Anais - XI SEL - Seminário de Estudos Literários

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Anais - XI SEL - Seminário de Estudos Literários
O CNPL E O SEL
O III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISA EM LITERATURA
é uma iniciativa do Programa de Pós-Graduação em Letras do
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE), câmpus da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), de São José do Rio Preto (SP).
O encontro reúne pesquisadores de literatura – mestres, doutores,
pós-graduandos e graduandos –, além de poetas e escritores. O
Congresso realizar-se-á nas dependências do IBILCE, nos dias 13, 14 e
15 de outubro de 2010.
Perfis do Contemporâneo colocará em foco uma diversidade
de visões sobre as atuais manifestações literárias, por meio de
atividades voltadas à reflexão crítica e à atuação artístico-cultural.
O propósito do evento é abrir-se a discussões acerca dos perfis da
literatura em sintonia com posicionamentos inovadores do fazer
literário moldado por distintas linguagens, no que se refere, por
exemplo, a novas tecnologias no campo da literatura, em termos
de produção e divulgação; às relações entre literatura e fotografia,
literatura e cinema, literatura e pintura; às questões de gênero
literário; à problematização da teoria da literatura no âmbito das
obras contemporâneas. Portanto, perfis com muitas faces, em que
se entrecruzam imagem, som, texto, palavra, movimento e corpo –
signos múltiplos em diálogo.
O XI SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS (XI SEL) é parte das
atividades do Programa de Pós-Graduação em Letras do IBILCE. Tem
como objetivo promover o debate dos projetos desenvolvidos em
nível de Mestrado e Doutorado, a fim de que haja, por meio da crítica,
uma melhoria no trabalho de pesquisa como um todo. É um espaço
importante para o pós-graduando, uma vez que ele já se prepara para
o embate crítico de sua pesquisa. As bancas de avaliação dos projetos,
além de professores do Programa, são compostas por docentes
convidados especialmente para esse fim, permitindo uma discussão
mais ampla das questões implicadas nos trabalhos.
Comissão Organizadora
OS FATOS E OS BOATOS DO SALAZARISMO
NA ESCRITA DE LOBO ANTUNES
Andréia Régia Nogueira do REGO (Unilago/SJRP)1
[email protected]
RESUMO: Os procedimentos de escrita utilizados por
António Lobo Antunes assentam-se numa estrutura
fragmentada na qual se encontram bases da história
(oficial e oficiosa) contemporânea de Portugal, o que
abre o leque de leituras possíveis do cenário histórico. No
romance aqui analisado, Exortação aos crocodilos (2001),
os estilhaços da história de um controverso acidente
envolvendo o então primeiro-ministro de Portugal
articulam-se no texto ficcional por meio dos relatos das
personagens, cujos discursos interrogam, denunciam (e
sofrem) o poder autoritário presente em diferentes níveis
das relações inter-pessoais.
PALAVRAS-CHAVE: António Lobo Antunes; Narrativa
portuguesa; Ficção e história
Em seu livro Seis passeios pelo bosque da ficção (2006), em
diálogo com Coleridge, Umberto Eco já nos indicava o pacto de
concordância entre Leitor e Autor: sabe-se que o que será lido não
é real, mas se aceita sua realidade, dentro dos limites do ficcional,
como se real fosse. Seria a suspensão da descrença.
Eis que nos encontramos no limiar aqui sugerido: a relação entre
fato e boato, texto ficcional e história. Não relacionamos fato a texto
histórico, pois sabemos que a história oficial nem sempre se escreveu
1 Doutora em Literaturas em Língua Portuguesa (UNESP/SJRP).
com base nos fatos... Tampouco ligamos ficção a boato, alertados
que fomos pela crítica literária aqui citada. Mas o que dizer quando
o texto literário traz à tona questões históricas de um contexto social
que se fortalece pela disseminação de mentiras, como é o caso de um
governo ditatorial? Afinal, sabe-se que a tônica da propaganda nazista
era a de que “uma mentira contada mil vezes se torna verdade”...
Diante de situações de extrema violência e massificação,
é comum a tendência à suspensão da crença, percorrendo um
caminho contrário ao proposto pela literatura. A esta cabe, portanto,
restabelecer aquela, propondo caminhos diferentes para o real, como
faz Umberto Eco ao nos propor passear pela ficção como passeamos
por bosques, aproveitando a paisagem, procurando novas maneiras
de explorá-la.
Se o discurso ficcional permite-se ser reinventado, e se a
ficção pode questionar o discurso histórico, também esta pode ser
reinventada pela ficção? Acresce-se a essa pergunta, as reflexões de
Hayden White, a respeito da construção da narrativa histórica:
toda narrativa não é simplesmente um registro do que
aconteceu na transição de um estado de coisas para outro,
mas uma redescrição progressiva de conjuntos de eventos de
maneira a desmantelar uma estrutura codificada num modo
verbal no começo, a fim de justificar uma recodificação dele
num outro modo final. Nisto consiste o “ponto médio” de
todas as narrativas (WHITE, 2001, p.115).
A possibilidade de recodificar é o que enriquece a escrita
contemporânea. Por sua vez, a multiplicidade da cultura de massa
amplia os canais de propagação da história, de modo que fatos e
boatos pouco se diferenciam, o que, numa visão otimista dos que
ainda acreditam na literatura, também amplia as possibilidades do
narrar, uma vez que oferece aos autores um playground de imagens
e motivos literários.
É nesse contexto que nos propomos a analisar o romance
Exortação aos crocodilos (2001), de António Lobo Antunes. A época
histórica a que nos remete essa obra refere-se aos acontecimentos da
segunda fase da Revolução dos Cravos em Portugal. O autor português
usa as personagens masculinas para mesclar figuras históricas e
fictícias, não nomeando nenhuma delas, mas caracterizando-as a
todas com muitos detalhes, como a oferecer pistas para a investigação
dos fatos, ao mesmo tempo que amplia as fronteiras entre aquilo em
que devemos acreditar e aquilo em que não devemos.
Vejamos, primeiramente, um pouco dos fatos históricos
registrados nos meios de comunicação da época. De acordo com
Adelino José Gomes e José Pedro Castanheira, jornalistas que fizeram
um levantamento as principais notícias sobre o Verão Quente de 75
(2006), as ondas revoltas que trariam ao mar sociopolítico de Portugal
a instabilidade vivida nesse período foram provocadas pela tentativa
de golpe de Estado liderada pelo então general António de Spínola,
a 11 de março de 1975. O discurso histórico-jornalístico da época é
um misto de informações e especulações: “O vespertino A Capital
anuncia mesmo um golpe ‘ainda antes do fim de Março’; segue-se
a revista francesa Témoignage Chrétien. Ambos apontam o dedo à
Central Intelligence Agency (CIA)” (apud GOMES; CASTANHEIRA, p.
18).
Com o fracasso do golpe, Spínola foge para Espanha. Tem início
uma série de assaltos a sedes de partidos de direita, erguem-se
barricadas, o MFA decide deter “militares e civis suspeitos” e criar
“um tribunal revolucionário” (apud GOMES; CASTANHEIRA, p.18). Os
textos históricos apontam, ainda, relações entre a direita conservadora
portuguesa e os franquistas espanhóis, bem como a ligações entre a
CIA e a polícia secreta soviética (KGB) com facções conservadoras do
cenário político português.
Devido aos embates ocorridos entre o conservadorismo de
extrema-direita português e as esquerdas, essa fase seria chamada
de “Verão Quente de 75”, durou menos de um verão, todavia seus
raios continuariam a ser percebidos alguns anos à frente.
Em 1980, um acontecimento reacende as especulações sobre
atentados e sabotagens. O Cessna em que viajavam o PrimeiroMinistro de Portugal, Francisco Sá Carneiro, e o Ministro da Defesa,
Adelino Amaro da Costa, além de outros passageiros, cai e explode
minutos após levantar voo no aeroporto de Lisboa. O caso ficou
conhecido pela História como o Crime de Camarate, bairro sobre o
qual o avião caiu, e até hoje é assunto polêmico e controvertido nos
registros jurídicos, jornalísticos e na própria sociedade portuguesa.
No romance em questão, esse contexto histórico entremeia-se
às reminiscências de vida de quatro mulheres, Mimi, Fátima, Celina e
Simone, que são cúmplices, ainda que contra sua vontade, das ações
de uma rede de bombistas, como eram chamados os grupos que
teriam protagonizado os atentados terroristas. De modo polifônico,
as vozes da história, das teses conspiratórias, das conclusões da
justiça, dos textos jornalísticos e dos discursos políticos misturamse à versão ficcional que acaba por tornar-se mais completa do que
todas as apresentadas pelo discurso oficial.
Sob os divergentes pontos de vista das quatro mulheres, a
história vai-se formando no plano da enunciação, que, aos moldes da
narrativa de Lobo Antunes, mostra-se fragmentado e entrecortado,
mas não superficial. Assim, os elementos da história oficiosa do
romance vão pouco a pouco se revelando para o leitor, que deve
montar as peças que lhe são oferecidas.
Em sua estrutura, o livro é dividido por subgrupos de quatro
capítulos cada, em que se alternam as vozes de Mimi, Fátima, Celina
e Simone, nessa ordem. No primeiro capítulo do primeiro subgrupo,
em que predomina a voz narrativa de Mimi, esposa do mandante
dos bombistas, anuncia-se o acidente com o avião do ministro, em
Camarate, e parte da estratégia empregada:
no dia do avião do ministro, os dois homens que conhecia
a hesitarem, [...] os dois homens vestidos de empregados
do aeroporto, com fardas demasiado grandes para lhes
pertencerem, a fitarem-me [...] os dois cretinos como se eu
tivesse o tempo todo do mundo para saber da bomba [...]
//[...] o avião do ministro num telhado em Camarate, os
empregados do aeroporto a aguardarem o furgão nos fundos,
o que chamavam cadáveres e não passavam de manchas
escuras, pedras, tijolos, fragmentos que se unem até compor
um homem, o Tejo acalmando-se para a lua juntar na água os
pedaços dispersos [...] o que sobrava do avião a balançar no
telhado e os empregados do aeroporto trotando para o furgão
tapados com bonés. (ANTUNES, 2001, p. 9-11).
Mais adiante, no capítulo quatro com alguns assomos e mais
diretamente no capítulo oito, o possível acidente finalmente revelase atentado. Sob a perspectiva amargurada e sarcástica de Simone (a
namorada do fabricante das bombas, também chofer de Mimi e de
seu marido), agora dona da palavra, mandantes e detalhes do crime
ganham imagem e voz:
Posso viver com o chofer, mas não sou criada deles,
não tenho de pôr touca, uniforme, luvas e servir à mesa
[...] quando recebem o general e o secretário para
almoçar [...] eu entontecida pelo ramalhar das árvores,
o som da torneira na piscina vazia e o monóculo do
general [...], a entonar vinho tinto sobre o vinho branco,
a pingar molho, o general recuou a cadeira com uma
mancha nas calças
― Oh
[...]
toda a gente debruçada para a mancha num horror
de sacrilégio, o comandante, o senhor bispo, os antigos
polícias, a viúva do sócio [...]
um dos antigos polícias, não o maior, o mais pequeno,
o que ajudou o meu namorado a, endireitou-me a
bandeja
― Você não é boa da cabeça ou quê?
o que ajudou o meu namorado com o avião do
ministro, vi-os construir uma caixinha com cilindros e
tubos, procurarem as fardas de mecânicos do aeroporto,
colocarem os bonés, esperarem o furgão com o polícia
maior ao volante no portão dos fundos [...]. (ANTUNES,
2001, p.79-81)
Por meio da intratextualidade e, com base nela, pelo diálogo
com o texto histórico, podem-se identificar algumas das figuras
históricas citadas nesse trecho, como na referência a um general cuja
descrição em muito se aproxima da do General António Spínola, ou
na referência mais geral aos integrantes da PIDE.
Passaremos a demonstrar essas relações, para tanto dialogaremos
com outro romance de Lobo Antunes, Fado Alexandrino (2002). Neste
romance, encontramos uma cena em que a personagem soldado
acompanha toda a movimentação dos militares diante do Largo do
Carmo, à espera da rendição de Marcelo Caetano. A certa altura, o
soldado descreve:
O general do monóculo apeou-se, as condecorações e as
estrelas brilhavam ao sol, desapareceu no prédio do Carmo
acompanhado por dois ou três civis muito dignos, muito
compenetrados, de gravata, uns segundos de expectativa,
uns minutos elásticos que se eternizavam, mais sujeitos que
trepavam para as árvores, os telhados dos edifícios em volta
repletos de pessoas [...].
[...]
O general de monóculo saiu por fim do quartel da Guarda,
sem se emocionar com o entusiasmo, sem corresponder
aos aplausos, instalou-se, com os senhores solenes, no
carro que de imediato principiou a rodar para fora do largo,
[...] a multidão batia com os nós dos dedos nas portas,
cumprimentava-o, gritava [...] (ANTUNES, 2002, p.195-196,
grifos nossos).
A cena descrita acima transforma em palavras as famosas
imagens do momento em que o general António de Spínola chega
para receber a rendição do governo do Estado Novo. Imagens que
também foram escritas por vários autores que trataram do tema da
Revolução, como o que se pode verificar a seguir:
Com efeito, o General António de Spínola chegou ao Largo
do Carmo cerca das 18 horas, depois de o Capitão Maia [...]
ter anunciado o desfecho por que todos ansiavam. Populares
encheram completamente o largo, alguns subindo para
as árvores e muitos tomando lugar nas próprias viaturas
militares. A tensão e o nervosismo aumentaram à medida que
engrossava a massa humana. (PRAÇA et al, 1974, p.29, grifos
nossos).
De modo irônico, o enredo de EAC sugere a inserção desse
general, tão relacionado à luta revolucionária, no grupo reacionário
bombista, cujo objetivo era combater os “comunistas”, os “inimigos
do povo”, ou seja, o mesmo objetivo tantas vezes expresso pelo
discurso estadonovista.
A ideia, tantas vezes propagada pelos ideais salazaristas, de
que os comunistas pertenciam à esfera do mal é transmitida pelo
texto diegético num misto de ironia e sarcasmo, que destitui tanto
a imagem que o Estado Novo alardeava, como a que mitificava os
comunistas como heróis do povo:
era sempre assim que eu imaginava os comunistas, não
criaturas como nós, falando como nós, não homens, não
pessoas, não os demônios ou os enviados do demônio que o
meu padrinho anunciava, apenas máscaras de entrudo, óculos
de papelão, narizes de cartolina, barbas postiças, balandraus
rasgados valsando num porão, obedecendo ao secretário que
os animava com a pistola
― Alegria alegria
o general no pavor desses palhaços tristes que se
limitavam a esperar que os fuzilássemos entre a garagem e o
muro e os transportássemos a Cabo Ruivo a jogá-los ao Tejo
[...]. (ANTUNES, 2001, p.286).
Inseridas na diegese pela voz de Fátima, afilhada do bispo e
a narradora do trecho anterior, os opressores discursos religioso e
político são contrapostos à descrição caricata, próxima do grotesco e
do bufão que se faz dos comunistas. Desse modo, o perigo vermelho
é relevado à insignificância e com ele a justificativa para “guerra
santa” proclamada pelo bispo e todas as movimentações de guerrilha
por parte dos terroristas, e, na boleia do discurso romanesco, os
acontecimentos registrados pelo discurso histórico seguiriam o
mesmo rumo.
Nesses trechos, o leitor depara-se com a veia grotesca que traduz
“a relação perturbada com o mundo”, impelindo ao riso exasperado
que confere:
distanciação, denegação ou erosão, o riso que provém [...]
de uma quebra do expectável, e que pode traduzir-se no
humour que tanto interessou os românticos, riso parente da
ironia, nervoso e “spleenático”, que detecta as degradações,
os paradoxos, as máscaras, os enganos e desenganos [...].
(MEINDEL, 2005, p.25).
Suprimidas as máscaras da face da história, o discurso romanesco
volta-se (retorna?) ao leitor, que se denuncia pelo riso nervoso que
não consegue conter, descobrindo-se, o leitor, cúmplice dos paradoxos
apresentados pelo romance.
No último capítulo, Simone numa carta à amiga Gisélia desmente
as versões jornalísticas sobre os atentados, especialmente aquelas
que citam seu namorado como “presumível autor material” das
bombas. A teia narrativa nesse capítulo é tecida pelo tom ao mesmo
tempo confessional e inocente de Simone:
o meu namorado [...] a fabricar não sei quê ligando fios
amarelos e azuis aos ponteiros do despertador e unindo-os
aos tubos em que não posso tocar, carregava-os da pasta
para a mesa em precauções demoradas, ao esconder a pasta
embrulhava-a em toalhas [...] (ANTUNES, 2001, p. 349).
Ou por vozes testemunhais:
[...] um homem de terno de ganga que se intitulava jardineiro
e afirmava trabalhar para ela [...] garantia que passava as
tardes numa cadeira do terraço vigiada por antigos polícias
(ANTUNES, 2001, p.349).
Os excertos de manchetes da imprensa falada e escrita são
negados pela namorada do chofer, suscitando a descrença em relação
ao discurso jornalístico, mas, por isso mesmo, revelando-o e trazendo
novamente à baila os acontecimentos a fim de proporcionarem sua
releitura, não no sentido de ler para entender, mas ler para descobrir,
desvelar: “o desgraçado que a rádio e os jornais transformaram de
súbito, por necessidade de leitores e patrocínios, em presumível
autor material” (ANTUNES, 2001, p. 346).
Assim, o leitor percebe que a vivenda onde se faziam as reuniões
e as bombas explode com todos os integrantes da rede de bombistas
dentro da casa: “[...] não sei se te recordas da vivenda entre Sintra e
Lisboa que explodiu há uns tempos, páginas e páginas nos jornais [...]”
(ANTUNES, 2001, p.343). Revela-se a identificação dos bombistas:
meia dúzia de cadáveres lá dentro de acordo com um
semanário de escândalos
(calcula até onde vai a má língua)
pertenciam a um grupo saudoso da ditadura que perseguia
democratas e pessoas de bem
(democratas!)
com metralhadoras, petróleo, explosivos caseiros, fotografias
dos bandidos nas primeiras páginas, um oficial do exército, um
oficial da marinha, um dono de hotéis, parece que mulheres,
um diário socialista insinuava que um bispo [...]. (ANTUNES,
2001, p.343).
Ajudam a compor o cenário deste último capítulo, no qual o tom
polifônico atinge altos decibéis, as teses conspirativas desenvolvidas
à época do acidente de Camarate, e ainda hoje presentes, como já
dissemos, nas discussões políticas de Portugal. Uma delas seria a de
que o alvo do atentado seria o Ministro da Defesa, que investigava
suspeitas de contrabando de armas envolvendo o Fundo de Defesa
Militar do Ultramar, a CIA e a guerra Irã-Iraque (FERNANDES, 2001).
Todo esse contexto é percebido no romance em pequenos
trechos, sutil e estrategicamente colocados pelo autor, aparentemente
desconexos à trama, porém funcionando como elementos instigantes
no jogo de montagem proposto pela narrativa desde seu início: “[...]
o general a indignar-se com o secretário apontando os estrangeiros
reunidos em conferência com o embaixador da América, sem lhe
pedirem opinião [...]” (ANTUNES, 2001, p. 124); “[...] ou comprar
armas a pides ou americanos ou persas [...]” (ANTUNES, 2001, p.350).
O questionamento também se direciona para o discurso
diegético, que se autoquestiona pela ironia do último capítulo, onde
se revela a imagem de um quebra-cabeça aos poucos construído
pela narrativa que dá a sua versão dos fatos. Assim, EAC apresentase como um dossiê intimista sobre uma das épocas mais violentas
em Portugal e transforma-se em caixa-preta de certo momento do
discurso histórico.
Este, por sua vez, estabelece-se nos confrontos: entre os discursos
da violência e o do sonho (o primeiro representado pelas vozes dos
homens integrantes da rede bombista, o segundo pelas vozes das
mulheres ligadas a esses homens); entre os ruídos do mundo externo
e os do mundo interno (sons que se alternam no íntimo das quatro
mulheres, particularmente no deslocamento temporal, para usar um
termo de Maria Alzira Seixo (2002), que realizam frequentemente);
por fim, entre a versão oficial e a literária para o embate político entre
a extrema-direita e a extrema-esquerda que conturbaram Portugal a
partir do verão de 1975.
Dessa forma, encontramos um processo de construção da
narrativa que transporta o leitor para o universo das notícias
que circulavam no período histórico que Lobo Antunes usa como
pano de fundo para apresentar os conflitos de suas personagens.
Possivelmente, a essa altura, para o leitor, não há mais possibilidade
para uma escolha entre crença e descrença, visto que os fatos,
ficcionais ou históricos, não mais se estabelecem por uma relação
dicotômica. Em nosso auxílio, encontramos as palavras de Mignolo
(1993, p.125): “A convenção de ficcionalidade não é, ao que parece,
uma condição necessária da literatura, ao passo que a adequação à
convenção de veracidade, ao que parece, é condição necessária para
o discurso historiográfico”.
Ao circular por esse universo, munido das ferramentas oferecidas
pela ficção, o leitor pode atravessar os limites das convenções, como
nos alerta Mignolo, e, livremente, estabelecer semelhanças entre
realidade e ficção para, também livremente, construir suas próprias
versões e, quem sabe, aceitar os boatos da literatura como um
caminho para identificar os boatos da história que sorrateiramente se
apresentam como fatos.
Referências bibliográficas
ANTUNES, A. L. Exortação aos crocodilos. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001.
______. Fado Alexandrino. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
ECO, U. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
FERNANDES, R. S. O Crime de Camarate. Lisboa: Bertrand,
2001.
GOMES, A.; CASTANHEIRA, J. P. Os dias loucos do PREC:
do 11 de Março ao 25 de Novembro de 1975. Lisboa:
Expresso/Público, 2006.
MEINDEL, D. et al. O grotesco. Coimbra: Centro de
Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras, 2005.
MIGNOLO, W. Lógica das diferenças e política das
semelhanças: da literatura que parece história ou
antropologia e vice-versa. In: CHIAPPINI, L.; AGUIAR, F.
(Org). Literatura e história na América Latina. São Paulo:
Edusp, 1993. p. 115-134.
PRAÇA, A. et al. 25 de Abril: documento. 2.ed. Lisboa:
Casa Viva, 1974.
SEIXO, M. A. Os romances de António Lobo Antunes:
Análise, interpretação, resumos e guiões de leitura.
Lisboa: Dom Quixote, 2002.
WHITE, H. O texto histórico como artefato literário.
In:___. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da
cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. 2.ed.
São Paulo: Edusp, 2001. p. 97-116.
UMA CIDADE EM FRAGMENTOS:
UMA TESSELA NARRATIVA
Antonio Rodrigues BELON (UFMS - Três Lagoas - MS)
[email protected]
RESUMO: O artigo estuda eles eram muitos cavalos
(2001), de Luiz Ruffato, representação da cidade de São
Paulo, a urbe, ao orbe, ao mundo dos humanos em geral,
onde as personagens vivem e perambulam. A estrutura
fragmentária, caleidoscópica tem uma relação profunda
com um dos objetivos de toda a narração. O cenário,
construído (tessela) pelos fragmentos e pelas muitas
vozes, remete à condição de ruína da realidade urbana
contemporânea e a polifonia possibilita a visão da urbe em
suas relações: não há uma voz que se imponha às outras,
cada uma tem sua visão, tão real quanto às demais.
PALAVRAS-CHAVE: eles eram muitos cavalos; Luiz Ruffato;
tesselas
Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato, representação
da paulicéia com toda a sua problemática, por meio da estrutura
composta de “rigorosas e cruéis instantâneas do dia-a-dia de São
Paulo, elaboradas a partir de materiais heterogêneos, como diálogos,
monólogos, anúncios publicitários, cartas, bilhetes, orações, flashes
da realidade colhida nas várias dimensões: sonora, visual, tátil,
olfativa, enfim sinestésica”. (OLIVEIRA, 2007, p.147).
A estrutura fragmentária, caleidoscópica tem uma relação
profunda com um dos objetivos de toda a narração: a história de vida
da personagem, a cidade de São Paulo, contemplada do mais alto de
seus edifícios, ou do avião que se aproxima, à noite, dos aeroportos
de Congonhas ou Cumbica, enquanto, em terra, uma visão descerra
uma abrangente paisagem: a interpretação tendo como suporte os
fragmentos. O cenário, construído pelos fragmentos e pelas muitas
vozes, remete à condição de ruína da realidade urbana contemporânea
e a polifonia possibilita a visão da urbe em suas relações: não há
uma voz que se imponha às outras, cada uma tem sua visão, tão real
quanto às demais (BAKHTIN, 2002).
A narrativa organiza, temporal e espacialmente, o orbe, um
mundo da ficção; evidencia uma realidade, num percurso do caos
da cidade à cosmogonia (tessela), narrativa por fragmentos, por
estilhaços, de uma urbe em ruínas, maltratada e ofendida. A união
dos fragmentos não mostra somente a urbe partida e fragmentária
das personagens, proporciona uma visão da sociedade em tesselas,
em conjuntos fragmentários.
O discurso fragmentado de Luiz Ruffato exibe os problemas
sociais da contemporaneidade e aborda questões da classe operária
nos centros urbanos, associando modernas técnicas cinematográficas
para representar as máscaras do cotidiano. Em eles eram muitos
cavalos são abordados os problemas especificamente de São Paulo
e o processo de migração, formador da classe operária. A temática
dos fragmentos da obra está comprometida com a realidade social
do Brasil contemporâneo e abarca uma consistente crítica ao sistema
social da capital paulista (e do capital paulista), a denúncia presente
em todo o projeto literário desse autor. Embora essa crítica não esteja
explícita na narração, integra uma reflexão sobre os temas, falando da
angústia das pessoas, na atualidade, e seu sentimento de impotência
diante dessa realidade violenta que as oprime; aborda, também, os
horrores, a violência, os amores e carências da grande metrópole
brasileira.
A narrativa linear, 69 fragmentos, tendo como eixo unificador um
dia – 9 de maio de 2000 - na maior cidade brasileira: os flashes de
seus habitantes e do dia-a-dia da cidade.
O texto é um quebra-cabeça formado por estilhaços da vida
urbana. Estes estilhaços nos oferecem uma visão parcial
de tragédias (ou quase tragédias) individuais, sociais e
econômicas que se multiplicam na megalópole brasileira. Por
isso, a São Paulo de Ruffato compõe-se de vários recortes que
captam, fugazmente, a multiplicidade socioétnica da maior
cidade brasileira. (LEHNEN, 2007, p. 80).
Os textos ruffatianos articulam, dialeticamente, os elementos
de ordem social com os elementos de ordem estética; um trabalho
artístico na ruptura das convenções tradicionais de linguagem e de
composição: transgredindo a gramática, subvertendo a sintaxe,
criando palavras e inaugurando uma poética, a exemplo de grandes
criadores.
Da leitura dos fragmentos emerge a dura realidade dos explorados
e oprimidos no caos urbano.
Como os sistemas urbano, social, político, e econômico
falharam em fornecer espaços e recursos básicos para estes
necessitados, talvez um dos primeiros passos no caminho para
entender este problema massivo é por meio da expressão da
arte e da cultura. (VIEIRA, 2007, p.128).
A modernização de São Paulo passou pelas agruras da
urbanização com todas as conseqüências para a sociabilidade dos
efeitos sofridos e gerados pelo capitalismo. Remete à condição de
ruína da realidade urbana contemporânea, representa na ficção essa
realidade desordenada com poucas possibilidades de solução dos
problemas enfrentados pelos paulistanos.
Na esquina com a Rua Estados Unidos, o tráfego da Avenida
Rebouças estancou de vez. Henrique afrouxou a gravata,
aumentou o volume do toca-cedê, Bettty Carter ocupou todas
as frinchas do Honda Civic estalando de novo, janelas cerradas,
cidadela irresgatável, lá fora o mundo, calor, poluição, tensão,
corre-corre. Meninos esfarrapados, imundos, escorrem água
nos pára-brisas dos carros, limpam-nos com um pequeno
rodo, estendem as mãozinhas esmoleres, giletes escondidas
entre os dedos, arranjos de estiletes em buquê de flores,
cacos de vidro em mangas de camisa. (RUFFATO, 2005, p.81).
