DE SACERDOTES A FEITICEIROS

Transcrição

DE SACERDOTES A FEITICEIROS
O IMPERATIVO MORAL DA LIBERDADE
REFLEXÕES SOBRE A ENCÍCLICA CENTESIMUS ANNUS
Rocco Buttiglione
A encíclica Centesimus Annus (1991)1
representa o que poderia ser chamado de
primavera da Doutrina Social da Igreja. Nesse
momento vemos uma mudança tomar lugar na
Doutrina Social, mas certamente, não no
sentido de que algo que antes era verdadeiro,
agora se torna falso. Os católicos romanos, e
os demais cristãos, de um modo geral,
acreditam que a verdade quanto à natureza
humana não muda com o tempo, apesar de
poder haver mudanças na forma como
entendemos as conseqüências da verdade ao
mudarem as circunstâncias. A Igreja Católica
Apostólica Romana tem tomado ciência das
novas circunstâncias sociais e econômicas, e
as mudanças que ocorreram nesses meios
tornaram fácil para a Igreja Católica ver a
liberdade – especialmente a liberdade
econômica – como um imperativo moral.
A mudança que ocorreu na Doutrina Social
da Igreja em resposta às mudanças sociais e
econômicas se tornou evidente em duas áreas:
na idéia de bem comum e na visão de livre
mercado.
1
Ao longo do texto utilizaremos nas citações de todas as
cartas encíclicas de João Paulo II a seguinte edição brasileira:
JOÃO PAULO II, Papa. Encíclicas do Papa João Paulo II.
[Edição organizada por Armando Casimiro Costa e Ives
Gandra da Silva Martins Filho; apresentação do Cardeal Dom
Cláudio Hummes; prefácio de Dom Lorenzo Baldisseri]. São
Paulo: LTr, 2003.
A NOÇÃO DE BEM COMUM
Quanto a primeira noção, tem ocorrido um
aprofundamento na idéia de bem comum, idéia
central na Doutrina Social da Igreja, que
sugere que as pessoas agem em busca de seus
próprios fins, alguns dos quais têm tanto uma
natureza individual quanto social. Por
exemplo, quando alguém me pergunta quem
eu sou, normalmente respondo à pessoa com
meu primeiro nome, Rocco, e meu nome de
família, Buttiglione, que significa que sou
membro de uma família e que não posso
realmente entender quem sou sem saber
também algo sobre minha família. Esses
relacionamentos são parte de minha
identidade, e, porque minha identidade está
fundamentada, até certo ponto, nos meus
relacionamentos com outras pessoas, não
posso dizer que algo é bom para mim se
também não é bom para essas outras pessoas.
Explico a idéia de bem comum para meus
alunos usando o seguinte exemplo:
Suponhamos que um amigo me telefone e me
convide para ir com ele às montanhas. Já que
sou casado, minha resposta habitual é a
resposta de todos os bons maridos: “É uma
boa idéia, mas dê-me um tempo para pensar
sobre isso”. É claro, “um tempo para pensar
sobre isso” significa “deixe-me perguntar à
minha mulher”. Se ela está de acordo, então eu
irei, mas caso ela não esteja, então, prefiro
ficar com ela mesmo que quisesse ir às
montanhas, porque ficar com ela é mais
26
O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus
importante. Esse exemplo demonstra que há
pessoas que são parte de minha vida, e que não
posso saber o que quero, se não sei o que elas
querem; não posso saber o que tenho vontade
se não sei o que elas têm vontade. Eu pertenço
a elas, e meu bem pessoal só pode ser
determinado em relação a elas; portanto, o que
é mau para minha mulher não pode ser bom
para mim. Esse é o motivo pelo qual a idéia de
bem comum está no centro da Doutrina Social
da Igreja; de fato é tão importante que seria
quase impossível ter doutrina social cristã sem
essa idéia2.
2
A noção de bem comum permeia quase todos os debates
sobre a justiça na tradição da filosofia moral ocidental,
principalmente nos escritos dos autores cristãos da Idade
Média, influenciando profundamente, assim, a Doutrina Social
da Igreja. No período de Leão XIII a João Paulo II, quando os
ensinamentos sociais da Igreja Católica são sistematizados,
encontramos a preocupação com o bem comum nos seguintes
documentos do magistério romano: as encíclicas Inscrutabili
Dei Consilio (21 de abril de 1878), Quod Apostolici Muneris
(28 de dezembro de 1878), Diuturnum Illud (29 de junho de
1881), Immortale Dei (1º de novembro de 1885), Sapientiae
Christianae (10 de janeiro de 1890), Rerum Novarum (15 de
maio de 1891) e Graves de Communi (18 de janeiro de 1901)
de Leão XIII; as encíclicas Il Fermo Proposito (11 de junho de
1905), Notre Charge Apostolique (25 de agosto de 1910) e
Singulari Quadam (24 de setembro de 1912) e o motu proprio
Fin Dalla Prima (18 de dezembro de 1903) de São Pio X; as
encíclicas Ad Beatissimi Apostolorum Pricipis (1º de
novembro de 1914) e Pacem Dei Munus (23 de maio de 1920)
de Bento XV; as encíclicas Ubi Arcano (23 de dezembro de
1922), Quadragesimo Anno (15 de maio de 1931), Non
Abbiamo Bisogno (29 de junho de 1932), Acerba Animi (29 de
setembro de 1932), Dilectissima Nobis (30 de junho de 1933),
Mit Brennender Sorge (14 de março de 1937), Divini
Redemptoris (19 de março de 1937) e Firmissimam
Constantiam (28 de março de 1937) de Pio XI; as encíclicas
Summi Pontificatus (20 de outubro de 1939) e Sertum
Laertitiae (1º de novembro de 1939), a radiomensagem La
Solennitá (1º de junho de 1941) e as radiomensagens natalinas
de 1941, 1942 e 1944 a 1955 de Pio XII; as encíclicas Mater
et Magistra (15 de maio de 1961) e Pacem in Terris (11 de
abril de 1963) do Beato João XXIII; a constituição pastoral
Gaudium et Spes (7 de dezembro de 1965) e a declaração
Dignitatis Humanae (7 de dezembro de 1965) do Concilio
Ecumênico Vaticano II; as encíclicas Ecclesiam Suam (6 de
agosto de 1964) e Populorum Progressio (26 de março de
1967), a carta apostólica Octogesima Adveniens (14 de maio
de 1971) e a exortação apostólica Evangelli Nuntiandi (8 de
dezembro de 1975) de Paulo VI; as encíclicas Laborem
Exercens (14 de setembro de 1981), Sollicitudo Rei Socialis
(30 de dezembro de 1987) e Centesimus Annus (1º de maio de
1991) e as exortações apostólicas Ecclesia in Africa (14 de
setembro de 1995), Ecclesia in America (22 de janeiro de
1999), Ecclesia in Asia (6 de novembro de 1999), Ecclesia in
Oceania (22 de novembro de 2001) e Ecclesia in Europa (28
de junho de 2003) de João Paulo II; as instruções Libertatis
Nuntium (6 de agosto de 1984) e Libertatis Conscientia (22 de
março de 1986) e a nota doutrinal Sobre Algumas Questões
Relativas à Participação e Comportamento dos Católicos na
Vida Política (24 de novembro de 2002) da Congregação para
Por causa dessa centralidade, devemos
entender como a idéia de bem comum é
expressa.
Conforme
uma
formulação
tradicional e objetiva, o bem comum de uma
comunidade é a soma agregada dos bens
particulares de cada indivíduo que dele
participa. Portanto, é possível para alguém
saber o que é bom para cada um e para todos
os indivíduos, e desse conhecimento ser capaz
de calcular o bem comum. Em outras palavras,
a pessoa que sabe o que é bom para todos
determina o bem comum. No período
medieval essa pessoa era chamada de o “bom
príncipe”.
