estácio de sá ciências humanas
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estácio de sá ciências humanas
ISSN: 1984 - 2864 ESTÁCIO DE SÁ CIÊNCIAS HUMANAS Revista da Faculdade Estácio de Sá de Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, Dez. 2008 / Jun. 2009 Ficha Catalográfica da Revista LOPES, Edmar Aparecido de Barra e. Revista de Ciências Humanas da Faculdade Estácio de Sá de Goiás- FESGO. Goiânia, GO, v.01, nº01, dez.2008. Nota: Revista da Faculdade Estácio de Sá de Goiás – FESGO. I. Ciências Humanas. II- Título: Revista de Ciências Humanas. III. Publicações Científicas. CDD 300 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CPI) Faculdade de Goiás Catalogação na Fonte / Biblioteca FAGO Jacqueline R.Yoshida – Bibliotecária – CRB 1901 ESTÁCIO DE SÁ CIÊNCIAS HUMANAS FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ DE GOIÁS – FESGO VOLUME 1-1, N. 01, DEZEMBRO DE 2008, PERIODICIDADE: SEMESTRAL. ISSN : 1984 - 2864 _____________________________________________________________________________ ESTÁCIO DE SÁ CIÊNCIAS HUMANAS Revista da Faculdade Estácio de Sá de Goiás – FESGO Cursos de: GO Administração Enfermagem Farmácia Educação Física Fisioterapia Recursos Humanos Redes de Computadores ______________________________________________________________________________ ESTÁCIO DE SÁ CIÊNCIAS HUMANAS Editor Cientifico: Edmar Aparecido de Barra e Lopes Conselho Editorial Executivo: Anderson de Brito Rodrigues Amone Inácia Alves Edmar Aparecido de Barra e Lopes Eguimar Felício Chaveiro Jaqueline Veloso Portela de Araujo Nildo Silva Viana Conselho Editorial Consultivo: Amone Inácia Alves Claudio Luiz Correia de Freitas Edmar Aparecido de Barra e Lopes Edicassia Rodrigues de Morais Cardoso Elisa Mara Silveira Fernandes Leão Jose Walber Borges Pinheiro Margareth Ribeiro Machado Santos Silva Maria Aparecida Teles Rocha Nildo Viana Paulo Henrique Castanheira Vasconcelos Tadeu Alencar Arraes Valdeniza Maria Lopes da Barra Equipe Técnica: Editoração Eletrônica , Coordenação Gráfica, Capa e Revisão de Texto em Inglês: Edclio Consultoria: Editoria, Pesquisa e Comunicação Ltda Projeto Editorial, Projeto Gráfico, Preparação, Revisão Geral: Edmar Aparecido de Barra e Lopes Endereço para correspondência/Address for correspondence: Rua, 67-A, número 216 – Setor Norte Ferroviário, Goiânia-GO, CEP: 74.063-331. Coordenação do Núcleo de Pesquisa. Informações: Tel.: (62) 3212-0088 Email: [email protected] [email protected] FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ DE GOIÁS-FESGO ____________________________________________________________________________________________________ Diretora geral: Sirle Maria dos Santos Vieira Diretor acadêmico: Adriano Luís Fonseca Diretor financeiro: Vicente de Paula Secretária geral de cursos: Auricele Siqueira Ferreira COORDENADORES DE CURSOS Administração/RH Ana Cristina Pacheco Veríssimo Enfermagem Cristina Galdino de Alencar Farmácia Edson Sidião Souza Junior Fisioterapia e Educação Física Patrícia de Sá Barros Redes de Computadores Samir Youssif Wehbi Arabi COORDENADORES DE NÚCLEOS Coordenação do Núcleo de Pesquisa: Edmar Aparecido de Barra e Lopes Coordenação do Núcleo de EAD: Mara Silvia dos Santos SUMÁRIO EDITORIAL APRESENTAÇÃO DOSSIÊ: “CULTURA E PODER” Edmar Aparecido de Barra e Lopes (Org.) 12 - 29 António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista Mário Maestri 30 – 50 Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández de Kirchner Inés Valdez 51 – 73 Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Izadora Xavier 74 - 92 A “Perspectiva de Gênero” na política imigratória da União Européia: expectativas e dificuldades Flávia Guerra Erica Simone Almeida Resende 93 - 104 A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Eguimar Felício Chaveiro Angelita Lopes 105 - 124 As formas do silêncio na literatura brasileira e portuguesa: Vidas Secas e Gaibéus Marilúcia Mendes Ramos Kellen Millene Camargos Resende 126 - 138 No contexto da reestruturação produtiva: o trabalho e a formação profissional do docente frente à educação inclusiva Yara Fonseca Oliveira Silva 139 - 150 Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas Gláucia Peclát 151 - 162 Bons e maus selvagens: textos imagens e representações sobre o índio. Rosani Moreira Leitão. 163 - 179 A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Edson Pereira da Silva. 180 - 194 Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Gleidson de Oliveira Moreira 195 - 206 Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás Júlio César Pereira Borges 207 - 220 Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades Juliano Martins Rodrigues Adão Francisco de Oliveira 221 - 238 Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia Marcelo Gomes Ribeiro 239 - 260 Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (1933-1963): origens do capital Dulce Portilho Maciel 261 - 269 As raízes da sociologia brasileira Maria Angélica Peixoto 271 - 285 Formas usuais de medição do setor informal Edmar Aparecido de Barra e Lopes PESQUISA 286 - 291 Utilização de geotecnologias para detecção de mudanças de uso no cerrado Simone de Almeida Jácomo 292 - 304 A história construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço Beatriz Coroa do Couto Edmar Aparecido de Barra e Lopes RESENHA 305 - 311 Campos negros: as múltiplas faces da resistência quilombola no universo oitocentista do Rio de Janeiro Leonara Lacerda Delfino NORMAS PARA PUBLICAÇÃO EDITORIAL A revista Estácio de Sá - Ciências Humanas é uma realização coletiva. Está enraizada na necessidade de um periódico científico há muito já colocada pela comunidade acadêmica. Assim a revista não poderia existir sem esta sensibilidade acadêmica pré-existente ao projeto que ora se realiza e que o legitima. Muitos especialistas colaboraram com a árdua, competente e generosa tarefa de fornecer pareceres para o sem-número de artigos que nos foram enviados. Sem a contribuição de tais profissionais não teria sido possível trazer a público o resultado final de nossos esforços; expresso nos artigos publicados. É hora também de ressaltar a indispensável participação dos coordenadores de cursos no projeto, bem como o apoio incondicional que o projeto da revista Estácio de Sá - Ciências Humanas recebeu desde seu início da direção da instituição. Necessário também ressaltar que a revista Estácio de Sá - Ciências Humanas seria impensável, caso não estivesse contando com o crescente e cada vez mais intenso envolvimento de professores dos cursos desta Instituição. Os artigos aqui publicados dão visibilidade a participação de novos pesquisadores no meio acadêmico, sem abrir mão da necessária contribuição oferecida por nomes mais experientes no cenário da produção cientifíca nacional. Neste sentido, por exemplo, o número 01 de Estácio de Sá - Ciências Humanas traz ao público leitor contribuições de: 1) o dossiê “Cultura e Poder” (coordenado por Edmar Aparecido de Barra e Lopes), com contribuições de Mário Maestri, Inés Valdez, Izadora Xavier, Flávia Guerra, Erica Simone Almeida Resende, Angelita Lopes e Eguimar Felício Chaveiro, Kellen Millene Camargos Resende e Marilúcia Mendes Ramos; 2) artigos de: Yara Fonseca Oliveira Silva; Gláucia Peclát; Rosani Moreira Leitão; Edson Pereira da Silva; Gleidson de Oliveira Moreira; Júlio César Pereira Borges; Adão Francisco de Oliveira e Juliano Martins Rodrigues; Marcelo Gomes Ribeiro; Dulce Portilho Macie, Maria Angélica Peixoto e Amone Inacia Alves ; 3) Pesquisas de Simone de Almeida Jacomo, Beatriz Coroa do Couto e Edmar Aparecido de Barra e Lopes e; 4) Resenha de Leonara Lacerda Delfino. No mais, cabe ainda ressaltar, que a revista Estácio de Sá - Ciências Humanas expressa o investimento da Faculdade Estácio de Sá de Goiás na defesa de um projeto de educação há muito conhecido, ou seja, a necessidade da articulação sistêmica entre ensino, pesquisa e extensão. Prof. Dr. Edmar Aparecido de Barra e Lopes Editor-Cientifíco APRESENTAÇÃO O primeiro número da revista Estácio de Sá - Ciências Humanas vem à luz, marcando o reforço do compromisso da Faculdade Estácio de Sá de Goiás com a produção do conhecimento. Com periodicidade semestral, a revista Estácio de Sá - Ciências Humanas, diretamente integrada ao Núcleo de Pesquisa desta instituição, conta com a colaboração dos professores dos cursos de graduação e programas de pós-graduação de nossa Instituição bem como de colaboradores de outras instituições, unidos pela luta incansável implicada no processo de produção científica. Trazer a público o primeiro número da revista Estácio de Sá – Ciências Humanas é motivo de celebração para a nossa instituição que, apesar de tão nova (4 anos), já conta com: 7 cursos de graduação; 6 cursos de pós-graduação; 1 parceria em projeto de pesquisa financiado pela FAPEG-GO; 01 pós-doutor; 05 doutores; 03 doutorandos; 29 mestres; 03 mestrandos; 14 especialistas e 03 graduados em processo de especialização. Além de iniciativas na área da pesquisa que têm procurado consolidar um programa institucional de bolsas de iniciação cientifica, além da formação de grupos de pesquisa visando financiamento externo para novas parcerias em projetos de pesquisa A relevância social e científica desse períodico destaca-se pela amplitude do leque de temas interligados numa perspectiva educacional. Abordando temas de ordem diversa, as colaborações que compõem esse primeiro número da revista Estácio de Sá - Ciências Humanas refletem a preocupação da Faculdade Estácio de Sá de Goiás com o ensino, a pesquisa e a extensão, porém, sem perder de vista as fronteiras desse tripé com: a democracia e a ética, a cidadania e a pessoa humana. O nº 01 da revista Estácio de Sá - Ciências Humanas soma-se a outras iniciativas da Faculdade Estácio de Sá de Goiás nas áreas do ensino, pesquisa e extensão, visando encontrar respostas paras os novos desafios colocados para as instituições privadas no âmbito das novas medidas de controle, avaliação e regulação implementadas pelo Estado, tais como: aumento das exigências de produção intelectual institucionalizada; aumento qualificação do corpo docente em nível de mestrado e doutorado; adoção de políticas de responsabilidade social Esperamos contar com a contínua colaboração de todos para que o projeto conquiste a devida legitimidade científica. PROF. MS. ADRIANO LUIS FONSECA Diretor Acadêmico da Faculdade Estácio de Sá de Goiás DOSSIÊ: “CULTURA E PODER” Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. ANTÓNIO SANCHES: A VOZ ANGUSTIADA DE UM CRISTÃO-NOVO DE JUDEU ABOLICIONISTA Mário Maestri∗ Resumo: A partir do século 15, as poucas vozes que questionaram, no mundo lusitano, as justificativas religiosas, morais, éticas e sociais do tráfico e de da exploração do trabalhador escravizado foram duramente silenciadas, sobretudo pela Inquisição, sofrendo a prisão, o degredo, etc. Entre esses raros críticos da escravidão destacam-se o gramático Fernão de Oliveira, e sua obra A arte da guerra do mar, de 1555, e o médico António Sanches. Português cristão novo de judeu, obrigado a viver no exílio devido às suas visões de mundo, no contexto das reformas pombalinas do ensino, de 1759, Sanches foi convidado por autoridade portuguesas a escrever, em Cartas sobre a educação da mocidade, suas propostas de remodelação do ensino , aproveitando o ensejo para tecer duras críticas à escravidão. O presente artigo traça sinteticamente a biografia de António Sanches e apresenta as diretrizes de sua visão abolicionista. Palavras-chave: História das idéias; Abolicionismo em Portugal; A escravidão em Portugal. . Abstract: From the 15 century, the few voices that had questioned the religious, moral, ethical and social justifications of the slave trade and worker’s exploration in the Lusitanian world were hardly silenced, especially by the Inquisition, suffering the arrest, the banishment, etc. Among these rare slavery’s critics are distinguished the grammarian Fernão de Oliveira, and his work “A arte da guerra do mar”, in 1555, and the doctor António Sanches. Portuguese New Christian of Jew, forced to live in the exile due to his world personal view, in the context of the Pombal’s education reforms, in 1759, Sanches was invited by Portuguese authorities to write, in “Cartas sobre a educação da mocidade”, his proposals for remodeling the education, taking to opportunity to hardly criticize the slavery. The present article traces, in a synthetically way, the biography of António Sanches and sets guidelines on his abolitionist vision Key-words: History of ideas; Abolitionism in Portugal; The slavery in Portugal. Primeira e última potência negreira européia, Portugal jamais conheceu uma voz potente, como a do frei espanhol Bartolomeo de las Casas, que se levantasse denunciando o tráfico e a feitorização dos americanos e dos africanos. Porém, mesmo raras, houve palavras lusitanas lúcidas e destemidas que destoaram e se opôs ao coro negreiro. A relativa ignorância sobre essas vozes deve-se sobretudo ao fato de terem sido abafadas, no momento da sua enunciação, e subalternizadas, a seguir, pelas ∗ Doutorado (pós-doutorado). Primeira área de atuação: ciências humanas – história. instituição: Universidade de Passo Fundo. email: [email protected]. 12 MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01,12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. ciências sociais, no momento da seleção e legitimação dos locutores referenciais do passado. Em geral, registram-se três autores ibéricos que teriam feito escutar em Portugal, com maior ou menor radicalismo, suas críticas contra o tráfico ou a escravidão, mais de cem anos após a chegada dos primeiros africanos em Lagos: Domingo de Soto, em 1556; Martín de Ledesma, em 1550-60 e Fernão de Oliveira, em 1555. Alguns eclesiásticos levantaram-se no Brasil contra a escravidão, conhecendo igual silenciamento. No século 16, os jesuítas Gonçalo Leite e Miguel Garcia, e em fins do século 18, o capuchinho José de Bolonha, opuseram-se à escravidão do nativo e, em alguns casos, do africano, devendo por isso abandonar a colônia1. O espanhol Domingo de Soto [1494-1570] ensinou teologia em Salamanca, foi confessor de Carlos I, destacou-se como comentarista das obras de Aristóteles, participou dos debates do Concilio de Trento e integrou a comissão de teólogos reunida em Valladolid, em 1550-1, para debater a escravização dos americanos. Em De Iustitia et Iure, interrogou-se “sobre a legitimidade das guerras entre africanos negros, embora se limitasse admoestar os amos de má consciência que vendessem aqueles de seus escravos capturados em semelhantes guerras”.2 Ele terminou propondo que a escravidão podia ser «não apenas lícita» mas verdadeiro «fruto da misericórdia», quando livrava o escravizado de uma pena maior, como a morte.3 Após estudar teologia e ensinar em Salamanca, o dominicano espanhol Martín de Ledesma foi chamado, em 1541, por dom João III, para ensinar teologia em Coimbra, onde faleceu em 1574, com pouco mais de sessenta anos. Martín de Ledesma criticou parcialmente o tráfico, defendendo as conversões livres do africano, ao qual negou a condição de selvagem. Foi, portanto, bem mais longe do que seu coetâneo Porém, em Secunda Quartae, de 1560, aceitou a compra legal, condenando às penas do castigo sofrido na vida eterna apenas os detentores de cativos obtidos ilegalmente. Portanto, dificilmente pode ser proposto como crítico da escravidão.4 II. A vida atribulada do gramático Fernão de Oliveira, crítico radical da escravidão e do tráfico negreiro Coube ao português Fernão de Oliveira5 o privilégio da mais radical diatribe lusitana conhecida em defesa do homem negro escravizado. Filho de Heitor de Oliveira, juiz dos órfãos em Pedrógão, Fernão de Oliveira nasceu por voltas de 1507, na MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 13 vila de Aveiro, no seio de família que ele próprio apresenta como modesta. Em 1520, aos treze anos, teria entrado como noviço no convento de Évora, da Ordem de São Domingos, onde estudou Gramática e outras disciplinas, na sua progressão em direção ao estado canônico.6 Em 1532, aos 25 anos, por razões ainda desconhecidas, abandonou o convento dominicano para refugiar-se em Castela, de onde voltou, em 1535, para lecionar jovens fidalgos e publicar, em 1536, em Lisboa, aquela que seria a primeira Gramática da língua portuguesa conhecida.7 Nos anos 1530, o acolhimento de sua Gramática da língua portuguesa e a sua qualificação intelectual pareciam oferecer-lhe futuro social e profissional, se não radioso, ao menos seguro, como preceptor de filhos de algumas das mais ilustres famílias do Reino, entre elas, a de João de Barros, o cronista das Índias, e a de dom Fernando de Almada, ao qual dedica sua Gramática, por o ter acolhido, “com muita despesa”, para sua “casa” onde “graciosa e compridamente” o conservara.8 Em 1540, Fernão de Oliveira partiu outra vez para Espanha, sem que também se saiba os motivos. Durante viagem de Barcelona para Gênova, teria sido aprisionado pelos franceses, aos quais serviria como piloto.9 Em 1543, voltava da Itália para Portugal, em companhia do núncio apostólico dom Luiz Lippomano.10 Nos dois anos seguintes, viveu no ostracismo ou, talvez, em anonimato relativo. Em junho de 1545, sob falso nome, arrolou-se novamente como piloto em esquadra francesa que passava pelo Tejo para juntarem-se à expedição contra a Inglaterra. No primeiro semestre de 1546, devido às vicissitudes da guerra do mar, a galé em que o sacerdote-gramático-piloto servia foi capturada no canal da Mancha. Na capital inglesa, o infeliz prisioneiro teria se arranjado para cair nas boas graças de Henrique VIII, às turras com Roma, o que nos ilumina fugazmente sobre a heterodoxia de sua visão de mundo, em relação ao universo ideológico e social ibérico da época.11 Em janeiro de 1547, com a morte do soberano inglês, subiu ao trono Eduardo VI, que cedeu a Fernão de Oliveira licença para partir e carta de recomendação ao rei português, com a qual o sacerdote racionalista teria se apresentado a dom João III no “começo do outono de 1547”. Então, Fernão de Oliveira vivia como homem laico, muito ao estilo inglês, no “bairro de mareantes” de Cata-que-Farás. Ao entardecer de 18 de novembro de 1547, à porta de livraria lisboeta, na rua Nova, Fernão de Oliveira, então com 40 anos, deixou-se envolver imprudentemente em provocação promovida pelo livreiro cristão-novo de judeu, seu desafeto, sobre a MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 14 Inglaterra e as ações de Henrique VIII contra o papado, que foram por ele defendidas acaloradamente. Denunciado por João de Borgonha à Inquisição, as “primeiras inquirições” foram efetuadas dois dias mais tarde, já na prisão, onde o malogrado Fernão de Oliveira permaneceria por longo tempo. Diante do Santo Ofício, o prisioneiro teria se negado a condenar Henrique VIII, que disse tê-lo recebido e alimentado.12 Em agosto de 1548, era condenado por suas “heréticas, temerárias e escandalosas” doutrinas e, possivelmente, por sua negativa de se dobrar às injunções do dito Santo Ofício.13 Em “3 de setembro de 1550”, transcorridos três anos de encarceramento, segundo parece, sob intervenção direta do cardeal dom Henrique, Fernão de Oliveira foi libertado e enviado ao mosteiro de Belém, após abjurar seus erros, sob condição de “retomar o hábito e tonsura sacerdotal” do qual “há muito se desabituara”.14 Em agosto de 1552, possivelmente em busca de ares menos opressivos, e certamente procurando pôr-se longe do alcance dos imensos braços da Inquisição, outra vez, Fernão de Oliveira embarcava-se, como sacerdote nos papéis, eventualmente como piloto nos fatos, em pequena expedição de cinco embarcações, enviada por dom João III, para “transportar e repor nos seus antigos domínios o destronado rei de Vélez, em Marrocos”.15 Novamente, Fernão de Oliveira foi aprisionado, desta vez no porto de Vélez, por frota argelina, sendo transportado com outros prisioneiros para Argel, de onde, igualmente deslanchado, conseguiu partir, a seguir, para Lisboa, para tratar do resgate dos cativos. Em fins de 1552, após chegar à capital portuguesa, teria sido apartado da operação das negociações sobre o resgate por inspirar pouca confiança à administração real. Como resultado de suas andanças pelos mares, Fernão de Oliveira escreveu A arte da guerra do mar, em Lisboa, em 1552-4, na casa de dom António da Cunha, pai de dom Nuno da Cunha, a quem dedicaria o livro. Porém, em janeiro de 1554, sofreu nova ordem de prisão, por suas opiniões, parece que denunciado pelo próprio hospedeiro.16 Ao menos imediatamente, a ação punitiva não teria tido maiores conseqüências. Em dezembro de 1554, como fênix que renasce das cinzas, Fernão de Oliveira era nomeado revisor tipográfico da Imprensa da Universidade de Coimbra, onde teria ensinado “retórica” durante o ano acadêmico de “1554-5”, com “notável competência”. Suas funções na imprensa da Universidade permitiram concluir a publicação de seu livro, em 4 de julho de 1555. Possivelmente, esses foram os momentos de maior consagração e tranqüilidade da vida atribulada do pensador português.17 MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 15 O livro surgia em tempos de conflitos e de rupturas. A arte da guerra do mar foi redigida precisamente no momento em que a coroa e as classes aristocráticas portuguesas apoiavam-se na Inquisição para combater a pressão das classes burguesas européias e portuguesas e a cisão causada pela Reforma no ordenamento políticoideológico feudal. Em 1555, quando A arte da guerra do mar foi conhecida, faziam cento e dez anos que negro-africanos haviam começado a ser filhados, aos magotes, nas costas do Continente Negro, para serem levados para a Península Ibérica ou reexpedidos, a seguir, para o Novo Mundo, tornando-se uma das principais fontes de riqueza das elites lusitanas. Mais ainda. No momento em que o autor estampava suas idéias, o fluxo negreiro era potenciado e reorientado parcialmente para as capitanias luso-americanas, devido ao esgotamento das possibilidades de expansão açucareira a partir da escravidão do americano.18 Em A arte da guerra do mar, livro síntese de suas experiências militares, Fernão de Oliveira dedica praticamente dois capítulos a atacar, um por um, frontalmente, os argumentos basilares da retórica justificadora do tráfico e da escravidão. Ou seja, um dos grandes eixos da aliança entre a Igreja, o Estado absolutista e as elites aristocráticas e mercantis lusitanas.19 O segundo capítulo do livro – “De quem pode fazer guerra” – é dedicado à abordagem das condições gerais para que uma guerra fosse justa. Segundo o autor, o direito da guerra era de exclusiva alçada do príncipe, ou seja, do Estado. Porém, apesar do príncipe ter que prestar contas apenas a deus, seu único superior, ele devia agir em exclusiva defesa de seu povo e da verdadeira fé, para não ser tirânico. Destruía igualmente as razões propostas da captura de africanos.20 As razões fortes de Fernão de Oliveira foram sem dúvida escutadas, pelos ouvidos errados. Em 26 de outubro de 1555, pouco mais de três meses após a edição de Arte da guerra do mar, aos 48 anos, o pensador radical era novamente preso pela Inquisição, crê-se que até 1557. A publicação desse ensaio e o novo encarceramento assinalaram seu eclipse social, mesmo que tenha, possivelmente, alcançado a velhice, ativamente.21 Pouco conhecemos sobre as últimas décadas da vida de Fernão de Oliveira. Salvo trabalho recente, a historiografia jamais dedicou estudo bibliográfico exaustivo a esse fabuloso e corrosivo pensador. Há possibilidade de que se encontrasse, em 1565, no convento de Pámela. O certo é que, nos anos 1570, escreveria a Ars MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 16 náutica, ainda inédita, e, no início da década seguinte, sua última grande obra, sobre a construção náutica, em parte inconclusa. O Livro da fábrica das naus, tido como o “primeiro tratado enciclopédico escrito por um português [...] sobre as matérias navais, entre as quais a construção naval [...], foi publicado, por primeira vez, por Henrique Lopes de Mendonça, em 1898”, mais de três séculos após suas redação! 22 É possível que Fernão de Oliveira tenha-se refugiado na França, devido às lutas pela sucessão dinástica, em 1580. Encontram-se na Biblioteca Nacional, em Paris, “várias obras autógrafas” suas, entre elas uma “História de Portugal”, um “Livro da antigüidade, nobreza, liberdade e imunidade do reino de Portugal” e uma tradução ao português da “De re rustica” de Columella, o célebre 23 agrônomo romano. No trabalho sobre a história de Portugal e em uma outra obra de cunho historiográfico, sustenta a independência portuguesa contra a anexação espanhola. Ou seja. Defende a posição da burguesia comercial e marítima, dos mesteirais, da arraia miúda do campo e da cidade contra a grande aristocracia portuguesa. Como nada mais se conhece da pena de Fernão de Oliveira, acredita-se que tenha morrido na segunda metade da década de 1580, com mais de setenta anos, idade venerandíssima para época em que, com cinqüenta anos, os homens já eram anciães.24 A falta de estudos biobibliográficos aprofundados sobre Fernão de Oliveira tem permitido que esse pensador radical e atípico lusitano seja apresentado comumente como “aventureiro de gênio” que conheceu, quase por vocação, uma “vida aventurosa” e atribulada.25 Para essa visão, suas dificuldades com a Inquisição e com o Estado lusitano são quase deduzidas de uma inclinação natural à aventura. Ao contrário, parece-nos que suas fugas do Reino nasceram da necessidade de se pôr ao largo das contrições intelectuais e físicas de um Estado despótico e obscurantista, dedicado incessantemente a fazer calar as razões inaceitáveis às classes proprietárias hegemônicas da época. Arte da guerra do mar, de Fernão de Oliveira, seria reeditado apenas no século 20. A segunda edição, de 1937, foi apresentada pelo comandante Quirino da Fonseca e Alfredo Botelho de Souza. A terceira, de 1969, reproduziu a anterior e a quarta, de 1983, fez o mesmo, apresentando em fac-símile o texto original. Todas foram publicadas sob os auspícios do Ministério da Marinha de Portugal. As três reedições não se deveram ao caráter radical e precoce da crítica do autor do tráfico negreiro e da escravidão do trabalhador, mas ao fato de se tratar de talvez o “mais antigo tratado de MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 17 estratégia e tática naval de que há memória em letra de forma”, como lembra o responsável do Ministério da Marinha, na edição de 1970. Pensador racionalista radical, Fernão de Oliveira foi o autor da primeira gramática portuguesa e o principal crítico ibérico do tráfico de cativos e da escravidão. Por todas essas razões, urgem estudos que desvelem as razões e articulações profundas desse pensador que emergiu dos mundos das chamadas elites dominantes para interpretar os segmentos mais explorados de sua época, sofrendo, por isso, a prisão, a perseguição e o abafamento de suas idéias, devido ao poder das forças sociais a que a elas se antepuseram, no passado e no presente. III. Vicissitudes de António Nunes Sanches, cristão novo de judeu, abolicionista radical Dois séculos após a crítica radical de Fernão de Oliveira do tráfico e do escravista, em 1760, as justificativas cristãs daqueles fenômenos seriam igualmente impugnadas pelo cristão-novo de judeu António Nunes Sanches. Nesse então, vivíamos o início da agonia do ciclo minerador escravista brasileiro e das tentativas pombalinas de reformar a ordem feudal, mercantil e colonial lusitana. Filho legítimo de Simão Nunes e Ana Nunes, António Nunes Ribeiro Sanches nasceu na vila de Penamacor, no centro-leste de Portugal, próximo à fronteira com a Espanha, em 7 de março de 1699, no seio de família de cristãos novos de judeus, mantida como era habitual sob a dura vigilância da Inquisição. Seu pai exercia o ofício de sapateiro, atividade que deve ser compreendida em um sentido lato, já que era homem de relativas posses, que tinha irmão e sobrinhos médicos, profissão exercida tradicionalmente pelos judeus. Desde jovem, António Sanches foi destinado aos estudos, possivelmente na residência paterna. Segundo ele, aos 12 anos, já conhecia o latim, o espanhol, a gramática, a história e a geografia. Para prosseguir sua educação, aos treze anos, mudou-se para a casa de parentes, na Guarda, onde conheceu as vexações e descriminações anti-semitas então habituais.26 Finalmente, em 1716, em Coimbra, inscrevendo-se “nas aulas de filosofia ministradas pelos jesuítas”. Inicialmente, estudou “direito civil”, vislumbrando a possibilidade de seguir a advocacia. Porém, terminou matriculando-se nas cadeiras de medicina, retomando a orientação paterna.27 Em 1719, a Universidade de Coimbra vivia dias sombrios, sob o domínio da escolástica dogmática e das violências de estudantada organizada de boa família que chegou ao fim apenas em fevereiro de 1721, com a intervenção de batalhão de MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 18 quatrocentos soldados, chegado do Porto, e a condenação à morte e ao degredo do chefe e de membros da pandilha.28 Sob injunção paterna, António Sanches abandonou Coimbra, no terceiro ano de Escola, para matricular-se, em 28 de novembro 1720, na Universidade de Salamanca que conhecia igual tacanhice intelectual emburrecedora, mas vivia sob a plena ordem civil. Finalmente, em abril de 1724, aos 25 anos, António Sanches concluía os estudos em medicina, o que permitiu que retornasse, sem delongas, a Portugal. Durante a estada em Espanha, escondera cuidadosamente sua origem cristã-nova, para escapar às vexações e perseguições antijudaicas castelhanas.29 De volta ao Reino, instalou-se em Benavente, nas proximidades de Lisboa, onde clinicou por dois anos. Porém, em outubro de 1726, a Inquisição denunciava um seu primo que, durante o interrogatório, citou seu nome, entre os Sanches “moseístas”. A maior denúncia de familiares, sobretudo próximos, era quase exigida pela Inquisição, para que abrandasse, nem que fosse relativamente, as penalidades do réu. Pernas para que te quero Sem confiar seu destino aos azares da sorte, o jovem médico deixou discretamente Portugal, em novembro ou dezembro do mesmo ano, embarcando-se em veleiro inglês que se dirigia à Inglaterra. Apesar de ter mantido, sempre, estreitos laços culturais e científicos com Portugal, António Sanches jamais retornaria a terra em que nascera. Anos mais tarde, escreveria sobre as vexações que lhe agoniavam em Portugal: “Entra este rapaz cristão-novo no comércio do mundo, e a cada passo observa que os cristãos-velhos, por trinta modos, o insultam e desprezam. Quanto mais vil é o nascimento e ofício do cristão-velho mais insulta o cristão novo [...]. [...] o carniceiro, o mariola, o tambor e mesmo algoz e o negro escravo são os primeiros que insultam e que dão a conhecer com infâmia um cristão-novo.” Porém, não se tratava discriminação nascida da incultura: “Os que têm melhor educação lá dão seus sinais de distinção, mas com maior decência: um, quando fala com ele, lhe diz uma meia palavra de cão; outro, por gíria, lhe chama judeu; outro põe a mão no nariz; outro, antes que fale, dá umas cutiladas de dedos pelos bigodes; a maior parte faz acenos que tem rabo ...”.30 Desde os séculos anteriores, era voz corrente em Portugal que os hebreus, assassinos de Cristo, sugavam o sangue das crianças e possuíam rabos, ao igual que os macacos! Ao lusitano de origem judaica era-lhe MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 19 desconhecida a nacionalidade portuguesa plena, apanágio daqueles que podiam apresentar, com ou seu razão, longa ascendência sem mancha hebréia, muçulmana ou africana. No século 20, Joaquim Ferreira, na sua ampla, arguta e radical apresentação biográfica de António Sanches, na qual nos baseamos, ao denunciar indignado o antisemitismo em Portugal, termina recuperando a exclusão dos hebreus da nacionalidade lusitana que denuncia: “Nos olhares e nas meias palavras dos circunstantes surpreendia Sanches o rancor ancestral dos portugueses ao moiseísmo [...].” No século 18, as perseguições antijudaicas das quais António Sanches fugia não se restringiam a descriminações e a estadas nas duras masmorras do Santo Ofício, como comprova o “assassínio do comediógrafo António José da Silva, estrangulado no garrote e queimado o cadáver no auto-de-fé de 18 de outubro de 1739.” 31 Em Londres, António Sanches foi acolhido por seu tio Diogo Nunes Ribeiro, também médico, que ali se refugiara, com esposa e cinco filhos, após participar de “auto-de-fé de 19 de outubro de 1704” e ser condenado ao cárcere perpétuo. Na Inglaterra, o jovem médico ampliou seus conhecimentos estudando anatomia, matemática, física e química.32 António Sanches empregou-se igualmente como preceptor de um “mancebo da família Solis, opulentos judeus lusitanos”, também homiziados na Inglaterra. Seu pupilo orientava-se igualmente para os estudos em medicina. Dois anos mais tarde, em 1728, talvez em companhia do aluno, mudou-se para Montpellier e, meses depois, para Marselha, na França. Cidadão do mundo Em 1729, António Sanches clinicava em Bordéus, residindo como hóspede na residência dos Solis dessa cidade. Porém, muito logo, em inícios de 1730, seguia para os Países Baixos, com seu pupilo, para estudarem medicina, na universidade de Leyde, sob a direção de Hermann Boerhaave (1668-1738). Por dois anos, António Sanches trabalhou sob a direção do célebre atomista e patologista, sem deixar de manter estreitos contatos com o embaixador português em Haia, para quem teria produzido plano de “reformas na Faculdade de medicina de Coimbra”, absolutamente desconsiderado em Portugal.33 No outubro de 1731, aos 31 anos, António Sanchez chegava à Rússia como um dos três clínicos designados por Boerhaave, em resposta a um pedido da czarina MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 20 Ana Ivanovna [1693–1740]. Como registra, pelo seu trabalho, receberia 600:000 réis de salário. Em 1735, estabeleceu-se em São Petersburgo, na função de “médico dos exércitos”. No “posto de médico-chefe dos serviços sanitários”, partiu para a Criméia, devido à guerra entre a Rússia e a Turquia. Em 1736, foi nomeado médico da Escola Militar de São Petersburgo, onde estudavam quinhentos cadetes filhos da aristocracia. Três anos depois, era nomeado médico efetivo da corte e, a seguir, elevado à situação de clínico privado da czarina, posto que ocupou, segundo parece, até a morte da imperatriz, em 1740. Na Rússia, António Sanches prosseguiu carteando-se com administradores e homens de cultura portugueses, entre eles jesuítas eruditos estabelecidos na China. Essa última correspondência teria ensejado projeto jamais realizado de visitar aquelas distantes e exóticas regiões do mundo. Após dezesseis anos na Rússia, António Sanches partiu de retorno à Europa Ocidental, coberto de honrarias: foi agraciado com o foro de “fidalgo hereditário”, tornou-se sócio emérito da Academia das Ciências de São Petersburgo, recebeu subsídio vitalício da casa real russa.34 Em 1747, após visitar o rei da Prússia, estabeleceu-se em Paris, onde passou a clinicar, estudar, escrever e pronunciar-se principalmente sobre os fatos portugueses. Entre suas relações parisienses ilustres encontrava-se o monsenhor Pedro da Costa e Almeida Salema, ministro plenipotenciário de Portugal na França. A obra de maior repercussão de António Sanches foi certamente seu compêndio Tratado da conservação da saúde dos povos, publicado em Paris, em 1756, e reeditado, após correção, no ano seguinte, em Lisboa. Nas duas edições, a obra não levava o nome do autor. Consultamos a primeira edição no Real Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro.35 Saúde pública O Tratado, escrito “em estilo tão claro, que todos o pudessem entender”, foi o primeiro grande compêndio em português a apresentar, às autoridades e ao público culto, em 31 capítulos, o conhecimento médico da época sobre a saúde pública. “Nele pretendo mostrar a necessidade que tem cada Estado de leis, e de regramentos para preservar-se de muitas doenças, e conservar a saúde dos súbditos; se estas faltarem toda a ciência da Medicina será de pouca utilidade [...].” 36 Em 1759, devido ao Alvará pombalino de 28 de junho, que abolia as “classes e os colégios dos jesuítas” e instituía o ensino secundário estatal em Portugal, a pedido do monsenhor Salema, António MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 21 Sanches apresentou suas idéias sobre a educação em pequena obra concluída em fins de dezembro daquele ano.37 Estampada em Paris, a primeira tiragem de Cartas sobre a educação da mocidade contava apenas com cinqüenta exemplares, enviados apenas saídos do prelo para Portugal. Por sua “faina na reorganização da Universidade”, António Sanches recebeu tensa anual de 360:000 réis”, suspendida no período 1761-69, devido à proteção que acordara ao matemático Soares de Barros, perseguido por Salema. Sem jamais voltar a Portugal, António Sanches faleceu, em Paris, em 14 de outubro de 1783, aos 83 anos, poucos anos após o transpasso do marquês de Pombal, que caíra em desgraça desde o falecimento de seu protetor, dom José, em 1777, morte que ensejara a entronização de dona Maria I e a viradeira conservadora e feudal que pôs fim ao reformismo pombalino.38 Compilação do conhecimento da época, o Tratado da conservação da saúde dos povos registra o esforço de um homem de ciência para arrancar Portugal do atrasa em que se empantanara. Definitivamente superado pela ciência, não foi objeto, nas décadas e nos séculos posteriores, de reedições. Ao contrário, as Cartas sobre a educação da mocidade garantiriam a António Sanches destaque entre os racionalistas portugueses de sua época, ao registrar sua avançada e original visão de mundo. A livro assegurou-lhe igualmente o laurel de crítico precoce do escravismo moderno. Ao enviar um exemplar do livro ao monsenhor Salena, António Sanches reitera que devido às “preocupações” que tomara, os cinqüenta exemplares – “toda a impressão” – chegariam, no dia seguinte, às mãos do diplomata.39 Os cuidados que cercaram a redação, a impressão e, sobretudo, a circulação do opúsculo registram o caráter transgressor das propostas. O radicalismo das Cartas explica por quê, mesmo servindo como subsídio do reformismo pombalino, era inaceitável que elas fossem difundidas além do estrito círculo da mais alta burocracia estatal portuguesa. Abordagem histórica O ensaio de António Sanches dividia-se em duas grandes partes. Inicialmente, apresentava “sucinta história da educação civil e política que tiveram os cristãos católicos romanos até os nossos tempos” e, a seguir, “uma notícia das Universidades”, como subsídio para a reforma educacional pombalina, vivamente apoiada por Sanches.40 Na “introdução”, “historia-se a génese e a evolução das escolas MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 22 medievais sustentadas pela Igreja, as características civis da sociedade, os excessos do clero na política, a natureza eclesiástica das Universidades e, em especial, a de Coimbra; na segunda desenvolvem-se, num largo plano educativo, as directrizes pedagógicas que ele propunha e defendia.” 41 António Sanches defende proposta de ensino laico, racionalista, sob o controle do Estado, orientado para a satisfação do que entende serem as reais necessidades da nação portuguesa. Nesse sentido, o ensino seria pago e o erário público subvencionaria alunos excelentes mas sem recursos. A abordagem historicista da questão educacional registra a importância da reflexão histórica para o autor. Portanto, compreende-se o destaque que dá ao estudo da história nos cursos preparatórios. “Mas esta história [...] não se há-de incluir a quantos reis teve uma monarquia, quantas vezes foi conquistada e quantos reis conquistou.” 42 Expressão do pensamento racionalista burguês, António Sanches opõe-se conseqüentemente à educação popular. “O povo não faz boas nem más ações que por costume e por imitação, e raríssimas vezes se move por sistema nem por reflexão: será cortês ou grosseiro, sisudo ou trabalhador, pacífico ou insultador, conforme for tratado pelo seu cura, pelo seu juiz, pelo escudeiro ou lavrador honrado.” Na medida que não supunha e não propunha modificações essenciais nas duras condições de existência dos trabalhadores rurais da época, perguntava-se, não sem razão: “Que filho de pastor quererá ter aquele ofício de seu pai, se à idade de doze anos souber ler e escrever?” Para ele, a educação era “a origem por que os filhos dos lavradores fogem da casa de seus pais”. Assim sendo, o trabalho devia ser o único grande recurso pedagógico da população laboriosa e, sobretudo, “o remédio” seria apenas um, “abolir todas as escolas” em meio rural!43 Na primeira metade do século 20, registrando as condições de vida dos trabalhadores, Joaquim Ferreira lembrava sem papas na língua que era a falta de trabalho, pão e moradia que desertavam, no passado e no presente, os campos portugueses de seus trabalhadores: “Comem troços adubados com sal e dois pingos de azeite, a que chamam caldo.” 44 Crítica radical da escravidão Sem vínculos orgânicos com a sociedade portuguesa, António Sanches pode expressar crítica racionalista radical sobre a escravidão que, para ele, fora instituição nascida do domínio de um povo sobre outro que se perpetuara na história muito além do MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 23 que justificava o progresso humano. Portanto, na sua opinião, a instituição era fenômeno histórico sem qualquer base natural ou religiosa. “[...] todas as nações conquistadoras [...], os gregos, romanos e godos conheceram e usaram dos povos vencidos como escravos. Esta prática se conservou em Portugal pela conquista do Reino contra os maometanos; e se continuou pela conquista de Guiné e de Angola. [...].” Apenas devido essa razão, a escravidão havia sido “permitida em todo o Domínio Português” sem que, até então, “ninguém” ponderasse “os males que causa[va] ao Estado, à Religião e à educação da mocidade”. Portanto, propunha que a instituição fosse responsável pelo atraso, e não sustentáculo do progresso português.45 Era frágil a argumentação de Sanches de como a escravidão prejudicava o Estado português. Sua sanção ao cativeiro era, sobretudo, moral e política, e não econômica. Afirmava que o “Estado” não “recupera[va] pelos escravos, os súditos” que perdia “na conquista, na navegação e nos estabelecimentos que tem na África”. Procurava assim inverter a tradicional equação que justificava o tráfico e o cativeiro pelas riquezas que produziriam. A solução que propõe para a falta de braços livres no império português certamente causou calafrios aos seus leitores aristocratas. Em verdade, ela apoiava-se em exemplo histórico abusivo, já que apresentava a permissão de matrimônio entre homens livres decaídos e os cativos ligados à terra – servus – da Alta Idade Média como a legalização do casamento entre cidadãos romanos e trabalhadores escravizados.46 “Já disse que os romanos permitiam aos escravos casarem-se, mesmo ainda com as mulheres romanas, e que os seus netos vinham a ser cidadãos, e desse modo cada ano recuperava a República pela escravidão, o que perdia pela conquista.” Ou seja, propunha o matrimônio de portugueses e africanos escravizados para a produção de cidadãos livres portugueses em duas gerações! Sem o radicalismo de seu predecessor Fernão de Oliveira, fulminou a explicação do tráfico como resgate de pagãos: “Eu não posso conceber como os eclesiásticos não têm remorsos de consciência em permitirem que fique escravo o menino que nasceu de pai e mãe escrava, no meio do Reino e da Religião Católica.” Não apresentava, entretanto, por razões políticas, a proposta de libertação dos trabalhadores escravizados que, na sua época, eram já essencialmente negro-africanos. Certamente tinha consciência dos limites da abertura política pombalina e que seu livro dirigia-se às autoridades civis, a quem absolvia taticamente da responsabilidade pela ordem negreira. MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 24 Nação inconclusa Apenas por “razões políticas” e “não por aquelas do Evangelho”, Sanches aceitava que “o adulto” que fora “cativo, ou comprado na África” permanecesse “escravo depois que [...] batizado”. Mas para ele era “incompreensível” que “o mesmo” ocorresse “com seu filho nascido nos Domínios Portugueses, e batizado nos braços da mãe cristã”. Repetia, portanto, para o cristianismo, a interdição bíblica da escravidão dos hebreus. Sanches lembrava que, segundo a “religião cristã”, todos os “fiéis” eram “iguais” enquanto observassem “os mandamentos da Igreja”. Os “eclesiásticos” deveriam estender “fora da Igreja esta igualdade” fazendo “entrar os escravos cristãos na classe do súdito livre, e cidadão”. Defendia, sobretudo, a libertação dos ventres das cativas africanas e crioulas batizadas. Uma ação que apresentava como necessária à “instrução” e humanização da “mocidade portuguesa”. “Se eu pretendera somente que a mocidade portuguesa fosse perfeitamente instruída [...] não havia de reprovar a escravidão introduzida em Portugal.” Seu “intento” era mais ambicioso. Queria dotar os jovens de “humanidade”, não apenas de “instrução”. O que dizia ser impossível “enquanto um senhor” tivesse “um negro a quem” dava “uma bofetada pelo menor descuido”. Para ele, a escravidão tornava “cada menino, ou menina, rica” “soberbos, inumanos, sem idéia alguma de justiça, nem da dignidade que tem a natureza humana”. 47 Jacobino avant la lettre, propunha a impossibilidade da construção de nação cidadã enquanto vigesse o cativeiro e a “desigualdade civil” entre os cidadãos! “Como dos privilégios dos fidalgos e da nobreza procedeu a escravidão, assim das imunidades eclesiásticas, procedeu a intolerância civil.” Aproveitando o nadir dos jesuítas em Portugal, centrava sua crítica dos privilégios nos eclesiásticos, deixando à margem do espinaframento a nobreza lusitana. “Se a escravidão faz perder aquela igualdade civil que faz o vínculo e a força do Estado, a intolerância faz perder aquela humanidade, que é o desejo de a conservar para imitar o Supremo Criador [...].” “O poder eclesiástico é e deve ser sobre aquele cristão que vai espontaneamente oferecer-se à Igreja para satisfazer a sua consciência: mas não tem direito nenhum sobre aquele cristão ou gentio que não quer entrar na Igreja. Logo, os eclesiásticos não podem assentar por máxima universal que a tolerância, ou liberdade de consciência, é contrária à conservação da Religião.” 48 MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 25 Sanches associava sua crítica da escravidão à defesa da liberdade de religião e de consciência. “Como a escravidão” causava “distinção e preeminência entre os súditos, assim a intolerância civil” levantava “um muro de separação entre o cristão da religião dominante e o persecutado ou o intolerado [...].” 49 A impiedade de Sanches chegava a ponto de defender a superioridade da civilização muçulmana e indiana diante da portuguesa. “[...] era impossível conservar o que conquistaram os portugueses, sendo intolerantes das religiões daquelas nações conquistadas: nações, tanto a maometana ou indiana, que não conhecem tal máxima, qual é a intolerância: toda a Ásia e toda África são tolerantes; e nós queríamos fundar nestes povos subjugados Império Português.” 50 Vozes silenciadas A lógica da análise de António Sanches arrastava-o à critica da colonização lusitana na África: “Assim se vai criando naquele ânimo uma aversão para a humanidade; um ódio para os homens que não sujeitos às mesmas idéias que eles crêem e adoram; daqui vieram aquelas tiranas inumanidades que exercitaram os castelhanos na conquista da América e nós também em alguns lugares da África.” 51 António Sanches não era crítico extraordinário. Ao contrário, era apenas expressão excelente de um difuso movimento de crítica à escravidão e ao tráfico que perpassava, verticalmente, a sociedade lusitana, com formas e conteúdos desiguais. A resistência antiescravista, em Portugal, na África e nas colônias americanas certamente alimentariam e enriqueceriam esse movimento de crítica dominado na Europa pelo racionalismo burguês revolucionário, em dura oposição às representações culturais, intelectuais, estéticas, éticas, políticas, etc. feudais. Portanto, dentro ou fora do Reino, nas últimas décadas do século 18, não faltavam vozes lusitanas que se alçassem contra o comércio e a ordem infame. Sobretudo, faltava terreno fértil para que a boa nova frutificasse, alimentando e fortalecendo a luta dos segmentos sociais em oposição à ordem vigente. Também a crítica de Sanches sobre o tráfico e a escravidão não deixou traços entre os intelectuais e a sociedade portuguesa de sua época. As razões certamente não se encontram na pequena e restrita tiragem da obra. Os discursos transgressores da época não eram naturalmente estéreis. representante do bloco feudal-colonial dominante, o Estado lusitano mobilizava-se com MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 26 singular precisão e afinco para calar as vozes dissonantes e ensurdecer os ouvidos sensíveis. Inquisição, ponta-de-lança do controle ideológico, não foi jamais paradoxo histórico, mas órgão estatal com objetivos e práticas absolutamente coerente com os objetivos gerais e particulares das classes proprietárias que representava. O fato de que o Santo Ofício tenha perseguido com o mesmo afinco o cristão-velho Fernão de Oliveira, de límpidas raízes cristãs, e o cristão-novo de judeu António Sanches, de família indiscutivelmente hebréia, é uma outra prova tangível de sua função essencialmente supra-religiosa. A manutenção na submissão, objetiva e subjetiva, do mundo do trabalho constituía necessidade imprescindível para o prosseguimento de um Estado e de uma ordem profundamente parasitários. O absolutismo não alimentava a ordem negreira. Ao contrário, era por ela poderosamente alimentado. Os escravizadores exigiam que as únicas vozes escutadas fossem as de suas razões esdrúxulas. NOTAS 1. Cf. LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 35; LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália, 1938. T. 2, pp. 227-230; “Opinião de um Frade Capuxinho sobre a Escravidão no Brasil em 1794”. RIHGB, 60 (1897): 155-157. 2. SAUNDERS, A.C. de C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. [Ed. orig. University of Cambridge, 1982.] p. 72 3. SOTO, Domingo, Iustitia et iure IV,2,2 4. SAUNDERS, A.C. de C. M. História social [...].p. 72. 5. MENDONÇA, Henrique Lopes de. O Padre Fernando Oliveira e a sua obra nautica – Memoria comprehendendo um estudo biographico sobre o afamado grammatico e nautographo e a primeira reprodução typographica do seu tratado inedito “Livro da Fabrica das Naus”. Lisboa: Academia Real das Ciencias, 1898; ALBUQUERQUE, Luís de. Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses nos sécs. XV e XVI. II. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987. pp. 128-42; DOMINGUES, Francisco Contente. “Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XVI: os tratados de Fernão de Oliveira”. REVISTA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, XXXII (1986), pp. 343-7. 6. Cf. ASSUNÇÃO, Carlos & TORRES, Assunção. “Introdução”. OLIVEIRA, Fernão de. Gramática da linguagem portuguesa. [1536]. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 2000. p. 12. 7. Cf. ASSUNÇÃO & TORRES. “Introdução”. ob.cit. p. 12. 8. Id.ib. p. 4. 9. Cf. DOMINGUES, & BARKER “O autor e seu obra”. Ob.cit. p. 11. 10. Cf. FONSECA, Comandante Quirino. “Comentário preliminar” [da edição de 1937] pp.XI-XXV. OLIVEIRA, Padre Fernando. A arte da guerra do mar. Lisboa: Ministério da Marinha [1970]. 11. Cf. DOMINGUES & BARKER “O autor e seu obra”. Ob.cit. p. 12. 12. Cf. Loc.cit. p. 12. 13. Cf. Loc.cit. 14. Cf. Loc.cit. p. 12; ASSUNÇÃO, Carlos & TORRES, Assunção. “Introdução”. p. 14-5. 15. Cf. DOMINGUES & BARKER. “O autor e seu obra”. p. 12. 16. Cf. loc.cit. 17. Cf. FONSECA, Comandante Quirino. “Comentário preliminar”. Ob.cit. 18. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; SALVADOR, José Gonçalves. Os magnatas do tráfico MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 27 negreiro: séculos XVI e XVII/ José Gonçalves Salvador. São Paulo: Pioneira, 1981; CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985; GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. 3ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975; SILVA, Alberto da Costa. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, 2002. 19 Cf. TORRES, Amadeu. “A paz da Fé e a fé na Pax Christiana: cruzadismo e irenismo na expansão atlântica”. Actas do Congresso Internacional sobre Bartolomeu Dias e a sua Época, Universidade do Porto, vol. V, 1989, pp. 605-15. 20 Cf. Filhos de Cã, filhos do cão: o trabalhador escravizado e a historiografia. O período colonial. Revista História Debates e Tendências. Passo Fundo: , v.4, n.1, p.80 - 98, 2003. 21. Cf. MENDONÇA, Henrique Lopes de. O padre Fernando Oliveira e sua obra náutica. Lisboa: 1898; BARKER, R.A “Ferando Oliveira: the english episode, 1545-1547”; DOMINGUES, Francisco Contente. Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XV: os tratados de Fernando Oliveira. Lisboa: 1985. 22. Cf. DOMINGUES & BARKER “O autor e seu obra”. Ob.cit. p.14. 23. Cf.FONSECA, Comandante Quirino. “Comentário preliminar”. Ob.cit. 24. Cf. DOMINGUES & BARKER “O autor e seu obra”. Ob.cit. p. 14. 25. Cf. Id.ib. p. 11. 26. FERREIRA, Joaquim. “António Sanches”. SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Pref. e notas de FERREIRA, Joaquim. Porto: Domingos Barreira, s.d. p. 17. 27. Id.ib. p. 18 28. Id.ib. p. 20, 24. 29. Cf. MARQUES. Os sons do silêncio. Ob.cit. p.79. 30. FERREIRA. “António Sanches” pp. 25-7. 31. Id.ib. p. 17 32. Id.ib. p. 27 33. Id.ib. p. 34 34. Id.ib. p. 41. 35. [SANCHES, A.N.Ribeiro]. Tratado da conservação da saude dos povos. Obra util, e igualmente necessaria a os Magistrados, Capitaens Gerais, Capitaens de Mar, e guerra, Prelados, Abbadessas, Medicos, e Pays de Familias: com hum Appendix. Consideraçõins sobre os Terremotos, com a noticia dos mais consideraveis, de que fas menção a Historia, e dos ultimos que se sentirão na Europa desde o I de Novembro 1755. Paris, MDCCLVI. 36. Id.ib. p. vi. Atualizamos. 37. Cf. SANCHES, A[ntónio] N[unes] Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. [Nova edição revista e prefaciada. Maximiano Lemos]. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922. p. V-XV; Cartas sobre a educação da mocidade. Prefácio e notas de FERREIRA, Joaquim. Porto: Domingos Barreira, s.d. 38. FERREIRA. “António Sanches” p. 45 39. Cf. SANCHES. Cartas sobre a educação da mocidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922. p. IX. 40. Cf. Id.ib. 2. 41. Cf. Id.ib. p. 53. 42. Cf. Id.ib. p. 60. 43. Id.ib. p. 67 44. Id.ib. p. 67 45. Id.ib. 88 46. Cf. DOCKÈS. La libération médiévale. Ob.cit. p. 140. 47. Id.ib. p.90. 48. Id.ib. p. 96 49. Id.ib.,p.95. 50. Id.ib.,p.93. 51. Id.ib.,p.95. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Luís de. Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses nos sécs. XV e XVI. II. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987. MAESTRI, Mário. António Sanches: a voz angustiada de um cristão-novo de judeu abolicionista. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 12-29, Dez. 2008 / Jun. 2009. 28 ASSUNÇÃO, Carlos & TORRES, Assunção. “Introdução”. OLIVEIRA, Fernão de. Gramática da linguagem portuguesa. [1536]. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 2000. CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. DOCKÈS, Pierre. La libération médiévale. Paris : Flammarion, 1979. DOMINGUES, Francisco Contente. 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Obra util, e igualmente necessaria a os Magistrados, Capitaens Gerais, Capitaens de Mar, e guerra, Prelados, Abbadessas, Medicos, e Pays de Familias: com hum Appendix. Consideraçõins sobre os Terremotos, com a noticia dos mais consideraveis, de que fas menção a Historia, e dos ultimos que se sentirão na Europa desde o I de Novembro 1755. Paris, MDCCLVI. SAUNDERS, A.C. de C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. [Ed. orig. University of Cambridge, 1982.] SILVA, Alberto da Costa. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, 2002. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. NI FEMINISTA NI EVITISTA. SOBRE LA CARRERA POLÍTICA Y CANDIDATURA PRESIDENCIAL DE CRISTINA FERNÁNDEZ DE KIRCHNER Inés Valdez∗ Resumo: A pesar del crecimiento del rol de la mujer en política en los años transcurridos desde la transición democrática, el discurso periodístico y de los actores políticos mantienen una visión dicotómica del hombre y la mujer Según esta visión lo femenino se asocia a lo extraño en la esfera pública, a un carácter naturalmente afectuoso, y a un lugar particular dentro de la metáfora familiar que suele hacerse de la nación. La importancia de descubrir sesgos de género en el tratamiento periodístico reside en que el discurso refleja una lógica de organización social y política subyacente. Por lo tanto, la evaluación de la inclusión de género en la arena pública no puede dejar de lado esta área de análisis. El análisis de los discursos sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández de Kirchner, actualmente candidata a presidente por el partido Frente para la Victoria, confirma que la mujer sigue siendo señalada como ajena a lo publico y diferente por naturaleza en el discurso político. Este artículo afirma que los efectos reales de la recurrencia del género en la determinación discursiva de lo político no pueden ser desestimados en la búsqueda de la democratización de los ámbitos de participación. Palavras-chave: Argentina; Cristina Fernández de Kirchner; Discurso periodístico; Elecciones presidenciales, Género; Mujeres en política; Peronismo. Abstract: In spite of the growth of the roll of the woman in politics in the years passed since the democratic transition, the journalistic and the political actors speech maintains a dichotomizing vision of man and woman. According to this vision the feminine is associated to a strange in the public sphere, to a naturally affectionate character, and a particular place within the familiar metaphor that usually happens with the nation. The importance of discovering slants of gender in the journalistic treatment resides in that the speech reflects logic of underlying social and political organization. Therefore, the evaluation of the inclusion of gender in the public places cannot despise this area of analysis. The analysis of the speeches on the political race and presidential candidacy of Cristina Fernandez de Kirchner, at the moment candidate to president by the party Frente para la Victoria, confirms that the woman continues being indicated as other people’s to and different by nature in the political speech. This article affirms that the real effects of the recurrence of the gender in the speech determination of the politician cannot be misestimated in the search of the democratization of the scopes of participation. Key-words: Argentina; Cristina Fernandez de Kirchner; Journalistic speech; Presidential elections; Gender; Women in politics; Peronism. ∗ Inés Valdez. Universidad de Carolina del Norte en Chapel Hill. Professora da Universidad de Carolina del Norte en Chapel Hill, Departmento de Ciencia Política. Universidad de Duke Beca Doctoral. M.A. en Ciencia Política Universidad de Carolina del Norte en Chapel Hill. Licenciatura en Economía Universidad Torcuato Di Tella. Email: [email protected]. 30 VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. El 25 de junio de 2006 el presidente argentino Néstor Kirchner anunció en un acto celebrado en la provincia de Chubut la posible candidatura a la presidencia por parte de su esposa, Cristina Fernández de Kirchner1. Esta posibilidad se había empezado a considerar después de que Cristina Fernández de Kirchner derrotara a Hilda “Chiche” Duhalde en las elecciones legislativas de octubre de 20052 y se confirmaría recién en Julio de 20073. El protagonismo de las mujeres en la esfera pública argentina no es una novedad (a pesar de que se mantiene la desventaja numérica respecto a la participación política de los hombres). La historia ofrece casos paradigmáticos como el de Eva Perón, experiencias de grandes fracasos como el de Isabel Perón, movimientos colectivos protagonizados por mujeres como el de las Madres de Plaza de Mayo y – en el pasado más cercano – políticas electas con proyección nacional como Graciela Fernández Meijide, Hilda “Chiche” González de Duhalde, Elisa Carrió, y Cristina Fernández de Kirchner. Este artículo centra su atención en la época contemporánea, buscando analizar el discurso de género que existe alrededor de la carrera política y candidatura a la presidencia de la actual senadora por la provincia de Buenos Aires, Cristina Fernández de Kirchner, en las elecciones del 28 de octubre de 2007. Al hacerlo, establezco continuidades y contrastes con los discursos históricos sobre los roles de las mujeres en la política argentina. 1. Discursos de exclusión y diferencia En este artículo examino tres temáticas que pueden considerarse clave en la lectura del rol político de la mujer: (1) La exclusión histórica que se ha hecho de lo femenino con respecto a la esfera pública; (2) Los discursos sobre la naturaleza distinta de la mujer, más orientada a tareas de cuidado y afecto que a la confrontación que caracteriza al mundo de la política y los negocios; y (3) La ubicación de la mujer dentro de la metáfora de nación que la literatura y la narrativa histórica realizan, la cual frecuentemente se basa en un formato familiar para representar a la Nación. La primera temática se refiere a cómo, históricamente, la teoría política ha colocado a la mujer fuera de la esfera pública. Aristóteles afirmaba que la contribución de las mujeres a los fines del Estado se reducía a la producción de las necesidades vitales y a la reproducción de los ciudadanos (hombres) (Jones 1990: 790). Según este VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 31 filósofo, la valentía de la mujer se demostraba en la obediencia (a diferencia del hombre, que demostraba la suya al dirigir) (Kerber 1988: 19). La asociación entre la mujer y lo biológico también puede verse a fines del siglo XVIII, período en el cual la naturaleza de la mujer se creía asociada inextricablemente a sus órganos reproductivos, factor que se utilizara para justificar la limitación de los roles sociales y económicos de la mujer (Groneman 1994: 341). Maquiavelo, asimismo, identificaba a la mujer con la fortuna, la cual debía ser domada y mantenida bajo control, mientras que Rousseau consideraba el cuerpo de la mujer sin contención un peligro para el orden político (Jones 1990: 791). Esta división entre la esfera pública y privada y la asignación de la mujer a la segunda de ellas, se plasmó socialmente dando lugar a discursos sobre el “rol apropiado” de la mujer, el cual con certeza se ubicaba fuera del ámbito político, dado que la irracionalidad y cercanía a la naturaleza de lo femenino implicaban un peligro para dicho ámbito. Aun hoy, los hombres son la norma en la arena política, mientras que las mujeres todavía son categorizadas como el “otro” (la otra?) y marcadas por su género en este contexto (Douglas Vavrus 2000). En segundo lugar, existe un discurso en el cual se asocia a la mujer con determinadas inclinaciones de carácter. En particular, la mujer es identificada como un ser más sensible por naturaleza, encuentra especialmente predispuesta a tareas de cuidado, crianza y cultivo de relaciones familiares. Fisher y Tronto (1991: 40) definen el cuidado como “la actividad que incluye todo lo que hacemos para mantener, continuar y reparar nuestro ‘mundo’ de modo que podamos vivir en él de la mejor manera posible.”4 Estas cualidades con frecuencia se contrastan a las de autoridad y liderazgo, que suelen ser asociadas con los hombres y – a la vez – requeridas para una actuación exitosa en la esfera pública. Debe notarse que la valoración de las tareas de cuidado es independiente de la asignación de cierta naturaleza orientada hacia ellas a uno de los géneros5. En tercer lugar, no es inusual encontrar en los discursos políticos claras metáforas que identifican a la nación con la familia. Gwynn Thomas afirma que los actores políticos utilizan estratégicamente a la familia en sus esfuerzos de “obtener control del estado, legitimar sus proyectos políticos, justificar la movilización social, criticar a sus oponentes, y crear un espacio desde donde hablar.” (Thomas 2005: 5). Estos relatos familiares pueden contener “las coordenadas que exhiben lo social y VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 32 cultural desde sus fisuras, e incluso revelar en su enunciado el germen de la resistencia o los dilemas de un cambio.” (Amado y Domínguez 2006: 16) En este sentido, resulta interesante examinar qué relatos familiares utilizan los distintos actores políticos, qué lugar les cabe a las mujeres políticas en estas metáforas, cómo se han modificado estos lugares a lo largo de la historia, y cómo se diferencia esta posición de la que es asignada a políticos hombres que se encuentran en situaciones similares. Si bien hoy en día la mujer tiene formalmente garantizados el acceso al voto y la libertad de presentarse como candidata aún se pueden encontrar en el discurso periodístico y entre los actores políticos construcciones discursivas basadas en las tres temáticas especificadas anteriormente. Así, las mujeres con participación política deben enfrentar prejuicios basados en su género, y exploraciones de lo doméstico y lo biológico (el cuerpo) que los hombres no encuentran a lo largo de sus carreras. La utilidad de la técnica de análisis del discurso es que permite “entender la lógica subyacente de la organización social y política de un área en particular” (Crawford 2004: 22) ya que los significados y – por lo tanto – la realidad social, surgen de la interacción entre textos o discursos, siendo éstos objetos concretos que producen tanto como invocan una realidad material (Hardy et al. 2004: 20). Un ejemplo claro de esta invocación/producción se puede encontrar en un artículo del diario Clarín en el cual se citan las dudas de algunos actores políticos sobre conveniencia de la candidatura de Cristina, quienes “señalan que lo mejor sería no cambiar el hombre al timón.”6 (énfasis en el original). El tratamiento de estas cuestiones a través de una perspectiva de género implica afirmar que “el mundo de las mujeres es parte del mundo de los hombres, creado en él y por él. Este uso rechaza la utilidad interpretativa de las esferas separadas, manteniendo que el estudio aislado de las mujeres perpetúa la ficción de que una esfera, la experiencia de uno de los sexos, tiene poco o nada que ver con el otro.” (Scott 1986: 1056). Más allá de la utilidad del análisis discursivo como herramienta teórica, el objetivo final de analizar en forma constante el lenguaje es negarle al poder un lugar de escondite (Wollstonecraft 1975: 87, citado por Kerber 1988: 39). Este artículo toma como principio inspirador la candidatura a la presidencia de Cristina Fernández de Kirchner, que podría culminar en la primera elección de una VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 33 mujer como presidenta en la historia argentina. Debido a la cercanía entre el anuncio de la candidatura y la escritura de este artículo, el material utilizado incorpora como fuente la campaña de las elecciones legislativas nacionales en el año 2005, en las cuales Cristina Fernández de Kirchner se enfrentó (y venció) a Hilda “Chiche” González de Duhalde por el puesto de senadora nacional. El análisis incorporará brevemente los legados históricos en lo que hace a la participación femenina en política, con una concentración en personalidades sobresalientes como Eva Perón (también conocida como Evita) y movimientos mayormente femeninos de alto perfil público (tal como las Madres de Plaza de Mayo). En definitiva, se buscará resaltar las continuidades y los contrastes entre las distintas figuras, la predominancia de las temáticas especificadas anteriormente y la apropiación o rechazo de las mismas por parte de las figuras femeninas de la política argentina. 2. Legados históricos La centralidad de este breve trazado de los antecedentes históricos se debe a que el análisis del discurso requiere un entendimiento profundo del contexto (Crawford 2004: 24). En el caso del estudio de las mujeres políticas en la argentina, es inevitable enfocar el recuento en el análisis del caso de Eva Perón. La esposa del general Juan Domingo Perón, quien estuvo a punto de ser la primera mujer en candidatearse a la vicepresidencia, marcó el terreno político argentino (y particularmente el peronista) de manera indeleble. La irrupción de Evita en la escena política implicó varias rupturas con los roles tradicionales de la mujer en la esfera pública, hasta ese momento reducidas a tareas de caridad.7 Esta irrupción o “’escándalo’ simbólico político” (tal como lo define Domínguez 2004: 152), carga consigo –sin embargo- visiones muy tradicionales de la mujer, las cuales aceptan a la mujer en la esfera pública manteniendo visiones dicotómicas sobre su naturaleza y le asignan un lugar en la metáfora familiar bien distinto al que ocupan los hombres. Eva se presenta como hija y como esposa del general Perón, y como madre de los descamisados (Domínguez 2004). Dentro de esta metáfora familiar (que propone activamente para el resto de las mujeres de la nación), Evita actúa como intermediaria entre el pueblo y el general Perón (Guivant 1986: 5-6). Así su entrada en la esfera pública, que de por sí la convierte en blanco de ataques, se produce como miembro del VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 34 género femenino, como ser sensible que puede acercarse más a las necesidades e insatisfacciones de las masas y comprenderlas, de modo de poder transmitirlas al general, quien puede “politizarlas,” es decir, traducirlas del lenguaje del cuidado al de la acción política. Esta inclusión condicionada en la esfera pública se hace más notoria cuando su candidatura a la vicepresidencia se ve bloqueada no por la falta de apoyo popular, sino por las presiones de actores políticos masculinos como los militares y la oligarquía (Soria 2005: 46) a las cuales él – su esposo/padre – les otorga prioridad sobre ella. En este sentido, a Eva Perón se le niega la posibilidad de una legitimación electoral/pública, lo cual mantiene su participación política en un terreno derivado de su vínculo conyugal. En la misma línea, Claudia Soria destaca que la renuncia a la vicepresidencia implica para Evita “permanecer a la sombra de Perón, atendiendo las pequeñas necesidades de la ‘petite histoire’,” colaborando y operando – como consuelo – como una extensión o apéndice del cuerpo de su marido (2005: 51). En otras palabras, Eva sólo ingresa a la esfera pública a través de su conexión “privada” con el general Perón. Este perfil se ve reforzado por el discurso oficial y los escritos de la misma Evita (que – por otro lado – son construcciones funcionales a los intereses del partido gobernante). En un análisis crítico de su autobiografía (La Razón de mi vida) Nora Domínguez menciona que esta obra ubica a Evita como la “intermediaria” en el nuevo contrato social que el líder arma con el pueblo peronista (Domínguez 2004: 156). Esta centralidad del general Perón en la vida de Evita, se refuerza en la relevancia que adquiere en el relato el primer encuentro entre ambos que “se constituye en la revelación absoluta y centro configurador de la transformación de Eva,” incluyendo el despertar de su conciencia política (Domínguez 2004: 164). En lo que hace al rol específico que Evita adquiere en la esfera pública, debe destacarse que tanto el discurso oficial como sus acciones se ubican dentro de aquellas que la “naturaleza femenina” estaría mejor capacitada para llevar adelante, mayormente sociales/asistenciales y de “mediación” entre Perón y los miembros del movimiento. Este discurso se continuaba en los mandatos del peronismo hacia las mujeres militantes. Guivant (1986: 55) afirma que las mujeres en el peronismo “eran llamadas a subordinarse como mujeres, es decir, su subordinación era justificada a través de la VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 35 evocación de lo que se entendía como ‘naturaleza femenina.’” (subrayado en el original). El caso de Isabel Perón, quien logró lo que a Evita le fuera negado (ser candidata y luego elegida como vicepresidenta de la nación), es otro ejemplo de una actuación femenina encasillada en roles femeninos conservadores. De acuerdo con Deleis et al. (2001: 451), “en ningún otro gobierno constitucional de la segunda mitad del siglo XX fue tan fuerte el discurso tradicionalista sobre la mujer, lo cual era coherente con el marcado tono reaccionario que caracterizó la vida política, social y cultural en esos años.” Isabel Martínez de Perón asumió la presidencia de manera interina el 29 de junio de 1974 y en forma definitiva el 1 de julio del mismo año. La crisis económica, la violencia, y las divisiones al interior del peronismo, hicieron de su presidencia una sucesión de emergencias que la llevarían a optar por una licencia de enfermedad poco antes de que el 24 de marzo de 1976 su gobierno fuera interrumpido por un golpe militar que inició la dictadura más sangrienta de la historia argentina. El caso de las Madres de Plaza de Mayo es también relevante en lo que hace a la actuación política femenina. Su actuación empieza en abril de 1977, cuando “un pequeño grupo de mujeres da nacimiento a la asociación que en poco tiempo más será conocida como Madres de Plaza de Mayo.” (Deleis et al. 2001: 465). La entrada a la esfera pública de estas mujeres se produce en un momento de alta peligrosidad para cualquier actividad opositora,8 y se expresa a través del vínculo materno. Así, el rol doméstico de “cuidado” se utiliza como la base para una acción profundamente política: el desafío del ocultamiento que la dictadura militar hizo de su estrategia represiva. Tal como Bellucci (1997, citado en Deleis et al. 2001: 466) sostiene, en el proceso de lucha, la demanda de las madres por sus hijos “se expande para todos los desaparecidos.” Nora Domínguez, asimismo, se refiere a un “desacomodamiento simbólico que perturba sujetos, tiempos y espacios.” (2004: 167). No es casual que el activismo en derechos humanos haya dado lugar a muchas figuras de importancia política en la post-dictadura. Entre ellas, Graciela Fernández Meijide, quien formara junto con otros políticos progresistas una fuerza de centro izquierda que llegaría a conformar el Frepaso, frente político que – en alianza con Octavio Bordón, otro disidente peronista – lograra superar a la Unión Cívica Radical en las elecciones presidenciales de 1995, y finalmente constituyera la Alianza VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 36 por el Trabajo, la Justicia y la Educación, que obtuviera la presidencia en el año 19999 (Abal Medina 1998). Elisa Carrió es otro ejemplo de un liderazgo femenino aún activo en la arena política. Si bien Carrió proviene de una tradicional familia radical de la provincia del Chaco, en 2001 – cuando se le pidió a los congresistas de la Alianza que votaran la delegación de poderes especiales al ejecutivo – abandonó el partido radical para formar su propio partido (ARI, por Afirmación por una República Igualitaria) y tuvo a lo largo de su carrera una activa postura anti-corrupción (Levitsky y Murillo 2003: 156). La actual diputada tiene un pasado de reina de belleza de su provincia y un presente de fluctuaciones de peso, por lo que su cuerpo y apariencia en general han sido motivo de escrutinio constante por la prensa local y extranjera10. 3. El período contemporâneo El 7 julio de 2005 Néstor Kirchner anunció que su esposa sería la candidata por la Provincia de Buenos Aires representando al Frente por la Victoria (la agrupación política creada por el presidente luego de romper con el líder peronista Eduardo Duhalde) en las elecciones para el Senado Nacional. El Partido Justicialista (nombre oficial del partido peronista) presentaría también a una mujer, Hilda “Chiche” González de Duhalde, esposa de Eduardo Duhalde, líder histórico de la Provincia de Buenos Aires, presidente interino durante 2002 y 2003 y responsable de la entrada de Kirchner a la arena política nacional. Luego de que Cristina Fernández venciera a Hilda “Chiche” González, la posibilidad de su candidatura presidencial empezó a considerarse seriamente. Finalmente, el 19 de Julio de 2007 se realizó el anuncio oficial de la candidatura de Cristina Kirchner a la presidencia. De acuerdo a los resultados de las encuestas, esta postulación podría dar lugar a la primera mujer presidenta elegida por el voto popular en la historia de la Argentina. El análisis de las tres temáticas discursivas detalladas anteriormente se realizará examinando material de prensa de los años 2005 y 2007, de modo de cubrir los años electorales correspondientes a las dos elecciones en las que Cristina Kirchner participó/participa. El enfrentamiento entre dos mujeres con posibilidades de salir VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 37 victoriosas en 2005 ofrece – adicionalmente – la oportunidad de contrastar la figura de Cristina con otra figura femenina contemporánea. Entre Cristina Fernández de Kirchner e Hilda González de Duhalde existen similitudes claras, en tanto ambas están casadas con líderes peronistas de altísimo perfil, su presencia en la pelea electoral y el apoyo que gozan dentro del partido es producto de alianzas tejidas por sus maridos, y el resultado de la contienda conlleva importantes costos o beneficios políticos para los mismos. Sin embargo, las semejanzas mencionadas no logran oscurecer claras diferencias de perfil político entre ambas candidatas, y si bien ambas se refieren a Eva Perón en sus discursos, la forma de apropiación de la misma evidencia posiciones muy diferentes de estas candidatas ante las modalidades de discursos de género descriptas en este artículo. La mayor diferencia radica en sus carreras. Cristina tiene una historia de militancia que data de sus épocas de estudiante en La Plata (interrumpida por la dictadura) y una serie de victorias en elecciones que empieza en 1989 con el puesto de diputada provincial en la provincia de Santa Cruz (Wornat 2005: 173), y continúa con cargos a nivel nacional (empezando como senadora nacional electa por Santa Cruz en 1995), los que le otorgan proyección nacional antes que a su esposo, Néstor Kirchner. Chiche, en contraste, ha declarado: “Soy portadora de apellido, me llamo Hilda Beatriz González de Duhalde, no me pesa y estoy muy orgullosa de serlo.”11 En otras palabras, la carrera de Chiche Duhalde se encuentra asociada a la trayectoria política de su esposo. Si bien en 1997 se postuló y obtuvo una bancada en la cámara de diputados de la nación, sus actividades políticas previas estuvieron asociadas a la gestión de Eduardo Duhalde como gobernador de la provincia. Su participación comienza dirigiendo el Consejo Provincial de la Familia y Desarrollo Humano (creado en 1991) y – siguiendo el ejemplo de Evita – la rama femenina del partido peronista (Auyero 2000: 56). 3.1 La mujer como extraña A pesar de las diferencias en la forma en que ambas mujeres se autodefinen, tanto los discursos de la prensa como otros actores políticos tienden a señalar, casi por igual, la otredad de las mujeres en la vida pública. VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 38 Ricardo López Murphy, por ejemplo, quien se vio perjudicado por la división peronista en facciones para las elecciones del 2005 declaró al diario Clarín “Le planteamos a la sociedad bonaerense que se libere de las esposas”12 (énfasis en el original) haciendo clara referencia a que el lugar y la influencia de las mismas se encuentra fuera de lugar en la arena política. La lectura de esta afirmación tampoco se agota en lo mencionado. En primer lugar, la polisemia de la palabra esposas da lugar a un sentido alternativo, en el cual los hombres se encuentran maniatados por la presencia femenina, su libertad limitada. Adicionalmente, la frase puede ser vista como dirigida exclusivamente a los votantes hombres y como abogando por una generalizada emancipación masculina de influencias femeninas indebidas en el ámbito político y en general. Este mismo candidato afirmó que la forma de conducir la campaña de “las mujeres” está provocando que “la gente pierda interés”13 colocando otra vez la participación femenina como disruptiva de la normalidad política. Los recuentos de los actos de campaña resultan otra fuente interesante para la temática de otredad. En primer lugar, los diarios gustan referirse al público femenino en cada acto de políticas mujeres (notando que “Hubo mucha presencia femenina, como en cada acto suyo”14 en el acto de cierre de campaña de la Senadora Duhalde y que “Cristina fue interrumpida varias veces por un público (había muchas mujeres) fervoroso”15 (sic.) en un acto de la Senadora Kirchner en San Miguel. Basta imaginarse el recuento de un acto de un político hombre en el que se señale que “había muchos hombres entre los asistentes” para notar la singularidad de este tipo de comentario periodístico. En definitiva, las candidatas evidentemente atraen a una concurrencia que no pertenece al ámbito de las concentraciones políticas, y como tal debe ser señalado. En otra demostración de este tipo de dinámica el gobernador cordobés José de la Sota afirmó sobre la participación de Cristina en una reunión en la Casa Rosada que se la vio “muy participativa, informada y preguntona,”16 donde los dos primeros adjetivos marcan la extrañeza de la mujer política profesional, y el tercero la devuelve a cierto lugar infantil o jerárquicamente inferior de la alumna que pregunta. Este mismo extrañamiento expresó el diario Clarín al describir unos afiches que aparecieron en los días previos al anuncio oficial de la candidatura presidencial de Cristina. Al referirse a ellos, el periodista Julio Blanck cree necesario aclarar lo que esos afiches “no son”: VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 39 No es la propaganda de un shampoo que asegura cabellos suaves, brillantes, y con cuerpo. Tampoco el anuncio de un maquillaje para ojos que otorga más profundidad y sugestión a la mirada. Ni el de pintura de labios que ofrece una delicada mixtura de sensualidad y elegancia. Diario Clarín, “La Dama de fuego y de hielo, y el cambio que recién empieza,” 08/07/2007. El fragmento citado remite tanto a un excesivo foco en la apariencia física de la candidata a presidente, como a un reflejo que suele identificar a las imágenes femeninas con actividades que se encuentran fuera de la política (como la comercialización de productos de belleza). El énfasis en la apariencia – operación que se repite numerosas veces17 – nos remite a la asociación entre mujer y biología que se encontrara en textos clásicos de filosofía política. Esta cercanía, según la lógica expuesta anteriormente, es la que impide a la mujer alcanzar el nivel de auto-control y racionalidad que se requiere para actuar en la arena política. La referencia a productos de belleza, por otro lado, le otorga a la imagen un aura de superficialidad que pone asimismo en cuestión la idoneidad de una mujer para entrar en el mundo de la política. La misma candidata a presidente ha identificado y criticado la abundancia de comentarios sobre su apariencia, exceso de maquillaje y afán de arreglarse, afirmando que revela “un grado de misoginia y discriminación hacia la mujer bastante fuerte” ya que no es común escuchar críticas hacia un político “porque le guste estar bronceado o porque se vista de una u otra manera” (Wornat 2005: 251). Este doble obstáculo a la actuación política se expresa de forma física nuevamente en la narrativa sobre el momento en que Cristina jura como senadora en 2005. En dicho artículo se menciona un episodio en el cual “el taco aguja del zapato derecho se le trabó en la alfombra roja del estrado” y se describe con minuciosidad como “La senadora dio un par de tirones con su pierna, se agachó para destrabar el zapato y salió caminando con una sonrisa para abrazar a su cuñada senadora”18. 3.2 La mujer como diferente En lo que hace a la segunda temática propuesta en este trabajo – la naturaleza diferente del género femenino – los discursos periodísticos y propios de las candidatas son elocuentes en señalar su relevancia en la actualidad. VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 40 En el caso de Hilda González de Duhalde, el uso de su apodo (“Chiche”) en la esfera pública remite a una cierta infantilización19 o cercanía doméstica que no se observa en el tratamiento de los políticos hombres. El uso del nombre (en lugar del apellido) es una práctica común en general para las mujeres. Así, la prensa se refiere a Cristina Kirchner como “Cristina,” a Elisa Carrió como “Lilita,” y a Graciela Fernández Meijide como “Graciela.”20 Asimismo, es sorprendente la similitud entre el discurso de Chice Duhalde y las tradicionales categorizaciones de lo femenino que Evita realizara en sus escritos y discursos públicos. Así, Evita justificó la creación del Partido Peronista Femenino (PPF) diciendo que era necesario para evitar la “asimilación de los roles políticos femeninos y masculinos en la esfera pública,” y acusando a las mujeres de clase media y alta de “querer ‘masculinizarse’ al imitar a los hombres y no preservar las ‘naturales diferencias’ entre los sexos al entrar en la arena pública.” (Guivant 1986: 32). Chiche Duhalde, por su lado, afirmó que “ella, la otra, Cristina, se había ‘masculinizado’” (énfasis en el original) por atacarla y ofender como “hacen los hombres.”21 Chiche también busca diferenciarse de los políticos con ansias de poder, que buscan liderazgos al decir que ella se guía “por convicciones” y que la razón de su candidatura es “representar a los que no tienen voz” ya que ella no va “ni por un resultado ni por una disputa de liderazgo.”22 Esta diferenciación, en la cual las convicciones predominan y “lo político” toma un lugar secundario se ve también en los discursos de Evita quien afirma que la mujer es “mejor depositaria que el hombre de los valores espirituales y más accesible a las buenas costumbres por su diferente condición biológica-social.” (acto inaugural de la Primera Asamblea Nacional del Movimiento Peronista Femenino el 26 de julio de 1946, en Perón 2001: 94). Asimismo, a pesar de su prominencia en la arena política, Evita se caracteriza a si misma como “una mujer del pueblo argentino (…) he querido confundirme con los trabajadores, con los ancianos, con los niños, con los que sufren (…) para ser un puente de paz entre el general Perón y los descamisados de la Patria.” (discurso pronunciado el 22 de julio de 1951, en Perón 2001: 274). El inicio de la carrera de Chiche en el área social también es característico de una segregación de las mujeres a funciones que se consideran más apropiadas. La división entre “acción política” y “acción social” para hombres y mujeres, VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 41 respectivamente, era asimismo respaldada por Evita en sus recomendaciones sobre la actividad de las militantes del PPF (Guivant 1986: 43). En el caso de Cristina, el contraste es claro. Su carrera y sus posiciones no evocan a la figura histórica de Evita que se describiera y cuando ella elige evocarla explícitamente, se refiere a una Evita militante, politizada (la “Evita montonera” podría decirse23) que estaría “al lado de las Madres y las Abuelas de Plaza de Mayo,”24 cuya existencia es abstracta o fruto de extrapolaciones improbables. En lo que hace a la carrera política de Cristina Fernández de Kirchner, como ya se detallara en la sección 3, su inicio fue independiente del de su esposo, el gobernador de Santa Cruz y se produjo en sus épocas de estudiante en la ciudad de La Plata (Provincia de Buenos Aires). No sólo el presidente, sino también actores políticos a nivel de la provincia de Santa Cruz y a nivel nacional, le reconocen ampliamente su capacidad de “operar políticamente.” En un artículo sobre el lanzamiento de su candidatura a diputada provincial en marzo de 1989, el diario Santacruceño La Opinión Austral declara que “Por estrategia política o decisiones internas, Cristina Fernández ha tenido en los últimos tiempos un bajo perfil participativo en la marquesina política, pero pocos dudan de la notable influencia que ejerce en asuntos del Estado y aun en la designación de funcionarios.” En el mismo artículo el periodista se refiere a ella como “un cuadro de peso” en el movimiento25. Las autoras del recuento biográfico de Kirchner, Valeria Garrone y Laura Rocha también acuerdan en que Cristina Kirchner – a diferencia de otras primeras damas – “proviene de la política” (Garrone y Rocha 2003: 73). Tal vez uno de los mayores elogios (involuntario) que Cristina ha recibido en respuesta a su candidatura provenga del mayor enemigo político de la corriente kirchnerista: Eduardo Duhalde, quien se refirió a ella como alguien sin experiencias de gestión, agregando que “con su personalidad, tampoco creo que se deje manejar,” lo cual puede ser leído como una puesta en relieve de que son las características personales de la senadora las que se interponen con el rol de género con que se marca a las mujeres en política. Néstor Kirchner, asimismo, mantiene un discurso sobre su esposa alejado de los estereotipos descriptos en este artículo. Al referirse a la potencial candidatura de Cristina siempre se refiere a ella con admiración y aludiendo a la construcción VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 42 institucional que ella será capaz de llevar adelante, así como la “experiencia, reflexión y estudio” que aportará al cargo.26 Estas palabras superan lo discursivo, ya que cuando Kirchner se convirtió en presidente el tipo de rol que se delegó en ella puede ser caracterizado como de negociación política27, más que de vinculación con las tradicionales tareas sociales y asistenciales que se encarga a las primeras damas28. Este reconocimiento de su rol como “cuadro político” se extiende a otros actores, tanto en el campo kirchnerista como en la oposición. La clase política recuerda su actuación desde su banca en el Senado y a través de comisiones en casos de alto perfil tales como la privatización de YPF, el diseño del Consejo de la Magistratura, el conflicto con Chile sobre los hielos continentales, etc. (Garrone y Rocha 2003: 79). La prensa, finalmente, también reconoce su rol político, y cita con frecuencia su papel en ciertas decisiones gubernamentales, e incluso su postura crítica ante decisiones del presidente29. 