xXI 83 - Morashá

Transcrição

xXI 83 - Morashá
ANO
xXI
edição
83
ABRIL
2014
ANO XXI - Abril 2014 - nº83
CAPA
FRAGMENTO ESTILIZADO
da HAGADÁ de Darmstadt
final do século 15, alemanha
Carta ao leitor
Pessach celebra o êxodo dos Filhos de Israel do Egito,
início do processo que levou à constituição do Povo Judeu
como nação. Isso ocorreu 50 dias após a saída do Egito,
quando D’us Se revelou no Monte Sinai – um evento
singular lembrado e celebrado na festa de Shavuot.
Essas duas festas marcam eventos históricos
extraordinários: as maravilhas e os milagres realizados
por D’us no Egito, a abertura do Mar dos Juncos e, acima
de tudo, a Revelação Divina perante milhões de pessoas.
A Torá relata tais eventos e ordena sua transmissão
oral, de geração em geração, pois os assuntos de
importância fundamental para um povo não podem ser
relegados apenas aos livros, nem mesmo aos sagrados.
Uma nação milenar tem a obrigação de celebrar seus
grandes triunfos e lembrar suas maiores tragédias.
Caso contrário, gerações futuras podem vir a questionar a
veracidade ou a relevância de tais eventos.
Quase todos os meses o calendário judaico inclui
datas em que celebramos festas ou lembramos eventos
históricos. Os milagres de Chanucá e Purim, por exemplo,
ocorreram há milênios, mas são celebrados ano após ano.
De modo similar, o Templo de Jerusalém foi destruído
dois mil anos atrás, mas ainda lamentamos a sua queda
como se a tivéssemos presenciado.
Quanto mais importante o evento, mais empenho
exige em sua correta transmissão para que nunca seja
esquecido. Os mais importantes, na história judaica,
foram o Êxodo e a Revelação Divina no Sinai. Marcaram
o nascimento da Nação Judaica e são de tamanha
importância que a Torá ordena que sejam lembrados não
apenas em Pessach e Shavuot, mas em todos os dias do
ano – manhã e noite, porque essa é a forma mais eficaz e
confiável de preservar a memória de eventos passados.
A Torá insiste que o judaísmo seja transmitido de
geração em geração. A geração de judeus liderada
por Moshé, que presenciou os milagres no Egito e a
Revelação Divina no Sinai, relatou tais eventos a seus
filhos. Estes, por sua vez, transmitiram os relatos de
seus pais, que constavam na Torá, a seus filhos. Assim se
iniciou um processo de transmissão que ocorre até hoje.
Portanto, não é apenas a Torá que preserva o judaísmo.
É o próprio Povo Judeu.
A responsabilidade de preservar e fortalecer o judaísmo,
ao difundi-lo e transmiti-lo às futuras gerações, não recai
apenas sobre rabinos, professores e líderes comunitários.
É uma responsabilidade compartilhada por todos nós.
O Povo Judeu se originou de uma família – os filhos
de Jacob, filho de Yitzhak, filho de Avraham. Passados
mais de três mil anos, ainda somos uma grande família,
constituída por milhões de pessoas que vivem em todos
os continentes habitáveis do planeta.
A responsabilidade de preservar e fortalecer o
judaísmo vale especialmente para os judeus da Diáspora,
cujo judaísmo é ameaçado pelo antissemitismo e
pela assimilação. Há 21 anos, a revista Morashá tem
difundido o judaísmo no Brasil e em outros países
de língua portuguesa.
Esta edição do Morashá, que, além do suplemento
para o Seder, aborda assuntos relacionados a Pessach
e Shavuot, entre outros, traz um novo design e uma
nova diagramação. Esperamos que nossos leitores
apreciem o novo design desta publicação, que almeja
servir como um elo entre as gerações passadas, a presente
e as futuras do Povo Judeu.
PESSACH CASHER V’SAMEACH!
TANACH
As Três Heroínas de Pessach
O Seder de Pessach é o mais comemorado dos rituais judaicos.
A Hagadá lida nessa cerimônia relata o nascimento do Povo
de Israel: a escravidão no Egito, o decreto de genocídio
contra os recém-nascidos judeus de sexo masculino,
as pragas e os milagres. A libertação de nosso povo, que é
o tema central da festa de Pessach, ocorreu graças aos
heroísmo e coragem de três mulheres.
A
história que a Hagadá transmite é relatada
pelo segundo livro da Torá, Êxodo. O relato
é bastante famoso: ao longo dos séculos,
serviu como fonte de inspiração para
milhões de pessoas, judeus e não judeus.
A história da escravidão e libertação do Povo Judeu toca
a alma e gera grandes emoções – fascina e inspira. É uma
lição sobre sofrimento e esperança, desafios e triunfos,
milagres e maravilhas, heróis e vilões.
Seus protagonistas são famosos: Moshé Rabenu –
o maior profeta e líder judeu de todos os tempos –
e seu irmão e companheiro, Aharon – o primeiro
Cohen Gadol, Sumo Sacerdote e pai de todos os Cohanim.
Há na história muitos heróis anônimos: líderes judeus
que sofreram para proteger e preservar o Povo de Israel
no Egito.
Seus antagonistas são também lendários. O maior deles é
o próprio rei do Egito, o Faraó. Mas ele não age sozinho.
Conta com poderosos feiticeiros e astrólogos e com
conselheiros que o auxiliam na execução de seus planos
malévolos: a escravidão dos judeus e, posteriormente, o
extermínio dos meninos e a assimilação das meninas.
O decreto de atirar os recém-nascidos judeus no
Nilo se deve a uma previsão feita por esses astrólogos.
Eles relataram a Faráo que nasceria um menino que
seria o libertador do Povo Judeu, mas que viria a falecer
“por meio da água”.
Isso, de fato, ocorreu: a porção de Chukat, no quarto
livro da Torá, Bamidbar - Números, relata o famoso
incidente que selou a decisão do Eterno de que Moshé
não entraria na Terra de Israel. A Torá conta que, com
o falecimento de Miriam, D’us fez com que a Fonte
de Miriam desaparecesse para que os Filhos de Israel
percebessem que a milagrosa fonte da qual fluía água
em abundância, e que os acompanhara, até então, em sua
longa caminhada pelo deserto, havia sido provida por
D’us, pelo mérito de Miriam.
Ao chegarem a Kadesh, no deserto de Zin, onde
não há água, os Filhos de Israel, desesperados,
clamam a Moshé. D’us então lhe ordena: “Toma o
cajado e reúne a congregação, tu e Aaron, teu irmão, e
falareis à rocha diante de seus olhos; e dará as suas águas,
e tirareis para eles águas da rocha e dareis de beber à
congregação e aos seus animais”. A Torá relata que
Moshé tomou seu cajado e, com seu irmão Aaron,
congregou o povo diante da pedra. “E Moshé levantou
sua mão e feriu a rocha duas vezes com seu cajado,
e saiu muita água, e a congregação e seus animais
beberam”. Mas, a ordem que D’us dera a Moshé era
que falasse com a pedra, não que nela batesse. Por ter
violado tal ordem Divina, D’us decreta que ele e seu
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REVISTA MORASHÁ i 83
IluminUra da “seder hagadah shel pessach”, 1741, hamburgo. autor: yakov sofer ben yehudá leib SHAMASH DE BERLIM
irmão Aaron faleceriam no deserto,
não tendo, pois, o mérito de adentrar
a Terra Prometida.
Os astrólogos egípcios vislumbraram
a consequência de tal incidente.
Já que o calcanhar de Aquiles do
grande salvador dos judeus era a
água, aconselharam o Faraó a lançar
todos os recém-nascidos judeus nas
águas do Nilo. Essa seria a única
forma de garantir a morte do líder
judeu, cujo nascimento era iminente.
Faraó seguiu o conselho de seus
astrólogos e conselheiros. Moshé
foi, de fato, jogado no Nilo, mas
sobreviveu ao decreto de genocídio e
foi o agente Divino responsável pela
redenção do Povo Judeu.
Na realidade, o processo de redenção
de nosso povo se iniciou antes do
seu nascimento, por meio de três
mulheres: Yocheved, Miriam e Bitia.
O Livro de Êxodo conta que duas
parteiras judias se recusaram a
acatar o decreto genocida do Faraó.
Segundo a Torá, “as parteiras
temeram a D’us e não fizeram
conforme o que o rei do Egito lhes
dissera, e elas causaram com que os
meninos vivessem” (Êxodo 1:17).
A Torá relata que as duas parteiras
eram chamadas de Shifrá e Puá.
O Talmud revela suas verdadeiras
identidades: Yocheved, esposa de
Amram, e sua filha Míriam, que,
com apenas cinco anos, ajudava a mãe
em seu trabalho. Conta o Midrash
que, ao ouvir a ordem do Faraó de
que todo menino hebreu recémnascido devia ser jogado no Nilo,
Míriam se revolta e diz: “Que rei
mais malvado! Pobre de ti quando
D’us for te punir”. Só a insistência de
Yocheved em afirmar que Míriam era
apenas uma criança salvou sua vida
da fúria do rei do Egito.
Por “temer a D’us”, as parteiras
não só desobedecem as ordens
do rei como passam a acudir os
recém-nascidos, alimentando-os e
escondendo-os.
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A Torá nos revela que D’us as
recompensou por tal ato heroico
de desobediência: “D’us construiu
Casas para elas”. O Talmud explica
que essas casas não foram habitações
físicas, e sim, dinastias. Yocheved
se tornou a mãe dos Cohanim e
Levi’im e um dos descendentes de
Miriam foi o Rei David, o maior
monarca judeu (Sotá, 11b). Além
disso, foram recompensadas por meio
do nascimento de uma criança que
mudaria a história do mundo. Por ter
salvado os filhos de outras famílias
judias, Yocheved deu à luz à maior
alma que já veio ao mundo: Moshé
Rabenu.
Mas o nascimento do maior profeta
e líder judeu também se deve à sua
irmã, Miriam. Quando o Faraó
decretou que todo recém-nascido
judeu seria atirado no Nilo, Yocheved
e seu marido, Amram – líder do Povo
Judeu à época –, se separaram, pois
decidiram que era preferível não ter
mais filhos a arriscar que Yocheved
desse à luz a um menino, que seria
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TANACH
morto no Nilo. Foi Miriam quem
os convenceu do contrário, dizendo:
“Pai, seu decreto é mais severo do que
o do Faraó! Ele só decretou contra
os meninos, seu decreto estendese a todas as crianças, meninos e
meninas”. Ela, que era uma profetiza,
prometeu aos pais que eles teriam
um filho que seria o salvador do Povo
Judeu (Sotá, 12b-13a).
Mas há ainda uma terceira mulher
responsável pela redenção de nosso
povo. Seu nome: Bitia, a filha do
Faraó. A Torá relata que, no dia em
que Moshé foi posto em um cesto e
jogado no Nilo, Bitia foi banhar-se
no rio. Ela vê um cesto e um menino
que se encontra nele, que chora.
Apesar de estar ciente de que se trata
de uma criança judia que havia sido
lançada ao Nilo devido às ordens de
seu pai, a princesa o salva. Relata a
Torá: “Ela teve piedade dele e disse:
‘Este é um dos meninos hebreus’ ”
(Êxodo 1:6).
Salvar a vida da criança significaria
desobedecer a um decreto real. Isso
é algo que se poderia esperar de um
judeu, não de um egípcio – muito
menos de um membro da família real
– a própria filha de Faraó.
encontrando moshé. hagadá dourada,
circa 1320, Espanha
É notável que Bitia não estivesse
só quando tomou essa decisão. Ela
se encontrava na companhia de sua
serva. Portanto, corria o risco de que
seu ato se tornasse de conhecimento
público, chegando aos ouvidos reais.
Mas nem isso a fez titubear.
Após Bitia ter salvado Moshé do
Nilo, ocorre algo extraordinário.
Miriam, que havia profetizado
que seu irmão seria o salvador dos
judeus, permaneceu às margens do
Nilo, observando a cesta onde se
encontrava a criança. Miriam sabia
que seu irmão não pereceria no Nilo.
Quando ela vê que a filha de Faraó
o recolhera, pergunta a Bitia: “Devo
chamar uma mulher judia para
amamentar a criança para você?”.
“Vai”, responde Bitia. Miriam chama
Yocheved e a mãe adotiva da criança
diz à verdadeira mãe: “Leva esta
criança e a amamenta para mim. Eu
te pagarei por isso”.
Tal episódio evidencia a fé e coragem
de Miriam. Ela nunca perdeu
as esperanças de que seu irmão
sobreviveria para salvar seu povo.
Miriam tem a audácia de propor
à própria filha de Faraó um plano
para salvar um menino judeu. Ela
sugere que Yocheved, a verdadeira
mãe de Moshé, aja como se estivesse
amamentando uma criança egípcia
até que Bitia possa adotá-lo. Três
mulheres – Yocheved, Miriam e Bitia
– conspiram para salvar a vida de
Moshé do decreto genocida de Faraó.
A Torá, então, nos conta que após o
período de amamentação, Yocheved
“o trouxe à filha do Faraó e ele foi
para ela como filho...” (Êxodo, 2:10).
Apesar das ordens do pai, o poderoso
rei do Egito, Bitia adota a criança e
a cria no próprio palácio do Faraó
– o arqui-inimigo de nosso povo.
E o cria como filho. É ela quem
dá ao menino o nome de Moshé.
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Ensinam nossos Sábios: o maior de
nossos profetas possuía vários nomes,
inclusive aquele dado por seus pais
quando nasceu, Tuvia. Mas, na Torá,
D’us sempre o chama de Moshé –
em reconhecimento à mulher que o
salvou e criou. É interessante que o
Livro das Crônicas se refere a Moshé
como “ben Bitia” – filho de Bitia. Isso
porque, apesar de não ter sido sua
mãe biológica, a filha do grande vilão
da história, salvou, educou e amou
Moshé.
Em recompensa por seu heroísmo,
ela foi imortalizada pela Torá. Não
sabemos qual foi o nome dado a ela
quando nasceu: a Torá a chama de
Bitia, que significa “filha de D’us”,
pois como ensina o Midrash: “D’us
disse a ela: ‘Você adotou um filho e
o chamou de Moshé, que significa
‘filho’ em egípcio. Eu farei o mesmo:
Eu a adotarei e a chamarei de Minha
filha’”.
Bitia foi a única egípcia a não ser
atingida pelas Dez Pragas. Além
disso, ela foi um dos pouquíssimos
seres humanos a adentrarem o
Mundo Vindouro sem ter falecido.
Graças a seu heroísmo e generosidade,
além de ser chamada de “filha de
D’us” e ser considerada a mãe de
nosso maior profeta, ela triunfou
sobre o maior desafio da humanidade
– a morte. Tal graça Divina não foi
concedida nem mesmo a Moshé.
O que Yocheved, Miriam
e Bitia nos ensinam
A palavra Torá advém de Hora’á
– ensinamento. A Torá não é um
livro de histórias, e sim, uma obra
de autoria Divina que contém
lições para todo o Povo Judeu, em
todas as gerações. O heroísmo de
Yocheved, Miriam e Bitia serve de
exemplo para todos nós. A essas
três grande mulheres, nós, o Povo
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canção de miriam, a profetisa - william gale, séc. 19
Judeu, devemos nossa liberdade
e todas as bênçãos que advieram
dela – a Revelação no Monte
Sinai, o recebimento da Torá e
a Terra de Israel. Mas além de
terem desempenhado um papel
fundamental na história de nosso
povo e da humanidade, essas três
mulheres ensinaram lições que,
decorridos mais de três milênios,
continuam a reverberar. Elas nos
ensinaram que mesmo quando há
escuridão e maldade no mundo, cabe
ao ser humano desafiá-las ao gerar
luz e promover a bondade.
A coragem de Yocheved, Miriam
e Bitia serve de argumento contra
todos aqueles que alegaram ter
feito o mal porque não lhes foi
dado escolha – porque tinham a
obrigação de seguir ordens. O ato
de Bitia ao salvar Moshé Rabenu
rechaça os argumentos apresentados
pelos nazistas nos Julgamentos de
Nuremberg.
Das três heroínas de Pessach,
Bitia é quem nos ensina mais lições,
entre elas, a de que não se deve julgar
outros seres humanos por motivo
de nacionalidade, etnia ou religião.
A salvação do Povo Judeu ocorreu
por meio de uma mulher que, além
de egípcia – membro do povo que
nos escravizava e nos assassinava
–, era a própria filha do líder
antissemita da época. Foi a filha de
um homem responsável por uma
campanha de genocídio contra
os judeus quem adotou, educou e
protegeu nosso maior líder e profeta
– aquele que não apenas liderou a
libertação do Egito, mas trouxe a
Torá dos Céus à Terra e conduziu
nosso povo à nossa Pátria ancestral e
eterna – Eretz Israel.
Há ainda outra lição a se aprender
de Yocheved, Miriam e Bitia:
a de que, cedo ou tarde, D’us
recompensa abundantemente a
bondade, a coragem e a generosidade.
A Torá nos ensina que o Todo
Poderoso tem grande afeto por
aqueles que cumprem Sua vontade,
apesar da oposição e das ameaças
daqueles que desejam disseminar o
mal e a escuridão pelo mundo.
É nos momentos mais difíceis, de
maior escuridão, que a luz brilha
mais forte e que a bondade e a
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coragem se tornam mais aparentes.
Pessach é a festa da liberdade.
Ensina o judaísmo que o verdadeiro
significado da liberdade é o livre
arbítrio: o poder de escolher o bem e
rejeitar o mal, independentemente de
qualquer fator ou circunstância.
As três heroínas da história de
Pessach não apenas corroboram
o ensinamento de nossos Sábios
de que a redenção de nosso povo
ocorreu graças às mulheres, mas elas
também personificam os temas da
festa mais celebrada pelos Filhos de
Israel: a liberdade, a desobediência
ao mal, a coragem, a dignidade
humana e a valorização da vida –
temas universais e atemporais, que
permeiam o judaísmo e que há mais
de três milênios vêm influenciando a
humanidade.
BIbliografia:
Rabi Sacks, Jonathan, Exodus: The Book of
Redemption. Covenant & Conversation - A
Weekly Reading of the Jewish Bible, Maggid
Books & the Orthodox Union
Rabi Munk, Elie,The Call of the Torah
Rabi Weissman, Moshe,The Midrash Says
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Nossas grandes festas
conhecimento e fé
“Não esqueças as coisas que os teus olhos viram e para que
não saiam do teu coração todos os dias da tua vida; e as farás
conhecer aos teus filhos e aos filhos de teus filhos – no dia
em que estiveste diante do Eterno, teu D’us, em Horeb, quando
o Eterno me disse: ‘Junta-me o povo e o farei ouvir as Minhas
palavras, para aprender a temer-Me todos os dias em que viver
na terra, e para que as ensinem a seus filhos’”.
(Deuteronômio 4:9-10)
A
história que leremos, a seguir, versa sobre
Rabi Levi-Yitzhak de Berditchev, um dos
maiores mestres do Movimento Chassídico.
Logo após seu casamento, ele pediu
permissão ao sogro para viajar a Mezeritch,
onde queria estudar com o líder dos Chassidim, o Rabi
Dov Ber, conhecido como o Grande Maguid, o Grande
Pregador. O sogro negou-lhe a permissão, mas o Rabi
Levi-Yitzhak insistiu e perturbou-o até que ele cedeu,
dando-lhe permissão de passar seis meses estudando em
Mezeritch.
Rabi Levi-Yitzhak viaja, então, para estudar com o
Grande Maguid. Ao voltar para casa, decorridos os
seis meses, o sogro o recebe com um sorriso zombador.
“Diga-me, Levi, o que foi que aprendeu em Mezeritch?
O que aprendeu com aquelas pessoas estranhas – os
Chassidim – que não pudesse ter aprendido aqui?”,
perguntou. Rabi Levi-Yitzhak volta-se para o sogro
e diz: “Agora sei que D’us existe”. Seu interlocutor fica
chocado com a resposta. Agora ele sabe que D’us existe?
Teria sua filha se casado com um ateu, um agnóstico?
O sogro chama, a seguir, uma mocinha que trabalhava
em sua casa. Aponta para o céu, a grama, as árvores
e pergunta a ela: “Diga-me, como surgiu tudo isso?”.
A garota responde, sem hesitar: “D’us o criou, claro!”.
“Você está dizendo que D’us existe?”, perguntou. “Claro
que D’us existe!”, ela disse, olhando-o como se ele tivesse
perdido a razão.
Voltando-se para Rabi Levi-Yitzhak, o sogro diz: “Você
está vendo, Levi? Ela não estudou em Mezeritch. Na
verdade, ela nunca frequentou uma Yeshivá aqui na
cidade, e ela sabe que D’us existe”. Rabi Levi Yitzhak
volta-se para o sogro e, dessa vez, é ele quem sorri ao
falar: “Você não entende... Ela diz que D’us existe. Eu sei
que D’us existe”…
A Verdade, segundo o Judaísmo
Esse relato representa a própria definição de religião de
acordo com o judaísmo. A religião não consiste em dizer
ou acreditar em certos fatos – mas em saber certos fatos.
Segundo o judaísmo, a religião é a busca da Verdade.
Religião e Verdade são sinônimos. D’us e Verdade são
sinônimos.
A palavra hebraica para Verdade, Emet, é um dos nomes
de D’us, e, como ensina o Talmud, é a própria chancela
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exodus. marc chagall, 1968
Divina. A busca por D’us, portanto,
é a busca pela Verdade.
Segundo o Talmud, a grafia em si da
palavra Emet define o que realmente
constitui a Verdade. Essa palavra
hebraica é formada por três letras:
Alef, Mem e Taf. Alef é a primeira
letra do alfabeto hebraico, Mem é
a letra do meio e Taf é a última.
A grafia de Emet nos ensina que
a Verdade precisa ser consistente:
algo só é verdadeiro quando é
consistentemente verdadeiro; quando
seu início, seu meio e seu fim são
verdadeiros. Algo que é uma meiaverdade, incoerente ou inconsistente,
não é Verdade.
Muitos julgam que a religião
e a Verdade são nitidamente
opostas. Acreditam que a religião
e o conhecimento são, em geral,
contrários – que a religião exige que
substituamos o conhecimento pela fé.
O judaísmo rejeita, categoricamente,
essa visão. Proclama que D’us e
Sua Torá – que é Sua Vontade e
Sabedoria – são a Verdade Suprema,
e que se encontrarmos uma
contradição entre a Torá e a Ciência,
isso se deve ao fato de termos uma
compreensão errônea de uma das
duas – ou de ambas.
Como veremos a seguir, a fé não
significa o abandono da razão ou do
conhecimento. O Talmud, espinha
dorsal da Lei e tradição Judaicas,
é quase inteiramente baseado no
conhecimento e lógica. Rabi Shimon
Bar Yochai, o grande místico e
autor do Zohar, obra fundamental
da Cabalá, que também foi um dos
maiores Sábios do Talmud, defende
a ideia de que há um motivo racional
para as leis da Torá. O conceito de
dogma, de fé cega, de aceitação do
absurdo e do ilógico, é estranho
ao judaísmo. É verdade que como
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D’us e Sua Sabedoria são Infinitos,
nós, criaturas finitas, jamais O
entenderemos ou a Sua Torá por
completo. Isso, no entanto, não
significa que não entendamos nada
acerca d’Ele ou de Sua Sabedoria.
Fazendo uma analogia: há vários
problemas na Matemática que não
foram solucionados. Isso não significa
que nada saibamos sobre essa ciência.
Há uma diferença abismal entre não
saber tudo e não saber nada.
Ser humano algum, nem mesmo
Moshé Rabenu, pode entender
plenamente D’us e Sua Vontade.
Mas isso não significa que a Torá
exige aceitação cega. Mesmo suas
leis conhecidas como Chukim,
popularmente definidas como
as “leis não racionais”, não são
dogmas. As Chukim não são ilógicas:
simplesmente requerem um grande
cabedal de conhecimento e sabedoria
para serem compreendidas.
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Nossas grandes festas
A festa de Shavuot
celebra a Revelação
Divina no Sinai e a
transmissão dos Dez
Mandamentos, que
são o núcleo dos 613
mandamentos da Torá.
Hagadá de pessach
Por exemplo, algumas pessoas creem
que a proibição de comer carne e leite
juntos seja ilógica – algo que pode
ser aceito apenas através da fé. Mas
para alguém que estudou o judaísmo
em profundidade e compreende o
funcionamento das Sefirot – e o que
a carne e o leite representam – as
razões para a proibição de comê-los
juntos ficam muito claras. O mesmo
se aplica a todos os mandamentos
da Torá. Nada é absurdo ou ilógico,
mas algumas leis requerem muita
sabedoria e conhecimento para serem
compreendidas.
Qual seria, então, o papel da fé no
judaísmo? Sem dúvida, um papel
central, mas não da maneira
como o crê a maioria das pessoas.
A palavra hebraica para fé, “Emuná”
não significa fé cega – a suspensão
da razão e da lógica. Essa palavra
origina-se da raiz “Aman”, que
significa basear-se seguramente ou
confiar em algo. Segundo a Torá,
Emuná significa acreditar naquilo
que é de confiança. O motivo
para a fé ter um papel central
no judaísmo é por desempenhar
um papel fundamental na vida.
Quer o saibamos ou não, todos
os seres humanos – até os mais
céticos – utilizam a Emuná. Nós a
empregamos todos os dias, em cada
momento de nossa vida, consciente
ou inconscientemente, ativa ou
passivamente.
Exercemos uma medida de fé
mesmo quando estamos em casa,
sem fazer nada: temos fé que o teto
não vá ruir e que o edifício não vá
desmoronar-se, apesar de sabermos
que coisas assim acontecem.
Exercemos a fé quando viajamos de
avião: acreditamos que a aeronave
esteja funcionando adequadamente
e que o piloto saiba o que está
fazendo, apesar de não podermos
garantir nenhuma das duas situações.
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Também empregamos a fé quando
lemos o jornal e acreditamos
no que lemos, mesmo sabendo
que os jornais são, geralmente,
subjetivos e, ocasionalmente, contêm
informações erradas. Exercemos a fé
quando acreditamos no que nossos
professores e livros de História nos
ensinam.
O que sabemos é, em maior ou
menor extensão, baseado em Emuná,
porque não podemos ter certeza de
nada. Sequer podemos ter certeza
de que nosso mundo não é um
mundo da fantasia, uma ilusão,
como o creem os místicos orientais.
Diante da inexistência da prova
absoluta, temos que fazer uso da
Emuná; temos que presumir muitas
coisas e tentar buscar a verdade
de forma honesta, o que significa
ser intelectualmente honesto e
consistente – sem empregar padrões
morais duplos – dois pesos e duas
medidas, ou utilizar argumentos
emocionais para tentar silenciar os
racionais.
Conhecimento,
Fé e Falácias
Para discutir adequadamente o
papel que o conhecimento e a
fé desempenham no judaísmo, é
necessário primeiro reconsiderar
nossas definições de ambos os
conceitos. A quase totalidade de
nosso conhecimento se baseia
em dois pontos: a probabilidade
e a fé de que fatos históricos
foram corroborados por fontes
independentes antes de serem aceitos
como verdadeiros. Quase todo o
conhecimento científico se baseia
em probabilidades – há poucos
fenômenos, se é que existe algum,
que sejam infalíveis.
Consideremos o seguinte
cenário: um cassino é acusado
REVISTA MORASHÁ i 83
Leões segurando as tábuas da Lei. Marcus Charles Illions (1865-1949), Brooklyn, EUA
de adulterar a roleta, mas se nega
veementemente a admiti-lo.
A roleta é dividida em 37 segmentos,
numerados de 0 a 36. Suponhamos
que tenha girado 1.000 vezes e que
sempre pare no mesmo número.
Pode-se concluir daí que houve
adulteração? Provavelmente – mas
não há certeza. Estatisticamente,
não é impossível que a roleta pare
no mesmo número 1.000 vezes
seguidas. Na verdade, pode-se fazer
girar a roleta de agora até o infinito,
e a mesma poderia sempre parar no
mesmo número sem que estivesse
adulterada. As chances de tal fato
acontecer são infinitesimais, mas
existem. Se afirmássemos saber que
o cassino havia adulterado a roleta e
o considerássemos responsável pela
fraude, estaríamos empregando uma
medida de fé – ou seja, apesar de não
estarmos absolutamente seguros do
que dizíamos, acreditávamos que a
roleta estivesse adulterada em virtude
de ser muito pequena a probabilidade
de não o estar.
No entanto, há uma enorme
diferença entre algo improvável e
algo impossível. Uma chance em
um trilhão não é a mesma coisa que
chance zero. No caso da roleta, não
há chance alguma de que pare no
número 40, simplesmente porque
este não é um de seus números.
Mas sempre há uma chance, por
menor que seja, de que alguém possa
fazê-la girar indefinidamente e ela
sempre pare no mesmo número.
