do Arquivo

Transcrição

do Arquivo
SOBRE A REVISTA
Lua Nova tem por objetivo fazer a alta reflexão de temas políticos e
culturais, contribuindo assim para elevar o nível intelectual do debate público. Em suas páginas, o leitor encontrará elaboradas incursões nos campos da teoria política (clássica e contemporânea), da
teoria social, da análise institucional e da crítica cultural, além de
discussões dos assuntos candentes de nosso tempo. Entre seus colaboradores típicos estão intelectuais, docentes e pesquisadores das
diversas áreas das Ciências Humanas, não necessariamente vinculados a instituições acadêmicas.
Os artigos publicados em Lua Nova estão indexados no Brasil no Data
Índice, na América Latina no Clase – Citas Latinoamericanas en Ciencias
Sociales y Humanidades, nos International Political Science Abstracts e na
Redalyc – Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y
Portugal. A versão eletrônica da revista está disponível na Scielo e no
portal da Capes.
revista de cultura e política
2012 | no 85
ISSN 0102-6445
DOSSIÊ QUESTÃO
RACIAL NO BRASIL
Editor
Elide Rugai Bastos (Unicamp)
Comitê de redação
Adrian Gurza Lavalle (USP)
Elide Rugai Bastos (Unicamp)
Rossana Rocha Reis (USP/Cedec)
Conselho editorial
Adrian Gurza Lavalle (USP)
Alvaro de Vita (USP)
Amélia Cohn (USP)
Brasilio Sallum Jr. (USP)
Celi Regina Pinto (UFRGS)
Celina Souza (UFBA)
Cicero Araujo (USP)
Elide Rugai Bastos (Unicamp)
Elisa Reis (UFRJ)
Gabriel Cohn (USP)
Gonzalo Delamaza (Universidad
de Los Lagos)
Horácio Gonzalez (Universidad de
Buenos Aires)
John Dunn (University of Cambridge)
José Augusto Lindgren Alves
(Ministério das Relações Exteriores)
Leôncio Martins Rodrigues Netto
(Unicamp)
Marco Aurélio Garcia (Unicamp)
Marcos Costa Lima (UFPE)
Michel Dobry (Université Paris ISorbonne)
Miguel Chaia (PUC-SP)
Nadia Urbinati (Columbia University)
Newton Bignotto (UFMG)
Paulo Eduardo Elias (USP) †
Philip Oxhorn (McGill University)
Philippe Schmitter (European University,
Florence)
Renato Lessa (Iuperj)
Rossana Rocha Reis (USP/Cedec)
Sebastião C. Velasco e Cruz (Unicamp)
Sergio Costa (Freie Universität Berlin)
Tullo Vigevani (Unesp)
Victor Manuel Durand Ponte
(Universidad Nacional Autónoma de
México)
William C. Smith (University of Miami)
Preparação e revisão de texto
Dalila Silva
Daniela Perutti
Dimitri Pinheiro
Íris Morais Araújo
Projeto gráfico e
editoração eletrônica
Signorini Produção Gráfica
Secretaria e assinaturas
Aline Menezes, auxiliar da Revista
Marleida T. Borges, secretária
Fones: 3569.9237, 3871.2966 – r. 20
e-mail: [email protected]
Comentários aos artigos?
Fale com o Editor:
e-mail: [email protected]
O Cedec é um centro de pesquisa e reflexão
na área de Ciências Humanas. É uma associação civil, sem fins lucrativos e econômicos,
que reúne intelectuais de diferentes posições
teóricas e político-partidárias.
Diretoria
Sebastião C. Velasco e Cruz, diretor
presidente
Cicero Araujo, diretor vice-presidente
Gabriela Nunes Ferreira, diretora tesoureira
Marcelo Marcos Piva, diretor secretário
Conselho Deliberativo do Cedec
Amélia Cohn, Aylene Bousquat, Brasilio
Sallum Jr., Cicero Araujo, Elide Rugai
Bastos, Gabriel Cohn, Leôncio Martins
Rodrigues Netto, Luiz Eduardo Wanderley,
Maria Inês Barreto, Miguel Chaia, Paulo
Eduardo Elias †, Reginaldo Moraes,
Sebastião C. Velasco e Cruz, Tullo Vigevani
APRESENTAÇÃO
Este número da revista Lua Nova apresenta um dossiê
sobre a questão racial no Brasil. Organizado por Antonio
Sérgio Guimarães, é composto por seis artigos. Tema dos
mais importantes na sociedade brasileira, hoje tem fundado
novas pesquisas motivadas por suas implicações no debate
da democracia. Embora a abolição da escravidão tenha formalmente estendido a toda a população do país os direitos
civis, políticos e sociais, a noção de raça impediu durante
muito tempo o desenvolvimento da cidadania. No entanto, contemporaneamente, em lugar de obstáculo, “raça”
tornou-se um dos elementos a partir do qual se coloca na
arena política nacional a questão da igualdade das oportunidades, ponto essencial para a constituição de uma sociedade democrática.
No artigo “Cidadania e retóricas negras de inclusão
social”, Guimarães reconstrói o percurso dos movimentos
negros no Brasil, mostrando que, em cada momento de
sua história, eles não aceitam os fundamentos “legitimadores” da discriminação e/ou da exclusão. Caracteriza ainda
as mobilizações atuais como o primeiro período em que
recusam os pressupostos autoritários da democracia racial.
“Protesto negro no Brasil contemporâneo”, de Flavia Rios,
analisa uma das estratégias dos movimentos negros contemporâneos – o protesto de rua –, mostrando o papel que
desempenharam nas lutas contra a ditadura e, no presente, na consolidação de lideranças políticas que formalizam
institucionalmente as demandas desses movimentos. A trajetória social e familiar de Edison de Souza Carneiro é
reconstituída no artigo “Uma família de cultura” de Gustavo Rossi ao enfocar, por um lado, como os Souza Carneiro vivenciam os efeitos de sua situação racial nos espaços
das elites dirigentes de Salvador e, por outro, como essas
coordenadas política e étnica rebatem nos primeiros traba-
lhos desse importante intelectual. Em “Tempo e melancolia”, através da obra ficcional do escritor negro Raul Astolfo
Marques, são analisados o período pós-Abolição e as primeiras décadas republicanas no quadro da crise do estado do
Maranhão. Estudando contos, crônicas e o romance desse
autor, Matheus Gato de Jesus não apenas mostra as dificuldades de inserção dos ex-escravos na sociedade local, como
fornece uma visão do lugar das regiões que ficaram fora do
jogo político oligárquico daquele período. Natália S. Bueno
em “Raça e comportamento político” procura responder à
pergunta: qual o papel da raça no comportamento político dos indivíduos? Estudando a atuação de grupos raciais e
fatores socioeconômicos em Belo Horizonte, fornece sugestões de resposta a essa questão. O texto de Mário Augusto
Medeiros da Silva, intitulado “Fazer história, fazer sentido”,
dedica-se a estudar a Associação Cultural do Negro, fundada em São Paulo em 1954, situando-a no quadro de várias
instituições semelhantes fundadas em momentos anteriores
a ela. A variedade dos enfoques nessa temática tão ampla
fornece elementos importantes aos estudiosos do assunto.
Além do dossiê, completa este número de Lua Nova um
artigo de Christian Edward Cyril Lynch, “O Império que era
a República”, no qual o autor indaga, procurando evitar
explicações que considera de matiz psicologizante ou classista, quais as razões que levaram Joaquim Nabuco a permanecer monarquista frente ao advento da República.
Os textos aqui publicados foram propostos por seus
autores ao comitê de redação da Lua Nova, examinados e
aprovados por pareceristas externos, a quem agradecemos.
O EDITOR
Apoio:
SUMÁRIO
DOSSIÊ QUESTÃO RACIAL NO BRASIL
13 CIDADANIA E RETÓRICAS NEGRAS De INCLUSÃO SOCIAL
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
41 O PROTESTO NEGRO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO (1978-2010)
Flavia Rios
81 UMA FAMÍLIA DE CULTURA: OS SOUZA CARNEIRO NA
SALVADOR DE INÍCIOS DO SÉCULO XX
Gustavo Rossi
133 TEMPO E MELANCOLIA: REPÚBLICA, MODERNIDADE E
CIDADANIA NEGRA NOS CONTOS DE ASTOLFO MARQUES
(1876-1918)
Matheus Gato de Jesus
187 RAÇA E COMPORTAMENTO POLÍTICO: PARTICIPAÇÃO,
ATIVISMO E RECURSOS EM BELO HORIZONTE
Natália S. Bueno
227 FAZER HISTÓRIA, FAZER SENTIDO: ASSOCIAÇÃO CULTURAL
DO NEGRO (1954-1964)
Mário Augusto Medeiros da Silva
ARTIGO
277 O IMPÉRIO É QUE ERA A REPÚBLICA: A MONARQUIA
REPUBLICANA DE JOAQUIM NABUCO
Christian Edward Cyril Lynch
313 RESUMOS/ABSTRACTS
DOSSIÊ
Cidadania e retóricas negras de inclusão
social*
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
As sociedades modernas são herdeiras das revoluções dos
séculos XVII, na Inglaterra, e XVIII, na França. Foram tais
acontecimentos históricos que estabeleceram os padrões
de sociabilidade e de civilização que se alastraram e ainda
se alastram por todo o mundo pós-colonial, cujo pilar é o
Estado de direito que protege indivíduos e cidadãos. T. H.
Marshall (1977), em texto clássico, classificou a cidadania a
partir dos direitos que a garantiam – civis, políticos e sociais
–, e mostrou como eles foram conquistados progressivamente na Inglaterra. Em outros países, como ficou claro no
debate das ideias seminais de Marshall (Turner, 1990; Carvalho, 2002), a história seguiu diversos outros cursos. Mas,
se o desenvolvimento e conquista da cidadania não seguiram um padrão evolutivo ou uniforme em todos os Estados-nação, é incontestável que esses processos seguem em cada
país uma certa periodização para a qual, para fins analíticos, a classificação sugerida por Marshall continua útil.
*
Versão anterior deste texto foi lida no 2nd International Symposium of the
Research Network for Latin America, Universidade de Cologne, 12-14 set. 2011.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
14
Para o caso das colônias europeias nas Américas, as
revoluções modernas significaram, sobretudo, a formação
de Estados independentes, como atestam a revolução norte-americana, no século XVIII, e as guerras de Independência
das colônias espanholas e portuguesa, no século XIX. Tais
Estados, entretanto, à diferença das metrópoles de que se
separavam, não tinham a possibilidade de formarem-se como
Estados-nação inclusivos para todos os seus habitantes, ou
mesmo para todos os nativos de seus territórios. Ou seja,
eram incapazes de estender o estatuto da cidadania moderna
e o sentimento de pertencimento nacional, que lhe era atrelado, para todo o corpo social. A instituição da escravidão,
assim como a reprodução de culturas e etnias variadas que
serviam de base para a exploração de trabalho servil, impediram que se organizasse a unidade nacional e a igualdade de
direitos. Mesmo o mais básico direito político – o voto –, no
Brasil, foi restrito até recentemente – 1988 – por exigência
legal da alfabetização (ou seja, o acesso à cultura letrada)
como pré-requisito para a participação eleitoral.
Na verdade, se, na Europa, o nascimento num determinado território e o compartilhamento de certos traços culturais, como uma língua comum, foram condições de primeira hora para a generalização da cidadania no interior dos
Estados-nação; nas Américas, as etnias e, posteriormente, a
racionalização e percepção das mesmas como raças, passaram a ser justificativas para garantir a negação desses direitos de cidadania e permitir a continuidade da escravidão ou
do servilismo como modo de produção e como relação de
trabalho. Aqui, como desenvolvi em outro texto (Guimarães,
2011), a solidariedade social, ou seja, a promessa aberta de
integração racial e étnica pela via da aculturação, substituiu
o ideal de igualdade social para as massas, uma vez abolida a
escravidão e instituída a República como forma de governo.
O processo de construção da cidadania nos países americanos passa, pois, necessariamente por duas etapas: primeiLua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
ro, a abolição do escravidão; segundo, a construção de um
sentimento nacional que inclua toda a sua população. Só
assim os direitos civis, políticos e sociais podem ser generalizados para um corpo nacional, seja ele ou não multicultural.
Vou me limitar, neste artigo, apenas à segunda dessas
etapas. Tomo o Brasil como exemplo do modo como a
noção de raça impediu por muito tempo o desenvolvimento
da cidadania nas nações americanas e como, de modo aparentemente paradoxal, a mesma noção está sendo capaz,
nos dias de hoje, de acelerar tal desenvolvimento.
As classes sociais1 são fundamentais nas sociedades
modernas porque nessas últimas já não existem os coletivos
institucionalizados que monopolizam privilégios, como na
Antiguidade ou na Idade Média. Nas sociedades modernas,
toda e qualquer mobilização coletiva, fechamento de oportunidades ou monopolização de recursos, deve ser organizada por indivíduos que atuam livremente, como iguais, em
mercados. As classes, enquanto coletivos, formam-se e desfazem-se a depender de conjunturas políticas, mas, enquanto estruturas, são permanentes, pois a organização de coletivos sociais é dada pela estrutura socioeconômica e pelo
funcionamento dos mercados. Vistas como possibilidade de
acesso ao mercado de bens e serviços, as classes atuam permanentemente, ao definir as chances individuais através da
posse de capitais e de seus marcadores (Bourdieu, 1979). A
propriedade de ativos financeiros e de imóveis, o domínio
da norma culta da língua materna, de línguas universais, de
códigos da cultura erudita, a posse do conhecimento cien1
Para uma importante tradição da sociologia não faz sentido falar de classes
sociais antes da Idade Moderna. Weber, por exemplo, reserva o conceito para so­
ciedades em que se formam mercados, ou seja, em que indivíduos interajam livremente. A tradição marxista, ao contrário, utiliza o termo para todas as épocas
históricas, pois está interessada em explicar como se formam coletivos políticos a
partir da teoria geral de que o plano fenomênico das relações sociais está determinado por fundamentos de estrutura econômica, ou seja, pela posição objetiva dos
sujeitos numa determinada formação social. Ver Guimarães (2002).
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
15
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
16
tífico e de credenciais escolares etc. constituem, pois, elementos permanentes de classificação social e de distinção a
relativizar a equalização dos indivíduos em cidadãos.
Nas Américas, as classes sociais seguem historicamente
um recorte muito próximo ao dos povos que aqui se encontram (e se mesclam) e que são referidos como raças. A mestiçagem pode confundir essas fronteiras ou acentuá-las. O decisivo para esse jogo classificatório é o modo como se constitui a
cidadania, ou seja, a igualdade de direitos entre os indivíduos
que compõem a nação. Como as hierarquias sociais se mantêm e se reproduzem no contexto ideológico republicano?
Seguirei aqui, de certo modo, as sugestões de Dumont
(1960), desenvolvidas para o Brasil por DaMatta (1990),
segundo as quais a manutenção de uma certa hierarquia
social impediu que se desenvolvesse explicitamente entre
nós uma rígida hierarquia racial. Ou seja, a subcidadania da
maioria dos negros e mestiços evitou por muito tempo que
as raízes raciais da hierarquia social fossem visíveis.
Esclarecido o quadro teórico, passo a perseguir, no
restante do texto, os desdobramentos da mobilização dos
negros brasileiros em busca da ampliação de sua cidadania,
através de diferentes períodos históricos, utilizando-se de
elementos retóricos recorrentes. Começo por esboçar um
quadro geral dessa mobilização a partir do final do século
XIX, quando o fim da escravidão transformou a todos em
cidadãos formais do Estado brasileiro.
Um breve sumário da mobilização política dos negros
depois da Abolição
No período que sucedeu a campanha abolicionista, a mobilização política dos negros brasileiros teve continuidade
com a formação da Guarda Negra por José do Patrocínio
e sua defesa da monarquia contra o avanço do movimento
republicano. O isabelismo, ou seja, o culto à princesa Isabel, que havia assinado a Lei Áurea em 13 de maio de 1888,
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
organizou-se a par com a defesa da reforma agrária para os
libertos, projeto de outro abolicionista monarquista negro,
André Rebouças. Essa conjuntura do isabelismo, entretanto, foi curta. Ela foi marcada, sobretudo, pela atuação da
Guarda Negra no Rio de Janeiro e outras cidades, que dispersava comícios republicanos (Gomes, 1999; Albuquerque,
2009). Em 15 de novembro do ano seguinte, em 1889, o
imperador foi deposto por um golpe militar republicano,
e a jovem República, aclamada pelas classes médias urbanas, os fazendeiros de café e toda a oligarquia agrária do
país (Costa, 1985; Carvalho, 1987). Esvaíram-se, portanto, as oportunidades políticas para o isabelismo e para o
monarquismo negro. No entanto, tal matriz de mobilização
popular – o monarquismo e a justiça administrada por um
soberano – sobreviveria como inspiração conservadora e
moralista durante muito tempo, e, no meio negro, até os
anos 1930, inspiraria alguns líderes e porta-vozes.
Os primeiros anos da República foram difíceis para o
exercício da liberdade pelos ex-escravos e pelo povo em
geral, principalmente no campo, onde as relações de trabalho se reacomodaram, não sem resistência, em novos arranjos de dependência e subalternidade (Garcia, 1986). Em
alguns lugares, como em São Luís (MA), grupos populares
reagiram contra a República dos oligarcas locais e a multidão foi dispersada a tiros, ao que se seguiu um período
de repressão aos negros urbanos (Jesus, 2010). A Guerra de
Canudos, entre 1896 e 1897, expôs ao país o isolamento e a
desproteção das populações rurais (Cunha, 1902), e revoltas populares como a da Vacina (1904), a da Chibata (1910)
foram reprimidas com banhos de sangue (Sevcenko, 1998;
2010). Sucederam-se inúmeros exemplos da radicalidade
do estranhamento entre elites dirigentes e povo nesse pe­­
río­do de estabilização da nova ordem republicana.
O primeiro exemplo de movimentação negra mais organizada, feita por dentro do sistema político, parece ter sido
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
17
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
18
a campanha pela posse de Monteiro Lopes como deputado
pelo Rio de Janeiro, em 1909, ele que já tinha sido eleito e
não reconhecido pela Câmara (Abreu e Dantas, 2011; Dantas, 2010). Essa campanha mostrou os dois itens principais
da agenda política negra nas décadas seguintes: o protesto
contra o preconceito de cor e a luta pela inclusão social da
população negra. O ativismo pelo reconhecimento da particularidade cultural negra seria saliente apenas mais tarde.
Mas, naquele momento, alguns intelectuais negros e mulatos, como Manoel Querino, na Bahia, ou Astolfo Marques,
no Maranhão2, recolhiam certos temas africanos e afro-brasileiros que engrossariam o caldo do que viria a ser compreendido, posteriormente, como concernente à cultura nacional.
Surgiu também, por essa época, a partir dos 1910, principalmente em São Paulo e Campinas, uma imprensa alternativa negra, à maneira dos jornais étnicos dos imigrantes
europeus recém-chegados. Bastide (1983), ao analisar a
produção dessa imprensa, aponta para as suas principais
funções sociais: de reconhecimento da classe média negra
remediada; de dignificação social dos grandes homens
negros brasileiros; e de protesto contra o preconceito de
cor. Essa imprensa tinha o intuito de exercer liderança
sobre as massas negras, organizando a solidariedade da
comunidade negra em torno de ações educativas sob o signo de indisfarçável puritanismo.
À medida que se extremavam as posições políticas no
Brasil a partir da crítica generalizada à democracia liberal,
sub-repticiamente associada à República oligárquica, essa
imprensa ressucitava as velhas categorias raciais, fazendo
seu proselitismo em torno da arregimentação da raça negra.
A República liberal foi acusada de ter barrado o processo
mais radical de abolição da escravidão e deixado o povo
2
Sobre o primeiro, ver Nascimento e Gama (2009); sobre o segundo, Matheus
Gato de Jesus (2011), neste dossiê.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
negro na situação deplorável em que se encontrava. Uma
segunda abolição, portanto, era necessária. O núcleo dessa
mobilização negra nos anos 1920 marcharia para a formação da Frente Negra Brasileira (1931-1937), sob a liderança
patrinovista de Arlindo Veiga dos Santos3.
Mas, na Primeira República, houve ainda a radicalização ideológica entre fascistas e comunistas; o racismo reapareceu na cena política, agora em termos partidários e
de Estado. Tal doutrina encontrou opositores também nos
intelectuais nacionalistas, que recusavam a um só tempo o
racismo e o comunismo, e que, embora simpatizantes de
um Estado forte, estavam em busca de uma via democrática
exclusivamente brasileira.
O golpe de Estado de 1930 e sua complementação em
Estado Novo, em 1937, ambos presididos por Vargas, abortaram momentaneamente toda essa mobilização partidária
racial para fundar um Estado autoritário e nacionalista, largamente regulador das relações sociais e econômicas, cujos
objetivos foram estabelecer uma paz duradoura entre capital e trabalho, industrializar o país, desarmar os sertões e forjar uma cultura nacional homogênea a partir da diversidade
étnica e cultural trazida pela imigração em massa e pelas
heranças indígenas e africanas. Nesse contexto, as ideias em
torno da democracia racial, enquanto sociabilidade autenticamente brasileira, tornaram-se consensuais entre todos os
agrupamentos políticos e ideológicos, independentemente
de clivagens étnicas ou raciais (Gomes, 1999; Guimarães,
2001; Guimarães e Macedo, 2008; Campos, 2005).
Duas qualificações, contudo, se fazem necessárias sobre
esse último ponto. A primeira é que a desmoralização da
política racial, provocada pelos crimes dos regimes fascistas,
e a entronização da democracia racial como sociabilidade
3
Há muitas análises da Frente Negra Brasileira. Cito apenas alguns textos clássicos: Leite (1992), Fernandes (1965), Ferrara (1986) e Barbosa (1998).
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
19
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
20
genuinamente brasileira não significou o fim da mobilização racial negra no Brasil, como se verá a seguir. A segunda
é que o Estado Novo, assim como fizera a Primeira República, pouco alterou as relações sociais no campo, onde ainda
vivia a maioria da população brasileira, e para a qual mesmo
os direitos da cidadania regulada (Santos, 1979) continuariam ausentes.
A redemocratização de 1944 encontrou, pois, o país
pronto para restabelecer a democracia parlamentar, sem
necessidade de maiores reformas sociais ou econômicas.
A propriedade rural continuou concentrada em poucas
mãos, mas o banditismo foi eliminado. As antigas relações
sociais transformar-se-iam muito lentamente, ao compasso
do desenvolvimento regional diferenciado. Já no mundo
urbano, os conflitos entre capital e trabalho encontraram
nas leis sindicais, trabalhistas e previdenciárias uma estrutura duradoura. As formas de identidade racial que medraram
no solo da Segunda República tiveram que se conformar ao
figurino mestiço do novo mito fundador da nação, ou seja,
transformaram-se em protesto contra o preconceito de cor e
de raça, e se justificaram perante a opinião pública enquanto
aprimoramento da democracia racial; um esforço para fazê-la cada vez mais real. Ainda assim, no Rio e em São Paulo,
organizações como o Teatro Experimental do Negro e intelectuais ativistas como Abdias do Nascimento, Solano Trindade, ou Guerreiro Ramos conseguiram alguma visibilidade.
É verdade, todavia, que, na Segunda República, os
conflitos de classe e o anti-imperialismo fizeram das organizações estudantis e sindicais urbanas e rurais entidades
quase-monopolizadoras da luta social, e o debate em torno
do desenvolvimento social galvanizou os intelectuais mais
proeminentes do período. É como se o problema racial no
Brasil estivesse definitivamente resolvido. Na agenda política da esquerda, a luta pela segunda abolição foi subsumida
pela luta pelo socialismo.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
Foi outro golpe militar, o de 1964, seguido da radicalização do regime em 1968, que fraturou definitivamente tal
agenda de esquerda: introduziu a política étnico-cultural e
reabriu a discussão sobre a democracia. O regime militar
descambou rapidamente da repressão política por processos judiciais e encarceramento, para formas mais violentas
e totalitárias de persuasão, através do uso da tortura e da
eliminação física de opositores. A oposição política civil,
em reação, radicalizou e aprimorou o pensamento sobre os
direitos civis e humanos nas democracias modernas. A crítica ao autoritarismo de Estado acabou também por iluminar
as hierarquias sub-repitícias sobre as quais vicejava o poder
nas relações sociais brasileiras: as hierarquias de classe, de
raça, de gênero, entre outras. Ao mesmo tempo, sob o abrigo do Estado autoritário e de sua política internacional de
aproximação com a África, puderam se estabelecer grupos
culturais negros em busca de suas raízes e de seus próprios
mitos (Santos, 2005). A partir daí, a democracia racial
começou a ser denunciada, nos meio negros, como farsa.
Mas a recusa completa da democracia racial não ocorreu
repentinamente; muitas tentativas ainda foram feitas, depois
que Florestan (Fernandes, 1965) a caracterizou como um
mito, e que Abdias (Nascimento, 1968) a chamou de logro,
em 1968, para explorar o terreno de possibilidades de luta e
de resistência, demarcado pelo mito e sua recusa do racismo.
Até meados dos anos 1980, enquanto as organizações negras
conviviam com o regime autoritário, as ambiguidades do
mito, a um só tempo falso e verdadeiro, o tudo que é nada,
no dizer do poeta, foram exploradas como bandeira de
luta, no mote “por uma autêntica democracia racial” (MNU,
1982). Do mesmo modo, coerentemente, o movimento
negro que ressurgiu nos anos 1970 reorganizou-se como
Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial.
Foi preciso instalar a Terceira República, em 1985, e
promulgar a Constituição, em 1988, para que o movimenLua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
21
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
22
to negro renegasse completamente o ideal de democracia
racial; adotou, em contrapartida, uma agenda radical de
defesa dos direitos humanos e dos direitos civis e sociais
dos negros. Iniciou-se, então, uma fase de denúncia radical da precariedade dos direitos dos cidadãos negros, através
da criação de múltiplas ONGs voltadas para a advocacia de
direitos individuais, como os serviços de SOS Racismo, e a
formação de organizações populares que passaram a agir
em torno de atividades de cultura, educação, emprego e
saúde. Essa é a fase que tem como pressuposto a ruptura
ideológica com os ideais da democracia racial e, como meta,
a afirmação radical da igualdade racial. Não por acaso tal
movimento conduziu à demanda por ações afirmativas nas
áreas de emprego, educação e saúde. A simples igualdade
de tratamento, inscrita na ordem democrática anterior, deixava de ser satisfatória. O movimento negro passou a ter
como meta o desmantelamento das desigualdades raciais
através de políticas públicas de discriminação positiva.
Que tal mudança de estratégia e de objetivos fosse condizente com o momento histórico e com a radicalização
democrática trazida pela Carta de 1988 ficou claro com a
progressiva aceitação de tal agenda pelo conjunto da sociedade brasileira. Foi o que se passou, por exemplo, com a
educação superior brasileira, que vivia então uma crise
de crescimento tanto no setor público, pela estagnação de
recursos e de vagas, quanto pelo setor privado, por conta da
grande inadimplência e evasão de estudantes. Entre 2002 e
2011, cerca de 70% das universidades estaduais ou federais
adotaram alguma forma de ação afirmativa para a seleção
de estudantes, enquanto no setor privado o governo federal
instituiu o Prouni, um amplo programa de bolsas para estudantes negros e carentes.
Para compreender a extensão desse desdobramento do
movimento no tempo, partindo de estratégias de ação nitidamente caudatárias de ideologias de embranquecimento
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
e finalizando com estratégias radicalmente igualitaristas, é
necessário mergulhar, ainda que também rapidamente, na
análise das ideologias que vingaram nos meios sociais negros.
Começo pelas ideologias raciais.
Ideologias raciais
No Brasil, como em outras partes das Américas, o processo
de Abolição propiciou uma onda de reflexão erudita, pseudocientífica, em torno do conceito de raça, cujo resultado foi
criar justificativas para a continuada desigualdade social entre
europeus e não europeus. Os primeiros reivindicavam para
si a igualdade cidadã e os direitos políticos, enquanto aos
segundos ficavam reservadas as posições subalternas. Como
bem observou Dumont (1960), as sociedades modernas americanas elegeram o racismo como justificativa natural para a
hierarquia social que permaneceria nas repúblicas liberais.
Diferentemente do que se passou nos Estados Unidos, no
entanto, a raça no Brasil não criou para os indivíduos, principalmente os mestiços, obstáculos intransponíveis. Várias explicações foram dadas para tal diferença, que não cabe aqui resenhar. O fato é que a noção mais antiga de “cor”, em torno da
qual, na Europa, desde a Antiguidade, se diferenciaram povos
e indivíduos, continuou a ter mais importância que as explicações pseudocientíficas baseadas em raça. Ainda que as classificações de cor tivessem sofrido uma espécie de releitura
racista erudita e permanecessem doravante com tal substrato, não se desenvolveu no Brasil nem uma classificação racial
bipolar, nem emergiram regras classificatórias precisas (Harris, 1956). As circunstâncias e situações sociais permitiriam a
manipulação das classificações de cor (Azevedo, 1963).
Tal desenvolvimento estava em homologia com a impossibilidade demográfica e política de se criar uma nação
totalmente branca, pelo que quero dizer uma nação apenas
com descendentes de europeus não miscigenados e recém-imigrados. A impossibilidade demográfica estava na baixa
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
23
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
24
atratividade do Brasil para as correntes imigratórias europeias do final do século XIX e começo do XX; a impossibilidade política residia na centralidade social e econômica
que ganhou parte da população brasileira de origem mestiça, que se autodeclarava branca.
Aqui, talvez valha a pena traçar, ainda que em traços
rápidos, as diferenças dos sistemas de classificação racial
vigentes nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, de
modo a evitar mal-entendidos e excesso de polissemia. O
sistema norte-americano utiliza a regra de hipodescendência, ou seja, descendência traçada a partir do cônjuge
inferiorizado socialmente, para traçar os limites dos grupos raciais, que são referidos abertamente como raças. O
sistema europeu contemporâneo, desde o fim da Segunda
Guerra, rechaça o termo raça e classifica os indivíduos, seja
em termos culturais, etnias propriamente ditas, ou a partir
da cor da pele, sem referência a descendência biológica. O
sistema brasileiro também recusava o termo raça até recentemente, preferindo o de cor, e também não tem uma regra
clara de classificação por descendência, mas utiliza outras
marcas corporais, tais como cabelo, formato do nariz e dos
lábios, para classificar os indivíduos em grupos. Se o termo
raça era tabu até há pouco, hoje em dia usa-se correntemente o par “raça/cor” em recenseamentos e pesquisas de
opinião, assim como no dia a dia se os utiliza como termos
intercambiáveis. Pode-se, portanto, dizer, grosso modo, que
o sistema estadunidense é o mais fechado de todos, posto
que delimita com precisão os grupos de descendência; o
sistema europeu é um pouco mais aberto, posto que o critério único de cor da pele permite maior trânsito entre os
grupos, ainda que a categoria de pele “escura” possa dar
origem a uma espécie de purgatório racial; finalmente,
pode-se dizer que o sistema brasileiro, utilizando uma pluralidade de marcas físicas, possibilita a formação de vários
grupos raciais entre o branco e o negro.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
Esse é o sistema que pode tratar a mistura racial como
processo, pois é o único que tem os elementos para demarcar as etapas de tal transformação. De fato, a jovem nação
republicana adotaria, no auge da moda intelectual do racismo, o discurso do branqueamento gradual de toda a sua
população, promovendo a imigração e aceitando a mestiçagem como algo necessário e virtuoso (Skidmore, 1974; Ventura, 1991; Schwarcz, 1993). Mas a crença no branqueamento era apenas uma das possibilidades abertas pela matriz
ideológica que conformou o nascimento da jovem nação
sul-americana. Essa matriz é enunciada pela primeira vez,
de modo erudito, no Segundo Império, por Karl Frederick
Von Martius, em ensaio de 1845 para o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Von Martius chama a atenção para
o fato de que a história do Brasil deveria ser escrita levando
em consideração que seu povo seria formado pela mistura de
três raças – “a cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, a preta ou etiópica” (Von Martius, [1845] 1956, p. 42).
Três variantes possíveis dessa matriz conheceram desdobramentos importantes para a formação racial negra no
Brasil: o embranquecimento, o mulatismo e a negritude.
O embraquecimento da população brasileira surge
como corolário da superioridade da raça branca e da civilização europeia, mas como negação das teorias racistas que
teorizavam a mestiçagem como degenerescência. Constitui-se, portanto, no primeiro vértice da matriz enunciado por
Von Martius, ao pregar que não apenas o povo conquistador imporia a sua língua e a sua civilização, mas também
os seus atributos e qualidades raciais sobre os povos colonizados. Talvez a versão mais bem-acabada dessa versão otimista do embranquecimento esteja na tese apresentada por
João Baptista Lacerda (1911) ao Congresso da Universal das
Raças, em Londres, em 1911. Segundo essa formulação, a
raça negra seria absorvida paulatinamente através da miscigenação, gerando um estoque de mulatos eugênicos, assim
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
25
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
26
como, por fim, através de sucessivos intercruzamentos, esses
últimos também acabariam por ser incorporados ao grupo
branco. É importante notar, entretanto, algumas outras versões da mesma tese: uma mais pessimista – que entendia ser
necessária a substituição da raça negra, via intensificação da
emigração europeia, expulsão dos africanos libertos e maior
mortalidade natural da raça negra – e outra mais otimista – que encarava o embranquecimento como um processo mais geral, que compreendia não apenas miscigenação,
mas também a aculturação e assimilação social de negros e
indígenas à cultura luso-brasileira. Em suas três variantes,
o embranquecimento é uma ideologia de longa duração, e
que limita os avanços da cidadania no Brasil.
A segunda variante surge como um desdobramento
mais radical e mais afinado com a proposta racialista de von
Martius, segundo a qual da mestiçagem entre indígenas,
brancos e negros formava-se no Brasil uma metarraça. A
construção do imaginário de uma nação mestiça, que incluiria a totalidade dos indivíduos livres, foi intensificada pelo
movimento abolicionista, e se aprofundou durante o período republicano. Essa formulação talvez se constitua no veio
mais refinado do pensamento social brasileiro, que encontra seus expoentes, em termos de enunciação, em Joaquim
Nabuco e Gilberto Freyre. Segundo esse pensamento, a liberdade, conquistada pela abolição da escravidão, transmuta-se
imediatamente em cidadania, na ausência de preconceitos
de raça. As desigualdades sociais remanescentes passam a se
ancorar na ordem econômica e cultural das classes sociais.
Cabe ao Estado incorporar e regular através de políticas
sociais o acesso dos cidadãos ao pleno gozo de seus direitos, e
promover desse modo a justiça, a educação, a saúde e a seguridade social de todos. O Estado é o único ente civilizador
e promotor da harmonia social (Vianna e Carvalho, 2000).
Não há lugar, nesse pensamento, para a teoria de Marshall
do desenvolvimento da cidadania pela conquistas de direitos.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
Essa variante da matriz vonmartiana seria chamada por
alguns intelectuais de mulatismo, ou seja, de uma forma de
conceber a nação brasileira segundo a qual o mulato seria o
brasileiro típico, mais que o branco oriundo da emigração
europeia ou de sua mistura com os descendentes de portugueses. Como se pode imaginar, a acusação de mulatismo
provém daqueles que acreditam no papel de liderança que
a cultura europeia (e não a afro-indo-luso-brasileira) deve
exercer sobre a nação brasileira. Esse tipo de caracterização
do mulatismo esteve presente entre muitos intelectuais paulistas dos anos 1930 e 1940 (Duarte, 1947; Bastide, 1961).
Enfim, a terceira variante é a negritude brasileira (Bastide, 1961). Apesar de muito influente no meio negro, e
talvez pour cause, tal variante não encontrou grande apelo
nos meios intelectuais, ficando quase que restrita ao enunciado de Guerreiro Ramos (1957). A negritude, como bem
caracterizou Bastide, consiste numa radicalização do mulatismo, ao enxergar como negros todos os afrodescendentes
e propor que, no Brasil, o povo é negro; ou seja, segundo tal
enunciado, não faz sentido pensar o negro enquanto etnia
separada, posto que ele é o esteio demográfico da nacionalidade. Por seu turno, a designação do povo como negro,
e não mulato ou mestiço, consiste propositadamente na busca de valorizar o elemento mais estigmatizado da formação
nacional, revertendo a visão colonialista europeia, introjetada pelas elites nacionais, do Brasil enquanto país branco e
de sua cultura como prolongamento da portuguesa.
São essas três vertentes – o embranquecimento, o
mulatismo e a negritude – que delimitam o espaço ideológico-racial em que vicejam algumas estratégias discursivas
negras para a luta pela ampliação da cidadania.
Retóricas negras e a recorrência de seus temas discursivos
Quatro retóricas de inclusão podem ser distinguidas nesse
longo período de mobilização negra. A primeira delas foi
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
27
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
28
caracterizada por Bastide (1983, p. 150) como puritanismo.
Trata-se do discurso sobre a moral – comportamentos, atitudes e valores – adequada à convivência numa sociedade
burguesa. Bastide disse ter preferido chamá-lo assim “porque a moralidade é essencialmente subjetiva, ao passo que
o puritanismo dá atenção antes de mais nada ao que se vê,
às manifestações exteriores e que podem classificar um ser
no interior de um grupo”. Trata-se, no entanto, propriamente de um discurso sobre a moral adequada à integração
social dos negros nas classes médias urbanas. Numa sociedade em que não era legalmente permitida a discriminação
com base na raça ou na cor, a situação de inferioridade e
de subalternidade social do negro não poderia ser regulada
apenas através dela; muito ao contrário, quando tal discriminação ocorresse, teria que ser discreta e de preferência
passível de ser atribuída à operação de mecanismos de classificação social. Eram, portanto, através dos mecanismos
de formação e de reprodução das classes – a escolaridade
formal, as boas maneiras, a moral, a religião, o domínio da
língua culta etc. – que as discriminações sociais poderiam
ser mais eficientemente exercidas e, mais que isso, que os
negros poderiam se reproduzir espontaneamente enquanto
classe. Está aí a sabedoria da imprensa negra de então em
alcunhar a população negra de “classe dos homens de cor”
antes de adotar a designação de “raça negra”.
O puritanismo, portanto, foi a primeira tentativa, depois
do abolicionismo, ou seja, depois da conquista da cidadania
formal, de ampliar os direitos efetivos do povo negro através
de uma forma comunitária de solidariedade: a racial, que,
como vimos, desloca-se paulatinamente da cor para a raça, à
medida que avançam no Brasil as ideologias políticas racistas,
como o fascismo. Engana-se, pois, quem enxerga no puritanismo uma simples introjeção da ideologia do embranquecimento entre a classe média negra. A recusa do pan-africanismo e das práticas culturais afro-brasileiras que medram nos
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
meios populares negros devem ser lidas como enquadramento à lógica de identificação e de reprodução das classes, como
negação e tentativa de desconstrução do habitus de classe das
camadas populares. É claro, porém, que um dos pressupostos
do puritanismo é a prevalência das ideias sobre a inferioridade das práticas culturais africanas e de suas ramificações
brasileiras. No entanto, quero chamar a atenção para o fato
de que os códigos da alta cultura europeia – sejam maneira de
vestir, falar ou se comportar – permanecem como marcadores de distinção das classes altas mesmo quando a chamada
“cultura negra” passa a ser aceita em sua plenitude.
O puritanismo é uma estratégia de elevação de status social
de um grupo através da formação de uma comunidade racial –
ou seja, de uma origem de raça comum – através do exercício
da solidariedade e da liderança. Alguns dos temas discursivos
(que os sociólogos norte-americanos chamam de frames) que
aparecem na retórica do puritanismo foram emprestados ao
movimento abolicionista e iriam reaparecer em todas as mobilizações negras do século XX: o papel colonizador do negro
no Brasil, o negro como criador da riqueza nacional, o talento
do mulato, o mestiço como o tipo mais brasileiro (somos todos
mestiços, até mesmo os portugueses), a abolição como abandono e desproteção, a ausência do preconceito de raça no
Brasil, mas a continuidade do preconceito de cor.
No tempo em que o puritanismo da Frente Negra Brasileira atingia seu ápice, em 1937, já era, entretanto, um discurso
embolorado. Isso porque, desde os anos 1920, os modernistas
brasileiros buscavam inspiração para o seu vanguardismo na
cultura popular negra e mestiça, buscando ali a alma do Brasil.
Os festejos populares, as danças, o folclore, todas essas manifestações serviam de referência para a construção de uma nova
estética de autenticidade, surgida na cola dos movimentos
artísticos europeus, que, do dadaísmo ao surrealismo, descobriram a arte primitiva, africana e oriental. Tal descoberta, no
Brasil, caminhou passo a passo com o estudo dos africanismos
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
29
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
30
pela antropologia cultural (Ramos, 1937; Herskotivs, 1943),
principalmente dos candomblés jêjes-nagôs, que transformam a Bahia, primeiro em laboratório, depois numa espécie de Roma negra (Lima, 1964), local de origem espiritual
para reconstrução das tradições africanas no Brasil.
Toda a força do renascimento artístico e espiritual
modernista teve enormes consequências para os discursos reivindicatórios negros: nuançou seu projeto de classe,
assentado em marcadores de status pequeno-burgueses e
europeus, àquela altura (anos 1920 e 1930) já sob à crítica
de inautenticidade das vanguardas artísticas e intelectuais.
Dois outros temas seriam acrescentados, portanto, nos anos
1940, à retórica negra: o povo, no Brasil, é negro; e a cor,
simples aparência. Eles seriam acionados, principalmente,
no discurso da democracia racial, que passaria a dominar a
política cultural e ideológica do Estado Novo.
Já escrevi em outras ocasiões sobre a democracia racial
(Guimarães, 2001; Guimarães e Macedo, 2008), mas é preciso aqui, sinteticamente, retomar as suas origens e especificar
a sua vertente negra. As origens das ideias consteladas ali
têm fontes diversas, algumas eruditas, outras populares, reunidas sob a motivação política mais profunda que a animou.
A fonte erudita pode ser encontrada na inspiração hispanista (Diaz Quiñones, 2006), que tomou conta dos intelectuais
latino-americanos no começo do século XX, à procura da
especificidade da civilização ibérica, seja em termos dos seus
contatos com outros povos, seja da sua forma de governar,
seja da sua cultura. A fonte popular vem da campanha abolicionista, que desemboca num movimento social de certa
pujança ao ganhar as ruas (Alonso, 2010) mas que teria sua
maior legitimação intelectual nos escritos de Castro Alves,
Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. A fonte política pode ser
encontrada em vários intelectuais, alguns de corte mais
racialista, como Cassiano Ricardo (Campos, 2005), outros
mais culturalista, como Arthur Ramos ou Gilberto Freyre.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
Já se encontrou, em Oliveira Lima (1911), o argumento, mais tarde retomado por Gilberto Freyre (1933, 1936)4,
de que no Brasil colônia a aristocracia portuguesa era muito mais aberta ao contato com as classes populares, incorporando com frequência não só bastardos, mas pardos de
talento, “não constituindo o sangue negro um obstáculo
insuperável nem sequer à mercês e graças régias” (Oliveira Lima, 1922, p. 32). Essa democracia de que fala Oliveira
Lima, ou seja, a falta de rigidez nas classificações de classes
ou de raças, seria alçada por Freyre à singularidade da colonização portuguesa, embrião de uma democracia social e
étnica, mais profunda e humana que a democracia liberal
anglo-saxônica ou francesa, posto que permitiria a incorporação e a mobilidade social de diversas raças nas novas
nações oriundas da expansão europeia. Tal singularidade
da democracia na América portuguesa seria chamada também de democracia racial por outros, como Cassiano Ricardo; no entanto, nesse como em outros autores, a concepção
de uma democracia autoritária, baseada numa clara hierarquia sob o comando europeu ou branco é mantida intacta,
tal como fora anunciada em 1845 por Von Martius.
A simpatia despertada por Casa-grande & senzala está justamente em que, nele, a hierarquia racial cede lugar ao que
Benzaquém Araújo (1994) chamou de equilíbrio dos contrários. Ou seja, são as relações de poder entre senhores e escravos, homens e mulheres, adultos e crianças, que determinam
a hierarquia social e não as raças. Gilberto Freyre encontraria
espaço para incorporar inteiramente a variante popular da
democracia racial, ou seja, aquela em que o negro e o mulato
eugênico passam a ser matriz da futura nação. Nessa leitura popular, a que Freyre empresta o encanto de sua prosa, a
mestiçagem submerge a hierarquia, deixando-a transparecer
tão somente em certas preferências estéticas ou culturais.
A influência de Oliveira Lima sobre Freyre foi analisada por Gomes (2001).
4
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
31
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
32
Tal democracia racial seria aquela autenticamente brasileira, para a qual se requereria um Estado forte e regulador
das relações sociais, de modo que os potentados privados não
sucumbissem à tentação de transformar diferenças raciais e
culturais em hierarquias sólidas. Apenas as diferenças de classe poderiam a ser reconhecidas pelo Estado e por ele mediadas, e reguladas por extensa legislação. Contra a petrificação
da diversidade racial e de classe o Estado deveria agir de modo
soberano, por cima dos cidadãos. Foi esse ideal de democracia, cujo cerne não se encontra nos direitos individuais,
mas na inexistência de barreiras de cor à mobilidade social
dos indivíduos, e cuja legitimidade é retirada não da utopia do
indivíduo livre, portador de direitos, mas da inexistência de
coletivos cujas características adscritas lhes garantam privilégios, que atendia também aos anseios populares e negros,
aqueles que mantinham a bandeira da segunda abolição.
Assim, paradoxalmente, a hierarquia racial defendida pelas elites brasileiras, abertamente, como racismo, ou
sob a forma mais branda de nação mestiça liderada pela
herança cultural branca ou europeia, não desaparece, mas
é submergida por uma ordem regulada de classes sociais.
Nessa nova hierarquia, como não podia deixar de ser, se
insinuam como preferências as marcas físicas, raciais e culturais das classes dominantes. O negro eugênico se transforma em moreno, a beleza em graça divina. O conflito racial
transmuda-se em conflito social. Para exemplificar com
uma canção muito popular de Adelino Moreira, de 1959, o
sonho de amor impossível de um negro por uma branca é
assim lamentado: “Não devia [sonhar] e por isso me condeno/ Sendo do morro e moreno/ Amar a deusa do asfalto”.
Ninguém sabe ao certo de que cor eram realmente amante e amada, mas se conhece sim que o triste enlace resvala
em “negra solidão”. O conflito se desloca, como se vê, para
outra hierarquia. De mesmo modo, no cancioneiro da época, a cabrocha, a morena e a mulata passam a ser as figuras
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
femininas mais exaltadas. Do mesmo modo, a Bahia, que
fora retratada por Von Martius como a mais portuguesa das
cidades brasileiras5, e que fora caracterizada como a “mulata velha” na Primeira República6, passa a ser associada, a
partir do Estado Novo, à mística afro-brasileira, como terra
da magia e do feitiço, cantada nos sambas de exaltação, junto com o Rio de Janeiro e os morros cariocas.
Para os intelectuais negros que abraçam o ideal da
democracia racial, contudo, é importante frisar que o
fazem, como vimos, ao ressignificar o movimento da negritude e substituir o pan-africanismo pelo nacionalismo anticolonialista. A polissemia de termos como democracia racial,
negritude e cultura afro-brasileira tem que ser ressaltada. Para
os negros, a primeira expressão significava a sua integração numa ordem social sem barreiras raciais; a segunda era
uma forma de patriotismo que acentuava a cor negra do
povo brasileiro; enquanto a terceira realçava a cultura sincretizada e híbrida do Brasil (Bastide, 1976).
Para chegar aos nossos dias – quando a Bahia é caracterizada, abertamente, como cidade negra, o termo raça é
introduzido nos censos demográficos, e o multiculturalismo
e o igualitarismo racial são doutrinas dominantes nas organizações políticas e culturais negras –, é preciso compreender como certos signos de identidade étnica foram apropriados pelas elites negras e como os direitos do cidadão
passaram a ser centrais na definição da democracia.
Roger Bastide, que já disponibilizou a chave para a
compreensão do puritanismo negro e da negritude brasileira, pode oferecer ainda outra para entender o surgimento
da identidade étnica nos anos 1970.
5
Rodrigues observa, ao comentar a Viagem ao Brasil, de Von Martius, que a Bahia
era a província brasileira em que se podia notar “um maior apego à Portugal e à conservação das leis e às praxes portuguesas”. Von Martius notava também “a expedita
atividade comercial do baiano, prático, sólido” (Von Martius, [1845] 1956, p. 437).
6
Ver a nota 66 de Guimarães (1999).
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
33
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
34
Segundo ele, o avanço das religiões afro-brasileiras no
sul e sudeste do país, a descolonização da África e a consequente emergência de uma elite negra africana de circulação internacional, assim como o crescimento e autonomização de uma classe média mulata não incorporada às elites
como socialmente branca, fazem com que a negritude brasileira deixe de referir-se apenas aos aspectos físicos-raciais
dos negros para ressaltar a sua autenticidade e singularidade cultural enquanto afro-brasileiros7.
Para Bastide, as bases sociais para a aceitação e adaptação
de teorias que circulariam internacionalmente com maior
intensidade nas décadas seguintes, como o multiculturalismo e multirracialismo, teriam sido assentadas no Brasil pelo
“milagre econômico”, como ficou conhecido o grande desenvolvimento econômico e social brasileiro dos anos 1970.
Da mesma época, acrescento, data também a grande
guinada da intelectualidade política brasileira – à esquerda
e à direita –, que recusou a antiga aspiração por uma democracia autenticamente local e voltou-se para a crítica da
insuficiência histórica das garantias aos direitos humanos
e do cidadão. Abriu-se, então, caminho para que as desigualdades raciais no país pudessem ser denunciadas como
genocídio do povo negro, ecoando a celebre petição apresentada por Paul Robeson e William L. Patterson (1970) à
Assembleia Geral da ONU em 1951. Quem soltou o grito
foi Abdias do Nascimento (1978), que liderou o movimento
por democracia racial e pela negritude nos anos 1940.
Nada mais compreensível que qualquer tentativa de restringir a democracia a qualquer um de seus aspectos fosse
recusada. A ditadura militar foi instalada no país desde 1964,
7
“Ela não pode aceitar a ‘negritude’ do ponto de vista puramente físico; essa
negritude não pode ser senão cultural. E eu acrescento: o que define e produz os
dois movimentos, de incorporação nacional e de autenticidade, coerentes entre
eles, não é senão aquele de uma identidade cultural ‘africana’, mais que de uma
identidade resolutamente ‘afro-brasileira’” (Bastide, 1976, p. 27).
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
camuflada sob a aparência de democracia representativa,
mantendo o Legislativo e Judiciário como poderes autônomos, refazendo o sistema político partidário e a Constituição,
intervindo e limitando tais poderes de maneira ad hoc. A ditadura seguiu, assim, uma longa tradição autoritária, que já rendera frutos na Primeira e Segunda Repúblicas, e servira de
inspiração a Vargas, instituindo na presidência uma espécie
de poder moderador imperial. Na luta pela redemocratização
do país, portanto, as oposições se viram obrigadas a radicalizar a sua concepção de democracia (Weffort, 1992): fizeram
a crítica histórica da sociedade e da política brasileiras, repudiaram qualquer espécie de excepcionalismo ou singularidade nesta matéria, e propugnaram por uma defesa radical das
liberdades civis e dos direitos do indivíduo e do ser humano.
O igualitarismo negro, portanto, foi resultado de um
amadurecimento de demandas congruentes: abandonou-se
a bandeira de luta “por uma autêntica democracia racial”
(MNU, 1982) e adotaram-se demandas por reconhecimento de sua particularidade cultural e por ações afirmativas
que estabelecessem maior paridade de oportunidades entre
brancos e negros.
A cidadania dos negros
Para concluir esse artigo, vou sumarizar brevemente meus
argumentos, explicitando alguns fios condutores e uma
periodização que ficaram implícitos. Vianna e Carvalho
(2000), em artigo seminal, retomaram uma tese cara a
Oliveira Vianna (1959), para insistir no papel central que
desempenhou o Estado no processo civilizatório brasileiro,
avançando e garantindo direitos e liberdades contra a oposição das classes dominantes, e com o apoio difuso ou amorfo das massas e das classes dominadas. Foi assim na Abolição, foi assim no Estado Novo. José Murilo de Carvalho
(2002), em sua história da cidadania no Brasil, demonstrou
como tal protagonismo do Estado fez com que os direitos
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
35
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
36
sociais fossem garantidos para as camadas urbanas, antes
mesmo que as liberdades políticas e civis estivessem plenamente desenvolvidas. Esse processo Wanderley Guilherme
dos Santos (1979) havia chamado de “cidadania regulada”.
Como procurei expor acima, ainda que rapidamente,
foram três momentos de ruptura com a ordem racial estabelecida, às vezes com o protagonismo maior do Estado,
mas com mobilização social maior nas últimas décadas, em
que os negros brasileiros viram respeitados os seus direitos
à cidadania.
Sem dúvida, o momento inicial foi a conquista da liberdade individual, pois com o fim da escravatura generalizou-se definitivamente a disjunção entre ser negro e a restrição
à liberdade individual. Mas a liberdade assim conquistada
não se traduziu, como vimos, em cidadania política ativa;
apenas deslanchou o processo de construção nacional,
em que tais indivíduos eram mais assujeitados (Garcia,
1986) que sujeitos. A Primeira República representou bem
essa época em que competiram duas lógicas de cidadania:
de um lado, a onda civilizadora republicana, limitada às
classes altas e remediadas, que, do ponto de vista cultural,
significava a europeização do Brasil (Freyre, 1936) e a consequente negação da herança africana. No movimento descendente vieram o racismo pseudocientífico e a tentação de
embranquecer a nação, assim com a resposta negra pequeno-burguesa, que, em busca de inclusão social e respeitabilidade, arrebentou-se no puritanismo negro. De outro lado,
no movimento ascendente, ocorreu nos meios intelectuais
e artísticos a valorização das manifestações populares, das
artes primitivas, do folclore, e das heranças culturais africanas. A arrebentação dessa onda foi múltipla: o modernismo, o ideal da nação mestiça, a retórica afro-brasileira. O
que antes era visto como africano e estrangeiro passou a ser
tematizado como afro-brasileiro ou simplesmente brasileiro. Ao invés de aceitar as diferenças e propor a igualdade
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
entre as heranças, optava-se pela hibridez e a convivência e
tolerância das desigualdades.
O período seguinte começou já na Revolução de 1930
e seguiu pelo Estado Novo. À conquista do reconhecimento do legado cultural da raça negra, juntaram-se os direitos
sociais do trabalhador urbano. Forjaram-se, nesse período,
compromissos políticos e culturais que seriam expressos no
ideal de democracia racial: cidadania regulada, nacionalização das culturas étnicas e raciais, recusa ao racismo. Mas a
Segunda República, apesar de restituir as liberdades políticas, não as generalizou ou aprofundou. O trabalho no mundo rural, nas grandes propriedades, continuou a ser regido
por formas de sujeição pessoal e de violência herdeiras do
escravismo (Garcia, 1986). Do ponto de vista dos negros,
qualquer avanço em termos de direitos políticos ou sociais
se fez apenas nas lutas de classe. A renúncia à singularidade étnica ou cultural foi explícita, embora sua afirmação
seja cada vez menos desqualificadora. Ocorreu formação de
classes, mas não formação racial. De qualquer modo, nos
dias de hoje, generaliza-se entre as esquerdas, ao menos, a
ideia de que o povo brasileiro é negro ou mestiço.
O período que se vive é o primeiro em que se recusa os
pressupostos autoritários da democracia racial, que buscava
a harmonia sem consolidar a ordem política e equalizar a
distribuição social das riquezas e das oportunidades. O protagonismo maior agora passa a ser dos movimentos sociais,
ainda que o Estado se mantenha central, como distribuidor e doador. É nessa ordem de garantia dos direitos individuais e coletivos que medram o reconhecimento da singularidade étnica e o respeito à igualdade racial. De modo
apenas aparentemente paradoxal, a afirmação do coletivo
racial serve para aprofundar a igualdade entre os cidadãos.
A razão parece estar em que as desigualdades precisam agora ganhar nome (cor, gênero, raça, orientação sexual) para
serem combatidas.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
37
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
é professor do Departamento de Sociologia da USP.
Referências bibliográficas
38
ABREU, M.; DANTAS, C. 2011. “É chegada ‘a ocasião da negrada bumbar’:
comemorações da abolição, música e política na Primeira República”.
(mimeo.).
ALBUQUERQUE, W. R. 2009. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania
negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
ALONSO, A. 2010. “A teatralização da política: a propaganda abolicionista”. Texto apresentado ao seminário Sociologia, História e Política do
PPGS-USP. São Paulo: (mimeo.).
ARAÚJO, R. B. 1995. Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34.
AZEVEDO, T. 1963. “Race and class”. In: Social change in Brazil. Gainesville:
University of Florida Press, pp. 32-56.
BARBOSA, M. 1998. Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo:
Quilombhoje.
BASTIDE, R. 1976. “Négritude et intégration nationale: la classe moyenne de
couleur devant les religions afro-brésiliennes”. Afro-Ásia, no 12, pp. 17-30.
BASTIDE, R. 1961. “Variations on negritude”. Presence Africaine, vol. 8, no
36, pp. 83-92.
BASTIDE, R. 1983. “A imprensa negra do Estado de São Paulo”. In: Estudos
afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva.
BOURDIEU, P. 1979. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Minuit.
CAMPOS, M. J. 2005-2006. “Cassiano Ricardo e o mito da democracia
racial”. Revista USP, no 68, pp. 140-155.
CARVALHO, J. M. 1987. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo: Companhia das Letras.
. 2002. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
COSTA, E. V. 1985. The Brazilian empire. Chicago: University of Chicago Press.
CUNHA, E. 1902. Os sertões. Rio de Janeiro: Laemmert.
DAMATTA, R. 1990. “Digressão: a fábula das três raças, ou o problema do
racismo à brasileira”. In: Relativizando: uma introdução à antropologia
social. Rio de Janeiro: Rocco, pp. 58-87.
DANTAS, C. V. 2010. “Monteiro Lopes (1867-1910), um ‘líder da raça
negra’ na capital da República”, Afro-Ásia, vol. 41, pp.167-209.
DIAZ QUIÑONES, A. 2006. Sobre los principios: los intelectuales caribeños y
la tradición. Quílmes: Universidad Nacional de Quílmes.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
DUARTE, P. 1947. “O negro no Brasil”. O Estado de São Paulo, pp. 5-6.
DUMONT, L. 1960. “Castes, racisme et stratitification”. Cahiers Internationaux
de Sociologie, vol. 29, pp. 91-112.
FERNANDES, F. 1965. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo:
Dominus.
FERRARA, M. N. 1986. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo:
FFLCH-USP.
FREYRE, G. 1933. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Schmidt.
FREYRE, G. 1936. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Ed. Nacional.
GARCIA, A. 1986. “Libres et assujettis”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales,
vol. 65, pp. 14-40.
GOMES, A. C. 1999. História e historiadores. Rio de Janeiro: Ed. FGV.
. 2001. “Gilberto Freyre e Oliveira Lima: Casa-grande e senzala e o contexto historiográfico do início do século XX”. História, vol. 20, pp. 29-44.
GOMES, F. 1999. “No meio das águas turvas. Racismo e cidadania no alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte – 1888-1889”. Estudos Afro-Asiáticos, no 21, pp. 74-95.
GUERREIRO RAMOS, A. 1957. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio
de Janeiro: Andes.
GUIMARÃES, A. S. A. 1999. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34.
. 2001. “Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito”. Novos Estudos
Cebrap, vol. XX, no 61, pp. 147-162.
. 2002. Classes, raças e democracia. São Paulo: Ed. 34.
. 2011. “A República de 1889: utopia de branco, medo de preto (A
liberdade é negra; a igualdade, branca e a fraternidade, mestiça)”. Contemporânea, no 2, pp. 17-36.
; MACEDO, M. J. 2008. “Diário trabalhista e democracia racial negra
dos anos 1940”. Dados, vol. 51, pp. 143-182.
HARRIS, M. Town and country in Brazil. Nova York: Columbia University
Press, 1956.
HERSKOVITS, M. 1943. “The negro in Bahia, Brazil: a problem of
method”. American Sociological Review, vol. 8, pp. 394-402.
JESUS, M. G. 2010. Negro, porém republicano: investigações sobre a trajetória
intelectual de Raul Astolfo Marques (1876-1918). Dissertação de Mestrado em Sociologia. São Paulo: FFLCH-USP.
LACERDA, J. B. 1911. Sur les métis au Brésil. Paris: Imprimerie Devouge.
LEITE, J. C. 1992. ...E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo:
Secretaria Municipal de Cultura.
OLIVEIRA LIMA, M. 1911. Formation historique de la nationalité brésilienne.
Paris: Ed. Garnier.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
39
Cidadania e retóricas negras de inclusão social
40
. 1922. O movimento da Independência. São Paulo: Companhia Melhoramentos.
LIMA, V. C. 1964. “Ainda sobre a Roma negra”. Diário de Notícias, 12 jan.
MARSHALL, T. H. [1963] 1977. Class, citizenship, and social development:
essays. Chicago/Londres: University of Chicago Press.
MNU. 1982. “Programa de ação”. Texto aprovado no III Congresso do
MNU. Belo Horizonte (mimeo.).
NASCIMENTO, Abdias. 1968. “Depoimento”. Cadernos Brasileiros, no 47.
. 1978. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
NASCIMENTO, J.; GAMA, H. (orgs.). 2009. Manoel Querino: seus artigos na
revista do IGHB. Salvador: IGHB.
RAMOS, A. 1937. As culturas negras no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
ROBESON, P.; PATTERSON, W. 1970. We charge genocide: the historic
petition to the United Nations for relief from a crime of the United
States government against the negro people. Nova York: Civil Rights
Congress/International Publishers.
SANTOS, J. T. 2005. O poder da cultura e a cultura do poder. Salvador: Edufba.
SANTOS, W. G. 1979. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus.
SCHWARCZ, L. M. 1993. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia
das Letras.
SEVCENKO, N. 1998. “Introdução: o prelúdio republicano, astúcias da
ordem e ilusões do progresso”. In: História da vida privada no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras (vol. 3).
. [1985] 2010. A Revolta da Vacina. São Paulo: Cosac Naify.
SKIDMORE, T. 1974. Black into white: race and nationality in Brazilian thought. Durham: Duke University Press.
TROCHIM, M. R. 1988. “The Brazilian black guard: racial conflict in post-abolition Brazil”. The Americas, vol. 44, no 3, pp. 285-300.
TURNER, B. 1990. “Outline of a theory of citizenship”. Sociology, vol. 24,
pp. 189-217.
VENTURA, R. 1991. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no
Brasil (1870-1914). São Paulo: Companhia das Letras.
OLIVEIRA VIANNA, F. J. 1959. Raça e assimilação. Rio de Janeiro: José Olympio.
VIANNA, L. W.; CARVALHO, M. A. R. “República e civilização brasileira”,
Estudos de Sociologia, n. 8, 2000, pp. 7-33.
VON MARTIUS, K. F. [1845] 1956. “Como se deve escrever a História do
Brasil”. Revista de Historia de América, no 42, pp. 433-458.
WEFFORT, F. 1992. Qual democracia? São Paulo: Companhia das Letras.
Lua Nova, São Paulo, 85: 13-40, 2012
O protesto negro no brasil contemporâneo
(1978-2010)
Flavia Rios
A expressão “protesto negro” marcou a literatura acadêmica sobre movimentos sociais no Brasil porque abarcava toda
sorte de ação coletiva de combate ao preconceito de cor.
Desde os famosos escritos de Florestan Fernandes e Roger
Bastide, esse termo se fixou na linguagem dos pesquisadores, de modo que George Andrews (1991) consolidou essa
ideia ao chamar de “protesto negro” as diversas formas de
manifestação de desagravo ao racismo produzidas pelos
negros dos finais do Oitocentos até o centenário da Abolição. Embora esse sentido amplo guarde um significado caro
aos estudos das relações raciais, o “protesto” aqui será utilizado analiticamente para investigar o “repertório de ação”
(Tilly, 2005) desse movimento social. Isso porque se antes
tal terminologia era útil para apreender as diferentes manifestações negras organizadas, atualmente seu uso generalista pode ofuscar a análise sobre as mobilizações contemporâneas, que já são mais complexas e extensas, vistas em
contraste com as formas de períodos anteriores.
Assim nos interessa separar o protesto das práticas
coletivas no interior de organizações e espaços negros. O
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
O protesto negro no Brasil contemporâneo
42
protesto – como as marchas, passeatas, paradas, ocupações
e desfiles pelas ruas –, nos ensina Tilly, assume franco objetivo de ser evento público, cuja função é chamar a atenção
da sociedade e das autoridades, preferencialmente através
dos holofotes ou das notícias impressas através das quais
ganham mais visibilidade. Mais importante do que isso,
os atos públicos são fontes privilegiadas para apreender o
movimento como um todo: as alianças, as bandeiras, os oponentes, as organizações, as lideranças, os símbolos, as identidades coletivas e os discursos. Ademais, as marchas públicas
permitem visualizar a trajetória do movimento social ao longo do tempo, sendo possível a verificação das regularidades
dos eventos, bem como as suas possíveis inovações.
Realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São
Paulo, em 1978, o ato do Movimento Unificado Contra a
Discriminação Racial (MUCDR)1 representou a forma de
protesto social que o movimento negro no Brasil assumiria doravante, tomando os espaços públicos abertos como
palco privilegiado de manifestações. Se os anos de 1970 e
1980 viram florescer o protesto reivindicativo, no limiar do
novo século os eventos públicos ganharam aspectos mais
expressivos. O exemplo paradigmático desse fenômeno
é a Marcha Noturna pela Democracia Racial, que ocorre
na capital paulista há mais de uma década. Essa mudança
pode estar relacionada à estrutura de “oportunidade política” (Tarrow, 1998; Tilly, 2005) alavancada com os processos
de democratização do Brasil e ampliada pelas iniciativas
dos atores coletivos diretamente interessados na pauta dos
direitos sociais.
Sem estrutura para grandes mobilizações de massa em
seus atos públicos iniciais, o movimento precisou construir
amplas alianças através de suas entidades de base e coletivos
1
No processo de construção de sua identidade, o MNUCDR passou a se chamar
tão somente MNU, Movimento Negro Unificado.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
organizados, para atingir um número razoável de pessoas
em seus eventos. Além disso, a mobilização negra brasileira
contava com outro obstáculo, o qual foi enfaticamente problematizado pela literatura acadêmica e recebeu de Hanchard ([1994] 2001) sua melhor formulação, qual seja: a
hegemonia da democracia racial na cultura brasileira atuava como elemento desmobilizador das massas2. Isso levantaria um tipo de problema para os ativistas negros que não se
restringia ao campo econômico e político, mas, sobretudo,
ao cultural.
Porém, desde a pesquisa de campo realizada por
Hanchard, nos anos de 1988 e 1989, até hoje houve muitas
mudanças no país e no interior do movimento negro. Com
o fito de mostrar esse quadro de modificações ao longo do
tempo, serão objeto de análise o Ato Público de Fundação
do MUCDR (1978), as marchas do Centenário da Abolição (1988), a Marcha do Tricentenário de Zumbi (1995)
e a Marcha Noturna pela Democracia Racial (1997-2010),
mediante os quais as transformações na encenação pública
da luta social podem ser vistas de uma perspectiva processual.
As manifestações de rua marcaram o retorno da política negra à cena pública brasileira nos anos 1970. De lá para
cá, cada vez mais, os atos do movimento negro têm tomado uma forma expressiva, litúrgica e pedagógica perante a
sociedade e o Estado, enquanto outras formas de reivindicação puderam ganhar espaços institucionalizados de negociação, a exemplo das plataformas partidárias, das lutas
judiciais, dos compromissos com os órgãos internacionais
e com o poder público. Isso não torna as marchas, os atos e
as ocupações objetos de menor relevância para o estudo dos
movimentos sociais. Muito ao contrário, no protesto ence2
Essa foi a principal hipótese aventada por Hasenbalg ([1979] 2005) e retomada
por Hanchard, que demonstrou os dilemas da desmobilização negra no Brasil devido ao mito da democracia racial, seja como ideologia difusa na sociedade, seja
como política de Estado.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
43
O protesto negro no Brasil contemporâneo
na-se o enredo do conflito social, em sua forma simbólica e
coletivamente organizada.
Na luta política, o movimento negro tenta imprimir
um novo significado à ideia de Brasil e a história do país
torna-se objeto de litígio. No tempo presente, luta-se pela
narrativa do passado, recontada para legitimar as pautas de
reivindicações sociais postas na cena pública. No protesto,
busca-se, ainda, dar vivacidade à memória em retalhos, costurada pelos ativistas e carregada de emoções, sentimentos
e significados para o coletivo político e, em especial, para
cada sujeito envolvido na mobilização social. Nas mãos,
ergue-se a bandeira do igualitarismo, tema que ganhou centralidade no ideário do grupo mobilizado nas últimas décadas do século XX.
O ato de refundação do movimento negro
44
O primeiro marco dos protestos reivindicativos do movimento negro contemporâneo foi o ato público promovido
nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, no dia 7
de junho de 1978, quando um conjunto de organizações
negras de diferentes partes do país decidiu aderir ao movimento que visava combater a “discriminação” e defender
“uma verdadeira democracia racial”3. Comungava com essa
carta de interesses o objetivo de “ampliação do movimento”, seja pela adesão de outras entidades negras, seja pelo
apoio dos “setores democráticos da sociedade”.
A decisão de sair às ruas em protesto esteve sustentada
numa avaliação ponderada de seus líderes, que perceberam
a necessidade de dar mais visibilidade ao problema da discriminação racial, categoria central na nova gramática política
desse movimento, quando contraposta aos ciclos de mobilização anteriores, que tinham no preconceito de cor o seu eixo
argumentativo (Guimarães, 2008). Tal mudança vocabular
Carta aberta do Movimento Negro Unificado, citada em Gonzalez (1982, pp. 48-49).
3
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
não significaria uma simples atualização da linguagem política contemporânea. A persuasão discursiva do movimento
passou a dizer tanto sobre formas de combate às injustiças de cunho racial como acenava para transformações no
padrão de valores da sociedade. Nesse sentido, uma das inovações dessa mobilização foi justamente focalizar sua pauta
reivindicativa em temas que vão desde as liberdades civis dos
negros, cujas vidas se viam ameaçadas pelas abordagens policiais informadas por estereótipos raciais, até a necessidade
de garantir tratamento igualitário no mercado de trabalho.
A geração que assumiu a reponsabilidade de liderar o
movimento social nasceu entre as décadas de 1940 e 1950,
originou-se de camadas sociais populares e, em menor proporção, de estratos médios urbanos. O ingresso e a permanência nas universidades brasileiras durante a ditadura militar foi um determinante estrutural na trajetória dessa juventude. Frutos do “milagre econômico” (Rufino, 1982), jovens
negros que ingressaram nos estabelecimentos de terceiro
grau viram-se confrontados com mobilizações estudantis e
engajamentos políticos antiditadura, correntes e formações
partidárias clandestinas, todas inspiradas pelo ideário da
esquerda política.
Inseridos numa rede social ampla, esses jovens passaram também a movimentar-se no sentido de problematizar
a questão racial no seio desses setores autonomeados “progressistas” ou de “vanguarda”. Nesses espaços, boa parte
dessa juventude construiu sua formação política, dialogando com os movimentos sociais e sindicais, contestadores da
ordem militar; realizando reuniões políticas em espaços de
resistência ao regime, como universidades, instituições religiosas, centros estudantis, organizações partidárias e redações de jornais alternativos; questionando os alicerces da
identidade nacional e conspirando, assim, contra o “mito
da democracia racial”, construção ideológica que tornava
cúmplices as elites do Estado e a sociedade civil submersa.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
45
O protesto negro no Brasil contemporâneo
46
Dessa efervescência política, formaram o Movimento Contra a Discriminação Racial, originariamente composto por
negros e outras minorias étnicas (como os judeus), apresentando-se na arena pública como entidade guarda-chuva das
lutas contra o racismo.
Influenciados nacionalmente pelos movimentos políticos de esquerda, pelo novo sindicalismo e pelas mobilizações estudantis (Gonzalez, 1982; Hanchard, 2001; Guimarães, 2001), os ativistas não apenas interpretaram esse
ambiente político como sendo propício para a construção
de um movimento nacional contra o racismo, como se utilizaram da rede social e de estratégias políticas da esquerda brasileira para construir uma ação coletiva antirracista
(Hanchard, 2001). Parte significativa da intelectualidade
negra, que sustentava teoricamente o movimento, articulou
a linguagem marxista, notadamente no uso do conceito de
classe, com a crítica social traduzida em termos raciais. Não
por acaso, estampado em quase todos os panfletos e manifestos políticos dessa época estava o jargão raça e classe. Nessa rasura ideológica, os intelectuais e as principais lideranças negras construiriam um discurso radical e contencioso,
denunciando as práticas coletivas e representações sociais
dos próprios setores progressistas do país.
A ideia de consciência negra como simbologia máxima
do despertar crítico, simultaneamente individual e coletivo, do negro brasileiro, construiu-se num campo interpretativo que permitia acesso ao universo cognitivo dos intelectuais e dos ativistas de inspiração marxista, assim como
era capaz de dialogar e importar “matérias simbólicas”
(Ortiz, 1985) dos movimentos negros norte-americanos e
africanos em suas lutas por emancipação. Todavia, ao invés
de se contentarem em copiar passivamente as categorias,
símbolos e estratégias das lutas internacionais, os ativistas e
suas lideranças cuidaram de recriá-los à luz das peculiaridades de nossa realidade sócio-histórico-cultural, a exemplo
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
de Zumbi como herói nacional (Cardoso, 1986; Saillant e
Araujo, 2006). Tanto é assim que pesquisadores estrangeiros, ao analisarem as mobilizações nacionais desse período, decepcionam-se por estas não tomarem como modelo
ações bem-sucedidas em seus países da luta pelos direitos
civis (Bairros, 1996).
A legitimidade política do movimento apoiou-se também nos setores antirracistas da academia, que já tinham
realizado estudos sobre o preconceito de cor e as desigualdades raciais (Guimarães, 1999), e nas alianças conquistadas junto aos movimentos de base identitária não classista,
como o movimento feminista e, mais discretamente, a emergente mobilização dos homossexuais4. Para a formação dessa
rede de ativismo, as ativistas negras foram centrais, porque
transitavam nesses diferentes círculos de mobilização, agenciando as ideias políticas, traduzidas naqueles anos pela luta
contra o racismo e o sexismo. Lélia Gonzalez foi a intelectual
orgânica que melhor expressou essa conexão ao insistir nas
alianças entre raça, classe e sexo (Ratts e Rios, 2010).
A luta antirracista fez-se, então, em diálogo, e também em concorrência com diversas tendências políticas e
sociais, muitas das quais se incorporaram ao repertório do
movimento negro, sem dúvida alguma devido às trajetórias,
trânsitos e identidades sociais de seus ativistas, que longe
de pertencerem a um movimento único, circulavam em
diferentes espaços políticos, ampliando o raio de sua ação e
absorvendo ideias e valores conciliáveis com seu ideário de
igualdade. A despeito dessa circulação intensa, havia o desafio central para esse ativismo: a defesa da sua autonomia
frente às demais organizações da sociedade civil. Delimitar
as fronteiras do movimento negro era o desafio que suas
lideranças e seus intelectuais teriam que enfrentar, uma vez
4
A esse respeito, ver exemplares do jornal Lampião de Esquina, produzido nos
anos finais da década de 1970.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
47
O protesto negro no Brasil contemporâneo
que esse era um dos grandes imperativos de sobrevivência
de todas as mobilizações emergentes naquele período (Cardoso, 1987; Kowarick, 1987).
Estrategicamente, a escolha dos ativistas não deixava
dúvida: o protesto de rua era a nova aposta para a mobilização negra que, até então, por conta da repressão militar, esteve restrita a encontros, reuniões e seminários. Eles
sabiam que o ato constituía um marco para o seu repertório
de ação e que as ruas passavam a ser espaços de denúncia:
Hoje estamos na rua numa campanha de denúncia!
Campanha contra a discriminação racial, contra a
opressão policial, contra o desemprego, o subemprego
e a marginalização. Estamos nas ruas para denunciar as
péssimas condições de vida da comunidade negra. Hoje
é um dia histórico. Um novo dia começa a surgir para o
negro! Estamos saindo das salas de reuniões, das salas de
conferências e estamos indo para as ruas. Um novo passo foi
dado na luta contra o racismo5.
48
O relato do então funcionário do Sistema Metroviário
do Estado de São Paulo e estudante de economia da USP,
Milton Barbosa, é bastante esclarecedor. Vindo da agremiação clandestina denominada Liga Operária e do Centro de
Cultura Negra, o Cecan, um dos embriões do MNU6, Milton
oferece informações valiosas acerca do estado de espírito
das lideranças paulistas que encabeçavam o ato: “no dia,
nos encontramos na galeria Nova Barão e saímos meio que
abraçados uns com os outros”7.
