura política romana, que fazia uma distinção bem clara entre poder (potestas) e autoridade (auctoritas), sendo o primeiro algo meramente externo, baseado na força, e que só surge quando a segunda é destruída, enquanto esta é algo legitimado na lei natural, que se adequa às funções e componentes que constituem a sociedade, respeitando, assim, a liberdade das pessoas. Pelo fato da Igreja Católica Apostólica Romana ter como fonte de seus ensinamentos não apenas a doutrina bíblica, mas, também a Tradição, legada pelos padres apostólicos e pela interpretação da verdade evangélica por seus doutores, muitas dessas teorias políticas sobreviveram até os nossos dias. 20 HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigo 10, p. 147154; Artigo 14, p. 173-178; Artigo 39, p. 329-334; Artigos 47 e 48, p. 393-405. espécie de aristocracia21, o presidente, uma espécie de rei22 (somente por quatro ou oito anos, mas, apesar disso, com mais poder que um rei francês comum), e os representantes são, no momento da participação, parte do corpo político23. A NOÇÃO DE LIVRE MERCADO Até aqui, vimos a mudança na idéia de bem comum e o fato dessa idéia implicar na liberdade dos indivíduos em governar a si mesmos por processos democráticos, mas se os indivíduos têm tal direito de escolha, devemos reavaliar não somente a democracia política como também o livre mercado. Essa é a segunda mudança na Centesimus Annus e na Doutrina Social da Igreja. O livre mercado não é justificado meramente pelo fato de ser o mais eficiente sistema de alocar recursos escassos para satisfazer as necessidades humanas; há algo mais que o faz ser um sistema econômico desejável24. O menor elemento do livre mercado é o contrato, o encontro da vontade livre de dois seres humanos. Ambos devem ser livres, pois caso não sejam, não há contrato, e, portanto não há livre mercado. Dessa forma, a lei dos contratos, que está na própria base da economia de livre mercado, é uma lei que pressupõe a liberdade humana e, portanto tem um valor ético em si25. Uma economia de livre 21 Idem. Ibdem. Artigo 78, p. 575-582. Idem. Ibdem. Artigo 69, p. 520-527. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 1ª Parte, capítulo viii, p. 97-100. 23 HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigo 57, p. 451456. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 2ª Parte, capítulo i, p. 135. 24 Na Centesimus Annus o papa João Paulo II ressalta o valor do livre mercado com as seguintes palavras: “A moderna economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo econômico e em muitos outros campos. A economia, de fato, é apenas um setor da multiforme atividade humana, e nela, como em qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma forma que o dever de a usar responsavelmente” (§32). 25 Nos textos mais recentes do Vaticano, a melhor explicação sobre a importância do cumprimento dos contratos se encontra no Catecismo da Igreja Católica, quando se refere à temática com as seguintes palavras: “As promessas devem ser mantidas, e os contratos, rigorosamente observados, na medida em que o compromisso assumido for moralmente justo. Uma parte notável da vida econômica e social depende do valor dos contratos entre pessoas físicas ou morais. É o 22 Rocco Buttiglione mercado, onde a regra da lei privada é corroborada, é uma economia de pessoas livres. Ao contrário, sempre que a extensão da lei privada é limitada, há perigo para a liberdade humana. Assim, o julgamento positivo da Igreja sobre o livre mercado é, primeiramente, um julgamento ético. A pessoa é por natureza livre; Deus criou cada pessoa para escolher livremente a verdade, e uma ordem econômica livre é parte da liberdade humana. Essa é a primeira afirmação importante da Centesimus Annus em relação à ordem econômica. Queremos uma ordem econômica democrática porque implica numa lei de contratos e de livre mercado, e essas pressupõem tanto a liberdade quanto a dignidade humana. A segunda afirmação importante da Centesimus Annus relativa à ordem econômica diz respeito a um profundo entendimento da situação da economia moderna. A economia política, via de regra, se inicia com a determinação das causas da riqueza das nações – a clássica formulação do filósofo e economista escocês Adam Smith (17231790)26. Uma explicação tradicional, comum até o século XVIII, para a origem da riqueza das nações é a terra; pois da terra vem o ouro, a prata e outros metais preciosos, a terra é fértil e produz