Como no exemplo acima, quase
todo o conhecimento científico é
calcado em probabilidades – em
tentativa e erro. Qualquer cientista
honesto e competente pode
confirmar que as Ciências se baseiam
em teorias – não em leis absolutas.
A certeza absoluta não existe
– nem mesmo no reino das
“ciências exatas”. Exemplificando:
A Ciência pode mostrar-nos, na
teoria e na prática, a razão pela qual
alguém que ande descalço sobre
brasas de carvão incandescente
queima os pés. Contudo, há
pessoas que andam sobre brasas – o
fenômeno religioso praticado em
várias regiões do planeta, chamado
de “Andar sobre fogo”– sem queimar
nem ferir os pés.
13
Quando se trata de conhecimento
acerca de eventos, como sabemos
o que é ou não verdade? Como
sabemos que Hiroshima sofreu
um ataque nuclear durante a 2ª
Guerra Mundial e que o Rio de
Janeiro nunca foi atacado? Muitos
de nós não tínhamos nascido nessa
época; como saber, então, o que
realmente aconteceu? Baseamo-nos
no testemunho de terceiros. Quanto
maior for a corroboração – quanto
mais testemunhas independentes
houver, reduzindo a possibilidade
de conluio – mais disposição
teremos para considerar o fato
como verdadeiro. Nenhum de nós
pode voltar no tempo ou estar
em mais de um lugar ao mesmo
tempo. Além do mais, não dispomos
dos recursos nem do tempo para
corroborar pessoalmente tudo o
que nos conta a imprensa escrita
ou falada. Usamos de boa-fé ao
acreditar que as notícias transmitem
a verdade porque há fontes
independentes – jornalistas que
trabalham em mídias concorrentes
– que se beneficiariam se pudessem
desacreditar a concorrência. Mesmo
se vivêssemos em um regime
abril 2014
Nossas grandes festas
totalitário, com controle da mídia,
os oponentes internos ou externos
do governo deixariam vazar a
verdade. Um governo pode mentir
se assim o quiser, e pode controlar
a imprensa e silenciar a oposição,
mas não pode forçar seu povo a
acreditar nas mentiras, nem, muito
menos, a transmiti-las a seus filhos.
O excelente romance político de
George Orwell, 1984, descreve o
quão difícil é, mesmo para a mais
brutal das sociedades totalitárias,
fazer lavagem cerebral em todo um
povo. Como o disse, brilhantemente,
Abraham Lincoln: “Você pode
enganar uma pessoa por muito
tempo; algumas por algum tempo;
mas não consegue enganar a todas
por todo o tempo”.
Um dia, a verdade vem à tona,
especialmente se o assunto diz
respeito a muitas pessoas. Fica
relativamente fácil corroborar sua
veracidade.
O que hoje é notícia, amanhã é
história. Acreditamos que eventos
históricos importantes, que
envolveram um grande número
de pessoas, realmente ocorreram
porque há muitas testemunhas
independentes que poderiam
confirmar sua veracidade e deixar
vazar a verdade, no caso de uma
deturpação da realidade.
Quando alegamos saber algo, o
que estamos realmente dizendo
é que a probabilidade daquilo ser
verdade é indubitável, está além de
qualquer dúvida. Ser indubitável
é o padrão de evidência exigido
para validar uma condenação
criminosa. Se alguém é acusado de
ter cometido um crime por uma
única testemunha, ele pode alegar
que a testemunha está mentindo.
Se houver mais testemunhas, ele
pode alegar que estão conspirando
contra ele. Quando são milhares
de testemunhas, a probabilidade de
estarem enganadas no que viram
ou estarem conspirando, é muito
pequena – está praticamente além de
qualquer dúvida.
Mentiras e tramas conspiratórias
que envolvam milhões ou mesmo
milhares de pessoas têm vida curta
porque é enorme a possibilidade de
vazamentos. Pois, como convencer
milhares de pessoas a contar uma
mesma história deturpada? Como
convencer todas essas pessoas a
nunca contar a verdade a ninguém –
a nenhum amigo, nem a seus filhos
ou netos? Os recentes escândalos
envolvendo Edward Snowden e a
Agência Nacional de Segurança dos
EUA (NSA) evidenciam que basta
um indivíduo vazar os segredos que
envolvem um grande número de
pessoas. Nas palavras do próprio
Snowden: “… informar ao público
o que é feito em seu nome e o que é
feito contra eles”.
Quanto maior a mentira, a
deturpação ou a conspiração, e
quanto mais pessoas estiverem
envolvidas, mais fácil será refutá-la.
Revelação Pública:
a Base do Judaísmo
Muitos acreditam, erroneamente,
que a fé judaica se baseia no Êxodo
do Egito – nas pragas e na divisão
do Mar dos Juncos. Eles talvez
argumentem que se esses fenômenos
pudessem ser racionalmente
explicados, a veracidade do judaísmo
seria questionada. Trata-se de uma
concepção muito errada – não apenas
porque a fé judaica ensina que D’us
opera através das leis da natureza que
Ele criou – mas porque, no que toca
ao judaísmo, milagres e maravilhas
pouco provam. As pragas e a divisão
do mar serviram a um propósito
14
prático – libertar o Povo Judeu do
Egito – mas não têm praticamente
influência alguma em nossas crenças.
A Torá nos ensina que a fé judaica
não é calcada em milagres. Quando
D’us aparece, pela primeira vez, a
Moshé, ordenando-lhe que volte
ao Egito e informe ao Povo Judeu
que Ele os libertará da escravidão,
Ele lhe diz: “Porque estarei contigo,
e isto será para ti o sinal de que Eu
te enviei; depois de haveres tirado
o povo do Egito, servireis a D’us
sobre este monte” (Êxodo, 3-12)”.
D’us informou a Moshé que o Povo
Judeu acreditaria nele em virtude
da revelação que ocorreria “na
montanha”, o Monte Sinai, e não por
causa dos milagres e maravilhas que
a antecederiam.
Maimônides ensina que a verdadeira
fé não pode basear-se em milagres
porque sempre resta uma dúvida
persistente de que tivessem sido
inventados ou realizados por outro
meio que não a intervenção Divina.
Ele ainda explica que isso foi a
base do temor de Moshé de que
os judeus não acreditassem nele
mesmo se ele realizasse milagres
para provar que D’us o havia
indicado como Seu agente. “E eles
não me crerão”, Moshé responde
a D’us, “nem ouvirão a minha voz,
pois dirão, ‘Não apareceu a você
o Eterno’” (Êxodo, 4:1). Moshé
percebeu que nem mesmo a maior
das maravilhas poderia induzir à
crença perfeita. Para refutar esse
medo, D’us lhe assegurou que a
Nação Judaica vivenciaria uma
Revelação Divina no Monte Sinai,
removendo-lhes qualquer dúvida.
A fé de Israel em Moshé e em sua
profecia não se basearia, então,
em fatos sobrenaturais, mas na
experiência coletiva de milhões
de pessoas no Monte Sinai, onde
lhes ficaria indiscutivelmente
REVISTA MORASHÁ i 83
claro que D’us falava com eles
(Hil. Yesodei Ha’Torá, 8:2). Os
milagres, independentemente de
quão numerosos ou assombrosos,
não podem ser fonte de crença para
ninguém – não apenas porque seja
controvertida a própria definição
do que é um milagre – mas porque
não apenas o verdadeiro profeta de
D’us tem a capacidade de realizar
atos sobrenaturais. Os feiticeiros
do Faraó, que eram idólatras,
conseguiram transformar cajados
em serpentes e as águas do Egito
em sangue. O profeta Bilaam, que
era o mais malvado e depravado dos
seres humanos, era um profeta tão
poderoso quanto Moshé.
A capacidade de prever o futuro
ou de realizar milagres – milagres
verdadeiros, não ilusões ópticas –
prova apenas uma coisa: que quem os
realiza possui um talento muito raro.
De fato, povos de quase todas as
religiões realizaram milagres. Se
os milagreiros comprovassem a
validade de sua religião, teríamos que
acreditar em quase todos elas, o que
seria um absurdo teológico e lógico,
pois a maioria delas é mutuamente
exclusiva.
Acreditamos no judaísmo não por
causa de Moshé, nem das pragas ou
da divisão do mar, mas porque D’us,
Ele Próprio, Se revelou perante
600.000 judeus e suas famílias, no
Monte Sinai. A veracidade de um
evento público testemunhado por
milhões de pessoas é muito difícil de
ser refutada. O judaísmo baseia-se
em um evento público que envolveu
uma miríade de pessoas, e não no
carisma de um líder, poderes da
fala, ou habilidades sobrenaturais.
O judaísmo não se baseia no que
seu maior líder vivenciou, mas no
que toda a primeira geração de
judeus vivenciou. Nós acreditamos
no judaísmo não por acreditar em
Miniatura que retrata Moshé recebendo as Tábuas da Lei. Museu Israel, Jerusalém
Moshé, mas porque acreditamos no
testemunho de milhões de judeus.
O grande astrônomo judeu
americano, Carl Sagan, disse certa
vez que, “Alegações extraordinárias
exigem evidências extraordinárias”.
D’us optou por Se revelar ao
Povo Judeu inteiro porque o
testemunho de milhões de pessoas
constitui evidência extraordinária
que corrobora uma alegação
extraordinária. A palavra de um
homem – independentemente de
quão sagrado ou poderoso seja – não
constitui evidência extraordinária.
Tampouco o é o testemunho de um
pequeno grupo de pessoas. Ainda
que sejam verdadeiras, sempre é
15
Acreditamos no
judaísmo não por causa
de Moshé, nem das
pragas ou da divisão do
mar, mas porque D’us,
Ele Próprio, Se revelou
perante 600.000 judeus
e suas famílias, no
Monte Sinai
abril 2014
Nossas grandes festas
Dez Mandamentos
entalhados em painel
de madeira, Inglaterra,
início do séc. 19
possível que estejam enganadas
acerca do que viram. No entanto,
é muito difícil que três milhões de
pessoas fabriquem uma história ou
que estejam erradas no que viram,
ouviram e vivenciaram.
À luz do que vimos acima, podemos
entender por que a Torá afirma
categoricamente que somente após
a Revelação no Sinai o Povo Judeu
acreditaria em Moshé para todo o
sempre. Antes do Sinai, alguém o
poderia ter desmistificado como um
feiticeiro que derrotara os feiticeiros
do Faraó. Poderia argumentar que
as pragas no Egito e mesmo a
divisão do mar foram coincidências:
aberrações estatísticas, que, como
vimos acima, não constituem provas
absolutas. Mas quando milhões de
pessoas viram-se diante de D’us, não
houve mais lugar para especulação
ou para análise de probabilidades
estatísticas. Mesmo os inimigos e
adversários de Moshé, inclusive seu
primo Korach, que tentou organizar
um golpe de estado, não puderam
negar nem questionar a veracidade
da Revelação Divina no Sinai.
bezerro de ouro, nunca tiveram a
audácia de negar a veracidade da
Revelação Divina no Sinai.
Fosse a Torá um livro de mitos ou
uma combinação de realidade e
ficção, poderíamos talvez argumentar
que a Revelação Divina no Sinai
fosse um de seus relatos ficcionais.
Mas os judeus sempre insistiram
que os eventos relatados nos Cinco
Livros da Torá devem ser levados
ao pé da letra. Portanto, há apenas
duas possibilidades reais do que
possa ter acontecido no Sinai: ou foi
uma Revelação Divina, como relata
a Torá, ou uma conspiração de massa,
envolvendo milhões de pessoas
que fabricaram uma história, ou,
no mínimo, concordaram em levar
avante essa mentira, evitando, de
alguma forma, que a verdade viesse à
tona. Nenhuma dessas pessoas nem
nenhum de seus filhos escreveu seu
relato pessoal, contradizendo a Torá.
Até mesmo os inimigos de Moshé,
mesmo aqueles que adoraram o
É muito difícil de crer que milhões
de judeus tenham inventado a
história da Revelação ou concordado
em respeitá-la, sabendo que era
uma falácia. É ainda mais difícil de
acreditar que, fosse uma invenção,
ninguém a tivesse desmascarado e
revelado a verdade. Contudo, de fato
não há prova absoluta que corrobore
esta extraordinária alegação – assim
como não há prova absoluta de nada.
Pode-se sempre conjecturar que
talvez o Povo Judeu tenha imaginado
ou sonhado sobre a Revelação.
Talvez tenham inventado a história
e convencido outros milhões de
pessoas, judeus ou não, sobre sua
veracidade. Tudo é possível: às vezes,
mesmo as mais improváveis teorias
conspiratórias são comprovadas.
É aí que entra em cena a Emuná
– a fé verdadeira: quando optamos
por acreditar porque há evidência
16
REVISTA MORASHÁ i 83
monte sinai
suficiente para fazê-lo, ainda que não
haja certeza absoluta.
A Emuná que o judaísmo espera
dos judeus é a mesma exigida pelos
outros campos do conhecimento.
Como o pilar do judaísmo foi
um evento público que envolveu
milhões de pessoas, trata-se de
verdade histórica, não de fé cega. Isso
significa que acreditar na Revelação
Divina no Sinai e, portanto, na
verdade do judaísmo, não é um ato
de credulidade, mas sim de Emuná.
O judaísmo não exige fé cega, mas
não é justo exigir mais corroboração
da Torá do que da História ou das
Ciências.
A verdadeira fé, do tipo que o
judaísmo espera de cada um dos
judeus, é uma ponte pequena que
liga a probabilidade à certeza.
Precisamos da mesma porque, na
verdade, não podemos ter 100% de
certeza sobre nada.
O judaísmo é a busca da Verdade, e
por isso se iniciou da forma em que
tudo ocorreu: para que nossa conexão
com D’us e Sua Torá não fossem
produto da fé cega. D’us poderia terSe revelado apenas a Moshé Rabenu
e aos judeus que mais o merecessem,
mas Ele optou por revelar-Se a todos,
desde o mais simples deles. Era a
única maneira de assegurar que nossa
fé em D’us e em Sua Torá não fossem
calcadas nos ensinamentos de um
indivíduo ou de um grupo de pessoas.
Consequentemente, nós, judeus, não
acreditamos em D’us por acreditar
em Moshé, mas sim, acreditamos em
Moshé por acreditar em D’us.
Como na história sobre o Rabi
Levi-Yitzhak de Berditchev, há uma
diferença abismal entre dizer que
D’us existe e saber que Ele existe.
A festa de Shavuot celebra a
Revelação Divina no Sinai e a
transmissão dos Dez Mandamentos,
que são o núcleo dos 613
17
mandamentos da Torá. Shavuot é
o momento propício do ano para
que todos os judeus fortaleçam sua
conexão com D’us e Sua Torá, não
por fé cega ou convenção social, mas
porque há evidências avassaladoras
que atestam a veracidade do evento
mais extraordinário da História,
ocorrido 50 dias após a libertação de
nosso povo do Egito.
BIbliografia:
Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel,
Epistemological Methodology in the Study
of Religion - www.torahcafe.com
Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel,
What is Faith? - www.torahcafe.com
Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel,
Did G-d really write the Torah?
www.torahcafe.com
The Stone Chumash - The Torah, Haftaros,
and Five Megillos with a commentary from
Rabbinic writings, Editada por Rabi
Nosson Scherman, ed. Artscroll Mesorah
abril 2014
NOSSAS GRANDES FESTAS
OS FUNDAMENTOS DO JUDAÍSMO
“Rabi Yochanan ensinou: A maioria das leis da Torá é
fundamentada na transmissão oral e apenas a minoria nas
Escrituras. Pois está escrito: ‘Por meio da boca (palavras
transmitidas oralmente), Eu (o Eterno) fiz uma aliança contigo
e com Israel’ (Êxodo 34:27)”. Se a aliança de D’us com Israel foi
estabelecida por meio de leis que foram transmitidas oralmente,
isso significa que estas constituem a maioria da Torá”.
(Talmud Bavli, Gitin, 60b)
a
alegação extraordinária de que D’us
Se revelou aos seres humanos baseia-se em
extraordinária evidência: o testemunho
de uma geração inteira de judeus – cerca
de 3 milhões de pessoas. A Torá registra o
evento, mas o Povo Judeu também transmitiu oralmente,
de uma geração a outra, a noção de que, sete semanas
após o Êxodo do Egito, D’us abertamente Se revelou
aos Filhos de Israel e proclamou os Dez Mandamentos,
que são o núcleo das 613 mitzvot do Judaísmo. Ano
após ano, na festa de Shavuot, lembramo-nos e
celebramos esse evento, o mais importante na história
da humanidade.
Milhões de judeus deixaram o Egito, o que significa
que houve milhões de testemunhas independentes
para verificar ou negar o relato da Revelação Divina,
especialmente durante as primeiras duas ou três gerações
após o fato ter ocorrido. Para lançar dúvidas sobre o
evento, bastaria que um grupo de judeus contasse a seus
filhos que era uma inverdade o relato da Torá acerca de
D’us se ter revelado a todos os judeus que deixaram o
Egito. A Torá está ciente de que é muito difícil negar
a veracidade histórica da Revelação Divina no Sinai e,
corajosamente, oferece este desafio a todos os judeus:
“Podes perguntar, pois, pelos dias passados que te
precederam, desde o dia em que D’us criou o homem
sobre a terra... Se houve jamais uma coisa grande
semelhante a esta, ou se ouviu coisa igual a ela? Se um
povo ouviu a voz de D’us falar no meio do fogo, como
ouviste tu e ficaste vivo?” (Deuteronômio, 4:32–33)
A Revelação Divina no Sinai é o princípio fundamental
do Judaísmo porque permitiu não apenas à geração
conduzida por Moshé, mas também a todas as
subsequentes gerações judias conhecerem, e não apenas
acreditarem, que existe um D’us e que a Torá é a Sua
Palavra e Vontade. Nós acreditamos em Moshé porque
acreditamos em D’us – e não ao contrário. Essa distinção
é da maior importância. O judaísmo não se originou
com o homem. Nenhum dos três patriarcas – Avraham,
Itzhak e Yaakov – nem Moshé e seu irmão Aaron,
fundaram a fé judaica. O judaísmo começa e termina
com D’us.
A Revelação no Sinai é o pilar do judaísmo porque
fundamenta Moshé como porta-voz e agente Divino: um
canal confiável para a transmissão da chancela Divina no
mundo – a Vontade e a Sabedoria Divinas – que é a Torá.
Não há erro maior acerca do judaísmo do que a crença de
que Moshé escreveu a Torá ou de que ele é o criador da
Lei Judaica. Ele foi o maior dentre os profetas e líderes
judeus: trouxe a Torá dos Céus à Terra e a ensinou a nosso
povo – por esse motivo, é chamada de a Torá de Moshé –,
18
REVISTA
REVISTA
MORASHÁ
MORASHÁ
I 83
Shavuot. Óleo sobre tela, Moritz Daniel Oppenheim, 1880
mas não escreveu uma única letra da mesma. Moshé
apenas transcreveu os Chamishei Chumshei Torá – os
Cinco Livros da Torá. Foi o copista, não o autor. A Torá é
a palavra de D’us, não a de qualquer profeta, nem mesmo
do maior dos profetas de todos os tempos. A Revelação
Divina no Sinai não apenas removeu todas as dúvidas
sobre a Existência Divina e Seu interesse em Sua Criação.
Também corroborou o fato de Moshé ser um profeta
verdadeiro e fidedigno, e de que a Torá que ele trazia dos
Céus ser um livro de autoria Divina, não humana.
A Autoria Divina da Torá
Nós, judeus, acreditamos na Torá devido à Revelação
Divina no Sinai, mas também acreditamos na Revelação
por causa da Torá. O evento e seus relatos escritos e orais
se entrelaçam. Por um lado, a Revelação Divina evitou
que o Povo Judeu duvidasse do papel de Moshé como
profeta e agente de D’us e de atribuir a ele a autoria
da Torá. Por outro, a Torá corrobora a veracidade da
revelação explícita de D’us ao Povo Judeu. Ao afirmar
que a Revelação ocorreu perante milhões de judeus, a
Torá se expôs ao desafio. Vimos no artigo Judaísmo,
Conhecimento e Fé que é praticamente impossível
sustentar uma alegação de tal magnitude a menos que
seja verdadeira; portanto, temos boas razões para crer que
a Torá diz a verdade. Em outras palavras, a Revelação
19
Divina dá à Torá credibilidade como uma obra de
Divina autoria, ao passo que a Torá registra e comprova
a veracidade histórica do evento mais extraordinário na
história humana.
O processo de transmissão da Torá ao Povo Judeu se
iniciou após a Revelação Divina e a proclamação dos Dez
Mandamentos. Ao longo da jornada de 40 anos no Sinai,
D’us transmitiu a Torá a Moshé, letra por letra. Moshé
as anotou, como um secretário o faria. Quando lemos a
Torá, portanto, estamos ouvindo a Fala Divina. Por vezes,
Ele fala na primeira pessoa e por vezes na terceira –
como quando fala através de Moshé, particularmente no
quinto livro da Torá –, mas é sempre Ele quem fala.
Além da Torá Escrita, D’us transmitiu a Moshé a Torá
Oral. Ambas eram igualmente necessárias. Se D’us não
lhe tivesse dado a Torá Escrita – se a tivesse transmitido
apenas oralmente –, provavelmente sua transmissão
não seria tão límpida e imaculada; acabaríamos por
enfrentar versões diferentes devido à má compreensão e
consequente transmissão errônea de Seus Mandamentos.
Um documento escrito ajuda a evitar que isso ocorra. Ao
mesmo tempo, um documento escrito, especialmente se
contém conceitos e leis complexos, exige explicação oral,
pois é comum entendermos e interpretarmos errado o
que lemos. Em resumo, a Torá Escrita preserva a precisão
abril 2014
primeiros cinco livros, a Torá, e os demais.
Essa distinção tem importância capital. O judaísmo se
inicia e termina com os Chamishei Chumshei Torá.
É totalmente proibido extrair qualquer lei bíblica a
partir dos Profetas ou dos Escritos. A única fonte de Lei
Bíblica é a Torá. No judaísmo, os Profetas e os Escritos
podem apenas prover um suporte e corroboração – uma
Asmachtá – a uma lei da Torá. Nevi’im e Ketuvim são
livros sagrados, mas não podem agregar, subtrair ou
modificar qualquer verso ou lei dos Cinco Livros da Torá.
Somente leis rabínicas, como os mandamentos de Purim
(uma festividade rabínica) podem-se originar de Nevi’im
e Ketuvim. Leis bíblicas, como as de Yom Kipur, Shabat,
Cashrut, Tefilin, Mezuzá etc., são ditadas exclusivamente
pela Torá. Se alguém quiser ousar e argumentar que um
decreto rabínico é tão rigoroso quanto um bíblico, e que,
portanto, não deveria haver distinção entre a Torá e o
restante do Tanach, que esse alguém tente argumentar
que não ouvir a Meguilat Esther em Purim é tão grave
quanto não jejuar em Yom Kipur.
Moshé recebe as Tabuas da Lei, Marc CHagall, 1950-52
da Torá Oral, ao passo que a Torá Oral explica e elucida a
Torá Escrita, evitando que esta seja mal-entendida e mal
interpretada.
A Autoridade Suprema da Torá
Moshé foi o maior profeta judeu de todos os tempos.
D’us e Moshé se comunicavam entre si como dois
amigos, íntimos. Por isso foi possível a D’us transmitir a
Torá, letra por letra, a Moshé enquanto estava desperto
e plenamente consciente. Outros profetas tiveram
visões ou receberam mensagens Divinas durante seu
sono ou em estado alterado de consciência. Tiveram,
pois, que descrever com suas próprias palavras o que
viram ou ouviram. Nenhum profeta judeu, nem mesmo
os Patriarcas, possuíram a visão profética clara e
transparente de Moshé.
D’us transmitiu informações precisas a ele. Os Cinco
Livros da Torá não são apenas mensagens Divinas, mas
a fala Divina. Em contraste, as palavras gravadas no livro
dos Profetas (Nevi’im) são mensagens Divinas, mas não
são palavras literais de D’us. Isso significa que apesar de
todo o Tanach (Torá, Nevi’im, Ketuvim – Torá, Profetas
e Escritos) ser sagrado, não há comparação entre seus
A regra essencial de que a Torá é o cerne do judaísmo
é de grande relevância para o Povo Judeu. O fato de a
Torá ser a primeira e a última palavra sobre o judaísmo
tem profundas ramificações: significa que a fé judia não
depende dos Nevi’im e dos Ketuvim. Nenhum profeta
– nem Isaías, nem Jeremias nem Ezequiel – tinham
autoridade de alterar a lei da Torá sob nenhum aspecto.
Nenhum versículo do Livro dos Salmos pode ser usado
para contradizer um versículo da Torá. Se algum profeta
ousasse fazê-lo, seria considerado um falso profeta e
acusado de pecado capital, ainda que suas profecias se
realizassem, que realizasse milagres extraordinários e
fosse carismático ou generoso. Os profetas não tinham
autoridade alguma de modificar permanentemente a lei
da Torá. Como os Cinco Livros da Torá foram escritos
por D’us, nenhum ser humano, nem mesmo Moshé,
poderia jamais revogar ou modificá-la de alguma forma.
Como vimos acima e no artigo Judaísmo, Conhecimento
e Fé, a base do judaísmo é a Revelação Divina no
Monte Sinai. D’us, em Sua Plenitude, fez-Se ver a cada
um dos judeus da geração que deixou o Egito e lhes
transmitiu os Dez Mandamentos, que são o núcleo dos
613 mandamentos da Torá. Se não tivesse havido essa
Revelação – se Moshé ou os profetas posteriores tivessem
escrito a Torá – seria possível argumentar que eles teriam
autoridade para modificá-la. No entanto, como foi
repetidamente mencionado acima, Moshé não escreveu
a Torá – ele a transcreveu e a ensinou. D’us escreveu a
Torá – em sua íntegra. Ele é o único Legislador da Lei
20
REVISTA MORASHÁ I 83
Judaica. Os Profetas e os Sábios são o poder judiciário,
não o legislativo, do judaísmo. A própria Torá dá-lhes
permissão de interpretar a Lei e mesmo de criar leis
rabínicas que servem de proteção para que as leis bíblicas
não sejam violadas. Contudo, nenhum ser humano,
independentemente de seu grau de inteligência ou
espiritualidade, pode criar, modificar ou revogar as leis da
Torá. Além disso, qualquer lei rabínica precisa ter alguma
base na lei bíblica.
Esse princípio fundamental do judaísmo é explicitamente
declarado no quinto livro da Torá. Pois está escrito: “Se
um profeta, ou um sonhador, se levantar no meio de ti e
te der um sinal do céu ou um milagre da terra, e realizarse o sinal ou o milagre de que te falou, e te disser: ‘Vamos
atrás de outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los!
’ – não obedecerás às palavras daquele profeta ou daquele
sonhador; porque o Eterno, vosso D’us, vos está testando
para saber se amais o Eterno, vosso D’us, com todo
vosso coração e com toda vossa alma. Após o Eterno,
vosso D’us, andareis; a Ele temereis, Seus Mandamentos
guardareis e a Sua Voz ouvireis; a Ele servireis e a
Suas qualidades adotareis. E aquele profeta ou aquele
sonhador será morto, porquanto pregou falsidade em
Nome do Eterno, vosso D’us, que vos tirou da terra
do Egito e que vos redimiu da casa de escravos, para
vos desviar do caminho que o Eterno, vosso D’us, vos
ordenou para andar nele; e eliminarás o mal do meio de
ti” (Deuteronômio, 13:2-6).
Se alguém questionasse por que D’us daria poderes
sobrenaturais a um ser humano que os usaria para se opor
à Sua Vontade, a Torá prontamente dá a resposta: porque
D’us está testando sua fé.
D’us nos fez saber por meio de Sua Torá que nenhum
ser humano – tem a autoridade de modificar ou revogar
a Lei Judaica. Um homem pode realizar os maiores
milagres – pode prever com precisão o futuro e fazer
do dia noite e da noite, dia. Mas mesmo assim estamos
proibidos de segui-lo se ele pronunciar uma única palavra
contra a Torá.
Durante milhares de anos, indivíduos, organizações
e instituições religiosas tentaram converter os judeus,
alegando serem profetas ou fazedores de milagres ou
argumentando que certas leis da Torá já não se aplicavam.
Geralmente citavam passagens de Nevi’im ou Ketuvim
para tentar corroborar suas crenças. Tais discussões, no
que concerne ao judaísmo, são fúteis, pois a própria Torá
nos alerta acerca de milagreiros e profetas que tentam
21
nos desviar para outras fés. Além disso, como vimos
acima, os versículos e passagens de Nevi’im e Ketuvim
são irrelevantes para a Lei e prática judaicas. Sequer
importa de que forma tais passagens são interpretadas,
seja literalmente ou não.
Se, por exemplo, o profeta Isaías dissesse ao Povo Judeu
que as leis de Cashrut já não mais se aplicavam, não
apenas não lhe faríamos caso, como o levaríamos à Corte
Suprema Judaica para ser julgado por ser um falso profeta.