Amauri Mendes, já formado na UFRJ em Educação Física, e fundador da Sociedade de Intercâmbio Brasil-Africa
Carta aberta do MNU, citada em Gonzalez (1982, pp.48-49; grifos meus).
Para mais detalhes da trajetória do Cecan e sua relação com MNU, ver Joana
Silva (1994).
7
Depoimento Milton Barbosa concedido a Alberti e Pereira (2007, p. 151).
5
6
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
(Sinba) – uma das organizações que assinou a carta de fundação do MNU – veio do Rio de Janeiro para o evento. A
sua fala reforça a insegurança e o medo que atingiam os ativistas. “Todos pareciam muito receosos, já que a possibilidade de repressão poderia ocorrer: E quem vai dar o primeiro
passo? Isso era uma interrogação porque a polícia estava ali
para reprimir […] Ninguém sabe quem foi primeiro”8. Não
era para menos: tratava-se do evento inaugural. E essa aparição pública foi flagrada pelos olhares atentos da mídia paulista e também não escapou ao interesse do Departamento
da Ordem Política e Social (Dops), que espionou o movimento negro ao longo da década de 1970 (Kössling, 2007).
A grande liderança esperada era Abdias do Nascimento, que, ao rememorar o evento, enfatizou o quão marcante
foi aquele protesto. Em sua opinião, a manifestação era a
expressão da consolidação de uma nova militância, gestada
durante os anos 1970:
O ato público nas escadarias do Teatro Municipal de São
Paulo foi um momento inesquecível ainda em pleno regime
militar. Na Bahia, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e
em São Paulo, participamos de reuniões de consolidação
do movimento […]. Foi ao mesmo tempo um início e
um momento culminante, pois a fundação do MNU deu
expressão a toda uma militância negra, que vinha se firmando
através da década de 1970 (Nascimento, 2000, p. 219).
Certamente, o ato de 1978 teve o caráter explicitamente contestatório e reivindicativo, sobretudo porque naquele momento não havia ainda nenhum tipo de organização
pública que pudesse servir de canal para demandas do
movimento. A reivindicação, numa perspectiva estrutural,
exigia o reconhecimento da existência de racismo e desi Depoimento concedido a Alberti e Pereira (2007, p. 153).
8
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
49
O protesto negro no Brasil contemporâneo
gualdade social entre as raças, uma vez que o discurso oficial da ditadura militar baseava-se no mito da democracia
racial, como afirma Guimarães:
Nos anos de ditadura militar, entre 1968 e 1978, a
“democracia racial” passou a ser um dogma, uma espécie de
ideologia do Estado brasileiro.
Ora, a redução do antirracismo ao antirracialismo, e
sua utilização para negar os fatos de discriminação e as
desigualdades raciais, crescentes no país, acabaram por
formar uma ideologia racista, ou seja, uma justificativa da
ordem discriminatória e das desigualdades raciais realmente
existentes (1999, p. 66).
50
Numa perspectiva contextual, os acontecimentos imediatamente anteriores à formação do MNU foram tomados
pelos ativistas como exemplos intoleráveis da discriminação no país. Tratava-se do assassinato do primo de um dos
integrantes do movimento e da discriminação contra atletas negros barrados à porta do famoso Clube de Regatas do
Tietê. No calor das emoções, esses eventos foram decisivos
para impulsionar a atividade pública nas escadarias do Teatro Municipal.
Assim, o ato de fundação – mesmo depois que o MNU
deixou de ser a sigla guarda-chuva das reivindicações negras
–, tornou-se um marco referencial na história do país, porque marcou a entrada de uma nova campanha política de
cunho antirracista com projeção nacional. Sueli Carneiro,
hoje uma das maiores lideranças do movimento e naquela
época apenas uma jovem ativista, considera que a manifestação foi o “fato político mais importante para o movimento negro contemporâneo […], porque tudo o que ocorre
depois se referencia a esse ato inaugural de refundação”9.
Depoimento de Sueli Carneiro concedido a Alberti e Pereira (2007, p. 148).
9
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
De fato, o protesto inscrevia-se no repertório de ação desse
movimento social que passava a figurar como mais uma das
expressões públicas de uma sociedade fortemente mobilizada contra a ditadura.
As marchas do centenário da Abolição
Depois do protesto das escadarias, em 1978, o centenário
da Abolição em 1988 entrou para a história do movimento
negro como o segundo marco nacional da luta antirracista contemporânea. Ao contrário da fundação do MNU, a
onda de manifestações que questionou a data comemorativa de 13 de Maio possuiu maior alcance, seja porque se
tratava de momento simbólico para a nação, seja porque
foi realizada nas proximidades da campanha pela reforma
constitucional. Não era para menos: tratava-se de uma oportunidade política francamente aberta para a consolidação
do movimento negro na cena política nacional.
Dez anos depois do ato no Teatro Municipal, tudo era
um pouco diferente. Não só o movimento tinha se modificado, como também a conjuntura nacional estava em
mudança: os ventos democráticos assobiavam mais na sociedade civil e nas estruturas estatais. De um lado, havia um
processo franco de expansão e diversificação do movimento
negro, revelado, sobretudo, na formação de novas organizações e na constituição dos coletivos de mulheres negras,
que ampliaram o repertório discursivo do movimento, com
a inclusão das questões de gênero e sexualidade. De outro
lado, o movimento conquistara alguns espaços institucionais, como foi notado por Hanchard: “o protesto afro-brasileiro do fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 levara à
criação de assessorias e comissões no Rio de Janeiro e São
Paulo” (2001, p.169). Assim, o protesto do 13 de Maio contava com outras condições objetivas de realização. Era, sem
dúvida alguma, um movimento com mais recursos institucionais e mais experiência de ativismo.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
51
O protesto negro no Brasil contemporâneo
52
Os analistas não deixaram de perceber os impactos do
contexto do centenário para a vida política nacional, sobretudo no que se refere à intervenção contundente do movimento negro. Lilia Schwarcz (1990) percorreu diversos
eventos em São Paulo por ocasião do 13 de Maio. Muitas
dessas atividades públicas tinham caráter oficial ou eram
realizadas em espaços institucionais como universidades,
bibliotecas e museus. Em sua descrição, percebe-se que
houve uma mobilização grande por parte do Estado e instituições públicas no sentido de promover reflexões acerca
do centenário. Mas o que a autora não sabia à época era
que parte de tais eventos vinha das formulações de ativistas
negros no interior de órgãos estatais, como o Conselho da
Condição Feminina e o Conselho da Comunidade Negra10.
Muitos outros autores flagraram esses protestos através
das lentes dos repórteres dos jornais brasileiros. No Rio de
Janeiro, a “Marcha dos negros contra a farsa da Abolição”
ocorreu no dia 11 de maio de 1988, na avenida Presidente Vargas, em frente ao Panteão de Caxias. Esse evento foi
reprimido pelo comando militar, que mobilizou seiscentos soldados. Para o historiador José Murilo de Carvalho, a
principal reivindicação dos negros dizia respeito às alterações das condições de vida da população afro-descendente,
por conta disso não se justificava a investida militar. Em suas
palavras: “mesmo admitindo que houvesse da parte dos
manifestantes a intenção de protestar frente ao Panteão,
a reação militar, nos termos que se deu não se justificava”
(2005, p. 156).
No caso carioca, tratava-se de uma situação em que o
“movimento negro estava sozinho”, segundo um dos coordenadores da Marcha, Ivanir dos Santos, pois “os partidos
de esquerda não estavam envolvidos”11. Mas, com o impacto
10
Depoimentos de Edna Roland e Sueli Carneiro consultados no Acervo do
CPDOC-FGV.
11
Entrevista consultada no Acervo do CPDOC-FGV.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
do protesto frente à opinião pública, causado pela repressão policial, muitos grupos políticos organizados apoiaram
a manifestação, sobretudo porque o embate entre o Exército e o movimento social rendera espaços nos meios de
comunicação.
Jacob Gorender também fez uma “cobertura” das marchas negras, usando para isso os diários locais. Segundo ele,
“desde passeatas de rua a congressos acadêmicos, os eventos
relacionados com a data se salientaram pela tônica da negação: não houve abolição. Em vez de festejo, repúdio” (Gorender, 1990, p. 5). Para o historiador, ao repudiar os eventos
comemorativos do 13 de Maio, as mobilizações negras estavam fazendo “um julgamento de um fato histórico”, qual seja,
a Lei Áurea, assinada em “pena de ouro” pela princesa Isabel.
Como não foi uma marcha centralizada, a exemplo da
fundação do MNU, as campanhas de rua em 1988 provocaram agitações em diferentes partes do Brasil. Gorender assinala que as discussões acerca do centenário já eram emocionantes desde o ano anterior, quando os ativistas negros incitavam a opinião pública com panfletos e debates críticos ao
centenário da Abolição. Esse autor também narrou vários
acontecimentos em diferentes cidades, como São Paulo,
Recife e Salvador. Em todos os casos, atitudes e símbolos se
repetiam seja porque queimavam uma boneca, seja porque
falavam no enterro da senhora imperial: ambos simbolizando a morte da Princesa Isabel. Tendo em vista a consulta em
diferentes jornais, o historiador afirma: “as comemorações
ficaram apagadas e depreciadas pelos protestos dos movimentos negros na rua” (Gorender, 1990, p. 91).
Na composição do músico maranhense Tadeu de Obatalá vemos a história “oficial” do Brasil ser criticada ao sabor
das passeatas de 1988. Durante o carnaval daquele ano,
o bloco-afro Akomabu organizou um protesto contra as
comemorações do centenário em São Luís, mas foi impedido de sair às ruas, porque as autoridades locais suspeitaram
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
53
O protesto negro no Brasil contemporâneo
de que haveria alguma manifestação política12. Sem aceitar
as restrições do governo, os ativistas negros saíram à avenida
de surpresa “no ritmo do bloco [.…] com a mão erguida”13,
cantando:
13 de maio a nação nagô
não faz festa não
não faz festa não
Em protesto ao dia que diz que o libertou
E marginalizou, jogou na outra escravidão
Eu não vou festejar redentora que a história diz por aí
Redentora pra mim, foi Luiza Mahin, Pedro Ivo, Negro
Cosme e o Grande Zumbi
Recusa nação nagô falso herói que a história quer te dar
Te lembra de heróis que a chibata,
o chicote, tentaram sufocar14.
54
Nessa investida agressiva contra o 13 de Maio, o movimento não sepultava apenas uma data comemorativa alusiva à liberdade dos negros: introduzia-se na cena histórica
um novo marco reivindicatório, que tinha em seu horizonte o igualitarismo. É nesse sentido que o movimento negro
ergue a figura de Zumbi como símbolo da resistência negra.
Não se trata apenas da troca simbólica de uma princesa
branca por um guerreiro palmarino. Houve, em verdade,
a assunção do tema da igualdade como bandeira política. A marcha da história fazia coro ao poema de Oswaldo
de Camargo, cuja crítica ganhava eco nas lutas políticas de
então: “já não há mais razão para chamar as lembranças e
12
É possível levantar a hipótese de que em capitais de alguns estados nordestinos,
os blocos afros, como o Ilê Ayiê, são exemplos singulares de protesto, particularmente em sua gênese. Esta seria uma singularidade que o ativismo das outras
regiões do Brasil não desenvolveu.
13
Depoimento de Magno Cruz concedido a Alberti e Pereira (2007, p. 267).
14
No ano de 1988, Tadeu de Obatalá compôs essa letra para Bloco Afro Akomabu,
em São Luís, do Maranhão.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
mostrá-las ao povo em maio”. É como se todos dissessem
uma só voz: aqui jaz a Senhora Liberdade15.
A marcha do tricentenário de Zumbi dos Palmares
A década de 1980 assistiu atenta aos ativistas negros darem
às costas para a data comemorativa do 13 de Maio, mas também viu o crescimento gradativo das romarias anuais em
direção à Serra da Barriga, bem como o aparecimento de
passeatas e eventos públicos no 20 de novembro nas ruas
de diversas capitais brasileiras. As marchas ritualísticas chegaram a culminar na criação do Memorial Zumbi dos Palmares no estado de Alagoas, contudo seu efeito mais significativo foi a renovação das energias utópicas dos ativistas
negros e o fortalecimento de sua identidade coletiva ancorada nas memórias da escravidão. Por sua vez, os militantes
espalhados em todas as partes do país passaram a difundir a
figura do guerreiro palmarino como símbolo de resistência
política e cultural. Nesse caso, era mesmo o cultivo de um
sentimento no âmbito do Estado-nação, isto é, significava a
projeção de um símbolo político para além das fronteiras
do movimento social.
Essa trajetória de mobilização sistemática teve seu ápice
num grande evento em meados da década de 1990, cujo
saldo foi o estabelecimento do terceiro marco do protesto
negro contemporâneo: a Marcha do Tricentenário da Morte de Zumbi16. Os ativistas com experiência de realização
de passeatas em seus estados17 passam a trabalhar por uma
15
Os textos de Guimarães e Jesus, publicados neste dossiê, exploram justamente o
caráter limitado da liberdade que o povo negro comemorou em 1888.
16
Essa data já era cotada pelo movimento desde 1971, segundo Silveira (2003).
17
No livro 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil, o fotografo Januário
Garcia registrou várias caminhadas de protesto em Alagoas, Brasília e, sobretudo,
no Rio e Janeiro, ao longo dos anos 1980 e início dos 1990. Todas tinham como
mote principal a homenagem a Zumbi dos Palmares, como a campanha carioca
de 1983, cujo tema era “Zumbi vive”. Ao longo desses anos foi construído um
consenso em todo país acerca do Dia Nacional da Consciência Negra, o 20 de
Novembro (Garcia, 2006).
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
55
O protesto negro no Brasil contemporâneo
56
manifestação nacional, unificadora do movimento social
já marcado por diversificadas e numerosas organizações.
A caminhada pela Explanada dos Ministérios, em Brasília,
aconteceu numa segunda-feira do dia 20 de novembro de
1995, na gestão de Fernando Henrique Cardoso.
Cerca de 30 mil pessoas caminharam em rememoração
ao tricentenário da morte do herói quilombola, em cuja
passeata via-se o seguinte lema: “Contra o racismo, pela
cidadania e a vida”. No documentário da Marcha Zumbi
dos Palmares18, as passagens editadas mostram os ativistas
cantando e dizendo em alto e bom tom as seguintes frases
de efeito: “Reaja à violência racial!”; “Negro também quer
poder!”; “Palmares! Zumbi! Assim eu resisti!”; “Queremos
escola, queremos emprego!”; “Zumbi vive, Racismo, não!”.
Essas cinco palavras de ordem são, provavelmente, apenas
algumas dentre vários dizeres coletivos pronunciados ao
longo da caminhada. Neles, mesclam-se problemas de
ordem econômica, educacional e de representação política,
bem como a denúncia da desigualdade e discriminação.
Enquanto as pessoas seguiam o curso da marcha pelas
esplanadas, no caminhão de som, levantavam-se algumas
lideranças e personalidades artísticas e parlamentares, dentre elas, Benedita da Silva, que, durante sua primeira legislatura como deputada federal, atuou na Assembleia Nacional
Constituinte em favor da causa negra, indígena e de outros
segmentos sub-representados, o que lhes valia a alcunha de
Algumas das palavras de ordem do evento foram captadas pelas filmagens feitas
para a elaboração do audiovisual sobre a passeata, o qual, aliás, tem o mérito de
coletar imagens e discursos de importantes líderes no calor do evento. Contudo
apresenta forte viés ideológico, a se notar pelas preferências partidárias e pela
quase ausência de líderes de organizações negras rivais. Mas para efeito de nossa
argumentação, o filme é uma fonte relevante, em que pese o enfoque nas lideranças da CUT e do PT. O documentário foi realizado pela Ipê-vídeos produções.
Dentre os apoiadores encontram se o MNU-DF; CUT; Sindicato dos Jornalistas;
Ministérios dos Direitos Humanos, dentre outros. O roteiro e direção foram de
Edna Cristina, com narração de Chico Sant’Anna e texto e edição realizados por
Roberto Menezes.
18
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
minorias políticas. Naquele dia, ela discursava em tom eloquente: “Nós queremos que esse Brasil mostre a sua cara
negra”19. Numa evidente demonstração de descontentamento com a representação nacional do brasileiro, a então
senadora opõe-se à versão mestiça do país e convoca o orgulho negro, especificamente da mulher negra, uma identidade autônoma que vinha ganhando fôlego nos últimos anos
em interface com o movimento feminista.
Esse evento já acena para um elemento novo em relação às marchas anteriores. O apoio ao movimento negro
parece ter crescido e se tornado mais explícito, composto
por alianças diversas, como organizações de comunidades
rurais, associações de trabalhadores, sindicatos e movimentos populares, só para ficar com alguns exemplos. Bandeiras
partidárias se fazem notar ao lado de faixas de organizações
sindicais e banners da passeata. E isso foi tão importante para
o movimento que um dos membros da comissão nacional da
marcha e integrante do MNU, Edson Cardoso, fez questão
de registrar o empenho do então presidente da CUT:
Gostaríamos de fazer uma menção especial à participação
de Vicente Paulo da Silva, Vicentinho, presidente da
Central Única dos Trabalhadores (CUT), que desde a
aprovação da proposta da Marcha levada pelo Movimento
Negro unificado (MNU) ao encontro de sindicalistas
negros cutistas, realizado em maio de 1995, em Brasília,
desempenhou importante papel na garantia da aliança,
muitas vezes conturbada, entre o movimento negro e o
movimento sindical, sem nenhuma dúvida uma das razões
essenciais do êxito alcançado pela Marcha (Marcha de
Zumbi dos Palmares, 1995b).
Discurso extraído do documentário Zumbi dos Palmares, consultado em acervo particular.
19
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
57
O protesto negro no Brasil contemporâneo
58
O agradecimento ao sindicalista talvez não seja apenas
uma referência protocolar. Note-se bem que a referência
de Cardoso remete ao encontro de sindicalistas negros da
CUT, o que denota um tipo de relação mais antiga. Por
isso, parece não se tratar somente de uma gratidão pública referente ao empenho contextual e aos apoios eventuais
da liderança e de sua estrutura, solidarizados com a “causa
negra”, o que já poderia ser motivo suficiente para palavras
de reconhecimento. Se não é exatamente assim, então, que
tipo de alianças seriam estas? Que trocas simbólicas estavam
em jogo entre o movimento negro e o sindicalismo? Quem
é esse Vicentinho da Marcha de Zumbi? Seria o mesmo das
greves gerais do ABC paulista?
Avento a hipótese de que Vicentinho, mais do que apoiar
esse protesto como um sindicalista, estava assumindo nacionalmente o status político de líder negro. Isso pode ser notado
pelas roupas que vestia e ainda pelo modo como o sindicalista
se portava na marcha20. É possível supor que Edson Cardoso,
ao destacar a figura de Vicentinho, já não quisesse somente
agradecer a uma liderança nacional do movimento sindicalista, mas acenar para uma liderança oriunda do sindicalismo
que emergia timidamente no movimento negro, assumindo
assim as suas filiações identitárias, de negro e de sindicalista21.
Nessa marcha, compareceram cerca de 5 mil trabalhadores sindicalizados (Bento, 2000), revelando o estreitamento dos laços entre os ativistas negros e os sindicatos, o que
não se via no caso dos protestos anteriores. Se o leitor se
lembrar, durante os eventos do centenário, realçamos que os
ativistas reclamaram da ausência do apoio de outras organi-
Ver documentário da Macha Zumbi dos Palmares, consultado em acervo particular.
Essa hipótese se torna mais plausível quando observamos as representações públicas de Vicentinho enquanto legislador. No campo em que realizei esta pesquisa,
assisti a dois discursos de Vicentinho, um na marcha noturna e outro no 30o aniversário do MNU. Em ambos, declarava-se negro e comprometido com as reivindicações do movimento.
20
21
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
zações de classe. Então, essa presença expressiva de trabalhadores ligados aos sindicatos sela alianças com o movimento
negro que vinham sendo costuradas por seus militantes nos
últimos anos. Um sindicalista da CUT-MG, que participou
desse protesto, esteve atento às implicações dessas alianças:
“a partir da Marcha Zumbi pela Vida não dá mais para o
movimento sindical fechar os olhos na questão da luta contra o racismo na sociedade brasileira. E neste sentido a tendência é de ampliar cada vez mais esta aliança”22.
As alianças mais intensas entre os negros e o sindicalismo têm sido feitas há duas décadas por meio da inserção de
algumas lideranças negras nos sindicatos. Em São Paulo, essa
aproximação formal ocorreu com o Conselho Estadual da
Comunidade Negra, que promovia articulações e encontros
de sindicalistas negros, chegando a designar uma equipe de
trabalho só para organizar eventos e debates, através de um
setor voltado para as relações de trabalho23. Depois do Conselho Estadual, nos anos 1990, organizações negras como o
Centro de Estudos e Relações de Trabalho e Desigualdades,
o CEERT, atuaram fortemente na formação de quadros sindicalistas, cujo resultado se fez notar no “surgimento de órgãos
[no interior do sindicato] como o objetivo de abordar especificamente a problemática das relações raciais” (Bento, 2000,
p. 321), o que ocorreu inicialmente na Central Única dos
Trabalhadores, mas logo também alcançou outras entidades
sindicais24. As ações conjuntas com as centrais trabalhistas
expressam bem os ganhos do movimento negro no interior
Depoimento extraído do vídeo de registro da Marcha Zumbi dos Palmares, consultado em acervo particular.
23
“Em 1986, paradoxalmente a partir de uma iniciativa do Conselho da Comunidade Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do
Estado de São Paulo, um órgão governamental, foi realizado em São Paulo, o ‘1o.
Encontro Estadual de Sindicalistas Negros’, que significa um acontecimento importante entre negros sindicalistas” (Bento, 2000, p.327).
24
Por exemplo, em 1990 a Confederação Geral dos Trabalhadores fez no Rio de
Janeiro um encontro no qual aprovou a criação de uma Comissão Nacional da
CGT contra a discriminação racial (Bento, 2000, p. 328).
22
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
59
O protesto negro no Brasil contemporâneo
60
do sindicalismo brasileiro, o que pode ser notado nas Conferências Internacionais pela Igualdade Racial, ocorridas no
Brasil e nos EUA na primeira metade da década de 1990, e
na construção do Instituto Interamericano para a Igualdade
Racial, a Inspir, organizada pela CGT, CUT e Força Sindical,
em 1995, no qual Vicentinho assumiu a direção como presidente fundador (Vicentinho, 2008).
Com esse histórico de articulações, não é de se estranhar o empenho desse líder sindical, bem como a presença
numerosa de outros sindicalistas na Marcha do Tricentenário. Nascimento e Larkin (2000) consideram que essa relação de proximidade entre os dois movimentos é resultante
da inserção dos militantes negros nos sindicatos, o que teria
sido mediado pelos partidos políticos. Segundo eles, uma
vez nas estruturas partidárias, os ativistas teriam acessado os
principais sindicatos do país, influenciando-os politicamente. Desse modo, oferecem uma explicação complementar
àquela apresentada por Bento, cujo enfoque foi tanto para
estruturas estatais como para organizações não governamentais. O argumento de Nascimento e Larkin parece ainda mais convincente quando atentamos para o depoimento
de um ativista negro, inserido em partido político. Segundo
ele, na época da Marcha dos 300 anos de Zumbi, “do ponto
de vista partidário, a gente tinha, em 1995, organizações em
quase todos os partidos, seja de direita seja de esquerda: PT,
PC do B, PCB, PCB, PDT, PSB, o próprio PMDB, todos eles
já tinham agrupamentos negros”25.
Além de maior abertura na sociedade civil, que gerou
a possibilidade de assumir compromissos com demais movimentos, a Marcha dos 300 anos da Morte de Zumbi contava
com uma abertura maior das estruturas estatais. Assim, esse
evento logrou obter uma sessão solene no Congresso Nacio25
Depoimento de Flávio Jorge Rodrigues da Silva concedido a Alberti e Pereira
(2007, p. 349).
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
nal, onde o movimento tinha o apoio de alguns parlamentares, como Paulo Paim, deputado federal pelo PT-RS, que
defendia as populações quilombolas, e fazia eco às campanhas políticas negras gaúchas26.
Diferentemente de antes, a marcha representava um
ritual que culminaria com o encontro entre o presidente
da República e a comitiva nacional do movimento27. Nesse
encontro, alguns de seus ministros, como Paulo Renato e
Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, se fizeram presentes, quando os ativistas entregaram um documento formal
no qual apresentavam suas reivindicações, “denunciando o
racismo, defendendo a inclusão dos negros na sociedade
brasileira e apresentando propostas concretas de políticas
públicas” (Marcha Zumbi, 1995a). Nos dizeres de Edson
Cardoso, esse evento marcava um novo tipo de intervenção
do movimento negro junto ao Estado:
Chegamos aqui após percorrermos um longo caminho e
acreditamos que a partir desse momento a questão racial
deixar de ficar no confinamento do cultural, onde o Estado
intervém no carnaval liberando verbas para o desfile de
bloco. O que a marcha veio exigir da representação política
do Estado brasileiro é que o orçamento da união defina
recursos explicitamente para superar as desigualdades
raciais no campo da educação, no campo da saúde, da
comunicação e do emprego28.
Entrevista de Paim concedida para o documentário Marcha de Zumbi de Palmares,
consultado em acervo particular.
27
As organizações que fizeram parte da direção nacional do evento são: Agentes de Pastoral Negros (APNs), Central de Movimentos Populares, Confederação
Geral dos trabalhadores (CGT), Comunidades Negras Rurais, Central Única dos
Trabalhadores (CUT), Força Sindical, Fórum Nacional de Entidades Negras, Fórum de Mulheres Negras, Movimento Negro Unificado (MNU), Movimento Pelas
Reparações (MPR), União de Negros pela Igualdade (Unegro) e Grupo de União
e Consciência Negra (Grucon), dentre outras.
28
Depoimento extraído do documentário Marcha de Zumbi dos Palmares, consultado em acervo particular.
26
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
61
O protesto negro no Brasil contemporâneo
62
Na avaliação do ativista, surgiria um elemento novo
para a política do movimento negro dos anos 1990 em relação à década anterior. No plano estatal, uma conquista dos
protestos do centenário foi a construção da Fundação Palmares, um órgão ligado ao Ministério da Cultura, o qual
canalizava certas demandas do movimento ligadas ao campo cultural, mas sem capacidade institucional para intervir
na redução das desigualdades. Ademais, as administrações
estaduais costumam promover grupos negros apenas durante o carnaval, o que fica nítido na pesquisa de Souza (2006)
sobre o Ilê Aiyê no estado da Bahia. Diferentemente desse
tipo de relação – que se estendia para o Brasil inteiro –, a
proposta da Marcha de 1995 tinha um caráter mais ousado: o
enfrentamento das desigualdades raciais, exigindo para isso
verbas específicas do Estado para lidar com esses problemas.
A contraproposta do governo Fernando Henrique não
foi outra senão instituir um grupo de trabalho para debater
a questão de forma “criativa”29. Assim, o resultado do protesto foi o decreto presidencial que formava um Grupo de
Trabalho Interministerial (GTI) com objetivo de promover
políticas para “a valorização da população negra”.
A função do grupo seria estudar propostas para o
desenvolvimento e participação da população negra, considerando que para isso seria necessário “propor ações integradas de combate à discriminação racial”30. Um ativista do
movimento negro carioca que esteve envolvido na Marcha
do Centenário da Abolição, e, naquela década, já tinha fundado sua própria organização não governamental, o Centro
29
No seu discurso de abertura do Seminário Multiculturalismo e Racismo organizado em função do Grupo de Trabalho Interministerial, FHC incitou os pesquisadores convidados a serem criativos perante o desafio de construir políticas
públicas para população negra. Em suas palavras: “Desafio os senhores: criem. Seguramente, em um grupo tão vasto como este, além da inteligência bem-repartida,
deve haver alguns com muita criatividade. O governo está tentando explorar a
criatividade dos senhores, porque a nossa está esgotada” (Cardoso, 1996, p. 17).
30
Decreto do Presidente da República em 20 de novembro de 1995.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
de Articulações de Populações Marginalizadas (Ceap), analisando os desdobramentos do protesto de 1995, avaliou as
conquistas do movimento negro do seguinte modo:
Pela primeira vez na história do Brasil o Estado brasileiro
tem que reconhecer que ele é racista e que a sociedade é
racista e isso levou inclusive o governo brasileiro a instituir
uma comissão interministerial para tratar políticas públicas
para a população negra e isso foi um fato muito importante
e foi uma conquista da marcha31.
No discurso negro, lideranças teriam pressionado o
presidente, que respondeu imediatamente com a construção do GTI. Isso realmente aconteceu em alguma medida,
mas exigiu também articulações no interior do governo.
Um ativista negro com longa trajetória no aparelho público
estatal apresenta uma versão diferente, diminuindo o protagonismo da Marcha. Ivair Alves dos Santos, que geriu o
Conselho da Comunidade Negra do estado de São Paulo
nos anos da redemocratização e atuava naquele momento
na gestão de Fernando Henrique Cardoso, numa secretaria
do Ministério da Justiça, realça uma articulação no interior do
Estado, feita por ativistas e funcionários negros ligados
ao governo:
O GTI, como disse, foi praticamente uma reprodução em
larga escala do que a gente fez: era abrir espaço etc. e tal.
Mas, na verdade, o que nos norteava era criar bases para
que as pessoas entendessem que o racismo era uma coisa de
política pública e criar algum substrato para discutir ação
afirmativa. Quando a marcha Zumbi dos Palmares chegou
aqui, deu a impressão de que a Marcha criou o GTI. Mas
31
Depoimento de Ivanir dos Santos ao documentário Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
63
O protesto negro no Brasil contemporâneo
na verdade o GTI já estava pronto. Foi uma coisa que foi
construída no governo. Não foi feita pela sociedade civil. O
governo fez e apresentou32.
64
Mais do que uma simples confronto de pontos de vista,
o comentário indica processos de diferenciação no interior
do ativismo, apontando cada vez mais para sua institucionalização. São exatamente esses atores políticos que tencionaram no interior da burocracia estatal pela inserção de
demandas políticas oriundas do movimento social.
Sob esse prisma, se faz entender a constituição do GTI,
ligado ao Ministério da Justiça, que passou a vigorar em
1996. Ele possuía representantes de vários ministérios e ativistas do movimento negro, tendo como presidente Hélio
Santos, que dirigira na década anterior o primeiro Conselho da Comunidade Negra da cidade de São Paulo. No
evento de abertura do grupo de trabalho, FHC chamou um
grupo de intelectuais brasileiros e estrangeiros para debater
a temática e apontar algumas possibilidades de ação política. No discurso que inaugurava as atividades, lembrou aos
presentes o seu trabalho sobre relações raciais, nos anos
1950, como assistente de Florestan Fernandes. Investido de
autoridade de intelectual, o presidente também assinalou
que “o Brasil é uma nação multirracial e disso se orgulha,
porque considera que essa diversidade cultural e étnica é
fundamental para o mundo contemporâneo” (Cardoso,
1996, p.13). Mais do que uma sociedade multirracial, o presidente assinalou que o país possuía profundas desigualdades de todos os tipos, inclusive de raça, de cor e de cultura.
Diante dessa nossa formação nacional, que guardava certa
ambiguidade que nos é cara, Fernando Henrique considerava importante buscar soluções para tais problemas de
forma criativa e original. Um fato parecia consensual: era
Depoimento de Ivair Alves dos Santos concedido a Alberti e Pereira (2007, p. 355).
32
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
preciso mudanças para reverter o quadro de discriminação
por cor. Nas palavras dele:
Há uma repetição de discriminação e há a inaceitabilidade
do preconceito. Isso tem que ser desmascarado, tem de
ser, realmente, contra-atacado, não só verbalmente, mas
também em termos de mecanismos e processos que possam
levar a uma transformação, no sentido de uma relação mais
democrática, entre raças, entre grupos sociais e entre as
classes (1996, p. 16).
Apesar do discurso presidencial progressista em relação
aos problemas raciais no Brasil33, os desdobramentos das
atividades do GTI não deram resultados compatíveis ao
sofisticado nível de discussão, o qual, aliás, pretendeu assumir os problemas de desigualdade e discriminação raciais
sem se desfazer da democracia racial como um ideal da
nação brasileira. Segundo Sérgio Costa (2006), as dis­
crimina­ções indiretas contra negros, como, por exemplo,
aquelas relativas ao sistema educacional não receberam
medidas combativas. Já Telles considerou que “como resultado o governo Cardoso hesitou na concretização dos objetivos que havia colocado inicialmente” (2003, p. 175). Pelo
visto, na opinião dos analistas, o GTI parecia ser bastante
promissor em relação a medidas concretas para coibir discriminação racial, porém frustrou as expectativas de muitos
quanto à concretude das ações políticas.
Em que pese os limites do GTI para desenvolver efetivamente políticas públicas, o que nos interessa salientar é que
um novo espaço se abria no interior da esfera estatal para a
discussão da pauta levantada pelo movimento negro. A rela-
33
Muitos analistas defendem que o discurso de FHC é bastante avançado, pois ele
estaria reconhecendo a existência de racismo no Brasil e isso era um fato inédito
na história presidencial brasileira (Telles, 2003; Nascimento e Larckin, 2001).
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
65
O protesto negro no Brasil contemporâneo
66
ção entre Estado e movimento sofreu mudanças34. Em certa
medida, os pronunciamentos das autoridades nacionais já
passavam a ser estrategicamente mobilizados pelos ativistas a fim de se constituir um consenso no âmbito do poder
público acerca da existência de um problema racial no país
e da necessidade de criar condições efetivas para resolvê-lo.
Essas mudanças reverberaram sobre o próprio movimento, que interpretou aquele protesto como uma ação
vitoriosa para a mobilização negra de todo o país. Sueli Carneiro, representante executiva da ONG Geledés, avalia que
“depois do centenário da Abolição, das ações, das marchas
que fizemos por conta do centenário, a marcha Zumbi dos
Palmares pela cidadania e a vida, de 1995, foi o fato político
mais importante do movimento negro contemporâneo”35.
Certamente, esse evento fortaleceu ainda mais o movimento, que passou a usar o repertório da Marcha do Tricentenário em escala estadual e municipal para instituir o feriado
do 20 de Novembro em diferentes partes do país. Mais do
que um evento episódico ou reivindicativo, com o passar
dos anos, a marcha tornou-se também um evento do calendário da mobilização negra brasileira e tem sido realizada
anualmente em diversas capitais do Brasil, mesmo naquelas
em que o feriado já é uma conquista.
34
Do ponto de vista dos resultados concretos, o único avanço mais contundente
apontado pela literatura ocorreu no campo da saúde. Segundo Monteiro e Maio,
“a proposta de uma política com recorte racial na área da saúde pública no Brasil
só ganhou visibilidade no Governo Fernando Henrique Cardoso”. E acrescentam
que essa visibilidade veio no contexto do formação do GTI: “foi nesse ambiente de
discussão que ocorreu ainda no primeiro semestre de 1996 a mesa redonda sobre
a saúde da população negra”, o qual contava com cientistas, ativistas do movimento negros e outros técnicos das áreas de saúde. A inclusão do quesito cor/raça nos
formulários oficiais de nascimento e óbito foi uma das aquisições no ano de 1996.
Afora essa conquista, os autores elencam o programa de combate à anemia falciforme como uma das reivindicações atendidas ainda na vigência do governo FHC
(2008, p. 127).
35
Depoimento de Sueli Carneiro a Alberti e Pereira (2007, p. 345).
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
Encenando a história: Marcha Noturna pela Democracia
Racial
A marcha noturna pela democracia racial é o exemplo
mais bem-acabado de um novo perfil de protesto negro no
Brasil. Ela ocorre na capital paulista há quinze anos, sem
interrupções, desde 1996, quando um grupo de cerca de
oitenta pessoas, às vésperas do 13 de Maio, realizou uma
caminhada de aproximadamente duas horas pelo centro
velho de São Paulo, partindo da Igreja da Nossa Senhora
da Boa Morte até a Igreja do Rosário dos Homens Pretos.
Em seu histórico, a marcha contou com a participação de
organizações negras do município e região metropolitana,
sendo a entidade Instituto do Negro Padre Batista a principal responsável pela sua organização desde 1997. Naquele ano, o protesto se incorporou ao calendário turístico da
cidade, por iniciativa dos seus ativistas, tendo-se difundido
por outras cidades paulistas36.
Sua fundadora, a advogada Maria da Penha Guimarães,
conta que a ideia desse evento nada mais foi do que um
sonho, numa época em que “dormia e acordava pensando
em negro”. A trajetória e o sonho dessa ativista nos faz compreender a estrutura e o simbolismo da marcha noturna
do 13 de maio e a sua novidade: a exaltação do protesto
litúrgico e expressivo. Para tanto, traçaremos em alto relevo
a trajetória individual e a posição da ativista no entrelaçamento das áreas laborais, políticas e religiosas de sua vida,
iluminando os aspectos relevantes de sua experiência para
o processo criativo do protesto em tela.
À época de seu sonho, Maria da Penha era integrante
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e possuía um
escritório no Largo do Paissandu, em frente à Igreja do
36
Esse é o caso de Suzano, que tem realizado a Marcha Noturna, contando com o
suporte do deputado estadual do PT José Candido. Na Baixada Santista, registrou
também uma marcha noturna, que na sua quarta versão recebeu o nome “Abolição não concluída: 120 anos sem reparações” (Educafro, 2008).
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
67
O protesto negro no Brasil contemporâneo
68
Rosário. Formada na prestigiosa Escola de Direito do Recife e tendo militado no Partido Comunista (PC) durante
a sua juventude, a pernambucana chega à São Paulo no
final da década de 1970 e passa a desenvolver atividades
ligadas à sua área de formação até estabelecer o seu próprio escritório de advocacia. Na capital paulista, trabalhou
para alguns sindicatos na região do ABC que, naquele
tempo, lideravam as greves gerais do agitado cenário político brasileiro.
Maria da Penha também tinha uma trajetória marcada
pela militância política em defesa da causa racial na organização civil Instituto Negro Padre Batista, criada em 1987,
e especializada na defesa dos direitos humanos. Anos mais
tarde, a advogada viria a ficar mais conhecida pelo famoso
caso de direito internacional “Diniz versus Estado brasileiro”, muito discutido entre os anos de 2006 e 200737. Embora tenha se notabilizado por sua empreitada no âmbito dos
direitos humanos, sua importância para nós está na gênese
do protesto noturno e na densa rede social e institucional
em que estava inserida.
Segundo sua narrativa, a ativista sonhara com uma
floresta fechada onde muitos “negros rebelados fugiam
por uma mata e iluminavam seus caminhos com tochas,
vestidos de preto”. No folheto da organização da marcha,
encontramos a afirmação de que sua origem estaria atrelada a um “sonho de resistência” e a “um pedido dos orixás”. Nele a xangozeira e filha de Nanã38 aparece como
37
Trata-se do caso de discriminação da empregada doméstica Simone André Diniz, levado à Organização dos Estados Americanos (OEA). Para mais detalhes dessa batalha judicial que se revelou Diniz contra o estado do Brasil, tendo o último
perdido em tribunal internacional em favor da primeira, auxiliada tanto por entidades negras como pela OAB, ver Arantes (2007).
38
Nanã é um orixá do panteão religioso do Candomblé. A intenção da informante ao afirmar a relação entre o sonho e sua pertença religiosa era sugerir que
recebera uma revelação e, por isso, estava encarregada de cumprir alguns compromissos no mundo.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
a idealizadora da marcha. A advogada trabalhista afirma
que seu “sonho” resolvia um desejo interior de apresentar uma alternativa interessante frente às costumeiras (e às
vezes enfadonhas) “palestras” e “seminários” sobre o 13 de
Maio, que já eram tradicionais na experiência de ativismo
de sua geração.
Na OAB, ela tinha aliados naturais no grupo de trabalho que integrava a subcomissão da área de direitos humanos. Por isso, quando contou o sonho aos colegas, ela chegou rapidamente à ideia de uma marcha, ainda que com
certo receio de que a proposta de uma caminhada no 13
de Maio também fosse ouvida. Segundo a ativista, as pessoas consideraram importante interpretar esse sonho à luz
da luta antirracista que acontecia naquele momento. Como
disse ter sonhado com escravos, homens vestidos de preto
na floresta, considerou que a representação mais condizente com essa realidade deveria ser uma mensagem sobre a
Abolição. Nessa trama de amizade e ativismo se iniciou a
tessitura do protesto cujo objetivo último era a “igualdade
dos negros na sociedade brasileira”.
Fruto desse entendimento coletivo, saiu às ruas a Primeira Marcha Noturna pela Democracia Racial, que trazia
os dizeres: “Negro nas ruas na madrugada do 13 de Maio”.
Isso porque, segundo o panfleto, o movimento resolveu
“trocar o dia pela madrugada: substituir os discursos pelo
silêncio, trajar preto, usar a luz das velas no lugar da confortável luz solar e portar uma tarja branca”39. Na chamada
do folheto, está presente aquele que deveria ser, na opinião
dos militantes, um dos maiores desafios da democracia brasileira: o enfretamento efetivo da desigualdade racial.
Contudo, longe de apenas denunciar o racismo, a
forma de protesto assumida pelo movimento na marcha
39
Extraído do documento da Primeira Marcha Noturna. Consulta realizada no
Instituto do Negro Padre Batista.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
69
O protesto negro no Brasil contemporâneo
70
noturna indicava que eles estavam conscientes de uma
nova figuração da relação entre movimento negro e Estado. Diziam em seu panfleto: “os símbolos e a maneira de
protestar representam as profundas mudanças que estão
em curso na sociedade brasileira’’, resultantes dos esforços da militância negra, que enfatiza a dimensão simbólica e institucional, dentre elas a criminalização do racismo. Do ponto de vista simbólico, segundo o movimento
“o mito da democracia racial” teria sofrido “golpes mortais”, e a celebração dos 300 anos da morte de Zumbi,
celebrados em marcha em Brasília, no ano anterior, seria
exemplo disso.
Mas de onde vinha esse sonho que, sem grandes esforços, nos lembra discursos coletivamente estruturados pelo
movimento negro ao longo de sua trajetória?
A ideia da marcha noturna, quando narrada pelos ativistas, remete ao protesto nacional de 1995, servindo-lhes
de inspiração imediata, porque ocorreu apenas um ano
antes da inauguração da caminhada noturna. Mas também
teve inspiração nas marchas pacifistas pelos Direitos Civis
realizadas nos EUA, durante os anos 1960. A novidade para
os ativistas contemporâneos está no turno em que o evento ocorria. Sair à noite era uma inovação no repertório do
movimento negro, ao mesmo tempo em que se apresentava
como alternativa simbólica ao “tabu” do 13 de Maio. A data,
em suspenso, pelas restrições radicais do movimento negro,
não poderia escapar à memória, mas também não poderia
permanecer no imaginário nacional como dia folclórico.
Desse impasse, a solução original apresentada conseguia
manter o consenso estabelecido no interior do ativismo,
ao mesmo tempo em que resguardava a tradição cívica de
rememorar a liberdade dos negros.
Novidade também não havia na luta ideológica em
torno do mito da democracia racial, marcado no slogan
desse protesto. Sabemos que a disputa por imprimir um
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
outro significado à expressão “democracia racial” vem sendo realizada desde meados do século XX pelo movimento
negro. Guimarães e Macedo (2008) argumentam que esse
ideário democrático, numa versão da militância política
dos anos 1940, revela certos conteúdos do mito nacional,
mas os mesmos quase sempre apresentam críticas contundentes ao preconceito de cor no Brasil. Ao contrário do
que rezava o discurso nacional, a democracia racial negra
daquele período constituía-se pelo discurso da segunda
abolição – divulgada pela Frente Negra Brasileira – e pelas
ideias de negritude, de inspiração dos intelectuais negros
francófonos.
Desde então, o discurso pela democracia racial sofreu
algumas modificações, Mués (1991, 1998) identifica nele fissuras significativas. Em seu entender, o movimento de 1970
rompe com a ideia de democracia racial tal como divulgada
pelo Estado e passa a defender uma democracia plena, que
significa agora a luta pela igualdade efetiva para negros.
Tratava-se de um movimento duplo: a reinvenção da ideia
de nação e a defesa de um estado realmente fundamentado
num liberalismo igualitário.
O trajeto da marcha e seus simbolismos: os caminhos e
os espaços da história40
Às vésperas do 13 de Maio, um pequeno grupo de ativistas
percorrem o centro velho de São Paulo em direção ao largo
do Paissandu. Os militantes e representantes de organiza40
A fundamentação histórica dos espaços percorridos pela marcha é atribuída
pelo movimento aos esforços de pesquisa do Padre José Enes de Jesus, atual presidente do Instituto do Negro Padre Batista. Segundo seus ativistas, o padre teria
feito uma dissertação de mestrado acerca desses pontos históricos levantados pelos
ativistas; contudo, não tivemos acesso a tal dissertação. Toda a referência dos lugares em destaque pela marcha foi retirada de documentação pública da própria
marcha, das entrevistas com seus fundadores e líderes, bem como da etnografia
das marchas XI e XII. Ademais, a verificação da validade histórica das informações
obtidas nessa documentação foi realizada a partir de consulta de trabalhos historiográficos correlatos aos temas postos em relevo pela marcha.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
71
O protesto negro no Brasil contemporâneo
72
ções negras caminham pelas ruas em duas filas paralelas,
que representariam a forma pela qual os escravizados andavam em suas estratégias de fuga. Os toques de tambores ritmados ecoam pelas ruas centrais e acompanham os cânticos
de candomblés entoados pelo povo de santo. As pessoas carregam tochas acesas, que são artefatos elaborados para realização desse protesto, espécie de lamparinas artesanais que
alumiam a noite escura e ajudam a discernir os caminhos
percorridos na caminhada. Além das tochas, são recomendados o uso de roupas pretas. Em fila indiana, com tochas
acesas nas mãos e vestuário escuro – que fica mais colorido
a cada ano –, os ativistas seguem carregando cartazes das
suas respectivas associações.
A ideia da “falsa abolição” ou “abolição inacabada”
é o slogan das últimas marchas; a passeata também conta
com grandes fotografias de heróis e pessoas ilustres impressas em banners. Assim, as figuras de abolicionistas – como
André Rebouças, José do Patrocínio, Luis Gama – e de líderes de revoltas do Brasil escravagista – como Zumbi e Luiza
Mahim – são particularmente reverenciadas. Esses últimos
figuram no repertório do movimento como a imagem da
resistência negra e da liberdade. Em oposição, a narrativa
procura negar ou diminuir a ação de personagens consagrados pela história oficial, como a princesa Isabel e Joaquim Nabuco. Esses últimos só aparecem nos discursos nos
momentos em que as lideranças querem denunciá-los por
terem sido privilegiados pela história oficial, ofuscando o
protagonismo negro na conquista de sua liberdade. As imagens desses heróis são colocadas lado a lado com líderes
do movimento negro do século XX, como Adbias do Nascimento (1914-2011), Lélia Gonzalez (1935-1994) e Hamilton Cardoso (1954-1999), dentre outros. Esses intelectuais
e quadros importantes do movimento negro percorrem as
ruas de São Paulo junto a ativistas anônimos, levados pelas
entidades de base.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
A marcha noturna segue um percurso muito particular no centro de São Paulo. A Igreja da Nossa Senhora da
Boa Morte, localizada na rua do Carmo, na Sé, é o ponto
de partida e o lugar de concentração dos ativistas, que ali
aguardam a saída da caminhada. Na XII Marcha, os militantes concentraram-se nesse local embalados pelo Hino
da Negritude41, sons de rap, grupos de samba e cantos de
candomblé e umbanda, interrompidos, de tempos em tempos, por discursos de parlamentares, personalidades históricas e demais ativistas das organizações realizadoras do
evento. Mas nem sempre foi assim. A adoção de atividades
culturais para incentivar a permanência na espera da saída
da marcha foi adotada como uma estratégia para garantir
um número maior de pessoas. Trata-se de uma inovação
que apareceu aos poucos com a função de constituir uma
dimensão lúdica para os integrantes da marcha, atraindo
também a atenção dos transeuntes vindos do trabalho.
A escolha da Igreja da Boa Morte explica-se por ser
“onde escravos ‘rebeldes’ e condenados recebiam as últimas ‘bênçãos’ antes de serem executados” 42 durante o
regime escravista. Para os organizadores da III Marcha
Noturna: “esta igreja guarda o lamento de escravos condenados, que antes da sua execução passavam por ela a fim
de expressar à Nossa Senhora um último desejo – ‘uma
boa morte’”43.
41
O Hino da Negritude foi composto por Eduardo Oliveira e registrado na Escola
Nacional de Música da Universidade do Brasil, em 1966. O próprio compositor,
na marcha, rege o canto solene diante da plateia que o acompanha. Algumas passagens da canção merecem destaque, porque convergem com os ideais da marcha
noturna: “Que saibamos guardar estes símbolos/De um passado de heróico labor/Todos numa só voz/Bradam nossos avós:/Viver é lutar com destemor/ Para
frente marchamos impávidos/Que a vitória nos há de sorrir/ Eia, pois, cidadãos/
Somos todos irmãos/Conquistando o melhor porvir”. E no estrebilho, encontra-se: “ergue a tocha no alto da glória/Quem herói, nos combates, se fez/Pois, que
as páginas da história,/São galardões aos negros de altivez”.
42
Documento da X Marcha Noturna, consultado no Instituto do Negro Padre Batista.
43
Documento da III Marcha Noturna, consultado no Instituto do Negro Padre Batista.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
73
O protesto negro no Brasil contemporâneo
74
Os arredores da igreja também são repletos de significados para seus ativistas, por exemplo, na esquina da rua do
Carmo com a rua Tabantiguera, que “guarda a memória da primeira forca de São Paulo”44, e a Praça da Sé, que possuía um
pelourinho rememorado nos discursos realizados durante a
caminhada. Se o passado escravista era relembrado naquele local, havia outro significado também importante para
os militantes: a Igreja da Boa Morte tornou-se desde os anos
1980 a sede nacional dos Agentes da Pastoral dos Negros
(APN), os quais são ativos na construção da marcha. Assim,
memórias do passado longínquo e recente combinam-se na
construção da história contada pelo movimento negro.
Saída da rua do Carmo, a caminhada segue em direção
à praça da Sé, passando em frente à rua Venceslau Brás,
onde se localiza a organização Padre Batista, local de ativismo contemporâneo. O largo da Sé faz lembrar também
as crianças abandonadas, que, segundo a narrativa, eram
acolhidas e batizadas pelo bispo local. Tal interpretação é
particularmente cara ao segmento católico do protesto.
Depois, seguem em direção ao largo do São Francisco,
descem a rua São Bento, chegando à praça Antônio Prado, esquina com a 15 de Novembro, onde foi construída
a antiga Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Perto dela,
encontra-se um cemitério invisível, onde os negros teriam
sido enterrados durante o século XIX, visto apenas por
aqueles que ouvem as narrativas emocionadas ao longo da
caminhada. Mais adiante, avistam-se as escadarias do Teatro
Municipal, o penúltimo ponto de parada da marcha. Lá,
rememora-se a atitude do Movimento Negro Unificado,
que ainda durante a ditadura denunciou as discriminações
raciais, rompendo com o discurso da democracia racial e
inaugurando uma nova forma de ativismo político, como já
vimos em páginas anteriores.
Documento da III Marcha Noturna, consultado no Instituto do Negro Padre Batista.
44
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
O ponto final da caminhada é o largo do Paissandu,
onde atualmente está localizada a Igreja Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, erigida em 1904. A atual igreja
ainda guarda restos mortais que os ativistas acreditam ser de
ex-escravos que atuaram no período da abolição. Ademais,
trata-se de uma igreja que abrigava a irmandade negra mais
poderosa do Brasil escravagista, a qual tinha liberação jurídica para compra de alforria de escravos. No desfecho de
cada marcha, personalidades do ativismo leem o manifesto
do protesto e depois todos abraçam à igreja, simbolizando o
encontro com seus ancestrais, que teriam lutado pela liberdade. Assim, mal o 13 de Maio se inicia, fecham-se as cortinas da história, para que o dia chegue sem graça, como um
outro qualquer, sem ares imperiais, sem a presunção do discurso oficial da República do Brasil. À noite, os negros roubam a cena e o significado do dia da Abolição, fortalecendo-o no repertório do movimento social, mesmo que para isso
tenham que ajustar os ponteiros do relógio da história.
Algumas considerações
Ao término do artigo, talvez o leitor possa concluir que se
encerrou o ciclo de protestos reivindicativos do movimento negro ou que as atuais passeatas e atos públicos não são
mais do que encenações do jogo político, já que as “verdadeiras lutas” acontecem nas salas de negociação, em gabinetes governamentais. Esta não seria uma assertiva totalmente
verdadeira. As evidências levantadas mostram que pensar
as manifestações mediante a explicação das oportunidades
políticas pode ajudar a entender esse ciclo de protestos do
movimento negro, sem perder de vista que o maior acesso
aos órgãos e governantes federais não implica necessariamente em abertura local (nos Estados, municípios ou instituições públicas e privadas). Os atos públicos da última
década indicam a presença marcante de manifestações
desse movimento social nas arenas municipais e estaduais.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
75
O protesto negro no Brasil contemporâneo
76
Esse histórico de protesto e de tentativas de mudança
dos valores societários permitiu à população negra maior
visua­lização nos canais de representação social, o que favoreceu a visibilidade pública e jurídica para os casos emblemáticos de agressão à dignidade humana de indivíduos
pardos e pretos45.
Essa realidade só foi possível porque o movimento
negro brasileiro passou por um processo de institucionalização jamais visto em sua história que, em certa medida,
possibilitou a profissionalização e a especialização dos ativistas, bem como a formalização e a burocratização dos coletivos e das entidades. Muitas destas tornaram-se, aos poucos,
associações civis formalmente mais complexas, cujo modelo exemplar é o de organização não governamental (Rios,
2009). Ademais, o Governo Federal na administração FHC,
e, sobretudo, Lula, absorveu parte significativa dos quadros
políticos negros, especialmente na construção da Seppir e
das leis e programas nacionais de promoção da igualdade
racial (Lima, 2010), sem contar as comissões de controle
público, que passaram a ser cada vez mais frequentados
pelos ativistas. Tão importante quanto isso foi o ambiente
político internacional, que ofereceu incentivos políticos e
econômicos para a luta antirracista do país, seja na forma
de conferências internacionais, promovidas pela Organização das Nações Unidas (Roland, 2000), seja pelo apoio
financeiro de agências financiadoras internacionais, como
a Fundação Ford (Telles, 2003).
Tal é o quadro contemporâneo do ativismo sobre o
qual se abrem várias perspectivas analíticas. O crescimento
45
Refiro-me diretamente a casos de assassinatos e agressões físicas e verbais em
espaços públicos como “batidas policiais nas ruas” ou perseguições em espaços
comerciais, como grandes supermercados, shoppings etc. Cada vez mais, intervenções localizadas de enfrentamento face a face despontam nos centros urbanos
brasileiros como reações imediatas às formas de discriminação institucional. De
modo geral, são formas pacíficas de constrangimento público que resultam em
exigências de programas localizados de combate à discriminação.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
e êxito do movimento negro têm dependido cada vez mais
de sua habilidade para aliar-se a setores da sociedade civil e
do Estado, que há menos de três décadas conferiam pouca
atenção às demandas do movimento organizado. O impacto
dessa configuração de poder sobre a militância e suas investidas na esfera pública nacional alterou significativamente
as relações entre raça e política na sociedade brasileira. O
trânsito de militantes negros no Poder Executivo, Legislativo, o acesso constante ao Judiciário, a existência de órgãos
públicos destinados exclusivamente às chamadas “políticas
de igualdade racial”, o progressivo engajamento de deputados e senadores negros nas pautas do ativismo, sugerem
alteração no significado dos protestos negros nacionais,
que agora cede lugar para lutas contenciosas localizadas em
contextos exemplares de discriminação. As marchas celebratórias, assim, só fazem sentido porque já podemos falar
de uma tradição negra de protestos políticos46.
Flavia Rios
é doutoranda em sociologia pela FFLCH-USP e bolsista
Fapesp.
Referências bibliográficas
ALBERTI, V.; PEREIRA, A. (orgs.) 2007. Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Ed. FGV/ Pallas.
ARANTES, P. T. L. 2007. “O caso Simone Andrade Diniz e a luta contra o
racismo estrutural no Brasil”. Direito, Estado e Sociedade, no 31, pp. 127-149.
ANDREWS, G. R. 1991. “O protesto político negro em São Paulo: 18881989”. Estudos Afro-Asiáticos, no 21, pp. 27-48.
BAIRROS, L. 1996. “Orfeu e poder: uma perspectiva afro-americana sobre
a política racial no Brasil”. Revista Afro-Ásia, no 17, pp. 173-185.
BASTIDE, R; FERNANDES, F. 1955. Relações raciais entre negros e brancos em
São Paulo. São Paulo: Anhembi.
46
Para exemplificar esse perfil de protesto, registre-se o ato de comemoração dos
30 anos de MNU, realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em
julho de 2008.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
77
O protesto negro no Brasil contemporâneo
78
BENTO, M. A. S. 2000. “Racismo no trabalho: o movimento sindical e o
Estado”. In: GUIMARÃES, A. S.; HUNTLEY, L. (orgs). 2000. Tirando a
máscara. São Paulo: Paz e Terra.
CARDOSO, F. H. 1996. “Pronunciamento do Presidente da República na
Abertura do Seminário Multiculturalismo e Racismo”. In: SOUZA, J.
(org.). Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos. Brasília: Ministério da Justiça.
CARDOSO, H. 1986. “O resgate de Zumbi”. Lua Nova, vol. 2, n o 4, pp.
63-67.
CARDOSO, R. C. L. 1987. “Movimentos sociais na América Latina”. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, vol. 1, no 3, pp. 27-37.
CARVALHO, J. M. 2005. “O exército e os negros”. In: Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
CONTINS, M. 2005. Lideranças negras. Rio de Janeiro: Faperj/Aeroplano.
COSTA, S. 2006. Dois Atlânticos. Belo Horizonte: Ed. UFMG/Humanitas.
EDUCAFRO. 2008. “Marcha Noturna em Suzano”. Disponível em <www.
educafro.org.br>. Acesso em mai. 2008.
GARCIA, J. (org.). 2006. 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil.
Brasília: Fundação Palmares.
GONZALEZ, L. 1982. “O movimento negro na última década” In: GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. A. (orgs.). O lugar do negro. Rio de Janeiro:
Marco Zero.
GORENDER, J. 1990. “Sob o signo da negação”. In: A escravidão reabilitada.
São Paulo: Ática.
GUIMARÃES, A. S. A. 1999. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34.
. 2008. Preconceito racial: modos, temas e tempos. São Paulo: Cortez.
; MACEDO, M. 2008. “Diário trabalhista e democracia racial negra
dos anos de 1940”. Dados, vol. 51, pp. 143-182.
HANCHARD, M. 2001 Orfeu e o poder: o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro: Eduerj.
LIMA, M. 2010. “Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula”. Novos Estudos, no 87, pp. 77-95.
HASENBALG, Carlos. 2005. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil.
Belo Horizonte: Ed. UFMG.
KÖSSLING, K. S. 2007 As lutas antirracistas de afro-descendentes sob vigilância do Deops/SP (1964-1983). Dissertação de mestrado. São Paulo:
FFLCH-USP.
KOWARICK, L. 1987. “Movimentos sociais urbanos no Brasil contemporâneo: uma análise da literatura”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 1,
no 3, pp. 38-50.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
Flavia Rios
MARCHA DE ZUMBI DOS PALMARES. 1995a. Documento final de divulgação. Disponível em <http://www.casadeculturadamulhernegra.org.
br/1995>. Acesso em 15/08/2008.
. 1995b. Relatório final. Disponível em < http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br/1995>. Acesso em 15/08/2008.
NASCIMENTO, L. E; NASCIMENTO, A. 2000. “Reflexões sobre o movimento negro no Brasil, 1938-1997”. In: GUIMARÃES, A. S.; HUNTLEY,
L. (orgs.). 2000. Tirando a máscara. São Paulo: Paz e Terra.
RATTS, A; RIOS, F. 2010. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro.
ROLAND, E. 2000. “Movimento de mulheres negras brasileiras”. In: GUIMARÃES, A. S.; HUNTLEY, L. (orgs.). 2000. Tirando a máscara. São Paulo: Paz e Terra.
RUFINO, J. 1985. “O movimento negro e crise brasileira”. Revista Política e
Administração, vol. 2, pp. 287-307.
SCHWARCZ, L. K. M. 1990. “De festa também se vive: reflexões sobre o
centenário da abolição em São Paulo”. Estudos Afro-Asiáticos, n.18, pp.
13-25.
SAILLANT, F; ARAUJO, A. L. 2006. “Zumbi: mort, mémoire et résistance”.
Frontières, vol. 19, no1, pp. 37-43.
SILVA, J. 1994. Centro de cultura e arte negra: trajetória e consciência étnica.
Dissertação de mestrado. São Paulo: PUC.
SILVEIRA, O. 2003. “Vinte de novembro: história e conteúdo”. In: SILVERIO, V. R.; SILVA, P. B. G. (orgs.): Entre a injustiça simbólica e a injustiça
econômica. Inep: Brasília.
SOUZA, J. 1996. Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos
Estados democráticos contemporâneos. Brasília: Ministério da Justiça.
SOUZA JUNIOR, W. A. 2006. O Ilê Aiyê e a relação com o Estado. Dissertação
de mestrado. Salvador: FFCH-UFBA.
TARROW, S. 2006. Power in movement: social movement and contentious
politics. Cambridge: Cambridge University Press.
TELLES, E. 2003. Racismo à brasileira. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
TILLY, C. 2005. “Invention, diffusion and transformation of social movement
repertoire”. In: Identities, boundaries and social ties. London: Paradigm.
VICENTINHO. 2008. “Histórico e Vida Pessoal de Vicente Paulo da Silva”.
Disponível em <http://www.vicentinho.org.br>. Acesso em 15/10/2008.
Lua Nova, São Paulo, 85: 41-79, 2012
79
Uma família de cultura: os Souza Carneiro
na Salvador de inícios do século XX*
Gustavo Rossi
Poucos elementos mostram-se tão ricos e expressivos das
energias e dos constrangimentos que plasmaram as primeiras etapas da formação cultural e intelectual de Édison Carneiro (1912-1972) quanto a sua própria história familiar e,
em especial, a do pai, o engenheiro civil e professor da
Escola Politécnica da Bahia, Antônio Joaquim de Souza Car*
Este artigo constitui uma versão modificada e reduzida do primeiro capítulo
de minha tese de doutorado, O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de
estudos das relações raciais no Brasil, defendida no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Unicamp, em março de 2011. Reafirmo uma vez mais
meus agradecimentos a Heloisa Pontes, orientadora da tese, pelas leituras e pelos
diálogos decisivos na construção desse trabalho. Sou igualmente grato aos membros da banca examinadora, Mariza Corrêa, Fernanda Peixoto, Sergio Miceli e
Antonio Sérgio Guimarães, que arguiram e debateram muitos dos argumentos
aqui contidos. Este texto foi discutido ainda em uma reunião do projeto temático
“Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo”, coordenado pelo professor Sergio Miceli, na USP. Deixo, portanto, registrado meus agradecimentos a todo o grupo de pesquisadores e orientandos participantes do projeto, pela seriedade do debate e pela forma com que me ajudaram
a refinar muitas das questões apresentadas a seguir. Marilia Giesbrecht, Mariana
Françozo e Christiano Tambascia prestaram contribuições importantes lendo e
comentando este texto em diferentes momentos de sua criação. Por fim, agradeço
Antonio Sérgio Guimarães pelo convite para escrever o artigo e, desse modo, expor alguns dos resultados de minha pesquisa de doutorado.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Uma família de cultura
82
neiro (1881-1942). Longe de se resumir a uma mera exumação documental, o levantamento cuidadoso dos eventos
pertinentes ao itinerário educacional e profissional de Souza Carneiro possibilita o tratamento de dimensões – de outra
maneira – inacessíveis do ambiente de criação e socialização
de Edison1. Duas delas, em particular, merecem destaque: de
um lado, as relações e as modalidades de inserção dos Souza Carneiro nos espaços das elites dirigentes baianas; de
outro, em sintonia com a primeira, os efeitos dessas relações nos tipos de identidades sociais e étnico-raciais vivenciadas pela família e, por consequência, nas formas que
seus membros tenderam a se apropriar simbolicamente do
mundo baiano.
Quando abordadas em conjunto, essas duas frentes
de leitura sobre a trajetória de Antônio Joaquim de Souza
Carneiro acabam por funcionar como um recurso vigoroso para, num momento seguinte, observamos como essas
coordenadas de natureza familiar, política e étnico-racial
rebateram, com intensidades variáveis, nos primeiros experimentos intelectuais de Édison Carneiro – notadamente
em suas poesias de juventude que, a partir de 1928, quando
tinha 16 anos, começaram a aparecer em jornais e periódicos literários de Salvador. Embora tenham pouca importância no conjunto da obra do autor – por ele próprio relegadas ao esquecimento –, tais poesias constituem o que talvez
seja um de seus raros escritos de feitio autobiográfico. São
narrativas que mobilizaram personagens, valores, sentimentos, geografias e imagens da sociedade baiana que, a todo
instante, remetem ao local social de fala do poeta. E, por
1
Édison Carneiro não deixou qualquer escrito de cunho autobiográfico no qual
fosse possível apreender relatos, parciais ou sistemáticos, de sua própria trajetória,
de suas experiências sociais de infância e juventude, ou, ainda, sobre o ambiente de
formação e descobertas de sua “vocação” intelectual. De outra parte, a despeito
da recente publicação de uma biografia sobre o autor (Biaggio e Couceiro, 2009),
muitas são as lacunas tanto sobre a vida quanto em relação à produção etnográfica
e folclórica de Carneiro. Ver, nesse sentido, Rossi (2011).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
isso mesmo, trata-se de uma fonte reveladora das representações que Édison Carneiro fazia de si e das posições ocupadas por ele e sua família na estrutura social da Salvador de
inícios do século XX2.
Os Souza Carneiro e seu mundo
O ambiente de criação e aprendizado cultural de Édison
Carneiro, em muito, traz as marcas da situação social instável do pai que, a despeito da posição prestigiada como
intelectual polivalente e docente da Escola Politécnica
da Bahia, não conseguiu blindar a família de recorrentes
momentos de penúria financeira e ameaças de desclassificação social. Em parte, como veremos adiante, essas vulnerabilidades, vivenciadas no plano pessoal e profissional,
estiveram sensivelmente atreladas ao próprio equilíbrio
instável de poder entre os grupos oligárquicos atuantes na
Primeira República baiana, cujo cenário de crise e estagnação econômica acirrava ainda mais as já encarniçadas
disputas pelo controle do Estado. Contudo, parafraseando
Malinowski (1978), se quisermos infundir carne e espírito
a esse esqueleto estrutural de vulnerabilidades e inseguranças que assombra a família de Edison, é indispensável
levarmos em conta a individualidade peculiar desse pai: um
sujeito de comportamento excêntrico e com uma especial
inabilidade para lidar com a administração e os imponderáveis domésticos, agravada ainda por uma viuvez precoce e
um segundo casamento clivado por tensões entre os filhos
e a madrasta.
Essa faceta embaraçada no âmbito doméstico parece ter sido a contrapartida de uma vida que buscou fazer
da posse e ostentação de suas competências intelectuais e
Apenas recentemente uma parte da produção poética de Édison Carneiro tornou-se objeto de interesse. Temos uma publicação desse material graças ao esforço
de Gilfrancisco dos Santos, que compilou uma série de 31 poemas publicados por
Edison em 1928, em Salvador (Santos, 2005).
2
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
83
Uma família de cultura
culturais o arrimo de suas veleidades sociais frente à “boa
sociedade” baiana. Souza Carneiro exerceu, com afinco,
essa competência nos mais variados gêneros e assuntos:
estudos técnicos sobre minérios e geologia; artigos e colunas na imprensa baiana, através dos quais prestava tributo
à facção oligárquica a que esteve ligado; ensaios sociológicos e de etnografia afro-brasileira e indígena; romances
de motivos regionais e folclóricos; e, até mesmo, trabalhos
de cunho esotérico, resultado de sua prática como espírita,
maçom e membro de ordens místicas. Esses últimos interesses, inclusive, acabaram lhe rendendo a fama de “bruxo” e
“mago” por parte de algumas pessoas que conviveram com
ele. Em síntese, trata-se de personagem dos mais intrigantes
e que, graças às suas posições, à sua erudição e à sua “prodigiosa capacidade de trabalho” (Carneiro, 1943, p. 320),
desempenhou uma influência decisiva no destino social e
profissional dos filhos.
84
***
Filho de Antônio Joaquim de Souza Carneiro, um engenheiro “mulato”, e da “não negra” Rosa Sanches de Souza
Carneiro, o também Antônio Joaquim de Souza Carneiro, pai de Edison, foi o primogênito dos quatro filhos do
casal. Nascido em 1881, na cidade de Salvador, ainda muito
cedo, aos dez anos, ficaria órfão de pai que morreu vítima
de um acidente ferroviário no município de Piranhas (AL),
onde a família se encontrava por motivos de trabalho do
progenitor (Carneiro, 2008)3. De fato, é quase impossível
remontar a história desse casal, pois tem-se em mãos apenas
informações muito vagas: o falecido era filho de um “fazen3
Apesar das ambiguidades contidas na classificação “não negra”, preferi utilizá-la
tal como empregada por sua neta, Edíria Carneiro (2008): “não negra” para a avó
e “mulato” para o avô. “Não, ela [Rosa Sanches] não era negra [...] O avô, pelos
retratos que eu via dele, as feições dele era de um mulato”.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
deiro português” no Ceará e se formou em engenharia pela
Faculdade Politécnica do Rio de Janeiro (Carneiro, 2008).
No entanto, é perfeitamente possível especular que o avô
de Edison – talvez o resultado da união ou do intercurso de
uma negra escrava ou forra e o pai branco português (seu
senhor?) – tenha gozado de razoável situação financeira, a
ponto de desperdiçar uma temporada de estudos em Coimbra, conforme relatou sua neta:
ele foi pra Coimbra e entrou na malandragem. Então o
velho não mandou mais dinheiro, ele teve que voltar e disse:
se você não quer estudar, você vai trabalhar na roça igual a
um trabalhador. E ele trabalhou uns dias e não aguentou
aquilo e disse: não meu pai, quero estudar, aí o pai mandou
ele estudar no Rio. Ele se formou em engenharia no Rio
(Carneiro, 2008).
Se ele nasceu em Salvador, se ali chegou do Ceará
quando pequeno ou somente depois de formado, também
é difícil saber. O que parece certo, no entanto, é que fora
prática comum entre livres, libertos e descendentes de origem africana se deslocarem de seus lugares de origem como
uma forma de, segundo Keila Grinberg,
libertar-se do passado escravo [...] por intermédio da
constituição de novas relações sociais. [Afinal], a integração
à sociedade dos livres [...] podia ser demorada, e estar num
lugar desconhecido poderia ser meio caminho andado
no processo de desaparecimento da referência à cor, ou
melhor, à condição social (Grinberg, 2002, pp. 47-48).
Ainda mais numa cidade como Salvador que, por meados do século XIX, capital de uma das principais economias
do Império, mantinha-se como um polo urbano atraente
para um grande número de pessoas de condições jurídicas
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
85
Uma família de cultura
86
diversas, oferecendo um cenário em que as “indefinições
sociais” poderiam jogar a favor dos mestiços que buscavam,
através da educação, ascender e se diferenciarem socialmente4. E embora muito pouco se possa afirmar a respeito da
trajetória do avô de Édison Carneiro, é verossímil dizer que
ela não foi incomum, tampouco muito divergente daquelas
de outros tantos negros e/ou mulatos que, a exemplo do
jurista Antônio Pereira Rebouças (1798-1880) e de seu filho
André Rebouças (1838-1898), do engenheiro Teodoro Sampaio (1855-1937), do médico Alfredo Casemiro da Rocha
(1855-1933), ou do funcionário público e político Manuel
Querino (1851-1923), condensavam muitos dos elementos
presentes na família de Edison. Os elementos que os credenciavam a melhores chances de mobilidade e ascensão –
senso de oportunidade, capital de relações e investimentos
consideráveis em educação e cultura – tinham o intuito
de infundir alguma estabilidade às suas ambições de reconhecimento social e profissional, sujeitas, quase sempre,
a contestações em decorrências da origem ou das “raças”
dessas famílias5.
4
Na Salvador de meados do século XIX, “se confundiam escravos, libertos e
livres; muitos, inclusive, com alguma astúcia e bastante senso de oportunidade,
poderiam encontrar uma forma de reverter as condições sociais nas quais se encontravam, fosse negando a escravidão, fosse logrando ingressar no universo dos
homens livres, fosse [...] buscando a diferenciação social na educação” (Grinberg,
2002, p. 57). Segundo Maria Alice Resende de Carvalho, os estratos mestiços da
sociedade baiana conheceriam possibilidades maiores de ascensão, sobretudo, nos
momentos posteriores à Independência do Brasil, a partir de 1822, “quando, desalojados os portugueses que mantinham os privilégios comerciais dos tempos da
colonização, a praça de Salvador e toda a economia do Recôncavo viram florescer
uma sociedade mestiça, educada e especificamente urbana, composta por comerciantes, clérigos, militares, funcionários e profissionais liberais” (1998, p. 68).
5
Sobre a família Rebouças, ver Carvalho (1998; 2007), Sptizer (2001) e Grinberg
(2002). Sobre o médico baiano Alfredo Casemiro da Rocha, ver Nogueira (1992).
Quanto a Manuel Querino, ver Guimarães (1973) e Guimarães (2004b). Sobre
Teodoro Sampaio, ver Costa (2007) e Lopes (2004). Vale notar que todos eles
eram, além de nascidos em território baiano, filhos ou apadrinhados de homens
brancos de posses e/ou “respeitáveis”, fato que se mostrou decisivo em seus itinerários sociais e profissionais.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
Seja como for, quais fossem os caminhos que o levaram
à capital baiana, foi ali que o avô de Édison Carneiro conseguiu prosperar econômica e profissionalmente. Após morte
precoce, em que deixou quatro filhos em idade escolar, sua
esposa, Rosa Sanches – pouco tempo depois de enviuvar –,
contraiu segundo casamento com o igualmente engenheiro e “amigo da família”, Aluízio Ramos Accioly. A partir
de então, Accioly assumiria a tutela das crianças e o controle do espólio financeiro deixado pelo falecido6: entre
os imóveis (uma casa e uma roça na Freguesia da Penha),
e “cadernetas de poupança de iguais valor [sic] aos seus
quatro filhos”, chegava-se a uma soma considerável de 33
contos de réis7.
No limite, a figura de Ramos Accioly resulta tanto ou
mais misteriosa quanto a do próprio falecido Souza Carneiro. No entanto, ao que tudo indica, mesmo não sendo
homem de maiores posses, sua formação e atuação como
engenheiro teria lhe permitido acumular prestígio e boas
relações, contribuindo para que os filhos de Rosa Sanches
frequentassem algumas das melhores instituições de ensino particulares, destinadas à formação dos rebentos da
classe dirigente baiana. O percurso educacional das quatro
Ver Arquivo Público do Estado da Bahia (APEBa), Seção Judiciária, Série Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim de Souza Carneiro, Ano 1909, Documento
07/3126/16. Não se sabe ao certo quando Ramos Accioly e Rosa Sanches se casaram. Contudo, um relatório escrito pelo próprio Accioly, anexado ao inventário,
aponta que, já em 1891, ele estava cuidando da educação das crianças. O primeiro
marido de Rosa Sanches faleceu em 21 de janeiro de 1891. A fim de facilitar o
andamento e a inteligibilidade do texto, todas as fontes consultadas em arquivos
serão mencionadas em nota de rodapé.
7
Ver APEBa, Seção Judiciária, Série Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim
de Souza Carneiro, Ano 1892, Documento 05/1826/2297/12. Jeferson Bacelar,
trabalhando com séries de inventários e testamentos do Arquivo Público do Estado da Bahia, para os anos de 1889 a 1919, estabelece a casa dos 50 contos de réis
como critério dos “possuidores de pequenas fortunas” (2001, p. 56). Tal marca
também foi estabelecida por Kátia de Queirós Mattoso (1992). Ainda, segundo
Bacelar, 200:100$000 de réis poderia ser tomado como critério do “grupo de indivíduos incluídos no rol dos realmente ricos da cidade [Salvador]” (2001, p. 56).
6
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
87
Uma família de cultura
crianças de Rosa Sanches (Antônio Joaquim, José Joaquim,
Adília Rosa e Edgar Sanches) mereceu o registro minucioso do padrasto, uma vez que, ao atingirem a maioridade,
seus pupilos o acusaram de usar indevidamente o dinheiro
da herança paterna. Intimado judicialmente a prestar contas da tutela, em agosto de 1909, Ramos Accioly redigiu um
copioso relatório de defesa, no qual buscava justificar seus
gastos e suas movimentações financeiras com a educação
dos jovens.