3.3 La mujer y su lugar en la familia/nación Siendo Cristina Kirchner la esposa del actual presidente argentino, es sorprendente que metáforas sobre un rol doméstico de la candidata hayan sido más bien escasas. Como ya se refiriera en el recuento histórico, tanto Eva Perón como las Madres de Plaza de Mayo se sirven de la maternidad (cierta o ficcionalizada) para facilitar su nacimiento como actoras políticas (Domínguez 2004: 154-155). Sin embargo, la carrera política de Cristina ha sido lo suficientemente separada de la de su esposo como para que éste pueda apropiarse de su “nacimiento político,” o ella tenga que justificar su actuación haciendo uso de roles femeninos estereotípicos aceptados. Nuevamente, Hilda “Chiche” González de Duhalde ofrece un contraste en este ámbito. Por ejemplo, al referirse a las mujeres que participaban del programa de distribución de comida en la Provincia de Buenos Aires (las “manzaneras”) afirma que se trataba de mujeres que le daban trabajo al estado gratuitamente con “mucho amor,” afirmando que cada chico que nacía “les nacía a ellas” y cada chico que moría “se les moría a ellas también!”30 Este tipo de caracterización de la VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 43 participación de las mujeres depende para su legitimación del cumplimiento de un rol maternal por parte de las mismas. Tal vez la única vez en que Cristina explicite su participación en la pareja presidencial en su actuación política, sea al dirigirse a su esposo (el presidente) durante sus discursos de campaña. Esto ocurrió tanto durante su candidatura a senadora, como en el lanzamiento de su candidatura a presidenta. En el primer caso, la – entonces – senadora y primera dama se refiere a su marido ubicado en el palco: “No se deje intimidar,” y agrega “Lo van a atacar más duro.”31 También se refirió a Kirchner en otro acto de su campaña por el senado diciendo “Dicen que las brujas no existen señor Presidente, pero que las hay, las hay.” (énfasis en el original)32. En el segundo caso, un recuento del acto afirma que la senadora se dirigió asimismo a su marido con un “tono íntimo y a la vez institucional.”33 Si bien estos pasajes revelan cierta evocación de una dinámica de pareja llevada a la política (en la cual la mujer cumple un cierto rol tranquilizador y de apoyo), lo cierto es que el análisis realizado en este artículo nos permite descartar cualquier uso excesivo o estereotípico de metáforas familiares y de la inserción en ellas de Cristina. 4. Cristina, el feminismo y el peronismo Resulta irónico que una política tan hábil y capacitada para intervenir en las discusiones políticas, pueda terminar accediendo a la presidencia a través de su marido. Cabe preguntarse si el aparato peronista podría ser movilizado por una mujer sin un vínculo significativo con un político hombre. En este sentido, no sería extraño que las limitaciones a la actuación política de las mujeres, se encuentren mayormente del lado de las elites partidarias, antes que en la cuestión electoral34. La oportunidad de Cristina Kirchner, por otro lado, no puede ser disociada del proceso de personalización de la política argentina y del debilitamiento de las estructuras partidarias, que ponen en cuestión la estabilidad y credibilidad de posibles alianzas, así como la lealtad de los actores que participan en las mismas. En este sentido, la valorización de los vínculos familiares se debe en parte a que resultan los únicos en los que se puede confiar en estas situaciones. Es más, el hecho de que dos candidatos de corrientes internas peronistas hayan optado por elegir a sus mujeres para VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 44 enfrentarse electoralmente, no sólo no estaría reflejando un avance para las mujeres, sino que sería síntoma de un retroceso democrático en las instituciones partidarias. Asimismo, debe aclararse que a pesar de que Cristina Kirchner tiene una concepción progresista del rol femenino en política – ya que representa un caso de participación femenina que no precisa recurrir a imágenes femeninas o racionalizaciones sobre su rol en respuesta a prejuicios misóginos sobre el tema – su posición en temas políticos de alta relevancia para las mujeres no sigue – en la mayoría de los casos – una lógica feminista. En particular, la candidata a presidenta se declaró tajantemente opuesta al aborto, remarcando que ella no es “progre” sino “peronista.”35 Asimismo, en declaraciones a la revista Newsweek para América Latina, afirmó que si bien cree “en la defensa de los derechos de la mujer, en la representación de los derechos del niño, en la defensa de las minorías”, se niega a definirse bajo el “rótulo de las feministas” lo cual implicaría “hablar de una categoría política,” prefiriendo plantear como “discriminadores y mediocres a todo aquel que intente relegar a la mujer por el solo hecho del género.” (Wornat 2005: 193-194)36. Esta negación de la discriminación de género como algo político se repite en una entrevista otorgada al diario español El País en la cual afirma que cuando ella se incorporó a la política “las mujeres estábamos a la par de los hombres.”37 Catharine MacKinnon sostiene que esta estrategia implica no identificarse como mujer, entendida esta identificación como el acto de hablar “desde la perspectiva y los intereses del 53 por ciento de la población, intereses comunes que son consecuencia de ser receptoras de un tratamiento que es real y compartido.” (MacKinnon 1987: 75-77). Este olvido implica un falso refugio en la seguridad de que se ha logrado escapar este destino. Este escape, logrado a través de su vinculación afectiva, implica la “amortiguación de la agresividad misógina que aún es característica de la política argentina, sobre todo en el interior del país,”38 y que muchas veces no es notada por las “esposas” hasta que una separación las deja en igualdad de condiciones (difíciles) que las que nunca tuvieron una pareja que actuó como intermediario. El análisis de la carrera y candidatura presidencial de Cristina Fernández de Kirchner ha revelado que su lugar en la arena política guarda pocas similitudes con los espacios que el partido peronista suele reservar a las mujeres, cuyo exponente más sobresaliente es Eva Perón. Si bien todas las mujeres son señaladas como ajenas a la política por la prensa y los demás actores políticos, en el caso de Cristina Kirchner son VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 45 dos las transgresiones: su participación en política per se y su falta de adhesión a ciertos guiones femeninos aceptados. Estas diferencias o “transgresiones” son subrayadas por la prensa y los opositores políticos de la senadora, señalando que la lógica subyacente de la política argentina no incorpora a la mujer como participante autorizada, sino que la marca como extraña y la construye como diferente en su accionar político. Con respecto al “parecido político” entre Cristina y Evita, el análisis realizado deja en evidencia que la actual senadora no encaja en las coordenadas que Eva Perón enunciara y siguiera en su propia actuación política. Así, no es casual que las comparaciones entre Cristina y Evita hayan aparecido predominantemente en la prensa extranjera39, dado que en el exterior se cuenta con un conocimiento menor de la experiencia histórica y de la trayectoria política de Cristina, que precede cronológicamente a la elección de Néstor Kirchner como presidente. Por otro lado, cabe también aclarar que la negación de continuidades entre Cristina Kirchner y Eva Perón se limita a una evaluación de las personalidades y discursos que caracterizan la actuación política de Cristina, sin implicar una toma de posición sobre aspectos relacionados con la construcción de un proyecto político dentro del peronismo y a nivel nacional. Dado que mi análisis se encuentra circunscripto a su carrera política y a su forma de relacionarse con construcciones sociales que otorgan a la mujer un espacio limitado en la arena política, dichos debates se encuentran fuera del alcance de este artículo. 5. Conclusión Como se ha visto en este artículo, el género es una referencia recurrente en la forma en que “el poder político se ha concebido, legitimado, y criticado” (Scott 1986: 1073) y puede encontrarse en los discursos sobre las mujeres políticas de alto perfil. Estos mismos discursos con seguridad resultan obstáculos para muchas mujeres que intentan ascender en política y cuyas carreras nunca resultan en puestos de alto perfil, con la consecuencia de que su actuación y sus preferencias políticas son desconocidas por el público en general. Asimismo, este artículo demuestra la permanencia de discursos de exclusión de la mujer. Ya sea a través de la asignación de un papel restringido a sus habilidades naturales o a través de un escrutinio excesivo de su corporeidad, los discursos son VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 46 representativos de un poder patriarcal que aún busca mantener sus prerrogativas en la arena política. Queda pendiente examinar los correlatos institucionales de estos discursos. Si bien existen trabajos que examinan cuantitativamente los avances de las mujeres en política, así como los efectos sobre las mujeres de las políticas públicas aprobadas, aún es difícil entender cuáles son los mecanismos mediante los cuales las mujeres son excluidas. El presente artículo da un paso importante, al examinar los correlatos discursivos de esta exclusión, correlatos que reflejan y refuerzan estructuras sociales de desigualdad y opresión. NOTAS 1. El presidente declaró: “El año que viene vamos a tener un candidato o una candidata. Argentino o argentina. Pingüino o pingüina.” (Clarín 25/07/2006). 2. Clarín 28/10/2005. 3. Si bien a principios del mes de Julio se cubrió la ciudad con afiches con la imagen de Cristina Fernández de Kirchner en primer plano, el presidente solo la mencionó explícitamente como candidata el 3 de julio, mientras que su lanzamiento oficial se realizó el 19 del mismo mes en la ciudad de La Plata, en la provincia de buenos Aires. 4. Todas las referencias entre comillas a textos originales en inglés son traducciones propias. 5. Si bien es común encontrar éstas dos primeras temáticas analizadas en conjunto (ya que la división entre las esferas suele ser basada o justificada en diferencias naturales entre los géneros), considero que es necesario analizarlas por separado, debido a que existen instancias de participación pública femenina que obviamente pone en cuestión la primera forma de exclusión pero no dejan de aceptar la segunda modalidad de categorización. 6. Diario Clarín, “Kirchner, estallido en la retaguardia y un interrogante sobre el futuro,” 11/05/2007. 7. En efecto, la posición de presidenta de la Sociedad de Beneficencia era – por costumbre – ocupada por la primera dama. Sin embargo, los enemigos de Perón dentro de las Fuerzas Vivas (i.e. los intereses económicos representados por la Sociedad Rural, las mayores empresas extranjeras, así como los exportadores e importadores) le negaron a Evita dicho cargo. La respuesta a este acto fue intervenir la sociedad y purgar sus autoridades, convirtiéndola luego en la Fundación de Ayuda Social y finalmente en 1948 en la Fundación Eva Perón (Rock 1987: 250, 287). 8. Tres de sus fundadoras fueron secuestradas a fines de 1977 y permanecieron desaparecidas hasta el año 2005 en que se identificaron sus restos, confirmando que habían sido mantenidas cautivas en el centro clandestino de detención de la Escuela de Mecánica de la Armada y luego asesinadas arrojando sus cuerpos al río de la Plata.” 9. Presidencia que terminara de manera trágica y abrupta en diciembre de 2001, ver Gervasoni 2002. 10. En un ejemplo de particular falta de tacto y explícita objetivación de la mujer, el Sunday Times de Inglaterra tituló una reciente nota sobre Elisa Carrió y Cristina Kirchner “‘Fatty’ v the new Evita in all-girlfight for Argentina,” 07/08/2007. 11. La Nación Online, “Perfiles de los candidatos por Buenos Aires. Elecciones Legislativas 2005.” http://www.lanacion.com.ar/coberturaespecial/legislativas/perfilDuhalde.asp, consultado 18/07/2007. 12. Diario Clarín, “Murphy, contra Cristina y Chiche: pide ‘liberarse de las esposas’,” 25/07/2005. VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 47 13.Diario Clarín, “Chiche y Murphy en Mar del Plata, otra ‘vidriera’ de los bonaerenses,” 15/09/2005. 14. Diario Clarín, “Chiche lanzó una apelación final al voto: ‘El poder lo tienen ustedes’,” 21/10/2005. 15. Diario Clarín, “Por primera vez sin Kirchner, Cristina se subió a la tribuna,” 27/08/2005. 16. Diario Clarín, “Kirchner volvió a hablar de Cristina: ‘Por ahí es pingüina’,” 15/02/2007. 17. Los ejemplos abundan, como en la descripción del encuentro de Cristina con la candidata presidencial francesa Ségolène Royal: ¨Con vestido de seda marrón, chaqueta a cuadros con ajustado cinturón, la senadora…” (Diario Clarín, “Cristina mandó un mensaje desde París: ‘Es el siglo de las mujeres’,” 06/02/2007); su visita a Los Angeles: “Vestida con un traje verde agua de gasa y zapatos de taco alto al tono, Cristina recordó…” (Diario Clarín, “Cristina dijo, como Kirchner, que la oposición pretende proscribirla,” 14/07/2005.); o en los actos de campaña de Chiche Duhalde: “la mujer de un metro cincuenta y pico y botas de taco soltó: …” (Diario Clarín, “Chiche Duhalde: ‘La provincia de Buenos Aires no es un hotel que se alquila para una elección’,” 27/07/2005.). 18. Diario Clarín, “Entre actos fallidos y pasos en falso Cristina y Chiche juraron en el Senado,” 15/12/2005. 19. El término es usado popularmente como sinónimo de “juguete.” 20. Esta costumbre se repite en otros países; Hillary Clinton – por ejemplo – es nombrada con frecuencia como “Hillary.” 21. Diario Clarín, “Chiche almorzó por TV y se despachó a gusto,” 30/09/2005. 22. Diario Clarín, “‘Duhalde no va a hacer campaña conmigo: yo soy diferente a todos,’” 07/08/2005. 23. Si bien su temprana muerte a los 33 años impiden saber si eventualmente Evita hubiese desarrollado una postura más radical que la de Juan Domingo Perón los grupos de izquierda peronista en los años 70 adoptaron a Evita como una de ellos, siendo la expresión “Evita montonera” parte de los cantos y posters distribuidos por el grupo armado Montoneros (Hollander 1974: 54). 24. Diario Clarín, “Cristina Kirchner ‘¿Dónde imaginan a Evita, pidiendo no volver al pasado o con las Madres?’” 27/07/2005. 25. La Opinión Austral, 11/03/1989, citado en Wornat 2005: 173-174. 26. Diario Clarín, “Kirchner le dio otro fuerte impulso a la candidatura de Cristina” 25/05/2007. 27. Sin embargo, debe notarse que el Presidente Kirchner nombró a su hermana (Alicia Kirchner) en el Ministerio de Desarrollo Social, acatando así la tradicional división de tareas entre hombres y mujeres trasladada desde el ámbito político a su propio ámbito familiar. 28. De hecho, al asumir Néstor Kirchner como presidente, Cristina declaró que ella no sería la primera dama sino la “primera ciudadana” (Wornat 2005: 249). 29. Por ejemplo, luego de que Kirchner cambiara las autoridades del Instituto Nacional de Estadística y Censos, el diario Clarín menciona que entre los críticos de esa decisión se encontraban Cristina Kirchner, el jefe de gabinete, Alberto Fernández, y la ministra de economía Felisa Miceli (Diario Clarín, “Kirchner, en tiempo de conflictos,” 22/04/2007). 30. Entrevista en Diario Perfil, “‘De Cristina Kirchner espero cualquier cosa’,” 15/07/2001. 31. Diario Clarín, “Un discurso con aires fundacionales, hacia afuera y adentro del peronismo” 08/07/2005. 32. Diario Clarín, “Cristina denunció un ‘pacto oculto de desestabilización’,” 25/08/2007. 33. Suplemento Las12, Página/12, “Matrimonios y algo más” 27/07/2007. 34. Esto ha sido observado asimismo por Lilian Ferro quien señala que el retorno de la democracia en la Argentina re-ubicó la actividad política en instituciones tales como los partidos politicos y los sindicatos, cuyas “rigideces patriarcales” hicieron que la acción política de las mujeres se volcara hacia las organizaciones no gubernamentlaes (ONGs). 35. Diario Clarín, “En la Iglesia no creen que Cristina garantice una mejor relación” 09/07/2007. 36. Debe notarse que ninguna de las mujeres de alto perfil en la política argentina exhibe una identidad feminista clara. Si bien hay ejemplos de legisladoras (y legisladores) de partidos VALDEZ, Inés. Ni feminista ni evitista. Sobre la carrera política y candidatura presidencial de Cristina Fernández Kirchner. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 30-50, Dez. 2008 / Jun. 2009. 48 progresistas cuya actuación parlamentaria transmite una preocupación por la vulnerabilidad de las mujeres en áreas claves como la salud reproductiva, la discriminación laboral o la violencia doméstica, estos temas no han sido adoptados como centrales en la agenda o el discurso de políticos con proyección nacional y/o en cargos ejecutivos. 37. Reproducida en Página/12 Online, “‘Me identifico con la Evita del puño crispado’” 27/07/2007. 38. Lilian Ferro, en Suplemento Las12, Página/12, “Matrimonios y algo más” 27/07/2007. 39. En particular, el diario británico Sunday Times publicó tres artículos refiriéndose a Cristina como “New Evita” o “Modern Evita” (11/02/1007, 03/07/2007, y 08/07/2007). 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Para analisar uma das dimensões ainda pouco explorada dessas mudanças, a forma de percepção e representação das mulheres em situações de conflito, o artigo utiliza de recursos da análise crítica do discurso para avaliar o quanto identidades estabelecidas se relacionam com as experiências reais das mulheres. Usando dos argumentos de autores como Bourdieu, Foucault e Fairclough, pretende-se ainda perceber como uma mudança no discurso pode afetar as experiências femininas, usando o caso do discurso das Nações Unidas para exemplificar o uso do discurso como prática política e social. Changes in the characteristics of the wars since the end of the Cold War imply changes in the approach to questions of the security area inside the International Relations. To analyze one of the dimensions still little explored of these changes, the form of perception and representation of the women in conflict situations, the article uses of resources of the critical speech analysis to evaluate how much established identities relate themselves with the real experiences of the women. Using the arguments of authors as Bourdieu, Foucault and Fairclough, we still intended to perceive how a speech change can affect the feminine experiences, using the case of the speech of the United Nations to exemplify the use of the speech as social and politics practical. Word-keys: Palavras-chave: Gênero; Segurança Internacional; Nações Unidas; Análise critica do discurso e; Novos conflitos. Gender; International security; United Nations; Critical Analysis of speech and; New conflicts. 1-Introdução Desde o fim da Guerra Fria, a face da violência internacional vem se modificando. Segundo o Human Security Report, relatório anual do Human Security Center sobre as guerras contemporâneas, o número de conflitos no mundo tem diminuído a partir do início da década de noventa1. Por outro lado, as guerras civis e os conflitos intraestatais hoje superam a guerra entre Estados como maiores fontes de ∗ Bacharelanda em Relações Internacionais. Universidade de Brasília. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 51 violência no cenário mundial. De acordo com os dados do Programa de Dados sobre Conflito da Universidade de Uppsala, os conflitos intraestatais constituíam, em 2005, 95% de todos os conflitos em andamento no mundo2. Os impactos dessa mudança na tendência das guerras – de conflitos entre países para conflitos dentro de países – ainda não foram devidamente explorados pela área das Relações Internacionais. Literatura sobre as chamadas “novas guerras” apenas começou a se desenvolver. Um dos exemplos é o livro de Mary Kaldor “New and Old Wars”, no qual a autora define a natureza política das novas formas de “violência organizada” no cenário internacional a partir das mudanças tecnológicas na indústria de armas e dos efeitos da globalização sobre o Estado nacional3. Como conseqüência dessa mudança no perfil dos conflitos, Kaldor aponta para uma mudança na estratégia dos conflitos. A conquista territorial é substituída por técnicas de intimidação centrada na população civil, como o uso de assassinatos em massa e outros tipos de violações sistemáticas do direito internacional humanitário e dos direitos humanos. Contudo, análises sobre os impactos dessa mudança nos modos de sobrevivência das comunidades em situações de conflito ainda são, em sua maior parte, superficiais. Avaliações sobre a importância do impacto societário dos conflitos são quase inexistentes. Mudanças tão profundas nas formas como os conflitos acontecem requerem, dessa forma, novas abordagens para o estudo de Relações Internacionais. Dessa forma, este artigo se centrará em uma das dimensões do impacto societário das “novas guerras”: as experiências femininas. A participação feminina em conflitos tem sido ignorada completamente, até pouco tempo, pela área de Relações Internacionais. Autoras e autores que se valem das experiências retiradas do campo de estudos de gênero para ampliação do escopo das relações internacionais explicam essa ausência pela forma de construção do discurso realista, baseado apenas em experiências masculinas, dentro da disciplina. Segundo Tickner, essa prática acaba tornando invisível a participação das mulheres no campo internacional e deslegitima o discurso destas na área4. Para Joshua S. Goldstein, a ligação entre gênero e guerra contribui para a invisibilidade feminina quando se trata de discutir assuntos de guerra e paz. Segundo Goldstein, ainda que as mulheres apóiem e participem nas guerras de variadas e inúmeras maneiras, a ligação entre a construção da masculinidade e a habilidade de participar em conflitos como guerreiros acaba fazendo com que apenas os homens XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 52 tenham suas experiências documentadas e reproduzidas depois do fim das guerras, e a participação feminina seja assim descaracterizada e negligenciada5. A partir da consideração dessa relação – ou ausência de relação – entre a feminilidade e o combate, pretende-se explicar a ausência de discussões sobre experiências femininas em situações de conflito. Tradicionalmente, as mulheres são vistas como aquelas que ficam em casa enquanto os homens vão à guerra. Elas são mães, viúvas e até enfermeiras, trabalhando no apoio dos combatentes, mas não são reconhecidas como diretamente envolvidas no conflito. No entanto, o foco deste trabalho está em perceber como essas concepções têm sido modificadas com a mudança dos tipos de conflito internacionais. Paulatinamente, podemos perceber um “surgimento” das mulheres em assuntos ligados diretamente à guerra. Podemos pensar mesmo no caso das prostitutas na Segunda Guerra Mundial pedindo reparações pelos danos sofridos, o caso japonês das Comfort Women, ou nas vítimas de estupro em massa e limpeza étnica em Ruanda ou na Bósnia. A percepção da existência dessas mulheres e de suas participações na guerra leva a uma visão da mulher menos à margem do conflito. Ela passa a ser vista como parte integrante dos conflitos, sendo afetada diretamente pelos impactos da guerra em suas trajetórias pessoais. No entanto, essa nova construção vai além da percepção das mulheres como vítimas diretas das lógicas perversas da guerra. A idéia das mulheres como combatentes ou ativistas políticas também é inserida em nosso imaginário, e mesmo representações de mulheres combatentes em jogos eletrônicos ou filmes hollywoodianos demonstram uma modificação na forma de percepção da participação das mulheres em conflitos. Este trabalho tratará uma instância de colaboração para a modificação dessas percepções: a construção político-discursiva das Nações Unidas. A revisão de papéis determinados aos gêneros, responsáveis de acordo com Goldstein pela invisibilidade feminina em assuntos de guerra, é uma tentativa de reconstrução das identidades das mulheres. A partir do corpus textual analisado, procura-se esclarecer o esforço discursivo de transformação social de órgãos das Nações Unidas. Este esforço se contrapõe a uma análise do discurso das próprias mulheres presentes em países que sofrem os impactos da guerra. Este tipo de discurso, representando visões mais tradicionais do papel da mulher, mostra como tais papéis ainda são essenciais na definição das experiências femininas nas situações de conflito. O conceito de violência XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 53 simbólica de Bourdieu servirá como mediador da análise do discurso das mulheres e as experiências práticas. Assim, duas visões sobre as mulheres, e as relações de transformação dos dois discursos são discutidos. Sob uma perspectiva, as vítimas, mães e esposas, invisíveis como indivíduos atuantes em situações de conflito – percepção dominante na compreensão sobre a atuação das mulheres em conflito até recentemente. De outro ângulo, as mulheres como agentes e ativamente presentes nas guerras, sendo reconhecidas como importantes na manutenção do tecido social em situações extremas e considerando o caráter especial e baseado no gênero da violência sofrida pelas mulheres. Nesse caso, tenta-se analisar sob como se dá o “surgimento” da mulher no cenário político das guerras. Para isso, veremos a importância do discurso da Organização das Nações Unidas na construção dessa outra perspectiva. 2-Metodologia Ao propor uma nova forma de análise dos conflitos, que explora dimensões mais societárias da prática das guerras, perspectivas e metodologias ligadas às formas tradicionais – “empiricistas”6 – de conceber relações internacionais se mostram inapropriadas. O estudo das identidades femininas como uma das dimensões importantes dentro da complexidade dos conflitos atuais implica o uso de uma metodologia da lingüística contemporânea que em muito se diferencia dos ideais positivistas usados como padrão na disciplina. Assim sendo, este artigo se situa do lado pós-positivista do “Terceiro Debate” em Relações Internacionais, como tem sido próprio da teoria feminista no campo7. Considerando o objetivo de esclarecer as dinâmicas de construção políticodiscursiva das identidades femininas, visões objetivistas, próximas aos padrões das ciências naturais são impraticáveis no contexto desse trabalho. De acordo com Smith, escolher uma metodologia calcada nesses princípios mais tradicionais da área é também definir o que ontologicamente pode ser incluído no estudo de Relações Internacionais, prática que é criticada exatamente por excluir do campo dimensões da vida política e social essenciais para a compreensão de fenômenos próprios a ele8. Kaldor, por exemplo, explica as falhas e dificuldades de órgãos como as Nações Unidas em responder às complexidades das guerras no pós-Guerra Fria como resultado do uso de concepções vestfalianas em contextos de funcionamento claramente XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 54 diverso do das guerras tradicionais9. Analogamente, o método aqui utilizado responde à inclusão de novos fenômenos dentro da ontologia da disciplina, aproximando-a de discussões acontecendo em outros campos da ciência social atualmente, como a Linguística e a Análise Crítica do Discurso (ACD). Primeiramente, a escolha da ACD segundo Fairclough é conseqüência da ênfase dada por esse autor à análise discursiva de situações de mudanças sociais e culturais10. Em segundo lugar, o método e a teoria da Análise Crítica do Discurso de Norman Fairclough se propõem a serem uma moldura analítica que possibilita o entendimento das relações entre discurso, ideologia e poder11, e por isso foi escolhido como base desse artigo. Tais relações serão essenciais para a discussão da medida na qual o trabalho discursivo das Nações Unidas é responsável pela modificação nas percepções sobre participação femininas em conflito, percepções até hoje calcadas em relações de poder tradicionais, discutidas sob a ótica de Bourdieu mais à frente. Por outro lado, a visão de Fairclough sobre o estudo das identidades como uma das formas de ligação das práticas sociais ao discurso será responsável pela conexão entre as percepções sobre papéis e agência femininas com a experiência das mulheres em situações de conflito. Considerando o discurso como uma modalidade de prática social, ele enfatiza a relação dialética entre discurso e estrutura social: a última é tanto efeito quanto condição da primeira12. O autor parte da perspectiva de Foucault sobre o papel do discurso na ordem social, uma vez que este é fundamental para a compreensão da importância do discurso na constituição de sujeitos e objetos sociais, do poder e da política. Parte essencial da sua análise é a do “discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas entre as quais existem as relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de diversas posições de poder”13. Sabendo que as questões de gênero se baseiam em relações de poder baseada em uma hierarquização de homens e mulheres nas relações sociais, a análise crítica do discurso nesse artigo procura mostrar como essas relações de poder podem ser mantidas ou transformadas por meio do discurso como parte da construção de identidades. Para isso, o conceito de violência simbólica de Bourdieu, como explicação para a construção discursiva das identidades femininas em suas concepções mais tradicionais, mostra o poder dessa afirmação no desenvolvimento do trabalho. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 55 Por outro lado, Fairclough critica a abordagem de Foucault e a diferencia da sua “análise de discurso textualmente orientada” ao tentar complementar o estruturalismo de Foucault com um foco na agência individual que permite compreender a possibilidade de mudança social. A crítica à ênfase dada por Foucault a uma análise centrada nas estruturas e ordens de discurso, em detrimento da análise da prática discursiva individual, leva a uma preocupação de Fairclough com o uso de textos como instâncias concretas da prática do discurso. Dessa forma, as práticas discursivas não são entendidas apenas como reprodutoras das estruturas, mas a análise do discurso como texto abre espaço para a agência dos agentes discursivos na transformação delas14. Tenta-se, assim, superar a ênfase estruturalista que não dá espaço à “agência social ativarias dimensnstruindo a socieadeonstituindo ou construindo a socieadee em qualquer sentido”.15 A ênfase desse artigo e da análise crítica do discurso é exatamente tentar compreender em que medida os textos, como práticas sociais, trabalham na reprodução ou transformação de estruturas. Se em uma dimensão as identidades tradicionais femininas representadas nos discursos das mulheres mostram uma reprodução de estruturas, o discurso da ONU aparece como agente na transformação. A instituição que apóia o discurso de constituição da mulher como agente, sendo esta principalmente um espaço político importante de produção e distribuição dessa prática discursiva, é também importante no quadro metodológico estabelecido por Fairclough. Assim sendo, o quadro metodológico tridimensional de análise crítica do discurso coloca o texto como uma dimensão do discurso e a prática social como outra. A terceira dimensão do discurso seria então a produção, distribuição e consumo textual, essas relações sendo entendidas como a “prática discursiva”. O discurso como texto requer a análise de forma e de significados: vocabulário (lexicalização, relexicalização e significação), gramática, coesão e estrutura textual. Coerência e intertextualidade também são incluídos aqui. O discurso como prática social leva a uma discussão da ligação do discurso com ideologias: “significados/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem pra a produção, reprodução ou a transformação das relações de dominação”16. Questões de produção e consumo dos textos não serão discutidas profundamente no artigo, mas a idéia do alcance político e da legitimidade internacional XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 56 de uma instituição como as Nações Unidas é pressuposto essencial para que se possa entender a importância do seu posicionamento em relação às identidades femininas, e sua escolha como fonte produtora do corpus textual analisado. A dimensão da prática social no qual estão inseridos os textos deste trabalho é examinada na próxima sessão, por meio da discussão da categoria de Bourdieu da ‘violência simbólica’. A análise micro do texto, em suas formas e significados, está concentrada em uma quarta parte do trabalho, dentro de tópicos que obedecem às categorias de identificação feminina como estabelecidas pelo documento oficial e relatório da ONU. Dentro dessas três formas de identificação (a saber: ‘refugiadas e deslocadas’, ‘prostitutas e escravas sexuais’ e ‘ativistas’) usarei tanto do discurso das mulheres como exposto pelo relatório como do próprio discurso do relatório para contrapôr a política discursiva da ONU com as identidades femininas mais tradicionais (e mais ligadas ao conceito de Bourdieu). Pretendo, assim, demonstrar como a análise da prática discursiva e do texto nos pode fornecer informações para a percepção de que uma tentativa de reformular as práticas sociais pode partir de uma nova compreensão discursiva das identidades femininas em situações de conflito. O corpus do trabalho é formado pelo Relatório de especialistas independentes para as Nações Unidas sobre a situação da mulher no mundo, Women War Peace, e pelo Pacote de Recursos para Tratamento de Questões de Gênero em Operações de Paz17, documento oficial das Nações Unidas. Importante assinalar que o primeiro servirá não só como base para a discussão do discurso onusiano para as mulheres, mas também será a fonte da discussão das declarações das mulheres a serem analisadas também como parte do trabalho. 3-As dimensões políticas do discurso: o oficialismo da ONU e a violência simbólica de Bourdieu 3.1-O Relatório das Especialistas Independentes: Women War Peace As Nações Unidas têm como prática, a fim de extrair uma visão ampla sobre temas tratados pela Organização, de usar o trabalho de especialistas independentes na exploração desses temas. Tais especialistas são assessorados apenas em questões de segurança pela ONU, e contam com seus próprios recursos para o trabalho de relatoria, no objetivo de manter, ao máximo, a independência desses em relação à Organização. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 57 No caso do documento em questão, é necessário primeiro estabelecer a clara agenda política deste, explicitada na Introdução: “we direct our conclusions to those with the power and resources to make a difference Indifference is not an option. In representing women’s expierence of war we have paid attention to the causes and consequences”18. Produzido pela ex-Ministra para Assuntos de Igualdade da Finlândia em conjunto com a atual presidenta da Libéria, o relatório se propõe a mobilizar recursos políticos para a causa de proteção dos direitos das mulheres em situação de conflito, enfatizando a importância das questões de gênero e o caráter da atuação feminina em situações nessas situações. Na próxima seção, serão analisados os recursos discursivos empregados pelo relatório para a superação da visão da mulher como vítima em prol de uma visão da mulher como sujeito de manutenção das estruturas comunitárias. O Relatório é dividido em onze partes (violência contra a mulher; mulheres obrigadas a fugir; guerra e saúde da mulher; HIV/AIDS; mulheres e operações de paz; organizando-se pela paz; justiça; poder da mídia; prevenção de conflitos e reconstrução), cada uma delas se inicia como uma narrativa da história de uma mulher real entrevistada pelas especialistas e termina com recomendações-chave dessas para o tratamento pela ONU do tema do capítulo. Mistura narrativa com entrevistas feitas às mulheres – com as quais se encontraram em dezesseis diferentes lugares do mundo que passam ou passaram por guerras, entre eles Serra Leoa, Camboja, Ruanda e Bósnia. Também conta com dados estatísticos e referência a conceitos econômicos, sociológicos e políticos como forma de dar base às recomendações feitas ao fim do capítulo. 3.2-O Pacote para Tratamento de Questões de Gênero em Operações de Paz Documento oficial das Nações Unidas foi produzido pelo departamento da Organização responsável pelos aspectos administrativos e práticos das operações de paz. Dessa maneira, é organizado em vinte e três capítulos divididos por temas ligados às questões de gênero (capítulo I se intitula ‘gênero e peacekeping; já o XVI, gênero, desmobilização, desmilitarização e reintegração, e assim em relação a outros temas). Cada capítulo é dividido em background, onde o tema tratado é discutido de maneira resumida, legislative basis, onde são expostas as bases legais para a ação orientada pelas XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 58 necessidades especiais de gênero – em geral a resolução 1325 do Conselho de Segurança sobre mulheres e conflito –, e recommendantions, onde a ação necessária para tratar devidamente aquele assunto é exposta em tópicos. O pacote visa oferecer aos chefes de missão um guia para tratar com gênero nas operações de paz. É um documento oficial das Nações Unidas e sua linguagem é de resolução a ser seguida – representada pelo uso constante do imperativo. Os pressupostos para as ações a serem tomadas pelos chefes de missão na implementação do pacote claramente deriva de discussões como aquelas elaboradas pelo relatório. Ou seja, está constantemente discutindo a necessidade de conceber as mulheres não como vítimas da guerra, mas como agentes a serem reconhecidos, para que seu espaço de ação possa ser respeitado e sua possibilidade de ação, promovida. 3.3. Para entender o discurso feminino: o conceito de ‘violência simbólica’ de Bourdieu De acordo com Bourdieu, a violência simbólica é uma experiência universal – a maior parte das sociedades dá primazia aos homens nas estruturas sociais e atividades produtivas19. Para uma compreensão de como a violência simbólica participa das experiências reais de homens e mulheres, e da sua ligação às práticas discursivas analisadas nesse artigo, é necessária antes uma explicação superficial do pensamento do sociólogo francês a respeito da relação entre os sistemas de símbolos e as relações entre agentes individuais e estruturas sociais. Da mesma forma que Foucault e Fariclough usam a linguagem e o discurso como meio de compreensão da relação ente as estruturas sociais e a agência que cada indivíduo pode exercer na reprodução ou modificação dessas estruturas, a perspectiva de Bourdieu vai englobar essas análises ao procurar entender essas mesmas dinâmicas estabelecidas entre agentes e estrutura por meio da concepção de “campos” sociais. Campos seriam, para esse autor, espaços sociais nos quais as relações se constrõem a partir da competição por bens simbólicos e/ou materiais. A própria constituição do ator como indivíduo subjetivo passa pela construção do seu desejo de alcançar o capital característico do campo no qual está inserido, e essa busca, por sua vez, é essencial na construção das estruturas sociais. Os sistemas simbólicos, tais como a linguagem, são parte essencial da internalização dos pressupostos dessa competição pelos agentes. A ordem social é, dessa forma, XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 59 constituída pela localização dos agentes nessas estruturas competitivas, marcadas por relações de dominação sustentadas por significados e mapas cognitivos responsáveis pela manutenção dessas redes. Sendo as estruturas sociais loci de dominação, também os sistemas simbólicos que as constituem subjetivamente são formas de exercício dessa dominação. O “poder simbólico” é aquele que constitui os atores envolvidos nas relações de dominação porque constroem as formas de conceber as estruturas sociais desses. A dominação simbólica é aquela construída com a colaboração do dominado, pois esse é também constituído como indivíduo a partir de mapas cognitivos que legitimam essa dominação20. A violência simbólica, própria das relações sociais caracterizadas pela dominação masculina é um dos mecanismos de atuação do poder simbólico. Voltando à afirmação da universalidade da primazia masculina, Bourdieu vai explicar a violência simbólica como a construção societária que coloca os homens como “matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade”21. Isso quer dizer que, nas relações homem-mulher, as relações de poder aí estabelecidas são construídas e reproduzidas pelo sistema simbólico a partir das percepções masculinas. Mesmo as mulheres percebem as relações nas quais estão inseridas por uma visão do homem como sujeito da relação, enquanto a própria mulher se vê como um “bem simbólico”, objeto das relações. Os interesses-padrão da sociedade são, assim, os interesses masculinos, e os agentes-padrão, os homens; mulheres são moeda de troca e instrumento para as ações dos homens. Bourdieu identifica essa dissimetria como a base de toda a organização social: “as mulheres só podem aí ser vistas como objetos, ou melhor, como símbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja função é contribuir par a perpetuação ou o aumento do capital simbólico em poder dos homens”22. As próximas seções do trabalho pretendem usar a análise do discurso crítica para demonstrar como as ordens do discurso tradicional explicitado pelas entrevistas femininas deixam transparecer os mecanismos simbólicos que suportam as estruturas da violência simbólica acima descrita. Principalmente, considerando as proposições de Bourdieu que “o que faz a circularidade terrível das relações de dominação simbólica, o que faz com que não seja fácil se livrar dela, é que elas existem objetivamente sob formas de diviões objetivas e sob forma de estruturas mentais que organizam a XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 60 percepção dessas formas objetivas”23, procura-se fazer a ligação entre a concepção do papel das mulheres e as experiências objetivas dessas. Aparece, por exemplo, de maneira saliente, nos conflitos, a lógica percebida por Bourdieu para o ‘mercado matrimonial’. A negociação da honra por meio da troca da mulher entre o pai desta e o marido, está presente no mercado do sexo, da ajuda humanitária e mesmo no uso do estupro como arma de guerra, onde a mulher também é bem de troca por diferentes bens, por vezes podem simbólicos e, outras vezes, materiais. Em todos esses contextos, a concepção da mulher como instrumento e objeto do padrão masculino, de acordo com as discussões de violência simbólica é demonstrada. Por outro lado, retomamos as idéias de Foucault e o discurso da Organização das Nações Unidas ao perceber que as reflexões sobre os impactos e as dinâmicas dos conflitos hoje vêm acompanhadas por uma deslegitimação, dentro daquela instituição multilateral, dessas estruturas simbólicas que funcionam como mecanismos de reprodução da dominação masculina descrita por Bourdieu. Passemos, na próxima sessão, a uma análise que também comporta uma percepção do trabalho da ONU no qual a “produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos”24 e, como coloca Foucault, esse controle e distribuição do discurso corresponde a um esforço político. Um dos objetivos do artigo, e do uso dos conceitos de Bourdieu, é levantar o questionamento do quanto esse esforço político da transformação de uma ordem de discurso institucional pode permitir uma mudança nas estruturas objetivas das sociedades e nas experiências reais das mulheres em situações de conflito. 4. Identidades em conflito: análise das micro-práticas dos discursos Partirei do uso de categorias determinadas pelo Relatório Women War Peace – a lexicalização e categorização já sendo percebidas como uma tentativa de identificação das mulheres de maneira mais específica do que as classificações geralmente usadas das mulheres como ‘vítimas indiretas’ da guerra ou ‘população vulnerável’25. Ao emprestar um vocabulário específico para as experiências femininas em conflito, notamos uma prática discursiva que identifica cuidadosamente os efeitos e participação das mulheres, na tentativa de superar a situação desses efeitos e participação dentro de uma idéia vaga de ‘efeitos colaterais’ da guerra, e com claros fins XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 61 de viabilização de políticas de Estado para o tratamento das questões referentes a essas experiências. 4.1. Refugiadas e deslocadas internas (internally displaced persons) (1) “If [a girl] refuses[s], when the time comes for the supply of food items, you will be told that your name is not on the list”26. Se uma garota se recusa, quando o momento chega para o fornecimento de itens alimentícios, eles dirão que seu nome não está na lista. (2) “If you do not have a wife or sister or a daughter to offer the NGO workers, it is hard to have access to aid”27. Se você não tem irmã ou esposa ou filha para oferecer aos trabalhadores das ONGs, é difícil ter acesso à ajuda. (3) “Once our children are educated, the girls will know that they do not have to submit to violence in order to have a husband”28. Uma vez que nossos filhos forem educados, as garotas saberão que elas não têm que se submeter à violência para ter um marido. (4) “In one camp of Sierra Leonean refugees, one social worker offered us her analysis of the differing ways men and women react to camp life. The men, she said, loose their identity and their dignity. They sit around all day and then they take out their frustrations on the women and children at night. In her view, women are different. ‘They cope because they have to. They bend with the situation’”29. Em um campo de refugiados serra-lenoês, uma tradalhadora social nos ofereceu sua análise sobre as diferentes maneiras que homens e mulheres reagem à vida no campo. Os homens, ela disse, perdem a identidade e a dignidade. Eles ficam sentados o dia todo e descontam suas frustrações nas mulheres e crianças à noite. Sob o ponto de vista dela, as mulheres são diferentes. ‘Elas enfrentam a situação porque precisam. Elas se adaptam às circunstâncias. (5) “The women were restless, burning with the desire to communicate their common experience, their common trauma”30. As mulheres eram incansáveis, e ardiam com o desejo de comunicar suas experiências comuns, seus traumas comuns. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 62 (6) “The responsibility to care for others is so embedded that even in the most desperate conditions, women still try to take care of everyone around them”31. A responsabilidade de cuidar dos outros está tão internalizada que, mesmo nas situações mais desesperadoras, as mulheres ainda tentam cuidar de todos ao seu redor. O relatório do Human Security mostra que mulheres constituem setenta por cento dos refugiados e deslocados internos32. Essas são pessoas que abandonam seu lar por medo da violência ou por terem tido suas casas, vilas ou cidades destruídas. Os excertos dos documentos acima apresentados foram retirados das experiências e declarações de pessoas vivendo em campos de refugiados. Nessas situações, comida, água e medicamentos, além de outros itens de primeira necessidade são em geral supridos por ONGs e OIs, através de ajuda humanitária. Os excertos (1) e (2) mostram como até na forma de acesso das pessoas a esses itens as formas de compreensão tradicionais das identidades femininas têm impacto. A visão das mulheres como ‘moeda de troca’ e objeto de relações nas quais os sujeitos são os homens, caracterizados pela latência sexual típica da masculinidade, determina o acesso das famílias aos itens. Isso se mostra claramente quando em (2) um homem do campo usa o termo ‘oferecer’ (offer) como forma de definir a relação necessária entre ele e os trabalhadores humanitários para ter acesso à ajuda. O uso da mulher como moeda de troca não poderia ser mais explícito nessa construção, sendo as relações entre os sujeitos masculinos aqui constituídas a partir do uso da mulher não para o angariamento de bens simbólicos como a honra, mas de capital material, o da ajuda humanitária. A lógica da violência simbólica presente,pode-se notar, é a mesma discutida por Bourdieu. Da mesma forma, em (1) uma das mulheres do campo reafirma tal relacionamento ao dizer que se a ‘garota’ (girl) se recusa, ela não receberá a ajuda. Tal proposição coloca os homens como agentes da ação, impondo relacionamentos aos quais as meninas se recusam. A impossibilidade de se recusar explícita em (2) – sendo este o único meio possível de acesso à comida –, nos deixa entender que resta simplesmente às garotas se submeter a uma relação na qual elas não possuem agência ou vontade. Os trechos seguintes, em oposição, são usados pelas especialistas do relatório para adicionar a essa visão das mulheres uma outra nuance: as refugiadas e XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 63 deslocadas são apresentadas então como ativas e altivas – no caso do adjetivo ‘restless’ (incansáveis) em (5). Elas são responsáveis pelo cuidado dos outros, e, ainda que tal comportamento também seja derivado de visões tradicionais do papel essencialmente maternal das mulheres e, ultimamente, tenha impacto negativo sobre estas por pressupor uma abnegação em favor da família que acaba negligenciado as necessidades destas, leva à compreensão do motivo porque em (4), ao contrário dos homens, que se entregam a auto-piedade, as mulheres se mantêm trabalhando, “tomando conta de todos”. Assim sendo, elas passam do capital a ser negociado pelos homens, submetidas em troca de comida e medicamentos, para aquelas que agem na manutenção da comunidade, no cuidado dos outros, que dividem experiências próprias. Elas são ‘diferentes’, ‘inquietas’ e comunicativas. A identidade das mulheres, ao contrário do que acontece com os homens, não é perdida: suas formas de agência são enfatizadas. A agência dessa maneira enfatizada se liga às ideologias tradicionais de gênero: a mulher é abnegada e coloca o bem-estar da família acima do seu. Mas é importante perceber, nesse caso, que tal característica é enfatizada em contraste com as dos homens, que se abandonam e se entregam à indolência, de forma que o papel e a ação das mulheres se valorizam. Finalmente, a declaração em (3) corresponde a uma demonstração da consciência feminina da sua situação de submissão, e de bem simbólico. Impressionantemente, elas concordam com Bourdieu de que saber estar submetida não garante a liberação33. No entanto, parecem saber de que forma isso se dará: pela educação, suas filhas saberão não ter que se submeter à violência doméstica. Tal trecho é especialmente interessante na formação de uma visão dessas mulheres não como vítimas, ainda que sofram violência – afinal, nas guerras os homens a sofrem sem serem reconhecidos como tal. Elas são indivíduos e agentes da sua própria história, reconhecendo os motivos de sua ‘dominação’ e planejando a superação dela pela próxima geração. 4.2. Profissionais do sexo e escravas sexuais (1) “I am the only person who has an income in the family. Since the UNAMSIL’s34 arrival, I have been able to make enough money to support my family. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 64 My clients are mainly peacekeepers. Of course I do not like to trade my body for money, but what choice do I have?”35 Eu sou a única que tem renda na família. Desde a chegada da UNAMSIL, eu fui capaz de conseguir dinheiro suficiente para sustentar minha família. Meus clientes são principalmente peacekeepers. É claro que eu não gosto de trocar meu corpo por dinheiro, mas que outra escolha eu tenho? (2) “They told us about their struggle to heal from the physical violence and psychological pain”36. Elas nos contaram sobre sua luta para se curar da violência física e dor psicológica. (3) “The girls were all sex workers. They belonged to different religions and ethnic groups, but they all had one thing in common: they had been separated by from their families during the war. Most had been abducted and forced to stay with the rebels until they escaped or the cease-fire was signed. They had been raped repeatedly. Many had seen their parents and siblings killed by armed groups (…) It is impossible to ignore the desperation of these girls, but at the same time we were moved by the efforts to support each other. Out of nothing they had created a community”37. As meninas eram todas profissionais do sexo. Pertenciam a diferentes religiões e grupos étnicos, mas todas tinham algo em comum: haviam sido separadas das suas famílias durante a guerra. A maioria tinha sido raptada e forçada a permanecer com os rebeldes até conseguirem escapar ou até a assinatura do acordo de paz. Elas haviam sido estupradas repetidamente. Muitas viram pais e irmãos serem assassinados pelas milícias. (...) É impossível ignorar o desespero dessas garotas, mas ao mesmo tempo estávamos comovidas pelos esforços que faziam para apoiar umas às outras. Do nada, elas criaram uma comunidade. (4) “I was taken by the RUF when I was 14. Now I am 17. I was made to be the ‘wife’ of a man for nearly two years. That is quick to say, two years, but everyday felt like a year to me. I feel like an old woman now. Nobody will ever want me. I don’t want to face my family because they know what happened. I will never love.38" A RUF me levou quando eu tinha 14 anos. Agora tenho 17. Eu fui obrigada a ser ‘esposa’ de um homem por quase dois anos. Isso parece rápido ao dizer, dois anos, mas todo dia parecia um ano para mim. Sinto-me como uma velha agora. Ninguém XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 65 jamais vai me querer. Eu não quero encarar minha família porque eles sabem o que aconteceu. Eu nunca vou amar. (5) “women and girls who have been abducted, suffered gender-based violence such as sexual assault and rape, and been forced into marriage or worked as sexual slaves, will have particular psycho-social needs”39. Mulheres e crianças que foram raptadas, sofreram violência de gênero tais como ataques sexuais ou estupro, e foram forçadas a casar ou a trabalhar como escravas sexuais, terão necessidades psico-sociais particulares. A situação das mulheres em redes de prostituição ou que foram submetidas à escravidão sexual durante os conflitos é especialmente complexa. Por razões sociais e culturais, até pouco tempo elas não eram nem um segmento considerado no tratamento de questões de guerra e paz. A rejeição e o estigma que marcam a vida das mulheres identificadas com a prostituição ou mesmo com a violência sexual por combatentes é óbvia em (4): “eu não quero encarar minha família porque eles sabem o que aconteceu. Ninguém jamais irá me querer”. O próprio esforço presente nos trechos acima de caracterizar a dor, o sofrimento e as necessidades especiais das mulheres que sofreram violência ou que se prostituem é uma demonstração da desconsideração da subjetividade dessas mulheres geralmente vigente. O estatuto de ‘objeto’ dessas pessoas restringe as possibilidades econômicas das mulheres – afinal, como coloca Bourdieu, a esfera pública é dos homens40, sobrando para mulheres, quando obrigadas a sustentar a família como em (1), apenas atividades ligadas aos seus papéis tradicionais. A forma de violência sofrida pelas mulheres, como em (4), também é pautada por esses papéis. Ao caracterizar sua situação na milícia como ‘mulher’ (wife) de um combatente, a mulher dando o depoimento está de fato demonstrando que a relação de violência física constante caracteriza um “casamento” baseado na negação de sua individualidade e vontade em favor do que seriam as necessidades do outro, nesse caso sexuais. A construção do significado da mulher “fora de si”, retomando Bourdieu, chega nesse ponto ao extremo – a percepção da mulher a partir do padrão masculino da sociedade nega a essa o mínimo da subjetividade, permitindo que ela seja usada, sem consideração das suas vontades ou percepções sobre aquela experiência, como objeto para exercício da sexualidade do combatente. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 66 Dessa forma, o discurso do Gender Resource Package (5) e do Relatório das especialistas (2) e (3) é um esforço de identificar essas mulheres subjetivamente, por meio do emprego constante dos termos ‘psíquico’ e ‘psicológico’. Em (3) vemos como isso se complementa na construção da ‘fortaleza’ feminina: mulheres submetidas a todo tipo de violência, caracterizado na primeira parte do trecho pelo uso da voz passiva se transforma na convivência com esse mal-estar sem prejudicar a capacidade de ação dessas mulheres, na voz ativa em que é descrita a formação de uma comunidade por elas. A colocação “É impossível ignorar o desespero dessas garotas” se coloca quase como uma ironia, quando o trauma psicológico e a situação psíquica dessas mulheres sofrem constantemente é geralmente ignorado em grande parte devido às causas acima discutidas. Mesmo assim, o poder de ação das mulheres é enfatizado – não porque elas não sofrem, mas porque são capazes de se reerguer de forma ‘comovente’, e agir mesmo tendo sofrido tanto, como nos diz o trecho (3). 4.3. Ativistas políticas (1) “As widows, we share a lot in common. We struggle to claim our inheritance from our late husbands’ families and, sometimes, even the custody of our children. We want to know where our husbands are buried so we pressure the authorities to investigate their disappearences. And we turn to each other to help raise our children and orphans who lost both of their parents at the war”41. Como viúvas, temos muito em comum. Nós lutamos para exigir nossa herança da família dos nossos falecidos maridos e, à vezes, até mesmo a custódia dos nossos filhos. Queremos saber onde nossos maridos estão enterrados para que possamos pressionar as autoridades na investigação de seus desaparecimentos. E nós contamos umas com as outras para que possamos nos ajudar a criar nossos filhos e os órfãos que perderam ambos os pais na guerra. (2) “In Arta, we presented ‘buranbatur’ – a special poetic verse sung by women – to show the suffering of women and children during the 10 years wars. We lobbied for a quota for women in the future legislature, the Transitional National Assembly (TNA). But we faced opposition from the male delegates, who told us that no man would agree to be represented by a woman”42. Em Arta, nós apresentamos ‘buranbatur’ – um verso poético especial cantado pelas mulheres – para mostrar o sofrimento pelo qual passaram mulheres e XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 67 crianças durante os dez anos da guerra. Nós fizemos lobby por cotas para as mulheres na futura legislatura, a Assembléia Nacional Transitória. Mas enfrentamos oposição dos delegados, que nos disseram que homem algum concordaria em ser representado por uma mulher. (3) “The men who had been negotiating didn’t fell that the women had any right to be there. These men felt that they had the right to be there because they were fighter or had been elected to some parliament before the war escalated. Burundi women who had suffered so much didn’t have any legitimacy in their eyes. But by bringing in the women, the documents have more legitimacy now”43. Os homens que estiveram negociando não sentiam que as mulheres tinham qualquer direito do estar ali. Esses homens sentiam que eles tinham direito de estar ali porque eles eram combatentes ou tinham sido eleitos para um parlamento antes do conflito escalar. As mulheres do Burundi não tinham muita legitimidade aos olhos deles. Mas ao trazer as mulheres, os documentos têm mais legitimidade agora. (4) “Women and girls are not only victims in armed conflict; they may also become active agents. In many conflicts and post-conflict situations they have been instrumental in promoting peace. Their involvement in a number of countries has drawn upon their moral authority as mothers, wives and daughters to call for an end to the conflict. However, women continue to be largely absent from formal peace process. Instead they tend to play more prominent roles in informal activities that support formal peace processes”44. Mulheres e crianças não são apenas vítimas em conflitos armados; elas também se tornam agentes ativos. Em muitas situações de conflito e pós-conflito, elas têm sido instrumentais na promoção da paz. Seu envolvimento em um número de países foi baseado em sua autoridade moral como mães, esposas e filhas que clamam pelo fim do conflito. No entanto, mulheres continuam ausentes do processo de paz formal. Em vez de participarem desses processo, elas tendem a possuir papéis mais proeminentes em atividades informais que servem de apoio ao processo de paz. (5) “When collecting information, UNMOs/MLOs45 are advised to interview women in the communities being monitored as well as women leaders and member’s of women organizations. These groups can provide important information on a variety of topics, including human rights abuses such as the rape and trafficking of XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 68 women and girls, forced recruitment of boys into armed groups, the level of weapon ownership in the community and small arms trade”46. Ao coletar informações, UNMOs/MLOs são aconselhados a entrevistar as mulheres das comunidades sendo monitoradas, assim como as mulheres líderes e membros de organizações femininas. Esses grupos podem fornecer informações importantes em diversos tópicos, incluindo violações de direitos humanos tais como estupro e tráfico de mulheres e crianças, recrutamento forçado de meninos em grupos armados, o nível de posse de armas na comunidade e do comércio de armas leves. Os locais de conflito visitados pelas redatoras do Relatório Women War Peace são sociedades nas quais a divisão público/privado é essencial na compreensão dos papéis masculinos e femininos, assim como na maior parte do mundo. Assim sendo, qualquer atividade política feminina é em geral considerada imprópria e ilegítima, como o trecho (3) claramente apresenta. O trabalho discursivo da ONU, nesse caso, centra-se no esforço de legitimação de um trabalho político feminino calcado por vezes em lógicas mais informais e afinadas com os papéis tradicionais asssumidos pelas mulheres, como informam os trechos (1) e (4). O trecho (2) tem um significado especial quando ele trata de categorias de representação entre masculino e feminino, em diálogo com a idéia de violência simbólica de Bourdieu. A diferença entre homem e mulher é caracterizada pela capacidade de representação de um sexo pelo outro. Se as mulheres são bens simbólicos de uma sociedade masculina, eles podem falar em nome delas, mas o inverso é rejeitado. Em (1) a mesma lógica das mulheres como bem simbólico se repete – elas não tem direito à terra ou aos filhos porque não são sujeitos dentro do casamento, são bens como a terra e, logo, não faz sentido que um tenham posse sobre qualquer herança. No entanto, em (1), ao mesmo tempo em que a declaração demonstra o poder dessas formas tradicionais de identificar a mulher, ela também mostra a própria mulher resistindo a essa identificação tradicional. Ela afirma sua identidade como agente na ‘exigência’ (claim) de seus direitos sobre a terra de seu marido e os filhos que teve com ele. Os discursos em (4) e (5) colocam em cheque a lógica que leva à declaração indireta em (2) de que as mulheres deveriam ser representadas pelos homens ao estabelecer a ação política das mulheres como mãe, filhas e esposas em um patamar de autoridade válido apesar da informalidade do seu exercício. A legitimação discursiva XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 69 das experiências das mulheres, que em geral acontecem nas esferas consideradas privadas, tem a finalidade de permitir que elas participem dos processos formais de paz e não sejam rejeitadas na base do argumento exposto em (3). Nesse caso, apenas os ‘guerreiros’, os que pegaram em armas, num papel estritamente masculino, teriam direito político. A ligação entre as duas experiências, da guerra e da política é entendida essencialmente por serem realizadas por homens nas esferas consideradas públicas. O estabelecimento da importância social do trabalho feminino ‘privado’ pelos trechos (1), (3), (4) e (5) pretende levar as mulheres para um patamar político que permita o reconhecimento público de suas demandas. 5-Considerações Finais: discurso e prática social – possibilidade de uma síntese positiva para as mulheres? Este trabalhou tentou delinear os termos do embate entre as identidades construídas pela prática social tradicional e a tentativa de reconstrução dessas identidades pelo discurso da Organização das Nações Unidas. Pela análise do discurso das mulheres presentes nas situações de conflito, observa-se a cristalização de idéias e identidades que variam da tradição do papel de esposa e mãe à negação do sujeito feminino. Por outro lado, a prática discursiva da ONU se coloca como um agente que tenta uma transformação social pela transformação das identidades femininas. Vale ressaltar que o discurso esposado pela ONU hoje não é uma constituição recente, mas parte de um processo de longo prazo. A análise de um momento da elaboração desse discurso é importante para percebermos, seguindo as análises de Fairchlough, as instâncias de mudança social – momentos que são parte de um processo de reformulação de estruturas e não acontecem abruptamente. Exatamente por isso é importante frisar que entre a prática discursiva da ONU e a realidade da ação dessa Organização nas situações de conflito civil há ainda grande distância. As visões tradicionais sobre as mulheres permeiam não só as sociedades em conflito, mas também grande parte dos atores, em sua maioria homens, que intervém na tentativa de superação desses conflitos. Reitera-se assim que a dimensão social da prática discursiva da ONU tem conseguido avanços lentos na modificação efetiva da experiência das mulheres através da revisão dos modos simbólicos de identificá-las e reconhecê-las. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 70 Para fins dessa análise, contudo, a discussão se reveste de especial interesse por serem as Nações Unidas um âmbito no qual as ordens do discurso ali constituídas se transformem em ações políticas reais para a transformação do relacionamento homemmulher. Em situações delicadas como as de reconstrução das sociedades que saíram de longos conflitos, a importância da ação feminina tem sido reconhecida na base de novas concepções sobre o que as mulheres fazem e são. O trabalho assim se concentrou menos na compreensão de como as ideologias tradicionais de gênero são construídas e mais em que bases elas podem ser reconstruídas. Significativamente, tentei mostrar que a prática discursiva é parte essencial nessa tentativa de transformação social de papéis e identidades. É preciso dizer que para isso compete o fato de que um discurso como o das Nações Unidas tem sua dimensão política e ideológica explícita. Assim, a agenda de igualdade de gênero defendida por essa Organização ‘investe’ seu discurso de um caráter emancipatório, que acaba sendo refreado na prática por discursos mais tradicionais. Para área de estudo das Relações Internacionais tais perspectivas são novas e importantes, na medida em que apresentam formas de ver os domínios tradicionais da disciplina de uma maneira ainda não explorada. Recorremos assim às dimensões sociais da prática das identidades e do discurso para entender que a violência da guerra e a reconstrução da paz não se fazem apenas com armas e armistícios, mas também com a linguagem e o discurso em suas múltiplas possibilidades – de submeter ou libertar, de negar ou enfatizar, de promover a exclusão ou a justiça. Repensar velhos assuntos sobre novas perspectivas não é apenas possível, é necessário. A transformação social da qual o discurso pode ser agente, neste caso, abre o caminho para novas concepções sobre o que é a experiência da guerra e como se constitui a paz. Concepções nas quais a desconsideração da mulher como sujeito e agente dessa paz concorrem diretamente para inviabilizá-la. NOTAS: 1 Human Security Centre. Human Security Report 2005 – War and Peace in the 21st Century. New York, Oxford: Oxford University Press, 2005, p.3. 2 Ibidem, p. 23. 3 Ver KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Cambridge: Polity Press, 1999. 4 Ver TICKNER. J. Ann. Gender in International Relations: Feminists Perspectives in Achieving Global Security. New York: Columbia University, 1992. 5 GOLDSTEIN, Joshua S. War and Gender: How Gender Shapes the War System and Vice-Versa. Cambridge: University Press, 2001, p. 59. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 71 6 Chamo as metodologias tradicionais de RI de “empricistas” seguindo o argumento de Wendt em seu livro “Social Theory of International Politics”, no qual ele identifica o “empiricismo” com uma doutrina filosófica de “realismo científico”, baseado em um pressuposto ontológico de independência ente o mundo factual e os seres humanos. Dessa visão derivariam critérios de objetividade, criticadas por cientistas, como Wendt, que se dedicam ao estudo de entidades “não-observáveis” como idéias e, no caso desse artigo, identidades, que apesar da inexistência concreta não são menos ontologicamente presentes e importantes para a compreensão das Relações Internacionais. 7 Também estou aqui me baseando nas discussões presentes em: Wendt, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge: University Press, 1999, pp. 32, 38, 47. É importante assinalar, no entanto, que apesar de não ser considerado por Wendt, as perspectivas feministas em Relações Internacionais são variadas em diversos aspectos, incluindo em visões epistemológicas, que variam de concepções próximas ao positivismo até discussões pósmodernistas. Para discussão sobre essas diferentes abordagens, ver WIBBEN, Annick. “Feminist International Relations: Old and New Debates”. Brown Journal of World Affairs, Inverno-Primavera 2004, Vol. X, Nº 2. 8 SMITH, Steve. “Positivism and Beyond” in: SMITH, BOOTH e ZALEWSKI. International theory: Positivism and Beyond. Cambridge: The Cambridge University Press, 1996, p. 9 KALDOR, Mary. Op. Cit., p. 120. 10 FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Trad. Izabel Magalhães, p.61. 11 FAIRCLOUGH, Norman. Critical Discourse Analysis – The Critical Study of Language. Language in Social Life Series. London and New York: Longman, 1995, p.1. 12 FAIRCLOUGH, Norman. Op. Cit.10, p.87. 13 Ibidem, p. 94. 14 FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Trad. Izabel Magalhães, p. 69. 15 Ibidem, p. 69. 16 Ibidem, p.117. 17 Tradução livre do título original: Gender Resource Package for Peacekeeping Operations. 18 Nós dirigimos nossas conclusões àqueles que têm poder e recursos para fazer uma diferença. Indiferença não é uma opção. Ao representar as experiências de guerra das mulheres, nós prestamos atenção nas causas e conseqüências. REHN, Elisabeth; SIRLEAF, Ellen Johnson. Women, War, Peace: The Independent Expert’s Assesment on the Impact of armed conflict on women and women’s role in Peace-Building. United Nations Development Fund for Women, 2002, p. xiii. 19 BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 1999, p. 45. 20 Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2001. 21 BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. 19, p. 45. 22 Ibidem, p.55. 23 BOURDIEU, Pierre. “Novas reflexões sobre a dominação masculina”. In: Lopes, M. J. (org.), Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 31. 24 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2005, pp. 8-9. 25 Human Security Center, Op. Cit., p. 112. 26 REHN, Elisabeth; SIRLEAF, Ellen Johnson. Op.Cit., p. 25. 27 Ibidem, p. 25. 28 Ibidem, p. 26. 29 Ibidem, p. 40-41. 30 Ibidem, p.41. 31 Ibidem, p. 42. 32 Human Security Centre, Op. Cit., p. 101. XAVIER, Izadora. Mulheres em conflito: uma análise das práticas discursivas sobre identidades femininas em situações de conflito Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 51-73, Dez. 2008 / Jun. 2009. 72 33 BOURDIEU, P. Op. Cit. 19, p. 53. 34 UNAMSIL é o acrônimo para United Nations Mission in Sierra Leone, ou seja, é a força de paz que foi estabelecida no território de Serra Leoa entre 1998 e 2003. 35 REHN, Elisabeth; SIRLEAF, Ellen Johnson. Op.Cit., p. 72. 36 Ibidem, p. 12. 37 Ibidem, p. 12-13. 38 Ibidem, p. 119. 39 Ibidem, p. 131. 40 BOURDIEU P., Op. Cit., p.62. 41 REHN, Elisabeth; SIRLEAF, Ellen Johnson. Op.Cit., p. 79. 42 Ibidem, p. 80. 43 Ibidem, p.81. 44 Gender Resource Package for Peacekeeping Operations, p. 8; 45 Abreviações de United Nations Military Officers e Military Liasion Officers. Ambos são postos de missões de paz das Nações Unidas. 46 Gender Resource Package for Peacekeeping Operations, p. 124. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Trad. M.H. Kuhner. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 1999. BOURDIEU, Pierre. “Novas reflexões sobre a dominação masculina”. In: Lopes, M. J. (org.), Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2001. ENLOE, C. Bananas, Beaches, and Bases: Making Feminist Sense of International Relations. Berkeley, CA: University of California Press, 1989. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Trad. Izabel Magalhães. FAIRCLOUGH, Norman. Critical Discourse Analysis – The Critical Study of Language. Language in Social Life Series. London and New York: Longman, 1995. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2005. GOLDSTEIN, Joshua S. War and Gender: How Gender Shapes the War System and ViceVersa. Cambridge: University Press, 2001. KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Cambridge: Polity Press, 1999 REHN, Elisabeth; SIRLEAF, Ellen Johnson. Women, War, Peace: The Independent Experts’ Assesment on the Impact of armed conflict on women and women’s role in Peace-Building. United Nations Development Fund for Women, 2002. SMITH, Steve. “Positivism and Beyond” in: SMITH, BOOTH e ZALEWSKI. International theory: Positivism and Beyond. Cambridge: The Cambridge University Press, 1996. TICKNER. J. Ann. Gender in International Relations: Feminists Perspectives in Achieving Global Security. New York: Columbia University, 1992. WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge: University Press, 1999. UNITED NATIONS. Gender Resource Package for Peacekeeping Operations. Peacekeeping Best Practices Unit, Department of Peacekeeping Operations, 2004. Human Security Centre. Human Security Report 2005 – War and Peace in the 21st Century. New York, Oxford: Oxford University Press, 2005. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. A “PERSPECTIVA DE GÊNERO” NA POLÍTICA IMIGRATÓRIA DA UNIÃO EUROPÉIA: EXPECTATIVAS E DIFICULDADES Flavia Guerra∗ Érica Simone Almeida Resende** Resumo: Abstract: O artigo visa a discutir as atuais políticas para a mulher da União Européia, baseadas no conceito de gender mainstreaming (perspectiva de gênero ou transversalidade). De acordo com esta abordagem, a política de gênero deve perpassar todas as outras políticas públicas da União e não ficar confinada a um departamento específico. Trata-se, portanto, de retirá-la de uma posição marginal e torná-la visível em toda a estrutura do bloco. Desse ponto de vista, o o gender mainstreaming representa um avanço em relação às anteriores políticas da UE para a mulher: a do feminismo liberal e a da ação positiva. Além disso, ele poderia ter um caráter inovador, ao introduzir elementos não patriarcais no desenho das outras políticas públicas. Para avaliarmos a eficácia dessa nova concepção, optamos por um estudo de caso da política imigratória da União Européia. Estariam as mulheres imigrantes se beneficiando da influência da perspectiva de gênero sobre as políticas imigratórias? Constatamos que o caráter liberal, repressivo e conservador da política de integração cívica a torna resistente e incompatível com uma concepção de perspectiva de gênero, sobretudo quando esta propõe uma modificação das estruturas patriarcais. The article aims to argue the current politics for the woman of the European Union, based in the concept of gender mainstreaming. According to this approach, the gender politics must surpass all the others public politics of the Union and not to be confined to a specific department. It is about, therefore, to remove it from a secondary position and to become it visible in all the group structure. By this point of view, the gender mainstreaming represents an advance in relation to the previous politics of the EU to the woman: from the liberal feminism and from the positive action. Moreover, it could have an innovative character, when introducing not patriarchal elements in the drawing of the others public politics. To evaluate the effectiveness of this new conception, we opt to a case study of the immigration politics of the European Union. Would the immigrant women be benefiting themselves from the influence of the gender perspective on the immigration politics? We evidenced that the liberal, repressive and conservative character of the politics of civic integration becomes it resistant and incompatible with a conception of gender perspective, especially when this conception considers a modification in the patriarchal structures. Palavras-chave: Key-words: Feminismo, União Européia, política imigratória, liberal, perspectiva de gênero e ação positiva Feminism, European Union, immigration politics, liberal, perspective of gender and positive action. ∗ Mestre em ciência política pela UFRJ. ** doutoranda em ciência política universidade de São Paulo (USP). Mestre em ciência política (2005) universidade de São Paulo (USP) São Paulo, brasil. especialização em política internacional (2003) Fundação Getúlio Vargas (FGV) rio de janeiro, brasil. complementação de estudos em relações internacionais (2001) Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-rio) Rio de Janeiro, Brasil. bacharel em estudos franceses (1996) Université de Savoie Chambéry, França. Bacharel em Direito (1994) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Rio de Janeiro, Brasil. GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 74 Introdução A União Europeia proclamou “2007” como o Ano europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos. As ações se baseiam nos artigos 2° e 3° do Tratado de Roma, que já tratava da igualdade entre os cidadãos e, particularmente, da igualdade entre homens e mulheres. O Ano europeu da Igualdade, portanto, parece ser um coroamento de uma série de medidas a favor da igualdade que vem sendo adotadas desde os primórdios da União Européia. No entanto, um estudo divulgado no dia 18 de julho de 2007 pela Comissão Européia (CE), o órgão executivo da União Européia, revela que as mulheres do bloco recebem salários até 15% mais baixos do que os homens, embora tenham mais anos de estudos. Mais do que mostrar que a Europa ainda está longe de ser um modelo de eqüidade entre homens e mulheres, o informe da Comissão nos leva a questionar o teor das políticas para a mulher adotadas desde a fundação do bloco. A UE conta com órgãos acostumados a tratarem de temática relativas aos direitos da mulher. Por outro lado, algumas políticas, como as de ação positiva e perspectiva de gênero (ou gender mainstreaming) encontram obstáculos para serem plenamente aceitas. A finalidade deste artigo é investigar se a nova abordagem gender mainstreaming teria mais chances do que sua antecessora (política de ação afirmativa) para superar determinados pressupostos do feminismo liberal e as resistências de outras políticas comunitárias em relação à questão da mulher. Para isso, optamos por analisar a compatibilidade ou incompatibilidade entre o conceito de “perspectiva de gênero” e as bases ideológicas da política imigratória da União Européia 2. As políticas feministas na União Européia 2.1 A visão liberal predominante No entanto, as medidas adotadas nas primeiras décadas do processo de integração se limitaram ao mercado de trabalho, seguindo a cartilha do feminismo liberal. Segundo a pauta de reivindicações dessa corrente feminista representada por GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 75 Betty Friedman, entre outras, as mulheres devem lutar por tratamento igual no trabalho, paridade de salários para tarefas iguais e legalização do aborto. Parte-se do pressuposto de que as mulheres são essencialmente iguais aos homens e, portanto, aptas a alcançar os mesmos postos que estes na estrutura do mercado de trabalho. O feminismo liberal representado no século XX por Friedman é tributário do pensamento de Mary Wollstonecraft, que no século XVIII reivindicava o Direito da Mulher com base na mesma Razão iluminista que inspirou a Declaração Universal dos Direitos do Homem. A mulher ocuparia uma posição inferior na sociedade não por possuir uma qualidade intrínseca qualquer, mas por receber uma educação diferente da dos homens, uma educação que as deixava mais preocupadas com uma elegância fútil do que com o desenvolvimento de uma personalidade forte. Podemos, então, inferir que, no pensamento de Wollstonecraft, o desenvolvimento da capacidade racional da mulher dependeria de uma mudança na orientação de sua educação. A principal crítica de outras correntes feministas a essa abordagem refere-se ao fato de que ela, influenciada pela doutrina liberal que considera apenas o indivíduo como sujeito de direito, tenta “adaptar” a mulher a uma estrutura historicamente criada por uma sociedade dominada pelos homens. Neste sentido, a adequação da mulher, pensada como indivíduo, à estrutura não modificaria as bases da dominação. A segunda crítica geralmente dirigida ao feminismo liberal diz respeito ao próprio conceito de mulher. Esta seria vista como portadora de uma essência inata igual à do homem, essência essa constituída pela razão. Um outro tipo de crítica vem de fora do movimento. Ao se referir ao feminismo, Terry Eagleton lembra que sua popularidade se deve ao fato de não representar uma ameaça ao sistema capitalista: O feminismo e a etnicidade hoje gozam de popularidade por se fazerem lembrar como algumas das lutas políticas mais vitais que confrontamos na realidade. Essa popularidade também se deve ao fato de não se mostrarem necessariamente anticapitalistas, desse modo combinando com uma época pós-radical (Eagleton, 1998, p.33). Mas a interpretação de Eagleton é, no mínimo, exagerada, pois estende para todo o movimento feminista um traço que ele detecta no feminismo cultural e que, a nosso ver, é na verdade uma característica do feminismo liberal, facilmente aceito e compreendido pelo senso comum. Acreditamos que a natureza não contestatória do GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 76 feminismo liberal talvez explique o fato de ele ter permanecido como a linha predominante nos documentos oficiais da União Européia desde sua criação. Outra característica deste tipo de feminismo é a prioridade dada à legislação, como se as leis tivessem o poder, por si sós, de mudarem a realidade. O feminismo liberal segue a tradição liberal de igualdade formal, garantindo direitos iguais a todos os indivíduos. Ao estabelecer a “igualdade entre homens e mulheres”, o Artigo 2° do Tratado da Comunidade está se referindo àquela igualdade formal. As demais referências nos principais documentos da UE seguem a mesma linha. Assim, temos no artigo 3° a determinação de “eliminar desigualdades, e promover a igualdade entre homem e mulher” e no artigo 13°, a proposta de combater a discriminação baseada em sexo. No artigo 119°, encontramos a preocupação típica do feminismo liberal com a entrada da mulher no mercado de trabalho e o recebimento de uma remuneração equivalente à dos homens. De acordo com o artigo em tela, cada Estado-membro deve assegurar o “princípio de pagamento equivalente para trabalhadores homens e mulheres que desempenham o mesmo trabalho ou trabalho de valor equivalente”. Todos esses artigos foram absorvidos pela Constituição Européia1: a “igualdade entre homens e mulheres” passou a figurar no Artigo 1° e o “pagamento igual para trabalhadoras e trabalhadores que desempenham o mesmo trabalho ou um trabalho de valor igual”, no Artigo III-214. Em suma, apesar de vários desses artigos terem sido revisados ou substituídos posteriormente, como veremos em outra seção, o compromisso com o “tratamento igual” da visão feminista liberal foi mantido e passou a coexistir com outras abordagens. 