Problematiza a questão do urbano não apenas focalizando
nas cidades, não apenas a metrópole com seus engarrafamentos,
seus parques, ou o dinheiro correndo por entre os conglomerados
econômicos; estabelece uma cumplicidade no acompanhamento de
um dia marcado pela violência, pelo oportunismo, pela corrupção, pelo
sonho, pelo medo, pela coragem, contraditoriamente, representa “a
crise do espaço metropolitano, e por meio dessa articulação criticam
o colapso da polis como um território de participação e comunicação,
e sua substituição pelos não-espaços da globalização” (LEHNEN,
2007, p. 78).
No trecho um exemplo da representação do espaço urbano
fraturado e da violência social resultante:
9. Ratos
Um rato, de pé sobre as patinhas, rilha uma casquinha
de pão, observando os companheiros que se espalham
nervosos por sobre a imundície, como personagens de um
videogame. Outro, mais ousado, experimenta mastigar um
pedaço de pano emplastrado de cocô mole, ainda fresco, e,
desazado, arranha algo macio e quente, que imediatamente
se mexe, assustando-o. No após, refeito, aferra os dentinhos
na carne tenra, guincha. Excitado, o bando achega-se, em
convulsões.
O corpinho débil, mumificado em trapos fétidos, denuncia
o incômodo, o músculo da perna se contrai, o pulmão armase para o berreiro, expele um choramingo, entretanto, um
balbucio de lábios magoados, um breve espasmo. A claridade
envergonhada da manhã penetra desajeitada pelo teto de
folhas
de zinco esburacadas, pelos rombos nas paredes
de placas de outdoors. Mas, é noturno ainda o barraco.
(RUFFATO, 2005, p. 20-21)
No mesmo espaço da cidade imagens se iluminam e avizinham
homens e ratos; uma representação da pobreza numa tensa
semelhança, indigna e real, mas ainda assim poética.
O fazer ficcional de Luiz Ruffato põe questões. Sua marca
principal é a mistura de linguagem e o trânsito incontido entre factual
e ficcional, uma marca das produções literárias contemporâneas. “É
essa opção de não se colar à realidade extratextual que corrói o aspecto
tautológico da linguagem e revela o seu caráter ficcional atado aos
registros múltiplos e artificiosos do discurso”. (GOMES, 2005, p.183).
A linguagem põe abaixo os limites entre a ficção e a realidade. “É o
artifício da linguagem, portanto, que possibilita revelar a crueldade da
inelutável realidade urbana de um Brasil contemporâneo, sublinhado
a própria crise da representação”. (GOMES, 2005, p.183). A linguagem
assume características especiais e estabelece uma nova ordem para
as coisas representadas, permitindo a criação de novos universos,
mas conservando um elo com o real.
A cidade na sua diversidade humana e social: traficante de armas
a bordo de uma Mercedes; empresário com filhos problemáticos
(drogados); casais desfeitos; crianças roídas por ratos em barracos
imundos; gente assassinada em seqüestros relâmpagos; vendedores
ambulantes; velhos sem mercado de trabalho; famílias vivendo
aglomeradas em caixas-apartamentos; pastores pregando em praça
pública; pedintes; vendedores de balas; assaltantes; motoristas de
táxi contando suas vidas aos passageiros; recordações da vida boa
do interior deixada pra trás em nome do dinheiro e da sobrevivência.
Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, registra um só dia
na vida em São Paulo. Essa vida, no singular, feita de muitas vidas e
sobrevivências. A linguagem fragmentada reflete a correria da maior
metrópole da América do Sul. O ritmo rápido da vida urbana leva à
falta de comunicação, ao rompimento, ou ao não-estabelecimento
de relações pessoais e sociais significativas “mas nós não nos
conhecíamos. Nos vimos algumas vezes no elevador de serviço, a
caminho da garagem do prédio, uma ou outra vez na piscina [...]”
(RUFFATO, 2005, p.46). Os contatos ocorrem de forma passageira,
superficial, pois a cidade, com sua ênfase no movimento, na eficácia,
e também por causa da sua propagação de espaços anônimos e,
finalmente, de territórios e sujeitos ameaçadores, limita a intensidade
dos contatos sociais e pessoais.
A desestruturação social predomina no espaço público da cidade
e articula em causa e em efeito a violência desenfreada. A trama
de discursos e práticas que cruzam o espaço urbano produzem um
território geográfico, social e epistemologicamente esfacelado.
Ao autor interessam, justamente, essas tesselas, e delas
ele retira a linfa com a qual compõe toda a sua obra. Para
isto, contribui sem dúvida a própria experiência pessoal, de
menino crescido em uma pequena cidade do interior, em
contato com mazelas de pequenas vidas, que são grandes só
para quem as vive. A estas vidas ele retorna nos romances
sucessivos, construindo um pungente quadro da realidade
social brasileira. (OLIVEIRA, 2007 p.147).
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiéwski.
Tradução direta do russo, notas e prefácio Paulo Bezerra.
3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
GOMES, R. C. Outras flores do mal: desmesura da violência
e ordem da representação do espaço urbano. In JOBIM,
José Luís et alii (org.). Sentidos dos lugares. Abralic, 2005.
p. 173-189.
LEHNEN, L. Os não-espaços da metrópole: espaço urbano
e violência social em Eles eram muitos cavalos, de Luiz
Ruffato. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade
em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos
cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo - SP: Horizonte, 2007. p.
77-91.
OLIVEIRA, V. L. Eles eram tantos corações, corpos,
consciências. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma
cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram
muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo - SP: Horizonte,
2007. p. 146-154.
RUFFATO, L. Eles eram muitos cavalos. 3.ed. rev. Rio de
Janeiro: Record, 2005.
VIEIRA, N. H. O desafio do urbanismo diferencial no
romance de Luiz Ruffato: espaço, práxis e vivencia
social. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade
em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos
cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo - SP: Horizonte, 2007. p.
119-131.
MIGUEL DE UNAMUNO:
A RECUSA AOS RÓTULOS EM BUSCA DO NOVO
Cristiane Agnes Stolet CORREIA (UFRJ)
[email protected]
RESUMO: No presente trabalho, busca-se repensar
as noções de romance e trágico a partir da obra do
pensador espanhol Miguel de Unamuno, valendo-se,
principalmente, de duas obras do autor: Del sentimiento
trágico de la vida en los hombres y en los pueblos (“Do
sentimento trágico da vida nos homens e nos povos”) e
Cómo se hace una novela (“Como se faz um romance”).
PALAVRAS-CHAVE: Unamuno; trágico; romance.
Entendendo o contemporâneo não como o datado nos dias
atuais, mas como o próprio Unamuno o compreendia, como aquilo
que tem atualidade permanente, as contribuições deste pensador
espanhol são de grande valia no horizonte de nosso tempo.
O foco do presente trabalho recai no capítulo intitulado
Comentario da edição espanhola do livro Cómo se hace una novela
do autor. Vale apresentar em linhas gerais o contexto de dita edição.
Estando a Espanha afogada pela ditadura de Miguel Primo de
Rivera (que teve início em 1923), Unamuno foi viver no exílio, primeiro
nas Ilhas Canárias, depois na França. Escreve Cómo se hace una novela
quando se encontra em Paris. Entrega o texto original a seu amigo
Jean Cassou, que se encarrega de traduzi-lo ao francês e publicá-lo.
Além disso, Cassou antecede ao texto unamuniano um tópico ao qual
chama Retrato de Unamuno, onde apresenta sua concepção sobre
o autor. A publicação francesa sai em 1926. Cassou entrega o texto
original a Heinrich Auerbach, já que este tinha a intenção de traduzilo ao alemão.
Em 1927, Unamuno, sem posse do escrito originalmente,
retraduz seu texto ao espanhol, utilizando-se da versão francesa,
mas ampliando-o significativamente. O procedimento aumentativo
do autor ao re-redigir o texto para a edição espanhola é o seguinte:
acrescenta um prólogo, mantém o texto de Cassou intitulado Retrato
de Unamuno, mas responde-o com um capítulo chamado Comentario.
Nesta “seção”, Unamuno desconstrói uma série de nomenclaturas
que Cassou utiliza, de certa maneira, para classificá-lo. Busca-se no
presente trabalho, portanto, analisar a complexa resposta do autor,
repensando alguns conceitos, como romance e trágico, valendo-se
também de outros escritos seus que dialogam diretamente com as
questões que se apresentam.
Vale ressaltar que, ainda que Miguel de Unamuno tenha atuado
em várias esferas (tendo sido professor, filólogo, poeta, filósofo,
ensaísta, romancista, etc), toda a sua obra converge para uma
grande unidade. Assim sendo, falar do tópico Comentario no texto
Cómo se hace una novela é também falar de sua filosofia (difundida
principalmente pelo livro Del sentimiento trágico de la vida en los
hombres y en los pueblos) e de sua ampla literatura. O mesmo se dá
com o movimento contrário.
Unamuno sempre insistiu em recusar as classificações e os
rótulos que os críticos da época já queriam lhe impor. Em Comentario,
esta postura se mostra nitidamente. No Retrato de Unamuno, escrito
por Cassou, este diz, entre outras coisas, que Miguel de Unamuno é
paradoxal, niilista e apenas comentarista.
Fazendo uso desta última noção, Unamuno intitula sua resposta
de Comentario. Mas questiona se tudo o que tem sido escrito até então
não constitui comentário, se a história mesma não se tece a partir de
comentários. Afinal, o homem se sente impelido a comentar, seja por
não conhecer e buscar o conhecimento, seja por querer adentrar o
que vê e adentrar-se1. Como o texto espanhol está sendo retraduzido
do francês, o autor declara ainda que acrescentará comentários à
edição anterior, os quais aparecerão entre colchetes.
Repetidas vezes lê-se que a maneira de se fazer um romance é
fazendo-o, assim como de viver a vida é vivendo-a. Não se admitiria,
portanto, em ambos os casos, um plano prévio com todos os passos
a serem seguidos. O surpreender-se e o descobrir-se fazem parte do
caminhar vital. Refuta-se, desta maneira, a compreensão da literatura
enquanto sistema que, como tal, mostra-se fechado em gêneros,
inapto a invenções, a modificações substanciais. Eis as palavras do
autor: “o sistema ─ que é a consistência ─ destrói a essência do sonho
e com ele a essência de vida.” (UNAMUNO, 2009, p. 128)
Daí, portanto, a invenção da palavra nivola por parte do autor
espanhol, em lugar de novela. Se à noção de novela já se incorpora
uma série de características tidas como imprescindíveis, nada melhor
do que inventar um outro nome para aliar a este o que se queira,
fugindo, assim, do que já esteja petrificado e gasto pelo uso.
As criações unamunianas se multiplicam no decorrer de toda a
sua obra, ousaria dizer que todas embasadas na sua compreensão do
trágico querer humano, que consiste em lutar por perdurar, por não
1 Vale ressaltar que o uso de ¡Adentro! é constante na obra de Miguel de Unamuno.
Ele não incita o leitor a ir adiante (olhando sempre em frente e seguindo o fluxo),
mas convida-o e instiga-o a voltar-se para dentro.
sucumbir, por permanecer. Deste modo, o romance se mostra como
terreno fértil onde o homem busca resistir e perseverar em seu ser.
Unamuno ilustra a agonia trágica, humana:
É certo, o Augusto Pérez da minha Névoa me pedia que não
lhe deixasse morrer, mas ao mesmo tempo que lhe ouvia (...)
ouvia também aos futuros leitores do meu relato, do meu livro,
que enquanto o comiam, acaso devorando-o, me pediam que
não lhes deixasse morrer. (UNAMUNO, 2009, p. 120)
Ao livro dá-se o status de alimento, passando a ser compreendido,
assim, como um dos elementos essenciais para a manutenção da vida.
À voz do personagem se soma à voz dos leitores. Todos se encontram
na mesma condição.
O próprio de uma individualidade viva, sempre presente,
sempre mutável e sempre a mesma, que aspira a viver
sempre ─ e sua aspiração é sua essência ─, o próprio de uma
individualidade que o é, que é e existe, consiste em alimentarse das outras individualidades e dar-se a elas em alimento.
(UNAMUNO, 2009, p. 125)
Eis o que Unamuno entende, pois, como romance: o dar-se como
alimento. Tal percepção culmina na perspectiva de que todo romance
é autobiográfico.
Pode-se dizer que em Cómo se hace una novela, tal entendimento
aparece em uma lente de aumento, já que o protagonista da história
se chama U. Jugo de la Raza. Vejamos a explicação deste nome nas
palavras do próprio autor: “U. é a inicial do meu sobrenome; Jugo o
primeiro do meu avô materno (...) Larraza é o nome (...) da minha avó
paterna.” (UNAMUNO, 2009, p. 140)
Equivale-se, portanto, o autor ao personagem. Autor também se
converte nitidamente em leitor, visto que, com a reescritura da obra,
o Unamuno deste momento faz seus comentários entre colchetes,
sendo leitor não só do que está escrevendo (em espanhol), como
também do que escreveu, de certa maneira, na edição francesa. O
desdobramento do mesmo reflete a multiplicidade de papéis que
cada um pode assumir, além da heterogeneidade que cada um
comporta em seu próprio ser.
Tal diversidade também desponta no interior dos personagens
unamunianos, sendo talvez o mais recorrente e primordial na
obra do autor. Afinal, os romances de Unamuno não mostram
uma preocupação com características físicas, descrições externas,
contextualização histórica (com exceção de Paz en la guerra), mas se
pautam nos dramas íntimos, na luta que cada um trava dentro de
si que, o que, por ser o mais intimamente pessoal, constitui o mais
universal, o comum a todos os homens.
De acordo com Unamuno, a luta interna de cada ser humano se
perfaz principalmente entre o racional e o não racional, mas assume
desdobramentos como: a confusão entre realidade e ficção, criador e
criatura, consequentemente, autor e personagem, ser real-existente
e ser ficcional-não existente. Todos estes termos passam a ter seus
lugares tradicionais colocados em xeque.
Na parte final de seu comentário, por exemplo, Unamuno
agradece a Cassou, dizendo que ele, o retratado, fez o autor do
retrato. Claro: se não houver retratado, não há autor de retrato.
Dizendo de modo mais amplo: se não houver criatura/criado, não há
criador. Cabe transcrever a famosa pergunta do personagem Augusto
ao seu autor em Névoa: “Quando um homem adormecido e inerte na
cama sonha algo, o que mais existe: ele como consciência que sonha
ou seu sonho?” (UNAMUNO, 2007, p.256)
A localização da origem do personagem no autor é questionada,
assim como a origem do romance na vida. Desconstrói-se a noção de
verossimilhança. Para Unamuno, obra é vida e vida é obra. Portanto,
a relação entre sonhador e sonhado, entre vida e ficção borra-se em
névoa. As fronteiras parecem desvanecer-se e o limite passa a ser o
não limite do sonho.
Em Cómo se hace una novela, não há uma estruturação linear da
narrativa. Como o fluxo do pensamento, as mudanças de focos e de
perspectivas são constantes. O personagem é multifacetado, assim
como a obra, assim como a vida. Declara-se ainda que o romance
carece de argumento, também como a vida. Na verdade, o enredo
mesmo é mínimo, o que se sobressai são as questões que dele advêm.
A história se baseia em um personagem que compra um livro
e começa a lê-lo. Depara-se com a informação de que ele, o leitor,
morrerá ao terminar de ler o livro. Com o fim do romance, sua vida
também terminará.
Todo o texto se tece com o dilema vivido pelo personagem que
vacila entre ler/viver a história e com ela morrer ou deixá-la de lado,
não vivê-la.
O intento autobiográfico repensa o que constitui o romance.
Autor, ator e leitor passam a ser o mesmo em constante diálogo
trágico, em interminável contradição.
Os vários “eus” perfazem o drama íntimo vivido pelo indivíduo
no romance de sua vida. Lendo, atuando e criando vive-se o romance
vital onde não há certezas, onde a dúvida não tem fim. Eis a primordial
noção unamuniana do romance: é vida que, como tal, tem trágica
natureza. Cabe, portanto, apreender o que vem a ser esta natureza
na visão de Miguel de Unamuno.
Vejamos dois trechos do autor:
E o mais trágico problema da filosofia é o de conciliar as
necessidades intelectuais com as necessidades afetivas e
volitivas. Pois aí fracassa toda filosofia que pretende desfazer
a eterna e trágica contradição, base da nossa existência.
(UNAMUNO, 1996, p. 15)
Mas será que podemos conter esse instinto que leva o homem
a querer conhecer e, sobretudo, a querer conhecer o que leva
a viver, e a viver sempre? A viver sempre, não a conhecer
sempre (...) Porque viver é uma coisa e conhecer outra; e, (...)
talvez haja entre ambas tal oposição, que possamos dizer que
tudo o que é vital é anti-racional, e não só irracional, e tudo o
que é racional, antivital. Esta é a base do sentimento trágico
da vida. (UNAMUNO, 1996, p. 33)
A partir das citações, percebe-se que o trágico reside na insolúvel
contradição existencial. O homem tem dentro de si o clamor da vida
que se quer tão somente ser vivida, e ao mesmo tempo o anseio
racional que tudo quer entender e explicar.
Diz Unamuno que a tentativa de “conciliar as necessidades
intelectuais com as necessidades afetivas e volitivas” faz fracassar a
filosofia. Afinal, não há conciliação, pois “tudo o que é vital é antiracional (...) e tudo o que é racional, antivital”. Eis a apreensão
unamuniana central do trágico: a interminável luta entre o racional e
o vital que se perfaz em cada homem.
É possível afirmar que a razão faz parte da vida, mas não o
contrário, que a vida faz parte da razão. A vida abarca o todo e, neste
todo, há um lugar que pode ser ocupado pela razão. Esta, assim
sendo, só ganha espaço porque há vida, e vida que também quer ser
pensada2 (ainda que nas suas individualidades). Daí a razão da razão.
A razão da vida parece não existir e, se existe, é inapreensível
pela nossa capacidade intelectual que busca fixar âncora em um porto
seguro. Tende-se a buscar uma causa para tudo que se vivencia, mas
o fato é que as causas sempre serão questionáveis, sempre vacilarão,
nunca se fixarão em uma estrutura inabalável, por mais que alguns
assim o queiram. Todavia, “é trágico e de sempre o problema, e quanto
mais quisermos fugir dele, mais vamos dar nele”. (UNAMUNO, 1996,
p.44)
Não há opção. Enquanto houver vida em nós, se quisermos que
esta valha assim ser chamada, não devemos “procurar justificação
alguma para esse estado de luta interior, de incerteza e de anseio: é
um fato e basta”. (UNAMUNO, 1996, p. 124)
Não confundamos este bastar, porém, com o fim do caminho,
com a acomodação, com a desistência de se pensar a questão. Não é
isso. Acabar com a tentativa de resolver o problema sim (já que este
se instaura como enigma mesmo), mas não deixar de pensá-lo, pois
é neste intento que o homem se perfaz, no sentir a ferida que não se
cura.
Aqueles que não encaram a questão essencialmente trágica
podem ser o que Unamuno chama de “estúpidos afetivos”. Ele diz:
Esses estúpidos afetivos dotados de talento costumam dizer
que não adianta querer penetrar o inescrutável, nem rebelarse. É como dizer a alguém cuja perna teve de ser amputada
que de nada adianta pensar nisso. E a todos nós falta alguma
coisa, só que uns sentem e outros não. (UNAMUNO, 1996, p.
2 Cabe aqui retomar o essencial de pensar, que reúne interno e externo, raciocinar
e cuidar, visto que “pensar” significa não só raciocinar e refletir, como também
colocar penso, curativo para tratar um ferimento. Esta ideia foi desenvolvida no
subcapítulo de minha dissertação de mestrado intitulado O pensar como saber
trágico, onde busco mostrar a equivalência entre ambas as noções.
16)
Semelhante sandice também é ilustrada em outro contexto no
procedimento de alguém que age com base no puramente racional:
“Um pedante que viu Sólon chorar a morte de um filho lhe disse:
Para que chora assim, se não adianta nada? E o sábio respondeu:
Precisamente por isso, porque não adianta nada.” (UNAMUNO, 1996,
p. 16)
Ambos os exemplos vivificam o que foi dito sobre o trágico até
então.
O sábio diz chorar exatamente por saber que está diante do
insolúvel. A razão aqui não dá conta de apaziguar a dor que sente
com a perda. O sentimento não pode ser reduzido a uma série de
sentenças lógicas. A tentativa de se tomar o racional como único
parâmetro culmina na total insensibilidade.
Imaginar alguém que perdeu um membro e nem por isso deixa
de pensar nele, ou melhor, talvez por isso mesmo é que o membro
perdido passe a ser mais pensado, também traduz perfeitamente
o que é este sentir trágico. É no sentimento de impossibilidade de
mudança que o homem chora sua sentença trágica.
O homem aspira “a viver sempre, não a conhecer sempre”
(UNAMUNO, 1996, p. 33), como nos lembra bem Unamuno. Por mais
que saiba que esta ânsia não se resolva, já que não se alcança o que
se busca, é assim que o caminho humano se apresenta.
Quando Unamuno diz que “o sentimento trágico da vida é um
sentimento de fome de Deus” (UNAMUNO, 1996, p. 162-163), ele
apreende esta vontade trágica do homem de se fazer imortal.
No pensador Miguel de Unamuno (como em tantos outros), o
insistente querer acabou lançando-o no horizonte da imortalidade,
pois, desejando ser sempre inteiro e abismático (de ab-ismo, distante
de todos os ismos, de todos os sistemas), revive em suas obras e em
seus leitores. Ele comentava com relação às primeiras:
O que me importa que não leias, leitor, o que
eu quis pôr nela, se é que lês o que te acende
em vida? Parece-me bobo que um autor se
distraia em explicar o que quis dizer, pois o
que nos importa não é o que quis dizer, mas
sim o que disse, ou melhor o que ouvimos.
(UNAMUNO, 2009, p. 121)
Que possamos ouvir muito profundo, adentrando-nos. Pois
“a vida, que é tudo, e que por ser tudo se reduz a nada, é sonho”
(UNAMUNO, 2009, p. 127). Resta-nos tão somente criar romances e
vivê-los. Sem respostas para muita coisa, que possamos ser embalados
por sonhos. Mas que dos sonhos despontem nossas ações. Ainda que
pareçam impossíveis. Afinal, como diz Unamuno, “quem não aspira
ao impossível não fará nada factível que valha a pena.” (UNAMUNO,
1996, p. 269)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
UNAMUNO, Miguel de. Cómo se hace una novela. Madrid:
Cátedra Letras Hispánicas, 2009.
______ Do sentimento trágico da vida. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
______ Niebla. Madrid: Alianza Editorial, 2007.
APROPRIAÇÃO DA CRÔNICA COMO
LITERATURA DE MASSA
Fernando Moreno da SILVA (UNESP/Araraquara)
[email protected]
RESUMO: A proposta inicial deste trabalho é investigar o
fenômeno da leitura sob o ponto de vista do leitor, buscando
os livros mais lidos. A definição do corpus deste trabalho
surgiu quando a revista semanal Veja trouxe em sua capa,
de 12/3/2003, o sucesso de vendagem dos livros de Luís
Fernando Veríssimo, destacando-o como o escritor mais
lido no país. Além de teorias que tratam do fenômeno do
riso, a pesquisa foi norteada pela semiótica francesa ou da
Escola de Paris, focando o eixo da enunciação para traçar
um perfil do enunciatário desses textos. O que se pode
estabelecer, por alto, é que à imagem desse destinatário
cabe um leitor descompromissado com a leitura, que
busca nessa atividade o lazer ou o passatempo.
PALAVRAS-CHAVE: crônica; best-seller; literatura de
massa.
1. O Best-seller
A ideia de best-seller tem seu germe no século XVIII. Até então, os
artistas viviam às expensas do mecenato. Cada obra gozava da “aura
mística”, conforme Walter Benjamim definiu a autenticidade da criação
artística. Talvez duas modalidades que ainda conseguem abster-se da
produção em massa sejam as artes plásticas, notadamente a pintura,
e o teatro, no qual cada representação é única.
Quanto ao impresso, há um aumento vertiginoso. Quando o
mecenato é substituído pelo incremento de leitores, a originalidade
fica ameaçada. Resta ao escritor uma escolha: buscar a emancipação
artística, mantendo a autenticidade de seus escritos, contudo sem
o retorno financeiro; ou se submeter às exigências dos leitores para
garantir a independência financeira. Desta dupla possibilidade,
artística ou mercadológica, nasce a oposição entre literaturas erudita
e trivial.
Com o primeiro gênero, a Literatura culta ou alta Literatura,
grafada em maiúscula, estão escritores como Machado de Assis,
Jorge Luís Borges e Guimarães Rosa. Ao segundo grupo, grafado em
minúsculo, pode-se dar nomes como literatura trivial, subliteratura,
literatura de entretenimento, de massa ou de mercado. E, quiçá, a
denominação mais comum: best-seller. Nota-se que todos os termos
estão ligados sempre ao mercado, ou seja, os livros que alcançam
prodigioso sucesso de público. Enquanto o texto culto é sempre
agraciado pelo reconhecimento de uma instituição, sobretudo a
Academia, a literatura de massa não tem o mesmo respaldo, sendo
produzida com vistas ao jogo econômico. Aqui está a primeira noção
da expressão “best-seller”, referindo-se a uma avaliação quantitativa
de vendagem.
Não foi tão-só a evolução técnica que proporcionou à
literatura de massa seu desenvolvimento. Seu primeiro impulso
foi experienciado sob a forma de folhetim (em francês, feuilleton).
Expressão originalmente criada na França, em 1836, no jornal La
Presse, o folhetim surge ligado à indústria cultural. Eram narrativas
inseridas no rodapé das páginas dos jornais, divididas em capítulos.
Em virtude da censura ordenada por Napoleão Bonaparte, os
jornais foram obrigados a ocupar os espaços em branco com textos
destinados ao entretenimento. Institui-se a novela do século XIX. A
maioria dos romances desse período foi dado à luz em capítulos nos
jornais. Parte dos escritores de renome deu os primeiros passos da
carreira nessas publicações. A utilização desse suporte — o jornal —
dava-se também pelas dificuldades técnicas para edição de livros. Foi
uma moda inovadora para o Brasil.
Com teor romântico, o material era lido pela classe alta, e, em
menor proporção, pela classe média, à procura de entretenimento.
Quanto maior e mais diversificado o público leitor, mais complicado
agradá-lo. O escritor, por fim, sucumbe às necessidades de obedecer
às normas socialmente aceitas que facilitem o consumo. Ele escreve
o que o leitor quer ler. Entre as temáticas que mais agradam aos
consumidores, percebe-se a constância de crime, amor, sexo e
aventura. Tem-se, igualmente, a presença inconfundível do herói. É
uma forma de o leitor projetar-se na intriga, ensejando o desejo de
potência, espelhado no protagonista, de escapar a leis do cotidiano
repetitivo e monótono. É uma espécie de fórmula à qual já atentava
Marshall McLuhan, afirmando que um best-seller não pode conter
mais de 10% de informações novas, sob pena de tornar-se enfadonho.
Com este último parágrafo, chega-se ao que se poderia chamar de
segunda acepção da expressão best-seller. Além da significação estrita
de vendagem, a literatura de massa pode ser caracterizada como
um tipo de narrativa ficcional, aquela que se enquadra nitidamente
dentro de um gênero literário. Ao contrário da alta Literatura, que,
devido ao esforço para fruição e à originalidade da narrativa, que não
permite a classificação dentro de padrões pré-estabelecidos, a trivial
reafirma e repete o fruir convencional nos esquemas conceituais do
leitor, estando presentes as velhas artimanhas maniqueístas: final
feliz para os bons de espírito e sanção negativa para os perversos.