Na verdade, é interessante observar que esse profeta
foi acusado por seu próprio neto, o rei Menashé, de ter
feito declarações que contradiziam certos princípios da
Torá. O profeta foi julgado, condenado à pena capital
e brutalmente executado. Se as intenções do Rei em
condenar seu avô eram maldosas e se as acusações eram
infundadas não é relevante para nossa discussão. O que é
digno de nota é que o maior profeta desde Moshé foi
julgado e condenado à morte por ter feito declarações
que alegadamente contradiziam certos princípios da Torá.
Não desejamos implicar que as palavras do profeta Isaías
ou de qualquer genuíno profeta judeu contradiga a Torá,
de alguma forma. De fato, o principal papel dos profetas
era levar o Povo Judeu a fortalecer o seu cumprimento
da Torá. Não é coincidência o fato de que o último
dos profetas do Tanach, Malachi, conclua suas palavras
proféticas com a seguinte mensagem Divina: “Recorda-te
da Torá de Moshé, Meu servo” (Malachi 4:4).
Judeu algum deve tentar abraçar outra religião ou filiarse a outro culto porque alguém realizou ou alegou ter
realizado milagres e maravilhas. Ademais, todos os
judeus devem estar cientes de que o judaísmo não pode
ser ameaçado, de forma alguma, por interpretações de
outros credos de passagens dos Nevi’im ou dos Ketuvim.
As palavras de um ser humano jamais poderá ou terá
precedência sobre as palavras de D’us, que constituem os
Cinco Livros da Torá.
A Torá Oral
D’us ditou a Torá Escrita a Moshé e o ensinou como
deveria lê-la e elucidá-la – e como cumprir seus
mandamentos. Esse “Guia Divino à Torá Escrita”,
transmitido a Moshé e ensinado subsequentemente
ao Povo Judeu durante sua longa jornada no deserto, é
conhecido como a Torá Oral.
A Torá Escrita original transmitida por D’us a Moshé
foi uma longa sequência de letras sem divisão entre as
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NOSSAS GRANDES FESTAS
mesmas. O Talmud a descreve como “fogo negro escrito
sobre fogo branco”. A Torá Oral explica como as letras
da Escrita deviam ser divididas, pronunciadas e lidas.
Sem ela, a Torá Escrita seria incompreensível – uma
longa lista de letras hebraicas – compondo um código
indecifrável.
Muitas das leis da Torá são muito complexas. Desde a
Revelação no Sinai, inúmeros livros foram escritos sobre
a mesma – mesmo a Torá Oral foi transcrita – mas, ainda
assim, necessitamos de rabinos e professores para melhor
entendê-la.
Mas não necessitamos de argumentos racionais para
tentar provar a existência de uma Torá Oral. A Torá
Escrita testemunha a existência de uma tradição oral,
pois se fôssemos ler os Chamishei Chumshei Torá sem
jamais ter praticado ou guardado os mandamentos
judaicos, entenderíamos muito pouco dos mesmos. Por
exemplo, quando lemos sobre a Matzá na Torá, sabemos
a que se refere – apenas porque a quase totalidade dos
judeus do mundo já o provaram ou viram. A Torá Escrita
não nos diz como produzir a Matzá, como assegurar que
não se torne Chametz, tampouco que devemos comê-la
durante o Seder de Pessach. A Tora Oral é a única fonte
desse conhecimento.
A Torá Escrita transborda de leis e mandamentos, mas
não explica como cumpri-los. O Brit Milá, a circuncisão,
é um dos pilares da fé judaica – até o menos observante
dos judeus insiste em circuncidar seus filhos homens
– mas, ainda assim, a Torá Escrita sequer menciona
explicitamente em que órgão se pratica a circuncisão
nem como. Yom Kipur, dia mais sagrado do ano, é outro
pilar da fé judaica. A Torá Escrita diz que nos devemos
afligir no Dia do Perdão, mas não nos diz como. Não diz,
em parte alguma, que devemos jejuar. Como saber que
nos afligirmos em Yom Kipur significa jejuar? Afligir-nos
pode significar autoflagelo. Mas não é. Outro pilar do
judaísmo é o cumprimento do Shabat, mas a Torá Escrita
não nos diz o que podemos e o que não podemos fazer
nesse dia sagrado. Já a Torá Oral, esta nos fornece não
apenas os detalhes, mas as explicações básicas de como
interpretar e executar os mandamentos transmitidos pela
Torá Escrita.
A referência mais explícita feita pela Torá Escrita acerca
da Oral é encontrada em um versículo referente à
Shechitá – o abate casher de animais. Em nenhum lugar
da Torá Escrita ou outro livro do Tanach consta uma
explicação sobre como essa prática deve ser realizada.
Apenas está escrito: “... poderás degolar do teu gado e
do teu rebanho que o Eterno te deu, como te ordenei...”
(Deuteronômio, 12:21).
Através da História Judaica, muitas pessoas, judias ou
não, têm tentado negar a existência e autenticidade
da Torá Oral. Já que, como vimos acima, a Revelação
Divina no Sinai não pôde ser negada porque foi um
evento público que envolveu milhões de pessoas, quem
quisesse enfraquecer a existência ou o cumprimento do
judaísmo, tinha como objetivo a Lei Oral. Quando uma
nação ou uma organização tentavam extirpar o judaísmo,
escolhiam como alvo o Talmud, núcleo da Torá Oral.
É fácil entender por que aqueles que desejavam extirpar
o judaísmo sem sujar suas mãos baniam o estudo do
Talmud. Se nós, judeus, não podemos estudar a Torá
Oral, não podemos entender e seguir a Torá Escrita, e,
assim, não podemos cumprir os mandamentos.
porta da arca sagrada, cravovie, séc. 17.
JERUsalém, Hechal shlomo, museu wolfSON
Emet, a Verdade, como vimos no artigo já citado, é
definida pela Torá como honestidade e consistência
intelectual. Uma meia-verdade não é a Verdade.
22
REVISTA MORASHÁ I 83
Se alguém quer negar a existência e autenticidade da
Torá Oral, terá que negá-la totalmente. Não poderá
escolher aleatoriamente quais de suas leis atendem a seus
propósitos. Quem a nega, não pode alegar que o principal
mandamento de Yom Kipur é abster-se de comer e
beber porque em nenhum lugar da Torá Escrita isso está
ordenado. Não se pode negar a Torá Oral e tomar as
quatro espécies em Sucot, porque em nenhum lugar da
Torá Escrita suas identidades são reveladas. Finalmente,
aquele que nega a Torá Oral não deveria sequer ler um
Chumash ou um Sefer Torá, pois sem a Lei Oral não
saberíamos como dividir as letras, o que dizer, então, de
pronunciar suas palavras...
É importante observar, no entanto, que reconhecer a
autenticidade e a autoridade da Torá Oral não significa
que se alguém não segue todas as suas leis, não precisa
se preocupar em seguir nenhuma delas. O que se espera
de cada um dos judeus é honestidade e consistência
intelectual: ou se aceita que a Torá Oral é tão Divina
quanto a Escrita ou não. Não há outra opção. O que se
espera do Povo Judeu, acima de tudo, é que preserve os
fundamentos do judaísmo. O judaísmo autêntico é o
reconhecimento de que D’us Se revelou no Monte Sinai
e nos deu a Torá, de que a Torá é de Autoria Divina, e
que a Torá Oral tem igual importância à Escrita.
Não surpreende que os judeus que não aceitaram ou não
preservaram os princípios do judaísmo, acabaram por se
assimilar. Ainda que acreditem em D’us, na Divina
Revelação no Sinai e na Divindade da Torá Escrita,
isso não é suficiente. É a Torá Oral que distingue o
judaísmo das outras religiões, especialmente daquelas que
adotaram o Tanach. Na ausência da Torá Oral, não pode
haver um judaísmo real.
A Eternidade da Torá
No Talmud, vemos diferenças de opinião em assuntos da
Lei Judaica, especialmente entre as Escolas de Hillel e
Shammai. O Talmud declara que ambas as Escolas estão
corretas em suas sentenças; ambas refletem as Palavras
do D’us Vivo. Como poderiam ambas estar corretas? E
se a Escola de Shammai também estava correta em seus
veredictos, por que a Lei Judaica segue, em geral, os da
Escola de Hillel?
É possível haver diferenças de opinião em questões da
Lei da Torá porque assim como D’us possui tanto o
Atributo de Misericórdia como o de Justiça, também
a Torá, que é a Sua Vontade e Sabedoria, pode ser
23
Iluminura Moshé recebendo as Tabuas da Lei,
Hagadá de Sarajevo, Catalonia, século 14
aplicada de forma leniente ou severa. A Escola de Hillel
representava a Misericórdia Divina – e por essa razão
suas sentenças tendiam a ser mais lenientes. A Escola de
Shammai, por outro lado, refletia a Justiça Divina – por
isso a maioria de seus veredictos eram mais severos que
os da Escola de Hillel.
Em geral, a Lei Judaica sentencia segundo a Escola de
Hillel porque vivemos em um mundo imperfeito, onde
a Presença Divina é quase sempre oculta. Somos seres
humanos frágeis e necessitamos misericórdia e leniência.
Neste mundo de tantos desafios, é bastante difícil seguir
a lei da Torá mesmo segundo os veredictos da Escola
de Hillel. Contudo, quando Mashiach vier e o mundo
for aperfeiçoado, seguiremos as sentenças da Escola de
Shammai – pois seremos, então, capazes de seguir a Torá
de acordo a suas interpretações mais rígidas.
Isso significa que contrariamente ao que muitos pensam,
a Torá não será revogada quando o Mashiach vier. De
fato, como explicamos acima, nós a respeitaremos de
uma maneira ainda mais rígida e completa. O conceito
de uma “nova Torá”, tirado de um versículo de Isaías,
não significa que a Torá do Sinai foi ou será revogada
na Era Messiânica. Pois, como vimos acima, nenhum
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NOSSAS GRANDES FESTAS
foto: niels andreas
SEFER TORÁ DA SINAGOGA BEIT YAACOV. SÃO PAULO
profeta, nem mesmo Isaías, pôde mudar sequer um
pingo na Torá. Ademais, a Torá Oral, que é uma parte
indispensável para a compreensão da Torá Escrita,
explica que na Era Messiânica iremos observar a Torá
de acordo com Beit Shammai, a Escola de Shammai.
Portanto, o conceito de uma “nova Torá” significa uma
compreensão mais profunda dos ensinamentos da Torá e
o cumprimento mais rígido de seus mandamentos.
A Torá não pode mudar porque é a Vontade e Sabedoria
de um Ser Infinito e Perfeito, que vive acima e além do
tempo e de qualquer outra limitação. Em determinados
períodos no tempo, algumas das leis da Torá podem não
se aplicar. Por exemplo, não podemos cumprir muitos
de seus mandamentos na ausência do Templo Sagrado.
Contudo, nenhum dos mandamentos foi ou jamais será
permanentemente revogado.
A Cabalá ensina que a Torá é o projeto do mundo.
Como ensina o Zohar, “D’us olhou na Torá e criou o
mundo. O homem olha na Torá e o sustenta”. O Maharal
de Praga, um dos maiores Sábios da história judaica, que
ficou famoso por criar o Golem, perguntou, certa vez:
“Por que o mundo está-se perdendo?”. E ele respondeu:
“Porque a Torá foi abandonada”. E o que significa
abandonar a Torá? Significa não reconhecer que é
Divina e subestimá-la de alguma forma. O Talmud
afirma enfaticamente que questionar a origem Divina
de uma letra que seja ou de uma interpretação
tradicionalmente aceita da Torá equivale a negar toda
a Torá (Sanhedrin 99a). O Talmud vai mais adiante.
Ensina que aquele que nega que a Torá Oral foi
outorgada por D’us a Moshé é alguém que despreza a
palavra de D’us (ibid).
Como a Torá é o plano-mestre de D’us para o mundo,
aquele que se empenha em fortalecê-la, fortalece o
mundo. Ele ajuda a levar bênçãos, proteção, paz e
prosperidade a toda a humanidade. Quem, por outro
lado, enfraquece a Torá, faz exatamente o oposto.
A festa de Shavuot, que ocorre sete semanas após
Pessach, é a época mais propícia do ano para o Povo
Judeu fortalecer a Torá através da renovação de seu
compromisso de estudá-la e cumprir seus mandamentos.
Fortalecemos a Torá e trazemos bênçãos Divinas e
plenitude ao mundo preservando os fundamentos do
judaísmo: o reconhecimento de que D’us Se revelou
ao homem, de que a Torá é Divina e, portanto, eterna
e imutável, e de que apoia-se em dois pilares: a Torá
Escrita e a Torá Oral. São esses os princípios que
definem o judaísmo autêntico.
BIbliografia:
Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, Judaism: Discourse - Questions
and answers with Immanuel Schochet - www.youtube.com
Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, What the world doesn´t
know about the Messiah - The Logical Foundation of Judaism
- www.youtube.com
24
PERSONALIDADE
O LEGADO DE SHARON
POR ZEVI Ghivelder
O GENERAL ARIEL SHARON, SEMPRE CHAMADO DE ARIK,
DEIXOU UM LEGADO DEFINITIVO PARA O ESTADO DE ISRAEL:
SUA SOBREVIVÊNCIA. GRAÇAS À SUA ATUAÇÃO
NA GUERRA DO YOM KIPUR, O ESTADO JUDEU SE LIVROU DE
UMA CATÁSTROFE DE PROPORÇÕES INIMAGINÁVEIS.
E
m outubro de 1973, o Egito lançou uma
bem sucedida ofensiva contra Israel, rompendo
uma linha de defesa concebida depois da
Guerra dos Seis Dias, junto ao canal de Suez,
pelo general Bar Lev, então chefe do
Estado-Maior de Israel. Essa esteira de trincheiras e
casamatas de concreto, que recebeu seu nome, tinha como
finalidade garantir a presença israelense na Península
do Sinai. Àquela altura, o general Sharon já havia sido
transferido para a reserva, amargurado por não ter sido
nomeado chefe do Estado-Maior conforme esperava.
Por isso mesmo, permaneceu atuante na vida pública.
Costumava declarar, em sucessivas palestras e entrevistas,
que a dita Linha Bar Lev era inútil e contrariava duas
sólidas doutrinas militares postas em prática pelo exército
de Israel desde a fundação do Estado – o fator surpresa e,
em eventual combate, a rápida mobilidade. Tanto assim
que, certa ocasião, bem antes da Guerra do Yom Kipur,
depois de inspecionar a Linha Bar Lev, Arik fixou um
ponto na margem barrenta do outro lado do canal, com
cerca de um metro de altura, e disse para si mesmo: “Se
algum dia nós tivermos que atravessar tanques e tropas
para o lado de lá, aquele será o lugar ideal”.
Na véspera de Yom Kipur do ano de 1973, Arik recebeu
em sua casa, em Beersheva, a visita de um oficial da
Inteligência do exército que lhe mostrou uma série de
fotografias aéreas. As imagens revelavam uma compacta
formação de forças egípcias perto do canal de Suez.
Arik percebeu de imediato que uma guerra estava para
estourar. Moshe Dayan, ministro da Defesa, recomendou,
sem maiores formalidades, que Sharon se reintegrasse ao
comando da frente sul.
Quando os egípcios desfecharam seu ataque e
dominaram a Linha Bar Lev, eliminando dezenas de
soldados israelenses e fazendo mais de uma centena de
prisioneiros, o comandante da região sul de Israel era
o general Shmuel Gonen. Pouco experiente, faltou-lhe
a capacidade para uma reação imediata. A iniciativa de
Dayan de reconvocar Sharon provocou um conflito de
egos e rivalidades, como costuma acontecer em qualquer
corporação. Quando ele chegou ao posto de comando,
ouviu o seguinte de Gonen: “Essa guerra terá o
meu rótulo e não o seu”. Este desagradável entrevero
não teve uma só testemunha. Foi-me narrado pelo
próprio Arik.
Apegado à possível vulnerabilidade daquele ponto que
havia avistado do lado egípcio, começou a traçar um
ambicioso plano que consistia em atravessar o canal
de Suez. A inusitada travessia, caso consumada, tinha
três finalidades. Primeira: surpreender os egípcios e
posicionar tropas e blindados na direção do Cairo.
Segunda: dobrar à esquerda e seguir rumo à cidade de
Suez para ocupá-la. Terceira: Israel ficaria na retaguarda
25
abril 2014
PERSONALIDADE
do terceiro exército egípcio
impedindo que este recuasse ou
avançasse pelo Sinai, permanecendo,
assim, estático em função do cerco ao
qual estaria submetido. Em princípio
parecia uma ideia estapafúrdia.
Como atravessar o canal? Sharon
convocou engenheiros militares
e lhes pediu que elaborassem a
construção de uma ponte móvel
que se apoiaria sobre boias a serem
colocadas nas águas do canal.
Entretanto, um deslocamento de
tamanha proporção e de sucesso
duvidoso tinha que ser aprovado nas
mais altas esferas de planejamento
estratégico. O plano de Sharon
começou a ser avaliado por um grupo
de oficiais de altas patentes liderado
por David Elazar, chefe do EstadoMaior, e Chaim Bar Lev,
que, apesar de estar ocupando na
ocasião o Ministério do Trabalho,
voltara às fileiras do exército e tinha
voz ativa, quase preponderante, nas
decisões militares. Todos foram
contra a pretensão de Arik. Mas,
como levar a decisão a Sharon,
conversando com ben gurion em visita
a instalações militares de israel, 1971
conhecido por uma impetuosidade
que muitas vezes beirava a
insubordinação? A missão de
dissuadir Sharon do projeto da ponte
móvel competiu a Bar Lev. Foi tensa
e dramática a discussão entre os dois.
Arik confidenciou-me que, em dado
momento, controlou-se para não
agredir Bar Lev fisicamente tal a sua
frustração somada à indignação.
O assunto voltou à consideração
de Elazar, ainda indeciso no tocante
à imprevisível travessia do canal
de Suez. Por fim, com mão forte,
entrou em cena Moshe Dayan.
Ele foi ao encontro de Sharon,
inteirou-se do planejamento da
ponte e conseguiu convencer o
Estado-Maior de que, em face
da destruição da Linha Bar Lev,
da presença egípcia no Sinai e de
outros tantos desdobramentos da
guerra, as Forças de Defesa de
Israel só teriam como alternativa
arriscar uma incursão no território
inimigo. (Ao norte, felizmente, o
exército israelense conseguia conter
a ofensiva da Síria nas colinas do
Golan). Enfim, a ponte começou
a ser construída na décima noite
depois do início da guerra. Até então,
a sobrevivência de Israel era sombria
e imprevisível.
A implantação da ponte e a
consequente travessia dos tanques
e demais blindados israelenses, sob
fogo egípcio incessante, foi a mais
árdua e vitoriosa batalha travada pelo
exército de Israel em toda a história
do país. O jornalista David Landau,
ex-editor do jornal Jerusalem Post
e um dos mais ácidos críticos de
Sharon ao longo dos anos, escreveu
em um livro há pouco publicado:
“O êxito na travessia se deve à
audácia, à tenacidade e à devoção
de Ariel Sharon por ações ofensivas.
Sejam quais forem as controvérsias
em torno de seu nome, ele tem um
26
lugar assegurado no panteão de Israel
por conta da decisiva batalha travada
no transcurso daquela noite”.
Finda a Guerra do Yom Kipur,
Sharon esperava, e com toda a
razão, que dessa vez fosse nomeado
chefe do Estado-Maior. Se isso
tivesse acontecido, ele cumpriria um
mandato de dois anos no desejado
cargo, após os quais provavelmente se
retiraria da vida pública. Entretanto,
por causa das intrincadas injunções
políticas ocorridas dentro do
majoritário Partido Trabalhista,
ele foi preterido e o posto coube a
Mordechai (Motta) Gur, um dos
mais destacados comandantes na
Guerra dos Seis Dias. Fotografei
logo depois do conflito, as inscrições
feitas a cal nos tanques e blindados
e os grafites existentes em muros
de cidades israelenses nos quais se
lia: “Arik, melech Israel (Arik, rei de
Israel)”.
Com o manto, mas sem o poder da
realeza, Arik recorreu a uma série de
empréstimos bancários e comprou
uma grande fazenda perto da cidade
de Ashkelon, ao sul de Israel, tendo
como vizinho o Kibutz Bror Chail,
fundado por jovens brasileiros nos
anos 50. Dedicou-se a atividades
agrícolas dando prioridade para a
plantação e exportação de melões
ao mesmo tempo em que a política
começava a se infiltrar em sua vida
até então apenas dedicada à carreira
militar. Ele sentia que tinha contas a
acertar com o establishment.
Tal acerto resultou na formação
do Partido Likud, liderado por
Menachem Begin, que chegou ao
poder nas eleições seguintes, devendo
sua vitória em grande parte à
popularidade de Arik, o número dois
da lista do partido. Suas decepções
por jamais ter sido chefe do EstadoMaior foram compensadas quando
REVISTA MORASHÁ i 83
Ariel Sharon no kotel, fevereiro de 2001
Begin o nomeou ministro da
Defesa. Encontrei-me com ele em
Nova York, em 1982, durante uma
visita oficial que fez aos Estados
Unidos. Perguntou-me quando
eu iria de novo a Israel. Disse que
viajaria quando ali ocorresse algum
evento importante. Respondeu-me
com um tom de seriedade: “Então
logo, logo, você virá”. Era a véspera
da invasão do Líbano que Arik
comandaria naquele ano, mas eu
não tive a menor ideia de que ele
estivesse se referindo a uma ação
militar. A invasão do Líbano acabou
se tornando um dos momentos
mais cruciais e controvertidos de
sua vida pessoal e de sua trajetória
como soldado. Poucos sabem
que muito antes da invasão, Arik
tinha mantido encontros secretos
com Bashir Gemayel, líder dos
cristãos falangistas libaneses.
Essa foi a estratégia que ambos
desenvolveram: na ação militar, Arik
expulsaria a OLP do Líbano, uma
permanência que desestabilizava
o país e confrontava o poder de
Bashir. Assim, sem a presença de
Arafat, Bashir assumiria o poder
e o Líbano faria a paz definitiva
com Israel. A primeira parte do
plano deu certo, obrigando Arafat
a procurar abrigo na Tunísia. Na
segunda parte, Bashir de fato subiu
ao poder, no qual se manteve por
apenas cinco dias: foi assassinado
aos 35 anos de idade e substituído
por Amin, seu irmão, incompetente
e cético para incrementar os acordos
anteriormente feitos por Bashir.
No enorme tumulto reinante no
Líbano naquelas semanas,
um grupo de falangistas, disposto a
vingar-se dos muçulmanos por
causa do massacre sofrido anos antes
por seus correligionários na cidade
de Zahle, invadiu no dia 16 de
setembro os campos de refugiados
de Sabra e Chatila e perpetrou
assassinatos contra a sua população.
A culpa pelos crimes recaiu sobre
Sharon, acusado por não ter evitado
que aquele massacre acontecesse.
Tratava-se de um argumento
subjetivo que logo contaminou a
opinião pública mundial e, inclusive,
estendeu-se à de Israel. Era, por
absurdo, como se o próprio Arik
tivesse dado a ordem para o ataque
contra os refugiados.
27
O massacre de Sabra e Chatila
ganhou tamanha dimensão que o
governo de Israel decidiu instituir
uma comissão de inquérito para
apurar aquele trágico acontecimento.
A propósito, o famoso jornalista
italiano Arrigo Levi escreveu
no jornal La Stampa, de Turim:
“É muito difícil apontar outra
nação que, em tempo de guerra,
se submeta a uma autocrítica tão
severa e tão aberta”. A comissão foi
presidida pelo juiz Itzhak Kahan, da
Suprema Corte do país. Segundo o
primeiro relatório da investigação,
quando as tropas israelenses
tomaram conhecimento do que
havia acontecido, intervieram e
obrigaram os falangistas cristãos a se
retirarem dos campos de refugiados.
Receberam, inclusive, manifestações
de gratidão por parte da população
muçulmana libanesa.
A opinião pública e a oposição ao
Likud exigiram que a investigação
fosse aprofundada. No final, a
comissão atribuiu a Begin e a Sharon
“um certo grau de responsabilidade”
pelo massacre, estendendo o
mesmo conceito ao general Raphael
abril 2014
PERSONALIDADE
1
2
3
1. com o então ministro da defesa de israel Shimon Peres, no front israelo-egípcio, em ras sudar. fim da guerra de yom kipur
2. com a mulher lily e dois filhos, na margem ocidental. 3. com Dayan festejando a travessia do canal de suez, 10º dia da
guerra de yom kipur, 1973
Eitan, chefe do Estado-Maior.
Enquanto os demais indiciados
permaneceram em suas funções,
Sharon anunciou que, para a
preservação de sua dignidade,
renunciaria ao cargo de ministro
da Defesa. Foi um exemplo, um
legado para os homens públicos de
quaisquer países.
Entretanto, muito mais do que o
relatório final da comissão, o que
de fato atingiu o brio de Sharon
foi uma reportagem publicada pela
revista semanal americana Time
na qual se lia que, durante uma
reunião com a família Gemayel,
Arik tinha incitado os falangistas a
promoverem o massacre nos campos
de refugiados como vingança pelo
assassinato de Bashir. Era uma
difamação sem nenhum fundamento
e da maior gravidade. Anos depois,
ouvi o seguinte de Sharon: “Quando
eu soube do conteúdo da revista,
o primeiro pensamento que me
ocorreu, foi uma referência às
infâmias contidas no livro apócrifo
Protocolos dos Sábios de Sion,
no qual os judeus são acusados de
promoverem rituais de sangue.
A tal reportagem seguia o mesmo
caminho, sujando minhas mãos com
o sangue de inocentes”. O jornalista
Uri Dan, já falecido, meu querido
amigo e o mais leal escudeiro de
Sharon por mais de 40 anos, contoume que estava presente na reunião
de Sharon com a família enlutada
de Gemayel. Conforme seu relato,
jamais houve, no dito encontro, a
mais remota menção a um ato de
vingança ou a um incitamento
para o massacre dos refugiados.
Sharon decidiu processar a revista
Time, pedindo uma indenização
28
da ordem de US$ 50 milhões e que
também lhe custou uma fortuna
com despesas legais. O processo
se alongou por três anos de forma
passional e tumultuada, na corte
de Nova York, tendo à frente o juiz
Abraham Sofaer, por acaso judeu.
David Halevy, correspondente da
Time em Israel, foi chamado para
testemunhar e acabou confessando
que a informação que transmitira à
direção da revista não provinha de
uma fonte confiável.
Os jurados do caso concluíram que a
revista era inocente, mas Sofaer, em
sua sentença, optou por uma solução
salomônica, ou seja, uma solução que
atingia os dois lados da questão. Por
um lado, julgou que Sharon de fato
tinha sido difamado; por outro, julgou
que a revista agira sem intenção de
malícia. De qualquer maneira, ficou o
legado de Sharon no sentido de que
REVISTA MORASHÁ i 83
tal sórdida acusação jamais tornaria
a ser imputada a qualquer judeu em
qualquer parte do mundo.
Outro momento polêmico da
trajetória de Ariel Sharon foi a sua
visita, em setembro de 2000, ao
Monte do Templo, onde se situa
a mesquita de Al-Aksa, no lado
de Jerusalém com predominância
de população árabe. Cercado
por seguranças e hostilizado por
populares, Sharon ali permaneceu
por 45 minutos. Houve um
consenso na mídia internacional
de que aquele passeio de Sharon
configurava um intuito de
provocação e, portanto, teria dado
origem à segunda Intifada, ou seja,
sucessivos atos de violência contra
civis e militares israelenses. Foi uma
conclusão longe da verdade.
A Intifada já vinha sendo preparada
há algum tempo e se solidificou
quando Arafat manteve, em julho,
uma negociação com Ehud Barak,
então primeiro-ministro de Israel,
mediada por Bill Clinton em Camp
David. Os radicais palestinos temiam
que Arafat ali fizesse concessões, que
na verdade não fez, e programaram
ações rebeldes que acabaram
eclodindo meses mais tarde. Por seu
lado, Arik assim justificou a ida ao
Monte do Templo: “Jerusalém é a
capital de Israel. Nenhum judeu pode
ser impedido de caminhar quando e
como quiser na capital de seu país”.
Note-se que Sharon sempre usou
muito mais o termo judeu do que a
condição de israelense.
De todos os homens públicos
de Israel que tive o privilégio de
conhecer pessoalmente, nenhum
deles avistou o povo judeu com a
abrangência de Sharon. Ele não
gostava da palavra diáspora e via
e sentia o povo judeu como uma
só nação, uma só entidade. Numa
conversa com o diplomata americano
Sharon visita um mirante do exército em Tovlan, no vale do Jordão, janeiro de 2001
Elliot Abrams, especialista em
assuntos do Oriente Médio, ele
comentou: “Acima de tudo, sou um
judeu e sinto que carrego nos meus
ombros a responsabilidade pelo
futuro do povo judeu. Não quero
que o futuro do povo judeu
dependa de ninguém, nem mesmo
dos nossos melhores amigos”. Mais
um momento polêmico e controverso
em sua vida: a retirada de Gaza,
quando era primeiro-ministro.