2.2. Mudança de rumos A predominância dessa visão sobre a problemática da mulher na União Européia só seria atenuada, segundo Pollack e Hafner-Burton, no início dos anos 80, com a introdução paulatina de uma agenda mais ampla, que ia além do “tratamento igual” e “salário igual” presente no Tratado de Roma e abarcava a ação positiva. O órgão responsável por esta mudança foi a “Unidade de Oportunidades Iguais” da Comissão Européia, que passou a promover uma série de ações específicas a favor da mulher, atenuando desta forma a orientação exclusivamente liberal que havia prevalecido até então. GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 77 A ação positiva também pode assumir a forma de discriminação positiva, quando se tenta aumentar de forma mais radical a participação da mulher com ações afirmativas ou cotas. Recentemente, a Corte Européia se pronunciou a favor da discriminação positiva no caso Kalanke & Marschall e reafirmou o direito dos Estadosmembros de adotarem este tipo de medida De acordo com Delgado, Capellin e Soares, “são denominadas ações afirmativas essas políticas que têm como meta corrigir antigas e novas discriminações” (2000, p. 11). Ao contrário da liberal, a legislação da ação afirmativa está vinculada a uma política abertamente intervencionista. A ação positiva opõe-se à visão do feminismo liberal porque parte do pressuposto de que a igualdade formal não é suficiente, pois “perpetua, recobre e, em última análise, legitima a desigualdade substantiva” (Miguel, 2000, p.2). Desta forma, a ação positiva intervém para equilibrar a desvantagem inicial da mulher, promovendo uma igualdade de oportunidade que poderá aumentar a probabilidade de uma igualdade de resultados. Diferentemente de Pollack e Hafner-Burton, Martine Voets entende que a ação positiva esteve presente desde o início do processo de integração. Em “A estratégia européia para a ação afirmativa”, Voets mostra como os processos de integração supranacional sempre foram propulsores da adoção de medidas de ação afirmativa nos diversos países europeus: A história das ações afirmativas na Europa encontra-se pautada pela história dos acordos de integração que, no caso específico das diretrizes para a consecução da igualdade de oportunidades de gênero nos mercados de trabalho, começa em 1957 com o próprio Tratado de Roma (2000, p.22). No entanto, essas políticas de ação afirmativa apontadas por Voets se restringiam a questões econômicas e voltadas para o mercado de trabalho, nisso se aproximando das concepções do feminismo liberal. Uma hipótese que explicaria essa insuspeita afinidade, e à qual voltaremos mais à frente, é a tendência do liberalismo à flexibilidade e à absorção de teorias num primeiro momento incompatíveis com ele. A própria Voets admite que é apenas nos anos 80 que as ações positivas adquirem maior autonomia em relação ao arcabouço jurídico. A União Européia chegou à conclusão de que a legislação era necessária, porém não suficiente, e, por isso, a ação positiva precisava de uma estratégia que fosse além da igualdade formal valorizada pelo GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 78 feminismo liberal. Assim, a Comissão Européia adotou os Programas de Ação, que têm o objetivo de promover valores e práticas favoráveis à igualdade de gênero, avaliar a eficácia das políticas e desenvolver a percepção dos atores para promover a igualdade de gênero. Em outras palavras, trata-se de criar uma nova cultura que possa garantir a aplicação e a eficácia da legislação. A ação positiva também se afasta, em princípio, do liberalismo por sua visão sobre a mulher. Enquanto o feminismo liberal entendia a mulher como portadora de uma essência igual à do homem, a ação positiva pode se aproximar da imagem fornecida pelas feministas culturais de que a mulher é essencialmente diferente do homem. Por estarem acostumadas a cuidar dos outros, as mulheres poderiam levar para a política o que Carol Gilligan chamou de uma “ética do cuidado”, que se preocupa mais com disposições morais do que com princípios morais. Na “ética do cuidado”, modo de raciocínio tipicamente feminino, haveria uma propensão a buscar respostas para um caso particular e não princípios de aplicabilidade universal. Por fim, explica Gilligan, as mulheres estão mais atentas para as responsabilidades e as relações para com o outro concreto do que para os direitos e a eqüidade do outro pensado como abstração. Mas a principal característica da ação positiva, intervencionista e antiliberal, é o fato de inserir a mulher num grupo historicamente desprivilegiado. As políticas de ação afirmativa ou cotas estão associadas a direitos coletivos e não aos direitos individuais da mulher. Ora, no caso de uma política de ação afirmativa baseada na “ética do cuidado”, teríamos aí um desvio em relação à concepção tradicional de ação afirmativa. A “ética do cuidado” não se preocupa nem com o indivíduo abstrato do liberalismo nem com o grupo, mas com o indivíduo concreto. Apesar dessas diferenças, há um ponto de contato entre a igualdade formal do feminismo liberal e a ação afirmativa baseada na ética do cuidado do feminismo cultural. Ambas promovem uma acomodação da mulher à estrutura social patriarcal e ao sistema político vigente. A primeira visa tornar a mulher equivalente ao homem dentro do sistema patriarcal. A outra exige cotas para introduzir uma ética do cuidado no mesmo sistema. GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 79 2.3 A nova abordagem da transversalidade nos anos 90 A política para a mulher da União Européia ganha nova inflexão com a adoção oficial, em 1996, da abordagem gender mainstreaming ou transversalidade pela “Unidade de Oportunidades Iguais” da Comissão Européia. O conceito significa retirar a questão da mulher de uma política comunitária específica e incluí-la em todas as políticas públicas européias ainda na fase de planejamento. Dito de outra forma, a problemática das relações de gênero deverá ser um princípio transversal, penetrando na formulação e na implementação de todas as políticas do bloco. Neste sentido, a nova abordagem apresenta, segundo Pollack e Hafner-Burton, um potencial revolucionário. Apresentada desta forma, pode-se ter a impressão de que a transversalidade é apenas uma inovação em termos de gestão, uma novidade na forma e não no conteúdo. A nosso ver, esta é uma visão demasiado simplista do caráter revolucionário da perspectiva de gênero. Ao interferir em todas as políticas da comunidade, inclusive em sua fase de elaboração, a nova abordagem tem potencial para acolher a proposta das correntes feministas que reivindicam uma mudança nas estruturas de dominação da sociedade patriarcal. Antes de adotarem oficialmente a transversalidade, também chamada de perspectiva de gênero, as autoridades do bloco já estavam familiarizadas com o conceito desde o início dos anos 90. O termo foi criado na Terceira Conferência sobre a mulher em Nairóbi, no Kenya, em 1985, e desde então foi adotado pelas Nações Unidas e em países do norte da Europa como Holanda, Suécia e Noruega. Na União Européia, o conceito apareceu pela primeira vez num documento oficial em 1991, no Terceiro Programa de Ação sobre Oportunidades Iguais (1991-1996), mas não chegou a ser implantado nas políticas comunitárias. A incorporação da transversalidade pela União Européia foi favorecida por uma série de fatores. Em primeiro lugar, a UE já contava com uma estrutura propensa a adotar a perspectiva de gênero. Possuía legisladores no Parlamento Europeu e representantes dos Estados-membros no Conselho de Ministros sensíveis à questão feminina. Além disso, a Unidade de Oportunidades Iguais da Comissão2, a Corte Européia de Justiça e o Comitê de Direitos da Mulher do Parlamento, já envolvidos com as ações positivas, foram receptivos à idéia. GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 80 Essa estrutura de oportunidade política tornou-se ainda mais favorável a partir da adoção do Tratado de Maastricht em 1993. O Tratado expandiu os poderes do Parlamento Europeu, um antigo defensor da questão feminina. Além de ganhar o poder de co-decisão sobre algumas áreas de legislação, o Parlamento recebeu competência para nomear a Comissão Santer em 1995 e impor condições favoráveis à mulher. O Parlamento determinou, por exemplo, que aquela comissão assumisse um compromisso explícito com as questões femininas. Em 1995, a Conferência Mundial sobre a Mulher aprovou em sua declaração final o conceito de transversalidade. A idéia é “garantir que uma perspectiva de gênero esteja presente em todas as nossas políticas e programas” (Artigo 38, Declaração de Pequim). No mesmo ano, entraram no bloco três países – Suécia, Finlândia e Áustria – com ampla experiência em políticas de igualdade entre homens e mulheres, o que pode ter sido mais um incentivo para a adoção da nova perspectiva. Desta forma, em 1995, estavam dadas as condições para que a União Européia introduzisse a perspectiva de gênero em todas as suas políticas. No final deste mesmo ano, o Conselho de Ministros aprovou o “Quarto Programa de Ação (19962000) sobre Oportunidades Iguais para Mulheres e Homens”. O documento determinava que a UE deveria priorizar a abordagem gender mainstreaming, além de dar continuidade às ações positivas já em curso. No ano seguinte, 1996, a Comissão declarou oficialmente seu compromisso com a perspectiva de gênero num novo comunicado intitulado “Incorporando Iguais Oportunidades para Mulheres e Homens em todas as Políticas e Atividades da Comunidade”. Em 1997, o Tratado de Amsterdã, considerado um tratado de aprofundamento do processo de integração, adota uma série de medidas que estimulam a preocupação com as questões femininas e reforçam a transversalidade. O artigo 119° do Tratado, que em seu único parágrafo tratava do pagamento igual para homens e mulheres, é substituído pelo 141°, com vários parágrafos. À questão do pagamento igual são acrescentadas novas exigências, como o voto por maioria qualificada no Conselho de Ministros e a co-decisão desta instituição com o Parlamento Europeu em legislação sobre oportunidades iguais entre homens e mulheres. O novo artigo contém ainda uma cláusula segundo a qual os Estados-membros podem manter políticas de discriminação positiva. O Tratado de Amsterdã, portanto, tem uma orientação pró-mulher. GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 81 A reafirmação da transversalidade, no entanto, aparece mais claramente na revisão dos artigos 2° e 3° do Tratado de Roma, que timidamente se referiam à pauta de reivindicações do feminismo liberal - tratamento igual e pagamento igual. O Tratado de Amsterdã defende que políticas de promoção de oportunidades iguais entre homens e mulheres – e não meramente tratamento igual e salário igual – sejam incorporadas em todas as políticas da União. “Na realização de todas as acções previstas no presente artigo, a Comunidade terá por objetivo eliminar as desigualdades e promover a igualdade entre homens e mulheres” (acréscimo ao artigo 3°). É importante salientar que as instituições da União Européia envolvidas com a política de gênero não eram estruturas tradicionais, estáticas e fechadas, mas estruturas de mobilização, isto é, canais através dos quais as pessoas podem se expressar e se engajar numa ação coletiva. Tanto a Unidade de Oportunidades Iguais quanto o Comitê de Direitos da Mulher do Parlamento, para citar dois exemplos, atuam como pontos de convergência de redes transnacionais de especialistas e ativistas da questão de gênero. Por fim, gostaríamos de destacar que o sucesso ou fracasso da nova abordagem na União Européia depende muitas vezes do grau em que a perspectiva de gênero se adequa ou não às políticas comunitárias já existentes. Quanto mais se adequar à estrutura dominante, ou seja, quanto menos revolucionária for, maior a probabilidade de a transversalidade ser aceita pelas instituições. Em outras palavras, ela só será bemsucedida se abdicar de seu potencial revolucionário. No caso da União Européia, vimos como as tentativas de ação positiva foram frustradas nas primeiras décadas do processo de integração devido à predominância do feminismo liberal. A primeira pergunta que fazemos neste artigo é se a transversalidade, ou seja, a inclusão da perspectiva de gênero em todas as políticas da UE, poderá realizar a promessa que a ação positiva não conseguiu. Em outros termos, se a perspectiva de gênero será suficientemente revolucionária para mudar as estruturas da sociedade patriarcal, acabando com o predomínio das concepções do feminismo liberal nas políticas para a mulher da UE. 3. Transversalidade e Política Imigratória na União Européia Em seu artigo sobre o conceito de gender mainstreaming na União Européia, Pollack e Hafner-Burton analisaram sua implementação em cinco tipos de GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 82 políticas públicas da União: Fundos Estruturais, Política de Emprego, Desenvolvimento, Política de Competição e Políticas de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento. Os autores concluíram que a Política de Competição foi a mais resistente à abordagem da perspectiva de gênero devido ao seu caráter marcadamente neoliberal. O departamento de políticas de competição da União Européia toma suas decisões sobre ajuda estatal, cartéis e monopólios, fusões e aquisições de acordo com critérios estritamente legais e econômicos. Daí a resistência a considerar o critério da perspectiva de gênero em suas decisões. A segunda proposta deste artigo é analisar a relação entre a perspetiva de gênero e um tipo de poítica comunitária não analisado por Pollack e Hafner-Burton, a política imigratória. Mais especificamente, interessa-nos saber se o aspecto revolucionário da perspectiva de gênero vem sendo capaz de mudar a estrutura liberal das atuais políticas imigratórias da União Européia e, assim, beneficiar as mulheres estrangeiras. De acordo com Christian Joppke, existe atualmente uma convergência na política imigratória da União Européia, baseada na resolução do Conselho Europeu de novembro de 2004 sobre “princípios básicos comuns”. Entre as políticas de convergência examinadas por Joppke, a principal é a da integração cívica, introduzida pela Holanda em 1998 e posteriormente incorporada por Finlândia, Dinamarca, Áustria, Alemanha e França. As políticas imigratórias da Holanda foram tomadas como modelo para vários países europeus tanto nos anos 80, com o multiculturalismo, quanto no final dos anos 90, com a integração cívica. Por isso, optamos por analisar num primeiro momento os dois tipos de políticas imigratórias deste país e suas conseqüências para a questão feminina. No início dos anos 80, a Holanda implementou uma política multicultural que proclamava a emancipação do imigrante através de instituições sustentadas pelo Estado nacional holandês, entre elas escolas étnicas, hospitais étnicos e mídia étnica. Ou seja, o multiculturalismo holandês entendia o imigrante como portador de uma identidade já constituída e que deveria ser mantida pelo Estado que recebia o imigrante. A limitação desse modelo vem sendo apontada por vários autores. Amartya Sen, por exemplo, destacou sua falta de liberdade intrínseca. Ao imigrante é negada a possibilidade de optar racionalmente entre distintas culturas; ele é confinado à sua GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 83 comunidade de origem. Na visão de Alain Tourraine, este multiculturalismo fechado apontado por Sen mereceria o nome de multicomunitarismo, uma vez que o indivíduo pertence à comunidade desde sempre e sua identidade não pode ser negociada. O modelo multicultural holandês apresentava um caráter ambíguo porque, se por um lado era intervencionista, obrigando os imigrantes a permanecerem no círculo de sua comunidade de origem, por outro, exaltava a autonomia da comunidade e da família imigrante dentro da sociedade. Apenas este último aspecto aproxima o multiculturalismo holandês do liberalismo clássico. Kymlicka lembra que, ao contrário do que se pensa, o liberalismo clássico não defende a liberdade do indivíduo em relação a todo tipo de associação, mas proteger a esfera privada e as associações dessa esfera de uma interferência política, representada na maior parte das vezes pela intromissão estatal. “O ideal liberal de vida privada não era proteger o indivíduo da sociedade, mas libertar a sociedade da interferência política” (Kymlicka, 2006, p.332). Para os liberais clássicos, o indivíduo não precisava ser protegido da sociedade – ou de grupos existentes dentre dela, como a comunidade e a família –, mas sim da política. Existe, portanto, uma afinidade entre o multiculturalismo holandês e o liberalismo clássico, uma vez que ambos se abstêm de intervir na comunidade e na família. Durante a vigência dessa abordagem, a mulher imigrante encontrava-se no pior dos mundos. A comunidade e a família eram livres para atuar na sociedade liberal e multicultural, mas a mulher deveria seguir a cultura da comunidade e a hierarquia familiar. Diante deste quadro, podemos concluir que qualquer política favorável à mulher encontraria dificuldades para se impor. As propostas de tratamento igual do feminismo liberal partiam do pressuposto de que a mulher é um ser isolado dentro da sociedade e elas estavam submetidas a grupos. Já as políticas de ação positiva estavam voltadas para um grupo, só que um grupo que fazia referência a uma identidade feminina. Presas a uma identidade étnica (da comunidade) ou familiar, as mulheres não podiam ser alcançadas por estas ações que levavam em conta uma identidade única, a de gênero. GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 84 Políticas desses matizes, liberais ou de ação positiva, muito provavelmente não produziram resultados para a mulher imigrante porque esbarraram nos interesses da comunidade ou da família. No fim dos anos 90, a Holanda adota uma outra política de inclusão de imigrantes, a chamada integração cívica, que se transforma a partir de então em um modelo para vários países da União Européia. Ao contrário do multiculturalismo, que permitia que os imigrantes permanecessem numa “concha étnica”, na integração cívica eles devem ganhar autonomia através da aquisição da língua da sociedade receptora e da integração ao mercado de trabalho. Em suma, devem romper os laços que o ligam à comunidade e incorporar-se à sociedade que os acolhe. Subjacente à proposta de integração cívica, está presente um liberalismo que visa a proteger o indivíduo de qualquer grupo que porventura o sufoque. Esta concepção de liberalismo, geralmente considerada como a original, é perpassada pela tradição romântica e é a única que poderia realizar a tarefa que Bauman atribuiu ao nacionalismo e ao liberalismo: a aniquilação da comunidade. No processo de construção da nação, tanto o nacionalismo quanto o liberalismo tinham o mesmo alvo. “As comunidades étnicas e locais, forças conservadoras que impediam a auto-afirmação e a autodeterminação individual, eram os principais suspeitos e se tornavam os alvos na linha de tiro”. (Bauman, 2003, p.85). Esta mudança na política de inclusão do imigrante poderia nos levar à conclusão de que a integração cívica permitiria maior liberdade da mulher em relação à comunidade. Teria ela mais liberdade de escolher entre diversas alternativas, uma vez liberta da obrigação com a comunidade de origem? Antes de responder a esta pergunta, precisamos nos voltar para o caráter repressivo da integração cívica, apontado por Joppke. Em sua versão original, o modelo não previa sanções, mas acabou ganhando contornos mais rígidos depois dos assassinatos do político Pim Fortuyn em 2002 e do diretor de cinema Theo Van Gogh em 2004. Até então voluntária, a integração cívica ganhou uma dimensão coercitiva. Assim como o multiculturalismo oscilava entre liberalismo e intervencionismo, a integração cívica terá também um movimento duplo. Por um lado, o Estado afirmará que o imigrante deve ser autônomo e auto-suficiente, independente do welfare state. Por outro lado, o Estado intervirá de forma coercitiva, ao condicionar a concessão de visto de residência permanente à aprovação no teste de línguas. Essa GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 85 exigência chegou a ser estendida aos candidatos à imigração ainda em seus países de origem, numa espécie de imigração controlada no exterior. Na França, o então ministro do Interior Nicolas Sarkozy chegou a declarar em 2004 que “trata-se de obrigar aquele que faz vir uma pessoa do exterior, e que geralmente é sua mulher, a permitir que ela aprenda o francês e se integre à nossa sociedade” (apud Lochak, 2004, p.1). Sarkozy invoca indiretamente o patriarcado como uma tradição capaz de obrigar a mulher a romper os laços com a comunidade étnica e se integrar à sociedade francesa. Se no multiculturalismo, a mulher estava submetida a uma dupla tirania, a da comunidade e a da família, agora, na integração cívica ela tem a possibilidade de se libertar dos grilhões da comunidade, mas isto se dá às custas de um reforço dos grilhões da família. A esta situação Joppke e outros chamam de liberalismo repressivo3. Mesmo o liberalismo influenciado pelo romantismo, que pregava a proteção da liberdade individual em relação a qualquer grupo, sempre se absteve de interferir na esfera privada da família. A integração cívica reproduziu as características deste tipo de liberalismo. Foi eficaz para quebrar os laços comunitários, mas recuou diante da estrutura patriarcal da família e até se aproveitou dela para atingir seus objetivos. Voltamos então à nossa pergunta inicial. A abordagem da perspectiva de gênero (ou gender mainstreaming), introduzida em 1996, foi capaz de revolucionar a política de integração cívica adotada no final dos anos 90 na União Européia? De imediato, detectamos uma contradição entre as duas políticas, a imigratória e a de gênero. Enquanto a integração cívica se aproveita do patriarcado para trazer a mulher para a sociedade, numa espécie de liberalismo repressor, como discutido por Joppke, a política de perspectiva de gênero, quando revolucionária, confronta a estrutura patriarcal da sociedade. Suspeitamos que, se a perspectiva de gênero tivesse mantido sua proposta revolucionária de modificar estruturas patriarcais, a política imigratória de integração cívica jamais teria considerado em sua elaboração a estratégia de usar o patriarcado para liberar a mulher da comunidade de origem e aproximá-la da sociedade receptora. 4. Considerações sobre o liberalismo Numa tentativa de definir o liberalismo, Carlos Estevam Martins constata que a doutrina engole, como uma imensa “boca de jacaré”, “as virtudes típicas dos demais membros de sua própria família, deixando-os desfalcados de seus títulos de GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 86 identidade” (2003, p.629). O liberalismo tornou-se, diz o autor, um ecletismo, uma doutrina flexível que absorveu inclusive as contribuições positivas da esquerda. Essa falta de uma identidade clara seria uma estratégia para manter a hegemonia, uma vez que uma doutrina pura é muito mais facilmente alvo das críticas dos adversários do que uma doutrina híbrida. Hegemônico, ubíquo, o liberalismo invade outros campos e se apropria de teses opostas, desfigurando-as e trazendo-as para a sua seara. Um exemplo disto seriam os liberais de esquerda que acreditam na liberdade política, mas admitem intervenções econômicas. O resultado é uma mescla teórica de liberalismo, assistencialismo, protecionismo e corporativismo. Outros, como Bobbio, chegaram a se referir a um liberal-socialismo em que haveria compatibilidade entre liberdade e igualdade. No entanto, o teória político italiano voltou atrás e afirmou, em Liberalismo e Democracia, que igualdade e liberdade permanecem em campos opostos: Mesmo diante do contraste entre duas ideologias nascidas em contraposição uma à outra e, nas suas linhas programáticas, antitéticas, como liberalismo e socialismo, existiram tentativas de mediação ou de síntese. (...) A antítese, porém, permaneceu e se foi reforçando e enrijecendo nos dois últimos decênios (1988, p.86). A antítese se cristalizou na prática, mas as tentativas de conciliar as teorias continuaram aumentando nos últimos anos. Até marxistas como Perry Anderson, destaca Martins, fizeram um movimento em direção ao liberalismo. Para Anderson, um marxista contemporâneo não poderia deixar de reconhecer as conquistas liberais. A proposta de Martins de delimitar o conceito de liberalismo também pode ser encontrada em Carl Schmitt, para quem era preciso separar parlamentarismo/liberalismo e democracia. “Em épocas pré-incorporação, os valores democráticos puderam estabelecer uma coalizão com os expedientes liberais e parlamentares. É essa a combinação condenada por Schmitt” (LESSA, 2003, p.59). Essa separação e delimitação dos termos é fundamental para definir com clareza o alvo a atacar ou, para empregar os termos de Schmitt, se se quer “levar os inimigos a sério” (ibid, p.31). Outro movimento alvo das críticas de Schmitt é o romantismo, que teria invadido todos os campos, inclusive o político. Essa hegemonia romântica também ocorreu através de uma estratégia de escamoteação de seus fundamentos: GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 87 O problema é, na verdade, obter clareza, mesmo se for apenas uma clareza a respeito dos motivos pelos quais um movimento parece ser tão obscuro e porque tenta estabelecer um princípio de opacidade. É inerente ao romantismo que ele talvez pretenda ser incompreensível e estar fora do alcance das palavras humanas (Schmitt apud Lessa, 2003, p.32). Na interpretação schmittiana, a política parlamentar e liberal teria sido contaminada pelo ideário romântico no qual o conflito é estetizado, tornando-se uma conversa interminável entre os atores que vêem, nesse processo, uma oportunidade para obterem prazer e se aperfeiçoarem. Martins chama ainda a atenção para uma outra estratégia dos liberais para manter sua hegemonia. Além de incorporarem doutrinas antagônicas, os liberais tentam abater os adversários acusando-os de autoritarismo. A advocacia liberal opera a partir do princípio, jamais demonstrado, de que todos aqueles que combatem o liberalismo o fazem porque são, de um modo ou de outro, adeptos do autoritarismo. Quem é antiliberal ou meramente nãoliberal é automaticamente reduzido à mísera condição de autocrata convicto ou de inocente útil a serviço de causas autocráticas (Martins, 2003, p.627). Após esta digressão, podemos constatar que há uma tendência para a apropriação ou contaminação entre os conceitos. O romantismo se inseriu, segundo Schmitt, em todas as esferas, entre elas a liberal. Por sua vez, o liberalismo, como mostrou Martins, também incorporou doutrinas opostas. O sincretismo do liberalismo com outras doutrinas rende uma longa lista: constitucionalismo, nacionalismo, republicanismo, humanismo e romantismo. Vimos na seção anterior que essa última combinação, entre liberalismo e romantismo, estava por trás da política de integração cívica da União Européia. Contudo, o componente romântico não pôde ser plenamente realizado porque libertou a mulher da comunidade, mas não da família. A mistura presente na integração cívica, entre liberalismo e romantismo, conta ainda com um outro elemento: o autoritarismo. Joppke já havia salientado esse caráter repressivo do liberalismo das políticas de imigração. A política de integração cívica da União Européia mostra que o liberalismo não apenas absorveu as virtudes das doutrinas contrárias a ele, mas adotou o espírito autocrático que condenava naqueles que ousavam se dizer antiliberais. Em suma, a atual política de imigração da UE mostra o acerto da avaliação de Martins de que o liberalismo é uma “boca de jacaré” que tudo devora. GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 88 Esse diagnóstico nos ajuda a entender tanto a dinâmica interna da política para a mulher da UE quanto as relações entre esta política e a imigratória. No primeiro caso, podemos dizer que as políticas de ação positiva da União Européia acabaram se submetendo às diretrizes do feminismo liberal. O liberalismo aborveu as políticas contrárias, entre elas as ações positivas implementadas nos anos 80 na Comunidade Européia. Quanto à relação entre política feminina e imigratória, vemos que a perspectiva de gênero se deparou com o liberalismo romântico e repressor da política de integração cívica. Como ocorreu com a ação positiva, esse liberalismo da política de imigração neutralizou qualquer possibilidade revolucionária da perspectiva de gênero. 5. Conclusão A partir do exposto, podemos afirmar que, até agora, a abordagem gender mainstreaming (também chamada de transversalidade ou perspectiva de gênero) não teve grande penetração nas políticas para imigrantes da União Européia. Definimos anteriormente este conceito como uma proposta de retirar a questão feminina de um departamento específico e inseri-la em todos os setores da União Européia, fazendo com que as diversas áreas levem em conta o fator mulher na elaboração de suas políticas. A introdução da transversalidade e do modelo de integração cívica ocorreram quase concomitantemente na União Européia. A primeira foi incorporada em 1996 e o segundo, em 1998. Em seu estudo, Pollack e Hafner-Burton constataram que a Política de Competição, a mais neoliberal da União Européia, foi também a mais resistente à abordagem da perspectiva de gênero. Em nossa análise, pudemos comprovar que pelo menos um certo tipo de liberalismo é capaz de esvaziar qualquer política de perspectiva de gênero. O novo conceito de gênero não foi suficiente para mudar o padrão de uma política de inclusão do imigrante que dava pouca atenção à questão feminina. Entre o multiculturalismo e a integração cívica houve mais continuidade do que ruptura do ponto de vista da emancipação feminina. Em nossa opinião, esta continuidade se deve ao conteúdo repressivo presente nos dois tipos de liberalismo que serviram de base a esses modelos. Joppke chamou a atenção para o liberalismo repressivo da integração cívica, mas devemos lembrar que este componente autoritário também pode ser detectado no GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 89 multiculturalismo fechado, o qual obriga o imigrante a se restringir à cultura de seu país de origem. Pollack e Hafner-Burton referem-se a duas estratégias para implementar a transversalidade: a integracionista e a do poder de agenda. Na primeira, introduz-se a perspectiva de gênero em processos de política pública já em andamento, sem contestar as linhas mestras de tal política. A perspectiva de gênero atua como um elemento reformista, tentando se adaptar ao status quo como estratégia para ser aceita. A modificação se daria lentamente na elaboração de políticas. Ao contrário, na estratégia do poder de agenda, tenta-se modificar a estrutura das políticas responsáveis pela desigualdade entre homens e mulheres. Em outras palavras, trata-se de realizar uma revolução e não uma mera reforma. Esta estratégia de implantação do novo conceito atenderia perfeitamente à reivindicação das feministas radicais, para as quais o objetivo do movimento feminista deve ser a transformação de instituições criadas num contexto histórico de dominação masculina: Se um grupo é mantido fora de algo por um período suficientemente longo, é avassaladoramente provável que as atividades deste tipo se desenvolvam de maneira inadequada para o grupo excluído. (...) as mulheres foram mantidas fora de muitos tipos de trabalho e isso significa que é bem provável que o trabalho seja inadequado para elas (Radicliffe Richards, apud Kymlicka, 2007, p.309). Concluímos que os defensores dos direitos das mulheres e da nova abordagem gender mainstreaming na União Européia encontram-se, hoje, diante de um dilema no que diz respeito às políticas de imigração. Implantar o gender mainstreaming através do integracionismo, ou seja, através de uma adaptação à política imigratória já em curso, pode significar a manutenção do caráter repressor do liberalismo da integração cívica, que reforça o modelo patriarcal de família em nome de uma “emancipação” da mulher em relação à comunidade. Por outro lado, instituir o gender mainstreaming por meio do controle da agenda pode resultar ineficaz dada a enorme oposição que tal estratégia provocaria nas instituições comunitárias. Mas talvez essa estratégia mais radical ainda tivesse alguma chance de sucesso se se preocupasse, em primeiro lugar, em definir com clareza o que é o liberalismo presente na União Européia e, particularmente, na política imigratória. Até agora, só pudemos constatar que se trata de um liberalismo combinado com intervencionismo, repressão e nacionalismo. GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 90 NOTAS 1 O processo de ratificação da Constituição Européia foi interrompido após o não da França e da Holanda em 2005. 2 Um órgão como a Unidade para Oportunidades Iguais é necessário para promover tanto as ações positivas quanto a transversalidade. No entanto, ao contrário da ação positiva, que exige constantemente um órgão deste tipo para promovê-la, a transversalidade, se bemsucedida, acarretará na obsolescência deste tipo de instituição. Uma vez que cada departamento inclua a questão feminina em suas políticas, não haverá necessidade de um órgão para promover tais práticas. 3 Joppke usa o termo liberalismo repressor para se referir à integração cívica, mas acreditamos que ele também deva ser aplicado ao multiculturalismo holandês dos anos 80, que obrigava um imigrante a permanecer dentro de seu grupo étnico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. DELGADO, Dídice, CAPELLIN, Paola & SOARES, Vera (orgs.) Ações afirmativas, mulheres e mercados de trabalho In: Mulher e Trabalho: experiências de ação afirmativa .Rev. Estud. Fem. vol.9 no.1 Florianópolis 2001. São Paulo: ELAS/Boitempo Editorial, 2000. 144p. DUARTE, Ana Rita Fonteles. Betty Friedan: morre a feminista que estremeceu a América. Revista Estudos Feministas. Vol. 14 n°1 Florianópolis Jan/Apr. 2006. EAGLETON, Terry. 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GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 74-92, Dez. 2008 / Jun. 2009. 91 Femmes et pouvoirs. Le Monde. Disponível em: http://www.lemonde.fr/web/imprimer_element/0,40-0@2-3230,50-880124,0 html WHELEHAN, Imelda. Modern Feminist Thought. New York University Press, 1995. Sunshine for Women. 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Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. A POESIA QUE LÊ A CIDADE: VERSOS QUE INTERPRETAM GOIÂNIA EM TRAVESSIA Angelita Lopes∗ Eguimar Felício Chaveiro** Resumo: Abstract: O trabalho que ora se apresenta tem esse objetivo: demonstrar a leitura espacial de Goiânia feita pela poesia de diferentes autores-poetas. Tentaremos verificar o grau de aprofundamento dessa leitura viajando na paisagem da cidade, especialmente centrando a viagem no modo como o poeta vê a vida no espaço – e lê o espaço pela emoção. Palavras-chaves: The present work has as objective: to demonstrate the space reading of Goiânia made by the poetry of different authorpoets. We will try to verify the degree of deepening of this reading travelling in the landscape of the city, especially centering the trip in the way as the poet sees the life in the space - and reads the space through the emotion. Key-words: Espaço; Cidade; Representação; Poesia Space; City; Representation; Poetry Introdução Os estudos e as pesquisas sobre Goiânia se diversificam de acordo com os campos de saberes, com as perspectiva científicas e, especialmente, a partir dos interesses políticos que motivam as ações de pesquisa. Na interface entre cultura e poder há trabalhos que investigam a memória dos migrantes nordestinos que ajudaram a construir a cidade (Menezes, 2004; Teles, 1986, 1998). o papel dos símbolos de Goiás e de Goiânia (Chaveiro, 2005); a formação das instituições populares, como é o caso do time Vila Nova (Balzacchi Junior, 2002); a política e a cultura goiana (Campos, 1998, 2002); imagens e mudanças culturais (Oliveira, 1999); personalidades importantes, como os trabalhos “Dona Gercina – a mãe dos pobres” (Oriente, 1981) e Pedro Ludovico: Um tempo. Um carisma. Uma história (Machado, 1990); ideologia (Palacín, 1986). Além desses trabalhos, crescem os de cunho acadêmico que são realizados no cruzamento entre história e cultura, geografia e literatura como é o caso dos ∗ Especialista em Educação Ambiental, iesa-ufg. Membro do nupeat (núcleo de pesquisa e estudos em educação ambiental e transdisciplinaridade). **Doutor em geografia humana, USP. Professor do IESA-UFG. Membro do nupeat. LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 93 trabalhos feitos por Fontanezi (2004); Chaveiro (2001) e vários que analisam Goiânia pelo viés literatura explorando obras de Brasigóis Felício, Carmo Bernardes, Horieste Gomes, Jose Mendonça Teles etc. Esses trabalhos certamente fazem uso de alguns pressupostos fundamentais oriundos de novos paradigmas de conhecimento como o de que a cultura é um manancial de símbolos, signos e artefatos que se entremeiam na construção, na vivência e na experiência dos espaços. Por ser assim, toda ação social é guiada por uma prática cultural que lhe serve de guia, mediante a qual os sujeitos produzem sentidos políticos e desenvolvem significados às suas ações. Esses pressupostos, no caso do presente trabalho, possuem um sentido prático: Goiânia é representada pela poesia. Essa representação, forjada pelos critérios estéticos próprios da empresa poética e do labor metafórico, ajuda a conhecer a alma da cidade – e a decifrar os sentidos de usos das instituições e dos diferentes tipos de poder que transformam o espaço em bem privado, de rentabilidade ou de produção e reprodução da vida. O trabalho que ora se apresenta tem esse objetivo: demonstrar a leitura espacial de Goiânia feita pela poesia de diferentes autores-poetas. Tentaremos verificar o grau de aprofundamento dessa leitura viajando na paisagem da cidade, especialmente centrando a viagem no modo como o poeta vê a vida no espaço – e lê o espaço pela emoção. 1. O mundo contemporâneo e a cultura tecnificada As grandes transformações pelas quais vem passando o mundo, a corrida frenética pela industrialização, desde o séc. XVIII e a tecnologia controladora das instâncias sociais, delimitam campos de ações diante da produção do espaço e da vida; contribuem, também, para o esfacelamento das relações sociais, para a produção do anonimato na multidão e especialmente para a destruição da memória coletiva, de maneira que a vida urbana se torna conflitada, atemorizada, distendida – e ofendida. Isso tudo faz resultar segundo Pelbart (2005) na perda do sentido da vida, na capacidade de gerar projetos políticos para a coletividade e a redução na crença da potencialidade de sujeitos. Não se luta mais por amores, por vidas, por pensamentos. Ao contrário: luta-se pelo corpo escultural, contra a obesidade, a favor da imagem e da LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 94 representação. A ação cultural entra como ingrediente político de assimilação, não de dissidência. A vida humana neste cenário perde sua cor e viço, se torna opaca. As pessoas se tornam mecanizadas, sem sentimentos em relação à dor de seu próximo, perdem a ética e o respeito à vida. A cidade grande, especialmente a metrópole, é o palco, por excelência, dessas contradições. E nela que “o jeito do mundo” se revela com mais intensidade. E a cultura de adesão enfronha-se com mais vigor na produção dos gostos e dos sentidos humanos. Este contexto instiga a fragmentação das relações sociais e o desligamento comunitário. A valorização agora se dará em torno da satisfação pessoal, onde os sujeitos vão aos poucos, assumindo uma nova imagem, e um novo papel social. A cultura perfomática, mercadológica, mediatizada pelo dinheiro, torna, aí, uma fonte de produção da imagem. E é com essas imagens que o sujeito estabelece a sua plataforma de desejo, o modo de amar, inclusive, as maneiras de falar, de comunicar – e de estabelecer sentido para a vida. Ter uma imagem de mundo compatível com a mercantilização do capitalismo reinante é o ponto de sustentação pela qual a cultura perfomática age. A família, antes habituada a repartir e transmitir experiências através das longas conversas, as longas rodas de prosa que se constituíam nas comunidades, nas praças, nos almoços domingueiros, nas festinhas nas redondezas familiares, na transmissão de mitos e rituais que expressam poeticamente a vida, desaparecem aos poucos, tornando costumes e hábitos ultrapassados. É a renuncia ao saber tradicional preservado e construído pela humanidade de maneira comunitária ao longo de sua história de desenvolvimento. E a adesão cultural pelo entretenimento espetacularizante. Nesta longa caminhada a dignidade humana se desintegra, a natureza, a cultura e a tecnologia são utilizadas como mecanismos de dominação e alienação, expandindo suas fronteiras às margens da “desertificação humana”. Santos (2005), Leff (2004), Morin (2006), ao abordarem a fusão entre natureza, cultura e tecnologia, concordam na possibilidade de sua utilização como instrumento contra-hegemônico criando-se bases de consolidação desta fusão com a sociedade através da ligação de saberes. E a integração de saberes deve-se traduzir em organizações coletivas de conhecimentos – e de ações. Vale a pena nos ater ao pensamento de Boaventura de Sousa Santos a respeito. LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 95 A biodiversidade, a diversidade de formas de vida – plantas, animais, microrganismos -, é a base ecológica da vida. Também é o “capital natural” de dois terços da humanidade que depende da biodiversidade enquanto meio de produção – na agricultura, pesca, cuidados de saúde e na produção de utensílios. Esta base de sobrevivência dos pobres é agora considerada como “matéria prima” para negócios e indústrias globais, porque, por um lado, as antigas tecnologias químicas já estão a falhar, tanto na agricultura como na saúde, e, por outro lado, a acumulação continuada de capital está a conduzir o lançamento de novas tecnologias como a biotecnologia, para o aumento do controle sobre os mercados e recursos (Santos, 2005, p. 319). Ao assumir a condição de dependência existente entre os seres vivos, o ser humano passa à consciência de vida em comunidade, permitindo-se construir laços de fraternidade, respeito, dignidade, percebendo a sistematização efetiva que há entre todos os elementos constituintes do universo, onde o “eu”, faz parte do mar, do ar, da terra, do fogo, do preto e do branco, do rico e do pobre. A consciência de irmandade cósmica e de existência interligada passa a desenvolver uma compreensão que o destruir o outro, é destruir a si mesmo. Nasce daí o que pode se chamar de pensamento ecológico, ou a Ecologia do Ser, onde o ser humano não é mais o centro do universo, mas apenas uma minúscula parte poética do seu todo. Uma poética de influências recíprocas – e uma ética de responsabilidade total. A cultura entra aqui como cerne do patrimônio ético e político, pois os diferentes símbolos, as diversas manifestações e os diversos gostos, ao serem respeitados, participam ativamente dessa poética integradora. 2 - O desencantamento cultural da poesia e a sociedade da pressa Os termos cultura e subjetividade serão abordados com o objetivo de esclarecer noções básicas de seus conceitos nas visões dos teóricos Edgar Morin e Fernando Gonzáles Ray. Morin (1986) inicialmente esclarece que a palavra cultura traz em si uma gama de conceitos que permitem uma série de leituras em suas definições e sentidos, por seu uso múltiplo nas ciências humanas. O autor segue explicando que a palavra cultura é na antropologia usada em sentido duplo, representando tudo que é modificado pelo homem socialmente, ou mesmo, tudo que adquire sentido dentro das atividades humanas selecionadas como sendo superior; esclarece ainda, que há o sentido etnográfico que agrupa normas, valores, crença e comportamentos que não se relacionam às tecnologias; por fim, o sentido sociológico envolvendo o aspecto da personalidade, da sensibilidade, do psicoafetivo, e por vezes este sentido é reduzido ainda mais quando é empregado como LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 96 cultura ilustrada, expressando a união entre a cultura das humanidades clássicas e o valorado na literatura e nas artes modernas, argumentando que o uso da palavra situado apenas em um campo de definição e sentido, engessa a capacidade de abranger as problemáticas humanas, sendo relevante uma concepção ampla, onde seja necessário, “considerar a cultura como um sistema que faz comunicar – em forma dialética – uma experiência existencial e um saber constituído” (Morin, 1986, p. 77). A cultura, então, tende a se movimentar de acordo com a civilização que dela faz uso acomodando-se conforme as necessidades ali definidas. Para construção de uma visão articulada de mundo, é necessária a compreensão dos mecanismos estruturais da sociedade, sobretudo aos conceitos que se dão através da cultura ilustrada e da cultura de massas. A cultura ilustrada abrange o campo cognitivo e estético, se caracteriza em valorizar a elite, que detém a renovação e o culto da exclusividade através da apropriação da cultura, agindo como diferencial entre as classes sociais. A cultura de massas possui afinidade com a cultura ilustrada, porém ela não necessita de força física para se manter presente no seio da sociedade, “neste sentido, pode ser concebida como um aspecto capital da extensão ou da democratização da cultura urbana burguesa, e, de resto, desenvolve-se na e pela destruição das culturas rústicas pebléias” (Morin, 1986, p. 101). A ação do sujeito que ora buscava se relacionar pela afetividade, pelo olhar, pelo tocar foi permitindo que estas marcas se evadissem, tornando-se marcas de constrangimento. Ser poeta, cantar a vida, o amor, sofrer por uma paixão ou por uma desilusão tornou-se piegas. Nestes termos Gonzáles Ray, argumenta: A ação do indivíduo dentro de um contexto social não deixa uma marca imediata nesse contexto, mas é correspondida por inúmeras reações dos outros integrantes desse espaço social, criando-se no interior desses espaços zonas de tensão, que podem atuar como momentos de crescimento social e individual ou como momentos de repressão e constrangimento do desenvolvimento de ambos os espaços (Gonzáles Ray, 2005, p. 203). Entrelaçando a concepção de Morin e de Gonzáles Ray, buscando seus pontos de convergências, podemos concluir que a cultura em seu sentido expandido assume parcela importante na formação e configuração da subjetividade individual e coletiva, que se perceberá como sua personalidade expressa nas atitudes e em seus comportamentos, que manifestarão o caráter diferenciado dos acontecimentos e espaços sociais em que estejam os sujeitos sociais, permitindo melhor compreensão dos fatos da vida que nos cerca. E das ações de poder dos diferentes grupos sociais num determinado espaço. LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 97 3. A construção de um sonho: Goiânia poetizada O poeta goiano Gabriel Nascente, no poema “GOIÂNIA, A CIDADE E SUAS COSTAS PARA O MAR”, lê o espaço assim: No começo a cidade não tinha rosto Era áspera, impune, silenciosa E dormia como um navio Debaixo do chão (...) Era um carro de boi Sol e canga: fumaça no chapado, Ronco operário De músculos e réguas Abrindo ruas, valas, alicerces e vilas Da cidade menina Nascendo com seus lábios de poeira (...) Uma cidade nasce sem rosto, no silêncio dos sonhos que adormecem... brotam, geram a vida e a morte, a alegria e a tristeza. E de guardados em guardados, trançam-se as teias dos destinos que ali viverão. Das muitas ruas, dos muitos carros, das muitas flores, se constroem pontes que se tornarão um infindável presente e passado se interpondo. No coração do Brasil adormecida em sua inocência e pureza infantil de pele intocada, na pureza virginal de suas matas, nasce..., cresce... Aos olhos de muitos, menina feia, sem viço, que mesmo em sua tenra idade já se fazia em rugas, deformada em seus membros tortuosos – Goiânia, cidade poesia para muitos, cidade dos sonhos para outros tantos... É o ranger dos carros de bois que vem a nos acordar para uma nova vida, para a junção com a Campininha, com a Aparecida de Goiânia, com a Trindade da fé em um amanhã reluzente de salvação. Goiânia nasceu do sonho de muitos, da fantasia de desbravadores humildes da enxada e da foice e, dos não tão humildes, que ambicionando o multiplicar de suas luzes douradas e, ambos valentes em seus devaneios, foram lapidando a Menina-flor, mesclando as cores no coração do Brasil. Do alto da serrinha um som esbravejou: “Goiânia, aqui será Goiânia!” Indômita caçula desta América que arde no topo das bandeiras. (Gabriel Nascente em “Goiânia, a cidade de costas para o mar”.) LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 98 Goiânia vai cultivando sua presença no cenário nacional com o charme de uma bela donzela, que de acordo com o poeta Gabriel Nascente, vai construindo sua imagem como a “Cidade dos Ipês, Capital do Cerrado, Cidade Ecologicamente Correta, Cidade das Praças e das Flores, Capital de Eventos, Capital da Música Urbaneja, a Capital da Pamonha...” E de prosa em verso, a vida vai se construindo num emaranhado de outras vidas, a cidade vai expandindo, silenciosa em sua urbanização, vai engolindo vorazmente suas matas, suas nascentes de rios e córregos, suas flores, seus encantos... A linda cidade dos belos Ipês e dos Flamboyants, motivo de tanta inspiração para os poetas e trovadores, mescla de cinza com o preto, perde gradualmente suas cores vividas e brilhantes. É a contemporaneidade invadindo os espaços urbanos da sociedade, transfigurando cores intensas em cores fúnebres, onde se perde o projeto de vida comunitária, aniquilando-se conhecimentos que levaram centenas de anos para serem construídos através de experiências de nossos ancestrais. Em concordância com o acinzentamento do ser humano, embrenhado à perda da poesia, Leff (2004), afirma que a economia capitalista trás a decadência para a sociedade, pois: Vivemos um mundo onde a perda de sentidos existenciais, a desesperança generalizada pela marginalização, pelo desemprego e pela pobreza, e o fastio da abundância geram uma reação cega que tende a desvalorizar a própria vida. Hoje não há mortes românticas, sobrecarregadas de gozos patéticos onde se cantava a natureza e onde a natureza era o reflexo da alma. Hoje se morre de inanição de sentidos (Leff, 2004, p. 122). É neste cenário de degradação do meio ambiente que o poeta atordoado demonstrará sua indignação diante da perca da qualidade de vida nos centros urbanos, com a separação entre poesia e vida, passando a mostrar uma leitura saudosa da cultura tradicional preocupada com a manutenção da existência dos seres vivos. Chão que pisamos, Do ar que respiramos, Das coberturas que dividimos, Do que percorremos com o olhar, juntos, Dos espaços de vida que ocupamos. Lembranças e relembranças de nós... Arquitetos e poetas da vida. (Ângela Barbosa em “Os Guardados da Cidade”.) LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 99 Exaltar os sentimentos para mostrar o mundo Planeta Terra, o mundo Brasil, o mundo Goiânia ou, o mundo mais íntimo ainda, o mundo do “eu”, da subjetividade construída dia-após-dia, que se revela nova a cada dia, das experiências de nossos pais, de nossos “queridos avós”, e dos sons de carros, de suas buzinas, do calor do asfalto que nos molha o rosto. É assim que vemos a cidade de Goiânia, com os olhos do coração do poeta, que ri e chora e se alegra por ela. O poema mostra o espaço da cidade a partir da memória e da vivência. A cidade vai crescendo, ultrapassando limites, tece o emaranhado social que combina experiências, transformando-as em conhecimentos, saberes. São os guardados da memória de um aglomerado de pessoas que os modelam em cultura goianiense. Lida pela memória, a poesia se torna fonte historiográfica, pois a cidade que fora é parte da cidade que é. Portanto, os seus problemas são construções históricas mas com ecos nas experiências de cada um que usaram o espaço como prática cultural. Os chãos que pisamos, que muitos pisaram e ainda muitos irão pisar, do chão que nossos avós pisaram com alegria, ou com tristeza, do ar que outrora respirado puro... Jaz aqui em poeira negra, dos lugares que passamos e que muito deixamos em sentimentos, sentimentos que outros deixaram e que nunca iremos saber quais e quem os deixou, mas que estão ali, presentes na memória daquele lugar. Ângela Barbosa, vê a construção da cidade com um olhar profundo, penetrando no ser, vê em suas estruturas o que não é visto habitualmente, o que é guardado na memória individual ou coletiva refletida em atitudes diante da vida. Saudosa, a poeta vê que o desenvolvimento econômico da cidade atrofia suas possibilidades; a sociedade evolui para a desintegração de seus valores éticos e morais; para o individualismo que esquece as zonas de habituais trocas de experiências dentro da família, indigna-se diante do perecimento da juventude, que já não sabe organizar seu tempo despolitizando seu espaço de cidadania. Ana Caetano em “A Goiânia dos meus olhos”, compartilha da mesma idéia, ponderando que o crescimento da cidade pensado em seu aspecto econômico, em nada contribuiu com a qualidade de vida das pessoas: E pra não dizer que só falei de verde, mostro sinal vermelho para o transporte público... Quando adolescente, eu adorava atravessar a cidade num ônibus pra chegar até o campus, era como se o ônibus me levasse para o futuro: era bem longe, eu ia de pé, mas havia espaço para o meu calo sem que o pisassem e eu não esperava tanto nos pontos; hoje, tem-se a impressão de que a população cresceu e a quantidade de coletivos diminuiu e, no espreme- LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 100 espreme dos terminais, diminuiu, também, a dignidade do povo (Ana Caetano em “A Goiânia dos meus olhos”.). Ao se referir ao vermelho para o transporte coletivo, a poeta enfatiza o descaso do poder público em relação à dignidade da população, que se vê privada até mesmo das condições básicas em manter a sobrevivência dos seus, com o mínimo de respeito enquanto ser humano, e ainda em relação aos transportes, analisa com lucidez a educação no trânsito, que deveria trazer conforto e tranqüilidade, no entanto, o que a poeta percebe é: Como mudam as coisas, hoje, não ando mais de ônibus, atravesso as nossas ruas largas e até limpas e me assusto com as buzinas mal educadas, com os apressados, com as filas duplas nas portas das escolas, entretanto, agradeço por serem, relativamente, raros os engarrafamentos (Ana Caetano em “A Goiânia dos Meus Olhos”.). A indiferença humana em relação às pessoas, também é percebida por Chaveiro. O poeta explora os diversos ambientes da cidade, captando a miséria e a fartura andando lado-a-lado, companheiras do mesmo espaço que não compartilham da mesma sorte. Não há cores vermelhas, laranjas, amarelas no estômago das mães das vítimas do Césio 137 Nem há movimentos transparentes nos vitrais das grades do Cepaigo. Contestando a alienação freqüente do sujeito, o poeta colérico se põe a perguntar sobre o desempenho dos políticos e sua função, se cumprem suas promessas de campanha, ou mesmo, se a penúria do povo sofrido atinge sua consciência ética e moral. E já ouvi dizer que os paralelepípedos do palácio tremem assim como o salão de espera do Hugo, a sala do IML tremem... Já ouvi dizer que um poeta Nascente, um poeta Aires estão Coroados - e assustados – porque o odor do Meia Ponte ressoa no sovaco do Anhanguera mas, sim senhor, há muitas flores em Goiânia Sim senhor, Goiânia é uma cidade bela para quem tem coragem de lutar. (Eguimar Chaveiro em “O Sovaco da Estátua do Anhanguera”.) Centrado nas contradições sociais expressas no espaço, o poema tende a contrabalancear o poder ideológico da imagem, como se avisasse que não possuímos mais espaços para nos reconstruirmos, possuímos espaços para nos consumirmos. LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 101 Chaveiro segue expondo que não há como viver em nosso mundo sem contradição, pois, elas estão embebidas em nosso ser contraditório. Por isso, é que uma cidade contemporânea se faz num cruzamento dinâmico de processos econômicos, de apropriação da natureza, e de sua transformação, de processos, políticos, culturais, sociais, ideológicos, imaginários, fabulários, míticos. E é atravessada de sentidos, vozes, significados, ações (Eguimar Chaveiro em “Por Uma Leitura de Goiânia, 2006”.). Nas várias leituras dos poetas, podemos perceber o duelo entre o passado e presente, a queixa contra a modernidade destrutiva do ser, que se perde diante da magia do consumismo que o brutaliza e o conduz a pobreza das relações sociais, que vão se desertificando, perdendo seus referenciais de vida construídos por seus antepassados. O sujeito reportado nos poemas é alienado pela sociedade que lhe repassa a figura de um mundo pelo qual não vale a pena lutar, pelo qual não vale a pena preservar, nem em suas memórias, nem em suas riquezas naturais. A vida em sociedade é apresentada em suas contradições, pois o sujeito é em si a representação da divergência por não sermos fadados a uma só história, e ao entrar na vida social: [...], a pessoa vai se transformando em sujeito; no entanto, sua integração neste espaço é diferenciada até pela própria socialização de suas diferenças individuais, que passam a constituir-se como elementos de sentido na organização dos sistemas de relação social que acompanham o desenvolvimento humano. As formas de subjetivação das diferenças individuais têm a ver com os modelos dominantes de subjetividade social, assim como a constituição de seus protagonistas (Gonzáles Ray, 2005, p. 205). E partindo desta premissa, os poetas apresentam a luta pela vida como forma de burlar os ditames do sistema capitalista. A poesia vira arma cultura de poder dos enfraquecidos, dos deserdados, dos que não se nutrem da riqueza que eles mesmos produzem. A luta pela vida, por outro lado, constituí-se então em preservar a construção histórica dos seres humanos, assimilando o que for benigno nos novos saberes, levando o sujeito a se perceber como parte de um gigantesco sistema interdependente. Edgar Morin sabiamente relata a luta entre o homo sapiens e o homo demens, do diálogo que devemos travar com nossos vários “eus”, em que devemos saber mediar a quantidade de loucura e racionalidade existente em nós, para que possamos construir um mundo através do amor, que se traduzirá em poesia, poesia da sabedoria. Abrir a possibilidade de ler as diversas mazelas que nos são colocadas, de diferentes formas, aprendendo a se mobilizar nas estruturas petrificantes da sociedade, é LOPES, Angelita, e CHAVEIRO, Eguimar Felício. A poesia que lê a cidade: versos que interpretam Goiânia em travessia Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 93-104, Dez. 2008 / Jun. 2009. 102 tarefa imprescindível diante de nossa realidade: a de preservar as culturas e riquezas construídas por nossos antepassados, entre elas a de perceber a vida como possibilidade. E a poesia como fonte de beleza e de consciência. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALZACHI JÚNIOR, Wilson. Vila Nova Futebol Clube – 1943 a 1973: formação e consolidação de uma Instituição Popular. Monografia de especialização, Goiânia; UCG, 2002. CAMPOS, Francisco Itami. O legislativo em Goiás. V.2. Goiânia: Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, 2002. _________. O legislativo em Goiás. V. 3. Goiânia: Assembléia Legislativa de Goiás, 2002. CHAVEIRO, Eguimar, Felício. In: TANTOS CERRADOS; Org (ALMEIDA, M. Geralda).Símbolos das Paisagens do Cerrado Goiano, Goiânia: Ed. Vieira, 2005. FONTANEZI, J. Romano. No centro de uma capital planejada: Goiânia – corpo e alma (19301970), Goiânia:UFG. Dissertação de mestrado, 2004. GONZÁLES REY, Fernando (org.). 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Para desenvolver este estudo, nós analisaremos os romances: Vidas secas, do brasileiro Graciliano Ramos, e Gaibéus, do português Alves Redol. As analises nas duas obras consistirão em investigar as causas que provocaram o silêncio e a passividade das personagens ante os fatores de repressão. Os dois romances serão estudados segundo as suas características específicas, ou seja, os seus aspectos literários e as formas de silêncio que nelas ocorrem. Serão, também, confrontados entre si, sendo que Vidas secas será o romance que embasará a comparação entre eles. Nas duas obras, as personagens são reprimidas e exploradas por elementos físicos, sociais, políticos, econômicos e ideológicos. Por esse motivo, o estudo desses fatores, que atendem aos interesses da classe dominante, será necessário para se compreender o nível de exploração a que as personagens são submetidas. In this study, we will observe how silence means commitment with the social problems, which could not be pointed out explicitly. To develop this research, we will analyze the following novels: Vidas Secas, by the Brazilian author Graciliano Ramos and Gaibéus, by the Portuguese author Alves Redol. The analysis on these books will consist of investigating the causes that provoked the silence and the characters passivity facing the factors of repression. The two works will be studied according to their specific features, which mean their literary aspects and the ways of silence that occur. These books will be confronted, but Vidas Secas will be the basis novel for the parallel among them. In the two stories, characters are repressed and exploited by physical, social, political, economical and ideological. Because of this, the study of these elements will be needed to comprehend which exploitation level the characters are submitted. Palavras-chave: Key-words: Silêncio; Neo-Realismo; Repressão; Vidas secas; Gaibéus. Silence; Neo-Realism; repression; Vidas secas; Gaibéus. Introdução Este trabalho pretende estudar, na literatura, os motivos que desencadeiam o silenciamento de personagens que sofreram alguma forma de repressão. Ao abordarmos o estudo do silêncio em obras literárias, buscaremos compreender o sentido que ele possui em romances neo-realistas, escritos durante regimes ditatoriais. A nossa intenção será a de verificar como a arte, em seu contexto diegético1, fornece meios para se ∗ Mestra em literatura pela UFG. Professora de orientação de estágio em língua portuguesa e literatura na Universidade Estadual de Goiás – Unidade Universitária De Inhumas. **Doutora em literatura pela USP. Professora de literatura na Universidade Federal de Goiás. RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 104 compreender as formas e os sentidos que o silêncio adquire no aspecto textual e extratextual. Os romances que compõem o corpus deste estudo são Vidas secas, do brasileiro Graciliano Ramos e Gaibéus, do português Alves Redol, publicados, respectivamente, em 1938 e 1939. Essas duas obras retratam o novo olhar da literatura, voltado ao oprimido. Foram selecionadas por expressarem o silenciamento e o comportamento passivo de personagens marginalizados por uma classe exploradora. Nesse contexto, em que os indivíduos dominados são submetidos a um determinado poder, tal submissão ocorre impulsionada por formas sutis ou explícitas de repressão. Vidas secas foi o romance que primeiro nos despertou o interesse para observarmos o fenômeno do silenciamento. Assim, o objetivo do estudo foi o de tentar compreender por que a personagem Fabiano silenciava e se submetia ao poder dominador mesmo quando tentava reagir interiormente. O enfoque de nossas análises não se prenderá à observação dessas obras por pertencerem ao Neo-Realismo, pois para tanto o trabalho teria de voltar-se, mais detidamente, ao estudo desse estilo literário, principalmente porque as obras estudadas foram criticadas por não se adequarem às características desse movimento que procurou expor os problemas sociais e a luta de classes. Embora venhamos a destacar certas preocupações desse movimento, que auxiliarão nossas reflexões, o que nos levou ao estudo das duas obras foi a percepção de que nelas o silêncio configura-se como signo lingüístico, e como tal, envolvido por questões ideológicas. Um aspecto relevante ao se estudar o silenciamento, em obras literárias que expõem a introspecção das personagens, é que se tem acesso a uma forma de linguagem que nenhum poder repressor pode apagar: o discurso interior, ou fluxo de consciência. E, mesmo que a personagem fale, não aquilo que realmente queria, mas o que não a comprometa, ou, mesmo que se cale, o leitor sabe, em situações em que há o discurso interior, o que realmente ela quis dizer. O silêncio: signo, ideologia e censura A repressão fascista de Getúlio e Salazar silenciou as sociedades brasileira e portuguesa, no entanto, a literatura buscou alternativas para mostrar através da arte a realidade de então. O silêncio imposto pelo ditatorialismo fascista tornou um RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 105 subterfúgio em prol da arte, pois, sendo este recurso um signo, ele se apresenta no nível do discurso como uma contra-ideologia. Analisar o silêncio é observar como esse fenômeno lingüístico e literário significa na compreensão de acontecimentos históricos que influenciaram ou afetaram a sociedade e a arte. Assim, rever a obra pelo recurso do silêncio é lançar um novo olhar, podendo ser ele mais sensível ou mais consciente, como explica Sontag (1987: 20): “As noções de silêncio, vazio e redução delineiam novas receitas para os atos de olhar, ouvir etc. – as quais ou promovem uma experiência de arte mais imediata e sensível, ou enfrentam a obra de arte de uma maneira mais consciente e conceitual”. Ao definir a teoria do silêncio, Orlandi (1992: 23-24) distingue duas formas, o silêncio fundador e a política do silêncio. O fundador seria aquele silêncio que existe nas palavras, cuja significação encontra-se naquilo que não é dito, mas que produz condições para significar. Assim, transferindo essa definição para a compreensão das obras, a significação do silêncio está naquilo que é mostrado no desenrolar do enredo, em cada uma das formas de silenciamento: na repressão sofrida pelas personagens, seja pelos Aparelhos Repressivos de Estado, seja pela exploração de capitalistas; no isolamento; nas angústias; nas catástrofes naturais; nas explorações sexuais; ou pelas formas sutis de repressão dos Aparelhos Ideológicos de Estado. O silêncio se faz ler nos espaços da linguagem, em sua construção artística, no desenrolar de cada cena em que é mostrada a vivência sofrida de cada personagem, como expõe Teles (1979:12), ao dizer que Preferimos ver o silêncio não em torno da linguagem, mas dentro dela, no espaço ocupado pela figura e por todos os elementos que transformam a linguagem comum numa linguagem literária, que fazem da linguagem sonora da comunicação coloquial a linguagem silenciosa da comunicação escrita e intencionalmente artística. Além do mais, em vez de ausência de fala, o silêncio se deixa ler como o espaço de outras “falas”, de outras linguagens, como a pausa na música, como a página branca ou o espaço em branco de um livro de vanguarda, como a mímica no teatro, criando tensões e expectações, contribuindo para que o expectador aprofunde os estados de alma, motivando verossimilhanças, fazendo avançar as ações, enfatizando-as, pois muitas vezes as cenas “falam” mais que as palavras. (Teles, 1979: 12). RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 106 Nas obras analisadas, as cenas falam mais que as palavras, pois as personagens, muitas vezes, não podem usar um discurso que se opõe à exploração. É nesse sentido que ocorre a política do silêncio, ou o silenciamento propriamente dito, que se subdivide em silêncio constitutivo e local. O primeiro refere-se àquele que, para dizer, é preciso que nada seja dito, ou que se use um outro discurso, que não comprometa o falante. Nesse silenciar, revela-se que há algo significativo por trás, e não se diz por que há alguma coisa que impede. Em Vidas secas, quando o narrador expõe o que Fabiano pensa, quando é silenciado, fica evidente que ele se cala porque sabe que se falar será prejudicado. Ou, ainda, quando usa outro discurso, diferente do que pensou, é para não ser demitido da fazenda em que trabalha. O silêncio local é referente à censura, que proíbe o dizer em uma determinada conjuntura. Nesse aspecto, pode-se reconhecê-lo no silenciamento que ocorre no âmbito dos autores, pois escreveram suas obras em um momento em que a repressão de governos ditatoriais, tanto no Brasil quanto em Portugal, perseguia toda forma de expressão que abordasse aspectos sociais e políticos de seus países. Observa-se que “[a]s palavras são múltiplas mas os silêncios também o são” (Orlandi, 1992: 29), e no caso do silêncio local, o silêncio não é voluntário, pois o indivíduo é silenciado, e, para compreendê-lo, deve-se observar o contexto histórico em que o indivíduo é inserido: “O silêncio não é pois imediatamente visível e interpretável. É a historicidade inscrita no tecido textual que pode ‘devolvê-lo’, torná-lo apreensível, compreensível. Desse modo, o trabalho com o silêncio implica a consideração dessas suas características.” (Orlandi, 1992:60). Ao observar o silêncio, nas camadas sociais representadas em Vidas secas e Gaibéus, pode-se compreender que, mesmo nas camadas consideradas sem classe, o poder da ideologia dominante exerce sua autoridade. O silêncio, principalmente em Vidas secas, passa despercebido, parecendo um problema lingüístico das personagens, que, miseráveis, não conseguem se expressar. No entanto, observando o silêncio nas formas e contextos em que ele ocorre, o problema lingüístico passa a ser mais uma justificativa da personagem e do narrador, no caso, para que o silêncio não transpareça como uma ameaça. Caso o escritor deixasse transparecer o real significado do silêncio, por certo, a circulação de sua obra seria proibida. 107 GUERRA, Flávia e RESENDE, Érica Simone Almeida. A “perspectiva de gênero” na política imigratória da união européia: expectativas e dificuldades. Estácio de Sá – Ciências da Ciências Sociais Aplicadas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, Dez. 2008 / Jun. 2009. O silêncio, nesse romance de Graciliano, faz-se de tal forma que não se percebe, na diegese, sua relação sócio-político-econômica com a realidade factual. Tal consideração pode ser comprovada pela leitura de Medeiros (1996: 128) que indica não haver no romance Vidas secas nenhum compromisso social: “Abstraindo-se de qualquer sentimento impressionista que o romance possa suscitar, a obra [Vidas secas] está, igualmente, isenta de compromissos de natureza social, política e filosófica”. Observase com esta citação que o silêncio apaga a denúncia explícita, é como se a obra estivesse descompromissada com os descasos sociais. O silêncio, por si só, é político, por isso, no aspecto semântico do romance, não transparece um cunho político e social. O silêncio foi um signo favorável, uma espécie de subterfúgio, em que, sem poder dizer, dizia. É um signo que diz, embora não possa ser inteiramente substituído por palavras. Em relação aos signos ideológicos, Bakhtin (1992: 38) explica que Nenhum dos signos ideológicos específicos, fundamentais, é inteiramente substituível por palavras. É impossível, em última análise, exprimir em palavras, de modo adequado, uma composição musical ou uma representação pictórica. Um ritual religioso não pode ser inteiramente substituído por palavras. Nem sequer existe um substituto verbal realmente adequado para o mais simples gesto humano. Negar isso conduz ao racionalismo e ao simplismo mais grosseiros. Todavia, embora nenhum desses signos ideológicos seja substituível por palavras, cada um deles, ao mesmo tempo, se apóia nas palavras e é acompanhado por elas, exatamente como no caso do canto e de seu acompanhamento musical. (Bakhtin, 1992: 38). Justificar o silêncio da personagem somente por ela não saber se comunicar socialmente atende a pelo menos dois fatores: o primeiro, ocorre ao mostrar que a classe dominada assimila e reproduz os discursos do dominador, e, o segundo, pode ser compreendido como uma forma de o escritor poder escrever sem que sua obra fosse vetada pela censura. Para justificar o silêncio das personagens, a obra recorre ao recurso do discurso escolar. Esse aparelho, por ser responsabilizado de formar cidadãos conscientes, faz as personagens acreditarem que são excluídas por não possuírem escolaridade, assim, reproduzem a idéia de que os filhos terão um futuro diferente se freqüentarem escolas: “os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles” (Ramos, 2002:126). RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 108 O escritor, ao se valer de recursos que lhe permitiriam desviar-se do crivo da censura, não deixa de expressar aquilo que queria dizer. Assim, a arte constitui uma via de fato para que o homem, mesmo não podendo, expresse o seu mundo: Pouco importa que seu discurso [do escritor literário] seja sincero ou mentiroso ele estará sempre manifestando alguma formação discursiva existente na sociedade. Mesmo quando cria outros mundos, como, por exemplo, na ficção científica, ele revela os valores, as carências e as angústias presentes numa dada formação social. (Fiorin, 1988:17). Dessa forma, estudar as obras que foram silenciadas é procurar o sentido que esse silêncio veicula, como indica Orlandi (1992: 11): “há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio”. As palavras transpiram silêncio, elas significam mesmo não dizendo explicitamente, e é nesse não dizer que seus sentidos expressam que, naquele silêncio, há algo significativo, pois é preciso ler o silêncio. É nesse sentido de ler o silêncio, ou o silenciamento, que há que se considerar o que o causa. Assim, estudá-lo é buscar sua significação e sua causa na história e na ideologia (Orlandi, 1992: 12). Nas obras analisadas, o silêncio é provocado por vários fatores históricos, entre eles, a exploração econômica, a miséria, os problemas ambientais e tantos outros por esses desencadeados. Ao observar essas causas, quando do estudo detido sobre cada obra, buscar-se-á perceber o que esses fatores provocam nas personagens, como esses sujeitos lidam com ele. Assim, nos momentos em que Fabiano, de Vidas secas, justifica seu silêncio por não saber falar, e não fala, mas pensa, notamos o trabalho do escritor no jogo de silenciar e justificar o silêncio com algo que, aparentemente, não despertaria a atenção da censura. As palavras, nesse sentido, não dizem, mas significam que o problema do silêncio de Fabiano significa muito mais do que o não saber expressar-se, porque no trabalho de elaboração do texto, o escritor registra seus pensamentos, sua introspecção, desenvolvida com muita coerência. Em Gaibéus, quando as personagens estão fatigadas pelo cansaço, pela sede, não podem falar para pedir água, apenas lançam olhares que imploram por ela. Esse RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 109 silenciamento não significa respeito pelo patrão e empenho no trabalho, e sim, denunciam o modo dramático como essas personagens são submetidas ao serviço. O silêncio das personagens configura-se nas duas obras como um recurso ideológico que representa a situação do povo naqueles momentos históricos. O povo estava sem voz, ora pela censura, ora pelo descaso, ora pela repressão. As obras retratam este aspecto silenciando as personagens, expondo-as caladas ante o dominador, ante as intempéries da natureza, ante o sistema econômico e social. Em ambas as obras, o silêncio das personagens é provocado. Elas não silenciam, são silenciadas. Há, nesse aspecto, uma intencionalidade significativa. Ao mesmo tempo em que há o silenciamento das personagens, há também o do narrador e o do autor. Assim, ele pode significar a censura à qual os artistas e todo cidadão desses períodos de dominação eram submetidos. O silêncio ocorre quando se deixa de fazer uma denúncia explícita para somente mostrar, no desenrolar do enredo, a situação vivida pelas personagens, como também quando o narrador usa metáforas para não ter que usar um discurso comprometedor. É o silêncio que Orlandi (1992: 24) denomina de constitutivo. Em algumas situações da vida de Fabiano, os fatos são criados em sua mente, num envolvimento tão singular à sua vida, fazendo com que a referência à realidade factual fique velada, como ocorreu no episódio em que Fabiano encontrou o soldado amarelo na caatinga, o mesmo que o havia prendido e humilhado há um ano: “Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas.” (Ramos, 2002: 101). A denúncia contra a violência legalizada, efetuada pelo sistema policial, fator que ocorria no país, não está implícita nesse episódio, porque esta se constrói naquilo que está dito. Aqui, a denúncia está naquilo que está apagado, pois o que é exposto refere-se intimamente ao caso da personagem, não há exposição dos juízos de valor do narrador onisciente intruso2: “Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas.” (Ramos, 2002: 101). Percebe-se que a crítica da última frase está intrinsecamente ligada à vida de Fabiano. No entanto, nesse mostrar o drama de Fabiano, o sentido, ainda que em silêncio, pode remeter a outros contextos, como o da realidade do país, naquela época de repressão. RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 110 Nesse momento, no romance, quando Fabiano e o soldado amarelo se encontraram na caatinga, Fabiano se vê numa situação favorável para se vingar e começa, então, a pensar sobre tudo o que lhe acontecera um ano antes: “voltou-se e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara à cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a noite” (Ramos, 2002: 99). Fabiano poderia ter-se vingado, mas estava acostumado a se submeter à autoridade: “De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade.” (Ramos, 2002: 100). Nessa parte, discute-se o abuso de poder do soldado amarelo, e, Fabiano, imagina-se no lugar do policial para refletir se ele seria tão mau quanto aquele, caso usasse uma farda: “Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar pancadas neles? Não iria.” (Ramos, 2002: 105). No período em que a obra Vidas secas foi publicada, muitos trabalhadores foram presos por reclamarem, em greves, dos baixos salários e das más condições de trabalho. Quando se menciona “trabalhadores”, no discurso de Fabiano, na citação anterior, para indicar uma situação que a personagem viveu, percebe-se que a palavra no plural não foi colocada impensadamente. Parece haver, aqui, o implícito e não o silêncio. No entanto, como a construção é bastante sutil e envolvida à trama narrativa da vida da personagem, o dito é apagado e o sentido constrói-se pelo silêncio. Em relação à figura do soldado amarelo, o narrador vale-se de uma construção metafórica, portanto uma forma silenciosa, para criticá-lo e criticar o sistema que reprimia tantas pessoas que temiam se defender: “Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.” (Ramos, 2002: 07). Um dos recursos utilizados nas obras, que possibilita notar que as personagens são silenciadas, é o discurso indireto livre. Ao usá-lo para expor os pensamentos das personagens, um outro recurso é utilizado, o fluxo de consciência, método que apresenta de forma exata, não analisada, o que se passa na mente de uma ou mais personagens (Carvalho, 1981: 51). O crítico Humphrey (apud Carvalho, 1981: 51) aponta quatro técnicas básicas na apresentação do fluxo de consciência: o monólogo interior direto, o indireto, o solilóquio e a descrição onisciente. O que interessa, neste trabalho, é o monólogo interior indireto, pois utiliza como principal recurso estilístico o discurso indireto livre. A consciência da personagem é desvendada pela intervenção do narrador, que, ao expor a consciência da personagem, adere ao que está descrevendo ou RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 111 analisando. Há, neste momento, o encontro das duas vozes que se envolvem, não sendo possível separar os discursos, como se percebe a seguir, em um trecho de Gaibéus: Sentiam saudades da terra que lhes negava o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe... E se lá havia pão para todos! Mal tinham acabado os dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’Água. Era um êxodo de desgraça e susto. Que iriam encontrar por ali?!... (Redol, 1976: 23). A expressão “Vir de tão longe...” pode ser a voz do narrador bem como das personagens, assim como “E se lá havia pão para todos!” e “Que iriam encontrar por ali?!”, essas expressões além de representarem as dúvidas e apreensões das personagens, podem representar, também, as indagações do narrador, que interage com os seres narrados. O uso do discurso indireto livre, como explica Maingueneau (1996: 125-126), apóia-se na polifonia, em que se ouvem duas vozes mescladas, a do narrador (discurso citante) e a da personagem (discurso citado, que pode ser apresentado nas formas de discurso direto e indireto). O discurso indireto livre seria então um amálgama entre os discursos citante e citado, as duas vozes. No entanto, são percebidas pelos leitores devido à dissonância que ocorre entre elas, pois não se relacionam a uma única instância enunciativa. Maingueneau (1996: 117) afirma que para identificar o discurso indireto livre é preciso observar se ele é incompatível com os elementos que propiciam o discurso indireto e o direto, pois o primeiro exige a subordinação e exclui as exclamativas, enquanto o segundo é enunciado com o apoio de um “eu” ou um “vós” e, também, do presente dêitico, momento em que o enunciador fala. Por sua vez, o discurso indireto livre não possui um modo específico de introdução, há, todavia, alguns sinais como o uso de verbos não dicendi, orações exclamativas, predicativos do sujeito, evocação direta dos pensamentos e dos sentimentos das personagens (fluxo de consciência), sem, contudo, passar pelo discurso indireto. Resta observar que, apesar de haver esses sinais, pode-se considerar que não há marcas lingüísticas para esta forma de citação, ou seja, não há como indentificá-la fora do contexto. Existe, ainda, uma delimitação do discurso indireto livre, não há total segurança sobre o lugar exato em que surge e do momento em que desaparece (MAINGUENEAU, 1996, p. 118-120), como se nota neste trecho de Gaibéus (Redol, 1976: 35): RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 112 O ceifeiro pende mais a cabeça, finca na foica os dedos com desvigor de moribundo e vai cortando caules que lhe roçam a fronte e lha limpam de suor. Aquele roçagar de humidade empresta-lhe ímpetos – parece mão fresca de mulher a dar-lhe afagos que não conhece. Cerra os olhos e pensa. Pensa vingança que não esqueça. A mão descarnada vai tacteando o arroz; o decepar das canas assemelha-se ao fender de um cutelo a cortar carne. E vê a cabeça do capataz, ali à mão, a sorrir o seu descanso, a ralhar as suas injúrias. Nunca os dedos entorpecidos de fadiga se fincaram mais num pé de arroz. Nem os tendões se crisparam tanto no seu braço escorreito de vigor. Segurava ali entre as mãos, as suas, a gorja carnuda daquele vendido – que entre eles, ceifeiros, eram só alugados a tanto por cada dia. Alugados por uma colheita e depois... ala, moço! Cada qual trata de si. Mas agora nada havia que valesse àquele vendido. Ia dizer-lhe cara a cara, olhos com olhos, todo o seu ódio. O ódio de sete gerações roubadas. E quando na cara do outro alvorecesse o primeiro sinal de medo, quando pela garganta bem apertada se escapasse o primeiro vagido de súplica, saberia também gritar-lhe o seu desprezo. “Ah, cão!... Se ainda fosses uma cachopa tenra!...” (Redol, 1976: 35). O discurso indireto livre começa e termina de forma sutil. No trecho exemplificado, é preciso estar atento para perceber a injunção de vozes. Estruturalmente, a marca pronominal parece indicar apenas o discurso citante, porém, a marca de não-pessoa3 (ele, no caso da citação o “lhe”), pode ser também usada no discurso indireto livre: “Ia dizer-lhe cara a cara”. Nesse caso, é possível distinguir que há a voz da personagem porque ela é a mais interessada em declarar com ênfase o que lhe passa no íntimo, como: “Mas agora nada havia que valesse àquele vendido [capataz]. Ia dizer-lhe cara a cara, olhos com olhos, todo o seu ódio”. Essa confusão de vozes não ocorre, no final do fragmento, com a marca de pessoa, como se percebe, com o uso do “tu”: “‘Ah, cão!... Se ainda fosses uma cachopa tenra!...’”, percebe-se em “fosses” o traço marcante do discurso direto, o qual não se mistura ao discurso citante. O discurso indireto livre funciona, também, como um filtro em que somente o leitor tem acesso ao que pensa a personagem, esse fator é importante para a compreensão da obra quando as personagens não podem falar, nesse momento, percebese o vínculo entre narrador e personagem na forma como um e outro justificam, como é mostrado em Vidas secas, a passividade da personagem: Se ele soubesse falar como sinha Terta, procuraria serviço noutra fazenda, haveria de arranjar-se. Não sabia. Nas horas de aperto dava para gaguejar, embaraçava-se como um menino, coçava os cotovelos, aperreado. Por isso RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 113 esfolavam-no. Safados. Tomar as coisas de um infeliz que não tinha onde cair morto! Não viam que isso não estava certo? Que iam ganhar com semelhante procedimento? Hem? Que iam ganhar? (Ramos, 2002: 97). O uso da não pessoa (ele), como ocorre no fragmento acima: “Se ele soubesse falar como sinha Terta”, e do imperfeito: “Nas horas de aperto dava para gaguejar”, são formas do discurso indireto livre em que são descritos tanto o mundo exterior, quanto os pensamentos das personagens, sobre esse aspecto Maingueneau (1996: 122) esclarece que: [o] recurso sistemático ao discurso indireto livre permite que se ponham no imperfeito e em não-pessoa tanto as descrições do mundo exterior quanto aquelas do pensamento das personagens. Elas são consideradas de algum modo como tendo a mesma substância. Ora, lembremo-nos que o imperfeito em uma narração encarrega-se da dimensão não-dinâmica. Tudo isso contribui para induzir a essa “visão de mundo” tão particular, onde a consciência se envisca nas coisas, e o tempo se dissolve na descrição ou na repetição. (Maingueneau, 1996: 122). Freixieiro (1977, p. 247) afirma, em relação ao capítulo “Fabiano”, de Vidas secas, que o discurso indireto livre, ali, é “mais ou menos interior, de acordo com a ausência ou presença de termos expressivos; dá-se isso, geralmente, com relação aos estados mentais da personagem”. Esse fenômeno que Freixieiro denomina de “estado mental” pode ser considerado como introspecção. Essa introspecção não ocorre somente no capítulo “Fabiano”, de Vidas secas, mas, também, em outros capítulos como “Cadeia” e “Contas”, em que a personagem é mais silenciada, como se percebe na seguinte citação retirada do capítulo “Cadeia”: Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. [...] ¾ Hum! Hum! Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir. (Ramos, 2002: 30). O discurso indireto livre, em Vidas secas, ocorre em maior proporção nos momentos em que Fabiano teme, por vários motivos, usar a linguagem. Nesse caso, sofre as agressões sem, contudo, defender-se. Os únicos sons que emite são, segundo o narrador, uns rosnados “Hum! Hum!”, mas, interiormente, ele questiona tal violência. Não fala, talvez, por medo de um castigo maior, por mais que considere a ação do soldado amarelo indevida, respeita a sua autoridade, como se percebe no capítulo “O RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 114 Soldado Amarelo”: “De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade.” (Ramos, 2002: 100). O fenômeno do silêncio pode ser observado nas obras, mediante o recurso do discurso indireto livre, principalmente quando as personagens sofrem qualquer forma de repressão. O silêncio surge como um todo significativo. Em alguns momentos, significa medo de falar, ou consciência de que não será ouvido, e, às vezes, indica resistência, como se percebe em Gaibéus quando o ceifeiro rebelde, ao levar Ti Maria do Rosário nos braços, quase morta pela febre e cansaço do trabalho, encontra no caminho o patrão: “Ouve cá!... Quando se fala comigo, quero esse chapéu fora da cabeça... O outro lhe mostrou a companheira [que estava em seus braços] e não deu palavra.” (Redol, 1976: 90). Não é a todo o momento que as personagens se calam. Depende de quem é o interlocutor e a condição de interação para que as personagens deixem de expor suas vontades para aceitar as do outro. Quando o silêncio significa resistência, ele incomoda o outro, pois “um indivíduo que permanece silencioso torna-se opaco ao outro; o silêncio de alguém inaugura uma série de possibilidades de interpretação desse silêncio”. (Sontag, 1987: 24). Em Gaibéus, as personagens podiam cantar enquanto trabalhavam na colheita do arroz, pois isso não atrapalhava o serviço, dava-lhes ânimo, porém, eram proibidas de executar aquilo que pudesse atrasar o trabalho. Não tinham o direito de parar um pouco para pedir água: “De soslaio, os olhos vão clamando, em silêncio, aos capatazes. Mas os capatazes espreitaram as horas nos relógios e entenderam que ainda não chegou a hora de lhes dar de beber” (Redol, 1976: 34). Quando bebiam água, paravam a ceifa, por isso o horário de bebê-la era determinado pelo capataz. As personagens, por sua vez, sabem a hora de calar, como ocorre com Fabiano, que para não perder o emprego teve de aceitar as contas feitas pelo patrão sem reclamar (Ramos, 2002: 93). Coutinho (1986: 406), ao se referir ao silêncio, em Vidas secas, considera que “Fabiano é a imagem da terra que pisa; é um ser ilhado pela incapacidade de verbalização dos próprios pensamentos”. É preciso considerar cada detalhe da argumentação de Coutinho. RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 115 É significativa a comparação ou a equiparação de Fabiano com a terra: “Fabiano é a imagem da terra que pisa”. A terra é pisada por todos quantos passam por ela. É, então, um suporte, uma estrutura que sustenta os seres, ainda que estes não tenham consciência, uma vez que ninguém, ou poucos talvez, pensem nessa função da terra e de sua importância. Assim é Fabiano, sua importância é ignorada, porém, na fazenda, é o suporte que a mantém bem cuidada e ainda garante os lucros ao patrão, que não se dá conta dessa importância, uma vez que a fazenda, antes de Fabiano chegar, estava abandonada, inutilizada. A terra serve, ainda, como receptora e, posteriormente, doadora, ofertando, muitas vezes, centenas de vezes mais do que se lhe deu, este é o conceito do plantio e da colheita. O patrão não queria Fabiano como vaqueiro em sua fazenda, mas devido a tanta insistência, acabou admitindo-o. Fabiano recebeu os apetrechos de vaqueiro e alguns animais para cuidar, os quais foram se multiplicando e o lucro indo todo para o bolso do patrão. A imagem da terra serve como estrutura, mas nada é revertido para ela, pelo contrário, a cada plantio enfraquece-se mais. Fabiano, cada vez que ia fazer os acertos de contas, sentia-se mais explorado, os juros aumentavam vez após vez: Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada! (Ramos, 2002: 95). Pelo fato de não ter para onde ir, é que Fabiano se calou, não por que não sabia verbalizar os próprios pensamentos. Percebe-se no discurso indireto livre que ele “baixava a crista”, não “protestava”, devido à sua falta de opção. Fabiano justificou, nesse episódio, que aceitara as contas do patrão porque não tinha recurso, discurso persuasivo, para se defender: “Muito bom uma criatura [...] ter recurso para se defender. Ele não tinha. Se tivesse não viveria naquele estado” (Ramos, 2002: 97-98). As ideologias que cooperam para o silenciamento das personagens vão se configurando como necessidade para encobrir as verdadeiras razões da exploração. Essas ideologias são difundidas pela classe exploradora e os indivíduos assimilam, progressivamente, como se fossem deles, como deixa claro Bakhtin (1992: 45): RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 116 O tema ideológico possui sempre um índice de valor social. Por certo, todos estes índices sociais de valor dos temas ideológicos chegam igualmente à consciência individual que, como sabemos, é toda ideologia. Aí eles se tornam, de certa forma, índices individuais de valor, na medida em que a consciência individual os absorve como sendo seus, mas sua fonte não se encontra na consciência individual. O índice de valor é por natureza interindividual. (grifo do autor). Pode-se considerar que o silêncio do autor constitui-se, também, como um fator ideológico, imposto pela classe dominante, porém, reutilizado pelo artista como contra-ideologia, pois significa que algo o impedia de falar. No entanto, o escritor busca mecanismos significativos para atuar, exercendo, ele e a literatura, seu papel social. Dessa forma, o silêncio é eloqüente porque comunica, é uma forma de discurso em que o artista deve criá-lo dialeticamente, podendo assumir vários sentidos, como esclarece Sontag (1987: 18), ao dizer que: O artista que cria o silêncio ou o vazio deve produzir algo dialético: um vácuo pleno, um vazio enriquecedor, um silêncio ressoante ou eloqüente. O silêncio continua a ser, de modo inelutável, uma forma de discurso (em muitos exemplos, de protesto ou acusação) e um elemento em um diálogo. (Sontag, 1987: 18). Os escritores souberam mostrar, ou conscientizar que, devido à ignorância em determinadas conjunturas econômicas, o trabalhador nem percebe que é explorado. Quando percebe, como ocorreu com Fabiano, ao mencionar as diferenças entre as contas da mulher e as do patrão, é ludibriado, e a culpa recai em um fator que parece estar acima da interferência humana. No caso de Fabiano, a culpa recaiu sobre os juros, cujas contas complexas deixavam o trabalhador ainda mais na ignorância, não de que era passado para trás, sobre isso ele tinha consciência, mas ignorância na compreensão dos cálculos dos juros. Porém, por medo de perder o emprego, acaba aceitando a exploração. Da mesma forma ocorreu com os gaibéus quando tiveram que parar a colheita por causa da chuva. O patrão, para aproveitar a mão de obra, oferece aos ceifeiros um trabalho na debulha do milho, como as personagens estavam chateadas porque não receberiam o salário do dia, a notícia foi recebida com aplausos, sendo que elas tinham o direito a receber o salário completo, pois não foi por culpa delas que o trabalho fora interrompido, porém, aceitaram essa ideologia como uma questão de justiça. Pelo que se pôde observar, no estudo dos dois romances, não é coincidência haver o silenciamento nas situações difíceis ou de repressão, nem é por acaso que tal RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 117 fator ocorre nas duas obras. O silêncio, por sua vez, não é apenas um fator social. Ele também desencadeia recursos estilísticos, pois quando ocorre entre as personagens, intensifica-se o discurso interior, cuja forma perfaz-se no discurso indireto livre. Quando não há razão para o silêncio, este é substituído pelo discurso direto, como ocorre no capítulo “Inverno”, de Vidas secas. Esse capítulo relata a temporada de chuva, fenômeno tão esperado pelas personagens. Nesse momento de contentamento, a narrativa mostra as personagens conversando uma com as outras, acontecimento raro em toda a narrativa, pois aparecem sempre caladas, conversam pouco entre si. O uso do discurso direto, diálogo entre a família de Fabiano, nesse capítulo “Inverno”, contrasta com o restante da obra, em que as personagens aparecem sempre caladas, ora devido à repressão provocada pela seca, ora pela exploração do patrão ou do soldado amarelo. Dentre as obras estudadas, a que termina com um traço menos negativo, em termos de possibilidade de superação da alienação e miséria, ainda que involuntariamente, é Vidas secas. Involuntária porque é a seca quem obriga as personagens a tomarem uma decisão. A decisão tomada foi a de se retirarem e se dirigirem para o litoral, ou em direção ao litoral, ainda que não cheguem lá. É esse aspecto que diferencia Vidas Secas de Gaibéus, pois não houve, sequer, no outro romance, possibilidade de resolução dos conflitos expostos no início da obra. Em relação a Gaibéus, Reis (1983: 509) considera que “do restrito tempo da ceifa não decorre, aparentemente, nenhuma transformação positiva, uma vez que os próprios projectos dos emigrantes em potência não foram capazes de colher a obscura mensagem enunciada pelo ceifeiro rebelde”. Apenas em Vidas secas ocorre a “possibilidade”, do que se poderia considerar, conforme um dos desígnios do materialismo histórico, a superação dialéctica dos conflitos, utilizando aqui uma definição usada por Reis (1983: 509). Fabiano, durante a caminhada, no último capítulo do livro, denominado “Fuga”, menciona um lugar onde poderá arrumar emprego e os meninos poderão estudar. A família parece ter a intenção de dirigir-se para a zona urbana. Nesse sentido, pensa em se afastar do isolamento e procura integração no meio social. Essa é uma “possibilidade” de que venha adquirir consciência de classe entre outros trabalhadores urbanos. Não se pode esquecer que é uma possibilidade, pois o romance terminou com o mesmo contexto inicial, com as personagens fugindo da seca. A obra não dá respostas, ela sugere um fato. RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 118 Em Gaibéus, inexiste essa possibilidade, apesar de os ceifeiros trabalharem em grupo, se comportam como pessoas individualizadas, uma vez que não se unem para reivindicar por melhores condições de trabalho e salário. Quando termina a colheita, vão embora mais desalentados do que quando chegaram: “Ficou-lhes a saúde. É isso que lhes falta para andarem leves, como os outros que vão lá à frente, junto à carreta, em procissão. Tudo foi dizimado pelas foices – tudo engolido pelas debulhadoras.” (Redol, 197: 65). O ceifeiro rebelde, o personagem mais consciente da exploração que os trabalhadores sofriam, poderia esclarecer-lhes muitas coisas que não enxergavam, caso fossem um grupo unido. Porém, ele não fala, porque sabe da individualidade do grupo: “Se o ceifeiro rebelde lhes dissesse da sua aversão, aversão depois lamento e logo confiança, saberiam compreendê-lo.” (Redol,1976: 111). Nas duas obras, há a temática da emigração. As personagens são retirantes, a diferença é que, em Gaibéus, retiram-se de suas terras temporariamente. As personagens deixam suas terras apenas para garantir o pão durante o inverno, após, retornam para seus lares: “o futuro deles não difere do passado” (Redol, 1976:166). Em Vidas secas, a obra inicia e termina com as personagens vivendo como retirantes. Quando a seca se anuncia, Fabiano e sua família deixam a terra onde estão, na esperança de outra que lhes dê alimento e também uma vida mais digna. As obras estudadas, apesar de abordarem aspectos sociais, não o fazem aos moldes de alguns romances da época, em que mesmo sob repressão fizeram denúncias contra o governo fascista. Os romances de Graciliano Ramos e Alves Redol não mostram a luta de classe, mas sim, a repressão sofrida passivamente pelos que estão na base social. Quando Graciliano publicou Vidas secas, Pereira (1992: 121-122) lamentou o fato de Graciliano tê-lo escrito tardiamente, pois os romances nordestinos já não empolgavam o leitor, como em seu início: Vidas secas, o último romance de Graciliano Ramos, só tem um fator contra si: ter aparecido um pouco tarde. Se tivesse sido escrito há alguns anos, se fosse do tempo do Quinze e da Bagaceira, teria levantado uma celeuma. Mas veio quando já o público está meio cansado de histórias do nordeste [...]. Isso não lhe altera naturalmente o valor intrínseco, mas lhe diminuirá a repercussão. (Pereira, 1992: 121-122). No entanto, Vidas secas prova, hoje, que Graciliano Ramos não escreveu mais uma história do Nordeste. É uma obra universal. E seus aspectos intrínsecos e RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 119 extrínsecos diferem dos romances nordestinos. Segundo Pereira, Vidas secas é uma obra que não envelhece. Os escritores dessas obras, devido à censura, tiveram que se calar, sujeitarse à imposição de não poder resistir, ainda que pela arte literária. Ao invés de Graciliano e Redol criarem, na literatura, uma ideologia de resistência explícita, mostrando a luta de classes e, por fim, a consciência do proletário, mostraram o que a ausência de consciência de classe estava provocando: a passividade imposta. Pode-se considerar, no entanto, que mesmo os escritores tendo criado personagens passivas, demonstra-se uma forma de resistência, que não chamou a atenção da censura. Talvez esses escritores não tenham atentado para isso, mas por certo, opuseram à censura e, conseqüentemente, à repressão. Nas duas obras, quando se intensificam os problemas, repressões, angústias e calamidades naturais, as personagens ficam mais silenciadas. Em Gaibéus, assim que as personagens chegaram à Lezíria, para a colheita, cantavam enquanto trabalhavam, aos poucos, com o cansaço, vão se calando. Quando acaba a colheita e vêem que pouco lucraram, o silêncio é quase completo: “Tirou o saco para fora e foi passando as moedas nos dedos – decorara-as de tanto as contar. Setenta e oito e oitocentos. Bem pouco para uma ceifa – o resto ficara para o Agostinho Serra.” (Redol, 1976:164). Na volta dos ceifeiros para casa, tamanho era o cansaço e a decepção pelo muito que trabalharam e pelo pouco que rendeu a ceifa, que ninguém falava (Redol, 1976: 166). Uma das diferenças entre Gaibéus e Vidas secas ocorre em relação à opressão advinda das calamidades ambientais. Enquanto em Vidas secas o problema é a seca, a escassez de chuva, em Gaibéus é a chuva que traz angústia aos trabalhadores. Assim, a temática da água está presente nas duas obras como um dos motivos desencadeadores do silenciamento. A chuva adquire representação de personagem, pois desencadeia o desenrolar dos conflitos, e serve como mecanismo ideológico da classe dominante para controlar a exploração das personagens. Nos dois romances, tanto a abundância como a falta da chuva provocam o desemprego. Em Vidas secas, apesar dos perigos que ela poderia causar, é esperada como uma dádiva dos céus, pois representava a possibilidade da permanência na terra, mesmo que fosse por pouco tempo. Em Gaibéus, as chuvas RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 120 representam o medo de perder a jorna, o salário do dia, e é temida quando os trabalhadores estão na colheita: Lá em cima, no céu, o Sol fazia ventas. E os homens olhavam-no a querer adivinhar-lhe os propósitos. ¾ Eh, Manel!, que tal? ... ¾ Isto dá borrifada, pelo menos. Não estou a gostar nada de as ver assim a enrolarem-se. Nuvens prò norte, chuvas prà porta. E os rostos ficaram num charco de angústia. (Redol, 1976: 53). Percebeu-se que nas obras destacam-se os três tipos de silêncio, o fundador, existente em todo discurso, como aquilo que sem ser dito significa; a política do silêncio, com seus dois desdobramentos, o silêncio constitutivo, em que a personagem usa um discurso diferente do que realmente queria usar para não ser prejudicada. E o outro, o silêncio local, representado pela censura, em que o autor é obrigado a silenciar. No entanto, Graciliano e Redol, aproveitaram esse recurso e fizeram com que revelasse as várias formas de repressão, por isso não se pode “ler” o silenciamento por apenas um fator, como o lingüístico, mas sim, por vários fatores como a exploração da força de trabalho, os problemas climáticos, entre outros, os quais foram aproveitados pelo sistema repressor para deles se beneficiar. As personagens retratadas nas duas obras são seres à margem da margem, são os excluídos da própria classe excluída. Os gaibéus são considerados inferiores a outros trabalhadores de sua mesma categoria, os rabezanos, por não terem serviço na própria terra. Fabiano, de Vidas secas, vê-se, também, à margem em relação às pessoas da vila, que se encontram na sua mesma condição, pobres e sofredores pelo castigo da seca. Até mesmo o fator climático colabora para aumentar a exclusão, uma vez que a seca constitui-se um promulgador, ou um fator que beneficia os dominadores. Em Vidas secas a seca auxilia a classe dominadora na submissão da camada pobre. Nos dois romances há um retorno, no final das narrativas, à situação inicial da obra. Em se tratando de romances neo-realistas, que buscaram as temáticas na realidade da época, é um aspecto que chama a atenção, podendo indicar o que estava ocorrendo no plano factual. Com a prolongada duração da ditadura, a história vivia um momento em que a repressão não era superada. Falava-se em progresso e modernidade, mas a sociedade vivia sob uma rígida repressão e muitos ainda passavam fome. O desfecho dos romances remete ao cíclico. Em Vidas secas, o final da narrativa faz pressupor que será iniciada uma nova e necessária retirada, fugindo as RESENDE, Kellen Millene Camargos e RAMOS, Marilúcia Mendes. As formas do silêncio na Literatura brasileira e portuguesa: Vidas secas e Gaibéus. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 121 personagens da seca implacável. Em Gaibéus, o pagamento não foi suficiente para mantê-los no temido inverno que estava chegando, levando o leitor a deduzir que o ciclo, que se inicia novamente, será ainda mais duro que aquele que acabaramm de vencer. Os desfechos, igualmente, remetem à idéia de espiral, conforme define Barthes (198), “[a] espiral regulamenta a dialética do antigo e do novo; graças a ela, não somos obrigados a pensar: tudo está dito, ou: nada foi dito, nada é primeiro, no entanto, tudo é novo”. Apesar da história dessas personagens não mudar, se repetir sempre, algo de novo, não necessariamente melhor, uma nova aprendizagem, pode ser acrescentada. Silenciosamente. NOTAS 1 Entende-se por diegese, segundo a explicação de D’Onofrio (1999, p. 63), a história, a fábula, o conjunto dos acontecimentos presentes no texto literário. 2 Ao se referir à tipologia do narrador, nos romances Vidas secas e Gaibéus, será levada em consideração a teoria narratológica de Norman Friedman (1967). Nas duas obras o narrador é onisciente, ou seja, conhece o que se passa no íntimo das personagens. Há, contudo, alternâncias no foco narrativo, variando entre narrador onisciente intruso, em que há interrupção da narrativa para manifestação das opiniões do narrador, e a onisciência neutra, em que o narrador conhece o que se passa na mente das personagens, mas procura ser imparcial. 3 Em Análise do Discurso, são denominadas de pessoas o “eu” (pessoa que fala), e o “tu” (pessoa com quem se fala), e como não-pessoa há o “ele” (aquele sobre quem o eu e o tu falam). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. Título original: L’obvie et l’obtus – essais critiques III. CARVALHO, Alfredo Leme C. de. Foco narrativo e fluxo da consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981. (Manuais de estudo). COUTINHO, Afrânio. 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Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 105-124, Dez. 2008 / Jun. 2009. 122 MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário. Tradução de Maria Augusta Bastos de Matos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Leitura e Crítica). Título original: Ëléments de linguistique pour lê texte littéraire. MEDEIROS, Luiz Alves. Fabiano desconstruído. 1996. 156 f. Dissertação (Mestrado em Letras)–Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1996. ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 1992. PEREIRA, Lucia Miguel. A leitora e seus personagens. Rio de Janeiro: Graphia, 1992. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 85. ed. Rio, São Paulo: Record, 2002. REDOL, Alves. Gaibéus. Lisboa: Publicações Europa América, 1976. REIS, Carlos. O discurso ideológico do neo-realismo português. Coimbra: Almedina, 1983. SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos. Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: companhia das Letras, 1987. 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Conclui-se que se faz necessário compreender a lógica do sistema capitalista, seus interesses e tendências, para a partir disto a procura de uma identidade que tenha valor e significação social ao invés de permitir que o capital se aproprie desse “saber-fazer”. Se a educação é para todos é preciso reverter o percurso da exclusão, iniciando com a formação do professor, dando-lhes condições de serem ensinantes e aprendizes diante da diversidade do aluno. This article argues about the politics of teacher formation and the challenges faced in this profession/work. It tries to perceive the contradictions of the concepts of exclusion/inclusion inside of a context of productive reorganization, globalization and neoliberal politics. It was concluded that is necessary to understand the logic of the capitalist system, it’s interests and tendencies to from this search for a “identity” that has value and social signification instead of allow the capital to appropriate or this “know-how”. If the education is for everybody, is necessary to revert the path of the exclusion, beginning with the formation of the teacher, giving them conditions of being teachers and apprentices ahead the diversity of the student. Palavras-chave: Key-words: Formação docente, exclusão, inclusão, reestruturação produtiva Teacher formation, exclusion, inclusion, productive reorganization Este estudo surge da necessidade de discutir as atuais políticas de formação docente. O fio condutor será a busca de uma reflexão sobre os desafios enfrentados pelos docentes frente à proposta, de declarações e diretrizes políticas de educação inclusiva, no processo de reestruturação produtiva, dos sistemas social econômico e educativo. Portanto, busca-se compreender como poderia ser construída a identidade1 dos professores nesse contexto. Muitas são as dúvidas e as questões que nos incomodam: quem é o trabalhador/professor em tempos de políticas neoliberais? Qual a qualidade da formação inicial e continuada oferecida a este profissional? Será que o trabalho do professor é tido como atividade regular e sem interrupções, carente de satisfações intrínsecas, ou é tido ∗ Mestre em Educação pela Universidade Federal De Goiás e professora da Universidade Estadual De Goiás-Unidade Universitária de Inhumas. SILVA, Yara Fonseca Oliveira. No contexto da reestruturação produtiva: o trabalho e a formação profissional do docente frente à educação inclusiva. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 126138, Dez. 2008 / Jun. 2009. 125 como atividade exercida com o máximo tempo para se obter o maior ganho possível? Será que, por estarmos vivendo em uma cultura que busca satisfações somente no campo do consumo, a educação também estará envolvida neste processo consumista? Esta formação possibilita ao docente lidar adequadamente com questões conseqüentes da reestruturação produtiva, como, por exemplo, a exclusão ou inclusão? A sociedade da última década do século XX foi alvo de grandes transformações. Designada por alguns estudiosos como sociedade do conhecimento, por outros como a sociedade em rede, para Rifkin (2001) esta sociedade presenciou a economia no ciberespaço, o capitalismo cultural, em que os relacionamentos e as experiências se transformam em commodities2 e o novo produto é o conhecimento, ao qual só alguns têm acesso, através da rede. Parte da humanidade embarca rumo à “era do acesso”. Acessar, segundo Rifkin (2001:12): Diz respeito a distinções e divisões, sobre quem deverá ser incluído e quem será excluído. Acessar está se tornando uma ferramenta conceitual potente para se repensar nossa visão de mundo, bem como nossa visão econômica, tornando-se a metáfora mais poderosa da próxima era. Diante do contexto atual, deve-se buscar perceber as características e as exigências do trabalho e da formação do professor e o lugar dessa educação na vida das pessoas de direitos e/ou necessidades especiais3. Para isto, faz-se necessário historicizar este processo, buscando compreender o caminho que a humanidade trabalhadora perfaz nas mudanças sócio-estruturais. Conceituar “inclusão” é necessário antes falar de “exclusão”. Ao se analisar o processo histórico, nota-se que a exclusão se faz presente ao longo de todo ele. Rever os diversos modos de produção mostra a existência da dicotomia entre incluídos e excluídos, de uma forma ou outra, a começar pela escravidão; é só observar o domínio do senhor sobre o escravo, sendo dono de sua própria vida, fazendo com que o escravo se visse excluído da expressão maior da existência humana, que é a liberdade. No decorrer do tempo histórico, nota-se a suavização da exploração das classes, sendo a escravidão gradualmente substituída pela servidão durante a Idade Média na Europa Ocidental. Esta suavização manifesta-se na perda do poder dos senhores sobre a vida dos seus servos, mas a opressão continuava a ocorrer e os servos continuam excluídos de diversos direitos, pois tinham de se submeter às regras dos senhores e garantir a produção de excedentes para os senhores feudais. PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 126 Com o surgimento e o desenvolvimento da burguesia, floresce um novo modo de produção, o capitalismo. Neste contexto os servos libertos têm apenas sua força de trabalho para vender no mercado; e a burguesia compra essa força, pois ela é a única que produz mais valor do que ela contém. O valor a mais produzido pelo trabalhador é trabalho não pago, apropriado pelo capitalista. A exploração continua e cresce na mesma proporção a exclusão. A exclusão começa a ficar patente no discurso de competência do liberalismo4, no qual o Estado deveria deixar de ter uma ação intervencionista, para que o mercado se auto-regulasse e, assim, os mais capazes sobreviveriam e se tornariam vencedores. Mas, com as crises de super produção do início do século XX, houve um certo desencanto com o liberalismo e começaram a surgir os Estados intervencionistas, fossem eles totalitários ou democráticos, com a proposta de determinar os parâmetros da economia, direcionando-a e controlando-a. É importante destacar a “Teoria do Bem-Estar Social”, de Keynes5, a qual serviu de base à política econômica entre as Guerras Mundiais, no período de 1945 a 1973. De acordo com Moggridge (1976), Keynes encarou os problemas de seu tempo e envolveu-se nos problemas de finanças da guerra, organizando um serviço de auxílio à reconstrução da Europa pós-guerra. Keynes analisou a economia como um ramo da lógica, a qual deveria ser vista como uma arte que pensasse nos valores morais e éticos. Propunha ainda uma administração consciente, na qual o planejamento era necessário; portanto, era contrário à economia com base nas práticas do laisser faire e da livre competição, conforme demonstra em poucas palavras. Trata-se de saber se estamos preparados para deixar o estado do laisse faire do séc. XIX a fim de ingressar numa era de socialismo liberal; por socialismo liberal entendo um sistema em que podemos agir como uma comunidade organizada para propósitos comuns e promover a justiça social e econômica, ao mesmo tempo que respeitamos e protegemos o indivíduo – sua liberdade de escolha, sua fé, sua mente e a expressão dela, seu empreendimento e sua propriedade (Keynes, 1976: 06). Keynes buscou entender os processos que causaram a depressão a partir da crise de 1929, em sua análise, recomendava ao governo o aumento de seus gastos. Desenvolveu um método para atingir o pleno emprego estabelecendo uma política econômica na qual o Estado é responsável pela promoção do “bem-estar social”. PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 127 Vale ressaltar uma das diferenças entre a proposta de Keynes e a de Marx para se chegar ao pleno emprego; Keynes aceita a lógica interna do sistema capitalista, em que as medidas gerais favoráveis ao consumo popular podem aumentar as vendas e a produção de bens de consumo, o que leva os donos do capital a aumentarem o investimento produtivo e ao mesmo tempo, aumentarem as taxas de lucro, do contrário de Marx, que diz não ser necessário aceitar essa lógica, sendo necessário criar um outro sistema econômico, com diferente relação de produção e eliminar o poder de Estado burguês. Este modelo intervencionista é tido por muitos como esgotado, tendo sido substituído por um outro modelo, o liberalismo, que ressurge em uma nova roupagem a partir da década de 1980, sendo chamado de neoliberalismo de mercado. Segundo Oliveira esta é a “denominação de uma corrente doutrinária do liberalismo que se opõe ao social-liberalismo (...) preconizando a minimização do Estado, a economia com plena liberação das forças de mercado e a liberdade da iniciativa econômica.”(Oliveira, 2003: 97) No entanto, para Harvey (2001), a forma de trabalho de Keynes/Ford trouxe insatisfações por não beneficiar a todos, promovendo desigualdades sociais, fortes movimentos de excluídos, e mais uma vez fica clara a exclusão dos desprivilegiados. A aguda recessão de 1973, que trouxe novas experiências nos domínios da organização industrial, social e política, possibilitou os primeiros ímpetos para a passagem do regime keynesiano para a acumulação flexível6, também uma forma de capitalismo, na qual a palavra chave é “desregulamentação”. Afirma ainda Harvey que o keynesianismo, aliado ao fordismo7, ainda é percebido no novo contexto de acumulação flexível, entendendo que o novo traz em si o “velho”. Harvey diz ainda estar testemunhando uma transição histórica, ainda longe de completar-se, e elenca como conseqüências da acumulação flexível o individualismo mais competitivo, uma distribuição de renda que beneficia a maioria já privilegiada; o uso de computadores e das comunicações eletrônicas, que acentuam a significação da coordenação instantânea de fluxos financeiros; o aumento da produção do setor informal, enfim, um modo de produção que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais. Acrescenta ainda que a atual conjuntura caracterizase por uma combinação altamente eficiente em alguns setores e regiões e de sistemas de PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 128 produção mais tradicionais, que implicam mecanismos bem distintos de controle de trabalho. Enfim, é possível entender que o intervencionismo ocorreu devido ao interesse da elite de ver alguém colocar “ordem na casa”, mas, depois de reestabelecida a ordem econômica e social, desaparece a necessidade de intervenção estatal. Daí a doutrina do Estado Mínimo apregoada pelos neoliberais, ou seja, como afirma Hayek (1990: 88): “O Estado deve limitar-se a estabelecer normas aplicáveis a situações gerais deixando os indivíduos livres em tudo que depende das circunstâncias de tempo e de lugar, porque só os indivíduos poderão conhecer plenamente as circunstâncias em cada caso e a elas adaptar suas ações”. Hayek propõe em sua doutrina liberal uma sociedade individualista, que busca a liberdade da livre concorrência, considerando a concorrência um método superior, que pode ajustar suas atividades sem a intervenção coercitiva da autoridade. Todos devem ter liberdade para vender e comprar e o acesso às diferentes ocupações deve ser franqueado a todos. O que é perceptível neste estudo do contexto de reestruturação produtiva é que a ideologia neoliberal favorece a exclusão social e o neoliberalismo surge, para restabelecer a hegemonia burguesa no quadro desta nova configuração do capitalismo, como alternativa histórica à crise do fordismo, no qual a lei natural prevalece como sendo a justa. No modo de produção vigente, o indivíduo sofre efeito que não é percebido de maneira tão intensa como nos modos de produção anteriores, que é a alienação, pois ele nem mesmo se dá conta da exclusão a que é submetido, ao passo que o escravo e o servo estavam conscientes de sua submissão, mesmo que muitas vezes se apegassem a desculpas existenciais. Já o indivíduo do capitalismo não percebe a complexidade das relações que o cercam. Para estudar as mudanças neste contexto, é preciso então refletir sobre esse processo de globalização/mundialização como dinamizador desta valoração, quiçá equivocada, do conhecimento como produto econômico e de sua transmissão também submetida a um mercado. A globalização surge com propostas atraentes em sua idealização, como o acesso de países em desenvolvimento a novos mercados, conhecimentos, tecnologias, culturas, etc. Porém, acaba agravando ainda mais as desigualdades sociais e econômicas e propondo uma homogeneização cultural nos moldes norte-americanos. Para Stiglitz (2002: 32), PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 129 A distancia cada vez maior entre os que têm e os que não têm vem deixando um numero bastante grande de pessoas no Terceiro Mundo num estado lamentável de miséria (...) apesar das repetidas promessas de redução dos índices de pobreza feitas durante a ultima década do séc XX, o numero dos que vivem na miséria efetivamente aumentou, e muito. Isso ocorreu ao mesmo tempo que a renda total do mundo elevou-se, em média, 2,5 por cento ao ano. Chesnais (1996: 260) mostra que os estados nacionais foram obrigados a se filiar a políticas amplas, com um primeiro enfoque financeiro de desregulamentação, e perderam o controle de seus mercados. Nas palavras do autor: Todo Estado que não pretenda denunciar essas práticas, nem colocar sob a acusação a política dos EUA, mas que também queira colocar seus bônus do Tesouro é obrigado a se alinhar às práticas americanas.(...) O mesmo vale para a desregulamentação. (...) todo estado que não esteja disposto a abrir um confronto direto com os ninhos de capital monetário concentrado de seu país (bancos, grandes companhias de seguro), é obrigado a acompanhar, ou até a antecipar-se aos demais. A desregulamentação, que começa pelo mercado financeiro, é parte da ideologia do livre mercado, que também pressupõe uma liberdade irrestrita do poder econômico e a prospecção de novos negócios. Ocorre uma mercantilização também irrestrita de setores absolutamente humanos e talvez desinteressantes para a preservação cultural da maioria dos países. Dentre estes setores, está a educação. Como afirma Apple (2003: 24), “ver a educação como parte de um mecanismo de troca de mercado torna aspectos cruciais literalmente invisíveis, impedindo a crítica antes mesmo que ela comece”. O Brasil insere-se neste contexto como uma figura periférica, recebendo diretrizes da Agenda Internacional, não sendo de estranhar a adoção de políticas neoliberais pelo país, quase como uma imposição do FMI - Fundo Monetário Internacional - e do BM – Banco Mundial -, e a educação tem de se adaptar aos moldes da política adotada, daí a necessidade das reformas educacionais que vêm ocorrendo nos últimos anos em vários países, e uma das novas adaptações é o processo de educação inclusiva / ensino especial. Ainda segundo Apple (2003), “a mão invisível do mercado”, sendo o mercado forte e o Estado fraco, seleciona as escolas e essas selecionam seus alunos – como num ranking –, tornando o resultado comercial mais importante do que o educacional. É nesse contexto que se encontra o processo de implantação e de adaptação de educação inclusiva – grifo nosso -, ficando claro que os alunos com necessidades PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 130 especiais são dispendiosos e diminuem os resultados de classificação e de competição da escola que freqüenta. É importante ressaltar que, em relação à educação especial, constata-se, grosso modo, um padrão semelhante de evolução, que vem sendo seguido na maioria dos países. Primeiramente caracterizado pela segregação e pela exclusão, a “clientela” é simplesmente ignorada, evitada, abandonada ou encarcerada, quando não exterminada. Num segundo momento, há uma modificação no olhar sobre a referida “clientela”, que passa a ser percebida como possuidora de certas capacidades, ainda que limitadas, como, por exemplo, a de aprendizagem. Atualmente, pode-se dizer que existe uma discussão mais ampla sobre inclusão, fundamentada na movimentação histórica decorrente das lutas pelos direitos humanos, não mais se constituindo numa novidade, se se levar em consideração que tais princípios já vêm sendo veiculados em forma de declarações e diretrizes políticas pelo menos desde 1948, quando da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Com essa Declaração, grandes perspectivas surgem em torno do excepcional, visto que estavam assegurados os direitos de igualdade, liberdade e fraternidade. Porém, o movimento pela inclusão torna-se significativo através de dois eventos e documentos mundialmente reconhecidos, lançados a partir de 1990: A Conferência Mundial sobre Educação para Todos, provendo serviços às necessidades básicas de educação, ocorrida em Jomtiem, Tailândia, em 1990, e a Conferência Mundial sobre Educação Especial – acesso e qualidade, em Salamanca, Espanha, em 1994. A partir dos dispositivos legais a educação fica em evidência e entende-se que a pobreza do mundo se dá, nos dias atuais, pela falta de conhecimentos.Assim, é dada a possibilidade de todo cidadão ser consciente de seus direitos e deveres. Cresce a necessidade de programas educacionais flexíveis, que atendam à diversidade do alunado, incluindo a pessoa com necessidades educativas especiais8. Quanto às leis brasileiras, destaca-se a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN 9.394/96, a qual reserva um capítulo exclusivo para a educação especial no conjunto das políticas públicas brasileiras, propondo-se uma educação baseada na integração9 e não de uma educação inclusiva10, porém a sociedade civil clama por inclusão, pois já não é mais suportável conviver com os estigmas da exclusão em nossa sociedade. Destaca-se ainda a pouca importância dadas pelas leis anteriores 4.024/61 e 5.692/71, para essa modalidade educacional. PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 131 O Estado de Goiás11 encontra-se desde 1999, através da Secretaria de Educação do Estado Goiás, via Superintendência de Ensino Especial, com a proposta de efetivação da educação inclusiva, em atendimento aos novos paradigmas educacionais, a partir da Lei de Diretrizes e Bases do Sistema Educativo Goiano, lei n. 26/98, que considera a aproximação dos pressupostos e das práticas sociais da educação para todos. Na busca de uma educação com qualidade e eqüidade para todos, na qual os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, a escola deve se organizar para o atendimento com qualidade. Barros (2001), ao definir educação especial como “modalidade de educação escolar” (art. 80 da Lei n.° 26/98 e art 58, LDBEN), considera-a um avanço, pela concepção inclusiva que ela representa. “Ser parte é diferente de ser à parte; portanto, não discrimina ou marginaliza.”. O ponto central deste artigo é refletir a formação de professores neste contexto que, por um lado, prima pela igualdade de valores entre os seres humanos e, como tal, pela garantia da igualdade de direitos entre eles e, por outro, já não mais comporta a existência da ignorância, exclui o ser humano de um ritmo de produção cada vez mais vital à crescente competitividade, por lhes dificultar o exercício pleno de um de seus deveres como cidadão: o de trabalhador produtivo e, conseqüentemente, o de contribuinte. Cabe ao professor um papel fundamental neste processo, pois a escola inclusiva propõe a mudança do papel tradicional para uma nova identidade profissional, que seja capaz de tomar iniciativas que favoreçam a plena escolarização de todos os alunos, conhecendo seus alunos, suas possibilidades e limitações. Suas responsabilidades crescem diante desta realidade, necessitando que ele tenha informações apropriadas a respeito das dificuldades da criança, dos seus processos de aprendizagem, do seu desenvolvimento social e individual. E ainda, deverá entender a necessidade de ir além dos limites que as crianças se colocam, no sentido de levá-las a alcançar o máximo da sua potencialidade. Os professores devem tornar-se mais próximos dos alunos, na captação das suas maiores dificuldades. O suporte aos professores das classes baixas é essencial para o bom andamento do processo de ensinoaprendizagem. O que se constata é a falta de informação e de formação12 desses profissionais sobre as diferentes deficiências – suas causas, conseqüências, recursos e PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 132 alternativas; é notória a teoria distante da prática, pois é percebida através da pesquisa empírica, os professores estão recebendo os alunos de necessidades especiais de forma “receiosa” e, na maioria das vezes, buscam justificar essas condições como uma questão humana e, portanto, devem ser solidários. As crianças com necessidades especiais estão “incluídas” na escola ou estão ainda mais sendo excluídas do processo educativo? Será que por detrás dessa proposta de inclusão há um desinteresse ou desobrigação das forças governamentais para com esses indivíduos? Ou ainda, será que a proposta de inclusão nesse momento de acesso tem o interesse de conseguir mais alguns consumidores para o mercado? Neste processo histórico, o profissional da educação está desqualificado, a educação virou um produto vendável, sala de aula virou mercadoria, o capital se apropria desse “saber fazer”. A reorganização racionaliza custos e gastos, pois a própria sala de aula se transforma no lugar de formação do professor, tendo por base a filosofia da promessa continuada de preparação do professor e de melhorias. A desigualdade é reconhecida como a possibilidade desejável de levar as pessoas a competir entre si no mercado Se a educação é para todos, se visa a reverter o percurso da exclusão, se deve criar condições, estruturas e espaços para uma diversidade de educandos, a escola só poderá se tornar inclusiva quando conseguir transformar não apenas a rede física, mas, inicialmente, a formação do professorado, dando-lhes condições para serem agentes de transformações da realidade em que estão inseridos, ou sejam, capazes de serem ensinantes e aprendizes diante da diversidade do alunado. As atitudes e as mentalidades dos educadores e da comunidade escolar em geral devem se voltar para aprender a lidar com o heterogêneo e conviver naturalmente com as diferenças. Respeitar e lutar pelo princípio da escola inclusiva, que é o de que todas as crianças deveriam aprender juntas, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que possam ter, são essenciais à dignidade humana, ao gozo e do exercício dos direitos humanos, porém é preciso desvelar esses conceitos a partir da realidade social brasileira. Não há ainda no Brasil o acúmulo de capital suficiente para efetuar essa inclusão; as novas tecnologias pedem um sujeito competente; é preciso deixar de fazer uso do trabalho manual para usar a nossa intelectualidade; a desigualdade de renda e riqueza é talvez a causa mais importante dos grandes males políticos, econômicos, sociais, éticos e culturais que assolam o país. O Brasil é campeão mundial de concentração de renda13 e pentacampeão de concentração de riqueza. PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 133 As medidas alternativas para tirar o Brasil da atual trajetória de instabilidade e crise exigem a ruptura das atuais estruturas de concentração de renda e riqueza, as soluções para os nossos problemas passam por uma distribuição significativa de renda e de riqueza. Para superar esse modelo econômico vigente os estudos de Bordieu (19302002) acredita ser possível organizar um movimento social que se una ao sindicalismo renovado e consciente. Diante deste estudo, é importante frisar que há nesse contexto de reestruturação produtiva uma sociedade dualizada, dividida em perdedores e ganhadores, que busca explicações ideológicas para justificar tal situação e leva as maiorias a acatarem e a aceitarem as injustiças sociais como algo comum, normal e de responsabilidade individual. A nova ordem cultural se preocupa com a eqüidade social e não mais com a justiça social. Essa forma de justificativa é complexa e tem por fundamento uma nova explicação, pretendendo formar um senso comum que acredite que as injustiças sociais são criadas pelos próprios indivíduos, que não se esforçam, são incompetentes e se auto-excluem das benécias do sistema. E agora José?A festa está só começando... É nesse contexto que o neoliberalismo se confirma como um novo darwinismo social, no qual os mais fortes, os mais aptos, mais competentes, os ganhadores, serão os integrados/incluídos; os demais, por sua própria responsabilidade, se auto-excluirão. Necessário se faz perceber no capitalismo a acumulação de capital, que sempre implicou uma tendência generalizada e crescente à mercantilização de todas as coisas. Para Gentili (1995), significa dizer que essa expansão do universo mercantil causa impacto não apenas na realidade das coisas materiais, mas também na materialidade da consciência. É assim que os indivíduos, na medida que introjetam os valores e as relações mercantis como padrão dominante de interpretação dos mundos possíveis, aceitam, confiam no mercado como o âmbito em que “naturalmente” podem e devem desenvolver-se como pessoas humanas. O professor precisa atingir um nível de consciência e de prática política que contemple sua articulação com os interesses de seus alunos é preciso uma formação com qualidade, que contemple a possibilidade de, em sua construção de identidade, buscar o valor e a significação social do seu trabalho; que articule o conhecimento com o poder que esse tem para a produção da vida material e social. Para assim pensar no trabalho do professor, é preciso pensar o conceito de trabalho de forma mais geral. Para PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 134 Marx, o trabalho é uma característica essencialmente humana; é o que o diferencia de outros animais, o homem necessita, então, produzir, e a partir de sua produção modificar o seu meio, com isso se tornar um ser histórico. Visto por esse prisma, o trabalho do docente deve se realizar na sala de aula, numa relação de ensinante e aprendiz; o aluno não é apenas o consumidor do produto, mas sujeito ativo e histórico do seu processo educativo de trabalho. Essa atividade é inconclusa, mas entender a formação do professor frente à dimensão dos conceitos de “inclusão e exclusão”, tão badalados nos discursos educacionais, é buscar antes de tudo compreender a lógica do sistema capitalista, seus interesses e suas tendências e, a partir daí, buscar uma formação consciente e crítica desse profissional, na ânsia de concretizar as mudanças de atitude do professor. NOTAS 1 Identidade não é um dado imutável.Nem externo, que possa ser adquirido. Mas é um processo de construção do sujeito historicamente situado. A profissão de professor, como as demais, emerge em dado contexto e momento históricos, como resposta a necessidades que estão postas pelas sociedades, adquirindo estatuto de legalidade. ( Pimenta, 1999, p.18) 2 Commodity é um anglicismo para mercadorias homogêneas com mercados muito líquidos, tais como café, ferro, soja e outros. (Rifkin, 2001, p. 6) 3 Necessidades Educacionais Especiais, aquelas relacionadas às aprendizagens que requerem uma dinâmica própria na relação ensinar-aprender em decorrência das características particulares do aluno, bem como, da ausência do conhecimento institucional de suas possibilidades e limites em desenvolver uma prática pedagógica a contento (Declaração de Salamanca, 1994). 4 Liberalismo, enquanto termo político, significa adquirir ou preservar algum grau de liberdade dentro do controle exercido pelo Estado. No campo teórico, os liberais receberam influencia de John Locke, o qual acreditava num estado e numa lei naturais, de acordo com os quais se reconhecesse que ninguém deve prejudicar o outro em sua saúde, vida, liberdade e posses. 5 John Maynard Keynes, economista britânico, filósofo, bibliófilo, social liberal, é autor da Teoria Keynesiana também chamada de Estado do Bem Estar Social - Welfare State. 6 Acumulação flexível caracteriza-se pela flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo, pelo surgimento de novos setores de produção, de inovações tecnológicas, comerciais e organizacionais, desenvolvimento desigual das regiões subdesenvolvidas, desemprego, subemprego, terceirização, prestação de serviço, desvalorização dos sindicatos. (Harvey, 2001) 7 Fordismo : marco simbólico em 1914, quando Henry Ford introduziu seu dia de oito horas e cinco dólares como recompensa para os trabalhadores da linha automática de montagem de carros. O Fordismo aprimorou os princípios da administração científica de Taylor. 8 De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases do Sistema Educativo Goiano de 26/98, em seu artigo 80 paragrafo 2º “por educandos com necessidades especiais entendem-se todas as crianças, jovens e adultos, cujas necessidades decorrem de suas características peculiares ou de suas dificuldades de aprendizagem permanentes ou transitórias”. 9 Integração escolar é uma forma de inserção proposta pela escola, onde essa recebe alunos com deficiência desde que os mesmos sejam capazes de acompanhar a escola comum existente nos modos tradicionais. Para Sassaki, (1999. p.32 ) houve um avanço significativo nessa proposta com o desenvolvimento do princípio de mainstreaming, termo na maioria das PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 135 vezes sem tradução e significa levar os alunos o máximo possível para os serviços educacionais disponíveis na corrente principal da comunidade. 10 Educação inclusiva é o processo de se educar tanto os ditos normais como as pessoas de necessidades e/ou direitos especiais, com o fim de utilizar todos os recursos disponíveis, especialmente os recursos humanos, para promover a participação e a aprendizagem de todos os alunos, no seio de uma comunidade local. Para Mantoam (1997) a inclusão causa uma mudança de perspectiva educacional, pois não se limita a ajudar somente os alunos que apresentam dificuldades na escola, mas apóia a todos: professores, alunos, pessoal administrativo, para que obtenham sucesso na corrente educativa geral. 11 LDBEN 9.394/96, em seu Artigo 4º define como dever do Estado “atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino” (inciso III). 12 Apesar da ênfase que o governo vêm dando à formação de professores, como é o caso dos cursos emergenciais, licenciaturas parceladas de fins de semana, cursos que contam com recursos humanos e materiais insuficientes, nota-se um vazio e uma dificuldade de melhoria na qualidade da educação. 13 A renda média das elites brasileiras é 25 vezes maior que do que a renda média do restante da população e a riqueza média das elites é 110 vezes maior que a riqueza média do restante da população brasileira. Ver o nome do autor desse dado é do livro o desmonte da nação.(Gonçalves, 1999, p. 45-46.) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPLE, Michael W. Educando à Direita: Mercados, Padrões, Deus e Desigualdade. Tradução Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2003. p.303. ARRIGHI, Giovanni, O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro/São Paulo: Contraponto/ UNESP, 1996, p.1-26. BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEd.. 2001, p.61 BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Diretrizes Nacionais para Educação Especial. Brasília-DF, 1997. BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: JC Editora, 1987, p. 15-212. CHESMAIS, François. A mundialização do capital. Trad. Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 1996, p.181. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Tradução por: Edilson Alkmim Cunha. 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EMPADÃO GOIANO: EXPRESSÃO DE PRÁTICAS FESTIVAS E ECOLÓGICAS Gláucia Péclat∗ Resumo: O presente trabalho pretende analisar as práticas e concepções dos vilaboenses com relação aos significados do empadão dentro do contexto de festas sociais e religiosas. E, por último, contextualizar o conceito de “tradição” dentro da perspectiva mudança/continuidade acordada entre os próprios habitantes da região. A partir dos dados etnográficos e pesquisa bibliográfica, procurou-se acompanhar a relação entre os sujeitos da comunidade em questão e o empadão mediante as orientações ecológicas que também, presidiram a constituição deste como uma referência da culinária local. Palavras-chave: Empadão Goiano – Tradição – Meio Ambiente – Goianidade. Abstract: This work is based on research I carried out in the City of Goiás, the former capital of the State of Goiás. Following the steps of this research, I analyze the practices and conceptions of the vilaboenses in relation to the meanings of empadão in the context of local religious and social functions. Finally, I contextualize the concept of “tradition” in the perspective of change/continuity according to the local residents. To start from the ethnographic data and the bibliographic research, I tried to follow closely the relation between the individuals of the community and the empadão, by means ecological orientations that managed the organization of this research as a reference to the local cookery. Key-words: Empadão Goiano – Tradition Environment – Goiás’ manner of life – Empadão Goiano: do profano ao mundo religioso Na maioria dos casos estudados, a palavra “alimento” refere-se a uma propriedade da comida, ou do mantimento. Aqui estarei tratando-a como algo ligada ao sentido de reciprocidade. Para falar de reciprocidade devemos pensar mais na forma de dons recíprocos do que em transações. Em Goiás, como em outras partes do Brasil, a cozinha foi - e ainda continua a ser - um espaço de receber os parentes e os amigos próximos, diferente da sala onde se recebe os estranhos. Na Cidade de Goiás, em especial, a cozinha sempre se caracterizou como parte da intimidade. Na intimidade, o hábito de servir alimentos desempenhou um ∗ Doutoranda em História Cultural pela UnB, professora do Departamento de História e Geografia da FECHA, professora do Departamento de História da UEGD UnU “Cora Coralina” e pesquisadora associada do NARQD UEG. PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências da Ciências Sociais Aplicadas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 138 papel central, pois, neste espaço se estabelecem vínculos familiares. Ao contrário da sala que se caracteriza por espaço público. Situada na parte de trás da casa, é na cozinha que se prepara e se serve a comida. Além disso, mesmo fora dos horários das refeições, é a cozinha, um local de descontração onde a conversa deixa transparecer intimidade e se desenrolam inúmeros “causos” (Molina, 2001). Não por acaso, a cozinha deveria ser a parte principal da casa. Antigamente até a política se tramava ali. Os antigos resolviam todos os seus problemas na mesa grande da cozinha. Muitas vezes um fulano se dirigia a alguma casa para tomar satisfações, mas dava-se um rodeio, levava o homem à cozinha, passava-se um cafezinho gostoso, e pronto: “fumava-se o cachimbo da paz”. Levar alguém para a cozinha significa amizade confiada e segura. A cozinha goiana pode ser compreendida como algo mais amplo, não somente como um conjunto de hábitos alimentares, mas também como um importante espaço onde se desenvolve o convívio e as relações sociais. Assim, quando um grupo decide fazer uma galinhada ou pamonhada, sabe-se, de antemão, que o fazer não é o preparo dessas iguarias e sim a criação de um momento e de um espaço de relacionamento social. Situadas fora do ritmo cotidiano, a galinhada e a pamonhada podem ser definidas como referências identitárias coladas no tempo das sociabilidades, das festas ou do lazer, permitindo que as famílias e os amigos se encontrem. Nas primeiras décadas do século XX, as bodas eram ocasiões onde se serviam o que havia de bom e melhor em iguarias. Empadões recheados de carne de galinha, pastéis, pães recheados de pernil, biscoito de queijo, bolo de arroz, doce de ambrosia, doce de laranja, de leite e de limão. Refresco de seriguela, de maracujá, servidos às crianças e às senhoras. Aos homens eram oferecidos vinhos, feitos de laranja, além de vinho português. Os doces eram feitos em tachos, colocados em caixinhas de madeira, forradas de papel manteiga. Em grande medida, nos jantares festivos e em geral às três horas da tarde, as mesas eram aumentadas e arrumadas com toalhas de algodão, copos de vidro, talheres de prata, aparelho azul importado, salvas e copos de prata. Das iguarias eram servidas; sopa de macarrão grosso importado de Portugal, tutu de feijão, arroz, carne enrolada, carne recheada, tostadas e cheirosas, grandes travessas com empadas, cobertura e forros tostados no velho forno de barro, guariroba como molho e tigelada. Nesta perspectiva destacam-se como elementos culturais da culinária goiana, símbolos de uma “goianidade”, empadão goiano, arroz com pequi, peixe na PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 139 telha, ‘macarrão de folia’, frango ao molho ou ensopado, guariroba ou arroz com guariroba, pamonha, angu com quiabo, abóbora, jiló e carne picadinha, lombo de porco. Todos articulados à sociabilidade, tornando-se indicadores que permitem a marcação e demarcação de um grupo que envolve pertencimento. No contexto do âmbito privado a mulher operou em muitos momentos, cuidou também de dirigir a casa, sendo, portanto, responsável pela sociabilidade e harmonia do lar. Neste sentido, essas mulheres respondem pela definição tanto da forma como a função do empadão goiano, o que significa, certo controle da forma como esse alimento irá mediar às relações entre indivíduos. O empadão enquanto produto da comida regional, expressa algo que diz respeito a um prato que tem peso social muito importante, pois inventa a sua própria ocasião social. Ademais, também se refere a algo que exprime possibilidades simbólicas e por isso permite realizar uma importante mediação entre a sua forma e função. Para Da Matta (1986), a sociedade manifesta-se por meio de muitos espelhos e vários idiomas. Um dos mais importantes no caso do Brasil é, sem dúvida, o código da comida, que em seus desdobramentos morais acabam ajudando a situar a mulher e o feminino no seu sentido talvez mais tradicional. Tudo isso revela que a comida se refere a algo que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa. O empadão simboliza a ordem social, com suas diferenças e gradações, seus poderes e hierarquia. Não por acaso, em Goiás, nos anos de 1881, a província estava dividida em dois grupos - clubistas e empadistas, aqueles dirigidos por Bulhões e estes por Anteristas e Fleurys. A fase de transição da monarquia à República é marcada por mudanças significativas na composição do poder em Goiás. O Estado foi palco de luta de oligarquias rurais que disputavam o poder. Destacaram-se nesse embate especialmente os Bulhões e os Caiado. Em 1888, foi oferecido um banquete político pelo diretório liberal da capital, representado pelo tenente coronel Antônio José Caiado, aos distintos correligionários. No menu oferecido à época torna-se evidente o apego à língua francesa e vínculo desta à realidade regional.1 Comparando o banquete com o que transcreveremos à seguir, podemos perceber algumas modificações no plano político-ideológico. Primeiro que o cardápio logo abaixo é redigido em português e privilegia o que era pensado como culinária regional: macarronada, galinha assada, leitão, tutu de feijão, lombo de porco e doces feitos com frutas do cerrado. Segundo que, Pedro Ludovico Teixeira, ligado ao modelo PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 140 de concepção centralizado na política de substituições de importações, proposta do Governo Vargas, tem como marca, o Nacionalismo, ou seja, uma política ideológica voltada para a valorização da produção nacional. Assim sendo, o cardápio teve como princípio valorizar as coisas da terra, como poderemos observar: - Sopa de batatas com azeitonas. - Empadinhas de camarão com arroz. Macarronada com galinha assada. - Leitão com tutu de feijão e alface. - Arroz de forno com lombo de porco recheado. Doces: mangaba, caju com queijo Palmeira. Queijo de leite. Bebidas: Coktail, Vermouth, vinhos branco e tinto. Champagne - Café - Licores. Charutos (Voz do Povo, 02 de outubro de 1931). No contexto desse Nacionalismo enfatiza-se uma preocupação com a Marcha para o Oeste. Isto é, a ocupação de novas terras mais especificamente no Oeste de Goiás e Mato Grosso, e sua integração produtiva. Além disso, enfatiza-se também, a criação de novas cidades e melhoria de comunicação, através de novas estradas de rodagem. Em 1961, o Diário da Tarde publicou o almoço de comemoração do jubileu de prata da turma de Direito da Cidade de Goiás de 1936. Segue a publicação do Almoço Jurídico: O cardápio foi originalíssimo, lembrando, desde os vestibulares até as atividades da vida dos advogados e magistrados: I - Empadas Vestibulares; II - Frio “Exames Finais”; III - Frango “Apuros da Profissão”; IV - Arroz “Primeira Audiência”; V - Arroz “Justiça Gratuíta”; VI - Tutu “Honorários Advocatícios”; VII - Feijão “Interlocutório Simples”; VIII - Lombo “Composição Amigável”; e o prato extra, Arroz com Piqui: “Arroz Decisão Final”. Como sobremesa, os deliciosos doces de figo e laranja, em calda, e as famosas passas de caju. Bebidas: água de alambique, mineral, guaraná, cerveja e o delicioso vinho dos Padres, fabricado pelos Dominicanos. Na recepção festiva do título de Patrimônio da Humanidade, realizada em Goiânia, no Country Clube de Goiás, foram servidos dois mil empadões produzidos especialmente para a ocasião. Tal fato nos sugere uma extensão simbólica/culinária de Goiás para Goiânia. A ordem abaixo, ilustra as formas e função do empadão percebidas localmente e que, por sua vez, apontam para a sua dimensão enquanto produto: empadinhas Aniversário; batizado; casamento; Folia do Divino; reuniões políticas. empada (10 cm) Sociabilidade; individualização; mercadoria. sociais e PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. empadão (14 cm) Sociabilidade; individualização; mercadoria. empadão (20 cm) Tradicional; identidade emblemática. empadão redondo (36 cm) Natal; Semana Santa; Dias das Mães; agregação familiar e ritual de comensalidade familiar. Empadão retangular (38 cm) Ritual de comensalidade, agregação familiar. 141 Em relação à especificidade da empadinha na Folia do Divino Espírito Santo, chamo atenção para a relação entre prestígio e recompensa. O primeiro pode simbolizar status e o segundo pode significar - dar e receber. Durante a Semana Santa, não se come carne vermelha. Nesta perspectiva torna-se oportuno, apresentar alguns aspectos que estão implicados neste sistema. No decorrer da Semana Santa, se faz empadinhas de bacalhau; camarão e atum como denotam as narrativas. Geralmente, aos domingos se faz empadões de bacalhau ou atum. No entanto, um caso específico destaca-se, no Domingo de Páscoa - o fornecimento de empadinhas de frango como oferenda na Folia do Divino Espírito Santo. Ao mencionar a oferta de salgado empadinhas em especial, percebe-se através da noção de tradição, que isto é uma novidade que faz da festa um acontecimento ainda mais expressivo e interessante, pois as concepções de incremento e mudança na tradição são importantes para que a mesma possa apresentar um caráter dinâmico e contextualizado. É necessário que se reconheça que as tradições estão constantemente sujeitas a mudança, a reinterpretações desde o momento em que surgem. Hobsbawn e Ranger (1984), afirmam que as “tradições inventadas” são mantidas por quem as cria e delas se beneficia. No caso da Folia do Divino Espírito Santo, nota-se que a incorporação dos salgados se caracteriza por uma “tradição inventada” o que denota uma “reapropriação” da Festa imposta por alguns membros do grupo em questão e que passa a ser definidora de uma identidade específica da comunidade vilaboense. Neste caso levanto aqui uma questão: Quem pode introduzir uma inovação? Se alguém de “fora” a introduz é aceita ou não? Em relação a Folia do Divino Espírito Santo, percebe-se que não, pois os cargos só podem ser dirigidos a pessoas de PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 142 naturalidade vilaboense, domiciliada ou não na Cidade de Goiás, o que ocorre naturalmente no caso do empadão. Entretanto, devemos lembrar que a função de estabelecer ou não novos modelos de “adaptações” segue as diretrizes da tradição, o que significa que pode sofrer alterações, desde que não seja colocada em risco. Outra dimensão a ser ressaltada pode configurar-se nas formas de circulação cerimonial do alimento que, podem começar por ser analisadas à luz das características religiosas das Festas do Espírito Santo. A dissipação de recursos alimentares que ela requer é de fato concebida, antes de mais, como uma forma não só de homenagear a divindade, más também de assegurar a sua proteção (Leal, 1991:34). No caso da Festa do Divino Espírito Santo na Cidade de Goiás, a distribuição de oferendas (por exemplo, empadinhas) é operado como um meio de obtenção da proteção do Espírito Santo para a sua unidade doméstica. Muitas vezes também certos dispêndios cerimoniais resultam de promessas feitas ao Espírito Santo e funcionam, portanto, como um meio de retribuir graças anteriormente concebidas. De acordo com Leal (1991), simultaneamente a esta vertente religiosa, as refeições, dádivas e distribuições alimentares que integram a seqüência ritual das Festas do Espírito Santo possuem uma importante dimensão sociológica. Circulando num quadro social profano minuciosamente previsto e regulamentado, os alimentos, ao mesmo tempo em que ligam os homens à divindade também os homens entre si. É justamente para uma imbricação deste tipo que se pode analisar a empadinha da Folia do Divino Espírito Santo como algo que significa comunhão. A palavra comunhão significa, comm~un~i-one-, comunidade, ato de pôr em comum, participação, caráter comum. Se, por um lado, sabemos que o significado de empada significa pão, por outro lado, sabe-se que o pão pode significar o símbolo do sagrado na Folia do Divino, pois para Santo (1988), no ato da ceia do culto do Divino, trazem então para a mesa o mais sagrado e o mais Santo de todos os alimentos: pão comum. Para Mayol (1998), o pão, não é tanto um alimento básico, mas, sobretudo, um “símbolo cultural” de base, um monumento sem cessar restaurado para conjurar o sofrimento e a fome. O pão suscita o respeito mais arcaico, é quase sagrado. Jogá-lo ao chão, pisá-lo é visto como sacrilégio. O pão é um memorial. Pode-se afirmar, o empadão é um memorial. Baseado no que foi apresentado acima, proponho-me, então, a fazer uma relação entre o sentido etimológico da palavra comunhão com a Santa Ceia, a fim de mostrar como a expressão tem no bojo da questão o propósito de consagrar e unir um PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 143 grupo em torno da comida. Logo, se comunhão = comm~un~i-one, não poderia escapar de nossa atenção a representação simbólica da Santa Ceia em relação ao significado etimológico da palavra empadão = pão o que pode simbolizar o Corpo de Cristo no ato da eucaristia. Nesta mesma percepção, compreende-se que a empadinha da Folia do Divino Espírito Santo na Cidade de Goiás pode simbolizar a divisão do empadão em várias pequenas partes, representando então, a comunhão. Além disso, entende-se que a empadinha é uma “ressemantização” do empadão quando ele vai ou alcança as camadas populares da Cidade de Goiás, mas isto enquanto pão. Sendo que, nesta dimensão, tem menor tamanho; menos recheio e massa menos elaborada. É a massa para a massa. A Folia do Divino Espírito Santo a partir de 1988 chega até Goiânia-GO, estabelecendo a inserção dos nativos da Cidade de Goiás que se mudou para a nova capital. O que implicou a “replicação”/extensão da empadinha para o contexto da festa evidenciando, assim, a união de dois elementos significativos tradicionais da antiga Vila Boa de Goiás. Empadão Goiano: resultado de uma simbiose entre homem e meio ambiente Aos poucos iria brotar no cerrado, uma culinária própria adaptada. A realidade sob muitos aspectos era nova ao colonizador. Assim os doces antigos foram muito doces, o café abusivo e melado, a gordura e os óleos besuntados, características que entre muitas outras, podem obscuramente explicar-se pela adaptação antrópica (Bertran, 1994). Hoje, temos uma variada cozinha goiana, em geral, e vilaboense, em particular que, além dos vinhos, queijos, licores, quitandas e o empadão, prima pela qualidade dos pratos de sabor exótico feitos com espécies do cerrado goiano, como pequi e guariroba. Sem falar dos doces e sucos feito com os frutos da região e até mesmo, com as cascas desses frutos, resultado de uma verdadeira e perfeita simbiose entre o homem e seu meio ambiente. É mais nas matas do que no cerrado e no campo que a população goiana encontra frutos silvestres; guariroba, araticum, marmelada-de-cachorro, jenipapo, curriola e cagaita. Mas os frutos naturais de maior consumo e agrado são encontrados no campo e no cerrado; “cajus-do-campo”, o murici e a mangaba. PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 144 O esquema abaixo mostra a relação entre o homem, meio ambiente e empadão. A influência da natureza sobre o produto é fundamental. O quadro aponta aqueles produtos que são de origem animal, vegetal e mineral. EMPADÃO ORIGEM ANIMAL ORIGEM VEGETAL ORIGEM MINERAL Carne suína Cebola Sal Banha de porco Farinha de trigo (pão) Argila Carne de peixe Azeitona Antiplástico* Bacalhau, camarão Alho (lata de goiabada) Ovos Ervilha Ferro estanhado (pedaços inteiros ou filé) Batata Queijo Tomates Manteiga Guariroba Carne de frango *antiplástico (areia, mica etc.) O esquema anterior pode ser agora complementado da seguinte maneira: EMPADÃO (COLETA) DA FAZENDA (QUINTAL) DA NATUREZA (TRABALHO) DA CIDADE (COMPRA) PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 145 Guariroba Salsa Alumínio batido Lenha Banha Bacalhau Argila Galinha Camarão Areia Ovos Atum Frutos Lingüiça Frango Pimenta Lingüiça (industrial) Queijo Tomate Manteiga de leite Cebola Guariroba Queijo (mussarela) Frango Azeitona Porco Ervilha Palmito Fermento em pó Óleo Margarina Milho (enlatado) Madeira (combustível) Cerâmica Lata de goiabada Sal Com a redução das atividades de mineração, aumenta a implantação de fazendas de gado na região. Vários fatores contribuíram para a reprodução do campesinato, entre eles destacam-se terras inexploradas que são abertas a pequenos produtores para produção autônoma. Além disso, contamos com as migrações massivas que levaram ao surgimento da categoria de posseiro ou pequeno proprietário. A figura do agregado é tão antiga quanto a própria ocupação regional (Suárez, 1982). A história do Centro-Oeste é marcada por um processo em que migrantes tornaram-se posseiros para serem, posteriormente, proprietários. A fazenda tradicional não deve ser pensada, simplesmente, como uma unidade de produção de gado. Nela se executava um processo de trabalho complexo que incluía a produção de gado, a produção de alimentos e o processamento dos mesmos (Suárez, 1982; Motta, 1983). Com o tempo, os produtos passaram a ser cultivados na “roça de quintal”. Esta roça de quintal emprega apenas o trabalho da mulher e dos filhos. Tudo isso PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 146 confirma a relação entre ingredientes do empadão com a fazenda. O empadão goiano é a feliz combinação entre os produtos importados e produtos dos quintais e da fazenda. A valorização do produto da fazenda expressa auto-suficiência. Produtos da fazenda expressam melhor qualidade, segundo a percepção local. Esta concepção é parte da economia doméstica, próprio da economia camponesa. É comum encontrarmos na Cidade de Goiás, assim como no universo camponês, referencial sobre os “dias de hoje” e o “tempo antigo”. No tempo antigo a natureza era mais hostil e mais pródiga. Além de pródiga, suas qualidades estavam por todas as coisas; na saúde das pessoas, dos animais de criação e na riqueza dos produtos dela retirados. Considerações Finais Fica aqui demonstrado que o empadão, em domínio privado, se difere em duas categorias: empadão tamanho familiar e empadão familiar especial. O primeiro tem na tradição o significado de “agregação familiar” e, não que o outro de distancie da primeira conclusão, mas a sua especificidade se encontra no domínio da ocasião especial, para pessoas especiais, com ingredientes especiais. E é isto, que possibilita entender o empadão como uma tradição que permite, em situações especiais, estabelecer o que DaMatta (1986), considera culinária relacional. A empadinha, uma adaptação do empadão, ligada aos supostos de festas sociais e religiosas, tem, neste primeiro aspecto, uma conotação de sociabilidade que geralmente acontece em contexto de reuniões sociais, como aniversário e casamento. E quanto ao último aspecto, a empadinha ganha a dimensão de comunhão que no sentido etimológico da palavra significa, comm~un~i-one. No que se refere à forma e função do utensílio doméstico utilizado para o preparo do empadão goiano, penso que está relacionado às ocasiões extraordinárias/especiais ligadas às pessoas, utensílios, pratos e acompanhamentos especial. E nesta direção o empadão goiano, visto como uma tradição regional está inserido na perspectiva mudança/continuidade. O empadão atualiza-se; mas a tradição se mantém. Além disso, deve-se considerar que a continuidade do empadão goiano é garantida. Sua manutenção é acordada entre os habitantes da comunidade vilaboense. Entretanto, devemos frisar que ela só é aceita quando não há uma contradição com a maneira com que a memória registra o passado da tradição - registro este não necessariamente elaborado como discurso, mas realizado através da prática, em atitudes que dizem algo sobre o passado sem que seja preciso expressá-lo conscientemente. Não basta propor uma nova PÉCLAT, Gláucia Empadão goiano: expressão de práticas festivas e ecológicas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 139-150, Dez. 2008 / Jun. 2009. 147 mudança, e achar que serão aceitas. Há pessoas que são legítimas introdutoras de novos produtos no empadão. Estas são entendidas como “autoridade máxima” do saber fazer. Àquelas a quem a comunidade delegou certa autonomia e responsabilidade sobre o modo de fazer. As mudanças estão limitadas pela necessidade de se adequar à memória da comunidade. É preciso que essas mudanças sejam reguladas e tacitamente aceitas. O tema proposto ainda tem muitos aspectos a serem desvendados e sua reflexão não deverá ser vista como conclusão. A dinâmica mudança/continuidade implicada no “modo de fazer” empadão que acontece em todos os níveis - tecnológico, econômico, cultural, ligada à complexidade do mundo da cozinha e diversidade da vida social, tem, sobretudo, alterado o quadro de essa prática alimentar em Goiás. Assim sendo, buscar entender os fatores interligados a este complexo dinâmico é, no meu ponto de vista, mais importante do que compreender as razões que levaram ao seu surgimento. NOTA 1 “Potages, Vermicelle. Consomé. Orge perlè. Hors d’ouvre croquettes aux pommes de terre. Petits patès de viande. Patês de poisson. Rele vès poisson a la goyene. Roast-beef aux petits pois. Mayonnaise de poulets. Filets de boeuf a la Custodie. Perdrix farci rotis pigeons au cresson. Paca aux olives. Salade aux oeufs. Legumes haricots verts. Petits pois. Dessérts pouding à la federation des provinces. Gelleé aux oranges. Creme à la Sainte Therese. Café, cognac, liqueurs. Vins Bordeaux, Madére, Porto” (Goyaz, 15 D 06 D 1888. Apud Bittar, 2002: 136). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERNAZ, Ondina de Bastos. Reminiscências. Goiânia: Kelps, 1992. BERTRAN, Paulo. Formacão econômica de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978. __________. Paulo. História da terra e do homem do Planalto Central. Brasília: Solo Editores, 1994. BITTAR, Maria José Goulart. As três faces de Eva. Goiânia: Kelps, 2002. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. ___________. Campesinato Goiano; três estudos. Goiânia, Ed. da Universidade Federal de Goiás (Coleção Documentos Goianos, 16), 1986. BUENO, Francisco da S. 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BONS E MAUS SELVAGENS: TEXTOS IMAGENS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O ÍNDIO∗ Rosani Moreira Leitão** Resumo: Abstract: Este trabalho tem como objetivo discutir a construção da imagem do índio no imaginário brasileiro, apontando diferentes aspectos que influenciaram a construção de uma representação, via de regra preconceituosa, estereotipada, idealizada que remonta às primeiras imagens construídas pelo imaginário europeu acerca do Novo Mundo e dos seus povos. Estas imagens vão influenciar a mentalidade nacional e refletir na produção literária, inclusive aqueles elaborados com finalidades educativas compondo conteúdos escolares que possibilitam a criação de um “índio didático”***, um índio genérico e primitivo, cujas características consideradas positivas ou negativas são manipuladas apresentando imagens que oscilam entre as noções de bom ou de mau selvagem. This work aims to argue the construction of the image of the indigenous people in the Brazilian imaginary, pointing different aspects that had influenced the construction of a representation, usually prejudiced, stereotyped, idealized that it retraces to the first images constructed by the European imaginary concerning the New World and its people. These images will influence the national mentality and they will reflect in the literary production, also those elaborated with educative purposes composing school contents that make possible the creation of a “didactic indigenous”, a generic and primitive indigenous, whose positive or negative characteristics are manipulated presenting images that oscillate between the notions of good or of bad savage. Key-words: Palavras-chave: Índio; Representações; Imaginário Indigenous Imaginary people; Representations; Introdução A “descoberta da América”, no final do século XV, e as primeiras impressões deste novo continente reveladas à Europa através de relatos de aventureiros exploradores, viajantes e missionários provocou uma verdadeira revolução no imaginário europeu. Documentos e testemunhos das grandes expedições marítimas, como a carta de Américo Vespúcio “Mundus Novus”, oferecem novos elementos para ∗ Texto preparado para apresentação no Primeiro Simpósio Internacional de história, no período de 22 a 26/09/03, em Goiânia. Uma versão preliminar do texto foi apresentada como trabalho final da disciplina tópicos especiais: “visões do paraíso – pensando sobre o exotismo americano”, ministrada pela professora Elizabeth Cancelli, no curso de antropologia do programa de Pós-Graduação Sobre América Latina E Caribe, Da Universidade De Brasília, no primeiro semestre de 2001. ** Doutora em antropologia (área de concentração estudos comparados sobre América Latina E Caribe), pela Universidade de Brasília e diretora da divisão de antropologia do museu antropológico da Universidade Federal De Goiás. ***ROCHA, Everardo Pereira Guimarães. Um índio didático: notas para o estudo de representações. In: ROCHA, e. P. G. E outros (orgs.). O testemunho ocular. São Paulo: brasiliense, 1984. LEITÃO, Rosani Moreira. Bons e maus selvagens: textos imagens e representações sobre o índio. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 150 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 151-162, Dez. 2008 / Jun. 2009. as interpretações literárias da época. A partir de então, um universo terrestre de três continentes se amplia para quatro e lugares ainda não imaginados habitados por populações humanas concretas passam a informar um imaginário até então alimentado por um acervo lendário acerca do que poderia existir além do Atlântico1. Os relatos dos viajantes adquirem caráter de verdade e as novas imagens neles fundamentadas passam a ser tratadas como evidências2, o que vai provocar um grande impacto em todas as interpretações de espaço, tempo, produções artísticas, literárias, cartográficas e até na própria noção de humanidade. As noções, imagens e representações construídas desde então e difundidas em todo o ocidente passam a compor o quadro de referências para a categorização do mundo, das situações e dos grupos de pessoas, sobretudo daquelas consideradas diferentes3. Neste cenário, o diferente, por não compartilhar de iguais modelos, costumes crenças etc., aparece como selvagem, bárbaro, ameaçador. Rocha define este sentimento da seguinte forma: “A sociedade do eu é a melhor, a superior. É representada como o espaço da cultura por excelência. É onde existe a civilização, o trabalho, o progresso. A sociedade do outro é atrasada. É o espaço da natureza. São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa, menos humanos.”4 Assim, desde a literatura clássica européia produzida a partir de século XV as representações sobre o Novo Mundo e seus povos referem-se a um “o outro” passível de ser manipulado, conquistado, dominado. A ilha utópica de Thomas Morus (1478-1533), apesar de ser um lugar paradisíaco onde as instituições jurídicas, políticas e sociais são perfeitas,5 também é um lugar idealizado que reproduz as relações sociais e o imaginário europeu bem como os seus padrões de relações com os povos nativos, de territórios colonizados, legitimando inclusive a idéia de guerra justa. Assim, os terrenos não cultivados pelos indígenas poderiam ser ocupados pela expansão colonialista(?) e pelo excesso de população da cidade utópica, resultado de uma emigração geral decretada pelo Estado. Os colonizadores seriam bons e amigos dos colonizados, desde que estes aceitassem como legítimas as suas instituições e costumes. Caso contrário, a prática da guerra contra aqueles que se recusassem a aceitá-los, estaria justificada6. Outros exemplos estão presentes na obra de Shakespeare (1564-1616)7. Em “A Tempestade” algumas referências são feitas a seres estranhos “meio humano, meio SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 151 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. monstros”, como é o caso de uma criatura encontrada na Ilha de Próspero, que é associada aos “brutos”, “selvagens”, “homens da índia”, “capazes de emitir apenas gorjeios”, “criaturas repugnantes”. Diálogos entre personagens da obra – Calibã e Estéfano – a apresentam como uma criatura passível de ser domesticada, exibida como objeto de curiosidade em feiras européias, vendida por muito dinheiro ou presenteada a algum imperador. Representações, negativas, que expressam o imaginário europeu da época e o empreendimento colonizador, são construídas a partir do choque cultural provocado pelo conhecimento dos costumes dos povos habitantes de continente antes desconhecido. Aspectos referentes ao encontro do europeu com os povos nativos da América e das relações estabelecidas entre ambos estão presentes na obra de de Daniel Defoe (1632-1731). O personagem Robinson Crusoé8, menciona na sua ilha deserta, entre outras coisas referentes aos selvagens nativos, a presença do canibalismo como “bárbaros banquetes de carne humana” acompanhados de rituais de dança. Crusoé, após presenciar pela primeira vez um ritual de canibalismo, passa a sonhar aterrorizado com a cena, na qual ele próprio se inclui como vítima, e passa a desejar o extermínio dos selvagens como um ato justificável9. Por outro lado, não apenas o extermínio, mas também a convivência com o selvagem é vislumbrada, desde que este último seja domesticado, passe a ser obediente e servil, elimine das suas práticas, costumes bárbaros, repugnantes e as substitua por costumes, crenças e práticas próprias do universo europeu e, por isso, consideradas superiores. A relação de Crusoé com Sextafeira, um nativo salvo por ele – antes de ser morto e comido em um dos banquetes “canibais” – que se tornara seu criado, demonstra esta possibilidade. Após algum tempo de convivência, Crusoé consegue fazer com que Sexta-feira aprenda a “falar” e a “obedecer”, passe a usar roupas, converta-se ao cristianismo, e adquira o gosto por outros tipos de carne que não a humana, consegue, enfim, transformá-lo em um “servidor fiel, afetuoso e sincero”.10 Talvez como uma forma de atribuir humanidade ao selvagem já domesticado Defoe, através do seu personagem, ressalta no mesmo algumas características físicas positivas, que o associam aos europeus e o distinguem dos “nojentos e repugnantes” demais índios da América11. Era um belo tipo, elegante, bem proporcionado, alto e robusto (...) Tinha aspecto agradável e não feroz ou brutal. A fisionomia era varonil, embora não lhe faltasse a doçura e a suavidade do semblante europeu (...). Os cabelos eram compridos e pretos, e não crespos como lã de carneiro. A fronte era alta SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 152 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. e larga, os olhos vivos e penetrantes. A pele não era negra retina, porém, acobreada, mas não daquele horrível acobreado, amarelecido e nojento, dos índios do Brasil, da Virgínia e de outras regiões da América. Era mais um tom azeitonado, brilhante, muito agradável, ainda que difícil de descrever. O rosto era redondo e cheio, o nariz pequeno e não achatado como o dos negros. A boca era muito bem feita, tinha os lábios finos e os dentes bonitos, regulares, alvos como marfim (Dedoé, 2001: 161) Voltaire (1694-1778), como Morus, Shakespeare, Defoé e outros, aborda aspectos correntes na literatura ocidental desde o século XV, tais como tempestades, ilhas e naufrágios. Em Cândido, ele sugere a idéia de um mundo ocidental cheio de malediscências, uma sociedade corrompida, degenerada, povoada de injustiças, guerras e carnificinas, arbitrariedades cometidas pela aristocracia ou pela Igreja Católica12. Em contraposição, aparece na obra deste autor em algum local do Novo Mundo, um lugar paradisíaco13, um eldorado representado por um mundo não corrompido, sem desigualdades ou injustiças. Entretanto, em diversos momentos da narrativa, o Novo Mundo e seus povos são associados a imagens negativas, tais como terremotos e a proliferação de doenças 14. A América às vezes também é associada a selvagens canibais15. São mencionados os “selvagens orelhões” ávidos por comerem Cândido e Cacambo, “assados” ou “cozidos”, por serem confundidos com jesuítas16. Outras passagens sugerem costumes que, como o canibalismo, situa os nativos em um grau de humanidade duvidosa como, por exemplo, a existência de relações sexuais entre mulheres e macacos17, o que é atribuído à falta de uma educação adequada. Outros autores, como Montaigne (1533-1592)18 e Rousseau (1712-1778)19, podem ainda ser mencionados como referências para a elaboração de uma imagem romântica sobre os nativos da América e que certamente tiveram influência na construção de nossas representações acerca dos índios brasileiros. Montaigne talvez tenha sido um dos primeiros pensadores a realizar um exercício de relativismo cultural comparando os costumes dos primitivos povos da América com costumes europeus. Sua descrição do modo de vida dos canibais, apesar de feita a partir de relatos de um viajante, assemelha-se a uma cuidadosa etnografia. Entretanto, o caráter paradisíaco aparece na sua obra quando ele descreve a região habitada pelos canibais como muito agradável, de “clima temperado a ponto de (...) raramente se encontrar um enfermo (...) epiléptico, remeloso, desdentado ou curvado pela idade”20. Os povos e seus costumes são descritos como exemplos de simplicidade primitiva, de autenticidade, cujas sociedades em oposição às relações sociais e costumes europeus corrompidos seriam SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 153 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. ainda mais perfeitas do que a República de Platão. Mesmo quando descreve o canibalismo, Montaigne destaca as qualidades dos nativos e ressalta as “nobres” razões para esta prática, segundo ele, menos bárbara do que costumes ocidentais, tais como “esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e queimá-lo aos poucos, ou entregalo aos cães e porcos, a pretexto de devoção e fé”21. A idéia do “bom selvagem”, encontrada na obra de Rousseau também pode ser apontada como uma das referências para a elaboração de uma imagem romântica do índio, apontada pela etnologia como uma mentalidade que, embora não seja negativa, é tão equivocada e preconceituosa como outros estereótipos que impedem a compreensão das sociedades indígenas como sociedades humanas concretas. Assim, estas imagens, acerca do índio que o qualificam seja como bom, puro, autêntico, corajoso, seja como estranho, assustador, exótico, perigoso, selvagem, preguiçoso, estão presentes ainda hoje na literatura, na imprensa, nos meios de comunicação e também nos textos elaborados com finalidades didáticas e permitem a construção de uma noção de índio genérico e primitivo, que pode ser manipulada – positivamente ou negativamente – de acordo com os valores considerados legítimos e com os interesses em jogo, em cada época e situação. Imagens e representações sobre o índio segundo a etnologia brasileira Alguns etnólogos brasileiros tais como Cardoso de Oliveira, Gomes, Melatti e outros, discutem as diferentes imagens construídas acerca dos índios pela consciência nacional e ressaltam que tais mentalidades, muitas vezes, reforçam preconceitos e estereótipos e legitimam atitudes hostis para com os índios. De acordo com Cardoso de Oliveira e com Melatti22, a noção genérica de índio esconde diferentes significações que podem ser favoráveis ou depreciativas, resultando quase sempre em um índio estereotipado. Se por um lado existe no mundo urbano das grandes cidades uma imagem idealizada do índio, alimentada pelo senso comum de uma apreciação genérica, que o vê como “bom”, “puro” “ingênuo”, “criança grande”, por outro lado, as populações regionais, especialmente localizadas em regiões limítrofes às aldeias, possuem concepções negativas, agressivas e impiedosas. Estes autores citam outras concepções alimentadas pelo desconhecimento da realidade indígena e por imagens idealizadas que são responsáveis por deformações desta realidade e que se constituem como verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento de SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 154 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. relações menos assimétricas entre índios e brancos e de políticas adequadas pelo poder oficial. Existe assim: 1) uma mentalidade estatística, que deposita demasiada crença nos números que se fundamenta pela comparação do número supostamente “insignificante” de índios, frente a uma numerosa população brasileira carente de atenção e de políticas sociais. Esta mentalidade é comum, segundo os autores, entre camadas da população que possuem poder de decisão sobre as ações do Estado e legitimam a definição de prioridades que consideram os problemas indígenas como menos importantes; 2) uma mentalidade burocrática, própria de servidores que desqualificados para a tarefa indigenista e sem perspectivas de ação tornaram-se burocratas rotinizados. Outra concepção corrente, entre os agentes oficiais do Estado que lidam com a questão indígena, é a mentalidade empresarial, comum entre os altos funcionários que concebem o trabalho de subsistência como ilegítimo e comungam com os empreendedores privados, tradicionais exploradores do trabalho indígena e que vêem os postos e o trabalho indígena como fonte de empreendimento e de lucro. Estas concepções estereotipadas favorecem situações preconceituosas que desvalorizam o trabalho indígena e justificam o discurso de que as terras indígenas serão melhor aproveitadas se forem cultivadas por agente da sociedade “civilizada”23; 3) uma mentalidade romântica, própria do homem comum, metropolitano baseada em uma visão ingênua e literária de um índio idealizado nos textos de Gonçalves Dias ou de José de Alencar24. Esta mentalidade romântica pode ter um efeito tão negativo quanto outras formas de preconceitos, uma vez que desumaniza o índio isentando-o de faltas ou quando delas toma conhecimento pela imprensa, amplia as suas dimensões. Cardoso ressalta que as concepções acima mencionadas fazem com que a posição do índio na sociedade brasileira não lhe seja favorável e que uma consciência deturpada sobre o mesmo continuará existindo a não ser que penetrem na imprensa e nas escolas conhecimentos sobre sua situação real. Mércio Gomes25 ressalta que o impacto do desconhecido que as populações nativas provocaram nos europeus que ficaram chocados com hábitos considerados cruéis, como o canibalismo e com a indiferença “para com os símbolos materiais” tão valorizados pelo poder europeu, fez com que a própria humanidade indígena fosse questionada. Entretanto, a condição de animalidade dos índios favorecia aos interesses SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 155 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. dos colonizadores, pois justificaria sem muitos constrangimentos a escravidão e outras práticas arbitrárias. Para o pensamento europeu o estatuto de humanidade indígena foi estabelecido em um documento do Vaticano expedido em 1537, que só se tornou conhecido no Brasil um século depois quando reafirmado pela Bula Comissum Nobis expedida pelo papa Urbano VIII, que ameaçava excomungar os escravizadores de índios. Mas, posteriormente, de acordo com Gomes, este status de humanidade é colocado em dúvida pelas teorias racistas, que se esforçam para demonstrar além de desumanidade física, uma desumanidade cultural26. Ainda conforme este autor o estatuto de “bons ou de nobres selvagens” dá lugar à idéia de que a “natureza é rude e cruel” e de que a civilização é necessária. Assim, o “mito do bom selvagem” que explica ao mesmo tempo “a bondade e a crueldade dos índios, a sua liberdade, a sua ingenuidade, a sua sagacidade, a preguiça e a resistência física, a vida e a morte”, passa a não ter mais tanta eficácia. Apesar desta concepção romântica continuar existindo e ser acionada em algumas situações e, sobretudo entre o senso comum urbano, tanto nas relações concretas entre indígenas e não-indígenas, bem como nas esferas políticoadministrativas das metrópoles colonialistas e entre as elites coloniais, é mais freqüente e mais intensa uma concepção dos indígenas como “grosseiros, brutos e cruéis”, mentalidades mais passíveis de justificar fatos históricos que causaram a destruição de aldeias indígenas inteiras27. O Índio e os Textos Didáticos Vários autores abordaram os conteúdos didáticos como possuidores de uma dimensão ideológica que reproduz no microcosmo da escola as concepções de mundo vigentes28. No que se refere à temática indígena, esta dimensão ideológica se revela pela presença de noções que têm origem no final do século XV e início do XVI, percorrem todo o período colonial e imperial e chegando à República de forma renovada pelas noções de progresso e de evolução social, que concebem os modos de vida indígenas como estágios provisórios rumo à civilização. As imagens elaboradas a partir do ponto de vista do observador externo, pela ótica do ocidente e das suas ideologias, modelam uma noção estereotipada, de um índio selvagem, primitivo e genérico (não situado em um universo cultural específico), SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 156 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. enfim, uma noção simplificada que acaba sendo tomada como modelo didático pelas escolas e pelos textos escolares. Faria29 analisa a concepção de trabalho no livro didático e aponta este último como um difusor de preconceitos que reforça uma mentalidade que concebe o índio como “‘selvagem’, desconhecendo o progresso, nu e enfeitado com cocares”. Além disso, o índio é apresentado como não adepto ao trabalha, pois não se submete à uma jornada de trabalho própria do modelo ocidental de sociedade “. Neste sentido, o trabalho voltado para o abastecimento familiar e do grupo, que não obedece a horários rigorosamente fixos não é tido como trabalho30. Aracy Lopes, Almeida, Norma Telles e outros (1993) realizam estudos sobre a questão indígena na sala de aula, o que resulta na organização de um livro cujo prefácio afirma que os livros didáticos reproduzem a historiografia oficial, voltados para a divulgação da história contada pela ótica do colonizador. Almeida aborda o racismo nos livros didáticos das seis primeiras séries do ensino fundamental e demonstra que, apesar de a princípio eles apresentarem-se contra o racismo e de mostrarem-se tolerantes com relação aos grupos etnicamente diversos, e orgulhosos de “uma nacionalidade que surge da diversidade”, uma leitura mais aprofundada dos mesmos demonstra “... dificuldade em enfrentar a existência de diferenças étnicas e sociais atuais na sociedade” Estas dificuldade se revelam pelo patente “esforço de recalcar, para o passado e para o folclore, essas diferenças. Além disso, os índios são apresentados como criaturas “cordiais e ingênuas”, que “trabalham para os brancos” e são “preguiçosos”, “inimigos da colonização”, “perigos tropicais, aliados a estrangeiros”. Aparecem também como mão de obra e em contextos em que “os bandeirantes são vistos como heróis e em que o genocídio dos grupos indígenas é uma necessidade para o progresso”31. De acordo com Telles (1993:27) , a abordagem didática do índio conservadoras e desejosa de adequar a realidade aos “desígnios convencionais” cultivando “um modelo ideal de como as coisas deveriam ser” e esvaziando, assim, “a história, os episódios narrados e os grupos étnicos envolvidos”. Assim, é possível compreender essas concepções, imagens e textos como informadas por um conjunto de elementos que podem ser utilizados na elaboração de uma representação sobre o índio, que de acordo com o que se pretende demonstrar no argumento, pode resultar, tanto em um índio caracterizado por a) heroísmo e coragem - SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 157 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. quando são mencionados heróis indígenas que serviram aos projetos de colonização; a) pureza, ingenuidade e carência de proteção - quando são justificadas as intervenções missionárias ou estatais – c) ou ainda preguiçoso, primitivo e selvagem, se seus territórios são considerados mais do que necessitam e se são alvos de pretensões lucrativas. NOTAS 1 MONTAIGNE menciona escritos de Platão e Aristóteles para referir-se a ilhas e lugares desconhecidos, mencionados por sacerdotes e profetas, localizados além do Atlântico, como é o caso da suposta Ilha de Atlanta “mais extensa do que a África e a Ásia reunidas” ou de um lugar mencionado em “as Maravilhas Extraordinárias” obra atribuída a Aristóteles, que relata a aventura de alguns cartagineses que se aventuraram pelo Atlântico, além do estreito de Gilbratar, e descobriram, após longa navegação, “...grande ilha fértil, coberta de bosques, regada por grandes e profundos rios, e muito afastada da terra firme.” MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. In: Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 98. – (Coleção: Os pensadores, 18). 