tudo que a pessoa precisa para subsistência. Há alguma verdade nessa caso dos contratos comerciais de venda ou compra, os contratos de locação ou de trabalho. Todo contrato deve ser feito e executado de boa-fé. Os contratos estão sujeitos à justiça comutativa, que regula as trocas entre as pessoas e entre as instituições no pleno respeito aos seus direitos. A justiça comutativa obriga estritamente; exige a salvaguarda dos direitos de propriedade, o pagamento das dívidas e o cumprimento das obrigações livremente contraídas. Sem a justiça comutativa nenhuma outra forma de justiça é possível. Distingue-se a justiça comutativa da justiça legal, que se refere àquilo que o cidadão deve eqüitativamente à comunidade, e da justiça distributiva, que regula o que a comunidade deve aos cidadãos proporcionalmente às suas contribuições e às suas necessidades” (§§2410-2411). Utilizamos aqui a seguinte edição: Catecismo da Igreja Católica. [Edição típica vaticana]. São Paulo: Loyola, 2000. 26 Adam Smith, na obra A Riqueza das Nações (1776) procurou descobrir a natureza e as causas do aumento da riqueza dos povos e, ao mesmo tempo, compreender a progressiva evolução social que na sua época estava promovendo um notável avanço econômico e social. Em língua portuguesa a obra está disponível na seguinte edição: SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. [Introdução de Edwin Cannan; apresentação de Winston Fritsh; tradução de Luiz João Baraúna]. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 2v. 31 explicação, pois a economia não pode existir sem terras, a primeira explicação plausível para a atividade econômica. Mas quando digo “terra” quero dizer algo mais que uma simples propriedade real – também incluo nessa ampla definição bens materiais como o corpo humano. Em qualquer atividade humana sempre há algo primeiramente dado por Deus que age como pressuposto. O corpo humano é o primeiro pressuposto da economia porque não é produzido pelo próprio sistema econômico. O homem não é o Criador. Entretanto, é evidente que a pessoa é cocriadora nas coisas da natureza, estas somente adquirem valor quando vistas pelas pessoas, pois se os recursos econômicos não são vistos eles não existem. Por exemplo, sabemos por meio de relatos que turistas europeus ao cruzar a Grande Planície, no final do século XVIII e início do XIX, encontraram petróleo, mas como não sabiam o que fazer com aquilo, o petróleo era um estorvo em vez de ser um recurso. O petróleo só se tornou recurso quando alguém percebeu que poderia ser usado de forma produtiva. Desse modo, a visão da pessoa participa, com os dons de Deus, para gerar recursos econômicos. Agora, para não ser mal entendido, deixeme sublinhar que a pessoa precisa de um bocado de virtudes humanas para ser capaz de ver os recursos. Antes de tudo, precisa ter uma certa paixão pelo pensamento teórico; ou seja, para a contemplação. Consideremos o exemplo da história de Ulisses e de Polifemo, o ciclope gigante, na Odisséia do poeta grego Homero (c. séc. XII-VII a.C.): Ulisses e seus companheiros foram presos numa caverna pelo ciclope e ficaram dominados pelo medo, se tornando tão passivos que Polifemo é capaz de pegar alguns deles e comê-los. Ulisses fala ao coração – acreditava que era o órgão que controlava as paixões – e pediu-lhe que ajudasse. Ulisses, então, fica calmo, já que está livre do medo estarrecedor que pairava sobre sua segurança pessoal, e quando recobra o domínio de si, é capaz de ver que uma vara próxima, se afiada, poderia se tornar uma arma contra o gigante e que a ovelha poderia ser usada como instrumento de fuga da caverna. Agora, Ulisses pode lutar contra o gigante – um símbolo da natureza – porque vê 32 O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus claramente e não está cego pelas próprias paixões. Ele pode ver porque é capaz de recobrar a atitude de contemplação27. Essa atitude teórica é fundamental para visualizar os recursos. Os animais não vêem as coisas como nós porque falta a eles comportamento teórico, e, portanto, não podem fazer uso de conhecimento geral para satisfazer suas necessidades ou desejos. Mas nós podemos. O que chamamos de “trabalho” é uma atividade complexa que pressupõe o domínio dos instintos. Devemos ter uma atitude contemplativa para com o mundo e algum conhecimento teórico antes de realizar a tarefa prática de transformar a natureza. Esse é o porquê de nós trabalharmos e dos animais não trabalharem. A existência