Entretanto, há uma objeção a essa
determinação puramente objetiva de bem
comum: Quem é o bom príncipe que sabe o
que é bom para mim? Será que alguém, que
está fora de mim, pode saber, melhor do que
eu, o que é bom para mim? De certa forma é
possível. Sei o que é bom para minha filha
melhor do que ela, mas não é bom para ela
fazer o que é bom simplesmente porque eu o
sei. Fazer o que é bom deve ser uma expressão
da interioridade dela. Eu posso escolher o
melhor homem do mundo para casá-la, mas se
ela não se apaixonar por ele, o casamento não
será bom. Da mesma forma, o bem comum
não pode ser determinado por um simples
cálculo agregado feito por um “bom príncipe”,
independente da participação do povo. A
liberdade e a interioridade também devem
fazer parte da conta.
Podemos explicar isso com um exemplo da
obra História do historiador grego Herôdotos
de Halicarnassôs (480-425 a.C.). Depois que
três líderes da revolta persa foram bem
sucedidos em retirar um usurpador do trono,
tiveram uma discussão entre eles para escolher
a forma perfeita de governo para o novo
Doutrina da Fé; a diretriz A Doutrina Social da Igreja na
Formação Sacerdotal (30 de dezembro de 1988) da
Congregação para Educação Católica; além do Compêndio de
Doutrina Social da Igreja (2 de abril de 2004), os documentos
A serviço da comunidade humana (27 de dezembro de 1986),
O que fizeste ao teu irmão sem teto? (27 de dezembro de
1987), Para uma melhor distribuição da terra (22 de fevereiro
de 1997) e Comércio, desenvolvimento e luta pela pobreza (18
de novembro de 1999) da Pontifícia Comissão Justiça e Paz; o
documento A fome no mundo (4 de outubro de 1996) do
Pontifício Conselho Cor Unum; bem como no Catecismo da
Igreja Católica (11 de outubro de 1992) e no Código de
Direito Canônico (23 de janeiro de 1983).
Rocco Buttiglione
Estado. O primeiro deles propunha a
monarquia; acreditava que o rei era o único
que poderia estabelecer e realizar o bem
comum. O segundo objetou e disse que não só
uma pessoa, mas alguns poucos – a reunião
dos melhores – deveriam governar o povo, já
que há mais sabedoria em muitas cabeças do
que em somente uma. O terceiro objetou a
ambos e defendeu a democracia, mas sua
argumentação foi considerada a mais fraca das
três pela improbabilidade de se achar
sabedoria dentre muitos3.
Não obstante, o terceiro líder tinha um
argumento muito bom relativo ao bem comum.
Ele percebia que os homens são por natureza
livres, que essa liberdade corresponde à sua
dignidade, e que devem obedecer à lei para a
qual livremente consentiram. Em outras
palavras, o terceiro líder entendeu que o bem
comum das pessoas não pode ser realizado
sem a participação delas. Esse endosso da
democracia não garante, é claro, a crença de
que as pessoas irão entender o bem comum
sem conflitos. No entanto, isso significa que o
bem comum diz respeito à dignidade humana
– que as pessoas devem, ao menos de alguma
forma, controlar-se e obedecer à razão. Além
disso, pressupõe que a razão possa ser
explicada às pessoas, pois a democracia se
baseia na idéia de que todos têm o potencial
para entender, caso lhes seja dada uma
adequada explicação dos assuntos.
O entendimento da Igreja Católica
Apostólica Romana sobre a importância da
democracia para a determinação do bem
comum está aumentando, mas isso não quer
dizer que a Igreja Católica aceite a ideologia
democrática formulada no século XIX. Para
dar um exemplo bem conhecido, a forte crítica
do estadista e filósofo francês Conde Joseph
De Maistre (1753-1821) à democracia é
totalmente válida: o governo popular não é
3
Esse debate fictício de Herôdotos sobre as formas de
governo é considerado por muitos especialistas a primeira
reflexão política escrita na cultura ocidental. Tal narrativa se
encontra nos capítulos 80 a 83 do Livro III da obra História
(Historíai). Em língua portuguesa essa obra foi publicada em
diversas edições, dentre as quais destacamos, pela fidelidade
da tradução e pela qualidade do aparato crítico, a seguinte:
HERODOTOS. História. [introdução, tradução do grego e
notas de Mário da Gama Kury]. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2ª edição, 1988.
27
intrinsecamente um bom governo. Entretanto,
já que o bem comum da comunidade não pode
ser determinado sem democracia, não é
possível a ninguém renunciá-lo e aceitar uma
forma de governo não democrática. A Igreja
Católica entendeu isso e tem considerado a
democracia como a pior forma de governo,
exceto quando comparada a todas as outras4.
Realmente, a democracia não é perfeita. A
solução democrática aos problemas nem
sempre são as melhores soluções porque, às
vezes, as pessoas querem coisas que são
erradas em si e para si mesmas. Então,
deveríamos impor alguma regra autoritária?
Para ajudar a responder essa questão, devemos
recordar a história do Rei Filipe de Damasco,
que um dia, quando estava bêbado, tinha de
tomar uma decisão sobre um assunto civil. Um
de seus amigos tinha ofendido um cidadão
comum e esse cidadão queria justiça. O rei
disse ao cidadão: “Eu não darei o que você
quer, porque meu amigo é um bom camarada,
então, deixe-me em paz”. Insatisfeito com o
julgamento, o cidadão comum pediu para
apelar. “Uma apelação! A quem? Eu sou o
rei!” berrou. “Uma apelação a Filipe, o
sóbrio”, disse o cidadão. Da mesma forma,
endossar a democracia não é dizer que as
pessoas estão sempre certas; é o endosso de
4
Desde a Revolução Francesa de 1789 até nossos dias, a
posição da Igreja Católica vai mudando lentamente como fruto
da própria evolução do ideal democrático. Quando a
democracia estava intrinsecamente relacionada ao anticlericalismo dos jacobinos, a anarquia e as ditaduras da
América Latina, e ao terror produzido pelas revoluções na
França e na Itália, o magistério romano se opôs
veementemente a essa forma de governo. Com a gradativa
transformação da democracia num processo pacifico de
mudança dos governantes, os pontífices passaram a tolerá-la
até sua aceitação em nossos dias. O posicionamento do
Magistério Romano acerca da democracia no período posterior
a Revolução Francesa e anterior aos ensinamentos de Leão
XIII foi apresentado nos seguintes documentos do magistério
romano: a encíclica Charitas (13 de abril de 1791) de Pio VI;
a encíclica Diu Satis (15 de maio de 1800) de Pio VII; a
encíclica Ubi Primum (5 de maio de 1824) de Leão XII; a
encíclica Traditi Humilitati (24 de maio de 1829) de Pio VIII;
as encíclicas Cum Primus (9 de junho de 1832), Mirari Vos
(15 de agosto de 1832) e Commissum Divinitus (17 de maio de
1835) de Gregório XVI; as encíclicas Nostis et Nobiscum (8
de dezembro de 1949), Qui Nuper (18 de junho de 1859) e
Nullis Certe Verbis (19 de janeiro de 1860) do Beato Pio IX.
Para melhor compreender as mudanças na visão da Igreja
Católica sobre a democracia aconselhamos consultar, além dos
documentos anteriores a Leão XIII citados acima e aos
documentos enumerados na nota número dois, as encíclicas
Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993) e Evangelium Vitae
(25 de março de 1995) de João Paulo II.