Enquanto tantos outros líderes
sempre disseram almejar a paz, ele
passou da retórica para a realidade.
A retirada unilateral de Israel de
Gaza, em 2005, poderia causarlhe enorme dano político no plano
doméstico, já que a retirada implicava
em desalojar daquela região centenas
de famílias de israelenses. Sempre
pragmático, Arik analisou a questão
de Gaza da seguinte forma:
29
“A esquerda não faria nada; a direita
muito menos. Se eu não fizesse,
ninguém faria. E se eu fracassar nessa
iniciativa, nunca mais alguém tentará
coisa alguma”. Arik não fracassou,
mas enfrentou uma feroz oposição
interna, o que correspondia a uma
contradição: em todas as pesquisas
de opinião pública a população
israelense afirmava com larga
maioria que era a favor da paz. Pois
justamente quando Sharon deu um
passo concreto nesse sentido, sofreu
os mais inflamados ataques e críticas.
Com bom humor, disse a um amigo:
”Durante toda a minha vida achei
que devia proteger os judeus. Agora
vejo que tenho que me proteger
deles...”.
Ariel Sharon partiu sem concretizar
o projeto que mais ambicionava.
Queria que as fronteiras de Israel
estivessem totalmente definidas
abril 2014
PERSONALIDADE
1
2
3
4
5
6
1. com Tony Blair durante conferência em jerusalém, dez. 2004 2.com o então presidente George W. Bush em entrevista
coletiva à imprensa no rancho de bush, Texas, 2005 3. com bill clinton, jerusalém, nov. 2005 4. em visita aos eua
5. com shimon peres, então vice primeiro ministro, knesset 6. filho Gilad Sharon, netos e nora no túmulo de sharon
quando deixasse o posto de
primeiro-ministro. Segundo relato
do mesmo Abrams, quando Sharon
sofreu um leve derrame, no dia
18 de dezembro de 2005, recebeu
um telefonema do presidente
George W. Bush, ao qual disse:
“Estou me sentindo bem. Vou
repousar alguns dias e em seguida
volto ao trabalho”. Bush respondeu:
“Nós precisamos de você com
saúde. Regule melhor suas horas de
atividades. Preste atenção na comida,
você precisa emagrecer”.
Qual o legado de Ariel Sharon para
o povo de Israel e para o povo judeu?
Não há um legado, há inúmeros
legados, mas todos forjados na
mesma natureza: a sua inabalável e
constante defesa do Estado Judeu
desde os primeiros passos na carreira
militar e na vida política, sempre
seguro de suas ações e sem temer
objeções. Um exemplo eloquente:
a certa altura, decidiu começar a
construir um muro na fronteira
com a Cisjordânia. O mínimo que
a mídia disse é que se tratava de
uma réplica do muro de Berlim,
um verdadeiro muro da vergonha.
Arik nem ouviu. E o fato é que
naquela região o tão contestado muro
está contribuindo para diminuir o
terrorismo em pelo menos 90%.
Para quem imagina que o legado é
um conceito abstrato, fui testemunha
de seu legado concreto.
Transcrevo, a seguir, o que escrevi
aqui na revista quando Arik adoeceu
de vez em janeiro de 2006. Repito
a essência do texto porque qualquer
acréscimo seria supérfluo. Na terceira
semana de outubro, dias depois do
cessar-fogo, fui ao acampamento de
Arik do outro lado do canal de Suez.
Dali embarcamos num pequeno
avião monomotor que nos levou até
perto de sua casa, em Beersheva.
Em seguida, rumamos para uma
localidade próxima, Beeri, em cujo
cemitério haveria uma cerimônia em
homenagem aos militares mortos
30
durante o conflito. Eram cerca de
400 túmulos rodeados pelas famílias
dos soldados, a maioria jovens
entre 18 e 30 anos de idade. Por
quanto tempo eu ainda viver, jamais
esquecerei o som daquele Kadish
(oração pelos mortos) coletivo,
entoado por centenas de vozes
soluçantes, enquanto Arik também
chorava.
Na saída do cemitério, centenas de
pessoas se atiraram ao seu encontro
para abraçá-lo e cumprimentá-lo.
Lembro bem de um judeu humilde,
decerto de procedência oriental,
aparentando uns sessenta e tantos
anos, que parou à sua frente e disse:
“Arik, a guerra levou meus dois
filhos. Mas, se foi para o bem de
Israel, que assim seja. Obrigado pela
nossa salvação”.
ZEVI Ghivelder,
ESCRITOR E JORNALISTA
ATUALIDADES
A CRIMeIA e os judeus
POR JAIME SPITZCOVSKY
Pivô de uma das crises internacionais mais relevantes das
últimas décadas, a península da Crimeia, anexada em março
pela Rússia após seis décadas de controle pela Ucrânia,
evoca diversos momentos importantes da história judaica.
A
presença comunitária remonta ao
século I (EC), e a região representou abrigo
para judeus que fugiam de pogroms da era
czarista, foi palco de projetos agrícolas de
treinamento para o movimento sionista
e serviu como pretexto para um dos momentos mais
dramáticos do antissemitismo soviético. O ditador
Josef Stalin fabricou a paranoia de que a Crimeia serviria
para a criação de um separatismo judaico, com apoio do
arqui-inimigo EUA.
A Crimeia se notabilizou ao longo da história por
representar uma área estratégica. Trata-se de saída para
o importante mar Negro, cujas águas banham o litoral
de dois gigantes, russos e turcos. Czares e sultões
travaram guerras para garantir também um território
com solo cultivável. Em 1783, Catarina, a Grande,
impôs o controle russo sobre a região, ao derrotar os
rivais otomanos.
Sete décadas mais tarde, eclodiu a Guerra da Crimeia,
responsável por envolver o sul da Rússia e se estender
até os Bálcãs. Naquele conflito, o império russo tentou
ampliar sua hegemonia avançando sobre o decadente
poder otomano, mas teve de enfrentar reação responsável
por unir britânicos, franceses, e italianos. O czar
Nicolau I testemunhou o fracasso da empreitada militar,
que se celebrizou como uma das primeiras “guerras
modernas”, com uso intenso de estradas de ferro e
telégrafos.
31
Apesar da derrota, que diversos historiadores classificam
como o início da decadência dos czares que levaria
à Revolução Bolchevique de 1917, o império russo
manteve a península da Crimeia sob seu domínio.
Na região de clima temperado, a presença judaica,
registrada há quase vinte séculos, passou a aumentar
depois de 1791, após a permissão czarista para o
assentamento de judeus.
Os pogroms de 1881e 1882 em outras áreas do
império russo impulsionaram a chegada de judeus à
Crimeia, atraídos também pela perspectiva da região
se transformar num polo para produção e exportação
agrícola. A discriminação também era menos intensa
do que em áreas do império russo, como Ucrânia ou
Bielorrússia, cenário histórico de shttels, a aldeia judaica
típica da Europa Oriental. A vida comunitária na
península se intensifica a partir do final do século 19,
com a organização de vida religiosa e cultural. Em 1897,
contabilizavam-se lá mais de 28 mil judeus, cerca de 5%
da população.
Nessa época, florescia o movimento sionista, que
encontrou na Crimeia uma comunidade interessada
em participar ativamente do sonho da reconstrução do
Estado judeu. Um dos personagens mais importantes da
história do sionismo, Joseph Trumpeldor, buscou aquelas
terras às margens do Mar Negro para treinar jovens
interessados em aprender técnicas agrícolas que seriam
fundamentais para a criação das comunidades judaicas
abril 2014
ATUALIDADES
na Terra de Israel, então dominada
pelo império otomano. Trumpeldor,
nascido na Rússia, morreu em 1920,
na batalha pela defesa de Tel Hai,
comunidade pioneira localizada na
Galileia.Chamada muitas vezes de
“parte da Nova Rússia”, por ter sido
conquistada pelo império apenas
no final do século 18, a Crimeia
não escapou das turbulências e da
violência que castigaram a região
durante a guerra civil ocorrida após
a revolução bolchevique de 1917.
Comunistas liderados por Vladimir
Lênin enfrentaram a resistência do
antigo regime czarista, e a península
do Mar Negro testemunhou algumas
das batalhas mais sangrentas. Houve
também significativo êxodo de
população civil. Após ter chegado
ao ápice demográfico, com 60 mil
integrantes, a comunidade judaica
viu seu tamanho se reduzir à metade,
quando do conflito final entre
vermelhos e brancos, em 1921.
O fim do enfrentamento representou
um novo impulso para a presença
judaica na Crimeia. A derrota dos
remanescentes do czarismo não
significou estabilidade nos domínios
bolcheviques, e muitos judeus do
interior da Ucrânia buscaram refúgio
na península meridional, à espera da
consolidação do regime comunista
ou na rota da aliá, aguardando a
oportunidade de emigrar para a
Terra de Israel. Entre 1922 e 1929, a
parte norte da Crimeia abrigou três
comunas judaicas.
A década de 1920 reservou
momentos fundamentais para a
história judaica na península. O
norte-americano, agrônomo, Joseph
Rosen, de origem judaica, propôs ao
governo soviético que reassentasse
judeus atingidos por pogroms em
áreas da Ucrânia, no solo fértil e
no clima mais ameno da Crimeia.
O Joint, organização judaica de
assistência humanitária, financiaria a
empreitada.
O Kremlin aprovou a ideia.
Imaginava ganhar assim reforço em
bolsões de resistência anticomunista
na Crimeia, onde os tártaros,
habitantes da região desde a invasão
mongol no início da Idade Média,
além de ucranianos e descendentes
de alemães, ensaiavam movimentos
nacionalistas e contrários ao poder
soviético. O poderoso Politburo,
órgão máximo de decisões do Partido
Comunista da URSS, aprovou, em
1923, a criação da Região Autônoma
Judaica da Crimeia. Meses depois, a
cúpula bolchevique reviu a decisão e,
para a “questão judaica”, optou por
desenhar uma região na longínqua
Birobidjan, próxima à Sibéria e à
fronteira com a China.
A Crimeia, no entanto, não saiu
do mapa do Joint. A organização
angariou recursos junto a filantropos
judeus, como Julius Rosenwald,
empresário famoso por sua
participação na história da Sears,
Roebuck & Co., para viabilizar
fazendas coletivas judaicas em solo
soviético. O censo oficial de 1939
indicou mais de 65 mil judeus
vivendo na península (quase 6% da
população), dos quais 20 mil em
colônias agrícolas.
Os nomes das iniciativas revelavam
a riqueza linguística e diferentes
influências ideológicas que
conseguiram conviver em meio
à agitação dos anos 1930. Havia
Pobeda (vitória, em russo), Fraylebn
(vida livre, em iídiche), e Yidendorf
(vilarejo judaico, em iídiche), rótulos
mais inspiradores para os judeus
comunistas do que os nomes Achdut
(unidade, em hebraico) e Herut
(liberdade, em hebraico), certamente
mais apreciados por aqueles que
sonhavam em fazer aliá.
Os líderes aliados: Winston Churchill (Inglaterra), Franklin Roosevelt (EUA)
e Joseph Stalin (URSS). Yalta, Crimeia, 1945
32
Professor da Universidade de
Michigan, Jeffrey Veidlinger,
lembrou, em texto recente publicado
no site Tablet Magazine, que uma
das canções em iídiche mais famosas
do período soviético começa com
REVISTA MORASHÁ i 83
Agricultores de uma comuna judaica na Crimeia celebram a pedra fundamental de uma nova escola. 1927
o verso “A caminho de Sebastopol,
não muito longe de Simferopol”,
referências a duas das mais
importantes cidades da Crimeia.
A música celebra uma fazenda
coletiva judaica na localidade de
Dzhankoy e fala das “conquistas
da sovietização”, além de destacar
a transformação de judeus
comerciantes em agricultores. A
propaganda do Kremlin buscava
alicerçar as bases de um regime
imposto pelo stalinismo.
De Moscou, o ditador Josef Stalin
preferia a opção de Birobidjan para a
“questão judaica”. Mas, na Crimeia,
os judeus comunistas não desistiam
de trazer para a península a proposta
de uma região em que ganhassem
autonomia, ainda que debaixo do
guarda-chuva vermelho.
Em 1941, para surpresa de Stalin,
os nazistas invadiram a URSS,
rompendo um pacto de não-agressão
que havia sido assinado dois anos
antes. Adolf Hitler desejava manter a
frente oriental em silêncio, enquanto
avançava sobre o oeste da Europa. O
ditador soviético avaliou que poderia
dividir com seu inimigo ideológico
o espólio dos impérios britânico e
francês. Interessados na agricultura
da Ucrânia e no petróleo do Cáucaso,
fundamentais para a estratégia bélica
de Berlim, os hitleristas rasgaram
o pacto e mergulharam no solo do
império fundado por Lênin.
A aproximação da barbárie
nazista levou judeus a buscarem
refúgio em paragens no leste da
URSS, chegando, por exemplo,
ao Cazaquistão e ao Uzbequistão,
na Ásia Central. Reorganizaram
lá suas fazendas coletivas. Muitos
retornaram ao front, para combater
no Exército vermelho. Em 1944,
os nazistas foram derrotados na
península da Crimeia, depois do
massacre de cerca de 40 mil judeus
na península.
A vitória sobre o nazismo significou
o início de uma nova etapa de
atrocidades na região. O regime
stalinista deportou 180 mil tártaros
da Crimeia para a Ásia Central,
acusados de colaborar com o invasor
hitlerista. Na punição coletiva,
calcula-se que quase 50% das vítimas
morreram de fome e de doenças
durante o deslocamento. Apenas em
1967, o Partido Comunista da URSS
reabilitou a população punida, mas
33
manteve restrições a seu retorno à
península. Tais limites duraram até
os últimos dias da União Soviética,
que se desintegrou em 1991.
No período stalinista, a Crimeia
também esteve presente numa
tragédia para o povo judeu. O
capítulo começa quando o líder
Salomon Mikhoels, do Comitê
Judaico Antifascista, se reuniu com
o chanceler soviético, Vyacheslav
Molotov, para resgatar a ideia de
criar uma região de autonomia
judaica na Crimeia do pós-guerra.
Mikhoels havia retornado de uma
viagem aos Estados Unidos, onde,
a mando de Stalin, esforçou-se para
arrecadar fundos para o esforço de
guerra do Kremlin.
Expoente do teatro iídiche, Mikhoels
foi ao encontro com Molotov
acompanhado do poeta Yitzik
Fefer, integrante do Comitê Judaico
Antifascista. Os dois saíram da
reunião convencidos do apoio de
Molotov à ideia, que tinha respaldo
do Joint. Em seguida, enviaram a
proposta por escrito a Josef Stalin.
Cometeram um equívoco trágico.
O ditador soviético nutria a paranoia
abril 2014
ATUALIDADES
Manifestações na Crimeia, 2014
de que poderiam ser espiões os soviéticos que
haviam entrado em contato com o inimigo.
Mikhoels se encaixava na categoria, devido
à viagem aos EUA. Além disso, o popular
ator e diretor havia ousado desenhar uma
proposta para a “questão judaica” com o apoio
da comunidade judaica norte-americana.
Stalin, logo após a Segunda Guerra Mundial,
manifestou a crença de que um conflito armado
com os Estados Unidos seria inevitável e num
futuro próximo. E, na visão stalinista, “os judeus
conspirariam a favor do inimigo”.
Uma onda de antissemitismo varreu a
URSS. Salomon Mikhoels foi assassinado em
12 de janeiro de 1948. Seu corpo foi colocado
sob um carro, para simular atropelamento.
A sanha stalinista prendeu o poeta Fefer.
Foi executado em 1952, na prisão de Lubyanka,
sede da NKVD, a antecessora da KGB.
JAIME SPTIZCOVSKY,
foi editor
internacional e
correspondente
da Folha de S.
Paulo em Moscou
e em Pequim.
Naquele 12 de agosto, que entrou para a
história como a Noite dos Poetas Assassinados,
foram também mortos mais doze intelectuais
judeus, como Dovid Hofshteyn, Benjamin
Zuskin, Peretz Markish e Leyb Kvitko.
A perseguição seguiu com outra fabricação do
stalinismo: o Complô dos Médicos.
O Kremlin acusou diversos médicos, em sua
maioria judeus, de tentar envenenar lideranças
soviéticas. Stalin morreu em 5 de março de
1953, antes do final do julgamento-farsa.
34
Os acusados foram então libertados. No ano
seguinte, Nikita Khruschev, successor de
Stalin, transferiu o controle da Crimeia da
Rússia para a Ucrânia. À época, pareceu uma
mudança cosmética, já que o fim da União
Soviética não despontava no horizonte.
Ao contrário. O regime comunista parecia
reforçar seu controle sobre os solos russo e
ucraniano, vindo, a mão-de-ferro, de Moscou.
Porém, em 1991, a URSS se desintegrou,
e o império criado por Lênin deu lugar a
15 países independentes, entre eles a Rússia,
o maior de todos, e a Ucrânia. E, em março
de 2014, o presidente Vladimir Putin, após a
Ucrânia iniciar o afastamento da órbita
de influência de Moscou, reanexou a península
da Crimeia, sob o argumento de que 60%
dos habitantes são russos e que “corrigia o erro
histórico de Khruschev”. Atualmente,
vivem na península cerca de 17 mil judeus.
E que assistem, preocupados, às turbulências
da região e às ameaças antissemitas.
Recentemente, antes da anexação russa, a
sinagoga de Simferopol amanheceu pichada,
com a inscrição “Morte aos judeus”. Putin
afirmou que vai combater o antissemitismo
e outras formas de intolerância na Crimeia.
Importantíssimo acompanhar, com atenção,
uma região com um histórico longo de guerras,
tragédias e mortes.
PERSONALIDADE
STANLEY FISCHER: O PROFESSOR
DOS PROFESSORES
Aos 70 anos, é considerado um dos mais importantes
presidentes de Bancos Centrais ainda atuantes no
sistema financeiro mundial. Seu currículo é extraordinário,
com uma longa lista de realizações acadêmicas e
profissionais. Economista brilhante, é um dos pais da
Nova Economia Keynesiana1.
A
favor da abertura de mercados, Fischer possui
ampla experiência em lidar com economias
em crise. Seu grande conhecimento de
Economia e sua inteligência rara lhe
permitem destrinchar os assuntos mais
complexos. No seio da comunidade financeira mundial
é respeitado tanto por seu trabalho acadêmico quanto
por sua atuação na área de políticas econômicas. Como
um dos principais economistas do Fundo Monetário
Internacional (FMI), ajudou a conduzir a economia
global ao longo da crise financeira mundial de 19971998, que atingiu a Ásia, América Latina e Rússia.
Posteriormente teve um alto cargo no Citigroup e, de
2005 a 2013 foi presidente do Banco de Israel, sendo
considerado, no país, uma espécie de super-herói.
Calmo, cordial e objetivo, Fischer é cuidadoso e
analítico em situações de crise, mas, sempre que lhe
pareceu necessário, demonstrou a coragem de tomar
decisões controversas e arriscadas. Apesar de seus
extraordinários dons intelectuais, quem o conhece afirma
que não é pretensioso, mas homem humilde, dono
de uma capacidade singular de ouvir aqueles que não
concordam com ele.
Ensinou durante muitos anos nas mais renomadas
universidades e é respeitado e amado pelos seus ex-
alunos. Entre outras importantes instituições de ensino,
foi professor e diretor do Departamento de Economia
do MIT (Massachusetts Institute of Technology,
Instituto de Tecnologia de Massachusetts), em Boston.
Detentor de dupla cidadania, americana e israelense, em
janeiro deste ano de 2014 foi nomeado, pelo presidente
Barack Obama, vice-presidente do Federal Reserve dos
Estados Unidos. Sua indicação deve ser confirmada
pelo Senado. Segundo o presidente dos EUA, ele é
“uma das mentes principais e mais experientes em
política econômica, no mundo”. Se confirmado no cargo,
Fischer substituirá Janet Yellen, atual presidente do Banco
Central dos EUA. Trabalharão juntos para garantir a
recuperação e o crescimento da economia americana.
Sionista confesso, tem uma profunda ligação com o
Estado Judeu. Quando foi chamado a ajudar o país,
fez aliá com a esposa Rhoda, com quem teve três filhos,
e dedicou anos de sua vida a Israel.
Sua vida
Descendente de uma família lituana, Stanley Fischer
nasceu em Zâmbia, em 1943. Passou sua infância em
Mazabuka, uma cidade no nordeste da Rodésia – atual
Zâmbia, onde sua família gerenciava uma loja de
35
abril 2014
PERSONALIDADE
Binyamin Netanyahu (D) com o governador do Banco de Israel, Stanley Fischer
produtos diversos. Era difícil a vida
na África Central. A casa na qual
cresceu, que ficava atrás da loja de
seus pais, não tinha água corrente e
a energia elétrica era pouca. Quando
ele tinha 13 anos, os Fischer se
mudaram para o sudeste da Rodésia,
atual Zimbábue.
A nova economia
keynesiana é
uma corrente
de pensamento
econômico nascida
nos anos 1980.
1
Maynard Keynes
(1883-1946),
economista
britânico de grande
influência apoiava
a intervenção
do governo na
economia e o
aumento do
consumo público
para evitar o
desemprego.
2
Fischer tornou-se membro ativo do
movimento sionista juvenil Habonim
e visitou Israel pela primeira vez em
1960, num programa de liderança
juvenil. Estudou hebraico no Kibutz
Magaan Michael. Para Fischer e
Rhoda Keet, então sua namorada e
com quem viria a se casar, a viagem
marcou o início de um profundo
comprometimento com Israel.
Fischer foi introduzido nas teorias
de John Maynard Keynes2 durante
um curso de Economia no ensino
médio. Decidiu estudar essa ciência.
Segundo ele, foi “fisgado” ao tomar
conhecimento de que, durante a
Grande Depressão de 1929, “o
mundo como o conhecíamos quase
desmoronou” e que foi salvo pelas
ideias de Keynes.
Formação acadêmica
Fischer estudou na London School of Economics de 19621966, obtendo o bacharelado e o mestrado em Economia.
Em seguida, estudou em Boston, no MIT, então na
vanguarda do desenvolvimento de uma abordagem
rigorosamente matemática da Macroeconomia. Obteve
seu doutorado em 1969 e, no ano seguinte, começou a
trabalhar como assistente do professor de Economia na
Universidade de Chicago.
Interessante notar que, em sua carreira, Stanley Fischer
transitou em ambos os lados das duas principais
vertentes no campo da teoria econômica – ensinou na
Universidade de Chicago, conhecida por sua defesa dos
livres mercados e laissez-faire econômico, e no MIT, onde
os acadêmicos defendiam a teoria econômica keynesiana
e a da intervenção do Estado na economia.
Fischer retornou, em 1973, para o MIT como professor
associado do Departamento de Economia. Em 1976,
naturaliza-se americano. No ano seguinte, tornou-se
professor de Economia. Foi professor visitante na Hoover
Institution, em Stanford, e na Universidade Hebraica
de Jerusalém. Durante duas décadas foi membro do
Conselho de Governadores da Universidade Hebraica.
Considerado o professor dos professores, ao longo de
sua carreira acadêmica ele moldou algumas das mais
brilhantes mentes do universo econômico. Muitos de
36
REVISTA MORASHÁ I 83
seus alunos se transformaram em
economistas proeminentes, chegando,
alguns, a presidentes de vários bancos
centrais. Entre seus alunos estão o expresidente do FED norte-americano,
Ben Bernanke, o presidente do Banco
Central Europeu, Mario Draghi, o
ex-presidente do Conselho Nacional
de Economia na gestão de Barack
Obama, Lawrence Summers, e Greg
Mankiw, assessor econômico do expresidente George W. Bush, entre
muitos outros. Bernanke sempre
considerou Fischer, orientador de
sua tese no MIT, um dos professores
mais influentes que teve.
Ao longo de sua carreira Fischer
publicou várias obras; entre elas:
Macroeconomics, em parceria com
Rudi Dornbusch, e Lectures in
Macroeconomics, com Olivier
Blanchard. Frequentemente usados
como livros-texto em universidades
americanas, as duas obras tiveram um
papel-chave na mudança do estudo
da Macroeconomia.
Formulador de
políticas econômicas
Fischer começou a se envolver na
política econômica em 1985. O
então secretário de Estado dos EUA,
George Shultz, o convidara para
ajudar o governo israelense a lidar
com uma inflação de três dígitos,
reservas cambiais que minguavam
e um lento crescimento econômico.
Juntamente com seu colega Herbert
Stein, Fischer conclui que os
problemas econômicos israelenses
eram o resultado de gastos excessivos
do governo. Sugeriu cortes drásticos
nas despesas governamentais,
ressaltando que tal redução também
diminuiria a dependência do país
de ajuda externa. Shimon Peres,
então Primeiro Ministro, seguiu as
diretrizes de Fischer e a economia
israelense melhorou drasticamente.
A inflação despencou de 450%
para 20% no decorrer de um ano.
Segundo Peres, atual presidente de
Israel, “Ninguém poderia ter-nos
orientado melhor”.
De 1988 a 1990 foi economistachefe do Banco Mundial. Lá teve a
chance de trabalhar e lidar com um
leque maior de políticas econômicas.
Durante sua permanência à frente
do Banco Mundial, concentrou-se
na importância da criação de um
ambiente macroeconômico estável
e instituições financeiras sólidas
como elementos-chave para atingir
objetivos de longo prazo, como
crescimento e desenvolvimento
econômico. Por ter crescido numa
região pobre do mundo, sempre se
interessou pelo desenvolvimento
econômico dos países.
Ao deixar o Banco Mundial,
Fischer retornou ao MIT e à vida
acadêmica e, em 1993, tornouse diretor do Departamento de
Economia da instituição. Deixou o
cargo no ano seguinte, quando se
tornou Vice Presidente do FMI,
o segundo cargo em importância
na instituição. Ao longo dos sete
anos seguintes, teve que lidar com
as crises econômicas enfrentadas,
entre outros, pelo México, Rússia,
Argentina e Turquia, além de vários
países da Ásia. No Brasil, teve uma
atuação muito próxima ao então
ministro da Fazenda, Pedro Malan
e a equipe e ministério do governo
de Fernando Henrique Cardoso,
com grande influencia nas decisões
sobre a politica econômica no
país. Também esteve envolvido no
aconselhamento às “economias em
transição” – ou seja, as economias
dos países do antigo bloco soviético
– no tocante ao ritmo e tipo de
reformas que deveriam implementar
para a transição do comunismo ao
capitalismo. Deixou o FMI em
37
2001. Seu mandato chegara ao fim
sem que se tivesse concretizado sua
aspiração de presidir a instituição.
No ano seguinte, aceitou a vicepresidência do Citigroup, sua
primeira atuação no setor privado.
Deixou a instituição em 2005 e,
em maio daquele ano, tornou-se
presidente do Banco de Israel,
instituição semelhante ao Banco
Central brasileiro. Ficou no cargo até
30 de junho de 2013.
Stanley Fisher em Israel
Desde a sua primeira visita ao
país, em 1960, ele sempre teve
uma profunda conexão com
Israel, costumando visitar o país
anualmente. Ele diz gostar das
celebrações pelo Yom Haatzmaut,
pois o que mais o toca é “o fato deste
país existir!”.
Durante um ano lecionou na
Universidade Hebraica de Jerusalém.
No final da década de 1970 foi
consultor do Banco de Israel e,
como vimos acima, em 1985, um dos
arquitetos do plano de estabilização
da economia do país. Ao longo
dos anos continuou prestando
consultoria a autoridades israelenses,
à distância. No final de 2005 recebeu
a surpreendente oferta para assumir
o cargo de presidente do Banco de
Israel. Houve quem estranhasse
a oferta, pois Fischer não era
israelense, mas apenas judeu.
A decisão de mudar para Israel
não foi fácil, disse certa vez em
uma entrevista a uma emissora do
país. Seus três filhos e vários netos
viviam nos EUA. Mas resolveu
aceitar o convite e, em 2005, ele
e a esposa fizeram aliá. Antes de
emigrar para Israel, estudou hebraico,
pois queria a certeza de possuir a
fluência necessária para não ter que
abril 2014
PERSONALIDADE
Sua gestão à frente do Banco
não esteve livre de controvérsias.
A principal queixa era a de que,
para ajudar os exportadores
israelenses, ele manteve o valor do
shekel relativamente baixo, reduzindo
as taxas de juros e comprando
tantos dólares que as reservas de
Israel chegaram à colossal soma de
US$ 70 bilhões. Os investidores
só conseguiam obter um retorno
significativo nas aplicações em
imóveis. Consequentemente, o preço
dos imóveis disparou, tornandoos inacessíveis para a maioria da
população israelense, principalmente
os jovens.