José Joaquim, o segundo mais velho, nascido em 1883,
após um ano como interno no Colégio Carneiro Ribeiro,
foi enviado ao Colégio Sete de Setembro,
88
recomendando-o [...] ao seu diretor, senhor Dr. Luiz da
França Pinto de Carvalho. Três meses depois de sua entrada
nesse colégio, dizia-me o emérito mestre que não o expulsava
da casa em atenção a mim, por corresponder no empenho que eu
manifestava com tanto ardor para que o menino estudasse, mas que
era perder tempo e dinheiro8.
Teria sido apenas “do terceiro ano em diante” que José
Joaquim, “dando-se por vencido”, começou a estudar mais
seriamente para, em seguida, cursar a Faculdade de Direito
da Bahia, onde se formou em 1908. Já Adília Rosa, de 1886,
mesmo padecendo “desde a idade de dois anos, de uma paralisia infantil, que a privava do uso dos membros inferiores
do corpo”, recebeu o diploma de “aluna-mestra”, em 1905,
no Instituto Normal. Segundo Ramos Accioly, “foi dentre
os quatro irmãos, o único bom estudante”9. Edgar Sanches, o caçula, vindo ao mundo em 1888, passou “dez anos
consecutivos nos colégios Spencer e São Salvador” e, em
8
APEBa, Seção Judiciária, Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim de Souza
Carneiro, Ano 1909, Documento 07/3126/16; grifos nossos.
9
APEBa, Seção Judiciária, Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim de Souza
Carneiro, Ano 1909, Documento 07/3126/16.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
1909, encontrava-se no segundo ano do curso jurídico da
capital baiana10.
Em nada diferente dos outros irmãos, Antônio Joaquim
de Souza Carneiro parece ter se beneficiado da condição de
enteado de Ramos Accioly, a qual talvez servisse para contrabalancear a irregularidade do primogênito nos estudos:
O mais velho, de nome Antônio, antes mesmo de ser
seu tutor, pouco depois de sua chegada a esta capital
[Salvador], em 1891, internei-o no Colégio São José,
passando-o no ano seguinte para o Colégio Carneiro, e
deste para diversos professores [...] para ensiná-lo a estudar,
por ser ele pouco aplicado [...]. Por fim, internei-o no
Colégio Spencer, de onde saía todos os dias para frequentar
as aulas da Escola Politécnica como aluno adido, sujeito ao
pagamento de matrícula nessa escola. Fui forçado a mandálo a Aracaju a fim de [documento rasgado] os preparatórios.
Frequentou a Escola Politécnica durante sete anos e
recebeu o diploma de engenheiro civil em 1905 [...] Devo
muito aos lentes desta escola, em particular ao meus amigos Srs.
Alexandre Maia e Arlindo Fragoso, muita gratidão pelo que fizeram
em favor de Antônio11.
É difícil saber o que há de verdade nas palavras do
padrasto quanto ao desempenho deficiente dos afilhados.
Preocupado em convencer o Juiz de Órfãos de Salvador de
seus esforços e de sua inocência, é quase certo que Ramos
Accioly buscasse inflacionar a importância de sua tutela.
Contudo, essa inflação em nada invalida a hipótese de que
as amizades e a boa reputação do padrasto tenham, de fato,
contribuído para o sucesso escolar dos quatro enteados.
10
APEBa, Seção Judiciária, Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim de Souza
Carneiro, Ano 1909, Documento 07/3126/16.
11
APEBa, Seção Judiciária, Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim de Souza
Carneiro, Ano 1909, Documento 07/3126/16; grifos nossos.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
89
Uma família de cultura
90
Afinal, na virada dos séculos XIX e XX, numa sociedade
recém-liberta do trabalho escravo, não deviam ser poucos os
obstáculos e os constrangimentos a que estavam expostos
os raros negros e mestiços que tiveram condições de aspirar a uma vaga nos estabelecimentos de ensino de elite. De
modo que, a despeito das reconhecidas competências ou
das efetivas condições financeiras para custear os estudos,
boas relações, proteções ou filiações pareciam ser decisivas
para que tais aspirações não fossem brutalmente bloqueadas (Azevedo, [1953] 1996)12.
Infelizmente não foi possível esmiuçar a procedência
dos laços entre Ramos Accioly e, em particular, os docentes
da Escola Politécnica da Bahia, os quais teriam atuado em
favor do pai de Édison Carneiro. No entanto, quaisquer
fossem os móveis desses laços, eles foram fortes o suficiente
para que Antônio Joaquim de Souza Carneiro os mobilizasse como parâmetro de suas futuras tomadas de posição
junto às facções oligárquicas locais. Uma série de pistas,
dentre as quais o relatório de Ramos Accioly é a primeira,
Na falta de fontes ou indícios mais precisos que dão conta da passagem dos
Souza Carneiro pelos colégios e pelas faculdades que cursaram, podemos apenas
imaginar – controladamente – o que teriam sido tais experiências nesses estabelecimentos, imersos num ambiente de relações em que a cor e a origem não estavam
imunes aos riscos de se converterem em motes de estigmas, conflitos, recusas ou
isolamentos. Trata-se de uma situação de vulnerabilidade e violência simbólica que
devia exigir jogo de cintura e senso aguçado nas negociações travadas naqueles espaços, a fim de que os marcadores raciais não monopolizassem as representações
de suas identidades sociais. Decerto, tem-se um intento delicado e, quase sempre,
apenas parcialmente logrado (quando não, simplesmente fracassado), como bem
revelam, por exemplo, as experiências universitárias do médico baiano estudado
por Oracy Nogueira, Alfredo Casemiro da Rocha (1855-1933), e do escritor carioca Lima Barreto (1881-1922). Ainda que em períodos e lugares distintos, ambos
mostram-se casos expressivos dos constrangimentos e sentimentos de intimidação
raciais a que estavam expostos os indivíduos negros e mestiços nos estabelecimentos de ensino superior brasileiros em finais do século XIX (Nogueira, 1992; Barreto, 1998). De modo que, talvez, faça sentido dizer que muitas das “atenções” e
das “gratidões” invocadas pelo padrasto Ramos Accioly possam também ser lidas
como registros cifrados de intercessões de seus amigos, diretores e professores,
para amortecer eventuais tensões de natureza racial envolvendo os jovens da família Souza Carneiro.
12
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
sugere que Souza Carneiro gozou de proteções e auxílios
dos amigos do tutor, especialmente as de Arlindo Coelho
Fragoso (1865-1926). Sem dúvida, tal condição deve ter
influenciado decisivamente a vida social e profissional de
Souza Carneiro, ainda mais quando se têm em vista as credenciais do “protetor” que, de forma alguma, podem ser
minimizadas.
Formado em engenharia no Rio de Janeiro, duas vezes
deputado federal pela Bahia, diretor da Secretaria da Agricultura no governo de Luís Vianna (1896-1900) e principal
responsável pela criação da Escola Politécnica do estado, em
1896, onde foi seu primeiro diretor entre os anos de 1897 e
1908, Arlindo Fragoso emprestou muito de sua autoridade
acadêmica e política para essa instituição. Inclusive, foi graças à atuação de Fragoso que, pondo “em campo todo o seu
prestígio” (Sem autor, [1923] 2004, p. 463)13 como Secretário Geral do Estado no governo de José Joaquim Seabra
(1912-1916), a Politécnica adquiriu a sua sede permanente,
em 1915, com a compra de um “palacete” no largo São Bento. Neste mesmo período, Fragoso foi um dos engenheiros
responsáveis pela criação e execução do projeto de remodelação urbana de Salvador, cujo plano diretor pretendia
não apenas sanear e higienizar o centro da capital, mas também amenizar sua arquitetura colonial, conferindo-lhe uma
fachada mais “moderna” e “civilizada” (Pinheiro, 2002).
Com uma carreira das mais vigorosas entre os quadros políticos e intelectuais da Primeira República na Bahia, deveu-se ainda à intervenção de Arlindo Fragoso a fundação, em
1917, de uma instituição que, ao lado do Instituto Histórico e Geográfico, foi central na organização da vida cultural
local: a Academia de Letras da Bahia, para a qual “redigiu e
assinou todas as cartas aos intelectuais que deviam compor
13
Em seguida a Arlindo Fragoso, o segundo diretor da Escola Politécnica (entre
1908 e 1912) foi o outro “amigo” do tutor, o engenheiro Alexandre Maia Bittencourt, um dos “sócios fundadores” da instituição (Sem autor, [1923] 2004, p. 462).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
91
Uma família de cultura
92
o quadro da Academia. Escolheu os quarenta patronos e os
ocupantes das respectivas cadeiras” (Alves, 1977, p. 75).
Ora, diante de tão prestigiada figura pública, na ocasião de sua morte, em janeiro de 1926, não seria surpresa
que as homenagens prestadas a Arlindo Fragoso ficassem a
cargo de alguém muito próximo do proeminente falecido
e, porque não, um dileto ou discípulo seu: alguém reconhecido enquanto tal pelo corpo docente da própria faculdade
que ele havia fundado. De modo que, nas “grandes homenagens” da Escola Politécnica à memória de seu fundador,
Souza Carneiro “foi unanimamente escolhido por seus
pares [...] para estudar a individualidade do Dr. Arlindo
Fragoso, sob seus múltiplos aspectos – engenheiro, professor, orador, administrador, crítico [e] jornalista”14.
Não saberíamos dizer quando a biografia encomendada
foi entregue. No entanto, na edição de 1942 da Revista da
Academia de Letras da Bahia, podemos ler um artigo de Souza
Carneiro que corresponde bastante aos objetivos do referido
“estudo” – ou ao menos parte dele. Trata-se de um retrato
admirado e emocionado do “mestre” Arlindo Fragoso:
Eminentes colegas da Escola [...] Quando me honrastes
em ser vosso intérprete, escolhendo-me arauto de vossas
manifestações de gratidão ao que Arlindo Fragoso foi para
a Escola Politécnica, me envolvestes num banho de luz,
obrigando-me a falar sobre a individualidade de moço, de
crítico, de artista, político, de jornalista; – de Arlindo em sua
feição multiforme de homem público, e discípulo, e mestre,
e amigo, e criador; – de Arlindo em seu extraordinário
talento, em sua maravilhosa condição de literato, e cientista,
e engenheiro [...] Aqui estou no desempenho dessa missão
[...] seguro da incumbência, por ele mesmo deixada, de ser o seu
14
Biblioteca Pública do Estado da Bahia (BPEBa), “As grandes homenagens da
Escola Politécnica”, Diário da Bahia, Salvador, 21 jan. de 1926, p. 1.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
biógrafo nas linhas que redigi para agora, que rendemos
a seus feitos, a eternidade de nossos corações (Souza
Carneiro, 1942, pp. 345-346; grifos nossos).
A suposta confiança de Arlindo Fragoso no discípulo, a
ponto de, em vida, atribuir-lhe pessoalmente a “missão” de
redigir sua biografia, é constantemente ressaltada no texto. Souza Carneiro chega a afirmar que Fragoso teria considerado indicá-lo para uma das cadeiras da Academia de
Letras da Bahia. Tal indicação, o pai de Edison viu-se obrigado a humildemente recusar, uma vez que o próprio Fragoso, fundador da agremiação, correria o risco de ficar sem
lugar entre os imortais locais: “escolhe [para a Academia de
Letras] quarenta nomes que realmente figuram na consciência
sua, mas a política deve ser atendida, as amizades devem ter
um lugar com as inimizades, as conveniências devem jogar
com o conceito. [Então] cedo-lhe o lugar que me destinou”
(Souza Carneiro, 1942, p. 362; grifos nossos)15.
Decerto, seria preciso enxergar com ressalvas o modo
como Antônio Joaquim Souza Carneiro invocava o espólio de Arlindo Fragoso a fim de se apropriar das virtudes
do ilustre falecido. Contudo, é impossível duvidar da existência de fortes sentimentos de afeição e respeito mútuos
entre Souza Carneiro e Fragoso. Afinal, embora herdada
como uma espécie de bem de família, a relação foi sancionada pública e academicamente pelos próprios membros
da faculdade que Arlindo havia ajudado a criar. Essa relação, cujas vantagens nem sempre resultaram em ganhos
materiais, teve rendimentos simbólicos substantivos, espe15
Embora seja possível que o convite tenha sido feito por Arlindo Fragoso, o mais
provável é que Souza Carneiro ficasse sem nenhuma vaga, não pela sua recusa,
mas por questões outras: as cadeiras da Academia de Letras da Bahia estavam sendo usadas por Fragoso, como o próprio pai de Edison deixa entrever, para amortecer uma série de choques advindos das brigas políticas locais. Fragoso procurava
um equilíbrio entre membros de diferentes grupos oligárquicos, bem como entre
os nomes brasonados da elite local. Ver, neste sentido, Jorge Calmon (s.d.).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
93
Uma família de cultura
94
cialmente no que diz respeito à qualidade e ao volume de
capital social a ela atrelados: possibilitou a Souza Carneiro
chances melhores, novas proteções, empregos, postos na
imprensa, apadrinhamento dos filhos e até mesmo uma
carreira política. Porém, tão importante quanto, trata-se de
uma rede de relações que, articulada aos seus trunfos educacionais e às suas competências culturais, ajudou a informar as percepções de localização e pertencimento social e
étnico da família Souza Carneiro.
Importa, por ora, chamar a atenção para a forma como
o apadrinhamento se mostra uma evidência eloquente para
se entender os tipos de lealdade política que estiveram na
base da existência social dos Souza Carneiro: eram membros de uma elite sem tostão, cujas distinções mais significativas tendiam a se realizar justamente a partir das fidelidades
e prestações de serviços aos clãs familiares e às facções oligárquicas no poder ou na oposição da política local. Tendo
em vista o baixo grau de diferenciação da estrutura social
baiana, organizada basicamente pelos serviços vinculados à
produção agroexportadora – retraída desde os tempos do
Império –, e ao crescimento da máquina burocrática, as
lealdades políticas, já observou Consuelo Novais Sampaio,
constituíam um dos mecanismos centrais através dos quais
diferentes segmentos urbanos “concretizaram aspiração
social, integrando-se ao pequeno universo das classes dirigentes” (Sampaio, 1998, p. 41).
Tal situação não seria diferente daquela vivenciada
pelo pai de Édison Carneiro e sua família, cujas ambições
sociais e profissionais estiveram sensivelmente condicionadas
aos sucessos e fracassos das facções políticas apoiadas pelo
padrasto e por Arlindo Fragoso, nas quais se destacava a liderança inconteste de José Joaquim Seabra (1855-1942). Para
correligionários dedicados como foram os Souza Carneiro,
certamente não faltaram oportunidades e meios para que
J. J. Seabra pudesse recompensá-los no correr de seus notáLua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
veis doze anos de controle ininterrupto sobre a engrenagem
política baiana, entre 1912 e 1924: período em que se elegeu
duas vezes governador (1912-1916 e 1920-1924), bem como
fez seu sucessor, seu homem de confiança Antônio Moniz
Sodré de Aragão, para o mandato de 1916-1920. Com sólidas relações no âmbito federal, personalidade carismática
“insofismável” e “visão realista do poder”, Seabra soube não
apenas se ajustar e tirar proveito das fundas dissidências oligárquicas disseminadas por todo o estado, “domesticando os
coronéis” (Sampaio, 1998, pp. 129 e ss.)16, mas também cativar números expressivos de seguidores fiéis entre diferentes
segmentos da sociedade baiana: em especial, entre os grupos
urbanos de Salvador, espaço social no qual, segundo o historiador Cid Teixeira, a “raposa” Seabra inaugurou
nos costumes políticos da Bahia [...] uma coisa que até
então era desconhecida: o comício, o apelo direto ao povo
[...] O primeiro a reunir o povo na rua, [a] usar todo o seu
carisma diretamente à multidão [...] que o vai cristalizando
como um líder a partir da capital, na conveniência e na
troca do apoio com o coronelismo, com o poder do sertão
(Teixeira, 1988, p. 42)17.
Com certeza, em muitos desses comícios, mas também
nas recepções, nas homenagens e nos jantares dedicados a
J. J. Seabra, estiveram presentes Antônio Joaquim e demais
membros da família Souza Carneiro, que prestavam todo
o seu apoio ao glorioso chefe. Esse apoio, incondicional e de
longa data, ao fim, se mostrou decisivo para a realização da
Antes de ser governador da Bahia, Seabra fora ministro em duas diferentes presidências: ocupou a pasta do Ministério do Interior e Justiça durante o governo de
Rodrigues Alves (1902-1906) e, depois, a da Viação e Obras Públicas, entre 1910 e
1912, na presidência de Hermes da Fonseca (1910-1914).
17
Sobre José Joaquim Seabra e seu domínio político, ver Sampaio (1998), Quaresma (1999) e Sarmento (2008).
16
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
95
Uma família de cultura
carreira política do irmão mais velho de Edison, o futuro
senador da República Nelson Carneiro (1910-1996). Não
por acaso, foi esse último, dentre os membros da família,
aquele quem forneceu um dos registros mais expressivos
da gravidade que revestia as atitudes da família para com o
“chefe” Seabra:
éramos seabristas de três gerações, dos que não abandonaram o
glorioso chefe [...] Seguia assim a trilha normal, que eu próprio
preferira três anos antes, quando naquela madrugada de
1926 [...], J. J. Seabra, a quem meu tio me apresentava, me
comoveu: “Um Souza Carneiro não degenera” (Carneiro, 1990,
p. 55; grifos nossos).
96
Em síntese, para essa família sem condições de agenciar posses ou símbolos de distinção histórica e tradicionalmente valorizados pela sociedade baiana – propriedades
rurais, fortuna, origem familiar, ancestralidade nobiliárquica, antiguidade no mando político ou mesmo uma branquitude acima de qualquer suspeita – e cuja ocupação do pai
como catedrático da Politécnica era a única fonte regular
de renda, é bastante provável que a boa administração de
seus estoques de relações fosse central para a manutenção
e reprodução de suas posições. De modo que é possível afirmar que as lealdades políticas e a polivalência intelectual, e
a busca por uma afirmação, antes de qualquer coisa, como
homem de “honra”, “inteligência”, “leal” e “de cultura”,
foram alguns dos principais trunfos mobilizados por Antônio Joaquim de Souza Carneiro na tentativa de assegurar
melhores posições no interior da classe dirigente baiana.
A morte “branca” do engenheiro “mulato” Antônio
Joaquim de Souza Carneiro
Antônio Joaquim, ao que tudo indica, se casou com a
“mulata” Laura Coelho de Souza Carneiro logo depois de
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
concluir o curso de engenharia civil, uma vez que o primeiro filho do casal, Franklin, nasceu em junho de 190718. O
rebento foi o primeiro de uma leva de mais seis: Milton de
Souza Carneiro, em abril de 1909; Nelson de Souza Carneiro, em abril de 1910; Édison de Souza Carneiro, em agosto de 1912; Ivan de Souza Carneiro, em março de 1914;
Miriam Stella de Souza Carneiro, em setembro de 1920; e,
finalmente, Carmen Lídia de Souza Carneiro, em fevereiro de 192219. O casamento também coincidiu com o início
precoce da carreira universitária de Souza Carneiro que,
dando provas de sua competência e de suas boas relações
com Arlindo Fragoso, então diretor da instituição, assumiu
a cátedra de Geologia apenas um ano depois de se formar,
já em 1905. Isso numa instituição, como lembra Thales de
Azevedo nos anos 1950, que antigamente “dificultava [...]
a admissão de alunos de cor” ([1953] 1996, p. 131). Essa
situação não fora menos verdadeira para o recrutamento
de seu professorado; era possível, porém, transpor o bloqueio, uma vez que, ainda segundo Azevedo, teriam sido
“homens de cor” mais “de um diretor da escola” ([1953]
1996, p. 131)20.
Nos anos seguintes à sua efetivação na Politécnica,
Souza Carneiro se dedicou com afinco ao ensino das disciplinas de geologia e áreas afins e ao estudo da diversidade
natural e mineral do estado da Bahia. O esforço resultaria
numa primeira leva de trabalhos técnicos que colocaria seu
nome em evidência na vida pública e intelectual brasileiras.
18
Aqui, mais uma vez, valho-me de Edíria Carneiro (2008) como informante: “O
pai de Edison é que casou com uma mulata”.
19
APEBa, Seção Judiciária, Série Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim de
Souza Carneiro, Ano 1943, Documento 05/2300/2800/06. O casal teve mais um
filho, Philon, poucos anos mais novo que Édison, mas que morreu em 1940.
20
Um deles a quem Thales de Azevedo se refere certamente é o próprio Souza
Carneiro que, por volta de 1908, assumiu temporariamente a direção da Escola.
Nesse ínterim, Arlindo Fragoso cuidava dos preparativos para a construção do pavilhão da Bahia na Exposição Nacional de 1908, no Rio de Janeiro (Souza Carneiro, 1942, p. 360).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
97
Uma família de cultura
98
Entre os trabalhos mais significativos estão algumas pequenas monografias sobre variedades de mamíferos, insetos,
moluscos, madeiras “de construção” e toda espécie de plantas oleíferas e medicinais. Destaca-se especialmente o volume Riquezas minerais do estado da Bahia (1908), estudo que
rendeu ao autor o Grande Prêmio da Exposição Nacional
de 1908, realizada no Rio de Janeiro como parte das comemorações do centenário da abertura dos portos brasileiros
(Carneiro, 1943, p. 319).
A partir de 1912, com a eleição de J. J. Seabra e a convocação de Arlindo Fragoso para a Secretaria Geral do Estado,
Souza Carneiro, professor laureado e de reconhecido saber,
recebeu as primeiras indicações para os cargos comissionados que ocupou: “Engenheiro-Chefe da Comissão Geográfica e Geológica do Estado, Chefe de Estudos da Rede Baiana
de Ferro” e, por fim, “Superintendente dos Serviços de Gás
e Eletricidade de Salvador” (Carneiro, 1943, p. 320). Mesmo com o acúmulo de tarefas, nesse mesmo contexto Souza
Carneiro foi enviado para o Rio de Janeiro, em 1913, como
representante da Bahia na Exposição Nacional da Borracha, ocasião em que seria novamente recompensado, dessa
vez, com o Grande Prêmio do Ministério da Agricultura por
seus trabalhos A borracha no estado da Bahia, A indústria da
borracha no Brasil e a “brochura para a divulgação no estrangeiro”, Rubber in Brazil – os três publicados em 1913 (Carneiro, 1943, p. 320)21.
Contudo, mesmo com o posto na Escola Politécnica e a
21
Foram esses “primeiros vinte anos de sua vida pública”, entre 1905 e 1925, um
dos períodos mais fecundos da carreira acadêmica e científica de Souza Carneiro,
e resultaram numa série de trabalhos, tais como: Limites intermunicipais; o “estudo
de ecologia”, A pesca da baleia; as “monografias descritivas”, A cachoeira de Paulo
Afonso e O morro de Santo Antônio; e os “trabalhos de divulgação para os Estados
Unidos”, Cooper in Brazil, Manganese in Brazil e Mineral resources of the State of Bahia; e
ainda outras monografias e relatórios sobre a bacia do rio São Francisco e a “argila
plástica do Retiro” (Carneiro, 1943, p. 320). O artigo de Édison Carneiro não faz
menção às datas específicas de produção ou publicação desses trabalhos do pai.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
atuação nos demais cargos comissionados, a família numerosa não permitia maiores folgas financeiras ao professor.
Em parte, isso explicaria as tentativas, todas frustradas, de
Souza Carneiro de abrir novas frentes de renda, especialmente a partir de 1918, quando já havia nascido o quinto filho e três deles encontravam-se em idade escolar. Para
esse período, existem algumas escrituras de contratos firmados por Souza Carneiro relacionados com a exploração e
comercialização de manganês em território baiano. Mas o
reconhecido saber técnico que ele tinha sobre a exploração
de minérios não devia ser o mesmo para os negócios. Por
razões desconhecidas, além de ter rompida sua sociedade
com certo “senhor Doutor Demétrio Urpia”, viu-se ainda
judicialmente obrigado a ceder os eventuais lucros provenientes da negociação do manganês extraído em razão
das dívidas não cumpridas, que alcançavam a considerável
quantia de 20 contos de réis entre despesas com “pessoal,
freteiros [e] transportadores”22. Desfeitas as expectativas
de fazer dinheiro no setor minerador, Souza Carneiro buscou, sem sucesso, uma colocação como docente no Ginásio
da Bahia, em 1921. Tentaria, ainda, mais uma vez no ano
seguinte, repetindo o resultado: “apresenta-se novamente o
Dr. Antônio de Souza Carneiro candidato ao concurso da
seção de matemática [...] Em cinco reuniões da congregação leu o Dr. [Luis Anselmo da] Fonseca o parecer, de que
foi relator, inabilitando o candidato. Posto em discussão, o
parecer foi aprovado por unanimidade” (Farias, 1937, p.
287). Por fim, Souza Carneiro desistiu de buscar novas ocupações, ficando unicamente com o ensino na Escola Politécnica e com as eventuais rendas advindas dos cargos por
indicação e de suas colaborações na imprensa.
22
APEBa, Seção Judiciária, Livro de Notas da Capital, Livro 86, folha 14, Ano
1918-1919. Outras referências sobre os mal-sucedidos negócios de Souza Carneiro
podem ser encontradas em APEBa, Seção Judiciária, Livro de Notas da Capital,
Livro 230, Ano 1918, folhas 8, 9 e 21.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
99
Uma família de cultura
100
Os momentos de dificuldade, no entanto, devem ter se
agravado mais seriamente a partir de 1924, quando finalmente, após longos doze anos, os grupos rivais de J. J. Seabra conseguiram derrubá-lo do poder. Enfraquecido com a
derrota de sua candidatura à vice-presidência na chapa com
Nilo Peçanha, em 1922, e já fragilizado internamente pelos
ataques constantes que vinha sofrendo de uma forte oposição articulada por duas tradicionais famílias no mando
político da região, os Calmons e os Mangabeiras, José Joaquim Seabra conhecera não apenas a impopularidade, mas
também uma derrota fulminante que praticamente encerrara sua carreira política no estado (Sampaio, 1998, pp.
164-169). A reconfiguração do poder local, com a ascensão
de Francisco Marques de Góis Calmon (1924-1928) ao executivo baiano, teria efeitos quase que imediatos na vida de
Souza Carneiro e outros tantos seabristas de “três gerações”
(Carneiro, 1990, p. 55), lançados em um ambiente hostil
que se seguiu à posse do novo governador. Desde então,
passou a existir
uma dicotomia completa, um maniqueísmo absoluto na
política baiana: ou se é seabrista ou [...] calmonista [...] E
[...] realmente, a partir de 1924 até 1930, o que existe na
Bahia [...] é uma disputa de suas estruturas oligárquicas
[que] vai se caracterizar por derrubadas, perseguições,
perdas de mando, ascensão de valores novos, por
mil coisas que vão significar a polarização das forças
(Teixeira, 1988, p. 47).
Por essa época, em virtude das atitudes firmes de Souza Carneiro, agora como “homem de oposição, [que] não
se amedrontava jamais” (Amado, 1981), inúmeras passaram a ser as dificuldades, agruras e “privações que a família do velho professor de geologia foi obrigada a curtir,
por perseguições de um governador que não perdoava os
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
adversários” (Ferraz, 1972)23. Os efeitos das oscilações da
política baiana só não foram mais drásticos em termos do
rebaixamento social de Souza Carneiro e seus filhos graças
à intervenção de seu irmão mais novo, o advogado José
Joaquim, que “era o rico da família” e tinha acumulado
um bom dinheiro em Ilhéus, trabalhando para as novas
fortunas dos “fazendeiros do cacau”: foi ele “quem custeou
os estudos desses sobrinhos [...] quem aguentou as pontas” (Carneiro, 2008). De modo que, a despeito das dificuldades enfrentadas naquele momento, todos os filhos
conseguiram finalizar com sucesso as etapas educacionais
necessárias para se diplomarem nas instituições de ensino
superior baianas. Entre os filhos homens, dois seguiram
a tradição familiar e se formaram engenheiros na Escola Politécnica (Milton e Ivan); enquanto os outros três,
bacharéis, se diplomaram pela Faculdade de Direito da
Bahia (o primogênito Franklin, Nelson e Edison). Já as
mulheres, Miriam Stella e Lídia, se tornaram professoras,
após cursarem as duas únicas instituições públicas destinadas ao ofício: o Instituto Normal e o Ginásio da Bahia que,
23
Para piorar a situação, Souza Carneiro enviuvou e, em 1925, se casou novamente com certa Georgina Rocha, passando também a arcar com as despesas dessa
segunda relação. Georgina, que já era mãe de dois filhos, não teria tido boas relações com os enteados. Desse modo, não surpreende que os registros deixados
por amigos de Édison Carneiro façam recorrentes menções à penúria financeira
da família, funcionando sempre como um contraponto para se evidenciar as qualidades de Souza Carneiro como “homem de cultura”, que fazia da erudição o
meio e o fim de sua existência pessoal e social. Um “homem ilustre”, porém “pobre, vivendo com as dificuldades que cercam os que fazem da cultura sua meta”
(Amado, 1981). Em seu volume de memórias, Jorge Amado também menciona
as dificuldades materiais da família de Édison Carneiro, o qual é retratado como
sendo, na época, o “mais pobre de todos nós” (1992, p. 426). Sobre Laura Coelho
de Souza Carneiro não foi possível obter maiores informações, mesmo entre os
familiares, talvez, por ter morrido precocemente, em algum momento entre 1922,
quando teve seu último filho, e 1925, ano em que Souza Carneiro se casou com
Georgina Rocha. Ver APEBa, Seção Judiciária, Série Inventários e Testamentos,
Antônio Joaquim de Souza Carneiro, Ano 1943, Documento 05/2300/2800/06.
Quanto às relações pouco amistosas entre Georgina Rocha e os enteados, elas
foram mencionadas por Edíria Carneiro (2008).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
101
Uma família de cultura
102
desde 1918, oferecia a cadeira de “pedagogia”, formando
“bacharelas” para o ensino primário24.
A situação social e financeira de Souza Carneiro jamais
conheceu melhoras significativas. Muito pelo contrário, o
seabrismo cada vez mais imoderado do professor rendeu-lhe
ainda um dos mais fortes golpes sofridos em vida: o desligamento da Escola Politécnica, em 1932, ao ser “aposentado à força, sem mais nem menos, por motivos políticos” (Carneiro, 1943, p. 320; grifos nossos). O desligamento se deu
como resultado dos esforços empreendidos pelo então
recém-empossado interventor Juracy Magalhães para sufocar quaisquer pretensões de J. J. Seabra – bem como as de
outras forças oligárquicas locais – em assumir as rédeas do
processo revolucionário na Bahia, perseguindo e prendendo seus principais correligionários (Magalhães, 1982). E
como o seabrismo era um negócio de família entre os Souza
Carneiro, naquele mesmo ano Nelson Carneiro, já despontando como uma jovem e promissora liderança de oposição
ao interventor “estrangeiro” indicado por Vargas, também
seria acossado e, posteriormente, preso e deportado para o
Rio de Janeiro. Sem o emprego na Escola Politécnica e com
a família seriamente desestruturada, Souza Carneiro seguiria para o Rio de Janeiro para se juntar ao filho Nelson. Ali,
dando provas de que seu prestígio acadêmico não havia se
esvaído inteiramente, conseguiu obter a cátedra de estatística na Faculdade de Ciências Econômicas, da Universidade
do Distrito Federal25. No entanto, a experiência carioca não
duraria muito. Por volta de 1937, já estava Souza Carnei24
APEBa, Seção Judiciária, Série Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim de
Souza Carneiro, Ano 1943, Documento 05/2300/2800/06. Sobre o Ginásio da
Bahia, ver Farias (1937, p. 273).
25
Ao que consta, na história da universidade carioca o “primeiro professor de
estatística de que se tem notícia foi Antônio Joaquim de Souza Carneiro [...] Esse
professor, em 20 de março de 1934, assinou o termo de posse de substituto da
cadeira de Política Comercial e Regime Aduaneiro. Em 27 de novembro de 1934,
passou à ‘catedrático de estatística’” Pardal (2001).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
ro de volta à Bahia, embora fosse obrigado a esperar mais
alguns anos para reaver a vaga na Escola Politécnica, ocupada novamente por pouco tempo, antes de sua morte, em
1942, e sem a qual ele “ficou reduzido a quase nada” (Carneiro, 1943, p. 320).
As turbulências sociais e políticas foram vivenciadas por
Souza Carneiro em dois momentos: o primeiro, na ocasião
da derrota dos grupos oligárquicos que davam suporte às
suas ambições, e o segundo, com a Revolução de 1930, que
desmantelou a própria estrutura do poder baiano que permitia a atuação desses grupos. Ambos evidenciam o campo restrito de opções oferecidas a Souza Carneiro para enfrentar
as ameaças de desclassificação social que se mostravam cada
vez mais dramáticas e irremediáveis. Em grande medida, o
velho professor dependia, de um lado, de condições favoráveis para que fizessem valer seus serviços e suas lealdades
políticas e, de outro, do investimento em práticas capazes
de simbolizar sua condição de acadêmico e erudito. Contudo, derrotado politicamente e, por consequência, diminuídas, e, mais tarde, bloqueadas as chances de mobilizar
seu capital de relações, as possibilidades de reconversão de
Souza Carneiro ficaram quase que estritamente confinadas
às atividades e aos eventuais dividendos extraídos de suas
competências culturais e intelectuais. E a elas Souza Carneiro se lançou de maneira notável, passando a exercer
suas habilidades polivalentes nas mais variadas e inusitadas
áreas, transformando-se numa espécie de livre-atirador de
gêneros e temas. Como registrou um amigo de Édison Carneiro e frequentador da casa do professor, “em fins de 1934,
de malas arrumadas para o Rio, o velho Carneiro desdobrava-se numa atividade intelectual espantosa. Escrevia que
nem um danado: um livro por semana”26. De tal monta que
26
Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, Arquivo Arthur Ramos, Carta de
Clóvis Amorim para Arthur Ramos, 9 out. 1937, I-35,21532A.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
103
Uma família de cultura
104
o ecletismo e a produção desvairada de Souza Carneiro resvalariam, por vezes, no descrédito e nas acusações de oportunismo e falta de seriedade intelectual.
O próprio Édison Carneiro, com uma lucidez doída,
reconheceu a “profunda subversão” que as reviravoltas da
política baiana produziram na vida do pai. Reviravoltas que
“não somente lhe roubaram o estímulo como [também]
lhe estragaram a saúde”. A seu ver: “certamente isso explica
que tivesse escrito” livros que “carecem, de certo modo, da
estrita seriedade científica dos primeiros anos”, e trabalhos
“sem base na realidade” (Carneiro, 1943, pp. 319-320) 27.
De meados da década de 1920 em diante, o que se observa
é a crescente dedicação de Souza Carneiro à literatura de
ficção, à atuação na imprensa, ao ensaísmo político e etnográfico, aos domínios da geometria contemplativa e aos temas
da maçonaria, do espiritismo, das ciências esotéricas e das
forças ocultas atuantes na natureza e no homem, a exemplo da biografia Jesus!: mistérios das iniciações de Jesus de
Nazareth (1927), fruto de sua filiação ao “seio fecundo e
benfazejo do Círculo Esotérico” (Souza Carneiro, 1927, p.
4)28. No mesmo ano em que, como membro de alta gra27
Talvez, com isso, o filho estivesse respeitosamente dizendo que, ao final da vida,
não apenas a saúde física do pai foi se deteriorando, mas também sua saúde e
seu equilíbrio psicológico e mental. Na mesma carta acima mencionada de Clóvis
Amorim para Arthur Ramos, o amigo de Édison (Clóvis Amorim provinha de uma
família de senhores de engenho no Recôncavo) pintaria o retrato de Souza Carneiro marcado tanto pelo desgaste físico quanto pela sua “imaginação” por demais
prodigiosa e “inventiva”: “Furundungo [romance de Souza Carneiro, publicado em
1934] era a ‘obra supimpa’, como ele dizia, arrebitando o bigode crespo e mostrando o resto de dentes num sorriso vitorioso. Trazia um elucidário e, nele, oitocentos
termos da gíria [popular do Recôncavo baiano]. Escrevia o romance e inventava os
oitocentos termos. Visitando-o sempre, ele me ia lendo o romance, ao tempo em que
decifrava o elucidário. Cada termo novo era um achado. E o romancista sorria [...]
– Amorim, veja este. Conhece-o? [...] Não [...] Mas o termo estava fresquinho ainda.
A imaginação de Souza Carneiro, havia poucos minutos, o tinha abortado”. Biblioteca
Nacional, Seção de Manuscritos, Arquivo Arthur Ramos, Carta de Clóvis Amorim
para Arthur Ramos, 9 out. 1937, I-35,21532A; grifos nossos.
28
Ainda, no livro Jesus!, há a informação de que o professor era o “Delegado Geral
da Ordem do Estado da Bahia”. A condição de maçom foi informada por seus pa-
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
duação, foi um dos responsáveis pela fundação da Grande
Loja Maçônica da Bahia, em Salvador, passando a figurar no
segundo posto da hierarquia da nova loja29. Todo esse universo carregado de misticismo e esoterismo fazia com que,
segundo Jorge Amado, Souza Carneiro assumisse as feições
de “um mago”:
Era um mago, vivia cercado por forças celestes e creio que
adivinhava. Exercia poder absoluto sobre todos os centros
espíritas de Salvador, especialista em Allan Kardec e em
outros mestres da mediunidade [...]. Um mago, sem dúvida,
sonhando com o futuro, incapaz de qualquer mesquinhez, tão
desligado das misérias, da maldade e da feiura que fazia difícil
distinguir no velho Souza Carneiro a fronteira que separa a
realidade da imaginação. Nós o adorávamos, tínhamos nele
não apenas um mestre, também um companheiro (Amado,
1981; grifos nossos).
De fato, seria difícil não se sentir de algum modo tocado pelos lampejos de tragédia que brotam desses retratos
dos anos finais da vida de Souza Carneiro. Um personagem que surge revestido de certa nobreza quixotesca e que
parece ter se sentido cada vez mais “desligado” da realidade de frustrações e “misérias”, passando a se encastelar em
um mundo de “sonhos com o futuro”, cercado por “forças
celestes”, as quais, quem sabe, ele acreditava poder invocar
a fim de intervir na série de transformações que foram gradualmente solapando tudo aquilo que estava na base de sua
existência social, de sua autoestima e de sua identidade e
rentes, segundo os quais, inclusive, Souza Carneiro teria alcançado as graduações
máximas na hierarquia (Carneiro, 2008). Em 1926, pela mesma editora paulista
que lançou Jesus, Souza Carneiro também publicaria um livro chamado Ciência
esotérica: análises e confrontos.
29
A ata de fundação de Grande Loja da Bahia, que ainda existe, pode ser consultada no próprio site da instituição, no texto “Fundação da Grande Loja Maçônica
do Estado da Bahia – 1927” (Sem autor, s.d.).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
105
Uma família de cultura
106
orgulho pessoais. É possível imaginar, nesse sentido, o profundo impacto deste ambiente familiar na sensibilidade do
jovem Édison Carneiro, desenvolvida precocemente e endereçada não apenas aos exercícios e às divagações intelectuais
e literárias, como também à socialização com uma profusão
insólita de práticas, repertórios e símbolos místicos e rituais
que, certamente, contribuíram na produção de disposições
intelectuais e afetivas necessárias para uma apreensão relativizada dos candomblés e das crenças de matrizes africanas. De outra forma, a convivência próxima e continuada
com diversas formas de se relacionar com o plano místico
e extrassensível que não apenas aquela professada pela fé
católica dominante na Bahia possibilitou a Édison Carneiro
não tomá-la como única ou absoluta30. Muito pelo contrário, como atesta um amigo (ainda que certamente com exagero), há razões para crer que, durante parte da juventude,
o próprio Édison Carneiro se julgou capaz de manipular as
forças mágicas e celestiais conclamadas pelo pai:
Edison era um mestiçozinho de quase quinze anos, muito
feio e muito tímido, que se dizia esoterista, meio mágico e
meio adivinho, mas que não passava de um menino crente
em bruxedos e doente de superstição. Não fosse ele filho de
Souza Carneiro, esse doido de cabelos brancos, adepto da
“goetia”, que, num pardieiro da Rua São Bento, organizava
uma espécie de “sabbat”, evocando demônios maléficos,
conjurando espíritos, entre o ritual sinistro das beladonas e
30
Para essa frouxa socialização com o universo católico, muito pode ter contribuído a morte precoce da mãe. Édison Carneiro vivenciaria o catolicismo como algo
distanciado, cujos contatos se davam unicamente pelo lado de sua tia paterna,
Adília Rosa, celibatária e professora primária, cuja casa era bastante frequentada
pelos sobrinhos. “A minha tia era bem religiosa: ia pra igreja, a gente que morava
lá, ia todo domingo tinha que ir pra missa [sic]. Depois que eu fui crescendo mais,
eu pegava meus irmãos, a gente dizia que ia pra missa e ia pra rádio [...] tinha a
rádio sociedade da Bahia e de manhã eles faziam um programa e a gente ia [...]
pra Rádio, e voltava pra casa, e dizia que tinha ido pra igreja” (Carneiro, 2008).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
dos meimendros. Edison vivia a escrevinhar tolices [...], era
de uma fecundidade admirável. Aquele literatinho parecia
que escrevia com as mãos e com os pés. Mal se adivinhava
no Édison Carneiro de 1929 o escritor de 193731.
No entanto, independentemente de quais fossem os
destinos, as controvérsias, os temas e as atividades desenvolvidas em sua vida pública e intelectual ou privada, o importante a ser destacado é que Antônio Joaquim de Souza Carneiro conseguiu ser visto como um “nome que dispensa[va]
apresentações”, seja pelo seu “talento polimorfo”, seja pelos
“diferentes trabalhos de sua lavra”32; reconhecido e apontado como “uma das inteligências mais fulgurantes e cultas do nosso meio intelectual”33. Munido pela segura confiança de si e pela “polimorfia” de suas competências e da
erudição adquirida no decorrer de sua vida profissional,
Souza Carneiro parecia não duvidar das possibilidades de se
sobressair em áreas como a literatura de ficção e os estudos
etnográficos: investimentos que, em muito traziam os esforços do velho professor em reagir à situação incontornável
de desgraça social, acadêmica, intelectual e financeira que
se seguiu ao movimento de outubro34.
Mas, igualmente, não seria exagerado afirmar que a
falência social e a percepção cada vez mais aguda da irreversibilidade da situação política baiana ajudam a enten BPEBa. Clóvis Amorim, “Doidos”. Estado da Bahia, 15 jun. 1937.
Fundação Clemente Mariani, Centro de Documentação e Informação Cultural
sobre a Bahia (Cedic-BA). “A atualidade brasileira”, Etc. n. 170, 16 ago., p. 1.
33
BPEBa. “Nota sobre Comunismo, nacionalismo e idealismo”. Diário da Bahia, 7
out. 1931.
34
Na ficção, conseguiria lançar dois dos seus romances: Furundungo e Meu menino,
ambos publicados em 1934, no Rio de Janeiro, tendo como mote os costumes e a
linguagem popular baiana e nos quais, “em discordância com o padrão da época,
personagens negros surgiam como principais” (Oliveira, 1987, p. 25). Tais temas
prendiam a imaginação de Souza Carneiro e, de alguma forma, reapareceriam em
seus ensaios etnográficos, a exemplo de Mitos africanos no Brasil (1937) e em tantos
outros manuscritos que, segundo Edison, ele teria deixado sobre a língua tupi e as
mitologias das sociedades indígenas brasileiras (Carneiro, 1943, p. 320).
31
32
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
107
Uma família de cultura
der, ao menos em parte, o que pareceu ser o despertar de
Souza Carneiro aos radicalismos ideológicos e à presença do
proletariado na cena política brasileira35. Esse aspecto seria
explorado em seu livro Comunismo, nacionalismo, idealismo,
de 1931, que foi produzido justamente num momento no
qual seu desespero era um sentimento crescente, ao assistir
às forças varguistas tornando cada vez mais remotas as chances do “chefe” J. J. Seabra em retomar o poder no estado.
Para tanto, não hesitaria em clamar pela radicalização do
“nacionalismo revolucionário” e conclamar as classes proletárias a assumir seu papel nos destino da nação:
108
a revolução não se fez somente para depor um governo
e logo montar outro com os mesmos cancros [...] Ela
está preparando a Nação para a conquista de uma nova
orientação em que predomine a política do trabalho [...]
Nenhuma revolução vence sem que [...] triunfe
o proletariado36.
Enfim, a convocação do professor Souza Carneiro à radicalização das lutas políticas e ideológicas frente a qual Édison
35
Não deixa de ser interessante notar que foi na entronização de imagens do
“operário” que Souza Carneiro encontrou um paralelo simbólico para dar conta de suas práticas espiritualistas e esotéricas. Práticas que não apenas buscavam
valores exemplares na sabedoria dos “pobres” e dos “humildes operários”, como
também se pautavam nas “bases dos ensinos sublimes da benemérita Ordem [do
Círculo Esotérico] de que somos humildes operários” (Souza Carneiro, 1927, p. 10;
grifos nossos).
36
BPEBa. “Em vez de nacionalismo, civilismo”. Diário da Bahia, 29 ago. 1931, p. 2.
O trecho constitui parte de uma palestra proferida por Souza Carneiro na Escola
Politécnica. A palestra, que marcava o lançamento do livro Comunismo, nacionalismo, idealismo, era apenas uma, de várias, que Souza Carneiro vinha realizando na
Escola Politécnica, na qual buscava se colocar como uma liderança política, incitando a “mocidade acadêmica” a tomar “parte na campanha pró-constituinte”. O
próprio livro já era o resultado de uma destas palestras: de uma “lição inaugural,
proferida em abril de 1931, por ocasião da abertura dos cursos acadêmicos da nossa Escola Politécnica”; destinada a “todos os espíritos verdadeiramente empenhados na regeneração nacional”. BPEBa. “Comunismo, nacionalismo e idealismo”.
Diário da Bahia, 8 mar. 1932, p. 2.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
Carneiro dificilmente ficaria imune ou insensível: ainda mais
quando se tratava de lutar contra um regime que, aos seus
olhos, se confundia tão sensivelmente com a própria desestabilização de seu mundo familiar e com o progressivo debilitamento da saúde e dos sentidos de viver do pai.
***
A despeito das instabilidades que assombraram sua vida,
o fato de Antônio Joaquim de Souza Carneiro ocupar uma
posição prestigiada como catedrático da Escola Politécnica, receber nomeações diversas, acumular prêmios e obras
que atestavam suas capacidades acadêmicas e culturais, e
garantir – mesmo que a duras penas – o encaminhamento
dos filhos às instituições nas quais as elites baianas formavam seus quadros, logrou minimizar os efeitos esterilizantes
que a “raça” poderia ter na concretização de suas aspirações sociais e profissionais, assim como na de seus filhos. De
modo que, diante de suas qualidades como homem culto,
professor universitário, com trânsito e boas relações com
chefes políticos locais, não chega a surpreender o fato de
sua certidão de óbito atestá-lo como “branco”:
Aos dez dias do mês de Dezembro do ano de mil novecentos
e quarenta e dois, nesta Capital do Estado da Bahia [...]
em meu cartório compareceu Mário Guimarães e exibindo
atestado do Doutor Renato Lobo, declarou: que hoje às
quatro horas e trinta e cinco minutos [...] na casa oitenta
e sete à Rua Sodré, faleceu por colapso cárdio-muscular
no curso de obstrução intestinal crônica Antônio Joaquim
de Souza Carneiro, do sexo masculino de cor branca, de
profissão Engenheiro, de naturalidade Bahia37.
37
APEBa, Seção Judiciária, Série Inventários e Testamentos, Antônio Joaquim de
Souza Carneiro, ano 1943, Documento 05/2300/2800/06; grifos nossos.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
109
Uma família de cultura
110
Mas é preciso ter cuidado na interpretação dessa branquitude atribuída ao insigne professor: ou melhor, nas formas de se compreender o “poder mágico” dessas “cartas de
branquitude” que foram, nos termos de Gilberto Freyre, a
“farda” e o “diploma” universitário no movimento de ascensão social do mulato no Brasil novecentista (Freyre, [1936]
2003, p. 727). Em grande medida, a trajetória de Souza Carneiro se mostra um caso eloquente das considerações feitas por Oracy Nogueira, quando afirma que a identificação
ou classificação de um indivíduo quanto à cor constitui um
complexo mecanismo de significação social, relativamente
“maleável” e “flexível”, capaz de se modificar conforme a
“associação com outras características de status, como grau
de instrução, a ocupação e hábitos pessoais, com tendência a se atenuar a cor de indivíduos socialmente bem-sucedidos” (Nogueira, 1978, p. 147). Evidentemente, isso não
significa que a “raça” e a “cor” de Souza Carneiro foram
invisíveis aos olhos de seus contemporâneos. No entanto, a
certidão de óbito, quem sabe, redigida por alguém próximo
ou por algum admirador de seus talentos, ao classificá-lo
como “branco”, estava dando feição e expressividade mais a
esses sinais “característicos de status” do que propriamente
à “raça” ou à cor física. De qualquer forma, um fenômeno que, ainda segundo Oracy Nogueira, traz “embutido
ou implícito o característico preconceito brasileiro, com o
continuum de valorização da cor da pele humana, da branca
e preta” (1992, p. 243)38.
38
Ao tratar da trajetória do médico Alfredo Casemiro da Rocha, Oracy Nogueira
evidenciou fenômeno semelhante ao de Souza Carneiro, quando se deparou com
classificações conflitantes quanto à cor de Alfredo. Na certidão de casamento, ele
aparecia como “preto”, enquanto na de óbito constava como “pardo”. Ambos os
documentos foram lavrados na mesma cidade e em períodos não muito distantes
um do outro: em Cunha (SP), entre as três primeiras décadas do século XX. Diz Nogueira: “Comentando a discrepância com um serventuário aposentado que conheceu os colegas responsáveis pelos dois termos, o mesmo explicou que o serventuário
do casamento antipatizava com Alfredo, pelo o que o identificou como de cor preta,
enquanto que o outro, por condescendência, lhe atenuou a cor” (1992, p. 243).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
Com os dados e materiais disponíveis, seria impossível
extrair elementos mais substantivos quanto aos modos pelos
quais o professor da Politécnica se autorrepresentou no que
diz respeito aos componentes étnicos de sua identidade. O
mesmo pode ser dito com relação às eventuais e prováveis
situações de preconceito racial por ele sofridas, percebidas
ou não enquanto tais. Contudo, parece verossímil afirmar
que Souza Carneiro e sua família dificilmente foram vistos
como negros numa sociedade como a baiana. Nas primeiras décadas do século XX, tal categoria buscava instituir
simbolicamente dois grupos de pertencimento que, muitas vezes, mas nem sempre, coincidiam: os sujeitos considerados portadores ou praticantes de uma “cultura africana”, com todas as propriedades reificantes a ela associada
(barbárie, degeneração moral e sexual, violência etc.), e
aqueles alocados na base da hierarquia social, “especialmente os que vivem do trabalho manual e braçal” (Azevedo, 1966, p. 36)39. O ponto é importante, pois retém dois
elementos que, pela recusa e pelo contraste, funcionavam
como sinais de distinção indispensáveis para entendermos a
forma como Édison Carneiro, notadamente nas primeiras
poesias de juventude, objetivou sua posição na estrutura
“racial” e de classe de Salvador. Tal posição a antropóloga
norte-americana Ruth Landes (1908-1991) observou de
maneira exemplar, ao relembrar de sua surpresa quanto ao
fato de a “raça” de Edison nunca haver sido mencionada
nas cartas de apresentação dadas a ela, na ocasião de sua
chegada à Bahia, em 1938:
Pareceu-me significativo que Edison fosse um mulato, da cor
trigueira chamada parda no Brasil. Era significativo porque
39
Sobre a estratificação e os esquemas de percepção racial em Salvador analisados em diferentes momentos históricos, ver o clássico trabalho de Donald Pierson
([1942] 1971); além de Azevedo ([1953] 1996), Landes ([1947] 2002), Bacelar
(2001), Sansone (2003) e Figueiredo (2002).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
111
Uma família de cultura
as cartas de apresentação vinham de colegas brancos, que
não haviam mencionado a sua raça ou cor. Para eles isso
não importava. Aceitavam-no pelo seu provado valor como
jornalista e como erudito. Em nenhum momento percebi de
sua parte, qualquer preocupação especial com minha raça
[Ruth Landes fazia referência à sua origem judaica]. [Ele]
vinha de família pobre mas boa, qualificada de fidalga. O
pai, de tez clara, era professor de engenharia aposentado,
de ótima reputação por trabalhos originais. A tia parecia
índia e era diretora de uma escola. Um dos tios era juiz. Um
irmão mais velho era advogado conhecido [...] Era o tipo
de família às vezes chamada de “negros brancos”, por muito
respeitada (Landes, [1947] 2002, pp. 49-50; grifos nossos).
Raça, classe e cor nas poesias de juventude
112
A leitura das primeiras poesias de juventude de Édison
Carneiro constitui uma porta de entrada interessante para
observarmos como esta inscrição “fidalga”, nas palavras
de Ruth Landes, rebate no registro de uma sensibilidade
com forte senso de colocação social, mas abalado, às vezes,
pelas incertezas e penúrias vivenciadas pela família naquele momento. A produção poética corresponde a um curto
período de sua vida, confinado aos anos de 1928-29, quando
o autor tinha apenas 16 e 17 anos. Na época, Edison finalizava os estudos básicos no Ginásio da Bahia e, provavelmente, começava a se preparar, seguindo os mesmos passos dos
dois irmãos mais velhos, Franklin e Nelson, para o ingresso
na Faculdade de Direito; o que, de fato, veio a ocorrer em
1930. Tratava-se de um momento de sua vida em que talvez
começasse a sentir os primeiros prenúncios de uma vocação
para “homem de letras” ou jornalista, embalada não apenas pela força dos exemplos do pai e dos irmãos, mas também
pelas fantasias que deviam revestir a vida de um jovem às
vésperas de ingressar numa faculdade em que “repontavam,
ali, vocações promissoras para as letras, a política, o jornaLua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
lismo, a advocacia, a magistratura e a cátedra universitária”
(Nogueira, 1978, p. 16).
Pode-se dizer, nesse sentido, que as experiências de Édison Carneiro como poeta iniciante deram vazão a essa ebulição de fantasias juvenis, em muito marcada pelas tensões
de seu ambiente familiar – àquela altura amargando o ostracismo da facção política do pai –, bem como pela sua condição de quarto filho homem, “muito feio e muito tímido”40.
E liberto, em parte, das pressões de destinação social e profissional que recaíam sobre os mais velhos; sobretudo em
torno de Nelson, que “era outra coisa, alto, bonitão e [...]
bom orador” (Carneiro, 2008), desde muito cedo encaminhado pelo pai e pelo tio paterno, José Joaquim, ao convívio próximo com Seabra (Carneiro, 1990). Afinal, como
chamou a atenção Sergio Miceli, seria importante não minimizar os efeitos decisivos da “falência” material, da política
familiar e da posição de seus membros na linhagem, relegando os caçulas ou os mais novos dessas “famílias de ‘primos pobres’ da oligarquia” aos trabalhos menos “masculinos” ou prestigiados: “tais situações de relegação punham
fora de seu alcance [dos caçulas] os investimentos com que
são brindados os primogênitos e os ocupantes das demais
posições privilegiadas no espaço da fratria e da linhagem”
(2001, p. 162). De modo que Édison Carneiro não esteve
ileso às expectativas e aos investimentos diferenciados que a
família depositava em cada um de seus membros, conforme
suas posições na linhagem.
Ainda estudante ginasial, Édison Carneiro assistia à agitação familiar em torno das disputas políticas baianas; família que, graças à Aliança Liberal, encontraria a oportunidade
esperada, desde 1924, de ver seu “chefe” novamente vencedor. J. J. Seabra retornou a Salvador para encabeçar a cam40
BPEBa. Clóvis Amorim. “Doidos”. Estado da Bahia, 15 jun. 1937. “Era o mais feinho de todos. Era feio que o coitadinho... Quando era adolescente, depois ficou
mais velho, engordou mais, ficou melhor” (Carneiro, 2008).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
113
Uma família de cultura
panha aliancista, encontrando forte apoio, principalmente,
nos grupos de jovens universitários (Sampaio, 1998). Entre
esses universitários já se destacava por sua liderança estudantil, na Faculdade de Direito, o irmão de Edison, Nelson
Carneiro, sobre o qual recaíram as chances de fazer valer
as “lealdades” da família em favor de uma carreira política.
Embora não fosse insensível ao momento, Edison contava
com um ambiente de relativa despreocupação e liberdade
para o exercício das divagações e “inquietações” do espírito, podendo contar com a “sala cheia de estante de livros”
(Carneiro, 2008) do pai e com a presença dos amigos de
ginásio e da Academia dos Rebeldes que começavam a frequentar a casa de Souza Carneiro – para onde, sem dúvida,
todos esses “incipientes literatos” afluíam – na certeza de ali
gozarem de toda sorte de estímulos e licenças possíveis às
“bagunças” barulhentas e aos debates acalorados.
114
Senhor de imaginação e magia, um mestre da vida [...]
Em sua residência nos Barris, alcunhada de Brasil – por
enorme, desorganizada e entregue às baratas – nos abrigamos os
rebeldes [...] Seu filho, Edison [...] figurava entre os mais
combativos da novel agremiação e o outro filho, o mais velho,
Nelson, com ela simpatizava, se bem olhasse com certa
reserva e alguma suspeita aquela agitação de incipientes
literatos: já então o futuro senador Nelson Carneiro participava
da vida política, líder estudantil de notória atuação. O professor
Souza Carneiro não nos olhava com suspeita nem com reservas;
ao contrário, dava-nos caloroso apoio, compartia de nossas
inquietações, sustentava nossa batalha, em sua casa dos Barris,
pobre e misteriosa. O professor, segundo afirmava, escondia
no quintal um avião [...] que lhe serviria para controlar
do alto dos céus as próximas eleições às quais pretendia
concorrer, candidato a deputado pela oposição (Amado,
1985; grifos nossos).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
Desse modo, algumas das chaves de leitura que conferem sentido aos poemas de Édison Carneiro encontram-se
nessa longa citação de Jorge Amado. Significativamente, os
primeiros deles saíram, entre os meses de setembro e novembro de 1928, no jornal A Noite, órgão aparentemente simpático aos interesses dos democratas baianos e de seu cacique J.
J. Seabra41. Em sua maioria, trata-se de poemas cujos temas
não fogem muito a alguns clichês da época, próprios a um
jovem que começava a arriscar seus primeiros versos: recortes
da paisagem local, frustrações amorosas, visões de mulheres
ideais, flertes e inseguranças afetivas e mesmo taras sexuais.
Contudo, em meio aos transes amorosos, Édison Carneiro
não deixa de registrar as fortes incertezas que pontuavam
suas fantasias de projeção social e intelectual, imprimindo
um desânimo ou “ceticismo” à realidade que, por vezes, quebra o clima de “alegre farra” do conjunto dos poemas.
Talvez, do ponto de vista formal, certo ar de novidade
ficasse por conta da frouxidão rítmica e do uso dos versos
livres, de feitio humorístico e irônico a valores e sensibilidades românticas, que contrastava com a gravidade dos
sonetos e dos poemas elevados que abundavam os jornais
e as revistas literárias de Salvador. Em alguma medida, evidencia-se que a leitura e apreensão das linguagens literárias
modernas começavam a surtir efeito entre os intelectuais
locais42. O expediente irônico aos valores românticos é
41
Embora não tenha maiores conhecimentos sobre o jornal A Noite, nele também
colaboravam jornalistas de reconhecidas ligações com Seabra, a exemplo de Cosme de Farias (1875-1972): “Em grande parte da vida política de Cosme de Farias,
sua principal aliança era com os seabristas. Segundo Mônica Celestino, ‘Cosme seguia a decisão do ex-governador José Joaquim Seabra [...] e do seu grupo de não
apoiar os jovens Calmons, Otávio Mangabeira e Simões Filho’” (apud Oliveira,
2004, p. 108).
42
“O modernismo de 1922, que se firmava e se diversificava, foi transportado de
São Paulo até aqui [Salvador] somente em 1927, cinco anos mais tarde, quando
apareceram os poemas de Eugênio Gomes, Moema e A balada do ouro, de Godofredo Filho, grande poeta baiano [...] E foi aí que os grupos literários começaram a
surgir” (Amado apud Raillard, 1992, p. 34).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
115
Uma família de cultura
mais nítido, por exemplo, no poema “O que falta a uns”,
no qual o poeta concebe tais valores como uma absoluta
“tolice”, mas que não pode ignorar ou abandonar sob pena
de perder suas amantes:
Eu, de namoradas, / tenho três... / E, a cada uma / digo /
uma tolice... / São três mulheres / de quem eu / ocupo o
tempo / enchendo-lhes os ouvidos / de pulhices românticas
/ e de juras dum amor / que eu nunca senti (Carneiro in
Santos, [12/10/1928] 2005, p. 75)43.
116
Vale chamar a atenção para um elemento importante
na leitura dos poemas que Édison Carneiro publicou em
1928, no jornal A Noite. O autor os concebeu nos moldes de
um “folhetim poético” (Seixas, 2005), formando uma série
única e coerente de poesias intitulada de “Musa capenga”44.
Assim, a maioria das poesias foi publicada com poucos dias
de distância umas das outras, quando não nenhum. Ao que
parece, a intenção era de que fossem lidas de modo articulado. Desse modo, parece significativo que logo no primeiro poema da série, “Primavera”, Carneiro lançasse mão
de certas coordenadas sociais quanto ao lugar ou a posição
Salvo indicação contrária, todas as poesias de Édison Carneiro citadas encontram-se reunidas no livro de Gilfrancisco Santos, Musa capenga. Assim, após as citações serão mencionadas apenas a data original da publicação e a numeração
da página em que o poema se encontra. Alguns dos poemas estão sem dia e mês
especificados. Nestes casos será colocada apenas a página. Todos os poemas não
fogem ao período já mencionado: de setembro a novembro de 1928.
44
Não saberia precisar as razões ou os sentidos implicados no título “Musa capenga”, dado ao conjunto dos poemas. A única pista que encontrei (ainda assim
bastante frágil) poderia indicar se tratar de uma tirada de humor com relação a
uma seção diária de poesias que existira em Salvador, por volta de 1922, e que se
chamava “Musa baiana”. Conforme a autobiografia do magistrado baiano Adalício
Coelho Nogueira (1902-1990), tratava-se de uma seção de poesias empreendida
em prol da candidatura à presidência de Arthur Bernardes, podendo daí aventar
a hipótese de se tratar de poemas de exaltação à Salvador, à Bahia e ao Brasil: exaltação à Bahia que Édison Carneiro, talvez, ironizasse com a sua “Musa capenga”
(Nogueira, 1978, p. 23).
43
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
a partir da qual a realidade estava sendo apreendida. Os
elementos mais significativos que conferem uma identidade social própria ao poeta eram, sobretudo, aqueles que o
circunscreviam como um “estudante”. Tal critério de localização é decisivo para se entender os tipos de experiências,
espaços, relações e sentimentos que se encontram invocados no conjunto dos poemas.
Os estudantes / em alegre farra / passaram cantando / [...]
brincando fingindo / uma gargalhada / que é / um manto
enorme / que cobre / o enfezamento / desta vida tão má...
/ eu também brinquei, / eu que, também / sou estudante /
[...] Estavas lindas Cremilda / Se não fosse / a grande
distância / que me separava / do teu carro / eu teria / dado
um pulo / e festejando / a primavera / beijando-te na boca
([24/09/1928] 2005, p. 67).
O “estudante”, portanto, funciona como uma informação projetiva que recobre todos os poemas seguintes, construídos em torno de aventuras, frustrações e episódios que
se imaginam próprios a tal condição. E ainda, reivindicando para si o direito de compartilhar as “alegrias”, farras e
paqueras nas ruas da cidade, o poeta parece se utilizar da
condição estudantil como uma estratégia de evasão às mazelas da vida. Nesse sentido, o primeiro poema prenuncia
uma tensão que será constante no restante da série: aquela
entre as “alegrias” e as farras amorosas de um estudante,
ainda livre de certos compromissos sociais, e as incertezas
e as dúvidas quanto aos destinos de um jovem aspirante a
intelectual e escritor, frente a um ambiente percebido como
hostil. “Ostracismo intelectual”, por exemplo, desnuda por
inteiro as apreensões e as amarguras do literato iniciante,
potencializadas ainda mais pela percepção da distância
que separa o intelectual de província dos grandes centros
de consagração e produção cultural do país: “Seu mano, /
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
117
Uma família de cultura
118
estou com vontade / de escrever uma novela... / Mas como
não quero / que a crítica me rache / com a cartola / [...]
Na Bahia, os talentos / vivem e morrem esquecidíssimos /
dos outros intelectuais / [...] É verdade... / quanto mais / o
pobre do meu eu!” ([s.d.] 2005, p. 82).
Édison Carneiro transpõe para o plano ficcional um
registro sintético das ambiguidades vivenciadas no plano
familiar, em suas possibilidades concretas de rebaixamento
social: ao receio do ostracismo intelectual, sobrepõe-se perfeitamente o dramático ostracismo político da facção política do pai. Essa situação, mesmo aos olhos de um ginasial
muito moço, já se pronunciava traumática o suficiente, a
ponto de produzir fissuras na própria experiência do tempo,
como é possível observar em “Ontem e hoje”. Nesse poema,
os versos foram arranjados na chave de um jogo de contrastes secos entre um passado de “bonança”, porém fantasioso
e “irreal”, e um presente doloroso e “triste” da “vida verdadeira” imersa em “tempestades” e sonhos renunciados45:
Ontem e hoje, / alegria e tristeza / amor e esquecimento /
vida irreal e vida verdadeira / vida ilusória e vida na
própria vida / castelo de ilusões e realidade esmagadora /
A percepção de um ambiente social hostil também está presente num outro
poema, intitulado “Idiotas...”. Os versos afirmam o ceticismo do autor perante as
coisas: “O ceticismo / é coisa boa / Muito boa mesmo [...] Por isso eu / que tenho
cá minhas ideias / já deixei / de acreditar / em todas as pulhices / que andam por
aí... / E esses trouxas / que não raciocinam [...] dizem: / – Coitado! / Além de pobre / acético e materialista” ([17/10/1928] 2005, p. 78). Com relação às angústias
do escritor em terras provincianas e passadistas, Édison Carneiro escreveu “A chuva e a Sé”, em que lamenta a chuva não ter sido capaz de pôr abaixo a igreja da Sé,
símbolo tanto do catolicismo quanto da arquitetura coloniais de Salvador: “A nossa pobre cidade, que do Salvador só tem o nome, passou, anteontem, Domingo,
algumas horas de verdadeira fúria contra a chuva... / As ruas todas – um perfeito
lago; aqui e ali chuva só; roupas encharcadas; os pés molhados a mais não poder
[...] Eu gritei contra a chuva... Dei-lhe epítetos, disse-lhe... / palavradas infâmias,
misérias... / Mas não fiz isso porque ela tivesse caído tão assustadoramente sobre a
capital. Gritei com razão... Razão de sobra! / Gritei por ela não ter sido mais forte
para derrubar a Sé!” ([13/11/1928] 2005, p. 95).
45
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
bouquet de rosas e espinhos de outras rosas / mar de bonança
e mar de tempestade / espectro já morto e entidade ainda
viva / ilusões que morreram e espera nças que nasceram
([20/11/1928] 2005, p. 98).
Entretanto, um aspecto importante a ser ressaltado é
que em nenhum momento os lamentos sobre a pobreza e
as incertezas de reconhecimento que rondam a existência
do poeta parecem desestabilizar o senso de colocação e a
identidade social do autor. O raio de ação das poesias quase
não foge dos lugares frequentados pelas elites: as ruas dos
estudantes, onde passeiam os carros dos afortunados, e aonde acontecem os flertes e pedidos de beijos com as moças
“que [dizem] ser do chic e do bom-tom” ([23/10/1928]
2005, p. 84). Em apenas duas ocasiões aparecem elementos
nitidamente estranhos e distantes ao universo social que o
poeta vivencia: intrigantemente elas ocorrem nas duas vezes
em que Édison Carneiro faz referências explícitas a elementos percebidos como “negros” naquele contexto. Uma
estranheza e/ou distância que se estabelecem, ora pela tirada
jocosa, ora pela invocação do místico46. No primeiro deles,
“Amea­ça”, os versos servem como uma advertência do poeta
à amante, ameaçando colocar uma “coisa feita” na porta da
casa dela, caso ela não correspondesse ao seus sentimentos:
Meu anjinho / não me despreze / olhe, veja lá: / se você
não me quiser... / eu não me mato não! / Mas vou / ao
Pau Miúdo / e trago, / pra botar na sua porta / uma coisa
feita / dessas que fazem / morrer de amor, / preparada /
46
Sem dúvida, aqui pesava a influência do pai, levando Édison Carneiro a se interessar pelos temas místicos e religiosos, chegando mesmo a anotar em um de seus
poemas que a “religião” era seu “tema predileto” ([17/10/1928] 2005, p. 78). No
conjunto de suas poesias, em mais de uma ocasião Édison deixaria emergir esse
seu interesse. Por exemplo, o poema “Horóscopo”, em que dizia ser o “bicho / nas
previsões... / E quando tenho qualquer medo / podem escrever / que aquilo /
me acontecerá” ([08/11/1928] 2005, p. 92).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
119
Uma família de cultura
minha beleza, / pelas mãos / do grande mago / Jubiabá!
([22/10/1928] 2005, p. 83).
120
Muito antes de Jorge Amado consagrar o nome desse
pai de santo com seu romance Jubiabá, de 1935, o mago já
gozava de amplo conhecimento da parte do público e das
autoridades da sociedade soteropolitana e, pelo visto, com
clientela endinheirada e importante. Contudo, não era de
maneira positiva que o “famoso Jubiabá” aparecia nos noticiários, mas sim, pela charlatanice e “selvageria” de suas práticas, somente “explicáveis nos tempos coloniais”47. E, nesse sentido, embora não se valesse da categoria “negro” ou
outra equivalente para qualificar a cor do “mago”, Édison
Carneiro mobilizava um nome (Jubiabá) e uma prática (coisa feita), certamente convencido de que, assim como ele,
seus leitores os entenderiam como associados a “negros” e
“africanos”48.
Ao mesmo tempo, existe uma forte distância separando
o espaço que o poeta e a amante ocupam e aquele onde se
encontra Jubiabá: esse está “lá” no Pau Miúdo, região periférica e pobre de Salvador. Entretanto, tal distância deve
ser lida apenas como um marcador de outras, mais significativas, de natureza social e cultural. Afinal, são os ingre47
BPEBa. “Os despachos ‘feiticeiros’”. A Noite, 26 mar. 1925, p. 2. Quatro dias
antes, no mesmo jornal, noticiava-se o absurdo de “rapazes, velhas e mocinhas de
boa aparência” frequentarem o “famoso Jubiabá”, um tipo charlatão que vivia “catando os níqueis dos incautos”. BPEBa. “Os domínios de Jubiabá”. A Noite, 22 mar.
1925, p. 3. Vivaldo da Costa Lima também faz referência ao pai de santo Jubiabá
que, ainda na metade da década de 1930, mantinha um terreiro prestigiado, frequentado inclusive por “políticos e autoridades policiais do Estado” (1987, p. 41).
48
Interessante que a ameaça que Edison jogava através da “coisa feita” guarde os
mesmo termos da “promessa” que ele fazia à pretendente a amante em um outro
poema, sem título: nele, ao invés de ameaçar colocar uma “coisa feita”, o poeta
prometia, caso a moça finalmente aceitasse a beijá-lo, não mais “visitar / a caboclinha / de lá da Sé” ([24/11/1928] 2005, p. 85; grifos nossos). No limite, o autor
não deixava de fazer uma ameaça pois, caso contrário, fica-se subentendido que
ele iria procurar a “caboclinha”. De alguma forma, Édison Carneiro sugere que a
“caboclinha” estava em oposição social e racial à moça que ele queria conquistar.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
dientes místico, mágico e feiticeiro de Jubiabá que, em
grande medida, controlam o significado social da categoria
“negro” no poema, sem perder de vista seu sentido cultural
de “africano” (conforme deixam entrever os noticiários dos
jornais), talvez nítido o suficiente para não ser verbalizado
e, mesmo assim, compreendido49. Portanto, a “racialidade”
do poema – se assim é possível dizer – fica mais por conta
da distância social e cultural do poeta do que pela eventual
descrição positiva de uma pigmentação de pele.
Contrário ao último exemplo é o poema “Ralhando”,
no qual as características físicas de uma mulher negra servem de motivo para um humor depreciativo. Nele, mais uma
vez flagra-se marcadores socialmente distintivos pontuando
a narrativa, que garante, assim, uma margem segura de distância entre o poeta e a personagem em tela, uma “negra
faceira” e sua “tolice” por ter: “espichado / o seu cabelo. /
Para que / essa beleza / artificial”. Afinal, “de que lhe serve
/ andar assim / com ligas melenas / se todo mundo sabe /
que negra / nunca teve / cabelo bom?” ([s.d.] 2005, p. 87).
E, na sequência, os versos elucidam as razões pelas quais
se condena a atitude da mulher em alisar seus cabelos: “O
governo / Federal, já se vê / projeta agora / Construção /
de estradas de ferro / e de rodagem / E você / bem que
podia / concorrer / com o pixaim / para cercá-las / a farpas de arame!” ([s.d.] 2005, pp. 87-88).
Ora, o poeta tenta tirar proveito irônico do ridículo
atribuído ao fato de uma “mulher negra” alisar as “melenas”, imprimindo a si própria uma imagem “artificial”
49
Como lembra Jeferson Bacelar, a categoria “negros” foi significada de múltiplas
formas no contexto da sociedade baiana, acionada para justificar diferentes tipos
de “problemas sociais”: imoralidade, degeneração sexual, criminalidade, violência
etc. Contudo, ele chama a atenção para o fato de que nenhum tema ganhava tanto destaque nos jornais baianos, nos primeiros decênios do século XX, quanto os
candomblés, apreendidos fundamentalmente como entraves “culturais” e menos
raciais, “entendidos como um espetáculo vergonhoso de atraso numa sociedade
que pretendia civilizar-se” (1991, p. 50).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
121
Uma família de cultura
122
que contrastava, afinal, com o que “todo mundo sabe”,
ou seja: com a “natureza” farpada de seu cabelo. A aspereza do cabelo pixaim faz par com a “rudeza” do espírito
da mulher, cuja tolice maior, quem sabe, seria a de acreditar que uma “negra” pudesse dissimular os aspectos de
sua aparência racial (se aproximar de uma beleza “branca”
e, por isso, “artificial”?), ao modificar simplesmente seu
físico. Ironicamente, a ironia parece ganhar eficácia cômica
na justa medida em que mobiliza códigos semelhantes ao
do poema sobre a “coisa feita”. Dito de outra maneira, os
elementos deflagradores do cômico e do riso no poema,
aos olhos de Édison Carneiro, bem como aos de seus leitores da elite baiana, não estariam nessa tentativa infrutífera e vexatória da mulher em negar sua “natureza” racial,
alterando a aparência física? E, portanto, na ingenuidade
“tola” de tentar burlar sua raça sem estar de posse de certas faculdades sociais e culturalmente distintivas para que
assim procedesse50?
***
Em suas poesias – e em particular à luz das duas últimas apresentadas –, Édison Carneiro objetivava a si próprio
na vida social baiana a partir do lugar de um “não negro”,
cuja fala é flagrantemente pontuada por marcadores que
asseguravam distâncias entre o seu mundo e aquele dos
“negros” por ele retratado. Uma fala socialmente possível
50
Tomo emprestado, aqui, uma reflexão de Heloisa Pontes, quando, realizando
uma história social do teatro brasileiro, desvela as várias possibilidades das atrizes
em “burlar”, nos palcos, uma série de constrangimentos impostos pelo “tempo”
e pela natureza imaginária das relações de gênero. Ou seja, o teatro, como um
espaço de negociações de sentidos e convenções sociais e culturais, permite colocar em suspenso certas propriedades corporais que, em outros contextos, seriam
facilmente percebidos e marcados. Como o fato, por exemplo, de uma mulher
representar, nos palcos, um homem ou personagens com idades distintas da atriz
(Pontes, 2004; e, em especial, 2010).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
por estar lastreada em esquemas de classificação homólogos àqueles que resultaram na branquitude certificada do pai,
Souza Carneiro, na ocasião de sua morte. E aqui, tanto
pai quanto filho nos colocam em face dos dilemas implicados nessas classificações que informaram a existência e a
trajetória social dos Souza Carneiro. Trata-se de algo que,
trocando em miúdos, podemos traduzir nos termos dos
próprios desafios envolvidos na compreensão das formas
como Édison Carneiro operacionalizou a “raça” como um
mediador simbólico de suas experiências sociais e familiares, bem como nas percepções de si e de suas posições na
sociedade baiana.