28
O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus
um sistema que permite às pessoas ignorantes
e desinformadas, convencidas por falsas
idéias, apelar às pessoas esclarecidas, que
possuem a correta informação.
pontifício antes o fizera6, ao passo que, ao
mesmo tempo, critica agudamente os defeitos
e falhas da democracia aliada ao relativismo
moral7.
Entretanto, para funcionar, a democracia
não pode estar baseada no relativismo moral.
Se não há verdade moral que transcenda tempo
e lugar, então a verdade se torna qualquer
coisa que as pessoas queiram que seja, e não
há potencial para o esclarecimento5. A Igreja
Católica se move no sentido da democracia,
reconhecendo
sua
importância
no
estabelecimento do bem comum, como vemos
na encíclica Centesimus Annus, que endossa a
democracia como nenhum outro documento
Além de rejeitar o relativismo no processo
democrático, a sociedade deve confiar
naqueles que tentam ver e dizer a verdade ao
povo. Essa foi a grande descoberta dos
romanos, e não dos gregos. O filósofo grego
Platão (427-348 a.C.) não gostava da
democracia porque pensava que o filósofo
nunca teria sucesso em instigar as pessoas,
pois elas sempre agem conforme as paixões, e
frente a isso, o filósofo é impotente8. O
estadista e escritor romano Marco Túlio Cícero
(106-43 a.C.), entretanto, propunha que o
orador – um filósofo capaz de falar às pessoas,
um bom homem que as conhecesse e amasse –
poderia ajudá-las a tomar boas decisões9.
5
É inerente a doutrina da Igreja Católica a defesa da verdade
moral cristã como única e verdadeira fonte da liberdade
humana. A verdade moral defendida pela Igreja Católica está
fundamentada em absolutos morais, não se sujeitando as
interpretações errôneas do historicismo, do ecletismo, do
cientificismo, do utilitarismo e do pragmatismo. Toda a
Doutrina Social da Igreja se sustenta nesta relação de
necessidade entre verdade e liberdade. Logo, a verdade é précondição para o esclarecimento da ação da pessoa no mundo,
fato que coloca o pensamento social cristão como um
ensinamento eminentemente religioso e moral sobre temas
sociais, não podendo ser entendida como uma proposta
alternativa de modelo político ou econômico, nem como uma
ideologia, mas como uma orientação prática para a vida dos
cristãos e de todos os demais homens de boa vontade. Para ter
uma visão mais aprofundada das inúmeras críticas do
Magistério Romano ao relativismo, ao ceticismo e ao
indiferentismo, bem como sobre a defesa da relação entre
verdade e liberdade, no período de Pio IX a João Paulo II,
consultar, principalmente, os seguintes documentos
pontifícios: as encíclicas Qui Pluribus (9 de novembro de
1846), Quanto Conficatur Moerore (10 de agosto de 1863) e
Quanta Cura (8 de dezembro de 1864) do Beato Pio IX; as
constituições dogmáticas Dei Filius (24 de abril de 1870) e
Pastor Aeternus (18 de julho de 1970) do Concílio Vaticano I;
as encíclicas Aeterni Patris (4 de agosto de 1879) e Libertas
Praestantissimum (20 de junho de 1888) de Leão XIII; as
encíclicas E Supremi Apostolatus (4 de outubro de 1903) e
Pacendi Domini Gregis (8 de novembro de 1907) de São Pio
X; as encíclicas Casti Connubii (31 de dezembro de 1930) e
Caritate Christi Compulsi (3 de maio de 1932) de Pio XI; a
encíclica Humani Generis (12 de agosto de 1950) de Pio XII;
a encíclica Ad Petri Cathedram (29 de junho de 1959) de João
XXIII; a constituição dogmática Lumen Gentium (21 de
novembro de 1964) do Concílio Ecumênico Vaticano II; a
encíclica Humanae Vitae (25 de julho de 1968) e a exortação
apostólica Evangelli Nuntiandi de Paulo VI; as encíclicas
Redemptor Hominis (4 de março de 1979), Dives in
Misericordia (30 de novembro de 1980), Dominum et
Vivificantem (18 de maio de 1986), Centesimus Annus,
Veritatis Splendor, Evangelium Vitae, Ut Unum Sint (25 de
maio de 1995), e Fides et Ratio (14 de setembro de 1998) de
João Paulo II; as instruções Libertatis Nuntium, Libertatis
Conscientia, Donum Vitae (22 de fevereiro de 1987) e Donum
Veritatis (26 de julho de 1990), e a declaração Dominus Iesus
(6 de agosto de 2000) da Congregação para Doutrina da Fé.
A Igreja Católica reconhece que há verdade
na severa crítica da democracia feita por
Platão no oitavo e nono livro da República,
onde argumenta que por faltar adequada
autoridade, a democracia leva à corrupção10.
As instituições da cidade são, eventualmente,
tão desprezadas pelo povo que o tirano chega e
faz uso da incapacidade dos líderes
democráticos para defender o bem comum,
tornando-se o senhor da cidade11. Mas esse
destino, diz a Centesimus Annus, não é o
6
A aprovação ao regime democrático é expressa na
Centesimus Annus da seguinte forma: “A Igreja encara com
simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a
participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos
governados a possibilidade quer de escolher e controlar os
próprios governantes, quer de os substituir pacificamente,
quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto,
favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que
usurpam o poder do Estado a favor de seus interesses
particulares ou de objetivos ideológicos” (§46).
7
As criticas de João Paulo II à fundamentação da democracia
no relativismo moral se encontram em passagens das seguintes
encíclicas: Centesimus Annus (§46), Veritatis Splendor (§101)
e Evangelium Vitae (§§69-70).
8
PLATÃO. A República. [Introdução, tradução do grego e
notas de Maria Helena da Rocha Pereira]. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 7ª Edição, 1993. Livro IX, §§572c592b.
9
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. [Tradução e notas de
Amador Cisneiros]. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção
“Os Pensadores”, Volume V: Epicuro, Lucrécio, Cícero,
Sêneca & Marco Aurélio). Livro III, capítulos 2-3.
10
PLATÃO. Op. cit. Livro VIII, §§555b-566d & Livro IX,
§§571a-592b.
11
Idem. Ibdem. Livro VIII, §§562c-566d.
Rocco Buttiglione
destino de toda democracia, mas somente
daquelas que estão vivas para o relativismo
moral; que não vêem valores nas elites que
dizem ao povo a verdade; que fingem que não
há verdade, ou que acreditam que o que a
maioria quer é a verdade12. Por isso, a
democracia endossada pela Centesimus Annus
é o tipo de democracia desenvolvida pela
tradição anglo-saxã – o tipo de democracia que
encontramos na obra O Federalista13 – em vez
da democracia continental da Revolução
Francesa14.
Se olharmos para os estadistas norteamericanos Alexander Hamilton (1757-1804)
e James Madison (1751-1836), ou para o
estadista e filósofo francês Alexis de
Tocqueville (1805-1859), o grande professor
da teoria da democracia americana15, podemos
notar que todos poderiam ter sido leitores de
De Maistre. Tocqueville realmente leu De
12
A noção de totalitarismo como fruto do relativismo moral
fica evidente nas passagens das seguintes encíclicas de João
Paulo II: Centesimus Annus (§47), Veritatis Splendor (§99) &
Evangelium Vitae (§70).
13
Todas as referências à obra O Federalista serão feitas com
base na seguinte edição brasileira: HAMILTON, Alexander;
MADISON, James; JAY, John. O Federalista. [Introdução por
Benjamin Fletcher Wright; tradução de Heitor Almeida
Herrera]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984.