Para problematizar ainda mais a ideia em torno da literatura de
massa, há, segundo Reimão (1996), três abordagens interessantes. A
primeira, denominada “teoria do degrau”, afirma que a paraliteratura
é apenas uma etapa na preparação do leitor para capacitá-lo
posteriormente a uma leitura qualitativa. O texto trivial seria, pois,
o prelúdio para a caminhada. A outra posição, intitulada “teoria do
hiato e regressão”, contrariando a anterior, radicaliza ao defender
uma lacuna existente entre os textos popular e erudito. A trivialidade
não só sedimenta como regride a consciência crítica do leitor,
impossibilitando-o de ter acesso à alta Literatura. A terceira e última
é um tanto positivista, pois, segundo a “teoria do filtro”, os malefícios
da indústria cultural podem ser eliminados por obra e graça de um
“filtro” de rejeição e seleção do qual disporia o público consumidor.
A verdade é que cada uma das teorias carreia uma dose homeopática
de polemicidade.
É curioso notar, também, o processo de adaptação de um bestseller. Quando se o faz, na transcodificação do livro para o cinema,
por exemplo, a estória permanece essencialmente inalterada, uma
vez que o mais importante é o conteúdo, o enredo. Já com a Literatura
culta o processo é contraproducente. Na transcodificação, do código
verbal ao não verbal, as propriedades da obra são patentemente
alteradas, pois seu valor está intrinsecamente ligado a outros fatores,
como a lapidação da escrita, que a enobrece1.
1 Segundo Fiorin e Savioli (1995), há três possíveis maneiras de distinguir o texto
literário do não literário: conteúdo, caráter ficcional/não-ficcional e função do
Apesar da classificação dos dois tipos de literatura, não se pode
determiná-la de forma arbitrária, rígida, estatuindo como quesito a
tiragem, afinal, é sobremaneira imprevisível o sucesso de vendagem
de uma determinada obra. Embora não muito habitual, é possível um
trabalho culto tornar-se um best-seller, uma referência mercadológica.
Haja vista o exemplo de As palavras e as coisas, de Michel Foucault,
cuja publicação, em 1966, teve um sucesso de vendas estupendo.
Esse fenômeno por certo é passível de ter lugar, isto é, uma alta
Literatura redundar-se numa produção em massa. Portanto, essa
divisão estanque, de ordem didática, permite nuanças. No entanto
a vendagem não deixa de ser o precípuo termômetro de avaliação.
Para esse alcance de alto calibre, podem mencionar-se duas
causas. A primeira refere-se a elementos internos da narrativa,
conforme apontado anteriormente: o assunto, o enredo e as técnicas
narrativas. Enfim, a velha fórmula exigida pelo mercado consumidor.
Quanto à segunda razão, há fatores externos, como a popularidade
do escritor. Um caso típico é o próprio Luís Fernando Veríssimo,
que, além de ser filho de um dos maiores escritores brasileiro, Érico
Veríssimo, escreve atualmente crônicas para 11 jornais do país.
Segundo Jürgen Habermas, citado por Reimão (1996), o sucesso
do best-seller se deve: (i) à facilitação econômica, proporcionada pelo
barateamento dos produtos culturais, tornando-os acessíveis; (ii) à
facilitação psicológica, cuja essência se baseia na simplificação de tais
texto. As duas primeiras são descartadas pelos autores (Primeiro: não há conteúdos
exclusivos para determinado gênero; segundo: como discernir o real do fictício).
Resta como válida apenas a última. Para eles, o texto não-literário teria uma função
utilitária, como o texto jornalístico, que se presta a informar. Já o texto literário,
uma função estética. Nele predominam algumas características: relevância do plano
de expressão, que se articula com o plano do conteúdo, recriando a significação
em sua organização; plurissignificação e conotação. Enfim, o modo de dizer é tão
importante quanto o que se diz.
produtos a fim de torná-los mais palatáveis e de fácil assimilação pelo
público leitor. Neste derradeiro item, pode haver um paradoxo. Ao
mesmo tempo em que a aculturação concede positivamente aos mais
humildes e aos mais numerosos o acesso à cultura, a simplificação da
cultura, ou seja, sua dessacralização, contém um aspecto negativo.
Para o sucesso fácil, há uma massificação do banal. O resultado é a
alienação e a ignorância no que diz respeito à boa arte.
2. Luís Fernando Veríssimo e o humor
Um gênero que se destaca no mercado editorial é o humor.
Na contemporaneidade, um dos escritores que mais se destacam é
Luís Fernando Veríssimo, cuja especialidade é a arte de fazer uma
radiografia bem-humorada da alma do brasileiro. Com os recursos
sempre constantes em suas crônicas — o riso e a percepção fina da
intimidade das pessoas — Veríssimo ganhou a simpatia do grande
público, angariando destaque no mercado editorial. Um sinal dessa
repercussão foi uma matéria de capa na revista Veja (GRAIEB, 2003).
Com a chamada O bem-amado, seguida do subtítulo Com três milhões
de livros vendidos nos últimos três anos, Luís Fernando Veríssimo é
hoje o escritor mais lido no país, a reportagem destaca o sucesso de
vendagem de suas obras. Entre os títulos que se destacam, estão: As
mentiras que os homens contam (2000), com 310 mil exemplares; O
Analista de Bajé (1981), 280 mil e Comédias da vida privada (1994),
240 mil.
Foi exatamente a veiculação dessa matéria que despertou o
interesse para a elaboração da presente pesquisa. O primeiro passo
foi converter a constatação do sucesso de vendagem em dados
concretos para conferir estatisticamente os números. Para buscar
esse amparo, a pesquisa foi baseada na coluna Os mais vendidos da
revista Veja, no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2003. Após
o levantamento, chegou-se ao seguinte resultado:
Período da pesquisa: 01/2000 a 12/2003
Fonte: Os mais vendidos – Revista Veja
Periodicidade da lista: semanal
Classificação: ficção
Título do livro
N. de inserções na lista
Borges e Orangotangos Eternos
3
Clube dos Anjos
5
A mesa voadora
8
Todas as histórias do Analista de Bagé
9
Banquete com os deuses
21
Sexo na cabeça
22
Comédias para se ler na escola
45
As mentiras que os homens contam
152
Nos dados arrolados acima, não se está considerando a posição
em que o título foi colocado na ordem dos dez livros mais vendidos.
Considera-se somente o número de vezes em que tal título consta na
seleção. Ou seja, não se leva em conta se é mencionado na primeira
ou na décima posição do ranking. Em mais de 220 listas consultadas,
apenas em 29 o escritor não consta relacionado. E na maioria das
listagens aparecem mais de dois títulos de sua autoria.
Confirma-se, em dados empíricos, o sucesso acaçapante do
escritor. Nesse quadriênio, como se observou, há o predomínio
incondicional do título As Mentiras que os Homens Contam, uma
coletânea de crônicas divertidas dedicadas ao tema da falsidade
no amor, nos negócios e na vida pública, com mais de trezentos mil
exemplares comercializados. Esse foi o motivo pelo qual se escolheu a
referida obra para centrar-lhe as atenções, prestando-se como corpus
à dissecação.
Quando se emprega a expressão “crônicas mais lidas de Luís
Fernando Veríssimo”, é óbvio que seria impossível demonstrar se
realmente tais textos foram lidos pelos leitores. Como indicar com
precisão o que as pessoas leem numa época em que a cultura de
massa goza de um fastígio no cenário midiático, disponibilizando
uma avalanche de textos, informações, enfim, uma cultura ao
alcance de todos. Ciente desse embaraço, a solução foi se respaldar
na pressuposição. Se não se pode calcular quais são os livros mais
lidos, pressupõe-se que os livros vendidos são lidos por aqueles que
o compram. Nesse raciocínio, os livros mais vendidos também foram
os mais lidos, mesmo tendo consciência de que aquele que adquire
o livro numa livraria não venha posteriormente a lê-lo, simplesmente
destinando-o a sentença do empoeirar-se numa estante, ou, pior
ainda, afastado do convívio social, enclausurando-o no fundo de uma
gaveta, esquecido.
Selecionar o livro que se prestaria ao objeto de análise foi, por assim
dizer, tranquilo, uma vez que a obra sobressaiu incontestavelmente
diante dos outros títulos. A dúvida, então, consistia em estabelecer
a forma como o livro seria enfocado. Sabendo que ele é composto
de 40 crônicas, havia a consciência de que, ainda que se analisassem
todos os textos, não se chegaria a uma exaustividade. Por isso, foi
necessário se pautar em alguns critérios para que o trabalho não se
perdesse em excessos, já que muitas das crônicas se repetiam quanto
aos recursos e às temáticas. Firmou-se, com isso, o seguinte método:
dividir as crônicas em subtemas: engano, família, mentira, sexualidade
e romance. De cada um deles, tomaram-se duas crônicas, definindo o
corpus com o número total de dez textos. Ei-los:
a)
b)
c)
d)
e)
Engano: O Falcão; Sebo.
Família: Trapezista; Lar desfeito.
Mentira: A mentira; Grande Edgar.
Sexualidade: O sítio do Ferreirinha; Infidelidade.
Romance: O verdadeiro você; Cultura.
Partindo do pressuposto de que o leitor busca nesse texto o riso,
afinal, suas crônicas se baseiam no risível, o objetivo será demonstrar
como se constrói esse riso, qual ou quais os recursos de que o
enunciador lança mão para criar esse efeito de sentido.
3. Balanço das análises
Na passagem pelo conjunto de crônicas selecionadas para
análise, o que salta aos olhos é a recorrência ao tema da privacidade e
do cotidiano, um recurso do enunciador em busca da empatia do seu
enunciatário. Aliás, esse é um expediente próprio da crônica, ou seja,
registrar ou pontuar fatos ocorridos no dia a dia, despercebidos pela
maioria, mas não ao olho atento do cronista. E sempre tais descrições
estão em textos breves e fáceis de ler, como nos textos apontados,
que nunca ultrapassam três páginas.
Outra característica presente nos textos é o discurso direto,
recurso este que é responsável pela criação do efeito de sentido
de realidade. Dentre as dez crônicas analisadas, apenas uma, O
verdadeiro você, não o apresenta, embora o texto seja narrado em
primeira pessoa, claramente expresso o narratário interpelado com
o qual o narrador dialoga: “Pense em tudo o que você já fez para
conquistar uma mulher.”
A debreagem interna, ou quando o enunciador delega voz
aos actantes do enunciado, introduz traços da oralidade no
texto, construindo não somente um simulacro do real, mas uma
informalidade cuja função é precípua. O diálogo, como se verificou,
tem sido um meio pelo qual o enunciador tem explorado suas
crônicas para a criação do efeito risível. É justamente a fala particular
dos interlocutores a ponte que estabelece o vínculo entre os planos
de conteúdo e de expressão.
Como se sabe, o riso é fruto de um estranhamento, de uma
inversão da ordem. E esses elementos estão presentes, sobretudo, no
plano do conteúdo do texto. Nas crônicas analisadas, o risível iniciase no plano da expressão, quando o enunciador insere o idioleto em
contraposição ao socioleto2, abrindo mão da norma: “Cumé que é?”;
“Que merda”. No plano do conteúdo, há convocação de formas fixas
para, em seguida, anulá-las ou as deformar: “José e Maria estavam
casados há 20 anos e eram muito felizes... Coisa mais chata. (...) O
2 A sociolinguística classifica algumas variantes: idioleto (particularidades da fala
de um único indivíduo); socioleto (fala própria de uma classe ou grupo social);
tecnoleto (fala própria de um domínio profissional, ou seja, o jargão); bioleto,
dividido em dois: etoleto (fala de pessoas de faixa etária distinta) e sexoleto (fala do
homem ou da mulher).
sonho de Vera era ter um problema em casa para poder ser revoltada
como Nora”; nem mesmo estereótipos socioculturais são poupados:
“Aquele imbecil é você. (...) Você nunca foi tão você quanto atrás
daquele poste”. Nesse sentido, o que se percebe nesses textos é a
ousadia de quebrar padrões e propor novos sentidos às esferas
pública e privada.
Além das inversões de valores que causam o estranhamento e,
consequentemente, provocam o riso, outro traço manifestado nos
textos é a relação contraditória entre alegria e tristeza. Quando se
fala de tristeza, tange à desgraça ou aos constrangimentos por que
passam os interlocutores. Esse estado tensivo é transformado em
divertimento desfrutado pelos destinatários aos quais o texto se
dirige. Das dez crônicas, pode-se dizer que em seis houve algum tipo
de estado de tensão por parte de tais interlocutores: fugir dos amigos
para encobrir uma farsa; desespero para corrigir uma disfunção do
corpo; família dilacerada por um capricho dos filhos; constrangimento
diante de um desconhecido; assassinatos por engano.
Nas quatro restantes, o que há são descrições que desvirtuam,
de algum modo, o comportamento humano: os maridos infiéis, a
ridicularização de um homem apaixonado e a ingenuidade de um
amante poeta. É a reiteração de um recurso costumeiro do antigo
teatro grego, quando do nascimento da comédia, em que a função
das peças cômicas era rebaixar o homem, exibindo seus defeitos e
incorreções. O que se nota é que todas as crônicas são perpassadas
pelo riso de escárnio, confirmando as proposições de Thomas Hobbes,
que discorria sobre a soberba intrínseca do homem, ao dizer que o
riso é um índice da superioridade humana: o homem ri ou zomba
das desgraças alheias como se fosse imune a qualquer tipo de deslize
igualmente ridículo.
Mas seja riso de zombaria, seja riso sem motivo algum, subjazem
a essas encenações hilariantes sátiras cujos desígnios corroboram as
teses de Bergson (1983, p. 50), para o qual o riso é um instrumento de
regulação e de controle dos desvios sociais. É preciso ter em mente
que a função primeira do riso, conforme afirma Yonnet (1990, p. 152153), é celebrar o “ser social”. O riso solitário tem um sinal negativo;
é uma anormalidade patológica. Diante disto, rir é comunicar e,
portanto, uma forma de participar de uma sociedade. Em todo
ato de comunicação, o objetivo final não é apenas informar, é, na
verdade, convencer o “outro” a aceitar o que está sendo proferido. A
argumentação é um fenômeno que está inscrito no uso da linguagem,
pois constitui uma atividade estruturante de todo e qualquer discurso.
Por isso, por mais sincero que se suponha, o riso esconde uma
segunda intenção. E no caso específico dos textos analisados, a crítica,
ora às escâncaras, ora sorrateiramente, sempre está presente. Para
construí-las, em geral na forma de sátira, o enunciador de vale, dentre
os vários recursos, do humor (“Estava mal empregado, mal casado,
mal tudo”), da ironia (“Você leu meu livro? Li! (...) Aliás, pequei e não
larguei mais até chegar ao fim) e da comicidade (“Na próxima vez que
alguém lhe perguntar ‘Você está me reconhecendo?’ não dirá nem
não. Sairá correndo”).
Considerações finais
Os livros cuja marca é o riso já impõem previamente um contrato
ao leitor. Ele tem a consciência de que o texto transgride os valores,
o código discursivo e as regras sociais. Essas contravenções devem
ser aceitas pelo leitor para que ele sancione os textos com o riso.
Portanto, na leitura de textos humorísticos, há duas demandas:
enquanto é uma exigência do leitor, estimulando a produção desse
material no mercado editorial, pois ele gosta desse texto, busca-o
para entretenimento, o riso também exige do leitor que ele não leve
nada a sério. Daí não causar espanto tocar em assuntos íntimos ou
tabus.
Ressaltada essa relação, é possível traçar igualmente um perfil
do enunciatário desses textos. É óbvio que uma determinação mais
precisa, como faixa etária, sexo ou classe social, seria incorreta. O
que se pode estabelecer, por alto, é que à imagem desse destinatário
cabe um leitor descompromissado com a leitura, que busca nessa
atividade o lazer ou o passatempo.
Sem embargo disso tudo, não se pode estender a imagem do
enunciatário ao conteúdo do texto. Embora se fale que essas crônicas
estejam fortemente vinculadas a uma leitura cuja finalidade é o
entretenimento do leitor, o que se nota numa leitura mais atenta
é que os textos descortinam uma crítica velada aos costumes, à
desfaçatez e aos comportamentos. Isso porque, conforme enuncia
Greimas, “podemos dizer que todo objeto semiótico é dotado de uma
dupla existência, pois existe o modo do ser e o modo do parecer”
(GREIMAS, 1975, p. 92).
Uma das marcas dos textos em questão foi o hábil jogo irônico
com que o enunciador constrói seus textos. É justamente nessa sutileza
que reside a relação entre o sentido manifestado e sentido latente,
porque, no texto risível, isotopias diferentes revelam a ambiguidade,
atributo constante nesse estilo. O riso é, pois, uma ousadia: causa
a estranha para distrair, mas, por trás dessa aparente ingenuidade,
verdades são escamoteadas. Horácio, poeta da Antiguidade Clássica
(65 a.C — 8 a.C), resumia um modo de dizer a verdade: Ridendo dicere
verum (Rindo, a verdade é dita). A antiga Literatura Latina repisa esse
pensamento com o mesmo mote: Ridendo castigat mores (Rindo, os
costumes são castigados).
O que se conclui deste trabalho é que a leitura do texto humorístico
em si é uma grande ironia. As pessoas estão, no dia a dia, acostumadas
às indiretas, às alfinetadas que visam atacar alguém, enfim, a ironia
propriamente dita. Mas quando se fala desses textos, como os
de Veríssimo, a imagem que se tem é de uma leitura meramente
infundada, cujo fim é tão-somente suscitar o riso. Trocando em
miúdos, a ironia, intrinsecamente ligada ao comportamento humano,
quando passada para o papel, não é entendida a contento, ao menos
pela maioria dos leitores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação do cômico.
2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e
redação. 10. ed. São Paulo: Ática, 1995.
GRAIEB, C. O autor que é uma paixão nacional. Veja:
revista semanal de informações gerais, São Paulo, ano 36,
n. 10, p. 74-80, 12 jan. 2003.
GREIMAS, A. J. Sobre o sentido. Ensaios semióticos. Trad.
Ana C. Cruz Cezar et al. Petrópolis: Vozes, 1975.
REIMÃO, S. Mercado editorial brasileiro 1960-1990. São
Paulo: Com-arte; FAPESP, 1996.
YONNET, P. La planète du rire: sur la mediatisation du
comique. Le débat, Paris, mars-avril, n. 59, p. 152-172,
1990.
O ESPELHO E A VOZ: O PAPEL DO PARATEXTO EM
VULGO GRACE DE MARGARET ATWOOD
Gracia Regina GONÇALVES (UFV/Viçosa-MG)
[email protected]
Thiago Marcel MOYANO (UFV/Viçosa-MG)
[email protected]
RESUMO: Dentre as diversas manifestações da Literatura
Canadense contemporânea que envolvem a questão do
gênero, avolumam-se obras que fazem uso do documental
segundo a perspectiva crítica pós-moderna de Linda
Hutcheon (1990). Vulgo Grace (2008), de Margaret
Atwood, tem sido lido dentro de uma perspectiva da
fragilidade acerca da caracterização “fato/ficção”. A obra
trata de um episódio da história criminal do Canadá no
século XIX em que a protagonista é acusada de ser pivô
e cúmplice de um crime passional, juntamente com John
McDermott, envolvendo seu patrão, Tomas Kinnear,
e a governanta deste, Nancy Montgomery, a despeito
desta última se apresentar grávida. Atwood, através
da apropriação, recriação, paródia, disseminação e até
contestação de diversas fontes, cria uma protagonista rica
em nuances, emergindo de um entrecruzar de diferentes
vozes. Neste trabalho, pretendemos explorar um recorte
de tal romance (recorrente em todos os capítulos) que
explicitamente coloca lado a lado ficção e história: o
paratexto. Acreditamos que este jogo com a linguagem,
levada a cabo no romance, contribuiria para o incitamento
da reflexão do leitor que, como num caleidoscópio, se vê
as voltas com configurações diversas que enriquecem a
constituição da(s) personagem(ns) e suas subjetividade(s).
PALAVRAS-CHAVE: Paratexto, Gênero, História, Pósmodernismo
O mesmo século que inventou a História inventou a Fotografia
(...) Como a escrita, a fotografia é transformação, mais
do que uma gravação (note mudanças na dimensão, cor,
contextualização, escala); representação é alteração, seja em
linguagem seja em imagens1.
Roland Barthes.
O paradoxo de Barthes que ora se apresenta, retomado por
Linda Hutcheon (1996) em suas reflexões sobre a metaficção
historiográfica, mostra-se oportuno para engatilhar o confronto de
idéias que aqui se desenvolverá. Trata-se de uma discussão no nível
da interdisciplinaridade que envolve a composição do romance
Vulgo Grace (2008) de Margaret Atwood. A obra tem sido lida, com
propriedade, dentro de uma perspectiva de gênero e das diferentes
nuances do discurso vitoriano. Como em outras narrativas, ainda
segundo Hutcheon, identificadas como pertencentes à produção
literária pós-moderna, proliferam no texto recursos paralelos, os quais
se projetam com uma envergadura para muito além do meramente
decorativo, tornando-se constitutivos da tessitura do enredo.
Pretendemos aqui, em especial, explorar um desses recursos,
recorrente em todos os capítulos da obra, que coloca lado a lado, ficção
e história: o paratexto. Seguindo a teorização de Genette (1996), verse-á que o uso deste serve para “endossar a obra literária enquanto
tal, constituindo-se desde título, autor, prefácio até ilustrações”
1 the same century invented History and Photography(...) Like writing, photography
is transformation more than recording (note changes in dimension, colouring,
framing, scale); representation is alteration, be it in language or in pictures.
(GENETTE apud HUTCHEON, 1996, p. 301). A própria Hutcheon (1996)
desfila uma série de nomes que fizeram do paratexto, no contexto
da literatura contemporânea, um atrativo a mais, a exemplo de “A
Mulher do Tenente Francês” de John Fowles, “Os Filhos da Meianoite”, de Salman Rushdie e “O Beijo da Mulher Aranha”, de Manuel
Puig.
Paralelamente, percebe-se que, na estruturação de seu texto,
Atwood consegue delinear uma vertente crítica para o paratexto que
vai ao encontro da definição de Genette, propiciando uma nuance
relevante, ao nosso ver, ainda pouco discutida. Segundo Hutcheon
(1990) o uso de tais recursos
direciona o leitor para um contexto histórico real e específico
dentro (ou contra) aquele em que o universo fictício opera,
porém, problematicamente. Tais textos previnem qualquer
tendência por parte do leitor, em universalizar e eternalizar
– ou seja, des-historicizar. […] qualquer que seja a forma de
tal fonte – nota de pé de pagina, epígrafe, título – a função é
criar um espaço para intertextos da história dentro de textos
da ficção2 (HUTCHEON, 1990, p. 86. Nossa tradução).
Portanto, pretende-se perscrutar a natureza do próprio paratexto
detectando-se neste, uma “sempre-já” irreverência que deixa
entrever uma proposta de apropriação do paródico em si com uma
mais profunda consciência do risco da demarcação de fronteiras. No
decorrer das observações sobre a estruturação do texto do romance,
evidencia-se neste sua fragilidade identitária face a inúmeras
apropriações paródicas, comuns às obras já citadas.
2 to direct the reader to a specific, real historical context within (or against) which
the fictive universe operates, however, problematically. These paratexts prevent
any tendency on the part of the reader to universalize and eternalize – that is, to
dehistoricize. […] whatever the paratextual form – footnote, epigraph, title – the
function is to make space for intertexts of history within the texts of fiction.
Nota-se então que a página ri de si mesma, consciente e
irreverentemente, utilizando-se de diversos elementos, gêneros e
discursos, literários ou não. Por exemplo, muitas vezes narrativas
orais de per se híbridas, as quais já perderam a distinção clara do seu
caráter ora histórico ora ficcional, são recontadas a par de escrituras
consolidadas canonicamente. O que aqui ora se levanta é que além de
seu caráter para-historiográfico, pode-se percebê-lo também como
parte de um movimento espiralar, não simplesmente uma forma
estanque, dentro da clássica distinção entre ficção e história; por
exemplo, muitas vezes através de cartas, notícias e versos inseridos
no seu corpo, tem-se a sensação de retomada de vários discursos,
demonstrando a complexidade de sua natureza.
Nossa hipótese é que há uma predisposição que caracterizaria
Atwood como uma escritora-leitora, crítica não só de uma tradição
literária, mas de sua própria obra: nela, a apropriação do documental
ou jornalístico, do romance epistolar, ou da narrativa oral em suas
diversas nuances, faz-se dentro de uma consciência de quem se vê
ou se lê jocosamente redistribuindo signos que, até então, eram
peças de um tabuleiro bem definido, o da reconstrução da história. A
partir de Vulgo Grace (2008) torna-se interessante a reflexão de que o
jogo não se realiza como uma tradução em termos de uma língua de
partida (história) para uma língua de chegada (ficção). Vê-se que as
fronteiras em si são constantemente borradas em cada movimento,
não se sabendo, no intuito de se utilizar deste ou daquele texto, como
reconhecê-lo, se desta ou daquela natureza.
Desta feita, distingue-se uma corrente temática como fio
condutor, a da configuração do anjo do lar vitoriano, imagem dispersa
em diversos paratextos. A fruição do romance de Atwood se processa
então ao longo de um constante embate deste imaginário conservador,
e de sua possível contra-leitura. Em termos bakhtinianos a crítica
deste tipo de personagem torna-se evidente via toda uma constituição
contextual do discurso do qual o paratexto é peça importante. No jogo
da autora, mesmo que pareça haver uma abertura para o surgimento
de um tipo de sociedade emergente no campo intelectual, em que
a mulher possa manifestar-se politicamente, por exemplo, opinando
sobre falhas no sistema judiciário, ver-se-á que, o ideal conservador
vitoriano, embora maquiado em um esquema vanguardista, é sempre
restabelecido, recolocando a tradição, a família e a propriedade nos
seus “devidos lugares”. Sendo assim, o discurso de Atwood sempre irá
configurar realidades multifacetadas que a posicionam na moldura
teórica da metaficção historiográfica, que, como comenta Duvall
(2002) “é dispersão que precisa de centralização para ser dispersa”
partilhando “de uma lógica de “ambos/e” e não de “um/ou”3 (DUVALL,
2002, p. 8, 9. Nossa tradução). Na sequência, faremos então, algumas
considerações sobre o enredo.
Vulgo Grace (2008) narra a história verídica de Grace Marks,
uma jovem de meados do século XIX que é acusada de ser pivô e
cúmplice de um crime passional, juntamente com John McDermott,
envolvendo seu patrão, Tomas Kinnear, e a governanta deste, Nancy
Montgomery. O caso Kinnear/Montgomery aparentemente causou
grande estardalhaço na sociedade canadense da época sendo notícia
tanto no país quanto nos Estados Unidos e na Inglaterra. Tanto Marks
quanto McDermott são condenados à morte, porém, a cúmplice de
assassinato é perdoada e condenada à prisão perpétua, onde por
bom comportamento consegue um trabalho como criada na casa
3 is dispersal that needs centering in order to be dispersal” (…) for Hutcheon, the
postmodern partakes of a logic of “both/and” not one of “either/or”
do diretor do presídio. Supõe-se que Grace, apaixonada pelo patrão,
tenha manipulado o outro criado da propriedade para assassinar
Nancy Montgomery e então tomar seu lugar. Entretanto, McDermott,
na esperança de conseguir os favores da suposta mentora do crime,
acaba executando tanto a governanta quanto o chefe. Alguns
dados adicionais tornam a história mais polêmica e intrigante. Por
exemplo, consta da autópsia que Nancy Montgomery estaria grávida,
desfavorecendo ainda mais o perfil da ré. Por outro lado, Grace, após
trinta anos de prisão, é libertada, mudando-se para Nova Iorque com
nova identidade, o que lhe permite casar-se e construir então uma
nova vida.