O que nos revelam, então, a “morte branca” de Souza
Carneiro e a “poesia não negra” de Edison? Antes de qualquer coisa, o modo como os Souza Carneiro não se viam
e não foram vistos (pelo menos, na maior parte do tempo e
das circunstâncias naquele contexto), ou seja, como negros.
Nesse sentido, é importante não minimizar toda sorte de
distinções que se estava em condições de, subjetiva e objetivamente, vivenciar a partir desse contraste, percebido negativamente e irredutível a supostas afinidades, identidades ou
condições de raça que antecedem o uso que as pessoas e os
grupos fazem delas em contextos e momentos específicos.
Como procurei mostrar neste artigo, em enorme medida, a posição dos Souza Carneiro no sistema de representações de raça e status foi possível graças ao sucesso dessa
família de mestiços baianos em dispor, em variáveis proporções, de meios sociais, econômicos e culturais, investidos por indubitáveis sinais de diferenciação com os negros
baianos: educação formal, diplomas, profissões prestigiadas, capital de relações etc. Enfim, há em jogo uma série
de elementos que mediavam suas existências em face das
etiquetas de tratamento racialmente dispostas pela sociedade
baiana, a qual criou sofisticados mecanismos de classificação a fim de dar conta, nos termos de Thales de Azevedo,
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
123
Uma família de cultura
124
da ascensão e presença de suas “elites de cor”: mulato, mestiço, moreno, negro branco, negro da terra, pardo etc. (Azevedo,
[1953] 1996).
Tal relação sensível entre hierarquia e códigos de
comportamento e distinção, produtores de “qualidades” e
“autoestimas”, que em Salvador se expressava e se racionalizava racialmente, foi registrada de modo pioneiro e competente por Thales de Azevedo nos inúmeros exemplos que,
na década de 1950, pôde observar e descrever entre seus
informantes. Assim, “quando alguém se dirige a um preto
de classe inferior pode, por exemplo, compará-lo a outro
‘preto como você’, mas tratando-se de pessoas de classe
mais alta a etiqueta manda empregar o vocábulo escuro ou
mesmo moreno” (Azevedo, [1953] 1996, p. 36); ou então, o
caso de um pai indisposto com o termo “negro” registrado
na ficha de atendimento de seu filho pelo médico que o
atendera e junto ao qual foi protestar, alegando que preferia “escuro” ou “preto”; e mesmo o exemplo do “intelectual
mulato escuro” que sabia que, quando queriam lhe ofender, “chamam-no ‘aquele negro’” (Azevedo, [1953] 1996, p.
36). Nessas e nas muitas outras situações descritas por Azevedo, somente o olhar insensível à força de realidade que
as representações impõem àqueles que as vivenciam poderia ignorar as diferenciações (apenas em aparência sutis),
bem como as licenças ou os constrangimentos que categorias
como “preto”, “negro”, “escuro” ou “moreno” operavam,
em seus contextos de uso, conforme as intenções e as posições dos agentes.
Seja como for, o mais importante nessas considerações,
parece, não é usar esses vocábulos em qualquer espécie de
esforço de descobrir, afinal, a qual deles Édison Carneiro
pertenceu ou esteve enquadrado, plastificando de antemão a
trajetória social e intelectual de Édison Carneiro a partir de
uma “identidade de raça primordial e inclusiva (i.e. excludente de outras identidades possíveis)” (Azevedo, 2004, p.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
83)51. Até porque a racialidade de Edison seria o próprio
móvel de tensões políticas e ideológicas em determinados
momentos de sua vida, não sem consequências para se
entender as lógicas de suas escolhas no campo intelectual.
Trata-se, sobretudo, de chamar a atenção para a necessidade de não se descolar as formas como Édison Carneiro percebia a si próprio, bem como o mundo que vivenciava, do
quadro mais nuançado e mediado por sua trajetória e experiências familiares. Tais experiências informaram modalidades particulares de representações em meio às quais ele
foi aprendendo a ordenar simbolicamente suas posições na
sociedade baiana. Nesse sentido, suas primeiras poesias e
a morte branca do pai são objetivações eloquentes dessas
representações, cujo silêncio quanto a uma negritude (auto)
atribuída é revelador, menos de uma simples “fidelidade
acrítica” (Spitzer, 2001, p. 143), emudecida e/ou subalterna à
“classe dominante branca” (Lima, 2001; Guimarães, 2004a,
2004b), e muitos mais das possibilidades de Édison Carneiro e sua família em investir (e serem investidos) de qualidades e distinções que colocava a raça em suspensão, com
o intuito justamente de minimizar o risco de terem suas
identidades monopolizadas, atacadas ou preferencialmente
invocadas nesse registro.
Para tanto, certamente, puderam contar Edison e os
Souza Carneiro, assim como outras tantas pessoas e famílias que ajudaram a dar feição às elites mestiças baianas,
Plastificar e essencializar uma trajetória em uma identidade racial primordial
ou, o que dá no mesmo, quando aplicadas à história do pensamento social no Brasil, tratar os intelectuais de ascendência africana na chave enrijecida de uma “intelectualidade negra”. Como se tudo que eles tivessem feito ou pensado tivesse uma
indelével natureza racial: quando não, tratados como figuras um tanto arrivistas,
cujos fins eram o de se “filiar” ou assimilar a uma sociedade e “ciência branca” dominantes. No que diz respeito a um trabalho expressivo deste tipo de abordagem
e no qual o próprio Édison Carneiro aparece tangencialmente como “objeto”,
pode-se mencionar o artigo de Ari Lima (2001) sobre o “lugar do intelectual negro” no meio acadêmico brasileiro. Projeta-se Carneiro num ambiente asséptico,
esterilizado de toda sorte de resíduos sociais, menos os raciais.
51
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
125
Uma família de cultura
126
além dos sinais de distinção que manipulavam, com um
“nicho” propício para que eles fossem capazes de vivenciar
esta negritude sem ser negro naquele contexto; ou uma negritude sem etnicidade, para falar nos termos de Lívio Sansone
(2003)52. Afinal, como assinala Antônio Sérgio Guimarães,
não parece aleatório que movimentos de afirmação política
em torno da “raça”, de uma “consciência de raça”, tenham
florescido no Brasil com maior vigor, especialmente a partir
das duas primeiras décadas do século XX, “em São Paulo,
onde a imigração estrangeira foi mais importante” (2003a,
p. 54). Ali, os esforços em prol da elevação moral “da raça”
e da mobilização dos “homens de cor” ganharam corpo e se
constituíram politicamente em torno da percepção comum
de desalojamento e marginalização, enquanto “negros”,
dos empregos e serviços mais valorizados – oferecidos pela
expansão e consolidação de uma sociedade industrial e
competitiva –, sistematicamente ocupados pela presença
maciça da mão de obra imigrante branca de origem europeia desde finais do século XIX. Tal situação de “bloqueamento” aos empregos mais vantajosos e estáveis no mercado
de trabalho urbano e industrial, articulada aos “incentivos” de
“cunho moral” que provinham da “emulação indireta, provocada pelo êxito econômico e social dos imigrantes, especialmente dos italianos, simplificou enormemente”, segundo Florestan Fernandes, “a escolha de objetivos comuns”
52
Tem-se uma negritude sem etnicidade na medida em que, aponta acertadamente Sansone, a “identidade étnica pode ser [entendida como] relativamente independente da cultura étnica” na “construção de estratégias de sobrevivência e
mobilidade social” (2003, p. 291). Em outras palavras, a identidade etnicamente
invocada ou atribuída, mesmo que a contragosto das pessoas ou dos grupos assim
classificados, não é necessariamente vivenciada na chave de um pertencimento a
uma “cultura” ou “comunidade” étnica: ou seja, como etnicidade, como marcadores de “fronteiras” políticas suportadas pela manipulação de traços de ascendência
ou origens comuns. Trata-se, portanto, recorrendo mais uma vez ao trabalho de
Sansone, de “buscar” e “investigar” a “etnicização e a negritude onde estas podem
ser encontradas, em vez de insistir em que elas devem estar em toda parte” (2003,
p. 297). Sobre etnicidade, ver Barth (1998), Oliveira (1976), Cunha (1985, 1986)
e Brubaker (2002).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
aos negros e mestiços paulistas, e acabou precipitando o
surgimento de jornais, lideranças, movimentos, ideologias
e formas de consciência política que buscaram se justificar a
partir de vinculações e “impulsões inconformistas” especificamente raciais (Fernandes, 2008, pp. 15-16).
Não vem ao caso aqui estabelecer parâmetros mais
sistemáticos de comparação entre as diferentes formas ou
estratégias de integração da antiga mão de obra servil e não
branca em face do colapso da escravidão e da consolidação do trabalho livre e assalariado (Fernandes, 2007, 2008;
Bastide e Fernandes, 1958). Contudo, cabe destacar que a
Bahia, diferentemente de São Paulo e mesmo do Rio de
Janeiro, tanto pela ausência de contingentes mais expressivos de imigração europeia – capazes de ameaçar a inserção,
desigual, porém contínua de seu contingente não branco
a postos de maior prestígio e valorização no mercado de
trabalho local – quanto por se mostrar menos afetada pela
“modernização súbita e intensa” (Fernandes, 2007, p. 66),
tendeu a se mostrar como um “nicho” social (Hacking,
1998) em que as formas de identidade baseadas no isolamento da “cor”, como núcleo de uma política de diferenças, não tiveram tanta capilaridade, nem mereceram tanta
ênfase da parte de sua população negra e mestiça. De modo
que, na Bahia, e particularmente em Salvador, em razão de
sua demografia cultural africana singular no contexto brasileiro, mobilizar a cor, positivar, lançar ou invocar a raça
entre suas “elites de cor” deveria parecer, talvez, tão improvável ou ofensivo quanto dizer que eles não passavam de um
negro e, de alguma forma, de um africano53.
53
“Na Bahia, ao contrário, a fraca industrialização, a força demográfica dos descendentes de africanos, assim como a precariedade do sistema público de ensino,
parecem ter servido para manter a opção de muitos negros pela preservação de
sua tradição cultural como via de integração. Kim Butler explora muito bem essa
dicotomia entre um movimento social negro que, em São Paulo, mobiliza-se em
torno da ‘raça’ e um outro que, na Bahia, mobiliza a ‘cultura africana’” (Guimarães, 2003b, pp. 21-22).
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
127
Uma família de cultura
Tais considerações não dão conta da complexidade dos
esquemas de classificação étnicos da sociedade baiana de
inícios do século XX, mas certamente nos ajudam a realizar
um retrato aproximado da forma como a raça e a negritude foram vivenciadas por Édison Carneiro e sua família
naquele momento. Foi em meio a um precipitado de experiências ambivalentes, ajustadas tanto às posições em falso
da família entre os espaços das elites locais quanto às condicionantes históricas e culturais mais abrangentes da vida
social baiana, que Édison Carneiro cumpriria uma etapa
importante de seu aprendizado intelectual. Sem dúvida,
extraiu daí repertórios, percepções e ângulos de visão sobre
a sociedade baiana e brasileira que, em maior ou menor
medida, desaguariam e estariam presentes em sua produção como estudioso da cultura e religiosidade de origem
africana no Brasil.
128
Gustavo Rossi
é doutor em Antropologia Social pela Unicamp.
Referências bibliográficas
ALVES, M. 1977. Intelectuais e escritores baianos: breves biografias. Salvador:
Fundação Museu da Cidade.
AMADO, J. 1981. “O professor Souza Carneiro”. A Tarde, 20 jun.
. 1985. “Discurso de Jorge Amado”. A Tarde, 6 mar.
. 1992. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de
memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro: Record.
AZEVEDO, C. M. M. 2004. Antirracismo e seus paradoxos. São Paulo: Annablume.
AZEVEDO, T. 1966. “Classes sociais e grupos de prestígio”. In: Cultura e
situação racial no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
. [1953] 1996. As elites de cor numa cidade brasileira. Salvador:
Ed.UFBA.
BACELAR, J. 2001. A hierarquia das raças. Rio de Janeiro: Pallas.
BARRETO, L. 1998. Um longo sonho de futuro: diários, cartas, entrevistas e
confissões dispersas. Rio de Janeiro: Graphia.
BARTH, F. 1998. “Grupos étnicos e suas fronteiras”. In: POUTIGNAT, P.;
STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Ed. Unesp.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
BASTIDE, R.; FERNANDES, F. 1958. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Nacional.
BIAGGIO, T.; COUCEIRO, L. A. 2009. Édison Carneiro, o mestre antigo: um
estudo sobre a trajetória de um intelectual. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.
BRUBAKER, R. 2002. “Ethnicity without groups”. European Journal of Sociology,
vol. 43, no 2, pp.163-189.
CALMON, J. s.d. “A Academia de Letras da Bahia”. Disponível em <http://
www.academiadeletrasdabahia.org.br/academia/academia.htm>. Acesso em 20/12/2009.
CARNEIRO, E. 1943. “Souza Carneiro”. Revista Brasileira de Geografia, no 2,
pp. 319-320 .
CARNEIRO, N. 1990. “Chefe”. In: Punhados de Vida. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal.
CARVALHO, M. A. R. 1998. O quinto século: André Rebouças e a construção
do Brasil. Rio de Janeiro: Revan/Iuperj-Ucam.
. 2007. “Intelectuais negros no Brasil oitocentista”. (mimeo).
COSTA, I. F. 2007. O rio São Francisco e a chapada Diamantina nos desenhos de
Teodoro Sampaio. Dissertação de Mestrado em Ensino de Filosofia e História das Ciências. Salvador: UFBA/UEFS.
CUNHA, M. C. 1985. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à
África. São Paulo: Brasiliense.
. 1986. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense.
FARIAS, G. A. 1937. Memória histórica do ensino secundário da Bahia (18371937). Bahia: Imprensa Oficial do Estado.
FERNANDES, F. 2007. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Globo.
. 2008. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo (vol. 2).
FERRAZ, A. C. 1972. “Retrato de Édison Carneiro”. A Tarde, 14 dez.
FIGUEIREDO, A. 2002. Novas elites de cor: estudos sobre profissionais liberais negros em Salvador. São Paulo: Annablume/CEAA.
FREYRE, G. [1936] 2003. Sobrados & mocambos. São Paulo: Global.
GRINBERG, K. 2002. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito
civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
GUIMARÃES, A. S. 2003a.“A modernidade negra”. Teoria e Pesquisa, no
42-43, pp.41-62.
. 2003b. “Intelectuais negros e modernidade no Brasil”. Working
Paper 52. Centre for Brazilian Studies-University of Oxford.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
129
Uma família de cultura
130
. 2004a. “Intelectuais negros e formas de integração nacional”. Estudos Avançados, vol. 18, no 50, pp.271-284.
. 2004b. “Manoel Querino e a formação do ‘pensamento negro’ no
Brasil, entre 1890 e 1920”. Texto apresentado no XXVIII Encontro da
Anpocs. Caxambu (mimeo).
GUIMARÃES, R. 1973. “Breve esboço sobre a vida e a obra de Manuel Querino”. Revista Brasileira de Folclore, ano XII, no 35, pp.15-26.
HACKING, I. 1998. Mad travelers: reflections on the reality of transient
mental illnesses. Virginia: Harvard University Press.
LANDES, R. [1947] 2002. Cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ.
LIMA, V. C. 1987. “O Candomblé da Bahia na década de 30”. In: OLIVEIRA, W. F. & LIMA, V. C. (orgs.). Cartas de Édison Carneiro a Arthur Ramos
de 4 de janeiro a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio.
LOPES, N. 2004. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo:
Selo Negro.
MAGALHÃES, J. 1982. Minhas memórias provisórias: depoimento prestado
ao CPDOC. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MALINOWSKI, B. 1978. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo:
Abril Cultural.
MATTOSO, K. Q. 1992. Bahia século XIX: uma província no Império. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira.
MICELI, S. 2001. “Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-1945)”.
In: Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras.
NOGUEIRA, O. C. 1978. Caminhos de um magistrado. Rio de Janeiro: Jo­­­
sé Olympio.
NOGUEIRA, O. 1992. Negro político, político negro. São Paulo: Edusp.
. 1998. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São
Paulo: Edusp.
OLIVEIRA, J. P. 2004. Pelas ruas da Bahia: criminalidade e poder no universo dos capoeiras na Salvador republicana (1912-1937). Dissertação de
Mestrado em História. Salvador: UFBA.
OLIVEIRA, R. C. 1976. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira.
OLIVEIRA, W. F. 1987. “Os estudos africanistas na Bahia dos anos 30”. In:
OLIVEIRA, W. F. & LIMA, V. C. (orgs.). Cartas de Édison Carneiro a Arthur
Ramos de 4 de janeiro a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio.
PARDAL, P. 2001. “Primórdios do ensino de estatística no Brasil e na
UERJ”. Boletim de Associação Brasileira de Estatística, ano XVII, no 50.
PIERSON, Donald. [1942] 1971. Brancos e pretos na Bahia: um estudo de
contato racial. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
PINHEIRO, E. P. 2002. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de
modelos urbanos. Salvador: Ed. UFBA.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
Gustavo Rossi
PONTES, H. 2004. “A burla do gênero: Cacilda Becker, a Mary Stuart de
Pirassununga”. Tempo Social, vol. 16, no 1, pp. 231-261.
. 2010. Intérpretes da metrópole. São Paulo: Edusp.
QUARESMA, M. S. 1999. O salvacionismo na Bahia: o político e a política de
J. J. Seabra (1912-1916). Dissertação de Mestrado em História. Campinas: IFCH-Unicamp.
RAILLARD, A. 1992. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record.
ROSSI, L. G. F. 2011. O intelectual feiticeiro: Édison Carneiro e o campo de
estudos das relações raciais no Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Campinas: IFCH-Unicamp.
SAMPAIO, C. N. 1998. Partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma
política da acomodação. Salvador: Ed. UFBA.
SANSONE, L. 2003. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações
raciais e na produção da cultura negra no Brasil. Salvador: Ed. UFBA.
SANTOS, G. (org.). 2005. Musa capenga: poemas de Édison Carneiro. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia.
SARMENTO, S. N. 2008. “A raposa e a águia: Rui Barbosa e J. J. Seabra
na política baiana da Primeira República”. Texto apresentado no IV da
ANPUH-BA. Vitória da Conquista (mimeo).
SEIXAS, C. 2005. “A poesia de Édison Carneiro redescoberta por Gilfrancisco”. In: SANTOS, G. (org.). Musa capenga: poemas de Édison Carneiro. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia.
SEM AUTOR. [1923] 2004. “Escola Politécnica e Instituto Politécnico da
Bahia”. In: Diário Oficial do Estado da Bahia: edição comemorativa da
Independência da Bahia (1923). Salvador: FPC/APEBa/Centro de
Memória (edição fac-similar).
SEM AUTOR. s.d. “Fundação da Grande Loja Maçônica do Estado da
Bahia – 1927”. Disponível em <http://www.gleb.org.br/grande-loja>.
Acesso em 20 abr. 2009.
SOUZA CARNEIRO, A. J. 1927. Jesus! Mistérios das iniciações de Jesus de
Nazareth. São Paulo: O Pensamento.
. 1942. “Arlindo Fragoso”, Revista da Academia de Letras da Bahia, vol.
8, no 16.
SPTIZER, L. 2001. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
TEIXEIRA, C. 1988. “As oligarquias na política baiana”. In: LINS, W. et. al.
Coronéis e oligarquias. Salvador: Ed. UFBA/Ianamá.
Outros materiais
CARNEIRO, E. 2008. Entrevista concedida ao autor. São Paulo, 18 abr.
Lua Nova, São Paulo, 85: 81-131, 2012
131
Tempo e melancolia: República, modernidade
e cidadania negra nos contos de Astolfo
Marques (1876-1918)
Matheus Gato de Jesus
Um artista habilíssimo atacara certos atos, aliás muito
censuráveis, da Junta.
Paula mandou chamá-lo e inquiriu-o em voz estentória como
se atrevera a tanto.
- Eu pensei... - começava a defender-se o interrogado.
- Já viste negro pensar? És besta, negro, roubaste de autores, e
vais para a cadeia!...
E, depois do homem sair preso, voltando-se para o chefe de
polícia, que era Casimiro Júnior:
- Casimiro, quando ele te definir o que é pensamento, solta-o...
(Domingos Barbosa, [1911] 2008, p. 44-45).
O homem tem mesmo raiva de negro! Onde ele vê um negro,
vê desde logo um inimigo a combater!! Fecham-se-lhe o
espírito e alma! Ele já disse uma vez que negro é moleque, e
ele suporta um negro por... excesso de civilização! E então,
para esmagar os negros, ele conta um fato que se deu com o
Prazeres de Freitas, no Teatro São Luís:
- E já viste um negro pensar? Perguntou o Paula Duarte.
- Lobo quando chega a este ponto, levanta-se, dá duas voltas,
a rir, satisfeito, porque para ele a frase de Paula Duarte é
esmagadora! E repete:
- E já viste um negro pensar?
Mas que professor e que jornalista republicano é Lobo!
(Nascimento Moraes, 1910, p. 9).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Tempo e melancolia
134
O fato narrado nas duas versões acima parece ter se tornado, na virada do século XIX, uma piada bastante conhecida
acerca da Proclamação da República em São Luís do Maranhão. O desagravo do escritor e jornalista negro José do
Nascimento Moraes (1882-1958) sugere que a conversa era
utilizada para humilhar e ridicularizar pessoas negras no
período pós-Abolição1. Tratava-se de uma das muitas polêmicas envolvendo o nome de Francisco de Paula Belfort
Duarte, mais conhecido simplesmente como Paula Duarte,
membro da Junta Provisória que assumiu o controle da província em adesão ao regime instituído no país no dia 15 de
novembro de 18892. Para seu admirador Domingos Barbosa (1880-1945) o republicano histórico “foi um desses tipos
que ficam na memória dos homens, envolvidos numa bruma,
e que após si deixam inevitavelmente uma trama de lendas,
que os anos e as gerações inevitavelmente tecem ([1911]
2008, p. 41).
É nesse espírito de esticar um pouco mais o tecido da
memória, para manter a bela metáfora do autor, que o
acontecimento é narrado. Misto de fato histórico verídico e
“trama de lendas, que os anos e as gerações inevitavelmente
tecem”, a anedota fazia rir ao confrontar a prisão injusta
1
O escritor maranhense José do Nascimento Moraes (1882-1958) foi professor,
jornalista, poeta, crítico literário e romancista. Seus principais trabalhos publicados são o conjunto de ensaios de crítica literária e social intitulada Puxos e repuxos (1910), o romance Vencidos e degenerados (1915), e o ensaio político Neurose
do medo (1923). Deixou inédito o livro de poesias Círculos, sem que seja possível
precisar a data de composição, além de uma gama de contos não publicados. Foi
fundador da revista literária Athenas e, como jornalista, trabalhou para diversos
jornais maranhenses como, dentre outros, A Campanha, O Maranhão, A Pátria,
Diário de São Luis, O Jornal, A Tribuna, A Hora, Diário do Norte, Diário Oficial, O Globo,
Correio da Tarde, A Imprensa, Notícias.
2
Francisco de Paula Belfort Duarte nasceu em 1841 e morreu na primeira década
do século XX, em data desconhecida. Bacharelou-se na Faculdade Direito de São
Paulo em 1864 e, regressando à sua província, exerceu as funções de jornalista, advogado, deputado geral pelo Maranhão (1867-1868), deputado provincial (18801881). Foi o único membro civil e “republicano histórico” que compôs o primeiro
governo provisório republicano no Maranhão (18/11/1889-17/12/1889). Para
maiores detalhes ver Coutinho (2007).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
de um homem do povo e sua esdrúxula justificava racial. A
autoridade pública parece se irritar ao ouvir o verbo “pensei” da boca de um negro que criticara o governo e lhe dirige uma acusação ilógica (“roubaste de autores”), levando-o
para cadeia como uma espécie de desafio intelectual: caso
conseguisse definir o que é pensamento seria solto.
Essa pequena estória constitui um precioso registro dos
significados sociais do advento da República brasileira3. Ela
nos permite cotejar a história na trama da memória coletiva:
o modo como um acontecimento político pode encarnar-se
duradouramente nas maneiras com que um povo aprende
a rir da sua própria violência. No caso dessa anedota, o senso
do humor, seja para os que se divertiram ou aqueles que se
irritaram, emerge da relação entre a total arbitrariedade de
um poder que deveria ser legítimo e a factibilidade irracional de seu exercício. A raça é literalmente ridícula: o autoritarismo da nova ordem é levado ao paroxismo.
O incidente narrado expunha em primeira hora o
modo pelo qual as aspirações por liberdade, igualdade e
fraternidade despertadas pela Abolição da Escravidão e o
fim da Monarquia foram imediatamente frustradas pela clivagem social e racial da cidadania no país. Fato tanto mais
significativo quando sabemos por parcos registros historiográficos que Prazeres de Freitas, a provável vítima da humilhação seguida de encarceramento, era um proeminente
abolicionista maranhense. Note-se a ironia da frase lapidar
de Nascimento Moraes ao revidar a injúria: “Mas que professor e que jornalista republicano é Lobo”4.
3
Remeto o leitor para anotação metodológica de Robert Darnton que inspira
esta reflexão: “Quando se percebe que não se está entendendo alguma coisa –
uma piada, um provérbio, uma cerimônia – particularmente significativa para os
nativos, existe a possibilidade de se descobrir onde captar um sistema estranho de
significação, a fim de decifrá-lo” (1986, p. 106).
4
Antonio Leal Lobo (1870-1916) iniciou seus estudos no Colégio de São Paulo e adentrou no Liceu Maranhense. Depois de formado, assumiu a cadeira de
docente na instrução pública. Como possuía inserção e parentesco com figuras
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
135
Tempo e melancolia
O acontecimento também revela o contexto mais tenso
da adesão ao governo do general Deodoro da Fonseca nas
províncias mais longínquas do Império. O movimento republicano no Maranhão é muito tardio e apenas ganhou vulto
entre os setores mais expressivos da elite após a lei de 13 de
Maio de 1888. As promessas jamais cumpridas de indenização aos senhores pela expropriação da mão de obra escravizada e os projetos malogrados de imigração estrangeira
foram um Leimotiv político bastante sedutor à causa da liberdade dos brancos5. Não espanta que as notícias conhecidas
acerca de conferências republicanas em São Luís datem já
do derradeiro ano de 1889, nas quais, por vezes, manifestantes populares irrompiam, sobretudo ex-escravos, em defesa
da monarquia e da Princesa Isabel, A Redentora6. Vale observar
que no chamado Alto Sertão, porção sul do Maranhão, pouco integrado ao centro administrativo litorâneo até meados
do século XX, concentravam-se as cidades e vilas de maior
136
importantes da política maranhense, ele deixou o cargo de professor para assumir a posição de Oficial de Gabinete de Dr. Cassimiro Dias Vieira Junior no ano
de 1893. Mudou-se apenas para ocupar o lugar de diretor na Biblioteca Pública,
cargo que assumiu interinamente em 1897 e como efetivo em 1898. Em termos de
produção bibliográfica, Lobo, enquanto dirigia a Revista do Norte, destacou-se por
suas traduções. Contam entre as suas produções o romance A carteira de um neurastênico (1903), além dos livros Positivismo e micróbio (1908), Doutrina transformista
(1909) e Os novos atenienses (1909).
5
Os jornais maranhenses, sobretudo no ano de 1889, estão repletos de matérias
que informam o processo de racialização do conceito de República. Um exemplo
interessante é o modo como o fazendeiro Joaquim Castro, natural de Guimarães,
congratulava seus correligionários pelo 15 de Novembro, expressando sua “tomada de consciência” republicana: “Fui conservador até o dia 13 de ano passado,
quando libertaram os escravos. Logo que deu-se esse grande passo para liberdade,
entendi que os brancos não podiam mais ser escravos da monarquia” (O Globo, 18 dez.
1889; grifos nossos). Para uma análise mais aprofundada do problema em outras
partes do Brasil, ver Gomes (1991) e Albuquerque (2009).
6
Indignado com os protestos populares que irrompiam nas conferências republicanas que se realizavam no Hotel França em São Luís, o celebre poeta Joaquim
de Sousa Andrade, o Sousândrade, replicava: “Por medo da República que não
quer escravos, assinou-se o decreto popular da abolição; os lutadores abolicionistas eram todos armados pela República – e desgostosos depois vemos voltarem-se eles
contra ela; até os que por ela foram libertos, tripudiando insensatos dão morras a República!... É a crucificação eterna dos salvadores” (Sousândrade, [1889] 2003, p. 2010).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
agitação republicana local7. Quando a Junta Provisória Republicana assumiu o poder, no dia 18 de novembro de 1889,
instalou-se um clima de insegurança e repressão política:
Trêfega e irrequieta, longe de consagrar os ânimos, para que
todos cooperassem no regime que se inaugurava, precedeu
com exclusões, numa terra em que não passavam uma meia
dúzia os republicanos históricos e procurou aproveitar-se
da eventualidade que lhe pusera o governo nas mãos, para
atirar-se à faina de formar elementos políticos que servissem
aos planos de domínio de um só dos seus membros, que
tinha pretensão a chefe do partido.
Acorde com esse pensamento, a polícia cometida na própria
capital a pessoas as menos idôneas para exercerem-na, por
conhecida falta de critério, tratou aí mesmo de se impor
pelo medo, efetuando prisões a torto e a direito, castigando
com palmatoadas as pessoas do povo d’um e outro sexo e
raspando-lhe à navalha as sobrancelhas e metade do cabelo
na cabeça.
Ninguém se reputava seguro numa tal emergência, em que
a liberdade individual estava em perigo permanente.
Não houve escala de violência que a junta não tocasse,
chegando até a tentar deportações e fuzilamentos e isto sem
que houvesse o menor indício que fosse de resistência a
nascente forma de governo.
7
O historiador Alberto Ferreira, ao analisar as condições sociais de emergência
do movimento republicano no Maranhão, destaca que “os sertanejos reivindicavam maior atenção dos governantes, mas estes priorizavam as regiões agroexportadoras objetivando equilibrar as finanças da província. Por outro lado, as constantes trocas de presidentes devem ter contribuído para que algumas solicitações não
fossem atendidas. O certo é que o Alto Sertão pouco se beneficiou das medidas
modernizadoras (navegação a vapor, estradas, engenho central, fábricas têxteis)
implementadas na província na segunda metade do século XIX. Nesse contexto,
foi o sertão um campo propício para a germinação das ideias republicanas. Seus
partidários conheciam os modelos de República implementados na França e nos
Estados Unidos. Porém, sua motivação maior era o federalismo, a busca de autonomia, como uma maneira de reação à hegemonia política da parte norte da
província” (Ferreira, 2004, p. 214).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
137
Tempo e melancolia
A República, logo nos seus primeiros passos, sofrera,
portanto, com aquele governo coletivo, a influência
perniciosa de uma impressão verdadeiramente desgraçada,
aliando-se seu advento na Província à prática de tropelias
em ordem a gerarem no espírito popular a ideia de que o
novo regime, em vez de garantir a ordem e os direitos dos
cidadãos, fazia periclitar a primeira e investia contra os
segundos (Godóis, [1904] 2008, p. 361).
138
As palavras de Barbosa de Godóis (1860-1923), terceiro vice-governador do Maranhão republicano, dedicado à
tarefa de escrever uma História do Maranhão para o novo
regime, demonstram que mesmo entre as classes dominantes os 29 dias do primeiro governo provisório foram vivenciados como um período de grande insegurança social. O
recurso abusivo da violência policial, prisões e torturas criaram um clima de pavor e ameaça à liberdade individual.
Nem mesmo as mulheres escapavam das agressões justificadas como medidas necessárias à preservação da novíssima
República. Tamanho autoritarismo fora em parte motivado
pelo grande protesto de ex-escravos monarquistas, cerca de
quatrocentas pessoas, em 17 de novembro, contra o jornal
republicano O Globo, propriedade de Paula Duarte, e que,
no dia anterior, anunciara a derrocada do Império. Decretos de fuzilamento e deportação foram expedidos com o
fito de intimidar a ação populista dos monarquistas junto
ao povo. A contenda às portas do teatro São Luís, que virou
um misto de fato, boato e finalmente piada, pertence a essa
conjuntura turbulenta que marcou profundamente a memória política maranhense do advento da República como um
período de terror e violência.
Riso e melancolia / História e ficção
O paciente leitor dessas linhas deve estar se perguntando a
razão de tanto entretenimento com uma pequena anedota
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
num ensaio que deveria ser dedicado a objetivar o tema da
República nos contos de um desconhecido escritor negro
maranhense cujo nome, até o presente momento, não foi
sequer citado. É porque o então jovem Raul Astolfo Marques (1876-1918) escolhera justamente a referida anedota
como tema do conto “O discurso do Fabrício”, um dos seus
principais escritos dedicados ao novembro mais decisivo
da história política brasileira. Desse modo, temos um bom
começo para enfrentar a questão proposta neste ensaio,
acerca da representação da República brasileira na obra ficcional de Astolfo Marques.
O texto foi publicado em duas partes, nas edições de 16
de novembro e 1o de dezembro de 1903 da gazeta literária
A Revista do Norte8. Na época, era a principal revista literária
editada em São Luís, com duas edições mensais e circulação
em Manaus, Belém e Teresina. O periódico era especializado em temas relativos à região norte do país e tentava reunir em suas edições escritores de suas principais capitais,
publicando ensaios, textos literários e artigos que tratavam
desde história e literatura até os problemas mais candentes
de infraestrutura e integração nacional que ainda afetam o
Brasil setentrional.
“O discurso do Fabrício” se adaptava perfeitamente à
linha editorial de A Revista do Norte. Tal como indica a data
da publicação (16 de novembro) e o subtítulo do conto
(Recordações do 15 de Novembro), o objetivo do magazine era trazer aos leitores um motivo literário comemorativo dos catorze anos da novíssima República brasileira, com
base na realidade local. Ressalte-se ainda que na qualidade
de uma “recordação” o conto tinha a pretensão de ser uma
8
É significativo que Astolfo Marques tenha voltado a publicar o mesmo trabalho
em sua primeira antologia de contos, intitulada A vida maranhense (1905), e posteriormente o transformado, com poucas alterações, num dos capítulos de A nova
aurora (1913), novela histórica inteiramente dedicada às consequências sociais e
políticas da Proclamação da República no Maranhão.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
139
Tempo e melancolia
reconstrução realista do passado histórico recente, dotada
de caráter assumidamente ficcional.
Nesse sentido, é interessante notar que o autor dirigira
a atenção dos seus leitores, desde o título, para o aspecto
menos factual do conhecido episódio: o discurso que atraíra
sobre si a ira do governo provisório republicano. Tal é o elemento central do texto. A construção do personagem Fabrício como um abolicionista e republicano de enorme popularidade na cidade São Luís, queridíssimo por seus amigos
e companheiros de trabalho, convicto em seus ideais, se
nos remete à vida e às convicções de Prazeres de Feitas, não
sabemos, mas pretende indicar a representatividade que
teria o discurso fictício do personagem. Senão, vejamos:
140
Entre os oradores inscritos [na festa da classe comercial em
prol do novo regime republicano], achava-se o Fabrício,
chefe duma das oficinas da Usina Maranhense, homem de
ilustração acima do vulgar. O seu nome, conhecido em todas
as sociedades, era acatado reverentemente. O Fabrício fora
presidente do Club Abolicionista e, na Usina, se os operários
tivessem uma instrução regular, teria, inspirado pelo seu
saber, conquistado um lugar proeminente, levantaria, se
quisesse, um partido, tal a cega abnegação que por ele
tinham. Acercava-se daqueles que, pela sua inteligência, o
poderiam compreender e explicava-lhes, fundado na sua
farta e variada leitura, a República, que ele considerava
melhor forma de governo para um país. Pregava-a com
uma eloquência em nada inferior a dos melhores tribunos.
E dos que o podiam entender nessas prédicas, só um, o
João Cadete, divergia de suas ideias. Todas as vezes que o
fervoroso repúblico, terminava, na Usina, as suas “palestras
doutrinárias”, o Cadete respodia-lhe:
- Qual, seu Fabrício, se “isto aqui chegar a ser República”,
algum dia, muita gente apanha bolo e você vai para cadeia
(Marques, 1905, pp. 142-143).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
Fabrício é um “homem do povo”. Na qualidade de chefe de uma das oficinas da Usina Maranhense ele se identifica, embora com posto mais elevado e instrução diferenciada, à formação do proletariado urbano livre do país nas
duas últimas décadas do século XIX. O personagem também aparece ligado à causa mais popular de sua época: a
libertação dos escravos. O narrador informa que Fabrício
chegou a ser presidente do Club Abolicionista, ou seja, era
de fato um “representante do povo”, “levantaria se quisesse, um partido, tal a cega abnegação que por ele tinham”.
Noutras palavras, o personagem é uma figuração do desejo de
transformação política e social.
O único traço impopular que molda a identidade de
Fabrício é a militância republicana. Impopular no sentido de que a maioria dos operários não compreendia
suas ideias. A República aparece como uma ideia distante do universo cultural dos trabalhadores, mediada por um
conhecimento de valor intelectual. Tanto que para suas
pregações doutrinárias o republicano de “instrução acima do vulgar” era seletivo, “acercava-se daqueles que, pela
sua inteligência o poderiam compreender”. Entretanto,
ainda sim, havia quem não acreditasse que a República
fosse um regime capaz de realizar suas promessas de igualdade social. “Qual, seu Fabrício, se ‘isto aqui chegar a ser
República’, algum dia, muita gente apanha bolo e você
vai para cadeia”.
Essa frase profética anuncia logo no terceiro parágrafo do texto o destino do herói. A drástica economia de
meios termos para colocar o leitor a par da problemática
central faz de “O discurso do Fabrício”, nos termos de Julio
Cortázar, um conto de intensidade9. A fórmula inventada
por Edgar Allan Poe é assim resumida pelo escritor argen9
Para uma discussão mais aprofundada acerca das características formais do conto de intensidade ou conto clássico, ver Pontieiri (2001) e Gotlib (2002).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
141
Tempo e melancolia
tino: “No conto vai ocorrer algo, e esse algo será intenso.
Todo rodeio é desnecessário sempre que não seja um falso
rodeio, ou seja, uma aparente digressão por meio da qual o
contista nos agarra desde a primeira frase e nos predispõe
para receber em cheio o impacto do acontecimento” (1993,
p. 124). Essa é a pretensão estética de Astolfo Marques. Deixo à crítica literária o veredito de se ele conseguiu ou não o
efeito desejado. O importante aqui é saber que a narração
pretende predispor o leitor para receber com intensidade um
acontecimento “profético” que expõe a contradição entre os
princípios republicanos de igualdade e a violência autoritária que concretizou a Proclamação da República na periferia
do Império.
Não sem razão, findo o terceiro parágrafo com a frase
do antagonista João Cadete, o autor nos conduz diretamente ao cenário do “discurso do Fabrício”:
142
Assomando a tribuna, o Fabrício foi recebido por uma
estridente salva de palmas, que rumorejou altissonante
pelo abobadado edifício, ao contrário do que o auditório,
superior à lotação da casa, fizera com os oradores que o
precederam e que foram recebidos friamente.
Diante da estrepitosa manifestação que o povo lhe faz, o
tribuno deixa transparecer comoção, dominando-se, porém.
Fitando a enorme massa popular, que incessantemente
o aclama, como que ele sentia o que ia de sincero nas
constantes vivas aclamações.
E a multidão, de instante a instante, agita-se sofregamente;
todos como que anseiam pela palavra do orador; sente-se
que aqueles milhares de cérebros têm o mesmo objetivo, o
mesmo desejo.
Faz-se, finalmente, o silêncio: e a palavra do orador, temida
e querida, é escutada. Fluente, emocionante, carinhoso
umas vezes, causticante outras, vai dominando o auditório,
que compacto, se acotovelava.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
O povo, agora, mudo e quieto, sentindo vibrar a sua
alma as palavras de Fabrício, ouvindo-o atentamente,
embaladamente preso ao silêncio; aquele discurso, em que
era feito uma verdadeiro libelo de acusação aos membros
do governo provisório, era também o porta-voz de todos
aqueles corações.
E quando o ardoroso orador compreendeu que tinha por si
a grande massa popular e que, pela palavra, dominara essa
avalanche de seres vivos e pensantes, perorou: Concidadãos!
Essa forma de governo que ora nos felicita, de República
só tem o rótulo! A República, como deve ser, ainda não a
temos, pois os bolos estão chovendo nos postos policiais, e,
cidadãos livres, como somos, nós, os brasileiros, assistimos
ao degradante espetáculo de ver os nossos irmãos com as
cabeças raspadas a navalha, a um simples aceno do Queirós!
Abaixo os tiranos! Viva a futura República! (Marques, 1905,
pp. 144-145).
A extensa descrição de Astolfo Marques retoma novamente o tema da representatividade política do povo. A relação que a “enorme massa popular” estabelece com Fabrício,
único tribuno que não recebera friamente, é como público
espectador. O autor descreve os usos sociais de uma tradição de mobilização civil da população urbana que fez história na propaganda abolicionista, uma vez que o teatro e
seu repertório artístico conformaram a linguagem do ativismo antiescravista brasileiro (Alonso, 2010). Observe-se que
Fabrício é capaz de tocar, nas palavras do narrador, os “cérebros”, os “corações”, a “alma” do povo, enfim, de dramatizar
o conteúdo crítico de sua mensagem. Ele se “comove”; sua
palavra “temida e querida” têm a medida certa do desejo
de mudança daqueles que o escutam. Orador e público são
uma mesma vontade política: a utopia adiada da República.
O discurso do Fabrício anuncia um sonho postergado. A
República vigente é um rótulo. Um regime político incapaz
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
143
Tempo e melancolia
144
de concretizar o livre exercício da cidadania. A crítica atinge o seu ápice na denúncia das torturas perpetradas pelo
governo. Quanto a essas ocorrências, esclarece o historiador
Mário Meireles que, quando se tratava de homens e mulheres
pobres, a polícia, “além de prendê-los e castigá-los com palmatoadas, só mandava soltá-los com o estigma da cabeça raspada.
Nisso, mais sofriam os negros, ex-escravos, que não deixavam
de manifestar sua gratidão à Redentora” (1994, p. 113). Dado
importante porque a humilhação da cabeça raspada infligida aos escravos fugidos havia se tornado, durante o gabinete
imperial de Cotegipe, uma marca da repressão política escravista ao movimento abolicionista na corte (Needell, 2011, p.
250). O recurso aos símbolos do poder senhorial pelas forças
da República era um recado explícito à população negra de
que o novo regime era a velha tirania de sempre.
Esse tema é reafirmado no texto pelo infortúnio do
personagem central na segunda parte do conto. Ao sair
do teatro São Luís em direção a sua residência, Fabrício se
depara com um pelotão de policiais na porta de sua casa.
Preso, sem resistir, deixou-se conduzir placidamente à
presença dos membros do governo provisório, cujos atos
foram por ele, instantes antes, criticados acerbamente,
violentamente.
A sua fisionomia, naquele momento, estava revestida da
mais dolorosa impressão. Desditoso contraste! Uma hora
antes, quando muito, o Fabrício recebia as unânimes
aclamações dum povo, por intermédio de representantes
de todas as classes sociais, e estava radiante de glória,
enlevado, satisfeitíssimo, por ter cumprido um dos mais
meritórios deveres – advogar a causa do povo. Agora, estava
como que diante dum tribunal, mas não dum tribunal
digno desse nome. Atiravam-lhe toda sorte de impropérios,
insultavam-no baixa e torpemente, e ele, impotente para se
defender diante daqueles espíritos neronianos, submetia-se,
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
e, resignadamente, ouvia tudo. Ainda tentou justificar-se,
dizendo timidamente:
- Eu pensava que a liberdade da palavra me seria mantida,
como cidadão que sou...
- E tu ousas falar em liberdade, por ventura?! Atalhou
encolerizado um dos governantes.
E o Fabrício, o “arrojado que tão atrevidamente ousara
criticar os atos do governo”, chamando para este a ira
e clamor públicos, foi mandado levar a prisão, ficando
incomunicável, como se fosse réu de crime nefando
(Marques, 1905, pp. 146-147).
Agora nossa anedota converteu-se em literatura10. Mas
desta vez o riso sede lugar à melancolia. No lugar do humor
emerge o senso de uma perda social e humana irreparável.
“A sua fisionomia, naquele momento, estava revestida da mais
dolorosa impressão”. O autor reinventa a cena da humilhação do tribuno republicano com uma dramaticidade algo
patética. Fabrício é preso, insultado e humilhado pelos oficiais e membros do governo provisório justamente por sua
Em A nova aurora, reescrevendo o texto dez anos depois, o autor conserva mais
elementos das versões conhecidas do episódio, mas acresce trechos inteiramente
novos : “Atiravam-lhe toda a sorte de impropérios, insultavam-o, baixa e torpemente; e ele, impotente para se defender diante aqueles espíritos neronianos, quedava-se submisso à resignação de tudo ouvir. Por fim ele ainda tentou justificar-se,
dizendo timidamente: - Eu pensava que a liberdade seria mantida, como cidadão
que sou... - E tu ousas, por ventura falar em pensamento e liberdade?! Atalhou-o,
encolerizado, um dos do Provisório, que assumira a posição de inquiridor: Pensar!... Liberdade!... Se me definires estes dois vocábulos, prosseguia o interlocutor,
deixar-te-ei ir em paz! Mas o democrático operário resolvera de si para si nem mais
um murmúrio cair em sua defesa. Então, o verberante tomado dum tom impe­
tuoso e forte para com o detido, fraco e indefeso, atirou-se a ameaça, num flamejamento de doutrina perante seus colegas da Junta e do oficial comandante da escolta. - Resolveste, então, avocar a tua mui insignificante pessoa um suposto direito
de açular seus parceiros contra as instituições vigentes, empregando, para isso,
a astúcia de decorar trechos de Castelar, José Bonifácio, Nabuco e mesmo meu,
esmiuçar anelectos, para acompanhar os oradores hodiernos na ênfase, como na
doutrina?! Pois fica sabendo que a Junta vai considerar-te bêbado; e, como tal, irás
para a cadeia pública” (Marques, 1913, pp. 114-115).
10
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
145
Tempo e melancolia
146
capacidade de representar o povo, pela pureza de seus ideais republicanos. “Agora, estava como que diante dum tribunal, mas não dum tribunal digno desse nome”. A contradição política que gera o infortúnio do personagem
espelha a iniquidade da ordem autoritária: “Viva a futura
República!”.
Mas as diferenças entre a anedota que virou piada e
o conto não param por aqui. O sentido do diálogo entre
a autoridade governamental e seu crítico é inteiramente
modificado pela oclusão da linguagem racial. Astolfo Marques retira de cena “o negro”, risível objeto de escárnio, e
instaura, nesse mesmo lugar simbólico já consagrado pela
memória, o cidadão. Onde ouvíamos apenas a frase “Eu
pensava...”, escutamos agora: “Eu pensava que a liberdade
da palavra me seria mantida como cidadão que sou...” e
onde tínhamos “Já viste negro pensar?”, temos então: “E tu
ousas falar em liberdade, por ventura?!”. Ao escárnio racial
sucede uma cidadania aviltada. O problema negro torna-se
o desafio político da liberdade.
Nesse ponto o texto transforma-se numa teia inextricável de literatura, memória e história. O diálogo entre o
conto e a anedota torna ainda mais equívoca a relação entre
ficção e realidade histórica. É nos silêncios de uma memória coletiva avalizada e comprometida com o processo de
dominação que o autor coloca sua voz. O realismo começa
exatamente no lugar em que a história é puro esquecimento. O efeito de realidade produzido no texto deve menos ao
dado factual que as esperanças frustradas do nosso passado
coletivo. Para Astolfo Marques a verdade está no fictício “O
discurso do Fabrício”.
Mas por quê? A crônica “A última sessão”, também
publicada pelo autor em 1903, pode nos ajudar a esclarecer
a questão. O cenário agora é a Câmara Municipal de São
Luís, e o problema, a adesão política conservadora ao 15 de
Novembro. Segue o texto na íntegra:
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
Na estação telegráfica e numa das janelas da redação
d’O Globo havia sido afixado um boletim anunciando a
organização, no Rio, do governo provisório bem como as
medidas tomadas a respeito do embarque para Europa, no
vapor Alagoas, do monarca recém-destronado.
A Câmara Municipal, composta de conservadores, na sua
maioria, recebera a notícia como se fosse um maná vindo
do céu. Excelsamente transportados de alegria, os seus
membros, pouco se importavam que se lhes exprobassem
de não confraternizarem com os líderes ajudando-os
a sustentar o trono baqueante. Menos ainda ligavam
aos que lhes acusavam de não ter fé monárquica, pois,
consideravam: não fora essa monarquia, agora por terra,
que promovera a libertação dos cativos, sem indenização?
Era azado o momento da desforra, e a ninguém mais
do que aos vereadores, dizia um destes, compete como
representante dos municipais, soltar o grito de adesão.
E opulentamente trajados, dirigiram-se a casa do vereador
presidente, que, ouvindo-os religiosamente, concordou com
os seus considerandos e fez convocar incontinente uma
sessão extraordinária.
Reunidos os gestores dos destinos municipais, depois de
serem sugeridos mil projetos e ideias, foi resolvido que a
câmara ficasse em sessão permanente “aguardando ordem
do governo provisório”, passando a este um telegrama
de congratulações em que cientificava o deliberado. Isto
feito, retiraram-se o vereadores aos seus penates, ficando
dois beleguins, prontos a primeira voz, substituindo-os na
permanência.
Entardecera já. A cidade apresentava um aspecto bélico.
Havia um presidente que não presidia, pois abandonando
um posto de honra, abrigara-se na casa do chefe do
partido em cujo expirara a monarquia; no largo do Carmo,
trepado no Pelourinho, um orador concitava os magotes de
monarquistas e curiosos que se revestissem da precisa calma
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
147
Tempo e melancolia
148
para aguardar os acontecimentos; no quartel da tropa de
linha tromitoava o sinal de reunir e logo depois o de avançar
para o globo, donde haviam pedido garantias a fim de evitar
o ataque do populacho desenfreado; um ex-deputado geral,
conservador, colocara-se (e fora o único) ao lado de liberais
que queriam dar cabo da vida dos redatores do jornal da
ladeira do Viramundo. Nesta, já a aglomeração fervilhava.
Numa atitude guerreira os motineiros atiravam chufas aos
jornalistas “sitiados”. E, à proporção que se ia avolumando
a massa, crescia as vaias e as ameaças. Chegada a força
foi recebida a pedradas. Os soldados, então, despediram
flamejantemente sobre os “reivindicadores do trono”
umas dezenas de baladas comblain, que zunindo entre
os atacantes, os dispersou produzindo a morte em cinco,
ferindo uns vinte, que passaram a posteridade como vítimas
da abnegação por Isabel, a Redentora, e deram motivo ao
Maranhão ser considerado a única província heroica que
resistiu a implantação do novo regime.
Estabelecera-se a calma sendo já a noite alta. No dia
seguinte, logo ao amanhecer, um telegrama vai ter a Câmara
Municipal. Os beleguins correram presurosamente a
chamar a seus postos os vereadores neorrepublicanos, que
no acharam reunidos todos com exceção de um único que
estava no interior. Para sessão ordinária não se reuniriam
com tamanha presteza. Confortavelmente instalados nas
suas poltronas, ao troar do tímpano, apresentavam na sua
fisionomia uma atitude majestosa. E quem sabe se nos
cérebros daqueles depositários dos poderes municipais a
ideia da palavra “república” não se lhes apresentasse como
sendo todos eles “majestade”!
E foi na antevisão de seguirem dali para o palácio
governamental, então abandonado, que o presidente, tendo
a pairar suspenso sobre a sua encanecida cabeça, ricamente
emuldurado, um quadro de D. Pedro II, disse em voz alta e
sonora: - Está reaberta a sessão! Em seguida, com um sorriso
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
de satisfação, puxou do bolso o telegrama recebido, fechado
ainda tal qual lhe entregaram o beleguim.
- Aqui temos a resposta, senhores; virá provavelmente
seguida de altas e importantíssimas ordens, que, espero,
todos cumpriremos de bom grado.
E, preparando-se para ler o despacho como se fosse
um evangelho, cavalgou a luneta sobre o aquilino nariz
e abriu-o auspiciosamente. Os vereadores olhavam
sofregamente para aquele papelzinho, em que, contavam,
viria escrita a palavra de ordem, isto é, a menção ao poder
dos conservadores, metamorfoseados em republicanos
da “gema”. O presidente, com voz trêmula, procedeu a
leitura do papelucho que fizera palpitar ansiosamente tanto
corações. Dizia:
- Rosário, 17 de novembro de 1889.
CAMARA MUNICIPAL
S. LUIZ
QUE HÁ DE NOVO?
Ferreira Moura
Era o vereador ausente.
E foi a última que os vereadores monárquicos fizeram. Nesse
mesmo dia a Câmara foi dissolvida, e o telegrama quem
o recebeu foi já a Intendência nomeada para substituir a
agremiação conservadora (Os Novos, 1903).
A presente crônica é o único texto antes do romance A
nova aurora no qual o autor articula uma visão propriamente
histórica do processo que se desencadeou no fim do Segundo Reinado. Em linguagem direta, com ironia e laivos de
intempestividade raros em sua obra, temos uma crítica contundente às bases políticas de adesão ao novo regime. Nos
termos de Astolfo Marques, a República no Maranhão surge
efetivamente como uma ideia fora do lugar. “Sua regra é
outra, diversa da que denominam; é da ordem do relevo
social em detrimento de sua intenção cognitiva” (Schwarz,
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
149
Tempo e melancolia
150
2000, p. 19). Quem saberá ao certo se para os republicanos
de ocasião, acossados pela Abolição na Câmara de Vereadores de São Luís, “a ideia de República não se lhes apresentasse como sendo todos eles majestade”. Nesse sentido,
a principal contradição do 15 Novembro é que seus defensores de primeiríssima hora visavam conquistar por intermédio do golpe político o “poder pessoal”, que a República
deveria alijar em nome da cidadania.
O próprio perfil político daqueles que deveriam ser a
vanguarda do progresso social era formado majoritariamente por elementos ligados ao partido conservador, quisto de ex-senhores raivosos, julgando-se traídos pelo governo monárquico nos seus direitos de propriedade privada
devido à ausência da prometida indenização de suas peças
humanas. A inautenticidade da posição dos “conservadores
metamorfoseados em republicanos da gema” também é assinalada pelo seu notório descaso com a coisa pública: não
fossem as virtuais vantagens do evento em curso, “para uma
sessão ordinária não se reuniriam com tamanha presteza”.
O fato desses “neorrepublicanos” serem risivelmente
destituídos do poder no dia seguinte em nome do governo
que receberam como um “maná vindo dos céus” só reforça, nas tintas carregadas de desprezo com que o escritor os
caracteriza, o quadro de alienação dos políticos maranhenses. Para Astolfo Marques, enquanto o povo foi para as ruas
lutar em prol da causa monárquica às portas do principal
jornal republicano da cidade, as elites dirigentes provincianas assistiram à queda do império bestializadas. “Havia um
presidente que não presidia, pois, abandonado o posto de
honra, abrigara-se na casa do chefe do partido onde expirara a monarquia”.
Nessa “lavagem de mãos” do poder público reside uma
das principais razões para o “clima bélico” instalado dia
17 de novembro entre os jornalistas republicanos do diário O Globo e os “magotes” monarquistas de ex-escravos na
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
ladeira do Vira Mundo. Os mortos e feridos da multidão
são a expressão brutal da exclusão social e política armada
a reboque da nova ordem. Esta talvez tenha sido a revolta
popular que mais impressionou Astolfo Marques ao longo
de toda sua vida. É provável que ele possa ter sido uma testemunha ocular do acontecido. Se não, viveu o clima de perseguição perpetrado pelas autoridades republicanas com o
fito de conter maiores protestos.
É essa “versão da história” que orienta a interpretação
política da proclamação da República em “O discurso do
Fabrício”. Ao final do conto, quando nosso herói é finalmente solto, o personagem antagonista João Cadete o interpela sobre suas convicções políticas e lembra com debiques
tê-lo alertado quanto a suas ilusões republicanas. Fabrício
responde: “Ora, seu Cadete, isto são infelicidades da vida!”.
Dez anos depois o autor reescreveria esse fim: “O Fabrício
esboçando um sorriso amargo, confessou que, francamente, não se estava a praticar a República por ele sonhada...”
(Marques, 1913, p. 120).
Tempos de incerteza
Astolfo Marques publicou os textos “O discurso do Fabrício”
e “A última sessão” em 1903. Um ano bastante singular em
sua carreira de “escritor improvável”. Na época, ele trabalhava havia cinco anos na modesta profissão de amanuense
da Biblioteca Pública de São Luís. Ao mesmo tempo em que
arrumava os livros, escrevia ofícios, preparava atas administrativas, estava imerso nos pequenos círculos literários que
faziam daquela instituição um espaço privilegiado de sociabilidade. Era secretário-geral (amanuense) da agremiação
literária Oficina dos Novos havia cerca de dois anos e, através
do seu patrão e patrono, Antonio Lobo, diretor da Biblioteca Pública e editor da Revista do Norte, escrevia no suplemento desta última a coluna Apuntos Bio-Bibliográficos, dedicada as personalidades literárias da história maranhense.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
151
Tempo e melancolia
152
Embora em franca atividade, aqueles primeiros anos do
novo século foram tempos de incerteza na ainda incipiente carreira de escritor. O período que compreende os anos
1900-1903 parece ter sido particularmente difícil para que o
autor veiculasse seus trabalhos ficcionais em jornais como A
Pacotilha e O Diário do Maranhão – as mídias que conferiam
maior visibilidade e notoriedade pública a seus articulistas
e colaboradores em São Luís11. Mesmo na Revista do Norte,
em que o autor possuía uma coluna fixa desde novembro
de 1901, seus contos demorariam mais de um ano para
aparecer e, ainda, com frequência bastante irregular. Dividido entre as tarefas de tradutor, biógrafo, folclorista e
contista, indeciso no começo se assinaria Raul Marques ou
Astolfo Marques, o escritor estava descobrindo o seu estilo
como autor.
Não existem registros biográficos conhecidos sobre a
vida do contista que antecedam seu ingresso na Biblioteca
Pública em 1896. Mas as escassas e genéricas informações
disponíveis permitem entrever no ofício de amanuense,
que tanto amargurou o escritor negro carioca Lima Barreto
(1881-1922), a única via possível de acesso à vida literária
para Astolfo Marques. Nascido em 1876, cinco anos após a
Lei do Ventre Livre, não contou em sua meninice e juventude, pelo que se sabe, com o auxílio de um “padrinho”
que lhe custeasse os estudos e auxiliasse sua família. Não se
fala sequer no nome de seu pai nas notas e resenhas escritas sobre o contista. Silêncios e ausências significativos, uma
11
Durante a pesquisa que realizamos nos jornais O Diário do Maranhão e A Pacotilha, referente ao período 1900-1918, na fase referente aos anos 1900-1903, apenas
três trabalhos de Astolfo Marques foram localizados. No primeiro hebdomadário,
trata-se do estudo intitulado “Odorico Mendes: apuntos biográficos”, publicado
nos dias 10, 12, 14, 19, 23 e 27 de dezembro de 1901. O único trabalho ficcional
encontrado, “A procissão do Redentor”, foi publicado em A Pacotilha dia 13 de novembro de 1903, portanto, apenas no fim daquele ano. Antes dele, o mesmo jornal
publicou a crônica “O socialismo entre nós”, no dia 1o de maio. Havia, no momento,
pouco espaço para a visibilidade dos trabalhos ficcionais do autor nos jornais.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
que vez que o esforço e as “boas relações” de um pai e/
ou padrinho conformam a via de ingresso tradicional, indispensável aos pobres, no mundo da cultura letrada brasileira
(Miceli, 2001).
A mãe sim é citada (Campos, 1935; Vieira Filho, 1951;
Oliveira, 1976; Maranhão, 1976). Delfina Maria da Conceição Marques tinha como ofício os afazeres domésticos. Em
suas Memórias inacabadas, o escritor Humberto de Campos a
menciona nas linhas que dedica ao conterrâneo:
Uma figura houve entretanto, no Olimpo, que permitiu
minha aproximação. Foi Raul Astolfo Marques, que se
tornou conhecido, mais tarde, nas letras regionais, como
Astolfo Marques, unicamente. Era homem de cor, de tez
escura e embaciada, como a dos negros que sofrem do
fígado. De estatura mediana, a fronte larga e fugidia, boca
enorme e bigode ralo, possuía dentes enormes e brancos,
que fazia aparecer a cada instante, sob a beiçorra da raça.
Era amanuense da Biblioteca, mas desempenhava todos os
misteres de servente: varria o salão, espanava as estantes,
etiquetava os livros, enchia o filtro, molhava uma planta que
havia à porta, e atravessava duas, três vezes, diariamente, a
rua, para ir buscar na “Casa Transmontana”, um refresco
para Fran Paxeco, Francisco Serra ou Antonio Lobo. Era,
segundo me disseram, filho de uma preta, lavadeira e
engomadeira. E a isso devia ele, talvez, a alegria de exibir,
pondo em destaque o seu terno de casimira azul-marinho,
cuidadosamente passado a ferro, os mais duros e lustrosos
colarinhos do Maranhão.
Humilde e obscuro, mas infatigável no estudo e no trabalho,
Astolfo Marques fez-se de tal modo indispensável aos
homens brancos a quem servia, que, na organização da
“Oficina dos Novos”, eles se viram forçados a dar-lhe um
lugar a seu lado (1935, p. 66).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
153
Tempo e melancolia
154
As palavras de Campos não expressam apenas o perfil do autor, mas dimensões do espaço simbólico em que
ambos viveram. No relato, nota-se que a posição de Astolfo Marques como subalterno é qualificada não apenas pelo
caráter dos trabalhos de baixo escalão que desempenhava,
como varrer salão, espanar estantes, molhar plantas, ir duas
ou três vezes pegar sucos para seus patrões etc., mas também racialmente: ele é o filho da preta engomadeira que
servia aos brancos. É a própria qualificação pejorativa de
sua corporalidade negra (tez escura e embaciada, beiçorra
da raça) que confere inteligibilidade à baixa posição social
do autor frente aos demais homens de letras do seu tempo.
O memorialista capta com perspicácia e preconceitos
indisfarçáveis as relações assimétricas de servilismo e dependência nas quais o escritor negro estava enredado. Ele contrapõe com sutileza a origem social obscura e racialmente
estigmatizada de Astolfo Marques com sua aparência sempre elegante, seu famoso terno de casimira azul-marinho
e o colarinho lustroso e benfeito. O retrato é grosseiro e
ousado: o servente de tez escura e embaciada era daqueles que precisavam “mostrar os dentes” para sobreviver em
meio aos brancos a quem obedecia.
As memórias de Humberto de Campos se remetem aos
anos de 1900 e 1901, quando o mesmo era balconista da
Casa Transmontana, nas imediações da Biblioteca Pública
de São Luís. Naquela data, Astolfo Marques já tinha recebido sua promoção de contínuo a amanuense e auxiliar do
diretor; entretanto, ainda desempenhava “todos os misteres
de servente”. As ambiguidades das funções do escritor em
seu ambiente de trabalho, nas fronteiras entre um serviço
manual e um trabalho que demanda as competências do
letramento, são reveladoras das condições de subalternidade de um homem cujo corpo deslizava entre os significados da recente “liberdade dos negros”. É o modo prático e
existencial particular de como o contista vivenciou na sua
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
carreira profissional e literária a frustração coletiva das consequências materiais e simbólicas da Abolição e da República para a população negra. No artigo “Intelectuales negros
en el Brasil del siglo XIX”, focalizando os casos de André
de Rebouças (1838-1898), Cruz e Souza (1861-1898) e Lima
Barreto (1881-1922), Maria Alice de Carvalho nos apresenta
um quadro coletivo:
Com efeito, a estagnação e o imobilismo brasileiros
pareciam ser adversos para esses negros ou mulatos, sempre
localizados perto da pobreza, seja por inserção social ou
por afinidade. No entanto, podiam prever que a rejeição
do ambiente institucional que permitia as posições que
gozavam e, ainda, a direção que adotava a recusa da ordem
– encabeçada por segmentos das elites – implicava um risco
para eles. Portanto, as tensões próprias de sua inserção no
mundo explicam não somente a busca de esquemas de
pensamento que não naturalizassem o moderno, como
também a resistência em aliarem-se às vertentes críticas
dominantes no Brasil. Nesse marco, a operação intelectual
possível implicava no elogio do dinamismo, mas sem a
substantivação do que deveria gerar como consequência
(Carvalho, 2008, p. 316).
Essa reflexão nos permite reler o conto “O discurso do
Fabrício”. A imagem profundamente melancólica da transformação política de 1889 conjuga tanto crítica histórica
como denuncia a estagnação das alternativas de modernização política e social. “Eu pensei que a liberdade da palavra
me seria mantida como cidadão que sou...” afirma o personagem central na iminência da tortura e da prisão. Não
se vislumbra qualquer alternativa de transformação social.
“Isso são infelicidades da vida”, arremata a personagem central do texto entre o sonho da “futura república” e a impotência esmagadora dos dominados.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
155
Tempo e melancolia
156
“Impotência”, servilismo e dependência que calaram fundo na vida e obra de Astolfo Marques. Embora a faina diária da preta Delfina contra os tamboretes de água e o ferro
à brasa provavelmente a colocasse em contato com a gente
fina do Maranhão, como dissemos, não há registros de que
suas redes de trabalho tenham assegurado uma infância de
estudos para o pequeno Astolfo. O pouco que sabemos é que
ele se dedicou às tarefas e aos trabalhos mais humildes como
ser “moleque de recado”, ajudando sua mãe nas entregas de
roupa e também como serviçal. O escritor é sempre referido
como autodidata no sentido forte do termo. O crítico Antonio de Oliveira (1976) destaca, com base na entrevista que o
contista concedeu sobre sua trajetória ao jornal Anais dia 3 de
novembro de 1910, documento hoje perdido, que o mesmo
aprendera a ler sozinho. Uma habilidade intelectual preciosa,
rara e decisiva na trajetória profissional de Astolfo Marques.
Vale dizer que, de acordo com o Congresso Interestadual de Ensino, efetuado no Rio de Janeiro em 1921, anos
muito avançados do momento ora descrito, computava-se
para o Maranhão o percentual de 95% de analfabetos em
idade escolar (Paxeco, 1922, p. 624). Nesse contexto, saber
ler era não só uma qualidade distintiva como um privilégio de muito poucos. A leitura também era um pré-requisito para o exercício da cidadania, pois analfabetos eram
proibidos legalmente de votar. Em 1896, Astolfo Marques
ingressara na Biblioteca Pública de São de Luís como mero
“vassoura” e, não fosse o esforço em conhecer as palavras,
jamais teria conseguido a promoção ao posto de amanuense e também de auxiliar do diretor, dois anos depois. A alfabetização, ao mesmo tempo em que o possibilitou alargar
suas expectativas para além da rota dos “trabalhados inferiores”, “pesados” e manuais, a que se destinava o grosso da
população negra na década que sucedeu a abolição, também o instalara numa instituição central para organização
da cultura letrada no Maranhão.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
Não seria exagero dizer que Astolfo Marques estava
no lugar certo e na hora certa. No fim do século XIX, a
Biblioteca Pública tornou-se o principal espaço de sociabilidade intelectual da capital maranhense. Na verdade, um
dos únicos, se excluirmos as instituições de caráter educacional recriadas ou refundadas na primeira década republicana, como a Escola Normal (1890), o Centro Caixeiral (1890), o Liceu Maranhense (1893), a Escola Modelo
(1896) e a Escola de Música (1902). Tal período foi marcado por um processo de reestruturação administrativa que
criou vários obstáculos institucionais à dinamização da cultura erudita no Maranhão. No prefácio ao livro O Estado
do Maranhão em 1896, escrito por José Ribeiro do Amaral,
primeiro patrão de Astolfo Marques na Biblioteca, o escritor Pedro Nunes Leal, que vivera os “tempos gloriosos” da
geração romântica, faz um balanço aterrador da cena literária regional:
A primazia nas letras, conquistada por este recanto
das terras brasileiras, pelos maiores vultos da literatura
nacional, si empalidece e obumbra-se, neste último quartel
do século, parecendo viver apenas das recordações e da
fama daqueles que sublimaram suas épocas e o transcurso
da fulgurosa existência, nem por isso extinguiu-se e
apagou-se de vez: - como todos os fenômenos da natureza,
tem o entendimento os seus brilhos e os seus estados de
repouso e descanso.
Se a uma época longa e feracíssima de espíritos enaltecidos,
por virentes ornatos do cultivo intelectual, se aparelha e
segue outra, somenos e estéril, o desmaio, as mais da vezes,
não importa senão em um reflexo de outros fenômenos
que incidem em todas as ordens da atividade humana,
entorpecendo-lhe a marcha.
Em todos os ramos da atividade teve o Maranhão suas
glórias, e glórias reais e fecundas: - na política, nos
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
157
Tempo e melancolia
158
primórdios de nossa organização nacional, conquistou a
palma dominando, pelos seus estadistas, o movimentoso
cenário; - na produtividade do solo, foi celeiro
abundantíssimo de todo o norte do país; - nas artes,
equiparou-se as outras circunscrições administrativas; - nas
ciências, teve Gomes de Souza, Lacerda, Frei Custódio
Serrão; - nas letras, Gonçalves Dias, Lisboa, Odorico
Mendes, Sotero, Henriques Leal, Serra, Trajano Galvão,
Gentil Braga e tantos outros, que deram existência e
luzimento a literatura nacional, ganhando na liça do
entendimento as glórias imorredouras da fama, que não
fenecem com a geração que teve a dita do seu convívio deles.
Mas contentou-se com tão peregrinas entidades a ubertosa
fecundidade desta terra de promissão, tão bem classificada Athenas Brazileira?
A organização econômica - fatal - que presidiu ao
povoamento do país, a princípio, como colônia fazenda, e, depois, nação explorada pela escravaria,
não podia deixar de trazer - dada a emancipação - abalo
profundo nos elementos de trabalho e na própria vida da
sociedade, resultando no meio econômico uma comoção
geral que veio refletir em todos os ramos da atividade da
nação, repercutindo pelos domínios da produtividade
intelectual.
E, de feito, não podem as letras prosperar toda vez que, na
vida de uma nação, se perpetua uma perturbação de caráter
permanente, trazendo aos espíritos a dúvida, a família, o
mal-estar.
Desaparecidos os luzeiros, que a felicidade relativa de
uma época produziu, a que, imediatamente, se lhe segue
sujeita, já, a uma ação deprimente de um cataclismo de
ordem econômica, apresenta, como que uma solução de
continuidade, sendo que as exceções que se destacam, vão
fecundar novas regiões, onde a vida é possível.
É o que se deu com o Maranhão!
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
A felicidade relativa de que gozou durante o meio século
de sua existência, como província do Império, fez brotar
e desenvolver o seu espírito eminente, claro e fecundo,
ganhando-lhe a palma e a sobrelevância no vastíssimo
campo das letras: - com as dificuldades da vida vieram o
êxodo e a carência de estudo.
Os poucos que dentro em si sentiram o alvorecer do talento
demandaram as regiões bonançosas, onde as letras colhem
louros e a cultura é premiada: daí o aparecimento, na
Capital da Nação, dos Teixeira Mendes, Raimundo Correia,
Coelho Neto, Azevedos, todos filhos do Maranhão.
Hoje, só de espaço e distanciadamente, surge, raro, um
espírito perseverante e tenaz tentando vencer a atonia que
amolenta a nativa fecundidade deste torrão abençoado e
cheio de vida valente. Esses raros batalhadores, beneméritos
da geração que passa, vão dando espaço a uma nova que
bruxuleia no horizonte, já aureolada pelos raios prolíficos
da democracia pura (Leal, 1897, p. III).
O depoimento de Pedro Nunes Leal é paradigmático.
No último quartel do século XIX a tônica da reflexão maranhense sobre seu próprio universo intelectual se concentra
numa indagação obsessiva sobre as razões da sua decadência, tema dileto de um punhado de estudiosos (Almeida,
2008; Borralho, 2000; Costa, 2002; Martins, 2006). Um problema especialmente relevante, por se tratar de um autor
que manipula sua própria notoriedade no ambiente provinciano pelo fato de ter pertencido à influente geração
romântica local que conquistou para aquelas longínquas
paragens do Império brasileiro o epíteto de Atenas Brasileira. A nomeação expõe, parafraseado Rossini Corrêa (1993,
p. 103), um modo da elite letrada “timbira” colocar-se na
“selvageria” cultural das Américas protegida e distinguida
pela cultura clássica europeia. Um constructo cultural que
revela o impasse da geração fidalga pós-Independência,
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
159
Tempo e melancolia
160
entre o passado colonial português e o futuro necessariamente brasileiro12.
Note-se que o já idoso lexicógrafo elabora uma espécie
de “teoria da decadência”. O desafio do texto, mais do que
prefaciar um livro, é explicar como a sua bela “terra de promissão” que deteve a “primazia das letras pelos maiores vultos da literatura brasileira” pôde chegar ao final do século
XIX à um estágio de “desmaio” e “esterilidade”. Adotando
o típico jargão científico pós-1870, explica Leal que, como
“todos os fenômenos da natureza”, tem a inteligência seus
estágios de ascensão e declínio. Fato que pode ser observado na trajetória cultural maranhense comparando-se a
“felicidade relativa de que gozou durante o meio século de
sua existência como província do Império” e o seu presente republicano. Uma consequência “fatal” do impacto do
processo de abolição do trabalho servil negro em “todos os
ramos da atividade da nação, repercutindo pelos domínios
da produtividade intelectual”. Nesse sentido, a emancipação dos escravos, “trazendo aos espíritos a dúvida, à família,
o mal-estar”, é apontada como a principal responsável pela
decadência espiritual do Maranhão.
Esse aspecto é decisivo nesta análise. Ele revela o sentido conservador do ressentimento letrado às condições
sociais de produção intelectual na Primeira República. Para
amplos setores da elite, a Lei Áurea foi vivenciada como um
ataque à tradição e à história maranhense13: uma perspecti Esse é justamente o caso de Pedro Nunes Leal. Nascido em 22 de agosto de 1823,
apenas dois anos após a Independência, e falecido dia 7 de novembro de 1901, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra e atuou no Maranhão como fundador e diretor do colégio Instituto de Humanidades do Maranhão. Foi também tradutor, jornalista e lexicógrafo. Para melhores informações ver Meireles (1958, p. 31).
13
Essa perspectiva teve vida longa no século XX. No livro História do comércio do
Maranhão, de Jerônimo de Viveiros, o autor chega a afirmar que o 13 de Maio
deixara o ex-senhor “atordoado pelo golpe que lhe arrancava parte do patrimônio, estarrecido diante da desorganização do seu trabalho, agora sem braços, com
êxodo dos ex-escravos, que das fazendas partiam para a festa da redenção da raça”
(1954, p. 557). A abolição seria, portanto, um desmerecido golpe daqueles que
12
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
va diametralmente oposta àquela presente no texto “O discurso do Fabrício”. Com efeito, parte da amarga decepção
dos grupos dirigentes locais com o novo regime, como quis
sugerir Astolfo Marques em “A última sessão”, advém de sua
ineficácia institucional para restabelecer, sem as “dúvidas”
e o “mal-estar” assinalados por Nunes Leal, a legitimidade
senhorial de outrora. Quem sabe, vale repetir com o escritor negro, “a ideia de República não se lhes apresentasse
como sendo todos eles majestade”.
Outro argumento importante que o gramático faz derivar do “abalo profundo nos elementos de trabalho e na
própria vida da sociedade” é relativo aos próprios meios
de exercício do labor intelectual. Ao descrever a geração de
foros realista, naturalista, parnasiana e simbolista que sucede a sua própria, destaca que aqueles “poucos que em si sentiram o alvorecer do talento demandaram as regiões bonançosas, onde as letras colhem louros e a cultura é premiada”.
O autor pretende denunciar, tomando com referência a
capital fluminense, o lugar depreciado dos “homens de
cultura” no Maranhão de fin de siècle. O fim da escravidão,
“uma perturbação de caráter permanente”, teria sido capaz
de rasurar as linhas de distinção e prestígio cultural que
conferia sentido nativo ao epíteto Atenas Brasileira. Ao contrário dos bons e velhos tempos de “antiguidade clássica”, a
atividade literária não é mais motivo de honra e glória. Algo
um tanto contraditório, pois que a nova geração nasce “já
aureolada pelos raios da democracia pura”, o novo regime
republicano.