14
O tipo de democracia representativa vigente nas nações que
foram influenciadas pela tradição anglo-saxã submete a
vontade dos governantes e dos governados aos princípios do
Estado de Direito, que no plano ético se caracteriza pelo
respeito aos direitos humanos, no plano jurídico se realiza pela
rigorosa delimitação constitucional dos poderes públicos, pela
submissão da lei ao princípio da isonomia e pela eficácia da
justiça, e no plano administrativo é orientado pela
descentralização, pela imparcialidade e pela transparência dos
poderes públicos. O modelo de democracia defendida pelos
revolucionários franceses e vigente nos paises do terceiro
mundo, em especial na América Latina, é guiada apenas pela
vontade da maioria, podendo ser definida como uma ditadura
plebicitária, onde o povo escolhe periodicamente o demagogo
que, por um determinado período, irá tiranizar a sociedade,
controlando uma maquina estatal corrupta e ineficiente. No
pensamento social do papa João Paulo II o endosso ao modelo
anglo-saxão de governo fica explicito na demonstração da
relação de necessidade entre Estado de Direito e democracia
(Centesimus Annus §46 / Ecclesia in America §56), na defesa
das noções de Estado como protetor e promotor dos direitos
individuais e de lei civil como continuidade da lei moral
(Veritatis Splendor §101 / Evangelium Vitae §71), e na
exigência da transparência administrativa por parte dos
governantes (Veritatis Splendor §101).
15
Todas as referências à obra A Democracia na América de
Alexis de Tocqueville serão feitas com base na seguinte
edição brasileira: TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia
na América. [Prefácio de Antônio Paim; tradução e notas de
Neil Ribeiro da Silva]. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1987.
29
Maistre, mas Hamilton não, pois morreu antes
que a obra de De Maistre chegasse à América.
No entanto, De Maistre leu Hamilton e O
Federalista. Todos esses pensadores tentaram
levar em conta as críticas à democracia e as
usaram para ajudar a criar um estado de
liberdade ordenada, um estado onde as
condições de ajudar o povo a fazer escolhas
boas e sadias possa ser construído numa base
democrática.
Como resultado, os pais-fundadores da
ordem política americana pensavam que uma
Câmara de Deputados eleita por dois anos era
necessária para saber o que o povo pensa e
quer num momento16, mas sem que as paixões
sejam capazes de assumir o comando de forma
imediata. Por isso os pais-fundadores
estabeleceram um Senado eleito por seis anos,
no qual um terço dos membros é reeleito a
cada dois anos, assegurando, portanto, que as
modificações importantes possam acontecer se
a mesma opinião dominar o povo por três
eleições num período de seis anos17. Os paisfundadores também queriam um judiciário
independente, então, mesmo se o Senado e a
Câmara dos Deputados quiserem fazer algo
errado, ainda há alguém para os controlar18.
Como sabemos, o judiciário é nomeado pelo
presidente, mas não é dependente dele ou dos
eleitores e, portanto, é uma autoridade
independente, mas para criar estabilidade
nessa autoridade, ele é mudado somente
quando as pessoas investidas nos cargos ficam
muito velhas ou morrem.
Essa forma de democracia e de instituições
de liberdade ordenada pode ajudar o governo
popular a trabalhar com um mínimo de virtude
e, ainda assim, a tomar decisões sábias. Isso é
necessário porque a virtude não é mercadoria
facilmente encontrada; via de regra, não há
muita virtude em qualquer grupo de pessoas.
Esse é o porquê da constituição política dever
trabalhar bem com um mínimo de virtude, mas
16
HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigos 49-61, p.
407-478. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 1ª Parte, capítulo
v, p. 71-72, e capítulo viii, p. 95-97.
17
HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigos 62-66, p.
479-515. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 1ª Parte, capítulo
v, p. 71-72, e capítulo viii, p. 95-97.
18
HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigos 78-83, p.
575-622. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 1ª Parte, capítulo
vi, p. 82-87, e capítulo viii, p. 110-119.
30
O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus
caso as pessoas não possuam nem mesmo esse
mínimo, estão perdidas. Se o povo continuar a
querer algo errado por um longo período de
tempo, nenhuma lei ou forma de governo pode
salvar o país. A democracia não pode trabalhar
sem a virtude; essa é a idéia de liberdade
verdadeira ou ordenada.
A primeira mudança importante que
encontramos na Centesimus Annus é o forte
endosso de uma democracia com as
características de liberdade ordenada. Isso
muito se aproxima daquilo que a Igreja tem
tradicionalmente chamado governo misto. Até
mesmo no século XIX, quando a Igreja se
opunha à democracia, ela não endossava o
absolutismo. A idéia que a Igreja apoiava era,
mais precisamente, a de um governo misto –
aliando as vantagens da monarquia, do povo e
da aristocracia – onde os melhores pudessem
contribuir com sua sabedoria para a
determinação do curso de ação tomado pelo
estado19. Se considerarmos a Constituição
americana ao ler O Federalista, vemos que
Hamilton tenta fundamentar todas as formas
criativas de governo baseado nos princípios
democrático-mistos20. A Suprema Corte é uma
19
A noção de governo misto surge com os primeiros analistas
do sistema político romano, sendo a obra História (Historíai)
do historiador grego Políbios (200-120 a.C.) o mais antigo
relato conhecido sobre a temática. A defesa do ideal de
governo misto ganha sua mais significativa teorização no
mundo clássico na já citada obra de Marco Túlio Cícero, cujo
pensamento influenciou significativamente todos os escritores
latinos posteriores, deixando, assim, marcas profundas no
pensamento político de Santo Agostinho (354-430), que
promoveu a primeira grande síntese entre as culturas judaicocristã e grego-romana e lançou as bases da filosofia medieval.
Durante a Idade Média a defesa do ideal de governo misto,
assim como a crítica ao absolutismo, se encontra no
pensamento político de Santo Tomás de Aquino (1225-1274),
Johannes Duns Scotus (1265-1308), Dante Alighieri (12621321), João Quidort (1270-1306), Marsílio de Pádua (12751343) e William de Ockham (1285-1349). A crítica desses
autores ao absolutismo tem suas raízes na cultura política
romana, que fazia uma distinção bem clara entre poder
(potestas) e autoridade (auctoritas), sendo o primeiro algo
meramente externo, baseado na força, e que só surge quando a
segunda é destruída, enquanto esta é algo legitimado na lei
natural, que se adequa às funções e componentes que
constituem a sociedade, respeitando, assim, a liberdade das
pessoas. Pelo fato da Igreja Católica Apostólica Romana ter
como fonte de seus ensinamentos não apenas a doutrina
bíblica, mas, também a Tradição, legada pelos padres
apostólicos e pela interpretação da verdade evangélica por
seus doutores, muitas dessas teorias políticas sobreviveram até
os nossos dias.
20
HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigo 10, p. 147154; Artigo 14, p. 173-178; Artigo 39, p. 329-334; Artigos 47
e 48, p. 393-405.
espécie de aristocracia21, o presidente, uma
espécie de rei22 (somente por quatro ou oito
anos, mas, apesar disso, com mais poder que
um rei francês comum), e os representantes
são, no momento da participação, parte do
corpo político23.
A NOÇÃO DE LIVRE MERCADO
Até aqui, vimos a mudança na idéia de bem
comum e o fato dessa idéia implicar na
liberdade dos indivíduos em governar a si
mesmos por processos democráticos, mas se
os indivíduos têm tal direito de escolha,
devemos reavaliar não somente a democracia
política como também o livre mercado. Essa é
a segunda mudança na Centesimus Annus e na
Doutrina Social da Igreja. O livre mercado não
é justificado meramente pelo fato de ser o mais
eficiente sistema de alocar recursos escassos
para satisfazer as necessidades humanas; há
algo mais que o faz ser um sistema econômico
desejável24.