Presidente Peres recebe relatório de 2012 do governador do Banco de Israel
utilizar o inglês para se expressar.
Em Israel, tanto no exercício de sua
função como em conversas privadas
e entrevistas à imprensa, usou
exclusivamente o hebraico.
A situação econômica que Fischer
encontrou no país, em 2005, era
bem melhor do que a vigente em
1985. A inflação era baixa e o país se
recuperava de uma recessão. Quando,
em outubro de 2008, estourou a
crise mundial, Fischer cortou a taxa
israelense de juros um dia antes de
uma política similar ser adotada
pelo FED, pelo Banco da Inglaterra
e pelo Banco Central Europeu.
Fischer se sobressaiu como dirigente
máximo do Banco Central de Israel.
São dele os créditos por ter salvado
a economia do país durante a crise
financeira global, pois a economia
israelense praticamente se manteve
estável durante o difícil período.
Fischer guiou a economia do país
através da crise, com pouco dano,
enquanto os Estados Unidos e
Europa se digladiavam na esteira dos
problemas.
Ele adotou uma série de medidas
para estimular a economia
interna, em que se incluíam o
enfraquecimento do shekel para
manter a competitividade das
exportações. Enquanto outros países
ainda lutavam contra recessões
profundas, Fischer elevou as taxas
de juros em Israel em 2009,
sinalizando ao mercado que o país
já superara a crise. Sua atuação
foi fundamental para que Israel
fosse aceito pela Organização para
Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE). Ainda em
2010, a Lei do Banco de Israel foi
aprovada pelo Knesset.
Para Fischer, esta foi uma de suas
principais realizações, pois essa lei
aumentou a autonomia do Banco em
determinar a política monetária ao
passo em que diminuiu os poderes de
seu presidente, criando um Comitê
Monetário com sete membros.
Naquele ano, ele foi eleito pela
revista Euromoney o “Presidente
de Banco Central” do ano.
38
Fischer anunciou que se afastaria
da função em 30 de junho de 2013,
dois anos antes do término de
sua segunda gestão de cinco anos.
Na ocasião o jornal Haaretz disse
que marcava a partida de um “superherói” que servira admiravelmente
não apenas como Presidente do
Banco Central, mas também,
por vezes, como o “ministro não
oficial do exterior da Economia de
Israel. Era Fischer que acalmava
os investidores estrangeiros,
assegurando-lhes que a economia
estava em boas mãos”.
Dirigentes de bancos centrais,
devido à natureza de seu trabalho,
em geral não são populares.
Esse não é o caso de Fischer.
Nenhum dos que o antecederam no
cargo gozou do reconhecimento e
total confiança que ele teve, nem do
governo nem do público. Ele conta
que quando corria na praia,
em Israel, as pessoas o paravam
para lhe dar conselhos de como
se desincumbir à frente do Banco
de Israel. Após renunciar, disse
estar comovido pelo carinho dos
israelenses, que, ao reconhecê-lo,
costumavam agradecer-lhe pelos
serviços prestados ao país.
REVISTA MORASHÁ I 83
1
2
4
3
1. chanceler Angela Merkel, da alemanha, com Stanley Fischer, fev. 2011, 2. com o presidente do fed Ben Bernanke,
3. com a esposa, rhoda fischer, jan. 2005 4. com Christine Lagarde, diretora-gerente do fmi, abr. 2011
Ao término de sua gestão em Israel,
ele se mudou para Nova York.
Ao partir, revelou que sentiria falta
do povo de Israel.
Sobre a paz
Para Fischer, os principais desafios
econômicos de Israel são acelerar o
crescimento e diminuir a pobreza.
Enquanto esteve à frente do Banco,
abordava a questão da paz com os
palestinos e outros países árabes
através de uma visão econômica.
Como economista, ele acredita que
Israel poderia beneficiar-se muito
com a paz; que o país poderia ser um
dos líderes da economia mundial se
a paz fosse de fato estabelecida no
Oriente Médio.
Em 2007 chegou a afirmar:
“Com seu dinamismo e criatividade,
a economia israelense poderia
crescer muito mais rapidamente
se conseguíssemos firmar a paz
com nossos vizinhos. É claro que
podemos crescer mesmo sem avançar
em relação à paz, mas, com a paz,
em vez de ter um crescimento de
4% a.a., o país poderia crescer a
taxas de 5% - 6%. E em uma ou
duas décadas, Israel seria uma
das economias mais avançadas do
mundo”. Explica Fischer que
Israel paga, de juros, cerca de duas
vezes a média do que pagam os
países da OCDE, devido aos
prêmios de risco. Mesmo com um
nível razoável de dívida, é um dos
países que paga o mais alto prêmio
de risco, no mundo, sobre seus
títulos de dívida, em virtude da
instabilidade geopolítica.
A diferença equivale a um terço do
orçamento da Defesa.
Apesar de que o percentual do
PIB gasto com a Defesa ser o
mais baixo em 50 anos, caindo de
quase 30%, no início da década de
1970, a apenas 6% - mesmo assim,
é o maior entrave no orçamento,
ano após ano. Ele acrescenta que
se Israel pudesse direcionar alguns
pontos percentuais de seu PIB
39
a outras causas, a qualidade de
vida poderia melhorar de forma
significativa.
A serviço do povo
judeu
Fischer é a prova de que um
judeu pode chegar ao topo da sua
carreira e ser um sionista fervoroso,
sem perder o respeito e a admiração
de seus colegas. Com seu exemplo,
mostrou que um judeu pode servir
o Estado de Israel e seu povo,
mesmo tendo crescido e sido educado
fora de Israel. Quando foi chamado
para servir o Estado, Fischer utilizou
toda sua experiência e anos de
estudo e se dedicou, por oito anos,
ao Estado de Israel. Abrindo mão
de muito e, com total senso
de dever, dedicou-se ao seu povo.
Seu exemplo pode encorajar
outros judeus, com carreiras bemsucedidas e posições de destaque,
a irem a Israel, por alguns anos, e
enriquecerem o país com seu talento
e suas realizações.
abril 2014
PERSONALIDADE
arik: UM GUERREIRO DE ISRAEL
Em 11 de janeiro deste ano Israel perdeu um de seus grandes
líderes. Figura lendária e controvertida, Ariel Sharon
personifica, para muitos, o destino de Israel. Mesmo seus
adversários o comparam aos heróis bíblicos. De militar
a político, foi um defensor corajoso e intransigente da
segurança de Israel. A história de sua vida está intimamente
ligada à existência do Estado Judeu.
a
rik, como é chamado no país, é o arquétipo
do ideal sionista, do sabra, do agricultorguerreiro, profundamente ligado à Terra
de Israel. Lutou em todas as suas guerras
sempre na frente da batalha. E, após entrar
na política, defendeu seu povo e sua Terra com igual
coragem e determinação. Tendo ocupado praticamente
todos os altos postos do governo, inclusive o de primeiroministro, em janeiro de 2006 sofreu um grave derrame do
qual nunca se recuperaria.
Israel era o que mais almejava. É essa parte da vida de
Sharon que pretendemos esboçar nessa matéria.
O destemido “rebelde” do Tzahal, Forças de Defesa de
Israel (FDI), considerado um dos maiores estrategistas
militares do mundo, obteve vitórias espetaculares e sofreu
derrotas, mas nunca seu espírito guerreiro se deixou
abater, jamais deixando de crer que Israel sairia vitorioso.
Sua juventude
Mas é a imagem do guerreiro, do comandante destemido,
do herói de guerra, que permanece na memória de
toda uma geração de judeus que viu Israel lutar por sua
sobrevivência. Para o próprio Sharon, como revela o
título de sua autobiografia, Warrior1, ser um guerreiro de
Arik nasceu Ariel Scheinerman, em 26 de fevereiro de
1928, no Moshav Kfar Malal, a 25 km de Tel Aviv. Seus
pais – Samuel e Vera Scheinerman – haviam fugido da
Rússia e desembarcado no porto de Tel Aviv em 1922.
O sionismo e o amor a Eretz Israel corriam nas veias de
Samuel, líder do Partido Poalei Zion e agrônomo recémformado. Após a Revolução Russa de 1917, Samuel sabia
que seria preso por suas atividades sionistas. Vera, mulher
de uma imensa força interna, abandonou tudo para se
casar e embarcar com ele para a então Palestina. Algum
tempo após sua chegada, o casal filia-se ao Moshav que
passaria a se chamar Kfar Malal. Lá nascem seus dois
filhos, Dita e Ariel. Os primeiros tempos foram difíceis,
mas o casal era persistente e dotado de uma vontade de
ferro, duas qualidades que Arik vai incorporar.
45
abril 2014
Muitas vezes descrito como um “falcão” de linha-dura,
suas ações e decisões, tanto militares quanto políticas,
sempre foram guiadas por um único parâmetro – a
segurança e sobrevivência de seu povo. Acreditava
que o Povo Judeu, “tantas vezes vítima de injustiça
e perseguições, deve ter um Estado em que pode ser
independente e livre, sem medo de ninguém e igual a
todos os outros”.
PERSONALIDADE
ariel sharon
O futuro general cresce solitário, pois havia
uma constante tensão entre seus pais e outros
membros de Kfar Malal. Sendo todos eles
sionistas trabalhistas que haviam ido a Eretz
Israel para estabelecer uma sociedade socialista
em seu Lar Nacional, não viam com bons
olhos o individualismo de Samuel e Vera.
As citações
utilizada nessa
matéria foram
tiradas de Warrior:
an autobiography. A
obra, de autoria do
próprio Sharon e
David Chanoff, foi
publicada em 1989.
1
2
Gadná - programa
militar israelense que prepara
os jovens para o
serviço militar nas
FDI. Este serviço
foi criado antes da
fundação do Estado
e passou a ser sustentado por lei em
1949.
Em Kfar Malal a tensão era constante; os
árabes haviam praticamente destruído o
Moshav em 1921 e os judeus viviam sob
a ameaça de um ataque. Mas, como relata
Sharon, mesmo em 1936 quando começou
a chamada Revolta Árabe, “Nunca percebi
medo neles. Ninguém tinha uma dúvida sequer
sobre seu direito àquela Terra. (...). Ninguém
ia forçá-los a abandoná-la”. Arik cresce
apreciando música e literatura russa, mas é um
aluno medíocre; prefere trabalhar com o pai e
sonha em um dia ser fazendeiro. Mas os pais
querem que ele tenha uma boa educação e o
enviam para o Liceu Geula, em Tel Aviv.
Na época, os olhos do Ishuv estavam voltados
para a Europa e para a Alemanha nazista. Em
46
1941, cresce na então Palestina a ansiedade
por uma possível invasão nazista e os conflitos
entre árabes e judeus também se tornam ainda
mais violentos. Com apenas 13 anos, Sharon já
monta guarda no Moshav com um cassetete e
um punhal, presente do pai no seu bar-mitzvá.
Durante as noites de guarda solitária aprende a
tomar decisões.
Sharon começou sua carreira militar no
Gadná2. E, aos14 anos, se une à Haganá, que,
prevendo a luta que os judeus teriam que
enfrentar, intensifica os treinamentos. Arik
torna-se instrutor, insiste em treinar os jovens
a seu modo, autorizando ações que outros
não permitiam, como, por exemplo, enviálos em operações noturnas para patrulharem
vizinhanças hostis. É nessa época que ele muda
de sobrenome, adotando “Sharon”, o nome da
planície ao norte de Tel Aviv.
Ele tinha 17 anos quando termina a
2ª Guerra Mundial. Apaixonado por uma
judia romena, Margalit Zimmerman, “Gali”,
estava ansioso para começar uma vida a dois;
REVISTA MORASHÁ I 83
mas teria que esperar. Enquanto
nas esferas políticas, os sionistas
se mobilizam para estabelecer um
Estado Judaico na então Palestina, os
acontecimentos no Oriente Médio
sinalizavam que, para estabelecer
seu Lar Nacional, os judeus do Ishuv
teriam que enfrentar os exércitos de
seis países árabes.
Guerra da
Independência
Israel nasceu à meia-noite do dia
15 de maio de 1948. Horas depois,
foi atacado pelos exércitos do Egito,
Arábia Saudita, Síria, Líbano, Iraque
e Jordânia.
Quando a Guerra de Independência
eclodiu, Sharon, então com apenas
19 anos, comandava um pelotão de
50 homens da Brigada Alexandroni,
das recém-criadas FDI. Destemido e
ousado, seus superiores sabiam que,
apesar de jovem, possuía a presença
física e as qualidades necessárias para
liderar homens em combate.
Arik participa de inúmeros embates,
mas o mais difícil e que lhe deixaria
marcas profundas seria a batalha
por Latrun. Essa colina estratégica
controlava a estrada de Tel Aviv
a Jerusalém e estava em mãos da
Legião Árabe Jordaniana. Sitiados
pelos jordanianos, os judeus na
Cidade Velha de Jerusalém estavam
sem água e alimentos. Para que
um comboio de suprimentos
conseguisse chegar até eles, a estrada
precisava estar em mãos das FDI.
Repetidamente atacado por Israel,
Latrun tornou-se o campo de
batalha mais sangrento da Guerra de
Independência.
O pelotão de Sharon participou no
primeiro ataque, em 26 de maio.
Tudo deu errado. Seus homens foram
apanhados em campo aberto. Uma
depressão no terreno lhes deu certa
proteção contra o fogo jordaniano,
mas a situação era crítica. “Todas
as nossas forças tinham batido em
retirada. Eu temia que os habitantes
das aldeias árabes viessem matar os
feridos, como era seu costume”.
Arik vê seu pelotão sendo dizimado
e ele é gravemente ferido no ventre,
mas consegue arrastar-se, com a
ajuda de dois companheiros, até as
linhas israelenses. É imediatamente
levado para o hospital. Recuperado
em alguns meses, volta à linha de
frente. Em julho de 1949 é assinado
um armistício entre Israel e seus
inimigos.
Sharon começou sua
carreira militar no
Gadná. E, aos 14 anos,
se une à Haganá que,
prevendo a luta que
os judeus teriam que
enfrentar, intensifica
os treinamentos.
Os erros cometidos em Latrun e
a morte de seus homens deixam
profundas marcas no futuro general:
“Se ao menos, não tivéssemos sido
abandonados... Se houvesse alguém
lá para tomar a decisão”...
Muitas de suas atitudes futuras iriam
ser moldadas pelas lições apreendidas
em Latrun, principalmente a
necessidade de sempre haver um
oficial comandante no teatro de
operações, capaz de tomar decisões
de acordo com o desenrolar da
situação. E a obrigação de que
nenhum soldado de Israel, ferido ou
aprisionado, seja deixado para trás.
“Todo soldado deve saber que seus
companheiros farão o humanamente
possível para resgatá-lo.”
Na primavera de 1953, Sharon deixa
o serviço ativo nas FDI e se casa
com Gali. O casal se muda para
Jerusalém e Sharon passa a estudar
na Universidade Hebraica. Escolhe
História do Oriente Médio. Pela
primeira vez na vida sentiu-se feliz,
deleitando-se com a experiência de
ser apenas um jovem universitário.
Mas, no verão de 1953, o dever o
chama.
47
na haganá
abril 2014
PERSONALIDADE
Unidade 101
O terrorismo já se havia tornado
um instrumento da política árabe,
e fedayin vindos de Gaza e das
áreas controladas pela Jordânia
infiltravam-se pelas fronteiras de
Israel, para atacar. Em 1951, 137
israelenses foram assassinados;
em 1952, 162; e, em 1953, foram
registrados mais de 3 mil ataques
terroristas e 160 mortes. O Alto
Comando das FDI decidiu então
criar uma unidade especial antiterror
– a 101, a primeira unidade de elite
para operações especiais atrás das
linhas inimigas.
Sharon foi convocado e aceita a
incumbência, pois acreditava que
Israel não podia aceitar que os
ataques fossem “parte inevitável de
nossas vidas”. Para ele, o Estado
Judeu, com sua pequena população
e recursos limitados, não podia
criar um equilíbrio de poder que
permitisse a coexistência com
seus inimigos. A única alternativa
era convencer os árabes de que
qualquer agressão militar contra
Israel lhes traria apenas humilhação
e destruição. Era preciso criar nos
árabes a “psicologia da derrota”:
vencê-los tão arrasadoramente, a
cada vez, até ficarem convictos de
que jamais poderiam vencer.
Sharon reuniu 45 jovens para
executar operações rápidas de
retaliação através da fronteira.
Treinou-os até o esgotamento e
inculcou-lhes a confiança de que
poderiam atuar onde quer que
Mitla é uma passagem de 32 km no
Sinai, entre as cordilheiras ao Norte e Sul,
localizada a cerca de 50 km a leste de Suez.
É famosa por ter sido o local de importantes
batalhas entre as forças egípcias e israelenses
em 1956, 1967 e 1973.
4
Ben gurion e sharon no front israelense, no canal de suez. guerra de atrito, 1971
fosse necessário, sob as mais
adversas condições. Nos cinco meses
em que atuou, a 101 se tornou uma
lenda. Teve um impacto fundamental
no esforço do país em sua luta
contra o terrorismo, pois os
israelenses provaram a seus inimigos,
e aos amigos também, que eram
capazes de encontrar os responsáveis
pelos ataques e atingir alvos muito
além das linhas inimigas. Nesse
período, Arik se torna cada vez mais
próximo de David Ben-Gurion, que
tem grande admiração pelo jovem
oficial.
originadas em Gaza e na Cisjordânia.
Em julho, Gamal Abdel Nasser, que
assumira a presidência do Egito em
1954, nacionaliza o Canal de Suez.
Vendo seus interesses econômicos
ameaçados, ingleses e franceses se
unem a Israel para derrubar Nasser.
Os três países elaboram um plano:
Israel atacaria de surpresa o Egito e,
quando suas tropas se aproximassem
do Canal de Suez, ingleses e
franceses fariam um “apelo” para
cessar os combates. Contando com a
recusa de Nasser, Inglaterra e França
entrariam na guerra.
Em 1954, Moshe Dayan, então chefe
do Estado-Maior das FDI, integra
a Unidade 101 a um grupo de
paraquedistas, criando a 202. Sharon,
ainda no comando, faz dela uma
unidade de elite pronta para reagir de
imediato e implementar com sucesso
qualquer ação militar.
Sharon recebe um papel importante
na execução do plano. Em 28 de
outubro, paraquedistas de sua brigada
saltam no lado oriental da Passagem
de Mitla4, na parte oriental do Sinai.
Liderando uma brigada de tanques,
ele segue para lá para se unir aos
paraquedistas e assegurar o controle
da passagem. Em 24 horas derrotou
os egípcios e chegou a Mitla. Pede a
Dayan permissão para atacá-la, mas
seu pedido é negado. Obtém, porém,
permissão de enviar um pelotão de
verificação, mas é alertado para não
A Campanha do Suez
O ano de 1956 foi difícil para Israel,
com a escalada militar egípcia e a
intensificação das ações terroristas
48
REVISTA MORASHÁ I 83
realizados pela OLP de Arafat com
bases na Jordânia e no Líbano.
A situação torna-se ainda mais tensa
no início de maio de 1967. Após
receber informações falsas da União
Soviética sobre uma concentração
de forças israelenses nas fronteiras,
Nasser concentra tropas no Sinai. E,
no dia 21, proíbe todos os navios com
destino ou provenientes de Israel de
passarem pelo Estreito de Tiran. Para
Jerusalém, é um ato de guerra. Àquela
altura, já havia 100 mil soldados e
mil tanques egípcios no Sinai. Israel
mobiliza seus reservistas. E, um dia
após o avanço egípcio, Sharon já
estava com a sua Divisão no Neguev.
primeiro ministro Menachem Begin e ministro Ariel Sharon, 1977
iniciar um embate. Após adentrar a
passagem, surpresos por intenso
fogo egípcio, seus homens ficam
presos. Sharon decide atacar e, em
24 horas, o inimigo é derrotado – mas
38 israelenses são mortos e muitos
ficam feridos. Dayan fica furioso
com Sharon. Para seus superiores,
a atuação e obstinação de Arik nas
batalhas beiravam a insubordinação.
Entretanto, a Campanha do Suez se
transformara em crise mundial e a
ONU exige o imediato cessar-fogo.
Pressionado pelos Estados Unidos,
Israel concorda em sair do Sinai;
não podia ficar isolado na arena
internacional.
ser uma grande influência na vida de
Sharon.
Logo após o término da guerra, em
dezembro de 1956, Gali dá à luz
a seu primeiro filho, Gur. Mas a
felicidade do casal dura pouco. Em
maio de 1962 Gali morre em um
acidente de carro. Lily, sua irmã mais
nova, vai morar com Sharon para
cuidar do pequeno Gur, com quem
era muito ligada. Um relacionamento
estreito nasce entre Sharon e a
cunhada. Acabam se casando e têm
dois filhos, Omri e Gilad. Lily vai
Considera-se o dia 5 de junho de
1967 como sendo a data do início
da Guerra dos Seis Dias. Mas, na
realidade, ela se iniciara dois anos e
meio antes, quando Israel colocou um
ponto final no projeto árabe de desvio
de dois afluentes do Rio Jordão –
o Hasbani e o Banias. Nos anos
seguintes cresce a tensão na região.
A partir do Golã a artilharia síria
bombardeia kibutzim e vilarejos e
cresce o número de ataques terroristas
A carreira de Arik, que havia
sido posta na “geladeira” após a
Campanha do Sinai, volta a avançar
quando, em 1963, Yitzhak Rabin se
torna chefe do Estado-Maior das
FDI. Após certa hesitação, Rabin
ofereceu-lhe o cargo de chefe do
Comando Norte. Quatro anos mais
tarde, após se formar em Direito,
Sharon é promovido a general,
recebendo o comando de uma
Divisão de Reserva de Blindados.
Guerra de 1967
49
Pessimistas, Yitzhak Rabin, chefe
de Estado-Maior, e o primeiro
ministro Levi Eshkol hesitam em
lançar uma operação preventiva.
Mas, assim como outros generais,
Sharon tinha total confiança na
vitória. Ele sempre acreditou que a
melhor forma de defesa era o ataque
e, ao ser consultado por Eshkol,
responde: “Esta guerra está sendo
forçada sobre nós, e nossa situação
está-se tornando mais perigosa a
cada minuto... A única opção é atacar
e, neste momento, somos capazes de
derrotar todo o exército egípcio”.
Os dias de espera enchem o país
de inquietação. No dia 1º de junho
é formado um novo governo de
União Nacional e Moshé Dayan é
nomeado ministro da Defesa. No
dia 4 é tomada a decisão de atacar
preventivamente. No dia seguinte,
dia 5 de junho de 1967, às 7h44min,
300 aviões israelenses atacam bases
aéreas egípcias e sírias. Em três horas,
os árabes perdem cerca de 80% de
seus aviões. Em seguida, Israel ataca
por terra.
Na Guerra dos Seis Dias, a mais
decisiva campanha militar dos
abril 2014
PERSONALIDADE
tempos modernos, Sharon teve
um papel crucial. Sua Divisão
de Blindados avança no Sinai
rapidamente, conquistando duas
passagens-chave, Mitla e Gide.
Sua missão era tomar a estrada que
levava de Beersheva a Ismailia, mas
para tanto precisaria tomar as bases
egípcias de Abu Agheila e Kusseima.
Os analistas militares de Israel e os
estrategistas do mundo todo dão o
crédito a Sharon por ter concebido
e executado o mais espetacular
plano de batalha da história militar
israelense, a batalha noturna por Abu
Agheila.
A batalha foi decisiva, pois, ao
saber da queda de Abu Agheila,
o Egito ordenou a retirada, em
um único dia, das forças egípcias
para a margem ocidental do
Canal. No dia 8 de junho, a maior
parte do Sinai já estava em mãos
israelenses e a Divisão de Sharon
foi a primeira a chegar ao Canal
de Suez. Simultaneamente, outras
forças israelenses haviam derrotado
os exércitos da Jordânia e da Síria,
conquistando toda Jerusalém e as
Colinas do Golã. As FDI estavam
a caminho de Damasco quando, no
dia 10 de junho, entrou em vigor um
cessar-fogo.
ficou desesperado. Ele escreveu:
“Pela primeira vez na minha vida,
eu me senti diante de algo que não
conseguia superar, e ao qual não
conseguiria sobreviver”.
A linha Bar-Lev
Logo após o término da Guerra
dos Seis Dias, forças israelenses ao
longo do Canal de Suez passam a
ser alvo de ataques egípcios. Certo
de que o Canal se tornaria uma
frente de batalha ativa, Israel precisa
traçar uma estratégia de defesa.
Sharon e Bar-Lev, então chefe do
Estado-Maior, apresentam soluções
diferentes. O general Bar-Lev
queria a construção, na margem
oriental do Canal, de uma maciça
parede de areia apoiada por outra
de concreto e, imediatamente atrás,
postos fortificados com guarnições.
Estrategista nato, Sharon era
totalmente contrário, pois acreditava
que tal solução tornaria as posições
de Israel alvos estáticos apenas a
300 metros das posições egípcias.
Acreditava que no caso de ataque
os israelenses deveriam lutar em
profundidade. Sua defesa deveria
basear-se na linha natural das colinas
e dunas que correm em paralelo ao
canal, e, numa segunda linha a ser
criada a cerca de 25 km do canal, que
serviria de base para forças móveis
que iriam circular ao longo do canal.
Sharon abandona a reunião após
qualificar a decisão de adotar a
proposta de Bar-Lev de “perigosa e
estúpida”. O chefe do Estado-Maior
decide, então, afastá-lo.
Aturdido, ele precisa pensar no
futuro. Quer continuar a servir a seu
país e sente-se atraído pela política.
Sharon sonda o terreno, não no
Partido Trabalhista do qual faz parte
praticamente todo o exército, mas
no campo adversário, no partido
nacionalista Herut de Menachem
Begin. Mas, é tempo de eleições e os
trabalhistas não querem perder um
trunfo eleitoral como Sharon e fazem
com que o exército volte atrás da
decisão de afastá-lo.
A Guerra de Atrito
A chamada Guerra de Atrito
entre Israel e Egito está no auge
quando, em 1969, Sharon assume o
Comando Sul. Israel não pode ficar
parado diante dos ataques egípcios.
Sharon decide instalar novos postos
de observação, cria patrulhas que
circulam ao longo do Canal, e
intensifica também a ação do Tzahal
e da aviação israelense, que já vinham
efetuando ataques em território
egípcio. O recado de Sharon para
Nasser é claro: “Israel pode atacar os
pontos vitais do Egito”.
A rápida vitória deixou toda Israel
eufórica. Mas para Sharon o
sentimento durou pouco. Apenas
quatro meses mais tarde, dia 4 de
outubro, Rosh Hashaná daquele
ano, a tragédia o atinge. Ele estava
em casa enquanto seu primogênito,
Gur, brincava com amigos do lado
de fora. Sharon não sabia que
estavam com um antigo rifle que
ele recebera de presente. Um dos
garotos apontou a arma para a cabeça
de Gur e disparou. Ao ouvir o tiro
Sharon correu e encontrou seu filho
gravemente ferido. O menino morreu
a caminho do hospital. Sharon
Em agosto de 1970, após 17 meses
de combates diários, entra em vigor
um cessar-fogo. Passado um mês,
morre Nasser. Anwar el-Sadat é o
sucessor.
50
REVISTA MORASHÁ I 83
Sharon aproveita o cessar-fogo
para voltar suas atenções à Faixa de
Gaza e inicia uma verdadeira caçada
a terroristas e à OLP de Arafat.
Traça planos e prepara pontos de
travessia ao longo da Linha Bar-Lev
para que, em caso de uma ofensiva
egípcia, Israel tivesse condições
de, rapidamente, contra-atacar e
atravessar o Canal.
Depois de 25 anos de uma
fulgurante carreira militar, após terse tornado evidente que ele não iria
ser indicado para o cargo de chefe
do Estado-Maior, Sharon deixa a
farda, passando para a reserva com
a patente de general. É indicado
comandante da 143ª Divisão Reserva
de Blindados, apesar da oposição
do então chefe do Estado-Maior, o
general Elazar. Sharon contou com
o apoio de Dayan, que acreditava
que era melhor ter um general
por demais agressivo do que um
que não fosse agressivo o bastante.
Um dia antes de seu desligamento,
Sharon pede a Dayan que o deixe
mais um ano como comandante
do Comando Sul, dizendo-lhe
que era grande a possibilidade de
uma guerra com o Egito e que sua
experiência em batalhas no Sinai não
devia ser desprezada. Mas Dayan foi
categórico: “Não haverá guerra no
próximo ano”.
Nos três meses seguintes, Sharon
entra na politica e é a força motora
por trás da formação do novo
partido de direita, o Likud, liderado
por Begin. E, enquanto aguarda as
eleições legislativas, realiza um velho
sonho comprando uma fazenda
abandonada no norte do Neguev.