Para ficcionalizar o relato supracitado, Atwood recorre a registros
documentais encontrados no fórum, escritório do presídio, clínica
psiquiátrica, jornais da época, bem como também no livro Life in
The Clearings publicado por Susanna Moodie em 1853. É digno de
nota que, tanto esta, quanto sua irmã Catherine Parr Trail abriram
caminho para a ficção feminina ao inscrever suas narrativas de
viagem no incipiente cenário da literatura canadense do século XIX,
fato reconhecido por escritoras contemporâneas tais como Margaret
Laurence, Carol Shields e a própria Atwood. De acordo com autora,
Life In the Clearings pretendia mostrar o lado mais civilizado do
Canadá Oeste, como então era chamado, e incluía descrições
admiráveis tanto da Penitenciaria Provincial, em Kingston,
quanto do Asilo de Lunáticos, em Toronto. Tais instituições
públicas eram visitadas como zoológicos e, em ambas, Moodie
pediu pra ver a principal atração, Grace Marks. (ATWOOD,
2008: 490)
Interessantemente, percebe-se uma inovação no que tange a
estruturação do romance. Atwood cria um recurso narrativo que se
diferencia de tantos outros no que diz respeito à perspectiva e a voz
dos enunciados. Uma personagem, Dr. Simon Jordan, é projetada
enquanto “ouvinte” da história de vida da protagonista, porém, a
forma sistemática pela qual o fato se desenvolve dá a Grace asas a
sua imaginação, cultivando sua própria hesitação, transformando um
discurso de tom confessional de intimidade entre duas pessoas para
o reconhecimento de um caso de interlocução no nível psicanalítico.
A apropriação satírica de uma proposta pretensamente séria, ou
seja, a especulação acerca de métodos científicos para o desvelamento
da mente da criatura humana torna-se a motivação primeira do
romance, revertendo hierarquias consolidadas em torno da assunção
do conceito de verdade. Esta reflexão maior, que propicia a criação
deste artifício, é lançada formalmente através de uma abordagem
paratextual que se insere antes mesmo do índice. Nela, contrastamse diferentes opiniões acerca da verdade, todas, porém, realçando
nesta o seu caráter de construção:
(ATWOOD, 2008, p. 7)
Nas duas primeiras, perpassa a noção de um contexto judiciário
(“defesa”, “tribunal”), enquanto que a terceira, mais metafísica, faz
indagações no nível da propriedade em se julgar alguém, equalizando
revelação e “luz”. O discurso de Grace se pautará, contraditoriamente,
na dúvida e não em certezas, conforme se lê:
eu li tudo que escreveram sobre mim [...] grande parte do que
está lá são mentiras [...] Na realidade, algumas são verdades
[...] Seria eu realmente uma amante?, essa é a principal
preocupação deles, e nem mesmo sabem se querem que a
resposta seja sim ou não (ATWOOD, 2008, p. 37). Um fator importante a se ressaltar são determinadas formas
intencionalmente selecionadas para a configuração diagramática
do livro. O romance é estruturado em 15 capítulos, numerados
em algarismos romanos, que por sua vez são subdividos em outras
seções identificadas em algarismos arábicos. Além disso, cada título
de capítulo é envolvido em molduras e ilustrado por um tipo de
filigrana central, de desenho aristocrático, o que corresponde a um
caráter conservador atribuído ao conjunto de personagens da obra,
remetendo-nos ao período vitoriano, o qual o leitor de Atwood será
convidado a problematizar. Quanto a estas apropriações paródicas,
Hutcheon (1988) afirma que as mesmas “sempre reconhecem o
poder daqueles que parodiam, mesmo enquanto os desafiam”4
(HUTCHEON, 1988, p. 110. Nossa tradução). Assim, dentro de tal
percepção, compreendemos que a alusão a figura do anjo do lar provê
as sementes de sua própria desconstrução, gerenciando o status quo
através da voz das personagens, em especial das femininas e, ao
mesmo tempo, colocando-as em xeque. É significativo apontar para
4 always acknowledges the power of that which it parodies, even as it challenges it.
a gradação que se nota nos títulos de cada capítulo, os quais partem
da esfera do doméstico, por exemplo, “Borda Dentada” ou “Louças
Quebradas”, respectivamente capítulos I e V, em direção ao mítico ou
metafísico, como observado em “A Caixa de Pandora” e “A Árvore do
Paraíso”, XIII e XV. Ao longo do romance, a enigmática figura de Grace
Marks transitará entre estes diferentes universos.
Além da exploração dos elementos gráficos e estruturais, dois
outros aspectos temáticos relacionados a figura do anjo do lar e
veiculados através de elementos paratextuais são dignos de nota:
primeiramente, o uso de epígrafes de caráter jornalístico, didático,
ou literário, notadamente pertencentes ao imaginário do século
XIX, incitam o olhar crítico do leitor; também a inserção arguta de
recortes, muitas vezes não propriamente “históricos”, mas recriações
pretensamente factuais, de cunho patriótico, impregnam o texto de
sabor satírico. Em ambos os casos, esta figura é desconstruída pela
leitura a contra-pelo do mesmo.
Escolhemos aqui, de início, como alguns dos exemplos de
“desleitura” de uma epígrafe possíveis na obra, a que abre o capítulo
III – “Gato no Canto” – de Susanna Moodie:
Ela é uma mulher de estatura média, com uma figura esbelta e
graciosa. Seu rosto exibe um ar de desesperança e melancolia,
muito doloroso de ser contemplado. Sua cútis é clara e deve
ter sido radiante, antes que o toque de uma irremediável
tristeza a embotasse. Seus olhos são azul-claros, seus cabelos,
ruivos, e o rosto seria bastante bonito não fosse pelo queixo
comprido e curvo, que confere, como sempre acontece com
a maioria das pessoas que possui esse defeito facial, uma
expressão astuta, cruel [...] Ela parece uma pessoa um pouco
acima de sua origem humilde. (ATWOOD, 2008, p. 29)
A concepção de beleza e de sujeito registrada por Moodie
espelha o senso comum da sociedade de sua época. As noções de
alvura, da pele e da alma, são uma marca vitoriana. Baseado em seu
narcisismo e na pretensa inferioridade dos demais, calcado em razões
levantadas pela bioética, o império britânico expandiu suas fronteiras
pelo chamado terceiro mundo. As palavras desta fazem eco com a
passagem que ora se segue, retirada de uma publicação brasileira do
mesmo século:
Para que uma senhora seja perfeita em beleza, deve possuir
as trinta
qualidades seguintes: a saber =
Três coisas brancas: a pele, os dentes e as mãos
Três pretas: os olhos, as pestanas e as sobrancelhas
Três vermelhas: os beiços, as faces e as unhas
Três longas: o corpo, as mãos e os cabelos
Três curtas: os dentes, as orelhas, e os pés
Três largas: o peito, a testa e as pálpebras dos olhos
Três estreitas: a boca, a cintura e a planta do pé
Três grossas: os braços, as nádegas e a barriga da perna
Três finas: os dedos, os cabelos e os beiços
Três pequenas: os seios, o nariz e a cabeça. (O Mentor das
Brasileiras apud. JINZENJI, 2010, p. 174).
Como coloca Mônica Yumi Jinzenji (2010) esta passagem destaca
a mulher perfeita em beleza, originada na tradição oral européia,
como aquela de pele branca e traços delicados. (JINZENJI, 2010, p.
174-5). Dessa forma, podemos perceber que a jovem Grace Marks
goza de status privilegiado apesar de sua condição de detenta, e estas
características são as que primordialmente lhe abriram portas. É bom
lembrar que tendo sido inicialmente condenada a morte, tal fato não
ocorreu devido a interferência da igreja, de seu advogado e de um
grupo de simpatizantes com a sua causa que alegaram sua juventude,
a fragilidade “inata” do sexo feminino e sua suposta estupidez como
atenuantes da defesa. Assim, o paratexto citado enriquece a leitura da
obra tanto do ponto de vista crítico da estereotipia clássica com suas
conotações discriminatórias, como da, talvez, falta de clarividência
da escritora dado ao seu contexto histórico, além de estabelecer
possíveis diálogos com outras esferas da representação da mulher em
suas respectivas realidades sociais, aprofundando nosso olhar.
Uma vez trazidas à tona referências paratextuais tanto positivas
quanto negativas sobre Grace, pode-se ainda acrescentar outro
aspecto, que nos reporta ao caso anterior da mobilização dos grupos
oficiais de simpatizantes a sua causa. No capítulo XIV – “A Letra
X” – destaca-se a seção 50, a qual composta exclusivamente pela
inserção de cartas aparentemente ficcionalizadas: de personagem
a personagem abre-se um espaço para a voz que espelha o clero
empenhado na libertação de Grace, cujo representante mor é o
reverendo Enoch Verringer. Nesta lê-se: “Nosso Comitê consiste em
um grupo de senhoras, entre as quais se inclui minha própria esposa, e
de vários cavalheiros de projeção e de clérigos de três denominações,
incluindo o capelão do presídio, cujos nomes encontrará apensos”.
(ATWOOD, 2008, p. 458).
Esta versão antecipatória do que poderia vir a ser entendido
como movimento de emancipação da mulher requer considerações
mais profundas. Ao descrever tais senhoras, Grace afirma que
“não são apenas as senhoras parecidas com águas-vivas que vêm à
casa do governador. Às terças-feiras, temos a Questão Feminina, a
emancipação disso ou daquilo”. (ATWOOD, 2008, p. 32). Percebese, então, que Atwood brinca com fronteiras tradicionalmente
demarcadas para o masculino e feminino em termos das esferas
do público e do privado no século XIX. Janett Wolff (1990), em uma
análise crítica da era vitoriana, afirma que mesmo “em casos das
mulheres que continuaram a trabalhar [...] a ética dominante do
papel doméstico e subserviente destas ignorou este fato”5. (WOLFF,
1990, p. 15. Nossa tradução) Entretanto, faz-se necessária uma
ressalva: a supracitada beleza de Grace, que, nas palavras de Susana
Moodie, a faz parecer acima de sua classe social, nos permite elaborar
a hipótese de que tais senhoras da classe média canadense foram
movidas por um tipo de reconhecimento, e não necessariamente por
uma política igualitária e progressista. Retomando também o estudo
de Jinzenji (2010) em um contexto nacional, esta comenta que à
mulher não cabia apenas seus afazeres domésticos, mas também
“educar os cidadãos e, sempre que necessário, apoiá-los na defesa
da pátria”. (JINZENJI, 2010, p. 208. Nosso grifo). Em outras palavras, é
preciso compreender que, interferir politicamente naquele contexto
histórico, seja através da educação dos membros da família, ou de
manifestações públicas contrárias a decisões judiciais, como no caso
das senhoras da Questão Feminina, não prenuncia um feminismo,
mas reforça as vozes do poder.
Assim, de acordo com Carmichael (2002), “história e ficção
estão ambas cada vez mais profundamente implicadas em uma
crise da representação”, a qual torna-se, paradoxalmente, produto
de “uma consciência das forças ideológicas” 6. (CARMICHAEL, 2002,
p. 37, tradução nossa). O discurso vitoriano presente na obra se
constitui por causa, e a despeito, destas forças, em especial via o
paratexto, cujo papel problematizador é constitutivo da obra. À
5 Women did continue to work […] the increasingly dominant ethic of woman’s
domestic, and subservient, role ignored this fact.
6 history and fiction are currently both deeply implicated in a contemporary
crisis in representation […]an awareness of the ideological forces at work in the
representation of event.
guisa de conclusão, pode-se dizer que as abordagens paratextuais
em Vulgo Grace (2008) não somente nos auxiliam a questionar
se a personagem era ou não vilã ou vítima do caso que a levou à
prisão. Mais do que isto, a maneira pela qual Atwood se utiliza de tais
recursos contemporâneos em sua produção literária identifica nela,
uma tendência de recriação de paradigmas, em que o entrecruzar
de vozes estabelece uma instabilidade produtiva no texto, projetando
a meta-ficção historiográfica como parâmetro para se repensar o
sujeito e a literatura como um todo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ATWOOD, M. Vulgo Grace. Trad. Geni Hirata. Rio de
Janeiro: Rocco, 2008.
CARMICHAEL, T. “Postmodernism and History:
Complicitous Critique and the Political Unconscious”.
In: DUVALL, J. Productive Postmodernism: Consuming
Histories and Cultural Studies. Albany: State of New York
University Press, 2002. Cap. 2, p. 23-39.
DUVALL, J. “Troping History: Modernist Residue in
Jameson’s Pastiche and Hutcheon’s Parody”. In: DUVALL,
J. Productive Postmodernism: Consuming Histories and
Cultural Studies. Albany: State of New York University
Press, 2002. Cap. 1, p. 1-22.
HUTCHEON, L. “Shape Shifters’: Canadian Women Writers
and the Tradition”. In: HUTCHEON, L. The Canadian
Postmodern. Toronto, New York e Oxford: Oxford
University Press, 1988. Cap. 6, p. 107-137
________. “Postmodern Paratextuality and History”. In:
Texte-revue de critique et de theorie litteraire 5. 1996, p.
301-312.
________. The Politics of Postmodernism. London and
New York: Routledge, 1990.
JINZENJI, M. Y. Cultura Impressa e Educação da Mulher no
Século XIX. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
WOLFF, J. Feminine Sentences: essays on women and
culture. Berkeley e Los Angeles: University of California
Press, 1990.
A CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA, DE LÚCIO CARDOSO:
reescritura cinematográfica
Humberto de Freitas ESPELETA (UFAC)
[email protected]
RESUMO: A partir de uma leitura fundamentada nos
princípios da narratologia, segundo Gérard Genette,
faremos um estudo do sentido da vida, dos dramas
existenciais e do caráter demoníaco no romance Crônica
da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, e no filme A Casa
assassinada, de Paulo Cesar Saraceni. Serão enfocadas
algumas perspectivas de tradução reescritural entre
culturas e linguagens. A transposição da literatura para
o cinema dá a marca da técnica cinematográfica de
Paulo Cesar Saraceni para recodificar a linguagem do
romance traduzindo-a para a linguagem do cinema sem
desrespeitar a autoria de Lúcio Cardoso.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Cinema; Narratologia; Lúcio
Cardoso
A narratologia busca, entre outros aspectos, o que há de comum
entre as narrativas e aquilo que as distingue, como por exemplo, o que
aproxima e o que distancia conto, novela, romance, roteiro fílmico.
Gérard Genette (1983), em seu livro Discurso da Narrativa, distingue
discurso, história (diegese) e narração, afirmando que o discurso é a
ordem cronológica dos acontecimentos num texto narrativo; a história
é a ordem em que as ações acontecem; e a narração é o ato de narrar.
Existem três tipos de narradores: heterodiegético, homodiegético e
autodiegético:
Distinguer-se-ão, pois, dois tipos de narrativas: uma de
narrador ausente da história que conta [...], a outra de narrador
presente como personagem na história que conta [...]. Nomeio
o primeiro tipo, por razões evidentes, heterodiegético, e o
segundo homodiegético.// [...]. Haverá [...] que distinguir no
interior do tipo homodiegético duas variedades: uma em que
o narrador é o herói da sua narrativa [...], e a outra em que
não desempenha senão um papel secundário, que acontece
ser, por assim dizer sempre, um papel de observador e de
testemunha [...]. Reservaremos para a primeira variedade (que
representa de alguma maneira o grau forte do homodiegético)
o termo, que se impõe, de autodiegético (GENTTE, 1983, p.
243-244).
A Casa Assassinada, de 1971, é um filme de Paulo Cesar Saraceni,
baseado no romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso,
publicado pela primeira vez pela em 1959. É a história da decadência
dos Meneses, família aristocrata de Vila Velha, Minas Gerais. O autor
do romance cria um clima de diabolismo revelado pelo íntimo mórbido
e atormentado de suas personagens, criando uma metáfora de que a
casa é um jazigo, no qual se ocultam os mistérios da vida de cada uma
delas. A obra é uma história narrada por meio de diários, de cartas,
de narrativas, de confissões, de depoimentos das personagens, os
quais escrevem polifonicamente o universo fantasmagórico da casa
dos Meneses.
As personagens narram suas histórias homodiegeticamente,
porém podendo haver momentos de metadiegese. Este é o caso, por
exemplo, de uma passagem do capítulo “37 Depoimento de Valdo”,
no qual ele conta uma conversa que teve com Nina sobre uma carta
que ela recebera. Valdo a interroga: “‑ De quem é, que carta é esta?”,
ao que Nina responde: “‑ Valdo, preciso conversar com você.”, em
seguida, ao longo do capítulo, Nina revela que precisa de um médico,
e por esta razão deverá partir para o Rio de Janeiro.
Embora não seja revelado quem é o autor da carta que Nina
está lendo, nem tampouco nos seja dado a ler o conteúdo dela, nós
leitores podemos deduzir tratar-se de uma carta que Nina tinha
escrito para alguém sobre seu estado de saúde, e que da qual ela lê a
resposta sobre a necessidade de ela fazer exames, por meio dos quais
se saberá que ela tem câncer.
Toda a obra é metadiegeticamente construída, uma vez que
cada capítulo é uma narrativa autodiegética, posto que em cada um
deles esteja uma personagem fazendo uma narrativa sobre Nina, a
protagonista do romance, porém em cada uma delas a personagem
autora do capítulo se coloca como protagonista. Ressalte-se, ainda,
que a protagonista do romance também escreve cartas que compõem
a narrativa.
As personagens da Crônica são os irmãos Meneses: Valdo, casado
com Nina; Demétrio, casado com Ana; e Timóteo, homossexual
frustradamente apaixonado pelo jardineiro Alberto, que, por sua
vez, era apaixonado por Nina, em quem sua cunhada Ana vê uma
rival onipresente, já que ela desperta para si os amores de seu
marido Demétrio, e de Alberto, a quem ela ama e deseja, sem ser
correspondida. Povoam ainda o romance as seguintes personagens: a
criada Betty, o Coronel, o médico, o farmacêutico, o Padre Justino e,
finalmente, André, que se pensava ser filho de Nina e Valdo, mas que
ao final da obra, fica esclarecido que ele era filho de Ana, a esposa de
Demétrio, e de Alberto, o jardineiro.
Todos os Meneses vivem a miséria de suas almas e a decadência
da aristocracia de sua família e de sua casa. A chegada de Nina vai
desencadear o processo de desintegração total da família, até a mais
completa ruína. O leitor vai conhecendo Nina, segundo a visão que
cada personagem tem dela. O leitor sabe que ela vivia no Rio de
Janeiro e que vem de um passado pouco claro e, aparentemente, casase com Valdo Meneses, supondo-o rico. Para se casar com ele, Nina
deixa o Coronel, com quem ela mantinha um tipo de relacionamento
muito próximo ao da prostituição, já que ele a sustentava em tudo
de que ela precisasse, sem ter com ela vínculos de parentesco ou de
matrimônio.
O romance começa com o diário de André, assim como o filme
que seguirá um fio narrativo escolhido por Saraceni na sua tradução da
obra para o cinema, cujas cenas primeira e última mostram o velório
de Nina. No capítulo “1 Diário de André (conclusão)”, ele reflete sobre
os últimos momentos das ações que o lançaram na dor e na revolta
causadas pela morte de Nina, ele se pergunta:
“18 de... de 19... - (meu Deus, que é a morte? Até quando, longe
de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei
de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da
sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado
de um beijo - ‘era assim que ela beijava’ - naquela um modo
de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos
cabelos - todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada
um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor,
na dor e na saudade, essa imagem única que havia partido
para sempre? Que é, meu Deus, o para sempre – o eco duro e
pomposo dessa expressão ecoando através dos despovoados
corredores da alma – o para sempre que na verdade nada
significa, e nem mesmo é um átimo visível no instante em que
o supomos, e no entanto é o nosso único bem, porque a única
coisa definitiva no parco vocabulário de nossas possibilidades
terrenas...)” (CARDOSO, 2005, p. 19).
Concluída a passagem do filme que reproduz esse primeiro
parágrafo, a película mostra a chegada do trem que traz Nina do Rio
de Janeiro para Vila Velha, apenas para situar o espectador quanto
às animosidades entre os Meneses que de sua chegada adviria,
principalmente motivadas por Ana e Demétrio.
Num jantar com sua nova família, Nina fica sabendo, por meio
de seu cunhado Demétrio, que ela fora enganada pelo marido, que
na verdade a família estava pobre e cheia de dívidas. O diálogo entre
os irmãos revela um desentendimento familiar, pois Demétrio faz
questão de expor humilhantemente, Valdo denunciando que ele não
tem dinheiro algum.
Timóteo, desajustado e rejeitado pelos irmãos devido à sua
homossexualidade e por o considerarem louco, vive isolado em seu
quarto, sempre vestido com as roupas e as jóias de sua mãe, tem em
Nina e na criada Betty suas únicas amizades. No seu comportamento
delirante, é, talvez, o único que consegue, em meio a seus devaneios,
compreender com lucidez o destino dos Meneses. No final do
romance, finalmente ele consegue executar sua vingança contra
todos durante o velório de Nina.
Na Chácara dos Meneses vivia o jardineiro Alberto, num pavilhão
nos fundos da propriedade. Ele será o eixo das paixões de Nina, de
Ana e de seu cunhado Timóteo, com o qual ele nunca terá nenhum
envolvimento, além de suas fantasias. Ana, depois que Nina é
surpreendida por Demétrio em atitudes suspeitas com o jardineiro,
decide forçar sexualmente o jardineiro, de quem ela engravida. No
mesmo período, Nina também fica grávida de Valdo, seu marido.
As acusações de Demétrio contra a cunhada e o jardineiro levam o
marido de Nina a tentar o suicídio. Não suportando mais viver em
Vila Velha, Nina abandona o casamento e parte para o Rio de Janeiro.
Toda essa situação leva o jardineiro Alberto ao suicídio.
Ana, se vê em má situação, não só por causa de sua gravidez e da
indiferença de Demétrio, mas também de medo de que ele descubra
toda a verdade sobre ela. Sabendo que seu marido não suporta mais
a ausência da cunhada, por quem ele nutre um amor que não ousa
declarar, cria um estratagema e parte para o Rio de Janeiro para tentar
convencer Nina a voltar para a casa dos Meneses. Permanece no Rio
de Janeiro o tempo necessário para ter seu filho com Alberto. Nina,
que tivera seu filho, e supostamente o entregara para adoção, em um
encontro com a cunhada conta-lhe sua decisão de ter abandonado
seu filho com Valdo. Ana, então, volta para Vila Velha e entrega seu
filho com Alberto para o cunhado Valdo, que o cria como sendo seu.
André, o suposto filho de Nina, vai crescer até a adolescência sem
conhecê-la. Nina volta para o marido e, a partir daí, a vida de André
ganha os movimentos da paixão, do pecado e do crime de incesto.
Ele vive um intenso amor com sua suposta mãe, sem se dar muito
conta do que está acontecendo, interessado apenas em satisfazer
seus desejos e viver as emoções que o amor lhe provoca.
Élcio Fernandes publica em 1969, na revista Momento Literário,
da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, o
artigo “Lúcio Cardoso: o drama existencial e o demoníaco na Crônica
da Casa Assassinada”, no qual, o autor indica que no romance
há um drama existencial situado entre dois planos diferentes: o
“Existencialismo ateu”, representado por Nina, e o “Existencialismo
cristão”, representado pelo Padre Justino.
Para Élcio Fernandes,
Nina é a consciência total do mundo. Somente as coisas
do mundo lhe interessam. É a inconsciência do bem e do
mal. Para ela tudo é permitido, desde que se arque com
a responsabilidade de seus atos, aceitando totalmente o
“pecado”.//O “Existencialismo ateu” que tem como ponto de
partida a frase de Dostoievski: “Se Deus não existisse tudo seria
permitido”,// [...]//Através dessa personagem completamente
desligada dos valores morais e religiosos pré-estabelecidos, a
liberdade humana é levada ao mais alto nível (FERNANDES,
1969, p. 8-9).
É esse comportamento de Nina e todo o contexto de degradação
moral e material dos Meneses que vai desencadear o diabolismo que
domina todas as personagens do romance que vivem na Chácara dos
Meneses. Aqui tomaremos algumas ações de Ana para demonstrar
a predominância do demoníaco no desenvolvimento da narrativa
escritural, e que Saraceni faz coincidir com a narrativa fílmica.
Em um de seus relatos, Ana declara que Nina teria atirado pela
janela o revólver com o qual o jardineiro – já abalado porque Demétrio
o demitira ‑ suicida-se depois de ter ouvido uma conversa entre Nina
e Valdo, na qual ela diz que vai partir definitivamente para o Rio de
Janeiro. Ana o vê morrendo, e ri da cena como num triunfo por ver
as conseqüências da relação adúltera entre Nina e Alberto. Em outro
momento, quando André já é adolescente e Nina já voltara a viver na
Chácara dos Meneses, Ana, suspeitando das relações dela com André
e procurando vingança, os segue até o pavilhão onde ela vê os dois
em relações sexuais. Ana e Nina sabem que aquela relação não era
incestuosa, mas nada revelam a André, e nem mesmo a Valdo, que
também desconfiava das relações de André com sua esposa. É essa
atitude de Nina e Ana que melhor ilustra o demoníaco na Crônica da
Casa Assassinada.
Em seu artigo, Élcio Fernandes diz que Nina é a representação
do anti-Cristo,
o demônio que vem trazer a consciência do mundo aos
Menezes (sic). Ana descobre na cunhada tudo o que ela não
é. O estado de apatia, e conformismo com a sua situação de
mulher que sem atrativos e sem paixões vai chocar-se com
o mundo “vivo” de Nina, e causar um conflito interior que a
leva a reconhecer a sua solidão [...]// O desespero por não
acreditar na graça divina e estar em choque com as paixões
do mundo fá-la recorrer ao Padre Justino que representa aqui
uma espécie de “existencialismo cristão”.// Padre Justino faz
uma revisão total dos valores da Igreja católica.// O desespero
em que ela se vê leva-a a procurar o Padre Justino, que lhe diz:
“O diabo, minha filha, não é como você imagina. Não significa
a desordem, mas a certeza e a calma.” (FERNANDES, 1969, p.
8-9).
É no último capítulo do romance que o leitor vai se deparar
com a luta de Ana com seu íntimo. Ela chama o Padre Justino
para se confessar momentos antes de sua morte, e faz ao padre o
relato das ações diabólicas de Nina e de suas próprias. Ela revela a
verdade sobre o nascimento de André, sobre o conhecimento dessa
verdade que Nina tinha, julgando-a mais culpada que a ela própria, a
progenitora, por terem deixado André na ignorância de sua condição,
carregando consigo culpas que não eram suas. Ana morre sem que o
padre tenha tempo de perdoá-la. Aí, talvez esteja realizada uma parte
dos propósitos de Lúcio Cardoso, que, segundo André Seffrin, em
depoimento a Fausto Cunha, na época do lançamento do romance
Crônica da Casa Assassinada, diz de seu livro:
Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar
pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão
é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que
levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é
contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família
mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo
mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida
mineira. Contra a fábula mineira (SEFFRIN, 2005, p. 9).
Fica nestas palavras já uma orientação de leitura, a que se
pode dizer ser conveniente seguir para o reconhecimento do que
André Seffrin afirma ser “A essência do livro”, que Paulo César Saraceni
captou e levou à tela.
Segundo François Jost e André Gaudreault,
É com Gerard Genette [...] que se considera ter iniciado
a narratologia como disciplina, ou pelo menos esse ramo
particular que o próprio Genette (1983, p.12) chamou de
narratologia modal, em oposição a uma narratologia temática
(no mesmo sentido, propôs-se a distinção entre narratologia
da expressão/narratologia de conteúdo) (JOST; GAUDREAULT,
2010, p. 23).
Para esses dois autores citados, o que lhes interessa para o livro
A Narrativa Cinematográfica (2010), que escreveram em parceria, é a
“narratologia modal”, a “narratologia da expressão”:
em razão mesmo da prioridade que concedemos à mídia – o
cinema, ou mais extensamente o audiovisual, por oposição à
literatura ou ainda à história em quadrinhos – por meio da
qual a narrativa é primeiro posta em forma e em seguida
ofertada (JOST; GAUDREAULT, 2010, p. 24).