dessa particularidade na relação humana com a realidade sugere que deve haver diferentes funções no que denominamos “trabalho”. O lado teórico requer que vejamos as coisas sem a preocupação de fazer uso delas, e depois podemos retomar a atitude prática para discernir qual parte do objeto pode ser útil para nós. Logo, na própria natureza de todo o trabalho humano, podemos detectar a semente do que chamamos “empreendedorismo”. Ulisses na caverna é um teórico, mas, ao mesmo tempo, um empreendedor porque vê a necessidade humana – ou seja, ele quer sair –, vê os recursos que podem ser usados para satisfazer essa necessidade, e toma a responsabilidade do risco que implica combiná-los. Assim, se olharmos para toda a estrutura e origem da riqueza, vemos que, apesar do pressuposto da riqueza da terra, ele não é suficiente para gerar riqueza28. O intelecto humano, o esforço e o trabalho também são 27 A narrativa citada pelo autor se encontra versos 181 a 542 do Canto IX da Odisséia (Odýsseia). Em língua portuguesa foram publicadas diversas edições dessa obra, consultamos a seguinte edição brasileira: HOMERO. Odisséia. [Prefácio e tradução em versos por Carlos Alberto Nunes]. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992. 28 Sobre a temática o Papa João Paulo II ressalta na Centesimus Annus que: “A terra não dá os seus frutos, sem uma peculiar resposta do homem ao dom de Deus, isto é, sem o trabalho: é mediante o trabalho que o homem, usando sua inteligência e liberdade, consegue dominá-la e estabelecer nela a sua digna morada. Deste modo, ele apropria-se de uma parte da terra, adquirida precisamente pelo trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual” (§31). necessários. A relação entre esses fatores produtivos – entre terra e inteligência humana, entre terra e trabalho humano – muda com o tempo. No século XVIII o fator mais importante era a terra. No século XIX era especificamente o capital, como o filósofo e economista alemão Karl Marx (1818-1883) o entendia: capital-máquinas. Em nosso tempo, temos visto outra mudança, agora o principal fator é a quantidade de informação objetivada no bem produzido. Um bom exemplo disso é o disquete de computador, onde um milésimo de seu valor é de matéria-prima e novecentos e noventa e nove por cento é o valor do programa inscrito nele. Esse é o valor da inteligência humana investida num objeto que o torna valioso29. Uma vez que tenhamos entendido esse conceito, podemos compreender o motivo pelo qual a Igreja mudou de atitude face à política econômica em geral. Tradicionalmente, a Igreja estava interessada principalmente na distribuição da riqueza em vez de sua criação. Essa postura é compreensível, pois caso entendamos que a geração de riqueza é uma tarefa de Deus e da natureza, então o bom proprietário de terras é quem distribui livremente as riquezas da terra gratuitamente dadas a ele. Mas no século XX, a riqueza do empreendedor depende de seus investimentos, ele deve sempre comprar melhores máquinas e criar reservas para os tempos difíceis. O empreendedor é mais rico que o senhor de terras, mas sua riqueza está sempre correndo risco. A cada ano ele pode perder tudo, a cada ciclo de produção pode se tornar pobre. Ele tem uma postura diferente e deve trabalhar de forma diferente do senhor de terras porque vive num mundo onde o principal recurso econômico, agora, é a inteligência humana e a virtude, a síntese do que pode ser chamada “laboriosidade”. Agora a Igreja reconhece a centralidade da função social do empreendedor e percebe que, 29 O Papa João Paulo II capta com perfeição na Centesimus Annus a mudança nos fatores que geram a riqueza dos povos ao afirmar que: “Existe, em particular no nosso tempo, uma outra forma de propriedade, que reveste uma importância nada inferior à da terra: é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber. A riqueza das Nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que sobre a dos recursos naturais” (§32). Rocco Buttiglione se não há empreendedores, não há riquezas para ninguém. Qual foi a principal fonte de riqueza das nações na última década do século XX? A atividade empresarial, porque combina a inteligência humana com outros fatores produtivos. Essa atividade é positiva por si mesma, pertence e é um elemento essencial da economia livre. Isso também requer que muitas virtudes tais como firmeza, prudência, laboriosidade, inteligência, sabedoria humana, conhecimento da natureza