Guerra de Yom Kipur
Às 14 horas do dia 6 de outubro
de 1973, Yom Kipur, Egito e Síria
atacam Israel. Algumas horas após
O então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, em 2005
a eclosão do conflito, perante as
alarmantes notícias sobre a situação
das forças israelenses no Canal e no
Golã, Zeev Amit, melhor amigo e
irmão de luta de Sharon, chega a lhe
perguntar: “Como vamos sair dessa?”
Sharon respondeu: “Nós vamos
atravessar o Canal de Suez e a guerra
terminará lá”.
A ousada travessia do Canal de Suez,
por Sharon, em outubro de 1973, é
bem conhecido por todos, mas algo
precisa ser dito sobre seu impacto
na Guerra do Yom Kipur. Não resta
dúvida de que seus preparativos
para um contra-ataque através do
Canal do Suez, quando ainda era
comandante geral do Comando
Sul, sua habilidade intuitiva de
rapidamente avaliar complexas
situações militares e sua atitude
determinada e confiante durante a
guerra foram fundamentais para a
vitória israelense.
Nessa matéria vamos apenas pincelar
os acontecimentos da Guerra de
Yom Kipur, pois, nas últimas duas
edições, Morashá trouxe artigos
51
sobre o desenrolar dos eventos: os
que antecederam a eclosão da guerra
e sobre as duas frentes de batalha Golã e Sinai.
Às 3h de domingo, 7 de outubro,
viajando em uma pick-up emprestada,
Sharon estava à caminho de sua
quarta guerra no deserto. Antes de
seguir viagem passara pelo quartelgeneral de sua Divisão, a 143ª Divisão
Reserva de Blindados, para ordenar a
todas as unidades que seguissem para
o Sinai o mais rápido possível.
A mera presença física de Sharon
tinha o poder de eletrizar, incutir
confiança e respeito entre soldados
e oficiais. Sempre na frente das
batalhas, onde quer que fosse, os
homens sob seu comando iam atrás
dele, nas mais audaciosas batalhas
da história militar de Israel. Apesar
de não ser mais o comandante-geral,
quando, após chegar a Refidim,
a principal base no Sinai, Sharon
entra na sala de guerra subterrânea,
instintivamente, todos os presentes
se levantaram como se ele, e não o
general Gonen que o substituíra,
abril 2014
PERSONALIDADE
fosse o seu chefe supremo. Ao vêlo, o próprio General Avraham
Mendler, comandante da única
Divisão de Blindados do Sinai,
sente-se aliviado. Ao ouvir o relato
de Mendler, Sharon se deu conta de
que seus piores pesadelos se haviam
concretizado. Os egípcios haviam
conseguido penetrar rapidamente
pelas trincheiras de areia e
concreto da Linha Bar-Lev e já se
encontravam a oito quilômetros a
leste do canal. Israel sofrera pesadas
baixas. Grande parte de seus tanques
haviam sido atingidos.
Sharon sabia que o fator psicológico
é fundamental na guerra. Era
evidente que o desânimo e choque
haviam tomado conta do Gabinete
da Golda Meir e do Alto Comando.
E, nos soldados, ele percebia que
havia “não medo, mas perplexidade...
Pela primeira vez em sua vida um
exército israelense estava sendo
obrigado a recuar e os soldados não
conseguiam entender o que estava
acontecendo”. Era vital contraatacar com força total e alterar
imediatamente o andamento da
guerra e de suas perdas iniciais.
Era vital as forças israelenses
reassumirem a iniciativa. Era
necessário devolver aos israelenses
sua confiança na vitória e tirar dos
egípcios o gosto do sucesso.
A esperança de mudar rapidamente
o rumo da guerra foi por terra
após o fracassado contra-ataque
israelense realizado no dia seguinte,
8 de outubro, pela manhã. Sharon
acreditava que era possível vencer
os egípcios, mas precisaria de uma
ação radical. Acreditava ainda que
a única forma de garantir a derrota
dos Segundo e Terceiro Exércitos
egípcios era cruzar o Canal, e ele
passa a pressionar incansavelmente o
Alto Comando.
Ainda no dia 8 uma informação
o anima. Homens de sua divisão
haviam esbarrado sobre uma “fenda”
entre o Segundo e o Terceiro
Exércitos. A área permitiria sua
divisão avançar até o Canal sem
ter que abrir caminho através das
cabeças-de-ponte egípcias. Por
sorte, a “fenda “ chegava até o Forte
Matsmed, onde Sharon, enquanto
comandante-geral, preparara uma
área para uma travessia do Canal.
Conhecido como o “Pátio”, o local
havia sido adequado para abrigar os
equipamentos pesados e volumosos
das pontes que seriam utilizadas para,
a travessia.
Após Israel vencer a Batalha do
Sinai, no dia 14 de outubro, o
general Elazar deu o sinal verde
para a travessia do Canal. A divisão
de Sharon vai liderar a operação:
tomar o Pátio, proteger o local e
abrir as estradas de acesso até então
em mãos egípcias para que as pontes
necessárias para a travessia possam
chegar até lá.
Na noite de 15 para 16 de outubro,
enquanto brigadas de sua divisão
travavam violentos embates para
abrir as estradas, Sharon ordena ao
coronel Dani Matt que atravesse
com seus homens o Canal de Suez.
Vendo que nem a ponte rolante préfabricada, idealizada para a travessia
do Canal, nem as pontes de pontões
chegariam a tempo, Sharon mandara
trazer botes anfíbios.
À 1h35, já do lado egípcio do Canal,
Matt transmite pelo rádio uma única
palavra: “Acapulco”, o código para
“sucesso”. Logo após, blindados
da Divisão de Sharon juntam-se a
eles para dar início a uma ousada
operação militar para liberar os céus
para a aviação israelense. Antes do
amanhecer do dia 18, duas brigadas
do general Adan estavam no lado
52
egípcio. Para o Alto Comando, a
fase da guerra de sobrevivência já
terminara para Israel.
Após a ponte rolante pré-fabricada,
medindo 200 metros, ficar
operacional nas primeiras horas do
dia 19, a travessia toma novo ímpeto,
pois as FDI decidiram deslocar para
a África todas as forças de combate
disponíveis. Depois de ter cruzado o
Canal, a Divisão de Sharon dirigiuse ao sul em paralelo à de Adan, para
depois atacar ao norte. Ainda no dia
19, duas divisões dos generais Adan e
Magen iniciam seu avanço para isolar
o Terceiro Exército egípcio enquanto
brigadas da Divisão de Sharon
prosseguem para o norte, ao longo
da margem ocidental do Canal, para
isolar o Segundo Exército.
O resto da história é conhecido.
Quando o cessar-fogo entrou em
vigor, o Terceiro Exército estava
cercado no Sinai pelas FDI. Uma
importante realidade estratégica
tinha sido imposta ao front egípcio,
com implicações de longo alcance.
Para Israel era uma reafirmação de
força após o mais severo teste de sua
história.
Ao término da guerra, enquanto
Golda Meir e Moshe Dayan são
alvos de uma série de acusações
e vários generais são destituídos,
Sharon é aclamado como herói e em
todo Israel vê-se escrito em tanques
e muros : “Arik, melech Israel (Arik, rei
de Israel)”.
Após o término da Guerra, Sharon
deixa o exército e lança sua carreira
política. Nessa nova fase de sua
vida terá que enfrentar novas
lutas, conseguirá inúmeras vitórias
e algumas derrotas. Vai ocupar
praticamente todos os ministérios:
em 1977 da Agricultura; de 1981
até 1983 da Defesa; em 1984 da
REVISTA MORASHÁ I 83
ariel e lily sharon em casa, 1989
Indústria e Comércio; de 1990 até
1992, da Construção e Habitação,
e faz parte da comissão ministerial
para Imigração e Integração dos
novos imigrantes; em 1996, da
Infraestrutura e, em 1998, das
Relações Exteriores. Em fevereiro
de 2001 Sharon torna-se primeiro
ministro de Israel. Em 4 de janeiro de
2006, o então premiê sofre um grave
derrame cerebral permanecendo em
coma profundo até vir a falecer no dia
11 de janeiro de 2014, um Shabat, aos
85 anos de idade.
Um Guibor Israel –
um herói dos Filhos
de Israel
Ariel Sharon foi uma lenda viva,
uma figura Bíblica moderna, um
herói destemido sempre pronto a se
levantar para proteger nosso povo de
nossos inimigos. Mesmo seus mais
ferrenhos oponentes concordam
que era um comandante de campo
excepcional – o melhor que Israel
já teve, um estrategista nato, ousado
e criativo, que inspirava suas tropas
e podia interpretar uma batalha à
medida que a mesma se desenvolvia.
Mas, Sharon não foi apenas um
comandante militar. Foi um
grande líder que deixou sua marca
na história. Esteve envolvido em
praticamente tudo de importante
que ocorreu no Estado Judeu. Lutou
as guerras, derrotou os inimigos,
cultivou a terra, desenvolveu a
agricultura, construiu casas, fechou
acordos diplomáticos, traçou novas
fronteiras e, finalmente, liderou o
país. Nenhuma outra figura israelense
fez tanto, por tanto tempo, pela
Mediná. E, como todo grande líder,
tomou decisões difíceis – muitas
delas polêmicas e impopulares.
Mas mesmo seus maiores críticos e
inimigos não têm como negar seu
papel fundamental – seu heroísmo e
brilhantismo – em defender o Povo e
o Estado de Israel
A memória de Arik está gravada no
coração de nosso povo. Ele foi um
53
verdadeiro Guibor Israel – um herói
dos Filhos de Israel. Um homem
que não temia nada nem ninguém,
um guerreiro que encarou a morte
diversas vezes sem sequer piscar.
Mas, acima de tudo, foi um judeu
que amava seu povo. Shimon Peres,
atual Presidente de Israel e amigo
pessoal de Ariel Sharon, resumiu sua
vida com as seguintes palavras: “Arik
amava seu povo e seu povo o amava”.
Arik, que sua memória seja
abençoada para sempre – você, que
foi nosso maior general e o mais
valente, temido e destemido filho do
Povo de Israel.
Bibliografia:
Sharon, Ariel e Chanoff, David, Warrior:
An Autobiography, Kindle edition
Dan,Uri, Ariel Sharon: An Intimate Portrait,
Ed. Palgrave Macmillan, 2007
Eytan, Freddy, Sharon, o braço de ferro,
Ed. Barcarolla
Worth, Richard, Ariel Sharon
(Major World Leaders), Kindle edition
abril 2014
SHOÁ
AS 20 CRIANÇAS DE HAMBURGO
POR IRENE Gebhardt Freudenheim
No dia 20 de abril de 1945 um decrépito Adolf Hitler completava
56 anos, no seu bunker em Berlim. O exército inglês estava
nas imediações de Hamburgo, os russos e americanos perto
de Berlim. A história seguiria seu rumo, para os nazistas havia
chegado a hora de queima de arquivos. Os especialistas da SS
encarregaram-se dessa urgente missão.
E
m Hamburgo, no campo de concentração de
Neuengamme, 20 crianças judias e seus quatro
cuidadores ainda estavam vivos. As crianças,
10 meninas e 10 meninos arrebanhados de
Auschwitz, na Polônia, em novembro de 1944,
tinham entre 5 e 12 anos. Haviam sido escolhidas a
dedo para serem submetidas a pseudo-experimentos
médicos. O Dr. Kurt Heissmeyer, médico pneumologista
integrante da SS, queria finalmente se tornar professor.
Para tal, precisava apresentar sua tese. Depois que
experimentos sigilosos com prisioneiros adultos não
deram o resultado desejado, ele decidira requisitar 20
crianças para desenvolver sua vacina contra a tuberculose.
O Dr. Heissmeyer fazia cortes histológicos no peito das
crianças e, na incisão de 10 a 20 centímetros, inoculava
bactérias vivas de TBC. Os meninos e meninas logo
apresentavam um quadro febril e abscessos no lugar do
corte. As glândulas linfáticas se inchavam fortemente,
pois é nessa região que se concentram os anticorpos que
protegem o organismo de infecções. Algumas semanas
mais tarde, Heissmeyer mandava extirpar as glândulas
embaixo das axilas. Verificava-se, a seguir, se nas
glândulas havia-se desenvolvido algum tipo de material
de defesa contra o TBC. Esses experimentos causavam
muito sofrimento às crianças. Um dos procedimentos
mais dolorosos era a introdução, pela boca e traqueia,
de um tubo de borracha que ia até o pulmão. Por ele,
o médico injetava (ou mandava injetar) meio copo de
bactérias de TBC para provocar tuberculose no pulmão.
Georges-André Kohn, menino francês de 12 anos,
ficou tão debilitado que a partir desse momento não
conseguiu mais ficar em pé. Em começos de dezembro
de 1944, as crianças estavam alojadas no barracão
4A da Enfermaria do Campo de Concentração de
Neuengamme, de onde não podiam sair de modo algum.
Ficavam sob os cuidados de dois prisioneiros holandeses,
que haviam sido capturados por distribuir panfletos
contra os invasores nazistas. Os dois, Anton Hölzel e
Dirk Deutekorn (este, enfermeiro), em pouco tempo
se converteram em pais substitutos para as pequenas
vítimas. Eles tinham como obrigação não só cuidar
das crianças, mas também de porquinhos-da-índia,
instalados em gaiolas no mesmo barracão, nos quais
Heissmeyer também realizava experimentos quando ia
até Neuengamme – experimentos tão sem sentido
quanto os realizados com seres humanos. Mais tarde,
perante um Tribunal de Justiça britânico, em 1946,
Heissmeyer declararia que, para ele, não havia qualquer
diferença entre usar cobaias animais ou crianças judias
em seus experimentos.
Poucas semanas após sua chegada, em dezembro de
1944, todas as crianças estavam gravemente doentes.
Anton e Dirk tentavam conseguir alimentos melhores
para elas. No dia de Natal houve gestos significativos
de solidariedade. Apesar da severa proibição de se
aproximarem dos pequenos presos do barracão 4A,
54
REVISTA MORASHÁ i 83
A escola no Bullenhuser Damm
vários prisioneiros foram visitar
as crianças, levando presentes.
Roupinhas confeccionadas com
retalhos e trapos, carrinhos de
madeira, arremedos de berços para
bonecas. O menino polonês Marek
James, de 6 anos, que era míope, até
ganhara óculos. Infelizmente não
serviram. No entanto, os ingleses
estavam a cada dia mais perto de
Hamburgo. Em 20 de abril de 1945
veio a ordem de Berlim: eliminar as
crianças.
O Dr. Heissmeyer já não aparecera
em Neuengamme desde o começo
de março. No mesmo dia em que
as crianças seriam assassinadas,
4.224 debilitados prisioneiros
escandinavos, judeus e não judeus,
foram resgatados do campo de
concentração de Neuengamme, após
longas negociações entre Himmler
e o conde Folke Bernadotte.
Após o último ônibus da Cruz
Vermelha dinamarquesa partir de
Neuengamme, chegou um caminhão
cinza, completamente vedado,
dirigido pelo SS Hans Friedrich
Petersen. Ele parou em frente à porta
do barracão 4A. Eram 22 horas.
O SS Dreimann havia ordenado
aos cuidadores holandeses que
acordassem e vestissem as crianças.
Dois médicos franceses, também
presos, Florence e Quenoille, foram
chamados para ajudar nessas tarefas,
com a finalidade de abreviar os
“procedimentos”.
As crianças estavam cochilando,
mas quando lhes foi dito que se
reuniriam com seus pais, rapidamente
se levantaram. Alvoroçados com a
ideia do reencontro, os mais velhos se
vestiram sozinhos. Porém, GeorgesAndré estava tão fraco que os dois
médicos tiveram que carregá-lo até
o caminhão. Todos levaram seus
pertences; os menores, seus toscos
brinquedos. No caminhão já estavam
seis prisioneiros de guerra russos,
que também seriam executados nessa
noite. Ninguém sabe seus nomes até
hoje.
Todos foram levados a um prédio
que havia servido de escola, a uns
55
dr. kurt Heissmeyer
abril 2014
SHOÁ
2
1
2
3
1. Prisioneiros de guerra russos em trabalho de limpeza em Hamburgo 2. Georges-André Kohn 3. Ruchla Zylberberg
Estes são os nomes das 20 crianças assassinadas
em 20 de abril de 1945, no Bullenhuser Damm, Hamburgo:
• Mania Altmann, 5 anos, polonesa • Leika Birnbaum, 12 anos, polonesa • Surcis Goldinger, 11 anos, polonesa
• Riwka Herzberg, 7 anos, polonesa • Alexander Hornemann, 8 anos, holandês • Eduard Hornemann,
12 anos, holandês • Marek James, 6 anos, polonês • W. Junglieb, 12 anos, iugoslavo* • Lea Klygermann,
8 anos, polonesa • Georges-André Kohn, 12 anos, francês • Blumel Mekler, 11 anos, polonesa • Jacqueline
Morgenstern, 12 anos, francesa • Eduard Reichenbaum, 10 anos, polonês • Sergio de Simone, 7 anos, italiano • Marek Steinbaum, 10 anos, polonês • H. Wassermann, 8 anos, polonesa* • Eleonora Witonska, 5 anos, polonesa • Roman Witonski, 7 anos, polonês • R. Zeller, 12 anos, polonês* • Ruchla Zylberberg,
10 anos, polonesa * não se sabe seu primeiro nome
15 minutos de distância, no
Bullenhuser Damm. Depois de um
bombardeio, a escola passou a ser
mais um centro de torturas da SS.
Só que então, nesse 20 de abril de
1945, o local estava deserto. Os dois
médicos franceses e os carinhosos
cuidadores holandeses foram levados
ao porão e enforcados.
As crianças não tinham ideia do que
ocorria e esperavam, ansiosamente,
rever seus pais. De pronto entrou
um dos homens da SS e ordenou
que tirassem a roupa, porque
seriam vacinadas contra a febre
tifóide. A fictícia vacina era na
realidade uma injeção de morfina.
Elas foram chamadas uma a uma.
Depois de semi-anestesiadas, eram
levadas para outro cubículo, onde as
esperava a forca. Georges-André, o
menino francês de 12 anos e o mais
debilitado do grupo, foi o primeiro a
ser carregado até lá. Vamos falar um
pouco dele, porque sua história é a
56
mais fácil de ser reconstruída. No dia
17 de agosto de 1944, uma semana
antes da libertação de Paris, partia
a última leva de deportados judeus
franceses em um trem de Drancy,
rumo a campos de concentração
na Alemanha e Polônia. Eram
seis vagões. Três deles continham
armamentos (Flakgeschütze). No
quarto viajavam agentes da Gestapo,
com seu chefe, Alois Brunner,
comandante das tropas de assalto
da SS e chefe do Sonderkommando
REVISTA MORASHÁ i 83
encarregado da deportação de judeus.
No quinto, membros da Polícia
Verde alemã que operava na França.
No último vagão, que normalmente
transportava gado, se acotovelavam
de cócoras 51 judeus franceses. Entre
eles, os sete membros da família
Kohn. Armand Kohn era o diretor
do maior hospital judaico da França,
o hospital Rothschild de Paris. Ele
sabia das constantes deportações e
o nome Auschwitz lhe era familiar.
Mas pensava que os judeus só seriam
internados até o fim da guerra, não
exterminados. Seu filho Philippe,
de 18 anos, discordava e disse que
decidira fugir. Rosemarie, a irmã de
22, decidiu acompanhar o irmão. Em
vão o pai tentou convencer os seus a
ficarem juntos, dizendo que só assim
sobreviveriam.
O trem já estava rodando fazia três
dias, quando, em 21 de agosto, às
2 da madrugada, os dois jovens
conseguiram quebrar a grade da
janelinha do vagão. Rosemarie pulou
primeiro, machucando-se ao cair.
Philippe caiu no trilho sem se ferir e
correu para socorrer a irmã.
Os dois conseguiram esconder-se
e sobreviveram. O resto da família
ficou no trem: o Dr. Armand
Kohn, sua esposa Suzanne, a filha
Antoinette, de 19 anos, o caçula,
Georges-André, de 12, e a avó,
Marie-Jeanne, de 80. No dia 25
de agosto de 1944 o trem chegou
ao campo de concentração de
Buchenwald, próximo à cidade de
Weimar, na Alemanha. Nesse lugar,
foram todos separados brutalmente
do pai. A mãe e Antoinette foram
forçadas a seguir para Bergen-Belsen,
a avó e o menino, para Auschwitz.
A avó foi imediatamente enviada à
câmara de gás. Georges-André foi
poupado temporariamente. Havia
um projeto especial esperando por
ele; por ele e mais 19 crianças.
Em maio de 1946, durante o
processo contra os principais
criminosos de Neuengamme, Johann
Framm, um SS subalterno, ao ser
interrogado pelo oficial britânico
Anton Walter Freud (neto de
Sigmund Freud) declarou sobre a
morte das pequenas vítimas:
“As crianças tiveram que tirar a
roupa num quarto no porão, depois
foram levadas a outro, onde o
Dr. Trzebinski lhes aplicou uma
injeção para que dormissem. As
que continuavam vivas foram
transportadas para outra sala, e com
uma corda no pescoço dependuradas
na parede, como se fossem quadros.
Pesavam tão pouco...”.
Na mesma noite, os quatro
verdugos ainda tiveram de encarar
outra “missão”: enforcar mais de
20 prisioneiros de guerra russos.
Citando o SS Frahm: «Às 6:00h
da manhã todos os russos estavam
mortos e eu, finalmente, fui dormir”.
Uns poucos dentre os pais e mães
destas crianças sobreviveram. A mãe
do italianinho Sergio de Simone, de
Nápoles, Gisela Perloff, sobrevivente
de Auschwitz, somente em 1983,
37 anos depois do assassinato
de seu filho, veio a saber como
ele havia sido morto, aos 7 anos
de idade. Rucza Witonski, de
Radom, Polônia, mãe de Roman,
de 6 anos, e de Eleonora, de 5,
estava trabalhando no laboratório
do infame Josef Mengele, em
Auschwitz, na mesma hora em
que seus filhos eram enviados de
Auschwitz a Neuengamme, com
os outros 18 meninos e meninas.
Após a libertação, ela começou uma
infrutífera busca pelos seus filhos,
que se estendeu até 1982. Nesse
ano ela recebeu a notícia, através da
Cruz Vermelha francesa, de como e
quando Roman e Eleonora haviam
sido mortos. O pai de Ruchle,
Nison Zylberberg, sobreviveu à
57
guerra na União Soviética. Sua
esposa Fajga e a filhinha Esther
haviam sido enviadas diretamente à
câmara de gás quando chegaram a
Auschwitz.
A irmã de Blumele Mekler,
de 5 anos, Shifra, salvou-se porque a
mãe gritou, desesperada, ao perceber
que estavam sendo encurraladas:
“Corre Shifra! Corre!”. Uma família
polonesa a acolheu e escondeu. Pola
Altman, mãe de Mania, de 5 anos,
morreu em 1971, em Chicago, sem
saber do destino de sua filha.
Em 20 de abril de 1979, pela
primeira vez, parentes das crianças
assassinadas vieram de várias partes
do mundo até o Bullenhuser Damm.
Quando depositaram a coroa de
flores com os dizeres “Amadas
crianças, vocês não serão esquecidas”,
haviam-se juntado a eles dois mil
moradores de Hamburgo. Em 20
de abril de 1985, 40 anos após a
tragédia, nasceria um jardim de
roseiras no lugar onde o martírio dos
20 inocentes havia terminado.
O Memorial do Bullenhuser
Damm converteu-se em um local
de peregrinação e algumas ruas
circundantes receberam os nomes das
pequenas vítimas.
Irene Gebhardt Freudenheim,
É pesquisadora de tópicos
relacionados com o nazi-fascismo
e o antissemitismo. Bibliografia:
Günther Schwarberg Der SS-ARZT
und die Kinder vom Bullenhuser Damm
(O Médico da SS e as Crianças do
Bullenhuser Damm)
nota:
Günther Schwarberg e sua colaboradora
Barbara Hüsing dedicaram-se durante
anos a pesquisar minuciosamente este caso,
recebendo o Prêmio Anne-Frank-Preis em
1988
abril 2014
ARTE
Moacyr Scliar: Escritor,
médico, judeu e gaúcho
por H. James Kutscka
Quando se pensa em literatura brasileira, nomes como Machado
de Assis, Castro Alves, José de Alencar, Mario de Andrade e mais
contemporâneos como Érico Veríssimo, Jorge Amado, Vinícius
de Morais, Moacyr Scliar e tantos outros, imediatamente nos
surgem na memória. Todos indiscutivelmente grandes em sua
arte, mas nem todos foram honrados com uma cadeira na
Academia Brasileira de Letras. Não é à toa que os membros da
ABL são conhecidos como “Imortais”. Scliar é um deles.
E
ntusiasma a oportunidade
de poder escrever sobre um
conterrâneo admirável, que,
através de suas crônicas
e livros, influenciou toda
uma geração de escritores e continua
influenciando até hoje.
Embora tenha nascido na capital
gaúcha, a tradição judaica russa
permaneceu viva em sua casa,
mas, como seria de se esperar, o
chá do Samovar, depois de algum
tempo, começou a dividir o espaço
com o chimarrão, assim como as
lembranças que seus pais tinham
do shtetl, na Rússia, começaram
a ceder ou compartilhar o espaço
com lembranças já adquiridas aqui,
passando a dar espaço para o escritor
que, com olhar multicultural, escrevia
sobre temas brasileiros e judaicos
com a mesma desenvoltura.
Um admirável porto-alegrense que,
sem perder o sabor de suas raízes
mais profundas, conseguiu escrever
sobre nosso povo e nossa gente, como
o fez em seus livros O Exército de
Um Homem Só, O Ciclo das Águas, A Estranha Nação de Rafael Mendes e O Centauro no Jardim, sendo o último
sobre o tema de suas raízes judaicas.
Escreveu com tal propriedade sobre
os dois povos, suas alegrias e suas
mazelas, que foi merecedor de se
tornar o sétimo escritor a ocupar a
cadeira de número 31 da Academia
Brasileira de Letras, sucedendo o
mineiro Geraldo França. Tornou-se
um “Imortal” (maneira com que
nos referimos aos membros da
Academia), mas talvez não seja
esse um adjetivo que se acomode
ao inquieto Scliar. “Saudoso” talvez
defina melhor o sentimento que a
ausência dele nos causa.
No entanto, que dizer sobre ele que
de alguma forma ainda não tenha
sido dito? Nas duas atividades que
escolheu exercer durante a vida
(medicina e literatura), foi mestre
58
e faltam adjetivos para fazer justiça
à dedicação com que se entregou a
ambas.
Na medicina formou-se médico
sanitarista e fez pós-graduação em
Israel. Foi Doutor em Ciências pela
Escola Nacional de Saúde Pública
e professor do curso de Medicina
e Comunidade da Universidade
Federal de Ciências da Saúde
de Porto Alegre. Na literatura
teve publicados mais de 70 livros
traduzidos para 12 idiomas.
Entre as obras traduzidas está
O Centauro no Jardim, livro que foi
considerado pelo National Yiddish
Book Center, nos Estados Unidos, um
dos 100 melhores livros de temática
judaica nos últimos 200 anos.
No Brasil fez jus a três Prêmios
Jabuti, em 1988, 1993 e 2009.
Nesse mesmo ano (2009) recebeu
os prêmios da Associação Paulista
dos Críticos de Arte e o Casa
REVISTA MORASHÁ i 83
1
2
3
1. NA INFÂNCIA 2. Casamento de Scliar com Judith Vivien Oliven, em 1965 3. O escritor, Judith, e seu filho, Roberto em Jerusalém
das Américas. Pensei, então, em
apresentá-lo aos que, por desventura,
não conheçam sua obra literária,
usando suas próprias palavras:
“Há um momento na vida de quem
escreve em que os livros começam
a correr atrás dos autores”. Esta frase
foi dita por ele em um contexto
muito diferente do qual a estou
emprestando nesse artigo.
Se levarmos em conta uma
declaração de Judith Scliar (sua
mulher) — “Moacyr escrevia muito,
e escrevia rápido”.
Originais e recordações que cobrem o
período de 1937 a 2011 poderão
brevemente ser consultados pela
internet. Mais de 8.600 páginas
de manuscritos e datiloscritos do
escritor que estão sob os cuidados da
PUCRS, para serem adicionados ao
arquivo. Na coleção de documentos
que estão sendo digitalizados
encontram-se bilhetes de aeroporto,
recibos de postos de gasolina, folhas
pautadas e blocos de nota. Qualquer
papel servia como suporte para grafar
o que vinha da imaginação do autor.
Esses documentos de seu dia a dia
nos dão uma visão de um cérebro
em constante ebulição e explicam a
voracidade com que escrevia. Eram
tantas histórias a serem contadas e
tão pouco tempo para fazê-lo. Daí
minha interpretação pessoal do texto
sobre a história procurar o autor,
que, no caso original, fora usada
referindo-se a escritores que nos
encontros de literatura o procuravam
para presentear seus novos livros.
Moacyr era um para-raios atingido
constantemente por descargas de
ideias e histórias. Era necessário
escrevê-las antes que se perdessem
entre tantas outras.