André Gaudreault, analisando aspectos do nível intradiegético,
para tentar resolver certas questões narratológicas fundamentais, e
tomando o cinema como objeto de estudo, escreve:
Prenons le cas, fameux, des niveaux de récit ou de ce que
l’on pourrait appeler l’« intradiégéticité ». Cette configuration
diffère du tout au tout selon qu’on l’examine à partir du
récit scriptural ou du récit cinématographique. Dans un récit
scriptural, lorsqu’un premier narrateur (un narrateur premier)
raconte que tel ou tel de ses personnages raconte telle ou
telle chose, le sous-récit qui est ainsi produit est rapporté
par le moyen du même véhicule sémiotique que que celui
qu’utilise le narrateur premier: le langage verbal. [...]// Il
s’agit, on en conviendra, d’une situation tout à fait commune
et habituelle dans un récit scriptural, la langue, et aussi, bien
sûr, à son caractère monodique. [...]// Si pareille configuration
va de soi dans un récit scriptural, tel n’est pas le cas du récit
cinématographique. Il y a en effet pratiquement que « le film
dans le film » qui permette une situation dans laquelle une
instance de premier niveau cède la place à une instance de
deuxième niveaux. [...] C’est que le récit cinématographique
nous parvient par un média essentellement polyphonique,
qui s’appuie sur les cinq matières de l’expression que sont les
images mouvantes, les paroles, les mentions écrites, les bruits
et la musique (GAUDREAULT,1998, p. 325-327).
Na citação acima, André Gaudreault explica que a diferença
entre a narrativa escritural e a narrativa cinematográfica é marcada
pela diferença existente entre o narrador que conta uma história,
narrando o que uma personagem contou, utilizando o mesmo veículo
semiótico: a linguagem verbal. Isso se deve ao caráter monódico da
narrativa escritural em oposição ao caráter polifônico da narrativa
cinematográfica, onde há o “filme no filme” que permite uma
situação por meio da qual uma instância de primeiro nível cede
lugar a uma instância de segundo nível. Isso acontece por causa do
caráter polifônico da narrativa cinematográfica que se apóia sobre as
cinco matérias da expressão: as imagens em movimento, as falas, as
menções escritas, os ruídos e a música.
O trabalho com a linguagem que transpõe a literatura para
o cinema revela uma preocupação transcultural e dá a marca da
técnica cinematográfica de Paulo Cesar Saraceni para recodificar a
linguagem do romance, traduzindo-a para a linguagem do cinema sem
desrespeitar a autoria de Lúcio Cardoso. Nas últimas cenas do filme,
que coincidem com as últimas passagens do romance, em que Ana vai
aparecer, é que se pode observar aquilo que André Gaudreault afirma
sobre o narrador escritural e o narrador cinematográfico. No caso de
Paulo Cesar Saraceni, ele procura o máximo possível reproduzir a
narrativa escritural na narrativa fílmica, como se nota na cena em que
Ana se confessa com o Padre Justino. A fala de Ana no filme é uma
espécie de declamação do texto do romance.
A personagem Ana narra sua história autodiegeticamente, pois
ela protagoniza sua própria narrativa, ao mesmo tempo em que narra
homodiegeticamente sua história entrelaçada às histórias de Nina,
de Alberto e de André. No entanto temos de reconhecer no último
capítulo do romance, o capítulo “56 Pós-escrito numa carta de Padre
Justino”, o aspecto polifônico da obra, ainda que na linguagem teórica
de André Gaudreault, a narrativa escritural seja de caráter monódico.
Neste capítulo, o Padre desempenha a função heterodiegética na
medida em que narra os acontecimentos relativos à confissão de
Ana e à afirmação do diabolismo presente na casa dos Meneses; mas
também realiza a função autodiegética, porque narra seu próprio
protagonismo em sua última narrativa, que é também a última do
romance.
Essa análise das cenas finais em que aparece a personagem
Ana, que também é o estudo do último capítulo de Crônica da Casa
Assassinada, demonstra a fidelidade de Paulo Cesar Saraceni à
técnica narrativa desenvolvida por Lúcio Cardoso, dando ao seu filme
um caráter de cumplicidade narrativa com o romance e seu autor. Do
ponto de vista da ideologia, a narrativa cinematográfica de Saraceni
afasta-se da narrativa escritural de Cardoso, o que se pode verificar
na cena da confissão de Ana ao padre Justino, quando ela, em seu
leito de morte, tem seu pedido de perdão inicialmente negado pelo
Padre, mas que, minutos de hesitação depois, tem um gesto de
perdão, quando já é tarde demais.
No filme, Ana aparece lúcida e bem de saúde (o contrário do
que se lê na narrativa de Cardoso), porém dominada por uma
espécie de transe. Ela procura o Padre e faz seu relato de confissão
e de denúncia contra Nina, não demonstra arrependimento e pede
a condenação dela. O padre se afasta, recusando-se a conceder-lhe
o perdão, sem demonstrar nenhuma hesitação. A cena se fecha com
o grito de revolta de Ana contra a religião enquanto rasga o peito do
vestido. Pode-se verificar, assim, uma provável revisão da ideologia
própria do Cinema Novo nas suas duas primeiras fases, nas quais
se nota mais claramente os propósitos de denúncia da cena política
brasileira no final da década de sessenta, com sua adesão à ideologia
marxista que é, entre outras de suas características fundamentais, a
recusa às religiões. O afastamento ideológico de Saraceni da obra de
Cardoso não se dá do ponto de vista moral dominado pela ideologia
cristã católica, mas do ponto de vista político aderido pelo programa
ideológico do Cinema Novo, a denúncia social.
Assim, este filme é importante tanto pelo material para estudo
da narratologia fílmica quanto por propor uma revisão da obra
magnânima de Lúcio Cardoso no evidenciamento temático, por
meio do qual se pode entrever a existência de um programa literário
almejado por este célebre escritor mineiro, que Saraceni soube tão
bem encenar cinematograficamente, compondo a trilogia Porto de
Caxias, A Casa Assasinada e O Viajante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, L. Crônica da Casa Assassinada. 6 ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FERNANDES, E. Lúcio Cardoso: o drama existencial e o
demoníaco na Crônica da Casa Assassinada. Momento
Literário, n. 1. Araraquara: FFCLA, p. 7 – 9, abr. 1969.
GAUDREAULT, A. De la narratologie littéraire à la
narratologie cinématographique (et vice-versa). In:
DUCHET, Claude; VACHON, Sthéphane. La Recherche
Littéraire, objets et méthodes. Montréal: XYZ, 1998, p.
324 – 332.
GENETTE, G. Discurso da Narrativa. Trad. Fernando Cabral
Martins. Lisboa: Veja, 1983.
JOST, François; GAUDREAULT, A.
Cinematográfica. Brasília: UNB, 2010.
A
Narrativa
SEFFRIN, André. Uma gigantesca espiral colorida. In:
CARDOSO, L. Crônica da Casa Assassinada. 6. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
DESERTO: O ESPAÇO DO DESLOCAMENTO
Maria Cristina Vianna KUNTZ ( PUC-SP – Cogeae)
[email protected]
RESUMO: A obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, Prêmio
Nobel 2008, percorre um caminho de travessias desde seu
início. De origem mauriciana, soube o autor utilizar essa
origem “colonizada”, e “colonizadora-descolonizadora”
em favor de uma mundividência sem limites. Em Désert,
publicado em 1986, baseando-se em um fato histórico, ele
relata a caminhada de um povo árabe através do deserto
do Maghreb, no início do século XX e a repressão por eles
sofrida por parte dos franceses católicos. Paralelamente, a
história da menina Lalla, mostra o problema da imigração
rumo à Europa, fugindo aos costumes muçulmanos e à
pobreza. O espaço geográfico, o deserto, transforma-se
em matéria do fazer literário. Assim, esses deslocamentos
nos levam a refletir sobre conceitos de hegemonia, de
nacionalidade, de raça, de humanidade.
PALAVRAS-CHAVE: literatura Francesa;
Maghreb; imigração; povo árabe
colonização;
A obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, prêmio Nobel 2008,
percorre um caminho de travessias desde seu início. Nascido em Nice,
na França, em 1940, o autor é descendente de família mauriciana
pelo lado materno, e seu pai era inglês. A ilha Maurício foi importante
possessão francesa e atualmente é inglesa. Soube, pois, o autor
utilizar essa origem “colonizada” em favor de uma mundividência
sem limites. Ele próprio considera-se um “cidadão do mundo” porque
tendo nascido em país livre, cultivou dentro de si a sensibilidade para
compreender e representar essa antinomia colonizador/colonizado.
Após uma estréia de contestação e revolta nos anos 60, (em
1963,– Le Procès verbal ), na década seguinte, embrenha-se na
mata panamenha e depois vive uma experiência mística durante
uma pesquisa junto aos índios no México. A descoberta de valores
diferentes dos consagrados no mundo civilizado ocidental, bem como
um profundo conhecimento das injustiças e massacres sofridos pelos
povos indígenas levará o autor a dar voz às populações marginalizadas,
aos povos dominados
O romance Désert foi consagrado pela crítica com o Grand Prix
Paul Morand de l’Académie Française. Neste romance, publicado
em 1980, o autor baseia-se em um fato histórico. Desde meados do
século XIX, a França empenhava-se em estender suas colônias ao
Norte da África. A Argélia já estava conquistada desde 1830. Mas o
Marrocos empenhava-se para resguardar ainda sua liberdade apesar
de todas as pressões econômicas impostas pelos países europeus,
principalmente em relação à França e Espanha.
A partir de 1906, esse país do Maghreb encontrava-se em uma
anarquia generalizada; com a concordância do sultão, pelo tratado
de Algesiras, foi concedida carta branca ao governo Francês para
conter as tribos revoltosas do país. As repressões culminarão com o
massacre final e o estabelecimento do protetorado Francês em 1912.
As tribos do Sahara ocidental se insurgem sob a liderança do xeique
Ma El Aïnine; que lidera atentados contra importantes personalidades
francesas. Em resposta, serão reprimidas definitivamente com dois
acontecimentos principais que serão relatados em Désert: A batalha
de Tadla (junho de 1910), e o bombardeio de Agadir (março de 1912).
A morte de Ma El Aïnine (em Tiznit, em 1º. outubro de 1910) que
também é contada no romance contribui para o enfraquecimento dos
revoltosos e sua derrota final. O romance segue cronologicamente
esses acontecimentos que correspondem à História da França
colonial.1
Entretanto, segundo Marina Salles (1991, p.16), Le Clézio afastase da versão oficial, substituindo-a pela versão de um aventureiro
francês, Camille Doucey - morto em 1899 –– que em seu diário de
viagem conta o encontro com o xeique Ma El Aïnine que teria “a
doçura no seu olhar”. Ele será a personagem principal da primeira
história de Désert. O autor confere, pois, certa dose de parcialidade à
sua história real.
1 - A estrutura do romance
De início, chama-nos a atenção a diagramação com justificativa
dupla à direita que, nos dois primeiros capítulos da narrativa, difere
da outra história, a história de Lalla, que tem início à página 75.
Aponta Marina Salles (1991, p.21) que esse desenho tipográfico
poderia corresponder à “l’écoulement de la caravane dans l’espace
de la page” que é branca ou diríamos nós também, “o escorregar”
no deserto de areia branca. Poderia ainda corresponder, lembra a
estudiosa, a uma “marge de silence” apontada por Genette em Figures
II, que conferiria à história dos homens azuis uma “forme poétique”,
e assim os aproximaria dos poemas épicos, das canções de gesta, dos
1
TOBIE ; MOYNIER. L’Histoire coloniale. v.2, Paris : Colin,
1991, p.281, apud SALLES, Marina, 1999, p.15.
textos sagrados.
Desta forma, tem início a caminhada do povo árabe através do
deserto. A multidão, o calor escaldante, a miséria, a poeira inundam
a narrativa com uma eloqüência asfixiante. O deserto do Sahara
ocidental será o espaço do massacre perpetrado pelos franceses
católicos. A caminhada é, porém, interrompida pela história da menina
Lalla, descendente daquele mesmo povo, passadas duas gerações.
Assim, no romance, essas duas histórias alternar-se-ão construindo
uma significância final. Essas histórias transcorrem no mesmo espaço
- o deserto - com um intervalo de duas gerações. A primeira história
com marcas do real – a data, o local, personagens e acontecimentos;
e a segunda uma narrativa inteiramente ficcional.
2 - A primeira história
A primeira história é a história do povo marroquino, nômades
que vieram do Saguiet, ao Sul, rumo ao vale Vermelho, no Norte,
justamente para fugir às forças disciplinadoras francesas. História do
povo colonizado, explorado e dizimado (como outros tantos) pelo
colonizador.
O incipit dessa primeira narrativa já determina ao leitor o clima
que deverá perpassar o romance:
Saguiet El Hamra. Hiver 1909-1910
Ils sont apparus, comme dans un rêve, au sommet de la dune, à
demi-cachés par la brume de sable que leurs pieds soulevaeint
(LE CLÉZIO, 1980 : 7).
De um lado, o lugar preciso e a data indicam a correspondência
ao real e de outro lado a comparação “comme dans un rêve” sugere
ao leitor a perspectiva da ficção, bem como o tom da narrativa. De
fato esta primeira parte do romance mostra-se como um “mauvais
rêve”, um verdadeiro pesadelo, fantasmagórico à medida que ressalta
um sofrimento humano quase inimaginável, torturados os homens
continuamente pelo sol e calor, pela sede e pela fome.
Liderados por Ma El Aïnine, o xeique que fundara a cidade santa
de Smara, seguiam lentamente através do deserto. Esse chefe de
realidade atestada, sob o olhar do autor, reveste-se de um poder moral
e espiritual insuperáveis. Ele conduz o povo e acolhe desde o mais
ínfimo de seus seguidores até os grandes chefes. Ele se comprometera
com seu pai a cumprir a missão junto a seus discípulos para se oporem
custasse o que custasse, a todo invasor estrangeiro. Trata-se, pois, de
uma luta pela liberdade e pela preservação da identidade do povo
árabe e da integridade de seu território. Entretanto, apesar de seu
esforço e daquela gente, Ma El-Aïnine antevia todos os percalços e
previa que caminhava “rumo a seu fim”.
Dentre essa multidão, destaca-se o adolescente Nour, que é
filho de uma “chérifa”.2 O leitor acompanhará sua trajetória iniciática
que culminará com a bênção pelo xeique, de quem ele herdará o
carisma. No principio, ele se preocupa apenas com sua família, o
velho pai e a velha mãe. Pouco a pouco, aproxima-se de Ma El-Aïnine
e deixa-se fascinar por sua humildade e grandeza. Aprende com ele a
solidariedade, o serviço ao próximo e a lealdade. Serve de guia a um
velho cego, sobrevivente de um ataque de soldados franceses.
Assim, esses nômades desenham grandes percursos, atravessam
grandes extensões de areia do deserto infindável : « Ils marchaient
sans bruit dans le sable, lentement, sans regarder où ils allaient... »
2 Chérif- prince chez les Arabes (ar. Charif) cf. Petit Robert, Paris : Dictionnaires Petit
Robert, Paris, 2002.
(LE CLÉZIO, 1980, p.7).3 E é de fato muito lentamente que o leitor
acompanha essa caminhada infindável: a fome crescente, a miséria;
as condições desumanas em que vivem, comparáveis às de animais:
“un troupeau d’hommes et de bêtes” (LE CLÉZIO, 1980, p.16).4 Dia
após dia, durante semanas e meses, “Les hommes et les femmes
vivaient ainsi en marchant sans trouver de repos” (LE CLÉZIO, 1980,
p.24).5
Após a primeira interrupção da narrativa que dá lugar à história
de Lalla (146 páginas), seguem-se os dois capítulos que relatam os
acordos celebrados entre o filho de Ma El Aïnine e os franceses, a
contratação de mercenários, a batalha arrasadora e traidora dos
interesses árabes e finalmente o pacto que cria o protetorado Francês
do Marrocos. A pungente narrativa da morte de Ma El Aïnine, em
presença apenas de sua mulher e de Nour, constitui uma prolepse
do massacre final de todo o povo árabe. O abandono do xeique por
parte de seu povo e traído por seu próprio filho - o Leão de Marrakesh
– transforma-se em momento trágico e em alegoria do sofrimento
de todo o mundo árabe, enganado pelos colonizadores que lhes
ofereceram “progresso, ordem e justiça”.
O romance não termina com a história de Lalla e sua inesperada
volta à terra natal (16 páginas), mas com o massacre final contra os
habitantes de Agadir, ocorrido em 1912, sendo os guerreiros chefiados
pelo traidor, um dos filhos de Ma El Aïnine. Os poucos árabes que
restam, dentre eles Nour, se encaminharão rumo ao Sul.
O final “aberto” do romance aponta, portanto, para a continuação
da caminhada desses povos rumo à liberdade e em busca de uma vida
3 “eles caminhavam sem barulho na areia, lentamente, sem olhar para onde iam”
4 “uma tropa de homens e de animais”
5 “Os homens e as mulheres viviam assim caminhando sem encontrar repouso.”
mais humana. Esse final contando a história mais antiga, o passado de
lutas do povo árabe, revela o peso histórico atribuído pelo autor à
situação atual daquele povo.
3 - A 2ª. história
Com o título “Le bonheur” – “A felicidade”, tem início à página
75, a segunda história. A menina Lalla é a protagonista. Ela vive em
uma cidade chamada Cité, descrita como “uma dezena de barracos de
madeira e de papelão”,6 na periferia de uma grande cidade litorânea,
no Marrocos. Órfã de pai e mãe, ela mora com a tia e os primos desde
menina. Amante dos insetos, da natureza, da liberdade e da vastidão
do deserto, ela terá como grande amigo, Naman, o contador de
muitas histórias que a incentivarão a buscar novos horizontes.
Em companhia de um rapazinho surdo-mudo, Hartani, um pastor
“chleuh”, Lalla percorrerá todos os inóspitos espaços do deserto
e descobrirá seus segredos. Próximos à natureza adversa, ambos a
dominam, reinam sobre o mundo até o horizonte, onde a vista pode
alcançar. Numa cumplicidade e ingenuidade cativantes, crescem em
amizade e sabedoria até que despertam para o amor que dará frutos:
Lalla conceberá um filho. Entretanto em vão ela procura reencontrar
o deserto de seus ancestrais. Sua tia lhe revelará sua origem que
permitirá ao leitor unir as duas histórias: Lalla é filha de uma “chérifa”,
isto é, uma “princesa árabe”, como o menino Nour. Ambos são, pois,
descendentes de Al-Azraq, “o Homem Azul”.
Estabelece-se então o elo entre as duas narrativas. A história de
Lalla prossegue até sua adolescência, quando, fugindo à miséria e a
6 «une dizaine de cabanes de planches et de papier goudronné» (p.87).
um casamento imposto, parte para Marselha. Novamente interrompese a narrativa e tem-se a continuidade à trajetória da caravana em
direção aos poços de Hausa, de Faunat, de Yorf e finalmente a chegada
à cidade de Taroudant.
“A vida junto aos escravos” é o título da segunda parte da
história de Lalla que conta suas aventuras na cidade francesa de
Marselha, onde já a esperava sua tia. Ela vai trabalhar em um hotel do
submundo, em condições degradantes. É então que se desmistifica o
sonho da possibilidade de melhoria de vida em uma grande cidade,
sonho de esperança que alimentara toda a sua infância. Assim,
mostra-se a vida da escravidão “dissimulada” a que são submetidos
os imigrantes e todos os marginalizados, os excluídos da sociedade. E
Lalla conhece outra realidade e um medo que jamais experimentara
antes, no deserto:
Elle ne savait pas bien ce que c’était la peur, parce que là-bas,
chez Hartani, Il n’y avait que des serpents et des Scorpions, à
la riguer de mauvais esprits qui font des gestes d’ombres dans
la nuit ; mais ici, c’est la peur du vide, de la détresse, de la
faim, la peur qui n’a pas de nom et qui semble sourdre des
vasitas entrouverts des sous-sols affreux, puants, qui semble
monter des cours obscures, entrer dans les chambres froides
comme des tombes, ou parcourir comme un vent mauvais
ces grandes avenues où les hommes sans arrêt marchent,
marchent, s’en vont, se bousculent, comme cela, sans fin, jour
et nuit, pendant des mois, des années, dans le bruit inlassable
de leurs chaussures de crêpe, et montent dans l’air si lourd leur
grondement de paroles, de moteurs, leur grognement, leurs
halètements. (LE CLÉZIO, 1980: 279).
Essa vida das grandes cidades, essa prisão a que se submetem os
pobres é vivida por Lalla e denuncia as condições de sobrevivência a
que todos estamos condenados nesta civilização ocidental.
Para mostrar a “única saída”, um repentino e espetacular
encontro casual faz com que um fotógrafo de sucesso transforme
Lalla em modelo fotográfico. Torna-se famosa, viaja, ganha muito
dinheiro, mas isso não a satisfaz. Um dia sofre uma grande vertigem
em uma boîte onde estava dançando. Resolve então abandonar tudo:
o benfeitor, fama, sucesso, dinheiro. Voltará às suas origens para ter o
seu filho da mesma maneira que ela própria nascera: debaixo de uma
árvore, sobre suas raízes. Junto à natureza, ela poderá reconquistar
sua liberdade e seus valores ancestrais, em oposição aos valores
materiais que fora procurar na cidade francesa.
É aí que se encontra a reflexão do autor: opondo a vida “civilizada”
à primitiva, ele questiona a chamada “civilização ocidental” e os
estragos e injustiças que em seu nome são perpetrados. Não é
o deserto que nos apresenta miragens, mas os falsos deuses da
civilização.
4 - Narrativa especular
A estrutura do romance que compreende a alternância entre as
histórias é denominada “narrativa especular” porque o autor, implícita
ou explicitamente, coloca as narrativas em espelho, refletindo-as uma
à outra. Lucien Dällenbach ensina que sua função essencial é “fazer
ressaltar a inteligibilidade da obra” (DÄLLENBACH, 1977, p.18).
Uma história reflete a outra em um movimento infinito en
abyme, (“em abismo”). Por isso mesmo essa técnica propicia o
aprofundamento do significado do romance, e mostra a reflexão do
autor sobre a própria criação (metaficção). Esse jogo de narrativas
cria um “jogo ótico que reúne no interior da obra realidades que lhe
são (fictivamente) exteriores” (1977, p.22).7 Assim, a história de Lalla
reflete-se continuamente na caminhada do povo árabe através do
deserto e a condição miserável em que vive a protagonista é ainda
fruto do massacre histórico, relatado na primeira história. Em Désert,
esse jogo ótico será, pois, fundamental para a compreensão do
romance.
A ordem das histórias no romance também é significativa.
Conforme apareça no início, no meio ou no fim, a narrativa especular
pode ser prospectiva, retro-prospectiva ou retrospectiva. Em Désert,
a história secundária se apresenta prospectiva porque aparece logo
no início Lalla. Seu lugar proeminente (em primeiro lugar na ordem
narrativa) estabelece sua importância fundamental na compreensão
do romance como explicação da condição do povo árabe. E como
dissemos, fechando a narrativa com essa história secundária, do
passado daquele povo, o autor ressalta as marcas históricas que
determinam até nossos dias a inserção desse povo no contexto
mundial.
A aceleração que se verifica nos últimos capítulos (a partir da
p.385) e a alternância entre as histórias de forma mais rápida indicam
a urgência, a premência da problemática apontada pelo autor: O
vaivém entre passado e presente mostra claramente a causa e efeito
a que se atrelam esses povos que foram submetidos à colonização
francesa. O autor privilegia a história de Lalla (271 páginas), mas
fundamenta-a na realidade, no passado do povo árabe (127 páginas).
Sem explicar ou tergiversar sobre esta última, ele ressalta esse
passado que determina as migrações, a pobreza e as dificuldades a
7
“un jeu optique qui réunit à l’intérieur de l’oeuvre des réalités
qui sont (fictivement) extérieures à elle ».
que os povos árabes se vêem condenados ainda hoje.
Trata-se, pois, de um romance especular cuja estrutura constrói
um significado de múltiplas facetas seja no plano social e histórico,
seja no plano existencial, seja no plano literário.
5 - O deserto
Em Gens de Nuages de 1997, romance de aventuras que escreveu
com sua mulher, Jemia, Le Clézio conta que, já com treze anos, quando
esteve no Marrocos pela primeira vez, ele escrevera um romance de
aventuras que se passava no deserto. Assim, muito cedo, esse espaço
imenso já o fascinava.
O dicionário de símbolos indica-o como “lieu d’indifférentiation
originelle, une étendue stérile sous laquelle doit être cherchée la
Réalité » ( Dictionnaire de Symboles. Ed. Lafont, p.349 apud SALLES).
Assim, para Le Clézio, o deserto é o lugar da solidão e da aridez, mas
também o lugar onde o homem pode vencer seus demônios, sendo
também o local de purificação dos ascetas, monges, santo (Santo
Antonio) e até de Cristo (SALLES, 1991: 12).
No deserto, despertados para o outro, em épocas diferentes, Lalla
e Nour, crescem espiritualmente apesar da rudeza da vida. A esta,
contrapõem-se o horizonte infindável, a largueza, o infinitamente
grande que une o céu e a terra. Nesse sentido, o autor aponta para
uma possibilidade positiva da vida se houver uma reflexão sobre a
condição humana e a busca de identidade e espiritualidade.
Por outro lado, uma leitura pós-moderna propõe uma reflexão
sobre o homem aniquilado, a falta de perspectiva, o nada, a falta de
resposta e ainda a ameaça de extinção:
En ces temps où les formes d’anéantissements prennent
des dimensions planétaires, le désert, fin et moyen de la
civilisation, désigne cette figure tragique que la modernité
figure à la réflexion métaphysique sur le néant. Le désert
gagne, en lui nous lisons la menace absolue, la puissance du
négatif, le symbole du travail mortifère des temps modernes
jusqu’à son terme apolcalyptique (LIPOVETSKI, p.49-50).
Lipovetski lembra ainda a outra forma de deserto que seria
aquela também apontada por Le Clézio em seu romance, percebida
por Lalla em sua estada em Marseille: o deserto das cidades, a solidão
de viver “amontoado” em meio a tantos outros homens, a falta de
perspectiva na existência cotidiana, o homem esmagado pelo excesso
de trabalho, pela luta incessante, pela insegurança, pela violência.
Conclusão
Portanto em Désert, o espaço geográfico se transforma em
matéria mesma do fazer literário. De cenário, o deserto passa a ser
elemento constitutivo da narração.
A travessia do Mediterrâneo feita por Lalla transforma-se em
alegoria de todos os povos do Maghreb e ainda de todos os imigrantes
que são movidos pelas mesmas necessidades da menina em busca de
uma possibilidade de vida melhor. Ela sobreviverá, mas retornará ao
Marrocos para reencontrar seu povo.
Désert nos leva, pois, a pensar sobre as explosões migratórias,
esta “nova pobreza”, a exclusão das minorias, própria de um
mundo globalizado. Por outro lado, faz-nos considerar as causas
e conseqüências dos acontecimentos históricos e das injustiças
perpetradas em nome da civilização e da paz. Assim, esses
deslocamentos nos levam a refletir sobre conceitos de hegemonia,
de nacionalidade, de raça, de humanidade.
Como classifica Claude Cavallero: a obra de Le Clézio é: “Oeuvre
mouvante, plurielle s’il en est, placée sous le signe ambivalent du
déplacement, du décalage et du métissage [...] elle montre les
maux profonds de notre époque – la nouvelle pauvreté, l’explosion
migratoire, mondialisée, l’exclusion des minorités ». (CAVALLERO,
2009).8
Referências Bibliográficas
CAVALLERO, Claude. L’étoile. CAVALLERO, Claude (dir.).
L’Europe, No. 957-958, Janv-Fév. 2009.
DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire : essai sur la
myse en abyme. Paris : Seuil, 1977.
LE CLEZIO, JMG. Désert. Paris : Gallimard, 1980, p.439.
LIPOVETSKI, Gilles. L’ère du vide. Paris : Gallimard, 1983,
p.313.
SALLES, Marina. Étude sur J.M.G.Le Clézio : Désert. Paris :
Ellipses, 1999, p.89.
8 “Obra movente, plural se assim for, colocada sob o signo ambivalente do
deslocamento, da defasagem e da mestiçagem [...] ela mostra os males profundos
de nossa época – a nova pobreza, a explosão migratória, globalizada, a exclusão das
minorias”. (trad. nossa).
LETRA. IMAGEM. CINEMA.