O menor elemento do livre mercado é o
contrato, o encontro da vontade livre de dois
seres humanos. Ambos devem ser livres, pois
caso não sejam, não há contrato, e, portanto
não há livre mercado. Dessa forma, a lei dos
contratos, que está na própria base da
economia de livre mercado, é uma lei que
pressupõe a liberdade humana e, portanto tem
um valor ético em si25. Uma economia de livre
21
Idem. Ibdem. Artigo 78, p. 575-582.
Idem. Ibdem. Artigo 69, p. 520-527. / TOCQUEVILLE. Op.
cit. Livro I, 1ª Parte, capítulo viii, p. 97-100.
23
HAMILTON; MADISON; JAY. Op. cit. Artigo 57, p. 451456. / TOCQUEVILLE. Op. cit. Livro I, 2ª Parte, capítulo i, p.
135.
24
Na Centesimus Annus o papa João Paulo II ressalta o valor
do livre mercado com as seguintes palavras: “A moderna
economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é
a liberdade da pessoa, que se exprime no campo econômico e
em muitos outros campos. A economia, de fato, é apenas um
setor da multiforme atividade humana, e nela, como em
qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma
forma que o dever de a usar responsavelmente” (§32).
25
Nos textos mais recentes do Vaticano, a melhor explicação
sobre a importância do cumprimento dos contratos se encontra
no Catecismo da Igreja Católica, quando se refere à temática
com as seguintes palavras: “As promessas devem ser
mantidas, e os contratos, rigorosamente observados, na
medida em que o compromisso assumido for moralmente
justo. Uma parte notável da vida econômica e social depende
do valor dos contratos entre pessoas físicas ou morais. É o
22
Rocco Buttiglione
mercado, onde a regra da lei privada é
corroborada, é uma economia de pessoas
livres. Ao contrário, sempre que a extensão da
lei privada é limitada, há perigo para a
liberdade humana. Assim, o julgamento
positivo da Igreja sobre o livre mercado é,
primeiramente, um julgamento ético. A pessoa
é por natureza livre; Deus criou cada pessoa
para escolher livremente a verdade, e uma
ordem econômica livre é parte da liberdade
humana. Essa é a primeira afirmação
importante da Centesimus Annus em relação à
ordem econômica. Queremos uma ordem
econômica democrática porque implica numa
lei de contratos e de livre mercado, e essas
pressupõem tanto a liberdade quanto a
dignidade humana.
A segunda afirmação importante da
Centesimus Annus relativa à ordem econômica
diz respeito a um profundo entendimento da
situação da economia moderna. A economia
política, via de regra, se inicia com a
determinação das causas da riqueza das nações
– a clássica formulação do filósofo e
economista escocês Adam Smith (17231790)26. Uma explicação tradicional, comum
até o século XVIII, para a origem da riqueza
das nações é a terra; pois da terra vem o ouro,
a prata e outros metais preciosos, a terra é
fértil e produz tudo que a pessoa precisa para
subsistência. Há alguma verdade nessa
caso dos contratos comerciais de venda ou compra, os
contratos de locação ou de trabalho. Todo contrato deve ser
feito e executado de boa-fé. Os contratos estão sujeitos à
justiça comutativa, que regula as trocas entre as pessoas e
entre as instituições no pleno respeito aos seus direitos. A
justiça comutativa obriga estritamente; exige a salvaguarda
dos direitos de propriedade, o pagamento das dívidas e o
cumprimento das obrigações livremente contraídas. Sem a
justiça comutativa nenhuma outra forma de justiça é possível.
Distingue-se a justiça comutativa da justiça legal, que se
refere àquilo que o cidadão deve eqüitativamente à
comunidade, e da justiça distributiva, que regula o que a
comunidade deve aos cidadãos proporcionalmente às suas
contribuições e às suas necessidades” (§§2410-2411).
Utilizamos aqui a seguinte edição: Catecismo da Igreja
Católica. [Edição típica vaticana]. São Paulo: Loyola, 2000.
26
Adam Smith, na obra A Riqueza das Nações (1776)
procurou descobrir a natureza e as causas do aumento da
riqueza dos povos e, ao mesmo tempo, compreender a
progressiva evolução social que na sua época estava
promovendo um notável avanço econômico e social. Em
língua portuguesa a obra está disponível na seguinte edição:
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua
natureza e suas causas. [Introdução de Edwin Cannan;
apresentação de Winston Fritsh; tradução de Luiz João
Baraúna]. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 2v.
31
explicação, pois a economia não pode existir
sem terras, a primeira explicação plausível
para a atividade econômica. Mas quando digo
“terra” quero dizer algo mais que uma simples
propriedade real – também incluo nessa ampla
definição bens materiais como o corpo
humano. Em qualquer atividade humana
sempre há algo primeiramente dado por Deus
que age como pressuposto. O corpo humano é
o primeiro pressuposto da economia porque
não é produzido pelo próprio sistema
econômico. O homem não é o Criador.
Entretanto, é evidente que a pessoa é cocriadora nas coisas da natureza, estas somente
adquirem valor quando vistas pelas pessoas,
pois se os recursos econômicos não são vistos
eles não existem. Por exemplo, sabemos por
meio de relatos que turistas europeus ao cruzar
a Grande Planície, no final do século XVIII e
início do XIX, encontraram petróleo, mas
como não sabiam o que fazer com aquilo, o
petróleo era um estorvo em vez de ser um
recurso. O petróleo só se tornou recurso
quando alguém percebeu que poderia ser
usado de forma produtiva. Desse modo, a
visão da pessoa participa, com os dons de
Deus, para gerar recursos econômicos.
Agora, para não ser mal entendido, deixeme sublinhar que a pessoa precisa de um
bocado de virtudes humanas para ser capaz de
ver os recursos. Antes de tudo, precisa ter uma
certa paixão pelo pensamento teórico; ou seja,
para a contemplação. Consideremos o exemplo
da história de Ulisses e de Polifemo, o ciclope
gigante, na Odisséia do poeta grego Homero
(c. séc. XII-VII a.C.): Ulisses e seus
companheiros foram presos numa caverna pelo
ciclope e ficaram dominados pelo medo, se
tornando tão passivos que Polifemo é capaz de
pegar alguns deles e comê-los. Ulisses fala ao
coração – acreditava que era o órgão que
controlava as paixões – e pediu-lhe que
ajudasse. Ulisses, então, fica calmo, já que está
livre do medo estarrecedor que pairava sobre
sua segurança pessoal, e quando recobra o
domínio de si, é capaz de ver que uma vara
próxima, se afiada, poderia se tornar uma arma
contra o gigante e que a ovelha poderia ser
usada como instrumento de fuga da caverna.
Agora, Ulisses pode lutar contra o gigante –
um símbolo da natureza – porque vê
32
O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus
claramente e não está cego pelas próprias
paixões. Ele pode ver porque é capaz de
recobrar a atitude de contemplação27.