Minha intenção com este artigo é
mostrar o homem por trás das letras,
mas, até para isso, Scliar foi especial,
pois podemos desvendá-lo em suas
próprias palavras. De seu conto “Ai,
Rússia, Rússia. Ai, Rússia”, tomo a
liberdade de transcrever um trecho
59
que seria impossível ter sido posto
no papel, não fosse a veneração pela
palavra escrita que condiciona os
rumos do judaísmo.
Como não viveu os acontecimentos
narrados, eles devem ter-lhe chegado
ao conhecimento através de histórias
contadas em casa e livros que
ajudaram a manter vivas as tradições:
“Para nós, ocidentais, o russo é um
idioma difícil; poucas são as palavras
que nesta língua conhecemos. Mas
há um termo – ai, Rússia! – que
foi incorporado ao vocabulário
universal. Pogrom: a palavra evoca
cossacos bêbados, enlouquecidos,
invadindo aldeias, nos seus cavalos
– e matando, violando, queimando,
destruindo. Balta, 1882; Restov, 1883;
Ekaterinoslav, 1883; Gomel, 1903…”.
As terríveis notícias que nos chegam
da Rússia, a espada suspensa sobre a
cabeça de nosso povo…”, escreveu, em
1906, aquele que viria a ser o primeiro
presidente de Israel, Chaim Weizmann.
abril 2014
ARTE
Papai tinha pouca instrução; contudo,
não duvidou do que diziam os anúncios.
Possuía uma crença ilimitada na boa
fé dos homens. Daí porque leu e releu,
com crescente interesse, os folhetos de
propaganda. E acabou entusiasmandose vivamente com a descrição da nova
terra. Sobretudo, com a ilustração
colorida da capa.
A espada suspensa sobre a cabeça do
povo, que espada era essa? Não só a do
bandido, era, também, a espada de czar:
pois, para descarregar a crescente revolta
popular, o governo não apenas tolerava
os pogroms, como até os fomentava.
“Numa clara manhã de abril do ano
de 19… quando a estepe começara
a reverdecer a entrada alegre da
primavera, apareceram espalhados
em Zagradowka, pequena e risonha
aldeia russa, da província de Kersan,
lindíssimos prospectos, com ilustrações
coloridas, descrevendo a excelência
do clima, a fertilidade da terra, a
riqueza e a variedade da fauna, a
beleza e exuberância da flora, dum
vasto e longínquo país da América,
denominado Brasil, onde uma empresa
colonizadora israelita, intitulada
“Jewish Colonization Association”,
mais conhecida por JCA, proprietária
duma grande área de terras duma
fazenda chamada “Quatro Irmãos”,
situada no município de Boa Vista do
Erechim, Estado do Rio Grande do Sul,
oferecia colônias, mediante vantajosas
propostas, a quem se quisesse tornar
lavrador.
A capa dos prospectos ostentava
uma singela paisagem da vida rural
brasileira. Sob um céu límpido e
distante, dum azul muito doce,
um lavrador, chapéu de abas 12
largas, camisa branca arremangada,
empunhava, encurvado, as rabiças dum
arado, puxado por uma junta de bois,
revolvendo a terra virgem. Um pouco
mais longe, no fundo, o ouro vegetal de
extensos trigais maduros. Mais além,
azulados pela distância, coqueiros,
palmeiras e florestas misteriosas, e, no
primeiro plano, destacando-se em cores
vivas e fortes, um enorme pomar em
que predominavam laranjeiras, a cuja
sombra, porcos comiam lindas laranjas
caídas no chão”.
À eficiência dessa peça de
propaganda que caiu na mão
de algumas pessoas na Rússia, a
literatura brasileira deve a existência
de um de seus maiores representantes.
Essa é uma curiosidade que descobri
quando de minhas pesquisas para
esse texto, que achei não faria mal
compartilhar com os leitores. Minha
família é de Boa Vista do Erechim
(que na língua dos índios Caingangue
da região significa campo pequeno
porque ficava na cordilheira da
Serra Geral num espaço cercado
de árvores). Talvez alguém que
desconheço de meu passado tenha
visto o mesmo folheto e vindo
para Quatro Irmãos, na época uma
próspera comunidade judaica quase
bairro de Erechim, e, posteriormente,
se estabelecido na cidade, na qual
vivem até os dias de hoje.
60
Os Scliar se estabeleceram em Porto
Alegre, capital do estado daquela
cidade onde os porcos comiam
laranjas caídas do pé.
Em outra passagem do mesmo
conto, ainda falando sobre a Rússia
e os judeus, mostra a intimidade que
tinha com o tema e com as letras
para poder escrevê-lo com segurança,
mesmo tendo nascido na capital
gaúcha em um bairro de classe média
onde a maior parte da comunidade
judaica da cidade fora residir: o
Bomfim.
“Uma luta que, diga-se de passagem,
não envolveu violência. Não por parte
dos judeus. Protesto, sim; mas não
violência. A nostalgia do shtetl pesa,
não é mesmo? E o resultado é uma
forma de resistência à qual não falta
o sentimento, e até mesmo o humor. O
humor que satiriza um governo que não
resolveu os problemas de seu povo, mas
dá-se ao luxo de ser antissemita; como
naquela história que conta da longa fila
formada à porta de um supermercado, à
espera da carne. Aparece o gerente e diz:
‘A carne vem vindo, mas não será
suficiente para todos, de modo que os
judeus podem ir embora’. Os judeus se
vão. Meia hora depois, volta o gerente
anunciando que a carne está chegando,
mas não haverá para todos, de modo
que os que não são membros do Partido
podem se retirar. Vai-se um grande
grupo. Finalmente, depois de meia
hora, o gerente aparece, confessa que não
há carne alguma e que os camaradas
também podem ir. Ao que diz um
membro do Partido a outro: ‘Você viu?
Viu como os judeus têm privilégios?’
Este humor chegou a criar um
personagem típico: Abram Rabinovich,
sempre às voltas com o serviço secreto
soviético. Que o encontra nos lugares
mais imprevistos: por exemplo, no
parque, onde ele está estudando hebraico
num manual de bolso. O agente lhe diz
REVISTA MORASHÁ i 83
que tal é proibido, porque faz supor
que a pessoa quer ir para Israel. Eu não
quero ir para Israel, diz Rabinovich,
estou-me preparando para ir para o céu,
onde, como é sabido, só se fala hebraico.
E se você for para o inferno, pergunta o
agente. “Aí não tem problema, replica
Rabinovich, porque russo eu já sei”.
sem ser pedante; que compreendesse
que literatura, música e pintura devem
tornar as pessoas melhores – não
superiores – que sentir é tão importante
como saber. Gostaria que ele aprendesse
a chorar como só os judeus sabem chorar,
e a rir como nós: aquele nosso meio
sorriso, meio amargo, meio filosófico.
Herdeiro desse humor judaico que
até hoje faz sucesso em Hollywood e
na TV, é dele a seguinte frase
maravilhosamente iconoclasta:
“Eu sou aquele cujo verdadeiro nome
não pode ser pronunciado. Admito,
contudo, ser chamado de Jeová”.
Gostaria que o meu filho não fosse um
sectário: que não colocasse, em polos
irremediavelmente opostos, judeus
e árabes, israelitas e palestinos. Que
soubesse que neste mundo há lugar
para todos, é só uma questão de ajuste.
Que soubesse que, de cada vez que há
uma guerra, alguém lucra com isso.
Não sei se é pedir demais em troca
da mensalidade escolar. Mas, afinal,
a educação tem uma componente de
sonho enxertado na dura realidade
quotidiana. E sonhar não é proibido”.
No lugar de me limitar a tecer loas
a Moacyr Scliar, optei por deixar
que o leitor o conhecesse através
de pequenos trechos de milhares
que poderia haver selecionado de
sua própria obra e, assim, despertar
a curiosidade sobre o resto. Além
dos óbvios livros, de suas crônicas,
contos, peças teatrais e adaptações
para o cinema, tanto de longa quanto
de curta metragem.
Em seu livro A Face Oculta, o humor
vem envolto em seus conhecimentos
médicos:“Esquecimento é quando a gente
não sabe onde deixou a chave do carro.
Alzheimer é quando a gente encontra a
chave, mas não sabe para que serve”.
Certa ocasião, em Porto Alegre, em
uma reunião de pais e mestres, foi
interrogado durante uma palestra
para a qual fora convidado por
um dos participantes, se seu filho,
na época com dois anos, viria a
frequentar a mesma escola judaica
que ele frequentara, respondeu:
“Eu gostaria que o meu filho tivesse
acesso à cultura judaica, tanto por
ela ser judaica como por ser cultura.
Gostaria que ele tivesse o mesmo
prazer e a emoção que eu sinto ao ler os
contos de Scholem Aleichem, Mendele
e Peretz; as histórias de Isaac Babel
e Michael Gold; os livros de Bellow,
Malamud, Bashevis Singer e Philip
Roth. Gostaria que ele ficasse extasiado
diante dos quadros de Chagall, que
gostasse de música iídiche, das canções
hebraicas, da dança de Israel. Gostaria,
modestamente, que ele lesse o que eu
escrevi e que sentisse o judaísmo nos
meus próprios livros: gostaria disto,
como pai e como judeu. Gostaria que o
meu filho tivesse bagagem intelectual
um ensaio seu que demonstra essa
simbiose que sempre existiu entre
escritores judeus e os grandes da
literatura de nosso País.
Em Machado de Assis e os judeus,
afirma, com orgulho: “Quem
se debruça sobre a Torá, onde se
concentra a doutrina judaica, adquire
conhecimentos que representam
verdadeiras pérolas de sabedoria”.
Niskier é outro escritor que nunca
esqueceu suas raízes judaicas e,
através de sua obra, difundiu suas
tradições e estreitou laços culturais
entre o Brasil e Israel.
Clarice Lispector, nascida na
Ucrânia, naturalizada brasileira.
Nome do mais alto respeito na
literatura brasileira e mundial que
inspirou muitas jovens de nosso
País a se dedicarem à literatura.
Chegou ao Brasil com um ano e dois
meses para se tornar romancista,
Escritor toma posse
como membro da Academia
Brasileira de Letras
Como diria um gaúcho verdadeiro:
agora que puxei bastante brasa pro
meu assado, não custa nada cuidar do
assado dos outros.
Seria injusto não mencionar aqui
outros judeus que influenciaram a
nossa literatura de modo definitivo
como:
Arnaldo Niskier, titular da cadeira
18 da Academia Brasileira de Letras
(a qual presidiu), com vasta obra
dedicada à educação, ensaios
históricos, literatura infanto-juvenil
e obras didáticas. Seria um crime
deixar de citar aqui uma parte de
61
abril 2014
ARTE
lembranças de perseguições e fugas
de um passado que se recusava
(embora não inteiramente vivido )
a ser esquecido. O exílio é um tema
recorrente em sua obra.
O Muro de Pedras, onde discorre
sobre o existêncialismo é seu livro
mais conhecido e louvado pela
crítica. Foi merecedora dos prêmios
José Lins do Rego (1963) e Coelho
Neto da Academia Brasileira de
Letras (1964).
scliar durante evento
escritora, contista, colunista, cronista
e jornalista. Amiga de nomes
como Fernando Sabino, Lúcio
Cardoso, Rubem Braga, Santiago
Dantas e Samuel Wainer, acabou
conhecida como “a grande bruxa da
literatura brasileira” por seu costume
de se vestir de preto. Referindo-se
a ela e à importância de sua obra
para a literatura brasileira, seu amigo
Otto Lara Resende disse em tom de
elogio: “Não se trata de literatura,
mas de bruxaria”.
Tal cartomante lhe assegura um
futuro feliz, que viria através de um
estrangeiro loiro que ela encontraria
ao sair de sua casa. Homem com
quem casaria.
Teve nove romances publicados,
entre eles, A Hora da Estrela, que
narra a história de uma moça cheia
de esperanças, recém-chegada ao
Rio de Janeiro, vinda do Nordeste
(como ela própria, que veio do
Recife). Depois de a personagem
perder o namorada para uma amiga,
filha de um açougueiro, que aos
olhos do moço poderia lhe dar uma
oportunidade de ascensão social,
na sequência, Macabéa (esse era
o nome da personagem principal)
descobre estar com tuberculose (na
época, uma quase sentença de morte)
e procura uma cartomante para lhe
ler a sorte.
Dizia-se brasileira. De acordo com
suas próprias palavras e referindo-se
à sua terra Natal (Ucrânia): “Naquela
terra eu literalmente nunca pisei: fui
carregada de colo”.
Não seria um romance de Clarice
Lispector se assim acontecesse. Na
verdade, a pobre Macabéa, ao sair da
cartomante, é atropelada por uma
Mercedes amarela guiada por um
homem loiro, e cai morta no asfalto.
Puro Clarice.
Não podemos esquecer também de
Elisa Lispector, irmã de Clarice,
autora que garantiu seu lugar na
literatura de nosso País com uma
escrita intimista, que explorava
mais as dúvidas existenciais de
seus personagens, desnudando suas
fraquezas e agruras. Seu primeiro
romance foi Além da Fronteira, de
1945, e abriu as portas para uma
série de outros livros recheados de
62
Seus primeiros contos foram
publicados apenas em 1970 com o
livro Sangue no Sol; voltou em 1977
com Inventário e O Tigre de Bengala,
em 1985. Sua última coletânea de
contos ganhou o prêmio Pen Clube,
em 1986. Morreu em 1989, no Rio
de Janeiro, onde vivia.
Para finalizar, outro grande que
também brotou para o mundo na
distante Ucrânia: Pedro Bloch.
Ele se criou no Brasil, onde mais
tarde se naturalizou. Aqui se formou
médico foniatra para depois exercer
o jornalismo, ser compositor, poeta,
dramaturgo e, ainda, encontrar
tempo nos intervalos para escrever
mais de cem livros.
Da mesma forma que Scliar,
são todos expoentes das letras
deste País, e orgulho tanto para a
comunidade judaica, como para
homens e mulheres interessados em
cultura na nossa terra. Pessoas que
influenciaram mentes, enriqueceram
nossa literatura e ajudaram a erigir
com letras a história de nossa nação e
de seus antepassados.
H. James Kutscka
é publicitário, pintor e autor de
inúmeros artigos e livros.
Meus agradecimentos à minha filha,
a historiadora Kim Kutscka,
pela revisão deste artigo.
REVISTA MORASHÁ I 83
PEQUENOS MILAGRES
A VERDADE SEMPRE LIBERTA
Solomon Schwarz tinha uma união muito feliz, ele e sua esposa
Minnie eram parceiros de verdade, apenas algo faltava para
completar sua felicidade, um filho. Entretanto de repente suas
vidas saíram de seu controle e tomaram um rumo inesperado.
A
mavam-se profundamente, compartilhavam
os mesmos valores e ideais e desfrutavam
de um companheirismo fora do comum.
Havia apenas algo que faltava em sua vida a
dois para torná-la completa – um presente
de D’us, um filho. Mas o casal tinha certeza de que esta
espera seria temporária.
Judeu. Se sua esposa é estéril há mais de dez anos, a Torá
diz que você deve divorciar-se”.
Ano após ano eles aguardavam, pois a legião de médicos
que haviam consultado garantira que não havia nada
de errado com ambos e que, com certeza, teriam filhos.
Conforme o tempo passava, era cada vez mais difícil
para Minnie ver uma mãe empurrando, radiante, um
carrinho de bebê pelas ruas, sem derramar uma lágrima.
Um nó formava-se em sua garganta cada vez que ouvia o
inconfundível choro de um recém-nascido. No passado,
ela costumava parar diante das vitrines de lojas infantis
acariciando, com os olhos, os delicados lacinhos nas
roupas e acessórios. Agora, no entanto, quando passava
em frente a uma dessas lojas, apressava o passo e seguia
em frente.
Os Schwartz já estavam casados há 12 anos quando
o patriarca da família, seu tio mais velho,
inesperadamente, chamou Solomon para uma conversa.
“Você sabe que uma das mais importantes mitzvot
da Torá é o mandamento de pru urevu - frutificai e
multiplicai-vos. Trazer filhos ao mundo não é apenas
um prazer, mas uma obrigação. Somos os responsáveis
pela perpetuação das espécies, pela perpetuação do Povo
63
“Não”, gritou Solomon, sem acreditar no que ouvia.
“É a Lei”, afirmou duramente seu tio. “Não é possível
que a Torá quisesse dissolver um casamento amoroso –
com filhos ou sem filhos”. O tio, por sua vez, acrescentou:
“Se você não acredita em mim, pergunte ao seu rabino...
De qualquer maneira, eu já tomei a liberdade de falar
com a Minnie e lhe explicar a situação. E ela é uma
mulher de grande valor: concordou em não atrapalhar
sua felicidade e cumprir os mandamentos. Ela não quer
impedi-lo de ter filhos com outra mulher. Ela vai lhe
conceder o divórcio sem qualquer problema ou discussão.
Ela o ama e lhe deseja o melhor”.
“Quem é você para decidir o que é melhor para mim?”,
Solomon perguntou, furioso. “Minha esposa Minnie, a
quem amo. Ela é o melhor para mim. Ela é todo o meu
mundo. Não vou me divorciar. Não acredito sequer que
tal lei exista de fato. Provavelmente é você quem está
inventando tudo isso”.
Posteriormente, no entanto, quando Solomon foi
averiguar pessoalmente junto a um rabino que era seu
amigo, ouviu as seguintes palavras: “Tal lei existe, de fato.
Em outras épocas, as pessoas seguiam rigorosamente
este mandamento. Atualmente, porém, os rabinos estão
mais tolerantes em sua interpretação e a maioria não
recomenda o divórcio. No seu caso, como Minnie e
abril 2014
PEQUENOS MILAGRES
você têm um lindo relacionamento
e um amor especial, poucos o
aconselhariam a tomar uma medida
tão drástica. Esqueça a conversa com
seu tio e siga com sua vida”.
Mas as coisas já haviam tomado tal
rumo que não havia nada mais a
fazer. A situação saíra de controle.
Tendo sido convencida de que era a
causa da infelicidade de seu marido
e do drama das futuras gerações dos
Schwartz, Minnie não permitiria que
nada a detivesse e estava determinada
a seguir em frente com o processo de
divórcio.
“Será que ninguém pode fazer
nada?”, perguntou, alquebrado, no
gabinete de estudo de um rabino,
certo dia. O rabino teve vontade
de lhe dizer que seu pedido era
impossível. Que nenhum estudioso
que seguisse a Halachá seria capaz
de encontrar uma solução para ele.
No entanto, ele se viu dizendo: “Por
que você não vai se aconselhar com o
Lubavitcher Rebe?”
lubavitcher rebe
explicou-lhe: “Solomon, meu filho,
você é um Cohen, pertencente à
Ao conversar com Solomon, ela disse, casta dos Sumos Sacerdotes que
entre lágrimas: “Tenho sido egoísta
serviram no Templo. Um Cohen está
durante todos esses anos. Com outra sujeito a leis mais rigorosas do que
esposa você terá a chance de ter
os descendentes das outras tribos.
muitos filhos. Não posso ficar no
Um Cohen, sinto muito em lhe dizer,
seu caminho. Eu o amo demais para
não pode se casar com uma mulher
privá-lo desta bênção”. Quanto mais
divorciada. E Minnie, agora, pertence
o marido argumentava, protestava e
a este grupo”.
tentava fazê-la raciocinar, mais ela
permanecia irredutível. Seu maior
“Mas eu me divorciei dela, ela
sacrifício, seu derradeiro ato de amor era minha esposa”, retrucou.
seria entregar seu amado marido
“Tecnicamente, não faz diferença.
para outra. Quando ele lhe entregou
Ainda assim, ela é uma mulher
o guet (divórcio judaico), Solomon
divorciada e você ainda é um Cohen.
se ajoelhou desesperado e com o
Não vejo como vocês podem se casar
coração partido afirmou: “Eu amarei
novamente”, afirmou o tio.
você para sempre”. Em resposta, ela
sussurrou, condoída: “Eternamente”. Solomon estava chocado. Minnie,
seu grande amor, sua preciosa esposa,
Duas semanas depois, ela lhe
estava finalmente grávida e eles não
telefonou para contar que estava
poderiam se casar novamente? Não
grávida. Em resposta, ele disse:
era possível, era? Infelizmente, todos
“Vamos nos casar novamente. Tenho
os rabinos consultados sobre o tema
certeza que será permitido. Vou
concordavam com a informação dada
perguntar ao meu tio”. Quando o
pelo tio. Ele era um Cohen, ela era
sobrinho lhe falou sobre as novidades, divorciada, não havia o que discutir.
o patriarca deu a seguinte resposta:
“Bem, sim, em casos normais o casal
“Não há nada que possa ser feito?
pode casar novamente... Mas, este
Uma dispensa, uma anulação? Não
não é um caso normal”.
há nenhuma filigrana legal que vocês
possam encontrar para fazer com que
Impaciente, Solomon perguntou:
a lei seja interpretada a meu favor?”
“O que você quer dizer com este não Não havia brechas, todos respondiam
é um caso normal?”. O tio, então,
com tristeza.
64
O Lubavitcher Rebe era um sábio
muito conceituado em Crown
Heights, no Brooklyn. Tinha
milhares de discípulos – seguidores
e admiradores mundo afora, que
acreditavam fervorosamente na
inspiração Divina de sua sabedoria
e inteligência, bem como nos
pressentimentos e poderes de consolo
e cura desse homem santo. Muitos
afirmavam que ele realizava milagres
e salvava vidas. Para uma multidão
de pessoas, judeus e não judeus,
ele era a última chance, a última
parada, o último tribunal de apelação.
Era pleno de amor e aceitava
incondicionalmente cada judeu,
independentemente de sua tendência
religiosa. Não era raro que judeus
seculares fizessem peregrinações
até seu famoso endereço - 770
Eastern Parkway - e dali saíssem
reconfortados.
Solomon Schwartz era observante
o suficiente para desejar cumprir
a lei, mas não era um Lubavitcher.
Vivia na Califórnia e nunca tinha
sido atingido pelo carisma do Rebe.
Ainda assim, as histórias sobre ele
corriam pelo país e ele já havia
ouvido falar sobre os milagres do
Rebe. Então, quando o último rabino
que consultara lhe sugeriu que se
consultasse com o Lubavitcher Rebe,
sentiu que poderia ser uma opção.
Disseram-lhe que o Rebe abria suas
portas ao público aos domingos e
que os interessados em uma consulta
REVISTA MORASHÁ I 83
com ele eram recebidos de acordo
com a ordem de chegada. Quando
Solomon chegou ao Brooklyn, no
domingo de manhã cedo, a fila de
pessoas que esperavam para ver o
Rebe era muito grande e espalhavase como uma serpente ao redor
da Eastern Parkway e pelas ruas
próximas. Centenas de judeus de
todas as correntes atraídos ao local
em busca de seu milagre pessoal.
Solomon não pregara o olho durante
o vôo noturno de sábado à noite.
Esperando na interminável fila,
estava irritado e impaciente. Ainda
faltavam horas para chegar a sua vez,
mas consolava-se dizendo que talvez
a espera valesse a pena.
Mas não valeu. Cinco horas haviam
transcorrido quando finalmente
chegou sua vez. Ele sussurrou
sua triste história e a imposição
da Halachá no ouvido atentos do
Rebe. O que ele esperava ouvir
daquele homem conhecido por seu
brilhantismo e sabedoria era, quem
sabe, algo inédito, quem sabe uma
brecha na Halachá que pudesse
libertá-lo. Ou, no mínimo, uma
bênção que aliviasse o seu coração.
Ao invés disso, o Rebe simplesmente
analisou Solomon por uma fração de
segundo, perfurando sua alma com
uma ardente intensidade, e disse: “Vá
falar com sua mãe”.
Atônito, Solomon gaguejou, entre
frustrado e desesperado: “O quê???”.
“Vá falar com sua mãe”, repetiu o
Rebe. Foi aí que o rapaz estourou:
“Eu viajei três mil milhas para o
senhor me dizer para falar com
minha mãe? Isto é tudo que o senhor
tem para me dizer?”, falou já alterado,
descrédito. Pela terceira vez, o Rebe
repetiu: “Vá falar com sua mãe”, e fez
sinal para que ele saísse.
Solomon andou pelas ruas de Crown
Heights; era o desconsolo em pessoa.
Sentia-se enganado, traído. No
final das contas, o Rebe não era um
homem santo. Era um charlatão,
um logro, uma fraude. “Vá falar com
sua mãe”. Que espécie de conselho
era esse? Ainda assim, ele parou
para reconsiderar o que ouvira. Era
interessante como o Rebe parecia
estar certo de que ele tinha mãe e
que ela ainda estava viva. E como
sabia que ele não falava com ela há
muito tempo?
Ao longo dos anos, infelizmente,
eles haviam-se distanciado. Tinham
tido muitas discussões que haviam
desgastado seu relacionamento, e
a reaproximação jamais ocorrera.
Haviam-se passado meses desde a
última vez que conversaram e ela
desconhecia os últimos eventos
graves que tinham ocorrido em sua
vida: o divórcio, a gravidez de Minnie
e sua busca frenética por uma brecha
haláchica para que pudessem casar-se
novamente.
“Vá falar com sua mãe”, dissera o
Rebe. Solomon não sabia o que
o sábio quisera dizer com essa
mensagem enigmática, mas talvez
fosse o momento de ver sua mãe,
de qualquer maneira. Seu rosto se
iluminou quando ela abriu a porta e
o envolveu em um forte abraço. “Há
quanto tempo”, ela chorou.
65
E por causa de tanta narishkeit tanta besteira... Venha para a cozinha.
Tenho café fresco e acabei de fazer
folheados de queijo, ainda estão
quentinhos! Onde está Minnie?”.
Então ele lhe contou tudo: a
intervenção do patriarca da família, a
insistência de Minnie em se divorciar
para que ele pudesse ter filhos com
outra mulher; a repentina alegria
por causa da gravidez inesperada e
a busca por uma brecha na Halachá.
Finalizou aquela litania dizendo:
“Mãe, você poderia imaginar
tamanho problema?”.
Então, vagarosamente, sua mãe
começou a falar, olhando fixamente
em seus olhos: “Não há problema
algum! Eu nunca consegui lhe contar
antes, mas, chegou a hora de fazê-lo.
É verdade que seu pai era um Cohen,
portanto, naturalmente, você supôs
que também fosse, pois passa de pai
para filho. Mas você não é Cohen
de fato e, portanto, está livre para se
casar novamente com Minnie...O
Rebe estava certo quando lhe disse
para falar comigo...Sabe...você foi
adotado”.
Extraído da coletânea Small
Miracles for the Jewish Heart –
Extraordinary Coincidences from
Yesterday and Today, de Yitta
Halberstam e Judith Leventhal
abril 2014
COMUNIDADES
judeus no méxico
Apesar da presença judaica no México datar dos primórdios
da conquista espanhola, no século 16, a atual comunidade
judaica data do final do século 19 e início do
século 20, quando chegaram ao país diferentes levas de
imigrantes judeus oriundos do Império Otomano e da Europa.
E
m 1492, ano em que os judeus foram
definitivamente expulsos da Espanha, Cristóvão
Colombo desembarcava nas Índias Ocidentais.
Sabe-se que havia conversos1 integrando essa
expedição, assim como em outras que foram até
o Novo Mundo, muitas vezes até financiando tais viagens.
Nas décadas seguintes, quando centenas de aventureiros
espanhóis foram para as Américas, não houve um barco
que não levasse consigo cristãos novos, como eram
também chamados os conversos.
Eles também faziam parte da expedição de Hernán
Cortés, que, em fevereiro de 1519, saiu de Cuba e
desembarcou na ilha de Cozumel, situada perto da costa
da Península de Iucatã, localizada no sudeste do território
do atual México. Iucatã havia sido descoberta dois
anos antes por uma expedição espanhola liderada por
Francisco Hernández de Córdoba.
As notícias da existência de ouro em Iucatã eram
um grande estímulo para os homens de Cortés. Para
conquistar a região, eles não temem o enfrentamento
com o Império Asteca, poder dominante da região, que
atingira o apogeu sob o imperador Montezuma.
Além de uma tecnologia militar superior – armas de ferro
e aço e cavalos – uma casualidade ajudou os espanhóis
a derrotar os temidos astecas. De acordo com antigos
mitos, Quetzalcóatl, um de seus deuses, estava por
regressar. Ao ser informado da chegada dos espanhóis,
Montezuma crê que Cortés era a personificação dessa
divindade. Envia-lhe, então, presentes em ouro e prata
de grande valor, o que iria atiçar ainda mais a cobiça
espanhola.
Em novembro, Cortés chega a Tenochtitlan,
capital do Império, localizada onde atualmente
é a Cidade do México. Montezuma recebe-os
amigavelmente, mas, dias depois, é feito prisioneiro.