O dilema vivenciado pelos intelectuais tradicionais de
São Luís é que, contrariando todas as expectativa de modernização social e de conquista de um lugar relevante para
região no jogo político nacional, o advento da República
julgavam justa a “punição do escravocrata que havia no lavrador. Esqueciam-se porém que eles tinham deveres para com aquele trabalho, cuja evolução custara dois
séculos e ingentes e perseverantes dos nossos antepassados” (1954, p. 557-558).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
161
Tempo e melancolia
expôs em todos os setores da vida social a fragilidade institucional do Estado para enfrentar a nova conjuntura governamental. De um modo geral, a própria região norte do país
consolida-se como periferia da nação. No longo poema “Harpas de ouro” (1898), dedicado aos dez anos da proclamação do regime republicano, o poeta Sousândrade, primeiro intendente (prefeito) da capital maranhense durante o
governo de Deodoro da Fonseca, expressa em duas estrofes
amargas suas desilusões:
E eis minha casa, miniatura / República: o pão... me dar / Pedras a Vitória, e doçura... /
Nessum maggior dolore, a olhar / Sorrindo à esperança, que
ventura / Quão docemente a de chegar!
162
Armas com que fiz a república / Pontas voltaram contra
mim / Antes deixasse a raça lúbrica / Em seu hediondo
chifrim (Sousândrade, 2003, pp. 440, 445).
A situação de penúria que marca os últimos anos de
vida de Sousândrade é o exemplo mais radical de humilhação pública que assombrava a intelectualidade ludovicense.
Tal como canta em seus versos, o significado da República
se confundia com a sina pessoal de ser obrigado a vender as
pedras dos muros de sua própria casa para ter o que comer
(Williams, 1976, p. 6). “Armas com que fiz a república/Pontas voltaram contra mim”.
Também é significativo que uma das maiores frustrações do poeta na primeira década do novo regime fora a
ausência de qualquer auxílio governamental, estadual e
federal, ao seu projeto de fundação de uma universidade
em São Luís. Fato que revela o total descompasso entre as
expectativas dos intelectuais da terra, que viram no 15 de
Novembro uma alternativa para a dinamização da cultura
erudita regional, e as oportunidades políticas concretas
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
para realizá-las numa época em que as chances reais de consagração literária nacional passaram a estar decisivamente
condicionadas à saída do Maranhão. Antonio Lobo, em Os
novos atenienses (1909), livro que tem por objetivo narrar a
história da geração de Astolfo Marques, descreve os impasses
e alternativas da juventude letrada naquele fim de século:
Uma grande parte dos cavaqueadores, terminando o curso
do Liceu, ausentaram-se do Estado, rumo das academias,
onde se foram diplomar; outros trocaram inteiramente
as veleidades literárias do começo, pelas ocupações
burocráticas, mais rendosas e compensadoras; a morte
arrebatou diversos; e os pouquíssimos que se mantinham
fieis aos credos antigos, recolheram-se ao silêncio, feridos
pelo desânimo e a deserção dos companheiros, aguardando,
talvez, épocas mais propícias para voltarem a luta (Lobo,
[1909] 2008, p. 42).
Eram precisamente essas alternativas “mais rendosas e
compensadoras” da burocracia estatal que estavam completamente fora do horizonte de Astolfo Marques naqueles
começos dos anos 1900. Diga-se de passagem, as melhores colocações profissionais estavam necessariamente atreladas ao carisma de manipular o conhecimento da cultura
letrada durante toda a Primeira República (1889-1930). Os
bancos do elitizado Liceu Maranhense eram a única via
para as prestigiadas Faculdades de Direito e Medicina sediadas em Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Se o
autodidatismo servira para ultrapassar a linha negra dos serviços exclusivamente manuais, por outro lado, não autorizava maiores expectativas de expressão e reconhecimento
público. Muito pelo contrário. Após cinco anos de trabalho
na Biblioteca, a posição ambígua de “servente-amanuense”
representava também o limite estagnado de sua carreira
profissional nos órgãos do Estado.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
163
Tempo e melancolia
164
É nesse contexto, mais precisamente entre os anos de
1900-1904, que a problemática da República surge com força nos seus contos. Um tema que marcaria indelevelmente
toda sua obra. Uma parte significativa da literatura produzida pelo escritor negro maranhense poderia ser entendida como uma tentativa sistemática de interpretar os significados da transformação política de 1889 para o povo. O
tema comparece ao longo de toda a sua trajetória intelectual em contos como “Abnegação” (1901), “A última sessão (1903), “O discurso do Fabrício” (1903), “A opinião da
Euzébia” (1904), “De coroa e barrete” (1908) e “Reis republicanos” (1916). Resta dizer que A nova aurora (1913), seu
único romance, é inteiramente dedicado à descrição dos
primeiros meses de implantação do regime republicano. A
escolha literária é orientada por um ambiente cultural cada
vez mais insulado e periférico no jogo político oligárquico
nacional de hegemonia paulista e mineira, mas também
mediada por relações de dependência socioeconômica e
subordinação racial.
Modernidade republicana e cidadania negra
A essa altura o leitor deve ter notado o interesse especial
desta análise pelos primeiros contos de Astolfo Marques
sobre o regime republicano na periferia do Brasil. Não se
trata apenas de demonstrar a pertinência originária do
tema para a conformação do projeto literário do autor, mas
assinalar o enraizamento dessa escolha na problemática
nacional sobre a real capacidade da pátria enquanto uma
sociedade moderna, capaz de romper os laços com o passado colonial e escravocrata.
Os eventos sangrentos dos primeiros quinze anos do
novo regime (separatismo sulista, 1893-1895; Revolta da
Armada, 1893; Insurreição de Canudos, 1896; Revolta da Vacina, 1904), revelaram o fracasso da ação política em enquadrar a população brasileira nos modelos liberais vigentes
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
nos países europeus (Carvalho, 1987). A estruturação de
oligarquias estaduais profundamente patrimonialistas colocou na ordem do dia a questão dos limites do interesse privado na condução da coisa pública. Por outro lado, a vigência
do racismo científico nas principais faculdades do país alimentava o medo e a crença de que todo esforço de progresso
nacional pudesse esbarrar na força degenerativa do sangue
africano que inunda o corpo colorido do povo brasileiro.
Numa frase: imperativos como a existência de um povo incivilizado, a corrupção política desenfreada, a força da luta das
raças decidindo silenciosamente o destino das nações, eram
imagens de um mundo incapaz de abrigar uma identidade
nacional a um só tempo moderna e genuinamente brasileira.
Para ser breve, e não incorrer na falta de recontar uma
história hoje bem documentada, preciso apenas reafirmar
que a literatura foi o palco privilegiado dessas angústias. É
nesse espírito que obras de fôlego como Os sertões, de Euclides
da Cunha, e Canaã (1903), de Graça Aranha, tentaram levar
às últimas consequências expressivas a interrogação sobre o
dilema de uma modernidade nacional, nas quais as fronteiras
entre a civilização e barbárie se perdem na diversidade cultural e biológica de uma gente e uma terra vastas e ignoradas14
14
“No Canaã, com efeito, a vinculação moral com a terra é apenas um contraponto para a figuração alegórica do eldorado dos trópicos que faz do romance um
espaço aberto à ação dos caldeamentos de toda sorte [...]. Ao contrário de Os sertões (1902) em que a ausência de unidade da raça se constitui num tema para cons­
ciência de nosso atraso, a convivência no Canaã entre colonizadores e colonizados, a pretexto da ocupação da terra inóspita, prescinde dos apelos da pátria. ‘Isso
a que chamamos nação não é nada’, diz Mikau a um nativo exaltado. ‘Aqui já
houve talvez aparência de liberdade e de justiça, mas hoje está tudo acabado’. Do
ângulo do colonizador, a noção de que o Brasil é um cadáver que se decompõe
para servir de pasto à ação dos mais aptos representa no fundo uma penitência
que põe a nuas consequências de nossas mazelas: esbulho burocrático, justiça precária, desvirtuamento da cidadania. Basta lembrar que, para o colonizado (um
Brederodes, um Pantoja, um Itapecuru), a descrença na possibilidade de preservar a própria identidade transforma a civilização num sentimento de perda que
aguça a vontade de resistir, aproximando-se da atitude crítica de Euclides da
Cunha, então preocupado em defender o homem da terra como se fosse a rocha viva da própria raça” (Prado, 2004, p. 36-37).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
165
Tempo e melancolia
166
Nesse sentido, é interessante observar que o primeiro
indício da longeva reflexão de Astolfo Marques acerca da
República também tenha começado por Canudos. O conto
“Abnegação” (1901) narra o infortúnio de dois soldados,
pai e filho, no combate contra o arraial de Antonio Conselheiro. Tal como o título do texto torna previsível, os protagonistas da estória irão morrer em nome da lealdade militar
à República, mediada pelo amor paternal e filial de um pelo
outro. Ao fim dessa curta estória, o velho recebe a notícia
de que perdera a mulher e precisa voltar para São Luís e
honrar sua casa enlutada. Desiste a meio caminho e retorna, passando à frente do batalhão republicano e termina,
por engano, cravado por balas do seu próprio exército. O
ímpeto do jovem para salvar o pai o torna presa fácil para os
jagunços, que o alvejam com o velho ainda nos seus braços.
Aquela guerra e a abnegação dos bravos não tiveram, portanto, qualquer sentido. Mas não nos interessa aqui o desfecho e sim o que ocorre à mente dos combatentes durante o
percurso até o sertão baiano:
Ao receber o adeus de todo o povo maranhense, todavia,
não choraram. Não eram soldados da pátria? Para que se
fizera o soldado, senão para morrer defendo-a?
E seguiram. Passaram pela terra de Alencar, pela de
Deodoro e de Floriano e chegaram à de Gregório de
Matos. Cairu, e tantos outros onde demorariam ainda
alguns dias à espera dos outros regimentos que faziam
parte da sua divisão.
Neste ínterim campeava, em forma de verdade, o boato.
Assim era que Gaston de Orleans percorria o arraial dos
fanáticos, animando-os e auxiliando-os monetariamente;
Isabel, a Redentora, consagrada santa pelos jagunços, e com
um poder milagroso sem igual, impedia que chegassem
vivos às cercanias do local conflagrado, os soldados da
República; Antonio Conselheiro pregava a monarquia; os
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
comboios de viveres não chegaram a vencer metade do
caminho, e a fome chegara.
Mas o velho e o moço tinham fé na virtude da raça e na
vitalidade do país. Poder-se-ia duvidar disso, quando do solo
dos antepassados se erguia tanto devotamente e tão boa
vontade? Mas conjecturavam, não são brasileiros também esses que
lá estão fanatizados? (Os Novos, 1901).
A questão que Astolfo Marques faz pairar na cabeça de
seus combatentes é a perturbação de uma época. Ela carrega toda contradição política da descontinuidade entre o
nacional e o popular e o fascínio intelectual caracteristicamente moderno de interrogar na alteridade sua autenticidade cultural. Os grandes personagens da chamada literatura “pré-modernista” devem muito de seu valor expressivo
à intensidade com a qual formalizaram esteticamente essa
problemática. Nela reside a “alma encantadora” que João
do Rio encontrou nas ruas sujas, presídios, carnavais e
subúrbios cariocas. Ela também dita a inocência cega com
que Policarpo Quaresma se convence da grandeza das “coisas brasileiras” e molda seu triste fim, na pena de Lima Barreto. A vitalidade, miséria e estigma com que Aluízio Azevedo desenhou seu cortiço. O deslumbramento de Euclides
da Cunha com o infinito verde-amazônico e seus seringueiros às margens da história e da linguagem. Tem-se o drama
de uma identidade coletiva que, para ser moderna e original, precisa fundar sua face em rostos negros, desdentados
e famintos.
O problema não é apenas que a resposta à questão do
escritor maranhense seja amargamente afirmativa mediante
as expectativas de civilidade europeia e higienização social
que alimentava a ideologia das classes dirigentes15. Mas que
15
Até mesmo porque essas ideologias não foram únicas e nem incontestes. “Em
sentido complementar, intelectuais como Afonso Arinos, Mello Moraes Filho, Alexina de Magalhães, Lindolfo Gomes, Alberto Nepomuceno, dentre muitos outros,
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
167
Tempo e melancolia
o seja precisamente através do “fanatismo” dos seguidores do Conselheiro, na crença do poder da Santa Princesa
Isabel de redimir todos os sofrimentos e impedir os soldados da República de chegar ao arraial, pela assombração
e “auxílio monetário” de Gaston de Orleans aos jagunços,
através da autonomia inventiva e palpitante de valores culturais populares contramodernos.
Essa experiência de choque transforma em problema a
constituição da identidade nacional, por meio da oscilação
entre a identificação etnológica e distanciamento etnocêntrico e
pela dificuldade em estabelecer, através de positividades
e negações, as margens do seu próprio campo cultural
(Ventura, 1990, p. 138; grifos do autor).
168
É essa dificuldade para estabelecer a linguagem oficial
do imaginário coletivo que tanto caracteriza a sensibilidade artística e intelectual brasileira na Primeira República
que adquire uma entonação singular na produção cultural
popular e erudita de indivíduos racialmente subalternizados na ordem pós-escravocrata.
Esses intelectuais, geralmente jornalistas, artistas, artesãos,
literatos, foram também os porta-vozes de um sentimento
popular que ia além da aspiração por respeito, igualdade
de tratamento e de oportunidades que medrava nas
camadas médias urbanas, majoritariamente brancas,
geralmente de origem imigrante [no Sul do país]. Esta
outra aspiração a que me refiro era a de livrar-se do
interessados na valorização dos costumes populares, não podem mais ser tidos
como exceção. Na Primeira República, diversos agentes sociais, como intelectuais,
professores, maestros, músicos populares e o variado público do teatro e das festas populares, formado por setores médios e trabalhadores, experimentaram, em
meio a muitos conflitos, a construção da nação – e também da nação republicana
– em termos culturais” (Gomes e Abreu, 2008, p. 13). O presente ensaio seria pouco inteligível desconsiderando essa perspectiva, não?
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
preconceito de cor e do estigma da escravidão pensando a
nação brasileira como mestiça.
A aspiração por igualdade de tratamento e de oportunidade,
portanto, nesses segmentos urbanos fundia-se, com um ideal
de fraternidade e de solidariedade nacional, que pensava
crioulos, pardos e mestiços como simplesmente brasileiros
(Guimarães, 2010, p. 16).
Nessa perspectiva, a descoberta analítica do sociólogo Guerreiro Ramos ao desconstruir nas ciências sociais o
então chamado “problema do negro”, deslocando-o para
indagar a formação do sujeito político moderno no país – “o
negro é povo, no Brasil” (1995, p. 200; grifos nossos), afirma
o autor –, adquire um campo de investigação renovado16.
Com efeito, intelectuais negros como Lima Barreto, Nascimento Moraes, Hemetério dos Santos, Manoel Querino,
dentre outros, fizeram de conceitos-chave do vocabulário
político da modernidade ocidental como “povo”, “nação”
(mestiça) e “cidadania”, a linguagem primordial com a qual
expressaram sua negritude; o enraizamento social e cultural
desses indivíduos nas expectativas políticas dos ex-escravos
no período pós-abolição, nos silêncios entre certas anedotas e alguns contos. Noutras palavras, o que a pergunta
de Astolfo Marques sobre as fronteiras e as tensões entre
o nacional e o popular nos permite investigar, de forma
tanto mais visível por se tratar da periferia do país, é o
horizonte nativo da luta social na qual essas escolhas tornaram-se viáveis.
Em “A opinião da Euzébia” o autor percorre essas tensões de forma profundamente engajada. O conto, publicado no dia 1o de janeiro de 1904 na primeira página do
16
Como esclarece Joel Rufino dos Santos: “Os estudo sobre o negro e a questão
racial avançaram muito anos após sua morte, é verdade, mas não o bastante para
superar o duplo paradoxo em que Guerreiro Ramos se debateu: não há raças, mas
há relações raciais; e negro é povo, mas há negritude e não povidade” (1995, p. 26).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
169
Tempo e melancolia
jornal A Pacotilha, engrossava o caldo dos descontentes com
a política sanitária no Maranhão. O flagelo da peste bubônica assolava São Luís desde fins do ano anterior, e revelava
assim que a capital maranhense continuava a mesma cidade suja e endêmica dos tempos imperiais17. De acordo com
o relatório A peste no Maranhão (1904) escrito pelo médico
Victor Godinho, convocado de São Paulo para reestruturar
o serviço de saúde dada à inépcia local, mais de 10 mil pessoas se refugiram no interior o estado temendo a infecção.
Ademais, o quadro do serviço hospitalar era calamitoso:
O pessoal inferior era pequeno para cuidar de tão grande
número de enfermos e não tinha a mais pequena noção do
direito que tem os doentes ao bom tratamento no hospital.
Eram os próprios doentes que procuravam a água, o leite
e o remédio de que precisavam, ou eram seus vizinhos
convalescentes, que lhos ministravam. Não havia horário
para distribuição de dietas e refeição dos doentes, nem tão
pouco para as refeições do pessoal. Muitos doentes faziam
acompanhar-se por pessoas da família quase sempre de sexo
diferente, marido e mulher, pai e filha, irmão e irmã etc.,
de sorte que não havia nas enfermarias separação de sexos:
170
“É necessidade por todos reconhecida o estabelecimento de um serviço regular
de limpeza da cidade, que no respeita ao asseio das ruas, praças e praias, em que
imundícies se amontoam, quer no atinente a remoção do lixo das habitações
que ou permanece no interior delas, comprometendo a saúde dos que nelas assistem, ou jaz atirado horas e horas nas calçadas, oferecendo aos transeuntes um
espetáculo repelente e envenenando o ar, que eles respiram, quando os cães não
se lembram de espalhar pela via pública os mais abjetos detritos ali depositados.
E nada se faz no sentido quer de melhorar os calçamentos que o exigem, quer de
estabelecer um serviço de imediata necessidade pública, como é esse da limpeza
e asseio da cidade ao passo que se cuida de embelezá-la! E as consequências do
abandono em que é deixado semelhante serviço, aí temos na invasão da terrível
epidemia que atualmente nos visita, e vai tomando as mais pavorosas proporções,
devido a nada mais que asseio da cidade e das elementares medidas pela sua higiene, e a falta de ação enérgica quer do poder municipal, que do governo do Estado, que têm revelado a mais completa inaptidão para o desempenho dos árduos
deveres que em tão difícil emergência lhes incumbiam” (A Pacotilha, 8 jan. 1904).
17
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
- as enfermarias de mulheres tinham vários homens que
acompanhavam seus doentes e nas de mulheres dava-se a
recíproca. Não era possível haver ordem em tais condições.
Os doentes graves, os convalescentes, os moribundos, e os
são ocupavam promiscuamente as mesmas salas.
O próprio isolamento dos doentes era uma coisa
inteiramente virtual. Quem queria ter notícias seguras de seus
enfermos procurava ir vê-los mais de perto, se amor que lhes
tinha fosse maior que o medo da peste. A entrada no hospital
não era inteiramente franca, mas pouco faltava para o ser.
Pessoas estranhas ao serviço chegavam as muitas das janelas
casas isoladas, trocavam objetos com as pessoas de dentro e
demoravam-se o tempo que lhes aprouvesse, não obstante
existir junto do hospital um corpo de guardas incumbido de
manter o cordão sanitário (Godinho, 1904, pp. 10-11).
O médico paulista descreve em tintas carregadas de
moralismo e zelo técnico uma realidade promíscua e aquém
de quaisquer noções de direito no tratamento da vida. O
fato de os próprios doentes serem responsáveis por si mesmos dentro do hospital ilustra a afinidade violenta entre a
inocuidade dos serviços públicos, o tratamento patrimonial
de bens estatais e a clivagem social da cidadania. Nesse ponto, sobre os recursos referentes a compra de vacinas haviam
denúncias de que
os vapores chegam e ou nada trazem – a não ser as
vacinas a serem recebidas particularmente pelo governo,
segundo se disse, para justificar a sua distribuição pelos
amigos particulares – ou o que trazem é em quantidade
tão insignificante, que mais parece um escárnio a esta
população (A Pacotilha, 13/01/1904).
Mesmo para Victor Godinho, que identificou na desordem da Secretaria Higiene uma prova da “indolência”, “falLua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
171
Tempo e melancolia
172
ta de ambição” e “pouca dedicação ao trabalho” daquela
gente do norte, “apesar dos bons exemplos que eram dados
pelos desinfectadores de São Paulo, corretos zelosos e cumpridores de ordens e do dever” (1904, p. 29), era chocante
a desigualdade dispensada ao tratamento de ricos e pobres
em plena endemia. O Hospital Português mantinha uma
casa de isolamento, cobrando a diária de 10$000 réis e, por
vezes, ainda requeria os poucos médicos e enfermeiros do
setor público para tratar seus doentes de estirpe. Registra
com ironia no relatório: “19 de fevereiro tive de mandá-las
(enfermeiras paulistas) para uma das casas junto hospital a
fim de tratarem um doentinho de classe. Aí estiveram em serviço até o dia 25” (1904, p. 31).
Com efeito, parte da grande atenção pública despertada pela peste bubônica em São Luís se deveu ao fato de a
epidemia ter atingido as classes mais abastadas, uma vez que
os surtos de doenças como lepra, beribéri, tuberculose, responsáveis pela maioria dos óbitos na população da cidade,
nunca alarmaram as autoridades competentes (Almeida,
2004, p. 242). Mas o momento político também era propício
para transformar a questão da higiene no crivo da boa ou má
política pública. O governo do presidente Rodrigues Alves
(1902-1906) elegera o combate as epidemias e o “problema
sanitário” – que incluía a presença de mendigos, moleques
de rua, habitações populares, e cortiços nas áreas centrais das
capitais brasileiras – como uma das principais metas do seu
mandato. Para tal, compôs uma poderosa comissão chefiada
pelo famoso Dr. Oswaldo Cruz para desenvolver essa “política
científica” que teve na Revolta da Vacina, em fins de 1904,
sua consequência mais trágica (Sevcenko, 2010). Portanto,
quando a peste bubônica devassava a capital maranhense a
saúde pública era um problema político central no país18.
18
Portanto, tem-se uma arma política eficaz de oposição ao governo maranhense
no contexto da peste: “O público é testemunha de como, esquecendo fundos res-
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
A publicação do texto “A opinião da Eusébia” é parte
dessa conjuntura nacional de radicalização política do problema da higiene pública, tensionada no Maranhão pela
eclosão da peste bubônica. Mais uma vez, trata-se do típico
conto clássico no qual é narrada uma história em primeiro
plano, cifrando nessa um segundo relato, que surpreende
o leitor ao emergir como tema central de toda narrativa
(Piglia, 2004, p. 89). É assim que, nesse caso, a história do
encontro fortuito de duas grandes amigas que não se viam
há algum tempo converte-se no relato do flagelo da peste nos
subúrbios de São Luís. Observemos inicialmente a narrativa
dessa amizade apresentada em primeiro plano ao leitor:
- “Assim minha comadre, depois que seu Benzinho Mendes
lhe deu a sorte grande, já ninguém tem licença de lhe por
os olhos”, dizia Euzébia das Carneiros à Libania, de quem
era além de amiga e patrícia, comadre de fogueira, pois
embora levassem vida airada, nenhuma havia concorrido
com uma só unidade para aumentar os algarismos da
estatística da população. Eram naturais de Codó, escravas
das Carneiros, tendo vindo pra capital por intermédio do
Caixa d’óculos, que as vendeu ao capitalista Fagundes, o
qual, na antevisão do aceleramento com que se aproximava
a extinção do elemento servil, as libertou e outras suas
escravas juntamente, rendendo-lhe o ato de filantropia um
Hábito da Rosa.
A Eusébia, rapariga ainda moça, vivia alugada como
cozinheira, em cujo ofício era exímia; gostava de dormir
em casa dos patrões, não só melhor esquivar-se de “meter-se
sentimentos e calando radicais divergências que nos separam do governo do Estado, procuramos desde o começo da epidemia que nos flagela, prestigiar os atos
do poder público tendentes a debelá-la. [...] Mas tudo tem limites: a passividade
absoluta só fez para natureza bruta; e é exatamente esse grande princípio que nos
faz agora romper com todas as considerações para denunciar o governo do Estado
como responsável pelo desenvolvimento que vai tendo a terrível epidemia que
tantas vidas já tem ceifado” (A Pacotilha, 13 jan. 1904).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
173
Tempo e melancolia
174
com baralhos”, o que nenhum lucro dava, como também
para estar a par das novidades, não morria lá de amores
pelos homens, apesar de sua corpulência bem formada e
dos seus fartos quadris.
A Libania, mulata cujo corpo era de feitura semelhante ao
da sua parceira, gostava de viver amasiada, e nessa vidinha
era notável a sua predileção pelos Manueis, O Manuel
Grande, a quem Deus haja, o Manuel Romeu, o Manuel
Pimenta, o Manuel Bem-Servido, o Manuel Pichoso, o
Manuel Rabada e parece que até os dois Manezinhos, todos a
tiveram como apaixonada. Ultimamente amancebara-se com
o Manuel Casimiro, e morava lá pras bandas do Filipinho;
vinha à cidade uma vez por outra, não deixando, em cada
uma dessas excursões de visitar a comadre. E como já fizesse
muito tempo que não dava o ar da sua graça, foi que a
Eusébia, que vinha da praia do Desterro com uma cambada
de peixes no balde, fez aquela observação, ao encontrar-se
com a Libania, numa manhã, no canto da quitanda João
Pachola (Marques, 1905, pp. 189-190).
O sentimento de profunda intimidade na relação entre
as comadres, transmitida ao leitor através da interpelação
desabusada de Eusébia à sua amiga nas três primeiras linhas
do texto, é o suporte ficcional que justifica a estrutura dialógica do conto. Toda a narrativa se passa na forma de um
diálogo entre a personagem central e a mulata Libania, e,
depois, com a velha beata tia Puluquéria. O recurso é eficaz para os propósitos regionalistas do autor, na medida em
que torna obrigatória a referência constante ao universo
cultural e social das personagens sob pena de comprometer
o efeito de realidade intentado bem como a coerência formal da narrativa.
Não é à toa que o relato de uma amizade se transforma rápida e instantaneamente na história da abolição do
trabalho escravo no Brasil. Serem escravizadas pela mesma
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
família no interior do Maranhão, vendidas para a capital
sob o chicote do mesmo senhor, e libertadas pelo afã de
status social deste proprietário, constituem o elo fundamental entre Eusébia e Libania. O sobrenome “das Carneiros”
nomeia a violência social que as une desde sua provável
escravização ilegal, pois nenhuma delas “havia concorrido
com uma só unidade para aumentar os algarismos da estatística da população”, até a avareza do último dono que só
as libertou “na antevisão do aceleramento com que se aproximava a extinção do elemento servil”, convertendo a futura impossibilidade de lucro econômico em reconhecimento
social dado o “gesto filantrópico”.
Nesse sentido as diferenças de comportamento, personalidade e modo vida com que Astolfo Marques rapidamente pinçou suas personagens perfazem a formalização estética de significados e estratégias de construção social da liberdade na ordem pós-escravocrata. Assim temos que, na relação
entre as duas comadres, aquilo que o cativeiro havia unido
a abolição terminou por separar. Para Eusébia, a alforria significava independência do espírito e autonomia pessoal.
Apesar de bela “não morria lá de amores pelos homens”:
preferia morar em casa de patrões que viver subordinada
por um amásio ou mesmo um marido. Além do mais gostava de viver no núcleo mais urbano e comercial da cidade,
em oposição aos bairros rurais e afastados do centro de São
Luís, “para estar a par das novidades”, ser senhora de sua
própria realidade.
Libania era diferente. Vivia a liberdade nas fronteiras
do amor. Astolfo Marques lança mão dos estereótipos de
apetite sexual desenfreado e inconstância emotiva acerca
das mulatas que já existiam há longa data na literatura brasileira. A personagem é descrita como mulata com o fim
exclusivo de dar coerência à volubilidade de suas relações
amorosas passadas, descritas pelo narrador como “vidinha”.
O fim da escravidão significou para Libania entregar-se
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
175
Tempo e melancolia
a plena liberdade de escolha sexual na qual “era notável
sua predileção pelos Manuéis”, referência humorística aos
brancos portugueses. Mas não era só isso. A mulata havia
ganhado “a sorte grande” ao lado de Manuel Casimiro. Fato
que a obrigou renunciar à estimulante vida citadina, mas
proveu sua emancipação com a certeza da segurança financeira que um homem apaixonado pode oferecer àquela
que lhe atende os caprichos. Vejamos sua resposta à provocação de Eusébia:
176
- Qual, minha cheira, não me culpe. Você sabe bem que, por
mim, eu não estava naquela solidão!
- Vá dizendo pros outros, morda aqui!
- E motejante apresentava o indicador à Libania. Não
compreendia como pudesse haver que nos tempos presentes, ainda se
escravizasse voluntariamente. Deixasse penar pra lá o Manuel
Casimiro com seus achaques de hemorroidas e viesse pra
cidade, que Manés lhe não faltariam, aconselhava.
- Isso não, minha comadre, isso é que não faço, nem nunca
farei. Quem come a carne é que rói os ossos. Aturo-o, que
remédio! Tratada a vela de libra, como sou, ninguém se
atreverá a chamar-me ingrata, pois não darei para isso. Vou
indo aguentando meu boi inté quando Deus quiser...
- O que é de gosto regala a vida. Que eu vou fazer pra sua
sorte? E, batendo nas costas da amiga, a Eusébia ria-se
maliciosamente.
- Quando buzinar que você for ao Açougue compre-me dois
quilos de carne da maçã do peito, que eu quero levar pro
sítio. Lá pro meio-dia aparecerei...
- Eh! eh! minha comadre, “você ainda está André na
história”. Então, você não sabe que estão botando carne
fora por causa dessa doença que está andando aí? Você com
aquele homem está ficando “panema”? (Marques, 1905, pp.
191-192; grifos nossos).
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
O contraste entre as comadres não poderia ser mais
flagrante. Para Eusébia a escolha da amiga em viver com
seu amásio é uma opção de vida anacrônica. Equivale a se
rebaixar voluntariamente ao status de escravo na medida
em que se ancora numa relação de dependência e submissão a outrem. Ao invés das benesses do nascente trabalho livre assalariado, Libania recorre aos favores do velho
patriarcalismo. Astolfo Marques cria nesta personagem a
sua própria Bertoleza, escrava que, no romance O cortiço,
de Aluízio Azevedo, vive como serva sexual, trabalhadora
explorada e negra iludida com uma falsa carta de alforria,
metáfora de sua falsa liberdade, forjada pelo consorte português João Romão. Bertoleza suicida-se no fim da trama
quando o amásio paga meganhas da polícia para reduzi-la
de novo à escravidão. Libania, ao contrário, por ser “tratada à vela de libra”, responde ao seu patriarca com a velha
moral da “ideologia da alforria”: a gratidão19. Em ambos os
casos, no trágico e no irônico, estão a mesma impossibilidade de verdadeira emancipação. Moral das histórias: “quem
come a carne é quem rói os ossos”.
Aliás, por citar um provérbio, merece destaque o esforço do autor em transmitir à linguagem escrita a tônica dos
falares da população negra pobre de São Luís no início do
século XX. O uso de termos e expressões como “minha
cheira”, “manés”, “panema”, além de provérbios como “vou
aguentando meu boi inté quando deus quiser” e “o que de
gosto regala a vida” dentre outros, pretendem convencer
o leitor que “a opinião de Eusébia” e de outros personagens relevantes será emitida em seus próprios termos, com
“A ideia aqui era convencer os escravos de que o caminho para a alforria passava necessariamente pela obediência e fidelidade em relação aos senhores. Mais
ainda, e como veremos detalhadamente adiante, a concentração do poder de alforriar exclusivamente nas mãos dos senhores fazia parte de uma ampla estratégia
de produção dos dependentes, de transformações de escravos em negros libertos
ainda fiéis e submissos a seus antigos proprietários” (Chalhoub, 1990, p. 100).
19
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
177
Tempo e melancolia
178
o sotaque distintivo do universo cultural negro e mestiço
do povo maranhense. Esse movimento contém aquele processo inesperado das relações entre a literatura e os grupos subalternos na qual o código erudito é atravessado pela
irredutibilidade da presença social da diferença na realidade esteticamente reconstruída (Hardman, 1983). Eis um
fato radical na ficção de Astolfo Marques que faz a escrita
começar seu trabalho codificador e decodificador desde o
chamado “lugar de negro”.
A escolha de personagens femininas aprofunda ainda
mais esse aspecto. A ocupação do espaço urbano de São
Luís por mulheres negras e pobres, vivendo em cortiços e
baixos de sobrado, com bancas de frutas e quitutes, lavando
roupa nas fontes públicas, entoando altos pregões, é motivo de tensão e escândalo público desde os tempos imperiais. A historiadora Glória Correia ao pesquisar a mão de
obra feminina na indústria têxtil maranhense notou uma
perseguição especial com relação às peixeiras, queixas “quase sempre apresentadas em defesa da moral e no mais ácidos dos tons, tais reclamações repetiam a mesma cantilena
sobre o comportamento irreverente e a língua solta dessas
trabalhadoras” (Correia, 2006, p. 35). Lembremos que,
quando Eusébia encontra sua comadre, “vinha da praia do
desterro com uma cambada de peixes no balde”. Mais uma
referência que permite inferir que o autor quis dar à personagem central do conto a irreverência escandalizadora e
as maneiras desbocadas das trabalhadoras de rua. Note-se a
linguagem chula e imoral de Eusébia, ao sugerir que Libania deixe o companheiro com “seus achaques de hemorroidas e viesse pra cidade, que Manés lhe não faltariam”.
Uma estratégia literária que confere mais efeito de
realidade à personagem central encontra-se presente no
momento em que, de repente, o relato da peste bubônica
começa a emergir para o primeiro plano da narrativa, cifrado na relação entre as comadres. Bem-informada sobre os
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
assuntos da cidade, mais uma vez Eusébia repreende o modo
de vida da amiga quando esta lhe pede para comprar carne
em plena epidemia. Mas quando Libania perguntou como
tudo tinha começado ela se embaraçou para explicar:
Desde a história da carne de vaca lá pras bandas do largo
dos Amores que a coisa aparecera e disseram ser peste
borbonica. Foi então que os moradores daquele bairro
fizeram as suas malas e “tiraram o copo”, deixando o lugar
deserto completamente. Ninguém mais quisera saber
do peixe trazido à Praia do Genipapeiro pelas canoas do
Carneiro e do Florentino. Os caboclos das bandas do
Calhau e do Turu passavam de largo, e afrontando o vento
esperto, com risco de ter seus cascos alagados, iam ter à
praia de Santo Antonio. Era um atropelo de nossa morte. E
depois o incômodo foi da gente sujeitar-se a tal desinfeição.
Ela mesmo não consentiria tal coisa na sua casa, se tivesse.
Defumador por defumador bastava o que ela fazia todas as
sextas-feiras, no seu quarto: um fogareiro pequeno de barro,
um pouco de incenso, pastilhas e benjoin, uma lasquinha de
pau de Angola, pra afugentar as bruxas, isto quanto a casa; e
quanto a seu corpo: numa banheira-d’água do sereno, uma
infusão de murta, orisa, jardineira, folha-grossa, jasmim, tipi
e uns dentinhos-d’alho, e estava feito o negócio, desinfeitados
casa e corpo. Estavam também com uma história de vacina,
chiringamento, nas costas ou na barriga, o que não ia com ela,
que se tratara de bexigas, em casa da Canuta e não vira tanto
arreganho e tamanho alarido (Marques, 1905, pp. 192-193).
O trecho acima poderia ser lido teleologicamente com
uma genealogia moral da Revolta da Vacina. Astolfo Marques converte o discurso do “problema da higiene” no confronto cultural entre a experiência popular tradicional e os
valores de “racionalidade”, “progresso” e “ciência”, impressos na política sanitária republicana. O drama da epidemia
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
179
Tempo e melancolia
180
é visto das canoas do Carneiro e do Florentino, pescadores
pobres e caboclos, que não conseguem mais vender seu peixe na cidade. A partir do manuseio desajeitado do vocabulário científico, marcado em itálicos como “peste borbonica” para peste bubônica, “desinfeição” como desinfecção
e “chiringamento” na qualidade de vacinação. Sotaques
que enfatizam a autonomia, irreverência e singularidade
desse mundo simbólico.
Esse aspecto é central para interpretar “A opinião
de Eusébia”. Algumas linhas atrás destacamos a inflexão
estética que justifica essa opção, mas resta abordar seu
teor ideológico. Todo esforço do autor nesse “conto de
intervenção” é deslocar ficcionalmente a posição passiva
e reativa do povo enquanto objeto da política sanitarista
para descrevê-lo à luz de seus próprios medos, crenças e
razões. Para Eusébia, de nada adianta realizar a desinfecção da casa se não temos à mão uma lasquinha de pau
de angola para afugentar as bruxas que infestam os lares.
Não há também qualquer razão para se submeter à vacinação e ao alarido dos doutores se quanto à doença de
bexigas (varíola) as seringas podem ser dispensadas. O
discurso da ex-escrava transpõe para um idioma negro os
sentidos e significados de ciência, racionalidade e modernidade no Brasil.
- Você ainda não viu o melhor... Pois até os pobres dos
ratos, nascidos e criados ao Deus dará nos canos do
Ribeirão, não foram mortos de surpresa? [...] Disque
deram combate neles, tal como se faz no Fardango lá das
Barraquinhas. A Joana Pau-Bonito, na rua da Fundição,
teve de mudar-se às pressas para tocarem fogo na palhoça
onde ela morava. E no meio de tudo isso quem mais sofre,
já se vê, é a pobreza... Os ricos se arremedeiam, não se
importam que a farinha e o jabá subam de preço... Era só
que nos faltava, essa doença agora!
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
- E você não tem medo, minha comadre?
- Eu! Oras quaes! Então você não me conhece? Até me
rio dessa patacoada. Os brancos lá em casa vivem a toda
hora às voltas com crioulinha, o defumador da moda,
quando nos tempos da bexiga doutor Maia mandava que
se queimasse breu e mais breu e a coisa foi-se. Hoje é um
angu, uma misturada, que até parece que a gente pega a
cuja mais depressa... É um reboliço, senhora! Seu Gamboa,
seu Garvão, seu Nazareth, na tal estufa, Rezendo, de tia
Ignez de prantão na Ingenhe, lá na Escola Onze de Agosto,
que já nem se fecha, e muitos homens de lá nem pregam
mais os olhos.
Pela cidade, a toda hora, é um barulho de carro de nossa
morte, e diz-se por bocas pequenas que o governo, só de
carros, para a seu Batazá cem mil réis por dia! O doutor
que veio do Rio disse que é borbonica, e também pegou,
mas tem também alguns doutores daqui desses mais velhos
e mais aquilatados, e ainda um outro lá da terra de onde
vem portugueses pra cá, que disseram lá pros meus brancos
que é febre passageira... E vive a gente nessa dipindura,
metida nessa bandalheira... Se isto continuar pego nos meus
cacaréus, faço minha trouxa, e vou empoleirar-me na minha
terra, ou então vou pra Vargem Grande, só para me ver livre
desse baculejo dessa patuscada macha!
- Pois eu não sabia, minha comadre, dessa doença...
- Não é coisa de maior, senhora, é andaço e mais nada. Eles
são que andam com tamanho espalhafato. S. Sebastião há de
ser por nós com as preces que estão se fazendo (Marques,
1905, pp. 194-195).
O relato da peste ganha completamente o primeiro plano da narrativa. Astolfo Marques denuncia na voz de suas
ex-escravas toda a brutalidade da política de higiene como a
principal responsável pelo non sense popular quanto aos verdadeiros perigos trazidos pela epidemia. A hierarquização
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
181
Tempo e melancolia
182
social das medidas sanitaristas é tão bizarra – lembremos os
caprichos nos cuidados do “doentinho de classe” mencionado no relatório médico – que, para as personagens, muito daquilo não passa de “espalhafato”, “moda”, “andaço”,
“patuscada” e “confusão” das classes abastadas. Confrontadas pelo caráter desigual de uma modernidade que lança em chamas pobres casebre de palha, Eusébia e Libania
agarram-se ao senso comum forjado nos embates da vida
em cativeiro.
Observe-se o deboche com que Eusébia descreve “seus
brancos” “a toda hora às voltas com crioulinha, o defumador da moda”, em meio a “um angu”, “uma misturada que
até parece que a gente pega a cuja mais depressa”. Tudo
pela teima de não seguir as receitas que deram certo no
passado como a queima de carvão para a desinfecção, dar
ouvidos aos médicos que vem de fora, desconsiderando “os
doutores daqui desses mais velhos e mais aquilatados”
que dizem ser o mal passageiro, sem contar o desperdício
de dinheiro público com os carros contratados para a
remoção de corpos. Enfim: do ponto de vista da ex-escrava,
tem-se a criação de inúmeros “problemas artificiais” em
nome de uma nova racionalidade e eficiência que redundam para a população pobre em velhos problemas como a
fome e o desabrigo.
Esse é o sentido da valorização da cultura popular na
obra ficcional de Astolfo Marques. Para autor, é na tão propalada “ignorância” e “indolência” do “populacho”, através da tagarelice desenfreada de pretas e mulatas pelas
esquinas destruindo o sossego público e os bons costumes,
no senso comum nascido da escravidão, que o horizonte
ativo da luta por direitos e a conquista da cidadania torna-se
possível. A indignação das personagens com a subida do
preço da farinha e do jabá é indissociável de suas crenças de
que também os ratos merecem a misericórdia divina. Um
ethos precário que inventou um cotidiano subvertido, no
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
instante em que desigualdade da República oligárquica
ameaçou a expressão concreta da liberdade conquistada na
abolição. O lugar mais próximo do calor de uma palhoça em
chamas e nossa moderna identidade brasileira.
Matheus Gato de Jesus
é mestre em Sociologia pela USP.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, W. R. 2009. O jogo da dissimulação. São Paulo: Companhia das Letras.
ALONSO, A. 2010. “A teatralização da política: a propaganda abolicionista”. Texto apresentado no Seminário Sociologia, História e Política do
PPGS-USP. São Paulo (mimeo.).
ALMEIDA, A. W. B. 2008. Ideologia da decadência. Amazonas: Casa 8/Fundação Universidade do Amazonas.
ALMEIDA, M. C. P. 2004. “Saúde pública e pobreza: São Luís na Primeira República”. In: COSTA, Wagner Cabral. História do Maranhão: novos
estudos. São Luís: Edufma.
BORRALHO, J. H. P. 2000. Terra e céu de nostalgia: tradição e identidade em
São Luís do Maranhão. São Paulo: Ed. Unesp.
CARVALHO, J. M. 1987. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras.
CARVALHO, M. A. 2008. “Intelectuales negros en el Brasil del siglo XIX”
In: ALTAMIRANO, C. (org.). Historia de los intelectuales en América Latina.
Buenos Aires: Katz Editores, 2008.
CAMPOS, H. 1935. Memórias inacabadas. São Paulo: W. M. Jackson.
CHALHOUB, S. 1990. Visões da liberdade. São Paulo. Companhia da Letras.
CORRÊA, R. 1993. Formação social do Maranhão: o presente de uma arqueologia. São Luis: Sioge.
CORREIA, M. G. G. 2006. Nos fios da trama: quem é essa mulher? Cotidiano e
trabalho do operariado feminino em São Luís na virada do século XIX.
São Luís: Edufma.
CORTÁZAR, J. 1993. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva.
COSTA, W. C. 2002. “Ruínas verdes: tradição e decadência nos imaginários
sociais”. Cadernos de Pesquisa UFMA, vol. 12, no 1-2, pp. 79-105.
COUTINHO, M. 2007. Memória da advocacia no Maranhão. São Luís: Clara.
DARNTON, R. 1986. O grande massacre de gatos e outros episódios da história
cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal.
DOMINGOS BARBOSA, D. [1911] 2008. Silhuetas. São Luís: AML/Uema.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
183
Tempo e melancolia
184
FERREIRA, L. A. 2004. “Os clubes republicanos e a implantação da República no Maranhão (1888-1889)”. In: COSTA, W. C. (org.). História do
Maranhão: novos estudos. São Luís: Edufma.
GODINHO, V. 1904. A peste no Maranhão. São Luís: Tipogravura Teixeira.
GODÓIS, A. B. B. [1904] 2008. História do Maranhão. São Luís: AML/Eduema.
GOMES, A. C.; ABREU, M. 2009. “Apresentação”. Tempo, vol. 13, no 26,
pp. 1-14.
GOMES, F. 1991. “No meio das águas turvas (Racismo e cidadania no alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte – 1888-1889)”. Estudos
Afro-Asiáticos, no 21, pp. 75-96.
GOTLIB, N. B. 2002. Teoria do conto. São Paulo: Ática.
GUIMARÃES, A. S. 2010. “A República de 1889: utopia de branco, medo
de preto (A liberdade é negra, a igualdade é branca e a fraternidade é
mestiça”. Texto apresentado no Congresso República e Utopia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Lisboa (mimeo.).
HARDMAN, F. F. 1983. “Palavra de ouro, cidade de palha”. In: SCHWARZ,
R. (org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense.
LEAL, P. N. 1897. “Prefácio”. In: O Estado do Maranhão em 1896. Maranhão: Oficial.
LOBO, A. L. [1909] 2008. Os novos atenienses. São Luís: Academia Maranhense de Letras/Ed. Uema.
MARANHÃO. 1976. Astolfo Marques: publicação comemorativa do centenário de seu nascimento. São Luís: Sioge, 1976.
MARQUES, A. 1905. A vida maranhense. São Luís: Tip. Frias.
. 1913. A nova aurora. São Luís: Tip. Teixeira.
MARTINS, M. J. B. 2006. Operários da saudade. São Luís: Edufma.
MEIRELES, M. 1958. Antologia da Academia Maranhense de Letras. São Luís:
Imprensa Oficial.
MICELI, S. 2001. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras.
NASCIMENTO MORAES. 1910. Puxos e repuxos. São Luís: Tip. do Jornal
dos Artistas.
NEEDELL, J. D. 2010. “Brazilian abolitionism, its historiography, and
the uses of political history”. Journal of. Latin American Studies, vol. 42,
pp. 231-261.
OLIVEIRA, A. 1976. “O centenário de um contista maranhense”. O Estado
do Maranhão, 10 mar.
PAXECO, F. 1922. Geografia do Maranhão. São Luís: Tipogravura Teixeira.
PIGLIA, R. 2004. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras.
PONTIEIRI, R. 2008. “Formas históricas do conto: Poe e Tchékhov”. In:
BOSI, V. (org.). Ficções: leitores e leituras. Cotia: Ateliê.
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Matheus Gato de Jesus
PRADO, A. A. 2004. Trincheira, palco e letras. São Paulo: Cosac Naify.
RAMOS, G. 1995. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ.
SANTOS, J. R. 1995. “O negro como lugar”. In: RAMOS, G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
SCHWARZ, R. 2000. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Ed. 34.
SEVCENKO, N. 2010. A Revolta da Vacina. São Paulo: Cosac Naify.
SOUZÂNDRADE, J. 2003. Poesia e prosa reunidas de Souzândrade. WILLIANS,
F. G.; MORAES, J. (orgs.). São Luís: Edições AML.
VENTURA, R. 1990. “‘A nossa Vendeia’: Canudos, o mito da Revolução
Francesa e a constituição de identidade nacional-cultural no Brasil”. In:
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 31, pp. 129-145.
VIEIRA FILHO, D. 1951. “Os escritores maranhenses”. Revista do Maranhão,
vol. I, fasc. VI, p. 5-6.
VIVEIROS, J. 1954. História do comércio do Maranhão. São Luís: ACM.
WILLIANS, F. G. 1976. Sousândrade: vida e obra. São Luís: Sioge.
Outros materiais
Periódicos
A Pacotilha (1900-1918)
O Diário do Maranhão (1900-1918)
O Globo (1889)
Revista do Norte (1900-1905)
Os Novos (1900-1904)
185
Lua Nova, São Paulo, 85: 133-185, 2012
Raça e comportamento político:
participação, ativismo e recursos em Belo
Horizonte*
Natália S. Bueno
A discussão sobre raça na política brasileira é mote entre
cientistas sociais de diversas perspectivas: pelo seu papel na
formação do Estado nacional, nos movimentos sociais ou
ainda nas políticas públicas voltadas a grupos raciais. Mas,
pela maior parte da ciência política brasileira, é rapidamente descartada como irrelevante ou residual. Este texto, no
entanto, toma o lugar da raça na política como uma questão central e propõe as seguintes questões: Qual é o papel
da raça no comportamento político dos indivíduos? De que
maneira o pertencimento a um grupo racial se expressa na
atuação política? Qual é a interação entre raça e recursos
como determinantes da participação?
Para pensar as relações entre raça e comportamento
político, uma das tradições de pesquisa mais estabelecidas
em ciência política, por seus achados empíricos consistentes, argumenta que indivíduos com maior posse de recursos socioeconômicos, assim como orientações psicológicas
*
Este texto é parte da pesquisa apresentada em Bueno (2010). Agradeço a Adrian
Gurza Lavalle, pela orientação minuciosa e rigorosa, e a Bruno Reis, George Avelino e Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, pelos comentários e sugestões.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Raça e comportamento político
188
mais cívicas em relação à política, tendem a ser mais ativos
politicamente (Leighley, 1995, 2008; Schlozman, 2002). Em
outras palavras, a abordagem traz, para a análise do comportamento político, variáveis demográficas que denotam
a posição social do indivíduo e, assim, a dotação de recursos que lhe permite superar os custos inerentes à participação política (Timpone, 1998). Tal tradição atende por
vários nomes: modelo do status socioeconômico (SES), teoria da mobilização de recursos (resource mobilization theory)1,
modelo da centralidade, ou, simplesmente, abordagem dos
recursos. Sua proposição central é amplamente reconhecida e implicitamente incorporada nas análises sobre comportamento político – como, aliás, Norris e Inglehart levam
a cabo na sua análise de World Value Survey (Bowers, 2008;
Achen, 1992; Schlozman, 2002; Norris, 2002; Inglehart e
Norris, 2003).
As hipóteses dessa abordagem, em especial as que
associam maior dotação de recursos socioeconômicos e
maior probabilidade de participação política, foram testadas nos mais diversos contextos. Tal abordagem se tornou
lugar comum em estudos sobre comportamento político,
como atestam os manuais de ciência política (Dalton e
Klingemann, 2007; Goodin e Klingemann, 1996). Na ciência política nacional, em especial nos estudos eleitorais
até meados dos anos 1990, a abordagem dos recursos, nas
suas diversas variações, foi utilizada e discutida por vários
autores (Reis, 2000, 2001; Castro, 1993; Fuks e Perissinotto,
2006; Ribeiro e Borba, 2011).
No entanto, o encontro entre essa literatura e o debate racial pouco ocorreu na ciência política nacional, sendo
que, no caso da literatura estadunidense, a raça teve papel
1
Vale notar que não se trata da abordagem de recursos utilizada para estudos
de movimentos sociais e ação coletiva usualmente associada a, dentre outros,
McAdam (1982).
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
proeminente2 nos estudos sobre comportamento político orientados por essa vertente. Na literatura brasileira, a
principal questão se voltou para a existência ou não de um
“efeito da raça” e se o comportamento de brancos e negros
(pretos e pardos) apresentaria padrões distintos – para
além da classe, que, de saída, está fortemente associada
à raça. Em resposta a essa pergunta, analisada através do
enquadramento da abordagem centrada em recursos, argumenta-se neste artigo que, no Brasil, o pertencimento a um
grupo racial não afeta de forma substantiva a propensão a
atuar politicamente, ao passo que fatores socioeconômicos,
como renda e escolaridade, são nitidamente mais relevantes. Esses resultados empíricos, por sua vez, não eliminam o
fato de que a abordagem dos recursos apresenta limitações
para testar os fatores que levariam à mobilização racialmente orientada no Brasil.
Este texto é composto de quatro seções. Na primeira e na segunda partes, discutem-se as literaturas sobre a
abordagem dos recursos e raça e comportamento político
no Brasil. A terceira seção apresenta a metodologia, a base
de dados e as análises realizadas. E, por fim, a quarta seção
traz considerações finais sobre o papel da raça no comportamento político a partir dos dados analisados.
Raça na abordagem baseada em recursos
No Modelo do Voluntarismo Cívico (CVM) apresentado em
Voice and equality (Verba, Schlozman e Brady, 1995), indivíduos participam porque: a) têm os recursos socioeconômi-
2
Logo após as mobilizações do movimento pelos direitos civis, o principal problema sobre o qual os cientistas políticos interessados no tema se debruçavam era
o seguinte: as minorias raciais nos Estados Unidos tinham sido incluídas na poliarquia, mas restava avaliar se a igualdade política havia sido atingida. Desde então,
a questão racial foi incorporada nas análises de Verba e seus colaboradores, mas
também por parte significativa dos autores preocupados com os determinantes do
comportamento político.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
189
Raça e comportamento político
190
cos necessários e competências (civic skills)3 adquiridas; b)
querem, movidos pela orientação cívica, por uma percepção de competência subjetiva ou por interesse em política,
por exemplo; e c) foram incitados, convidados por alguém
(recruitment). Apesar de essas três dimensões comporem o
CVM, é importante ressaltar – como os próprios autores
o fazem (Verba, Schlozman e Brady, 1995, pp. 269-287) –
que os recursos são os elementos principais desse modelo.
O pressuposto geral subjacente à abordagem baseada em
recursos se funda na ideia de que participar é custoso, de
modo que é necessária a posse de recursos que permita que
o indivíduo seja capaz de superar os impedimentos de custos à participação. Em outras palavras, segundo os autores,
os recursos são essenciais porque tornam possível a participação; permitem que indivíduos possam dedicar parte de
seu tempo à política. Assim, são anteriores e condicionantes
dos outros fatores.
Ainda que o CVM especifique dinheiro, tempo e
habilidades cívicas como os principais recursos (Verba,
Schlozman e Brady, 1995, pp. 270-271), esses últimos são
definidos por um conjunto heterogêneo de fatores: desde
nível educacional e renda a predisposições psicológicas à
participação política. Apesar de a definição de recursos não
se referir à noção de raça diretamente, a questão racial não
está em segundo plano nos textos de Verba e seus coautores. Em seus estudos empíricos, Verba, Schlozman e Brady
(1995) afirmam que negros são um pouco menos ativos do
3
Habilidade cívicas são definidas como “as habilidades comunicativas e organizacionais que permitem que os cidadãos usem seu tempo e dinheiro efetivamente
na atuação política” (Verba, Schlozman e Brady, 1995, p. 320). Os principais argumentos que motivam e sustentam a inclusão dessas variáveis se referem ao potencial de aprendizado e socialização em organizações não políticas, como igrejas,
clubes recreativos, associações de caridade e assistência. As habilidades cívicas são
vistas como um “recurso cognitivo” que impulsiona o indivíduo à participação.
Dessa maneira, grupos com poucos recursos, como dinheiro, tempo e, inclusive,
educação, podem ser mais politicamente ativos do que o esperado se eles tiverem
acesso a espaços para o desenvolvimento dessas habilidades.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
que brancos e latinos são significativamente menos ativos
(Verba, Schlozman e Brady, 1995, p. 263). Os autores sugerem que, se as diferenças em termos de posse de recursos
entre os grupos raciais são controladas, a disparidade em
atividades políticas não se sustenta (Verba, Schlozman e
Brady, 1995, p. 523).
De qualquer maneira, destacam os autores, é importante reconhecer que diferenças associadas com raça, principalmente a religião, afetam diretamente as chances de participar. Latinos são, em sua maioria, católicos, e negros são,
na maior parte, protestantes. Isso significa que, para os primeiros, a experiência religiosa não traz a aquisição de habilidades que podem ser utilizadas como recurso à participação política, ao passo que, para os segundos, a experiência
em organizações religiosas traz benefícios significativos às
suas habilidades cívicas.
Em artigo dedicado somente a raça e participação
política nos Estados Unidos, os autores sustentam o mesmo argumento (Verba, Schlozman, Brady e Nie, 1993, pp.
457-458): “diferenças na participação política entre grupos
raciais e étnicos devem ser entendidas no contexto das suas
posições socioeconômicas distintas: grupos com menos renda e escolaridade são menos ativos politicamente”. Dessa
maneira, raça é uma dimensão relevante desde que associada com a posição socioeconômica; e, ainda outros fatores, como religião e língua, são mobilizados por grupos raciais
como recursos (habilidades) (Verba, Schlozman, Brady e
Nie, 1993, p. 458). Em síntese, a raça só é relevante se lida
como um fator associado ao desenvolvimento de uma habilidade – e, portanto, um recurso.
Uma literatura mais recente vem mostrando que a relação entre raça, etnicidade e recursos não pode ser facilmente reduzida aos recursos, mesmo recursos como língua e
religião (Leighley e Vedlitz, 1999; Leighley e Matsubayashi,
2009; Cho, Gimpel e Wu, 2006; Segura e Rodrigues, 2006;
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
191
Raça e comportamento político
192
Chandra, 2006). Esses textos, assim como um conjunto
de outros artigos e livros, apresentam críticas pontuais à
abordagem de recursos tal como formulada no modelo do
voluntarismo cívico e propõem, menos do que um deslocamento analítico na relação entre raça e recursos, refinamentos e maior precisão na maneira com que raça é incorporada no modelo.
Cho, Gimpel e Wu (2006), por exemplo, analisam a
mobilização de árabes-americanos e testam tanto o modelo
SES quanto a perspectiva da mobilização. Segundo esses
autores, recursos socioeconômicos têm seus efeitos mediados em minorias étnicas, uma vez que o pertencimento a
esses grupos configura o que indivíduos aprendem e sabem
sobre política, ou seja, como eles apreendem o mundo da
política. Já Wrinkle, Stewart Jr., Polinard, Meier e Arvizu
(1996), ao tratarem da participação política não eleitoral
entre hispânicos, afirmam que, como esperado pela literatura, quanto maior a posse de recursos, maior a probabilidade de participar. Entretanto, eles encontram diferenças
interessantes entre os grupos hispânicos, tendo os indiví­
duos de ascendência cubana um comportamento distinto
de indivíduos com ascendência mexicana e porto-riquenha.
A situação política excepcional dos cubanos nos Estados
Unidos, as relações entre Castro e o governo norte-americano e o perfil etário da comunidade cubana nos EUA também são levados em consideração para explicar as diferenças entre os grupos.
Por sua vez, Leighley e seus colaboradores (Leighley
e Vedliz, 1999; Leighly e Matsubayashi, 2009) chamam
a atenção para a necessidade analítica de dissociar raça e
recursos socioeconômicos. Para esses autores, fatores não
associados a recursos, como conflitos intra e entregrupos e
redes sociais, são cruciais na explicação generalizável, válida
para distintos grupos e não só referentes às diferenças entre
brancos e negros ou de raça e participação. Mais especifiLua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
camente, Leighley e Matsubayashi (2009) destacam que a
maior parte dos estudos acerca dos efeitos de redes sociais
na atuação política de indivíduos não inclui o debate sistemático ou mesmo analisa a dimensão racial e étnica. A
omissão da dimensão racial é grave porque a composição
racial das redes políticas dos indivíduos pode ter efeitos
significativos no comportamento político e nas atitudes,
uma vez que “minorias raciais e étnicas tendem a ter redes
sociais menores e menos especializadas em conhecimento
político, de modo que não se beneficiam dos atalhos informacionais que as redes tendem a proporcionar para brancos” (Leighley e Matsubayashi, 2009, p. 848).
Segura e Rodrigues (2006) se somam ao grupo mais crítico do modelo proposto por Verba e seus colaboradores.
As autoras acusam contundentemente a ausência de textos
sobre “outras minorias raciais” – além da relação entre brancos e afro-americanos – nos Estados Unidos. Para elas, fatores tipicamente associados a novas minorias raciais, como os
padrões de imigração, não são sistematicamente incluídos
nos debate sobre comportamento e atitudes políticas (Segura e Rodrigues, 2006, pp. 378-380). Além do mais, questões
de identidade e consciência grupal são drasticamente distintas não só entre latinos, asiáticos e negros, mas também
entre os próprios latinos e asiáticos. Nesse sentido, a experiência racial está muito além da posse de recursos, pois
é contingente a padrões de incorporação de indivíduos,
que são, de certo modo, composições demográficas mais
amplas da polity.
Uma vertente de críticas reaviva o debate sobre cons­
ciência e solidariedade racial, especialmente intenso nos
anos 1980 (Shingles, 1981; Miller, Gurin, Gurin e Malanchuk,
1981; Bobo e Gilliam, 1990; mais atualmente Hutchings e
Valentino, 2004; Chong e Rogers, 2005). McClain, Carew,
Walton e Watts (2009) não só retomam o debate sobre
noções como consciência de grupo, pertencimento e idenLua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
193
Raça e comportamento político
194
tidade, mas também discutem os diversos modos com que
essas noções são utilizadas e seus efeitos distintos. Chamam
a atenção, dessa forma, para os problemas em usá-las alternadamente, assim como em transferir as premissas e hipóteses das análises sobre negros (blacks) para outras minorias
raciais – no caso estadunidense.
Chong e Rogers (2003, 2005) e Chong e Kim (2006)
assinalam que a maior parte dos estudos após os anos 1980
subestimaram os efeitos da consciência e identificação
raciais devido a problemas de conceitualização e mensuração desses fatores. Mais: argumentam que medidas apropriadas de consciência e identificação raciais para latinos
e asiáticos são contingentes ao conteúdo de group-based
ideologies, tanto que as ideologias associadas a negros não só
variaram de acordo com perfil intraracial (black nationalists
versus civil rights activists), mas também ao longo do tempo.
Por fim, ainda propõem uma interação entre status socioeconômico e raça condicionada pela experiência racial de
cada grupo (Chong e Kim, 2006, p. 348)4.
Em síntese, as críticas mais incisivas ao CVM sublinham
a necessidade de imputar status analítico distinto para raça,
ou seja, que sua operação não seja simplesmente através de
recursos adquiridos.
De certa forma, essa vertente de debate que chama
a atenção para a solidariedade e consciência racial vai ao
encontro aos primeiros trabalhos de Verba e seus coautores
(em trabalhos anteriores ao CVM). Nesses trabalhos, Verba
e Nie (1972) encontram a seguinte configuração da participação política por grupos raciais nos Estados Unidos. Em
primeiro lugar, em média, brancos são mais ativos do que
negros. Embora, novamente em média, brancos participem
4
Os autores explicam essas diferenças residuais pelo evento do movimento pelos
direitos civis, que gerou uma espécie de crença no valor instrumental da solidariedade racial como recurso político por parte dos afro-americanos (Chong e Kim,
2006, p. 349).
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
mais do que negros (o que era esperado de acordo com
as posições sociais médias de cada grupo), esse achado não
é constante para todas as formas de participação política
(Verba e Nie, 1972, pp. 149-173). E ao analisar brancos e
negros com os mesmos patamares socioeconômicos, encontra-se que negros são, em realidade, tão ou mais ativos do
que brancos (Verba e Nie, 1972, p. 157). A explicação para
esse achado passa, no trabalho de Verba e Nie, pela questão da consciência ou solidariedade de grupo com base no
atributo racial (group consciousness), ou seja, pela percepção (awareness) de um status socioeconômico compartilhado entre indivíduos do mesmo grupo racial (Verba e Nie,
1972, p. 173).
Verba, Nie e Kim (1978) colocam seu próprio modelo à
prova, para além das fronteiras estadunidenses. Os autores
encontram que a associação entre recursos socioeconômicos e participação não segue, à primeira vista, padrão tão
positivo e forte nos diversos países como no caso estadunidense. Dessa maneira, os autores propõem um modelo
no qual, além dos fatores individuais (recursos), fatores
coletivos ou institucionais teriam um papel relevante. Sem a
“interferência” dos fatores institucionais (entendidos pelos
autores como partidos políticos e associações voluntárias)5,
os recursos socioeconômicos seriam convertidos em participação política (Verba, Nie e Kim, 1978, pp. 80-81, 92-93).
As clivagens sociais seriam relevantes para mobilização
política na medida em que elas se refletem no sistema institucional dos países, principalmente pela base populacional
mobilizada por partidos e associações voluntárias (Verba,
Nie e Kim, 1978, pp. 157-158). Desse modo, se as instituições políticas não espelham nas suas bases a raça como clivagem social politicamente saliente, ela não é relevante para
5
Devido a suas diversas funções como canais de comunicação entre cidadãos e
governo (via mobilização, abertura de oportunidades de participação, atuação no
debate público).
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
195
Raça e comportamento político
196
a atuação política6. E, ainda, no trabalho sobre os Estados
Unidos, raça é contingente a uma percepção compartilhada
e consciência de grupo. Se raça fosse puramente associada a
desigualdades socioeconômicas ou a experiências de socialização (língua, experiências de discriminação) distintas
entre grupos raciais, mas ainda não coesas ou compartilhadas dentro dos grupos raciais, raça não seria fator relevante.
Raça somente opera na medida em que há uma consciência
coletiva e percepção de grupo compartilhada.
De modo geral, todos esses autores disputam o significado e os mecanismos relacionados à noção de raça. No
CVM, presume-se que raça é politicamente relevante quando existem grupos raciais que compartilhem práticas (língua e religião, por exemplo) e espaços (associações) que
levam a habilidades e recursos politicamente relevantes. Ou
seja, raça é relevante quando se desenvolvem habilidades
(um tipo de recurso) em ambientes racialmente exclusivos
e homogêneos. Essa proposta, apesar de plausível, depende de um tipo específico do desenvolvimento racial cujo
caso empírico fartamente documentado é o estadunidense. Paralemente, outros autores chamam a atenção para
fatores associados à raça que não estão incluídos no CVM,
especialmente via consciência racial. Essas críticas e até trabalhos anteriores de Verba e seus colaboradores oferecem
um enquadramento mais amplo de mecanismos e efeitos da
raça em outras polities.
Raça e comportamento político no Brasil
Os estudos sobre raça e política no Brasil se dividem, em
termos gerais, entre aqueles que discutem a história e a
organização do movimento negro e os que estudam a repre-
6
Caso o Brasil estivesse sob escrutínio, tendo em vista a literatura sob clivagens sociais
e mobilização política brasileira, raça não seria uma clivagem refletida nas instituições
e, portanto, não seria politicamente relevante para a mobilização política.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
sentação política e o comportamento eleitoral de grupos
raciais. O ponto de fuga de grande parte dos trabalhos que
analisam raça e atuação política no Brasil é a dicotomia e
a interação entre o pertencimento a um grupo racial e a
inserção em classes sociais. Devido à saliência das desigualdades e os conflitos orientados por critérios socioeconômicos – frouxamente nomeados aqui como classe –, a relação
entre essas duas categorias permeou os principais trabalhos
nos estudos sobre raça e política. Ainda que exista um consenso de que grupos raciais estão em posições socioeconômicas distintas e que não brancos7 estão em piores posições
nos indicadores socioeconômicos, há um intenso debate
quase beligerante acerca das causas efetivas (preconceito
e discriminação versus mecanismos “de classe”) que explicariam essas diferenças (Hasenbalg, 2005; Hasenbalg, Valle
Silva e Lima, 1999; Santos, 2005; Souza, 2006). Dessa maneira, os trabalhos sobre raça e política no Brasil orientam suas
análises para responder três questões: Qual é a saliência da
mobilização racial no Brasil? Há efeitos do pertencimento racial na mobilização política no Brasil? Quais fatores
geram essa mobilização política racialmente orientada? De
qualquer maneira, a principal preocupação da literatura
brasileira é identificar o “efeito” da raça na política, e especialmente diferenciá-lo, se possível, do efeito da classe.
Os trabalhos sobre o chamado movimento negro constituem, muito provavelmente, o principal campo de estudos sobre raça e política no Brasil. A maior parte dos trabalhos nesse campo abordam a evolução desse movimento
e, em certo sentido, inserem-se na primeira pergunta listada acima.
Movimentos com a bandeira racial não adquiriram uma
adesão em larga escala (como ocorreu no Civil Rights Move7
É importante destacar que brancos, pardos e pretos não são os únicos grupos raciais no Brasil. Mas, de acordo com o censo de 2000, esses três grupos representam
98% da população brasileira ver IBGE (s.d.).
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
197
Raça e comportamento político
198
ment, nos EUA, ou no Black Consciousness Movement, entre
outros, na África do Sul) e a literatura sobre movimentos
sociais e mobilização coletiva no Brasil esteve fortemente
associada a movimentos ligados ao trabalhismo (Guimarães,
2008). Talvez devido à baixa politicização da clivagem racial,
grande parte do movimento negro se caracterizou pelo “ativismo cultural”, com demandas e atividades de cunho mais
cultural do que estritamente político. Pode-se afirmar que
a principal preocupação da Frente Negra Brasileira (FNB)
foi, no início do século XX, com a integração dos negros
na sociedade brasileira. O Movimento Negro Unificado
(MNU), cujo início se deu nos anos 1970, possivelmente
pode ser indicado como o movimento mais bem-sucedido
no Brasil desde a Abolição da Escravidão (Andrews, 1991,
1996) – mesmo que sua atuação política tenha registro fortemente cultural, com a defesa de uma cultura e identidades negras particulares, como o Black Soul nos anos 1970
(Hanchard, 1993, 2001; Cardoso, 2001).
Porém, desde 1985, podem ser identificadas mudanças substantivas no movimento negro, que passou, simulta­
neamente, a afirmar uma identidade própria, para além
do movimento trabalhista (mas muitas vezes se associando
ao feminismo), e a colocar em pauta demandas políticas,
como políticas afirmativas para o ensino superior. O MNU,
por exemplo, tomou como posição um racialismo radical
com o afrocentrismo expresso no quilombismo proposto
por Abdias do Nascimento. Nos anos 1980 e 1990, várias
organizações surgiram para abordar a agenda racial, que
vai desde a implementação de políticas de reconhecimento, a luta contra o racismo e preconceito até a criação de
políticas afirmativas e de redistribuição (Htun, 2004)8. As
reivindicações por políticas e legislação contra a discrimina8
Ver Muniz (2010) para um breve levantamento de políticas de ação afirmativa
desde 1988.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
ção, assim como por redução das desigualdades raciais, são
nitidamente diferentes das demandas culturais – tradicionalmente mais palatáveis ao Estado brasileiro como parte
do mito fundacional oficial do sincretismo entre indígenas,
negros e brancos (Guimarães, 2003). E, adicionalmente,
como mostra Rios (2008), há evidências robustas de que as
organizações que compõem o chamado movimento negro
vivem um processo de institucionalização, em especial na
década de 1990, na qual passam a adotar o rótulo de organizações não governamentais (ONGs) e a atuar pelo registro de prestação de serviços e advocacy, distanciando-se das
mobilizações e protestos próprios aos anos 1970 e 1980.
Mais: conferências internacionais como a Conferência
Mundial sobre o Racismo, em 2001, em Durban (África do
Sul), foram muito importantes para legitimar o movimento negro e denunciar o racismo (Paschel e Sawyer, 2008;
Sawyer, 2005).
Apesar da existência dessa mobilização, existe algum
acordo na literatura que sustenta que raça não foi um fator
efetivo na formação de uma percepção de identidade de
grupo (Sansone, 2003) e que, se há algum fator capaz de articulação política no Brasil, ele está associado a classe e posição socioeconômica (Reis, 2001). Telles (1996, 2003) aponta que fatores usualmente associados à identidade afro-descendente, como religião e até cor de pele, assim como elementos estruturais como segregação residencial, não eram
suficientemente exclusivos de afro-descendentes. Dessa
maneira, diferentemente do caso estadunidense, esses fatores não produziram uma linha saliente e nítida entre brancos e negros, que poderia levar ao estabelecimento de uma
identidade racial amplamente compartilhada. Segundo
Hasenbalg (2005), a aquiescência social de negros no Brasil
foi causada por três fatores: 1) cooptação social (que converte as aspirações coletivas para busca do bem-estar econômico e social em desejos individuais de mobilidade); 2)
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
199
Raça e comportamento político
200
manipulação ideológica; e 3) o uso da ameaça ou repressão. Esses fatores explicariam porque “a afiliação racial
não conseguiu proporcionar o laço coletivo para estimular as demandas dos negros por mobilidade social grupal
e pela diminuição das desigualdades raciais” (Hasenbalg,
2005, p. 233).
Apesar de os estudos sobre movimentos sociais indicarem que raça não é a clivagem central da mobilização política, eles mostram a existência de grupos e organizações voltados para a questão racial na política. E essas organizações
não estão ausentes de efeitos na arena eleitoral, legislativa
ou executiva.
Um conjunto de autores discute o papel da raça em
estratégias e campanhas eleitorais, assim como na atuação
de parlamentares (Mitchell, 2009; Johnson, 1998, 2006;
Santos, 2000; Oliveira, 1997, 2007). Esses autores não
encontram, em termos gerais, evidência de um tipo de voto
racialmente orientado (de eleitores negros para candidatos
negros), apesar de, em alguns casos, existirem estratégias
eleitorais bem-sucedidas de candidatos negros com grande
ênfase na questão racial. De qualquer modo, esses autores
apontam para o papel do movimento negro em apoiar e
militar em prol de candidatos negros ou, ainda, de pressionar representantes no executivo e legislativo, com graus
diversos de êxito (Johnson, 2006, p. 172).
Nessa literatura, há consenso entre os autores de que
negros são drasticamente sub-representados no legislativo,
mesmo em cidades com expressiva população negra como
Salvador (BA), em especial (Oliveira, 1997). Os autores
também mostram que, mesmo entre os representantes
negros eleitos não há coesão e consenso sobre o tipo de
política racial a ser adotada ou, ainda, se a questão racial
é publicamente legítima (Mitchel, 2009, p. 132; Santos,
2000). Por fim, vale notar que a tensão entre raça e classe não está ausente desse debate: muitos representantes e
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
candidatos negros têm origem em classes trabalhadoras e
sua militância de classe frequentemente se sobrepõe ou
supera a militância na questão racial (Mitchel, 2009; Oliveira, 1997).
Os estudos sobre comportamento eleitoral adotaram
uma perspectiva distinta e colocaram nitidamente a pergunta sobre os efeitos da raça: Em que medida desigualdades sociais, além de práticas discriminatórias, expressam-se em um comportamento eleitoral diferenciado por
grupos raciais (Lamounier, 1968; Souza, 1971; Berquó e
Alencastro, 1992; Guimarães, 2002; Soares e Valle Silva,
1987)? Vale destacar que, diferentemente da literatura
sobre movimento negro, a unidades de análise aqui não
são mais organizações e entidades, mas sim indivíduos
(eleitores) cujos determinantes e formas de mobilização
são distintos daqueles descritos pela literatura centrada
em organizações e movimentos sociais. É importante ter
essa distinação analítica em mente, pois frequentemente
diagnósticos sobre a mobilização organizacional (por estudos de caso, análise de documentos e mesmo surveys organizacionais) e societal (frequentemente identificada por
survey de indivíduos) apresentam descrições que não necessariamente coincidem.
Souza (1971), por exemplo, argumenta que negros
expressam mais intensamente a preferência por partidos e
candidatos tidos como populistas comparados com eleitores
brancos, mesmo quando estão numa posição social superior. Soares e Valle Silva (1985) também encontram uma
tendência entre pardos a votar por candidatos populistas,
especialmente aqueles considerados “herdeiros” políticos
de Vargas. Castro (1993) encontrou uma discrepância do
voto negro, variando de um alto grau de apatia a expressões
mais intensas de radicalismo, dependendo da posição social
ocupada pelo indivíduo. Indivíduos negros de estratos mais
baixos tendem a ser mais apáticos (ou alienados, segundo
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
201
Raça e comportamento político
202
a autora), anulando os votos ou votando em branco. Por
outro lado, indivíduos negros de estratos mais altos, especialmente aqueles com mais escolaridade, tendem a não
só anular menos os votos, mas a escolher candidatos mais
frequentemente identificados como radicais de esquerda.
Em síntese: “pertencer a um grupo racial pode, por exemplo, intensificar, em alguns casos, ou impedir, em outros, a
manifestação de tendências dadas pela posição social” (Castro, 1993, p. 483).
Prandi (1996) aponta que, apesar de a raça afetar a
escolha eleitoral, ela não é o principal determinante: idade
e escolaridade superaram-na como os principais preditores da votação presidencial eleitoral de 1994. De qualquer
maneira, esse autor indica que houve uma tendência clara
de negros votarem no candidato Luís Inácio Lula da Silva, enquanto a maior parte dos brancos declarou votar em
Fernando Henrique Cardoso. Bailey (2009), ao analisar a
eleição de Benedita da Silva no Rio de Janeiro, também
encontra evidências de que há vieses raciais no comportamento do eleitor brasileiro. Ele encontra indicações não
só de que a cor do candidato teve efeitos no voto, mas também de que eleitores de diferentes grupos raciais se comportaram distintamente, ainda que a clivagem encontrada
tenha sido preto e não preto (e não a clivagem usual de
branco e não branco). Apesar das evidências encontradas,
o autor pede cautela na interpretação dos resultados e
propõe uma síntese interpretativa interessante da literatura à luz dos seus dados:
A relação entre raça e política eleitoral no Brasil não deve
ser entendida como uma dualidade, mas sim como uma
escala com gradações. Por um lado, Sansone acertadamente
aponta que há níveis baixos de mobilização racial e étnica
na política e que a identidade racial não se manifesta de
modo relevante na esfera eleitoral. Por outro lado, Mitchell
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
(1977) e Soares e Silva (1985) podem ter exagerado a
dimensão da “consciência racial” entre os não brancos
nas eleições que eles analisam. Desse modo, a afirmação
ponderada de Castro pode ser a melhor descrição do
efeito da identificação racial na esfera político-eleitoral
[...] O desenvolvimento de um eleitorado negro pode ser
condicionado à classe social (medida por educação). A
disjunção entre o movimento negro e grande maioria de
não brancos é, nesse sentido, uma explicação plausível entre
a falta de mobilização em torno de uma “negritude” (Bailey,
2009, pp. 90-91).