Essa atitude teórica é fundamental para
visualizar os recursos. Os animais não vêem as
coisas como nós porque falta a eles
comportamento teórico, e, portanto, não
podem fazer uso de conhecimento geral para
satisfazer suas necessidades ou desejos. Mas
nós podemos. O que chamamos de “trabalho”
é uma atividade complexa que pressupõe o
domínio dos instintos. Devemos ter uma
atitude contemplativa para com o mundo e
algum conhecimento teórico antes de realizar a
tarefa prática de transformar a natureza. Esse é
o porquê de nós trabalharmos e dos animais
não trabalharem. A existência dessa
particularidade na relação humana com a
realidade sugere que deve haver diferentes
funções no que denominamos “trabalho”. O
lado teórico requer que vejamos as coisas sem
a preocupação de fazer uso delas, e depois
podemos retomar a atitude prática para
discernir qual parte do objeto pode ser útil para
nós. Logo, na própria natureza de todo o
trabalho humano, podemos detectar a semente
do que chamamos “empreendedorismo”.
Ulisses na caverna é um teórico, mas, ao
mesmo tempo, um empreendedor porque vê a
necessidade humana – ou seja, ele quer sair –,
vê os recursos que podem ser usados para
satisfazer essa necessidade, e toma a
responsabilidade do risco que implica
combiná-los.
Assim, se olharmos para toda a estrutura e
origem da riqueza, vemos que, apesar do
pressuposto da riqueza da terra, ele não é
suficiente para gerar riqueza28. O intelecto
humano, o esforço e o trabalho também são
27
A narrativa citada pelo autor se encontra versos 181 a 542
do Canto IX da Odisséia (Odýsseia). Em língua portuguesa
foram publicadas diversas edições dessa obra, consultamos a
seguinte edição brasileira: HOMERO. Odisséia. [Prefácio e
tradução em versos por Carlos Alberto Nunes]. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1992.
28
Sobre a temática o Papa João Paulo II ressalta na
Centesimus Annus que: “A terra não dá os seus frutos, sem
uma peculiar resposta do homem ao dom de Deus, isto é, sem
o trabalho: é mediante o trabalho que o homem, usando sua
inteligência e liberdade, consegue dominá-la e estabelecer
nela a sua digna morada. Deste modo, ele apropria-se de uma
parte da terra, adquirida precisamente pelo trabalho. Está
aqui a origem da propriedade individual” (§31).
necessários. A relação entre esses fatores
produtivos – entre terra e inteligência humana,
entre terra e trabalho humano – muda com o
tempo. No século XVIII o fator mais
importante era a terra. No século XIX era
especificamente o capital, como o filósofo e
economista alemão Karl Marx (1818-1883) o
entendia: capital-máquinas. Em nosso tempo,
temos visto outra mudança, agora o principal
fator é a quantidade de informação objetivada
no bem produzido. Um bom exemplo disso é o
disquete de computador, onde um milésimo de
seu valor é de matéria-prima e novecentos e
noventa e nove por cento é o valor do
programa inscrito nele. Esse é o valor da
inteligência humana investida num objeto que
o torna valioso29.
Uma vez que tenhamos entendido esse
conceito, podemos compreender o motivo pelo
qual a Igreja mudou de atitude face à política
econômica em geral. Tradicionalmente, a
Igreja estava interessada principalmente na
distribuição da riqueza em vez de sua criação.
Essa postura é compreensível, pois caso
entendamos que a geração de riqueza é uma
tarefa de Deus e da natureza, então o bom
proprietário de terras é quem distribui
livremente as riquezas da terra gratuitamente
dadas a ele. Mas no século XX, a riqueza do
empreendedor depende de seus investimentos,
ele deve sempre comprar melhores máquinas e
criar reservas para os tempos difíceis. O
empreendedor é mais rico que o senhor de
terras, mas sua riqueza está sempre correndo
risco. A cada ano ele pode perder tudo, a cada
ciclo de produção pode se tornar pobre. Ele
tem uma postura diferente e deve trabalhar de
forma diferente do senhor de terras porque
vive num mundo onde o principal recurso
econômico, agora, é a inteligência humana e a
virtude, a síntese do que pode ser chamada
“laboriosidade”.
Agora a Igreja reconhece a centralidade da
função social do empreendedor e percebe que,
29
O Papa João Paulo II capta com perfeição na Centesimus
Annus a mudança nos fatores que geram a riqueza dos povos
ao afirmar que: “Existe, em particular no nosso tempo, uma
outra forma de propriedade, que reveste uma importância
nada inferior à da terra: é a propriedade do conhecimento, da
técnica e do saber. A riqueza das Nações industrializadas
funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que
sobre a dos recursos naturais” (§32).
Rocco Buttiglione
se não há empreendedores, não há riquezas
para ninguém. Qual foi a principal fonte de
riqueza das nações na última década do século
XX? A atividade empresarial, porque combina
a inteligência humana com outros fatores
produtivos. Essa atividade é positiva por si
mesma, pertence e é um elemento essencial da
economia livre. Isso também requer que
muitas virtudes tais como firmeza, prudência,
laboriosidade, inteligência, sabedoria humana,
conhecimento da natureza humana, capacidade
de dar a cada um o que é devido – ou seja,
justiça –, sem as quais as pessoas não estarão
dispostas a trabalhar para o empresário30.
Logo, pela primeira vez, na Centesimus Annus,
a Igreja oferece uma avaliação adequada das
virtudes do trabalho, das virtudes do
empreendedor, da função social do
empreendedorismo e do imperativo moral da
liberdade.
Essa percepção da Centesimus Annus é
muito importante num certo ponto que tem
recebido cada vez mais atenção nas últimas
décadas pelo pensamento social cristão: o
problema do desenvolvimento31. Temos
30
A função empresarial na moderna economia capitalista é
explicada pelo papa João Paulo II na Centesimus Annus da
seguinte forma: “O homem trabalha para outros homens,
participando num ‘trabalho social’ que engloba
progressivamente círculos cada vez mais amplos. Quem
produz um objeto, para além do uso pessoal, fá-lo em geral
para que os outros possam usar também, depois de ter pago o
preço justo, estabelecido de comum acordo, mediante uma
livre negociação. Ora, precisamente a capacidade de
conhecer a tempo as carências dos outros homens e as
combinações de fatores produtivos mais idôneos para as
satisfazer, é outra importante fonte de riqueza na sociedade
moderna. Aliás, muitos bens não podem ser adequadamente
produzidos através de um único indivíduo, mas requerem a
colaboração de muitos para o mesmo fim. Organizar um tal
esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar
que corresponda positivamente às necessidades que deve
satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é
uma fonte de riqueza na sociedade atual. Assim parece cada
vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano
disciplinado e criativo e – enquanto parte essencial desse
trabalho – das capacidades da iniciativa empresarial” (§32).
31
O desenvolvimento é um processo de crescimento
econômico e melhoria qualitativa do padrão de vida da
sociedade. Fruto de alterações fundamentais na estrutura
econômica no sentido de uma maior liberação das forças
produtivas, implica em diferenciações no processo de
produção, na introdução de inovações tecnológicas e no
aprimoramento do capital humano. Considera-se desenvolvida
a sociedade que melhor atende as necessidades materiais de
seus membros. O desenvolvimento é ao mesmo tempo um
processo dinâmico, onde parar é regredir, e contínuo, visto que
as necessidades humanas são sempre crescentes, aumentando
e se diversificando em conseqüência das próprias mudanças.
33
diferentes teorias do porque as economias não
são desenvolvidas. Alguns argumentam que as
pessoas são pobres porque não têm recursos
naturais. Isso é falso, pois muitos países
subdesenvolvidos têm uma enorme abundância
de recursos naturais; de fato, o problema é que
a única coisa que esses países têm são os
recursos naturais. Uma segunda teoria sustenta
que esses países não têm capital suficiente. Há
alguma verdade nisso, pois a falta de capital é
um
poderosíssimo
impedimento
ao
crescimento, mas esse não é o problema
primário. Se as pessoas têm capacidade
empreendedora, elas terão capital, pois os
bancos lhes darão dinheiro sem trepidar, pois
terão certeza de que farão bom uso do dinheiro
e que dentro de cinco ou dez anos pagarão
com juros.