2 BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. A Imaginação do Desconhecido. In: Bessone, Tânia Maria Tavares e Queiroz, Tereza Aline. América Latina: imagens, imaginação e imaginário. Rio de janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1997. 3 De acordo com Rocha, As representações permitem uma comunicação efetiva e “um conhecimento facilmente partilhado e difundido” com base em categorias que são “acionadas positiva ou negativamente” (Rocha, E. P. G. ob. cit). 4 Em Raça e História, Levi-Stauss ressalta que a humanidade termina nas fronteiras da tribo e que por isso mesmo algumas populações ditas primitivas adotam auto-designações como “os homens”, “os bons”, “os excelentes”, “os perfeitos”, enquanto designam os outros como “maus”, “perversos”, “macacos da terra” etc. Rocha, E. P. G. ob. cit.p. 14 e 15. 5 MORUS, Thomas. A Utopia. Brasília: Editora de Universidade de Brasília, 1980, p. 36 (coleção Pensamento Político 23). 6 “... Ao mesmo tempo que ocupam a terra associam-se aos nativos, se é do seu agrado viverem juntos. Graças a essa união voluntária e à unidade de instituições e de costumes , os dois povos para seu maior proveito chegam, facilmente, a se transformarem num só. (...) Os utopienses conseguem tornar fecunda, para a nova colônia, uma terra que seus primeiros habitantes achavam rude e ingrata. As tribos que se recusam a viver sob suas leis são expulsas dos territórios que anexaram. (...) se alguns resistem vão à guerra. Porque entendem ser um caso de guerra inteiramente justificado: a posse, por um povo, de um solo que ele deixa inculto, inútil e deserto, enquanto impede o aproveitamento e a posse a outros povos, que têm, em virtude de prescrições da lei natural, o direito de retirar dele sua subsistência (Morus, T. Ob. cit. p. 17). 7 SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Edição especial distribuída gratuitamente pela Internet, através da Virtualbooks (abril de 2000). 8 Defoe, D. Robinson Crusoé. São Paulo / Rio de Janeiro / Porto alegre: W. M. Jakson Inc. Editores, 1947, p. (p. 148-9). (Grandes Romances Universais, 1) e Defoe, D. As Aventuras de Robinson Crusoé. Perto Alegre: LP&M, 2001. 9 Crusoé assim descreve o cenário de um lugar na praia onde houvera um rito de canibalismo: “Fiquei apavorado com o que vi. Quando fui até a praia, e contemplei os horríveis vestígios que deixaram, isto é, ossos, sangue e pedaços de carne humana, devorada com alegria por aqueles miseráveis. Indignei-me tanto que pus a planejar o aniquilamento dos que viesse a ver mais tarde, qualquer que fosse o seu número (Ob. cit. p. 149). 10 Defoe, D. Ob. cit. p. 162-5. 11 (Defoe, D. Ob. cit. p. 161). 12 Esta última aparece no texto principalmente através das ações dos inquisidores do Santo ofício e dos autos de fé (Voltaire. Cândido ou o Otimismo. Porto Alegre: L&PM, 2000, p.27-8. Ver Também: Voltaire. F. M. A. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,1978). SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 158 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. 13 Voltaire. Ob. cit., 2000, p.75 e 76. 14 Quando Pangloss explica a Cândido a origem da doença que deixou o seu rosto desfigurado, sem um olho e sem uma orelha, ele faz uma retrospectiva envolvendo uma cadeia de personagens que tem início com “um dos companheiros de Colombo”, em Lima, na América, passando por padres, jesuítas e franciscanos, aristocratas e criados e relações sexuais heréticas (Voltaire. Ob. cit., 2000, p.19). 15 Uma das situações de canibalismo envolve os dois personagens: (...) Os Orelhões habitantes do país (...)os garrotearam com cordas feitas de casca de árvore. Estavam rodeados por uns cinqüenta orelhões, todos nus, armados com flechas, maças e machados de pedra: uns preparavam espetos e, todos juntos, gritavam:’ É um jesuíta! É um jesuíta! Seremos vingados e faremos uma boa refeição. Comamos o jesuíta...!’”. 16 Nesta e em outra ocasiões “ governo dos jesuítas no Paraguai é mencionado com ironia ( p. 58).? 17 Em um diálogo entre Cândido e Cacambo, este último explica ao primeiro uma cena presenciada pelos dois em que “duas moças, inteiramente nuas, corriam com agilidade à beira da pradaria, seguidas por dois macacos, que lhes mordiam as nádegas”, e insinua que mulheres e macacos fossem amantes: “(...). Porque julgas tão estranho que em alguns países existam macacos que obtenham as boas graças das damas? Eles são um quarto homens, como eu sou um quarto espanhol” (Voltaire. Ob. cit., 2000, p.69). 18 MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. In: Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 1991. – (Coleção: Os pensadores, 18). 19 ROUSSEAU, J-J. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 20 MONTAIGNE, M. ob. cit. p. 100. 21 Montaigne refere-se aos canibais americanos da seguinte forma: “(...) não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito” (Montigne, M. ob cit. p. 99) 22 Conforme os autores citados, e stas concepções são gestadas no imaginário regional como conseqüência do estranhamento provocado pelas diferenças culturais entre ambos, e porque as populações regionais estão diretamente comprometidas com os interesses das economias regionais, inclusive com a disputa de territórios, territórios o que acaba por desencadear relações conflituosas e chegando mesmo a incentivar e legitimar massacres das populações indígenas como os muitos já registrados na história do contato entre índios e brancos no Brasil (Cardoso de Oliveira, R. A Sociologia do Brasil Indígena. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro e Brasília: Editora da UnB, 1978, p. 66 e Melatti, Júlio César. Índios do Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1987). 23 Melatti, Ob. Cit. p. 193. 24 De acordo com Melatti, os poetas romancista brasileiros, além de difundirem uma visão romântica do índio, deturpam informações etnográficas. Assim, a índia Iracema de José de Alencar atira flechas, enquanto este é um artefato usado só pelos homens, Aos Timbiras (grupos filiados a línguas Jê), de Gonçalves Dias, são atribuídos nomes tupi-guarani (Melatti, J. C. Ob. cit., p. 197). 25 Gomes, Mércio Pereira. Os Índios e o Brasil. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1991. 26 afirmando que os indígenas não tinham nem fé, nem lei, nem rei, porque não existia nas línguas tupi of, oleor (áspero) Gomes, M. G. Ob. cit. p. 109. 27 Gomes explica esta falta de conhecimento sobre os indígenas no período colonial, à falta de estudos sobre os mesmos. Tais estudos quando existiram, foram descrições etnográficas feitas por jesuítas para fins de evangelização, sobre os Tupinambá ou outros grupos de língua tupi (Gomes, M. G. Ob. cit. p. 110 e 115). 28 Esta compreensão se fundamenta principalmente na análise de Bourdieu sobre os sistemas de ensino. In: BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro : F. Alves, 1975. SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 159 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. 29 Faria Ana Lúcia G. A Ideologia no Livro Didático Faria, Ana Lúcia G. A Ideologia no Livro Didático. São Paulo: Cortez, 1984. 30 Segundo Nosella, embora bastante freqüentes nos textos didáticos, os indígenas são tratados como “figuras idealizadas”, ou como “raça em processo de extinção”. A resistência à dominação colonialista, por parte dos indígenas, quase nunca é mencionada. São Eles são apontados como “...leais colaboradores dos portugueses na conquista de suas próprias terras e na exploração de suas riquezas”. (NOSELLA, Maria de Lourdes Chagas Deiró. As Belas Mentiras e a ideologia subjacente aos Textos Didáticos., São Paulo: editora Moraes, 1981). 31 Leitão ressalta, além de questões já apontadas por outros autores, a ênfase que os conteúdos didáticos dão ao evento da “descoberta do Brasil”. De modo geral, a idéia da “descoberta” traz implícitas duas concepções de história: uma, que ignora toda a história anterior a 1500 e outra, uma noção vaga, que se refere à incorporação de entidades geográficas à Europa e assegura a continuidade da história européia, mas nega a existência e a autonomia de grande parte da humanidade, pois em 1500, mais do que “ser descoberto” foi revelado à Europa e através dela ao mundo” (LEITÃO, R. M. Padronização X Diversidade: as sociedades indígenas no livro didático de 1º Grau (monografia). Goiânia: ICHL/UFG, 1994. 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A REPRESENTAÇÃO DO PROFESSOR NOS FILMES HOLLYWOODIANOS∗ Edson Pereira da Silva∗* Resumo: Abstract: Este texto é fruto de uma experiência desenvolvida com alunas dos três primeiros períodos do curso de Pedagogia da FECHA (Faculdade de Educação e Ciências Humanas de Anicuns). A principal meta foi a apresentação e reflexão da imagem do professor nos filmes hollywoodianos como maneira de acesso ao conhecimento da Filosofia da Educação. O texto trata de uma investigação da imagem do professor no cinema hollywoodiano com a análise dos filmes: Vem Dançar; O Sorriso de Monalisa; O Clube do Imperador e Em Nome de Deus. Nessa investigação, foram utilizadas as proposições da análise do discurso com o objetivo de identificar a maneira das relações entre os personagens e o contexto social. This text is result of an experience developed with students of three first periods of teacher‘s course FECHA (Anicuns Humans Sciense and Education Universit). The main aim was the presentation and reflection of the teacher‘s image in the movies of hollywood like way of acess to knowledge of philosophy education. The text discuss a investigation of teacher‘s image in the cinema of hollywood with anlysis of movies: go dance, Monalise‘s smile, Imperor‘s club, and in the name of god. In this investigation, we use the purpose to analyse the spuch, with intention to identify the way of relations between characters and social context. Palavras-chave: Key-words: Educação, cinema, professor, indústria cultural. Education, cinema, teacher, cultural industry. Introdução O século XXI é o século da informação e da comunicação. O crescimento da indústria cultural em toda sua multiplicidade de suportes, dos impressos aos audiovisuais e eletrônicos, colocam-na como um dos mais importantes elementos da produção simbólica por ocupar o tempo livre das pessoas com mais intensidade. O cinema é uma das ferramentas pedagógicas de suma importância para a educação nesse novo século que vem se caracterizando principalmente pelo uso das novas tecnologias. A educação deve formar seres humanos. A utilização dos filmes em ∗ Este relato de experiência foi elaborado sob a orientação do prof. Dndo. Paulo Henrique Castanheira Vasconcelos do departamento de História da FECHA/FACER/UEG. End. Eletrônico: [email protected]. ∗ * Graduado em filosofia pela UCG. Especialista em educação e modernidade filosófica também pela ucg. Professor De Filosofia, Ética E Metodologia Científica Da Fecha (Faculdade De Educação E Ciências Humanas De Anicuns). SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 162 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. sala de aula é mais uma destas ferramentas que permitem desenvolver atitudes críticas, que ajudam a discernir e conhecer o mundo em que vivemos com toda sua diversidade. Conforme a opinião de Libâneo (2005: 117): O cinema é, portanto, um conteúdo que sintetiza razão e emoção, por meio de imagens, movimentos, sons, que, juntos, compõem essa síntese. Ele não fala sobre as coisas, ele ´representa‘ as coisas de outras formas, as audiovisuais, as cênicas, as sonoras, as artísticas. Essas qualidades do cinema possibilitam o enriquecimento das experiências de aprendizagem, porque o filme nos leva a formular uma idéia da realidade com mais amplitude, para além da nossa própria experiência cotidiana, e para além dos textos escritos sobre a realidade. Portanto, o cinema ajuda nossos alunos a aprender a pensar, ajuda no desenvolvimento cognitivo e nas aprendizagens. Em síntese, o cinema (Vídeo, DVD, TV), especialmente quando usado pedagogicamente, atua de maneira eficaz na formação das alunas, nos aspectos cognitivo, físico, afetivo, estético e moral. Conforme o autor supracitado, o cinema é uma experiência cognitiva e estética muito rica para a formação. Quando bem usado na formação acadêmica, ele possibilita mudança na capacidade de ser e agir diante do mundo, auxiliando a educanda para pensar e agir em relação à sua própria vida, aos outros, às situações de vida cotidiana. O mundo de hoje é cheio de imagens, diferente de outras décadas em que prevalecia a palavra, isto é, a leitura escrita. Portanto, a acadêmica de hoje é um ser humano que pensa, mas também que vê, que percebe através da TV e das outras mídias. Há até uma tendência de a imagem se sobrepor à palavra, o visual ao inteligível (Sartori, 2001). Como frisou Libâneo, o filme nos leva a formular uma idéia da realidade com mais amplitude. A seleção dos quatro filmes para a experiência com as alunas do curso de Pedagogia da FECHA (Faculdade de Educação e Ciências Humanas de Anicuns) tem justamente esse intuito de poder proporcionar, através dos exemplos, modelos, atitudes dos educadores representados, a reflexão das nossas atitudes em sala de aula como professores de crianças, adolescentes e até mesmo de pessoas adultas. Em um mundo fragmentado como o nosso a ajuda dos filmes levaram as alunas a aprenderem a pensar de maneira reflexiva e crítica e essa contribuição da Filosofia da Educação em si representa uma grande vitória. O texto pretende realizar uma análise de quatro produções cinematográficas de Hollywood que possuem como foco central o universo do educador e têm o professor como personagem principal, na tentativa de identificar, por meio das propostas SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 163 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. metodológicas da Análise do Discurso, como alguns elementos presentes no discurso de gênero são utilizados para retratar o universo do educador e construir uma imagem específica do professor. Reflexões sobre o ensino da Filosofia da Educação Este relato pontua reflexões sobre o ensino da Filosofia da Educação através da produção cinematográfica dos filmes hollywoodianos com as alunas dos três primeiros períodos do curso de Pedagogia da FECHA (Faculdade de Educação e Ciências Humanas de Anicuns). A experiência pedagógica vivenciada pelo professor da disciplina e pelas educandas foi bastante significativa e inovadora por ampliar a interação social frente a outras formas de aprendizagens. Os debates ocorridos em sala de aula sobre a problemática do ensinoaprendizagem em Filosofia da Educação diante dos filmes analisados está centrado em buscar compreender, neste primeiro momento, que a faculdade precisa juntar a imagem e a palavra, porque aprendem-se coisas também pelas imagens. A Faculdade de Educação e Ciências Humanas de Anicuns é mantida pela Fundação Educacional de Anicuns – Autorizada pela Resolução nº 124, de 16 de maio de 1985 do C.E.E. de cunho público, é uma faculdade de referência localizada no setor Leste de Anicuns (GO). Com grande espaço físico, distribuído em salas de aula, biblioteca, laboratórios de informática... Encontra-se bem estruturada para oferecer cursos de extensão, graduação e pós-graduação. Mediante as características físicas da faculdade, logo compreende-se o perfil econômico das alunas do curso de Pedagogia pertencentes à classe C e, portanto, com acesso aos aparelhos de televisão, vídeo cassete e/ou DVD para o lazer. É nesse sentido que: Os produtos da cultura da mídia, portanto, não são entretenimento inocente, mas têm cunho perfeitamente ideológico e vinculam-se à retórica, a lutas, a programas e a ações políticas. Em vista de seu significado político e de seus efeitos políticos, é importante aprender a interpretar a cultura da mídia politicamente a fim de descodificar suas mensagens e efeitos ideológicos (Kellner, 2001: 123). Essa compreensão fez pensar em desenvolver atividades com as educandas e levá-las a entender que o mundo que nos rodeia com seus aparelhos de entretenimento, também pode auxiliar a interpretar a cultura da mídia e ampliar a crítica ideológica para abranger a intersecção de sexo, sexualidade, raça e classe, e ver que a SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 164 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. ideologia é apresentada na forma de imagens, figuras, códigos genéricos, mitos e aparato técnico de cinema, televisão, música e outros meios, bem como por intermédio de idéias ou posições teóricas. No caso específico do curso de Pedagogia, a reflexão feita como problemática inicial surgiu do descontentamento por parte das educandas em estarem estudando muita teoria e pouca reflexão prática durante as aulas de Filosofia da Educação. A solução encontrada para o melhor aproveitamento das aulas surgiu do debate entre o professor e as alunas salientando quatro estratégias para serem desenvolvidas durante o semestre letivo: 1. Aulas expositivas com exercícios e debates; 2. Leitura de um livro a cada mês com exercícios pertinentes; 3. Didática e prática da filosofia em colégios do município; 4. Utilização do uso de filmes como recurso didático-pedagógico. Diante dessas estratégias e procurando fugir das armadilhas que se fazem presentes no cotidiano acadêmico e dos planejamentos pedagógicos, que suprem o tempo apenas com informações administrativas, procurou-se diversificar o conteúdo programático com atividades mais prazerosas para as educandas, como a utilização dos filmes que foi o diferencial das aulas. Assinala-se, ainda, que a inserção dos filmes como atividades diversas não pudessem ser vistos apenas como um recurso complementar ao material didático, mas que possibilitassem às alunas pensar e refletir sobre a prática filosófica. Por outro lado, alguns teóricos defendem a idéia de uma indústria cultural necessária para o debate e para a aquisição desses bens. Para o escritor Umberto Eco (2001: 8-9): [...] já que a televisão, o jornal, o rádio, o cinema e a estória em quadrinhos, o romance popular e o reader‘s digest agora colocam os bens culturais à disposição de todos, tornando leve e agradável a absorção das noções e a recepção de informações, estamos vivendo numa época de alargamento da área cultural, onde finalmente se realiza, a nível amplo, com o concurso dos melhores, a circulação de uma arte e de uma cultura “popular”. A atividade que mais sobressaiu foi a de produção cinematográfica em sala de aula, que veio à tona perante as problemáticas discutidas nas aulas de Filosofia da 165 SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. Educação. Enfrentou-se, com atenção, o desafio de procurar pistas que sinalizassem indícios para forjar práticas e experiências no ato de ensinar e aprender filosofia. O cinema e a formação de professores A Pedagogia trabalha com a interação entre seres sociais, tanto no nível do intrapessoal como no nível da influência do meio, interação essa que se configura numa ação exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos visando provocar neles mudanças tão eficazes que os tornem elementos ativos desta própria ação exercida. Conforme Libâneo (2005: 118), “A pedagogia lida com a transmissão e interiorização de saberes e modos de agir implicados nos múltiplos processos de formação humana”. Compreende-se essa formação humana como ajudar as pessoas a promover mudanças qualitativas no seu desenvolvimento e na sua aprendizagem. Após dois anos trabalhando estágio supervisionado com as formandas do curso de Pedagogia da FECHA no município de Anicuns, percebe-se a necessidade de proporcionar uma preparação profissional mais eficaz quanto a utilização das novas tecnologias, principalmente, o uso do cinema para o enriquecimento dos mais diversos temas estudados. Não basta que os professores disponham na escola dos meios de comunicação ou apenas aprendam a utilizá-los. É preciso que aprendam a elaborar e a intervir no processo comunicacional que se realiza entre professores e alunos por meio de mídias, já que elas são conteúdos, veiculam idéias, opiniões, práticas. Contra uma idéia linear e simplista sobre o uso das mídias, é preciso que professores e alunos elaborem e transformem idéias, sentimentos, atitudes, valores, utilizando articuladamente múltiplas mídias, escolares e não-escolares (Libâneo, 2005: 122). A importância da educação pela mídia acontece devido a televisão e o cinema serem cada vez mais instrumentos poderosos no processo de socialização. O uso do cinema e da televisão durante as aulas tornou-se imprescindíveis, porque pela experiência em trabalhar com a imagem, a discussão dos conteúdos dos filmes, a compreensão da técnica cinematográfica, às alunas vão compreendendo a linguagem desses meios e aprendem a fazer uma leitura crítica dos programas e dos filmes veiculados pelos meios de comunicação de massa. A tentativa com essa prática em sala de aula é a de garantir um espaço propício no mundo globalizado para atividades e SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 166 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. estudos sobre o cinema e com ele desenvolver competências que auxiliem as futuras professoras no cotidiano escolar. Para Rezende e Fusari (1994), “Os bons pedagogos sabem hoje qual é o papel pedagógico das mídias, especialmente do cinema e da televisão elas são, ao mesmo tempo, portadoras de conteúdo e meios tecnológicos da comunicação humana (visuais, cênicos, verbais, sonoros e audiovisuais)”. Todavia, esses meios de comunicação não substituem a Pedagogia. A escola convencional continua tendo seu espaço e importância mediante todas essas transformações. Com efeito, as mídias são mediações culturais e educacionais que educam e auxiliam a formar subjetividades. Os valores e as crenças transmitidas por esses meios ajudam na formação da personalidade das educandas que serão também formadoras das novas personalidades. Como nos lembra Libâneo (2005: 121), “Quem domina as mídias acaba por dominar as cabeças das pessoas, que é o que vemos acontecer na televisão, nas campanhas políticas, na propaganda”. O domínio exercido através dos meios de comunicação sobre as representações, o imaginário das pessoas e os discursos precisam considerar os aspectos pedagógicos e da ética para evitar que o encantamento com os meios de comunicação deixem em segundo plano os aspectos do desenvolvimento e formação humana. Desenvolvendo a experiência: a representação do professor nos filmes hollywoodianos Desde o tempo em que alguém imprimiu as primeiras gazetas, e depois com o nascimento do jornal, a relação entre condicionamentos externos e fato cultural tornou-se ainda mais precisa. A essa altura começa o fenômeno conhecido como indústria cultural, que surge, portanto, como um sistema de condicionamentos, aos quais todo operador de cultura deverá prestar contas se quiser comunicar-se com seus semelhantes. Isto é, se quiser comunicar-se com os homens, porque agora todos os homens estão preparados para tornarem-se seus semelhantes, e o operador de cultura deixou de ser o funcionário de comitê para ser o “funcionário da humanidade” (Eco, 2001: 14). Na realidade, a indústria cultural gerou e gera um círculo de manipulação e necessidades derivadas que a unidade do sistema tornou cada vez mais impermeável, tornando a racionalidade uma técnica de dominação em que é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena. O objetivo dessa experiência é auxiliar as alunas do curso SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 167 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. de Pedagogia na arte da análise e na utilização do audiovisual como um recurso eficaz no estudo, no lazer e na cultura. Durante os dois anos de realização dessa experiência, trabalhou-se para que as educandas estivessem aptas a ver um filme e pudessem realizar sua interpretação crítica como também a usá-lo de maneira didática durante uma aula, palestra ou evento similar. A atualização contínua fez com que as alunas procurassem habilitar-se e preparar-se para desenvolver um trabalho permanente que mostrasse como o cinema pode ser usado no cotidiano: 1. Iniciar a discussão de um assunto ainda não abordado e lançar uma questão a ser investigada; 2. Desenvolver um conteúdo; 3. Perceber o contexto histórico a que o filme se refere, o que ele está mostrando e que fenômenos e fatos são retratados; 4. Explorar a estrutura narrativa e como ela foi desenvolvida no filme (Bencini, 2005: 49). O ensino da Filosofia da Educação carrega hoje a proposta de contribuir para a intencionalização da prática educacional a partir de sua própria construção em ato como presença atuante na sociedade. Conforme Bencini (2005: 48), “A desordem cultural persistirá enquanto a escola pretender educar as crianças com instrumentos e sistemas que tiveram validade há 50 anos. (...) Subsistirão as lições, os braços cruzados, as memorizações enquanto fora da escola haverá uma avalanche de imagens e de cinema”. Diversos são os motivos que contribuem para o baixo rendimento das alunas em Filosofia da Educação: apresentação de um conhecimento pronto e acabado, a organização curricular, os objetivos, conteúdos e atividades ou com procedimentos utilizados na sala de aula por parte do professor, os excessos de conteúdos presentes nos livros e textos selecionados as atividades descontextualizadas da realidade das alunas e ausência de aulas de campo que promovam a prática fora da sala de aula. Diante das dificuldades encontradas procurou-se desenvolver essa atividade com o uso do filme objetivando levar as alunas à ruptura com o universo tradicional só de leituras, exercícios e provas para um novo processo inovador, ágil e dinâmico. Essa experiência com as educandas do curso de Pedagogia sugeriu uma reflexão sobre a produção cinematográfica dos filmes hollywoodianos que apresentassem uma temática SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 168 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. relacionada à vida cotidiana do professor e do aluno. O uso dos filmes foi escolhido por ter provocado uma maior inquietação nas nossas alunas, sendo possível levá-las a abordar e questionar a compreensão do vivido e do presente fazendo com que o encantamento com as lições fílmicas motivasse a prática pedagógica. Diante dos vários filmes existentes no mercado que tratam da representação do professor nos filmes de Hollywood optamos por trabalhar com os quatro que mais marcaram nossas educandas: Vem Dançar, de 2006; O Sorriso de Monalisa, de 2003; O Clube do Imperador, de 2002 e Em Nome de Deus, de 1988. O filme Vem Dançar1 é uma grande lição de vida e exemplo, pois mostra a realidade pela qual passam muitos jovens que ficam uma parte do tempo na detenção da escola, e um professor de dança: Pierre Dulaine, que se oferece para ajudá-los através de suas aulas de dança. No começo, o professor teve algumas dificuldades com os alunos, mas ele não desistiu e continuou, procurando motivá-los e encorajando-os, fazendo com que aprendessem a confiar em si mesmos para que ninguém os manipulassem e nem os colocassem em uma escala inferior, procurou mostrar também que a sociedade não é uma divisória e que todos têm direitos iguais, desde que lutem e trabalhem para alcançar seus objetivos. O professor: Pierre Dulaine foi um exemplo para muitos educadores que passaram e ajudaram milhares de estudantes, ele sim, fez a diferença. “A inteligência dos alunos não é um vaso que se tem de encher, é uma fogueira que é preciso manter acesa”. Essa fala do professor durante o filme alerta que todo ser humano nasce com um potencial, mas é preciso que dia após dia esse potencial seja alimentado; pois se deixarmos que o descaso dos governantes e parte da sociedade que detém os recursos financeiros, tecnológicos e culturais continuem manipulando a inteligência e o potencial dos jovens, vão a cada dia se tornando em meras cinzas, incapazes de produzir algo útil. Esse filme gerou a reflexão em torno das relações de poder tão freqüentes na sociedade brasileira e que podem ser verificadas entre os gêneros. O professor Dulaine revela a necessidade do “pathos”, o espanto que nutre o educador a continuar se adaptando às mudanças para poder promover uma educação de qualidade. Os alunos de castigo daquela escola pública de Nova York lembram as crianças e jovens da maioria das escolas municipais e públicas no nosso país. Aqueles interessados em hip-hop, os nossos amantes desse estilo de música e muitas vezes mergulhados no crime, nas drogas e roubo. O mais importante é que o professor consegue trabalhar como voluntário na escola e conquista a confiança da turma e os motiva a aprimorar suas habilidades. SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 169 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. No filme O Sorriso de Monalisa2, uma professora serve de inspiração para suas alunas, após decidir lutar contra normas conservadoras do colégio em que trabalha. Esse filme recria a atmosfera e os costumes do início da década de 50. A profa. Katherine Watson estimula as alunas a estudarem Arte Moderna, levando-as a um depósito em Boston para olharem um quadro de Jackson Pollock. O filme conta a história dessa professora de arte que educada na liberal Universidade de Berkeley, na Califórnia. Enfrenta uma escola feminina, tradicionalista – Wellesley College, onde as melhores e mais brilhantes jovens mulheres dos Estados Unidos recebem uma dispendiosa educação para se transformarem em cultas esposas e responsáveis mães. O esforço da profa. Katherine para gerar um pensamento e uma ação independente naquelas garotas acaba sensibilizando uma das alunas, Joan Brandwyn, que irá buscar sua formação em Direito na Yale Law School, no final. Embora aceita, ela desiste porque o noivo entrou em outra faculdade e ela não poderá ficar longe do lar, após se casar. Katherine, embora lutando pelo desenvolvimento mental e cultural das jovens, será também envolvida nos temas que tanto preocupam as alunas de Wellesley: o amor, as festas, o brilho na sociedade, o casamento, etc. Ela transita, com sucesso e beleza, neste meio, acabando por se apaixonar pelo professor de italiano. O filme, porém, trará à tona, embora de forma não profunda, temas fundamentais que começam a ser discutidos naquele momento como a aceitação da infidelidade masculina e a obrigatoriedade da sua compreensão pela mulher, a possibilidade de uma mulher escolher uma carreira em detrimento do casamento, e assim por diante. Ao verem o filme, as alunas solicitaram a presença de um artista plástico para uma palestra em que apresentasse algumas contribuições e reflexões sobre alguns dos quadros mostrados durante a exibição. Foi convidado o artista plástico Ricardo Gomes, que, prontamente, atendeu a solicitação e veio para uma exposição com a turma. Salientou que a Arte Moderna é a expressão do crescimento e da força; frisou também que a arte do século XX foi marcada por obras que exigem respostas e não a contemplação. O primeiro quadro comentado: Monalisa, quadro de Da Vinci também conhecido como (A Gioconda) famosa mulher pintada por Leonardo da Vinci, cuja expressão é introspectiva, leve, enigmática com um triste sorriso. Ricardo salientou que o esforço de Katherine foi o de levar as alunas a se interessarem vivamente por arte e, através deste interesse construírem a si próprias enquanto pessoas que têm opiniões SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 170 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. pessoais. O segundo quadro analisado foi “Lês Demoiselles d`Avignon” de Pablo Picasso, uma das mais importantes obras do que se chamaria Arte Moderna. Trata-se de mulheres em um bordel, em posições sedutoras, mas pintadas de forma plana e não com linhas arredondadas, como é o clássico corpo feminino. Elas nos olham e solicitam um posicionamento. O terceiro quadro apreciado “Greyed Rainbow” de Jackson Pollock é outra referência da Arte Moderna que o filme evocou. Esta obra foi finalizada três anos antes da morte de Pollock, vítima de um acidente de carro. O movimento, a textura, o jogo de cores e formas do quadro são capturados por uma câmera que se aproxima, investigativa da obra, aceitando o convite de Katherine: “Simplesmente olhe”. O quarto e último quadro comentado foi na verdade o primeiro apresentado pela profa. Katherine no filme: “Carcaça”, de Chaim Soutine, discípulo de Rembrant. Soutine é um dos representantes da Arte Moderna e traduz como ninguém o desespero pela falta de sentido que vê na vida. No filme O Clube do Imperador3, o processo de ensino-aprendizagem do professor William Hundert (Kevin Kline) era dinâmico, motivado. Ele procurava ensinar seus alunos através de exemplos, livros, quadros e, principalmente, incentivava a se cobrirem de panos para que pudessem se sentir no tempo e viverem o personagem da história. Assim se expressavam melhor e preparavam para a prova que tinham na escola da qual o vencedor teria como prêmio uma foto sua na exposição. A metodologia do professor visava um conhecimento crítico, pois ele procurava fazer com que os alunos refletissem sobre o valor e a responsabilidade de estudar para vencerem e serem alguém na vida, com respeito, dignidade e sabedoria. Lembra Aristófanes quando afirma: “[...] A ignorância pode ser educada, a estupidez pode ser eterna”. Com essa fala demonstra seu credo no valor da verdadeira educação como aquela que proporciona o pathos=espanto com a vida, com o mundo e com tudo que está a nossa volta. O que o professor espera de seus alunos é que eles se formem, tenham conhecimentos e principalmente se tornem cidadãos com valores morais, que saibam respeitar o próximo, ser honestos, lutar por justiça e por igualdade. O próprio lema da escola para rapazes Sant Benedict‘s: “o fim depende do começo” é um indicativo daquilo que o prof. Hundert – um apaixonado pela história antiga – almeja da escola que deve ser o ambiente cujos alicerces são a tradição e a honra, onde se ministram aulas em que a emoção e a alegria deverão estar sempre presentes. SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 171 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. Apesar de tudo que o professor fez, mostrou que há dificuldades e problemas em uma sala de aula. O importante é nunca desistir, deve-se motivar, dedicar, procurar novas técnicas e lutar até o último minuto para transformar e formar verdadeiros cidadãos para a sociedade. O Sr. Hundert compreende que o dever de um professor é ensinar que o ensino mude o caráter de um menino e o transforme num grande homem. Esse filme apresentou fortes lições de moral do prof. Hundert a seus alunos. Outra boa qualidade foram as frases em latim usadas pelo prof. com um forte apelo ao caráter, à retidão e à honestidade. “O caráter de um homem é o seu destino”, essa é uma das pérolas apresentadas. A metodologia utilizada foi o ponto central de análise com a turma. Vários aspectos foram observados no filme Em Nome de Deus4. O primeiro mostra, de uma forma geral, a sociedade de uma época, muito conservadora, cheia de princípios morais e, principalmente, religiosos, baseada numa crença coletiva e, por esse motivo, uma sociedade regida por regras de comportamento, o que por sua vez, torna-a preconceituosa com aquilo que não condiz com os seus parâmetros de comportamento já pré-estabelecidos pela mesma, e é este preconceito que vai gerar os conflitos da história. Embora, a princípio, o filme mostre uma sociedade conservadora, no decorrer das cenas, vai se revelando uma outra realidade: a que vai além das aparências. Percebe-se que a sociedade é capaz de muitas coisas que não se encaixam na imagem passada a princípio, uma sociedade capaz de matar, mentir, ferir, enganar, capaz de tudo por dinheiro e poder. Fatos estes comprovados por algumas cenas, por exemplo, a cena que mostra a falsificação de relíquias religiosas em que um dos personagens as prepara e depois as vende por preços absurdos, dizendo ser ossos de Cristo etc. Outra cena muito forte e de grande injustiça foi quando castraram o professor de filosofia Peter Abelardo. São inúmeras as cenas que revelam a contradição de princípios e valores dessa sociedade. Mas o filme não revela apenas o negativo, também mostra exemplos muitos bonitos de dedicação, idealismo, força de vontade, perseverança, tudo isso ligado a uma grande história de amor, que nem a maldade e o preconceito de uma época foram capazes de destruir, deixando para quem pôde assistir grandes contribuições e exemplos para a vida, tais como: lutar por um ideal, perseverar naquilo que se acredita mesmo que muitos duvidem e até critiquem, vencer o preconceito e o medo de tentar, e mostrou que SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 172 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. é preciso exercitar e dar valor a verdade que mais alivia do que machuca e certos de que ela estará sempre acima de qualquer falsidade como o óleo sobre a água. Esse filme motivou um caloroso debate em sala de aula, pois proporcionou duas grandes lições: a nomeação do prof. Peter Abelard para Escola Catedral de Notre Dame, tornando-se, em pouco tempo muito conhecido com sua sabedoria por fazer uso da dialética em suas aulas. O respeito e o envolvimento com os discípulos chamaram a atenção de todos. O amor sentimento dos sentimentos que envolveu Abelardo e Heloísa intrigou toda a turma por transmitir a vitalidade e a persistência com que lutaram para estarem juntos. Pretendendo ampliar o conhecimento fílmico e buscando encontrar outros fatores relacionados ao uso de outras linguagens no ensino da filosofia da educação, nossas reflexões procuraram compreender três pontos: 1-elaboração de eixos norteadores; 2-exibição dos filmes selecionados em sala de aula; 3-atividade motivadora. No primeiro momento juntamente com as alunas, foram elaborados os eixos norteadores em consonância com o ementário da disciplina: Filosofia e Educação; Educação e Sociedade; Tendências Pedagógicas na Prática Escolar; O Conhecimento – Elucidações Conceituais e Procedimentos Metodológicos. No segundo momento, procurou-se, após uma breve reflexão técnica e interpretativa sobre a disciplina, enfatizar a importância dos filmes para a formação da futura pedagoga. Através dos debates, foram feitas reflexões sobre o conhecimento prévio que as educandas tinham sobre o valor do educador abordado nos filmes. Essa experiência teve a duração de quatro meses, ou seja, de um semestre letivo, sendo que a cada mês era projetado um filme. Isso ocorreu durante os dois anos em que foi feita a experiência. A exibição dos filmes em sala de aula foi a maneira encontrada para proporcionar novos elementos enriquecedores para as aulas de Filosofia da Educação, notando didaticamente a relação cinematográfica com o ensino da filosofia no curso de Pedagogia. A problematização das imagens, a época, os gestos, as formas de expressão do mundo complexo do educador fizeram com que as alunas percebessem como é o espaço do professor em uma sala de aula. SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 173 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. Finalmente, o terceiro momento é a atividade motivadora. Depois da exibição dos filmes e debates, as alunas reuniram-se em sala de aula e, em grupos, foram convidadas a realizar duas atividades consideradas importantes para a compreensão dessa experiência: 1. Análise do filme – Nesse momento foram entregues aos grupos questões referentes aos filmes exibidos para serem preenchidas. As alunas registraram a representação do professor e dos educandos na visão do cineasta; a contextualização histórica do filme; anotação dos pontos positivos e negativos da compreensão dos filmes; e considerações apreendidas. 2. Produção e apresentação de um texto produzido pelos grupos, tomando como referência a análise dos filmes. Conforme a aplicação da atividade foi importante apreender e observar a dimensão histórica, os pontos que guiaram a reflexão de nossas alunas, as reflexões sinalizadas e a certeza de que os momentos compartilhados a partir da própria experiência de vida auxiliam a contextualizar os conceitos percebidos nos filmes. As avaliações dos grupos foram feitas de forma contínua, ou seja, por meio do acompanhamento das atividades realizadas tanto individualmente quanto em grupo. Os melhores trabalhos serviram para publicação no jornal Integração do Departamento de Educação da FECHA. Os debates em sala foram realizados tomando como parâmetro a produção dos textos pelos próprios grupos. De maneira geral, houve o envolvimento e a participação das alunas por sentirem o mérito desse tipo de atividade como uma ação pedagógica. Nos filmes assistidos, o professor, o aluno e a escola parecem ter ainda lugares essenciais na vida das pessoas, embora essa realidade esteja se transformando. Considerações finais É importante salientar que durante as exibições dos filmes, as alunas além de perceberem a importância da produção cinematográfica como recurso didático, compreenderam também que o uso dos recursos tecnológicos é de suma importância para o processo ensino-aprendizagem. Ressalta-se que a estrutura das aulas de Filosofia da Educação obedece a uma estrutura e esta não exclui a história cronológica. Portanto, a escolha dos quatro filmes para a exibição e o estudo em sala de aula buscou compreender a necessidade do questionamento do tempo histórico abordado nas apresentações. Também é importante perceber que: SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 174 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. As transformações sociais se dão em um tempo diferenciado, ´num tempo histórico‘, que deve exprimir e explicar essa mudança. É a esse tempo – que chamaremos de tempo histórico – que devemos ficar atentos e não somente ao que podemos chamar de tempo físico ou tempo cronológico. O tempo histórico exprime, explica o processo que sofre a realidade social em estudo (Cabrini, 1994: 36). Os filmes trouxeram uma forma de representação do real. A análise realizada dos tópicos propostos para estudo leva a considerá-los como conjuntos em que a inserção de cada elemento possui um significado, o que cria a necessidade de apreender os esquemas que presidiram a relação e a organização das diferentes partes que o constituem. Conforme Kornis (1992: 11), “O filme possui um texto visual que merece, assim como o texto escrito, uma análise interna e, como artefato cultural possui sua própria história e um contexto social que o cerca. Reside aí a complexidade da análise fílmica para a história social”. Ainda que venham ocorrendo transformações na sala de aula cada vez mais rápidas, percebe-se que o professor deve fazer uso das novas mídias e de outras formas metodológicas com o intuito de possibilitar às educandas uma reflexão do tempo vivido e das experiências do presente. Tudo isso leva os professores comprometidos e engajados com o departamento, com a faculdade e com a educação a buscarem novas metodologias, técnicas e estratégias que procurem situações a fim de propiciar dinâmicas na busca da compreensão da filosofia da educação. Mesmo reconhecendo que a sociedade contemporânea está mergulhada num mundo de imagens, constata-se a diversidade de questões que se colocam ao professor que faz a opção em trabalhar com os filmes. Dessa forma, a produção cinematográfica foi uma maneira encontrada pelo professor e pelas alunas para vivenciarem na prática outras linguagens tomadas como fontes para interpretar a construção do conhecimento. NOTAS 1 Marca a estréia da diretora veterana de comerciais e videoclipes Liz Friedlander, que já dirigiu para vários artistas como Joss Stone, U2, Blink 182 Simple Pan. Em sua preparação para o papel, Antônio Banderas teve aulas de dança com coreógrafa JoAnn Jansen, que trabalhou em Dirty Dancing e Baila comigo. (Dados capturados no site www.adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes, acesso em 30 de julho de 2007). 2 Premiação: recebeu uma indicação ao Globo de Ouro, na categoria de melhor canção original (“The Heart of Every Girl”). Curiosidade: para se preparar para o papel a atriz Julia Roberts assistiu a algumas aulas de História da Arte na Universidade de Nova York. (Dados capturados no site www.adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes, acesso em 30 de julho de 2007). SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 175 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. 3 Esta é a segunda vez que o diretor Michael Hoffman e o ator Kevin Kline trabalham juntos. A anterior fora em Sonhos de uma noite de verão (1999). (Dados capturados no site www.adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes, acesso em 30 de julho de 2007). 4 Pierre Abélard (1079-1142) foi teólogo e filósofo francês, nascido em Lê Pallet, perto de Nantes, considerado um dos maiores intelectuais do século XII com especial importância no campo da lógica, e precursor do racionalismo francês. (Dados capturados no site www.beatrix.pro.br/cultobsc/heloidecem.htm, acesso em 30 de julho de 2007). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CABRINI, Conceição. et.al. O ensino de história: revisão urgente. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Trad. Ivone Castilho Benedetti. Bauru, SP: EDUSC, 2001. KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol. 5, n. 10, 1992, pp. 237-250. LIBÂNEO, José Carlos. A importância do cinema na escola. Educativa. Goiânia: vol. 8, n. 1, jan-jun de 2005, pp. 117-124. REZENDE; FUSARI, M. Multimídias e formação de professores e aluno: por uma produção social da comunicação escolar da cultura. In: VVI EDIPE. Anais... Goiânia, 1994. SARTORI, G. Homo videns: televisão e pós-pensamento. Bauru, SP: EDUSC, 2001. www.adorocinema.cidadeintenet.com.br/filmes, acesso em 23 de julho de 2007. Anexo: ficha técnica e sinopse dos filmes 1. Título: Vem dançar Gênero: Drama Tempo de duração: 108 minutos Ano de lançamento (EUA): 2006 Direção: Liz Friedlander Roteiro: Dianne Houston Produção: Christopher Godsick, Michelle Grace e Diane Nabatoff Edição: Robert Ivison Elenco: Antônio Banderas (Pierre Dulaine), Rob Brown (Rock), Dante Basco (Ramos) e Lyriq Bent (Easy) Sinopse: Pierre Dulaine (Antônio Banderas) é um dançarino de salão profissional, que se torna voluntário para dar aulas de dança em uma escola pública de Nova York. Pierre tenta apresentar seus métodos clássicos, mas logo enfrenta resistência dos alunos, mais interessados em hiphop. É quando desse confronto nasce um novo estilo de dança, mesclando os dois lados e tendo Pierre como mentor. 2. Título: O sorriso de Monalisa Gênero: Drama Tempo de duração: 125 minutos Ano de lançamento (EUA): 2003 Direção: Mike Newell Roteiro: Lawrence Konner e Mark Rosenthal Produção: Elaine Goldsmith-Thomas, Paul Schiff e Deborah Schindler Edição: Mick Audsley Elenco: Julia Roberts (Katherine Watson), Kirsten Durnst (Betty Warren), Julia Stiles (Joan Brandwyn), Maggie Gyllenhaal (Giselle Levy), Marcia Gay Harden (Nancy Abbey) e Topher Grace (Tommy Donegal). Sinopse: Em 1953, a recém graduada Katherine Watson (Julia Roberts) torna-se professora de História da Arte do respeitado e conservador colégio Wellesley. Decidida a lutar contra normas tradicionais que existem na sociedade e no próprio colégio, a jovem professora inspira suas alunas, como Betty (Kirsten Dunst) e Joan (Julia Stiles), a vencer seus desafios de vida. Uma espécie de Sociedade dos Poetas Mortos na versão feminina. SILVA, Edson Pereira da SILVA. A representação do professor nos filmes hollywoodianos. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. 176 Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 163-179, Dez. 2008 / Jun. 2009. 3. Título: O clube do imperador Gênero: Drama Tempo de duração: 109 minutos Ano de lançamento (EUA): 2002 Direção: Michael Hoffman Roteiro: Neil Tolkin, baseado em curta-metragem de Ethan Canin Produção: Marc Abraham e Andy Karsch Edição: Harvey Rosenstock Elenco: Kevin Kline (William Hundert), Emile Hirsch (Sedgewick Bell), Embeth Davidtz (Elizabeth Brewter), Chris Morales (Eugene Field), Luca Biginini (Copeland Gray) mais velho e Patrick Dempsey (Louis Massoudi) mais velho. Sinopse: William Hundert (Kevin Kline) é um professor da St. Benedict‘s, uma escola preparatória para rapazes muito exclusiva que recebe como alunos a nata da sociedade americana. Lá Hundert dá lições de moral para serem aprendidas, através do estudo de filósofos gregos e romanos. Hundert está apaixonado por falar para seus alunos que “o caráter de um homem é o seu destino” e se esforça para impressioná-los sobre a importância de uma atitude correta. Repentinamente algo perturba esta rotina com a chega de Sedgewick Bell (Emile Hirsch), o filho de um influente senador. Sedgewick entra em choque com posições de Hundert, que questiona a importância daquilo que é ensinado. Mas, apesar desta rebeldia, Hundert considera Sedgewick bem inteligente e acha que pode colocá-lo no caminho certo, chegando mesmo a colocá-lo na final do Senhor Júlio César, um concurso sobre Roma Antiga. Mas Sedgewick trai esta confiança arrumando um jeito de trapacear. 4. Título: Em nome de Deus Gênero: Romance Tempo de duração: 105 minutos Ano de lançamento (Inglaterra/Iuguslávia): 1988 Direção: Clive Donner Roteiro: Chris Bryant Produção: Susan George Edição: Michael Ellis Elenco: Derek de Lint (Peter Abelard), Kim Thomson (Heloise), Denholm Elliot (Fulbert), Kenneth Cranham (Seiger), Patsy Byrne (Agnes) e Cassie Stuart. Sinopse: Em Paris, no século XII, o respeitado professor e filósofo da Escola de Notre Dame Peter Abelard (Derek de Lint) é contratado para ser o tutor da bela e inteligente Heloise (Kim Thomson). Rapidamente eles se apaixonam, mas precisam manter seu relacionamento escondido de todos porque Abelard está comprometido com o celibato. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. CEMITÉRIOS OITOCENTISTAS COMO LUGARES DE MEMÓRIA Gleidson de Oliveira Moreira∗ Resumo: Abstract: Nada é tão individual quanto à morte, por ser intransferível. Todo conhecimento a seu respeito é indireto, pois somente é apreendido pela morte do outro. Isso gera, ainda, a exacerbação dos signos tumulares para tornar visível o ser em detrimento do nada, buscando dar um sentido de presença e recordação eterna ao ausente. Esse artigo abordará os cemitérios oitocentistas como lugar de memória, observando o caso específico do Cemitério São Miguel de Arcanjo na cidade de Goiás. Nothing the death is so individual how much, for being intransferable, All knowledge its respect is indirect, therefore it is only apprehended by the death of the other. This generates, still, the exacerbation of the signs tumulares to become visible the being in detriment of the nothing, searching to give to a direction of presence and perpetual memory to the absentee. This article will approach the cemetaries oitocentistas as memory place, observing the specific case of the Cemetary Is Miguel de Arcanjo in the city of Goiás. Palavras-chave: Morte; Cemitérios; Lugar-memória; Goiás. Key-words: Death; cemeteries; place-memory, Goiás. Todo e qualquer cemitério, e particularmente o cemitério oitocentista, é um lugar de reprodução simbólica do universo sócio-cultural e de expectativas metafísicas. Esta primeira característica determina a existência de uma relação dos mortos e a memória. Com efeito, esta pode ser definida como um conjunto de recordações e de imagens associadas a representações, as quais conotam valores e normas de comportamento elaboradas e ou “inventadas”. Como defende Paul Ricoeur ao comparar a memória e imaginação, a última invoca o ausente como irreal, a memória representa-o como anterior à evocação, sugerindo assim uma dimensão “veritativa”1. Se ontologicamente a morte remete para o não-ser, é na memória dos vivos, que os mortos poderão ter uma existência mnésica. As imagens produzidas a partir da lembrança garantirão sua existência. Ganha desta maneira significado o cemitério ocidental que estruturado como uma textura de signos e símbolos “dissimuladores” do sem sentido - a morte – e, “simuladores” da somatização do cadáver, tornará o cemitério ∗ Mestre em História pela UFG. Este artigo é resultado parcial da pesquisa: “O cotidiano da morte em Goiás no Século XIX”. MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 178 um campo simbólico que, se convida à anamnesis,2 encobrindo o que se pretende esquecer e recusar.3 Isso implica dizer que a função do símbolo funerário é uma metáfora do corpo e o cemitério compreende o lugar de recusa do esquecimento, pois este compensará o lugar de recusa do esquecimento do morto pela objetivação dos desejos de sua eternidade. Os vivos não querem ser esquecidos depois de mortos. Diante a incompreensibilidade do ser esquecido pela morte, tratará esse texto do Cemitério oitocentista como lugar de memória-construída, memória que emerge como protesto compensatório da morte. Buscará no estudo específico do Cemitério São Miguel de Arcanjo da cidade de Goiás, evidenciar a “morte do outro”, morte antevista; recordação do finado constituindo a morte de quem se antevê morto uma “representificação” quando rememorado e, por conseguinte, perpetuado na memória dos vivos. 4 Para tanto, observar-se-à no túmulo da poetisa Cora Coralina, signo funerário, um exemplo dessa representificação. Memória em construção. Derivado de “sema”5 o signo, pedra tumular, tem em sua função não apenas devorar e digerir o cadáver, mas ser compreendido como sobreposição de significantes (cadáver vestido, caixão, pedra tumular, epitáfio, estatuária, fotografia, etc.) que induzem metaforicamente a aceitar-se a incorruptibilidade do corpo, 6 elevando-se a metonímia do real. Ou seja, cada significado dado ao cadáver acrescenta uma máscara ao sem sentido, o desejo é de parar a putrefação alimentando a ilusão de que o corpo não está condenado ao desaparecimento.7 E os signos “são assim dados em troca do nada segundo uma lei de compensação ilusória pela qual quanto mais signos, mais existe o ser e menos o nada. Graças à alquimia das palavras, dos gestos, das imagens (fotografias...) ou monumentos – posto que as sepulturas seguem a mesma lógica – dáse a transformação do nada em algo ou em alguém”.8 Nos cemitérios oitocentistas os túmulos constituem uma totalidade significante que articula duas dimensões bem diferenciadas: o “invisível” (situado debaixo da terra) e o “visível”, o que faz com que, como escreveu Bernardin de SaintPierre em 1868 na Revista dos Monumentos Sepulcrais, o túmulo constituía-se “um monumento colocado entre os limites de dois mundos”9 Se a invisibilidade cumpre na “clandestinidade” a função higiênica, a camada semiótica tem por papel encobrir o cadáver, transmitindo às gerações vindouras os signos capazes de individualizarem a “representação”, ou melhor, a “representificação” do finado. E é por causa destas MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 179 características que é lícito falar, a propósito, da linguagem cemiterial como uma “poética da ausência”10 No cemitério São Miguel Arcanjo da cidade de Goiás, esse jogo do simbolismo cemiterial associado a uma “poética da ausência”, suscitará a elaboração de memórias dadas numa dimensão “veritativa” ao ausente. Aqueles a quem se pretende recordar emergem do abscôndito continente do recalcado. Isto é, se toda a memorização, enquanto construto mediado pelo presente (a existência de uma “memória pura” é uma ilusão bergsoniana), tem a sua outra face no inconsciente, lado adormecido do consciente, 11 também o cemitério, como “lugar de memória”, assenta no invisível fundo de amnésia, algo que também se detecta no campo da consciência individual: a memória e o esquecimento mantêm a mesma relação que une a vida e a morte. 12 A projeção da necessidade existencial que relega a morte a condição garantidora da imortalização pela memória, aproxima a morte da vida na constatação de sua evidência material como a epígrafe tumular da poetisa Cora Coralina. Meu Adeus à vida Morta serei árvore, serei tronco, serei fronte. E minhas raízes agarradas as pedras de meu berço são as cordas quebradas de uma lira. Enfeitar de folhas verdes a pedra de meu túmulo num simbolismo de vida vegetal. Não morre aquele que deixou na terra a melodia de seus cânticos na música de seus versos. Cora Coralina (1889-1985) Eternizada pela necessidade de negar-se ao esquecimento, a memória do morto representeficado pelo trato das imagens, valida o mundo pela mesma ação que provoca seu esquecimento: a morte. Percerbe-se ai a interseção dos mundos visível e invisível. Cora Coralina se antevê morta, transitando da morte a memória. Elemento garantidor do seu não esquecimento. MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 180 Tanto a vida orgânica quanto a vida simbólica dará a Cora Coralina uma nova cenografia e culto. A renovação das velhas qualificações da morte como “mortesono” (E minhas raízes agarradas às pedras de meu berço...) implicará na explicação de outra forma de habitação do morto. Arquitetonicamente materializada como sucessora e sucedânea do “teto eclesiástico” (o jazigo-capela), mas também como “casa”, a sepultura, tal como a “casa da família” (dos pais, dos avós), passa a ser centro privilegiado de “identificação” e de “filiação” de gerações que retornam ao “berço de origem”, a cidade de Goiás. E todas estas necessidades simbólicas farão da necrópole um analogon da cidade dos vivos.13 O cemitério Municipal São Miguel Arcanjo é uma necrópole de evidências burguesas, pois levou às últimas conseqüências um desejo de sobrevivência individualizada que, embora potenciado pelo uso do material tumular (porcelana, mármore carrara...), arte estatuária importada (regiões litorâneas do Brasil ou da Europa) epígrafes rebuscadas em bronze e territorizalização de poder no uso geográfico do espaço cemiterial (militares e políticos ocupando simultaneamente o lado esquerdo da entrada do cemitério), (famílias tradicionais, em sua maioria destadas na entrada pelo lado direito), (pobres e indigentes ao fundo), ainda alimentou a idéia judaico-cristã do post-mortem, sobretudo, pela promessa de ressurreição final dos corpos, que só ganhou curso nos alvores da modernidade. Afinal, se comparada a necrópole oitocentista, a necrópole do homem medieval não o permite estar centrado sobre si mesmo, pois se sentia co-participante da comunidade santa dos crentes, isto é, sentia-se na posse da verdadeira vida.14 Em tal horizonte, só podia brotar uma concepção dominantemente comunitária do além. Ao seja, com o crescimento da importância do “sujeito”, teriam de aparecer projetos em que a nova dimensão sociabilitária não poderia subsumir o direito ao “indivíduo” e à sua privacidade. Os sinais que apontam para a emergência de atitudes “individualizantes” do cemitério oitocentista começam como os jacentes e os orantes no século XIII, conquanto ainda circunscritos aos mais dignitários da sociedade. Com o avanço do processo civilizacional, nomeadamente a partir dos finais do século XVIII, esta tendência ir-se-á “democratizar” e expandir, atingindo a sua máxima expressão nos novos cemitérios do século XIX. No Brasil é a própria lei imperial (ao exigir sepulturas individualizadas) e os próprios valores fundantes da nova sociedade surgida da transição da monarquia a república a acenar com a promessa de que, nem que fosse através da MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 181 ritualização mnésica, o culto dos mortos devia cada vez mais ser intersubjetivo e familiar, a que todos podiam finalmente aspirar à perpetuação na memória coletiva. Dirse-ia que as garantias de imortalização foram passando de privilégio de alguns a direito natural de todos. Neste contexto, a progressão dos privilégios individuais antes restritos a padres ou a um líder político de notoriedade sepultados no interior das Igrejas templos no Brasil e observados Goiás na igreja do Carmo, na capital da Província tornado secularizado, a partir de 1801, que reforça o domínio do status quo. É a partir de 1808 que em Goiás o advento dos cemitérios públicos, leva a individualização e anonimato, os cadáveres acantonados no adro e naus direita e esquerda15 de muitas igrejas católicas. O jazigo, O epitáfio, a estátua e, por fim, a fotografia (relembre-se que a descoberta da fotografia é contemporânea da revolução cemiterial romântica) que se detecta nos cemitérios modernos a partir do final dos oitocentos a tradução iconográfica adequada a ritualização dos novos imaginários. Mesmo imaginários que apontavam para fins escatológicos. E para que o trabalho simbólico do cemitério (a localização geográfica) correspondesse àquelas expectativas, a materialização dos signos que exigiu a “fixação” do cadáver (isto é, um monumento), passou a ser nítida e inequívoca a “evocação” (a imagem, o símbolo ou o epitáfio narrativos) e a “identificação” do ausente (a epigrafia onomástica).16 Esta maior acentuação da memória ocorreu dentro de uma mundividência dominantemente religiosa, embora já alcançada por influências secularizadoras. O novo cemitério oitocentista rompeu com o círculo sacral dos enterramentos nas (ou à volta das) igrejas ficou subordinada a uma gestão política, passando também a ter um ambíguo estudo profano. Por isso surgiram várias resistências dos setores mais tradicionalistas da igreja Católica ou de populares ligados a ela. Na Bahia esses novos espaços geraram no século XIX a revolta da cemiterada, uma reação de escravos e homens livres secularização da morte17. Mas faltar-se-ia à verdade se não se frisasse que, desde o século XVIII, muitos iluministas e eclesiásticos já defendiam o “exílio dos mortos”, e basta atentar nas prerrogativas que a Igreja continuou a ter em relação aos novos cemitérios (considerando-as como campos consagrados) e ter em conta a fraquíssima expressão dos enterramentos civis oficialmente confirmadas desde o século MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 182 XVIII, para se confirmar, no caso português, a continuidade da determinação religiosa do novo culto cemiterial dos mortos. Todavia, esta dimensão do trato com os cemitérios não pode conduzir à subalternização de uma outra realidade que lhe é coexistente, a saber: a secularização provocada não só pelo modo mais profano de gerir os cemitérios (em Portugal, eles foram definidos como “espaços públicos” de gestão municipal ou paroquial por leis de 1834, no Brasil, a secularização dos cemitérios em lugar dos enterramentos em igrejas adveio do Primeiro Reinado) situação que ganhou projeção também no campo tanatológico, das idéias e dos valores de uma época crescentemente polarizada pelos desejos de afirmação da individualidade e de expectativas terrenas: a insalubridade.18Daí que, nos comportamentos e nas atitudes em relação à morte, sejam igualmente observáveis as novas necessidades sociabilitárias decorrentes da raiz “contratualista”, “associativista” e “relacional” da sociedade moderna, também encontrada na projeção das estratégias de legitimação dos vários poderes e as tensões resultantes da gradual autonomização da memória histórica em relação à imortalidade transcendente. Isto é, o cemitério objetiva esteticamente o próprio inconsciente da sociedade. E esta se dá a ler mediante uma trama simbólica estruturada e organizada à volta de certos temas e mitos unificados por esta função: reforçar, depois do “caos”, a “racionalidade” dos vivos, e imobilizar o devir, mesmo quando se recorre ao contraste (ambíguo) com transcurso irreversível do tempo e da transitoriedade da vida. Isto significa que, neste processo, se detectam investimentos simbólicos não raro antagônicos entre si. Mas a sua condicionalidade histórica e social não deve fazer esquecer que essa rede de signos se revela a partir de um impulso de raiz metafísica, o qual impele o homem a separar-se da natureza e da animalidade e a emergir, na escala dos seres, como um cultuador de mortos, logo, como um produtor de cultura e de memória. Sem a angústia nascida da tomada de consciência da precariedade humana não haveria necessidade de se construírem monumentos, pois só aquele que se sabe e se recusa a ser transitório pode aspirar à perpetuação.19 Numa categorização antropológica, o monumento funerário tanto é a exteriorização da tomada de consciência de que o homem é um ser para a morte com direito de afirmação à memória, como o signo funerário em sua significação monumental. O túmulo de Cora Coralina, constitui uma forma de assegurar a imortalização na terra.20 MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 183 Relacionado às práticas dos italianos de Gênova, Bari ou Messina, estes chamam às suas necrópoles modernas Cemiterios Monumentales por serem fiéis a uma realidade primordial que os “campos santos” oitocentistas expressam. A palavra latina monumentum deriva da raiz indo-européia men. Esta exprime uma das funções nucleares do espírito (mens), a “memória”. Deste modo, tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação – incluindo os próprios atos escritos – é um “monumento”.21 É verdade que, com a Antigüidade romana, aquele tinha dois significados: denotava uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura (arco do triunfo, coluna, estátua, troféu, pórtico, etc.) e aplicava-se a edificações funerárias destinadas a eternizar a lembrança de alguém. Como sublinhou Philipe Ariès, já na sua origem “o túmulo é um memorial”22 E, mesmo nas sociedades de dominância sacral, a sobrevivência do morto não se concretizaria somente no plano escatológico, mas também dependeria da fama que os túmulos (com os seus signos, as suas inscrições) e os elogios de escritores ajudavam a reativar a lembrança de Cora Coralina. Como toda a memória é simbólica – isto é, opera por metáforas que exprimem um estado de espírito, uma situação, uma relação, uma pertença ou mesmo uma essência inerente ao grupo23 entende-se que o cemitério monumental na sua expressão arquitetônica e na sua função de “lugar de memória”, evoque significados e resignificações. O nexo entre a memória e o monumento, articulado com o jogo “dissimulador” dos símbolos funerários, obriga no campo dessas significações, a ter-se cautela na qualificação do cemitério moderno como museu, uma das expressões privilegiadas da “memória-saber”. Cenário de “memórias construídas”, mas também de “memórias-vividas” (principalmente no terreno da gestão familiar do culto), os cemitérios são os “lugares de memória” por excelência do século XIX (e do seu prolongamento no século XX), porque as recordações que os seus símbolos sugerem não privilegiam somente a ordem do saber – como é típico do racionalismo iluminista e da organização museológica ou bibliotecária – mas mais a ordem dos sentimentos e das intenções cívico-educativas.24 Nas suas expressões mais afetivas, o “diálogo” que a evocação pressupõe quase anula o distanciamento gnosiológico entre o sujeito e o objeto e faz dela uma “comemoração”. É que toda a memória se exprime, quaisquer que sejam as variações culturais, a partir de uma relação dialógica em que, a sociedade põe questões que a MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 184 memória procura responder.25 Por com seguinte, a comemoração será sempre uma partilha. Nela, o recordar, mesmo sendo um diálogo do “sujeito” consigo mesmo, não se esgota num ato ensimesmado ou meramente subjetivo, mas diz-se na linguagem “pública”, “coletiva” e “instituinte” da celebração ritual, numa teatralização que pretende gerar efeitos que ultrapassem o pragmatismo da transmissão dos saberes. Com efeito, se, como sustenta Pierre Nora, os “lugares de memória” sugerem a paragem do tempo26 e, de certa maneira, a “imortalização da morte”, não é outro valor senão o mnésico do cemitério, pois nele se encontra uma das características essenciais daqueles espaços: a sua estruturação como um sistema de significantes que, a par da face “veritativa” que referenciam, também visam gerar “efeitos normativos” e, de certo modo, “afetivos”. Os símbolos do cemitério possuem conteúdo ou história, eles revelam algo característico de toda ordem simbólica encobridora da corrupção do tempo: organizam o campo imaginário como um “templo”, cavando uma censura de indeterminação do “espaço” e do “tempo” profanos, e escrevem um círculo de sacralidade no interior do qual os signos só valem no tecido das suas relações. Assim, as “liturgias” desenrolam-se num “espaço- tempo” específico, distinto do espaço e do tempo cotidianos, e o cemitério é freqüentado como uma espécie de santuário. Ora “historiquement, cela n’a d’ailleurs pas toujours été le cas; ce n’est qu’au XVIII siècle et sourtout au XIX siècle, au moment où la sépulture s’affirme comme support du souvenir et où le culte dês morts devient culte des tombeaux, que le cimetiére accéde à la sanctuarisation”27 Devido a este estatuto, os cemitérios oitocentistas, ao contrário dos cemitérios antigos, tinham de ser lugares de excesso, fechados sobre si mesmos, espaços em que o próprio muro físico funciona como proteção contra as profanações e como uma espécie de “símbolo-fronteira”, campo semântico onde mesmo o mais secular dos significantes se aura de sacralidade. Nesta perspectiva, e ao contrário das peças de um museu, os objetos cemiteriais não são psicologicamente dissociáveis da estrutura em que se integram. Isto é, o lugar (topos) e o signo (sema) estão de tal modo imbricados um no outro, são de tal modo compreendidos como co-extensivos, que nenhum dos dois é fenomenologicamente separável,28 parecendo natural a relação entre o significante, o significado e o referente (ausente). Mas esta naturalidade recobre-se de sacralidade, já que, como “lugares de consagração” neles se convoca o “invisível” através do “visível”, suscitando simultaneamente atração e medo, ao contrário do que acontece com o museu, MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 185 território em que os objetos expostos aparecem descontextualizados, ou melhor, surgem inseridos num conjunto artificial e erudito. Sem dúvida, é a consciência do defasamento existente entre o topos e o sema que leva a deplorar-se o cariz decepcionante, por estarem separadas da sua arquitetura e do seu ambiente,29 das esculturas funerárias quando isoladamente vistas em exposições. Pretende-se com tudo isto defender que o símbolo funerário é metáfora de vida e apelo, uma periódica ritualização revivificadora; ele é para ser vivido e para ajudar a viver,30 oferecendo-se assim como um texto cuja compreensão mais afetiva (a dos “entes queridos”) envolve toda a subjetividade do sobrevivente. Com a sua linguagem de recolhimento e do silêncio, o novo rito cemiterial irá ter na “visita” periódica (com maior incidência no Dia dos Defuntos – 2 de novembro) a sua expressão pública mais relevante, atitude que ganhou um incontornável tom comemorativo e de celebração, como exemplarmente se comprova pela análise das romagens, sobretudo pelas que foram diretamente animadas por intenções cívicas. É certo que lhe faltam algumas características que Emile Durkheim definiu para o “rito comemorativo”, mormente o aspecto diretamente representativo, recreativo e estético da manifestação. Mas a tendência para a individualização que nela se detecta não era de pendor narcísico, solitista ou associal; recordação e comemoração ainda não estavam dissociadas: a evocação, que o novo culto fomenta, é um modo de reconhecimento, isto é, uma prática de legitimação que retrospectivamente apela para a autoridade simbólica dos mortos, levando-os a “antepassados normativos e paradigmáticos” de um grupo. Defende-se assim que, mesmo à escala da “visita ao cemitério”, é possível surpreender as características que, numa evidente transferência analógica, as comemorações políticas de raiz tanatológica explicitavam de uma maneira ainda mais evidente. A idéia de comemoração é herdeira não só da solenidade da cerimônia pública de elogio e de menção de um nome, como implica a sacralização do evocado, desenrolando-se, em similitude com a sua matriz – o ato religioso –, num rito eficaz para a memória dos mortos e para o destino dos vivos. O túmulo de Cora Coralina é um dos mais visitados por turistas e estudiosos que vão à cidade de Goiás. A partir dessa e de outras figuras, tecem acontecimentos fundadores no Cemitério São Miguel Arcanjo: a comemoração, ou melhor, o espetáculo da rememoração – que requer um lugar, um teatro, um tempo e a sua ficção, uma MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 186 mensagem, a recordação e o esquecimento –, uma prática socializada que unifica a diversidade e até o antagonismo de memórias coletivas em sua gênese espontanêa.31 Daí que, conquanto só os indivíduos possam recordar, o rito comemorativo, transformase em rito religioso propriamente dito, prolongando as práticas de vocação holística, bem como a sua “função instituinte de sociabilidades”. A “visita ao cemitério” é um rito de repetição. E nele se verifica esta vertente essencial da comemoração: esta, depois do ato fundador, será sempre comemoração de comemoração, a qual se transformará em “tradição” se a anamnesis deixar de ser uma necessidade vital para os vivos. Com efeito, naquele ato, repetem-se comportamentos (a deposição de flores, o recolhimento em silêncio...) e a sua corporização é coletiva e pública (as “visitas” individuais são exceção), incitando-se à recordação do morto e ao reforço do cosmos (a começar pela família) dos vivos. É que a memória reavivada pelo rito tem uma “função pragmática e normativa”, consubstanciada no intento de, em nome de um patrimônio (espiritual e material) comum, integrar os indivíduos em cadeias de “filiação identitária”, distinguindo-os e diferenciando-os em relação aos “outros”, mas exigindo-lhes igualmente, em nome da perenidade do grupo, deveres e fidelidades. Para isso, o seu efeito tende a saldar-se numa “mensagem”. E esta, ao unificar recordações pessoais ou outras memórias coletivas, constrói e conserva uma unidade que domestica a fluidez do tempo num presente que dura.32 Cora Coralina é matrona, sua poesia domestica o tempo transformando-o em arauto de identificação do ser goiano. As pessoas que visitam o túmulo de Cora Coralina se aproximam de um elemento de pertença do ser goiano. E como defendeu Maurice Halbwachs, a este nível, o trabalho de unificação será uma “norma”, pois recorda-se o espírito de família porque é necessário retransmitir e reproduzi-lo. Em graus de sociabilidades mais extensa – como, nas classes e grupos sociais – a memória será aquela feita sob um critério unificante análogo ao do sistema de avaliação nobilitária.33 Mas importa não esquecer que nos ritos rememorativos (e comemorativos) se encontra sempre uma tensão entre afeição e conhecimento e entre memória e normatividade. O que gera esta experiência interativa: como a memória é normativa, ela é oferecida como uma “mensagem”, e esta, ao criar uma pulsão e uma corrente, inunda os indivíduos participantes no rito, apela a ser interiorizada e a socializa-se como um dever.34 MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 187 Nesse sentido, cemitério passou a ser uma espécie de “familistério” de mortos. O que se entende: em primeira instância, o culto, na sua incidência mais profana, é, sobretudo um rito familiar; ele não só se celebra em família, como está investido de uma carga simbólica especificamente familiar, ao reiterar e reforçar os elos de parentesco. Com isto, reaviva o sentimento de pertença. Fio invisível que a memória partilhada e ligada a uma herança e a uma tradição enraíza. Deste modo, o monumento funerário dos novos cemitérios tem de ser entendido à luz das estratégias de “transmissão”, comumente carismadas por uma “figura-fundadora”. É certo que a gestão memorial, quando se cinge ao núcleo familiar, parece fugir às características das comemorações (ela é mais singela, espontânea, restrita e silenciosa). Porém, tal como em todo o ato comemorativo, também ela se concretiza como um grande movimento simbólico através do qual um grupo assegura a sua identidade, voltando-se para a face do passado que, num dado momento, considera definidora da sua unidade continuidade. E no caso das comemorações de finalidade cívica, a celebração integra-se de componentes estéticos, dinâmicos (o desfile) e orais (os discursos), de modo a realizar programadamente suas intenções paidéticas e o seu trabalho sociabilitário. Pode mesmo afirmar-se que, quanto maior e mais massificada for a escala sociabilitária mais aumenta a “estranheza” entre os indivíduos e se requer um mais constante investimento simbólico na construção e reprodução da memória unificadora. Por conseguinte, se no rito de centralização exclusivamente familiar o culto é mais “quente” e espontâneo, as romagens e as comemorações, movidas por uma mais marcante intenção coletiva e pública, implicarão, regra geral, a existência de uma coordenação (isto é, uma organização), de um desfile, de signos com significado social (guias turísticos), e contarão amiúde com a presença de oficiantes (oradores), tendo em vista sublimar o esquecido com o significado de palavras que relembrem e enalteçam. 35 No entanto, também, nestas liturgias cívicas se encontram, por extensão e imitação, os propósitos de “filiação”, “integração” e de “identificação” característicos do culto familiar dos mortos.36 Outra não é a função das liturgias da recordação: criar sentido e perpetuar o sentimento da pertença e de continuidade. O imaginário da memória sociabiliza, dado que o recordar liga os indivíduos não só verticalmente, isto é, a grupos ou entidades que holisticamente se impõem, mas também a uma vivência horizontal e longa do tempo social. Por conseguinte, a memória socializa a “identificação” e a “filiação” e, MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 188 simultaneamente, ajuda a esconjurar a angústia da irreversibilidade do tempo e da morte, inserindo a finalidade da existência finita numa “filiação escatológica”. Neste horizonte, os indivíduos são integrados na cadeia das gerações e em um ideal de sobrevivência na memória dos vindouros. 