humana, capacidade de dar a cada um o que é devido – ou seja, justiça –, sem as quais as pessoas não estarão dispostas a trabalhar para o empresário30. Logo, pela primeira vez, na Centesimus Annus, a Igreja oferece uma avaliação adequada das virtudes do trabalho, das virtudes do empreendedor, da função social do empreendedorismo e do imperativo moral da liberdade. Essa percepção da Centesimus Annus é muito importante num certo ponto que tem recebido cada vez mais atenção nas últimas décadas pelo pensamento social cristão: o problema do desenvolvimento31. Temos 30 A função empresarial na moderna economia capitalista é explicada pelo papa João Paulo II na Centesimus Annus da seguinte forma: “O homem trabalha para outros homens, participando num ‘trabalho social’ que engloba progressivamente círculos cada vez mais amplos. Quem produz um objeto, para além do uso pessoal, fá-lo em geral para que os outros possam usar também, depois de ter pago o preço justo, estabelecido de comum acordo, mediante uma livre negociação. Ora, precisamente a capacidade de conhecer a tempo as carências dos outros homens e as combinações de fatores produtivos mais idôneos para as satisfazer, é outra importante fonte de riqueza na sociedade moderna. Aliás, muitos bens não podem ser adequadamente produzidos através de um único indivíduo, mas requerem a colaboração de muitos para o mesmo fim. Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade atual. Assim parece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e – enquanto parte essencial desse trabalho – das capacidades da iniciativa empresarial” (§32). 31 O desenvolvimento é um processo de crescimento econômico e melhoria qualitativa do padrão de vida da sociedade. Fruto de alterações fundamentais na estrutura econômica no sentido de uma maior liberação das forças produtivas, implica em diferenciações no processo de produção, na introdução de inovações tecnológicas e no aprimoramento do capital humano. Considera-se desenvolvida a sociedade que melhor atende as necessidades materiais de seus membros. O desenvolvimento é ao mesmo tempo um processo dinâmico, onde parar é regredir, e contínuo, visto que as necessidades humanas são sempre crescentes, aumentando e se diversificando em conseqüência das próprias mudanças. 33 diferentes teorias do porque as economias não são desenvolvidas. Alguns argumentam que as pessoas são pobres porque não têm recursos naturais. Isso é falso, pois muitos países subdesenvolvidos têm uma enorme abundância de recursos naturais; de fato, o problema é que a única coisa que esses países têm são os recursos naturais. Uma segunda teoria sustenta que esses países não têm capital suficiente. Há alguma verdade nisso, pois a falta de capital é um poderosíssimo impedimento ao crescimento, mas esse não é o problema primário. Se as pessoas têm capacidade empreendedora, elas terão capital, pois os bancos lhes darão dinheiro sem trepidar, pois terão certeza de que farão bom uso do dinheiro e que dentro de cinco ou dez anos pagarão com juros. A solução para o subdesenvolvimento econômico é o desenvolvimento cultural, que ajudará os povos a adquirir as habilidades teóricas e práticas, dotando os jovens de maior capacidade de dar conteúdo informativo ao capital usado para produzir suas terras32. Em No atual contexto das sociedades globalizadas o desenvolvimento se dá na interdependência, logo, não é possível em sociedades que se isolem do mercado mundial. Na Doutrina Social Católica a preocupação com o desenvolvimento tem suas reflexões iniciais formuladas na carta encíclica Mater et Magistra de João XXIII e na Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II. O papa Paulo VI analisou de forma sistemática o tema na carta encíclica Populorum Progressio. No pensamento social de João Paulo II a temática foi retomada de forma mais intensa na carta encíclica Sollicitudo Rei Socialis, que comemora os vinte anos da Populorum Progressio, sem ser negligenciada nas cartas encíclicas Laborem Exercens e Centesimus Annus. A sincronia do pensamento de João Paulo II com as modernas correntes do pensamento econômico ao tratar do desenvolvimento fica explicita na seguinte passagem da Centesimus Annus: “Há relativamente poucos anos, afirmouse que o desenvolvimento dos Países mais pobres se dependeria do seu isolacionamento do mercado mundial, e da confiança apenas nas próprias forças. A recente experiência demonstrou que os Países que foram excluídos registraram estagnação e recessão, enquanto conheceram o desenvolvimento aqueles que conseguiram entrar na corrente geral de interligação das atividades econômicas a nível internacional. O maior problema, portanto, parece ser a obtenção de um acesso eqüitativo ao mercado internacional, não fundado sobre o princípio unilateral do aproveitamento dos recursos naturais, mas sobre a valorização dos recursos humanos” (§33). 