Como já anunciado, os debates giram em torno da
relação entre raça e posição social – classe ou, como analisado aqui, recursos9. E, em vários autores, encontra-se
evidência de alguma condicionalidade ou interação entre
raça e classe, ainda que essa ideia só se expresse mais explicitamente em Castro e Bailey (Bueno e Fialho, 2009). E,
apesar de a maior parte encontrar certo efeito distinguível
do pertencimento a algum grupo racial, poucos autores se
aventuram numa explicação sobre os fatores que geram
esse comportamento diferenciado – a terceira pergunta
listada como orientadora do debate brasileiro. A interpretação, ainda que preliminar e cautelosa, da maioria dos
analistas brasileiros é que raça tem algum efeito devido
a experiências de discriminação e preconceito sofridas
pelos grupos raciais marginalizados – mesmo que essas
experiências não signifiquem habilidades específicas e
tampouco consciência racial politizada. A discriminação é,
provavelmente, apontada como o principal fator suspeito
de causar o “efeito da raça” porque é um mecanismo que,
9
Aliás, a identificação e especificação do efeito da raça e a diferenciação do efeito da classe e da raça é igualmente majoritário nos debates sobre desigualdade socioeconômica, mobilidade social, entre outras (Bailey, 2008; Muniz, 2010; Bailey,
Muniz e Loveman, 2009).
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
203
Raça e comportamento político
simultaneamente, independe da posição de classe do indivíduo e não é contingente a consciência coletiva de raça
ou racismo publicamente institucionalizado. Ou seja, se há
algum efeito associado à raça, ele passa por percepções e
experiências do pertencimento a grupo racial, como a discriminação e o preconceito.
Raça e comportamento político na região metropolitana
de Belo Horizonte
204
Apesar do pouco diálogo entre a abordagem dos recursos e a literatura sobre comportamento político e raça no
Brasil, propõe-se que a tensão entre classe e raça e a busca
do “efeito da raça” podem ser analisados por meio dessa
abordagem, uma vez que ela (ao menos no CVM) tem premissas e expectativas nítidas de como a raça deve operar
na interação com recursos. Assim, tem-se um instrumento
que permite responder as questões sobre raça e política que
orientam parte relevante da literatura brasileira.
Este artigo lida com duas medidas de comportamento político: participação em organizações políticas e ativismo político. A participação em organizações políticas
se refere à existência de vínculo (formal ou informal) do
entrevistado com organizações classificadas como políticas.
Assim, devido à presença de algum vínculo do indivíduo
entrevistado com alguma organização política, presume-se que o indivíduo participa de organizações políticas. O
ativismo político trata da participação em atividades políticas mais eventuais e pontuais, como protestos, boicotes ou
abaixo-assinados.
Base de dados e variáveis
A análise foi baseada nos dados levantados no projeto do
Hubble Social. A Pesquisa de Região Metropolitana de
Belo Horizonte (PRMBH), realizada em 2005, é uma amostra probabilística e representativa da população da região
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
metropolitana de Belo Horizonte. O total de entrevistas realizadas foi de 1.122 pessoas10.
Com relação ao banco de dados, qualquer indivíduo
que se identificou como “indígena”, “amarelo” (de acordo
com as categorias do IBGE) ou “outro” foi excluído da análise11. Dois motivos levaram a essa escolha. Primeiramente, o
número e a proporção total de indivíduos excluídos foram
insuficientes para qualquer análise substantiva. Em segundo
lugar, o debate acerca de raça e comportamento político
no Brasil aqui discutido tem como objeto a relação entre
negros e brancos. A amostra belorizontina utilizada para a
análise, depois de corrigida com os pesos amostrais, é de
1.010 casos (999 casos sem a correção por peso amostral)12.
Variáveis dependentes
Participação política. Como mencionado anteriormente, são
utilizadas duas variáveis de comportamento político. Para
participação em organizações políticas, as seguintes organizações foram computadas: partidos políticos, associações de
proteção ao consumidor, comunitárias ou de vizinhança13,
partidos políticos, negócios e comércio, movimentos estudantis, sindicatos, associações profissionais e ao orçamento participativo.
O survey foi conduzido pelo Centro de Pesquisas Quantitativas em Ciências
Sociais (CEPEQS), na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (Aguiar,
2005). A amostra foi baseada em três níveis de seleção. Áreas censitárias e domicílios foram selecionados aleatoriamente e o respondente também foi aleatoriamente selecionado entre os membros do domicílio com mais de 18 anos. A amostra
inicial foi desenhada para 1.440 casos. A base de dados final incluiu pesos para a
correção de viés (Suyama e Fernandes, 2007).
11
Isso significa que cerca de 10,3% da amostra foi eliminada (5% amarelos, 2,5%
indígenas e 2,9% outros).
12
Todas as análises multivariadas foram computadas com os casos sem a incorporação dos pesos.
13
As associações comunitárias foram classificadas como políticas pois, em sua
maioria, eram associações voltadas para a melhoria do bairro ou de busca de recursos para grupos específicos. Em outras palavras, elas disputavam com outras
associações recursos públicos (da prefeitura e de outros órgãos) para sua atuação.
10
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
205
Raça e comportamento político
A variável do chamado ativismo político é composta dos
seguintes itens: reunião da comunidade, abaixo-assinado e
manifesto, campanhas de arrecadação, boicotes, passeatas,
greves e ocupações de prédios.
206
Variáveis independentes
Participação não política. As associações classificadas como
não políticas são as de caridade, esportivas e recreativas,
religiosas, os grupos não religiosos de jovens e de autoajuda
e de direitos humanos14.
Para essas três variáveis – participação em organizações
políticas, ativismo e participação em organizações não políticas – foram criadas variáveis binárias15.
Escolaridade16. Anos de escolaridade completados com
sucesso (ou seja, concluídos e com aprovação) de 0 a 17
anos, incluindo pós-graduação.
Renda. A variável foi construída pela soma da renda mensal total do domicílio (não só salários, mas também outros
rendimentos advindos de aluguéis, pensão, investimentos
etc.) dividida pelo número de habitantes desse domicílio.
14
As associações de direitos humanos foram consideradas como não políticas uma
vez que as organizações citadas pelos respondentes, em sua maioria absoluta, são
de caridade, sem tomada pública de posição política.
15
As distribuições das variáveis de participação em organizações políticas e ativistas possuem distribuições bastante distintas das distribuições encontradas por
Verba para o caso estadunidense, assim como tampouco são distribuições normais,
sendo mais próximas de uma distribuição bimodal (ativismo) e unimodal assimétrica para a direita (para participação em organizações políticas). Dessa maneira,
decidiu-se por utilizar uma medida categórica binária para cada uma das variáveis
e fazer a análise empírica separadamente para ativismo e participação em organizações políticas. Maneiras alternativas de construção da variável (uso da variável contínua, por exemplo) implicariam uma complexificação (como correções de viés por
logaritmo e construção de índices) desnecessária da construção das variáveis e da
análise, uma vez que é possível fazer testes homólogos e comparar resultados com os
trabalhos de Verba ao se utilizar a formulação mais simples da variável.
16
Apesar de existirem diferenças entre as ideias de escolaridade e anos de estudo,
para os objetivos deste texto, ambas se referem aos recursos adquiridos através
da escola. Ao longo do artigo, tais termos são utilizados de forma intercambiável,
para evitar repetição.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
Raça. Foram utilizadas medidas de autoclassificação
racial a partir da categorização oficial do IBGE. Apesar de o
questionário permitir o uso de medidas de alter-classificação, escolheu-se trabalhar com autoclassificação, já que é a
maneira utilizada na maioria absoluta dos estudos sobre
raça e comportamento político no Brasil e ser correntemente utilizada nos estudos sobre desigualdade racial17. A partir
dessas medidas, foram utilizados dois modos de categorização: “branco, preto e pardo” e “brancos e negros (agregando preto e pardo)”. A análise preliminar não mostrou diferenças substantivas nos resultados entre os dois modos de
classificação, sendo a principal clivagem revelada pelos
dados é entre brancos e não brancos, sem diferenças relevantes entre pardos e pretos em termos de mobilização.
Desse modo, para o restante deste artigo, lançou-se mão da
categorização binária18, que é mais comumente utilizada em
análises sobre desigualdades socioeconômicas entre grupos
raciais – o que é relevante para a análise ora proposta, cujas
medidas de recursos são escolaridade e educação.
Análise dos dados
Na amostra de Belo Horizonte, 11,3% dos respondentes
declararam participar de ao menos uma organização política; em termos de ativismo, 69,2% dos respondentes se declararam como participantes. Dos que declararam participar de
alguma atividade política, a maior parte atua em algum sindicato (4,0%) ou organização comunitária (3,8%), seguidos
de associação profissional (2,8%), partido político (1,3%),
orçamento participativo (1,1%), associações empresariais e
Ainda que não se rejeite a possibilidade de trabalhar com medidas de alter-classificação (e compará-las com autoclassificação) em trabalhos futuros, para que
se possa dialogar com a literatura mais recente sobre formas de classificação e
desigualdade social (Bailey, Muniz e Loveman, 2009).
18
Os resultados com a classificação terciária (brancos, pretos e pardos, segundo
categorias do IBGE) podem ser encontrados em Bueno (2010).
17
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
207
Raça e comportamento político
patronais (0,9%), entidade estudantil (0,6%) e associação de
defesa do consumidor (0,4%)19. Em relação ao ativismo, os
respondentes participam de reunião comunitária (26,4%),
abaixo-assinados/manifestos (54,6%), campanhas de arrecadação (27,9%), boicotes (15,5%), passeatas (23,7%), greves
(14,4%) e ocupações de edifícios (1,5%).
Encontra-se diferença na participação em organizações
políticas entre indivíduos de diferentes grupos raciais – sendo brancos (16,23%) proporcionalmente mais ativos do
que negros (8,28%) –, ao passo que não se encontra diferença relevante em ativismo político entre brancos (71,5%)
e negros (67,8%).
Tabelas 1:
Participação política, segundo grupos raciais – Belo Horizonte
208
Tabela 1.2.
Ativismo político
Tabela 1.1.
Participação em organizações políticas
Raça
Sim
(%)
Não
(%)
Raça
Sim
(%)
Não
(%)
Branco
16,23
83,77
Branco
71,5
28,5
Negro
8,28
91,72
Negro
67,8
32,2
Total
11,30
88,70
Total
69,2
30,8
Fonte: PRMBH (2005)
Nota: X2 encontrado: 14,99;
graus de liberdade: 1
Fonte: PRMBH (2005)
Nota: X2 encontrado: 1,50;
graus de liberdade: 1
É necessário examinar não só a questão racial, mas
verificar se e em que medida os recursos como renda, escolaridade e participação não política, principais formas de
19
Em termos de organizações não políticas, a maioria se declara ativa em associação religiosa (25,9%), seguido de associações de caridade (7,9%), esportivas
ou recreativas (5,6%), associações ligadas a temas específicos, como educação e
saúde (4,5%), associações de direitos de minorias (3,1%), grupos de jovens não
religiosos (0,9%), associações de autoajuda (0,6%).
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
recursos, estão associados à participação política, seja em
organizações políticas ou no engajamento em ativismo político. Como se pode ver nas tabelas abaixo, em Belo Horizonte, quanto maior o estrato de renda, em especial os indivíduos com mais do que quatro salários mínimos de renda
domiciliar per capita, maior a proporção de indivíduos que
são ativos politicamente em organizações políticas. Com
relação ao ativismo político, pode-se ver que o aumento na
proporção de indivíduos que se mobilizam politicamente
aumenta de forma menos intensa. Do mesmo modo, não há
uma queda na proporção dos indivíduos atuantes politicamente do estrato de um a dois salários mínimos para indivíduos no grupo de dois a três salários mínimos per capita20.
Tabelas 2:
Participação política, segundo renda familiar per capita – Belo Horizonte
Tabela 2.1.
Participação em organizações políticas
Tabela 2.2.
Ativismo político
209
Renda familiar
per capita
Sim
(%)
Não
(%)
Renda familiar
per capita
Sim
(%)
Não
(%)
Até 1 salário mínimo
6,06
93,94
Até 1 salário mínimo
64,2
35,8
70,6
29,4
De 1 a 2 salários
mínimos
5,56
94,44
De 1 a 2 salários
mínimos
De 2 a 3 salários
mínimos
18,18
81,82
De 2 a 3 salários
mínimos
64,6
35,4
De 3 a 4 salários
mínimos
11,90
8810
De 3 a 4 salários
mínimos
75,6
24,4
Mais do que 4 salários
mínimos
37,41
62,59
Mais do que 4 salários
mínimos
77,2
22,8
Total
11,3
88,7
Total
69,2
30,8
Fonte: PRMBH (2005)
Nota:X2 encontrado:106,7;
graus de liberdade: 4
Fonte: PRMBH (2005)
Nota: X2 encontrado: 9,696;
graus de liberdade: 4
20
O teste de médias também aponta que indivíduos que participam tem renda
média maior do que aqueles que não participam politicamente, tanto em organizações políticas quanto em ativismo político.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Raça e comportamento político
Com relação à escolaridade, encontra-se cenário semelhante: nos estratos de maior escolaridade, há
maior a proporção de indivíduos que participam da
política. Destaca-se o aumento na proporção politicamente ativa daqueles com ensino superior (completo e
incompleto)21.
Tabelas 3:
Participação política, segundo níveis de escolaridade – Belo Horizonte
Tabela 3.2.
Ativismo político
Tabela 3.1.
Participação em organizações políticas
Escolaridade
210
Sim
(%)
Não
(%)
Escolaridade
Sim
(%)
Não
(%)
0 a 8 anos
4,17
95,83
0 a 8 anos
63,9
36,1
9 a 11 anos
13,29
86,71
9 a 11 anos
73,4
26,6
Mais de 11 anos
27,66
72,34
Mais de 11 anos
85,0
15,0
Total
11,30
88,70
Total
69,2
30,8
Fonte: PRMBH (2005)
Fonte: PRMBH (2005)
Nota: X2 encontrado: 90,86;
grau de liberdade: 2
Nota: X2 encontrado: 20,76;
graus de liberdade:2
Com relação à participação em organizações não políticas, encontra-se que há associação entre participação
política, nas duas dimensões, e não política. Indivíduos que
são ativos em organizações não políticas têm mais chances
de também ser ativos politicamente do que indivíduos que
não participam de organizações não políticas.
21
Novamente, o teste de médias aponta que indivíduos que participam tem mais
anos de escolaridade, em média, do que indivíduos que não participam, tanto
para organizações políticas quanto para ativismo.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
Tabelas 4:
Participação política, segundo participação não política – Belo Horizonte
Tabela 4.1.
Participação em organizações políticas
Participação
não política
Sim
Sim (%)
Não (%)
19,22
80,78
Não
6,40
93,60
Total
11,30
88,70
Tabela 4.2.
Ativismo político
Participação
não política
Sim (%)
Não (%)
Sim
75,74
24,26
Não
65,11
34,89
Total
69,2
30,8
Fonte: PRMBH (2005)
Fonte: PRMBH (2005)
Nota: X2 encontrado: 39,105,
graus de liberdade: 1
Nota: X2 encontrado:12,21;
graus de liberdade: 1
Entretanto, de saída, vários desses atributos estão associados: o pertencimento a certo grupo racial tende a ter
padrões fortes de associação com níveis de escolaridade e
renda22. Portanto, é necessário sofisticar um pouco a análise para se identificar os efeitos e as associações entre as
variáveis.
Foram construídos vários modelos de regressão logística para identificar o efeito de cada variável (ver Apêndice).
Os modelos foram construídos de maneira a incluir as variáveis relevantes passo a passo e, assim, identificar seus efeitos paulatinamente. Foram construídos quatro modelos
para cada variável dependente (ativismo e participação em
organizações políticas): 1) raça como única variável independente; 2) renda e escolaridade como variáveis independentes (modelo socioeconômico); 3) raça, renda e escolaridade como variáveis independentes; e 4) modelo completo:
raça, renda, escolaridade e participação não política como
22
Em Bueno (2010), estão disponíveis as medidas descritivas básicas sobre raça e
recursos, mostrando, de forma singela, que brancos possuem mais renda e escolaridade do que indivíduos negros. Mas, deve-se ressaltar, não se encontra diferença
de participação não política entre brancos e negros.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
211
Raça e comportamento político
variáveis independentes. Os resultados aqui apresentados se
referem ao modelo completo.
Tabela 5:
Participação em organizações políticas e ativismo, por grupo racial –
Belo Horizonte
De negro para branco
Primeira diferença
(com intervalo de 95% de confiança)
Participação em
organizações políticas
-0,005
(-0,041, 0,032)
Ativismo político
-0,04
(-0,11, 0,03)
Fonte: PRMBH (2005)
212
Tanto para participação em organizações políticas
como em ativismo, pode-se ver que o intervalo da primeira
diferença23 entre a probabilidade de brancos e negros
serem ativos politicamente passa pelo zero. Isso significa
que não se encontra diferença substantiva entre brancos
e negros na probabilidade de participar de organizações
políticas e em ativismo político uma vez que se controla
por renda, escolaridade e participação não política24. As
análises bivariadas não encontraram diferença na participação política entre brancos e negros em termos de ativismo político, mas foram encontradas diferenças relevantes para participação em organizações políticas – o que
vai em sentido contrário da tabela acima. No entanto,
mais do que saber se raça importa quando renda, escolaridade e participação não política são controladas na
média, interessa saber como indivíduos brancos e negros,
com diferentes posses de recursos, são propensos a partici­
par politicamente.
Ou seja, Pr(Y = 1|X1) – Pr(Y =1|X0 ).
Mesmo se se considera um intervalo de confiança menos rígido, como 90%.
23
24
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
As tabelas abaixo apresentam as probabilidades esperadas de acordo com os perfis teoricamente relevantes (valores substantivos de interesse). Dessa maneira, pode-se avaliar
com um pouco mais de clareza o efeito da raça e sua relação com os recursos como determinantes da participação
política. Indivíduos com escolaridade e renda no primeiro
quartil são intitulados “baixo”; com escolaridade e renda
medianas são denominados “mediano”; e com escolaridade
e renda no terceiro quartil são denominados “alto”25.
Para a participação em organizações políticas, pode-ser ver pela tabela abaixo que não encontramos diferenças relevantes entre negros e brancos em diversos níveis
em termos de posse de recursos26, pois há uma sobreposição clara dos intervalos de confiança e valores muito próximos das médias das estimativas de probabilidades. Indivíduos brancos e negros com baixa posse de recursos e
que não participam de organizações não políticas têm probabilidade 0,02 de participar; indivíduos brancos e negros
com posse média de recursos têm, respectivamente, 0,05 e
0,06 probabilidade de participar (os intervalos de confiança coincidem); e indivíduos brancos e negros com alta
posse de recursos (e que não participam de organizações
não políticas) têm probabilidade 0,10 de participar. Note-se que, apesar da probabilidade de participar não variar
de acordo com o grupo racial, a estimativa média da probabilidade de participar aumenta cinco vezes do grupo
com baixos recursos para o grupo com altos recursos. E
participar em organização não política aumenta a probabilidade média de participar para todos os níveis de recurso
A definição de baixo, mediano e alto, no caso belorizontino, foi aritmética. É
baixa aqueles com valor no primeiro quartil (25%) de renda e escolaridade, mediana
aqueles com valores na mediana, ou seja, 50% dos casos, e alta aqueles com valor
no terceiro quartil, 75%.
26
A primeira diferença, contrastando as probabilidades de um grupo em relação
a outro, entre negros e brancos, corrobora esse resultado.
25
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
213
Raça e comportamento político
e para brancos e negros. Mas, deve-se destacar, no mesmo
nível de recurso, os intervalos de confiança daqueles que participam em organizações não políticas e daqueles que
não participam se sobrepõem.
Tabela 6:
Probabilidade de participação em organizações políticas, segundo raça, níveis
de recursos e participação não política – Belo Horizonte
214
Não participa em
organização não política
(com intervalo de 95% de
confiança)
Participa em organização
não política
(com intervalo de 95% de
confiança)
Branco – baixo
0,02
(0,01, 0,04)
0,05
(0,02, 0,09)
Branco – mediano
0,05
(0,03, 0,08)
0,10
(0,05, 0,15)
Branco – alto
0,10
(0,06, 0,14)
0,16
(0,10, 0,23)
Negro – baixo
0,02
(0,017, 0,04)
0,05
(0,02, 0,08)
Negro – mediano
0,06
(0,04, 0,08)
0,10
(0,07, 0,14)
Negro – alto
0,10
(0,07, 0,15)
0,18
(0,12, 0,24)
Fonte: PRMBH (2005)
Com relação a ativismo político, mais uma vez, não
há relação nítida entre raça e ativismo político em Belo
Horizonte. As probabilidades de participação de brancos e
negros são bastante semelhantes para os diversos níveis de
recursos, para indivíduos que participam e não participam
em organização não política. Por exemplo, indivíduos brancos com valores medianos de recursos e que participam de
organizações não políticas tem probabilidade média de participar estimada em 0,63, e indivíduos negros com o mesmo
perfil tem probabilidade média estimada em 0,67 (sendo
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
que os intervalos se sobrepõem). Quanto maior o nível de
recursos, nota-se certo aumento nos valores médios esperados da probabilidade a participar. Apesar desse aumento, ainda há sobreposição entre os intervalos de confiança
em diversos níveis, o que indica que o efeito dos recursos é
menos intenso para ativismo político do que para participação em organizações políticas.
Tabela 7:
Probabilidade de engajamento em ativismo, segundo raça, níveis de recursos e
participação não política – Belo Horizonte
Não participa em
organização não política
(com intervalo de 95% de
confiança)
Participa em organização
não política
(com intervalo de 95% de
confiança)
Branco – baixo
0,56
(0,46, 0,65)
0,66
(0,57, 0,75)
Branco – mediano
0,63
(0,56, 0,69)
0,72
(0,65, 0,79)
Branco – alto
0,68
(0,61, 0,75)
0,77
(0,70, 0,82)
Negro – baixo
0,61
(0,55, 0,67)
0,70
(0,63, 0,77)
Negro – mediano
0,67
(0,63, 0,72)
0,76
(0,70, 0,81)
Negro - alto
0,73
(0,67, 0,78)
0,80
(0,75, 0,85)
Fonte: PRMBH (2005)
***
Os dados ora analisados mostram que, em Belo Horizonte, raça, uma vez controlada por outras variáveis, não
mostra efeito relevante na probabilidade de participar. Ou
seja, pertencer a um grupo racial não é suficiente para distinguir aqueles que participam e os que não participam
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
215
Raça e comportamento político
216
politicamente, quando se levam recursos em consideração.
Com relação a esses últimos, renda e escolaridade se mostram como os fatores principais para a participação política.
Secundariamente, pode-se concluir que a participação
em organizações não políticas se mostra um fator relevante
à participação política. Contudo, os problemas de mensuração e potencial endogeneidade fazem com que o achado
seja visto com mais cautela. De qualquer maneira, embora
esse achado seja significativo, devido à importância do conceito de habilidade cívica na literatura sobre comportamento político e, também, ao fato de a principal participação
em organização não política nessa cidade ser em associações religiosas, esse não é o foco deste artigo.
Deve-se notar que também se encontram algumas diferenças entre os resultados para a participação em organizações políticas e o ativismo político. O modelo baseado em
recursos mostrou melhor ajuste27 (e estimativas mais precisas) para a participação em organizações políticas do que
para o ativismo político, assim como os efeitos das variáveis
apresentaram valores mais substantivos nos modelos para
organizações políticas do que para ativismo político. Isso
pode indicar que o modelo especificado (com raça e recursos) se mostrou mais adequado à participação em organizações políticas. Talvez, o achado seja explicado pelo fato
de que participar de organizações seja mais demandante de
recursos, como argumentado anteriormente, e o ativismo
ter determinantes motivacionais ou contextuais mais relevantes (Norris, 2002).
No entanto, a pergunta substantiva para a literatura
sobre raça e comportamento político no Brasil é: Afinal,
raça importa? E em que medida raça importa quando controlada pela posição socioeconômica? A resposta a essas
perguntas, com base nas evidências analisadas, é: não, o
Para uma discussão mais detalhada sobre ajuste, ver Bueno (2010).
27
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
pertencimento a um grupo racial não afeta de forma substantiva
a propensão a atuar politicamente no Brasil, ao passo que fatores socioeconômicos, como renda e escolaridade, são nitidamente
mais relevantes. Apesar da importância dessa resposta para
aqueles interessados em raça e comportamento político no
Brasil, é necessário qualificar seu significado para o modelo
baseado em recursos e para a literatura sobre raça e comportamento político.
Ao analisar a relação entre raça e comportamento político, a ênfase explicativa do modelo dos recursos está, como
era de se esperar, em apontar os fatores da variação do comportamento político por diferentes grupos raciais. No caso
belorizontino, constatou-se que a variação, uma vez controlada por recursos, inexiste. Desse modo, a interpretação
do resultado à luz do modelo baseado em recursos tende,
de saída, a ser negativa. No caso de Belo Horizonte, não se
encontram as condições identificadas no modelo baseado
em recursos.
A ausência de fatores como língua, religião e outras
habilidades cívicas que levam à variação na participação por
diferentes grupos raciais já era documentada na literatura
sobre raça e política no Brasil, de modo que a aposta da
literatura brasileira está nas experiências de discriminação
e preconceito. De acordo com esses autores, essas expe­
riên­cias, mesmo que não se reflitam na formação de consciência de grupo, levariam a um comportamento político
diferenciado. Para a literatura baseada em recursos, a aposta é que somente uma experiência de pertencimento a um
grupo racial conduz ao compartilhamento de percepções
e o desenvolvimento de habilidades que levariam ao comportamento distinto por grupo racial. Se o pressuposto de
que a literatura sobre o Brasil está correta – indivíduos que
se declaram negros sofrem discriminação e preconceito, e
tais situações os levam a um comportamento político diferencial em relação aos que se declaram como brancos –,
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
217
Raça e comportamento político
218
os achados deste artigo não trazem evidências que corroborem de forma significativa a hipótese de que as experiências
de discriminação e preconceito levam a um comportamento político diferenciado agregado.
Mas, pode-se argumentar, os trabalhos de Verba e seus
colaboradores não parece fornecer pistas satisfatórias para
a explicação dos resultados de Belo Horizonte a não ser
por uma interpretação negativa, que acusa a ausência das
condições estabelecidas pelos modelos produzidos por tais
autores. Seria, então, Belo Horizonte (e, em certo sentido,
o Brasil) o “não caso” ou, na melhor das alternativas, um
caso-controle no qual raça não se expressa politicamente
de forma relevante? Ou é possível apresentar alternativas
para a interpretação dos resultados encontrados em Belo
Horizonte segundo a perspectiva adotada?
Uma saída para a defesa da análise centrada em recursos é notar que, para que essas hipóteses sejam efetivamente
testadas, seria necessário investir na identificação das medidas concernentes aos mecanismos psicológicos que afetam
o comportamento político. Esse exercício poderia trazer
um refinamento dos achados de Belo Horizonte e, possivelmente, um melhor entendimento dos mecanismos pelos
quais raça opera no Brasil.
Tendo em vista os resultados encontrados, é possível
indicar ao menos uma orientação para proposições sobre
raça e comportamento político: os modelos e hipóteses
sobre a relação entre raça e comportamento político devem
ser contingentes aos significados das categorias raciais na
polity sob análise. Esse tipo de consideração impede que
uma teorização, a princípio geral, sobre a relação entre raça
e comportamento político, tenha pressupostos que impeçam sua operação em diversos objetos (polities) sob análise.
Dado que diversos países podem ser classificados de acordo com seus padrões de categorização racial a partir de
algum critério (por exemplo, países mais ou menos perLua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
missivos em termos de miscigenação, com classificações
baseadas em ascendência versus fenótipo ou ainda por
tipos de sistemas classificatórios, binários versus de múltiplas categorias), seria possível criar uma tipologia acerca
dos sistemas de categorias raciais e seus efeitos na mobilização política. Desse modo, a partir dos padrões de categorização racial de cada polity, seria possível encontrar,
dentro das diversas vertentes de estudo sobre comportamento político e raça, quais mecanismos são mais ou
menos plausíveis. Assim, a relação entre raça e recursos
socioeconômicos, por exemplo, seria definida a partir do
desenvolvimento de uma tipologia da relação entre essas
clivagens; afinal, diferentes combinações de clivagens
podem gerar resultados distintos e, assim, tornar mecanismos (institucionais, políticos, contextuais e psicológicos)
mais ou menos plausíveis.
Deve-se notar que está além dos objetivos deste texto
esboçar proposições dessa natureza, mas dada a relevância
das relações raciais para a mobilização política em diversas partes do mundo e considerando-se que a abordagem
basea­da em recursos é extremamente bem-sucedida em
descrever a configuração da participação política em diversos países, nada mais natural do que apontar para caminhos
que elevem a teorização sobre o papel da raça na atuação
política para o mesmo nível de generalização do que a abordagem pautada em recursos fez para recursos políticos.
Natália S. Bueno
é doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Yale.
Referências bibliográficas
ACHEN, C. 1992. “Breaking the iron triangle: social psychology, demographic
variables and linear regression in voting research”. Political Behavior, vol.
14, no 3, pp. 195-211.
ANDREWS, G. R. 1991. “O protesto político negro em São Paulo: 18881988”. Estudos Afro-Asiáticos, no 21, pp. 27-48.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
219
Raça e comportamento político
220
. 1996. “Brazilian racial democracy, 1900-90: an American
counterpoint”. Journal of Contemporary History, vol. 31, no 3, pp. 483-507.
BAILEY, S. R. 2008. “Unmixing of race making in Brazil”. American Journal
of Sociology, vol. 114, no 3, pp. 577-614.
. 2009. “Public opinion on nonwhite underrepresentation and racial
identity politics in Brazil”. Latin American Politics and Society, vol. 51, no
4, pp. 69-99.
; MUNIZ, J. O.; LOVEMAN, M. 2009. “The measure of ‘race’ and
the estimation of racial inequality”. Texto apresentado no XXXIII
Encontro da Anpocs. Caxambu (mimeo).
BERQUÓ, E.; ALENCASTRO, L. F. 1992. “A emergência do voto negro”.
Novos Estudos Cebrap, no 33, pp. 77-88.
BOBO, L.; GILLIAM, F. 1990. “Race, sociopolitical participation, and
black empowerment”. The American Political Science Review, vol. 84, no 2,
pp. 377-393.
BOWERS, J. 2008. “Events into action: a framework for studying political
participation as a dynamic process”. Disponível em <http://www.jakebowers.org> Acesso em 08/2009.
BUENO, N. S. 2010. Raça e comportamento político em perspectiva comparada:
evidências de Belo Horizonte e da Cidade do Cabo. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. São Paulo: FFLCH-USP.
; FIALHO, F. M. 2009. “Race, resources, and political participation
in a Brazilian city”. Latin American Research Review, vol. 44, no 2, pp. 59-83.
CARDOSO, M. A. 2001. O movimento negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo
Horizonte: Maza Edições.
CASTRO, M. M. M. 1993. “Raça e comportamento político”. Dados, vol. 36,
no 3, pp. 469-491.
CHANDRA, K. 2006. “What is ethnic identity and does it matter?”. Annual
Review of Political Science, vol. 9, pp. 397-424.
CHO, W. K.; GIMPEL, J. G.; WU, T. 2006. “Clarifying the role of SES in
political participation: policy threat and Arab American mobilization”.
The Journal of Politics, vol. 68, no 4, pp. 977-991.
CHONG, D.; ROGERS, R. 2003. “Reviving group consciousness” (mimeo.).
;
. 2005. “Racial solidarity and political participation”. Political
Behavior, vol. 27, no 4, pp. 347-373.
CHONG, D.; KIM, D. 2006. “The experiences and effects of economic
status among racial and ethnic minorities”. American Political Science
Review, vol. 100, no 3, pp. 335-351.
DALTON, R. J.; KLINGEMANN, H. 2007. Oxford handbook of political behavior.
Nova York: Oxford University Press.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
FUKS, M.; PERISSINOTTO, R. 2006. “Recursos, decisão e poder: conselhos
gestores de políticas públicas de Curitiba”. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, vol. 21, pp. 67-81.
GOODIN, R. E.; KLINGEMANN, H. 1996. A new handbook of political science.
Nova York: Oxford University Press.
GUIMARÃES, A. S. A. 2002. Classes, raças e democracia. São Paulo: Ed. 34.
. 2003. “The race issue in Brazilian politics (the last fifteen years)”.
In: KINZO, M. D.; DUNKERLEY, J. (orgs.). Brazil since 1985: economy,
polity and society. London: Institute of Latin American Studies.
. 2008. Preconceito racial: modos, temas e tempos. São Paulo: Cortez.
HANCHARD, M. G. 1993. “Culturalism versus cultural politics: movimento negro in Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil”. In: WARREN, K. B.
(org.). The violence within: cultural and politics opposition in divided
nations. Boulder: Westview Press.
. 2001. Orfeu e o poder: movimento negro no Rio de Janeiro e São
Paulo. Rio de Janeiro: Ed. Uerj.
HASENBALG, C. 2005. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Belo
Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj.
; VALLE SILVA, N.; LIMA, M. 1999. Cor e estratificação social. Rio de
Janeiro: Contra Capa.
HTUN, M. 2004. “From racial democracy to affirmative action: changing
State policy on race in Brazil”. Latin American Research Review, vol. 39, no
1, pp. 60-98.
HUTCHINGS, V. L.; VALENTINO, N. A. 2004. “The centrality of race in
American politics”. Annual Review of Political Science, vol. 7, pp. 383-408.
IBGE. s.d. “Censo Demográfico 2000: características da população e dos
domicílios: resultados do universe”. Disponível em <http://www.ibge.gov.
br/home/estatistica/populacao/censo2000>. Acesso em 01/08/2010.
INGLEHART, R.; NORRIS, P. 2003. Rising tide: gender equality and cultural
change around the world. Cambridge: Cambridge University Press.
JOHNSON, O. A. 1998. “Racial representation and Brazilian politics: black
members of the National Congress, 1983-1999”. Journal of Interamercan
Studies and World Affairs, vol. 40, no 4, pp. 97-118.
. 2006. “Locating blacks in Brazilian politics: Afro-Brazilian activism,
new political parties, and pro-black public policies”. International Journal
of Africana Studies, vol. 12, no 2, pp. 170-193.
LAMOUNIER, B. 1968. “Raça e classe na política brasileira”. Cadernos Brasileiros, vol. 47, pp. 39-50.
LEIGHLEY, J. E. 1995. “Attitudes, opportunities and incentives: a field essay
on political participation”. Political Research Quarterly, vol. 48, pp. 181-209.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
221
Raça e comportamento político
222
. 2008. “Commentary on attitudes, opportunities and incentives: a
field essay on political participation”. Political Research Quarterly, vol. 61,
pp. 46-49.
LEIGHLEY, J. E.; VEDLITZ, A. 1999. “Race, ethnicity, and political
participation: competing models and contrasting explanations”. Journal
of Politics, vol. 61, no 4, pp. 1092-1114.
; MATSUBAYASHI, T. 2009 “The implications of class, race, and
ethnicity for political networks”. American Politics Research, vol. 37, no 5,
pp. 824- 855.
McADAM, D. 1982. Political process and the development of black insurgency,
1930- 1970. Chicago: The University of Chicago Press.
McCLAIN, P.; CAREW, J.; WALTON, E.; WATTS, C. 2009. “Group
membership, group identity, and group consciousness: measures of
racial identity in American politics”. Annual Review of Political Science, vol.
12, pp. 471-485.
MILLER, A. H.; GURIN, P.; GURIN, G.; MALANCHUK, O. 1981. “Group
consciousness and political participation”. American Journal of Political
Science, vol. 25, pp. 494-511.
MITCHELL, G. 2009. “Afro-Brazilian politicians and campaign strategies:
a preliminary analysis”. Latin American Politics and Society, vol. 51, no 3,
pp. 111-142.
MUNIZ, J. O. 2010. “Sobre o uso da variável raça-cor em estudos quantitativos”. Revista de Sociologia e Política, vol. 18, no 36, pp. 277-291.
NORRIS, P. 2002. Democratic phoenix: reinventing political activism.
Cambridge: Cambridge University Press.
OLIVEIRA, C. 1997. A luta por um lugar: gênero, raça, e classe, eleições
municipais de Salvador, Bahia, 1992. Salvador: Programa a Cor da
Bahia/UFBA.
. 2007. A inevitável visibilidade de cor: estudo comparativo das campanhas de Benedita da Silva e Celso Pitta às prefeituras do Rio de Janeiro
e São Paulo, nas eleições de 1992 e 1996. Tese de Doutorado em Ciência
Política. Rio de Janeiro: Iuperj.
PASCHEL, T.; SAWYER, M. Q. 2008. “Contesting politics as usual: black
social movements, globalization, and race policy in Latin America”.
Souls, vol. 10, no 3, pp. 197-214.
PRANDI, R. 1996. “Voto e raça na eleição presidencial de 1994”. Estudos
Afro-Asiáticos, vol. 30, pp. 61-78.
REIS, F. W. 2000. Mercado e utopia: teoria política e sociedade brasileira. São
Paulo: Edusp.
. 2001. “Política e participação: notas sobre aspectos doutrinários e
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
empíricos”. Revista USP, vol. 49, pp. 6-23.
RIBEIRO, E. A.; BORBA, J. 2011. “Protesto político na América Latina:
bases individuais e estruturais”. Texto apresentado no XXVIII Congresso da Alas. Recife (mimeo.).
RIOS, F. M. 2008. A institucionalização do movimento negro no Brasil contemporâneo. Dissertação de Mestrado em Sociologia. São Paulo: FFLCH-USP.
SANSONE, L. 2003. Blackness without ethnicity: constructing race in Brazil.
Nova York: Palgrave/St. Martin’s Press.
SANTOS, J. A. F. 2005. “Efeitos de classe na desigualdade racial no Brasil”.
Dados, vol. 48, no 1, pp. 21-63.
SANTOS, S. A. 2000. A ausência de uma bancada suprapartidária afro-brasileira
no congreso nacional (legislatura 1995-1998). Brasília: Centro de Estudos
Afro-Asiáticos (2 vols.).
SAWYER, M. 2005. “‘Race’ to the future: racial politics in Latin America
2015”. Perspectives on Politics, vol. 3, no 3, pp. 561-564.
SCHLOZMAN, K. L. 2002. “Citizen participation in America: what do we
know? Why do we care?”. In: KATZELSON, I.; MILNER, H. V. (orgs.).
Political science: state of the discipline. Nova York: Norton and Company/
American Political Science Association.
SEGURA, G. M.; RODRIGUES, H. A. 2006. “Comparative ethnic politics
in the United States: beyond black and white”. Annual Review of Political
Science, vol. 9, pp. 375-395.
SHINGLES, R. D. 1981. “Black consciousness and political participation:
the missing link”. The American Political Science Review, vol. 75, n o 1,
pp. 76-91.
SOARES, G.; VALLE SILVA, N. 1987. “Urbanization, race, and class in
Brazilian politics”. Latin American Research Review, vol. 22, no 2, pp. 155-176.
SOARES, G.; VALLE SILVA, N. 1985. “O charme discreto do socialismo
moreno”. Dados, v. 28, no 2, pp. 253-273.
SOUZA, A. 1971. “Raça e política no Brasil urbano”. Revista de Administração
de Empresas, vol. 11, no 4, pp. 61-70.
SOUZA, J. 2006. “Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira”. Lua
Nova, no 65, pp. 43-70.
SUYAMA, E.; FERNANDES, R. A. 2007. “Planejamento da amostra, seleção
de unidades amostrais, e sistema de ponderação da pesquisa da região
metropolitana de Belo Horizonte”. In: AGUIAR, N. (org.). Desigualdades sociais, redes de sociabilidade e participação política. Belo Horizonte:
Ed. UFMG.
TIMPONE, R. J. 1998. “Ties that bind: measurement, demographics, and
social connectedness”. Political Behavior, vol. 20, no 1, pp. 53-77.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
223
Raça e comportamento político
TELLES, E. E. 1996. “Identidade racial, contexto urbano e mobilização
política”. Afro-Ásia, vol.17, pp. 121-138.
. 2003. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de
Janeiro: Fundação Ford/Relume Dumará.
VERBA, S.; NIE, N. H. 1972. Participation in America: political democracy
and social inequality. Chicago: University of Chicago Press.
;
; Kim, J. 1979. Participation and political equality: a
seven-nation comparison. Chicago: University of Chicago Press.
; Schlozman, K. L.; Brady, H. E. 1995. Voice and equality: civic
voluntarism in American politics. Cambridge: Harvard University Press.
;
;
; NIE, N. H. 1993. “Race, ethnicity and political
resources: participation in the United States”. British Journal of Political
Science, vol. 23, no 4, pp. 453-497.
WRINKLE, R. D.; STEWART JR., J.; POLINARD, J. L.; MEIER, K. J.;
ARVIZU, J. R. 1996. “Ethnicity and nonelectoral political participation”.
Hispanic Journal of Behavioral Sciences, vol.18, no 2, pp. 142-153.
Outros materiais
224
AGUIAR, N. 2005. Pesquisa da Região Metropolitana de Belo Horizonte 2005. Base
de dados. Centro para Pesquisa Quantitativa em Ciências Sociais-UFMG.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Natália S. Bueno
Apêndice: Modelos de regressão
Tabela A.1:
Modelos de regressão logística –
Participação em organizações políticas
Modelo 4:
Modelo 1:
Modelo 2:
raça
socioeconômico
Modelo 3:
raça +
raça +
socioeconômico
socioeconômico + participação
não política
Raça
(branco)
0,443**
(-0,217)
-0,107
(-0,266)
-0,09
(-0,266)
Logaritmo
da renda per
capita
0,406***
(-0,143)
0,421***
(-0,148)
0,393***
(-0,147)
Anos de
escolaridade
0,13555 ***
(-0,04)
0,136***
(-0,04)
0,130***
(-0,04)
Participação
não política
0,615 **
(-0,247)
Intercepto
-2,409***
(-0,142)
-5,901***
(-0,739)
-5,963 ***
(0,756)
-6,018***
(-0,756)
N
997
781
781
781
AIC
631,73
477,65
479,48
475,31
Fonte: PRMBH (2005)
p-valor: 0,001 *** 0,01 ** 0,05 * 0,1.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
225
Raça e comportamento político
Tabela A.2:
Modelos de regressão logística – Ativismo político
Modelo 4:
Modelo 1:
raça
Modelo 2:
Modelo 3:
socioeconô-
raça + socioe-
mico
conômico
raça +
socioeconômico + participação não
política
Raça
(Branco)
226
0,072
(0,147)
-0,194
(0,174)
-0,203
(0,175)
Logartimo
da renda per
capita
0,152*
(0,092)
0,177*
(0,095)
0,164*
(0,095)
Anos de
escolaridade
0,052**
(0,023)
0,052**
(0,023)
0,048**
(0,023)
Participação
Não política
0,434**
(0,171)
Intercepto
0,792***
(0,085)
-0,437
(0,462)
-0,513
(0,468)
-0,560
(0,472)
N
966
778
778
778
AIC
1194,3
935,35
936,1
931,5
Fonte: PRMBH (2005)
p-valor: 0,001 *** 0,01 ** 0,05 * 0,1.
Lua Nova, São Paulo, 85: 187-226, 2012
Fazer História, Fazer Sentido: Associação
Cultural do Negro (1954-1964)*
Mário Augusto Medeiros da Silva
As comemorações organizadas em torno da efeméride do
IV Centenário da cidade de São Paulo, em 1954, engendraram diferentes eventos e ações, estudados em detalhe por
extensa bibliografia (Abud, 1985; Arruda, 2001; Ferreira,
2002; Lofego, 2004) que, entre outros aspectos, se debruça
sobre a construção do mito do progresso ou da construção
da imagem do bandeirantismo paulista. Em síntese, esse
evento central serviu para diferentes setores sociais ativarem
ou criarem uma memória coletiva positiva capaz de justificar uma espécie de destino manifesto, numa trajetória linear
e ininterrupta da vila São Paulo de Piratininga à metrópole
que mais crescia no país e considerada locomotiva econômica da nação.
*
Este artigo é um fragmento da tese de doutoramento do autor (Silva, 2011). Parte dele foi apresentado no seminário temático Linhagens do Pensamento Político-Social Brasileiro, em novembro de 2009, e no curso de formação promovido pelo
grupo Edições Toró, em maio de 2010. Aos interlocutores dessas ocasiões em que
o texto foi discutido, agradeço especialmente aos professores Elide Rugai Bastos,
André Botelho, Glaucia Villas-Bôas, Petrônio Domingues e Priscila Nucci, bem
como a Marcelo D’Salete, Allan da Rosa e aos ouvintes do curso Resistência e
Anunciação: Arte e Política Preta.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Fazer história, fazer sentido
228
Acionados jesuítas, bandeirantes e, quando conveniente, frações imigrantes europeias, a construção da epopeia
bandeirante situava a cidade – irradiando-se ao estado –
como um ponto de inflexão, no momento das comemorações, de um ideal de modernidade, superação e distanciamento do atraso que grassava a história brasileira. Identificava-se a um só tempo um sujeito social (personagens
históricos que forjassem a imagem positiva dos paulistas)
selecionava-se um tema (a épica do destemor e da bravura bandeirante) e conferia-se um sentido (do progresso
ilimitado, concretizado simbolicamente na escultura espiral ascendente do IV Centenário, projetada por Oscar Niemeyer para o Parque do Ibirapuera, que não chegou a ser
construída).
Esses elementos formam um imaginário social, servindo aos interesses de quem os organizou: parcelas da intelectualidade, do empresariado, grupos financeiros, políticos,
paulistas “tradicionais” de quatrocentos anos e profissionais liberais de classes médias (os últimos ligados ao setor
de serviços interessados em lucrar ou ser subvencionados
com os aportes das comissões organizadoras, criadas pelo
poder público e responsáveis pelas comemorações) (Lofego, 2004, p. 11).
Entretanto, entre os grupos humanos que constituíram esse estado e cidade, deliberadamente se ocultaram,
em meio aos processos comemorativos, negros e indígenas1. Identificados ao atraso, tiveram sua participação na
construção de São Paulo questionada. No caso dos negros,
isso não impediu que frações organizadas desse grupo – e
“Em meio ao bombardeio ufanista, é difícil encontrar imagens ou vozes destoantes, mas elas existem, quase sufocadas, emergindo em alguns protestos,
ora de artistas que eram excluídos do reconhecimento oficial, ora de grupos
atuantes, como a comunidade negra de São Paulo, a qual também buscava
maior reconhecimento de sua importância para a memória paulista” (Lofego,
2004, p.33).
1
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
que já vinham de experiências políticas anteriores, interrompidas pelo golpe do Estado Novo, rearticuladas após
19452 – procurassem reordenar projetos coletivos, colocando em xeque a posição subalterna que lhes fora relegada
no pós-Abolição.
Simultaneamente, procuraram construir um ponto de
referência que, no mesmo compasso, reavaliasse o passado
e o positivasse, através de eventos e figuras históricas importantes para o grupo, tentando configurar assim uma identidade alternativa – focada na promoção da ideia de cultura
– à servidão forçada, como forma de valorização do sujeito
negro, lidando, desse modo, com os desafios da cidadania
no presente de meados do século XX.
Pretende-se discutir aqui, em linhas breves e de forma
não conclusiva, a atuação da Associação Cultural do Negro
(ACN), organização que surge em 1954 e cessa atividades em 1976, cuja gênese é decorrente da reação de parte
daquele grupo social às comemorações do quartocentenário paulistano; e cujos objetivos vão se ampliando em outras
direções no período mais profícuo de sua existência, de sua
fundação até o golpe de 1964. Importante dizer que se trata
de uma organização negra pouco estudada pela bibliografia sobre relações raciais no Brasil, apesar de sua importân2
“O Clube Negro de Cultura Social continuou trabalhando para fazer as comemorações do Cinquentenário da Abolição, que seria no 13 de maio de 1938. Por
causa disso, o Cultura não foi atingido pela Lei de 10 de novembro de 1937. [...] O
Estado Novo – nome que o Getúlio deu à ditadura – terminou com todos os
movimentos de lutas sociais do negro porque eram lutas de classe. Aí o Movimento Negro parou e o Cultura, terminados os festejos do Cinquentenário da
Abolição, foi intimado a fechar. [...] até quando terminou a guerra com a vitória
dos aliados. Por essa época, havia na avenida São João um escritório do Raul
[Joviano] do Amaral com um tal de Mário da Silva Júnior, onde começaram a
aparecer algumas pessoas da antiga Frente Negra Brasileira, como o Francisco
Lucrécio, Roque dos Santos e outros. Então nós fomos convidados, eu e o [Fernando] Góis e outros, que éramos do grupo d’O Clarim d’Alvorada, para ver se
conseguíamos fazer uma recuperação do trabalho perdido desde 38. [...] conseguimos os meios para iniciar a Associação dos Negros Brasileiros” (Leite e Cuti,
1992, pp. 131, 137, 142).
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
229
Fazer história, fazer sentido
cia, sendo citada em parágrafos de poucos artigos e textos
sobre o tema3.
Como foi discutido em Silva (2010, 2011), os caminhos da ACN e seus membros se cruzam também com os
da sociologia uspiana, notadamente através de Roger Bastide e Florestan Fernandes, visto que esses cientistas sociais
se valeram do contato com os ativistas negros, circulando em seus espaços e estabelecendo relações, que foram
impor­tantes para seus principais trabalhos sobre a questão
racial: Brancos e negros em São Paulo e A integração do negro
na sociedade de classes.
Uma associação cultural do negro em meados do
século XX
230
Em atividades associativas e organizadas política e culturalmente, frações do grupo negro paulistano se encontravam,
no pós-abolição, desde o começo do século XX. Os jornais
da imprensa negra e grupos reivindicativos como a Fren3
A ACN é citada por Florestan Fernandes (1978), Clóvis Moura (1983), Miriam
Ferrara (1986), sendo que esses autores discutem rapidamente aspectos da organização e/ou utilizam os depoimentos de seus membros e jornais como fontes. Mereceu ainda uma apresentação em congresso, por Petrônio Domingues (2007) e
um capítulo de tese, além de diferentes menções, em Silva (2011). Algumas vezes
é referida equivocadamente, como em Regina Pahim Pinto (1993), que afirma a
associação ter sido fundada “pelo poeta Solano Trindade, pelo escritor Abdias do
Nascimento, além de um grupo de intelectuais e jornalistas” (1993, p. 354). Trindade pertencia ao Teatro Popular Brasileiro, de cunho folclórico. E Nascimento,
no Rio de Janeiro, fundou e liderou o Teatro Experimental do Negro, ambos sem
relações formais com a ACN. Ou, ainda em Silva (1994), para quem o objeto de
sua dissertação, o Centro de Cultura e Arte Negra “foi a primeira organização negra, na capital de São Paulo, a atuar, trazendo, entre outras propostas, as ideias de
Negritude, ou seja, a importância da consciência étnica, colocando a necessidade
de redescoberta do negro, a partir da recuperação do domínio cultural e histórico
[...] O que diferencia o Cecan dessas duas entidades negras, Associação Cultural
do Negro e Frente Negra Brasileira, é o fato de sua liderança apresentar um discurso e atuação na tentativa de construir uma consciência negra e uma identidade
étnica [...] algo que não aparecia até então” (1994, pp. 11, 22). Ao longo deste
artigo, ver-se-á em que consistem tais imprecisões. O que sobrou do acervo da ACN
encontra-se conservado na Unidade Especial de Informação e Memória da
Universidade Federal de São Carlos (Ueim-UFSCar), arquivo que guarda a documentação primária consultada e citada no decorrer do texto.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
te Negra Brasileira (1931-1937), o Clarim d’Alvorada, entre
muitos outros, desenvolviam atividades e ações efervescentes que seriam interrompidas, em 1937, reestruturando-se
somente no fim dos anos 1940 (Bastide e Fernandes, 1955;
Fernandes, 1978; Bastide, 1973; Moura, 1983; Ferrara, 1986;
Leite e Cuti, 1992; Barbosa, 1998; Domingues, 2008).
Entre 1948 e 1953, em São Paulo e Rio de Janeiro,
as atenções do grupo negro organizado estão voltadas ao
Primeiro Congresso do Negro Brasileiro (transcrito quase integralmente em Nascimento, [1968] 1982), realizado
em 1950 no Rio de Janeiro4, e à pesquisa Unesco (Maio,
1997), da qual participam como sujeitos pesquisados5, dentre outras ações menores, em função de suas atividades
pregressas. O cotidiano da cidade paulistana se impõe aos
sujeitos sociais de maneira impactante, dadas as transformações pelas quais a metrópole vinha passando, notando-se
alterações arquitetônicas, intervenções no espaço público,
mudanças na dinâmica das relações pessoais interferindo
na vivência dos moradores das “várias ‘cidades’ que coexistiam lado a lado” (Fernandes, 1977, p. 144), que vinham se
preparando, no mesmo período, para as comemorações do
IV Centenário de São Paulo.
Esse congresso foi “organizado pelo grupo do Teatro Experimental do Negro,
tendo à frente o Abdias do Nascimento. [...] estiveram presentes vários sociólogos
de renome. Uma das teses que deu margem a muitos comentários foi a do Ironides Rodrigues, com o título ‘Estética da Negritude’ [...] Foi daí que se começou falar muito de Negritude no meio negro. A finalidade desse Congresso era de reunir
subsídios para uma pesquisa idêntica à que houve aqui em São Paulo, patrocinada
pela Unesco” (Leite e Cuti, 1992, p. 162).
5
“Há um esforço pioneiro para entender o papel dos movimentos sociais e de
seus líderes no esforço de revisão da posição dos negros na sociedade. Para compreender esses processos foi essencial a decisão inovadora de chamar os líderes
daqueles movimentos para participarem das discussões e mesmo para orientarem muito das interpretações acolhidas na pesquisa. Houve um ensaio de sociologia
participativa. Essa técnica, bem como a combinação dela com outras, desde a reconstrução histórica da vida social dos negros e das formas do preconceito até a
utilização de técnicas de pesquisa de campo, mostram a ousadia metodológica do
empreendimento de Bastide e Florestan” (Cardoso, 2008, pp. 15-16).
4
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
231
Fazer história, fazer sentido
232
Essas se propunham a ser, simultaneamente, grandiosas e excludentes, tendo São Paulo como “uma espécie de
resumo do Brasil ou seu ponto de convergência” (Lofego,
2004, p. 39), em que “o elã comemoracionista de São Paulo
no IV Centenário é, a médio prazo, uma resposta à derrota
política e à vitória econômica. Perdeu-se a batalha de 1932,
mas não a guerra da industrialização e do desenvolvimento”
(Arruda, 2001, p. 98).
Recorde-se que, entre alguns setores intelectuais paulistanos, o grupo negro e suas frações organizadas eram
vistos com desconfiança, acusados de colaborar ou simpatizar com as ações e propostas getulistas, na ocasião
do confronto de 1932, transformando-se, portanto, em
inimigos dos paulistas, como sugerem os artigos escritos
por Paulo Duarte, em 1947, para o jornal O Estado de S.
Paulo, utilizando esse tópico para questionar a identidade
nacional brasileira6. A visão de Duarte, no entanto, estava equivocada por, ao menos, três fatores: 1) o desmantelamento progressivo das organizações negras a partir de
1932, culminando em sua proibição em 1937; 2) a criação
do destacamento militar denominado Legião Negra, em
1932, para lutar com os paulistas contra o governo Vargas; 3) o fim da principal organização negra do período, a
Frente Negra Brasileira, depois de sucessivos ataques, por
conta do golpe do Estado Novo (Leite e Cuti, 1992; Barbosa, 1998; Domingues, 2008).
“Começa a surgir no Brasil, com todo horror que o caso encerra, um problema
que, por não existir, era o capítulo mais humano talvez da nossa história social: o
problema do negro. O curioso porém é que aparece agora não criado ou agravado pelo branco, mas por uma prevenção agressiva que se estabelece da parte
do negro contra o branco. É mais um legítimo fruto podre entre tantos com que
nos aquinhoou a ditadura” (Duarte, 1947a, p. 5). O problema era provocado por
esse negro de novo tipo, associado e reivindicativo, muito distante da imagem do
negro dos tempos dos avós (Duarte, 1947b, p. 6). O artigo de O Estado de S. Paulo
recebeu resposta de José Correia Leite, no jornal Alvorada, intitulado “O Esgar
do Sr. Paulo Duarte” (apud Leite e Cuti, 1992, pp. 258-259). Ainda sobre “Negros do
Brasil”, ver Bastos (1988, pp. 20-27) e Silva (2011, pp.123-132).
6
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
Depreende-se também, em meio aos jogos de poder, a
exclusão simbólica da participação do negro no processo
social que culminara até ali; inclusive burocraticamente,
pelas duas comissões organizadoras do evento em 1954 que
recebeu:
entre as sugestões e propostas enviadas ao diretor do
serviço de comemorações culturais, Roberto de Paiva
Meira, havia a proposta da Comissão de Festejos para
Ereção de um Monumento à Mãe Negra que, como o
próprio nome diz, pretendia inaugurar um busto no Largo
do Paissandu, em homenagem à mãe preta, inserindo-se
no espaço da capital paulista como símbolo da cultura
negra em São Paulo. [...] A proposta rejeitada por diversas
ocasiões, somente foi aceita quando [essa] Comissão [...]
entregou à [...] do IV Centenário um abaixo-assinado.
Diante de tal apelo, além de tal homenagem integrar as
comemorações do Quartocentenário, diversas autoridades
estiveram presentes na inauguração, inclusive o governador
do estado [...]. Entretanto é contrastante observar que a
proposta encaminhada pelo Grupo de Industriais e Artistas,
representados por Teodoro Procópio, para construção de
um grandioso Museu de Cera na marquise do Ibirapuera foi
aceita sem maiores restrições (Lofego, 2004, pp. 50-52).
Na dinâmica da comemoração, inventa-se uma tradição para o progresso e o “destino manifesto” de São Paulo;
funda-se uma genealogia de bravura e uma história épica.
Tenta-se forjar a imagem de uma metrópole moderna, mesmo que ela padeça de dilemas periféricos, como as favelas:
O território escolhido para ser símbolo das festas [o futuro
Parque do Ibirapuera] estava ocupado por populações que,
no entender dos poderes que estavam à frente daquele
projeto, não integravam a grandeza de São Paulo, por
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
233
Fazer história, fazer sentido
isso era preciso removê-las e deixar o território ficar livre
para a edificação dos marcos da “pauliceia” triunfante [...]
consta que ao final das operações solicitadas e executadas
pelo poder público, foram removidos 186 barracos, que
abrigavam 204 famílias. [...] [Na documentação sobre a
remoção] não encontramos qualquer menção à sorte dessa
população (Lofego, 2004, pp. 83-84)7.
234
Vivendo os reflexos de golpes incompletos de modernização – notadamente a Abolição e a República – que
lhes favoreceram lateral e insuficientemente e contra os
quais reivindicam continuamente, em associações, jornais
e órgãos políticos; compondo parcelas significativas da
população pobre ou desprivilegiada da cidade, é significativo, portanto, que frações do grupo negro paulistano
tivessem de quê reclamar e tentar arregimentar membros
para suas reivindicações, através de seus jornais, clubes e
organizações.
Ao criar, em 1954, a ACN, os antigos militantes do meio
negro organizado em São Paulo afirmam que era necessário, novamente, tentar aglutinar interessados para a questão
do negro, irresoluta; e, dado o apagamento no Quartocentenário, tornada uma questão menor. Um de seus principais
líderes foi o militante José Correia Leite8. Ele e outros membros da nova associação, como Jayme de Aguiar, Raul Jovia7
O mesmo episódio é citado por Arruda (2001, pp. 89-90). Sobre as favelas em
São Paulo e seu surgimento, Jorge Paulino (2007) discute o assunto, demonstrando quão vacilantes são os arranjos de modernização da cidade, uma vez que as
primeiras favelas, substituindo os cortiços, na década de 1940, são estimuladas e
fomentadas pela prefeitura municipal, sendo que esta fornece, inclusive, terrenos
públicos e materiais para construção de moradias precárias.
8
Correia Leite (São Paulo, 1900-1989) foi um dos principais ativistas e intelectual da imprensa e associações negras em São Paulo. Ajudou a fundar o Clarim
d’Alvorada em 1924, a Frente Negra Brasileira em 1931, Clube Negro de Cultura
Social em 1932, Associação dos Negros Brasileiros em 1947, Associação Cultural
do Negro em 1954, além de outras iniciativas. Serviu de depoente, junto com outros ativistas e intelectuais negros, aos trabalhos de Florestan Fernandes (1978),
Clóvis Moura (1983), Miriam Ferrara (1986). Ver Leite e Cuti (1992).
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
no do Amaral, Henrique Cunha, participaram ativamente,
como informantes e sujeitos pesquisados, da pesquisa Unesco em São Paulo. Mantinham relações próximas com Roger
Bastide e Florestan Fernandes, sendo que estes participavam das manifestações e associações daqueles. Forneceram-lhes dados, entrevistas, documentos, jornais etc. Há um
encontro fecundo, nesse sentido, entre ativistas negros e
sociólogos, especialmente em São Paulo9.
Se o começo dos anos 1950, havia se imposto aos cientistas sociais com o dilema sintetizado, de maneira precisa,
em Villas-Bôas (2006)10, tomando a questão racial, entre
9
Sobre esse encontro, afirmou Raul Joviano do Amaral que, entre os anos 1940 e
1950, depois de conhecer Bastide – por iniciativa deste – no casarão onde funcionava a associação José do Patrocínio: “Comecei, então, a ter contatos mais frequentes
com o Mestre, ora na Faculdade, ora em meu escritório, ora em minha casa, que
ele honrava [...] Mais intensa e mais íntima se tornou a convivência com Bastide
quando Mário Wagner Vieira da Cunha – meu colega na Comissão do Serviço Civil
do Estado – anunciara-me a próxima realização dos estudos regionais sobre o negro,
sob os auspícios da Unesco, pesquisas coordenadas por Bastide com o inconfundível concurso de Florestan Fernandes e assessoramento preciso de Lucila Hermann”
(Amaral, 1978, pp.126-127). Correia Leite afirma ainda que: “Apareceu aqui [...]
Jorge Prado Teixeira. Era um rapaz que quase ninguém conhecia. Ele apareceu
como intermediário dos pesquisadores com o meio negro. Ele estava autorizado
e começou a fazer os convites [dos seminários] e a participar de reuniões com os
membros da pesquisa” (Leite e Cuti, 1992, p. 152); “a [pesquisa] mais bem feita foi
a de São Paulo, pois na metodologia os professores utilizaram os alunos para saírem
pelas ruas, irem à porta de fábrica etc. Eu fui procurado, também, por um rapaz que
depois se tornou muito meu amigo. Ele se formou em sociologia e foi aluno do Prof.
Roger Bastide. O nome dele era Renato Jardim Moreira. Ele fez comigo um trabalho sobre a minha participação nas lutas sociais, nas entidades e nos jornais [...] Em
1950 eu completei 50 anos. O Fernando Góis resolveu me oferecer um jantar e deu
o nome de Cinquentenário de José Correia Leite. [...] Houve almoços e jantares
interessantes. Como o Renato Jardim Moreira estava integrado nas nossas reuniões,
convidou os professores Roger Bastide e Florestan Fernandes para um jantar, devido
o Prof. Bastide ter chegado de Paris em suas primeiras férias [...] O Prof. Roger Bastide, em sua conhecida humildade, não queria aceitar ser ele o homenageado no
momento, já que se tratava do meu aniversário. A festa terminou auspiciosamente”
(Leite e Cuti, 1992, pp. 153, 159-160).
10
“A sociologia brasileira dos anos 1950 apresenta uma longa reflexão sobre a
compreensão que os sociólogos tinham de si mesmos e sobre as tarefas que julgavam relevantes para a sua disciplina. O projeto que eles esboçaram para o seu
campo intelectual é de importância para o entendimento da noção de tempo, que
fundamenta não apenas os ideais de mudança que almejavam para o país, como
também a sua função intelectual inscrita no trabalho de pesquisa e análise dos
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
235
Fazer história, fazer sentido
236
outras, como laboratório de testes para se pensar o problema da mudança social no Brasil, para o grupo negro,
cabe pensar que o dilema proposto, explicitado pela autora, permite criar, em paralelo, a seguinte ideia síntese:
fazer história, fazer sentido. A proximidade e distanciamento
simultâneos dos eventos abolicionistas (e de suas decorrências imediatas), bem como as ações que lograram realizar nas décadas seguintes (criar jornais, associações, organizações, editar livros etc.), colocam questões cruciais ao
grupo e ao tempo histórico que vivem, nos quais investem
em ações e propostas visando interferir e alterar positivamente a história do negro. Essas ações são analisadas em
detalhe por Bastide e Fernandes (1955, 1964), bem como
por Virgínia Leone Bicudo, em 1945, com seus estudos
sobre as atitudes raciais de pretos e mulatos, entrevistando pioneiramente membros da Frente Negra Brasileira
(Bicudo, 2010).
Esses investimentos num certo sentido da história social
e cultural remetem a José Correia Leite que, em suas memórias, ao lembrar o surgimento da ACN, afirma o seguinte:
Em 1954, nas comemorações do Quartocentenário [...]
houve muitas festas, mas o negro não se fez presente,
isto porque naquele ano não havia uma entidade
organizada para tratar do assunto [...] Quem construiu
propriamente a cidade foi o negro [...] Com tudo isso,
houve alguns negros interessados em fazer qualquer coisa
[...] mas foram pedir auxílio pro governo e receberam
uma recusa. Isso eu soube [...] Mas eu achei que esse
negócio não estava certo e então nós tínhamos de fazer
uma outra entidade mesmo. Por casualidade encontreifatos sociais. Seu grande desafio era estabelecer uma correspondência entre fazer
ciência e fazer história [...] Os sociólogos se autorrepresentam enquanto agentes
que através do conhecimento contribuem para a realização da história” (Villas-Bôas, 2006, pp. 65, 79; grifos da autora).
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
me com o Borba [José de Assis Barbosa], que já tinha
dado uma iniciativa sobre a ideia da fundação de uma
entidade cultural [...] Achei que uma entidade cultural,
de propaganda em defesa dos valores negros, isso era o
suficiente para a presença do negro no movimento cultural
e cívico da cidade (Leite e Cuti, 1992, p. 163).
Fundada formalmente em 28 de dezembro de 1954, a
ACN11 situa-se inicialmente no centro da capital paulista,
no terceiro andar de um edifício na praça Carlos Gomes,
número 153. Em que pese a quantidade de entidades associativas de negros no estado de São Paulo, em meados do
século XX, verificável em documento do acervo da ACN12,
colocando em questão o ineditismo dessa associação, cabe
destacar sua singularidade.
Sua localização espacial não é de importância menor:
o centro da cidade é um lugar de passagem considerável,
permitindo o encontro com sujeitos diversos da vida cultural e política, bem como a concentração de associados ou
Em função do momento político e das dificuldades de reorganização da militância negra, segundo Correia Leite, havia, inclusive, desconfiança em relação ao
nome da nova associação: “Muitos achavam que era uma continuação do Clube
Negro de Cultura Social, mas não era nada disso. [...] era um nome muito perigoso, ia causar mal-estar no meio branco, alguma espécie até de provocação [...]
Aqui em São Paulo tinha um clube de dança chamado Clube 220. Não tinha quase
expressão. Mas com o surgimento da Associação Cultural do Negro, ele aproveitou a ocasião para também tomar uma posição [...] começaram a criar intriga. A
sigla da Associação Cultural do Negro era ACN. Então, eles começaram a dizer
que éramos a Associação Comunista dos Negros. Mas não estávamos ligando para
isso” (Leite e Cuti, 1992, pp. 164-165).
12
Algumas das associações negras listadas na correspondência são: Clube Ébano
(Santos), Grêmio Recreativo Familiar Flor de Maio (São Carlos), Sociedade Dansante [sic] Familiar José do Patrocínio (Rio Claro), Sociedade Luiz Gama (Jaú),
Clube Recreativo Luiz Gama (São João da Boa Vista), Sociedade Cultural Luiz
Gama (Bauru), Society Colored Pinhalense (Pinhal), Sociedade Beneficente 13
de Maio (Piracicaba), Clube Recreativo 13 de Maio (Itapetininga), Clube Recreativo 13 de Maio (Limeira), Sociedade Beneficente Cultural e Recreativa 28 de Setembro (Sorocaba), Sociedade Beneficente e Recreativa Jundialense 28 de Setembro (Jundiaí), entre outras. Ver a Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo
Ueim-UFSCar.
11
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
237
Fazer história, fazer sentido
simpatizantes da ACN. O ponto inicial era bom, mas não o
suficiente para atender as especificidades de suas atividades
e frequentadores: era necessário que funcionasse à noite,
para que seus membros pudessem, após o dia de trabalho e
estudo, participar das atividades.
Nesse sentido, a organização muda-se, antes de julho de
1956, para a rua São Bento, no edifício Martinelli. Embora haja agora uma elasticidade no tempo das atividades
noturnas, existe também algum receio inicial no aceite da
mudança. A ACN era uma entidade com diferentes propósitos, dentre os quais os de não partidarizar a causa do negro
(medo da desmobilização exterior, provocada pelo Estado
Novo) e, também, criar uma aura de respeito à imagem
pública do grupo que procurava representar. O Martinelli,
apesar da importância histórica, localização privilegiada e
horário propício, colocava em xeque, aparentemente, as
duas coisas.
238
Quando ele [José de Assis Barbosa] conseguiu aquele
espaço no prédio Martinelli, a gente ficou naquela dúvida
de mudar ou não. Porque o prédio Martinelli era
um lugar de má fama, um prédio em que famílias não
gostavam de ir. Lá dentro havia marginais, viciados... Nós
resolvemos, não havia outra saída. São Paulo só tinha
aquele prédio que funcionava a noite inteira. Lá nós não
tínhamos hora de fechar. O conjunto era no 16o andar.
No 17o havia a sede do Clube 220, dos que chamavam a
Associação Cultural do Negro de Associação Comunista dos
Negros [...] Havia comunistas no nosso meio, mas não era
permitido que se fizesse política dentro da entidade (Leite e
Cuti, 1992, pp. 169-170).
Vencidas as desconfianças iniciais em relação à nova
sede e ao nome, a ACN dá prosseguimento às suas atividades, havendo um intervalo de ano e meio para sua primeiLua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
ra grande atuação pública13. No ano de 1956, realiza uma
Quinzena 13 de Maio, junto com o Teatro Experimental do
Negro de São Paulo (TEN-SP, dirigido por Geraldo Campos de Oliveira, também membro da ACN). A Quinzena
se aliou à preparação da Primeira Convenção Paulista do
Negro, que era executada desde abril daquele ano. Entre
os diferentes teores de moções apresentadas à Convenção
Paulista, distinguiu-se a de Henrique Losinskas Alves, intelectual filho de migrantes lituanos e colaborador da ACN
(Angelo e Reipert, 1989; Leite e Cuti, 1992), propondo a
realização de uma Semana Nina Rodrigues, em comemoração ao antropólogo e médico nordestino, pioneiro do estudo negro e/ou africanista no Brasil.
Não foi bem aceita inicialmente14. Entretanto, a Semana ocorreu de 17 a 24 de julho de 1956, segundo a contracapa de Alves (1963). No primeiro dia, Losinkas Alves
pronunciou a conferência “A realidade de Nina Rodrigues”,
no auditório da Biblioteca Mário de Andrade. No terceiro
13
“A Associação Cultural do Negro iniciou suas atividades em 1955, depois da
aprovação do Estatuto Social. No primeiro artigo desse documento, ficava estabelecido que a ACN era uma sociedade civil, com a ‘finalidade de propugnar pela
recuperação social do elemento afro-brasileiro’. No terceiro artigo, ficava estipulado que a entidade visava: ‘a) coordenar, esclarecer e orientar em todas as atividades de caráter econômico, educacional, cultural, político e social, o elemento negro preferencialmente; b) estimular e desenvolver o pensamento cooperativista,
procurando instituir cooperativas econômicas e culturais, principalmente cooperativas de ensino; c) promover, na medida de suas possibilidades financeiras, a prestação de serviços de assistência social e jurídica; d) estimular a arregimentação à
base de famílias, para um maior congregamento, no sentido do permanente espírito de solidariedade e fraternidade; e) dedicar especial atenção e amparo à mulher e
à infância de maneira a consolidar as bases da educação como fator fundamental da
recuperação social do elemento afro-brasileiro’” (Domingues, 2007, p. 3).
14
“Mas foi ele o primeiro – o único mérito que ele teve. Porque as opiniões que
ele defendia com relação ao negro mais tarde foram contestadas como negativas
[...] Terminada a convenção, parecia que a ideia morria ali mesmo. Acontece que
o Henrique L. Alves começou a persistir para a realização do projeto. [...] Estabelecemos qual era o programa da Semana Nina Rodrigues, que começou com uma
exposição de objetos folclóricos, principalmente da cultura religiosa negra [...] O
Ironides Rodrigues quem fez o encerramento da semana, na sede da Associação. A
imprensa deu uma grande cobertura, por se tratar de um nome por muito tempo
esquecido” (Leite e Cuti, 1992, p. 166).
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
239
Fazer história, fazer sentido
240
dia, na antiga sede da ACN, o antropólogo baiano Édison
Carneiro fez nova conferência sobre Nina Rodrigues. No
penúltimo dia, Ironides Rodrigues, intelectual negro do
TEN, realizou outra conferência no auditório da Biblioteca Municipal.
É interessante notar, embora não se saiba exatamente o
que foi enunciado (com exceção o texto de Alves, publicado posteriormente pela ACN), a importância simbólica dos
lugares das conferências e de seus palestrantes. De acordo
com a documentação coligida no acervo da ACN, os diretores da associação tinham plena consciência disso. A preparação da Primeira Convenção Paulista do Negro era executada desde abril de 1956, tendo sido elaborado regimento
com vinte artigos dispondo sobre a organização do evento.
A diretoria da ACN enviou cartas-convite para, dentre
outros, o então governador do estado, José Porphyrio da
Paz que, em telegrama a Geraldo Campos de Oliveira, agradece pelo convite, mas afirma que não pode comparecer15.
Há aí uma estratégia de visibilidade e reconhecimento, que se repetiria ao longo da curta existência da associação. É possível encontrar, em outras ocasiões, respostas
dos governadores Jânio Quadros, José Porphyrio ou Carlos
Alberto Carvalho Pinto a solenidades e comemorações promovidas pela ACN16. Todos eles agradecem e não aceitam
os convites feitos. Então, cabe perguntar: visibilidade e reconhecimento almejados para qual público? Além da diretoria, composta de sujeitos ungidos em experiências políticas
e culturais anteriores, e da trupe do TEN-SP, com seus atores e escritores, quem mais frequentava a ACN? De acordo
com Oswaldo de Camargo17, à ocasião em que convivia e
15
Telegrama de José Porphyrio da Paz a Geraldo Campos de Oliveira, Coleção
Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
16
Telegramas na Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
17
Oswaldo de Camargo nasceu em Bragança Paulista, em 1936. É jornalista,
a­tuando simultaneamente na imprensa negra e nos jornais do grupo O Estado de
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
participava da associação, já no edifício Martinelli (entre
julho de 1956 e meados dos anos 1960, portanto):
Negros que têm uma casa boa mesmo, são dois, três.
Contam-se nos dedos. Não há um negro em política
militando. Militando não: não há um negro em cargo
político, de verdade. A história recente do negro é uma
história de domésticas. Aquelas meninas lindas estão ali,
quase todas são domésticas. Trabalham em casa de família,
raras professoras. De vez em quando uma professorinha,
muito difícil [...] Uma boa parte de negros trabalham
em empregos [de] funcionário público […] Você tem
que levar em conta que a Associação ela tem um impasse
tremendo. A intelectualidade, o grupo de intelectuais, era
um grupo minoritário. O grupo mais forte da Associação
era o grupo que me levou à Associação, que é o grupo
do convescote, do piquenique, do esporte, que era mais
forte que a Literatura [...] A Associação tinha crise de
aluguel, os sócios não pagavam a tempo. Era assim. Era
uma associação pobre, eram dois cômodos, no décimo
sexto andar18.
Todavia, embora o grupo literário/intelectual fosse
minoritário e apesar das limitações monetárias dos associados, a ACN se organiza para o ano de 1958, quando se
comemora o 70o. aniversário da Abolição da Escravatura. E
será nessa ocasião que muitos eventos relevantes para a discussão empreendida aqui se realizarão.