37 O que pressupõe uma experiência continuísta do tempo – a memória, vinda do passado, poderá perdurar num futuro aberto – e implica que se esqueça que, tarde ou cedo (duas ou três gerações?), os mortos acabarão por ficar órfãos de seus próprios filhos. Por tudo isto, defende-se que as liturgias da recordação têm por finalidade federar atomismos e diferenças sociais e recalcar (pelo menos no tempo curto do rito) as tensões que atravessam os grupos. Portanto, não será descabido dizer-se que, em certa medida, o cemitério desempenha um papel análogo ao dos velhos Libri memoralis (também chamados “necrófagos” ou “obituários” a partir do século XVII). Estes continham o nome de pessoas, geralmente já mortas, de quem se pretendia guardar memória através do recurso a fórmulas como estas: “aqueles ou aquelas cuja memória lembra”; “aqueles de quem escrevemos os nomes para guardarmos na memória”. A escrita (a leitura) é elevada a garante memorial da memória, não deixando de seu sintomático que, desde o século VIII, a excomunhão tenha passado a ser sinônimo de damnatio memoria (Concílio de Reisbach, 798; de Elne, 1027), numa evidente cristianização de uma atitude antiga: já na velha Grécia, os que desapareciam no esquecimento do Hades tornavam-se nônumnoi, isto é, “anônimos”, “sem nome”.38 Segundo, Jean-Didier Urbain os cemitérios são como “bibliotecas” e os túmulos como livros que se abrem, é certo, mas que se consultam como tábuas mesopotâmicas ou sumérias, pois a sua significação não é imediata e transparente.39 Se esta imagem é acertada na perspectiva do investigador, ela não chega para apreender a intencionalidade simbólica da necrópole. Esta não se esgota na escrita. Já no século XIX, o célebre Monsenhor Gaume, em obra publicada no período da Comuna contra os enterramentos civis – e logo traduzida para português em 1874 – definia explicitamente o cemitério como “o livro mais eloqüente que pode haver”, porque “fala simultaneamente aos olhos, ao espírito e ao coração”.40 O cemitério é um livro escrito em linguagem metafórica. Então isto quer dizer que o culto dos mortos, como todo ato constitutivo de memórias, também é um diálogo imaginário do “sujeito” consigo mesmo, feito com os olhos, o espírito e o coração, a fim de “representificar” o evocado. Logo, se, enquanto vivência ritualista, a MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 189 sua leitura, como todo o rito, denota algo da esfera das intenções, o seu significado é, porém, irredutível à pura racionalidade. Como não se procura construir uma “memóriasaber”, evocar será “recordar” e “comemorar”, pelo que o território dos mortos funciona simultaneamente como um texto objetivador de sonhos escatológicos (transcendentes e/ou memoriais) será como um “espaço público” e de “comunhão”, cenário “miniaturizado” do mundo dos vivos e teatro exemplar de afetividades e de produção e reprodução de memórias, de imaginários e de sociabilidades. E só depois de um adequado e extrovertido tempo de luto ganhará força o distanciamento racional, que cura e normaliza, porque “só a razão é que pode distinguir um antes e um depois da morte, ao passo que o imaginário se recusa a aceitar a ruptura e continua a ver naquele que acaba de morrer alguém que ainda não deixou a vida”.41 NOTAS 1 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol 05 n 10, 1992, p.200-212 2 Sobre o peso do esquecimento nos processos construtivos das memórias subjetivas (e coletivas), veja-se CANDAU, Joel. Anthropologie de la Mémoire. Paris: PUF, 1996. 3 ETLIN, Richard. I Encontro internacional sobre los cemitérios contemporâneos. Actas. Sevilla 4/7 Junio 1991. 4 DÉCHAUX, Jean-Hugues. Le Souvenir dês Morts. Essai sur lê lien de filiations. Paris: PUF, 1997 p 232 5 DEBRAY, Régis. Vie et Mort de I’Image. Une histoire du regard em Occident. Paris: Gallimard, 1992 6 DEBRAY 1992 p.28 7 THOMAS, Louis-Vicent. Lê cadavre. De la biologie a I’antropologie. Paris: Complexe, 1980 p. 35 8 O inominável – morrer. In A Invenção do Cotidiano. Michel de Certau. Ed. Vozes. Vol I. 1990 p 293 9 REVISTA MONUMENTOS SEPULCHRAES, 1868. 10 Ver Claudia Rodrigues em Lugar dos mortos na cidade dos vivos. 1995 p. 35 11 No mesmo sentido, leia-se TODOROV, Tzvetan. Les Abus de la Mémoire. Paris: Arléa, 1995 12 AUGE, Marc. Les Formes de L’Oubli. Paris: Payot, 1998. p 18 13 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres na Corte. Dissertação. UFF. 1995 p 76 14 FEUERBACH, Ludwig. Pensées sur la Mort et I’Immortalité. Paris: Cerf, 1991. 15 Algumas das partes em que estavam divididas os interiores das igrejas católicas. 16 URBAIN, Jean-Didier. Lês Bouleversements Actuls de l’Art Funeraire. Coimbra: Septembre, 1993. p 15 17 Ver o livro: A morte é uma festa de João José Reis. Ed. Cia das Letras, 1990 p.68 18 Quando aqui se usa o conceito de secularização não se pretende confundi-lo com o de laicização. Com efeito, e como se procurou esclarecer em outro lugar, o primeiro denota o longo processo de automatização, em todos os níveis da vida social, da esfera profana da sagrada. Situa-se na longa duração e foi-se concretizando em temporalidades diferenciadas, ainda que sempre num horizonte pautado pelos valores cristãos. Assim sendo, importar reter que o fenômeno da secularização nem sempre se definiu em oposição a igreja (e muito menos a MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 190 religião), aparecendo muitas vezes como reivindicações tendentes a “desmitoligizar”, “desmagificar” ou a “desclericalizar” a sociedade, e não tanto a “descristianizá- la”. O conceito de lai-cismo, se entronca no de secularização, remete para o propósito militante de levar às últimas conseqüências e, assim, torná-la equivalente a “descristianização”. Por isso, deve se referir tão só aos projetos de transformação cultural que os movimentos anticlericais e anticatólicos dos finais do século XIX e princípios do século XX (conjuntura em que se consolidou a expressão laicismo), bem como as suas expressões políticas (liberais de esquerda, republicanas, socialista anarquista) procuram concretizar nas sociedades européias dominantemente católicas. Dito isso, pode então se aceitar que, se o laicismo é uma expressão mais radical do secularismo, nem toda a secularização é sinônimo de laicismo. CATROGA. op. cit., p. 6-34. 19 CARTROGA op. cit., p. 25. 20 No mesmo sentido, veja-se BOTTACIN, Maurizio. La tentazione Del nulla. Giardini della memória per um eterno oblio. Arsenale, 1987 21 LÊ GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI, v. 1, Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984. 22 Ver Philippe Áries, O homem diante a morte. 1990. p 595 23 Id., Documento/Monumento 24 Ibid.. p. 37-38. 25 NAMER, Gerard. Mémoire et Sociéte. Paris: Méridiens Klincksieck, 1987. 26 NORA, Pierre. Les Lieux de Mémoire. I La Republique. Paris: Gallimard, 1984 p 05 (comentário) 27 op. cit., p. 68. 28 op cit,. 31-32. 29 FRANÇA, José Augusto. A arte em Portugal no século XIX. v. 2. Lisboa: Bertrand, 1966 30 op. cit., p. 33 31 NAMER, Gerard. op. cit., p. 201, 204-205. 32 op. cit., p. 224. 33 Ibid., p. 226. 34 Ibid., p. 236. 35 DÉCHAUX, Jean-Hugues. op. cit., p. 75-76. 36 No estado sobre A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal (v. 2, p. 891-999) explicitamos as relações estreitas existentes entre o culto cemiterial e romântico dos mortos e as festas cívicas polarizadas à volta das comemorações centenárias. Estas análises foram posteriormente por nós retomadas em Ritualizações da História. In: TORGAL, Luis Reis; MENDES, Jose Maria Amado; CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX/XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 547-671. Para o caso francês, pode-se ler-se os já citados estudos de Pierre Nora, de Pierre Ory e de Gerard Namer. Para outros países (Estados Unidos, Inglaterra, Iraque, França, Israel, Alemanha), leia-se por todos GILLIS, John R. (ed) Commemorations. Princeton-New Jersey: Princeton University Press, 1994. 37 DÉCHAUX, Jean-Hugues. op. cit., p. 231-232. 38 VERNANT, Jean-Pierre.L’individu dans la cite. In: SUR l’individu. Paris: Seul, 1987, p. 2; CANDAU, Joel. op. cit., p. 3. 39 URBAIN, Jean-didier. L’Archipel de Morts. Lê sentiment de la mort et lês derives de la mémoire dans lês cimetières d’Occident. Paris: Payot, 1998, p. 10. 40 MONS. GAUME. O Cemitério no Século XIX ou as últimas palavras solidárias Porto: E. Chardron, 1874, p. 106. 41 THOMAS, Louis-Vincent. Préface, In: BAYARD, Jean-Pierre, op. cit., p. 13. MOREIRA, Gleidson de Oliveira. Cemitérios oitocentistas como lugares de memória. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 180-194, Dez. 2008 / Jun. 2009. 191 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁRIES, Philippe. História da Morte no Ocidente. Ed. Ediouro. SP. 2004 _______O homem diante da morte. Vol. II. Francisco Alves. S.P. 1990 BORGES, Maria Elizia. 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Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. DESTERRITORIALIZAÇÃO: A ÓTICA CULTURAL DO PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA EM GOIÁS Júlio César Pereira Borges∗ Resumo: Abstract: O estudo da modernização da agricultura em Goiás, sob a ótica da desterritorialização, busca fazer uma discussão sobre as transformações nos modos de vida dos grupos sociais envolvidos neste processo. A compreensão de tais transformações permite a apreensão do território, no momento em que nos revela a sua reorganização espacial que expressa a dinâmica da relação homem/natureza e homem/homem, ou seja, das relações sociais de produção, criando formas, símbolos e significados que representam seu gênero de vida. O que pode conduzir à compreensão dos fatos culturais é justamente a possibilidade de mergulharmos neste mundo de significações, de participações de sua dinâmica. Neste sentido, far-se-á uma análise sobre a desterritorialização do sertanejo goiano em decorrência da modernização da agricultura, processo que esta envolto em significados que se expressam na simbologia estética da paisagem de um território, no ato de sua refuncionalização, assim como na psique do indivíduo ou grupo social envolvido nesta processualidade. Diante desta idéia, o território aparece como o lugar, espaço físico e social, do domínio dos modos de vida que, ao sofrerem mudanças apresentam situações propícias ao movimento migratório e, conseqüentemente, acarreta a perda da identidade do lugar e do sujeito. The study of the agriculture modernization in Goiás, under the optics of the unterritoriality, aims to make a quarrel about the transformations in the ways of life of the social groups involved in this process. The understanding of such transformations allows the apprehension of the territory, at the same time that discloses its space reorganization that expresses the dynamics of the relation man/nature and man/man, in other words, the dynamic of the social relations of production, creating forms, symbols and meanings that represent its gender of life. What can lead to the understanding of the cultural facts is exactly the possibility to dive in this world of meanings, of participation of its dynamics. In this direction, it will be done an analysis about the unterritoriality of Goiás’ cowboy in result of the agriculture modernization, process that is involved in meanings that express themselves in the esthetic symbology of the landscape of a territory, in the act of its re -functionalism, as well as in the psyche of the individual or social group involved in this process. Up against this idea, the territory appears as the place, physical and social space, of the domain in the ways of life that, when suffering changes present propitious situations to migratory movement and, consequently, cause the loss of the identity of the place and of the citizen.. Palavras-chave: Modernização da Agricultura; Desterritorialização; Identidade. Key-words: Agriculture, Unterritoriality; Identity. Modernization; ∗ Professor do departamento de Geografia da UEG-Unidade Iporá, Professor do departamento de geografia da Faculdade de Educação e Ciências Humanas de Anicuns. BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 193 A Desterritorialização na Geografia Ao propor o estudo sobre a modernização da agricultura em Goiás sob a ótica da questão cultural, pretende-se aqui, fazer uma discussão sobre as transformações no modo de vida do indivíduo e do grupo social envolvidos neste processo. Para tal, teremos como direcionadores os pressupostos da Geografia Cultural. Segundo Claval (1997). Aproximar-se da geografia cultural é antes de mais nada, captar a idéia, que temos do ambiente próximo, do país, do mundo. É se interrogar em seguida sobre a maneira como as representações são construídas, sobre o papel no modelamento do real e sobre sua permanência, sua fragilidade e as reações que provocam. A geografia cultural ganha ênfase a partir da década de 1980, com o movimento de revalorização de idéia de cultura no domínio acadêmico da ciência geográfica, a qual aparece como portadora de elementos fundadores de uma nova perspectiva epistemológica (GOMES, op.cit., p. 31). Neste contexto, ocorre um rompimento com modelos de ciências baseadas na lógica geral e dedutiva, assim como com o totalismo positivista e marxista, se apoiando na teoria da complexidade, colocando em evidencia autores como Edgar Morin. Da crescente consciência sobre a necessidade de relativizar, de contextualizar, de compreender os fatos sociais em lugar de querer explicálos, de absolutilizá-los, tornando-os gerais e uniformes, ou de objetivá-los, tomando deles apenas suas características comuns e regulares. (GOMES, ibidem) A compreensão da cultura de um individuo ou grupo social, se torna importante e se revela imprescindível na apreensão do território, no momento em que esta nos revela a sua organização espacial, pois a mesma é resultado da relação homem/natureza e homem/homem, ou seja, das relações de produção, criando formas, símbolos e significados que representa seu gênero de vida. Tal imaterialidade do elemento cultural não prescinde da materialidade do mundo, todavia, permite dar mais atenção ao campo das representações sócio-culturais, pois, admite que cultura: (...) é definida como um domínio próprio do mundo humano, um mundo de significações, de valores, um mundo de referencias, que nasce da comunicação e de um universo de símbolos... o que pode conduzir à compreensão dos fatos culturais é justamente a possibilidade de mergulharmos neste mundo de significações, de participações de sua dinâmica. (GOMES, p. 32) BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 194 Neste sentido que se propõe fazer uma análise sobre a desterritorialização do sertanejo goiano que, em virtude da modernização da agricultura, passa por um conjunto de mudanças que alteram significativamente o seu modo de vida. Investigando o território e a desterritorialização Ao se aventurar em uma discussão sobre o termo desterritorialização, se faz necessário uma melhor clareza, face à sua grande complexidade, pois não se trata como afirma Haesbaert (2004: 43), simplesmente da outra metade da dinâmica da territorialização. Na verdade o termo desterritorialização é envolto de significados, que se expressam na simbologia estética da paisagem de um território, no ato de sua refuncionalização, assim como na psique do individuo ou grupo social envolvido neste processo. O discurso sobre a desterritorialização efetivamente tomou vulto a partir da década de 1990, tendo em vista, segundo alguns autores, a expressividade das condições da pós-modernidade, já que para estes, o Pós-modernismo inaugura uma nova estrutura de mundo, baseada na mobilidade espacial, dada pelo domínio tecnológico e movimentação populacional, pondo fim aos antigos laços da sociedade com o espaço e gerando um “descentramento do individuo com a comunidade bem delimitada” (Haesbeart, 2004:145). Neste contexto, o processo de desterritorialização é entendido como transições demográfica e cultural inerente a refuncionalização territorial, que incluem as diferenças e mudanças para um grupo social, que são acarretadas na passagem de um território a outro. A influência da pós-modernidade, no discurso da desterritorialização, se caracteriza pela fragmentação, complexidade, e por uma nova ordem social, teleguiada pelo advento tecno-ciêntifico, promovendo uma recriação da cultura. Neste sentido, os meios de análise clássicos já não são suficientes para a abordagem desta complexa realidade. A relação objetiva entre sujeito e objeto já foi invalidada pelas colocações da física quântica. As teorias a respeito do evolucionismo cultural já caíram por terra. Novos paradigmas surgem em quase unanimidade abrangendo as diversas ciências e, cada vez mais, o próprio conceito de ciência abrange saberes múltiplos. Neste contexto surge, já a partir dos anos 60, uma corrente de pensamento revalorizando o imaginário que, por séculos tinha sido desprezado pela cultura ocidental. Nas ciências ditas humanas, além de Gilbert Durand, “pai” das Estruturas Antropológicas do Imaginário, encontram-se autores como Edgard Morin, trabalhando o conceito de BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 195 complexidade, Abraham Moles, trazendo a noção de flou caracterizando o fenômeno social, Michel Maffessoli mostrando o novo espaço delimitado pelas novas tribos com a noção de localismo afetual, Jean Baudrillard pondo em destaque a dimensão do simulacro característica da vivência atual, entre outros. (Nogueira e Pitta, 2001: ) Diante da idéia já expressa de desterritorialização, o território aparece como o lugar, espaço físico e social, do domínio dos modos de vida que, ao sofrerem mudanças apresentam situações propícias ao movimento migratório, e conseqüentemente, acarretam na perda da identidade do lugar e do sujeito. Estas mudanças são promovidas por uma conjuntura, na qual o estado aparece como regente do território, redefinindo e reorientando o uso do mesmo. De acordo com Raffestin (1993:15): Do estado ao individuo, passando por todas as organizações pequenas ou grandes, encontram-se atores sintagmáticos que produzem o território. De fato o Estado está sempre organizando o território nacional por intermédio de novos recortes, de novas implantações e de novas ligações. No âmbito da Psicologia Social, o significado de território ultrapassa os limites da configuração de sua paisagem, caminhando em direção a uma territorialidade subjetiva, na qual o espaço vivido dos indivíduos é resultado da relação homemnatureza e homem-homem, da qual originam suas representações, suas significações, sua cultura que se caracteriza na identidade do território. Desta forma, “O território pode tanto ser relativo a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente em casa”. (Guatari, 1986: 323). O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma serie de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais e estéticos, cognitivos. Neste sentido, o ato de desterritorialização também ocorre subjetivamente, pois ao desterritorializar-se, o indivíduo perde o referencial, através da desarticulação cultural, levando-o a perda de sua identidade. A este processo de desterritorialização a espécie humana esta mergulhada intensamente, tendo em vista que seus territórios originais se desfazem ininterruptamente, e na fase atual com grande velocidade. (Guatari,1986: 323) A todo o momento o individuo se encontra em um processo de desterritorialização, isto em função da sua própria evolução, estabelecendo assim novas territorialidades, subjetivamente delimitando novas fronteiras, se reterritorializando. BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 196 Neste sentido Guatarri (1986: 323) afirma que: a reterritorialização consiste numa tentativa de recomposição de um território engajado em um processo desterritorializante”. Nas sociedades globalizadas, sob a égide da evolução tecnológica, ocorre o fenômeno do “desencaixe”, entre espaço e tempo, que é definido por Giddens, (apud Haesbaert, 2004: 57) como “O deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de espaço”. Neste contexto, de acordo com Haesbaert (2004: 158): “A desterritorialização é apenas uma face de uma dinâmica conjunta de reterritorialização, o desencaixe espaço temporal representa uma das faces do processo de reencaixe, em novas bases históricogeograficas”. Em outras palavras, o território é reorganizado para atender as exigências do momento histórico, rompendo com a organização anterior através do processo de desterritorializaçõ, a reterritorialização é a adaptação a esta nova realidade, que acontece concomitantemente a desterritorialização. Neste à desterritorialização/reterritorialização a adaptação ao novo é envolvida por profundas transformações, tendo em vista que o modo de vida anterior é significativamente modificado, o que não implica numa absoluta perda de identidade do grupo ou individuo envolvido no processo1. Como exemplo, podemos citar o caso do sertanejo goiano envolvido no processo de modernização da agricultura, que passou por mudanças e adaptações no seu modo de vida. A modernização da agricultura em Goiás sob a ótica da desterritorialização O processo de desterritorialização promovido pela modernização da agricultura no Estado de Goiás, se constitui na refuncionalização produtiva do território, promovendo deslocamentos populacional no sentido campo/cidade e rupturas na vida cotidiana e temporal de um grupo social, “os povos cerradeiros”.2 Estudiosos do processo de modernização do território goiano, tais como: chaveiro (2001), Estevam (2004), Borges (2002), Chaul (2004), Arrais (2004), Mendonça (2004), dentre outros, consideram que o processo de modernização é resultado da territorialização do capitalista nacional e internacional no Brasil, atingindo diretamente o interior do país. Neste contexto, é identificado o papel da dinâmica BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 197 capitalista na transformação do território goiano, onde se percebe que o processo inevitável da apropriação capitalista sobre os espaços de produção agrícola de Goiás não é um fenômeno isolado e independente das transformações globais da sociedade moderna, ou seja, o território goiano se encaixa nos moldes da lógica global e capitalista de produção. Os discursos que justificavam a expansão capitalista eram carregados de chavões como “progresso da região”, “desenvolvimento econômico”, “integração nacional”, “avanço social”. O Poder Estatal era convocado a eliminar os “entraves do progresso regional”, nesse momento a eliminação de aspectos culturais profundos da formação territorial do país e de Goiás, era lançada nas mãos do governo como tarefa a ser cumprida. De acordo com Estevam (2004: 11). Argumentos de ordem espacial apontaram para o isolamento geográfico do Estado, para sua insuficiência populacional e para a carência de vias de comunicações inter-regionais. Na dimensão econômica, o latifúndio, a pecuária extensiva e a débil produção agrícola comercial foram identificados enquanto entraves ao dinamismo da região. No aspecto político algumas pesquisas constataram – em determinados eventos históricos – “descaso” de autoridades governamentais para o progresso da região. Mesmo no aspecto sócio-cultural pesquisadores realçaram certo “desapego” ao trabalho, lamúria e preferência pela ociosidade por parte do homem goiano, desalentado e distanciado do progresso. Por mais que a modernização do território goiano seja “uma modernização conservadora” e isso se justifica no aspecto da estrutura latifundiária existente desde a formação territorial de Goiás até os dias atuais, que, mesmo sendo considerada um entrave para o “progresso do país” e criticada pelo capital internacional, ainda permanece, ela provocou mudanças impactantes na nova divisão regional do trabalho e no superestrutural, mais precisamente, nos aspectos culturais e ideológicos. Antes das transformações concretas responsáveis pela nova configuração do território goiano, foram necessárias mudanças no pensamento sobre o sistema produtivo de Goiás e sobre sua posição geográfica. Avançar a agricultura e aumentar o contingente populacional de uma região “predominantemente pecuária” e “isolada do resto do país” exigiram dos governantes investimentos em campanhas de incentivo à agricultura e ao povoamento de Goiás, para tanto, tinham que inverter o pensamento que os brasileiros tinham sobre o isolamento do sertão goiano e convencer os pecuaristas sobre as vantagens comerciais proporcionadas pela agricultura. A primeira intervenção do Estado nesse sentido é ideológica. De acordo com Santos, (2004: 21): BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 198 Vivemos numa época em que o superestrutural se adianta ao estrutural, não somente para preparar o seu advento como também para determinar-lhe os contornos. Os papéis do Estado e da ideologia, no nível nacional e principalmente no nível internacional, são fundamentais para a definição da totalidade do aparelho produtor. A inserção da ideologia desenvolvimentista do estado dá inicio a desterritorialização subjetiva3, mesmo antes da consolidação do processo de modernização, estratégia do avanço do capital, que altera o território em sua totalidade. Sobre esta atuação, Mészáros (2004: 16), afirma: O sistema do capital em si não é apenas a reunião de um conjunto de entidades materiais, organizadas e, sempre que as condições o exijam, reorganizadas com sucesso numa ordem adequada pelos recursos combinados da “racionalidade instrumental” e da “ética protestante do trabalho”, como é geral e erroneamente entendido. Pelo contrário, é um sistema orgânico de reprodução sociometabólica, dotado de lógica própria e de um conjunto objetivo de imperativos, que subordina a si – para o melhor e para o pior, conforme as alterações das circunstâncias históricas – todas as áreas da atividade humana, desde os processos econômicos mais básicos até os domínios intelectuais e culturais mais mediados e sofisticados. A modernização da agricultura no território goiano se deu de forma excludente e concentradora, transformando o mapa agrário da região através da concentração de terras, que se deu com a incorporação de pequenas e medias propriedades aos latifúndios. Diante deste quadro, aliado a maquinificação da produção, os pequenos e médios proprietários, foram expropriados, ou seja, desterritorializados do seu modo de vida anterior. De acordo com Silva (2001: 02): A modernização da agricultura no território goiano desencadeou um desenvolvimento desigual e contraditório no cerrado, processo dialético, resultante das novas relações estabelecidas entre homem x natureza e homem x homem para territorializar-se, se fez em detrimento à exclusão de uma parcela da população, isto é da desterritorialização do camponês e da ascensão dos grandes produtores. A desterritorialização sertaneja resultou em um intenso movimento migratório, no sentido campo/cidade, o que desencadeou um crescimento urbano acelerado e em conseqüência uma urbanização desordenada. Neste contexto o sertanejo desprovido de recursos financeiros e de formação educacional é excluído da cidade, ocupando as áreas periféricas e sem infra-estrura, além de se sujeitarem aos subempregos, devido à falta de qualificação profissional, exigida pela economia urbana. Em outras palavras, os sertanejos se constituem nos deserdados da modernização, que também não tem “direito a cidade”. BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 199 Outro fator comum ao processo de modernização da agricultura em Goiás foi o movimento migratório, rumo a outras regiões, ou seja, em direção as novas fronteiras de expansão. Este fato é explicado pela situação dos médios produtores, que não se enquadraram ao processo modernizador, porém tiveram suas terras valorizadas pelo mesmo. Neste caso, os produtores venderam suas propriedades e adquirindo outras em regiões onde o valor da terra era baixo, como no caso do norte de Mato Grosso e Pará, ocorrendo uma transição de médio produtor agrícola a latifundiário pecuarista. Neste contexto o processo de desterritorialização é abrandado pela reterritorialização bem sucedida, pode-se dizer estes produtores não se constituem em deserdados da modernização, mesmo porque, estão inseridos no processo de avanço do modo de produção do capital. Este fato é justificado pela seguinte forma: Enquanto produtor, antes da modernização, o sistema de produção era pré-capitalista, com o uso de mão-de-obra familiar, sistema de parceria, mutirão dentre outros; no momento em que se torna pecuarista o sistema de produção passa a ser capitalista, a família reside na cidade (com direito à mesma), e a produção do latifúndio se da pelo sistema de mão-de-obra assalariada, característica do sistema capitalista de produção. Neste sentido, ao se discutir o processo desterritorialidor da modernização da agricultura, deve-se destacar a sua complexidade, que é negligenciada pela grande maioria dos trabalhos sobre o assunto, dotados de uma visão totalizante, o que não condiz com a realidade. Tomando como base uma visão pós-modernista da modernização da agricultura, pode-se dizer que esta, com o advento da tecnologia criam o que Lencione (2003:176) denomina de uma “segunda natureza de relações” alterando a relação espaço-tempo. No caso da agricultura este fato é percebido pelo processo de maquinificação da produção, no avanço da genética que através da hibridez altera a natureza das plantas e animais, diminuindo o tempo da germinação, da colheita, em outras palavras, alterando a natureza da natureza. Neste contexto a desterritorialização aparece de duas formas interdependentes: na primeira pelo caráter excludente do avanço tecnológico, no qual aqueles que não têm acesso ao mesmo se vêem fora do mercado de trabalho e do sistema de produção, sendo obrigados a abandonar o seu estilo de vida em nome de sua sobrevivência; no segundo se refere a desumanização do homem em detrimento do BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 200 virtual, no qual o ser humano perde sua preeminência. De acordo com Lencione (2003: 176-177): A aproximação virtual sobrepõe-se á antiga sociabilidade e se constrói uma segunda natureza de relações que, mediatizada pela eletrônica, aproxima os lugares e os homens, quebrando o isolamento territorial entre eles. Porém, aprofunda-se uma dupla contraface: Uma relativa ao alijamento daqueles que não participam diretamente dessas relações, fazendo-os impiedosamente, crer no seu anacronismo. Outra decorre do fato de que essa mediação técnica pode conduzir a uma maior desumanização do homem, em decorrência de o ser humano estar perdendo sua preeminência. No universo da segunda natureza é modificado o modo de pensar e de perceber o espaço, diante de um ritmo alucinante de expansão das representações que invadem o cotidiano do ser humano. Estas representações ganham autonomia e passam a ser capitadas desvinculadas de seus significados se sobrepondo ao que representam. Neste sentido pode-se dizer que o avanço tecnológico no campo alterou significativamente o modo de vida e a própria personalidade do sertanejo, que ludibriado pelas representações desenvolvimentistas, em sua grande maioria não percebem suas perdas. Ao não se identificarem no então modelo de produção, não se conscientizam que no ato do seu planejamento, já estavam externos a ele. O mais grave: não tem idéia do colapso de sua identidade provocado pela sua fragmentação cultural, arrancando os bens mais preciosos de sua condição sertaneja, sua dignidade de produzir e sua honra de promover o sustento da família. De herança deixou ao mesmo a vergonha do lugar a ele reservado pelo processo modernizador, o lado de fora. Assim, urdimos, pois defender a inserção do sertanejo no sistema de produção agrário, através de mecanismos assentes à reforma agrária, apesar de compreendermos que a famosa “volta ao campo”, tão propalada, esmerada e vaticinada pelos intelectuais, partidos políticos e, principalmente, pelos movimentos sociais do campo, não implica em reconquista da “identidade perdida”, tampouco na assunção do homem do campo a uma condição humanamente superior, mas, a uma situação complexa, que, mesmo que venha implicar num provisório alcance ou recuperação da dignidade material e simbólica do camponês, não resulta na solução de todos os males, pois, como nos assegurou Santos “(...)acho um negócio horrível condenar um sujeito a morar no campo. É a maior perversidade que pode existir.”, pois “(...)o fundamental são as pessoas, e suas necessidades e direitos e não onde elas estão.”Com certeza, Santos acerta ao concluir que “o fundamental são as pessoas”, acertando também, com esta BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 201 tese, um firme golpe nos ingênuos intelectuais e numa certa militância política que vêem na reforma agrária a panacéia para todos os problemas que afligem sem-terras e demais segmentos de explorados e despossuídos que transbordam nas grandes cidades, mas, ao nosso ver, exagera, pra não dizer erra, ao diagnosticar que tal processo sóciopolítico (a reforma agrária) seja “a maior perversidade que pode existir”. Preferimos acreditar que existam uma infinidade de outras condições que são muito mais perversas, em termos humanos, existenciais e materiais, do que a inferida por Santos, ademais, considerando alguns conteúdos programáticos de determinados movimentos sociais, tais como os do próprio MST, enxergamos, pelo contrário, um combate a anterior (e atual!) condição de perversidade que estruturalmente condena o homem do campo e das cidades brasileiras a uma vida totalmente destituída de qualquer perspectiva. O que corrobora nosso posicionamento é o modelo de reforma agrária brasileira, que condiciona o deserdado da terra, a interesses vinculados ao grande capital, com a supervalorização das terras de grandes latifundiários, e com a sujeição do assentado a normas do mesmo. Neste sentido concordamos com Oliveira (1986: 56), ao afirmar que: “o modelo de reforma agrária tem que ser desvinculado do capital, não consiste em apenas doar terras e sim dar condições para que o assentado sobreviva dignamente dela”. Considerações finais Os Estudos sobre o espaço agrário nas ultimas décadas colocam como ênfase a modernização da agricultura, sendo ela o carro chefe das mudanças estruturais na renda fundiária e agrícola, inserindo o campo no capitalismo globalizado, o que acarretou num conjunto de transformações: nos meios de produção, na fecundação do solo, no tempo do plantio, na relação de trabalho, enfim no modo de vida da população envolvida no processo. A modernização da agricultura implanta uma segunda relação social, entre a sociedade do conhecimento e a sociedade do costume e das tradições sertaneja, estabelecendo um conflito entre saber popular e saber científico, em uma nova ordem de poder, na qual ascende o agrobusines. Este por sua vez, se sustenta na exclusão camponesa e na utilização de evoluídos meios tecno-ciêntifico, da biogenética, dos sistemas virtuais, da maquinificação, meios responsáveis diretos pela desterritorialização do sertanejo. BORGES, Júlio César Pereira. Desterritorialização: a ótica cultural do processo de modernização da agricultura em Goiás. Estácio de Sá – Ciências Humanas.. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 195-206, Dez. 2008 / Jun. 2009. 202 Diante dos impactos, surge uma resistência camponesa ao modelo do agrobusines, orientados por entidades e grupos intelectuais, organizações como MST, MAB dentre outros, tem conseguido importantes vitórias em direção a sustentabilidade, a segurança alimentar, ao coletivismo, a manutenção de seus costumes, tradições. Infelizmente a força do grande capital é maior, principalmente no que se refere à ideologia, que através das mídias desvirtua o verdadeiro significado de tais movimentos, colocando-os como desordeiros, o que concedido pela grande maioria da população, inclusive os que são beneficiados por esta luta. Desta forma podemos afirmar que a modernização da agricultura em Goiás, promoveu uma desterritorialização excludente da grande maioria dos sertanejos, a partir do momento que estes são expropriados do seu modo de vida. Embora a luta seja árdua, nos parece que a única forma de amenizar esta situação é o fortalecimento dos movimentos contrários ao modo de produção capitalista. NOTAS 1 Para Stuart Hall, autor que tem se posicionado ao lado da virada pós-moderna, a identidade não se define, em última instância, unicamente pela classe social a qual pertence o indivíduo. Segundo o mesmo, a identidade é fruto de uma espécie de jogo, onde o indivíduo se posiciona e assume posições diversas dentro da “partida social” que disputa, ou seja, a tradicional idéia de submissão total do sujeito diante do poder aniquilador econômicopolítico, estaria sendo substituída pela atual idéia de identidade como uma mutante “força plástica”, onde o eu não é idêntico a si mesmo, mas , pelo contrário a do indivíduo fragmentado que se (re)constrói através dos discursos, das suas práticas e de suas posições assumidas no “jogo”, o que, necessariamente, supõe graus de escolha e autonomia. 2 Expressão utilizada pelo prof. Dr. Marcelo Mendonça em sua tese de doutorado intitulada a Urdidura do Trabalho e do Capital no Cerrado do Sudeste Goiano. 3 Expressão utilizada por Felix Guatari ao definir a perda cultural de um indivíduo ou grupo social no processo de mutação territorial. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRAIS, Tadeu Alencar. Geografia Contemporânea de Goiás. Goiânia: ed. 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No caso específico de Goiânia, se pretende verificar os impactos do programa “Agenda Goiânia” na ampliação da condição democrática. This text has as purpose to analyze the effect of the social politics forms of participation instituted in Brazil after the Constitution of 1988, mainly in what concerns to the urban planning and development, regulated in 2001 from the Statute of the City. The basic idea is to argue the conditioners of the culture politics and its materialization in action of impact in the Brazilian democratic system, verifying not only the organization capacity of the civil society as also the devices of opening of the State created by governments. In the specific case of Goiânia, it intends to verify the impacts of the program “Agenda Goiânia” in the magnifying of the democratic condition. Palavras-chave: Democracia; Gestão urbana; Participação social; “Agenda Goiânia”. Key-Words: Democracy; Urban management; Social participation;”Agenda Goiânia”. A deterioração da qualidade de vida nas grandes cidades brasileiras tem levado à reflexão um número razoável de pesquisadores das ciências sociais no Brasil nesse início de século. A cidade presente nos estudos e programas de pesquisas é visivelmente demarcada por ocorrências empíricas relacionadas à violência, às condições precárias de moradia, à saúde e à gestão pública. Essa situação é agravada porque desde a metade do século passado verificam-se explosões demográficas e o fenômeno da metropolização atinge diversos pontos no território brasileiro. ∗ Texto apresentado no XIII Congresso Brasileiro De Sociologia, acontecido entre os dias 29 de maio e 01 de junho de 2007 na UFPE, Recife – Pe. **Graduado em História (UFG), mestre em Sociologia (UFG) e doutorando em Geografia pela UFG-GO. Pesquisador do observatório das metrópoles – núcleo de Goiânia e professor de sociologia na FECHA. Email: [email protected] ***Graduado em Ciências Sociais (UFG) e mestrando em Sociologia (UFG). Pesquisador do observatório das metrópoles. E-mail: [email protected] OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 205 Embora já tivessem sido debatidas anteriormente, é no período da democratização dos anos 1980 que a problemática urbana no Brasil adquire umconteúdo propriamente político. Através do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) ganham destaque as reivindicações relativas aos níveis de injustiça social no meio urbano e as pressões para democratização do planejamento e da gestão (SOUZA, 2003). O principal efeito da atuação do movimento foi a inscrição de instrumentos legais com essa orientação na Constituição de 1988. Ao analisarmos os artigos da constituição que tratam da política urbana 182 e 183 – percebemos a presença dos dispositivos principais que regulamentam os dispositivos de controle e ordenamento urbano. A efetiva regulamentação desses artigos encontra-se, no entanto, na lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001; o Estatuto da Cidade. As diretrizes do Estatuto da Cidade, de forma geral, podem ser vistas assim: (a) as clássicas, referentes ao planejamento e uso do solo urbano; (b) as referentes à ação do poder público; (c) as que se referem à função social da propriedade; (d) as que dizem respeito à oportunidade de propriedade urbana e á moradia, sobretudo pelas populações de baixa renda; (e) as que tratam da relação entre poder público e sociedade através da participação individual e comunitária; e (f) aquelas relativas às necessidades de proteção do meio ambiente, do patrimônio histórico, etc. (Cardoso e Ribeiro, 2003). Uma das diretrizes no Art. 2º, inciso II, diz respeito à participação popular na gestão e no planejamento urbano: “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;” (Estatuto da Cidade, 2001) Esse novo quadro institucional reorienta a atuação dos agentes coletivos dentro do campo político citadino, uma vez que faz despertar o interesse público por questões de desenvolvimento urbano, principalmente aquelas que são pontuais e que demarcam cotidianamente a vida urbana, tais como a ocupação do solo, as políticas habitacionais e o transporte coletivo. Ribeiro e Cardoso (2003) entendem que o “espaço urbano é uma arena onde defrontam interesses de benefícios em termos da geração de rendas e obtenção de ganhos”, e que, portanto, se referem basicamente ao interesse de ordem econômica. Por outro lado, demandas por melhores condições materiais e simbólicas de vida se OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 206 manifestam em um quantitativo crescente de pessoas. O cenário daí derivado evoca a discussão tanto dos problemas urbanos quanto das questões que envolvem a mobilização política e a participação coletiva nas cidades. Nessa perspectiva, entendemos que os processos de definição das políticas urbanas estão, agora, demarcados por uma nova relação entre Estado e sociedade (Gohn, 2003; Nogueira, 2004; Santos Júnior, 2001) e a atuação dos agentes nos espaços de decisão e controle são orientadas por novas formas e conteúdos. Isso porque o arranjo institucional proporcionou a emergência de formatos diferenciados de espaços decisórios nas cidades. Neste estudo pretendemos identificar os conteúdos de participação popular e de democratização em uma experiência um tanto nova nessa dinâmica: a discussão implementada por uma empresa privada de comunicação na cidade de Goiânia. Como estratégia analítica, optamos, primeiramente, por destacar a formação do espaço urbano de Goiânia, destacando as contradições e especificidades que o qualificam, pressupondo uma forte articulação entre a dinâmica espacial na definição da política. Depois, para clarear a discussão, indicamos através de um quadro expositivo a dinâmica de funcionamento da experiência em questão. Por fim, destacamos as formas associativas que estiveram inseridas nestes processos de consulta popular. A formação do espaço urbano de Goiânia Construída numa localização estratégica no Estado de Goiás para alojar não só o centro do poder político como também do desenvolvimento econômico, Goiânia satisfez a uma dupla dimensão de interesses. A primeira é a idealizada pelo pioneiro Pedro Ludovico Teixeira na representação política dos produtores agropecuários do sul/sudoeste do Estado. Nesta, a nova capital do Estado estaria topicamente distante da influência das velhas oligarquias goianas – influência esta exercida a partir da cidade de Goiás –, sob liderança da família Caiado e atenderia com mais precisão a demanda por infra-estrutura e serviços públicos das regiões sul e sudoeste do Estado, articuladas à economia de mercado dirigida pelo centro-sul do país (Campos, 2002; Chaul, 1997, 2000; Oliveira, 2002b). A segunda dimensão é aquela dirigida por Getúlio Vargas, que via Goiânia como um entreposto para a concretização do projeto de segurança nacional e, ao mesmo tempo, um trampolim para a articulação do centro-norte amazônico à economia de mercado, como pretendiam os investidores do capital (Bernardes, 1998; OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 207 Chaul, 2000; Oliveira, 2002b). Goiânia seria, nesta perspectiva, um instrumento fundamental da política da “Marcha para o Oeste”. Assim, entre as décadas de 1930 e 1960 a capital goiana foi o palco de decisões políticas que, por um lado, viabilizaram o avanço da fronteira econômica para fora de seu território, rumo ao norte do país – integrando todo o território goiano, no geral, à rede de mercado capitalista e potencializando seu “papel” na divisão regional do trabalho (Borges, 2000). Por outro lado, para que Goiânia suportasse o peso de sua representação, tais decisões a produziram razoavelmente na sua dimensão pública para, a partir de 1950, permitirem a privatização das iniciativas de seu desenvolvimento. A este respeito é interessante o que dizem alguns estudiosos sobre a cidade, ao conceituarem o período. Para Pastore (1984) o período significou “a privatização do parcelamento do solo em Goiânia”icou “ere dizem alguns estudiosos sobre a cidade, ao conceituarem o peror moradia e alternativa de sobreviv; Chaves (1985) o compreende como sendo de “privatização do espaço e conflitos urbanos”; Moraes (1991) o identifica como sendo a “fase de ampliação do espaço”. Desta forma, a gestão pública sobre a capital do Estado de Goiás aproximava a lógica de desenvolvimento da cidade à nova fase do desenvolvimentismo nacional, que garantiu privilégios à iniciativa privada nas ações sobre os territórios, resumindo-se à montagem de infra-estrutura básica e de serviços e a mediar interesses econômicos. O impacto dessa condição política sobre Goiânia foi significativo, haja vista que sobre esta cidade recaia uma intensa procura por moradia e alternativa de sobrevivência de famílias retirantes da zona rural e de pequenas cidades sem grandes perspectivas, tanto de Goiás quanto de outros Estados, principalmente do Nordeste (em particular do Maranhão e da Bahia) e de Minas Gerais. O resultado de tudo isso foi um intenso crescimento demográfico de Goiânia, de acordo com os seguintes índices: de 1950 a 1960, 187,5%; de 1960 a 1970, 153,9%; e de 1970 a 1980, 109,7%. Ou seja, Goiânia saltou de uma população de 53.389 habitantes em 1950 para 817.343 habitantes em 1980 (Souza, 1996: 38. Apud Oliveira, 2002b: 71). Nestas dimensões, Goiânia viu não só um aumento do sítio urbano, como também uma diversidade social aumentada, pois passou a agregar “uma variabilidade de possibilidades de trabalho, de níveis de consumo, de papéis sociais e de proveniência de pessoas” (Costa, 2005: 80). OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 208 Essa trajetória de crescimento nos faz compreender a cidade de Goiânia como uma metrópole precoce. Idealizada e concretamente iniciada no limiar dos anos de 1930, Goiânia encerrou o século XX na condição institucional de metrópole, tendo atingido em 2005, segundo estimativas do IBGE, aproximadamente 1,2 milhão de habitantes, sendo que sua região metropolitana, neste mesmo ano, constituída por mais 11 municípios1, alcançou 1.934.771 habitantes. A complexidade de processos sociais que acompanham o fenômeno da metropolização deu contornos bem definidos ao que hoje compreendemos como Região Metropolitana de Goiânia. O que foi moldado resultou na constituição de uma série de novos problemas sócio-territoriais, os quais se traduzem nos espaços diferenciados da cidade pólo e de seu entorno. 2. Segregação sócio-espacial e as lutas políticas na cidade A dinâmica percebida na formação do espaço urbano de Goiânia e que hoje predomina nas grandes cidades brasileiras é assinalada por um fenômeno identificado na maioria dos estudos urbanos como sendo efeitos da segregação espacial. Villaça (1999) entende que a alta concentração de camadas sociais em determinada parcela do espaço urbano caracteriza a segregação residencial. Em seu argumento, a segregação espacial na cidade mostra-se necessária para que exista uma dominação pelo espaço urbano e para que, através dessa dominação, haja apropriação diferenciada do produto do trabalho, entendendo que o espaço urbano é o produto do trabalho de todos os que habitam e trabalham na cidade. Caldeira (2000), ao analisar o processo de urbanização de São Paulo, identifica diferentes momentos de consolidação da segregação urbana. No primeiro, diferentes grupos sociais se comprimem numa mesma área, sem a definição clara de áreas/bairros para determinados grupos. Este período vai do final do século XIX até os anos 40; outro momento, que vai até o início dos anos 1980 é caracterizado pela relação centro-periferia, que estabelece regiões para cada grupo social, sendo que as classes mais elevadas ocupam o centro e suas imediações e os pobres a periferia; No momento atual, que rompe com os limites de áreas de circunscrição, embora o padrão centroperiferia ainda ocorra, destaca-se o padrão dos enclaves fortificados (condomínios fechados), onde a noção de separação de classes torna-se sem sentido, tendo-se que falar somente em excluídos e incluídos, que convivem lado a lado separados por muros. OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 209 Atualmente o debate aumenta em complexidade, sendo ampliado, sobretudo, pelas modificações que operam em níveis globais e das modificações que o processo de metropolização acarreta na realidade urbana brasileira. Segundo Ribeiro (2005), as causas macro-estruturais estão ligadas à globalização que impõe novos modelos e paradigmas às políticas urbanas, por um lado, e, por outro, reordena a economia a partir da concentração de investimentos e renda. Tudo isso molda a estrutura social de forma polarizada. No caso da metropolização ocorre esvaziamento e estagnação de áreas centrais das maiores cidades, com a emergência de novas dinâmicas imobiliárias, marcadas principalmente pela inclusão dos enclaves residenciais de alta renda, fortificados e reclusos através de barreiras físicas bem visíveis, como muros altos e cercas elétricas (Ribeiro, 2005). A forma com que a cidade é estruturada socialmente é premissa fundamental para se delimitar o conceito de segregação. A diferenciação social se converte em espaços também diferenciados e o entrelaçamento desses dois tipos de relação social é determinado por hierarquias definidas a partir, então, da localização espacial e do acesso a bens materiais e simbólicos. A segregação espacial, nessas bases, produz uma dinâmica de causação circular da pobreza e o efeito disto é a alta concentração de grupos em situação de vulnerabilidade em territórios homogêneos, por um lado, e a concentração de categorias superiores, em outro (Ribeiro, 2005). Ruben Katzman (2005), embora não fazendo uso da mesma terminologia, demonstra de forma bastante lúcida essa relação, mostrando a existência de um certo círculo vicioso entre pobreza e concentração espacial2. Para esse autor, o isolamento de alguns estratos pobres das populações urbanas se converte em um obstáculo importante para o acúmulo de ativos necessários para deixar de ser pobre, fazendo com que a pobreza urbana socialmente isolada se constitua em um caso paradigmático da exclusão social. Nessa linha, o resultado mais significante é a manutenção de vínculos frágeis entre a população destituída e as instituições que detêm o controle das normas e valores dominantes na sociedade, como no caso do sistema educacional. Por outro lado, ocorre também um cercamento cultural e simbólico que fica estereotipado nas concentrações espaciais. Esse processo gera padrões de conduta e cognição singulares. Tal perspectiva é trazida por Wacquant (2001) que apresenta a noção de gueto para essas formações sociais. OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 210 A partir dessas considerações entendemos que o efeito das diferenças que se traduzem no espaço tem um retorno imediato para a dinâmica social. Isso porque além de acarretar modificações significativas nas relações produtivas com recolocação da população no mercado informal, diminui as chances de protagonismo da população segregada porque diminui os ativos necessários para reforçar os vínculos com as instituições e porque engendra padrões de conduta e comportamento que pouco contribuem para a afirmação de direitos e de princípios de justiça social. Por isso a confluência entre espaço demarcado pelo fenômeno da segregação e os processos políticos concomitantes são as variáveis preponderantes nesta reflexão. As lutas políticas de conteúdo predominantemente urbano são recentes no Brasil. A questão urbana só foi agregada à agenda política nacional, como entendem Bonduki e Kowarick (1988), a partir dos anos 70. Nesse deslocamento, as lutas e reivindicações que se desenvolveram em busca de benefícios urbanos, acesso à terra, habitação e bens de consumo coletivos passam a se relacionar às conjunturas políticas. Isso porque a segregação enquanto forma de domínio político cristalizou e passou a dominar as relações de poder na cidade. A chamada espoliação urbana, como afirma Kowarick, fixou o mito de uma sociedade amorfa, incapaz intelectualmente de reivindicar e lutar por direitos primários, relacionados, sobretudo, às condições de trabalho e moradia nas metrópoles (Kowarick, 1993). Para Gohn (2003), a transformação no cenário político das metrópoles, através da redemocratização, instaura um novo vínculo entre sociedade e Estado, marcado, sobretudo, pela ascensão de movimentos sociais que, mesmo influenciados por vetores de despolitização e individualismo, possibilitaram o estabelecimento e a consolidação de novos espaços de reivindicação. Esses espaços se traduzem em fóruns permanentes, audiências públicas, conselhos gestores, etc. A dinâmica, agora assinalada pela participação popular, é definida a partir da atuação de uma heterogeneidade de entidades, compostas por diferenciadas visões de mundo, valores, projetos sóciopolíticos e culturais e cultura política em si. A nova relação entre sociedade e Estado demarca também as políticas urbanas. Por isso as prerrogativas participativas, presentes no ideário da reforma urbana, refletem-se na gestão e no planejamento urbano. As administrações de esquerda nos municípios brasileiros a partir dos anos 90 instauraram, segundo Cardoso e Ribeiro (2003), o “planejamento politizado”. OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 211 Ao lado desse planejamento urbano politizado se consolida, também, um amplo espaço de luta política que situa diferentes agentes na defesa de interesses. O espaço urbano passa a ser uma arena de luta onde se concentra de um lado agentes interessados na apropriação de renda e ganhos de origem produtiva ou comercial, e de outro os que lutam por melhores condições materiais e simbólicas de vida. (Cardoso e Ribeiro, 2003) Ao pressupormos a atuação de uma complexa rede de agentes coletivos agarrados a referências diversas, resta saber como se configura os espaços de ação desses agentes, isso é tarefa das teorias democráticas atuais. 2.1 Democracia, condição democrática e poliarquia É bastante rico e não menos extenso os debates sobre democracia atualmente. A complexificação social impõe novos desafios às teorias democráticas (Costa, 2001), o que concorre para o estabelecimento de escolhas teóricas mais aproximadas com os objetivos das investigações. Ao admitirmos que a indagação que aqui fazemos sobre a mobilização política nas questões urbanas está relacionada com um quadro institucional específico, procedemos na análise das instituições políticas como forma de antecipar as nossas conclusões. Dahl (1997) admite uma distinção entre democracia, como ideal regulador, e poliarquias, como exemplares empíricos da descrição. Neste modelo existe uma combinação entre cooperação e conflito, pressupondo a existência de instituições visíveis para os agentes, como eleições, partidos e parlamentos. Tal percepção se baseia na suposição de que o governo dê respostas às preferências dos seus cidadãos, considerados como politicamente iguais. Assim, aos cidadãos devem ser garantidas algumas (oportunidades?) na sua plenitude, as quais incluem: a formulação de preferências; expressão das preferências aos demais membros da comunidade coletiva e ao governo através da ação coletiva e individual; ter as preferências igualmente consideradas na conduta do governo, independentemente do conteúdo ou da fonte. A forma como os governos geram estas condições relaciona-se com os regimes democráticos, existentes numa ampla variedade de situações. Por isso, Dahl (1997:31) prefere designar as experiências reais dos sistemas políticos de poliarquia. Por esta, se entende “um regime fortemente inclusivo e amplamente aberto à OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 212 contestação política”. Por regime aberto se entende a liberalização da competição política por ato institucional, bem como o reconhecimento da igualdade de direitos e a aceitação dos resultados da competição. Já por regime de inclusividade, se entende a participação social em eleições e em cargos públicos eletivos, bem como na sua organização social, também com garantia de direitos. Compreende-se melhor a poliarquia na contraposição de regimes contrários, tais como: 1) a hegemonia fechada; 2) a hegemonia aberta; e 3) a oligarquia competitiva. Resumidamente, a proposta teórica de Dahl é enquadrar realidades democráticas específicas ao seu modelo de análise. As variáveis principais nesse caso são: 1) a amplitude do direito de participação e 2) a existência do direito à contestação pública. No caso de Goiânia, investigar os canais de participação na cidade possibilita o estabelecimento de um quadro esclarecedor no nível poliárquico assumido nessa realidade. Resguardadas as devidas proporções, a experiência eleita para este estudo serve de indicador para essa aproximação. 3. Agenda Goiânia O Agenda Goiânia foi um programa implementado pela Organização Jaime Câmara – maior empresa de comunicação do estado –, pela Prefeitura de Goiânia e pela Universidade Católica de Goiás. Entre fevereiro e novembro de 2006 foram realizados 10 encontros que tiveram como proposta discutir o “futuro” da cidade de Goiânia. O objetivo explícito dessas discussões era debater temas que envolvessem a população, de modo que as reuniões foram dividas em 6 eixos temáticos: a) desenvolvimento econômico; b) sustentabilidade Sócio-ambiental; c) ordenamento territorial; d) mobilidade e acessibilidade; e) desenvolvimento sócio-cultural e; f) gestão urbana. Durante os encontros esses eixos foram operacionalizados através de grupos de trabalho coordenados por duas pessoas ligadas aos temas e vinculadas à Universidade Católica de Goiás e à Prefeitura de Goiânia. Tinha, também, o acompanhamento de um relator ligado à empresa de comunicação. A composição era completada pela participação popular. Como podemos perceber os princípios que orientaram essa experiência têm em suas diretrizes fundamentais os elementos necessários para a inclusão política. No entanto, ao tratarmos de uma cidade significativamente contraditória no que diz respeito OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 213 à ocupação do solo, como é o caso de Goiânia, é necessário problematizar tal conclusão a fim de saber em que medida a mobilização tem efeito na diversidade dos agentes políticos nesse espaço e como afetam o conteúdo das discussões. De acordo com o levantamento realizado o programa teve ampla divulgação, contou com a participação dos principais veículos da empresa organizadora, das universidades e de organizações profissionais relacionadas com a temática urbana. Os resultados das discussões foram publicados em cadernos especiais no jornal O popular e contou com a colaboração de especialistas no assunto. Em termos quantitativos 983 pessoas participaram das discussões, sendo que a participação em cada eixo ficou assim distribuída: Tabela 1. Distribuição dos participantes nos eixos temáticos N % Sustentabilidade sócio-ambiental 239 24,3 Desenvolvimento sócio-cultural 210 21,4 Mobilidade e acessibilidade 178 18,1 Ordenamento Territorial 127 12,9 Gestão urbana 123 12,5 Desenvolvimento Econômico 106 10,8 Total 983 100,0 Consideradas dimensões da publicidade recebida, da diversidade de conteúdo e do quantitativo da participação esse espaço criado pelo Agenda Goiânia pode ser tomado como altamente poliárquico, no sentido colocado por Dahl, ou seja aberta à participação política por um lado, e por outro garantidora do direito à contestação pública. A problematização aqui proposta, no entanto, amplia essa primeira consideração tentando examinar o conteúdo da dimensão poliárquica dessa experiência. Com esse exercício almeja-se analisar a qualidade da participação política na definição das políticas urbanas.Para efeito analítico recompomos a conjuntura em que as discussões do Agenda Goiânia encontram-se inseridas, qual seja o processo de elaboração do Plano Diretor da Cidade de Goiânia. OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 214 Iniciado ainda no mandato do Partido dos Trabalhadores entre os anos de 2000 e 2004, este processo ficou emperrado na câmara municipal porque havia um impasse quanto à expansão da área urbana do município. Embora nesse período tenha ocorrido uma conferência da cidade, plenárias do orçamento participativo, e inúmeras audiências públicas, o plano diretor acabou paralisado na câmara. Atualmente essas discussões se arrastam e o plano diretor continua parado na câmara municipal aguardando votação por parte do legislativo. As polêmicas continuam girando em torno da expansão da área urbana da cidade. De um lado, a prefeitura, que insiste em sustentar uma quota de lotes para cada loteamento aprovado, e de outro, o mercado imobiliário, que sustenta que tal ação caracteriza confisco e que tal prejuízo será repassado aos consumidores. Ao analisarmos as atas do Agenda Goiânia procuramos avaliar em que medida as polêmicas que envolvem a política urbana de Goiânia foram tomadas enquanto problema coletivo. Procuramos, primeiro, identificar discursos em torno da aprovação do plano diretor, que paralelamente encontrava-se em discussão na câmara municipal. Foi possível perceber que tal ponto foi pouco discutido, e mesmo quando isso ocorreu ficou distante das diretrizes fundamentais que orientam a elaboração do plano. Nas demandas da população, aparecem reivindicações pontuais dos bairros e regiões, sem vínculo com dispositivos aplicáveis à legislação urbana. As falas giraram em torno de problemas no mercado de trabalho, na estética dos bairros, no desenvolvimento econômico e na valorização imobiliária. “Moradores do Setor Sul solicitam discussões aprofundadas para um possível fechamento das vielas, transformando o bairro em condomínio fechado.” “Cobra-se a incorporação, pelo Plano Diretor, de um Plano de Arborização.” “Campinas é vítima da poluição visual, sonora e hídrica. Vizinhos de ferros-velhos e serralherias são os mais prejudicados.” “Foi sugerido engajamento da comunidade e o envolvimento do empresariado local na priorização da contratação de jovens da região.” “A demora na autorização para construção de prédios em Campinas reflete “descaso” das administrações municipais e a ausência de obras de grande impacto em uma região que ´parou no tempo´.” “Uma das formas de gerar mais empregos na região central de Goiânia é estimular os comerciantes informais a partirem para a formalidade e criarem suas micro e pequenas empresas. Para tanto, é necessário que a Secretaria de Desenvolvimento Econômico crie políticas específicas para os informais e artesãos, apoiando essas pessoas em seus projetos de estruturação comercial e empresaria.” “Os bairros de ambas as regiões necessitam de um plano de arborização, que está previsto no Plano Diretor, e mapeamento das áreas onde se encontram árvores cinquentenárias, muitas delas doentes, e oferecendo risco de acidentes.” OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 215 O conteúdo das demandas consagrou as solicitações pontuais, com forte vínculo paternalista do estado. A manutenção desse padrão de conduta frente ao papel do Estado parece responder às hipóteses de que o espaço urbano contraditório produz também lógicas conflituosas dentro do campo político. Verificamos que as demandas da população urbana mobilizada dentro da experiência participativa ainda não assumiram o conteúdo correspondente aos problemas urbanos fundamentais. 4. Considerações finais Este trabalho implicou num exercício de aproximação que tentou demonstrar a íntima relação entre a questão urbana e a questão política. A primeira centrada nas contradições que demarcam o espaço segregado da metrópole atual, e a segunda focada na mobilização coletiva em torno das decisões sobre o futuro da cidade. A pergunta fundamental, e que o prosseguimento dessa reflexão tentará responder é: na reunião de organizações coletivas em Goiânia os espaços institucionalizados estão se constituindo em um campo de atuação política fundamental para o futuro da cidade (urbano)? E mais: de que tipo são essas organizações coletivas e qual o sentido vetorial das decisões deliberadas? A construção de um novo modelo de sociedade, ou seja, de cidade que se quer, passível de ser alcançada dentro dos marcos da institucionalidade, só será possível se houver o envolvimento efetivo do povo em processos de participação a partir do seu lócus de referência – a rua, o bairro, a região, o trabalho etc. Isto implica em dizer que, de onde quer que as pessoas estejam, uma sociedade pautada num modelo democrático que pretenda a sustentabilidade dentro de um contexto de desenvolvimento integrado, é fundamental a sua organização e participação nos processos institucionais decisórios. Isto significa que a ampla participação popular faz com que a cultura política de gestão e de intervenção na cidade vai sendo transformada, na medida em que a apropriação da cidade vai se confirmando num processo contínuo de democratização dos espaços públicos. Não obstante, o exercício permanente de cidadania se erige frente à liberdade e à crítica de escolhas e decisões em espaços públicos. Contudo, as experiências de gestão da Goiânia, principalmente a partir da década de 1990, do ponto de vista político-social, não possibilitou grandes avanços para a implantação de mecanismos estáveis de descentralização decisória do espaço urbano, mesmo nas administrações que neste período se apoiaram nos movimentos sociais de OLIVEIRA, Adão Francisco de e RODRIGUES, Juliano Martins. Democracia, novos arranjos institucionais e gestão das cidades. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 207-220, Dez. 2008 / Jun. 2009. 216 recorte popular. Instrumentos utilizados como Orçamento Participativo, Conferência das Cidades e Agenda Goiânia não conseguiram abrir espaço efetivo de participação que possibilitasse a criação de um novo centro de poder, com capacidade de intervenção, em consonância com os respectivos executivos do período, na perspectiva de dar uma feição mais democrática na gestão dos problemas urbanos. NOTAS 1 A Região Metropolitana de Goiânia – RMG, foi criada em 1999 pela Lei Complementar nº 27, que instituiu como finalidade “integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum dos municípios dela integrantes” (cf. art. 2º). Faziam parte dela 11 municípios, sendo eles: Abadia de Goiás, Aparecida de Goiânia, Aragoiânia, Goianápolis, Goiânia, Goianira, Hidrolândia, Nerópolis, Santo Antônio de Goiás, Senador Canedo e Trindade. Porém, a partir de 2004, com a Lei Complementar nº 049, foi acrescentado a ela o município de Bela Vista de Goiás. 2 Para o autor, a situação é gerada pela precariedade ou inexistência dos vínculos com o mundo do trabalho pela redução dos espaços públicos que geram relações informais de convívio. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONDUKI, N. e KOWARICK, L. Espaço urbano e espaço público: do populismo à redemocratização. In: KOWARICK, L. (org.). As lutas sociais e a cidade. São Paulo: Paz e Terra, 1988. BERNARDES, Genilda D. 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A reprodução do espaço urbano de Goiânia: uma cidade para o capital. In: MOYSÉS, Aristides (org.). Cidade, segregação urbana e planejamento. Goiânia: Editora da UCG, 2005. ._________. Goiânia heterotópica: a integração excludente. In: OLIVEIRA, Adão F.; NASCIMENTO, Claudemiro G. do (orgs.). Cidades sustentáveis: políticas públicas para o desenvolvimento. Goiânia: Editora da UCG, 2006. OLIVEIRA, Adão F.; MOYSÉS, Aristides. Segregação e planejamento excludente: cidade informe e degradação ambiental em Goiânia. In: MOYSÉS, Aristides (org.). Cidade, segregação urbana e planejamento. Goiânia: Editora da UCG, 2005. OLIVEIRA, Adão F.; NASCIMENTO, Claudemiro G. do (orgs.). Cidades sustentáveis: políticas públicas para o desenvolvimento. Goiânia: Editora da UCG, 2006. RIBEIRO, Luiz C. de Q. (org.). Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Rio de Janeiro: FASE, 2004. RIBEIRO, L.C.Q. 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Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E PRODUÇÃO DE DESIGUALDADES SOCIAIS: O CASO DE GOIÂNIA Marcelo Gomes Ribeiro∗ Resumo: Abstract: O objetivo do presente trabalho é o de comparar as condições sócio-econômicas de duas regiões administrativas da cidade de Goiânia – Região Noroeste e Região Sudeste – e a partir disso buscar relacionar com a intervenção que o Estado realizou em cada uma delas. Essas regiões surgiram no cenário municipal mais ou menos no período histórico, porém desde o inicio a forma como cada uma foi viabilizada até os dias atuais, fizeram com que o poder público dedicasse mais atenção à uma que a outra. E claro que isso contribui para que haja diferenças entre elas traduzidas na forma de investimento em infra-estrutura pública, bem como na construção de equipamentos. Para tanto, procura-se demonstrar que a forma como o Estado e os diversos agentes sociais atuaram no processo de produção do espaço urbano, que resultou em desigualdades sociais, estão inseridas num contexto mais amplo de transformações estruturais ocorridas no mundo e no Brasil, que afetam na própria estrutura do Estado de Goiás e, por conseguinte, na estrutura urbana de um contexto particular, como é o caso de Goiânia. The objective of the present work is to compare the social-economic conditions of two administrative regions in the city of Goiânia - Northwest Region and Southeastern Region - and from this comparison try to relate with the intervention that the State carried through in each one of them. These regions had appeared in the municipal scene more or less in the historical period, however since the beginning the form as each one was made possible until the current days had made that the public power dedicated more attention to one that to the other one. And it is certain that this fact contributes so that has differences between them, translated in the form of investment in public infrastructure, as well as in the equipment construction. For such thing, we aim to demonstrate that the form as the State and the diverse social agents had acted in the process of urban space production, that resulted in social inequalities, are inserted in an ampler context of structural transformations occurred in the world and in Brazil, that affect in the proper structure of the State of Goiás and, therefore, in the urban structure of a particular context, as the case of Goiânia. Key-words: Palavras-chave: Desigualdades sócio-espaciais, espaço intraurbano, urbanização e Estado. Social-space inequalities, intra-urban space, urbanization and State Introdução Este trabalho trata-se de uma discussão acerca das desigualdades sócioespaciais produzidas no contexto urbano de uma metrópole no interior do Brasil, a partir ∗ Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Católica de Goiás (2001) e Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (2007). Atualmente é doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 219 da ação do Estado (poder público). Ela procura compreender os processos que se produziram essas desigualdades. O foco de análise centra-se nas desigualdades sócioespaciais, apesar de haver concentração na compreensão do modo como o Estado as favoreceu. Porém, isso precisa ser visto apenas como um recurso para abordagem da emática proposta, visto que se há desigualdade, ela precisa ser justificada a partir de elementos concretos. O contexto espacial escolhido trata-se de Goiânia, a capital do Estado de Goiás desde 1933, quando da sua fundação. Por ser uma cidade planejada num momento histórico específico, esta cidade possui particularidades próprias que a diferencia inclusive de outras cidades planejadas do país. Porém, ela possui características que lhe confere homogeneidade em relação às demais cidades brasileiras que passaram por um processo de crescimento populacional e de metropolização. Esses aspectos homogêneos são incorporados, principalmente, a partir da década de setenta, quando o Estado modifica sua estrutura populacional e Goiânia passa a concentrar parcela significativa da população de Goiás. Ao considerar esta cidade, tem-se a preocupação de compreender suas características internas, o que a literatura denomina de espaço intra-urbano. No seu interior, observa-se que a cidade é apresentada de forma heterogênea, que em grande parte decorre das desigualdades sociais manifestada no espaço. Por este motivo, o estudo em questão, ao escolher Goiânia como lócus da investigação e reconhecer sua heterogeneidade, concentra sua pesquisa em duas regiões administrativas da cidade que possuem características diferentes, desde o seu processo de ocupação. Porém, para que se possa analisar de modo comparativo, a fim de problematizar as desigualdades, escolheu-se duas regiões que surgiram mais ou menos no mesmo período, final da década de 1970 e início da década de 1980, a Região Sudeste e a Região Noroeste. Além disso, destaca-se que elas tiveram na sua origem, principalmente, modos de ocupação diferenciada. A primeira fora ocupada por decorrência da iniciativa privada. A segunda fora patrocinada pela ação dos movimentos populares (Moyses, 2001; Moraes, 2003). Convém salientar que o recorte espacial utilizado nessa definição de região é o mesmo que o poder público municipal tem utilizado na atualidade. Isso é importante porque no passado, por exemplo, o que fora denominado de Região Noroeste não corresponde à configuração atual. E como esta região, em particular, já fora objeto de várias abordagens é preciso que se tenha compreensão que ao realizar este estudo neste RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 220 momento estar-se considerando, em grande medida, mudanças significativas que aconteceram no contexto urbano, que implicou na expansão da cidade. A regionalização atual do município com destaque para as regiões em estudos pode ser verificada no mapa 1 (abaixo). A Região Noroeste, pelo recorte que será dado aqui, teve sua primeira ocupação realizada por iniciativa dos movimentos populares, por meio de mobilizações e acampamentos, a qual resultou na Vila Finsocial, no início da década de 19801. Ao longo dessa década, outros loteamentos foram ocorrendo que tiveram, em sua maioria, uma participação destacada do Estado. Essa é uma região em que pela legislação urbana não poderia ser habitada, por decorrência de seus aspectos ambientais. Porém, o próprio Estado possibilitou essa iniciativa favorecendo a ida de centenas de pessoas para esse espaço, como são os casos da Vila Mutirão, do Jardim Curitiba e do Bairro da Vitória, que mais tarde vieram a ser desmembrados em outros loteamentos. A região Sudeste possui uma conformação muito diferente da verificada naquela primeira. E isso tem a ver com o modo em que se processaram as ocupações nesse pedaço do território da cidade. O capital imobiliário e o governo central (União) tiveram, no começo, papel fundamental no modo como fora operado essa ocupação. Loteamentos planejados, com infra-estrutura e equipamentos públicos, foram ocupados por pessoas que tinham condições de adquirir um imóvel com essas características, o que sugere a diferença da estrutura sócio-econômica destes com os da Região Noroeste. Além disso, verifica-se que na atualidade novos empreendimentos imobiliários têm sido construídos nesta região, com padrões mais sofisticados do que fora na década de 1970 e 1980. As características apontadas para diferenciar uma região da outra, em que pese constituísse como reveladora do modo de ocupação de cada uma delas, não significa que a totalidade de cada uma das regiões foi ocupada segundo aquilo que caracteriza o conjunto da região. Porém, mesmo que formas diferenciadas de ocupação do território de cada uma das regiões tenham ocorrido, seu aspecto caracterizador ainda se verifica pela sua ocupação inicial. Mapa 1 Região Noroeste e Região Sudeste de Goiânia – 2005. RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 221 Para tanto, é preciso, antes de mais, delimitar o que se estar entendendo como Estado para esta investigação proposta. Neste caso, estar-se considerando a ação do poder público, executivo, nas suas três esferas: municipal, estadual e federal (União). Independe se a ação fora decorrente dos técnicos, que compõem a estrutural estatal e administrativa, ou se fora obra dos governos, que são os mandatários do poder público, mas que não possuem permanência. Mesmo que a legislação seja votada e aprovada pelo Parlamento – Câmara Municipal, no caso dos municípios; Assembléia Legislativa, no caso dos Estados; Câmara dos Deputados e Senado, no caso da União – se considerará no âmbito do executivo, pois é ele que possui a prerrogativa de pô-la em execução. O Estado atua sobre o contexto urbano de várias maneiras, principalmente porque este tem sido palco da maioria das interações sociais, desde que a maior parcela da população passou a habitar as cidades. Seja para reprimir a violência ou impor a ordem, interferir na mobilidade das pessoas, definir as zonas de residências ou comerciais, seja para oferecer políticas de saúde, educacionais ou assistenciais o Estado está muito presente no cotidiano da sociedade. A importância da definição da compreensão do Estado para título desse estudo é o de enquadrar as desigualdades sócio-espaciais como foco de análise. Isso porque quando se procura discutir a partir da ação do Estado tem o perigo de favorecer a análise sobre suas concepções e comportamentos, o que deve ser buscado na teoria do Estado. Mas esta não é a preocupação propriamente dita. Por mais que ela possa contribuir para a análise proposta, o interesse é o de verificar como as desigualdades sócio-espaciais podem ser produzidas a partir da intervenção do Estado, que é diferente de verificar como o Estado produz as desigualdades sócio-espaciais. Pois no primeiro caso trata-se de sua ação delimitada por aspectos que provocam diferenciação no território, já no segundo trata-se da ação do Estado a partir de suas prerrogativas, tendo em vista seu papel e função em sentido amplo, para além da intervenção em investimentos públicos, o que pode contribuir ou não para a produção das desigualdades espaciais. Assim se poderá verificar a ação do Estado em contextos urbanos diferenciados de um mesmo território. De um lado, a intervenção que o Estado faz em uma região administrativa da cidade em que sua forma de ocupação fora decorrente da mobilização de segmentos da população, os quais se constituíram em “movimentos sociais”. De outro lado, a intervenção do Estado em uma região administrativa da RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 222 cidade em que sua ocupação fora patrocinada pela iniciativa privada (imobiliárias, principalmente). Urbanização brasileira e goiana A ocupação territorial urbana no Brasil tem sido uma prática deveras realizada de modo indiscriminado pelos agentes sociais. A literatura que trata a esse respeito tem mostrado diversos interesses que estão em jogo nesse processo. Os movimentos populares, a iniciativa privada (as construtoras, as empreiteiras e as imobiliárias) e o Estado aparecem como os principais agentes coletivos presentes nesse campo social. Isso porque, se verifica que a indução de um processo de ocupação do território da cidade é feita por pelo menos um desses agentes. Os conflitos ocorridos em torno dessa prática se, por um lado, retratam as desigualdades sociais acumuladas no país, por outro, favorecem as desigualdades sobre o espaço urbano, levando ao aprofundamento das primeiras. Essa situação foi agravada a partir de meados do século XX, dado o processo de urbanização ocorrido no Brasil. A urbanização, discutida por diversos autores, entre eles Milton Santos (1996), se realizou em parte pelo crescimento vegetativo da população e em parte pelo êxodo rural. Mas, esse comportamento populacional teve implicações diferenciadas no âmbito do território nacional. Num primeiro momento houve acumulação de pessoas nas regiões que passaram pelo processo de industrialização, em detrimento da política de substituição de importação, ocupando, em grande medida, as franjas dessas cidades, como fora o caso de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, principalmente, pelo que ficou conhecido como metropolização (Santos, 1996). Para se ter uma idéia, houve crescimento de 79,3% da população no período de 1950 a 1970, no país, seguindo uma taxa geométrica de 3% ao ano (Censo Demográfico do IBGE). Ao passo que no mesmo período a população urbana cresceu 177,4%, a uma taxa geométrica de 5,2% ao ano, contra uma taxa de 1,1% do crescimento da população rural. Por outro lado, observa-se que, embora o crescimento total da população no país e da população urbana tenha continuado, no período de 1970 a 2000, houve decréscimo populacional no meio rural (-0,8%). Porém o comportamento da população verificado nesse período se deu de modo diferente ao período anterior. Apesar de as pessoas continuarem engrossando as franjas das grandes cidades, reforçando a metropolização, houve a descentralização desse crescimento, na medida em que outras RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 223 regiões do país passaram também a incorporar de modo concentrado em lugares específicos parcela dessas pessoas, o que pode ser denominado como desmetropolização (Santos, 1996). Ou seja, esse fenômeno não significa, em si, a desconcentração de metrópoles já constituídas, mas a formação de outras metrópoles pelo interior do país. O caso de Goiás é típico do segundo período. Este Estado se apresentou ao século XXI com uma população de mais de cinco milhões de habitantes. Mais de ¾ (três quartos) dessa população foram acrescidas na segunda metade do século passado. Ou seja, em cinqüenta anos o número de habitantes cresceu três vezes mais do que o ocorrido ao longo de mais de 2 (dois) séculos. Mas Goiás apenas seguiu uma tendência que se realizava em todo o Brasil, como indica Santos (1996), e em grande parte dos países do mundo. Esse crescimento constatado se deu principalmente no urbano. Enquanto em 1950 o estado possuía 1.214.921 pessoas, em 2000 atingiu 5.003.228, uma variação de 312%. Porém, ao considerar a população urbana e rural separadas observase que a primeira possuiu um crescimento contínuo o que resultou numa variação de 1.690%, pois em 1950 ela era constituída por apenas 245.667 pessoas e em 2000 atingiu o patamar de 4.396.645. A segunda, população rural, em que pese ter registrado crescimento até 1980 chegou a 2000 com uma população inferior a registrada em 1950, o que provocou ao longo do meio século um crescimento negativo de 37%. Há que considerar que a configuração territorial de Goiás sofreu modificações ao longo desse período e elas tiveram conseqüências no quantitativo populacional do estado. O que hoje é denominado Distrito Federal pertenceu a Goiás até ao final da década de 50 quando foi cedido para construir a nova capital do país. Além disso, em 1988 com a promulgação da nova Carta Magna, Goiás sofreu outro desmembramento cedendo parte de seu território ao que se constituiu como estado do Tocantins. Por este motivo, em que pese comprometer a análise da evolução histórica, quando se refere a Goiás antes de 1991 está considerando sua configuração da época. Outro aspecto importante que merece ser destacado é o conceito de população urbana. Como a opção foi trabalhar com os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a compreensão é a mesma por ele utilizada. População urbana é aquela que possui residência na zona urbana dos municípios. Ocorre que todos os municípios por mais espraiados que seja sua população possuem uma sede que por definição é considerada como zona urbana. Mesmo em municípios muito pequenos em que o modo de vida e as relações sociais são próprias do meio rural o que RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 224 se define por sede do município é considerado como urbano, e a população que aí reside é também computada sob essa categoria. Mas isso não invalida a importância que tem tomado o crescimento da população urbana. Ao considerar apenas os dez municípios com o maior quantitativo de pessoas de Goiás, segundo os dados do Censo Demográfico de 2000, observa-se que a sua população corresponde a 48% da população do estado, que possui 246 municípios. A população urbana desses dez municípios corresponde a 54% da população urbana do estado, o que explica uma taxa de urbanização da ordem de 98% no conjunto desses municípios. Esses dados sugerem que é preciso tratar com relatividade os processos territoriais e populacionais, pois como se vê o fenômeno da urbanização não é homogêneo e possui peculiaridades dependendo do contexto e do recorte que se analisa. Além disso, é importante considerar a forte concentração populacional em alguns dos municípios ou conjuntos de municípios do estado. Para se ter uma idéia somente a população da capital, em 2000, representava 22% da população de Goiás. Ao acrescentar a população de municípios adjacentes, os quais constituem a Região Metropolitana de Goiânia (RMG)2, sua população passou a representar 33%, ou seja, 1/3 do total da população. A população dos municípios goianos que pertencem a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE) possui 17% da população. Ou seja, ao considerar apenas os municípios da RMG e os municípios goianos da RIDE eles possuem juntos a metade (50%) de toda população do estado, sendo que o número de municípios (30) dessas regiões somados corresponde a 12% do número de municípios de Goiás. A outra metade da população está distribuída pelo restante do estado, nos seus outros 216 municípios. Porém, o processo de urbanização e, por conseguinte, a metropolização e desmetropolização não podem ser explicados apenas em si mesmos. Se por um lado esse processo sofreu as conseqüências da reestruturação produtiva iniciadas nos países centrais (Harvey, 1992), por outro não podem ser desprezadas as mudanças estruturais ocorridas na economia brasileira quando do esgotamento da política de substituição de importações (Mantega, 1984). Além disso, é preciso considerar as transformações da estrutura econômica de Goiás. Esses fenômenos atribuem significados diferentes para o modo de vida das pessoas que moram nos centros metropolitanos. Mudanças estruturais RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 225 A análise das transformações estruturais da economia política capitalista do final do século XX, referente aos processos de trabalho, hábitos de consumo, configurações geográficas e geopolíticas e poderes e práticas do Estado, constitui-se como objeto de discussão da obra Condição Pós-Morderna, de David Harvey, principalmente no que diz respeito à segunda parte que constitui os capítulos de 7 a 11. Para tanto, o autor utilizou a abordagem teórica de orientação da chamada Escola da Regulamentação. Nesta perspectiva considera-se o regime de acumulação - um período longo em que as relações de produção e consumo possuem algum grau de estabilidade colaborando para a acumulação capitalista -, sustentado pelo modo de regulamentação o qual garante um determinado tipo de comportamento individual e ao mesmo tempo a reprodução de hábitos, normas, leis etc. O período em que se aprofunda a análise é caracterizado como sendo um momento de transição de um regime de acumulação