32 A tônica central do pontificado de João Paulo II tem sido a proposta de evangelização da cultura, lançada pelo Sínodo dos Bispos de 1974 e cujas conclusões se encontram na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi de Paulo VI. Em diversos documentos e mensagens o papa João Paulo II destacou que, em última instância, é o sistema moral-cultural que determina 34 O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus outras palavras, precisamos ajudar a criar uma classe empreendedora. O grande problema da América Latina, por exemplo, é que há poucos empreendedores autênticos, e que não são suficientes para sustentar a economia da região. Há poucas pessoas que vêem recursos e oportunidades, que os unem e que tomam a responsabilidade do progresso produtivo. Muitos esperam que o governo faça isso, outros não sabem como fazê-lo, pois não há tradição empresarial. O empreendedorismo deve ser ensinado nas escolas, mas também deve fazer parte da tradição familiar, pois a capacidade empresarial não é fácil de desenvolver. Outra percepção da Doutrina Social Cristã é que de um lado a função social do empreendedor precisa ser reconhecida, mas por outro lado, os empresários devem estar conscientes de que têm responsabilidades para com todas as comunidades e que devem abraçar essa tarefa. Na América Latina, falta, certamente, educação técnica, mas falta ainda mais educação moral. Logo, qual é a tarefa da Igreja nessas situações? A Igreja deve continuar a advogar a causa dos pobres desse mundo e nunca deixar de pedir que ajudem aos pobres, mas ao mesmo tempo, deve ensinar às pessoas as virtudes de que necessitam para sair da situação de miséria33. Não se pode o desempenho econômico e político das nações. Na Centesimus Annus o papa afirma que “a moderna economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo econômico e em muitos outros campos. A economia, de fato, é apenas um setor da multiforme atividade humana, e nela, como em qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma forma que o dever de a usar responsavelmente. Mas importante notar a existência de diferenças específicas entre essas tendências da sociedade atual, e as do passado, mesmo se recente. Se outrora o fator decisivo da produção era a terra e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, hoje o fator decisivo é cada vez mais o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela no saber científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer a necessidade do outro” (§32). 33 Na exortação apostólica Ecclesia in America é explicitado pelo Papa João Paulo II que “o fenômeno da corrupção é, também na América, notavelmente estendido. A Igreja pode contribuir eficazmente a extirpar este mal da sociedade civil com ‘uma maior presença de leigos cristãos qualificados que, por sua educação familiar, escolar e paroquial, promovam a prática de valores como a verdade, a honestidade, a laboriosidade e o serviço ao bem comum’. Para conseguir este objetivo, bem como para iluminar todos os homens de boa vontade, desejosos de acabar com os males derivados da simplesmente culpar uma injusta situação internacional; a injustiça social predomina em nível internacional porque as virtudes sociais necessárias são sempre esquecidas em termos locais. Se as nações pobres tivessem uma classe empreendedora vibrante e uma classe política responsável, tais nações estariam mais capacitadas a defender seus interesses no cenário internacional. Caso sejam cometidos abusos, a primeira causa é sua própria fraqueza, e sua fragilidade é, ao menos em parte, a conseqüência do frágil desenvolvimento moral e cultural. A consciência da necessidade de desenvolvimento moral e cultural deve estar no centro de qualquer ação que possamos realizar para ajudar os países em desenvolvimento. Claro que devemos ajudar aos famintos da Somália, por exemplo, porque eles não podem esperar vinte anos até que uma nova classe empreendedora moralmente responsável tenha se desenvolvido; eles precisam de algo para comer agora, então devemos enviar alimentos juntamente com soldados para protegê-los dos ladrões. Mas também devemos pensar nas conseqüências de nossas ações presentes em longo prazo e não devemos ser negligentes em ajudar a essas nações a desenvolver economias livres e funcionais. O imperativo moral da liberdade também é necessário nos Estados Unidos da América e na Europa porque o Ocidente sofreu uma revolução pedagógica inspirada pelo socialismo34. Na Alemanha, por exemplo, a corrupção, é preciso ensinar e difundir em larga escala a parte que corresponde a este tema no Catecismo da Igreja Católica” (§60). 