S. Paulo. Em 1959, publicou seu primeiro livro de poemas, Um homem tenta ser anjo
(com apresentação de Sergio Milliet). Em 1961, já pela ACN, publicou os 15 poemas negros, apresentados por Florestan Fernandes. Atuou nos jornais Níger, Mutirão
e Novo Horizonte, todos vinculados à ACN. Entre 1972 e 1987, publicou O carro do
êxito, A descoberta do frio, O estranho, A razão da chama (esses últimos são antologias de
literatura negra). Atualmente é consultor do Museu Afro-Brasil, de São Paulo.
18
Entrevista de Oswaldo de Camargo concedida ao autor em 29/07/2007, São Paulo.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
241
Fazer história, fazer sentido
O Ano 70 da Abolição
242
Apesar das dificuldades internas, entre fins de 1956 e início
de 1958, a diretoria da ACN se organiza para e faz saber
das comemorações em torno do que ficou simbolicamente batizado como o Ano 70 da Abolição. Se o quinquagésimo aniversário da data não pôde ser comemorado e utilizado publicamente, em razão da ditadura varguista; e o
sexagésimo não suscitou tantas agitações conhecidas, sendo
sublimado por outras atividades, é curioso observar o porquê
1958 se tornar uma data tão importante para frações do grupo negro. Ao que parece, do que é possível deduzir das fontes, não há força maior que o próprio contexto. Uma brecha
democrática, um conjunto de associações disponíveis, grupos
e sujeitos interessados, alguma receptividade interna e externa àqueles grupos em relação ao assunto. E, em particular à
ACN, tinha-se em mãos a possibilidade de estratégia de visibilidade maior aos seus feitos.
Ocorre a criação de um movimento cívico-cultural comemorativo do aniversário da abolição do trabalho escravo no
Brasil19, com um conjunto de entidades e sujeitos organizados, nem todos diretamente tocados pela questão negra. Os
procedimentos adotados vão desde dar ciência à sociedade,
de maneira ampla, de que se pretendia e o quê iria ocorrer,
até os pedidos de doação financeira (a bancos, entidades
etc.) para o evento efetivamente acontecer20. A organização
19
De acordo com carta do escritor Eduardo de Oliveira a Geraldo Campos de
Oliveira, de 13/05/1958. Documento da Coleção Associação Cultural do Negro,
Acervo Ueim-UFSCar. Correia Leite afirmará que “A primeira proposta de grande
impulso na Associação Cultural do Negro foi a de se comemorar o Ano 70 da
Abolição. Mas, para não se dizer que queríamos açambarcar as comemorações,
formamos uma comissão e foi lançado um pequeno manifesto. Ficou estabelecido
que a festa seria o ano inteiro com conferências e festivais lítero-musicais na sede,
festivais esportivos...” (Leite e Cuti, 1992, p. 171).
20
Nesse sentido que, por exemplo, a comissão organizadora envia ofício à secretaria de educação do governo do estado de São Paulo, em 24/02/1958, informando
as intenções e, porventura, solicitando apoio; recebe votos de auxílio da Câmara
Municipal de São Paulo; homenagem da Sociedade MMDC Veteranos de 1932,
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
atinge o ponto alto almejado distribuindo o manifesto lançado em São Paulo, em janeiro de 1958. O documento, reproduzido em Camargo (1972, p. 95), afirmava que:
Neste ano de 1958 em que comemoramos o 70 aniversário
da abolição da escravatura no Brasil, as organizações
culturais, esportivas, recreativas e as pessoas que a este
subscrevem, uniram-se para homenagear os grandes vultos
que, no passado, batalharam nas tribunas, na imprensa, nos
parlamentos, nos eitos, nas senzalas e nos quilombos por causa
tão justa e humana. [...] Tais vultos merecem a homenagem e
o respeito de todo o povo brasileiro, e, os ideais de liberdade
e independência que nortearam suas grandes ações, elevam
e enobrecem os sentimentos de humanidade de nossa gente.
[...] No momento em que se exaltam no Brasil os sentimentos
de nacionalidade, independência e liberdade, adquire ainda
maior oportunidade a comemoração do grande feito de
1888 [...] Através de sessões cívicas, conferências culturais,
representações de teatro, festejos populares, atividades
esportivas e recreativas, desejamos que todos os brasileiros
participem das festividades comemorativas do “O Ano 70
da Abolição”, contribuindo dessa maneira para elevar ainda
mais alto a chama democrática da igualdade jurídica e
social das raças.
Salve o Ano 70 da Abolição
São Paulo, janeiro de 195821
pela participação do negro na Revolução Constitucionalista; ou donativo do Banespa; além de uma carta do então vice-governador de São Paulo, General José
Porphyrio da Paz. Conforme documentação do Acervo ACN da Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
21
Assinam o documento: Geraldo Campos de Oliveira (Presidente da ACN), Solano Trindade (Diretor do Teatro Popular Brasileiro), Dalmo Ferreira (Diretor
do Teatro Experimental do Negro de São Paulo), Dr. Milton Freire de Carvalho
(Diretor da Associação Paulista dos Homens do Norte e do Nordeste), César Fernandes Leite (Presidente do Fidalgo Club), José Maria Bernardelli (Diretor do
Grêmio Estudantil Castro Alves) e José Maria César (Presidente da Sociedade Recreativa José do Patrocínio, de São Manuel).
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
243
Fazer história, fazer sentido
Trata-se de uma carta de tom conciliador e agregador.
Informa e convida, menos que denuncia e propõe. Mas tal
modulação discursiva foi eficaz em congregar elementos
tão díspares a um fato, considerado por aqueles ativistas
negros, de importância maior. Para José Correia Leite,
numa síntese, o saldo parece ser positivo de toda a articulação em torno do “Ano 70”, pois
244
Dentro daquele ano dos festejos do Ano 70 da Abolição,
a Associação conseguiu do governador do Estado, o Jânio
Quadros, uma colaboração. Ele não deu dinheiro, mas pôs
a gráfica do Estado à disposição da nossa entidade para que
fossem confeccionados os impressos para divulgação. Nós
tínhamos entrado em contato com vários intelectuais para
fazerem conferências, como o Sérgio Milliet, Artur Neves
e outros. Numa dessas conferências, feita na Biblioteca
Municipal, quem falou foi o Prof. Carlos Burlamáqui Köpke.
Ele discursou sobre André Rebouças, um negro pouco
falado, pouco conhecido [...] Quantos às publicações, depois
que terminaram as comemorações do Ano 70 da Abolição,
foi publicado o primeiro Caderno da série Cultura Negra,
contendo uma espécie de anais dos trabalhos apresentados
em 1958 (Leite e Cuti, 1992, p. 171, 173-174).
É também nesse ano que se declama o poema “Protesto”22
22
Alguns excertos: “Mesmo que voltem as costas/ às minhas palavras de fogo/
Não pararei/ Não pararei de gritar/ [...]/Senhores/ Atrás do muro da noite/
Sem que ninguém o perceba/ Muitos de meus ancestrais/ Já mortos há muito
tempo/ Reúnem-se em minha casa/ E nos pomos a conversar/ Sobre coisas amargas/ Sobre grilhões e correntes/ Que no passado eram visíveis/ Sobre grilhões e
correntes/ Que no presente são invisíveis/ [...]/Mas, irmão, fica sabendo/ Piedade não é o que eu quero/ Piedade não me interessa/ Os fracos pedem piedade/
Eu quero coisa melhor/ Eu não quero mais viver/ No porão da sociedade/ Não
quero ser marginal/ Quero entrar em toda parte/ [...]/ Eu quero o sol que é
de todos/ Ou alcanço tudo o que eu quero/ Ou gritarei a noite inteira/ Como
gritam os vulcões/ Como gritam os vendavais/ Como grita o mar/ E nem a morte
terá força/ Para me fazer calar!” (Camargo, 1986, pp. 50-53).
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
de Carlos Assumpção que, em memórias diversas, é considerado uma espécie de síntese daquele momento para uma
fração cultural organizada do meio negro paulista.
O [Carlos] Assumpção se tornou uma espécie de portavoz de reivindicações que estavam escondidas dentro
da Associação Cultural do Negro, descontentamentos:
com o Treze de Maio, a tentativa de uma visão crítica de
datas históricas... Tudo você vai encontrar no Protesto.
E, subjacente, aquela coisa: “Eu quero respeito, eu não
quero piedade”. Na verdade, ele começa já a trazer a
modernidade que vai aparecer na Literatura Negra. Que o
Cuti vai trabalhar muito isso. Cuti, Paulo Colina, Abelardo
Rodrigues [poetas dos anos 1970-1980]23.
A modulação discursiva dos versos de Protesto estará
formatada aos seus diferentes públicos, ao final dos anos
1950: a) intelectuais que buscavam alguma autenticidade
e especificidade da literatura negra no Brasil, como Sergio
Milliet (1966); b) sociólogos que estão tentando observar
alguma potência organizativa positiva nesse grupo social,
como Florestan Fernandes; c) a própria ACN, cujo um
dos pilares é a afirmação de uma respeitabilidade pública do grupo que representa; d) e, efetivamente, por fim,
homens e mulheres negros, funcionários públicos, professoras, empregadas domésticas, balconistas dos comércios
ou revisores de jornal, circulando por eventos da ACN e
outras organizações24.
Entrevista de Oswaldo de Camargo concedida ao autor em 29/07/2007, São Paulo.
Carta de Carlos Magalhães Júnior, do Centro de Estudos Afro-Brasileiros de São
Paulo ao Presidente da Associação Cultural do Negro, datada de 12/07/1958, em
que convida a ACN para prestigiar conferência de Henrique Alves e leitura do poema de Assumpção. Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
23
24
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
245
Fazer história, fazer sentido
Entre o assistencialismo e a autodeterminação, o tema
da integração do negro
Encravada no centro da capital paulistana, a ACN assume, então, progressivamente, grau de importância, capaz
de chamar atenção de uma parcela específica de intelec­
tuais paulistas, com interesses circunstanciais ou mais
duradouros.
No seu apogeu, [a ACN] chegou a ter mais de 700 sócios.
Tinha entre seus afiliados membros hoje conhecidos,
como o bibliófilo José Mindlin, os sociólogos Florestan
Fernandes e Otávio [sic] Ianni. O penúltimo, inclusive,
tornou-se o representante da entidade para fins culturais
(Domingues, 2007).
Além disso, Oswaldo de Camargo se recorda que
246
De repente, eu por pertencer à Associação Cultural do
Negro, que foi um momento importante, e lá estavam
alguns autores: o Sérgio Milliet era um frequentador. O
Affonso Schimidt, velhinho, já pouco antes de morrer,
conheceu. [...] Aí eu conheço a Colombina [Yde
Scholembach Blumenschein] na Associação Cultural do
Negro. Ela frequentava quando havia efemérides, quando
havia acontecimentos. Noite Luiz Gama, Noite Cruz e
Sousa, Noite Auta de Souza [...] o Florestan Fernandes
frequentava a Associação Cultural do Negro [...] estava
sempre lá vendo tudo isso: Noite Cruz e Sousa, Noite Luiz
Gama, Noite Nina Rodrigues [...] o prefácio [de 15 Poemas
Negros] saiu porque o Florestan frequentava a Associação
[...] Léon Damas veio ao Brasil e fez uma coletânea, uma
antologia de poetas. Quer saber onde estão os poetas? Vá
à Associação. [...] A Associação era o grande tambor que
repercutia tudo. Era muito respeitada! Nenhum estudioso
de questões negras deixava de ir à Associação [...] Basta
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
dizer o seguinte. Não é muito difícil entender não. Correia
Leite estava lá25.
Todavia, não foi apenas a eles que a ACN despertava
curiosidade. Léon Gontran Damas, para organizar com
poetas brasileiros a sua Nouvelle somme de poésie du monde
noir, editada em francês, inglês, português e espanhol pela
Présence Africaine (Damas, 1967), recorre àquele conglomerado de ativistas. Ali, segundo Camargo, toma conhecimento e recolhe os poemas de Natanel Dantas, Eduardo
de Oliveira, Carlos de Assumpção, Luiz Paiva de Castro,
Marta Botelho e do próprio entrevistado. Quase uma década antes, o poeta cubano Nicolas Guillén, a quem Solano
Trindade dedicou um poema em Cantares ao meu povo, também já havia travado contato com alguns dos frequentadores da agora ACN – em particular Correia Leite. A centralidade desse ativista é algo que merece ser estudado, em
outra ocasião.
Contudo, não apenas por intelectuais e escritores a
ACN ou seus membros eram procurados. Criada como um
fato político e cultural, por mais que seus mentores quisessem minimizar o primeiro adjetivo, ela se torna uma
referência do ativismo negro, sendo chamada a emitir opinião ou se posicionar sobre os mais diversos assuntos, em
diferentes momentos, acerca de questões que nem sempre
pôde dar a resposta esperada.
Foi o que pensou, por exemplo, a Associação Beneficente Pio XII – entidade beneficente, fundada em 1956,
que visava a “integração social e cultural da coletividade
negra do Brasil” – ligada à igreja católica. Entre 1956 e 1959
(datação imprecisa, infelizmente, do documento disponível), ela envia correspondência à ACN, no sentido que
essa seja uma das benfeitoras para aquisição de um Canal
Entrevista de Oswaldo de Camargo concedida ao autor em 29/07/2007, São Paulo.
25
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
247
Fazer história, fazer sentido
de Rádio e TV, bem como da organização de uma “Universidade Afro-Brasileira”26. A Associação Beneficente Pio XII
chega a formular um Plano de Integração Social e Cultural
da Coletividade Negra do Brasil, com doze pontos visando o
assistencialismo ao grupo negro27.
Não há notícia de que ele tenha sido levado a cabo.
Entretanto, na entrada dos anos 1960, o tema da integração
social e cultural do negro se torna, destarte, candente. É
possível afirmar que existe, portanto, uma ambiência social
para o que Florestan Fernandes desenvolveria naqueles
anos, publicando mais tarde A integração social do negro na
sociedade de classes, em 1964 (evidentemente, com sentidos e
interesses diferentes, no âmbito sociológico, do assistencialismo religioso; ou mesmo do associativismo negro).
248
26
“Empenhei-me nesta campanha, que me preocupa desde 1935, em favor dos
20 milhões de pretos abandonados no Brasil. Pelo programa da obra, pretendo
habilitá-los à vida. Esmola é paleativo que não resolveria o problema [...] Peço a
V. Excia. me auxilie a conseguir a Estação de Rádio e Canal de TV, como a organizar a Universidade Afro-Brasileira, números do programa que me possibilitarão
levar avante a campanha [...] Quem se põe à frente de uma campanha, é forçado
a lançar mão de todo recurso para vencer. [...] Dirigindo-vos esse apelo, em favor
da integração nacional e cultural da coletividade negra no Brasil, penso nos 20
milhões de brasileiros que esperam ainda sua redenção econômica. Para acelerar
a solução do problema [...] peço-vos a contribuição pessoal de Cr$ 1.000,00, que
unida às demais, possibilitará a aquisição do aparelho, a entrar imediatamente em
atividade, levando o abençoado nome de São Paulo a todos os recantos do país”
Excertos de cartas do Monsenhor Rafael Arcanjo Coelho para a ACN, s. d. Coleção
Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
27
“1) Promover o recenseamento da raça negra em todo o território nacional; 2)
Normalizar a situação social e civil de todos os elementos da raça; 3) Organizar
meios de subsistência e independência econômica para os elementos necessitados; 4) Conseguir com os governos da União e dos Estados glebas de terreno para
nelas localizar as famílias negras necessitadas; 5) Possibilitar aos negros o acesso ao
estudo médio e superior; 6) Criar o serviço de assistência social aos elementos da
raça; 7) Criar e fomentar na raça a mentalidade de sua capacidade e independência; 8) Conseguir a solidariedade de todos para esta obra genuinamente nacional;
9) Criar a Rádio Beneficência Popular e conseguir canal de TV para propaganda
deste programa; 10) Criar a Universidade Afro-Brasileira onde preferentemente estudem elementos da coletividade da raça negra; 11) Recrutar entre eles os
elementos que colaborem nesta obra; 12) Criar o Banco de Crédito Negreiro,
responsável pela manutenção do Plano”. Plano da Associação Pio XII. Coleção
Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
Tal ambiência pode ser pensada em chave tripla: I) do
ponto de vista social mais abrangente, o interesse de setores
da igreja católica com a questão racial e do negro marginal no pós-abolição; II) o debate, no âmbito das Ciências
Sociais, acerca das temáticas de marginalidade e mudança
social; III) a apropriação e discussão interna dos ativistas do
grupo negro. Nos estatutos de fundação da ACN, de acordo
com Petrônio Domingues, o tema da integração já aparece,
aliado ao problema da marginalidade social. Os presentes à
reunião criaram os estatutos para, entre outras razões, agregar pessoas naquela associação “que tivesse por finalidade
fundamental a desmarginalização e recuperação social de
todos os elementos que vivem em situação marginal, principalmente o negro” (Domingues, 2007).
Fragmentos da correspondência passiva e ativa da ACN
revelam ainda que há articulações de entidades negras,
local e internacionalmente, organizando-se num movimento pendular entre o assistencialismo e autodeterminação da figura do negro enquanto sujeito social, que se
discutirá a seguir.
África e cidadania como problemas (1960-1962)
Como e por quê aparece a imagem do continente africano no imaginário dos ativistas e escritores negros em São
Paulo, nos anos 1950 e 1960? Trata-se de um tema nebuloso. Um dos primeiros jornais da imprensa negra paulista, em 1915, se intitulava O Menelik, em homenagem ao rei
etíope Menelik II em sua guerra contra a Itália (Bastide,
1973; Ferrara, 1986). Igualmente nesses jornais, de acordo
com Ferrara e Correia Leite, aparecem referências esparsas sobre aqueles temas africanos, dada a dificuldade de
acesso à informação. Nos anos 1950, Luiz de Aguiar Costa
Pinto (1998, p. 257) afirma ter ouvido, durante o Primeiro
Congresso do Negro Brasileiro, relato sobre a penetração
da ideia de negritude entre os intelectuais negros responsáLua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
249
Fazer história, fazer sentido
veis pelo TEN (Abdias do Nascimento, Ironides Rodrigues).
Todavia, carece de maior pesquisa a circulação de imagens,
ideias, literatura, cultura e situação política dos países africanos entre os intelectuais e ativistas negros brasileiros
até a metade do século XX. No período posterior, a partir
dos anos 1970, já é melhor documentada e compreensível
(Alberti e Pereira, 2008; Silva, 2011).
No que diz respeito à ACN, seu acervo documental e
depoimentos de seus integrantes permitem suscitar algumas rotas de entrada. Por ocasião do Segundo Congresso
Mundial dos Escritores e Artistas Negros, que se realizaria
em Roma, de 28 de março a 2 de abril de 1959, organizado
pela Société Africaine de Culture (responsável pela Présence
Africaine), a ACN formula carta para jornais, cujos excertos
dizem o seguinte:
250
A “Société Africaine de Culture”, ciente da importância
da contribuição dada pelo elemento africano à cultura do
Brasil, acolheria com imensa satisfação uma representação
de nosso país. Por isto, solicitou à Associação Cultural do
Negro [...] para que [se] tornasse intérprete de tal desejo,
pedindo outrossim divulgar as notícias referentes ao
conclave e possivelmente tomar contato com o ambiente
cultural do país, assinalando as figuras que dele desejam
participar. Solicitamos então aos intelectuais negros e
aos estudiosos eventualmente interessados no assunto, o
envio de sua adesão, para que a ACN possa transmiti-la à
“Société Africaine de Culture”, recolhendo outrossim, os
pormenores sobre a viagem para conhecimento daqueles
que desejam participar do Congresso. […] A “S.A.C”, com
a qual a Associação Cultural do Negro deseja estabelecer
laços de amizade e de profícua colaboração, sugeriu
também a criação no Brasil de uma associação “Amis de
Présence Africaine”, com membros brancos e negros,
objetivando estudar os problemas ligados à cultura afroLua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
brasileira e a divulgação de todas as manifestações relativas
a ela [...] A Associação Cultural do Negro, aproveita então
esta oportunidade para lançar o seu apelo aos intelectuais
brasileiros, negros e brancos, para que seja fundado em São
Paulo um centro filiado à “S.A.C” digno de representar no
estrangeiro a cultura africana no Brasil. Com este objetivo
a A.C.N fará realizar dia 27 de fevereiro próximo, em sua
sede social, uma reunião para tratar do assunto, estando
desde já convidados todos os interessados [...] Finalmente,
o senhor Alioune Diop, Secretário Geral da “Société
Africaine de Culture”, solicita o apoio e a solidariedade da
intelectualidade brasileira, das associações culturais e das
entidades que congregam o elemento negro, traduzidos no
envio de mensagens por ocasião do congresso28.
Sarah Frioux-Salgas (2009, p. 12) esclarece que o projeto de Alioune Diop e do grupo da Présence Africaine, explicitado na carta acima, tinha ambições maiores, articuladas
com notáveis em outras partes do mundo, o que torna muito significativo o contato com a ACN no Brasil, legitimando-a como sua interlocutora autorizada:
A rede de trocas e difusão de ideias imaginadas por
Alioune Diop assume forma institucional depois de 1956,
com a criação da Sociedade Africana de Cultura (SAC).
Esta organização permitiria realizar certos objetivos
postos aos agentes do Primeiro Congresso de escritores
e artistas negros [...] Tratava-se de reunir os intelectuais e
artistas negros do mundo todo engajados no combate pelo
reconhecimento das culturas negras e da luta antirracista
e anticolonial [...] Sua direção foi confiada ao etnólogo
haitiano Jean Price-Mars. Josephine Baker pertencia ao
28
Carta a jornais do vice-presidente da ACN, Américo Orlando da Costa, datada
de 18/02/1959. Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
251
Fazer história, fazer sentido
grupo de vice-presidentes. Encontram-se ainda no conselho
executivo [...] muitas personalidade intelectuais e artísticas
negras de diferentes gerações: os norte-americanos, com
o músico Louis Armstrong, o sociólogo W. E. B du Bois,
o cantor Paul Robenson, o poeta Langston Hughes, o
escritor Richard Wright, a dançarina Catherine Dunham;
os africanos: o ator Habib Benglia, os escritores Alexandre
Biyndi (Mongo Beti), Amos Tutuola, Hampâthe Bâ, o
cientista Cheikh Anta Diop; os antilhanos: o filósofo Frantz
Fanon, os poetas Édouard Glissant e Aimé Césaire, o
escritor René Maran, o ativista George Padmore; entre os
malgaxes, o poeta Jacques Rabemananjara.
252
Consoante as memórias de Correia Leite, o então presidente da ACN “Geraldo Campos de Oliveira [...] tinha ido
ao Segundo Congresso de Escritores e Artistas Negros realizado em Roma. Foi como observador. [...] [Ele] trouxe de
lá uma porção de documentos, teses e outras coisas” (Leite e Cuti, 1992, p. 177). Para viajar, Oliveira teve de fazer
pedidos de concessão de passagens, em cortesia, à Panair
do Brasil e Alitália29. Sendo a SAC responsável pela realização desse segundo congresso, deve-se notar que o esforço
de Oliveira em viajar teve resultados.
No caminho da autoafirmação e determinação desses
sujeitos sociais há também uma espécie de descoberta do
continente africano, dentro da ACN, pela via cultural e política. O manifesto de 25 de março de 1960, quatro dias após
o Massacre de Shaperville30, assinado por diferentes entida29
Cartas de Geraldo Campos de Oliveira a Dr. César Pires de Carvalho, superintendente da Panair do Brasil e Dr. Francesco Trento, diretor superintendente da
Alitália, datadas de 16/03/1959. Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo
Ueim-UFSCar. Notar as proximidades das datas, do pedido e da realização do congresso, 25/03/1959.
30
Nome da cidade negra, localizada a 70 quilômetros de Joanesburgo, onde a
polícia sul-africana, em 21 de março de 1960, executou um massacre ao abrir fogo
contra cerca de 5 mil pessoas que participavam de um protesto pacífico contra a
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
des em São Paulo, criticando as ações da União Sul-Africana
faz com que haja um posicionamento da associação face ao
que ocorria naquele continente e nos EUA. O documento
dos ativistas deixa claro que:
As entidades e pessoas reunidas no memorável ato público
promovido pela Associação Cultural do Negro, na sede
da Associação Paulista de Imprensa, na noite de 25 de
abril [sic] do corrente ano, e que subscrevem o presente
manifesto, entendem que ninguém pode ficar indiferente
aos clamores por liberdade, justiça e democracia, partidos
das vítimas de massacre determinado pelo governo da
União Sul-Africana [...] Os acontecimentos sangrentos
de Shaperville, Langa e Carte Manor, representam o
ressurgimento de tudo aquilo contra o que a Humanidade
lutou duramente no último conflito mundial. O Mundo se
encontra diante de uma absurda tentativa de restauração
dos fundamentos ideológicos do nazifascismo, que são os
fundamentos do “apartheid”, com sua violenta negação
do direito à liberdade, à igualdade, à justiça e à vida aos
homens, mulheres e crianças negras sul-africanas. [...] A
ONU não pode continuar permitindo [que] permaneça
em seu seio, uma nação que pratica o genocídio e
intranquiliza o Mundo, estarrecido diante de manifestações
obscurantistas, características da Idade da Pedra Lascada
[...] Aceitar de braços cruzados os atentados contra a
Humanidade, cometidos na pessoa dos povos da África do
Sul, é aceitar a regressão à barbárie [...] Por isso, com base
nas convenções internacionais que o Brasil honradamente
subscreveu [...] entendemos de apelar para o governo
brasileiro, no sentido de que rompa definitivamente
Lei do Passe – que obrigava os negros da África do Sul a usarem uma caderneta
onde estava escrito onde eles podiam ir –, matando 69 pessoas e deixando feridas
outras 180. Considera-se que a brutalidade dessa ação chamou pela primeira vez a
atenção da opinião pública mundial para o Apartheid.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
253
Fazer história, fazer sentido
as relações diplomáticas e comerciais com a União SulAfricana, em defesa da Humanidade31.
Se, como afirma Correia Leite, “1960 foi considerado o Ano Africano [...] Aquela manifestação deixou os
negros aqui entusiasmados” (Leite e Cuti, 1992, p. 177)32,
é importante observar as ligações que se vão criando entre
a ACN e outros organismos com igual interesse. A 9 de
fevereiro de 1960, por exemplo, a União dos Caboverdeanos Livres, sediada em São Paulo, remete correspondência
de agradecimento à Associação por seu pronunciamento
contra a situação dos presos políticos das colônias portuguesas. Além disso,
254
vinha juntar as edições já publicadas do jornal “Portugal
Livre”, órgão da oposição ao Governo de Salazar, em cujas
colunas combatemos a tirania salazarista e procuramos
mostrar ao Mundo Civilizado quanto esse governo
representa de pernicioso para a Dignidade Humana33.
31
Manifesto lançado pela ACN, 25/03/1960. Também subscrevem pessoas ligadas
à Juventude Socialista, Frente Nacionalista de São Paulo, União Paulista de Estudantes Secundários, Teatro Experimental do Negro de São Paulo, Centro Acadêmico João Mendes, Federação dos Professores e Trabalhadores em Est. de Ensino
etc. Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
32
E ainda: “A Associação Cultural do Negro chegou a fazer um ato de protesto
contra a discriminação racial na África do Sul e na América do Norte, onde estava sendo iniciada a luta pelos direitos civis. Nesse ato da Associação também foi
evocado o problema africano geral e sugerida a ideia de se criar um comitê de
solidariedade aos povos africanos. Creio que essa proposta deve ter chegado à
África portuguesa, pois nós passamos a receber publicações do Movimento Popular para Libertação de Angola, não endereçado à Associação, mas ao Comitê de
Solidariedade aos Povos Africanos. Mas esse comitê, devido à falta de elemento
humano, com disposição para trabalhar, não se formou” (Leite e Cuti, 1992,
p.175, grifos meus).
33
Carta de Guilherme Morbey Rodrigues, presidente da União dos Caboverdeanos Livres a Américo Orlando da Costa, vice-presidente da ACN, datada de
09/02/1960. Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar. Sobre
Portugal Livre e a resistência antissalazarista em São Paulo, ver Silva (2000).
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
Internacionalmente, portanto, a questão africana e
segregação estadunidense se tornam um tema de interesse
para uma fração dos negros associados, naquele momento.
Inclusive, um tópico chamativo até mesmo literário, apreciado como uma grande novidade pelo ilustre desconhecido – embora muito falado – continente africano, como
afirma Oswaldo de Camargo:
Naquele tempo, não. Você não conhecia a África. A África
que você tinha era a África literária. Que foi traduzida
por “Navio negreiro” [...] [no] meu poema, “Meu
grito”, eu pergunto: “Oh, África! Oh, África!”34. É um
desconhecimento. A África que nós temos é uma África
mítica. É uma África de gravuras. [...] De repente que
começam [...] Vamos situar em 1960. Este jornal... [Níger]
eu sou o editor-chefe dele. [...] Então, a capa do Níger aqui
é o Patrice Lumumba. Então, a África começa a se agitar.
Começa a começar o movimento de independência na
África. Esse movimento de independência da África, vai
colocar a África, dar uma visibilidade maior, desperta o
interesse por gente... Aí chegam de Angola alguns rapazes
que chegam refugiados, vieram refugiados da África, de
Angola, falando português. Tanto que nos espantava o
sotaque lusitano deles. Eram dois, pelo menos. Um deles
era o, me lembro muito bem, Paulo Matoso. Eles vêm com
alguns livros africanos. Primeira vez que nós vimos alguns
livros vindos da África! Primeira vez, pelo menos para mim,
que eu deparo, que eu topo um africano. Um homem
negro africano. Para mim, o início de conhecer a África foi
aí. E foi mediante o Paulo Matoso, que me deu um livro
da Noêmia [Carolina Abranches de Souza Soares] – deu
não; emprestou um livro da Noêmia, que era uma poetisa
de Moçambique ou Angola, não vem ao caso agora – eu
Esse poema foi editado em Camargo (1961).
34
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
255
Fazer história, fazer sentido
talvez seja um dos primeiros autores que escreveu sobre um
poeta africano, no Novo Horizonte. [...] Porque daí começam
também Angola, movimento em Moçambique, Angola...
Isso repercute aqui. Até pela leitura dos jornais em geral.
Os jornais em geral começam a falar sobre isso. Porque, na
verdade, o que nós conhecemos melhor, nesse momento,
são os autores americanos. É natural. Por que? O cinema
americano trata do negro. As traduções que chegam: Filho
nativo [de Richard Wright], Langston Hughes... Richard
Wright, Langston Hughes, chegam aqui. A gente vai lendo
o pouco que chega. A Rua [Ann Petry], Donos do orvalho
[Jacques Roumain], que está lá, do René Maran... São livros
que todo mundo, todo negro que se preza como intelectual
procura ler esses livros. É aquela leitura que é leitura de
turma. Você tem que ler, senão não é da turma. Duvido que
algum negro candidato a escrever, na época, não tivesse
lido, não tenha lido o Filho nativo35.
256
Além de se pronunciar politicamente, a ACN, cujos
principais líderes e mentores se opunham à exclusividade
de uma associação negra ser meramente festiva ou de convescote, decide dar prosseguimento à organização de sua
Série de Cultura Negra, iniciada em 1958, após a comemoração do Ano 70. Na sequência da publicação de 15 poemas
negros, saem dois livros de Henrique Losinkas Alves (Cruz
35
Entrevista de Oswaldo de Camargo concedida ao autor em 29/07/2007, São
Paulo. Paulo Matoso, estudante e jornalista angolano. Acerca dele, há poucos dados informativos. Sabe-se que fez a revisão geral de Banzo de Eduardo Oliveira,
poeta negro paulistano (ver Oliveira, 1963), que tinha ligações com o MPLA (Movimento pela Libertação de Angola) e com o MABLA (Movimento Afro-brasileiro
pela Libertação de Angola), sendo preso em 1964 (ver Santos, 2010). Já Noêmia
Carolina Abranches de Sousa Soares (1927-2003) é moçambicana, tendo estudado
no Brasil e trabalhado em Lisboa, de 1951 a 1964, quando se exilou na França, devido à sua contestação ao governo de Salazar. Poeta e jornalista, ela engajou-se nas
lutas de libertação nacional africana, publicando artigos e viajando por diferentes
países daquele continente. Todos os jornais da imprensa negra paulista criados no
interior da ACN – Níger, Novo Horizonte, e Mutirão –, tiveram vida curta, de acordo
com Miriam Ferrara (1986) e Leite e Cuti (1992).
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
e Souza: o Dante negro e Nina Rodrigues e o negro no Brasil,
publicados, respectivamente, em 1961 e 1963) e um de
Nestor Gonçalves (Fatores determinantes da cultura afro-brasileira, lançado em 1962). A tentativa de se fazer uma série
se estanca, contudo, no quinto número. Observa Camargo
que “A Associação não tinha dinheiro para isso. Mal conseguia pagar aluguel, essa é a realidade. Quem bancava isso
era o próprio autor, geralmente. A não ser que ele achasse
alguém que bancasse no lugar dele”36.
A dificuldade das condições de manutenção dos projetos da ACN não obstou, entretanto, a intenção de realizá-los
ou as demandas que lhe chegavam até os primeiros anos da
década de 1960. As comemorações do centenário de Cruz e
Sousa são um exemplo disso. No relato de José Correia Leite sobre o assunto, percebe-se, duplamente, o esforço coletivo empreendido por membros da associação preocupados
com a questão cultural (não raro, sintetizada pela literatura) bem como a importância que a ACN conferia aos grandes feitos e aos grandes nomes.
Mas o mais importante deste ano foi quando nós estudamos
fazer o medalhão de Cruz e Sousa e colocar em praça
pública. Conseguimos um escultor que não cobrou nada
para fazer o medalhão, só cobrou o material. [...] Acabamos
escolhendo uma pedra bruta, barata. Daí foi a hora de saber
da prefeitura como é que a gente devia proceder para
colocar em praça pública. O Henrique L. Alves [...] Foi falar
com o doutor Freitas Nobre, então vice-prefeito [...][que]
foi à Associação e começou a fazer uma porção de objeções,
achando que o medalhão era muito pobre, dizendo que por
ele o medalhão estava desaprovado. Mas ele não podia dar a
última palavra [...]. O prefeito era o Prestes Maia. Nós
conseguimos descobrir um oficial de gabinete do prefeito,
Entrevista de Oswaldo de Camargo concedida ao autor em 29/07/2007, São Paulo.
36
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
257
Fazer história, fazer sentido
258
um tal de doutor Galo. Falamos com ele e ele, com a melhor
boa vontade, resolveu o assunto e o local escolhido ficou
sendo a Praça Dom José Gaspar, ao lado da biblioteca
municipal [...] O Henrique L. Alves se incumbiu de levar a
matriz em gesso do medalhão para a Academia Brasileira de
Letras e, nesse ensejo, convidou o doutor Austregésilo de
Athayde para vir a São Paulo inaugurar o medalhão, embora
muita gente do meio intelectual não acreditasse que ele
viesse. Mas ele aceitou o convite. [...] O medalhão ficou
pronto para ser inaugurado à tarde, como de fato
aconteceu. A boa vontade do presidente da Academia
Brasileira de Letras foi demonstrada pela maneira como ele
veio, de trem, com sua senhora [...] E ele foi à Associação e
viu a simplicidade da nossa sede. [...] Na Praça Dom José
Gaspar estava um número pequeno de negros e brancos,
inclusive o Florestan Fernandes, que tinha sabido do evento
na véspera, e o diretor da biblioteca que é ali do lado [...]
Eu comecei a sentir que o doutor Austregésilo de Athayde
estava constrangido. Porque uma festa daquela ninguém vai
olhar quem está promovendo, se é uma entidade de alto
nível cultural ou uma entidade de classe mais baixa. [...]
Mas, é de se lamentar que não tenha comparecido ninguém
da Academia Paulista de Letras, da União Brasileira de
Escritores ou do Instituto Histórico e Geográfico. Todas
essas entidades receberam convites da Associação Cultural
do Negro [...] A nossa sorte é que a sessão da Banda da
Força Pública estourou num toque de continência e desceu
dum carro o vice-governador Porfírio da Paz, que foi assistir
à inauguração. Aquilo deu uma nova alma ao presidente da
Academia, que fez um discurso muito inflamado [em que
afirma que] se tratava de uma entidade de gente pobre, sem a
importância de letrados, mas pondo em brios os intelectuais
do Brasil que iam deixar passar em brancas nuvens um evento
tão importante como aquele. Depois ele [...] pediu desculpas
em nome da Academia Brasileira de Letras, pelo erro de não
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
ter sido o Cruz e Sousa colocado no rol dos fundadores da
academia (Leite e Cuti, 1992, pp. 188-189).
Esse último longo relato de Correia Leite sobre como
se dá a inauguração do monumento a Cruz e Souza (hoje
destruído ou desaparecido)37, na praça Dom José Gaspar,
ladeando a Biblioteca Mário de Andrade com os bustos de
Camões e Dante, é exemplar na síntese do esforço coletivo
empreendido por uma fração cultural negra em São Paulo. A rememoração desse evento por Correia Leite denota
a preocupação de setores da ACN em positivar imagens e
figuras do passado, cristalizando suas memórias e demonstrando as contribuições do grupo negros em variados setores. Isso foi feito com o monumento à Mãe Preta, com o
Poeta do Desterro, o abolicionista Luiz Gama e com Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de despejo, um sucesso de
vendas lançado em 1960.
O Ano Cruz e Souza também demarca outras iniciativas
para as quais a ACN é acionada, evidenciado alguma efervescência no biênio 1960-1961. Por exemplo: em 1961, a
agente viagens (tour manager) Estela Grunebaum envia correspondência à associação afirmando que:
Temos recebido de nosso correspondente dos Estados
Unidos várias cartas, com referência consulta sobre vindas
ao Brasil de grupos e pessoas individuais de homens de
cor dos Estados Unidos [...]O desejo destas pessoas é vir ao
Brasil para intercâmbio de ideias e confraternização com os
associados daqui, e portanto, gostaríamos de saber quais
os programas que poderiam oferecer aos vossos irmãos do
Norte, a fim de que possamos recepcioná-los bem [...]38.
37
Desde 2002 ou 2003, o monumento a Cruz e Souza foi vandalizado, não tendo
sido restituído no local (Villa, 2004, p. A3; Abreu, 2003, p. 5).
38
Carta de Estela Grunebaum aos Exmos Srs. Da Associação Cultural do Negro,
29/08/1961. Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
259
Fazer história, fazer sentido
260
O estado das fontes só permite supor qual o grau de
excitação e apreensão causou semelhante missiva. “Era uma
associação pobre, constituída majoritariamente de funcionários e empregadas, raramente de professores”, já havia
dito Oswaldo de Camargo. A fração cultural interna era
minoritária. Não há notícia, nas memórias de Correia Leite
ou nas fontes pesquisadas em arquivo que, no caso de terem
vindo, os “irmãos de cor do norte” tenham efetivamente
passado pela ACN e sido “recepcionados bem”. Todavia, o
conjunto de ações empreendidas anteriormente por aqueles homens e mulheres os colocou num ponto significativo
de um mapa de visibilidade e importância social, vistos como
um ponto de referência, aos olhos de outros sujeitos
in­teressados em aspectos da vida do negro, ao menos em São
Paulo. No rodapé da carta, alguém da associação escreveu
um esboço de resposta a Grunebaum, que deveria conter um
programa social, cultural e profissional da ACN. Não há
menção, nos arquivos, sobre o envio da mesma.
Até 1964, portanto, um conjunto de ações e intenções
de destaque vão conformando o caminho da ACN e de
outras organizações negras em São Paulo, que podem ser
descritas através da documentação. Em 1961, por exemplo,
a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos39, através de seu então presidente, Raul Joviano do
Amaral, anuncia que no dia 15 de outubro daquele ano,
O Departamento Hospitalar da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário tem a satisfação de convidar Vv.
Ss.[...] a fim de prestigiarem com Vv. honrosas presenças o
lançamento da pedra fundamental do futuro “HOSPITAL
NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO”, a ser realizado
39
Sobre a Irmandade, ver Amaral (1991) e Quintão (2002). Consultada, a secretaria
da igreja, localizada no largo do Paissandu, em São Paulo, não soube confirmar a
informação deste documento ao pesquisador. E os trabalhos citados não tratam do
assunto, referindo-se a período anterior na trajetória da Irmandade do Rosário.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
às 11h20, no dia 15 de outubro, no terreno situado
à av. Marginal Esquerda, junto à Ponte da Vila Maria
[...] Na oportunidade será consagrado e inaugurado
valioso “CRUZEIRO”, confeccionado em madeira de lei,
testemunhando as melhores esperanças na conclusão de
obra destinada a bem servir a coletividade e a enriquecer o
sistema médico hospitalar do país40.
Embora haja atualmente um Hospital Nossa Senhora
do Rosário, na Vila Maria, em São Paulo, não há informação
sobre sua ligação com a Irmandade do Rosário dos Homens
Pretos. Talvez o hospital tenha sido erigido e essa ligação
se perdeu, por diferentes motivos. O fato importante é a
intenção presente na ação. Uma irmandade beneficente, de
corte étnico, existente desde 1711, e que se ocupa de tentar
criar um hospital direcionado ao grupo negro – assim como
ocorreu a outros grupos migrantes: portugueses, sírios-libaneses, italianos, israelitas, nipônicos. É um passo ousado,
em que as dificuldades seriam grandes, certamente (arrecadar fundos interna e externamente, médicos e enfermeiros,
manutenção do hospital, escapar da acusação de racismo às
avessas etc.).
Mas possuiria fundamentos mais concretos e imediatos,
para alguns militantes como José Correia Leite, por exemplo, que a tentativa de ser organizado um Congresso Mundial
da Cultura Negra em São Paulo, como se daria no ano seguinte. Em maio de 1962, a Comissão organizadora dessa iniciativa enviou comunicação à ACN. Estava associada à Associação
Beneficente Pio XII e fazia saber que
Temos a elevada honra de apresentar a V. Excia. o anexo,
programa das solenidades comemorativas do dia 13 de
40
Ofício n. 16-A, da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos,
assinado por Raul Joviano do Amaral, ao Presidente da ACN, 06/10/1961. Coleção Associação Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
261
Fazer história, fazer sentido
maio, no Parque São Domingos, Lapa, às 8,30 [...] e no
Teatro Municipal às 20 horas[...] primeiro número oficial
com que a Comissão Organizadora do 1o Congresso
Mundial da Cultura Negra e a Associação Beneficente
Pio XII festejam o lançamento simbólico do “Encontro
Estadual”, da instalação da Rádio Educadora Popular e
a visita à Exposição da Maquete da Universidade AfroBrasileira, tendo em vista o aludido Certame Cultural
pretendendo porem-se em contato com a sociedade
paulistana, para a evolução de seu programa beneficente da
coletividade negra do Brasil41.
262
Era do interesse dos organizadores que as cerimônias de Treze de Maio preparassem um “‘Encontro Nacional’ que se dará em novembro deste ano, tendo em vista
o 1o Congresso Mundial da Cultura Negra, pondo diante
dos novos olhos a realidade da situação”. A “realidade da
si­tuação” seria a precariedade das condições de vida do grupo negro em São Paulo e a necessidade urgente de setores
da sociedade fazerem algo. Lembre-se que dois anos antes,
no entanto, Quarto de despejo: diário de uma favelada, de
Carolina M. de Jesus (1960), já havia colocado semelhantes
temas no centro das discussões. Todavia, os organizadores
da solenidade, independentemente disso, estabeleceram o
seguinte programa do Congresso, datado de 13 de maio de
1962 e anexado ao convite acima, se iniciava com:
6h30 – Missa de ação de graça oficiada pelo Monsenhor
Rafael Arcanjo Coelho, diretor e fundador da Associação
Beneficente Pio XII. [...] 8h45 – No Parque São Domingos,
Lapa, ao lado dos terrenos da futura Universidade AfroBrasileira, recepção às autoridades: Dr. Tancredo Neves, 1o
41
Convite do Primeiro Congresso Mundial da Cultura Negra. Coleção Associação
Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
Ministro, Dr. Carvalho Pinto, Governador do Estado, Dom
Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta Cardeal Arcebispo
Metropolitano de S. Paulo, e outras personalidades ilustres
[...] Palavras de Saudação pelo Snr. Eduardo de Oliveira,
às autoridades e aos presentes em geral [...] Palavras do
Snr. Paulo dos Santos Matoso Netto em nome dos Bolsistas
Africanos. Srta. Ana Florença de Jesus, agradecendo os que
cooperam para a realização do 1o Congresso [...] 20h30
– No Teatro Municipal, realização de um Concerto pela
Banda Sinfônica da Força Pública do Estado, precedido de
uma Conferência a cargo do Prof. Dr. Florestan Fernandes,
da USP, cujos convites se encontram na bilheteria do Teatro.
“O orador oficial dessa solenidade foi o professor Florestan Fernandes. Ele fez uma conferência sobre o Movimento Negro em São Paulo e, por várias vezes, citou o meu
nome. Eu não estava presente porque não fui convidado”
(Leite e Cuti, 1992, p. 191), conclui José Correia Leite irritado com o fato, já que não concordava com a realização
do congresso, por achá-lo dispersivo e fora de propósito
aos interesses que julgava importantes ao grupo negro em
São Paulo.
Alcances e limites do associativismo negro: os testes da
realidade social, 1962-1964
Os passos dados até aqui, exemplificados nas ações anteriores, haviam sido extremamente largos. Apenas palavras
não seriam mais o bastante para a concretude das intenções. Algum lastro mais efetivo que os simbolismos dos atos,
discursos, convites, pessoas envolvidas etc. deveria apoiar
as ações da fração organizada negra em São Paulo. Poetas,
jornalistas e ativistas negros, orbitando a ACN, com suas
intenções mais progressistas e suas exposições de uma visão
social de mundo objetivando integração, equidade e respeito teriam que passar por alguma espécie de “teste da realiLua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
263
Fazer história, fazer sentido
264
dade”, em sua faceta mais dura: das possibilidades concretas, nos termos almejados, de inclusão e reconhecimento
plenos na sociedade envolvente, capazes de efetivar a emancipação e o ideal de uma Segunda Abolição.
Relações com intelectuais negros africanos, europeus
ou estadunidenses; ligações com ativistas e intelectuais da
metrópole paulistana não negros; um hospital beneficente;
Série Cultura Negra; Ano 70 da Abolição, Congresso Mundial de Escritores Negros, Ano Cruz e Souza, Congresso
Mundial da Cultura Negra etc.: aonde tudo isso iria levar
o grupo negro organizado paulista? Estaria ele já pronto
para o teste da realidade social, da mudez e obstaculização
provocados pelo racismo e marginalidade aos seus objetivos? E essa, a realidade, estaria pronta para reconhecê-lo da
maneira que era inquirida nas ações, poemas, ideias gestadas e proferidas em sessões solenes, reuniões, atos, cartas,
ofícios, posicionamentos?
Os anos subsequentes demonstraram que não. Se o protesto e a revolta são enunciados por uma fração organizada
negra – e bem recebidos, igualmente, por uma fração cultural não negra – com força em quase uma década de atuação
político cultural, o desafio de conferir alguma concretude
maior aos feitos caminhava justamente para alcançar círculos cada vez mais amplos. Entretanto, isso demandaria um
esforço de realização e compreensão do objetivo cada vez
maiores, por negros e não negros, sensibilizados por aqueles ideais. Todavia, o fim da ACN se mostrou problemático,
bem como daquele tipo de organização negra em São Paulo. José Correia Leite e Oswaldo de Camargo o enunciam
claramente, demonstrando os alcances e limites que foram
possíveis àquela fração político cultural organizada almejar.
houve um litígio entre a Associação e o proprietário do
conjunto. Mas antes de terminar, houve um esforço de um
grupo de moços. Um era professor de inglês, outro formado
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
em agrimensura e ótimo em matemática, e apareceu
também uma alemã, Dona Dóris, que se propôs a dar aulas
de inglês, no sentido dela poder aprender melhor o
português, mas infelizmente os alunos não puderam
devolver a ela o que ela queria receber em troca. Ela
acabou desistindo depois de ter tentado também fazer uma
ópera de Mozart adaptada para artistas negros [...] Teve
uma ocasião em que apareceu um pianista. Queria fazer um
recital e demonstrou para nós que tipo de espetáculo que
seria [...] Mas ele só deu aquela demonstração e, como viu
que nós não tínhamos condições de fazer o espetáculo
como ele queria, não voltou mais. Não tínhamos realmente
condições de empresariar espetáculos [...] Quando eu dei
pela coisa já era mil novecentos e sessenta e cinco. Eu
tinha completado meu tempo de serviço na prefeitura e
entrei com meu pedido de aposentadoria. Aí resolvi me
aposentar também da minha militância e acabei me
afastado da associação. [...] Não passou muito tempo eu
soube que a Associação tinha fechado. Soube também que
um grupo, tendo uma senhora advogada [...] o Eduardo
de Oliveira e Oliveira e outros, tinha levado a Associação
para o bairro da Casa Verde [...] Na Casa Verde a
Associação tentou funcionar, mas não conseguiu (Leite e
Cuti, 1992, pp. 192-194)42.
Para além dos problemas internos (dificuldade para
pagar contas e falta de apoio dos associados), o teste mais
duro da realidade envolvente é o golpe civil militar de 1964:
desmobiliza o que já era precário, amedronta os que tinham
O período 1965-1976 corresponde à etapa da ACN no bairro da Casa Verde em
São Paulo, coordenada pela advogada Glicéria de Oliveira e o sociólogo Eduardo
de Oliveira e Oliveira. Caracteriza-se por uma atuação modificada, valorizando
a interação com a comunidade do bairro, criando cursos de alfabetização, por
exemplo. Infelizmente, não se poderá tratar dessa nova fase aqui, com a profundidade e cuidado que ela merece.
42
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
265
Fazer história, fazer sentido
dúvidas, inviabiliza os tênues amparos que a ACN conseguiu estabelecer com intelectuais e pessoas, notadamente
progressistas e, algumas, de esquerda. Exemplo disso, é a
trajetória que assumirá Florestan Fernandes, o intelectual
mais próximo da associação, pós-golpe: cassado, exilado,
incapaz de ajudar pouco além de si mesmo (Sereza, 2005).
Outro é angolano Paulo dos Santos Matoso (Santos, 2010).
De acordo com Márcio Moreira Alves,
266
Após o golpe militar do 1o de abril de 1964, no País, todos
os estudantes africanos das colônias portuguesas, aqui
residentes, foram presos. A maior parte desses estudantes,
o Ministério das Relações Exteriores havia assegurado
permanência no País como bolsistas. A 1o de agosto de
1964 era preso outro nacionalista angolano, Paulo dos
Santos Matoso, que era trazido de São Paulo para depor
no Inquérito Policial Militar (IPM do Grupo Angolano),
nome atribuído pelos militares ao processo com que
pretenderam condenar os patriotas angolanos (Alves,
1996, pp.183-184).
Após o biênio 1962-1963, não há registros interessantes referentes à ACN para essa fase. Seu momento áureo,
concordam Clóvis Moura e Petrônio Domingues, se encerra
no pré-1964, com crises financeiras cada vez mais agudas.
O primeiro afirma que, na busca de se criar uma ideologia
para o grupo negro paulista, surgiram contradições e embates
internos, que culminariam em desordem financeira (Moura, 1983, p. 158). Refere-se a confrontos entre grupos que
pensavam a ACN com diferentes inclinações face à ideia
de cultura: política de afirmação e reconhecimento ou
divertimento e assistencialismo. O primeiro grupo era
minoritário, como reafirma Oswaldo de Camargo, numa
ilustração amarga:
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
O piano que lá estava [na sede] era um piano emprestado,
por uma moça chamada Marta. Quando a Marta ofereceu
[...] para nós ficarmos com o piano, a um preço baixíssimo,
e não pudemos ficar, aí foi que eu saí da Associação. De
revolta. Em lugar do pessoal pegar o dinheiro para comprar
o piano, pegaram o dinheiro para o esporte. Me deu um
desalento muito grande. O piano era importante ali. Então,
a Associação passava por percalços bem humanos, de falta
de dinheiro, deserção de gente que não via aquilo como
ideal etc.43
O outro teste da realidade pode ser atribuído à crise do
associativismo negro no século XX, fazendo surgir e desaparecer rapidamente distintas organizações, de importâncias consideráveis. Nas memórias de José Correia Leite são
enunciadas várias delas, algumas das quais ele próprio ajudou a criar. Entretanto, ao depender do impulso e carisma
de alguns sujeitos, a comunhão do ideal se prejudica, obstando assim a perenidade das ações e organizações, mesmo
em situações adversas.
Um prospecto, nos arquivos da ACN em São Carlos,
mostra o desenho feito por Clóvis Graciano para o primeiro
número da Série Cultura Negra (1958), referente ao Ano
70. Acima dele está escrito “Mês da Abolição”. Na contra
página, o imperativo “diga que a acn é uma fortaleza”. Entre
o dito e o fato, existe uma distância considerável, como concluiu Domingues: “Sem recursos para saldar as várias dívidas, a entidade foi obrigada a fechar suas portas em 1967.
Quase dois anos depois, foi reaberta, mas sem o mesmo
perfil e poder de articulação. Nessa nova fase foi presidida
por Glicéria Oliveira e passou a desenvolver ações de cunho
assistencialista, com cursos de alfabetização e madureza”
(Domingues, 2007, p. 6).
Entrevista de Oswaldo de Camargo concedida ao autor em 29/07/2007, São Paulo.
43
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
267
Fazer história, fazer sentido
Auxiliada pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira44, Glicéria conduz a ACN numa fase crítica, em que, após
o despejo do edifício Martinelli, ocorre a mudança para a
Casa Verde, em 1975. Um ano depois, a associação fecha
as portas, doando móveis e documentações para terceiros,
como atestam os “Instrumentos particulares de doação e
transferência” assinados pela presidente da entidade, em 5
de julho de 1976. No mesmo dia, Glicéria Oliveira enviou
Em entrevista a Conrado Pires de Castro, afirma o sociólogo José de Souza Martins: “Foi de minha turma e foi meu amigo Eduardo de Oliveira e Oliveira, intelectual refinado e culto, mulato, dos meus conhecidos e amigos o que melhor compreendia as gradações e as implicações da diferenciação social naquele estranho e
fascinante mundo da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia, perto da qual
morava. Ele era filho de um estivador negro do porto do Rio de Janeiro, que se
tornara líder sindical e, como ele mesmo dizia, pelego do trabalhismo de Vargas.
Eduardo tivera a melhor educação que alguém podia receber em sua época no
Rio de Janeiro. De vez em quando, seu pai embarcava-o na limusine de seu uso e
dava um passeio pelas docas, mostrava-lhe os estivadores que carregavam nas costas pesada sacaria e lhe fazia esta advertência: ‘Não se esqueça nunca de que o que
você é e virá a ser deve a essa negrada’. Eduardo não esqueceu. De vez em quando
convidava seus amigos negros e vários de nós, que vínhamos ‘de baixo’, e também
alguns professores, artistas e intelectuais para uma mesa de queijos e vinhos finos
em seu apartamento para, no estilo das velhas famílias, um sarau de conversação
culta. Organizou para negros do bairro da Casa Verde uma escola, para a qual convidava professores da USP, com razão convencido da função emancipadora dessa
ressocialização. Escreveu uma peça teatral emblemática, a cuja estreia compareci,
sobre as contradições e as armadilhas da ascensão social no meio negro – e, agora,
falamos nós –, dirigida e apresentada no Teatro do Masp por sua amiga, a atriz
Teresa Santos. O título da peça foi inspirado num incidente ocorrido, que presenciei, no prédio de Filosofia e Ciências Sociais, na Cidade Universitária. Eduardo
organizara um seminário sobre o negro, numa das salas, para o qual convidara
vários professores da Faculdade de Filosofia e vários negros. Uma das professoras,
ao terminar sua exposição, que foi a primeira, explicou que precisava se retirar,
pois tinha outro compromisso. Ela já estava na soleira da porta quando Eduardo
pediu-lhe que voltasse, pois tinha algo importante a dizer. E disse mais ou menos
o seguinte: “Nós (negros) passamos séculos ouvindo vocês. Quando chega a hora
de falarmos, vocês dizem que não têm tempo para nos ouvir”. Ela ficou muito embaraçada com a interpelação inesperada, desculpou-se, disse que não era nada daquilo e foi embora. Desiludido com o oportunismo e a precedência das aspirações
de ascensão social e de branqueamento dos negros que o cercavam no projeto da
Casa Verde, Eduardo suicidou-se, deixando-se morrer de fome e sede, trancado
em seu apartamento, a alguns passos da velha Faculdade de Filosofia” (Castro,
2010, pp. 239-240). A escola a que Martins se refere é a transferência da sede da
ACN para a Casa Verde. O acervo de Eduardo de Oliveira e Oliveira se encontra
na Ueim-UFSCar.
44
268
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
carta notificando os membros remanescentes da ACN acerca do encerramento das atividades da associação. A ela respondeu o bibliófilo e empresário José Mindlin, em papel
timbrado de sua indústria, a Metal Leve, na missiva citada
abaixo, digna de nota e perguntas: ele e outros membros
poderiam ter ajudado, ao menos, na crise financeira? Ou
o projeto já tinha se esboroado, a ponto de não contemplar
mais apoios? Que grau de vinculação ou de alcance colaborativo, de fato, possuíam os membros não negros da associação?
Nessa nova fase, que identificação haveria, entre os membros
negros e não negros, com os projetos atuais da ACN?
Prezada Senhora [...] Recebi sua carta de 5 do corrente
comunicando-me o encerramento das atividades da
Associação Cultural do Negro, e só posso dizer que lamento
profundamente que os amigos tenham sido levados a uma
tal decisão, pois a Associação vinha fazendo um trabalho
extremamente útil e meritório. [...] Se as dificuldades que
vocês atravessaram não lhes tirarem totalmente o ânimo
e vocês decidirem partir para alguma outra iniciativa
semelhante, podem contar com a colaboração que esteja ao
meu alcance45.
José Correia Leite tem razão em afirmar que, até aquele
momento, “a ACN foi a que teve vida mais longa entre as
entidades que existiram com a finalidade de realizar uma
obra de levantamento histórico e social do negro” (Leite e
Cuti, 1992, p. 195). Longeva, porém esquecida. Tratou-se
de um empreendimento coletivo surgido, simultaneamente, da adversidade e necessidade históricas (o IV Centenário e a necessidade do “elevamento” do negro, da crítica e
posicionamento contra sua marginalidade), capaz de enga45
Carta de José E. Mindlin a Glicéria Oliveira, 30 de jul. 1976. Coleção Associação
Cultural do Negro, Acervo Ueim-UFSCar.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
269
Fazer história, fazer sentido
270
jar num curto intervalo um conjunto de homens e mulheres, suas ideias e energias, em torno de uma missão comum.
Depois da Frente Negra Brasileira, é o empreendimento
político cultural mais notável, sem fim religioso ou apenas
recreativo, do negro em São Paulo, até meados da década de 1970, antecedendo a reorganização do Movimento
Negro, a partir de 1978. Dela surgiu, por exemplo, o Cecan
em 1976 e, através de alguns de ex-membros da ACN, se
daria a contribuição para a fundação dos Cadernos Negros
(publicação literária editada desde 1978 até os dias correntes). Os novos agentes do Movimento Negro Brasileiro, em
São Paulo, em alguma medida recorreram à experiência
pregressa das antigas organizações, mesmo que para tentar
não repetir seus equívocos, dentre as quais, a ACN.
Na tensa relação de fazer história e fazer sentido, a ACN
procurou marcar um lugar importante para o grupo negro
paulistano, tentando se por em compasso com o andamento
das transformações da sociedade, abrindo uma brecha, às
suas custas e às expensas de poucos apoios de alguns intelectuais não negros, para cravar no cenário da modernidade
precária emergente de São Paulo, uma imagem do negro
alternativa à da escravidão, que fosse reivindicativa, crítica,
propositiva e combativa. Os condicionamentos sociais para
sua produção foram determinantes para reafirmar a marginalidade da iniciativa cultural negra, embora tenha sido
capaz de, fato raro, alçar um público não endógeno, num
momento favorável, em aberto, com disposições democráticas.
Correndo por fora e forçando a sua visualização num
lugar diferente do secundário e marginal, os ativistas, intelectuais e escritores negros estavam em pugilo, em diferentes patamares, com a realidade social. Ela os desafia e os
testa, na mesma medida em que eles executam ação semelhante. Nesse movimento, se desenvolve uma luta social,
composta de ações práticas (atos, eventos, comemorações)
e gestações de ideias-força (negritude, descoberta do conLua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
tinente africano, poemas etc.) que explicitam a tensa situação do grupo negro paulistano em meados do século passado. Embora beire à teleologia frente a uma história de rastros e escombros, não se pode furtar a inquirir aonde tudo
teria levado, com sucesso, o grupo negro organizado. Se
não conseguiram ir além, pelos diversos motivos apontados
anteriormente, não pode ser desprezado o que se logrou
fazer e se ousou propor.
Mário Augusto Medeiros da Silva
é doutor em Sociologia pela Unicamp.
Referências bibliográficas
ABREU, I. E. 2003. “Vandalismo cultural: raiva e crime”. Jornal da UBE, no
103, p. 5.
ABUD, K. M. 1985. O sangue itimorato e as nobilíssimas tradições. A construção
de um símbolo paulista: o bandeirante. Dissertação de mestrado. São
Paulo: FFLCH-USP.
ALBERTI, V.; Pereira, A. A. 2008. Histórias do movimento negro no Brasil:
depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas.
ALVES, M. M. 1996. Torturas e torturados. Disponível em <www.marciomoreiraalves.com/downloads/torturas-e-torturados.pdf>. Acesso em
05/10/2009.
ALVES, H. L. 1963. Nina Rodrigues e o negro do Brasil. São Paulo: Associação
Cultural do Negro.
AMARAL, R. J. 1978. “Roger Bastide: no coração do negro”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, no 20, p. 126-129.
. 1991. Os pretos do Rosário de São Paulo: subsídios históricos. São Paulo: João Scortecci.
ANGELO, A.; REIPERT, H. J. 1989. Henrique L. Alves: um agitador cultural. s.l., s.e.
ARRUDA, M. A. N. 2001. Metrópole e cultura: São Paulo no meio século XX.
Bauru: Edusc.
BASTIDE, R.; FERNANDES, F. 1955. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Anhembi.
BASTIDE, R. 1973. “A imprensa negra do estado de São Paulo”. In: Estudos
afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva.
BASTOS, E. R. 1988. “Um debate sobre a questão do negro no Brasil”. São
Paulo em Perspectiva, vol. 2, no 2, pp.20-26.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
271
Fazer história, fazer sentido
272
BARBOSA, M. 1998. Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo:
Quilombhoje.
BICUDO, V. L. 2010. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Editora Sociologia e Política.
CAMARGO, O. 1961. 15 poemas negros. São Paulo: Associação Cultural
do Negro.
. 1972. O carro do êxito: contos. São Paulo: Martins.
. 1986. A razão da chama: antologia de poesia negra contemporânea.
São Paulo: GRD.
CARDOSO, F. H. 2008. “Uma pesquisa impactante”. In: BASTIDE, R.; FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global.
CASTRO, C. P. 2010. “Luiz Pereira e sua circunstância: entrevista com José
de Souza Martins”. Tempo Social, vol.22, no 1, pp. 239-240.
COSTA PINTO, L. A. 1998. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa
sociedade em mudança. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
DAMAS, L.G. 1967. Nouvelle Somme de Poésie du Monde Noir. Présence
Africaine, n. 57.
DOMINGUES, P. 2007. “Associação Cultural do Negro (1954-1976): um
esboço histórico”. Comunicação apresentada no XXIV Simpósio Nacional de História. São Leopoldo: Unisinos.
. 2008. A nova abolição. São Paulo: Selo Negro.
DUARTE, P. 1947a. “Negros do Brasil”. O Estado de São Paulo, 16 abr., p. 5.
. 1947b. “Negros do Brasil”. O Estado de São Paulo, 17 abr., p.6
FERNANDES, F. 1977. “Em busca de uma sociologia crítica e militante”. In:
A sociologia no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes.
. 1978. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática.
. 2007. “Poesia e sublimação das frustrações raciais”. In: O negro no
mundo dos brancos. São Paulo: Global.
FERRARA, M. N. 1986. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo:
FFLCH-USP.
FERREIRA, A. C. 2002. A epopeia bandeirante: letrados, instituições, invenção
histórica (1870-1940). São Paulo: Ed. Unesp.
FRIOUX-SALGAS, S. 2009.“Présence Africaine, une tribune, un mouvement, un réseau”. Disponível em <http://gradhiva.revues.org/1475>.
Acesso em 10/11/2010.
JESUS, C.M. 1960. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo:
Francisco Alves.
LEITE, J. C.; Cuti. 1992. ...E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura.
LOFEGO, S. 2004. IV Centenário da cidade de São Paulo: uma cidade entre o
passado e o futuro. São Paulo: Annablume.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
Mário Augusto Medeiros da Silva
MAIO, M. C. 1997. A história do projeto Unesco: estudos raciais e ciências
sociais no Brasil. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Iuperj.
MILLIET, S. 1966. “Alguns aspectos da poesia negra”. In: Quatro ensaios.
São Paulo: Martins.
MOURA, C. 1983. “Organizações negras”. In: BRANT, V. C; Singer, P.
(orgs.). São Paulo: o povo em movimento. São Paulo: Cebrap.
NASCIMENTO, A. [1968] 1982. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
OLIVEIRA, E. 1963. Banzo. São Paulo: Obelisco.
PAULINO, J. 2007. O pensamento sobre a favela em São Paulo: uma história
concisa das favelas paulistanas. Dissertação de mestrado. São Paulo:
FAU-USP.
PINTO, R. P. 1993. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. Tese
de doutorado. São Paulo: FFLCH-USP.
QUINTÃO, A. A. 2002. Irmandades negras: outro espaço de luta e resistência
(São Paulo: 1870-1890). São Paulo: Annablume.
SEREZA, H. C. 2005. Florestan: a inteligência militante. São Paulo: Boitempo.
SANTOS, J. F. 2010. Movimento afro-brasileiro pró-libertação de Angola. “Um
amplo movimento”: relação Brasil e Angola de 1960 a 1975. Dissertação
de mestrado. São Paulo: PUC.
SILVA, J. M. F. 1994. Centro de cultura e arte negra: trajetória e consciência
étnica. Dissertação de mestrado. São Paulo: PUC.
SILVA, D. M. 2000. A ética da resistência: os exilados antissalazaristas do “Portugal Democrático” (1956-1975). Dissertação de mestrado. Campinas:
IFCH-Unicamp.
SILVA, M. A. M. 2010. “Relações entre ativistas negros e sociólogos uspianos, anos 1950 e 1960”. Comunicação apresentada no II Seminário de
Sociologia e Política UFPR. Curitiba: UFPR.
. 2011. A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica
no Brasil (1960-2000). Tese de doutorado. Campinas: IFCH-Unicamp.
VILLA, M. A. 2004. “A destruição de uma biblioteca”. Folha de S. Paulo, 2
jun., p. A3.
VILLAS-BÔAS, G. 2006. “Fazer ciência, fazer história (Guerreiro Ramos,
Florestan Fernandes e Costa Pinto)”. In: Mudança provocada: passado e
futuro no pensamento sociológico brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. FGV.
Lua Nova, São Paulo, 85: 227-273, 2012
273
artigo
O Império é que era a República: a monarquia
republicana de Joaquim Nabuco
Christian Edward Cyril Lynch
Eu era monarquista porque a lógica me dizia que não se
devia absolutamente aproveitar para nenhuma fundação
nacional o ressentimento do escravismo; por prever que
a Monarquia Parlamentar só podia ter como sucessora
revolucionária a Ditadura Militar, quando sua legítima
sucessora evolutiva era a Democracia Civil; por pensar que
a República no Brasil seria a pseudorrepública que é em
toda a América Latina. Eu dizia que a República não
poderia funcionar como governo livre; e que, desde o dia em
que ela fosse proclamada, desapareceria a confiança, que
levamos tantos anos a adquirir sob a Monarquia, de que a
nossa liberdade dentro da lei era intangível.
(Nabuco, 1999, p. 60)
O pensamento de Joaquim Nabuco pode ser compreendido
grosso modo como dividido em três períodos: o abolicionista (década de 1880); o monarquista (década de 1890); e o
panamericanista (década de 1900). A fase mais festejada é,
sem dúvida, a primeira. Há vinte anos celebra-se o Nabuco de Discursos parlamentares, O abolicionismo, a Campanha
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
O Império é que era a República
278
abolicionista do Recife e O erro do imperador como um verdadeiro herói, tendo a academia o elevado à justa condição
de precursor do pensamento social brasileiro. Nessa celebração, Nabuco costuma ser apresentado como um social-democrata avant la lettre cuja visão arguta da sociedade
brasileira lhe teria permitido enxergar, num meio adverso
e conservador, os males decorrentes de nossa má-formação,
bem como mobilizar a sociedade civil da época para forjar
um país mais justo, mais solidário, mais cidadão. Em contraposição a esse Nabuco da primeira fase, aquele da segunda
costuma ser lido em chave diametralmente oposta. Tendo
abandonado sua preocupação social-democrata, depois de
1889 Nabuco teria chafurdado num lamentável conservadorismo, opondo-se à propaganda republicana e afogando as
mágoas da queda da monarquia nos braços do catolicismo
militante. Ou seja, virara um reacionário. A mesma má-vontade se transmite à qualificação de sua produção intelec­
tual, como a Resposta às mensagens de Recife e de Nazaré, Por que
continuo a ser monarquista, Balmaceda, A intervenção estrangeira
na revolta de 1893, O dever dos monarquistas e, finalmente, Um
estadista do império. A despeito dos elogios ao mérito artístico
e historiográfico dessa última, ou a algumas das observações
de Balmaceda, a impressão geralmente publicada é a de que,
do ponto de vista político, tais obras não passariam de propaganda sem valor, expressão de saudosismo monarquista
ou despeito aristocrático. Resultado: celebra-se o Nabuco
abolicionista, porque “progressista” e “moderno”, e detrata-se o monarquista, porque “atrasado” e “conservador”.
O que teria acontecido com Nabuco, tornado a sombra
de si mesmo? Embora alguns tenham se limitado a assinalar
a mudança1, houve quem arriscasse explicações. Para um
1
Esta é a posição de Ricardo Salles, que traça uma das mais lúcidas interpretações
sobre o processo político de passagem da Monarquia à República (Salles, 1996). Em
seu artigo, porém, refere-se ao fato de que Nabuco teria abandonado a ação cidadã
– começada pelo abolicionismo – para abraçar uma posição conservadora e elitista
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
de seus biógrafos, Luís Viana Filho, Nabuco sofria de um
romantismo incurável, que o levava a um excesso de imaginação idealista. Essa, na verdade, era a imagem que o
pragmático conservadorismo da Primeira República tinha
do liberalismo progressista em geral e de Nabuco em particular: “tímido”, “ingênuo”, “vacilante”, “sentimental”, “iludido”, “idealista”, são alguns dos epítetos que lhe reservam
o pouco generoso biógrafo. O monarquismo de Nabuco era
uma “ilusão”, na qual “simultaneamente residia a fraqueza
do político, que não via claro, e a força do idealista, que
precisava nutrir-se de todas as quimeras” (Viana Filho, 1952,
p. 185). Para o crítico literário Antonio Candido, por sua
vez, o conservadorismo de Nabuco tinha outra origem: ele
residia no seu “aristocratismo crônico”. A explicação passava agora pelo crivo marxista. Embora tivesse conseguido
“sair do círculo de interesses de sua classe” para tornar-se
um “radical” na década de 1880, depois de 15 de Novembro teriam agido sobre Nabuco “os atavismos de classe”,
em razão dos quais “ele passou ao liberalismo atenuador de
Um estadista do império, elaborado longe do povo, em diálogo tácito com as sombras de um passado que interferiu em
suas ideias”. Para piorar, ao tornar-se pan-americanista,
Nabu­c o não teria percebido “que o imperialismo norte-americano era tão grave no plano externo quanto fora
a escravidão no plano interno”. Nessa leitura, portanto,
Nabuco não se tornou conservador porque sempre o fora,
em razão de seu vínculo com a classe aristocrática; sua participação no abolicionismo é que representara um desvio.
Conclusão: Nabuco havia sido um “radical temporário”, voltando depois à sua posição “conservadora” (Candido, 2004,
p. 200). Na década de 1980, o primeiro grande estudioso de
seu pensamento político aventou uma hipótese mais elabo(Salles, 2000). Em sua obra especificamente sobre Nabuco, porém, Salles privilegia
mais a dimensão sócio-historiográfica do que a política (Salles, 2002).
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
279
O Império é que era a República
rada: a de que Nabuco teria “perdido o bonde da história”.
Segundo Marco Aurélio Nogueira, “alinhando-se incondicionalmente com o Império, Nabuco deixava de revelar que
as mudanças em curso no país – embora sem força suficiente para romper com o caráter conservador do processo global – exigiam um reordenamento político institucional que
ultrapassava a monarquia” (Nogueira, 1984, p. 159)2.
Mais recentemente, a interpretação “classista” de Antonio Candido foi retomada e atualizada por Angela Alonso.
Nabuco surge aí como um aristocrata, ligado por razões
contingentes ao “reformismo” do final do Império (Alonso,
2002). O elemento que explica a dedicação do deputado
liberal à sorte dos escravos – e que faltava no esquema interpretativo de Candido – é a sua “vaidade”:
280
Quincas consolidava sua combinação duradoura de
melancolia e narcisismo. Era enamorado de si mesmo, mas
vivia mal a solidão. Precisava confirmar suas qualidades
por meio do afago e da recepção calorosa de um público.
Esse sentimento o encaminhou para a conquista do apreço
alheio, das mulheres, como dos homens, não só dos amigos,
como dos adversários, dos íntimos e das multidões (Alonso,
2007, p. 37).
Em outras palavras, Nabuco só se interessa pelos escravos por um capricho estético, pois que vê neles um instrumento de sua vanglória – numa palavra, de sua vontade de
aparecer. Nesse ponto, Alonso retoma a interpretação de
Candido: a abolição da escravatura, a queda da Monarquia
e o advento da República teriam despertado em Nabuco
“seu tradicionalismo de origem” (Alonso, 2007, p. 233).
2
O posicionamento de Nogueira a esse respeito se matizou consideravelmente
em seus últimos trabalhos, notadamente no artigo de 2000 e na introdução à segunda edição de sua obra de 1984, datada de 2010, de cuja perspectiva se aproxima o presente artigo.
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
Por isso mesmo, sua obra da década de 1890 teria passado
a refletir esse caráter de propaganda aristocrática contra os
“arrivistas”, os “democratas” que haviam tomado o poder
(Alonso, 2009a, 2009b). Nabuco se tornara um “ressentido”,
um “despeitado”, qualidades negativas que se refletiram na
obra escrita durante a década, que não passariam de miserável propaganda monarquista.
Parece-me que diversos equívocos predominam nesses
enfoques, entre os quais a falta de familiaridade com a cultura liberal Oitocentista; um intencionalismo mal-entendido, descontextualizado ou anacrônico; a persistência de
métodos reducionistas que aprisionam seu pensamento nas
malhas do psicologismo ou dos supostos vínculos de classe. Não há aqui espaço para discuti-los como convém. Basta
por ora salientar que a maioria deles decorre de uma interpretação de corte evolucionista e positivista da passagem
da Monarquia à República, que nesses enfoques serve de
pano de fundo ao exame do “segundo Nabuco”. Depois
de instaurado o novo regime, ela encontrou o seu primeiro modelo acabado na História constitucional da república dos
Estados Unidos do Brasil, de Felisbelo Freire – na época o
principal defensor intelectual da ditadura florianista contra
os ataques a ela dirigidos por Rui Barbosa e pelo próprio
Joaquim Nabuco. Essa interpretação – que pode ser inscrita
na tradição “luzia” em contraposição àquela cuja denúncia
anda na moda, a “saquarema” (Mello, 2001) – postula, em
suas linhas gerais, que o Império era um bloco de instituições surgidas de circunstâncias contingentes e só subsistiu
enquanto cumpria papéis compatíveis com o baixo desenvolvimento socioeconômico da sociedade brasileira, inclusive o escravismo. Como tal, a Monarquia estava fadada a ser
substituída por uma moldura institucional mais moderna,
fatalmente republicana. A Monarquia unitária é apresentada como uma continuação disfarçada do período colonial;
um desvio de rota transitoriamente útil que se tornara,
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
281
O Império é que era a República
282
porém, ao cabo de certo tempo, uma pedra no progresso
nacional, natural e felizmente superada pela República
federativa, verdadeiro advento da modernidade no Brasil.
Tanto assim que, a respeito dos acontecimentos de 15 de
Novembro, evita-se falar em golpe militar, preferindo-se a
eufemística expressão “proclamação da República” – como
se tratasse de uma mudança tão natural ou fatal quanto a
transformação da lagarta em borboleta3.