para outro, do regime fordistakeynesiano para o regime de acumulação flexível. Neste sentido, procura-se analisar a constituição do regime fordista-keynesiano, na tentativa de evidenciar seu declínio, e os novos elementos que caracterizariam o surgimento do regime de acumulação flexível, embora ainda em formação. Chama a atenção que a opção teórico-metodológica destacada para análise da transição que caracteriza as transformações político-econômicas do capitalismo coloca peso demasiado às estruturas sociais nesse processo, influenciando, ou mesmo, determinando as práticas, ações e comportamento dos indivíduos. Ante apenas compreender como ocorreram as transformações estruturais que provocaram mudanças no comportamento dos indivíduos, vale a pena indagar qual o significado dessas estruturas capazes de imprimir hábitos, gostos e, até mesmo, maneiras de ser nas pessoas singulares. Ou seja, como compreender que mudanças significativas que ocorreram no final do século XX foram capazes, não somente de mudar o comportamento dos indivíduos, mas de serem percebidas por estes, sem ter sido obra de nenhum deles em particular. Ao longo da trajetória da análise que é desenvolvida, observa-se que o autor traz à luz o processo histórico em que se emergiram os instrumentos necessários para por em prática determinadas estruturas sociais que, por sua vez, entrou em colapso. E é no desenrolar dessas estruturas que se determinaram os hábitos e comportamentos dos indivíduos, desconsiderados de sua individualidade. Embora no período em que se denominou de acumulação flexível há alterações importantes que diferenciam RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 226 indivíduos, principalmente no que se refere ao mercado de trabalho, mas mesmo assim cada diferença é considerada como uma totalidade: gênero, etnia, etc. Convém, porém, destacar as contribuições feitas sobre alguns aspectos que favoreceram a mudança de um processo de acumulação que necessariamente resultou em outro (mesmo que ainda inacabado). Os processos de trabalho, por exemplo, ganharam envergadura num momento muito posterior à sua elaboração. O fordismo que significou uma “radicalização” do taylorismo foi criado e colocado em prática já no início do século sustentado na concepção de que produção de massa significa consumo de massa. As implicações disso estavam expostas, na medida que se tornou necessário à criação de demanda efetiva para a produção industrial, que de outro modo, significa aumento de renda da população e mudanças de práticas de consumo para quem ainda não percebera a necessidade de determinadas mercadorias. Seu estabelecimento se deu somente depois que os critérios orientadores do regime econômico vigente foram abalados. O liberalismo econômico não foi mais capaz de ditar as regras que determinasse o equilíbrio de mercado. O Estado, a partir de então, aprofundou o modo de regulação da economia bem como assumiu um novo papel no modelo econômico que entrou em vigor. E isso favoreceu a consolidação do fordismo, visto que foi encontrado aquilo que faltava e que o keynesianismo foi capaz de oferecer. Um novo sistema de reprodução da força de trabalho fora criado ao mesmo tempo em que foram incorporados novos mecanismos de controle sobre ela. O trabalho necessitou de mais racionalização e disciplina. E isso possibilitou (com muitas resistências, principalmente no início) a concentração por um período de oito horas para realização de tarefas com poucos movimentos que antes possuía fortemente o modelo artesanal como característica. Por decorrência das inter-relações que foram estabelecidas entre o trabalho (tendo o sindicato um papel muito forte neste momento), o capital e o Estado o regime fordista-keynesiano pode ser compreendido não apenas como sistema de produção de massa, mas principalmente como um modo de vida. E foi esse regime de acumulação do capital, que ao entrar em declínio, levou ao surgimento de outro regime de acumulação que ainda está sendo considerado como um momento de transição. Mas que se torna perceptível não apenas nas totalidades dos processos sociais como também no modo de agir das pessoas singulares. Esse novo regime é denominado, como dito outrora, acumulação flexível do capital. RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 227 Muitas foram as reestruturações colocadas em curso que possibilitaram essa nova configuração estrutural. O fordismo que fora baseado na produção em escala cedeu lugar para produção de escopo; a rigidez do processo de trabalho é substituída por processos flexíveis; a organização industrial se fragmenta; as formas de organização da classe trabalhadora são fragilizadas. Porém, segundo Harvey duas foram as mudanças que permitiram a passagem de regime de acumulação para outro: o novo sistema de informação e a reorganização do sistema financeiro. Ambas decorrentes dos avanços tecnológicos que implicaram numa nova relação tempo e espaço. As implicações para o contexto urbano foram várias. Pelo fato de o processo produtivo, no modelo fordista, ser focado na produção em grande escala, havia a necessidade da contratação de um grande número de operários para realizar essas atividades, uma vez que o sistema produtivo ainda se baseava nos princípios tayloristas. Esse modo de organização do trabalho “moldava” trabalhadores que possuíam especificidades quando se observa seu estilo de vida também em suas moradias. Quando se passa para o modelo de acumulação flexível, as mudanças no processo produtivo provocam também alterações no comportamento, hábitos e gostos das pessoas. Uma vez que se modificam as formas de consumo. Por outro lado, verifica-se que o Brasil desde a década de 1950, mais especificamente, passou por um processo de industrialização por meio da substituição de importações, o que significou, grosso modo, a implantação da produção industrial internamente no país de produtos que antes era adquirido no mercado internacional. Até o momento dessa mudança estrutural sua economia era assentada na exportação de produtos agropecuários sem agregação de valor. A partir desse momento ocorreram grandes fluxos migratórios do meio rural em direção aos grandes centros urbanos, pois estavam sendo criadas perspectivas de trabalho nas cidades em detrimento do campo. Foi um período em que o país assistiu a mudança de sua estrutura populacional, como já fora retrato anteriormente, o que agravou problemas decorrentes das grandes aglomerações populacionais, tais como saneamento, condições de moradia, educação, etc. Mas essa política industrial, que possibilitou o crescimento econômico do país e uma nova forma de inserção nas relações de troca com o resto do mundo, esgotou-se por decorrência dos seus efeitos produzidos, principalmente pela elevação da dívida pública do país e dos altos índices inflacionários. Em sua substituição ascendeu o receituário da ortodoxia econômica, que fora acompanhado mais tarde pela liberalização RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 228 comercial e financeira que o país atravessou. Porém, no momento de transição da política de substituição de importações para a política de cunho neoliberal foram fortes os impactos para o contexto urbano. Dado o agravamento das condições sociais de vida da população pelos efeitos negativos do período de industrialização do país, em que houvera forte concentração da renda em pequenos segmentos da população, as condições de moradia tornaram-se um dos grandes problemas dos centros urbanos. Eis o motivo das ocupações realizadas por meio de mobilizações populares, organizadas por movimentos sociais. Mas os conflitos produzidos em torno da terra urbana não podem ser dissociados do interesse que vários outros agentes possuem sobre essa questão, tais como o capital imobiliário e o próprio Estado. A dinâmica populacional descrita acima precisa ser melhor compreendida a partir da estrutura econômica do estado de Goiás. Ou seja, que fatores podem ser destacados no processo econômico que proporcionaram um aumento da população principalmente em zonas urbanas de um estado que se caracterizou por muito tempo como estado agropecuário? Neste sentido, procurar-se-á compreender a relação desses processos com o mercado de trabalho. Embora a formação econômica de Goiás se desse assentado na produção agropecuária, principalmente, as atividades de serviços passam a assumir importância cada vez mais significativa, que hoje se constitui também como caracterizadora da dinâmica econômica deste Estado. É importante perceber que mesmo antes das grandes mudanças ocorridas no campo e na indústria, o setor de serviços sempre teve lugar numa economia que tem por base a agropecuária. Isso porque as atividades de comercialização, financiamento etc. são constituintes deste setor. A questão que se coloca é de outra ordem, tendo em vista que nem todas as atividades de serviços hoje existentes no estado de Goiás possuem relação direta com a produção agrícola. Para tanto, é preciso analisar a evolução histórica do processo econômico a fim de compreender suas transformações. Em relação à industrialização do campo os impactos na economia do estado são muito perceptíveis e estudados até o recente momento. A partir da década de 1970 muitas pesquisas foram desenvolvidas no sentido de favorecer a ocupação do planalto central que até aquele momento se constituía como região de fronteira, como fora abordado por Estevam (1998). Esses estudos possibilitaram o desenvolvimento de novas técnicas agrícolas o que permitiu o uso do solo dessa região como jamais concebido até RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 229 essa época. Aliado a essa questão ocorreu também desenvolvimento de insumos propício a região bem como o uso de máquinas para a monocultura que se estabeleceu a partir desse período. Essas mudanças tiveram efeitos surpreendentes na produção agrícola e no comportamento da renda da população do Estado. O que parece contraditório é que a agricultura perde peso na participação da composição da renda interna de Goiás. Porém, como foi destacado a industrialização do campo favoreceu o desenvolvimento de agroindústrias na região, voltadas para o beneficiamento e industrialização dos produtos agrícolas, de um lado, e o desenvolvimento de atividades que antes faziam parte exclusiva da agricultura ou da indústria, passaram a se constituir como caracterizadas no setor de serviços, de outro lado. Isso explica porque em 1960 a participação da agricultura na renda interna de Goiás era de 49,5% e em 1995 foi de 16,2%. Ao passo que o setor de serviços participou naquele ano com 43,2% e neste com 58,4% (Estevam, 1998). Mesmo em si tratando de uma cidade planejada, a capital de Goiás sofreu os impactos da urbanização e das transformações político-econômicos. A partir desse período foram várias as mobilizações dos diversos agentes coletivos com interesse sobre o território. Motivo pelo qual a cidade passa intensificar o crescimento em suas franjas, criando uma situação de “desordem” territorial. Por um lado, observa-se que o poder público tivera a preocupação com o planejamento da cidade, tentando induzir a forma de seu crescimento; de outro, se verificou que as pressões exercidas por aqueles agentes trouxeram mudanças ao planejado. E nesse processo dialético, entre poder público e sociedade, que se produziu a cidade concreta que existe hoje. Mas a participação do Estado não fora homogênea, nem tampouco fora guiada segundo os mesmos interesses. As conseqüências de suas ações são verificadas ao analisar o modo como ele interveio em cada região da cidade. O Estado, entendido como poder público, pelo seu papel na sociedade intervém em todos os modos de ocupação que se realizam no território urbano, seja nas ocupações patrocinadas pelos movimentos populares, pela iniciativa privada ou por ele mesmo. Suas intervenções corroboram para a construção de localizações diferenciadas (Villaça, 1998) no contexto urbano, tendo em vista que se leva infra-estrutura e se constrói equipamentos públicos há a valoração das propriedades e dos imóveis beneficiados por essas ações. Por conseguinte, a medida que esses espaços são valorados o perfil de sua população tende a se alterar, seguindo os padrões sócio- RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 230 econômico exigidos pela novo contexto espacial. Porém, esse processo não ocorre de modo homogêneo em toda a cidade, pois em contextos que a população se enquadra nos baixos padrões de consumo e que a ocupação espacial se verificou por meio de mobilização social, a localização aí construída, apesar de ser maior valorada que antes da intervenção estatal, não se iguala àquelas em que o modo de ocupação se deu por iniciativa das imobiliárias e construtoras. Nestas o processo se dá de modo completamente diferente. E isso se verifica pela relação que a iniciativa privada constrói com o poder público. Nos lugares onde a ocupação do território urbano se processou através das empresas imobiliárias e construtoras verifica-se que sua valoração ocorre antes mesmo de o espaço ser ocupado por aqueles que realizarão sua atividade finalística, como morar e trabalhar. Isso ocorre porque a iniciativa privada mantém uma estratégia em que ao doar parte do terreno para o poder público construir algum equipamento público significativo, aumenta o preço da terra, na medida que valora a localização. Por este motivo, o perfil sócio-econômico das pessoas que conseguem se apropriar de uma parcela desse território se situa nos segmentos de mais elevada renda da sociedade. Mas é preciso também considerar um outro aspecto da relação públicoprivado presente no contexto de ocupação urbana que tivera a chancela dos movimentos populares, o que se verifica na Região Noroeste. Apesar de essa mobilização ter como apelo a reivindicação da função social da propriedade, atualmente contida na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade, de 2000, não se pode ignorar que sua ação apenas muda a estrutura de privação da propriedade, na medida que antes ou era concentrada em poucos proprietários ou pertencia ao Estado. Como se sabe, o que hoje é denominado Região Noroeste fora no passado estabelecido para ser área de preservação ambiental. Condições sociais das regiões Noroeste e Sudeste de Goiânia As condições sociais existentes nas regiões Noroeste e Sudeste pode ser apreendida a partir de dados referentes de trabalho e escolaridade. Neste sentido, se poderá observar a expressão dessas diferenças. Como se observa na tabela 1, em termos absolutos a Região Noroeste possui maior número de pessoas do que o verificado na Região Sudeste, tanto em relação à População em Idade Ativa, à População Economicamente Ativa e à População Ocupada. Porém, ao considerar a taxa de atividade e a taxa de ocupação, percebe-se que RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 231 as duas regiões e o conjunto do município têm praticamente a mesma estrutura, com pequenas diferenças entre as duas regiões na taxa de atividade em favor da Região Noroeste e na taxa de ocupação em favor da Região Sudeste. E chama atenção que mais de 4/5 das pessoas disponíveis para o mercado de trabalho estão exercendo alguma ocupação, apesar de representar na Região Sudeste uma taxa de desocupação de 13,2% e na Região Noroeste um índice que alcança 14,2%, acima da taxa de desocupação do conjunto do município que é de 11,9%. Quando se verifica a distribuição da população segundo a faixa de renda, observa-se que a Região Sudeste possui uma estrutura muito parecida com a estrutura do conjunto do município de Goiânia, como se vê na Tabela 2. Para as pessoas ocupadas que percebem até um salário mínimo por mês, 17,9% estão nessa faixa na Região Sudeste e 17,1% em Goiânia. Em relação aqueles cujo rendimento situa-se no patamar de mais de 1 a 3 salários mínimos, verifica-se que naquela região os ocupados representam 44,9%, enquanto no conjunto do município os ocupados representam 43%. Para a faixa de rendimentos de mais de 3 a 5 salários mínimos, os ocupados representam 15,4% na região contra 14,5% no município. Ainda em relação aqueles que percebem acima de 5 salários mínimos, na Região Sudeste os ocupados representam 21,8%, enquanto que em Goiânia os ocupados representam 25,4%. O caso da Região Noroeste é mais dramática a situação. Mais de 4/5 dos ocupados da região percebem até 3 salários mínimos, ao considerar que há 25,2% que ganham até 1 salário mínimo e 58,4% que recebem mais de 1 a 3 salários mínimos, enquanto que no município de Goiânia considerado globalmente as duas primeiras faixas de rendimento corresponde a menos de 2/3 dos ocupados, 60,1%. Assim, somente 11,2% dos ocupados da Região Noroeste recebem mais de 3 a 5 salários mínimos e 5,1% possuem remuneração acima de 5 salários. RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 232 Quando se verifica os dados relacionados à escolaridade percebe-se que há muitas diferenças entre as Regiões Sudeste e Noroeste. Aquela, por exemplo, tem uma taxa de analfabetismo (pessoas de 15 anos e mais de idade que não sabem ler) muito parecido com a taxa verifica em Goiânia, 4,9% contra 4,8%. A Região Noroeste possui um índice que é quase o dobro dessas taxas, com 9,1%, como pode ser verificado na Tabela 3. Na Tabela 4 observa-se que em todas as faixas de idade a Região Sudeste possui um índice de freqüência à escola ou creche superior ao verificado na Região Noroeste. A única faixa etária que possui estrutura parecida é entre 7 e 14 anos de idade, pois a Região Sudeste possui 98,5% e a Região Noroeste 97,1%. Nas outras faixas as diferenças são significativas. Chama atenção pelo fato de nas faixas compreendidas como juventude haver menor participação na Região Noroeste. RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 233 Quando se considera aqueles que estão freqüentando escola e se verifica os que estão numa série condizente com sua idade, como mostra a Tabela 5, percebe-se neste quesito a Região Noroeste possui uma situação pior, na medida em que somente na faixa de 7 a 14 anos de idade é que o índice ultrapassa a metade das pessoas, registrando 52,9%, ao passo que a Região Sudeste nesta faixa registra uma taxa de 64,9%. Em todas as faixas restantes essa taxa fica abaixo de 50% para a Região Noroeste, principalmente na faixa de 18 a 25 anos, cujo índice é de 8%, enquanto na Região Sudeste esta faixa de idade corresponde a 37,5%. Já na faixa etária de 15 a 17 anos, a Região Noroeste corresponde a 30,7% e a Região Sudeste a 55,3%. A Tabela 6 apresenta taxa de pessoas que possuem 15 anos ou mais de idade sem instrução ou com até 3 anos de estudo. Verifica-se o índice da Região Noroeste é mais que o dobro da Região Sudeste. Enquanto aquela registra 27,6%, esta registra 13,0%. Por outro lado, a Tabela 7 apresenta as pessoas de 18 anos e mais de idade com 11 anos e mais de estudo. Verifica-se que em relação a este aspecto a situação se investe, uma vez que a Região Sudeste, embora possua uma taxa inferior à registrada no conjunto do município de Goiânia é quase quatro vezes maior que o verificado na RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 234 Região Noroeste (9,9%). Ao passo que naquela Região o índice é de 36% enquanto em Goiânia o índice é de 38,7%. De modo geral, podem-se apreender diferenças entre as condições sociais existentes na região Noroeste e região Sudeste quando medido pelas variáveis de trabalho e escolaridade. E essas diferenças tendem a ser mais favoráveis à região Sudeste por ter apresentados melhores condições referentes a renda e níveis de escolaridade, o que demonstra a existência de desigualdades sociais quando verificadas no contexto do território urbano. Considerações finais Em decorrência das relações estabelecidas em cada um dos contextos entre os agentes sociais que interferem na ocupação do espaço urbano e das condições existentes que objetivam suas estruturas, verifica-se a produção das desigualdades sócio-espaciais entre áreas diferentes do urbano. Sugere-se que essas desigualdades não são apenas decorrentes da intervenção que o Estado faz em cada uma dessas áreas ou regiões da cidade, mas, sobretudo, do modo em que o Estado atua nessa intervenção, através do investimento em infra-estrutura e construção de equipamentos públicos. Além disso, considera-se que o tipo de ocupação realizado está relacionado com as condições sociais produzidas em cada contexto, que se apresenta como características explicativas das desigualdades sócio-espaciais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE MATTOS, Carlos A. Metrópoles. Redes, nodos e cidades: transformação da metrópole latino-americana. In RIBEIRO, L. C. Q. (Org.). Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; Rio de Janeiro: FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, 2004. RIBEIRO, Marcelo Gomes. Ocupação do espaço urbano e produção de desigualdades sociais: o caso de Goiânia. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 221-238, Dez. 2008 / Jun. 2009. 235 CARNEIRO, Dionísio Dias & MODIANO, Eduardo. Ajuste Externo e Desequilíbrio Interno: 1980-1984. In PAIVA ABREU, Marcelo de (Org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1990. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Vol. 1. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. CONCEIÇÃO TAVARES, M. Da substituição de importação ao capitalismo financeiro: ensaios sobre economia brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. BRASIL. Constituição Federal. 7ª ed. 2002. Brasil. Estatuto da Cidade: Lei 10.257, de 10.07.2001: comentários. 2002. ESTEVAM, L. O Tempo da Transformação: Estrutura e Dinâmica da Formação Econômica de Goiás. Goiânia, Ed. do Autor, 1998. GONÇALVES, Reinaldo. Globalização Financeira, Liberalização Cambial e Vulnerabilidade Externa da Economia Brasileira. In BAUMANN, Renato (Org.). 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FORMAÇÃO DO SETOR EMPRESARIAL DA ECONOMIA DE GOIÂNIA (1933-1963): ORIGENS DO CAPITAL Dulce Portilho Maciel∗ Resumo: Abstract: Esta pesquisa foi conduzida com base na suposição de que o conhecimento a respeito da procedência geográfica dos empresários, bem como das atividades econômicas por eles desempenhadas preliminarmente à ocasião em que investiram em uma dada economia capitalista, constitui-se em elemento-chave para o esclarecimento de questões relativas à acumulação originária do capital, particularmente, onde e como fora previamente acumulado. Conforme os dados, a área geográfica de onde se originou a maior parte do capital aplicado empresarialmente na economia de Goiânia corresponde ao território do próprio Estado de Goiás, na atualidade (excluído, pois, o território do atual estado de Tocantins). Por outro lado, foi considerável a contribuição que ofereceram à formação daquele capital outras regiões brasileiras, principalmente a Sudeste. This research was lead on the basis of the assumption that the knowledge regarding the geographic origin of the entrepreneurs, as well as the economic activities developed by them preliminarily to the occasion where they had invested in one given capitalist economy, consists in a key-element for the clarification of questions relative to the original accumulation of the capital, particularly, where and how was previously accumulated. As the data, the geographic area where originated most of the capital applied in the enterprise economy of Goiânia corresponds to the territory of the proper State of Goiás, in the present time (excluded, therefore, the territory of the current state of Tocantins). On the other hand, the contribution that other Brazilian regions, mainly the Southeast, had offered to the formation of that capital was considerable. Key-words: Palavras-chave: Original accumulation of the capital; Formation; Goiania’s enterprise sector. Acumulação originária do capital; Formação; Setor empresarial goiano. Introdução Goiânia foi fundada em 1933, para servir de sede ao governo do Estado de Goiás, em substituição à cidade de Goiás, antiga Vila Boa. Este trabalho refere-se aos primeiros 30 anos da história da nova cidade e fundamenta-se em dados originais, obtidos mediante diferentes expedientes de pesquisa, tomando-se como ponto de partida levantamento realizado nos arquivos da Junta Comercial do Estado de Goiás - JUCEG. A pesquisa foi conduzida com base na suposição de que o conhecimento a respeito da procedência geográfica dos empresários, bem como das atividades econômicas por eles ∗ Nota sobre a autora. MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 237 desempenhadas preliminarmente à ocasião em que investiram em uma dada economia capitalista, constitui-se em elemento-chave para o esclarecimento de questões relativas à acumulação originária do capital, particularmente, onde e como fora previamente acumulado. Conforme os dados, a área geográfica de onde se originou a maior parte do capital aplicado empresarialmente na economia de Goiânia corresponde ao território do próprio Estado de Goiás, na atualidade (excluído, pois, o território do atual estado de Tocantins). Por outro lado, foi considerável a contribuição que ofereceram à formação daquele capital outras regiões brasileiras, principalmente a Sudeste. No concernente a como aquele capital fora acumulado, segundo tais dados, as maiores parcelas de que se formou o capital privado-empresarial da economia goianiense provinham de atividades industriais e comerciais, sobretudo das primeiras. Este último resultado surpreendeu-nos, em razão do pequeno peso que teve o setor industrial na economia do Estado de Goiás, ao longo do conjunto temporal abrangido na pesquisa. Na ocasião em que, tendo em vista a sua realização, cogitávamos a respeito da questão de quem, na sociedade goiana, em termos de segmento sócioeconômico, até pelo menos o início da década de 1960 - quando a sociedade goiana, seguindo a tendência geral no país, passou a sofrer grandes transformações -, teria tido condições de reunir capital sob seu poder em volume suficiente para permitir que destinasse uma parte dele a investimentos empresariais na economia de Goiânia, o grupo formado pelos fazendeiros ocorreu-nos em primeiro lugar. Isto porque, segundo explica uma boa parte da produção acadêmica acerca da História de Goiás, a capacidade de domínio que teve este grupo sobre a vida política do Estado, no decorrer das primeiras décadas deste século (se não bem mais), respaldava-se, sobretudo, no poder econômico que detinha. Os dados dos censos econômicos e também outros produzidos pelo IBGE a respeito do Estado reforçam esta tese - a participação da agropecuária na formação da renda interna goiana manteve-se na faixa entre 50% e 60%, ao longo do período em causa neste trabalho. Assim, então, aventamos a hipótese de que uma parcela importante do capital investido empresarialmente em Goiânia provavelmente teria como origem a atividade produtiva rural, atraída que deveria ter sido pelos termos vantajosos à acumulação que a economia urbana da nova cidade podia oferecer. Ocorreu, no entanto, conforme nossos dados, que a participação de fazendeiros na composição do empresariado goianiense foi pouco considerável, e a MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 238 contribuição que trouxeram à formação do capital privado da economia da cidade foi ainda menos significativa, em comparação com outros grupos, constituídos de indivíduos pertencentes a categorias ocupacionais diferentes dessa. Procederemos, em seguida, ao exame do conjunto dos resultados obtidos mediante a pesquisa em foco, apresentando, em sendo o caso, as explicações que encontramos para variadas revelações propiciadas pelos dados coligidos. Empresários segundo a procedência geográfica e o capital De acordo com os dados reunidos na Tabela 1, a seguir, 90% dos indivíduos que se estabeleceram na condição de homens de negócios em Goiânia, no transcorrer de seus primeiros 30 anos, residiam no Estado de Goiás na ocasião em que se tornaram membros de uma organização empresarial da cidade, sendo que a grande maioria deles - 85% do universo - já se achava vivendo ali. Conforme a Tabela 2, que vem em seguida, referindo-se ao capital segundo os locais de residência dos investidores, a participação dos que moravam naquele Estado foi de 82% do total investido pelo conjunto compreendido na pesquisa, sendo de 79% a dos que já se encontravam residindo naquela Capital. Tais números forneciam indicação importante acerca de onde uma parcela significativa do capital investido na economia urbana de Goiânia havia sido preliminarmente acumulada. Mas eles não detinham, sozinhos, suficiente poder de convencimento, razão pela qual tiveram de ser confrontados com informações obtidas mediante outras fontes, expediente cujos resultados reforçam sobremaneira a importância desses números, conforme iremos explicar adiante. Vamos aqui tratar primeiro das referidas tabelas, visto que, além do valor que detêm seus dados como contribuição para o esclarecimento da questão das origens do capital aplicado empresarialmente em Goiânia, forneceram-nos elementos de base empírica para novas reflexões acerca do assunto, servindo também de ponto de partida no desenvolvimento de ulteriores procedimentos de pesquisa a respeito da questão. Acerca dos dados contidos nessas tabelas, devemos antes esclarecer que o universo nelas tomado em consideração abrange os casos relativos a unidades empresariais organizadas sob a forma de sociedades - por cotas e anônimas - ou de cooperativas, entre 1935 (a partir de quando se fundaram empresas de tais tipos em Goiânia) e 1963, e que tiveram duração igual ou superior a cinco anos. Estão excluídos dele, portanto, os proprietários de empresas do tipo jurídico Individual e os que participaram de MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 239 organizações cuja duração foi inferior à mencionada. Estão excluídos dele, ainda, os empresários afetos ao comércio varejista.1 Examinemos, pois, os dados reunidos na Tabela 1, acerca da composição do empresariado goianiense quanto aos locais de residência de seus membros na ocasião em que se estabeleceram na Capital goiana. De acordo com a referida tabela, até 1945 fase considerada pioneira da história de Goiânia -, 100% dos empresários nela considerados residiam no Estado de Goiás, registrando-se uma diferença curiosa entre os dois períodos aí abrangidos; isto é: entre 1935 e 1940, 45% dos indivíduos que investiram empresarialmente na economia da nova cidade residiam fora dela; já no período seguinte, entre 1940 e 1945, apenas 3% dos novos empresários estabelecidos na Capital moravam em outros municípios goianos. Ao que indicam tais dados, neste último período, a cidade, além das vantajosas oportunidades para investimentos em negócios que já vinha oferecendo desde o início de sua construção, tornara-se também um lugar atraente para se viver, aos olhos dos homens de dinheiro no Estado. TABELA 1. Empresários segundo o local de residência e o período de ingresso Unidades Federadas 35|-40 40|-45 45|-50 50|-55 55|-60 60|-63 Quant.% Quant. % Quant. % Quant. % Quant. % Quant. % Goiás 11 100 29 100 Goiânia 6 55 28 97 Outros Munic. 5 45 1 3 Minas Gerais São Paulo Rio De Janeiro D. F. (Brasília) Outras TOTAL 11 100 29 100 1.343 100 88 81 7 1 1 1 97 202 89 192 8 10 1 10 1 7 1 4 100 90 348 88 534 86 337 85 504 4 11 3 30 4 11 3 17 3 22 6 14 2 8 2 16 2 7 1 4 1 5 91 100 224 90 1.212 85 1.148 5 64 3 39 2 44 3 29 1 9 1 10 100 90 85 5 3 3 2 1 1 395 100 593 FONTE: Arquivos da Junta Comercial do Estado de Goiás. NOTA: Abrangidos os casos em que havia as duas informações aqui consideradas: local de residência do empresário e data de ingresso na sociedade Concorreram para isto, certamente, muitas das medidas que se tomaram para viabilizar a inauguração da nova cidade, ocorrida em 1942, como: a conclusão das obras iniciais de urbanização, infraestruturas básicas, prédios residenciais e outras; a melhoria nas condições do abastecimento de gêneros de primeira necessidade à população; a implantação ou regularização da oferta de uma série de serviços de consumo coletivo (ensino, saúde, diversões, etc.); entre vários outros fatores - como, por MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 240 exemplo, a transferência do staff político e burocrático estadual, que, em Goiás, representava também a sua elite cultural. Entre 1945 e 1950, surgiram em Goiânia os primeiros empresários residentes em outras regiões brasileiras (Estados de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro), mas já representavam 3% dos que investiam na economia da cidade. A estabilidade da condição de Capital conferida à cidade pela sua pomposa inauguração oficial - com participação de autoridades federais e estaduais procedentes de todos os quadrantes do país - e o desenvolvimento ali de um mercado urbano caracterizado pelo aumento acelerado e diversificação progressiva da demanda por bens e serviços, em decorrência do seu extraordinário crescimento populacional, devem ter-se constituído em fatores que, já então, tornavam a economia de Goiânia atraente à inversão de excedentes de capital produzidos em outras regiões brasileiras. De 1950 a 1955, cresceu consideravelmente a participação de empresários residentes em outros Estados - 4% em Minas Gerais, 3% em São Paulo e 2% no Rio de Janeiro. No período seguinte, entre 1955 e 1960, aumentou ainda mais a participação, nos quadros do empresariado goianiense, de indivíduos fixados residencialmente em outras regiões do país - 6% no Estado de São Paulo, 3% em Minas Gerais, 2% no Estado do Rio de Janeiro e 1% em outras unidades da Federação brasileira, registrandose também a presença de moradores de Brasília. Observe-se, no entanto, que não obstante a participação de forâneos ocorrida ao longo da década, a predominância de indivíduos residentes no Estado de Goiás permaneceu absoluta - 90% na primeira metade da década e 88% na segunda. Em relação ao conjunto dos anos 1950, os dados da Tabela 1 apontam para algumas ocorrências dignas de nota. Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de o número de indivíduos residentes no Estado de Minas Gerais entre os empresários de Goiânia ter sido idêntico ao dos que moravam no interior de Goiás - 4% na primeira metade da década e 3% na última. Em seguida, realça-se o crescimento ocorrido na participação de empresários residentes no Estado de São Paulo - passaram de 3% no primeiro quinqüênio, para 6% no segundo -; estes dados parecem estar indicando, em complementação aos da Tabela 2, a época em que o capital paulista teria superado o mineiro na economia urbana de Goiânia. Depois, desperta interesse a presença, então crescente naquele quadro, de investidores fixados em outros Estados distintos dos mencionados anteriormente. Por fim, surpreende a rapidez com que moradores recentes MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 241 de Brasília, cidade na época em fase inicial de construção, interessaram-se em realizar investimentos empresariais na Capital goiana. No período 1960-63, como nos anteriores, a maioria absoluta dos indivíduos que investiram empresarialmente em Goiânia residia então no Estado de Goiás - 85% na Capital e 5% no interior. Quanto aos que mantinham domicílio em outras partes, entretanto, alguns pontos merecem ser comentados. Em primeiro lugar, chama a atenção a ocorrência de um crescimento expressivo da participação de habitantes do Estado do Rio de Janeiro na composição do empresariado daquela cidade - 3% dos novos investidores -, enquanto que diminuía, na mesma época, a proporção dos que residiam no Estado de São Paulo - caiu de 6% para 2%, em relação ao período anterior. Depois, desperta surpresa a participação já significativa de moradores de Brasília entre os novos empresários de Goiânia - mais de 1% do total -, em face do então curto tempo de existência da nova Capital federal. Passando agora ao exame da Tabela 2, à frente, chamamos a atenção para o fato de o número de empresários compreendidos em seu universo ser superior ao dos considerados na Tabela 1. Isto ocorre porque, na elaboração da primeira, apenas os casos acerca dos quais se dispunha, com base nos arquivos da JUCEG, de ambas as informações ali consideradas - local de residência do empresário e data de seu ingresso na organização - foram incluídos e, em relação a esta última, devido a se ter privilegiado a informação acerca do valor da participação individual dos sócios no capital das empresas, que muito raramente faltava nos registros desse órgão, grande número de outros, sobre os quais não se dispunha de uma ou de ambas aquelas informações, foi abrangido. TABELA 2 - Empresários segundo o local de residência e o capital (*) CIDADES EMPRESÁRIOSCAPITAL QUANT. % MÉDIA VALOR %CAP./EMP. ESTADO DE GOIÁS 1.587 88 9.122.391 82 5.748 Goiânia 1.523 85 8.855.987 79 5.814 Anápolis 13 1 45.534 - 3.502 Outras 51 3 220.870 2 4.330 ESTADO DE MINAS GERAIS 39 2 394.110 4 10.105 Belo Horizonte 11 1 25.023 - 2.274 Uberlândia 15 1 323.303 3 21.553 Uberaba 8 - 12.676 - 1.584 Outras 5 - 33.108 - 6.621 MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. ESTADO DE SÃO PAULO 44 2 897.337 8 20.394 São Paulo (Capital) 33 2 838.026 8 25.394 Outras 11 1 59.311 1 5.391 ESTADO DO R. JANEIRO 29 2 368.339 3 12.701 Rio de Janeiro (Capital) 23 2 337.420 3 14.670 Outras 6 - 30.919 - 5.153 DISTRITO FEDERAL (Brasília) 9 1 27.057 - 3.006 OUTRAS UNID. FEDERADAS 10 1 58.520 1 5.852 SEM INFORMAÇÃO 79 4 297.367 3 3.764 1.797 100 11.165.121 100 6.213 TOTAL 242 FONTE: Arquivos da Junta Comercial do Estado de Goiás. (*) Valores indexados segundo taxas de inflação encontradas pelo IBGE (Estatísticas históricas do Brasil, 1990, v. 3), tomando-se como referência o mês de dezembro de 1963. Em Cr$ 1.000,00. Segundo os dados da referida tabela, no período de tempo em causa neste trabalho, a participação de indivíduos residentes no Estado de Goiás na formação do total dos investimentos realizados na economia urbana de Goiânia pelo conjunto de empresários nela considerados foi de 82%. Para isto, a contribuição oferecida pelos que residiam na própria Capital foi decisiva - 79% do total. O segundo Estado brasileiro a contribuir mais, mediante indivíduos residentes em seu território, com investimentos em capital na economia urbana de Goiânia, foi o de São Paulo - 8% do total obtido na tabela em referência. Aí, a contribuição oferecida pelos que residiam na Capital foi muito superior à dos que viviam no interior do Estado. Isto principalmente porque a média capital/empresário dos primeiros era perto de cinco vezes maior do que a dos últimos. Cabe aqui, aliás, a observação de que a média apresentada pelos investidores domiciliados na Capital paulista era mais de quatro vezes superior à dos investidores residentes no Estado de Goiás. O terceiro foi Minas Gerais - 4% do capital considerado na Tabela 2. Com referência a este Estado, chama a atenção a média de capital por empresário obtida pelos que residiam em Uberlândia, somente superada pelos paulistas da Capital. Os outros casos, inclusive os de Belo Horizonte e Uberaba, surpreendem pela razão inversa, ou seja, porque seus moradores tiveram uma das menores médias capital/empresário apresentadas na tabela. Em quarto lugar esteve o Estado do Rio de Janeiro - 3% do capital da tabela. Neste caso, distinguem-se pela elevada média capital/empresário os indivíduos residentes na cidade do Rio de Janeiro; era cerca de duas vezes e meia maior que a MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 243 obtida pelos que residiam em Goiânia. Ao contrário disto, os que eram domiciliados em outras cidades fluminenses apresentaram uma média de capital por empresário inferior à dos moradores do Estado de Goiás. Os empresários de Goiânia residentes em outras unidades da Federação brasileira, distintas das mencionadas acima, contribuíram, em conjunto, com 1% do capital considerado na tabela em pauta, sendo que tiveram uma média capital/empresário idêntica à dos moradores do Estado de Goiás. Os dados que viemos examinando são incisivos em apontar o Estado de Goiás como o território onde fora originariamente acumulado o maior volume do capital privado investido na economia urbana de Goiânia, no decorrer dos primeiros trinta anos da história da cidade. Enfraquece seu poder de convencimento, entretanto, o fato de a população daquele Estado ter-se constituído, ao longo desse tempo, com grande e sempre renovada mescla de imigrantes. A ocorrência deste fato colocou-nos a possibilidade de que uma parcela daquele capital considerado goiano, com base na informação sobre o local de residência dos empresários, pudesse ter resultado da contribuição de habitantes recém-chegados ao Estado ou diretamente à cidade. Isto gerou a necessidade de que fosse avaliado o grau de legitimidade de tais dados, em vista do objetivo que tínhamos em mente com relação a eles, mediante o uso de fonte e método distintos dos que havíamos utilizado na sua obtenção. Com referência a esta tarefa, todavia, a averiguação de valores de capital estava impossibilitada pela inexistência de outras fontes de informação diferentes da já utilizada, razão pela qual optamos por rever o aspecto da procedência do empresariado de Goiânia, desta vez, segundo os lugares de permanência duradoura de seus componentes, anteriormente à ocasião em que se estabeleceram nesta condição. Assim, recorrendo à técnica estatística da amostra aleatória, sorteamos, do conjunto dos empresários goianienses abrangidos na pesquisa realizada na Junta Comercial, cem (100) nomes de indivíduos a respeito dos quais, mediante novo procedimento de investigação, iríamos tomar alguns dados biográficos. No que se refere ao assunto em pauta neste momento, as informações a serem obtidas acerca desses indivíduos eram, em resumo, lugar de nascimento e local de residência prolongada em época anterior ao ingresso como sócios de organizações empresariais de Goiânia. Os dados que vamos apresentar a seguir foram obtidos por meio de entrevistas, realizadas principalmente com pessoas próximas aos empresários selecionados - parentes ou, mais raramente, ex-sócios -, pois eram poucos os casos em que eles próprios permaneciam vivos. Dos cem indivíduos sorteados para compor a MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 244 amostra, conseguimos informações acerca de sessenta e um. Em relação a estes, vamos apresentar primeiro os resultados sobre lugar de nascimento. Deste universo de sessenta e um empresários, apenas um indivíduo era de nacionalidade estrangeira (alemã) - 2% do total -, sendo os brasileiros naturais dos seguintes Estados: Goiás - 30 indivíduos (49%), Minas Gerais - 11 (18%), São Paulo - 8 (13%), Maranhão - 3 (5%), Piauí - 2 (3%), Bahia - 2 (3%), Paraíba - 1 (2%), Rio Grande do Norte - 1 (2%), Rio de Janeiro 1 (2%), Santa Catarina - 1 (2%). Assim, pois, presumindo-se o valor científico do método utilizado, constatase que, na composição do empresariado goianiense, predominaram largamente os indivíduos naturais do próprio Estado de Goiás. Com relação a estes, a procedência segundo os municípios de origem foi, em ordem decrescente dos números, a seguinte: Goiás (antiga Capital) - 7 indivíduos (23% dos empresários nascidos em território goiano); Catalão - 4 (13%); Palmeiras - 3 (10%); Rio Verde e Ipameri - 2 de cada município (7% em cada caso); e Goiânia, Pirenópolis, Luziânia, Guapó, Itaberaí, Cumarí, Jataí, Paraúna, Buriti Alegre, Bela Vista, Santa Cruz e Pontalina - 1 indivíduo de cada município (3% cada). Quanto aos locais de residência prolongada dos empresários anteriormente à ocasião em que ingressaram no meio empresarial de Goiânia, pelos resultados obtidos, 75% do total (46 indivíduos) residiam em municípios goianos, sendo que destes, 43% (20 indivíduos) moravam em Goiânia já desde algum tempo e os demais - 26 empresários (57% dos residentes em Goiás) - eram habitantes dos seguintes municípios: Goiás (antiga Capital) - 5 empresários (11% dos que habitavam no Estado de Goiás); Catalão - 4 (9%); Palmeiras e Ipameri - 3 em cada um (7%); Cristalina - 2 (4%); e Luziânia, Morrinhos, Bonfinópolis, Caldas Novas, Pontalina, Jandaia, Bela Vista, Leopoldo de Bulhões e Pedro Afonso - 1 indivíduo (2%) em cada município. Entre os empresários incluídos na amostra, 15 (25% do total) residiram em outras partes do Brasil até bem próximo à ocasião de seu ingresso como sócios de empresa em Goiânia; isto é, eram recém-chegados à cidade na ocasião. A composição destes, segundo os Estados brasileiros onde residiam antes era a seguinte: São Paulo (interior) - 7 indivíduos (47% dos que habitavam fora de Goiás); Minas Gerais - 5 (33%), sendo 2 em Belo Horizonte, 1 em Uberlândia e 2 em outros municípios; e Rio de Janeiro (Capital), Piauí (interior) e lugar ignorado - 1 em cada situação (somam 20% dos recém-vindos). MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 245 Pelos resultados da amostra, então, perto da metade dos empresários de Goiânia seria nativa do Estado de Goiás e cerca de mais um quarto deles, embora tendo nascido em outras partes (sobretudo do Brasil), teria residido duradouramente no Estado antes de ingressar no meio empresarial da cidade. A outra quarta parte desses empresários, nascida também alhures, teria transferido domicílio para a cidade imediatamente antes disto. A operação de se sobrepor os dados obtidos mediante ambos os expedientes de pesquisa que adotamos, uns em relação aos outros, produz resultados que não permitem dúvida quanto à procedência geográfica da maior parte do empresariado de Goiânia, convergindo também no sentido de indicar, com clareza, que uma proporção aproximada, embora inferior, do capital privado investido na economia da cidade teve origem geográfica idêntica à da maioria de seus detentores; ou seja, a principal contribuição à formação do empresariado e do capital privado da economia de Goiânia foi proporcionada por habitantes permanentes do próprio Estado de Goiás. A circunstância que levou a que a taxa de contribuição de habitantes deste Estado à formação daquele capital fosse menor do que a oferecida à constituição do seu empresariado foi a elevada média de capital por empresário apresentada por investidores forâneos, em comparação com os locais, particularmente dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. 2. Empresários segundo as ocupações anteriores e o capital Vamos tratar agora do aspecto de como o capital privado da economia urbana de Goiânia teria sido originalmente acumulado, com base na suposição de que o conhecimento acerca das atividades econômicas dos indivíduos, prévias à ocasião em que investiram empresarialmente em uma dada economia, nas condições de história contemporânea, representa fator chave para que se possa obter resposta a esta questão. Na Tabela 3, a seguir, dados obtidos mediante levantamento realizado nos arquivos da JUCEG foram organizados com base em classificação adotada pelo IBGE no Censo de 1960, segundo grupos, subgrupos e categorias ocupacionais. Obedecida esta classificação, uma série de agregações foi realizada em relação a categorias e mesmo a subgrupos. No primeiro caso, o critério adotado foi o da afinidade entre ocupações de um mesmo subgrupo; no segundo, levou-se em conta a modéstia dos números encontrados pelo conjunto, o que deixava de justificar seu desdobramento. Houve situações, por outro lado, em que categorias reunidas pelo IBGE sob uma única MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 246 denominação foram desmembradas, para efeitos de se realçar as condições apresentadas por alguma delas em particular. De acordo com esta classificação, um primeiro grupo, sob o título “ocupações administrativas”, abrange três subgrupos: “proprietários”, “administradores” e “funções burocráticas ou de escritório”. Do conjunto de empresários considerados na Tabela 3, acima, 52% dos indivíduos pertenciam a este grupo, sendo que a maioria absoluta deles - 48% do total do conjunto - incluía-se no subgrupo dos proprietários. A participação deste grupo na formação do capital privado da economia de Goiânia foi ainda mais considerável; isto é, atingiu 57% do total da tabela em referência, sendo que a dos proprietários foi de 52%. A média de capital por empresário foi também muito elevada, em comparação com os outros - mais de duas vezes superior à obtida pelo grupo colocado em segundo lugar, o das ocupações técnicas, científicas e afins. A respeito deste ponto, entretanto, os dados revelam um aspecto surpreendente, ou seja, diferentemente do que se poderia esperar, um outro subgrupo, que não o dos proprietários, alcançou uma média bem superior à destes, que foi o das funções burocráticas ou de escritório. Voltaremos ao assunto mais tarde, neste trabalho. TABELA 3 - Empresários segundo a ocupação anterior e o capital (*) Ocupações Empresários Capital (Cr$ 1.000) Capital (Cr$ 1.000) Quant. % Valor % Média Cap./Emp. I. Administrativas 928 52 6.343.107 57 6.835 Proprietários 871 48 5.844.066 52 6.709 Fazendeiros 44 2 154.710 1 3.516 Industriais 254 14 3.387.325 30 13.335 Comerciantes 532 30 1.976.438 18 3.715 Outros Proprietários 41 2 325.593 3 7.941 Funcion. Burocráticos ou de Escritório 55 3 497.387 4 9.043 Coletores, caixas, tesour. e contadores 43 2 361.198 3 8.399 Funcionários Públicos 12 1 136.189 1 11.349 2 - 1.654 - 827 II. Técnicas, Científicas e Afins 293 16 976.764 9 3.333 Engenheiros e Arquitetos 117 7 499.121 4 4.265 Químicos e Farmacêuticos 21 1 40.458 - 1.926 6 - 13.128 - 2.188 43 2 117.797 1 2.739 Administradores Agrôn., veterinários, cientistas e profess. Médicos e Odontólogos MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. Magistrados e Advogados 64 4 176.933 2 2.764 Escritores e Jornalistas 15 1 69.998 1 4.666 Art. Plásticos, Fotógrafos e Cinegrafistas 5 - 15.849 - 3.169 Religiosos 5 - 24.554 - 4.910 Estudantes 17 1 18.926 - 1.113 III. Ind. De Transformação e Constr. Civil 78 4 66.456 1 852 IV. Comércio e Atividades Auxiliares 5 - 10.578 - 2.115 V. Transportes e Comunicações 9 - 10.150 - 1.127 39 2 39.278 1 1.009 445 25 3.718.788 33 8.356 1.797 100 11.165.121 100 6.213 VI. Ocupações Domésticas VII. Sem Informação TOTAL 247 FONTE: Arquivos da Junta Comercial do Estado de Goiás. (*) Valores indexados segundo taxas de inflação encontradas pelo IBGE (1990), tomando-se como referência o mês de dezembro de 1963. Em Cr$ 1.000,00. Os dados referentes às diversas categorias ocupacionais compreendidas no grupo reservaram-nos, todavia, outras surpresas ainda maiores, a começar pelo caso dos fazendeiros, no subgrupo dos proprietários, assunto comentado na introdução a este trabalho. Como consta da Tabela 3, a participação de fazendeiros na formação do empresariado goianiense foi pouco considerável - 2% do conjunto abrangido na tabela e a contribuição que trouxeram à formação do capital foi ainda menos significativa - 1% -, em comparação com a de outras categorias ocupacionais, principalmente do grupo dos proprietários. Voltaremos ao assunto adiante. Os dados sobre a categoria ocupacional apresentada em seguida na tabela, a dos industriais, também nos surpreenderam. Desta vez, pelo motivo inverso ao do caso anterior. A participação dos indivíduos que se declararam possuidores desta condição, para efeitos de registro na Junta Comercial, foi de 14% na formação do empresariado da cidade e 30% na do capital. A média capital/empresário destes indivíduos foi a mais elevada entre as categorias ocupacionais relacionadas na tabela. Em face de tais dados, perguntamo-nos: De onde teriam vindo tantos homens de dinheiro, membros novos do quadro empresarial goianiense, anteriormente ocupados em administrar investimentos seus no setor industrial da economia? Esta pergunta decorria da incongruência que parecia estar havendo entre os dados e a circunstância de no Estado de Goiás, de onde procedia a maior parte do empresariado de Goiânia, o setor industrial ter sido sempre pouco significativo, conforme atestam dados estatísticos produzidos pelo órgão federal responsável pelo MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 248 assunto, relativos ao período de tempo que estudamos - segundo o IBGE, até 1960, a taxa mais elevada obtida pela indústria na formação da renda interna goiana foi de 6,6%, em 1948; a mais baixa foi de 3,5%, em 1955. (Anuário Estatístico do Brasil, 1973) Este foi um dos motivos pelos quais deliberamos conferir, mediante o expediente utilizado em relação à amostra a que nos referíamos atrás, a veracidade dos números que havíamos reunido acerca das atividades ocupacionais anteriores dos empresários de Goiânia, assunto de que voltaremos a tratar adiante. Os comerciantes vêm em seguida na tabela em pauta, tendo sido de 30% a participação deles na composição do empresariado de Goiânia - eram o maior contingente - e de 18% no capital. No subgrupo dos proprietários, foi uma das categorias ocupacionais a apresentar menor média de capital por empresário; só superaram os fazendeiros, quanto a esta média. Tais dados, todavia, não nos trouxeram maior embaraço. Em primeiro lugar, porque podíamos imaginar que uma boa parte desse contingente fosse procedente da economia informal do Estado, aí incluídos desde a figura popular do mascate, até uma série de tipos que, sem se acharem estabelecidos na condição de comerciantes, podiam estar envolvidos em negócios de monta, como, por exemplo, na compra e revenda de cereais, animais de corte, ouro, pedras preciosas, etc. Depois, porque contávamos com a possibilidade de, entre os homens de negócios de outras plagas, os pequenos comerciantes terem sido os primeiros a serem atraídos para a nova cidade, conforme costumeiramente acontece em relação às áreas em recente processo de ocupação populacional e econômica. A categoria “outros proprietários”, apresentada em seguida na Tabela 3, inclui avicultores e criadores de pequenos animais, os declarados simplesmente como “proprietários” e outros mal definidos. Formavam 2% do conjunto de empresários e contribuíram com 3% do capital considerados na tabela. Sua média de capital por empresário foi a segunda mais elevada - depois dos industriais - no conjunto dos proprietários. No subgrupo chamado “funções burocráticas ou de escritório”, fizemos distinção entre dois segmentos, ou seja, de um lado, coletores, caixas, tesoureiros e afins, e de outro, funcionários públicos. O primeiro deles participou com 2% do conjunto de empresários e 3% do capital compreendidos na tabela em referência. Em relação a eles, chama a atenção a elevada média capital/empresário - bem superior à do conjunto do subgrupo dos proprietários -, o que levanta em nós a suspeita de que o seu capital teria outra origem que não o exclusivo exercício das profissões ou ocupações MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 249 declaradas para efeitos de registro na Junta Comercial, aí consideradas as alternativas de acumulação de funções - técnica e de administração de patrimônio pessoal, por exemplo -, casamento e até corrupção. Neste último caso poderiam estar, por exemplo, responsáveis por coletorias fiscais em zonas de fronteira territorial do Estado de Goiás, onde a prática do suborno era corriqueira nas primeiras décadas do século XX. Os funcionários públicos constituíam-se em 1% do conjunto dos empresários e também contribuíram com 1% do capital considerado na Tabela 3. O que impressiona em relação a eles é principalmente a elevada média capital/empresário; na tabela, só foram superados pelos industriais. Reunidos ao segmento mencionado imediatamente acima, formam o subgrupo em que esta média foi mais alta.Tais dados apontam para a possibilidade de ter-se transferido, para a nova sede do governo goiano, um velho costume da cultura política no Estado, a prática do nepotismo Passamos agora ao exame dos dados relativos ao grupo “Ocupações técnicas, científicas e afins”. Constituiu-se em 16% do empresariado goianiense e contribuiu com 9% do capital considerado na Tabela 3. A média capital/empresário apresentada por este grupo era cerca de metade da obtida pelo grupo anterior, o das ocupações administrativas. Aí, chama-nos a atenção imediatamente os números relativos aos engenheiros e arquitetos; eram 7% dos empresários e contribuíram com 4% do capital considerados na tabela. Dentro do grupo, eram 40% dos indivíduos, sendo que seu capital atingia 51% do total. Tais dados são representativos de certas características da evolução histórica de Goiânia; ou seja: de uma parte, a condição de pólo dinâmico que a área da construção civil exerceu em relação ao desenvolvimento econômico da cidade; de outra, e em decorrência da primeira, a proliferação, em seu meio, de um tipo de profissional antes extremamente raro na sociedade goiana, a quem o espírito empreendedor freqüentemente é próprio. Seguem-se, na tabela em referência, dados relativos a químicos, farmacêuticos, agrônomos, veterinários, cientistas e professores, que, pelo seu pequeno significado em termos do conjunto, tanto pelo número de indivíduos como pelo capital que investiram, mas principalmente pelo último motivo, vamos nos abster de comentar. Os médicos e odontólogos, cujos dados vêm em seguida, constituiram-se em 2% do empresariado de Goiânia e contribuíram com 1% do capital considerados na tabela. A contribuição que deram à formação de um e outro, não chegando a ser digna de nota, revestiu-se de alguma importância no contexto de que estamos tratando. MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 250 Os profissionais do direito - advogados, procuradores, juízes, etc. colocaram-se em segundo, depois dos engenheiros e arquitetos, no grupo das funções técnicas, científicas e afins, tanto no número deles quanto no capital - respectivamente, 4% e 2% dos totais da Tabela 3. Em relação ao grupo, sua participação no capital foi significativa - 18% -; contudo, a média de capital por empresário que tiveram foi modesta: pouco mais de metade da obtida pelos engenheiros e arquitetos. Os escritores e jornalistas tiveram uma participação surpreendente, à primeira vista, no quadro geral de que estamos tratando, isto é, 1% dos empresários e também do capital compreendidos na tabela em pauta e, principalmente, uma das mais elevadas médias capital/empresário do grupo - somente superada pela dos religiosos. Devemos observar aqui, entretanto, que a indústria editorial e gráfica constituía-se em um dos principais ramos de atividade da economia de Goiânia, que contava com duas grandes organizações privadas no campo das comunicações, os Diários Associados (cujo principal acionista era o conhecido empresário brasileiro F. Assis Chateaubriand Bandeira) e as atualmente denominadas Organizações J. Câmara. Artistas plásticos, fotógrafos e cinegrafistas tiveram pequena participação no quadro de que estamos tratando. Os religiosos, todavia, surpreenderam, nem tanto pela sua quantidade - 5 indivíduos -, mas principalmente pela elevada média capital/empresário que apresentaram, conforme assinalamos atrás. Os estudantes marcaram presença aí, mais pelo número deles - 1% do total da tabela em pauta - do que pelo capital que investiram ou a média capital/empresário que obtiveram: somas modestas em ambos os casos. Os demais dados da Tabela 3 foram agregados segundo grupos ocupacionais, em razão do pequeno peso que tiveram no contexto geral em exame. Entre estes grupos, o de maior expressão no conjunto foi o das “Ocupações das indústrias de transformação e da construção civil” - 4% dos empresários da tabela em referência e 1% do seu capital. A média de capital por empresário obtida pelo grupo, no entanto, foi uma das mais baixas apresentadas na tabela. Do grupo “Ocupações do comércio e atividades auxiliares”, apenas cinco indivíduos fizeram parte do empresariado goianiense. Do grupo “Ocupações dos transportes e das comunicações”, nove indivíduos estavam neste caso. O grupo sob a denominação “Ocupações domésticas” teve uma participação numericamente importante no quadro empresarial goianiense - 2% do empresariado e 1% do capital -, tendo apresentado, porém, uma pequena média capital/empresário. MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 251 Empresários segundo as ocupações anteriores e as origens geográficas Diante da incoerência que parecia estar existindo entre os dados que vínhamos examinando e as condições do desenvolvimento econômico do Estado de Goiás, principalmente com referência ao pequeno peso neles representado pelos fazendeiros e, contrariamente a isto, a importância aí adquirida pelos que se declararam como industriais para efeitos de registro na Junta Comercial, conforme mencionamos atrás, deliberamos conferir o grau de fidedignidade de tais dados, mediante o recurso da amostra estatística, do modo como descrevemos antes. De acordo com os resultados obtidos por meio de entrevistas acerca daqueles sessenta e um indivíduos componentes da amostra, a maioria dos empresários de Goiânia antes pertencera ao grupo das chamadas ocupações administrativas - 33 indivíduos (54% do conjunto deles) -, sendo que destes, o maior contingente fazia parte do subgrupo dos proprietários - 23 indivíduos (38%) -, do seguinte modo: 1 fazendeiro (2%), 2 pequenos agricultores (3%), 6 industriais (10%), 13 comerciantes (21%), 1 proprietário de empresa de transportes (2%). O segundo maior contingente dentro deste grupo era o dos que haviam anteriormente se ocupado com funções burocráticas ou de escritório - 8 indivíduos (13% do total da amostra) -, sendo que deles 4 eram funcionários públicos (7%) e os restantes coletores ou bancários (7%). Por último vinha a subgrupo dos administradores, com 2 indivíduos - 3% do total da amostra. Repare-se que não obstante exista alguma divergência entre estes percentuais e aqueles encontrados com base nos arquivos da Junta Comercial, os dois conjuntos de dados convergem no sentido de indicar certos aspectos importantes da constituição do empresariado de Goiânia, referentes ao esclarecimento da questão de como o capital privado de sua economia foi preliminarmente acumulado. Com relação ao grupo de que acabamos de tratar, absolutamente majoritário na formação do empresariado desta cidade, de acordo com ambos os conjuntos de dados, os pontos de maior interesse para o nosso caso são a participação pouco considerável de fazendeiros no quadro empresarial goianiense, a predominância aí de comerciantes e industriais, e o peso que nele adquiriu a presença de funcionários públicos. Conforme os resultados da amostra, 25% dos empresários de Goiânia (15 indivíduos) possuíam habilitação para exercer funções técnicas, científicas e afins ou eram estudantes: 3 engenheiros (5% do total da amostra), 1 agrônomo (2%), 3 médicos (5%), 2 advogados (3%), 3 professores (5%), 1 jornalista (2%), 2 estudantes (3%). Tais MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 252 dados confirmam os da Tabela 3, atrás, no que se refere à importância da participação que tiveram os engenheiros na composição do empresariado de Goiânia, mas destoam daqueles ao realçar a participação aí de médicos e principalmente de professores. Nestes últimos casos, como também em outros, o mais provável é que isto tenha resultado de situações em que a informação prestada para efeitos de registro na Junta Comercial e a que se obteve mediante entrevista correspondam a duas funções diferentes exercidas por um mesmo indivíduo. A contribuição oferecida por antigos trabalhadores das indústrias de transformação e da construção civil na constituição do empresariado de Goiânia, segundo os resultados obtidos em relação à amostra, foi de 10% (6 indivíduos); isto é: 1 mecânico (2% do total da amostra), 2 costureiras (3%), 1 sapateiro (2%), 2 profissionais da construção civil (3%). Por estes dados, a participação do grupo na composição do quadro empresarial da cidade teria sido bem superior à indicada na Tabela 3, atrás, com base em dados coletados na Junta Comercial - 4%, conforme estes. Embora tal discrepância exija atenção, em se tratando de uma cidade em que a indústria artesanal deteve grande importância, sobretudo nos seus primórdios, e onde havia falta de profissionais capacitados para atuação em diversos de seus ramos, para o que temos em mente neste momento, porém, possui importância secundária, posto que, ao que tudo indica, a contribuição que tal grupo pôde oferecer à constituição do capital privado da economia urbana de Goiânia foi reduzida. Dos resultados obtidos em relação à amostra constam ainda 3 trabalhadores do comércio (5% do conjunto nela abrangido), 2 das ocupações domésticas (3%), 1 jogador de futebol (2%) e 1 de ocupação ignorada. Chama-nos a atenção aí a presença dos primeiros porque, conforme já assinalamos em relação a outros casos, a probabilidade de que tenham reunido capital exclusivamente por meio de seu trabalho na condição de empregados parece remota. Recordemos que estamos aqui tratando apenas dos principais sócios de organizações empresariais da cidade, que, por pequenas que tenham sido, detiveram solidez suficiente para manterem-se em funcionamento ao menos por cinco anos. A mais importante contribuição oferecida pela amostra à elucidação das questões em pauta neste trabalho, de onde e como o capital aplicado empresarialmente em Goiânia teria sido preliminarmente acumulado, foi proporcionada pelo cruzamento de seus dados entre si, para, mediante sobreposição dos resultados desta operação aos MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 253 obtidos com o levantamento da Junta Comercial, conseguir elucidar alguns pontos para nós obscuros acerca destes. Tomemos primeiro os indivíduos que antes de ingressarem como sócios de empresas em Goiânia exerciam ocupações administrativas, a maior parte dos empresários da cidade. Segundo os dados da amostra, 82% deles residiram duradouramente em Goiás antes de realizar o investimento - 44% destes já em Goiânia e 56% em municípios do interior. No conjunto do grupo, 58% dos indivíduos eram nativos do próprio Estado. Este grupo contribuiu, conforme os dados reunidos com base nos arquivos da Junta Comercial, seguramente, com mais da metade do volume de capital aplicado no setor privado da economia de Goiânia pelo conjunto de empresários abrangidos em nossa pesquisa; provavelmente com mais que isto, posto que grande parte daqueles a respeito dos quais não se obteve informação sobre as ocupações anteriores, por certo pertencia ao grupo. Tais dados são, por si só, muito contundentes em confirmar a indicação que vínhamos tendo de que a maior parte do capital investido empresarialmente em Goiânia fora acumulado nos próprios limites do Estado de Goiás. Seus desdobramentos contribuem também, decisivamente, para o esclarecimento da questão de como, ou seja, que atividades econômicas propiciaram esta acumulação. Examinemos primeiro os casos acerca dos quais pairaram nossas principais dúvidas. Começando pelo caso dos proprietários rurais - 1 fazendeiro e 2 pequenos agricultores -, verificamos que nenhum deles tinha nascido em Goiás ou residira duradouramente no Estado, anteriormente à ocasião em que investiram empresarialmente em Goiânia. Isto significa, surpreendentemente, que o capital originário da atividade produtiva rural representado, ao menos parcialmente, pela soma que investiram juntos tais indivíduos na economia de Goiânia, fora acumulado em outras partes que não em Goiás. Quanto aos industriais, segundo os resultados da amostra, 83% deles residiam no Estado de Goiás há bastante tempo quando realizaram investimentos empresariais nessa cidade - destes, 60% em Goiânia mesmo e 40% em municípios do interior. Do conjunto de tais indivíduos, entretanto, apenas 17% eram goianos por nascimento. Isto significa, então, que muito embora grande parte do capital procedente do setor industrial da economia investido na cidade tenha sido acumulada em território goiano, era forânea a maioria dos agentes humanos promotores desta acumulação. E isto também indica que uma parcela considerável deste capital fora acumulada já na própria MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 254 cidade, o que nos leva a deduzir que segmentos importantes da economia urbana de Goiânia estiveram excluídos de nossa pesquisa - limitada que esteve ela à chamada “escala possível”. As empresas de tipo individual, as do comércio varejista e as que funcionavam mediante mecanismos da economia informal devem ter sido responsáveis por boa parte dessa acumulação. Em relação aos comerciantes, os resultados da amostra não ofereceram grande surpresa quanto às origens geográficas - 69% eram naturais do Estado de Goiás, outros 8% residiam aí desde muito tempo e 23% eram forâneos. Os dados acerca das localidades de moradia dos indivíduos domiciliados no Estado é que surpreenderam, principalmente se comparados com os anteriores acerca dos industriais - 80% deles residiam em municípios do interior e apenas 20% na Capital. Isto aponta para duas possibilidades não excludentes entre si; isto é, por um lado, as oportunidades oferecidas à acumulação de capital mediante atividades comerciais levadas a efeito no interior do Estado teriam sido bastante vantajosas; e, por outro, na economia urbana de Goiânia, o setor industrial teria propiciado, em comparação com estas, melhores condições de reprodução ao capital. As outras categorias ocupacionais que, no grupo, bem como no conjunto do universo considerado na pesquisa, detiveram importância numérica e também quanto à participação que tiveram na formação do capital privado da economia de Goiânia foram os funcionários públicos, de um lado, e coletores, bancários, contadores e afins, de outro. Segundo os resultados da amostra, residia em Goiás a totalidade dos componentes de ambas estas categorias, sendo que eram naturais do Estado 100% dos primeiros e 75% dos últimos. Em relação a tais indivíduos, entretanto, pode-se apenas levantar conjecturas acerca das possibilidades que tiveram de ganhar dinheiro, exercício que levamos a efeito atrás, mas que carece de base empírica que o sustente satisfatoriamente. No grupo das ocupações técnicas, científicas e afins, o segundo colocado em importância no setor empresarial de Goiânia, conforme já vimos, de acordo com os resultados da amostra, 73% dos indivíduos residiam no Estado de Goiás há algum tempo, dos quais, 55% em Goiânia e 45% no interior. Do conjunto deles, 47% nasceram no Estado. Neste caso, ao que indicam estes dados, embora o interior do Estado tivesse oferecido condições de se ganhar dinheiro através do exercício de funções tecnicamente qualificadas, uma parte do capital investido pelo grupo teria sido reunida mediante atividades profissionais e/ou empresariais levadas a efeito na própria cidade MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 255 Um outro grupo ainda merece comentário, o das ocupações da indústria, se nem tanto pelo peso que teve em número de indivíduos ou pelo capital que investiu no setor empresarial privado de Goiânia, principalmente pela importância que tiveram, certamente, as qualificações profissionais que possuíam seus integrantes, para o surgimento e expansão do setor industrial de uma economia em que a mão-de-obra qualificada era muito escassa. Pelos resultados da amostra, 67% dos indivíduos pertencentes ao grupo residiram no Estado de Goiás duradouramente antes de realizar investimentos empresariais em Goiânia; contudo, apenas 33% deles haviam nascido no Estado. Antes da fundação desta cidade, as atividades artesanais de tipo urbanas eram muito pouco desenvolvidas em Goiás, achando-se ligadas principalmente ao esquema de auto-suficiência das unidades de produção rurais. Conclusão Os dados apresentados neste trabalho são incisivos em apontar a área geográfica de onde se originou a maior parte do capital aplicado empresarialmente na economia de Goiânia, no curso de seus primeiros 30 anos; isto é: o território do próprio Estado de Goiás. Não obstante isto, foi significativa, conforme tais dados, a contribuição que ofereceram à formação daquele capital outras regiões brasileiras, sobretudo a Sudeste - Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Se tais constatações não surpreendem, propriamente, isto já não ocorre no que se refere à questão de como aquele capital foi acumulado, preliminarmente a sua inversão na economia da cidade. Segundo os dados, as maiores parcelas de que se formava o capital privado e empresarial desta economia provinham de atividades industriais e comerciais, sobretudo das primeiras. Isto é muito surpreendente, em face do pequeno peso que teve o setor industrial na economia do Estado de Goiás, no decorrer do conjunto temporal que estudamos. Os dados, porém, não deixam margem de dúvida quanto a este ponto: a maior contribuição oferecida ao desenvolvimento da economia de Goiânia resultou do re-investimento de excedentes econômicos produzidos pelo setor industrial, seja da própria cidade, do Estado de Goiás ou de outras partes. Mas, os dados referentes às categorias ocupacionais dos empresários de Goiânia reservavam-nos surpresas ainda maiores, cabendo menção especial, entre elas, o caso dos fazendeiros: foi pequeno o número de proprietários rurais na constituição do empresariado urbano da nova Capital goiana; e, o que é mais importante, foi pouco MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 256 considerável a participação que tiveram na formação do capital aplicado empresarialmente na cidade. Esta constatação, frustrando nossas expectativas quanto aos prováveis resultados da pesquisa aqui em foco, levantava, por outro lado, novas indagações, sendo que algumas delas remetem-nos ao terreno das motivações econômicas ou ao das qualidades pessoais exigidas ao empresário: será que a este grupo de homens faltou “vocação” ou, quem sabe, “talento”, para atividades do tipo empresarial-urbano? ou, diferentemente disto, a atividade produtiva rural teria oferecido condições tão ou mais vantajosas à reprodução de capital que essas urbanas? Esta última possibilidade parece-nos com maior probabilidade de acerto, já que vocação e talento empresariais, ao que tudo indica, não faltaram a este grupo de homens. A partir dos anos 1940, e cada vez mais crescentemente depois, o setor agropecuário da economia do Estado de Goiás tem-se desenvolvido em moldes empresariais. Estamos aqui nos referindo à antiga parte sul do Estado que hoje recebe este nome, de onde era originária a totalidade dos empresários de Goiânia abrangidos na pesquisa. Com isto, fica para nós demonstrado o equivoco em que havíamos incorrido aventando a hipótese de que um volume considerável de excedentes produzidos pelo setor primário da economia desse Estado deveria ter sido carreado para Goiânia, sendo esta a origem provável de uma das parcelas mais importantes do capital privado da economia urbana da nova cidade. Devemos aqui lembrar, entretanto, que não obstante isto, a existência de tais excedentes foi responsável pela criação de um mercado interno em Goiás para bens e serviços produzidos nesta cidade, sem esquecer, também, da parcela que, pela via fiscal, transferia para ela o Estado – melhor dizendo, o governo estadual, que além de se encarregar da implantação da cidade, ocupou-se, de forma quase exclusiva (ignorando o poder público municipal), com administração do seu desenvolvimento, ao longo do tempo aqui em causa. De um modo ou de outro, portanto, a produção de excedentes pelo setor agropecuário do Estado de Goiás constituíu-se, certamente, em fator fundamental do qual dependeu o desenvolvimento da economia urbana de Goiânia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Ana Luiza. Os comerciantes da fronteira. In: LAVINAS, Lena (Org.). A urbanização da fronteira. Rio de Janeiro: PUBLIPUR/UFRJ, 1987, v.I, pp. 61-89. BERTRAN, Paulo. Formação econômica de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978. MACIEL, Dulce Portilho. Formação do setor empresarial da economia de Goiânia (19331963): origens do capital. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 239-260, Dez. 2008 / Jun. 2009. 257 CAMPOS, Francisco Itami. Questão Agrária: bases sociais da política goiana (1930-1964). São Paulo, 1985. Tese (doutorado em Ciências Sociais), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo. DOLLES, Dalísia. A primeira fase da ocupação agrícola de Goiás - 1890-1945. Cadernos de Ciências Humanas, Goiânia, Editora da UFG, 1980. (Série Estudos Regionais, No. 1) DUARTE, Aluízio (Coord.). Região Centro-Oeste. Rio de Janeiro: IBGE/Diretoria de Geociências, 1988. GOVERNO MAURO BORGES TEIXEIRA. Plano de Desenvolvimento de Goiás. Goiânia: s/e, 1961, v. I. PALACIN, Luis e MORAIS, Maria Augusta. História de Goiás. Goiânia: Editora da UFG, 1986. PREFEITURA MUNICIPAL DE GOIÂNIA (Org.). Memória cultural - ensaios da história de um povo. Goiânia: Prefeitura Municipal de Goiânia, 1985. (Depoimentos) SILVA, Ana Lúcia. A Revolução de 30 em Goiás. São Paulo, 1982. Tese (Doutorado em História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261-269, Dez. 2008 / Jun. 2009. AS RAÍZES DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA Maria Angélica Peixoto∗ Resumo: Abstract: O presente artigo aborda as raízes da sociologia no Brasil, buscando analisar as razões de seu surgimento tardio em comparação com o ocorrido na Europa Ocidental. A conclusão geral é a de que tal surgimento tardio é produto do próprio desenvolvimento capitalista tardio em nosso país. The present article approaches the roots of the sociology in Brazil, looking for to analyze the reasons of your late appearance in comparison with happened him in Western Europe. The general conclusion is the that such a late appearance is product of the own late capitalist development in our country. Palavras-chave: Sociologia; Sociologia Brasileira; Desenvolvimento Capitalista; Capitalismo Tardio; Totalidade. Key-words: Sociology; Brazilian Sociology; Capitalist Development; Late Capitalism, Totality. O tema do presente artigo é a formação da sociologia no Brasil. A sociologia tem seus primeiros passos no continente europeu no século XVIII e se sistematiza enquanto ciência no século XIX, e teve seu processo de consolidação no século XX, já em seu início (Martins, 1994; Cuin e Gresle, 1994; Bouthoul, 1959). No Brasil, no entanto, os primeiros passos desta ciência ocorrem no século XX, a partir da década de 30, sendo que, para alguns estudiosos, seu nascimento dataria da década de 30, 40 ou 50 enquanto que, para outros, isto seria a fase pré-sociológica, e a sociologia científica surgiria mesmo na década de 60 (Gomes, 1994; Fernandes, 1978). O que visamos no presente artigo é descobrir as raízes da sociologia brasileira, observando o seu processo de gênese e explicando este processo à luz de uma análise da realidade social brasileira. Partindo da constatação desta defasagem entre o desenvolvimento da sociologia na Europa e no Brasil, apresentamos o seguinte problema de pesquisa: por qual motivo a formação da sociologia no Brasil ocorreu de forma tão tardia em relação ao continente europeu? Antes de dar continuidade poderíamos repensar o problema e ∗ Mestrado em Sociologia pela Universidade de Brasília, Brasil(2001) Atuação em Fundamentos da Educação, com ênfase em Sociologia da Educação Professor titular da Universidade Paulista Faculdades Objetivo , Brasil. PEIXOTO, Maria Angélica. As raízes da sociologia brasileira. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261269, Dez. 2008 / Jun. 2009. 259 colocar que ao invés de um motivo, houveram vários. Pois bem, partimos das indicações metodológicas feitas por Karl Marx. Segundo este: “o concreto é o resultado de suas múltiplas determinações” (Marx, 1983), mas cabe ao pesquisador, descobrir a determinação fundamental do fenômeno, isto é, descobrir aquilo que engendrou efetivamente o fenômeno, e, posteriormente, re-agrupar as demais determinações numa totalidade concreta (Marx, 1983; Viana, 2007). Assim, ao perguntarmos do motivo, estamos perguntando pela determinação fundamental, o que não significa descartar as demais determinações. Porém, focalizaremos esta para posteriormente enquadrarmos as demais. A partir do problema levantado buscamos realizar uma investigação bibliográfica que nos permitisse constituir uma hipótese que fosse o fio condutor de nossa pesquisa. Para elaborar nossa hipótese percebemos que seria necessário partir da idéia de que a compreensão deste fenômeno nos remete a um estudo sociológico da sociologia, isto é, a aplicação do saber sociológico à própria sociologia. Este será, portanto, o embasamento de nosso referencial teórico. O quadro teórico de nosso trabalho se encontra na contribuição metodológica de vários sociólogos, entre os quais, Marx e Durkheim, e daqueles que contribuíram mais especificamente com a sociologia do conhecimento, além dos acima citados, tal como Mannheim, Löwy, Bourdieu, Berger e Luckmann, entre outros, e também estudiosos da sociologia brasileira e da sociedade brasileira, tal como Florestan Fernandes, João Manuel Cardoso, Antônio Cândido, Cândido Gomes, entre outros. O referencial teórico se baseia, então, na sociologia do conhecimento, partindo da idéia de totalidade como categoria central para nossa análise. A sociedade compreendida como totalidade é a chave explicativa para o nosso problema e fio norteador de nossa análise e hipótese. Karl Marx e Friedrich Engels forneceram significativas sugestões neste sentido. Para estes autores, as idéias (religiosas, morais, estéticas e, o que se refere diretamente ao objeto de nosso estudo, científicas) não podem ser compreendidas de forma isolada das relações sociais. As idéias, as representações, as formações culturais (Marx e Engels, 1991) se formam e desenvolvem no interior das relações sociais. O modo como os homens vivem, suas relações recíprocas, seu modo de produzir, suas relações sociais em geral, é a chave explicativa de suas representações, suas idéias. Assim, a produção científica está indissoluvelmente ligada com o processo social (Löwy, 1987). PEIXOTO, Maria Angélica. As raízes da sociologia brasileira. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261269, Dez. 2008 / Jun. 2009. 260 Karl Mannheim também apresentará uma grande contribuição para a compreensão da produção de conhecimento. Este autor irá destacar a relação entre a produção de conhecimento e o contexto socio-histórico, principalmente as classes sociais (Mannheim, 1986). Berger e Luckmann também trazem uma importante contribuição ao destacar que o conhecimento é produzido socialmente (1986), tal como Durkheim, que afirma que as representações coletivas, entre outras formas de consciência, são produzidas socialmente (1996). Bourdieu traz uma análise fundamental ao realizar estudos sobre o que ele denomina “campo científico” (1994) e em suas análises sobre a sociologia (1983), traz elementos fundamentais para pensarmos a formação da sociologia no Brasil, seu processo de institucionalização e sua dinâmica. O que todos estes pensadores apresentam é uma visão geral da produção do conhecimento, trazendo elementos importantes para analisarmos a formação da sociologia no Brasil. Estes sociólogos apresentam uma visão da produção de conhecimento como produto social e, por conseguinte, não pode ser separado das relações sociais, do processo histórico e social. Sendo assim, somente compreendendo a sociedade brasileira em sua totalidade é que poderemos compreender a formação da sociologia no Brasil. Por sociedade brasileira entendemos uma extensão do conceito de sociedade, tal como definido por Karl Marx, que a define como sendo o conjunto das relações sociais. A sociedade brasileira, por conseguinte, é o conjunto das relações sociais existentes no território brasileiro. Este é um conceito abrangente, mas ao mesmo tempo concreto, isto é, refere-se a uma sociedade concreta, delimitada espacialmente e temporalmente. Sem dúvida, não iremos analisar a totalidade das relações sociais existentes no Brasil, mas – sem perder de vista sua globalidade – iremos focalizar aqueles elementos fundamentais para a nossa pesquisa, especialmente o processo de modernização da sociedade brasileira. Tal processo de modernização é marcado pela expansão da sociedade capitalista, ou, em outras palavras, de “ocidentalização” (Le Goff, 2003). Este processo de modernização proporciona várias mudanças em uma determinada sociedade, tal como o processo de industrialização, elemento fundamental por instaurar novas relações de produção, urbanização, racionalização, entre outros. A nossa hipótese, por conseguinte, é a de que a formação tardia da sociologia no Brasil é derivada do próprio desenvolvimento histórico do Brasil, PEIXOTO, Maria Angélica. As raízes da sociologia brasileira. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261269, Dez. 2008 / Jun. 2009. 261 caracterizado por um capitalismo tardio, retardatário. Também poderíamos denominar tal processo como “modernização tardia”. Esta hipótese pode ser respaldada na análise que Marx e Engels fizeram da filosofia alemã de sua época, o chamado neohegelianismo (1991). O neohegelianismo surgiu numa sociedade atrasada, a Alemanha, com uma industrialização retardatária em relação aos demais países europeus (principalmente Inglaterra e França) e, no entanto, vestiu as concepções político-filosóficas destes países. Aqui temos os dois elementos que nos ajudam a compreender o processo de constituição da sociologia no Brasil: um desenvolvimento econômico incipiente ao lado do intercâmbio cultural com países mais desenvolvidos. Isto permite um desenvolvimento tardio da sociologia no Brasil, pois seu período pré-sociológico (até década de 30) se caracteriza pela importação cultural derivada de um intercâmbio com outras culturas que produziam uma sociologia mais sistematizada e institucionalizada. O seu caráter pré-sociológico é possível graças a este intercâmbio cultural que ocorria sem as bases materiais, o desenvolvimento capitalista. Assim, sua formação e institucionalização datam da consolidação do capitalismo tardio no Brasil, no qual a urbanização e industrialização se tornam predominantes em nosso país. Neste caso, estamos entendendo por cultura a definição fornecida por Alfred Weber: “os produtos artísticos, religiosos, filosóficos, e outros, de uma sociedade” (Bottomore, 1970, p. 110). Em outras palavras, cultura se refere ao conjunto de idéias, valores, moral, religião, ciência, filosofia e outras produções intelectuais de uma determinada sociedade. Este conceito de cultura difere de outros fornecidos principalmente pela antropologia social, mas é bastante utilizado na teoria sociológica. Assim, a determinação fundamental da formação tardia da sociologia brasileira é o a formação de um capitalismo retardatário em nosso país. Este capitalismo retardatário pressupõe um desenvolvimento capitalista avançado em outros países e de relações entre estas duas formas de capitalismo. Esta relação ocorre sob o signo da subordinação econômica que se reproduz sob a forma cultural e científica. Sendo assim, a formação tardia da sociologia brasileira é derivada desta situação do capitalismo em nosso país. A fase pré-sociológica é possível devido ao intercâmbio cultural e subordinação científica, o que produz “idéias fora do lugar” e manifestações rudimentares, convivendo com formas mais desenvolvidas em outros países. A formação da sociologia brasileira, sua fase científica, ocorre com o desenvolvimento PEIXOTO, Maria Angélica. As raízes da sociologia brasileira. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261269, Dez. 2008 / Jun. 2009. 