Paulo Custódio de OLIVEIRA (UFGD/FACALE)
[email protected]
RESUMO: O presente trabalho trata da leitura que o filme
Quanto vale ou é por quilo? (2005), de Sérgio Bianchi faz
do conto “Pai contra mãe” de Machado de Assis, publicado
no livro Relíquias da casa velha (1906). A proposta central
será demonstrar o momento em que o Cinema tenha
sido motivado a desenvolver mecanismos internos (de
conteúdo e/ou de forma) condizentes com seu campo
semiótico, constituindo-se como obra independente.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Cinema; intermidialidade.
Introdução
A crescente utilização das imagens visuais em toda sorte de
mídias de nosso tempo tem aumentado o número de estudiosos
preocupados com o assunto. Tais estudos revelam a necessidade de
se considerar a relação entre as artes literárias e visuais como parte
integrante de um conjunto de saberes que garantem o exercício da
cidadania. Notadamente no Brasil que, à maneira da América Latina
de modo geral, adequou-se mal à cultura letrada europeia.
Todavia, ainda há muita divergência sobre a validade de um
trabalho crítico sobre isso. A crítica do pós-guerra está dividida, para
usar uma dicotomia criada por Umberto Eco, entre os “apocalípticos”
e os “integrados”. Os primeiros enfatizam os problemas políticos e
ideológicos gestados em uma sociedade fortemente marcada pela
presença do instrumental tecnológico (cinema, televisão e vídeo).
Para estes a arte está em agonia. Transformar um livro em filme é
desqualificá-lo. Os integrados, porém, defendem a existência de
um acordo, moldado à maneira da arte, ressaltando a indiscutível
onipresença da tecnologia no cotidiano do homem pós-moderno,
afirmando ser interessantemente fértil a constante alteração dos
conceitos e das obras de arte.
Uma relação dialética, a ser conseguida com a demonstração
da literariedade do conto “Pai contra mãe” e da “cinematografia”
do filme/documentário de Sérgio Bianchi oportunizaria abordagens
mais complexas do fenômeno. Se não forem mantidos os espaços
originais, a abordagem terminará por considerar o filme, assim como
a linguagem literária, como simples condutores de significado. Um
grande desvio, se se considerar que as ilações mais razoáveis afirmam
ser fundamental o estudo da matéria e da forma dos objetos estéticos.
Portanto, tomar o filme como mero suporte do significado
do conto é um erro. Partimos do princípio de que a transposição/
tradução de um conteúdo construído com letras para outras formas de
expressão altera substancialmente o resultado final. A temporalidade
da Literatura e a espacialidade da imagem visual, quando articuladas
em formações discursivas, alteram de maneira profunda a fruição
estética.
Cinema e realidade
Walter Benjamin afirma no texto “A obra de arte nos tempos
de sua reprodutibilidade técnica” que o cinema provocou alterações
nas formas de se perceber a realidade. Ele defende a ideia de uma
sétima arte refinadora de nossa percepção, o que equivaleria dizer
que “aumente nossa realidade”. De certa maneira, essa afirmação
recebe grande consenso. Sobretudo por parte dos apreciadores dos
trabalhos desse grande crítico da Escola de Frankfurt. O texto que
segue concorda com isso. Os conceitos mais incisivos desse famoso
artigo de Benjamin são tomados como ferramenta de abordagem do
filme Quanto vale ou é por quilo?.
A intertextualidade
A narrativa do filme Quanto vale ou é por quilo faz um paralelo
entre o antigo comércio de escravos e a atual exploração da miséria
pelo marketing social, com o intuito de mostrar as semelhanças entre
as injustiças dessas duas épocas. O filme, de 2005, conta com o elenco
composto por Ana Carbatti, Cláudia Mello, Herson Capri, Caco Ciocler,
Ana Lúcia Torre, Sílvio Guindane, Miriam Pires, Lázaro Ramos, Leona
Cavalli, Milton Gonçalves, Zezé Motta e Antônio Abujamra.
As histórias principais do filme são intercaladas por pequenos
relatos e crônicas ambientadas no período da escravidão. São
acompanhadas por locuções que vão se sobrepondo às imagens e
ilustrações contextualizadoras do século XVIII. É um filme forte,
bem ao gosto dos realistas mais aguerridos (nesse sentido, com
alguma distância das propostas estéticas do Machado de Assis mais
conhecido), com histórias verídicas descritas em documentos oficiais
dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. O tema é polêmico:
a falência das instituições do terceiro setor no Brasil. A solidariedade
das ONGs são de fachada. Estão sempre à cata de lucro, seja ele social,
político ou econômico. Uma “indústria da miséria” extremamente útil,
que desde ontem chafurdou-se com a comercialização dos escravos
e hoje se esbalda na criação dos intitulados projetos de assistência
social.
Problemas de suporte midiático
O filme é um articulador de campos semióticos distintos. O que
antes estava separado pelas categorias de tempo (letra) e espaço
(imagem), ali se encontra amalgamados. Percebe-se um diálogo crítico
constante do filme com a fotografia, mais precisamente a jornalística.
As personagens são constantemente convidadas a “fazer uma pose
para foto”. Isso torna a película interessante para se discutir tanto
a temporalidade da letra quanto a espacialidade da imagem, uma
vez que cinema pode ser entendido, de uma maneira simplificada,
como fotografias em diálogo. Esse movimento, fruto de uma intenção
mimética, questiona o exercício da verdade como transcendência
pura.
O filme se inscreve entre outros, já numerosos no cinema
brasileiro, que participam de denúncias sociais. Todos parecem
granjear a simpatia do espectador por serem muito parecidos com
reportagens. Tal é o caso de filmes como Bicho de sete cabeças,
Carandiru, O invasor, Cidade de Deus. Como estes exemplos, o de
Bianchi pode ser inscrito na linha da crônica, um gênero bastante
ambientado no jornal.
No filme, as narrativas migram dos tempos da escravidão para
o século XXI com relativa desenvoltura. Apenas planos fechados
separam os dois tempos e não há preparação maior que o figurino
e o cenário para nos orientar a travessia. Coerentemente, reservouse a locução de Milton Gonçalves, ator negro de grande projeção
na Televisão brasileira, para as histórias ambientadas no Brasil
escravocrata do século XVIII e as de Valéria Grillo e Jorge Helal, ambos
brancos, para as cenas ocorridas em nosso tempo.
Nesses casos em que apenas aparece a voz do narrador orientando
nosso olhar busca-se, como já se disse antes, histórias retiradas
de documentos oficiais guardados no Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro. De uma forma geral, o filme parece aspirar aceitação como
ícone da realidade, ao mesmo tempo em que reconhece sua condição
de relato. Por isso lança mão de questionamentos técnicos dessa
natureza, informando a platéria de sua condição ficcional. Almejando
a autenticidade perdida? Procurando o antigo status da arte como
instauradora da verdade? Impossível afirmar peremptoriamente,
mas é claro o intuito de reconstituir a aura roubada pela consciência
do signo.
Personagens tradicionais
A personagem machadiana é explorada como metáfora de uma
ironia existencial, aliás é muito bem aproveitada no filme (inclusive
usando-se os mesmos nomes: Candinho, Arminda, Tia Mônica).
A narrativa é quase fatalista. O personagem principal, Candinho, é
conduzido pela criação sem muitos apelos deterministas. O narrador
demonstra um grande distanciamento. Alguma simpatia pode ser
entrevista, mas nada de pieguices passionais.
Essa posição que conduz serenamente o movimento literário é
fiel ao conceito de mímesis clássico, idêntico ao de Aristóteles, como
apresentado em sua Poética:
se a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa
seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais ao reproduzir
as formas peculiar dos modelos, respeitando embora a
semelhança, os embelezam. Assim também, imitando
homens violentos ou fracos, ou com tais defeitos de caráter
devem os poetas sublimá-los sem que deixem de ser o que
são: assim procedeu Homero,que fez bom e semelhante a nós
Aquiles, paradigma da rudeza. Esta leitura está de acordo com
a doutrina: para ser herói de uma tragédia, Aquiles tinha de
ser bom, isto é obedecer ao código da virtude heróica [sic];
mas também devia ser de algum modo semelhante a nós; pois
do contrário, jamais suas aflições viriam despertar em nós as
emoções trágicas de terror e piedade (ARITÓTELES, s.d. p.
263).
Para criar a personagem, Machado recorre à observação de
outros seres, como a maioria dos autores realistas. Mas não é
despropositado lembrar que ela só existe enquanto palavras e não
existe fora da obra.
A partir das palavras do narrador que finge distinguir-se das
personagens, nos tornamos oniscientes da trama. No conto de
Machado de Assis, a imagem criada pela palavra nos coloca diante dos
aparelhos utilizados para ‘’corrigir’’ os escravos. Mas o cineasta conta
com o benefício da imagem. Ele coloca os escravos utilizando esses
aparelhos, alcançando resultados mais impactantes. A narração de
Milton Gonçalves, sem qualquer traço de compaixão na voz, também
torna a imagem do filme mais incisiva. Não somente vemos a máscara
de flandres, mas os próprios escravos em sofrimento.
Entre realidades
Trafegando pelo modelo já instituído de personagem, o cineasta
progride na interação com a assistência. Seu tradicionalismo forja
uma identificação. Assim, nos encontramos com simplicidade com a
personalidade de Candinho, quando Machado de Assis o descreve:
“Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem
ofício, carecia de estabilidade”. Seu modo de ser, seu contorno bem
definido e limitado é trazido integralmente para o filme, capturando
nossa atenção. As personagens de Clara, noiva de Candinho, sua
tia Mônica e a escrava Arminda, parecem mais reais, entre outros
motivos porque não há quaisquer desvios no fundamento imagético
buscado.
De ordinário, Machado se dedica mais à construção de
uma interioridade psicológica que à descrição da miséria física
e circundante. Esse grande elemento da narrativa machadiana
constitui-se um empecilho para a transformação de sua obra em
filme. A necessidade de trafegar pela imagem visual conclama os
sentidos a considerarem concretas quaisquer metáforas fílmicas de
estados psicológicos.
Na transposição de uma época para outra, frequentemente o
diretor usa a mesma atriz. No filme, vemos Arminda, personagem de
Ana Carbatti nos dois tempos. O recurso é simples. Estabelece apenas
o fato de o filme contar com essa possibilidade visual que o conto não
dispõe. Essa tradução não complica a aproximação das duas obras.
Muito embora, também não acrescente muita coisa a ambas.
A personagem cinematográfica
No livro, A Personagem de Ficção, organizado por Antonio
Candido (2005), o professor Paulo Emílio Salles Gomes explica que
a personagem cinematográfica, devido aos recursos narrativos do
cinema, adquirem maior mobilidade no tempo e no espaço que as
dos romances. Mas existem algumas diferenças, pois no filme apesar
da impressão de uma narração objetiva, na qual o narrador se retrai
para dar lugar às personagens e suas ações, a imagem toma posição
no espaço físico e não no intelectual. No romance as personagens
são feitas de palavras, no filme são tomadas como se fossem pessoas.
Esse fato faz com que a definição física imposta pelo cinema reduza
a liberdade do espectador na imposição da imagem, porque na
maior parte das vezes os atores são muito conhecidos, dificultando
a abstração.
Há quem veja nisso, nos tempos de Walter Benjamin (1980,
p.25), um grande problema. O próprio articulista alemão chega a citar
a controvérsia. Ele apresenta Duhamel, autor de um texto chamado
Scéne de la vie future, que reclama irritado: “já não posso meditar
no que vejo. As imagens em movimento substituem meus próprios
pensamentos”. Não poder controlar a narrativa toda no “seu tempo”
é um grande suplício para os críticos.
Quando a obra literária é transposta para o cinema, ocorre uma
tentativa de ‘’tradução’’ do universo literário para a tela, surgem
muitos problemas já que, na narrativa escrita o leitor cria na sua
imaginação um universo imagético sem limitações, ao passo que no
filme as imagens parecem substituir o pensamento do espectador.
Na linguagem do cinema toda informação deve ser visível ou
audível como o espaço físico ambientado e as caracterizações dos
personagens. O cinema é uma forma de expressão na qual o tempo
das informações é definido pelo cineasta, ao contrário da leitura onde
se pode estabelecer um ritmo independente do da criação.
Na transposição da obra devem ser observados os pontos
de distanciamento entre essas linguagens. Por isso é complicado
assumir a palavra “tradução” para esses casos. Mais adequada seria a
“recriação” de uma leitura crítica e profunda do mesmo.
Todavia,
percebem-se
claramente
as
propriedades
verdadeiramente cinematográficas quando o tempo e o espaço se
superpõem. A cena em que a personagem Mônica, representada pela
atriz Cláudia Mello, está na feira com sua patroa é um bom índice
desse momento produtivo do cinema. No devaneio da funcionária ela
se desloca para o papel de patroa. Em seu sonho, ela se vinga de todos
os seus desafetos da vida real. Percebe-se nitidamente as pressões
anímicas sofridas por ela. Não de uma maneira explicativa, onde um
discurso revela um significado, mas uma forma expressiva na e pela
da visualidade da imagem em movimento. Em poucos movimentos,
Sérgio Bianchi atualizou centenas de páginas escritas por Freud sobre
a não racionalidade dos anseios humanos.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Traduzido por
Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.
BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas
de reprodução. In. OS PENSADORES. Traduzido por José
Lino Grünnewald [ET. all]. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
GOMES, P. E. S. A personagem cinematográfica. In:
CANDIDO, Antonio [et al]. A personagem de ficção. São
Paulo: Perspectiva, 2005.
Filmografia
QUANTO vale ou é por quilo?: Direção Sérgio Bianchi,
Produção Patrick Leblanc e Luís Alberto Pereira. Roteiro:
Sérgio Bianchi, Eduardo Benaim e Newton Canitto,
baseado no conto “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis.
Intérpretes: Ana Carbatti, Cláudia Mello, Herson Capri,
Caco Ciocler, Ana Lúcia Torre, Sílvio Guindane, Myriam
Pires, Lena Roque; Lázaro Ramos, Leona Cavalli, Umberto
Magnani, Joana Fomm, Marcélia Cartaxo, Odelair
Rodrigues, Ariclê Peres, Zezé Motta, Antônio Abujamra,
Ênio Gonçalves, Calara Carvalho, Noemi Marinho, Caio
Blat, José Rubens Chachá, Mílton Gonçalves (locução),
Valéria Grillo (locução), Jorge Helal (locução); Agravo
Produções Cinematográficas S/C Ltda, Distribuição:
Riofilme-Brasil, 2005. 1 filme (104 min).
HÉLIO SEREJO: FÁBULA DO LUGAR
OU VOZES NA FRONTEIRA
Paulo Sérgio Nolasco dos SANTOS (UFGD/CNPq)
RESUMO: O artigo propõe uma análise crítico-cultural
da obra do escritor Hélio Serejo, o regionalista sulmato-grossense da fronteira Brasil-Paraguai, baseada na
recente publicação de Obras completas de Hélio Serejo
(2008). Desenvolve-se uma leitura crítico-comparativa
dos mais de sessenta volumes do escritor, pondo em
perspectiva o locus de enunciação do próprio escritor,
simultaneamente à diversidade e riqueza dos loci
de discursivização entranhados de regionalismos e
crioulismos caracterizadores de um “chão” cultural e /
ou ethos próprios, traduzidos numa oralidade que se
dá sobre o “chão” de uma região cultural particular, do
“local” fronteiriço do escritor. Ou seja, a partir do corpus
de análise, propõe-se uma apreciação de textos e livros
representativos como Pelas orilhas da fronteira (1981)
–, alguns inéditos como Fiapos de regionalismos (2004),
emblemático na produção de Hélio Serejo.
PALAVRAS-CHAVE: Hélio Serejo; Regional; Estudos
Culturais; Literaturas de fronteiras
Começo com um parêntese. O título deste simpósio,
sintomaticamente intitulado “Figurações do literário: para além
das fronteiras”, é claro convite para discussão do que proponho
nos limites deste texto. Quero dizer que, a partir deste locus
enunciativo advêm sendas e veredas indiciadoras de “Caminhos da
fronteira”, uma das regiões que, ao lado da de “Bonito / Serra da
Bodoquena-MS”, constituem regiões de limites com o Paraguai e a
Bolívia, respectivamente, além de a primeira integrar-se a uma das
sub-regiões da Grande Dourados, onde recentemente se criou e
implantou a Universidade Federal da Grande Dourados e de onde eu
venho. Caracterizada pelos seus atrativos de um contexto histórico
ligado à Guerra da Tríplice Aliança, magníficas quedas d’água, rios
de águas cristalinas, trilhas, grande diversidade da fauna e flora,
“Caminhos da fronteira” forma um exuberante cenário ecológico.
Dessa região, vetorizada pelos sintagmas “caminhos” e “fronteiras”,
assim flexionados, que retomamos como espaço de intersecção em
sua ampla significação, expandida em ressignificações tantas sobre
o tópico da “fronteira” – caminhos da fronteira –, queremos desde
logo descrever dois aspectos substantivos de sua identidade e
representação cultural.
O primeiro, refere-se à sua profícua produção literária
despontando a recente edição de Obras completas de Hélio Serejo,
de onde extraíamos os livros intitulados Pelas orilhas da fronteira
, de 1981, e Fiapos de regionalismos , de 2004, bem como a obra
fundadora de Hernani Donato, Selva trágica: a gesta ervateira no
sulestematogrossense, de 1959. Ambos os escritores e respectivas
obras ilustram o contexto de exploração do ciclo da erva-mate,
ambientadas na região Centro Sul do estado e refletem narrativa épica
que narra as “dantescas condições de trabalho da região” à época da
exploração da erva. O segundo aspecto diz respeito à caracterização
geofísica da fronteira Brasil-Paraguai e vai nos interessar, de modo
particular, na medida em que amplifica as ramificações dos caminhos
e fronteiras, aspecto central deste capítulo e do trabalho como um
todo: sob o ponto de vista do espectador, ao lado de um dos marcos
que sinaliza os limites entre os dois países, apenas uma estrada de
quinze metros de largura faz a divisa Brasil-Paraguai, causando sérias
confusões, já que, teoricamente, à direita está o Brasil e à esquerda
o Paraguai, mas nem sempre é desta forma, pois são diversas vias
rurais, onde poucos se aventuram a transitar. Neste caso, a fronteira,
sinalizada por marcos de cimento esquecidos no meio de um cerrado
desabrigado e árido, é linha imaginária que marca, cicatrizando o
imaginário desta região fronteiriça do País. Marco e cerrado fustigados
pelo mesmo sol inclemente, desenhando uma paisagem que se perde
de vista, alargando o olhar do observador para além, num horizonte
infinito. Estamos, por conseguinte, no universo do erval e da prosa
fronteiriça de Hélio Serejo.
Considerado o “nosso Catulo, o das paixões sul-mato-grossenses”,
Hélio Serejo dedicou inumeráveis páginas à sua cidade de Ponta Porã/
MS, fronteira seca com Pedro Juan Caballero/PY. Nascido em 1º. de
junho de 1912, na Fazenda São João, no Município de Nioaque, Hélio
Serejo faleceu no dia 08 de outubro de 2007, em Campo Grande,
aos 95 anos de idade. Cidade predestinada a sua, pois, segundo o
abalizado escritor Elpidio Reis, se houvesse um concurso “para saberse qual a cidade do mundo que mais livros tem sobre si escritos, Ponta
Porã – com as obras de Hélio Serejo – ganharia de corpo inteiro!”
(LINS, 1996, p. 79). Se em cada uma das regiões do Brasil encontra-se
um relato constitutivo e próprio, aqui deparamos com a formidável
narração de um escritor antes de tudo conhecedor dos mais variados
estratos da gente, da formação étnica e do povoamento da região sulmato-grossense. Em tudo e por tudo, a extensa obra de Hélio Serejo,
cujas composições literárias são lendas, contos, poesias, narrativas
ervateiras e evocações de imagens do sertão, é compêndio dos usos e
costumes regionais e principalmente das tradições relacionadas com
a atividade ervateira. É do próprio Hélio Serejo a caracterização mais
adequada do locus de enunciação de sua variada produção de textos
e o próprio lugar da cultura na qual se filiou, num emaranhamento
resultante no contexto geral de sua prosa poética. Em “Amor pelo
crioulismo”, relato que abre a coletânea de contos Contos crioulos, lêse no primeiro parágrafo: “Desde meninote fui assim: um enamorado,
[...] das paisagens sertanejas, portanto, dos ‘mistérios’ das coisas
charruas. Fui – sem nenhuma dúvida – um trilhador de caminhos,
um observador incansável, um perguntador de muito fôlego.”
(SEREJO, 1998, p. 35). Continua o narrador, falando da intensidade
com que sorveu todos os momentos formadores de um “crioulismo
embriagador”:
Sorvi, com muita sofreguidão, o selvático, o descampado, os
cômoros, os brejos infindáveis, as croas, o vargeado de moitas
clorofiladas, os pára-tudos chamadores de raios, a solitária
lagoa de água azulada, os trilheiros dos bichos-do mato, o
vento sulino anunciando chuva, a sinfonia das taboas nos
alagadiços, a algazarra ruidosa das ‘baitacas’ na roça de milho,
as ‘canhadas’ onde as aves diversas buscam o farnel apetitoso,
as árvores desgalhadas, no espigão de pouca sombra, o
chirlar festivo da passarada, o urro da fera andeja que corta
o despovoado sem rumo determinado, o barulho cantante da
quebra d’água no coração das brenhas, e o luar que branqueja
a vastidão. (SEREJO, 1998, p.35).
Também o relato “Das coisas crioulas” é emblemático,
principalmente pela fixação do crioulismo e das experiências no mundo
bruto da erva-mate, onde o crioulismo “impera, não só na vivência
diuturna, mas também no falar, nas brejeiradas, nas manifestações
de alegria, nas festanças e nas caminhadas exploradoras.”, pois que o
crioulismo se manifesta em toda a labuta do ervateiro:
O velho pilão, o catre mal trançado, o arreio cacareco, o
gamelão, o maroto chapéu carandá, o poncho descolorido,
soltando fiapos, a forma de rapadura, o ferro de brasa para
passar roupa, a mariquinha, corote, o panelão de ferro
desbeiçado, o porongo guardador de água, a caneca de latão,
o resto de cobertor para se defender do frio, o sapatão de
couro de anta e centenas de outros pertences são marcas
indestrutíveis do crioulismo. (SEREJO, 1998, p. 145).
A presença do autor como narrador e/ou personagem é uma
constante nos relatos de Hélio Serejo. Em muitos deles é a figura do
próprio pai do escritor – o furador de sertão Don Chico Serejo –, que,
em companhia de Hélio Serejo tornam-se desbravadores e criadores
dos “Ranchos”, espécie de parada, morada que abrigava o ervateiro,
frequentemente assentados em lugares tão ermos que eram batizados
de “divisas com o inferno”, pois situados em região de dificílimo acesso
onde a maleita não perdoava nenhum vivente. Atravessando as
lonjuras da linha fronteiriça e só conhecendo uma estrada boiadeira,
por ali chegavam levas guaranis, paraguaios que sofriam, derramando
o seu suor no mundo bruto e selvagem da erva-mate, trazendo para os
ervais da região sulina mato-grossense, muitas criaturas excêntricas,
algumas de hábitos verdadeiramente anormais, e até denotadoras
de demência – como relata em “Tipos excêntricos dos ervais”. Tipos
pertencentes a um mundo de amarguras, misérias e desgraças,
como a personagem Zico do conto homônimo, dono de uma filosofia
crioula, que Serejo assim caracterizou: frangalho humano, açoitado
rudemente pelo vento de todos os infortúnios, caladão e envelhecido,
descrente e amargurado; e ainda como as personagens Palmira e seu
filho, no relato de “O conto”, que tinham uma expressão de horror na
face bexigosa e desenhados, nos próprios gestos vagos, o infortúnio
e a dor. Tipos que concorrem e resultam da paisagem aberta, vazia
e distante, formadora do variegado cipoal dos ervais. Provêm desse
universo as lendas da erva-mate e do urutau, que ao lado da história
da gente mato-grossense formam um fabuloso registro folclórico e
de glossários, de que os “contos crioulos” denotam a capacidade
inventiva do escritor na recriação da linguagem:
Dia e noite, noite e dia, eu me irrito e xingo, vendo esses
pingos, pingo a pingo, caírem na calçada lamacenta. Pinga,
pingando, vai o chuvisco pingando, tamborilando no zinco,
parece até que dizendo: um pingo, outro pingo: um pingo,
outro pingo. E nesse pingar, de pingos pingalhados, o homem
pingando pensamento, embarafusta-se no tédio e, sem ser
pinguço, pensa na pinga. Pinga esquenta, encoraja, e traz
pingo a pingo, pingaços de lembranças ao coração!. (SEREJO,
1998, p. 31)
Ademais, em toda a coletânea de Contos crioulos registram-se
alusões e referências mil à virtude de permanecer entontecido com os
amanheceres e a magia do sol-se-pondo. Seja no famoso “Discurso de
posse” à Academia Sul-mato-grossense de Letras, seja em “Paisagem
de erval”, ou ainda em “Paisagem sertaneja”, vamos encontrar
o continuum significativo da escrita e da temática de Hélio Serejo,
que ele deixaria consagrado na seguinte passagem de “Paisagem
sertaneja”:
Dentro de mim, como bênção do Senhor, viverá para todo
o sempre a fulgurante e evocadora paisagem sertaneja,
formada pelo entardecer, raiar festivo das madrugadas,
aboio comovedor do vaqueiro, tropel de xucros, fogo dos
pousos, silêncio aterrador da tarde escaldante, vento sulão
soprando desabridamente pelos campos e varjões, rechinar
de carretas, cantiga de andariego, tropilha em marcha
cadenciada, marcação, pega, roça granando, colheita, soca de
monjolo, estralidar de galhos na tormenta, enxurrada, cantar
melodioso do sabiaúna, vôo de seriema, cargueiros, fogo de
galpão, queimada de roça, armadilha de caça sinuelo, junta
de coice, pastorejo, festa de marcação, pega de baguais,
floração campesina, redemunho de outubro, filigranas de luar,
brilho das estrelas, vento bandoleiro balançando as folhas
das árvores, o azul do céu imenso e cantaria de pouso ao
anoitecer. [...]. Desejo, sinceramente, morrer como um xucro,
com os olhos embaciados, voltados para essa paisagem.
(SEREJO, 2008, p. 170-171).
Como autor de Surrão crioulo – uma coleção de cinco livros
–, que levava em seu próprio surrão (embornal), Serejo formatou
a tradução da vivência de um povo, tornando-se ele mesmo uma
espécie de mimetismo da cultura fronteiriça deste extremo Oeste do
Brasil Meridional. Sua obra constitui manifestação literária das mais
importantes da região, e a que de forma mais completa se voltou
para o registro da história e da vida na fronteira Brasil-Paraguai. Com
longa história de vida dedicada à observação da cultura regional, a
obra do escritor é imenso painel de análise de aspectos tão múltiplos
quanto originais na abordagem das questões linguísticas, literárias e
culturais a partir da convivência com os ervateiros, à época gloriosa
da extração da erva-mate. Trata-se de obra que per se dá conta e
constitui o registro de uma das regiões culturais mais singulares
do Brasil, ao abordar as origens e a fundação do povoamento e do
desbravamento socioeconômico da nossa “hinterlândia” inóspita.