Atualizada e adaptada por jacobinos, perrepistas e castilhistas, essa interpretação foi depois abraçada por parte
do mainstream acadêmico marxista, que substituiu o evolucionismo/positivismo pelo materialismo histórico sem alteração substantiva dos traços assinalados: caráter acidental
da Monarquia no Brasil; relação indissociável da Monarquia
com a centralização política, a ascendência do Poder Moderador e a vitaliciedade do Senado; superação do Império
como telos, em virtude de um imperativo modernizador.
Essa interpretação luzia da passagem da Monarquia à República tem dificultado sobremaneira, quando não impedido, uma avaliação serena da obra nabuqueana no período,
condenada pelo evolucionismo/positivismo por ser liberal, e pelo marxismo, por ser conservadora. Ela confere ao
advento desse regime um caráter falso de necessidade histórica, na medida em que confunde dois objetos distintos
de análise: a oligarquização ou democratização como processo histórico, isto é, conjunto de causas e consequências
de um processo de mudança social, que teria um “sentido”, e a
instauração da República enquanto modalidade de mudança,
resultante de uma dinâmica particular e acidental de ação
3
Isso sem falar na eventual ilusão de que o jacobinismo pudesse ter representado uma alternativa democrática ao desfecho oligárquico, quando se aproximava
mais de um movimento de índole cesarista, sectário e autoritário – uma “direita
revolucionária” antiliberal, similar ao boulangismo protofascista que, na França,
ameaçava destruir a Terceira República (Sternhell, 1997).
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
coletiva4. Na verdade, nada há que indique que o processo
de mudança social em curso exigisse a instauração da República, ou seja, que ele não pudesse ter-se operado sob o signo do Império reformado, federalizado, na forma de uma
“república velha coroada”. É de bom alvitre lembrar que,
como todas as monarquias do período, inclusive a britânica,
o Império reformou o seu modelo político por pelo menos
três vezes (1834, 1837, 1881), e estava a ponto de operar a
quarta, sob o Gabinete Ouro Preto, quando foi derrubado.
A história é pródiga em demonstrar que a Monarquia pode
se combinar indiferentemente com a democracia ou o absolutismo; o sufrágio censitário ou universal; a centralização
ou o federalismo; o governo pessoal ou o parlamentarismo;
o contencioso administrativo ou judiciarismo etc. Se o problema é a incompatibilidade entre o continente americano
e a Monarquia, o Canadá está aí para indicar o oposto; ademais, deve-se recordar que a forma monárquica de governo
havia sido a primeira opção de importantes setores de diversos países da América Ibérica, inviabilizada mais por motivos contingentes que por qualquer outro (Lynch, 2008).
No espaço disponível do presente artigo gostaria de sugerir uma interpretação alternativa do pensamento de Nabuco naquele período, formulada a partir de seus próprios
termos. Sua virtude está menos na originalidade do que
na ênfase e na sistematização de aspectos já sublinhados,
embora isoladamente, por estudiosos como Evaldo Cabral
de Mello, José Almino de Alencar, Maria Alice de Carvalho,
Maria Fernanda Lombardi, e Marco Aurélio Nogueira 5.
4
Trata-se visivelmente de um cacoete análogo àquele da historiografia marxista a
respeito da Revolução Francesa, denunciado por François Furet (1989, p. 36).
5
Refiro-me expressamente à alusão de Marco Aurélio Nogueira à “tensão dialética” que caracteriza a relação de Nabuco entre o ideal e o real (Nogueira, 2000);
à afirmação de José Almino de Alencar ao pensamento de Nabuco nas décadas de
1880 e 1890 numa chave mais de continuidade do que de ruptura (Alencar, 2008);
à leitura de Maria Alice Rezende de Carvalho do monarquismo de Nabuco como
um republicanismo pelo alto (Carvalho, 2000); à observação, por Maria Fernanda
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
283
O Império é que era a República
284
Na base dessa interpretação, está a tese de que o segundo
Nabuco se acha movido pela mesma preocupação do primeiro, diante, todavia, de uma conjuntura diferente, de
substituição do regime de governo que tornara possível o
abolicionismo, levando-o a perceber a instabilidade do terreno sobre o qual julgara possível instaurar a democracia
no Brasil. A escalada de eventos como o recrudescimento
da propaganda republicana pela adesão dos fazendeiros
escravocratas; a ruptura institucional com o Estado de direito operada pelo golpe militar; a queda do padrão de vida
pública acelerada pelo Encilhamento e o advento da ditadura florianista, sustentada pela violência do jacobinismo
urbano; todos esses foram acontecimentos que marcaram
e tornaram mais complexa a elaboração teórica de Nabuco, obrigando-o a se debruçar sobre as condições de possibilidade de uma sociedade republicana e liberal no Brasil.
Enxergando suas obras da década de 1890 à luz de seus conceitos-chave – como o de “idealismo prático” e o de “República” –, conclui-se que Nabuco permaneceu monarquista
por julgar que o advento do regime republicano, nas condições propostas, viria a prejudicar e não a favorecer o advento de uma sociedade autenticamente republicana, liberal
e democrática entre nós. Por outro lado, considerações de
ordem estritamente prática levavam-no a ver, na Monarquia
preexistente, um instrumento que permitiria promover
mais efetivamente o civismo, o liberalismo e a democracia,
capaz de preparar a sociedade brasileira para uma República que fosse além do mero rótulo, ou seja, sem desnível
entre forma e conteúdo; entre o país legal e o país real. Por
Lombardi, do maior comprometimento de Nabuco com os valores republicanos
do que os próprios republicanos, como Silva Jardim (Fernandes, 2007); e, por fim,
a duas observações de Evaldo Cabral, a primeira concernente às afinidades de Nabuco com o discurso político saquarema (Mello, 1997), e a segunda, à relatividade
de seu suposto elitismo no contexto de um regime republicano que era tão ou
mais elitista (Mello, 2000).
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
fim, reforçando a hipótese do monarquismo instrumental de
Nabuco, chamarei a atenção para o modo por que ele pensou uma eventual reorganização do novo regime republicano a partir da experiência imperial, de modo a minimizar
a solução de continuidade operada, a seu ver, quando do
golpe militar de 1889.
Entre o ideal e o real: o “idealismo prático” de Nabuco
Ao exemplo de outros grandes liberais do século XIX,
como Madame de Stäel e Benjamin Constant, o pensamento de Joaquim Nabuco é atravessado pela necessidade de
orientar-se a partir de padrões ideais, marcados por forte
apelo estético e moral, mas também pelo imperativo de
compreender a realidade por intermédio de agudo um faro
sociológico. Desde a juventude, acompanhou-o a tendência
a esse idealismo estetizante que associava o verdadeiro ao
bom, belo, moral e eterno, e remetia o falso, por sua vez, à
maldade, à fealdade, à degeneração, ao efêmero. Para ele,
cada ser humano poderia ser resumido ao “raio estético”
existente no interior do seu pensamento, sendo a política
apenas “uma refração daquele filete luminoso que todos
temos no espírito” (Nabuco, 1949b, p. 49). Entregue apenas
às próprias forças, sem nenhum artifício que a resgatasse, a
vida ordinária tenderia inevitavelmente à decadência, à corrupção, à velhice. A vida terrena ou mundana, ordinária,
precária e fragmentária, só fazia sentido caso orientada por
aquele ideal, que poderia conferir-lhe a unidade, o sentido
e a orientação de que ela carecia (Nabuco, 1901, p. 195).
O principal binômio que reflete aquela dicotomia é a
distinção entre a “grande política” ou “política com P grande” e a “pequena política”, ou “política com P pequeno”. A
primeira é “a política que é História”, “onde a ação do drama contemporâneo” seria “universal”, “do século”, “da civilização”, “intelectual”, “cosmopolita”. A segunda, por seu
turno, era a “política pelos profissionais”, “que é a local, a
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
285
O Império é que era a República
286
do país, a dos partidos”, e, como tal, é “puramente doméstica”. Isso significa que a política brasileira só lhe interessava
na medida em que envolvesse os fatos históricos da nacionalidade, refletindo desse modo a “grande política” (Nabuco,
1949b, pp. 42-43). Projetado a partir de uma estética cujo
tom é conferido pela arte e pela história, esse idealismo se
projeta em toda a sua visão do mundo e o acompanha num
crescendo conforme amadurece e envelhece. Com efeito,
conforme vive, sua preocupação sucessivamente se transporta, como que numa escalada ou numa ascensão, da política
ordinária à causa social da Abolição, dessa ao problema do
Estado de direito na América Latina, para por fim chegar
ao plano da História e dos destinos do país no cenário internacional. Sua tão controversa “conversão” católica deve ser
vista como consequência do movimento ascendente daquele idealismo estético, no plano do foro íntimo, acelerado
pelas frustrações políticas. Para Nabuco, por simbolizar a
unidade, a bondade, a moralidade, a eternidade que devem
preponderam sobre a fragmentação, o egoísmo, o materialismo e a efemeridade da vida terrena, Deus naturalmente
figuraria em sua arquitetura intelectual e moral como a abóboda do edifício: “Toda ideia é espelho de Deus, para quem
a puder polir até o infinito” (Nabuco, 1937, p. 17). Civilização e barbárie, liberalismo e tirania, Monarquia e República,
parlamentarismo e presidencialismo, Europa e América, vida
ativa e vida contemplativa, são outros tantos binômios que
refletem o seu idealismo político. “A felicidade é a admiração do belo em companhia daqueles com quem estamos
em harmonia” (Nabuco, 1937, p. 96). Nesse sentido, é evidente a afinidade de Nabuco com a filosofia platônica, com
a qual, de fato, ele começou a vida intelectual e a concluiu,
dedicando-lhe quatro conferências ao sair da faculdade, e
relendo-a no leito de morte, quarenta anos depois: “Que
sol resplandecente Platão me está aparecendo!”, exclamava
Nabuco semanas antes de morrer. “Não sei se é tarde aos 60
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
anos para entrar para a Academia, mas é o mais conveniente preparo para a eternidade” (Nabuco, 2005, pp. 470, 473).
No entanto, esse “platonismo” ou idealismo de Nabuco
tinha por contrapartida, paradoxal apenas na aparência, o
imperativo de interpelar a realidade o mais objetivamente
possível. Nesse sentido, Nabuco também seguia as intuições
dos liberais franceses, que desde Constant reconheciam
a necessidade de adotar “princípios intermediários” que
filtrassem a verdade abstrata e universal contida nos princípios absolutos e os encadeassem e concretizassem, conforme as circunstâncias de tempo e de lugar. “A regra de
conduta, em moral política, não é querer realizar um ideal
absoluto, mas tê-lo diante de nós como um ponto fixo, de
modo que caminhemos sempre para ele” (Nabuco, 1901, p.
610). Assim, todo o verdadeiro estadista deveria se orientar
na vida pública por um critério a que Nabuco denominava
“idealismo prático”: esse último se distanciava tanto do idealismo puro, que levava ao radicalismo teórico e afastava o
ator do objetivo, quanto do pragmatismo, em que o ator
agia em função de puros interesses práticos na busca pelo
poder. A fundamental qualidade do político era “adaptar
os meios aos fins e não deixar periclitar o interesse social
maior por causa de uma doutrina ou de uma aspiração”
(Nabuco, 1949b, p. 203). Esse ponto de vista – que, entre
Platão e Maquiavel, pode ser chamado “aristotélico” – postulava a esterilidade da política puramente ideal na medida em que o desconhecimento do real a privava da possibilidade de efetivação: “É uma pura arte de construção no
vácuo. A base são teses, e não fatos; o material, ideias, e não
homens; a situação, o mundo, e não o país; os habitantes,
as gerações futuras, e não as atuais” (Nabuco, 1949, p. 17).
Nabuco exigia do ator político orientado pelo ideal uma
proficiência quase científica na apreciação das realidades,
de tal sorte que pudesse aproximar o ideal o tanto quanto
possível do real. Daí que, noutro pensamento, exprima essa
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
287
O Império é que era a República
288
hierarquia invocando os filósofos que encarnariam aquelas
características: “A terra gira em torno do sol; Aristóteles em
torno de Platão” (Nabuco, 1937, p. 62). Era o seu jeito de afirmar que era o ideal que orientava o conhecimento do real.
Mas quais eram os ideais políticos de Nabuco? Aqui
é preciso compreendê-los no interior da cultura política
liberal Oitocentista, relacionando-os à filosofia da história
como progresso: esclarecimento, capacidade, moralidade,
civismo, tolerância, abertura à democracia. E era na Inglaterra que esses ideais pareciam mais bem se materializar:
dona de um império que cobria a quarta parte do mundo,
terra da liberdade civil, governada por uma aristocracia ilustrada e patriótica, ninguém duvidava de sua posição na vanguarda do processo civilizatório. Além disso, Tocqueville e
Mill haviam ensinado que havia um movimento histórico
e social irrefreável de democratização, que levava, no plano
social, à desaristocratização das sociedades e, no plano político, ao sufrágio universal. O papel do liberal autêntico seria
o de encaminhar a democratização sem prejuízo da qualidade da vida pública, ou seja, dos valores cívicos e liberais
da aristocracia declinante. Ora, era também a Inglaterra o
país onde esse ideal whig de democratização dentro do liberalismo se realizava de maneira ordeira e pacífica (Mitchell,
2005, pp. 113-114, 177). Por outro lado, os Estados Unidos
ainda pareciam a muitos um rebento da linhagem inglesa, que se destacava antes pelo seu progresso material do
que moral (Nabuco, 1949b, p. 175). Quanto à França, era a
única república entre as potências europeias, e a ninguém
parecia modelo de coisa alguma com seu modelo parlamentar bastardo, sua pulverização partidária e seus governos cronicamente instáveis, atacados pelos jacobinismos de
direita e de esquerda. Era, pois, natural que a monarquia
parlamentar britânica servisse de referência a todos os liberais que anelavam, para além do Mancha, combinar o progresso na ordem, a liberdade com a autoridade.
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
Se tais eram os ideais liberais de Nabuco, qual a realidade com que eles deveriam ser contrapostos, para fins
de elaboração da estratégia política a mais adequada aos
atores – sempre em conformidade com o idealismo prático por ele preconizado? Essa realidade era a da sociedade
latino-americana, tão diferente da europeia em geral e, em
particular, da britânica. De fato, os países da região eram
republicanos apenas no nome, oscilando na realidade entre
a anarquia da guerra civil e a tirania do governo pessoal:
“Em toda a América do Sul, há neste momento, como tem
havido sempre, uma porção de revoluções à espera somente
de um pretexto para rebentar” (Nabuco, 1949, p. 124).
O Estado de direito possível na América do Sul:
liberalismo aristocrático versus caudilhismo autoritário
A pergunta que serve de ponto de partida para a reflexão
de Nabuco no período é, portanto, a seguinte: seria possível organizar àquela altura, na América Latina, um Estado
de direito (entendendo-se por esta expressão um governo
constitucional e representativo efetivo e não apenas nominal)? Montesquieu e Tocqueville haviam ensinado que a
liberdade só medrava onde houvesse, no âmbito da própria
sociedade organizada, obstáculos à expansão indefinida do
poder (Nabuco, 1949, p. 138). Ocorre que, recém-saídas
da colonização, as sociedades civis latino-americanas ainda
eram desestruturadas, politicamente invertebradas, não dispondo de qualquer mecanismo que, à luz daqueles autores,
pudesse impedir o livre desenvolvimento do despotismo.
Dado o caráter naturalmente anárquico da cultura política
subcontinental, o imperativo modernizador exigia a imediata construção da ordem nacional, não se podendo aguardar
que o tempo se incumbisse de estruturá-la naturalmente.
Tratava-se, assim, de uma razão de Estado a ser executada
por meios extraordinários e artificiais, apelando-se a uma
institucionalidade capaz de impor a paz de cima para baixo
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
289
O Império é que era a República
290
e de exercer transitoriamente determinadas funções que,
segundo o figurino clássico do liberalismo, deveriam ser
exercidas pela sociedade, mas de que, na região, ela ainda não era capaz de se desincumbir. Essa institucionalidade precisaria adquirir, ao menos nos primeiros tempos, um
cunho aberta ou veladamente monárquico, para conseguir
cimentar as fidelidades, dar liga aos fragmentos de sociabilidade existentes e combater os focos de desagregação. Servindo de contraforte às tendências anárquicas do meio, ela
serviria de plataforma para estabelecer o Estado de direito
e democratizar-se num futuro mais remoto. Para os realistas
liberais sul-americanos, como Caravelas, Portales, Uruguai
e Alberdi, a tutela monárquica, sob a forma de república
ou não, serviria de estufa que permitisse aclimatar a liberdade num ambiente que lhe era estranho: individualista,
apaixonado, incoeso, carente de ordem. Ainda que de forma discreta, inconfessa, eles exprimiam a ideia, repetida
em meados do século por Mill e Tocqueville, de que toda
comunidade política inorgânica carecia em seus primeiros
tempos de um “despotismo benévolo” – até que a sociedade
conseguisse caminhar com suas próprias pernas6.
Mas de onde viria o impulso para instaurar aquela
ordem, sendo a sociedade bárbara e desarticulada? Naquela etapa ainda embrionária do desenvolvimento dos países
da região, era inevitável que a instauração de um Estado
comprometido com os valores civilizatórios dependesse pri A respeito da América do Sul, cujas “novas nações” se agitavam havia “um quarto de século, em meio a revoluções sempre renascentes”, Tocqueville escrevera:
“Quando o considero (o povo desses países) nesse estado alternante de misérias e
crimes, sou tentado a crer que para ele o despotismo seria um bem” (Tocqueville,
2001, p. 263). Duas décadas depois, Stuart Mill escreveria que “um povo que se
encontra em estado de independência selvagem [...] é praticamente incapaz de
realizar qualquer progresso em civilização até ter aprendido a obedecer. Por conseguinte, a virtude indispensável em um governo que se estabeleça sobre povo
dessa espécie é fazer-se obedecido. Para permitir que o consiga, a constituição do
governo deve ser aproximadamente ou mesmo completamente despótica” (Mill,
1983, p. 28).
6
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
mariamente da iniciativa e êxito de elites esclarecidas, cujo
liberalismo e cujo patriotismo as motivassem a limitar voluntariamente o próprio poder governamental nos limites de
um governo constitucional e representativo. O advento da
civilização dependia de uma sociabilidade cosmopolita que,
num meio social decaído a mais de um título, só poderia
ser encontrada numa diminuta parcela da população correspondente à sua aristocracia. Eis por que ela deveria se
colocar à testa das iniciativas governamentais para promover a civilização do país – isto é, à defesa da ordem liberal,
se opondo artificialmente às naturais tendências bárbaras,
isto é, autoritárias, do meio social, mediante o seu “espírito de transação” (Nabuco, 1949, p. 124). Esse governo de
excelência se organizaria pelo governo parlamentar e se
manteria pelo estabelecimento de regras de acesso aos cargos públicos destinadas a selecionar pessoas educadas, ou
seja, de perfil compatível com os valores liberais e republicanos para o exercício das funções governativas, evitando
a ascensão de gente estranha àquela sociabilidade, contaminada pelo atomismo do meio. Naquela etapa do desenvolvimento do subcontinente, esse domínio oligárquico da
“aristocracia” social na esfera política deveria ser reputado
legítimo enquanto estivesse comprometido com a prática e
o enraizamento do Estado de direito no ambiente que lhe
era adverso. Como um whig, Nabuco esperava que, pelo respeito reiterado dos frágeis precedentes e práticas liberais,
com o tempo os valores da civilização se sedimentassem na
forma de uma cultura política (Mitchell, 2005, pp. 113-114,
177). Para tanto, as elites políticas não poderiam perder o
tino sociológico, o espírito prático, positivo, que evitasse o
utopismo e, com ele, o radicalismo que punha tudo a perder; deveriam estar embebidas do seu “idealismo prático”.
Nesse ponto, tem se objetado ao que parece um “aristocratismo político”, uma aversão do fino Nabuco à plebeia democracia. Para Nabuco – como, depois dele, para
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
291
O Império é que era a República
292
Ostrogorski, Michels, Pareto e Weber –, todos os tipos de
governo eram oligárquicos, no sentido de que era sempre uma minoria que governava; nesse sentido, a democracia era o regime em que a oligarquia governava com
o assentimento da maioria (Nabuco, 2005, p. 221). Além
disso, Nabuco pensava que, dado o atraso das sociedades
da região, não havia qualquer possibilidade em curto prazo de estabelecimento da democracia na América do Sul.
Ela mesma só existia em marcha estável nos Estados Unidos e na Inglaterra, sofrendo abalos na França, e apenas
engatinhando na Itália. Daí que o seu liberalismo aristocrático não se opunha ao democratismo, mas a outra forma
de oligarquia que lhe parecia muito pior de oligarquia – a
tirania demagógica. A “democracia” não passava aí de pretexto risível para que os candidatos a tiranos promovessem
seus pronunciamentos e instalassem regimes personalistas,
autoritários, oligárquicos, antirrepublicanos. Forma política típica de governo da região, a principal característica da
tirania demagógica residia na defesa da autoridade pessoal
do tirano a qualquer custo. Para permanecer no poder, o
déspota sacrificava, abertamente ou por sofismas, todos os
preceitos do Estado de direito, fraudando eleições, censurando a imprensa, perseguindo e executando adversários – sempre, em nome do povo (Nabuco, 1949, p. 77). Por essa razão,
a violenta rotação do pessoal governante pela revolução nunca passava, a seu ver, de mera substituição de oligarquias para
pior, na medida em que o pessoal mais tradicional, ilustrado
e independente era substituído por outro, arrivista e dependente do ditador e, portanto, predisposto a chancelar toda e
qualquer violência para segurar-se no poder. O resultado era
que, como o Estado de direito nunca dispunha de tempo,
hábitos e práticas para se sedimentar, meio às perseguições
das minorias e reiteradas violações da ordem constitucional, a cultura política liberal nunca conseguia se enraizar,
ficando o sonho da democracia cada vez mais distante.
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
Assim, o aristocratismo de Nabuco não se opunha à
democracia, mas à oligarquia e à tirania. Pensando, como
Tocqueville e Mill, a partir de um esquema em três etapas
de desenvolvimento político – primeiro a ordem, depois
o liberalismo e, por fim, a democracia –, Nabuco partia
da premissa de que, pelo retardo de suas desestruturadas
sociedades, ainda não havia em nenhum país do continente
condição de implantação de regime democrático. Oscilando entre a anarquia da guerra civil e a tirania personalista
de um general, boa parte das nações sul-americanas sequer
conseguia cumprir a primeira etapa, que era a de garantir a
ordem pública pelo monopólio estatal da coerção legítima.
Daí que, para o autor de Balmaceda, o dilema sul-americano
ainda não se punha em termos de regime democrático ou
não democrático, mas entre barbárie e civilização; governo
oligárquico ou aristocrático; individualismo feroz ou sociabilidade plural; caudilhismo autoritário e liberalismo aristocrático. Enquanto oligarquias políticas, tanto a aristocracia
liberal chilena como a liberal inglesa lhe pareciam governar
mais no interesse do povo do que tiranos arbitrários como
Rosas na Argentina, Garcia Moreno no Equador, Francia
no Paraguai, Melgarejo na Bolívia, porque a aclimatação
da liberdade preparava o terreno da democracia, e a tirania, não (Nabuco, 1949, p. 80). A civilização democrática
só se tornaria possível quando, concomitante à diluição da
hegemonia política da aristocracia, houvesse uma irradiação do seu “espírito liberal” por sobre as camadas sociais
politicamente emergentes. Ao aclimatar o sentimento da
coisa pública, o governo dos melhores homens e a cultura
política liberal, um governo aristocrático consolidado constituía o único caminho por que o Estado de direito poderia
chegar à América Latina, até que a sociedade conseguisse se
estruturar e criar condições para uma evolução democrática. Sem aristocracia governante, também não seria possível
cogitar das reformas sociais indispensáveis ao progresso de
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
293
O Império é que era a República
294
suas nações, reformas estas que deveriam ser promovidas
em consonância com figurino whig: cautelosamente, sem
movimentos abruptos que pusessem em perigo a estabilidade das instituições e, com ela, a teia evolucionária liberal
produzida ao longo do tempo. Porque respeitador de todos
os direitos, o espírito de reforma conservador, burkeano,
é recomendado por Nabuco como o verdadeiro espírito
republicano (Nabuco, 1949, p. 39).
Pintado tal pano de fundo da realidade sociopolítica
sul-americana, indaga-se: que modelos institucionais ou
constitucionais poderiam contrapesar as insuficiências do
meio social, servindo de incubadoras do Estado de direito?
A Monarquia agradava ao idealismo estético de Nabuco,
porque refletia a imagem de Deus governando o universo e exprimia a aspiração platônica do governo belo, justo
e perfeito; o ideal de uma elevada esfera de moralidade
que planasse sobre as misérias da ambição humana, servindo-lhe de corretivo e inspiração (Nabuco, 1949, p. 132;
1949b, p. 42). Do ponto de vista mais prático, ensinavam
Constant, Laboulaye e Prévost-Paradol que a Monarquia
parlamentar, enquanto forma de governo constitucional
representativa, proporcionava uma autoridade suprapartidária na chefia do Estado, capaz de exercer um poder
moderador e, como tal, de árbitro mantenedor do sistema
constitucional; magistrado inacessível às ambições vulgares
da pequena política, do reacionarismo ou do jacobinismo.
O exemplo, mais uma vez, vinha da Inglaterra, país em que
o privilégio dinástico aproveitava apenas “a tradição nacional mais antiga e mais gloriosa para neutralizar a primeira
posição do Estado. A concepção monárquica ficava sendo
essa: a do governo em que o posto mais elevado da hierarquia fica fora da competição” (Nabuco, 1949b, p. 131).
A Monarquia tinha, portanto, uma utilidade dupla: como
instituição moderna, servia de fiadora do Estado de direito;
enquanto tradição, ela simbolizava o uno no plural, o eterLua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
no sobre o efêmero, o justo sobre o parcial, a coisa pública
sobre o interesse particular.
Todavia, ao exemplo daqueles autores, apesar de predisposto idealmente à Monarquia, Nabuco não faria questão de nenhum regime do governo, desde que garantisse a
liberdade; como “idealista prático”, ele seria o primeiro a
defender a necessidade de considerar as circunstâncias e o
momento, opondo-se ao “maior erro que se pode cometer
em política – o de copiar, de sociedades diferentes, instituições que cresceram” (Nabuco, 1949b, p. 130). A defesa da
Monarquia como forma de governo adequada ao Brasil só
poderia ser efetuada, assim, a partir de ponderações particulares à realidade desse último, entendida como formação
social empírica diante da qual se punha o imperativo civilizador de construção da ordem liberal. Ora, a experiência
sul-americana demonstrava que apenas o Chile e o Brasil
haviam escapado ao rodamoinho de infortúnios que atingira seus vizinhos. Ambos haviam apelado no começo de suas
vidas independentes a institucionalidades substancialmente
monárquicas que, bem-sucedidas, cedo evoluíram para o
Estado de direito pelo parlamentarismo. Organizado como
república monárquica, o Chile possuía um “caráter nacional”
similar ao inglês, o que explicava o êxito de sua sociedade na
organização de um Estado de direito estável, capaz de resistir à tirania de um Balmaceda. Este não era o caso do Brasil
que, além dos males gerais da formação subcontinental,
tivera o seu “caráter nacional” adicionalmente prejudicado
pela sua gestação “na paz e na moleza da escravidão doméstica” (Nabuco, 1949, p. 138). Ela não teria mais condições
que as outras sociedades da região, pois, para oferecer qualquer obstáculo ao exercício despótico do poder – muito
pelo contrário, estaria mais predisposta a ele. Muito bem:
se, com uma sociedade mais predisposta que as demais ao
despotismo, contra todas as expectativas, o Brasil desfrutava
havia meio século de um governo parlamentar estável,
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
295
O Império é que era a República
296
semelhante ao do Chile, a Nabuco pareceu razoável atribuir
a causa daquela excepcionalidade à outra – a de ser o único
país na região organizado monarquicamente.
Com efeito, pareceu a Nabuco que, carecendo, como
os demais países do continente, de um desenho institucional capaz de conferir, ao seu Estado nacional, a consistência
que ele ainda não podia extrair de sua invertebrada sociedade, havia sido a Monarquia que permitira a construção
do Estado de direito no Brasil. Por um lado, ela conferia ao
país a autoridade autônoma de que uma sociedade amorfa
carecia para gozar de uma ordem nacional; por outro, por
conta de seu caráter excepcional na América, ela se via de
antemão tolhida em suas derivas autoritárias, sendo obrigada a se mostrar mais liberal do que todos os vizinhos republicanos para legitimar-se entre eles (Nabuco, 1901, p. 60).
Então, justamente por seu caráter “exótico” no continente, a Monarquia teria servido de muletas a uma sociedade
ainda paralítica, compensando “a incapacidade do povo
de combater pelos seus direitos” e proporcionando um
ambiente cívico “mais favorável ao crescimento da democracia” (Nabuco, 1901, p. 62-63). De fato, assim como servira
de artifício para burlar o destino natural do país ao despotismo ou à oligarquia, estabilizando-lhe o tecido social, não
era impossível que a Monarquia pudesse também servir de
plataforma para acelerar as transformações sociopolíticas
necessárias à consolidação à futura democratização do país
– ou seja, na fabricação de uma sociedade verdadeiramente
republicana. Nesse ponto, na reflexão nabuqueana da década de 1890, surge aquele que é o seu tema por excelência: o da
Monarquia republicana.
A Monarquia republicana contra a pseudorrepública
Para compreender o alcance da Monarquia republicana de
Nabuco, é preciso averiguar previamente os diversos sentidos do complexo conceito de República por ele mobiliLua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
zado, que pode, dependendo do contexto, adquirir quatro sentidos diferentes, embora assemelhados. O primeiro
deles remete à tradição clássica, designando, por República,
qualquer comunidade voltada para o bem comum, pautada pela virtude cívica, pelos costumes austeros e pelo culto
da lei, e possui por conceito assimétrico aquele de “coisa
privada”, associada à corrupção, ao egoísmo e à relaxação.
O segundo sentido do conceito de república, ao contrário
do precedente, é puramente formal: refere-se ao regime
republicano de governo e tem por seu contrário aquele
de Monarquia. Os dois sentidos referidos, o primeiro e o
segundo, são independentes, porque um alude à substância
da coisa, e o outro, à sua aparência legal, o que implica reconhecer que o sentimento de coisa pública pode, tanto quanto a corrupção, existir no regime republicano ou no monárquico. O terceiro sentido alude à maneira de Tocqueville a
uma sociedade democrática, isto é, igualitária (também chamada “democracia pura”); ao passo que o quarto e último
sentido é mais abrangente, remetendo a um ideal moderno
de sociedade republicana. Ela pressuporia cumulativamente uma sociedade dotada do sentimento da coisa pública
(república no sentido estrito); de um governo constitucional e representativo, garantidor dos direitos do homem (o
Estado de direito, elemento liberal); e, por fim, marcada
pela participação do maior número nos negócios públicos
(a democracia como regime igualitário). Estes três aspectos
do ideal republicano moderno emergiriam sucessivamente
no decorrer de um processo social, ao cabo do qual, tendo
atingido a maturidade, substantivamente republicana, a sociedade poderia dispensar qualquer espécie de tutela e adotar
o regime republicano, sem receio de uma desconformidade entre a República como substância (sociedade cívica e
igualitária) e como forma (regime não monárquico). Tal é
o pano de fundo teórico sobre o qual Nabuco faz a defesa
da Monarquia como desenho institucional mais adequado
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
297
O Império é que era a República
ao desenvolvimento e estruturação da sociedade brasileira,
surtindo efeitos republicanos, liberais e democráticos – nessa ordem.
A pseudorrepública
298
Embora a desafortunada experiência republicana no subcontinente fosse o principal argumento de Nabuco para se
opor à sua introdução entre nós, era sempre possível sustentar, ao contrário, que tendo superado o torvelinho das
guerras civis na década de 1840, o Brasil já estava maduro
para a República. Nabuco duvidava, contudo, da pressuposição subjacente ao raciocínio, de que a sociedade estivesse
amadurecida para dispensar a tutela benéfica de um governo autônomo e ilustrado. Por isso entendia que a República
só poderia ter serventia se pudesse equivaler ou superar a
Monarquia enquanto governo tutelar, o que exigia em primeiro lugar averiguar o grau de idealismo, de desprendimento, de sentimento republicano entre aqueles que pretendiam substituir o imperador no comando do país.
Para Nabuco, na qualidade de dissidência liberal, o Partido Republicano havia sido fundado sob o signo do idea­
lismo. Embora houvesse quem preferisse o republicanismo
sectário e antiliberal, de matriz jacobina, no grosso do partido prevalecera o republicanismo liberal e democrático
de matriz anglo-saxônia – o “bom republicanismo” (Nabuco,
1949b, p. 53). No entanto, ao longo do tempo, levado pelo
excesso de ambição e pragmatismo, visando ao poder
pelo poder, o partido perdera de vista o povo e a República, ao jogar inescrupulosamente com os desdobramentos
políticos da Abolição, com o propósito único de angariar
o apoio dos fazendeiros escravocratas, e incitando o militarismo positivista a derrubar a Monarquia pela via do golpe
militar. Em suma, o Partido Republicano tornara-se classista
como eram os partidos monárquicos, com o agravante de
que, tendo atrás de si a grande propriedade rural escravisLua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
ta, ele passara a ter por combustível o ódio da velha oligarquia rural contra a Monarquia abolicionista (Nabuco, 1999,
p. 62). O exame do pessoal de que o partido republicano
era composto confirmava aos olhos de Nabuco, portanto,
o risco embutido na mudança de regime: no quadro da frágil sociedade brasileira, a aparentemente atrasada Monarquia representava a possibilidade de progresso verdadeiro,
ao passo que a aparentemente mais moderna República
implicaria, ao revés, o retrocesso que poria em risco todas
as conquistas que o Brasil conseguira forjar até então em
matéria de desenvolvimento político. Antes de constituído
politicamente o povo, ou seja, de estruturada a sociedade, a
República só viria legitimar a opressão oligárquica que com
muito mais violência sobre ele recairia: “Ainda não temos
povo, e as oligarquias republicanas, em toda a América, têm
mostrado ser um terrível impedimento à aparição política
e social do povo” (Nabuco, 1949d, p. 373). Daí que Nabuco preferisse “conservar a nossa tradição monárquica a tentar com a unidade nacional uma experiência sociológica”
(Nabuco, 1989, p. 60).
A Monarquia democrática
Possuindo na cúpula do Estado uma autoridade independente e apartidária, o desenho institucional da monarquia favorecia a futura de democratização do país. Embora re­conhe­cesse que o privilégio dinástico atentava contra
a democracia em tese, Nabuco argumentava que, haja vista
que o povo brasileiro estava submetido a um feudalismo
agrário – um privilégio oligárquico –, o privilégio dinástico,
pairando sobre a oligarquia, se convertia num agente de
nivelamento social, isto é, de democratização, tal qual no
absolutismo europeu. Para passar da Monarquia popular para
a democracia pura, ou seja, para a República, seria preciso
aguardar que a Monarquia concluísse a obra de reparação
que lhe incumbia para em seguida abolir, sem risco, o tão
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
299
O Império é que era a República
recriminado privilégio dinástico (Nabuco, 1989, p. 395).
Era no interesse mesmo do princípio da igualdade democrática, pois, que se deveria preservar a Monarquia para
dobrar o poder oligárquico que avassalava o país. E, referindo-se à Abolição, Nabuco anotava irônico: “O privilégio político de repente devorou, como a baleia devora sardinha,
todos esses enxames de privilégios de senhor. Está aí um
fato de seleção natural importante, uma grande utilidade
pública, o privilégio servindo de instrumento da igualdade,
exatamente como a força tem servido de iniciador do direito” (Nabuco, 1989, pp. 392-393). Por essas razões, ele também via no Império um instrumento para atingir fins democráticos: ele era “a arma com que se pode conquistar a
emancipação do povo”; “a alavanca de que o liberalismo
precisa para altear o proletariado nacional” (Nabuco,
1989, pp. 381, 384).
300
Se a república fosse uma tutela capaz de proteger o povo
contra o regime feudal, a monarquia poderia talvez pensar
em fazer-se substituir por ela; mas infelizmente a república
principia por negar que haja semelhante regime feudal.
Não é a sorte do proletariado que a incomoda, é a das
classes exploradoras, e quanto ao republicanismo puro, este
precisa também da proteção que somente a monarquia lhe
pode dar enquanto ele cresce. Ninguém mais do que eu
reconhece o que há de patriótico e levado na concepção
republicana de Estado, mas não me posso iludir no caso
presente: o atual movimento republicano é um puro efeito
de causas acumuladas que nada têm de republicanas; é
uma contrarrevolução social; é a tentativa de restauração
do escravismo pela servidão da gleba; é o despeito de uma
classe, explorado e incensado, ao ponto de ameaçar a
unidade moral e a integridade material da pátria (Nabuco,
1989, pp. 383-384).
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
A monarquia republicana
Em primeiro lugar, a dissociação entre regime de governo
republicano e “o sentimento de res publica” (Jornal do Brasil,
1891a) permitia-lhe acusar a confusão em que incorriam os
adversários da monarquia ao suporem que “o ideal republicano se realiza melhor sob a forma republicana da América
do que sob a forma monárquica da Inglaterra” (Nabuco,
1989, p. 380). A experiência demonstrara que entre as duas
formas de governo havia “espaço para os piores despotismos” e que, sem democracia, a República não passava de
“um verdadeiro estelionato” (Nabuco, 1901, p. 63). Por
isso, Nabuco se dava ao luxo de dizer-se republicano na
Suíça, nos Estados Unidos e no Chile, onde a república era
a tradição nacional ou a “forma psicológica” do país, e
monarquista, onde ela servisse de ambiente à liberdade
para que ela pudesse crescer e frutificar, como na Inglaterra, em Portugal, na Espanha e na Bélgica (Nabuco, 1989,
p. 380). Uma vez que, segundo o seu idealismo prático,
toda a ação política deveria ser precedida de um exame
sociológico sobre o terreno sobre o qual pretendesse incidir, o critério decisivo no deslindamento da questão do
regime de governo mais adequado ao Brasil passava forçosamente pela consideração de suas necessidades e circunstâncias específicas. Uma vez que o país estava habituado a
um regime monárquico lograra preservar a ordem liberal
num ambiente naturalmente hostil, a Nabuco não parecia
provável que o ideal republicano se favorecesse da ruptura
com a tradição histórica acumulada. Ao contrário, dever-se-ia envidar esforços para que o civismo se expandisse sobre
as mesmas bases, que haviam se revelado seguras. A transformação radical das instituições, substituindo a plataforma por que a ordem e o Estado de direito haviam sido erigidos, embutia o risco de desencadear uma série de efeitos
regressivos, similares àqueles surtidos nos demais países
do continente.
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
301
O Império é que era a República
Todo o mundo sabe o que tem sido a vida de muitos desses
Estados e ao que foram eles reduzidos pela ambição do
mando supremo. Que resultado chegaram a proclamar os
homens mais importantes de quase todas as repúblicas,
os seus mais sinceros e verdadeiros patriotas? A ditadura,
somente a ditadura (Nabuco, 1989, p. 389).
302
Nem por isso Nabuco deixava-se enredar por uma visão
idílica da vida pública do Império; ele reconhecia que ela
não havia sido farta em episódios reveladores do clientelismo, do privatismo e outros vícios na atividade política. Ocorre que, consideradas em si mesmas, corrupção e civismo
tinham causas mais sociais do que políticas; eram os males
da nossa má-formação que levavam os líderes a desconhecerem que “o governo é uma função do estado e não do indivíduo”. No entanto, conforme implícito naquele raciocínio,
Nabuco acreditava que a engenharia institucional pudesse
contribuir para incentivar ou coibir a corrupção. Se a própria sociedade demonstrava “a mais absoluta indiferença”
acerca dela, devido à “relaxação do nosso senso moral, junto à bondade da nossa índole”, ele concluía que somente
uma força estranha ao meio, comprometida com os valores republicanos, poderia moralizá-lo: “O nosso Cromwell
tinha que nos cair do céu, e enquanto levasse a corrupção
a ferro e fogo, havia de ficar no ar” (Nabuco, 1989, p. 397).
Segundo Nabuco, a influência mais republicana da política
brasileira havia sido o próprio Imperador, censurando os
ministros nos seus excessos facciosos, sublinhando a importância de uma conduta ilibada, esforçando-se pela moralidade eleitoral e alternando os partidos no poder, sempre
pessoalmente desinteressado. Por que duvidar, portanto,
que a Monarquia pudesse continuar a “reformar os costumes e criar na sociedade o senso moral que lhe falta”?
(Nabuco, 1989, p. 399). Por outro lado, na medida em que
poria a chefia do Estado ao alcance de qualquer um, lhe
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
parecia que, no Brasil, o advento da República provocaria
o efeito oposto, potencializando as ambições e os interesses
predatórios de uma sociedade que ignorava o sentido cívico
da vida pública. “A república representaria a maior relaxação, exatamente porque seria a sociedade tal qual é, sem o
único ponto de apoio possível para essa reação da moralidade” (Nabuco, 1989, p. 398). Desaparecendo a tutela da
Monarquia sobre o sistema político e a sociedade informe
que jazia debaixo dele, desapareceria a única fonte que ainda poderia irrigá-la, do alto, com o exemplo do desinteresse e da abnegação – ou seja, com valores republicanos. Eis
por que, para o repúblico Nabuco, “o erro fundamental dos
republicanos” estava em supor que “a monarquia era um
movimento ou fase contrária à aspiração republicana, quando a monarquia era o núcleo em que essa aspiração começava a consolidar-se” (Jornal do Brasil, 1891b).
A monarquia liberal
Outra desvantagem do regime republicano em países
de carentes de sentimento cívico e liberal estava na falta de
uma autoridade imparcial na cúpula do Estado, que, como
poder moderador, tivesse por missão preservar o governo
constitucional. Nabuco nada tinha a opor à eletividade da
chefia do Estado em países cujas sociedades houvessem
alcançado um grau de estruturação que lhes facultasse resistir à corrupção, à tirania e à oligarquia. Porém, entre países
ainda faltos de “perfeita educação política”, lhe parecia que
aquela eletividade produzia efeitos extremamente negativos. Nesse ponto, a impossibilidade de neutralizar o poder
do chefe de Estado lhe parecia um dos principais obstáculos à estabilização da ordem política e posterior desenvolvimento das repúblicas na América Latina. Ao invés de
agirem como magistrados, os presidentes latino-americanos
empregavam a máquina pública em benefício das facções
a que pertenciam, recorrendo às fraudes e à violência para
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
303
O Império é que era a República
nela se perpetuarem. Ao impedirem a alternância partidária, eles liquidavam o sistema representativo; ao privarem
o país de uma autoridade arbitral, obrigando a oposição a
recorrer à guerra civil para forçar a alternância do poder,
eles comprometiam a ordem pública que deveriam preservar. Assim “barbarizadas”, essas pobres nações só faziam
recuar mais e mais de seu ideal político civilizatório, recaindo na anarquia, na oligarquia, na tirania (Nabuco, 1989, p.
395). Essas situações não ocorriam nas Monarquias parlamentares, cujos chefes apartidários asseguravam, enquanto
magistrados, a impessoalidade do poder e a alternância dos
partidos no poder – e, com elas, o governo constitucional
representativo.
***
304
Ainda que sucinta e incompleta, a exposição sistematizada do pensamento político produzido por Nabuco depois
da Abolição acima esboçada basta para apontar o equívoco das
interpretações classistas ou psicologistas que dele desdenham como reacionário, conservador, saudosista, autoritário
ou aristocrático (conceitos estes que espero, noutra ocasião,
poder discutir com mais vagar). Ao invés de condenada de
forma sumária por seu “caráter aristocrático”, a sofisticada
reflexão de Nabuco se destaca, entre outros aspectos, como
valiosa contribuição à teoria das sequências e condições históricas de advento da democracia. O autor de Balmaceda está
em boa companhia: é Robert Dahl quem afirma (quase um
século depois...) que o advento de uma poliarquia estável é
mais provável naqueles países em que a competição política
restrita a uma elite de valores homogêneos precede o processo de expansão da participação política:
Tolerância e segurança mútua têm mais chances de
se desenvolver no âmbito de uma pequena elite que
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
compartilhe perspectivas semelhantes do que em meio a
um largo e heterogêneo conjunto de líderes representando
estratos sociais de objetivos, interesses e pontos de vista
radicalmente díspares (Dahl, 1971, p. 37).
Além disso, já ficou claro que seu monarquismo não
decorria de sua oposição à democracia ou à república, mas
da razão oposta – porque ele se julgava um verdadeiro repúblico, comprometido até os cabelos com os ideais cívicos de
liberdade e igualdade –, somada a um diagnóstico sociológico da sociedade brasileira. Nabuco não via nada de verdadeiramente republicano no movimento homônimo, cuja
vocação privatista, autoritária e oligárquica crescia na medida em que ele se aliava ao latifúndio escravista e ao militarismo positivista, potencializando, com o seu êxito, os valores
antirrepublicanos, antiliberais e antidemocráticos já presentes na sociedade. No nosso estádio inicial de formação
nacional, a Monarquia lhe parecia o meio por que se poderia passar com segurança à República, fomentando o civismo, o liberalismo e, portanto, preparando o povo para a
democracia. O caráter instrumental de sua defesa da
Monarquia é patente: ele não a defende como intrinsecamente superior à República como forma de governo, mas
como forma possível da República no Brasil – espécie de estufa dentro da qual poderia medrar a planta da liberdade e do
civismo no terreno adverso da América Latina. Daí que ele
intitulasse um de seus artigos em O Comércio de São Paulo,
em 1896, com o slogan “a monarquia é que era a república”.
Tal ponto me parece de particular relevância na medida em que permite ver que o foco de sua análise no período
não era a da monarquia em si mesma, mas de uma determinada institucionalidade que, para aclimatar a liberdade, a democracia e a República, precisava ser descolada da
atrasada sociedade brasileira, podendo ser eventualmente
abandonada depois desse processo. Trata-se de pensar uma
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
305
O Império é que era a República
306
arquitetura institucional presidida por um núcleo social
comprometido com a ética republicana, tornada autônoma
em relação à sociedade real, tida por corrupta, autoritária
e oligárquica, capaz de, enquanto tal, assegurar o Estado
de direito e, por meio de uma pedagogia cívica, preparar o
terreno para a democracia. De fato, ao longo da atividade
intelectual desenvolvida durante a década de 1890, Nabuco
dedicou-se de modo insistente, embora discreto, a pensar
como seria possível reorganizar o regime republicano à luz
da experiência monárquica. Não me refiro apenas à sua tentativa de, num exercício de “política retrospectiva”, fazer de
Um estadista do império um espelho de príncipe para os futuros chefes de Estado brasileiros (Mello, 1997; Salles, 2002).
Refiro-me à sua obsessão com a ideia de restauração do
Poder Moderador no interior da República, como garantidor do Estado de direito – desde reivindicar um mecanismo
como aquele para todos os países da América Latina, como
remédio à doença crônica da intolerância política (Nabuco,
1949), até recomendar aos presidentes eleitos da República, como Afonso Pena, que fossem “os continuadores do
Imperador” na chefia do Estado (Nabuco, 2005, p. 360).
Um manuscrito arquivado na Fundação Joaquim Nabuco
exprime à perfeição essa tentativa de repensar a organização republicana à luz da experiência imperial:
Se eu acreditasse em república no Brasil, eis mais ou menos
como a julgaria viável: um Tribunal de Justiça composto pela
primeira ilustração do país, com poderes discricionários
para fazer cumprir a Constituição; um Conselho de Estado
composto da primeira ilustração e prudência, como assessor
do Executivo; um Presidente por dez anos e reelegível,
com ministros responsáveis; um exército pequeno, que
fosse a verdadeira nobreza do país, educado por oficiais
estrangeiros; um tribunal de contas, com respeito a
emissões, despesas etc.; uma lei perfeita de autonomia
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
municipal ou de divisão departamental que substituísse a
federação dos Estados, e para presidente dessa república
um príncipe de sangue ou um general vitorioso, e a
capital em uma ilha. Tudo isso lhe parece absurdo. Pois
é a solução mais aproximada que eu posso achar para a
quadratura republicana7.
A mudança de enfoque aqui proposta no exame da
obra produzida por Nabuco na década de 1890, que busque
levá-lo ao sério, sugere toda uma agenda de pesquisa, da
qual gostaria de explicitar algumas delas, a título de ilustrar
a sua fecundidade. Em primeiro lugar, do ponto de vista
historiográfico, há toda uma literatura que tem crescentemente confirmado o diagnóstico de Nabuco a respeito do
novo regime, dada a sua baixíssima densidade republicana,
liberal e democrática. Contento-me em lembrar aqui Os
bestializados, de José Murilo de Carvalho, e o Memorial das
desigualdades, de Maria Emília Prado. Do ponto de vista ideo­
lógico, creio que uma comparação cuidadosa da obra de
Nabuco com a de republicanos seus contemporâneos, como
Campos Sales de Cartas da Europa, o Alcindo Guanabara dos
Discursos parlamentares e o Felisbelo Freire de História constitucional da república, daria ao leitor uma impressão inversa
àquela que sugere o rótulo de aristocrata conservador: a de
que os conservadores eram os republicanos, aferrados ao
princípio da autoridade, sancionando todas as atrocidades
cometidas pela ditadura militar, e que o Nabuco de Balmaceda era um liberal que vibrava na mesma sintonia do Rui Barbosa de Cartas de Inglaterra – que era então o nec plus ultra
do liberalismo republicano brasileiro. Além disso, a recuperação do pensamento nabuqueano do período abre caminhos adicionais para a interpretação do pensamento políti7
Arquivos da Fundação Joaquim Nabuco. Anotações manuscritas de Joaquim Nabuco sobre a política (JNMp2cap1doc26a7g3).
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
307
O Império é que era a República
308
co e social brasileiro. Ao longo desta exposição, o estudioso
desse campo do conhecimento já deve ter se dado conta do
quanto a proposta de Nabuco de um republicanismo pelo
alto se assemelha daquela efetuadas antes dele por José
Bonifácio, Caravelas e Uruguai, e depois dele por Alberto
Torres, Oliveira Viana e Guerreiro Ramos. Um estudo cuidadoso do impacto da obra nabuqueana durante a década de 1910 provavelmente haveria de revelar ser Nabuco o
elo perdido da linhagem saquarema dos nossos pensadores
políticos. Seria possível então juntar as duas pontas da sua
reflexão, a social e a política, a abolicionista democrática e
a institucionalista liberal, debaixo de um mesmo eixo analítico, que poderia iluminar certas questões do nosso pensamento político e social que ainda jazem na penumbra.
Em quarto lugar, chamo a atenção para o fato de que o
conceito de República entendido como “bem comum” ou
“coisa pública” foi recentemente resgatado, encontrando-se
no cerne de alguns dos mais importantes debates da teoria
política atual. Ao escrever um livro no começo da década
cujo tema era justamente a república, Renato Janine Ribeiro descreve-a nos precisos termos postos por Nabuco: trata-se de um sentimento cívico antes que um regime de governo; afirma que o seu adversário mortal não é a Monarquia,
mas a corrupção e o patrimonialismo; e sugere que o país
onde o ideal republicano parece mais perfeitamente realizado é a Inglaterra, regida por uma monarquia parlamentarista em que a coisa pública é simbolizada por um chefe
de Estado apartidário e imparcial (Ribeiro, 2001). Também
recentemente, uma das mais conhecidas revistas do país,
estampou uma foto de D. Pedro II na capa de uma edição,
vestindo a faixa presidencial, apontando-o como modelo
de virtude republicana a ser seguido pelos atuais chefes de
Estado (Gryzinsky, 2007). Por fim, do ponto de vista político-constitucional, por sua vez, a obsessão de Nabuco em
torno de um mecanismo qualquer que garantisse o primaLua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
do do pluralismo na América Latina, demonstra a sua sensibilidade para um tema que teria largo desenvolvimento
no século XX: aquele da preservação dos direitos humanos
contra no plano nacional e internacional contra o arbítrio
dos regimes autoritários8. Esta era uma preocupação também de Rui Barbosa, o outro liberal democrata do período.
A disseminação de mecanismos de controle jurisdicional da
constitucionalidade por quase todos os países do mundo,
na forma de Cortes Constitucionais, bem como as intervenções humanitárias e a instalação do Tribunal Penal Internacional, julgando os ditadores decaídos por crimes de
genocídio, seriam certamente saudadas por Nabuco como
conquistas da civilização, que respondiam às suas angústias
e preocupações. A literatura jurídica a respeito do tema é
imensa e chega com força na teoria política: basta lembrar
que Pierre Rosanvallon, um dos maiores teóricos contemporâneos da democracia, lhe dedicou um capítulo inteiro
de seu último livro (Rosanvallon, 2008).
Tais são fatos que, independentemente dos valores,
motivos e intenções que lhe são subjacentes, sugerem a atua­
lidade e a produtividade do pensamento republicano do
“segundo Nabuco”. Daí a necessidade de lhe conferir maior
atenção, devolvendo-lhe a integridade de sua dimensão
intelectual e redimensionando-o como pensador da nossa
condição nacional.
Christian Edward Cyril Lynch
é professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da
UGF e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política
do Iesp-Uerj.
8
Ainda em 1904, por exemplo, escreve Nabuco em seu diário ter o desejo de “um
dia escrever um pequeno tratado sobre o direito que a civilização tem de intervir
em Estados que perderam a característica de nações organizadas e se tornaram
praticamente hordas de bandidos organizados, exercendo a espoliação, o terror, a
desmoralização da comunhão indefesa” (Nabuco, 2005, p. 294).
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
309
O Império é que era a República
Referências bibliográficas
310
ALENCAR, J. A. 2008. “Joaquim Nabuco: monarquista no Brasil, republicano no Chile”. In: Nabuco, J. Balmaceda. São Paulo: Cosac Naify.
ALONSO, A. 2002. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-império. São Paulo: Paz e Terra.
. 2007. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Companhia
das Letras.
. 2009a. “Arrivistas e decadentes: o debate político intelectual brasileiro na primeira década republicana”. Novos Estudos, no 85, pp. 131-148.
. 2009b. “A década monarquista de Joaquim Nabuco”. Revista USP,
no 83, pp. 53-66.
CANDIDO, A. 2004. “Radicalismos”. In: Vários escritos. Rio de Janeiro:
Duas Cidades.
CARVALHO, M. A. R. 2000. Joaquim Nabuco e a política. Tempo Brasileiro,
no 140, pp. 7-33.
CARVALHO, J. M. 1987. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo: Companhia das Letras.
DAHL, R. A. Poliarchy: participation and oposition. New Haven/Londres:
Yale University Press.
FERNANDES, M. L. 2007. “Silva Jardim e Joaquim Nabuco: uma polêmica
acerca da Abolição e da República”. Paper apresentado no XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, Recife (mimeo.).
FURET, F. 1989. Pensando a revolução francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
GRYZINSKY, V. 2007. “O rei e nós”. Veja, 14 nov. 2007.
JORNAL DO BRASIL. 1891a. “Outras ilusões republicanas: as raízes
da monarquia”.
. 1891b. “Outras ilusões republicanas (II): as raízes da monarquia”, 4 out.
LYNCH, C. E. C. 2008. “O pensamento conservador ibero-americano na
era das independências (1808-1850)”. Lua Nova, no 74, pp. 59-92.
MELLO, E. C. 2001. A ferida de Narciso: estudos de história regional. São
Paulo, Ed. Senac.
MILL, J. S. 1983. O governo representativo. São Paulo: Ibrasa.
MITCHELL, L. 2005. The whig world (1760-1837). Londres, Hamble­
don Continuum.
NABUCO, J. 1901. Escritos e discursos literários. Rio de Janeiro: Garnier.
. 1937. Pensamentos soltos. Rio de Janeiro/São Paulo: Civilização Brasileira/Companhia Editora Nacional.
. 1949a. Balmaceda. São Paulo: Progresso Editorial.
. 1949b. Minha formação. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores.
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
Christian Edward Cyril Lynch
. 1949c. Cartas aos amigos. São Paulo: Instituto Progresso, (vol. 2).
. 1949d. Discursos parlamentares. São Paulo: Instituto Progresso.
. 1989. “Artigos de Joaquim Nabuco (última fase) no jornal O País
(seção ‘Campos Neutro’)”. In: GOUVÊA, F. C. (org.). Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República. Recife: Fundação Joaquim Nabuco;
Massangana.
. 1997. Um estadista do império. Rio de Janeiro: Top Books.
. 1999. A abolição e a república. Recife: Ed. UFPE.
. 2005. Diários: 1873-1910. Rio de Janeiro/Recife: Bem-Te-Vi/Fundação Joaquim Nabuco.
NOGUEIRA, M. A. 1984. As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a
monarquia e a república. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
. 2000. “Das tensões, dialéticas e antinomias: o encontro de Nabuco
com a política”. Tempo Brasileiro, no 140, pp. 75-96.
PRADO, M. E. 2005. Memorial das desigualdades: os impasses da cidadania no
Brasil (1870-1902). Rio de Janeiro: Revan.
RIBEIRO, R. J. 2001. A república. São Paulo: Publifolha.
ROSANVALLON, P. 2008. La legitimite démocratique: impartialité, reflexivité,
proximité. Paris: Seuil.
SALLES, R. 1997. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional do
Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks.
. 2000. “Joaquim Nabuco e a frustração da nação abolicionista”. Tempo Brasileiro, no 140, pp. 31-54.
. 2002. Joaquim Nabuco: um pensador do império. Rio de Janeiro:
Topbooks.
STERNHELL, Z. 1997. La droite revolutionnaire – 1885-1914: les origines
françaises du fascisme. Paris: Gallimard.
TOCQUEVILLE, A. 2001. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes.
VIANA FILHO, L. 1952. A vida de Joaquim Nabuco. São Paulo: Companhia
Editora Nacional.
Lua Nova, São Paulo, 85: 277-311, 2012
311
resumos | abstracts
Resumos / Abstracts
CIDADANIA E RETÓRICAS NEGRAS DE INCLUSÃO SOCIAL
Antonio Sergio Alfredo Guimarães
A formação das classes sociais brasileiras de certo
modo coincidiu com as hierarquias herdadas da colonização: os povos anteriormente conquistados ou escravizados,
que passaram a ser definidos por meio da classificação por
raças, nesse processo tornaram-se também subalternos. A
extensão de direitos iguais para todos os membros da nação
se constituiu igualmente de forma peculiar. Neste artigo, eu
exploro o modo pelo qual as hierarquias sociais se mantiveram e se reproduziram no contexto em que a liberdade
individual foi a base para a formação nacional, assim como
a maneira com que os anseios históricos de liberdade cederam lugar, na motivação dos ativistas negros, à igualdade
de oportunidades.
Resumo:
Palavras-chave: Cidadania; Ativismo negro; Retórica de mobili-
zação; Inclusão social.
CITIZENSHIP AND BLACK RHETORIC FOR SOCIAL INCLUSION
The formation of Brazilian social classes coincided
somehow with hierarchies inhered from colonization: the peoples
previously conquered and enslaved, who became defined through
the classification by race, in that process also became subordinate.
The extention of equal rights among the nation’s members was
constituted in a particular way. In this article I explore how social
hierarchies were maintained and reproduced in an ideological
context in which the liberty of citizens was the basis for the formation
of the modern nation, and how the historical claim for freedom was
substituted by equality as political motivation for Black activism.
Abstract:
Citizenship; Black activism; Mobilization rhetoric; Social
inclusion.
Keywords:
Recebido:
25/07/2011 Aprovado: 03/10/2011
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
315
Resumos / Abstracts
O Protesto Negro No Brasil Contemporâneo (1978-2010)
Flavia Rios
Resumo: O protesto de rua é, no presente artigo, a unidade analítica privilegiada para o estudo da trajetória política
do movimento negro brasileiro contemporâneo. A análise
compreende o processo político que vai desde o seu ato
inaugural – que abriria as cortinas de um novo ciclo de
mobilização no bojo das lutas pela liberação democrática
numa sociedade fortemente mobilizada contra a ditadura
–, até a institucionalização de suas demandas e lideranças
políticas, estas últimas agora agentes da igualdade racial
junto ao poder público instituído.
Palavras-Chave:
Movimento negro; Protesto, Democratização;
Identidade coletiva.
316
THE BLACK PROTEST IN CONTEMPORARY BRAZIL (1978-2010)
Abstract: The street protest is, in this article, the privileged analytical
unit to study the political history of Brazilian black movement.
The analysis includes the political process since its inaugural act –
which would open the curtains of a new cycle of mobilization in the
nest of struggles in a democratic society strongly mobilized against
dictatorship – to the institucionalization of its demands and its
political leaders, who are now agents of the racial equality at the
instituted public power.
Keywords:
Black movement; Protest, Democratization; Collective
identity.
Recebido:
04/08/2011 Aprovado: 17/10/2011
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
Resumos / Abstracts
UMA FAMÍLIA DE CULTURA: OS SOUZA CARNEIRO NA
SALVADOR DE INÍCIOS DO SÉCULO XX
Gustavo Rossi
A partir de uma etnografia histórica da sociedade
baiana de inícios do século XX, o artigo trata da trajetória
social e familiar do jornalista, etnógrafo e folclorista Edison
de Souza Carneiro (1912-1972). O foco do texto é duplo: de
um lado, reconstruir a posição social e política dos Souza
Carneiro nos espaços das elites dirigentes de Salvador, atentando-se aos efeitos dessa posição na forma como questões
relativas à raça e à negritude da família foram vivenciadas
por seus membros, e, de outro, desvelar como estas coordenadas de natureza familiar, política e étnica rebateram nos
primeiros experimentos intelectuais de Edison Carneiro,
no final de década de 1920.
Resumo:
Edison Carneiro; Relações raciais; Família
negra; Sociedade baiana; Salvador.
Palavras-chave:
A FAMILY OF CULTURE: THE SOUZA CARNEIROS IN SALVADOR
OF THE EARLY TWENTIETH CENTURY
Based on an ethnography of the history of the early twentieth
century Bahian society, the article addresses the social and familiar
trajectory of the journalist, ethnographer, and folklorist Edison de
Souza Carneiro (1912-1972). The paper’s objectives are twofold: on the
one hand, to reconstruct the social and political position of the Souza
Carneiro family among the ruling elites of Salvador, especially regarding
the effects of their race and blackness in their personal experience, and,
on the other hand, to reveal how these familiar, political and ethnic
experiences affected the early work of Edison Carneiro in the late 1920s.
Abstract:
Edison Carneiro; Race relations; Black family; Bahian
society; Salvador.
Keywords:
Recebido:
05/08/2011 Aprovado: 03/10/2011
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
317
Resumos / Abstracts
TEMPO E MELANCOLIA: REPÚBLICA, MODERNIDADE E
CIDADANIA NEGRA NOS CONTOS DE ASTOLFO MARQUES
(1876-1918)
Matheus Gato de Jesus
318
Resumo: A história da Proclamação da República na periferia setentrional do Império brasileiro (1822-1889), assim
como as especificidades de suas consequências culturais
na região, ainda carece de análises mais detalhadas. No
Maranhão de fin de siècle, a crise econômica do sistema
agroexportador, somada à crise política do trabalho escravo, legou às primeiras décadas do regime republicano
uma intensa luta social em torno da definição dos limites
da cidadania, na qual a subalternização racial da população negra é um ponto decisivo. O presente trabalho é
uma aproximação desses impasses através da obra ficcional do escritor negro maranhense Raul Astolfo Marques
(1876-1918). Filho de uma cafusa livre, o autor é fruto da
geração de descendentes escravos que se debateu com a
fragilidade da liberdade conquistada na Abolição e do
formalismo da igualdade outorgada em 15 de Novembro
de 1889. Uma parte significativa da sua literatura poderia
ser entendida como uma tentativa sistemática de interpretar essas esperanças e frustrações. O tema da República
comparece ao longo de toda a sua trajetória intelectual
em textos como “Abnegação” (1901), “A última sessão”
(1903), “O discurso do Fabrício” (1903), “A opinião da
Euzébia” (1904), “De coroa e barrete” (1908) e “Reis republicanos” (1916). Resta dizer que A nova aurora (1913), seu
único romance, é inteiramente dedicado à descrição dos
primeiros meses de implantação do regime republicano.
Na primeira parte do ensaio indagamos quais “versões da
história” e episódios significativos orientam a reconstrução
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
Resumos / Abstracts
ficcional das consequências do 15 de Novembro na periferia do Brasil, focalizando o conto “O discurso do Fabrício”
e a crônica “A última sessão”. No segundo momento, abordamos o tratamento literário dado pelo autor ao problema da política pública republicana no governo Rodrigues
Alves (1902-1906), período auge da ideologia sanitarista
no país e com tremendo impacto no Maranhão, devido à
eclosão da peste bubônica no início de 1904. Nesse sentido, articulando texto, pré-texto e contexto, visa-se desvendar
os caminhos de uma escolha literária orientada por um
ambiente cultural cada vez mais insulado e periférico no
jogo político oligárquico nacional, de hegemonia paulista
e mineira, mas também mediado por relações de dependência socioeconômica e subordinação racial.
Palavras-chave: República; Modernidade; Cidadania; Maranhão; Intelectuais negros.
TIME AND MELANCHOLY: REPUBLIC, MODERNITY AND BLACK
CITIZENSHIP IN THE SHORT STORY OF ASTOLFO MARQUES
(1876-1918)
The history of the Republic Proclamation in Northern
periphery of the Brazilian Empire (1822-1889), as well as the
specificities of its regional cultural consequences still lack more
detailed analysis. In Maranhão fin de siècle, the economic crisis of
agro-export system added to the slave labor political crisis bequeathed
to the republican regime early decades an intense social struggle
around the definition of the citizenship boundaries, in which the
racial subordination of black people is a crucial point. This paper
looks closer to these deadlocks through the fictional work of the black
writer Raul Astolfo Marques (1876-1918). Son of a free cafusa,
the author is an outgrowth of a generation of slave descendants
who have floundered in the fragility of freedom conquered in the
formalism of Slave Abolition and equality, granted on November
15, 1889. A significant part of his literature can be understood
as a systematic attempt to interpret these hopes and frustrations.
Abstract:
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
319
Resumos / Abstracts
320
The republic subject appears throughout his intellectual career, in
writings e.g. “Abnegação” (1901), “A última sessão” (1903), “O
discurso do Fabrício” (1903), “A opinião da Euzébia” (1904), “De
coroa e barrete” (1908) e “Reis republicanos” (1916). It remains
to be said that his only novel A nova aurora (1913) is entirely
devoted to the description of the first month of republican regime
implementation. In the first part of the present paper, I ask which
“versions of history” and significant episodes guide his fictional
reconstruction of the November 15th 1889 consequences, focusing
the short story “O discurso do Fabrício” and the chronicle “A
última sessão”. In the second part, I discuss the literary treatment
given by the author to the problem of public policy in Rodrigues
Alves (1902-1906) republican government, the heyday of
sanitation ideology in the country, with tremendous impact in
Maranhão due to the outbreak of bubonic plague in early 1904s.
In this respect, combining text, pre-text and context, it is
intended to unveil the pathways of a literary choice guided by an
increasingly insulated and peripheral cultural environment in the
oligarchic political game with hegemony of São Paulo and Minas
Gerais, but also mediated by dependent socio-economic relations
and racial subordination.
Republic; Modernity; Citizenship; Maranhão; Black
intellectuals.
Keywords:
Recebido:
29/07/2011 Aprovado: 17/10/2011
RAÇA E COMPORTAMENTO POLÍTICO: PARTICIPAÇÃO,
ATIVISMO E RECURSOS EM BELO HORIZONTE
Natália S. Bueno
Resumo: A discussão sobre raça na política brasileira é mote
entre cientistas sociais de diversas perspectivas: seja pelo
seu papel na formação do Estado nacional, nos movimentos sociais ou ainda nas políticas públicas voltadas a grupos
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
Resumos / Abstracts
raciais. Utilizando a abordagem centrada em recursos, argumenta-se que o pertencimento a um grupo racial não afeta de forma substantiva a propensão a atuar politicamente
em Belo Horizonte, ao passo que fatores socioeconômicos,
como renda e escolaridade, são nitidamente mais relevantes. Esses resultados empíricos, por sua vez, não eliminam o
fato de que a abordagem dos recursos apresenta limitações
para testar os fatores que levariam à mobilização racialmente orientada no Brasil.
Raça; Belo Horizonte; Recursos; Participação
política; Ativismo.
Palavras-chave:
RACE AND POLITICAL BEHAVIOR: PARTICIPATION, ACTIVISM,
AND RESOURCES IN BELO HORIZONTE
Social scientists approach the role of race in Brazilian
politics from diverse perspectives: its role in the making of the
nation-state, social movements, or race-targeted public policies. This
paper takes on race as a central issue and looks into race’s effect on
individual political behavior. Using the resource-based approach as
a framework, races does not seem to affect an individual’s chance
of participating politically in Belo Horizonte, whereas the possession of
resources such as income and education substantially increases an
individual’s likelihood of participation. Despite these findings, it
is argued that the resource-based approach has a limited capacity
to test all factors that lead to political behavior influenced by
racial identity.
Abstract:
Race; Belo Horizonte; Resources; Political behavior;
Keywords:
Activism.
Recebido:
02/08/2011 Aprovado: 03/10/2011
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
321
Resumos / Abstracts
FAZER HISTÓRIA, FAZER SENTIDO: ASSOCIAÇÃO CULTURAL
DO NEGRO (1954-1964)
Mário Augusto Medeiros da Silva
Discutir-se-ão os anos iniciais de atuação da Associação Cultural do Negro, criada por antigos ativistas e
intelectuais da imprensa negra paulistana. Naquele perío­
do, ela conseguiu promover ações, jornais, livros e atos
públicos visando debater o papel do negro na formação
da sociedade brasileira, situando-o num lugar alternativo
ao da subalternidade imposta pelo fim da escravidão. Foi
apoiada por intelectuais, escritores, sociólogos, ativistas
(nacionais e estrangeiros) interessados pelos problemas
do grupo negro no Brasil e no continente africano, como
Florestan Fernandes, Sérgio Milliet, José Mindlin, Henrique Losinkas Alves, Léon Gontran Damas e os intelec­
tuais da revista Présence Africaine, entre outros. O interesse
do artigo é pensar os alcances e limites dessa associação e
suas atividades, pouco refletida pela bibliografia conhecida sobre relações raciais e história de movimentos negros
no Brasil.
Resumo:
322
Associação Cultural do Negro; Movimento
negro; Relações raciais; São Paulo.
Palavras-Chave:
MAKE HISTORY, MAKE SENSE: ASSOCIAÇÃO CULTURAL DO
NEGRO (1954-1964)
Abstract: It will be discussed the initials years of Associação Cultural
do Negro, created by olders activists and intelectuals of black press
in São Paulo. During that period, it was able to promote actions,
newspapers, books and public events aimed at discussing the
role of blacks in the Brazilian society formation, placing it in an
alternative place of subordination imposed by the end of slavery.
It was supported by intellectuals, writers, sociologists, activists
interested in the problems of the black group in Brazil and Africa,
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
Resumos / Abstracts
as Florestan Fernandes, Sergio Millet, José Mindlin, Henrique
Losinkas Alves, Léon Gontran Damas and intellectuals of the journal
Présence Africaine, among others. The interest of the paper is to
discuss the scope and limits of this association and its activities,
not discussed by the literature on race relations and history of black
movements in Brazil.
Keywords: Associação
Cultural do Negro; Black movement; Racials
relations; São Paulo.
Recebido:
16/05/2011 Aprovado: 31/10/2011
O IMPÉRIO É QUE ERA A REPÚBLICA: A MONARQUIA
REPUBLICANA DE JOAQUIM NABUCO
Christian Edward Cyril Lynch
O artigo debruça-se sobre a incompreendida fidelidade à Monarquia por parte de Joaquim Nabuco depois
da Abolição da Escravatura, quando ele passou a refletir sobre as condições de possibilidade de construção de
uma sociedade republicana liberal no Brasil. Estudando
seus escritos monarquistas publicados entre 1888 e 1896,
percebe-se que Nabuco permaneceu monarquista por julgar que o advento do regime republicano, na modalidade
oligárquica proposta pelo partido homônimo, ao invés
de auxiliá-la, prejudicaria o advento de uma sociedade
autenticamente republicana, liberal e democrática. Considerações de ordem pragmática levavam-no a ver a Monarquia como um instrumento capaz de mais bem preparar
a sociedade brasileira para uma República que fosse além
do mero rótulo, sem desnível entre forma e conteúdo, o
país legal e o real.
Resumo:
Palavras-chave: Pensamento político brasileiro; Joaquim Nabu-
co; Império; República; Monarquismo.
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
323
Resumos / Abstracts
THE BRAZILIAN EMPIRE AS THE TRUE REPUBLIC: JOAQUIM
NABUCO’S PROJECT OF A REPUBLICAN MONARCHY
The article focuses on the misunderstood loyalty to the
monarchy by Nabuco after the Abolition of Slavery, when he
began to reflect on the conditions of possibility of building a liberal
republican society in Brazil. In studying his writings published
between 1888 and monarchists 1896, it is clear that Nabuco
remained royalist judge by the advent of the republican regime, in
the form proposed by the oligarchic party namesake, instead of help
it would impair the advent of a truly republican society, liberal and
democratic. Pragmatic considerations led him to see the monarchy
as a tool to better prepare the Brazilian society to a republic that
would go beyond the mere label, with no gap between form and
content, the legal and real country.
Abstract:
Brazilian political tought; Joaquim Nabuco; Empire;
Republic; Royalism.
Keywords:
324
Recebido:
01/06/2011 Aprovado: 16/12/2011
Lua Nova, São Paulo, 85: 315-324, 2012
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS
Lua Nova aceita propostas de artigos, mas todas as colaborações serão submetidas ao Conselho Editorial da revista,
que as encaminhará a dois pareceristas externos. Ao Conselho cabe a decisão final sobre a publicação, reservando-se o
direito de sugerir ao autor modificações, com o objetivo de
adequar o artigo às dimensões da revista ou ao seu padrão
editorial. Salvo casos excepcionais, os originais não deverão
ultrapassar 25 laudas (em espaço dois, de 2.100 caracteres).
O autor deverá enviar ainda um resumo analítico do
artigo, em português e inglês, que não ultrapasse 10 linhas,
com palavras-chave. O autor deverá encaminhar à redação da revista o artigo via ou correio eletrônico, ou correio impresso, acompanhado do arquivo em disquete com
o mínimo de formatação, observando especialmente o
padrão para apresentação de notas e bibliografia.
A publicação de um artigo é de inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, portanto, o endosso do Conselho Editorial. Seguem abaixo exemplos de como se deve
aplicar as normas bibliográficas:
Livro:
GOMES, L. G. F. F. 1998. Novela e sociedade no Brasil. 3ª ed. Niterói: Cortez.
Capítulo de livro:
ROMANO, G. 1996. “Imagens da juventude na era moderna”. In: LEVI,
G.; SCHIMIDT, J. (orgs.). História dos jovens 2. São Paulo: Companhia
das Letras.
Artigo e/ou matéria de revista:
GURGEL, C. 1997. “Reforma do Estado e segurança pública”. Política e
Administração, vol. 3, nº 2, pp. 15-21.
Artigo e/ou matéria de revista em meio eletrônico:
VIEIRA, C.; LOPES, M. 1994. “A queda do cometa”. Neo Interativa, Rio de
Janeiro, no 2, inverno. CD-ROM.
VIEIRA, C.; LOPES, M. 1998. “Crimes da era digital”. Net, Rio de Janeiro,
nov. Seção Ponto de Vista. Disponível em: http://brazilnet.com.br/
contexts/brasilrevistas.htm
Observações:
1. As referências bibliográficas não devem ser consideradas
notas de rodapé. Assim, elas serão inseridas no final do
artigo.
2. As fontes de citações ou remissões a obras devem ser
feitas no corpo do texto, entre parênteses, colocando-se o(s) sobrenome(s) do(s) autor(es), data e página(s)
onde se encontram as citações. Exemplos: (Romano,
1996); (Gurgel, 1997, p. 17); (Vieira e Lopes, 1994). No
caso de haver mais de uma obra do mesmo autor com
a mesma data, pedimos identificá-las tanto na citação
quanto na bibliografia com o acréscimo de letras em
minúsculo. Exemplo: (Said, 2007a) ou (Said, 2007b, p.
35) no caso de:
SAID, E. W. 2007a. Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Companhia
das Letras.
_______. 2007b. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras.
3. No rodapé, devem constar notas propriamente ditas e
não referências bibliográficas.
O artigo deve ser encaminhado ao Cedec através do
e-mail: [email protected].
Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec)
Rua Airosa Galvão, 64, Água Branca, cep 05002-070, São Paulo, SP
Fones: +55(11) 3871.2966, 3569.9237 – Fax: +55(11) 3871.2123
E-mail: [email protected]
Copyright © 2012 – Todos os direitos reservados