34 Na exortação apostólica Ecclesia in Europa o papa João Paulo II constata que a sociedade européia passa por uma “crise da memória e herança cristãs, acompanhada por uma espécie de agnosticismo prático e indiferentismo religioso, fazendo com que muitos europeus dêem a impressão de viver sem substrato espiritual e como herdeiros que dilapidaram o patrimônio que lhes foi entregue pela história. Por isso, não causam assim tanta maravilha as tentativas de dar um rosto à Europa excluindo a sua herança religiosa, e de modo particular a sua profunda alma cristã, estabelecendo os direitos dos povos que a compõem sem enxertá-los no tronco irrigado pela linfa vital do cristianismo. No continente europeu, certamente não faltam prestigiosos símbolos da presença cristã, mas, com a afirmação lenta e progressiva do secularismo, correm o risco de reduzirem-se a meros vestígios do passado. Muitos já não conseguem integrar a mensagem evangélica na experiência diária; aumenta a dificuldade de viver a própria fé em Jesus num contexto social e cultural Rocco Buttiglione social-democracia não pôde realizar a revolução socialista na economia ou na sociedade, mas faz a revolução nas escolas. Os jovens são educados com a idéia de uma nova sociedade que será diferente da sociedade de hoje – uma sociedade sem competição onde as velhas virtudes da laboriosidade não são necessárias, uma sociedade de consumidores, e não uma sociedade de trabalhadores. Tal sociedade nunca virá, mas os jovens estão sendo preparados para essa sociedade e não para a que temos. Nossa sociedade real é aquela em que há competição ferrenha e que as pessoas devem trabalhar duro e estudar cada vez mais, especialmente nas escolas. As pessoas devem aprender a aprender, mas não só aprender conhecimento técnico, pois esse muda muito facilmente. A revolução tecnológica pode jogar a pessoa para fora do mercado e desvalorizar todo o conhecimento que essa pessoa possui. As pessoas devem estar desejosas e ser capazes de mudar e adaptar, de fazer algo novo, portanto, não precisam somente de conhecimento técnico, onde é continuamente desafiado e ameaçado o projeto de vida cristã; em vários sectores públicos, é mais fácil definir-se agnóstico do que crente; dá a impressão de que o normal é não crer, enquanto o acreditar teria necessidade de uma legitimação social não óbvia nem automática. Esta crise da memória cristã é acompanhada por uma espécie de medo de enfrentar o futuro. A imagem que se forma do amanhã aparece muitas vezes vaga e incerta. Do futuro sente-se mais medo que desejo. Sinais preocupantes disto mesmo são, entre outros, o vazio interior, que oprime muitas pessoas, e a perda do significado da vida. Como manifestações e frutos desta angústia existencial, contam-se, de modo particular, a dramática diminuição da natalidade, a queda das vocações ao sacerdócio e à vida consagrada, a relutância, se não mesmo a recusa, de tomar decisões definitivas na vida inclusive no matrimônio. Assiste-se a uma generalizada fragmentação da existência; predomina uma sensação de solidão; multiplicamse as divisões e os contrastes. Entre outros sintomas deste estado de coisas, a situação européia atual registra o grave fenômeno das crises familiares e do esmorecimento do próprio conceito de família, a persistência ou reabertura de conflitos étnicos, o reaparecimento de alguns comportamentos racistas, as próprias tensões inter-religiosas, o egocentrismo que fecha indivíduos e grupos em si mesmos, o crescimento de uma indiferença ética geral e de uma preocupação obsessiva pelos próprios interesses e privilégios” (§§ 7-8). Neste mesmo documento o Pontífice Romano ressalta que “a Europa atual, precisamente quando está a reforçar e ampliar a sua união econômica e política, parece sofrer de uma profunda crise de valores. Embora dispondo de meios mais abundantes, dá a impressão de carecer do ímpeto necessário para incrementar um projeto comum e dar razões de esperança aos seus cidadãos” (§ 108). 