A solução para o subdesenvolvimento
econômico é o desenvolvimento cultural, que
ajudará os povos a adquirir as habilidades
teóricas e práticas, dotando os jovens de maior
capacidade de dar conteúdo informativo ao
capital usado para produzir suas terras32. Em
No atual contexto das sociedades globalizadas o
desenvolvimento se dá na interdependência, logo, não é
possível em sociedades que se isolem do mercado mundial. Na
Doutrina Social Católica a preocupação com o
desenvolvimento tem suas reflexões iniciais formuladas na
carta encíclica Mater et Magistra de João XXIII e na
Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano
II. O papa Paulo VI analisou de forma sistemática o tema na
carta encíclica Populorum Progressio. No pensamento social
de João Paulo II a temática foi retomada de forma mais intensa
na carta encíclica Sollicitudo Rei Socialis, que comemora os
vinte anos da Populorum Progressio, sem ser negligenciada
nas cartas encíclicas Laborem Exercens e Centesimus Annus.
A sincronia do pensamento de João Paulo II com as modernas
correntes do pensamento econômico ao tratar do
desenvolvimento fica explicita na seguinte passagem da
Centesimus Annus: “Há relativamente poucos anos, afirmouse que o desenvolvimento dos Países mais pobres se
dependeria do seu isolacionamento do mercado mundial, e da
confiança apenas nas próprias forças. A recente experiência
demonstrou que os Países que foram excluídos registraram
estagnação e recessão, enquanto conheceram o
desenvolvimento aqueles que conseguiram entrar na corrente
geral de interligação das atividades econômicas a nível
internacional. O maior problema, portanto, parece ser a
obtenção de um acesso eqüitativo ao mercado internacional,
não fundado sobre o princípio unilateral do aproveitamento
dos recursos naturais, mas sobre a valorização dos recursos
humanos” (§33).
32
A tônica central do pontificado de João Paulo II tem sido a
proposta de evangelização da cultura, lançada pelo Sínodo dos
Bispos de 1974 e cujas conclusões se encontram na exortação
apostólica Evangelii Nuntiandi de Paulo VI. Em diversos
documentos e mensagens o papa João Paulo II destacou que,
em última instância, é o sistema moral-cultural que determina
34
O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus
outras palavras, precisamos ajudar a criar uma
classe empreendedora. O grande problema da
América Latina, por exemplo, é que há poucos
empreendedores autênticos, e que não são
suficientes para sustentar a economia da
região. Há poucas pessoas que vêem recursos e
oportunidades, que os unem e que tomam a
responsabilidade do progresso produtivo.
Muitos esperam que o governo faça isso,
outros não sabem como fazê-lo, pois não há
tradição empresarial. O empreendedorismo
deve ser ensinado nas escolas, mas também
deve fazer parte da tradição familiar, pois a
capacidade empresarial não é fácil de
desenvolver.
Outra percepção da Doutrina Social Cristã é
que de um lado a função social do
empreendedor precisa ser reconhecida, mas
por outro lado, os empresários devem estar
conscientes de que têm responsabilidades para
com todas as comunidades e que devem
abraçar essa tarefa. Na América Latina, falta,
certamente, educação técnica, mas falta ainda
mais educação moral. Logo, qual é a tarefa da
Igreja nessas situações? A Igreja deve
continuar a advogar a causa dos pobres desse
mundo e nunca deixar de pedir que ajudem aos
pobres, mas ao mesmo tempo, deve ensinar às
pessoas as virtudes de que necessitam para sair
da situação de miséria33. Não se pode
o desempenho econômico e político das nações. Na
Centesimus Annus o papa afirma que “a moderna economia
de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a
liberdade da pessoa, que se exprime no campo econômico e
em muitos outros campos. A economia, de fato, é apenas um
setor da multiforme atividade humana, e nela, como em
qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma
forma que o dever de a usar responsavelmente. Mas
importante notar a existência de diferenças específicas entre
essas tendências da sociedade atual, e as do passado, mesmo
se recente. Se outrora o fator decisivo da produção era a terra
e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e
de bens instrumentais, hoje o fator decisivo é cada vez mais o
próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que
se revela no saber científico, a sua capacidade de
organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer
a necessidade do outro” (§32).
33
Na exortação apostólica Ecclesia in America é explicitado
pelo Papa João Paulo II que “o fenômeno da corrupção é,
também na América, notavelmente estendido. A Igreja pode
contribuir eficazmente a extirpar este mal da sociedade civil
com ‘uma maior presença de leigos cristãos qualificados que,
por sua educação familiar, escolar e paroquial, promovam a
prática de valores como a verdade, a honestidade, a
laboriosidade e o serviço ao bem comum’. Para conseguir
este objetivo, bem como para iluminar todos os homens de
boa vontade, desejosos de acabar com os males derivados da
simplesmente culpar uma injusta situação
internacional; a injustiça social predomina em
nível internacional porque as virtudes sociais
necessárias são sempre esquecidas em termos
locais. Se as nações pobres tivessem uma
classe empreendedora vibrante e uma classe
política responsável, tais nações estariam mais
capacitadas a defender seus interesses no
cenário internacional. Caso sejam cometidos
abusos, a primeira causa é sua própria
fraqueza, e sua fragilidade é, ao menos em
parte,
a
conseqüência
do
frágil
desenvolvimento moral e cultural. A
consciência
da
necessidade
de
desenvolvimento moral e cultural deve estar
no centro de qualquer ação que possamos
realizar para ajudar os países em
desenvolvimento. Claro que devemos ajudar
aos famintos da Somália, por exemplo, porque
eles não podem esperar vinte anos até que uma
nova classe empreendedora moralmente
responsável tenha se desenvolvido; eles
precisam de algo para comer agora, então
devemos enviar alimentos juntamente com
soldados para protegê-los dos ladrões. Mas
também devemos pensar nas conseqüências de
nossas ações presentes em longo prazo e não
devemos ser negligentes em ajudar a essas
nações a desenvolver economias livres e
funcionais.
O imperativo moral da liberdade também é
necessário nos Estados Unidos da América e
na Europa porque o Ocidente sofreu uma
revolução
pedagógica
inspirada
pelo
socialismo34. Na Alemanha, por exemplo, a
corrupção, é preciso ensinar e difundir em larga escala a
parte que corresponde a este tema no Catecismo da Igreja
Católica” (§60).