Retrato de um período de empreendedorismo que reuniu a região
fronteiriça do Brasil, no Sul de Mato Grosso com o Paraguai e a
Argentina, a obra do escritor é a tradução mais extensiva e completa
de um mundo e de práticas culturais e de exploração que seriam
substrato das denúncias encontráveis na crítica do paraguaio Augusto
Roa Bastos, do representativo Hijo de hombre. Denúncia que Zokner
(1991) recusou-se a aceitá-la como simples realidade ficcional, pois,
ao deparar com a palavra mensu, sentira-se constrangida diante
do significado dessa palavra que mais tarde encontraria na obra
Obrageros, mensus e colonos – no sistema das obrages constituindo
o espaço do livro de Roa Bastos: “la ciudadela de un país imaginário,
amurallado por las grandes selvas del Alto Paraná: ‘os ervais de TakurúPukú’” (apudZOKNER, 1991, p.103). Assim, a denúncia era sobre o
destino do mensu, sobre o seu trabalho escravo na mata subtropical
em território argentino e paraguaio na extração da erva-mate e da
madeira. Mensu designava, portanto, o peão que chegava ao Brasil
para trabalhar nas obragens, ou seja, nas lidas da erva-mate e das
matas brasileiras, um ser de identidade perdida, subterraneamente
sem remissão:
Um caminho que é no entanto, sem volta, porque nas cidades
onde se realizava o conchavo existia , ainda, alguma lei,
algum simulacro de autoridade; porém, apenas embarcados,
ficavam à mercê dos obrageros e de seus capatazes. ‘Logo que
embarcavam para o Alto Paraná, os paraguaios, já de início,
começavam a sentir os efeitos do domínio de uma obrage’.
Assim, uma das primeiras agressões a que estavam sujeitos
era a de serem desarmados, sendo surrados, já na viagem,
aqueles que por esta ou por aquela outra razão protestassem.
‘Mas já não tinha jeito, o vapor não voltava mais’. [...]. Nos
ervais de Takarú-Pukú os mensus chegavam amontoados
numa chata ou caminhando cinquenta léguas por meio do
mato, onde iam ficando os mortos de doença, de picada de
cobra. Ou, os mortos pelos tiros de capatazes. (ZOKNER, 1991,
p. 104-105).
Narrando a partir das orilhas da fronteira e testemunhando
toda a gesta ervateira, Hélio Serejo trouxe, através de sua volumosa
obra, vida e memória a esta microrregião do ciclo da erva-mate. Se
em “Boicará” o folclorista genial dá vida a um boi que nasceu nas
“orilhas” da fronteira, criando assim a lenda do boi fronteiriço, em
“Tereré”, ao evocar a convivência no erval, ele narra a história e os
ritos envolvidos na prática comunitária em torno da roda de tereré:
Disseram já, e é verdade, que o tereré, refrescante, é o abraço
de quatro nações: Paraguai, o grande líder no uso, Uruguai,
Argentina e Brasil. Afirmativa sem contestación. Esta bebida
crioja, em qualquer um desses pagos, significa emotivamente:
descanso, hora de meditação, amizade, troça, parceria para o
trabalho, alegria e, algumas vezes... troca de ideia para a fuga
temerária. (SEREJO, 2008, p. 197) (grifo nosso).
Assim, o “tereré” como a língua guarani destacam-se na prosa
do escritor, principalmente na obra Fiapos de regionalismos, sobre
a qual nos deteremos, sobretudo pelo seu ineditismo, pois que só
hoje publicada em Obras completas de Hélio Serejo (SEREJO, 2008,
p.171-246). O livro, inédito, revela talvez o ponto mais alto da prosa
serejiana; a partir do título o leitor depara a matriz poética de um
regionalismo bem formatado na região de fronteira entre Brasil
e Paraguai. Já no início, o relato de “Peão paraguaio” prolonga
magistralmente o topos referido da língua guarani e sua amplidão a
batizar com nomes a topografia e as “denominações dos acidentes
geofísicos da República do Paraguai, parte da República Argentina
e da República Federativa do Brasil” e revelando-se como sendo “a
alma de uma geração insubstituível, é a própria natureza da América
Latina.”. Na realidade, este relato traduz uma originalidade perspicaz,
cuja ideia é nuclear quando se considera a capacidade plástica de um
narrador não somente sensível, mas acima de tudo consciente do
caráter representativo, simbólico, da linguagem para a caracterização
de sua região, do regionalismo que se tematiza na obra como um
todo:
As historicidades manifestadas por esta língua continuam
sendo as mesmas de antes. As descrições tecidas pelas
suas construções idiomáticas continuam sendo as mais
encantadoras narrações. Nesta língua encontramos ideias
onomatopaicas, acentos melódicos dos pássaros, das árvores,
dos animais silvestres, das cascatas, dos mansos córregos, dos
majestosos rios, dos campos floridos, o sibilar dos ventos, o
barulho ensurdecedor das tormentas, a magnificência do pôrdo-sol, a voz da natureza. (SEREJO, 2008, p. 178).
Ainda em Fiapos de regionalismos, noutro pequeno texto que
vale a sua reprodução inteira, Hélio Serejo assim tece o relato de
“Chuva fronteiriça”:
Tenho amor... amor grande pela chuva fronteiriça da minha
terra. Chuva que cai devagarzinho que nem dá para assustar
a pombinha-rola que caminha, aqui e ali, procurando o
farnel que a chuvinha sossegada espantou do esconderijo
para buscar o trilheiro dos bichos. A chuvinha fronteiriça
rega a terra para que a semente da esperança brote e cresça
livremente, produzindo fartura, fartura que traz alegrias e
põe brilho de fé nos olhos do vivente... vivente que, de mãos
postas, agradece a Deus, porque a chuva criadora choveu na
hora certa, por vontade do Pai Eterno, que vela sempre pelo
seus filhos amados. (SEREJO, 2008, p. 242-243).
Um outro texto, digno de destaque, é “Apresentação”, que,
assim intitulado, abre a obra em análise, projetando-a no universo
do discurso sobre o regionalismo sul-mato-grossense e marcando
o registro peculiar dessas narrativas, ao recobrir como um todo o
mesmo livro Fiapos de regionalismos, que hora abordamos:
Este livrote pode servir aos estudiosos do gênero em alguma
coisa. O autor acredita que assim venha a acontecer. A realidade
está nele espelhada. É vivência nua e crua. Não há enfeites
bombásticos, nem imagens literárias para impressionar o
leitor. Homens entendidos das coisas do mundo da erva-mate
e do idioma guarani manusearam os originais. Incentivaram
de maneira franca o despretensioso escritor dos ervais. Daí a
publicação. (SEREJO, 2008, p. 177).
Amplificando a caracterização do nosso personagem do erval,
transmutado em autor-narrador, figurativização da voz serejiana, há
que retomar a perspectiva dos Contos gauchescos, de Simões Lopes
Neto, cujo herói, Jango Jorge, é descrito como o gaúcho que “tinha
vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha
do Ituzaingó [...]”, e é justamente a ele que seu Autor delega uma
função indispensável no contexto do vasto pampa em que transcorrem
as narrativas dos Contos gauchescos, numa ambiência e “fábula do
lugar” que se pode transladar como citação de muitas falas do nosso
narrador-autor, Hélio Serejo, que, como vimos nos excertos citados,
frequentemente vai se mostrar como seguindo os ecos da voz e assim
relendo aqueles Contos:
Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar
os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na
escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda
que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse por alma
de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca
desandou cruzada! (LOPES NETO,1949, apud CHAVES, 2006,
p. 63).
Devemos ainda chamar a atenção para o processo de colonização
no Sul do estado de MS enquanto resultante de uma heterogeneidade
cultural. Segundo Marin (2004), esse processo muito decorreu das
uniões matrimoniais inter-raciais, cuja mestiçagem torna-se um
conceito crítico adequado para a explicação do caldo de cultura, que
Lévi-Strauss atribuíra às “tradições brasileira, paraguaia, boliviana e
argentina.”, onde os elementos da indumentária eram de uso comum
e alternado entre as diversas populações e etnias da região. Ainda,
como zona de interculturalidade, de hibridismo cultural, a língua era
o elemento agregador que, na realidade, se tornou constitutiva de
uma Babel linguística:
[...] a língua predominante era o guarani, seguida pelo
castelhano, tornando a região numa nova “Babel”. A língua
portuguesa era pouco empregada. De ambos os lados da
fronteira, após uma polca alegre, ouviam-se aplausos
bilíngues, trilíngues. Nas corridas de cavalo, o juiz de partida
gritava a ordem de largada em guarani e repetia logo após
em português. (DONATO, 1959, p.161, apud MARIN, 2004, p.
329).
De resto, deve-se salientar que a percepção de transnacionalização
da região, calcada sobretudo na urbanização das cidades do antigo
sul de Mato Grosso do Sul, torna-se aspecto relevante para o que
observa o autor de Nas águas do prata (2009):
O movimento de populações no Cone Sul era uma via de mão
dupla. Da mesma forma que paraguaios desciam o rio para
trabalhar na Argentina e no Uruguai ou subiam para o Mato
Grosso, também os brasileiros, os argentinos e os uruguaios
se movimentavam em busca de melhores condições de vida e
trabalho. (OLIVEIRA, 2009, p. 57).
Decorria deste fato a mescla da língua que, fertilizada pelos
contatos interculturais, resultava na mistura do guarani com
o castelhano, carregada de “pitadas do regionalismo gaúcho”,
despontando sobretudo devido à “exploração de madeira no Pantanal,
nos ervais, nas fazendas de gado, entre outras atividades fronteiriças
que utilizavam especialmente o trabalho compulsório de índios e
paraguaios” (OLIVEIRA, 2009, p. 56). Neste contexto, o ciclo da ervamate também vai encontrar um precioso registro dessa temática na
obra fundadora de H. Donato (1959); ambientada na região Centro
Sul do estado de Mato Grosso do Sul, trata-se de pujante narrativa
épica que narra as “dantescas condições de trabalho da região”
à época da extração da erva, daí extraindo a seiva para o que a
crítica caracterizou a obra como “um dos mais altos momentos da
novelística de conteúdo social no Brasil” (LUCAS, 1987, p. 53-54). A
história do mundo do mate encontra sua robustez seja nas obras de
Serejo e de Donato, seja na própria selva, ambas tema e personagem
do “drama do mate”, a encontrarem ressonâncias em tantos textosdenúncia da luta do homem com a terra e das histórias de explorados
e exploradores. Eis a descrição do dia-a-dia do peão do erval:
O dia do mineiro, peão cortador de erva, começa no meio da
noite, às três e trinta. A mata, os bichos, os caminhos, as aves
dormem ainda e o mineiro estremunha. Cansado da véspera
e das muitas vésperas. Prepara o tereré, enrola nos pés e nas
pernas a plantilla, bebe tereré, calça as botas de couro, bebe
tereré, come bocados de comida sobrada da tarde anterior,
bebe tereré e mergulha no caatim. (DONATO, 1959. p. 16 et
seq.)
Como vemos, a (re)verificação, seja de perspectivas críticas
atuais, seja de obras e autores postos à margem, nas “orilhas”,
como demonstrou Sarlo (2007), permite a rediscussão, hoje, acerca
da natureza e funcionamento dos textos dentro de uma ordem e
escala de catalogação que impõe considerar questões muito sérias
como as que se vêem polemizadas em reflexões críticas como a de
Casanova (2002). Logo, não causaria espécie estarmos a tratar de
escritores como Hélio Serejo e Hernani Donato, dois escritores sulmato-grossenses, que, tendo angariado relativa ou maior fortuna
crítica, fazem jus à sua apreciação. Sobretudo quando, críticos
e estudiosos do assunto vêm recolocar a pertinência do lugar, do
regional, quer em função de uma abordagem de “periodização e
regionalização literárias” ou da crítica das literaturas de fronteiras1.
Segundo Chaves (2006), a extraordinária capacidade de renovação
de um Jorge Amado,
[...]se exerceu sempre sobre a sua base regional, o recôncavo
baiano, [...]. Residia no acervo lendário e folclórico (às vezes
sociológico) da região que o escritor ofereceu à literatura,
fosse o naturalismo de Jubiabá ou a prodigiosa invenção de
Gabriela. Por isso mesmo, Jorge Amado constitui o caso limite
do regionalismo brasileiro. (CHAVES, 2006, p. 38).
E Guilhermino César, com perspicácia observou:
[...] Só pode enriquecer uma literatura essa busca apaixonada
do que é típico na sociedade, quando nada, para que a
expressão estética represente forças de vida convergentes,
construa a autenticidade de dentro para fora, ou seja, buscando
o geral e o universal, no homem e suas paixões. Em outras
palavras, o regional é o primeiro estágio de toda literatura.
1 A propósito, para uma leitura mais ampliada sobre a questão, remetemos aos
ensaios assim intitulados de Tania F. CARVALHAL, em O próprio e o alheio (2003).
Sob pena de cair no despaisamento, no incaracterístico, no
formal, nenhuma literatura pode negar as matrizes de que
procede o homem que ela traduz e representa (apud SILVA,
2009, p. 161).
Disso resulta o instigante convite à (re)verificação do conceito
de regional e regionalismo hoje2, dentro do que a crítica pontua
como condição para uma real apreciação dos textos, nascedoura de
sua representatividade no diálogo e “comércio” alfandegário, que
frequentemente embaralha o lugar de enunciação vinculado à ideia
de fortuna crítica. Esta, ainda derivada do agente “institucional”
enquanto comprometido com todos os seus meios legitimadores,
quais sejam, editoras, críticos, revistas, jornais, televisão, rádio,
publicidade direta, prêmios literários e outros, como salientou outro
crítico contemporâneo do porte de Wladimir Krysinski. (KRYSINSKI,
2007, p.1-14).
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101-111.
ENTRE GÊNEROS E CULTURAS:
a obra memorialística de dom Pedro Casaldáliga
Rosana Rodrigues da SILVA (UNEMAT/Sinop)1
RESUMO: Dom Pedro Casaldáliga figura entre os autores
que têm produzido, sob as marcas culturais de nosso
tempo, uma poética que testemunha os conflitos sociais
e atesta os limites dos gêneros. Embora lembrado mais
pela produção poética, possui significativa produção
autobiográfica que testemunha a luta pelas causas da
população pobre no Norte de Mato Grosso e expressam,
no conjunto, um manifesto de fé religiosa e vida
compromissada. O memorando dá voz ao oprimido,
consolidando uma narrativa que articula vozes da
alteridade e impõe a representação do Outro ao decurso
de sua própria fala. As memórias, enquanto representação
simbólica do “entre-lugar”, conforme o define Bhabha
(1998), formam o enunciado do espaço cultural que se
faz entre o eu e o Outro, auxiliando na constituição de
uma literatura pós-colonial que não se fixa na dicotomia
colonizador e colonizado, mas se volta à exteriorização da
cultura, formada segundo a perspectiva da minoria.
PALAVRAS-CHAVE: Dom Pedro Casaldáliga; Memórias;
Interculturalidade; Teologia da Libertação; Póscolonialismo.
Quem busca sua identidade volta-se necessariamente para o
passado. Para extrair dele o metal das armas que empunhará
na construção do futuro. (Pedro Tierra)
1 Doutorado em Literatura Brasileira; professora da UNEMAT – SinopMT; pesquisadora do CNPq, com o projeto Multiculturalismo nas poéticas
contemporâneas: tendências identitárias e transculturalidade em Mato Grosso.
Embora lembrado mais pela produção poética, Casaldáliga possui
significativa produção autobiográfica ─ cartas, ensaios e memórias ─
que testemunham a luta pelas causas da população pobre na região
Norte de Mato Grosso e expressam, no conjunto, um manifesto de fé
religiosa e vida compromissada com as causas da chamada Teologia da
libertação. A práxis contestadora nessa teologia encontra justificativa
na experiência política aliada à teológica que direciona uma discussão,
por sua vez, religiosa e política, pondo o sujeito oprimido no centro
dos debates que mobilizam bispos, teólogos e sociólogos.
A leitura que se faz da resistência para a libertação permite
uma leitura singular da história e da sociedade, leitura que busca
na teologia fundamentos do marxismo e socialismo. Leonardo Boff
esclarece dessa relação que o marxismo auxiliou para que víssemos
que o pobre é, sobretudo, um oprimido, alguém feito pobre com
violência; enquanto o socialismo pode ser um instrumento político
para a libertação dos oprimidos (2008, p. 120).
A teologia da libertação tem dado a chave da interpretação aos
estudos críticos sobre a poética de Casaldáliga. Os princípios dessa
teologia encontram aplicação prática na obra do poeta: “Podemos
dizer que Casaldáliga é precursor de um gênero novo a que poderíamos
chamar de poesia de libertação” (MARZEC, 2008, p. 302). Do mesmo
modo, pode-se afirmar que os relatos do memorando constituem
as memórias da libertação. Não se trata de buscar nas mesmas
explicação teológica; mas de reconhecer sua atualização teórica e sua
exemplificação literária. Ao argumentar o sentido da luta e narrar a
defesa da causa, o autor põe em prática a teoria que fundamenta a
nova teologia e faz de sua escrita uma atividade de militância, sob a
influência da interculturalidade religiosa.
A relação entre culturas se faz presente nas atividades e produções
deste intelectual que consegue transpor barreiras ideológicas que
poderiam separar o homem culto do popular para expressar a cultura
do homem oprimido. Essa é, na formulação de Alfredo Bosi (1992),
uma transposição que perfaz a grandeza da obra literária. Segundo
o crítico, a cultura ocidentalizante acostumou-se a estigmatizar a
cultura popular como expressão de estados de primitivismo, atraso,
subdesenvolvimento. Na reação oposta, o artista busca regular
expressão pessoal e comunicação pública, criando uma linguagem
que situa seu trabalho na intersecção do corpo e da convenção
social. Nessa regulação, o criador participa da dialética de sua própria
cultura, possibilitando o diálogo entre instâncias internacionalizantes
e instâncias populares ─ processo que resultaria em uma obra rica,
densa e duradoura (1992, p. 343).
A voz do sujeito que se narra apresenta em breves parágrafos
a vida do memorando. Dom Pedro Casaldáliga chegou ao Brasil, em
1968, convocado pela congregação claretiana a missionar a região
Norte do Mato Grosso, região desatendida, com uma população
marginalizada (sem-terras, índios e posseiros). O compromisso com
as causas que dão sentido ao seu credo destinou sua permanência em
São Félix do Araguaia, cidade cerceada de tribos indígenas e marcada
pela disputa por terra. Sua engajada atuação como missionário ficou
registrada nas memórias: Creio na justiça e na esperança (1978); Em
rebelde fidelidade (1984); Nicarágua: combate e profecia (1986);
Quando os dias fazem pensar (2007). Os títulos das memórias
confirmam um ideário que se fez na profícua relação, embora nem
sempre clarificada, entre política e religião.
As memórias dividem, no conjunto da produção de Casaldáliga,
espaço com poesia e ensaios de teor político e teológico. A obra
memorialística dialoga com a produção poética do autor, o que torna
possível leituras paralelas que direcionam o sentido de seus poemas.
Os textos memorialísticos auxiliam diferentes enfoques críticos
na investigação da poesia. Além da reconstituição da trajetória do
memorando (a vida com a família na Espanha e a opção pelas missões
no Brasil), as memórias permitem recuperar os elementos externos
que estão na gênese da produção poética, bem como fornecem
material para o estudo da recepção da obra literária, atendendo, com
isso, ao enfoque sociológico.
Conforme assinala o crítico Antonio Candido (2009), a obra
literária, embora seja uma realidade autônoma que pode ser
compreendida em qualquer circunstância, não prescinde dos
elementos não literários em seu estudo crítico. Isso porque o texto,
sendo um resultado, “só pode ganhar pelo conhecimento da realidade
que serviu de base à sua realidade própria” (CANDIDO, 2009, p. 36).
Ao lado dessa justificativa sociológica, está a importância
documental das memórias. Por serem testemunho da marginalização
e exclusão da população pobre de Mato Grosso, os relatos
autobiográficos importam como fonte de denúncia, assim como o
foi a Carta pastoral (1971), documento polêmico em que Casaldáliga
denuncia a violência e o trabalho escravo no município de São Félix
do Araguaia.
A produção literária de Casaldáliga e sua atuação como bispo
exemplifica a atividade transculturadora. Sua procedência de uma
cultura dominadora, de uma religião imposta à força aos povos
dominados, defronta-se com a personalidade do missionário
ativista. Conforme nota Zofia Marzec, na condição de sacerdote
espanhol, o bispo assume individualmente os pecados coletivos dos
conquistadores e pede perdão às culturas marginalizadas (2008, p.
303).
A condição de bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia
não o impediu de dialogar com a religiosidade da cultura popular e
indígena, contrariando a ortodoxia católica. Assim como também, a
condição de homem branco e europeu, de uma família de católicos
direitistas, não impediu o convívio com a população mestiça da
“América ameríndia”, como o memorando prefere chamar.
Nem sempre datados, os relatos são circulares e retomam
momentos diversos da vida do memorando e da vida do Outro, por
ele sentida em testemunho. Um acontecimento presente repõe
o autor na infância, levando-o à recordação enunciada de forma
quase lírica. Em outros momentos, um comunicado de advertência,
reproduzido na íntegra, traz a objetividade da apresentação; enquanto
a transcrição de diálogos pode levar à tensão dramática que atualiza a
cena narrada e problematiza o futuro.
Os temas enveredados nas memórias não são específicos sobre
a vida do memorando. A vida do outro é passível de ser memorizada,
diante da condição do sujeito que testemunha, observa e atua. Se
o início dos relatos memorialísticos possuem o enfoque no “eu”,
já o desenvolvimento volta-se tanto à vida de homens simples do
povo, quanto aos “mártires da caminhada” ─ mulheres e homens,
perseguidos, torturados ou mortos, durante o regime militar.
Casaldáliga testemunha a condição do Outro, orientado segundo ele
próprio, pela dialética marxista e por uma “metanóia política total”.
O memorando pretende dar voz ao oprimido, consolidando uma
narrativa que articula vozes da alteridade e impõe a representação
do Outro ao decurso de sua própria fala. A forma como essa escrita
é consolidada importa para descobrirmos a exteriorização do saber
político, uma vez que o mesmo somente se cristaliza através de suas
representações exteriores. É pela dinâmica da escrita e da textualidade
que podemos reconhecer o político enquanto ação estratégica que
visa à transformação social.
No estudo dessa dinâmica, o crítico Homi Bhabha (1998) propõe
o conceito do “entre-lugar” para auxiliar a reflexão sobre as condições
discursivas da enunciação, vista de acordo com as instabilidades
e mudanças culturais. O “entre” incorpora o significado da cultura,
ao permitir que se comecem a vislumbrar as histórias nacionais e
antinacionalistas do povo (1998, p. 69).
As memórias, pensadas enquanto representação simbólica do
“entre-lugar”, formam o enunciado do espaço cultural que se faz
entre o eu e o Outro, auxiliando na constituição de uma literatura póscolonial que não se fixa na dicotomia colonizador e colonizado, mas
se volta à exteriorização da cultura, formada segundo a perspectiva
da minoria. As memórias são enunciadas como representação,
sobretudo, política, alicerçada na significação cultural de um povo
que, neste momento, possui a voz que o representa. Enquanto
espaço de intermediação, a narrativa memorialística desfaz a unidade
da cultura, bem como inviabiliza a pureza do gênero, processando a
voz dialógica do enunciado, em nome de uma nova enunciação da
cultura.
Assim, sem desmentir a importância documentária e social dos
relatos autobiográficos, o estudo da obra memorialística, enquanto
categoria do literário, vem ao encontro do estudo desses relatos
como representações simbólicas das transformações culturais. Na
mão dupla, o enunciado das memórias tanto representa quanto se
modifica por essas transformações, operado pela nova dinâmica de
seu contexto pós-colonial.
O deslocamento que afetou a cultura do pós-colonialismo trouxe
as alterações que incluem as discussões sobre gênero, classe, raça,
orientação sexual, etc. Assim, não apenas o conceito de identidade
fixa é posto em questão, mas o de gêneros e classes é destituído
enquanto categoria organizacional básica.
A escrita que forma o texto memorialístico constitui o processo que
articula em enunciado as diferenças culturais que sobredeterminam a
convivência da população mestiça e marginalizada com a autoridade
local, ao mesmo tempo se revela como um texto dialógico, intercalado
de vozes, e hibridamente constituído.
As memórias trazem em sua composição a interseção de gêneros
presentes em textos variados, nos quais se incluem: transcrição de
cartas, de poemas e de diários; descrições prolongadas de eventos
(como o encontro episcopal); citações de leis, de passagens bíblicas,
versículos, comunicados, noticiário de jornal, etc.
As transcrições, ou reproduções, operam mudanças estruturais
que singularizam a narrativa das memórias; modificam a textualidade
pertinente ao gênero. Além de reforçar o compromisso do sujeito
de enunciação com a verdade dos fatos, atualizam o contexto da
narrativa, chamando o leitor ao tempo presente do enunciado.
Em nota prévia à obra Creio na justiça e na esperança,
Casaldáliga argumenta: “copio várias páginas do meu Diário porque
elas já estavam escritas anteriormente e dão, com mais franqueza e
autenticidade, o pão quente de cada dia”. (1978, p 16). A preocupação
com o convencimento do leitor exemplifica o método que orientou na
construção da obra. A seleção do trecho do diário a ser transcrito nas
memórias envolve também a circunstância e intenção do memorando.
O prefácio no gênero memorialístico extrapola a função
elucidativa, exercendo domínio sobre a condição do leitor. Ao mesmo
tempo em que justifica e esclarece o texto a ser lido, o prefácio
direciona a compreensão leitora, atentando o leitor aos momentos
de destaque da narrativa.
Em nota prévia de Nicarágua: combate e profecia, o autor faz
advertência sobre os possíveis conflitos que a leitura poderá evocar.
Esse relato nasceu da viagem de dom Pedro Casaldáliga à Nicarágua
(onde permaneceu de 28 de julho ao dia 21 de setembro de 1985),
representando o bispado brasileiro. Iniciado antes mesmo da viagem,
o relato apresenta o desejo do bispo, pondo-se na condição de bispo
latino-americano, de juntar-se aos outros companheiros de luta,
em especial juntar-se à vigília de padre Miguel D’Escoto, em jejum
pela não-intervenção do governo de Reagan na Nicarágua e em toda
América Central. Em sua narração, não deixa de apresentar o discurso
da alteridade, o posicionamento alheio, ainda que oposto ao seu,
como no episódio da crítica dos bispos da Nicarágua que se sentiram
ofendidos em sua autoridade episcopal, com a chegada de bispos
brasileiros.
A alteridade no gênero memorialístico, assim como as
transcrições, retiram-no da base que o define enquanto narrativa
subjetiva, imersa na individualidade do memorando, para mostrá-lo
como conjunto de vozes que se presentificam no enunciado.
A pureza dos gêneros é contestada pela crítica que tem se
empenhado em mostrar a composição múltipla da obra literária.
Emil Staiger contribuiu para o estudo dos gêneros, fundamentandose nas formas de vivência temporal do ser humano. Com base na
divisão tradicional, clássica, Staiger pensa nos conceitos estilísticos
que ordenam o que deve expressar o sentido do lírico, do épico e
do dramático na vida emocional. Assim, cada gênero possui uma
característica própria da experiência temporal humana que o
singulariza. O estilo lírico é tido como um despertar do homem para
o passado, levando-o à recordação de modo emotivo. Na épica, o
sujeito apresenta os fatos, com a postura de um observador que se
faz presente. Enquanto no drama, a tensão toma conta do sujeito,
mergulhando-o na expectativa do futuro.
A narrativa das memórias compartilha a experiência do
memorando de modo presente, na medida em que nos solicita
participação política; de modo dramático, evocando a tensão que
nos causa sentimentos de revolta e expectativa diante das denúncias
expostas, formadas de casos sem solução e muita injustiça social. Ao
mesmo tempo, as experiências são compartilhadas de modo lírico por
um enunciador que busca a identificação com o sujeito que vivenciou
o fato narrado:
Daqueles dias, trago a imagem de uma árvore que queimamos
involuntariamente, como quem carrega o remorso de um
homicídio. Digo isso para explicar como me doíam, à minha
chegada ao Mato Grosso, os infinitos tocos das queimadas do
latifúndio (1978, p.20).
O relato de momentos de infância vem à tona para o memorando
no tempo presente de sua narração, interferindo em seu modo de
sentir. Não há distanciamento do sujeito adulto presente que enuncia
e o menino que vivenciou o passado. Os momentos líricos integram
a narrativa das memórias nas imagens feitas de aromas, impressões
visuais, sensoriais ─ revividas na recordação de emoções passadas:
Era uma tarde de outono e chuviscava sem retóricas.