Ao se tornar evidente que estes não eram deuses, os
astecas se revoltam. Montezuma acaba sendo morto
e seu sucessor, Cuauhtémoc, resiste ferozmente aos
invasores. Mas, em meados de 1521, após um longo
sítio, as tropas de Cortés tomam Tenochtitlan.
É o inicio do Período Colonial, que durou até 1810.
Durante este período, o território do atual México fazia
parte do vice-reinado da Nueva España, cuja capital era a
Cidade do México. Incluía, também, as ilhas espanholas
do Caribe, a América Central descendo até a Costa Rica,
inclusive, e o sudoeste dos Estados Unidos.
A estrutura do império espanhol nas Américas tomou
forma em 1533 e manteve sua estrutura até o final
do século 18. Colônia de exploração, a economia da
Nueva España era baseada na exploração das minas de
prata e ouro, e o comércio estava sob rígido controle
monopolista. A Igreja, rica e poderosa, dona de
grandes extensões de terra, vai desempenhar um papel
preponderante durante o Período Colonial.
66
Sinagoga Abu Attie, Comunidade Maguen David
Presença judaica
Em 1502, antes mesmo de o
México ter sido descoberto, a Coroa
Espanhola outorgara uma lei que
fechava os domínios espanhóis nas
Américas para os cristãos novos. De
acordo com a lei, apenas cristãos
velhos poderiam integrar-se às
expedições. Eram, portanto, excluídos
judeus, conversos, os que possuíam
sangue judeu entre seus ancestrais
e qualquer pessoa que tivesse sido
processada pela Inquisição, bem
como os mouros.
Mas, as notícias das riquezas das
Américas, aliadas à possibilidade
de viver longe da intolerância e do
ódio e, principalmente, das garras
da Inquisição, levaram milhares de
1
Na Espanha, após os pogroms de
1391 e até o Édito de expulsão de 1492,
milhares de judeus foram obrigados, na
ponta da espada, a renunciar à sua fé e
abraçar o cristianismo. Ficam conhecidos
como conversos, cristãos novos ou,
pejorativamente, marranos. Na literatura
judaica são chamados de anusim.
conversos a procurar meios para
embarcar para o Novo Mundo.
Nem todos os conversos que vieram
para o Novo Mundo mantinhamse fieis à fé de seus ancestrais, mas,
mesmo os que haviam abraçado
o cristianismo, eram visados pela
Inquisição e não estavam a salvo.
Reservava-se maior hostilidade aos
chamados “judaizantes”, cristãos
novos suspeitos de continuarem
praticando o judaísmo em segredo,
ou, pior ainda, de levar outros
cristãos novos de volta ao judaísmo.
Como vimos acima, havia conversos
na expedição de Cortés, que, em
1519, desembarcou em Cozumel.
Sabe-se também que participaram
ativamente do processo de ocupação
e colonização das principais áreas
da Nova Espanha. Em 1528, quatro
deles foram acusados de serem
“judaizantes”, dois foram queimados
vivos.
No mesmo período, aumentou
o número de cristãos novos que
67
se fixaram no território do atual
México, vindos principalmente
de Madri e Sevilha e de Portugal.
Vinham como soldados,
conquistadores e colonizadores. No
ano de 1536 já havia comunidades
de conversos em Tlaxcala e Mérida.
Com o surgimento de novos centros
de mineração, havia conversos,
entre outros, em Taxco, Zacualpan,
Zumpango del Rio, Espírito Santo
e Tlalpujahua. No final do século
16, surgiram pequenos núcleos em
Guadalajara, Puebla, Querétaro,
Oaxaca e Michoacan, entre outras
áreas. Sabe-se que, no início do
século 17, havia pelo menos um
grupo de conversos em cada cidade.
Sua ativa participação na vida
econômica e comercial leva-os
a prosperar, mantendo relações
comerciais com conversos da
Espanha, de Portugal, Inglaterra,
Holanda e do Império Otomano.
Mas, a sociedade colonial os via com
antipatia e desprezo e a Inquisição
era uma ameaça constante em sua
vida. Os conversos mantinham
abril 2014
COMUNIDADES
Navio com imigrantes judeus chega a Vera cruz, 1923
estreitos laços entre si e procuravam
casar seus filhos entre os membros do
grupo. Apesar dos perigos, reuniamse para rezar em quartos secretos, nas
casas de líderes comunitários, que,
muitas vezes, atuavam como rabinos.
A família Carvajal
A família Carvajal escreveu um
capítulo importante na história
dos judeus no México. Em 1579,
o converso Don Luís de Carvajal
y de la Cueva, El Viejo (o Velho)
foi indicado pela Coroa espanhola
como governador de um distrito
no México. Como agradecimento
por sua indicação, colonizou uma
extensa área com recursos próprios.
Denominou sua jurisdição de
Nuevo Reino de Leon. O território
incluía uma porção significativa do
México atual, bem como partes do
Texas e do Novo México. A Coroa
deu-lhe a permissão de trazer da
Espanha 100 famílias, a maioria
delas de conversos. Uma década após
seu estabelecimento, já eram uma
comunidade significativa. Mas suas
expectativas de conseguir escapar
das perseguições foram frustradas,
pois muitos deles, acusados de serem
“judaizantes”, foram punidos.
Outra figura importante foi Luis de
Carvajal, El Mozo (o Jovem), neto
de Luis de Carvajal y Cueva. A casa
onde ele e vários membros da família
viviam, na Cidade do México, no
bairro Santiago Tlatelco, era uma
sinagoga e um lugar de refúgio.
El Mozo foi preso pela Inquisição
em duas ocasiões e morreu na
fogueira em 8 de dezembro de
1596. Após sua última prisão, foi
cruelmente torturado até denunciar
21 pessoas, incluindo sua família
imediata, apesar de ter repudiado sua
confissão, posteriormente. Deixou
significativo material escrito, que
ficou escondido nos arquivos da
Inquisição Mexicana durante mais
de 300 anos antes de serem liberados.
Luis de Carvajal é reconhecido, hoje,
como o primeiro autor judeu no
Novo Mundo.
A inquisição no México
A Inquisição chegou às Índias
Ocidentais por volta de 1519,
exatamente quando Cortés iniciava
a conquista do México. Em 1527,
foram nomeados os primeiros bispos
do México, com autorização para
atuar como inquisidores. Um dos
principais alvos da Inquisição eram
os “judaizantes” – conversos que
retornavam ao judaísmo.
Assim como em todos os lugares
onde atuavam, os inquisidores
escolhiam um dia em que todos
eram obrigados a assistir a uma
68
missa especial, e ali ouvir o “édito”
da Inquisição que condenava, além
do judaísmo, várias outras heresias.
Os que se julgavam culpados de
“contaminação” deviam apresentarse e confessar dentro de um
período estipulado, sem incorrer em
penitências sérias. Eram obrigados,
porém, a denunciar outros supostos
culpados. Na verdade, esse era o
requisito crucial para poder escapar
sem nada mais severo que uma
penitência. Os acusados podiam
ficar encarcerados durante anos,
sem ao menos saber a transgressão
de que se dizia serem culpados,
nem quem os denunciara. A prisão
era invariavelmente seguida do
imediato confisco de todos os seus
pertences, desde a casa até as roupas,
os pratos e panelas. Não foram
poucas as vezes em que acusações
eram fabricadas, visando obter os
bens e propriedades do indivíduo,
que jamais eram devolvidos, mesmo
sendo o acusado inocentado.
A Inquisição estabeleceu seu próprio
tribunal no México em 1570, na
Cidade do México. A Igreja fazia do
Auto-de-fé um grande espetáculo e
a cidade se preparava como para uma
festa, sendo convidados à cidade para
a ocasião dignitários provinciais.
O primeiro Auto-de-fé foi realizado
quatro anos mais tarde. No dia 28 de
fevereiro de 1574, era protestante a
maioria dos 74 prisioneiros levados
a julgamento. Estima-se que entre
1574 e 1603, mais de 115 conversos
tenham sido condenados.
O ponto alto da Inquisição no
México veio com o Grande Auto
de 11 de abril de 1649. Anunciado
de antemão por trombetas e
tambores por todo o México, atraiu
as multidões que começaram a
chegar à Cidade do México duas
semanas antes do acontecimento.
No dia anterior ao “evento”, muitos
REVISTA MORASHÁ i 83
espectadores chegaram à praça
onde se realizaria o Auto-de-fé,
permanecendo a noite toda para
não perder os lugares ou a visão
dos acontecimentos. No total,
foram julgados e condenados 109
prisioneiros, dos quais apenas um não
era cristão novo. Representavam “a
maior parte do comércio do México”,
pois os conversos dominavam o
comércio entre a Espanha e suas
colônias. Dos 109 prisioneiros,
13 foram sentenciados à estaca
e 20 queimados em efígie – não
estando de corpo presente. Desses
20, alguns haviam escapado da
prisão, outros morreram sob tortura
e dois deram fim à vida.
Os confiscos relacionados ao
Grande Auto trouxeram aos cofres
da Inquisição um total de três
milhões de pesos. Essa quantia teria
bastado para construir mais de 238
grandes prédios municipais. Entre
1646 e 1649, com seus confiscos a
Inquisição obteve renda suficiente
para se manter por 327 anos.
sangrenta luta entre forças liberais
e conservadoras que dominaram
a história do país no século 19.
Enquanto os conservadores queriam
um governo de centro, eventualmente
uma monarquia sob os Bourbon, em
que Igreja e militares mantivessem
seus poderes tradicionais, os liberais
queriam um governo federalista e
a limitação da influência da Igreja
Católica e dos militares sobre o país.
Para os liberais, o poder da Igreja era
o maior entrave para qualquer avanço
político ou econômico.
No decorrer do século 19, governos
liberais são derrubados por forças
militares conservadoras e vice-versa.
O resultado foi um período de
grande instabilidade política e caos
econômico. A pobreza e as doenças
tomaram conta do país. Na Europa,
dizia-se que “no México, se não se
morre de epidemia, morre-se por
causa das guerras internas”.
país. Ademais, até 1860, quando
o então presidente liberal Benito
Juaréz instituiu a liberdade religiosa,
o catolicismo era a única religião
oficial do Estado. E ainda era grande
o preconceito e desconfiança do povo
em relação aos judeus, uma herança
da Inquisição e do fato do México ser
um país de grande devoção católica.
O número de judeus foi aumentando
após o México fechar acordos
comerciais com empresas europeias
que pertenciam a judeus e alguns
de seus representantes passarem a
viver no país. Em 1861, já havia uma
comunidade judaica organizada.
Na ocasião, a mídia judaica londrina
publicara que “100 famílias judias
planejam construir uma sinagoga
na Cidade do México”. Muitas,
porém, acabam por deixar o país em
decorrência da violência das revoltas
e contrarrevoltas.
Século 19 – da
Independência a 1900
As lutas internas acabam com uma
intervenção francesa e a formação
do Segundo Império Mexicano. Em
1864, Maximiliano de Hamburgo
torna-se imperador do México. Ele
traz consigo 100 famílias judias da
Bélgica, França, Áustria e Alsácia.
Abastados e com estreitas ligações
com a aristocracia, chegaram a
cogitar a possibilidade de construir
uma sinagoga, mas nada foi feito
nesse sentido. Em 1867 as forças
liberais derrubam o império e
prendem Maximiliano, que é fuzilado
em junho desse ano.
A luta pela independência
mexicana teve início em 1810
e prolongou-se até 1821. A guerra
civil deixou o México destruído,
sua economia arruinada e uma
imensa dívida externa. Em 1823
nasce um novo país, independente:
os Estados Unidos Mexicanos.
A guerra da independência foi
um dos episódios da longa e
A maioria dos judeus deixa
o México e, na década seguinte,
a vida comunitária judaica quase
desaparece. Em 1879 havia
apenas 20 famílias na Cidade
do México, a assimilação atingira
níveis altíssimos e eram frequentes
os casamentos mistos. Com a
subida ao poder de Porfirio Diaz,
em 1876, o país entra em um
A incansável atuação da Inquisição
e a violência dos Autos-defé semearam o medo entre os
cristãos-novos e, gradativamente,
as comunidades conversas foram
desaparecendo. Já no século 18 há
poucos indícios da presença judaica
na região.
Como foi mencionado acima, não
havia praticamente judeus no país
no final do século 18. As antigas
comunidades de conversos haviam
desaparecido e apenas uma dezena
de judeus se aventurara a entrar no
Golda Meir na Cidade do México
69
abril 2014
COMUNIDADES
período de estabilidade política
e desenvolvimento econômico.
Investidores estrangeiros passam a
ver a nação como uma opção para
seus negócios. Ainda era pequeno
o número de judeus que vivia
na Cidade do México, mas este
foi crescendo com a chegada de
correligionários europeus.
Entre os representantes de
companhias estrangeiras que
passaram a investir no país havia
inúmeros judeus, ainda que não
se identificassem abertamente
como tal. Abastados, assimilados
eram oriundos de vários países –
França, Áustria, Alemanha, Itália,
Bélgica, Estados Unidos e Canadá.
Mas, apesar de não quererem se
envolver em assuntos da comunidade
judaica local, eles cooperaram
economicamente em situações de
crise, como na época dos pogroms de
1881, na Rússia.
Apesar do seu pequeno número,
não foi desprezível a participação
dos judeus na vida econômica
e política do México, e grandes
empreendimentos foram fundados
nesse período por eles, entre os
quais, o Palácio de Hierro e o Banco
Nacional do México.
No início do século 20 começou a
exploração petrolífera no país. Ainda
que as concessões tenham sido
entregues a companhias estrangeiras,
a exploração levou o país a uma
industrialização. Os judeus vão
participar ativamente desse processo.
As bases da atual
comunidade
As bases da atual comunidade
judaica mexicana foram criadas
no final do século 19 e início do
século 20, quando chegaram ao país
diferentes levas de imigrantes judeus
uma das primeiras diretorias da unión sefaradi
oriundos do Império Otomano e
da Europa. Durante o governo de
Porfirio Diaz a imigração judaica
era incentivada, pois era vista como
muito positiva para a nação.
A deterioração da qualidade de
vida dos judeus no Império Turcootomano, além das novas leis de
alistamento obrigatório, levaram
jovens judeus a deixarem seus países
de origem para se estabelecer em
terras com melhores condições
econômicas.
Os primeiros judeus sírios vindos
de Damasco e Alepo chegaram ao
México em 1899. Eles vão ser os
primeiros a tentar reconstruir sua
vida no país, pois até então o México
era visto como paragem transitória.
Sem recursos financeiros, sem
conhecer o país e nem falar o idioma,
a maioria começou trabalhando
como vendedores ambulantes, na
esperança de conseguir os meios
financeiros para mandar buscar toda
a família. A comunidade judaica
síria foi-se formando, pois, de modo
geral, havia entre eles estreitos
laços familiares. Tradicionalistas e
religiosos, reuniam-se para as preces
diárias e festas religiosas em casas
particulares. Nesse mesmo período
70
chegaram, também, ao México,
judeus dos Bálcãs e da Turquia.
Paralelamente, os asquenazitas
tentavam organizar uma vida
comunitária. Em 1904, um grupo
chamado “El Comité” organizou
os serviços de Rosh Hashaná num
Centro Maçônico. Quatro anos mais
tarde é estabelecida a “Sociedad
de Beneficencia Monte Sinai”.
A criação dessa comunidade se deu,
em grande parte, graças aos esforços
do rabino Martin Zielonka, enviado
ao México pela União Americana
das Congregações Hebraicas. Essa
organização decidira incentivar
a formação de uma comunidade
judaica para evitar a emigração ilegal
de judeus para os Estados Unidos.
A nova sociedade beneficente
não teve vida longa. Entre outros,
inúmeros asquenazitas deixaram o
país quando eclodiu a Revolução
Mexicana de 1910, considerada o
acontecimento político e social mais
importante do século 20 no México.
O conflito revolucionário resultou
na diminuição da população judaica.
Mas, apesar da violência e da falta
de alimentos, os judeus oriundos do
Império Otomano e da Rússia lá
REVISTA MORASHÁ i 83
permaneceram. Além de não terem
meios financeiros para voltar para
suas cidades, não tinham para onde
voltar. O que os esperava não era
melhor do que a situação reinante.
Em 1912 é, então, criada na Cidade
do México a “Alianza Monte
Sinai”, a AMS, por iniciativa de
um judeu de Salônica, Isaac Capon.
A nova entidade reuniria judeus
de todas as nacionalidades. Uma
das primeiras medidas tomadas
foi o estabelecimento de um
cemitério judaico. Graças ao bom
relacionamento entre Jacobo Granat,
um dos dirigentes da Alianza,
com Francisco I. Madero, líder
revolucionário que assumira
a presidência mexicana, a AMS
teve autorização para adquirir um
terreno para o primeiro cemitério
judaico do país.
Em 1918, compraram uma casa no
centro da Cidade do México, que
viria a ser a primeira sinagoga da
comunidade judaica mexicana.
O dia em que o presidente
Venustiano Carranza assinou a
autorização da nova sinagoga
tornou-se uma data memorável,
pois foi a primeira vez em que a
comunidade judaica foi reconhecida
por lei.
Apesar de altos e baixos, a AMS
conseguiu manter-se unida por uma
década, durante a qual a instituição
realizava serviços religiosos e oferecia
assistência aos novos imigrantes,
incluindo aulas de hebraico, refeições
casher e serviços de mohel. Havia,
também, uma mikvê.
Após anos de lutas internas e
penúria, os políticos mexicanos
convenceram-se da necessidade
de uma nova constituição. Ela vai
ser outorgada em 1917. O objetivo
era a independência econômica e
o desenvolvimento do país. Entre
Casamento realizado na Sinagoga Rodfe Sedek
as novas disposições, são definidas
novas relações de trabalho, mais
humanizadas. É também reafirmada
a liberdade religiosa e definida
uma nítida separação entre Estado
e Igreja. Esta última, assim como
outras entidades religiosas, devia
submeter-se às leis constitucionais.
A chegada de novos
imigrantes
Em 1912, a população judaica
do México era de 12 mil pessoas,
aproximadamente, representando
cerca de 0,1% da população mexicana
que então somava 12 milhões.
A imigração tanto sefaradita quanto
asquenazita, principalmente da
Europa Oriental, continuou nas
primeiras décadas do século 20.
Curiosamente, os primeiros
imigrantes judeus da Europa
Oriental chegaram em 1917,
através dos EUA. Esse país entrara
na 1ª Guerra Mundial e esses
imigrantes não queriam servir no
exército americano. Eram homens
jovens que falavam russo e iídiche.
Sionistas, fundaram na Cidade do
México a primeira organização
cultural judaica do país: a Associação
Hebraica de Homens Jovens (em
71
inglês, YMHA), que funcionava
como um clube e se dedicava à
promoção da cultura e do esporte.
A YMHA tornou-se um ponto
de encontros sociais e auxílio
econômico para os novos imigrantes
asquenazitas.
A década de 1920
Esses anos foram decisivos para a
consolidação da comunidade judaica
local. Em 1921 o México passa a
ser o segundo produtor mundial de
petróleo e a nação está em franco
processo de reconstrução econômica.
É, também, no início da década de
1920 que começa uma imigração
maciça de judeus vindos de todas as
partes do mundo, mas principalmente
da Europa Central e Oriental.
Somente no ano de 1920 chegaram
aproximadamente 9 mil ashquenazim
e 6 mil sefaradim, elevando o número
de judeus no México ao total de
21 mil pessoas. A grande maioria
estabeleceu-se na Cidade do México.
Para muitos, o país era apenas uma
escala em sua jornada rumo aos
EUA. Mas, com o estabelecimento
de cotas de imigração por parte
das autoridades americanas, em
abril 2014
COMUNIDADES
1921, que se tornaram mais rígidas
em 1924, grande contingente
dessas famílias ficou no México.
Para a comunidade asquenazita,
a nova onda migratória foi muito
significativa, pois até então mais da
metade da população judaica era
sefaradita.
Nessa década, a comunidade
passou por uma reestruturação.
As diferenças de língua, rituais
religiosos e até hábitos do
cotidiano, especialmente entre
os que vinham da Europa e do
Oriente Médio, levaram diferentes
grupos ao estabelecimento de
comunidades separadas. Cada uma
ergueu suas sinagogas, mantendo
casas de estudos, organizações
beneficentes, escolas e até cemitérios
individualizados.
A separação dos ashquenazim da
AMS se deu em 1922, quando
este grupo decidiu realizar serviços
religiosos independentes e criou a
Nidje Israel (Consejo Comunitario
Askenazi). Em 1924 foi a vez dos
judeus da Turquia, Grécia e dos
Bálcãs – que falavam o ladino –
separarem-se da AMS, fundando a
sua própria organização e associação
de assistência social, a Fraternidad.
Em 1940 a Fraternidad, integrou-se
à Buena Voluntad e ao movimento
juvenil Unión y Progreso, criando
a Unión Sefaradi. Judeus de Alepo
também se separaram da AMS para
criar o que é hoje a comunidade
Magen David (antiga Sedaká u
Marpé). Na realidade, mesmo antes
da construção de sua primeira
sinagoga, em 1931, a Rodfe Sedek, os
judeus alepinos tinham seus próprios
locais de reza, escolas e instituições
beneficentes. A AMS passou a ser
liderada pelos damascenos, que, em
1935, mudaram seu estatuto e seu
nome, passando a ser conhecida
como a comunidade Monte Sinai,
que reunia os judeus de Damasco.
O sionismo sempre teve grande
apelo entre os judeus mexicanos
e, em 1925, foi criada a Federação
Sionista. Mas, por não se sentirem
confortáveis nas reuniões nas quais
a língua predominante era o iídiche,
os sefaraditas fundaram sua própria
organização sionista, a Bnei Kedem.
A década de 1920 viu prosperarem
os judeus do México e participarem
ativamente no processo de
desenvolvimento e industrialização
do país. O Banco Mercantil, fundado
pelos judeus, passou a financiar
1
2
1. Comitée do Macabi, novembro de 1936 2. moshe dayan na Cidade do México
72
a aquisição de máquinas para a
indústria têxtil e outros segmentos,
ajudando os judeus a abrirem
seus próprios negócios. Em 1931
foi criada a Câmara Israelita de
Indústria y Comércio com o objetivo
de coordenar o esforço judaico para
se organizar economicamente e
representar a comunidade junto às
autoridades.
Política imigratória e
antissemitismo
No final da década, há uma mudança
na política mexicana em relação à
imigração, que até então mantivera
uma postura aberta. Antes da
Revolução Mexicana não havia
praticamente uma regulamentação
legal desta questão e, durante toda
a década, o governo convidara os
judeus a imigrarem para o México.
No final dos anos 1920, porém, a
situação mudou. O nacionalismo
ocupa um lugar central no projeto
político de reconstrução nacional.
Uma nova política migratória
seletiva vai ser o resultado da
busca de um desenvolvimento
econômico autônomo e de um perfil
populacional próprio. Esse perfil seria
o resultado da homogeneização da
REVISTA MORASHÁ i 83
1
2
3
4
5
6
1. Casa da família Carvajal 2. Sinagoga Rodfe Sédek, congregação Maguen David 3. Sinagoga Rodfe Sédek, congregação
Maguen David 4. Sinagoga Adat Israel, Consejo Comunitario Askenazi 5. Sinagoga Monte Sinai 6. Sinagoga Shaar Hashamaim
Comunidade Unión Sefaradi
população através da “mestiçagem”,
entendida como fusão, assimilação
e dissolução de grupos étnicos.
Além de critérios, também o
viés econômico passa a orientar
a política migratória. A partir de
1927 o Congresso aprova uma
nova legislação para a imigração
baseada em critérios éticos-raciais,
a capacidade de assimilação dos
imigrantes e sua contribuição
para o desenvolvimento do país.
Em 1936, a Lei Populacional
estabelece diferentes cotas de
imigração e elabora tabelas com
restrições a determinados grupos de
estrangeiros. Os grupos objeto de
maior hostilidade foram os chineses
e os judeus.
Apesar dos intensos esforços feitos
pelos judeus locais e das pressões
internacionais, os judeus alemães
e austríacos que haviam fugido
da Alemanha nazista tinham
dificuldades para entrar no país, e o
governo concedia apenas dez vistos
por ano para poloneses e romenos.
Entre 1933 e 1945, o México recebeu
apenas 1.850 judeus.
O suposto “interesse nacional” foi
também utilizado internamente
como estratégia discriminatória. Na
década de 1930 há um aumento do
antissemitismo, expresso através de
ataques dos grupos fascistas locais,
entre os quais, o “Camisas Doradas”
e o Comitê Pró-Raça, que buscou
expulsar do país os estrangeiros
já residentes. Em maio de 1931, a
população judaica fica chocada com
a expulsão de 250 comerciantes
judeus do mercado La Lagunilla.
Determinados a resistir a tais
situações, as inúmeras entidades
judaicas mexicanas se unem para
criar o Comité Central Israelita do
México.
Segunda metade
do século 20
Na segunda metade do século 20
a ascensão socioeconômica alçou
73
os judeus às esferas mais altas da
sociedade mexicana. Novos ventos
sopram, provocando uma mudança
positiva definitiva no relacionamento
entre as comunidades judaicas e
o Estado, em 1992. Desde 1940
as relações entre Estado e Igreja
baseavam-se no acordo segundo
o qual o Governo não interferia
nas questões da Igreja em troca
do reconhecimento da Igreja da
hegemonia sociopolítica do Estado.
Esta equação aplicava-se em relação
a qualquer grupo religioso. Os judeus
haviam-se adaptado, registrando
suas congregações e sinagogas como
associações civis. Mas, com a reforma
constitucional de 1992, há um
reconhecimento legal das instituições
religiosas e de suas atividades
comunitárias.
A ligação entre os judeus do México
e Israel sempre foi forte, mas,
apesar dos esforços, não consegue
mudar, em várias ocasiões, a política
antissionista do governo mexicano.
Na histórica votação das Nações
abril 2014
COMUNIDADES
1
2
1. Sinagoga Rabi Yehuda Halevi, Unión Sefaradi. 2. Sinagoga Nidje israel, Consejo Comunitario Askenazi ortodoxo
Unidas que, em 29 de novembro de
1947, decidiu a Partilha da Palestina,
o México se absteve. E só reconheceu
o Estado de Israel em abril de 1952.
Mas, o momento mais grave se deu
em 1975, quando o então presidente
do México, Luis Echeverria, propôs à
Assembleia Geral das Nações Unidas
que o sionismo fosse considerado
uma forma de racismo. A Resolução
acabou sendo aprovada e as relações
diplomáticas entre Israel e o México
ficaram tensas. O México mudou sua
posição em 1992, quando o então
presidente Carlos Salinas propôs e
conseguiu a revogação da Resolução
de 1975, na ONU.
Século 21
De acordo com dados publicados pelo
World Jewish Congress, atualmente
a comunidade judaica mexicana soma
40 mil a 50 mil membros, dos quais
cerca de 37 mil vivem na Cidade do
México. Há, também, comunidades
em Guadalajara, Monterrey,
Tijuana, Cancun e San Miguel.
Diferentemente de outros países
onde a percentagem de casamentos
mistos passou de 50%, no México
apenas 6% dos casamentos são de
judeus com não-judeus. Há cerca de
30 sinagogas na Cidade do México e
número igual de locais menores para
orações e estudos e cerca de 20 locais
adicionais alugados para os serviços
durante as Grandes Festas. Duas
sinagogas são conservadoras e as
demais, ortodoxas.
Cerca de 95% dos judeus na Cidade
do México estão diretamente
afiliados à alguma comunidade ou
ao renomado Centro Desportivo
Israelita (CDI). Cada comunidade
fornece praticamente todos os
serviços do ciclo de vida de seus
membros – desde o nascimento ao
falecimento. Isso abrange os âmbitos
religioso, educacional, social, cultural
e assistencial.
O Centro Desportivo Israelita
(CDI), fundado em 1950, tem
atualmente mais de 28 mil membros.
Além de uma infraestrutura
excelente para a prática de esportes,
possui, também, uma galeria de arte,
um teatro e um salão para eventos.
74
Ali é realizado, anualmente, o mais
importante Festival de Dança e
Música Judaica da América Latina.
A rede judaica de educação conta
com 16 escolas na Cidade do
México. Segundo as estatísticas, mais
de 90% das crianças judias estudam
em estabelecimentos da comunidade,
da pré-escola ao ensino médio.
Há, ainda, 16 movimentos juvenis
com aproximadamente 2 mil
membros, a maioria dos quais
identificados com o Estado de
Israel. Anualmente, milhares de
jovens judeus mexicanos visitam o
Estado Judeu através de programas
organizados pelas escolas.
BIbliografia:
Los Judios de Alepo em México, coordenação
Liz Hamui de Halabe , ed. Maguen David
Unikel-Fasja, Monica, Sinagogas de México
Perez de Cohen, Rosalynda, Levy de Behar,
Simonette , Bejarano de Goldberg, Sophie,
Sefarad de ayer ou i manyana, Presencia
Sefaradí em México
Cincuenta Años del Centro Deportivo Israelita

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