35 mas também de um conhecimento cultural geral35. Em vez de dizer aos alunos que eles precisam estudar mais e trabalhar mais para encontrar a satisfação na vida que desejam, estamos preparando as pessoas para um mundo que não existe. Essa devastadora revolução pedagógica está ligada a muitas outras falhas em nossa sociedade, por exemplo, a crise na família. O Senador Patrick Moyniham de Nova Iorque – com quem nem sempre concordo – deu uma palestra brilhante na Universidade Fordham, onde disse que o maior problema da América não é o desemprego, mas os desempregáveis. Muitas pessoas não receberam das famílias e das escolas um conhecimento fundamental e as virtudes necessárias para conseguir um emprego e mantê-lo. O trabalho deve se tornar novamente uma virtude central na sociedade, se não quisermos perecer. Contamos com a prosperidade que foi construída com o trabalho árduo das gerações passadas, e esquecemos que a prosperidade pode ser perdida. Esse é o desafio das sociedades ocidentais. O mercado não é um jogo de soma zero, não é necessário alguém empobrecer quando outro entra no mercado. O mercado pode aumentar, mas somente pelo trabalho árduo, o mesmo trabalho que inicialmente construiu o mercado. Se não formos capazes de realizar esse trabalho árduo, nos tornaremos pobres. 35 Na Centesimus Annus o papa João Paulo II afirma que “Toda a atividade humana tem lugar no seio de uma cultura e integra-se nela. Para uma adequada formação de tal cultura, se requer a participação de todo o homem, que aí aplica a sua a criatividade, a sua inteligência, o seu conhecimento do mundo e dos homens. Aí investe ainda a sua capacidade de autodomínio, de sacrifício pessoal, de solidariedade e disponibilidade para promover o bem comum. Por isso, o primeiro e maior trabalho realiza-se no coração do homem, e o modo como ele se empenha em construir o seu futuro depende da concepção que tem de si mesmo e do seu destino. É a este nível que se coloca o contributo específico e decisivo da Igreja a favor da verdadeira cultura. Ela promove as qualidades dos comportamentos humanos, que favorecem a cultura da paz, contra os modelos que confundem o homem na massa, ignoram o papel da sua iniciativa e liberdade e põem a sua grandeza nas artes do conflito e da guerra” (§51). 36 O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus CONCLUSÃO Ainda há uma forte ligação entre fazer bem feito e fazer o bem, apesar de, às vezes, fazer bem feito possa se opor a fazer o bem. É possível imaginar situações nas quais se você quer fazer o que é bom, então deve pagar por isso com o fracasso, talvez até mesmo com o fracasso político, como no caso de Santo Thomas More (1478-1535). More foi um político sagaz e queria se sair bem na política. Tentou o quanto foi possível estar no lado vencedor, mas, ao final, teve de escolher entre fazer bem feito e fazer o bem, e escolheu não fazer bem feito como político para fazer o bem como pessoa. Porém, essa não é a condição de vida normal do empreendedor; como norma, tentamos juntar o fazer bem feito com o fazer o bem. Podemos fazê-lo em política e em nossa atividade econômica. Em princípio não há oposição, mas, ao contrário, para fazer bem temos de ser capazes de fazer ‘o’ bem, até certo ponto. Precisamos de virtudes porque a moralidade e a prosperidade econômica estão unidas uma com a outra, mesmo se, em certas ocasiões, venham a colidir. No meu ponto de vista, a encíclica Centesimus Annus quer introduzir um novo diálogo entre a Igreja e a humanidade, entre moralidade e atividade econômica livre e responsável. Nesse diálogo poderá haver desacordos e isso não deverá nos surpreender, pois sempre há conflito entre pessoas com princípios sólidos. Entretanto, o que temos em comum é mais importante do que aquilo que pode nos dividir; normalmente o que divide está na superfície, mas o que nos é comum é a liberdade. Acreditamos que a pessoa é livre perante Deus, que a pessoa deva ser livre política e economicamente. Também entendemos que a sociedade política e economicamente livre requer uma certa parcela de virtude não produzida por essas sociedades e que deve ser produzida por outro agente. A Igreja se propõe como agente responsável por ensinar tais virtudes no novo milênio. Faríamos bem em considerar tal convite. Tradução de Márcia Xavier de Brito Revisão Técnica e Notas de Alex Catharino