34
Na exortação apostólica Ecclesia in Europa o papa João
Paulo II constata que a sociedade européia passa por uma
“crise da memória e herança cristãs, acompanhada por uma
espécie de agnosticismo prático e indiferentismo religioso,
fazendo com que muitos europeus dêem a impressão de viver
sem substrato espiritual e como herdeiros que dilapidaram o
patrimônio que lhes foi entregue pela história. Por isso, não
causam assim tanta maravilha as tentativas de dar um rosto à
Europa excluindo a sua herança religiosa, e de modo
particular a sua profunda alma cristã, estabelecendo os
direitos dos povos que a compõem sem enxertá-los no tronco
irrigado pela linfa vital do cristianismo. No continente
europeu, certamente não faltam prestigiosos símbolos da
presença cristã, mas, com a afirmação lenta e progressiva do
secularismo, correm o risco de reduzirem-se a meros vestígios
do passado. Muitos já não conseguem integrar a mensagem
evangélica na experiência diária; aumenta a dificuldade de
viver a própria fé em Jesus num contexto social e cultural
Rocco Buttiglione
social-democracia não pôde realizar a
revolução socialista na economia ou na
sociedade, mas faz a revolução nas escolas. Os
jovens são educados com a idéia de uma nova
sociedade que será diferente da sociedade de
hoje – uma sociedade sem competição onde as
velhas virtudes da laboriosidade não são
necessárias, uma sociedade de consumidores, e
não uma sociedade de trabalhadores. Tal
sociedade nunca virá, mas os jovens estão
sendo preparados para essa sociedade e não
para a que temos. Nossa sociedade real é
aquela em que há competição ferrenha e que as
pessoas devem trabalhar duro e estudar cada
vez mais, especialmente nas escolas. As
pessoas devem aprender a aprender, mas não
só aprender conhecimento técnico, pois esse
muda muito facilmente. A revolução
tecnológica pode jogar a pessoa para fora do
mercado e desvalorizar todo o conhecimento
que essa pessoa possui. As pessoas devem
estar desejosas e ser capazes de mudar e
adaptar, de fazer algo novo, portanto, não
precisam somente de conhecimento técnico,
onde é continuamente desafiado e ameaçado o projeto de vida
cristã; em vários sectores públicos, é mais fácil definir-se
agnóstico do que crente; dá a impressão de que o normal é
não crer, enquanto o acreditar teria necessidade de uma
legitimação social não óbvia nem automática. Esta crise da
memória cristã é acompanhada por uma espécie de medo de
enfrentar o futuro. A imagem que se forma do amanhã
aparece muitas vezes vaga e incerta. Do futuro sente-se mais
medo que desejo. Sinais preocupantes disto mesmo são, entre
outros, o vazio interior, que oprime muitas pessoas, e a perda
do significado da vida. Como manifestações e frutos desta
angústia existencial, contam-se, de modo particular, a
dramática diminuição da natalidade, a queda das vocações ao
sacerdócio e à vida consagrada, a relutância, se não mesmo a
recusa, de tomar decisões definitivas na vida inclusive no
matrimônio. Assiste-se a uma generalizada fragmentação da
existência; predomina uma sensação de solidão; multiplicamse as divisões e os contrastes. Entre outros sintomas deste
estado de coisas, a situação européia atual registra o grave
fenômeno das crises familiares e do esmorecimento do
próprio conceito de família, a persistência ou reabertura de
conflitos étnicos, o reaparecimento de alguns comportamentos
racistas, as próprias tensões inter-religiosas, o egocentrismo
que fecha indivíduos e grupos em si mesmos, o crescimento de
uma indiferença ética geral e de uma preocupação obsessiva
pelos próprios interesses e privilégios” (§§ 7-8). Neste mesmo
documento o Pontífice Romano ressalta que “a Europa atual,
precisamente quando está a reforçar e ampliar a sua união
econômica e política, parece sofrer de uma profunda crise de
valores. Embora dispondo de meios mais abundantes, dá a
impressão de carecer do ímpeto necessário para incrementar
um projeto comum e dar razões de esperança aos seus
cidadãos” (§ 108).
35
mas também de um conhecimento cultural
geral35.
Em vez de dizer aos alunos que eles
precisam estudar mais e trabalhar mais para
encontrar a satisfação na vida que desejam,
estamos preparando as pessoas para um mundo
que não existe. Essa devastadora revolução
pedagógica está ligada a muitas outras falhas
em nossa sociedade, por exemplo, a crise na
família. O Senador Patrick Moyniham de
Nova Iorque – com quem nem sempre
concordo – deu uma palestra brilhante na
Universidade Fordham, onde disse que o
maior problema da América não é o
desemprego, mas os desempregáveis. Muitas
pessoas não receberam das famílias e das
escolas um conhecimento fundamental e as
virtudes necessárias para conseguir um
emprego e mantê-lo. O trabalho deve se tornar
novamente uma virtude central na sociedade,
se não quisermos perecer. Contamos com a
prosperidade que foi construída com o trabalho
árduo das gerações passadas, e esquecemos
que a prosperidade pode ser perdida. Esse é o
desafio das sociedades ocidentais. O mercado
não é um jogo de soma zero, não é necessário
alguém empobrecer quando outro entra no
mercado. O mercado pode aumentar, mas
somente pelo trabalho árduo, o mesmo
trabalho que inicialmente construiu o mercado.
Se não formos capazes de realizar esse
trabalho árduo, nos tornaremos pobres.
35
Na Centesimus Annus o papa João Paulo II afirma que
“Toda a atividade humana tem lugar no seio de uma cultura e
integra-se nela. Para uma adequada formação de tal cultura,
se requer a participação de todo o homem, que aí aplica a sua
a criatividade, a sua inteligência, o seu conhecimento do
mundo e dos homens. Aí investe ainda a sua capacidade de
autodomínio, de sacrifício pessoal, de solidariedade e
disponibilidade para promover o bem comum. Por isso, o
primeiro e maior trabalho realiza-se no coração do homem, e
o modo como ele se empenha em construir o seu futuro
depende da concepção que tem de si mesmo e do seu destino.
É a este nível que se coloca o contributo específico e decisivo
da Igreja a favor da verdadeira cultura. Ela promove as
qualidades dos comportamentos humanos, que favorecem a
cultura da paz, contra os modelos que confundem o homem na
massa, ignoram o papel da sua iniciativa e liberdade e põem a
sua grandeza nas artes do conflito e da guerra” (§51).
36
O Imperativo Moral da Liberdade: Reflexões sobre a encíclica Centesimus Annus
CONCLUSÃO
Ainda há uma forte ligação entre fazer bem
feito e fazer o bem, apesar de, às vezes, fazer
bem feito possa se opor a fazer o bem. É
possível imaginar situações nas quais se você
quer fazer o que é bom, então deve pagar por
isso com o fracasso, talvez até mesmo com o
fracasso político, como no caso de Santo
Thomas More (1478-1535). More foi um
político sagaz e queria se sair bem na política.
Tentou o quanto foi possível estar no lado
vencedor, mas, ao final, teve de escolher entre
fazer bem feito e fazer o bem, e escolheu não
fazer bem feito como político para fazer o bem
como pessoa. Porém, essa não é a condição de
vida normal do empreendedor; como norma,
tentamos juntar o fazer bem feito com o fazer
o bem. Podemos fazê-lo em política e em
nossa atividade econômica. Em princípio não
há oposição, mas, ao contrário, para fazer bem
temos de ser capazes de fazer ‘o’ bem, até
certo ponto. Precisamos de virtudes porque a
moralidade e a prosperidade econômica estão
unidas uma com a outra, mesmo se, em certas
ocasiões, venham a colidir.
No meu ponto de vista, a encíclica
Centesimus Annus quer introduzir um novo
diálogo entre a Igreja e a humanidade, entre
moralidade e atividade econômica livre e
responsável. Nesse diálogo poderá haver
desacordos e isso não deverá nos surpreender,
pois sempre há conflito entre pessoas com
princípios sólidos. Entretanto, o que temos em
comum é mais importante do que aquilo que
pode nos dividir; normalmente o que divide
está na superfície, mas o que nos é comum é a
liberdade. Acreditamos que a pessoa é livre
perante Deus, que a pessoa deva ser livre
política
e
economicamente.
Também
entendemos que a sociedade política e
economicamente livre requer uma certa
parcela de virtude não produzida por essas
sociedades e que deve ser produzida por outro
agente. A Igreja se propõe como agente
responsável por ensinar tais virtudes no novo
milênio. Faríamos bem em considerar tal
convite.
Tradução de Márcia Xavier de Brito
Revisão Técnica e Notas de Alex Catharino