262 capitalista no Brasil, o processo de industrialização, proporcionando a base material para o seu desenvolvimento e sistematização. A partir destas considerações e referencial teórico, realizamos uma análise da realidade brasileira a partir da leitura de autores como Gorender (1978); Gorender (1990); Freitas (1982); Costa (1982); Cardoso de Mello (1986); Mazzeo (1989); Gebara (1986) e Fernandes (1987). Assim, já podemos ter uma primeira visão panorâmica da sociedade brasileira para realizar a comparação com as sociedades européias nas quais surgiu a sociologia. O nosso objetivo foi obter uma visão geral da sociedade brasileira no mesmo período em que a sociologia se esboçava na Europa, bem como no período de sua sistematização e consolidação. Isto ocorreu nos séculos XVIII (precursores da sociologia), XIX (surgimento com os clássicos); XX (consolidação). Sem dúvida, perceber o processo histórico de desenvolvimento da sociedade brasileira era necessário e por isso fizemos algumas leituras sobre o período antecedente para compreender a dinâmica de desenvolvimento desta sociedade, sem fazer cortes abruptos. Assim, as leituras de Gorender (1978; 1990), Costa (1982) e Freitas (1982) nos ajudaram a compreender a sociedade pré-capitalista brasileira, o regime escravista colonial. A transição deste regime para o regime capitalista, já tendo alguns subsídios nestas leituras, foram aprofundadas com a leitura dos textos de Cardoso de Mello (1986); Mazzeo (1989); Gebara (1986) e Fernandes (1987). O conhecimento em geral e a ciência, mais especificamente, são produtos sociais. A ciência possui uma racionalidade própria, que não pode ser desligada dela, mas o seu conteúdo e mesmo os elementos determinantes de sua forma são constituídos socialmente. Assim, a sociologia surge na Europa num contexto social específico, numa sociedade que tem como características a secularização, a racionalização (Weber, 1978), a industrialização e o surgimento da “questão social” (Martins, 1994; Bottomore: 1970), a era do cientificismo e a busca de constituição de diversas novas ciências, principalmente as chamadas ciências humanas (Viana, 2000), as lutas sociais, entre outros elementos. Em poucas palavras, a sociologia surge na Europa a partir de um novo contexto social, marcado pelo surgimento e desenvolvimento da sociedade capitalista. As pré-condições para o surgimento da sociologia são a formação do capitalismo e seu desenvolvimento, proporcionando novas lutas de classes (burguesia e proletariado), novos problemas sociais, e uma ampliação da racionalização e da divisão PEIXOTO, Maria Angélica. As raízes da sociologia brasileira. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261269, Dez. 2008 / Jun. 2009. 263 social do trabalho, o que faz emergir o que Bourdieu denomina “campo científico” e outros autores chamam “comunidade científica” (Portocarrero, 1994; Viana, 2003), o desenvolvimento das ciências naturais e o progresso tecnológico e científico que traz legitimidade e status superior ao novo ramo do saber, a ciência (Viana, 2000). Também, neste contexto, como subdivisão no interior do “campo científico”, emerge o “campo sociológico”, isto é, uma subdivisão no interior de um campo mais amplo. A sociologia de Pierre Bourdieu (1983) contribui para uma compreensão deste processo, principalmente sua análise do campo científico e sua obra (Bourdieu, 1983) na qual aborda as características dos sociólogos, embora não trabalhe exatamente sua gênese histórica. O surgimento da sociologia fora do continente europeu é posterior, pois é neste que o capitalismo surge inicialmente e se torna hegemônico. Nos países fora do continente europeu em que ocorre um rápido processo de industrialização também há um desenvolvimento da sociologia, embora peculiar e ligado às influências européias (Cuin e Gresle, 1994). Por fim, o desenvolvimento da sociologia nos países de capitalismo tardio tende a ser tardio, embora, devido à influência cultural dos países industrializados, possa se esboçar antes da concretização do processo de industrialização e sua consolidação. Assim, a partir dos estudos de Gorender (1978; 1990), podemos perceber que a sociedade brasileira nasce sob o signo da escravidão. No período colonial, o Brasil é um país que se fundamenta num modo de produção escravista. No entanto, o escravismo brasileiro difere do escravismo antigo e a diferenciação se encontra no caráter colonial do primeiro. O regime escravista colonial brasileiro estava intimamente ligado ao processo colonizador europeu, mais especificamente português, e ao processo que Marx (1988) denominou “acumulação primitiva de capital”. As relações de produção, no Brasil, no período da expansão colonial e acumulação primitiva de capital, eram escravistas. O escravismo brasileiro era mais brutal que o existente no mundo antigo, pois o seu caráter colonial e sua ligação com o processo de acumulação de capital na Europa, fazia dele uma máquina de sugar excedente, e assim a super-exploração dos escravos negros se tornava sua máxima. Para se ter apenas um exemplo, a média de vida dos escravos negros era mais baixa do que a dos escravos da sociedade antiga. O regime colonial, em que pese o contato com os países mais industrializados, não possuía um desenvolvimento científico e tecnológico PEIXOTO, Maria Angélica. As raízes da sociologia brasileira. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261269, Dez. 2008 / Jun. 2009. 264 Sem dúvida, nesta sociedade faltavam as bases sociais da existência da ciência sociológica. O processo de abolição da escravidão e a formação do mercado de trabalho livre já convivem com os primeiros passos de industrialização no Brasil. As primeiras indústrias vão surgindo no Brasil no final do século XIX. Este processo de industrialização vai seguindo uma linha evolutiva de acumulação que permite um desenvolvimento nacional em bases capitalistas. Juntamente com isto ocorrem mutações políticas e sociais. O tópico fundamental para nossa análise reside na industrialização tardia da sociedade brasileira, pois seria impossível abordar a complexa rede de fenômenos relacionados ao processo histórico de industrialização no Brasil. Segundo Cardoso de Mello (1986), a industrialização brasileira se acelera a partir da crise de 1929, o que significa o aceleramento de um processo já em andamento. O início da industrialização no Brasil ocorre no final do século XIX mas seu processo de expansão data do início do século XX. É neste contexto que temos a industrialização brasileira de forma mais intensa e é, segundo Cardoso de Mello, a partir de 1929 que temos sua aceleração. A América Latina passa a constituir economias exportadoras a partir deste período, e é neste contexto que surgem as teses da “substituição de importações”. Com o surgimento das economias capitalistas exportadoras, já o dissemos, o modo de produção capitalista se torna dominante na América Latina. Porém, o fato decisivo é que não se constituem, simultaneamente, forças produtivas capitalistas, o que somente foi possível porque a produção capitalista era exportada. Ou seja, a reprodução ampliada do capital não está assegurada endogenamente, isto é, de dentro das economias latino-americanas, face à ausência das bases materiais de produção de bens de capital e outros meios de produção. Abre-se, portanto, um período de transição para o capitalismo (Cardoso de Mello, 1986: 96). A economia cafeeira paulista impulsiona a industrialização brasileira com o capital monetário acumulado, a transformação da força de trabalho em mercadoria, e a formação de um mercado consumidor interno. Este processo gera uma industrialização restringida que só se expande a partir de 1933, se estendendo até 1955. Neste momento, a acumulação capitalista brasileira se liberta da dependência da economia cafeeira. Portanto, temos um processo de formação do capitalismo extremamente lento no Brasil. O capitalismo brasileiro dá os seus primeiros passos com o início da industrialização no final do século XIX, vai se consolidando no decorrer do século XX e somente se autonomiza do setor agrícola a partir de 1955. A lentidão deste processo decorre de sua industrialização tardia em relação aos demais países capitalistas avançados, o que o faz entrar na divisão internacional do trabalho de forma PEIXOTO, Maria Angélica. As raízes da sociologia brasileira. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261269, Dez. 2008 / Jun. 2009. 265 subordinada, pois o mercado mundial já estava dominado pelas grandes potências bem como as possibilidades de importação e exportação estavam dadas, sendo que a produção de bens de produção era pouco incentivada nos países de capitalismo retardatário, já que sua produção ocorria nos países centrais. O processo de industrialização no Brasil foi diferenciado em relação ao ocorrido na Europa. Aqui se saía de um regime escravista colonial para um regime capitalista, enquanto que na Europa a transição do sistema feudal para o sistema capitalista foi um processo mais longo, marcado por todo um processo de expansão da força da classe capitalista e expansão do comércio que o acompanhava e por uma formação cultural construída secularmente, incluindo o desenvolvimento das ciências naturais. No caso do Brasil, temos um processo de formação cultural caracterizado pela importação de idéias estrangeiras bem como a falta de classes sociais relativamente independentes e por uma situação de concentração da produção capitalista em determinadas regiões (eixo Rio-São Paulo) convivendo com a manutenção de relações agrárias na maior parte do território brasileiro. A formação de instituições de ensino superior no Brasil, bem como de tradições científicas e da própria comunidade científica, foi muito posterior à ocorrida na Europa. É a partir da década de 60 que o capitalismo brasileiro se encontra sintonizado com os elementos mais característicos do modo de produção capitalista e sua superestrutura, pelo menos na maior parte do país, apesar de ainda haver regiões mais voltadas para a produção agrária e dominadas por relações sociais tradicionais. A nossa incursão sobre a realidade brasileira reforça nossa hipótese do desenvolvimento tardio do capitalismo brasileiro e sua relação com a formação também tardia da sociologia em nosso país. Podemos observar que o capitalismo brasileiro começa a dar seus primeiros passos no final do século IX mas somente alcance um estágio significativo no início do século XX. Na Europa, as origens do capitalismo remontam o século XVI, passando pelos séculos XVII, XVIII e culmina no século XIX. Nos principais centros europeus (Inglaterra, Holanda, França) o século XIX é um século capitalista, no qual não apenas o modo de produção capitalista predomina amplamente, como também a superestrutura que lhe é correspondente já é hegemônica, o que foi conquistado a partir das revoluções burguesas. Assim, temos o nascimento das ciências humanas nesta região do globo terrestre. Em países mais atrasados no processo de PEIXOTO, Maria Angélica. As raízes da sociologia brasileira. Estácio de Sá – Ciências Humanas . Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 261269, Dez. 2008 / Jun. 2009. 266 industrialização, tal como a Alemanha, a Rússia, entre outros, a influência econômica e cultural se faz sentir. No caso brasileiro, temos apenas alguns esboços de influência cultural. O positivismo enquanto pensamento político se tornou influente nas terras brasileiras desde o período republicano. Mas o capitalismo tardio no Brasil começou a se consolidar já no início do século XX. É neste momento que o positivismo já citado e as idéias anarquistas, entre outras importadas da Europa, começaram a se fazer presentes. No plano científico havia um completo descompasso entre a produção européia (e já também a norte-americana) e a brasileira, pois no primeiro caso temos já a consolidação das ciências humanas, nos quais o pensamento clássico das principais ciências humanas já está produzido e os campos de pesquisa e institucionalização estão bastante avançados. É somente no período posterior à Revolução de 1930 que os primeiros sinais de produção sociológica seriam esboçados no Brasil. Aqui temos os esboços de um desenvolvimento histórico marcado por um desenvolvimento homólogo da ciência sociológica. Assim, as raízes da sociologia brasileira se encontram no processo de desenvolvimento social brasileiro e da ciência sociológica na Europa. A sociologia encontra sua base de existência no desenvolvimento capitalista e este, no Brasil, se inicia no século XX mas somente lança as bases de sua superestrutura a partir da Revolução de 1930. Por conseguinte, uma sociologia científica só teria condições de florescer em nosso país após este período. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGER, Peter e LUHMAM, T. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes, 1986. BOTTOMORE, Tom. Introdução à Sociologia. 2ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1970. BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: COHN, Gabriel (org.). Bourdieu. Col. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1994. BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. BOUTHOUL, Gaston. História da Sociologia. 2ª ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959. CÂNDIDO, Antonio. Florestan Fernandes. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. CARDOSO DE MELLO, João Manuel. O Capitalismo Tardio. São Paulo, Brasiliense, 1986. COSTA, Emília Viotti. 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Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, 271-287, Dez. 2008 / Jun. 2009. FORMAS USUAIS DE MEDIÇÃO DO SETOR INFORMAL Edmar Aparecido de Barra e Lopes∗ Resumo: Abstract: Este artigo tem como objetivo discorrer sobre as tradicionais formas teóricometodológicas de medição do chamado setor informal e as principais criticas atribuídas às mesmas This article aims to discuss the theoretical and methodological traditional ways of measuring the so-called informal sector and the main criticism assigned to the same. Palavras-Chave: Key-Words: Medição, teoria, metodologia, criticas, setor informal. Measurement, theory, methodology, criticism, the informal sector. INTRODUÇÃO A dificuldade de conceituação da informalidade tem uma conseqüência metodológica quase direta, a dificuldade de medição do setor informal. Soma-se a esta dificuldade o fato de que a ilegalidade em que são colocadas as atividades informais contribui para que aqueles que dela dependem tratem de ocultá-las. Várias são as tentativas de medição do setor informal ou como lembra Cacciamali (1983), “as cirurgias da realidade para operacionalizar o conceito Setor Informal” e tentar dimensioná-lo. Neste sentido, a autora ressalta como históricas as seguintes formas de descrição do setor informal: a) trabalhadores que não tem contrato de trabalho sob o guarda-chuva da legislação trabalhista (Merrick, 1976; Macedo e Chahad, 1979). b) um conjunto de atividades econômicas definidas a priori (Merrick e Brito, 1974). c)por resíduo – os trabalhadores que não estão incluídos no setor formal (Mazudmar, 1976). ∗ Doutor em Ciêncis Sociais pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, Professor Adjunto da Universidade Estadual de Goiás-UEG e Coordenador de Pesquisa da Faculdade Estácio de Sá Goiás. LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 269 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. d) firmas com números arbitrários de trabalhadores: menos que cinco trabalhadores (Joshy, Vijay e Heather, 1972); dez empregados (Berlink, 1977); quatro empregados (PREALC, 1978); 25 empregados (Joshy, 1972). e)empregadores, trabalhadores e familiares em estabelecimentos de até quatro empregados, trabalhadores por conta própria (exceto profissionais liberais), serviço doméstico e trabalhadores ocasionais.1 Uma das principais críticas tecidas por Cacciamali em relação a estas tentativas de operacionalização do conceito é que elas são incapazes, de caracterizar o trabalhador por conta própria, núcleo típico do setor informal para efeitos de estudo. Trata-se de: Aproximações, fruto, não raramente, do anseio de mensurar o Setor Informal e da ausência de informações mais completas nas estatísticas oficiais e que podem obscurecer a natureza e o caráter desse conjunto de produtores no processo econômico, além de poderem conduzir a interpretações incorretas sobre a qualidade do desenvolvimento econômico em gestação. Isto é, podem levar à conclusão de que os baixos níveis de renda se resumam ao Setor Informal, mascarando os baixos salários pagos no setor Formal. (1983:43) A autora não é menos crítica em relação a adoção de um nível mínimo de renda para precisar as fronteiras da informalidade junto a PEA (população economicamente ativa). Uma vez que este tipo de metodologia tende a destacar o indivíduo em detrimento da família, ou seja, está assentada numa visão atomizada da unidade de consumo na sociedade capitalista. Trata-se de uma visão que contribui para esconder que a renda provém da forma de participação dos indivíduos na produção. A autora (1983:43) arremata: À medida que se desloca o eixo de delimitação do setor informal, transferindo-o da forma de participação na produção para níveis de consumo ou de legalidade no exercício do trabalho, esconde-se os baixos salários pagos nas formas de organização da produção capitalista e também a burla da legislação trabalhista nessas empresas, mormente nas menores. Ignora-se, além disso, as condições sob as quais se está realizando o trabalho. Cacciamali reforça que esta operacionalização metodológica que homogeiniza os indivíduos por critérios de renda contribui para a perda informações sobre a qualidade do processo econômico que vem sendo gerado, assim como o referencial de onde e como intervir politicamente (políticas de emprego e renda). 1 Esta maneira é utilizada, em geral, nas definições dos trabalhos do PREALC. Ver, por exemplo, PREALC (1978). Raczynski (1977: 40-44) apud: CACCIAMALI, (1983). LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 270 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. Diante do exposto, trata-se de extrair as rendas do trabalho através das formas como se está processando a incorporação dos trabalhadores a nível quantitativo – volume de postos de trabalho e qualitativo – condições de trabalho e níveis de renda na produção. Outro ponto ressaltado no tratamento metodológico do conceito em questão é necessidade de não descuidar das considerações sobre informalidade e Estado, já que aprender a trabalhar e manter-se no setor informal exige liderança, criatividade, desembaraço e até agressividade em determinadas circunstâncias do cotidiano de trabalho. Outras três posições metodológicas em relação a operacionalização do conceito setor informal, merecem um olhar crítico de Cacciamali (1983: 44-51). São elas: 1-O tratamento atribuído à origem setor informal: comumente explicada como necessidade de sobrevivência do excedente de mão-de-obra, formada pela massa de migrantes recém-chegada à cidade e sem perspectiva de obter um posto de trabalho no setor formal; 2-O modo como tem sido comumente abordado a manutenção e permanência do setor informal no meio urbano e suas relações com a demanda de bens e serviços dos grupos mais pobres; 3-As análises que se referem ao elevado grau de competição que caracteriza este setor. Em relação à primeira colocação é necessário esclarecer que são as especificidades do desenvolvimento capitalista no Brasil (dependente e não totalmente solidificado) que, entre outros fatores, geram o elevado grau de excedente de mão-deobra e não o contrário.2 Existem partes de ramos da produção que estão sendo capturados pelo capital (parte da agricultura, por exemplo) ao mesmo tempo que ramos da produção primordialmente dominados por formas de organização da produção capitalista sofrem modernização tecnológica, introduzindo ou não novos produtos. Estes movimentos, por sua vez, decompõem-se, por um lado, na destruição de atividades informais e postos de trabalho assalariados e, por outro, na criação de outros postos de trabalho assalariado e criação, recriação ou ampliação de atividades informais. Enquanto a intensidade desse processo não diminuir , em especial na área rural, observar-se-á a manutenção de excedente de mão-de-obra, particularmente migrantes, que podem ocupar parcelas de determinadas atividades informais (Cacciamali, 1983:45). 2 O modo de produção capitalista deve ser entendido também como abrangendo, em especial, a produção e reprodução de seres humanos (esperança de vida, tamanho da família, taxa de crescimento demográfico, etc.). Ver: OLIVEIRA (1977). LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 271 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. No que concerne à segunda questão - a manutenção e permanência do setor informal no meio urbano e suas relações com a demanda de bens e serviços dos grupos mais pobres – o argumento principal é aquele que considera capital e trabalho como fatores de produção e apresenta sua sub-remuneração no setor informal como um dos motivos para a sua sobrevivência. Trata-se de uma forma de abordagem da questão que descuida da relação capital-trabalho. De outro modo, tende a obscurecer o fato de que tal relação: a) independe dos desejos dos indivíduos que se apresentam no quadro social como capitalistas ou assalariados; b) que a forma de produção capitalista se estabeleceu historicamente e assim se reitera e se desenvolve; c) o desdobramento e transformação das relações capital-trabalho processam-se também pelo desenvolvimento tecnológico e; d) em tais relações, anseios de indivíduos e grupos estão filtrados pelas relações de poder. Quando se argumenta a sub-remuneração da relação capital-trabalho, vale ressaltar que no setor informal esta se norteia muito mais pelas condições de trabalho do que pela(s) taxa(s) de retorno.3 Ainda no sentido de desconstruir as bases do argumento relativo à subremuneração no setor informal, vale ressaltar dois outros pontos: a) a determinação dos preços no setor informal; b) a tese do confinamento ao setor informal do consumo dos mais pobres. Em relação ao primeiro desdobramento do segundo argumento - a determinação dos preços no setor informal - importante destacar que a relação quantidade/qualidade/preço em tal setor pode representar serviços especiais (vendas em pequenas unidades, materiais, mão-de-obra, tempo, transporte, nível de renda do cliente, potencialidade do cliente em relação aos serviços futuros, relação pessoal e de conhecimento que o cliente tem com a natureza do serviço). Neste sentido, pode-se afirmar que preços abaixo do mercado podem representar serviços especiais prestados ao consumidor ou as próprias condições de barganha entre trabalhador e clientes 3 Segundo CACCIAMALI (1983:47) é importante ressaltar que “(...) no setor informal a sub-remuneração da relação capital-trabalho está intimamente ligada a : a) o proprietário/produtor explora sua própria força de trabalho e, as vezes, de alguns ajudantes; b) o trabalho excedente, em geral de pequena monta, tem a finalidade de aumentar a renda, o consumo, do proprietário/produtor; c) os meios de trabalho não tem a finalidade de extrair trabalho excedente alheio para valorizar o dinheiro aplicado, mas, em geral, o próprio sustento e melhoria nas condições de vida. Pode-se afirmar: em primeiro lugar, não é a subremuneração que cria ou mantém o setor informal (este depende do espaço produtivo enquanto um todo); em segundo lugar, o setor informal depende também de pessoas que se disponham e/ou não tenham opção, mas que possuam requisitos necessários para ocupá-lo”. LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 272 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. (Cavalcanti e Duarte, 1978: 32). De outro modo, tal evidência empírica mostra que o preço de determinados serviços oferecidos pelo setor informal é fixado em função dos custos. No que concerne ao segundo desdobramento desta questão - a determinação dos preços no setor informal - a tese do confinamento ao setor informal do consumo dos mais pobres - tal tese é no mínimo duvidosa. É assim que Perlam (1979) e Kowarick (1980) formam coro crítico segundo o qual o confinamento pode ser percebido em função do nível de desenvolvimento econômico encerrado em uma dada realidade (principalmente, naquelas caracterizadas pela concentração de indivíduos pobres na periferia ou em favelas). No entanto, esclarecem, é um falso confinamento, pois estes indivíduos trabalham e se relacionam com o restante dos indivíduos. Ou seja, as referidas parcelas mais pobres da população engrossam o mercando interno consumindo variado número de produtos industriais distribuídos tanto pelo setor formal quanto pelo informal. Em relação à terceira e última colocação - análises que referem-se ao elevado grau de competição que caracteriza este setor informal – vale lembrar que inúmeras atividades informais não se caracterizam por baixa renda, nem por facilidade de entrada ou por atuarem em mercados competitivos.4 2 - Principais procedimentos de medição do setor/economia informal Diante das dificuldades de medição do setor informal, cabe expor neste trabalho quatro das principais formas usuais de sua mensuração do mesmo, a saber: 1) o enfoque do mercado de trabalho; 2) o enfoque das pequenas empresas; 3) o enfoque do consumo do lugar e; 4) o enfoque das discrepâncias macro-econômicas. O primeiro enfoque - do mercado de trabalho - tem por objetivo estimar a porcentagem da população economicamente ativa que trabalha na economia informal, tomando como base categorias específicas de emprego incluídas nos censos ou nas pesquisas representativas de todo o país. A premissa é que determinadas categorias de pessoas são mais propensas a ocultar das autoridades tributárias e de registro, uma parte da totalidade de suas atividades geradoras de ganhos. 4 CACCIAMALI (1983) lembra que o próprio SOUZA (1979; 1980), critica a si mesmo sobre esta questão em trabalhos anteriores. LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 273 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. Ocupam primeiro lugar neste grupo aqueles que trabalham por conta própria (que tem mais possibilidades do que outros trabalhadores de ocultar seus ganhos).5 Outra categoria suspeita deste grupo - a segunda - é constituída pelos desempregados, porque cabe a possibilidade de que possam estar trabalhando fora do mercado de trabalho protegido, ao mesmo tempo em que recebem algum tipo de prestação social obrigatória – como seguro desemprego e outros. Constitui a terceira categoria, aqueles que declaram não ter ocupação. Cabe reforçar que, em geral, aqueles que não trabalham ou não buscam trabalho realizam atividades informais para gerar renda - ao menos em tempo parcial. A OIT define como quarta categoria deste primeiro enfoque o serviço doméstico, levando em conta principalmente dados provenientes dos países menos desenvolvidos (embora possa ser aplicado também aos países mais ricos). A mesma observação vale para a quinta e última categoria, micro-empresas que empregam até cinco pessoas, considerando que estas empresas operam fora da legalidade ou que estando registradas - geralmente não cumprem com as normas jurídicas em suas práticas de contratação. Como esclarecem Pérez-Sáinz (1992) e Klein y Tokman, (2000), é a partir destas categorias de emprego, registradas nas pesquisas de domicílio, que organismos das Nações Unidas proporcionam estimativas sobre a força de trabalho informal da maioria dos países. A segunda forma/enfoque de medição do setor informal - o enfoque das pequenas empresas – toma como base a evolução do número e a proporção de “empresas muito pequenas” considerando-os como indicadores de troca das atividades informais. Por definição, as empresas muito pequenas são as que empregam menos de 10 trabalhadores. Este enfoque tem sido aplicado nos Estados Unidos no lugar do método dos dados do mercado de trabalho. Segundo Portes e Sassen (1987:47): La premisa es que, em los paises avanzados, la mayoría de las actividades definidas como informales se producen en las empresas más pequeñas porque son menos visibles, más flexibles y tiene más posibilidadse de evitar los controles del Estado. Se supone que las empresas más grandes son más vulnerables a la regulación oficial y menos propensas a arriesgarse a ser sancionadas. Por lo tanto, és más improbable que realicen actividades informales en forma directa, aunque puden subcontratarlas a empresas más pequeñas que sí las realizan. 5 “La Oficina Internacional del Trabajo (OIT) y el Programa Regional del Empleo para América Latina y el Caribe (PREALC) han clasificado a los trabajadores por cuenta propria, con exclusión de los profesionales y los técnicos, como parte del sector informal”. Ver: PORTES e HALLER (2004:30). LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 274 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. Como indicadores do grau de informalidade, a evolução das empresas muito pequenas, estão sujeitas a dois vieses de significado contrários. Em primeiro lugar, nem todas as empresas muito pequenas realizam atividades informais, desta forma conclui-se que se produz uma sobre-estimação. Em segundo lugar, o pressuposto de que as empresas muito pequenas trabalham totalmente na ilegalidade esquivando-se de todos os controles do Estado resulta numa subestimação. Não se sabe até que ponto estes vieses se compensam entre si. Nesta situação, o melhor é interpretar as séries como uma estimação aproximada da evolução do setor informal.6 O terceiro enfoque, entre os mais usuais, de medição do setor informal é denominado - consumo do lugar/domicílio. Baseando-se na constatação de que nos países em desenvolvimento é difícil obter medições do emprego informal mediante pesquisas diretas, Smith (1987) e McCrohan, Smith, Adams (1991) desenvolveram um engenhoso método baseado no consumo de bens e serviços que são providos informalmente em lares/domicílios dos Estados Unidos. Para estes estudos se utilizaram de pesquisas estatísticas nacionais, realizadas por el Survey Research Center de la Universidad de Michigan em 1981, 1985 e 1986. As atividades informais foram definidas como as transações de mercado que deveriam estar registradas ou ser objeto de tributação, mas que não o estavam. Se pediu aos entrevistados que informassem sobre as quantias gastadas nos anos anteriores para adquirir bens e serviços de forma extra-legal. Ou ‘por de baixo da mesa’. Sobre a base dos resultados, os autores estimaram que os lares/domicílios estado-unidenses gastam cerca de 72 400 milhões de dólares em compras informais, o que em 1985 representava 14,6% de todos os gastos (formais e informais). O estudo também concluiu que pelo menos de 83% de todos os lares/domicílios estado-unidenses utilizavam ao menos algum tipo de forma de fornecimento informal. Portes e Haller (2004:35) ressaltam: El valor de este método radica en que utilizan mediciones directas y estadísticamente representativas, lo que permite obtener una estimación fidedigna del consumo de los hogares. Como indicador de la amplitud de la informalidad en la economia nacional presenta una falta fundamental: no tiene en cuenta los insumos producidos informalmente para las empresas más grandes y las práticas laborales irregulares de éstas. En otras palabras, todo el universo de subcontratación informal en las industrias del vestido, la electrónica, el mobiliario, la construcción y muchas otras, así como el empleo ‘fuera de plantilla’ de empresas formales queda excluido por este sistema de medición que tiene en cuenta, exclusivamente, el consumo de los hogares. 6 Ver: PORTES; HALLER (2004). LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 275 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. Este método y el de las empresas muy pequeñas empleam una premisa básica común: que la informalidad predomina en las unidades económicas más pequeñas. Sin embargo, en ambos casos hay discrepancias significativas entre lo que ocurre en los hechos y lo que indican las cifras. O quarto enfoque de medição da informalidade - do conjunto dos quatro mais usuais - é conhecido como: método das discrepâncias macro-econômicas. Trata-se de medir a magnitude da chamada ‘economia subterrânea’ total, como proporção do PIB. Este método está fundamentado na existência de pelo menos duas medidas distintas, porém comparáveis, no contexto da economia nacional. As discrepâncias entre ambas se atribuem às atividades informais. Por exemplo, a brecha entre o ingresso e o gasto das contas nacionais pode ser empregada para estimar a magnitude dos ingressos não declarados, pois é menos provável que as pessoas falsifiquem os gastos que os ingressos.7 Portes e Haller (2004:36), explicam que este método tem sido preferido nos países avançados, onde os métodos de registro do Estado e as contas nacionais estão mais estruturados e há poucas possibilidades de se obter informações válidas sobre a participação individual nas atividades subterrâneas mediante pesquisas. Continuam esclarecendo que economistas de muitos países tem começado a usar cada vez mais os métodos macro-econômicos de estimação do tamanho da economia “subterrânea”, a partir dos ingressos não declarados. Apesar do uso desta metodologia ganhar espaço em muitos círculos acadêmicos, vários analistas - Feige (1990), Portes y Sassen (1987) - se posicionam criticamente em relação ao método em questão. Em primeiro lugar, a premissa de que as transações informais se realizam principalmente em dinheiro - é discutível, pois podem se utilizar de cheques bancários e outros instrumentos sem demasiado temor de que as autoridades os detectem. Em segundo lugar, a hipótese de que as atividades informais não existiam em um período determinado arbitrariamente também é discutível. Terceiro lugar - o que é mais importante - estas estimativas não permitem diferenciar entre atividades ilegais e atividades informais. 7 Ver: FEIGE (2004). LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 276 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. 3 - O paradoxo das medições no setor informal Como foi anteriormente exposto, as limitações dos métodos de mensuração do setor informal estão articuladas com a natureza mesma do fenômeno, de difícil e polêmica definição.Tais atividades, não raramente, são ocultadas multiformemente. Os níveis de ocultamento das atividades informais (um dos principais obstáculos à medição), dependem das características das regulações do Estado em relação a estas e do grau de eficácia com que se faz cumprir.8 Portes e Haller, a partir do exposto traçam a seguinte tipologia sobre os paradoxos relativos à medição do setor informal: 1) Estado débil/setor informal generalizado/mensuração; 2) Estado forte/ setor informal/mensuração e; 3) quanto mais crédito tem o aparelho de Estado frente a sociedade civil organizada tanto mais difícil será que os mecanismos de registro permitam determinar a magnitude real da economia informal. Sobre o primeiro e o segundo paradoxos referidos, podemos tomar como exemplos a comparação entre países caracterizados pela presença de Estados fortes e países caracterizados por Estados débeis em relação à fiscalização das atividades informais. Neste sentido, Carbonetto, Hoyle y Tueros (1985:29), explicam: Em muchos países en desarrollo y varias naciones de Europa oriental, se pueden obtener estimaciones confiables de la magnitud del sector informal mediante las encuestas directas. La poca fiscalización y el carácter generalizado de estas actividades hace que los empresarios y los trabajadores informales tengan menos temor a responder a las perguntas que puedan formulárseles sobre sus actividades. En America Latina varias encuestas han producido estimaciones aceptables de la magnitud de la fuerza de trabajo empleadas por el sector informal en varias zonas metropolitanas.9 (...) Cuando la regulación del Estado es muy eficaz y generalizada, como en muchos países industrializados, la situación es distinta. En estos casos, las actividades informales están más ocultas y, como se ha visto, generalmente inseritas en redes sociales más estrechas. Por lo tanto, por mejor organizado que esté el sistema oficial de registro, es más probable que no pueda detectar una proporción significativa de la actividad informal. Sobre o terceiro e último paradoxo relativo às medições do setor informal, é importante ressaltar que, em geral, a economia informal tende a ser menor num contexto caracterizado por uma regulação limitada (a regulação desmedida gera seu oposto) da atividade econômica, aplicada por um aparato de Estado competente e com população 8 Ver: PORTES e HALLER (2004:37). Não devemos nos esquecer - entretanto - que as estimativas sobre o setor informal no campo são quase inexistentes, ao contrário do que ocorre nas regiões metropolitanas. 9 LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 277 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. acostumada ao emprego remunerado ordinário, bem como a existência de meios jurídicos para formular suas demandas e ressarcir-se de danos. Em sociedades, assim caracterizadas, o trabalho informal tende a ser desaprovado não só pelo Estado como também pela sociedade civil (geralmente bem organizada), fato que estimula as habilidades dos trabalhadores informais em ocultar a real dimensão de suas atividades frente às tentativas de mensuração. E, assim, as informações de que dispõem os administradores do Estado sobre o setor informal tendem - não raramente - a alimentar conclusões ilusórias sobre o mesmo.10 NOTAS 1 O modo de produção capitalista deve ser entendido também como abrangendo, em especial, a produção e reprodução de seres humanos (esperança de vida, tamanho da família, taxa de crescimento demográfico, etc.).Ver: OLIVEIRA (1977). 1 Segundo CACCIAMALI (1983:47) é importante ressaltar que “(...) no setor informal a subremuneração da relação capital-trabalho está intimamente ligada a : a) o proprietário/produtor explora sua própria força de trabalho e, as vezes, de alguns ajudantes; b) o trabalho excedente, em geral de pequena monta, tem a finalidade de aumentar a renda, o consumo, do proprietário/produtor; c) os meios de trabalho não tem a finalidade de extrair trabalho excedente alheio para valorizar o dinheiro aplicado, mas, em geral, o próprio sustento e melhoria nas condições de vida. Pode-se afirmar: em primeiro lugar, não é a sub-remuneração que cria ou mantém o setor informal (este depende do espaço produtivo enquanto um todo); em segundo lugar, o setor informal depende também de pessoas que se disponham e/ou não tenham opção, mas que possuam requisitos necessários para ocupá-lo”. 1 CACCIAMALI (1983) lembra que o próprio SOUZA (1979; 1980), critica a si mesmo sobre esta questão em trabalhos anteriores. 1 “La Oficina Internacional del Trabajo (OIT) y el Programa Regional del Empleo para América Latina y el Caribe (PREALC) han clasificado a los trabajadores por cuenta propria, con exclusión de los profesionales y los técnicos, como parte del sector informal”. Ver: PORTES e HALLER (2004:30). 1 Ver: PORTES; HALLER (2004). 1 Ver: FEIGE (1990). 1 Ver: PORTES e HALLER (2004:37). 1 Não devemos nos esquecer - entretanto - que as estimativas sobre o setor informal no campo são quase inexistentes, ao contrário do que ocorre nas regiões metropolitanas. 1 Ver: STARK (1989) apud: PORTES e HALLER (2004:39). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, L. “A Subjetividade do Trabalhador frente à Automação” in NEDER, R. (org.). Automação e Movimento Sindical no Brasil. Editora Hucitec: São Paulo, 1988. AGUIAR, M. do P. A. Expansão capitalista e incorporação de novas áreas de Goiás. USP/ mestrado, 1986. 10 Ver: STARK (1989) apud: PORTES e HALLER (2004:39). LOPES, Edmar Aparecido de Barra. Formas usuais de mediação do sertor informal. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia 278 SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 271-285, Dez. 2008 / Jun. 2009. ALENTEJANO, P. 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Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo apresentar a utilização de imagens de satélite para monitoramento de paisagens, especificamente, oferecer um método bastante simples (interpretação visual), tendo por base o uso de geotecnologias para monitoramento da cobertura vegetal. A área escolhida foi a sub-bacia do Rio Samambaia, inserida no município de Cristalina – GO e este estudo utilizou imagens do satélite Landsat/TM 5 e Landsat 7/ ETM+, referente à órbita 221 / ponto 71, dos anos de 1995 e 2001. O método de verificação de mudanças de uso da terra foi à interpretação visual das imagens. De acordo com os resultados obtidos, pode-se afirmar que independentemente do método, ou seja, pode ser através do método mais simples, como a interpretação visual de imagens de satélites, à utilização do método mais sofisticado, como métodos de realce espectral, por exemplo, o uso de geotecnologias tornou-se um componente indispensável para a automatização dos trabalhos e maximização dos resultados, especialmente no que se refere às pesquisas de cunho geográfico. The images of satellites provide a synoptic and multi - timing vision of extensive areas of the terrestrial surface, being perfectly able to be used in the diverse studies that involve monitoring natural, urban and agricultural areas. In this way, the present work has as objective to present the use of images of satellite to monitor landscapes, specifically, to offer a simple method (visual interpretation), having as base the use of environmental technologies for monitoring the vegetal covering. The chosen area was the subbasin of the River Samambaia, inserted in the Crystalline city - GO and this study used images of the satellite Landsat/TM 5 and Landsat 7/ ETM+, referring to 221 orbit/point 71, of the years of 1995 and 2001. The method of verification of changes of use of the land was to the visual interpretation of the images. In accordance to the gotten results, it can be affirmed that independently of the method, in other words, it can be through the simplest method, as the visual interpretation of satellites images, to the use of the most sophisticated method, as methods of spectral distinction, for example, the use of environmental technologies became an indispensable component for the automation of the works and maximization of the results, especially in the research of geographic matrix. Palavras-chave: Cerrado; Geotecnologia; Landsat. Key-words: Cerrado; Landsat environmental technologies; ∗ Mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Goiás, Brasil(2004). Atuação em Geografia Física professor assistente da Faculdade de Educação e Ciências Humanas de Anicuns, Brasil. JÁCOMO, Simone de Almeida. Utilização de geotecnologias para detecção de mudanças de uso no cerrado. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 286-291, Dez. 2008 / Jun. 2009. 286 Introdução Com o desenvolvimento de tecnologias espaciais, dentre as quais se incluem os satélites orbitais, tornou-se possível “(re) avaliar” a superfície terrestre, através da coleta de diferentes dados e da aquisição de imagens, por meio de sensores remotos. Os dados gerados pelos diversos sensores remotos, sobretudo os orbitais, têm servido como base para o desenvolvimento e realização de projetos associados às atividades humanas, bem como, auxiliado nos diagnósticos ambientais das diversas paisagens mundiais, possibilitando a realização do planejamento sócio-econômico e ambiental sustentável. No que se refere ao monitoramento das paisagens, as imagens de satélites tendem a proporcionar uma visão sinóptica1 e multitemporal2 de extensas áreas da superfície terrestre. Assim, podem ser perfeitamente utilizadas nos diversos estudos que envolvem monitoramento de áreas naturais, urbanas e rurais. Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo apresentar a utilização de imagens de satélite para monitoramento de uso da terra, especificamente, oferecer um método bastante simples (interpretação visual de imagens), tendo por base o uso de geotecnologias para monitoramento da cobertura vegetal, como o Cerrado. O Cerrado caracteriza-se como um complexo vegetacional de estratos herbáceo, arbustivo e arbóreo, exibindo flora e fauna dentre as mais ricas entre os ambientes savânicos do planeta. Este bioma é considerado um hotspot mundial em biodiversidade e o Estado de Goiás, área cuore do Cerrado brasileiro, é a única Unidade da Federação totalmente inserida no domínio deste bioma. Apesar desta posição estratégica, sob o ponto de vista ambiental, verificouse que até os anos 2000, aproximadamente 74% do uso e ocupação das terras em Goiás constituíam-se por áreas agrícolas e apenas 25% do território goiano estava ocupado com cobertura vegetal natural (Galinkin, 2002). Nesse contexto, fica evidente a necessidade de trabalhos que envolvam monitoramento contínuo da vegetação e mudanças de uso da terra e que resultem em ações definitivas para a manutenção desse bioma. Para tal, os dados de sensoriamento remoto têm sido considerados como uma importante fonte de informações acerca da superfície terrestre e apresentam um elevado potencial para o monitoramento sistemático de paisagens. Trabalhos como o Radambrasil, realizado na década de 70, mapearam os recursos naturais e uso da terra, JÁCOMO, Simone de Almeida. Utilização de geotecnologias para detecção de mudanças de uso no cerrado. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 288-291, Dez. 2008 / Jun. 2009. 287 utilizando dados obtidos por radar, na escala de 1:1.000.000. Mantovani e Pereira (1998) avaliaram o grau de antropização do bioma Cerrado entre as décadas de 1980 e 1990, a partir de imagens Landsat. Galinkin (2002) avaliou a situação da vegetação natural de Goiás, face à expansão das atividades agrícolas, a partir do sensor VEGETATION, numa escala de 1:1500000. Machado et al. (2004) apresentaram resultados do primeiro mapeamento em larga escala (áreas desmatadas e áreas de vegetação remanescente) realizado especificamente para o Cerrado brasileiro, utilizando imagens do sensor MODIS. Jácomo, S. A. (2004) apresentou métodos de realce espectral e método de detecção de mudanças para monitoramento sistemático do bioma Cerrado.Nesse sentido, pesquisadores vêm desenvolvendo trabalhos que envolvem o uso de geotecnologias objetivando contribuir de forma efetiva, para preservação do bioma Cerrado. Metodologia A área escolhida para avaliar o objetivo proposto foi a sub-bacia do Rio Samambaia, inserida no município de Cristalina – GO (Figura 1). A escolha desta área se deu, principalmente, pela alta antropização da região, além da disponibilidade de dados, como as imagens de satélite dos anos de 1995 e 2001, imprescindíveis para análise multitemporal da pesquisa. Este estudo utilizou imagens do satélite Landsat/TM 5 e Landsat 7 ETM+, referente à órbita 221 / ponto 71. O quadro 01 apresenta os períodos referentes a este estudo. Na escolha dessas imagens foram adotados os seguintes critérios: (1) disponibilidade de imagens nos períodos de 1995 e 2001 e (2) qualidade visual e espectral das imagens. Quadro 01. Imagens e períodos de estudo. ANOS MESES 1995 JUNHO 2001 JULHO JÁCOMO, Simone de Almeida. Utilização de geotecnologias para detecção de mudanças de uso no cerrado. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 288-291, Dez. 2008 / Jun. 2009. 288 O método de verificação de mudanças de uso da terra foi à interpretação visual das imagens que consiste, basicamente, em identificar os alvos da superfície terrestre nelas representados. Para tal é necessário que o usuário compreenda como os alvos da superfície terrestre refletem, absorvem e transmitem radiação eletromagnética em proporções que variam com o comprimento de onda, de acordo com suas características bio-físico-químicas, bem como funciona o processo de formação e associação de cores das imagens. Resultados A partir da visualização e interpretação das imagens foi possível verificar que a área sofreu mudanças expressivas de uso em apenas seis anos, ou seja, do ano de 1995 ao ano de 2001. Figura 1. Localização da área. JÁCOMO, Simone de Almeida. Utilização de geotecnologias para detecção de mudanças de uso no cerrado. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 288-291, Dez. 2008 / Jun. 2009. 289 No que se refere à supressão da vegetação, observou-se que no ano de 1995 a área possuía mais vegetação ripária do que no ano de 2001; além disso, outras fitofisionomias de Cerrado, como, cerrado stricto sensu, campo limpo e campo sujo, foram desmatados e transformados em outras formas de uso, como, áreas reservadas às culturas, localizadas em pivôs de irrigação e pastagens. Em relação aos recursos hídricos da área, observou-se que grande parte das drenagens foi represada, entre os anos referentes à pesquisa, no intuito de abastecer os pivôs de irrigação. Para se ter uma idéia, no ano de 1995 o número de pivôs de irrigação era de dezesseis, já no ano de 2001, esse número passou para quarenta e um, apenas na área da sub-bacia. Nesse contexto, tendo como base apenas as informações do método de interpretação visual das imagens, em anos distintos, pode-se afirmar que a área, em apenas seis anos, passou por um intenso e extenso processo de antropização e seus recursos naturais sofreram um impacto ambiental negativo bastante expressivo. Considerações finais De acordo com os resultados obtidos, pode-se afirmar que independentemente do método, ou seja, pode ser através do método mais simples, como a interpretação visual de imagens de satélites, à utilização do método mais sofisticado, como métodos de realce espectral, por exemplo, o uso de geotecnologias tornou-se um componente indispensável para a automatização dos trabalhos e maximização dos resultados, especialmente no que se refere às pesquisas de cunho geográfico. Atualmente, não se pode negar a importância e eficácia da tecnologia em trabalhos que envolvam o monitoramento de paisagens, especialmente, quando se trata de áreas que envolvem riscos de preservação, caso do bioma Cerrado. Assim, dentro de um contexto maior de projetos acerca do estudo da dinâmica da paisagem no bioma Cerrado, onde este trabalho está inserido, pode-se considerar que os resultados foram satisfatórios, dentro dos objetivos propostos, demonstrando a alta capacidade dos procedimentos utilizados na detecção e monitoramento das mudanças na cobertura da terra. Por fim, espera-se que a pesquisa possa servir de auxílio aos futuros trabalhos realizados na região do Cerrado, sobretudo aqueles que empregam imagens orbitais em estudos de monitoramento da cobertura vegetal. JÁCOMO, Simone de Almeida. Utilização de geotecnologias para detecção de mudanças de uso no cerrado. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 288-291, Dez. 2008 / Jun. 2009. 290 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ab´Saber, A.N. O domínio dos cerrados: introdução ao conhecimento. Fundação Centro de Formação do Servidor Público, v.3, n.4, 1983. Adámoli, J.; Macêdo, J.; Azevedo, L.G.; Netto, J.M. Caracterização da região dos cerrados. In: Goedert, W.J. Solos dos cerrados: tecnologias e estratégias de manejo. Planaltina: EMBRAPACPAC, 1987. Adams, J. B.; Sabol, D. E.; Kapos, V.; Almeida Filho, R.; Roberts, D. A. R.; Smith, M. O.; Gillespie, A. R. Classification of multispectral images based on fraction of endmembers: application to land-cover change in the Brazilian Amazon. Remote Sensing of Environment, New York, v.52, p.137-154, 1995. Bruzzone, L.; Prieto, D. F. A minimum-cost thresholding techinique for unsupervised change detection. International Journal of Remote Sensing, Londres, v.21, n. 18, p.3539-3544, 2000. Carrilho J. Z. Detecção de Mudanças da Cobertura do terreno em uma Região de Cerrado. 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A HISTÓRIA CONSTRUÍDA DE VIÇOSA: UMA PROPOSTA DE GESTÃO DO ESPAÇO Beatriz Coroa do Couto∗ Edmar Aparecido de Barra e Lopes** Resumo: Abstract: O objetivo geral da pesquisa é discutir é o de definir conceitos como cultura, identidade, memória e percepção espacial, entre outros que porventura se faça necessário, além de analisar e enquadrar o caso particular de Viçosa nas atuais discussões e ações sobre preservação do patrimônio cultural, especificamente o patrimônio histórico edificado. Fornecendo, assim, suporte teórico necessário para a elaboração de um projeto de intervenção urbanística na cidade de Viçosa (Praça Emílio Jardim e no Mercado Municipal). The general objective of the paper is to argue and to define concepts as culture, identity, memory and space perception, among others that it makes necessary by chance, besides analyzing and fitting the particular case of Viçosa in the current quarrels and actions about preservation of the cultural patrimony, specifically the patrimony historic built. Supplying, thus, necessary theoretical support to the elaboration of a project of urban intervention in the city of Viçosa (Square Emilio Jardim and in the Municipal Market). Palavras-chave: Patrimônio histórico edificado; Cidade de Viçosa; Cultura; Identidade; Memória; Percepção espacial. Key-words: Historic patrimony Built; City of Viçosa; Culture; Identity; Memory; Space perception. Apresentação e Justificativa Cada vez mais as cidades tornaram-se objeto de estudo de várias ciências, principalmente a partir da década de 50 quando a população mundial torna-se predominantemente urbana. O crescimento e a dinâmica que caracterizaram a trajetória das cidades se direcionaram muitas vezes sem um planejamento sistematizado que, entre outras perdas e desconsiderações, não levam em conta a presença e a importância de seus testemunhos históricos construídos e sua importância para a leitura e a compreensão da cidade. A forma mais direta e objetiva pela qual a história é apreendida ou percebida pela comunidade ocorre nas relações com o espaço e, considerando a ∗ Especialista em Patrimônio Histórico e Cultural pela UEG e Graduada em Arquitetura pela UFV. ** Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história 292 construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292304, Dez. 2008 / Jun. 2009. dependência que a História tem da Memória, “é a memória que funciona com instrumento biológico-cultural de identidade, conservação, desenvolvimento, que torna tangível o fluxo dos acontecimentos” (MENEZES, 1984). A falta ou a perda da memória para um grupo, em termos de coletividade, se reflete prejudicialmente na formação ou manutenção de sua identidade cultural, assim como na sua estrutura organizacional e comportamental, que, segundo Bosi, “é a relação entre a consciência e o mundo (...) sendo um traço de união entre o que foi e o que será” (BOSI, 1999). Como disse Choay, a conservação não deve ser intransigente, mas deve respeitar a dinâmica dos espaços. Mais importante que preservar os “monumentos” aqui tratados como patrimônio histórico é a preservação de seu significado e de sua função antropológica (CHOAY, 2001). A cidade de Viçosa, como tantas outras cidades do interior do país, repleta de peculiaridades e História, se destaca por suas realidades tão distintas, representadas espacialmente pela ‘cidade dos moradores’ – cuja ocupação foi relativamente espontânea, e pela ‘cidade universitária’ – cuja ocupação foi inteiramente planejada. Fundada entre 1800 e 1805, a partir de um traçado tradicionalmente militarista e religioso, característico da época do Ciclo do Ouro, a partir de uma praça com uma Capela, de Nossa Senhora dos Passos, outros núcleos se estabeleceram e conformaram o que hoje se pode chamar de área central, onde ainda se localizam exemplares arquitetônicos e urbanísticos originais integrados ao cotidiano citadino. Com a fundação da Universidade Federal de Viçosa, durante o mandato presidencial de um ilustre morador da cidade, Arthur Bernardes, a paisagem, a economia e a própria sociedade tomaram rumos mais modernizantes e acelerados. As novas demandas advindas das atividades acadêmicas, a partir da década de 1920, paulatinamente exigiram maior infraestrutura e serviços além dos existentes até então. De acordo com Ribeiro Filho, as primeiras décadas do século XX foram caracterizadas da seguinte forma: “O espaço urbano da cidade, até o final dos anos 20, se caracterizou pela expansão de sua malha urbana; já na década seguinte ele se caracterizou mais pela ocupação e consolidação de ruas, praças, largos e travessas existentes do que pela abertura de novos logradouros.” (RIBEIRO FILHO, 1997) Grosso modo, atualmente o mercado imobiliário atua na cidade sem um planejamento mais efetivo em escalas macro e micro, além de visarem lotes na área central que são, ou foram, ocupados inicialmente por edificações da época da ocupação COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história 293 construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292304, Dez. 2008 / Jun. 2009. e, portanto, qualitativamente mais apropriados para as condições espaciais locais – densidade, tipologia, proporções, conforto ambiental, etc. Essas intervenções descompromissadas com a imagem e a qualidade de vida na área central da cidade, assim com a falta de incentivo à preservação do patrimônio edificado tem prejudicado espaços que se perdem nos processos de leitura e identificação dos usuários ou que perdem em qualidade. Tais espaços tornam-se locais desarmônicos, desordenados, carregados de atividades, ou ainda, locais marginalizados, que acolheram ocupações e atividades informais e que perderam prestígio junto à sociedade. Ambos os casos se enquadram como resultado da apropriação especulativa desorientada e fragmentada do espaço, seja pela sua valorização ou desvalorização. Neste sentido, a presente pesquisa intitulada “A História Construída de Viçosa – Uma Proposta de Gestão do Espaço” propõe um Projeto de Intervenção Arquitetônica, Urbana e de Gestão do Espaço em uma área central da cidade de Viçosa, Minas Gerais visando solucionar problemas relacionados aos fluxos de carros e pedestres e à imagem do espaço, sem descuidar da relação deste com suas memórias, inclusive aquelas historicamente silenciadas. O objeto espacial de que trata este projeto refere-se especificamente à Praça Emílio Jardim, provavelmente criada com a chegada da Linha Férrea na década de 1910, e que se caracteriza atualmente por edificações de aparência decadente e trânsito confuso, porém de grande potencial imagético e funcional dentro da malha urbana por apresentar o encontro de bairros, grandes visadas, área verde, construções e atividades tradicionais e um monumento tombado municipalmente, a Balaustrada, que acompanha a Linha Férrea. Objetivos Gerais Em conjunto com o projeto de intervenção urbana e arquitetônica desenvolvido por ocasião da graduação em Arquitetura e Urbanismo1 (ver anexos I e II) o presente projeto tem por objetivo geral propor uma gestão do espaço administrativamente viável para solucionar em curto prazo problemas conflituosos de usos, leitura e trânsito em uma área central da cidade de Viçosa, Minas Gerais, integradamente à melhoria da qualidade espacial, à preservação do patrimônio construído e à valorização das memórias locais. COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história 294 construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292304, Dez. 2008 / Jun. 2009. Paralelamente, pretende-se integrar e utilizar pesquisas e experiências já realizadas, inclusive por universidades, sobre melhorias da qualidade de vida urbana, preservação do patrimônio e educação patrimonial (ver anexo V). Objetivos Específicos 1. Propor meios de melhoria do trânsito e da percepção que caracterizam a área em questão como um “nó”, o que tem acarretado indesejáveis conseqüências urbanísticas, comerciais, sociais e ambientais assim como a desvalorização do espaço, enquanto praça, e do patrimônio construído, enquanto exemplar e testemunho histórico remanescente. 2. Destacar a necessidade de se recriar uma percepção e um fluxo de memórias sobre a cidade, especialmente daquelas silenciadas e esquecidas em detrimento de uma determinada memória oficial2. Dessa forma, a intervenção urbana proposta como solução para o trânsito caótico da área orienta-se enquanto forma de reinvenção do lugar a partir das relações entre o usuário e a cidade e entre a memória e o patrimônio. 3. Propor etapas e programas de reativação da Linha Férrea não só enquanto alternativa de transporte urbano, mas também enquanto espaço potencial de rememoração permanente, para usufruto direto da comunidade, em conjunto com instituições afins (ver anexo III), com atividades culturais e sociais tais como exposições, aulas, passeios temáticos e prestação de serviços públicos. O projeto prevê ainda atividades culturais e econômicas nas áreas afetadas pela proposta de intervenção que possam contribuir para a melhoria da qualidade de vida bem como para a sensibilização dos usuários envolvidos no processo de uso, construção e preservação das memórias da cidade e, conseqüentemente, de preservação do espaço. 4. Mapear e identificar as áreas consideradas na intervenção urbana com vistas a evidenciar atividades potenciais afins com as já existentes a partir de demandas sócio-econômicas detectadas por meio de pesquisa quantitativa. 5. Analisar e propor a relocação de algumas atividades econômicas, tais como as de carroceiros, taxistas e comerciantes, instalados precária e segregadamente na área em questão, visando não só a valorização destas atividades, mas principalmente COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história 295 construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292304, Dez. 2008 / Jun. 2009. à sua inserção de forma contextualizada com as realidades e necessidades da cidade, sempre visando à qualidade do espaço urbano e a valorização do patrimônio construído. 6. Propor políticas públicas de incentivo à preservação e à disseminação da Educação Patrimonial com envolvimento da rede educacional, eventos, oficinas, cursos, palestras, promoção e produção de material didático. Metodologia 1. Formação de grupos de discussão para cada categoria de análise e etapa envolvida. 2. Problematização da bibliografia sobre o assunto. 3. Mapeamento da região considerada para levantamento de dados. 4. Realização de pesquisas quantitativas visando detalhar um estudo de opinião pública em relação às etapas e intenções da proposta de intervenção urbana e de gestão do espaço. 5. Realização de pesquisas qualitativas com o objetivo de captar questões importantes para o projeto que porventura não se evidenciaram nas pesquisas quantitativas. 6. Planejamento e execução da intervenção urbana e arquitetônica e de projetos de Educação Patrimonial. 7. Divulgação informativa da proposta de intervenção e de gestão do espaço, incentivo à participação da comunidade e implementação dos projetos de Educação Patrimonial. Programa de Atividades 1. Mês 1 e 2 – problematização da bibliografia e direcionamento dos grupos de discussão; 2. Mês 3, 4 e 5 – levantamento de dados e realização de pesquisa quantitativa e qualitativa; COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história 296 construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292304, Dez. 2008 / Jun. 2009. 3. Mês 6, 7 e 8 – elaboração de projeto para implantação do projeto “A História Construída de Viçosa – Uma Gestão Urbana” (intervenção arquitetônica, urbana, gestão do espaço e Educação Patrimonial); 4. Mês 9 e 10 – discussão do projeto proposto com setores representativos da sociedade e articulação de financiamentos e parcerias; 5. Mês 10 e 11 – reelaboração do projeto a partir dos dados da pesquisa de campo e das discussões; 6. Mês 12 a 18 – processo de intervenção urbana e implementação das políticas de gestão do espaço; campanha de divulgação do projeto, informação da comunidade e dos projetos de Educação Patrimonial. Recursos Orçamentários A presente proposta de gestão prevê apoio de programas e leis de incentivo à cultura, bem como parcerias com instituições de pesquisa e educação e saúde, administração pública e particular com interesses afins ao projeto. O envolvimento de vários segmentos da comunidade além de reduzir o custo da realização do projeto potencializa o retorno que a comunidade como um todo recebe e incentiva iniciativas. ORÇAMENTO Descrição 1. Equipe de trabalho 1 gerente (contrato, parcerias) 5 professores (contratos, parcerias) 5 estagiários (programas, estágios, bolsas) 1 servente limpeza (parcerias, programas) 1 técnico informática (parcerias, programas) 2.Material 2.1. Permanente (parcerias) Salas Mesas Cadeiras Armários computadores Câmeras Filmadoras 2.2. De consumo (parcerias, programas, licitação) material de escritório Valor 20.000,00 20.000,00 10,00 0,00 0,00 0,00 10.000,00 COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história 297 construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292304, Dez. 2008 / Jun. 2009. material de copa material de limpeza 3. Capacitação e Cursos treinamento das equipes (contratos, parcerias) programa de Educação Patrimonial (programas) cursos-oficinas (parcerias, programas) 4. Licitação 4.1. Execução de obra civil 4.2. Fornecimento de equipamentos urbanos 4.3. Recuperação da Linha Férrea 5. Divulgação Rádio (parcerias) Tv (parcerias) Jornal (parcerias, contratos) Palestras (parcerias) Material 7. Desocupações3 Provisória/Definitivas Definitiva TOTAL 20.000,00 400.000,00 10.000,00 Abonos/Concessões 10.000,00 500.000,00 Avaliação e Controle O projeto prevê a contratação de monitores e estagiários de cursos como Engenharia Civil, Contabilidade, Administração, História, Arquitetura e Urbanismo, etc., das universidades locais para a formação de equipes multidisciplinares com o acompanhamento de professores dos respectivos cursos e de um gestor/coordenador para avaliação e controle de cada uma das etapas do projeto. As equipes se dividirão em proponentes e executoras de acordo com suas áreas de atuação e se revezarão para cruzamento de informações em busca de ampliação das dimensões de avaliação e controle das atividades. NOTAS 1 O Trabalha Final de Graduação mencionado dividiu-se em dois semestres acadêmicos, sendo o primeiro relativo à pesquisa e discussão teórica (anexo I) que deu suporte à segunda parte do trabalho, o projeto de intervenção urbana e arquitetônica de fato (anexo II). O projeto de intervenção, em si, apresenta a cidade de Viçosa e a praça, objeto da intervenção, mostrando sua conformação atual e a proposta. 2 Pollak fala de um trabalho de enquadramento da memória a partir dos dados fornecidos pela história, os “discursos e objetos materiais que conceitualmente embasam a memória e história oficiais (POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, São Paulo: Associação de Pesquisa e Documentação Histórica, 1989). COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história 298 construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292304, Dez. 2008 / Jun. 2009. 3 Tal procedimento baseia-se nos instrumentos urbanísticos previstos no Plano Diretor e definidos no Estatuto da Cidade (ver anexos XI e XII), visando à possibilidade de negociações entre proprietários e Poder Público a fim de salvaguardar espaços urbanos e edificações de valor histórico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAMS, Betina. Preservação Urbana: Gestão e Resgate de uma História. Florianópolis: UFSC, 2002. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade – Lembrança de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2001. Cartilha do Estatuto da Cidade. Realização: CREA-MG, IAB-MG, SENGE-MG (Sindicato de Engenheiros no Estado de Minas Gerais), AMM (Associação Mineira de Municípios). HORTA, Maria de Lourdes P., GRUNBERG, Elvina e MONTEIRO, Adriane Q. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN, Museu Imperial, 1999. MENEZES, Ulpiano Bezerra de. Ideologia Cultural e Arqueologia. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº. 20, Rio de Janeiro, 1984, p. 33-35. Plano Diretor de Viçosa. Realização: Prefeitura Municipal de Viçosa e Universidade federal de Viçosa. RIBEIRO FILHO, Geraldo B. A formação do espaço construído: cidade e legislação urbanística em Viçosa, MG. Rio de Janeiro: FAU/UFRJ, 1997. ANEXOS COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 295304, Dez. 2008 / Jun. 2009. 299 300 COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292-304, Dez. 2008 / Jun. 2009. 301 COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292-304, Dez. 2008 / Jun. 2009. 302 COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292-304, Dez. 2008 / Jun. 2009. 303 COUTO, Beatriz Coroa do. e LOPES, Edmar Aparecido de Barra. A história construída de Viçosa: uma proposta de gestão do espaço. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 292-304, Dez. 2008 / Jun. 2009. RESENHA Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 01, 306-311, Dez. 2008 / Jun. 2009. CAMPOS NEGROS: AS MÚLTIPLAS FACES DA RESISTÊNCIA QUILOMBOLA NO UNIVERSO OITOCENTISTA DO RIO DE JANEIRO Leonara Lacerda Delfino∗ Flávio dos Santos Gomes, professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um dos maiores representantes da releitura da experiência negra no Brasil, iniciada nos anos 80, juntamente com Maria Helena Machado, Silvia Lara, Sidney Chalhoub, Robert Slenes e João José Reis, este, com o qual teve importante parceria na organização de “Liberdade por um fio... 1”, conjunto de ensaios considerado divisor de águas na história social da escravidão, justamente por ter resgatado a complexa experiência escrava na busca da liberdade, pondo em destaque os sentidos sociais, culturais, políticos e psicológicos reinventados nos mundos dos quilombos e do próprio escravismo. Mestre e doutor pela Unicamp, sua obra “História de Quilombolas...”, objeto de análise desta resenha, é uma revisão ampliada e atualizada de sua dissertação de mestrado apresentada em 1992 na mesma instituição. Através de uma pesquisa detalhada e abrangente o autor consegue envolver o leitor numa atmosfera de tensão e medo vivido no complexo e multifacetado universo da experiência cotidiana da Vale do Paraíba Fluminense do século XIX. Reconstituindo as contingentes ações dos agentes históricos analisados, o autor tem a perspicácia de levar o leitor a perceber o sentimento de incerteza desses sujeitos frente suas situações inusitadas e imprevistas em suas árduas lutas cotidianas pela sobrevivência e conquista de liberdade. Esta obra trata, portanto, de histórias que, reconstruídas em diversos estudos de caso, recolocam os sujeitos em seus devidos espaços de atuação na dinâmica histórica. Ao fazer isso, ou seja, dar prioridade as lutas vividas por homens e mulheres no “chão” da arena cotidiana o autor supera as já tão criticadas dicotomias rígidas entre ∗ Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Vale do Sapucaí (2004). Tem experiência na área de História, com ênfase em História DELFINO, Leonara Lacerda. Campos negros: as múltiplas faces da resistência quilombola no universo oitocentista do Rio de Janeiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 308-311, Dez. 2008 / Jun. 2009. 306 rebeldia e acomodações personificados nas figuras estigmatizadas do tão obstinado “pai João”, ou o tão heroificado, ás vezes inalcançável Zumbi. Embora ele tenha elegido o aquilombamento como objeto principal de sua investigação, não deixou de vislumbrar as outras estratégias de liberdade perseguidas por aqueles mantidos no cativeiro. Nesse sentido, a história dos quilombos nos remete necessariamente às histórias vividas nas senzalas. Ao longo da obra é possível perceber como os quilombolas forjaram seus mundos e o daqueles que no cativeiro foram mantidos e como também foram por esses modificados, numa intensa e dinâmica interação social, onde o quilombo muitas vezes se fez como extensão das lutas engendradas na própria senzala. Nesse sentido, os significados de escravidão e liberdade eram vivenciados e reelaborados dentro e fora do cativeiro marcando o redesenhamento das fronteiras de políticas do poder e domínio senhorial. Dividido em três capítulos, o livro tem como principal objetivo reconstruir a profunda e complexa rede de sociabilidades imbricadas por diversos arranjos, alianças, tensões e enfrentamentos entre quilombos, senzalas e outros setores sociais que compunham a paisagem do escravismo do Vale do Paraíba do século XIX. Com isso o autor esfacela o solidificado paradigma do isolamento que esteve durante muito tempo sedimentado na historiografia brasileira tanto pela perspectiva culturalista, que via no quilombo um fenômeno de contra-aculturação que tinha por objetivo reinstaurar a África no Brasil, como na perspectiva materialista, que percebia na formação de quilombos, uma espécie de experiência socialista deformada, portanto incapaz de “abalar as estruturas” por ser uma organização onde não havia consciência de classe de seus “quase” agentes transformadores do contexto histórico. Seus argumentos de críticas propostos foram elaborados, sobretudo, em cima do que ele denominou como “campo negro”, categoria de análise que ele utiliza para explicar a profunda simbiose entre o quilombo e as múltiplas instâncias da sociedade, ressaltando a inexistência do total isolamento dos quilombos, defendida por seus antecessores. Mergulhado num mundo cheio de incongruências e contradições, o campo negro do Iguaçu, localizado no Recôncavo de Guanabara, entre os rios Iguaçu e Sarapuí, região geograficamente estratégica por ser, além de pantanosa, o que dificultava seu acesso, era também rica em mangue, madeira tão cobiçada no mercado da Corte. O campo negro marcava um entrecruzamento tenso, onde muitas forças de diversos grupos como quilombolas, assenzalados (de diversas origens étnicas), libertos, DELFINO, Leonara Lacerda. Campos negros: as múltiplas faces da resistência quilombola no universo oitocentista do Rio de Janeiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 308-311, Dez. 2008 / Jun. 2009. 307 pobres livres, taberneiros e até mesmo autoridades e fazendeiros locais atuavam num jogo de confronto e trégua armada desenhando um paradoxo mosaico social com aspectos multifacetados em torno de solidariedades, conflitos, trocas mercantis e simbólicas. Para melhor entendimento deste conceito, o autor faz uma minuciosa análise das conexões mercantis entre cativos, quilombolas e taberneiros daquela região. Os cativos da ordem de São Bento instaurado na região tinham o antigo costume de possuir roças e até mesmo gado, o que garantia uma via de fornecimento de gêneros aos quilombolas. Estes, por sua vez, detinham o controle da extração do mangue que forneciam a um preço razoavelmente atraente aos taberneiros, que em troca, além de abastecê-los, os emprestavam seus estabelecimentos (alguns pessoalmente gerenciavam) para festas e encontros noturnos, estabelecendo um local de forte influxo cultural, negócios clandestinos, circulação de informações e articulação e organização de motins e insurreições. Ao longo de sua análise o leitor percebe que a não repressão direta dos quilombos estava intimamente associado à conivência dos próprios fazendeiros locais que, por um lado, temiam a represália de seus membros, com o súbito ataque, por exemplo, às suas propriedades, e por outro, tinham, alguns deles, interesses em manter aquelas redes econômicas entre taberneiros e quilombolas. “O que justificaria a conivência e a tolerância de São Bento, com a presença de quilombos no interior de suas próprias terras”? Indaga o autor. Seriam comparsas no comércio do mangue, ou seriam os quilombolas os próprios fornecedores da lenha para o funcionamento de suas fábricas de tijolos? Com hipóteses bem trabalhadas, o autor nos leva a raciocinar que não era tão simples para a elite dominante da época, como na referência do próprio ministro da justiça Gama Cerqueira, reprimir o que ele chamou de “hidra de Lerna do Iguaçu” em alusão ao indestrutível monstro de várias cabeças da mitologia grega. Para muito além dos interesses mercantis, o campo negro era movido por alianças, interesses recíprocos, práticas e permutas simbólicas compartilhadas difíceis de serem rompidas ou destruídas. No segundo capítulo, Flávio Gomes aborda como os planos de uma insurreição quilombola em Vassouras, que foram articulados tanto nas senzalas, quanto nas cozinhas da casa-grande, amedrontou a elite branca de todo sudeste, alastrando pelos quatro cantos do império uma grande “onda negra” de tensão e medo. Marcado DELFINO, Leonara Lacerda. Campos negros: as múltiplas faces da resistência quilombola no universo oitocentista do Rio de Janeiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 308-311, Dez. 2008 / Jun. 2009. 308 por uma efetiva presença conjunta de crioulos e africanos, o levante contrapõe o imaginado estado de guerra permanente entre os dois grupos tão afirmado pela tradicional historiografia. Comandado pelo africano ferreiro Manuel Congo, às vezes reverenciado como “pai Manoel”, pelos seus companheiros, referência que levou o autor desenvolver uma minuciosa análise antropológica em torno do poder que envolvia figura do ofício de ferreiro, mais uma reinvenção simbólica da diáspora negra, que exerceu profundos significados na organização do levante, o autor mostra como valores trazidos do outro lado do Atlântico foram reinventados e decisivos para significação das novas experiências e desafios aqui vividos, exemplo claro disso foi a releitura feita pelos escravos do levante da figura do ferreiro. Buscando raízes mais longínquas o autor contasta que a figura do ferreiro representava o cerne do imaginário simbólico das cosmologias dos reinos do Congo e Ndongo, que o percebia como princípio fundador do poder em seus reinos, simbolizando, portanto o poder essencial na agricultura e na força guerreira, por deter o conhecimento da fabricação armas e ferramentas. Ao fazer este grande giro, o autor reconhece no universo simbólico, fundamentos de organização e liderança na articulação do levante. Promovida no dia cinco de novembro de 1838, na fazenda do capitão-mor Manuel Francisco Xavier, a fuga coletiva, com intenções de insurreição quilombola, teve uma organização planejada e complexa que envolveu desde escravos do eito até cativos da mais alta confiança da casa grande como feitores e mucamas. Contando com a participação de 500 escravos aproximadamente, a alucinante fuga, promovida na madrugada daquele dia 5 instaurou o pânico e o terror nas elites, não só da Corte, mas de todo império. Periódicos do sudeste noticiavam compulsivamente o alarde e ameaça de um novo Haiti na Américas. O terror e o pânico alastrado foram tanto que o fazendeiro nem esperou a mobilização das forças locais, contando direto com as forças imperiais, ao endereçar uma carta apelativa ao chefe da Guarda Nacional Francisco Peixoto de Lacerda, o futuro barão de Pati do Alferes, o conhecido fazendeiro de Vassouras que deixou o famoso opúsculo de como administrar uma fazenda ao seu filho. A mobilização das tropas foi rápida, nem os próprios escravos imaginavam tão rápida repercussão e resposta das forças reescravizadoras. Contando com os trâmites comuns da época que rezava que primeiro teria que se contratar um capitão do mato, DELFINO, Leonara Lacerda. Campos negros: as múltiplas faces da resistência quilombola no universo oitocentista do Rio de Janeiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 308-311, Dez. 2008 / Jun. 2009. 309 denunciar ao delegado local e só depois, se fosse preciso, mobilizar a guarda nacional, os escravos foram pegos de surpresa. O cerco foi feito poucos dias depois. Houve um intenso combate que resultou em diversas mortes e inúmeros feridos de ambos os lados. Mesmo com vantagem militar, a força policial só conseguiu capturar, no primeiro ataque 22 escravos. No dia seguinte, uma pequena escolta policial voltou à floresta para resgatar os corpos dos soldados feridos e rastrear os vestígios dos negros, ainda foragidos, em sua grande maioria. Ao vasculharem as matas encontraram dois negros feridos e capturaram Manuel Congo e Mariana Crioula, rei e rainha do futuro quilombo. Nos dias seguintes, outros 29 foram capturados enquanto 12 cativos buscaram o caminho da negociação, optando pelo apadrinhamento. Resultado: foram abertos dois processos crimes, um por homicídio e outro por crime de insurreição e somente Manuel foi condenado à forca. No crime de insurreição mais sete cativos foram condenados à punição de 650 açoites em praça pública, punição, com efeito, de espetáculo público, que tinha seus objetivos claros de “servir de lição” aos outros amedrontando todos aqueles que compartilhavam da mesma condição dos condenados. Interessante, questiona o autor, foi o total silêncio, nos dois processos sobre Epifânio Moçambique, pertencente a outra senhor, que também compartilhou a liderança com Manuel nos planos de insurreição. Para o autor havia uma intenção clara nesse silêncio de punir somente os escravos do capitão-mor, silenciando a participação de escravos de outras propriedades, ele receberia uma espécie de punição moral pelos vizinhos fazendeiros da redondeza que o condenava de desgoverno e má administração em sua fazenda. Na mentalidade senhorial da época era comum pensar que a desobediência do escravo se devia diretamente à frouxidão do senhor, tanto é que Lacerda Werneck irá acusá-lo de frouxidão moral perante os escravos e como responsável direto pelo levante em sua fazenda. De fato não era segredo nenhum perante os outros fazendeiros de Vassouras que o capitão já havia, há tempos, sendo testado pelos os que eles entendiam como “abusos” dos escravos. Sua fazenda vivia num estado de descontrole latente o que se verificava na violenta rotina de confrontos, castigos e até mesmo assassinatos e mortes freqüentes e mesmo assim o fazendeiro fazia “vista grossa” para abafar. Motivos pelos quais o condenaram a uma espécie de punição moral na freguesia, o que lhe trouxe sérias conseqüências para sua vida pessoal, levando a falecer dois anos depois do ocorrido. DELFINO, Leonara Lacerda. Campos negros: as múltiplas faces da resistência quilombola no universo oitocentista do Rio de Janeiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES – GO. VOL. 01, Nº 01, 308-311, Dez. 2008 / Jun. 2009. 310 Já no último capítulo, o autor reúne histórias das últimas décadas da escravidão, mostrando como a crise de legitimidade do escravismo potencializou as conexões entre quilombo e senzala na articulação do processo de emancipação escravista. Nesta última análise, o autor demonstra como os cativos percebiam e procuravam tirar proveito dos conflitos entre os setores público e privado presentes nos debates parlamentares para emancipação. Dessa forma o autor argumenta que “as lutas dos escravos, fossem quais fossem suas formas, representavam processos contínuos de transformações históricas das relações escravistas, [sendo assim,] não se pode buscar nesses protestos significados inexoráveis de projetos teleológicos para destruir de uma só vez a escravidão” (2006, p. 280). Numa densa investigação de fôlego o autor reconstitui muitas trajetórias anônimas como as de Abraão, Damásio, Mateus Rebolo, Pedro, Inácio, Manuel Congo e sua rainha companheira Mariana Crioula, dentre muitas histórias, onde é possível perceber como esses escravos, seja na condição de cativo, quilombola ou foragido engendraram espaços de autonomia, reinventando suas próprias vidas, redefinindo limites e os rumos vivenciados no mundo da escravidão. Sendo assim, é possível retomar a metáfora que Gama Cerqueira utilizou para descrever os insistentes quilombos de Iguaçu, ao referir-se ao monstro mitológico da hidra, só que por outra ótica, assim como Hércules tentou em inúmeras expedições destruir o monstro que tinha para cada cabeça decepada duas novas no lugar, as muitas hidras do mundo da escravidão se multiplicaram em combates sem fim, que não terminou definitivamente com a emancipação oficial. Sem anacronismos, o autor chama atenção que a história dos quilombos se faz também como história da pós-emancipação. Sendo, segundo ele, impossível entender os atuais movimentos sociais de disputas de terras ou escrever uma história agrária do século XX se não voltarmos para os séculos XVIII e XIX resgatando experiências da colonização e do trabalho compulsório na formação do campesinato livre brasileiro. NOTA 1 GOMES Flávio dos Santos Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: cia. das letras, 2006. Normas para publicaçção Editor Responsável Edmar Aparecido de Barra e Lopes [email protected] 1 – Os trabalhos enviados para publicação deverão ser inéditos, não sendo permitida sua apresentação simultânea em outro periódico. De preferência redigidos em português, a REVISTA publicar eventualmente textos em língua estrangeira (inglês, francês, espanhol). 2 – Os originais serão submetidos apreciação do Conselho Editorial, após prévia avaliação do Conselho Consultivo, o qual poder aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões para alterações. Os nomes dos relatores permanecerão em sigilo, omitindo-se também os nomes dos autores perante os relatores. 3 – Os artigos e comentários críticos devem ser apresentados com original e cópia e devem conter entre 10 (dez) e 18 (dezoito) laudas e 70 (setenta) toques de 30 (trinta) linhas. As resenhas devem conter 05 (cinco), os resumos de TCC 03 (três) e a entrevistas até 15 (quinze) laudas. 4 – Os originais devem ser encaminhados através do email: [email protected] (fonte Times New Roman, tamanho 12, entrelinha 1,5). 5 – Cada artigo deve vir acompanhado de seu título e resumo em português e inglês (abstract), com aproximadamente 80 palavras e título em inglês; e de, no máximo cinco palavras-chave em português e inglês. 6 – No cabeçalho do original serão indicados o título (e subtítulo se houver) e o nome do(s) autores, com indicação, em nota de rodapé, dos títulos universitários ou cargos que indiquem sua autoridade em relação ao assunto do artigo. 7 – As notas do rodapé, quando existirem, deverão ser de natureza substantiva, e indicadas por algarismos arábicos em ordem crescente. As menções a autores, no decorrer do texto, devem subordinar-se ao esquema (Sobrenome do autor, data) ou (Sobrenome do autor, data, página). Ex.: (Adorno, 1968) ou o ano serão identificados por uma letra depois da data. Ex.: (Parsons, 1967ª), (Parsons, 1964b). 8 – A bibliografia (ou referências bibliográficas) ser apresentada no final do trabalho, listada em ordem alfabética, obedecendo aos seguintes esquemas: a) No caso de livro: SOBRENOME, nome. Título sublinhado. Local de publicação, Editora, data. Ex.: GIDDENS, Anthony. Novas regras do método sociológico. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação. b) No caso de coletânea: SOBRENOME, Nome. Título não sublinhado. In: SOBRENOME, Nome, org. Título do livro sublinhado. Local de publicação, editora, data, p. ii-ii. Ex.: FICHTNER, N. A escola como instituição de maltrato infância. In: KRINSKY, S., org. A criança maltratada. São Paulo, Almeida, 1985. p. 87-93. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação. c) No caso de artigo: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do Periódico Sublinhado, local de publicação, número do periódico (número do fascículo): página inicial-página final. Mês(es) e ano de publicação. Ex.: CLARK, D. A. Factors influencing the retrieval and control of negative congnotions. Behavior and Therapy, Oxford, 24(2): 151-9. 1986. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação. d) No caso de tese acadêmica: SOBRENOME, Nome. Título da tese sublinhado. Local, data, número de páginas, dissertação (Mestrado) ou Tese (Doutorado). Instituição em que foi defendida. (Faculdade e Universidade). Ex.: HIRANO, Sedi. Pré-capitalismo e capitalismo: a formação do Brasil Colonial. São Paulo, 1986, 403 p. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação. GUANICUNS III 2006 24-09-06.pmd 294 24/9/2006, 20:20 9 – Uma vez publicados os artigos remetidos e aprovados pelo Conselho Consultivo e pelo Conselho Editorial, A REVISTA, se reserva todos os direitos autorais, inclusive os de tradução, permitindo, entretanto, a sua posterior reprodução com transcrição e com devida citação da fonte. 10 – Os conceitos emitidos nos trabalhos serão de responsabilidades exclusiva dos autores, não refletindo obrigatoriamente a opinião do Conselho Consultivo e do Conselho Editorial. 11 – A REVISTA de caráter interdisciplinar e pretende se consolidar como um instrumento de reflexão crítica, contribuindo para dar visibilidade produção técnicocientífica do corpo docente e discente da instituição. 12 – A REVISTA aceita colaborações, sugestões e críticas, que podem ser encaminhadas ao Editor, através do e-mail supracitado. 13 – Originais não aproveitados serão devolvidos, mas fica resguardado o direito do autor(a) em divulgá-los em outros espaços editoriais. Naturalmente toda a responsabilidade pelos artigos a seus respectivos autores. Endereço: Avenida Bandeirantes, n. 1140, Setor Leste, CEP: 76.170-000/Caixa Postal: 07 Dúvidas:Tel/Fax: 62-81259000 E-mail: [email protected] Solicita-se permuta/Exchange desired.