Detrás dos vidros, na varanda, havia alguns gerânios
como testemunhas e, no horizonte, sobre o Llobregat,
a ermida da Mare de déu Castell. Minha mãe limpava
seu quarto e eu arrumava na cozinha uma gaveta da
cômoda. Era sábado, dia da rosca e daquele chocolate
diferente do costumeiro “Arumi”. Era uma boa hora para
a confidência.(1978, p. 21)
É neste momento singular que o menino confidencia o desejo de
ser padre. O espaço da confidência é marcado pelo lirismo do autor
e pelos sentimentos envolvidos em sua recordação, valendo-se da
linguagem poética para enunciar um momento decisivo na vida do
memorando. Como lembra Emil Staiger (1993), recordar é sempre um
regresso que abole a distância entre sujeito e objeto, o chamado umno-outro lírico, o que explica a sensação de um sentimento revivido
no momento da recordação.
As recordações do seminário trazem a evocação da família e
seu ambiente doméstico. No primeiro ano de estudos, no seminário
de Vic, onde também havia estudado o tio, a vocação sacerdotal
encontra-se com a do poeta. O seminarista lança os primeiros
versos em uma discussão política, em que defendia sua comarca.
As iniciativas culturais, artísticas e recreativas acompanhavam o
cotidiano do seminário. Desse modo, as funções do poeta e do clérigo
(personalidades que já habitavam o homem Casaldáliga) foram
marcadas pelo conflito ideológico que cerceava a condição clerical.
Os limites nas duas atividades tenderam a radicalizar os pontos
de vista. Somente mais tarde, o aspecto engajado, tanto social quanto
religioso, que está na base de suas ações, tanto literárias quanto
missionárias, poderia manifestar-se livremente.
No trabalho como missionário, Casaldáliga mostra convívio
plurilíngue (do catalão, do castelhano, do português e da língua
dos índios das aldeias). A interculturalidade orientou sua trajetória
de homem religioso. Em seu primeiro destino como sacerdote, em
Sabadell, onde ficou conhecido como “padre dos malandros”, a
convivência cultural se fez com as novas amizades propulsoras de novos
ideais: o desejo de reformar a Igreja. De Sabadell, o seminarista foi
transferido para Barcelona, uma comunidade bastante heterogênea,
onde descobriu o povo nos metrôs, nas fábricas e nas ruas. Descoberta
essa que o levou a escrever para programas de rádio, participando
com poemas e romance vocacional. De Barcelona, Casaldáliga parte
para a África, Guiné espanhola, onde realizava cursilhos mistos para
brancos e negros, deparando-se com a incompreensão e preconceito
dos colonizadores. Será justamente como fruto dessa convivência
cultural que o missionário sente o chamado do Terceiro Mundo.
Ao regressar a Madri, sentiu no coração que trazia, “confusamente
como um feto, a África, o Terceiro Mundo, os Pobres da Terra e essa
nova Igreja, a igreja dos pobres”, assim denominada no Concílio de
Medellín (1978, p. 26).
A interculturalidade que marca a narrativa das memórias está
presente tanto nas recordações do período do seminário na pátria
espanhola, quanto nas ações em Mato Grosso, onde o missionário
claretiano necessitou seguir alguns ritos vivenciados pelos moradores
da região, como as visitas de preceito pascal nos sertões do Norte
e do Centro-Oeste. No convívio com as diferenças, o memorando
participa dos costumes, da fé e da educação do povo. A permanência
em um espaço fronteiriço trouxe-lhe a possibilidade de vivenciar
transformações históricas e presenciar o encontro com o novo.
Na Nicarágua, as viagens do memorando pelos povoados limites,
pelas fronteiras que lutam repelindo as incursões da Contra, permitelhe o convívio com diferentes culturas. A viagem pelo rio San Juan
é descrita poéticamente: “com bordado verde ao longo de suas
margens, balizado de fazendas em suas colinas suaves, nos vales
intermediários” (1986, p. 60). As garças brancas de San Juan são
comparadas às garças brancas do Araguaia, salpicando “sonhos de
paz”. Nas comparações enunciadas, o memorando deixa entrever seu
trânsito pela língua do país: “na Nicarágua chamam de lapa a arara
brasileira, o guacamayo continental” (1986, p. 93).
O olhar do poeta vê a beleza da paisagem e compreende
o significado de seus mistérios naturais; enquanto o olhar do
missionário engajado revela-nos a miséria, a tragédia humana da
pequena Nicarágua, ou a “Nicaraguita”, assim denominada com
a ternura dos que olham para os menores da História e do reino:
os povos massacrados da América Central (1986, p. 9). O olhar do
transculturador não abandona a visão piedosa do homem religioso;
sobressaindo na visão das fronteiras, aproximando-as, contrastandoas. Somente na representação que testemunha o Outro, o autor
poderia dar ao seu relato a posição política e mirar a seta revolucionária
que dá o sentido da transgressão.
O alvo da luta de Casaldáliga e que está testemunhado ao longo
das narrativas memorialísticas são as instituições: Igreja e Governo. A
denúncia narrada opera à nível dramático, exigindo uma dissolução
futura do problema da exploração, na medida em que participa
momentos de revolta do memorando: “área de Superintendência
do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) onde a bosta do boi
equivale a um carimbo de ‘integração nacional’ e de desumana
desintegração de índios, posseiros e peões” (CASALDÁLIGA, 1978,
p. 34). Desse sentimento de revolta, nasce em setembro de 1970,
o informe-denúncia, Escravidão e Feudalismo no Norte do Mato
Grosso, encaminhado às altas autoridades do país, à presidência
da conferência nacional dos bispos, embora não tivesse o apoio da
nunciatura na luta pelo combate à exploração.
O fio da narrativa memorialística não perde o enfoque realista
dessa denúncia, ainda que realize digressões e ainda que reflita sobre
o futuro, o sujeito enuncia a história sem ficcionalizá-la, deixando
romper a consciência crítica estendida, sobretudo, à própria Igreja
da qual participa. Para ele, a Igreja não se deu bem com nenhuma
revolução porque em grande parte a Igreja, como instituição, conviveu
de modo cúmplice com o poder dos privilegiados.
Se a literatura colonial é atravessada pela voz do colonizador e
do clero romanizado, a literatura pós-colonial, por sua vez, pretende
a resposta questionadora ao poder instituído. Os escritores póscolonialistas buscaram subverter, na temática e também formalmente,
os discursos que sustentaram a expansão colonial (SANTOS, 2005, p.
343).
Naturalmente, o relato contra a Igreja institucionalizada constituise no discurso a favor da nova teologia, na medida em que mostra
a defesa de uma religião que não se desliga de questões políticas
e sociais e que está atenta aos problemas da população pobre das
Américas. Por outro lado, se pensarmos que a escolha do gênero tem
a denúncia por objetivo maior, o gênero memorialístico se apresenta
formalmente como uma solução que se apresenta a uma crise
sociocultural.
Em afinidade com os estudos sociológicos e culturais, as memórias
são lidas como representações simbólicas que enformam um espaço
e tempo históricos, formas submergidas de uma constante política e
social da qual resulta o homem. Tendo a figura do memorialista como
um ser que existe e atua no espaço e no tempo, sua leitura só poderá
conduzir à peculiaridade poética de sua escrita que se vale do exercício
da linguagem literária, não enquanto auto-referente, mas voltada à
realização de seu sentido histórico. Justamente por trazer ao texto a
história de um povo posto à margem, as narrativas memorialísticas
alcançam um grau de subjetividade, de dramaticidade e de realismo
que as constituem enquanto representação performativa da
consciência crítica e humana de seu enunciador.
As memórias respondem à ação repressora da chamada
ideologia dominante que impõe posições enclausuradas na
permanência da ordem, racionalmente refletida. O enunciado do
discurso memorialístico articula uma textualidade livre da pureza
do gênero, descompromissada com as normas da Igreja romanizada
e compromissada com a denúncia da violência ao pobre. Portanto,
representa nessa dinâmica um espaço intermediário, um “entrelugar” em que a cultura do Outro se mostra e atua na atividade
religiosa e cultural de nosso escritor. Seu enunciado em processo
coincide com as atividades missionárias. O autor que escreve se
identifica, em ação performativa, ao missionário relatado. Ambos
participam da experiência, enquanto vivência sentida e traduzida,
que transforma o espaço da produção memorialística no lugar do
encontro do homem com seu Outro, do memorando com seu leitor,
lugar que se faz presença da possibilidade real de transformação.
Referências bibliográficas
BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG,
1998.
BOFF, L. Processo de mundialização e teologia
da libertação. In:___ Ecologia, mundialização e
espiritualidade. Rio de Janeiro: Record, 2008.
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Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
CANDIDO, A. Os elementos de compreensão. In: _____
Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos.
São Paulo: Ouro sobre Azul, 2009.
CASALDÁLIGA, P. Creio na justiça e na esperança. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira S. A., 1978
____. Nicarágua: combate e profecia. Petrópolis: vozes,
1986
MARZEC, Z. Pedro, poeta. In: FORCANO, B. [et al.] trad.
Alda da Anunciação Machado. Pedro Casaldáliga: as
causas que imprimem sentido à sua vida. Retrato de uma
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SANTOS, E. P. dos. Pós-colonialismo e pós-colonialidade.
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cultura. Niterói: EDUFF, 2005.
STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Rio de
Janeiro: Tempo brasileiro LTDA, 1993.
MALINCHE: UM MITO MEXICANO REVISTO
Roxana Guadalupe HERRERA ALVAREZ (IBILCE/UNESP)
[email protected]
RESUMO: Quando Hernán Cortés chegou ao México
em 1519, recebeu como presente de um cacique um
grupo de jovens indígenas entre as quais se encontrava
Malintzín ou Malinali. Essa jovem indígena seria batizada
com o nome cristão de Marina, mas passou a ser
conhecida como Malinche. Marina ou Malinche, graças
a sua inteligência e conhecimento de línguas indígenas,
transformou-se na companheira, intérprete e conselheira
de Cortés. Com a colaboração dela, Cortés teve sucesso
na conquista do México. Por esse motivo, a história oficial
foi construindo a figura da Malinche como o epítome da
traição. Atualmente, o romance Malinche, da escritora
mexicana Laura Esquivel tenta, por meio da humanização
da personagem histórica, resgatar uma feição mais
complexa da Malinche para além do mito da indígena
traiçoeira.
PALAVRAS-CHAVE: conquista do México; Malinche;
romance histórico
O povo asteca se estabeleceu no Vale do México no século XIV.
Chegaram como andarilhos, levados pelo presságio de seus deuses:
construir um grande império no local onde encontrassem uma
águia pousada num cacto devorando uma serpente. Esse local foi
encontrado no meio de uma ilha do lago Texcoco e ali fundaram a
grande cidade de Tenochtitlán. Com o passar do tempo, os astecas
expandiram seus domínios e escravizaram diversos grupos indígenas
da região. Cobravam altos tributos e mantinham esses grupos sob seu
férreo domínio. Muitos eram sacrificados aos deuses numa cerimônia
que incluía a extração do coração do sacrificado.
Com a chegada de Hernán Cortés (1485-1547) à ilha que hoje
compreende a República Dominicana e o Haiti, chamada nessa época
La Española, em 1504, inicia-se um longo processo que culminará
na conquista do império asteca. Cortés ganha a confiança das altas
autoridades da ilha La Española e participa da expedição a Cuba,
em1511, desempenhando cargos burocráticos. Alguns anos depois,
em 1519, é enviado numa missão que tem como objetivo explorar
o território mexicano para avaliar a possibilidade de mandar tropas
para a conquista dessa terra. Mas Cortés desobedeceu às ordens e
empreendeu a conquista do México e a fundação de cidades. Como foi
observado, Cortés chega ao Golfo do México em 1519 e empreende
uma longa viagem até o Vale do México, na região central. Nesse
percurso, Cortés chega a Tabasco e recebe do cacique maia da cidade
um grupo de vinte mulheres jovens, como presente. Entre elas se
encontrava Malinali ou Malintzín (1504?-1527).
Essa jovem indígena seria posteriormente batizada com o nome
cristão de Marina e passou a ser conhecida na história mexicana
como Malinche. Marina ou Malinche, graças a sua inteligência e
conhecimento de línguas indígenas, nauatle e maia, transformou-se,
aos poucos, na companheira, intérprete e conselheira de Cortés em
terras mexicanas. Sem a colaboração decisiva de Malinche, Cortés
provavelmente teria enfrentado grande número de obstáculos que
retardariam o processo da conquista do México. Por esse motivo, a
história oficial foi construindo a figura de Malinche como o epítome
da traição: alguém que é capaz de abandonar os valores de sua raça
para entregar tudo ao estrangeiro invasor, como explica Octavio Paz
em seu ensaio “Los hijos de la Malinche” [Os filhos da Malinche].
Na verdade, o nome Malinche significa “o senhor de Malinalli” e
era dado a Cortés, segundo relata Bernal Díaz del Castillo, um cronista
da época da conquista. Posteriormente o qualificativo passou a
designar a figura de Malinali ou Marina. Octavio Paz observa em seu
ensaio “Os filhos da Malinche”, incluído na obra O labirinto da solidão,
que cada grupo social possui um repertório de expressões que dão
vazão à ira ou à alegria. Para o mexicano uma dessas expressões
é “¡hijos de la Chingada!”. O termo “la chingada” se refere à mãe,
como figura mítica. Para o imaginário mexicano, descrito por Octavio
Paz, é a representação da mãe que sofreu passivamente todos os
significados possíveis do verbo “chingar”. Esse verbo pode significar
restos de algo, idéia de fracasso, agredir. O verbo denota violência e,
nesse sentido, significa também ferir, rasgar, destruir, violentar. Esse
último significado adquire, segundo Paz, uma dimensão profunda
no imaginário mexicano porque, de algum modo, o mexicano sabe
que existe a possibilidade de “chingar” ou “ser chingado”, isto é,
humilhar, castigar, ofender ou ser humilhado, castigado, ofendido.
Vê-se a sociedade como uma arena na qual combatem os fortes (los
chingones) e os fracos (los chingados). Mas, em seu sentido profundo,
“la chingada” é a mãe violentada ou seduzida por meio de enganos.
“Hijo de la chingada” é o produto da violência sexual ou do engano.
Reside nisso a força ofensiva de seu significado: segundo Paz, para o
espanhol, a ofensa contida na expressão “hijo de puta” está em ser
filho de uma mulher que se entrega voluntariamente a qualquer um.
Para o mexicano, a ofensa contida na expressão “hijo de la chingada”
é a de ser fruto de um estupro. Isso se relaciona estreitamente com
a noção das origens dos mexicanos: a conquista foi uma violenta
entrada do mundo espanhol no mundo mexicano, que foi destruído.
Muitas índias foram violentadas pelos conquistadores espanhóis, mas
o símbolo da entrega passiva e inerte à violência do conquistador é
Malinche. Segundo Octavio Paz, Malinche se oferece voluntariamente
a Cortés, no entanto ele a esquece quando Malinche deixa de ser útil.
Ela se transformou na imagem que representa as mulheres indígenas
fascinadas, violentadas ou seduzidas pelos espanhóis. E, segundo Paz,
da mesma forma que o filho não perdoa a mãe que o abandona para
ir procurar o homem que ela ama, assim o mexicano não perdoa a
traição da Malinche. Ela encarna a submissão ao estrangeiro. Por isso
o termo “malinchista” se aplica ao mexicano que deseja que o México
se abra completamente ao elemento estrangeiro. Segundo Octavio
Paz, a expressão “hijo de la chingada” é, para o mexicano, o grito que
condena sua origem híbrida. A permanência das figuras históricas
de Cortés e Malinche entre os mexicanos denota a presença de um
conflito secreto, ainda não resolvido pelos mexicanos. Ao repudiar
a figura de Malinche, o mexicano rompe com seu passado, renega
de suas origens e penetra sozinho na vida histórica. O mexicano
não deseja ser nem índio nem espanhol, também não deseja ser
descendente deles. Não deseja se ver como mestiço, prefere ser filho
do nada, começar em si mesmo, segundo Octavio Paz.
Essa perspectiva da figura de Malinche, do modo como Paz
a constrói, permite entrever que na cultura mexicana, durante
muitos anos, o processo da conquista espanhola foi visto como
essencialmente destrutivo. Já havia grandes culturas no México
tomado por Cortés. Havia, entre os astecas, uma organização social
complexa, um sistema político e econômico baseado na escravidão
de outros grupos indígenas, havia uma religião que explicava a
origem do mundo e seu funcionamento a partir de um panteão
no qual existia um deus para cada fenômeno natural, para cada
atividade humana. Mas os astecas eram uma cultura predatória
e foi precisamente essa característica a que motivou a vitória de
Cortés sobre eles. O conquistador espanhol explorou ao máximo as
desavenças existentes entre o império asteca e os demais grupos
indígenas subjugados e escravizados por esse império. Com alianças
importantes feitas por meio da comunicação mediada por Malinche,
e um número expressivo de guerreiros dispostos a aderir à causa de
Cortés, os espanhóis tomaram Tenochtitlán em 1521. No entanto,
outro fator determinante para a queda dos astecas foi o fato de o
imperador Montezuma ter acreditado em presságios que prometiam
a volta do deus Quetzalcoált. Cortés explorou essa lenda e mascarou
suas verdadeiras intenções, confundindo Montezuma, o qual abdicou
do seu reino e o entregou a Cortés, fato que surpreendeu seus
súditos e o levou a uma morte misteriosa, até hoje não se sabe ao
certo se Montezuma morreu apedrejado pelos seus súditos ou se foi
assassinado pelos espanhóis.
A grande questão que se coloca é a importância do papel de
Malinche na intermediação entre Cortés, os grupos subjugados pelos
astecas, e o próprio Montezuma. A tarefa tradutória de Malinche
permitiu uma comunicação que redundaria na queda do império
asteca. Pouco se sabe sobre os motivos que levaram essa figura
controversa a agir como o fez. Para tentar descobrir essas motivações
e recriar uma complexa vida interior, a escritora mexicana Laura
Esquivel (1950-) retoma o mito de Malinche, no romance homônimo,
publicado em 2004, e o reconstrói a partir da criação de uma
personagem complexa. Ao longo dos oito capítulos do romance, há
um percurso da personagem Malinali, da sua infância com a avó,
passando pela experiência de ter sido vendida como escrava pela mãe
dela, quando contava somente cinco anos, até a adolescência, quando
conhece Cortés e começa a servi-lo, tornando-se sua amante e mãe
do seu filho Martín. O destino final de Malinche será o casamento
com outro espanhol, chamado Jaramillo, por ordens de Cortés; a
vida familiar feliz, o nascimento da filha María e a morte prematura,
ocorrida no jardim da casa de Malinche, segundo o capítulo final
do romance. Na verdade, supõe-se que a morte de Malinche se
deu por causa da varíola, doença que também matou milhares de
indígenas mexicanos. Esquivel consegue dotar a personagem literária
de uma complexidade que permite entrever as possíveis motivações
que levaram Malinche a desempenhar um papel tão importante na
conquista do império asteca. Suas origens estavam estreitamente
vinculadas aos grupos indígenas subjugados pelos astecas. Ela era
escrava quando os espanhóis chegaram, foi dada como presente a
Cortés, junto com outras jovens. Sob o domínio de Cortés, que logo
percebera sua inteligência e habilidade de se expressar nas línguas
maia e nauatle, foi alçada à categoria de tradutora e intérprete,
ocupando um lugar importante e preservando sua vida e integridade
física precisamente porque desempenhava um papel fundamental.
São da personagem as palavras esclarecedoras sobre seu próprio
destino: “Nunca antes experimentara a sensação gerada por estar
no comando. Logo aprendeu: quem controla a informação, os
significados, adquire poder. Ao traduzir, dominava a situação, e não
apenas isso: a palavra podia ser uma arma. A melhor das armas.”
(ESQUIVEL, 2004, p. 70)
Se Malinche não tivesse demonstrado suas habilidades,
provavelmente teria vivenciado um destino muito pior. Ser subjugada
por Cortés, de quem teve um filho, o primeiro mestiço, o primeiro
mexicano, como já se propalou entre os habitantes do México
atual, foi uma experiência que, segundo Esquivel, se relaciona
estreitamente com a visão que naquela época se tinha das mulheres
em geral. Tanto entre os astecas quanto entre os espanhóis do século
XVI, esperava-se que a mulher desenvolvesse uma série de tarefas
que a colocavam ao serviço da família e do homem, seja na figura do
pai ou do marido. Servir sempre foi o destino das mulheres e Esquivel
acrescenta no desenvolvimento do seu romance uma perspectiva
clara do papel que essa tarefa essencialmente feminina significou
no cenário da conquista do México. Malinche, ao desenvolver seu
papel servil, encontrava-se presa e submetida, sem condições de
compreender claramente as conseqüências de seu trabalho como
tradutora e intérprete de Cortés. Em várias passagens do romance, é
possível apreciar como a personagem se debate presa numa situação
incomum: aparentemente sua tarefa de tradutora a faz ter muitos
privilégios (conserva a vida e sua integridade física), mas, ao mesmo
tempo, é subjugada por Cortés, tomada por ele como concubina, e
levada a participar dos eventos que eclodiram na queda do império
asteca. Na personagem criada por Esquivel, é possível apreciar um
dilema moral, o mesmo que alimenta o mito de Malinche no contexto
histórico mexicano: Malinche sente que com sua tarefa de tradutora
está traindo o mundo indígena e entregando-o a Cortés. No entanto,
a personagem de Malinche também sente que está vindicando os
direitos de seu grupo indígena, escravizado pelos astecas durante
muito tempo, e essa vindicação consiste em impor aos astecas a
experiência de serem subjugados e aniquilados. Esquivel deixa claro
que a condição submissa da mulher, personificada na personagem da
Malinche, é um destino do qual não se podia nem se pode, em muitas
circunstâncias atuais, fugir. Malinche cumpriu seu destino natural
de submissão e ao fazê-lo participou da queda do império asteca.
Seria possível responsabilizá-la pelas conseqüências do seu ato de
submissão a Cortés? Essa parece ser a pergunta oculta no romance.
O mito da Malinche se vê, assim, renovado pelo romance de Esquivel:
a Malinche não traiu seu povo mexicano, porque nem havia a noção
de unidade entre as diversas etnias do México pré-colombiano, por
isso não se pode falar de uma nação única que pudesse ser traída,
como reconhecem alguns historiadores mexicanos atuais. Malinche
reproduziu, com seu papel de tradutora e intérprete, um destino
de submissão já imposto às mulheres em sua cultura e na cultura
espanhola, trazendo como conseqüência a queda do império asteca.
Nesse sentido, é possível estabelecer uma correlação entre Malinche
e Eva. As duas são responsabilizadas por quedas espetaculares: a
dos astecas e ao do homem. Malinche também pode ser vista, pela
caracterização da personagem no romance de Esquivel, como a
depositária do destino asteca já previsto pelos presságios religiosos:
a volta de Quetzalcoátl significava a destruição do império asteca.
Cortés era esse deus, Malinche era uma espécie de sacerdotisa ao
serviço do destino.
Referências bibliográficas
ESQUIVEL, L. Malinche. Trad. Léo Schlafman. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2007.
PAZ, O. Los hijos de la Malinche. In:___. El laberinto de la
soledad y otras obras. New York: Penguin Books, 1997.
O FACTUAL TRANSFORMADO EM LITERÁRIO
Sílvia C. R. Damacena de OLIVEIRA (UNILAGO)
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RESUMO: Desde que começou a escrever, Roberto
Drummond criou para suas primeiras obras o Ciclo da
Coca-Cola, cujo enfoque era um novo fazer literário: a
literatura pop. Valendo-se de uma série de procedimentos
emprestados da Pop Art, o escritor criou um estilo singular
de escrita, sobretudo porque toma como matéria básica
para suas criações o chamado “lixo cultural”, muitas vezes
idenficado com matérias publicadas pela imprensa com
grande repercussão entre a população. Neste trabalho,
buscamos mostrar como se dá esse processo no conto
“Por falar na caça às mulheres”, que abre a segunda parte
do livro Quando fui morto em Cuba (1982), em que um
crime passional – amplamente divulgado pela mídia da
época – alicerçou a criação do texto literário.
PALAVRAS-CHAVE: Mídia; Literatura Pop; Arte Pop;
Roberto Drummond.
1. Ciclo da Coca-Coca
Desejoso de inovar em literatura, o escritor Roberto Drummond
cria o Ciclo da Coca-Cola cujo enfoque é a presença da cultura de
massa na sociedade. Para isso, escolhe a coca-cola como uma forma
de representação do domínio cultural dos Estados Unidos e também
de suas multinacionais. O universo pop conquista um espaço na
literatura que até então não tinha. Maria Lúcia Guelfi esclarece que:
Tendo migrado das clássicas interpretações sobre a realidade
do Brasil, a palavra ciclo entrou na história da literatura
brasileira para designar as seqüências de romances que
narram transformações econômicas e sociais, ocorridas em
longos períodos, descrevendo as diferentes etapas de uma
determinada fase de produção. O modelo básico, que inspirou
RD, vem do romance neonaturalista dos anos trinta, que
consagrou o ciclo da cana-de-açúcar, de José Lins do Rego, e o
ciclo do cacau, de Jorge Amado (GUELFI, 1994, p. 245)
Inseridas no contexto social da segunda metade do século XX, no
Brasil, as personagens de Roberto Drummond encarnam o espírito das
massas unificadas pela urbanização acelerada e suas consequências.
Para fazer frente a este cenário, o escritor criou uma literatura
contestadora, embora não parecesse, cujo intuito era escrever
“uma literatura sem cerimônia, sem intelectualismo, uma literatura
sem nenhum vínculo com a literatura tradicional” (DRUMMOND,
1975, p. 3). Os livros que compõem esse Ciclo se pautam por um
experimentalismo que os diferencia da literatura dita de denúncia,
mas também não coloca o leitor numa encruzilhada, impossibilitando
que ele compreenda o que se conta, apesar de não serem leituras
simples mesmo que, num primeiro momento, pareçam ser. Não
podemos perder de vista que Roberto Drummond nunca esperou
uma posição passiva do leitor; nas quatro obras que compõem o
Ciclo, há, sempre, uma espécie de exigência, talvez coubesse melhor
a palavra “convite”, para que o leitor participe e interfira, ora como
investigador, ora como “personagem coadjuvante”, ora como simples
leitor curioso do destino das personagens, naquilo que está sendo
narrado. No entanto, por mais atraente que possa parecer participar
deste jogo, desta performance, para muitos leitores, sobretudo os
acomodados, é tarefa além das expectativas para uma obra literária.
Na verdade, como explicou o crítico Wilson Martins (apud Cremilda
Medina), Roberto Drummond fracassou no seu projeto de produção
de uma literatura popular no Ciclo da Coca-Cola. Ao contrário, o que
ele produziu foi uma literatura sofisticada em termos de construção
formal; parafraseando o crítico, podemos dizer que, apesar de
o escritor ter um comportamento rebelde diante da literatura
convencional, o que se viu foi uma prática bastante diferente de
construção textual.
2. A literatura pop
Como já dissemos, desde que começou a escrever, Roberto
Drummond buscou inovar, sobretudo ao criar o chamado Ciclo
da Coca-Cola, cujo projeto era ousado: criar uma literatura pop.
Alicerçada na Arte Pop, a literatura pop emprestou deste movimento
artístico vários de seus fundamentos. Entretanto, foi além e criou para
si algumas particularidades que não vemos na Pop. Como a primeira,
sofreu, ou melhor, ainda sofre preconceitos por parte de quem resiste
às mudanças, sobretudo quando estas propõem à realização de um
trabalho a partir de uma matéria-prima desqualificada, vista como o
lixo cultural. Lawrence Alloway diz:
A Arte Pop é por vezes relacionada tanto de maneira jocosa
como com argumentos sérios com a comunicação de massas:
as referências aos mass media na Arte Pop têm servido de
pretexto para identificar completamente a origem com a
adaptação. Pretende-se que se conclua que os artistas pop
são idênticos às suas fontes. Uma tal concepção é duplamente
falsa: na Arte Pop, a imagem encontra-se num contexto
completamente novo e esta é uma diferença crucial: além
disso, os mass media são mais complexos e menos inertes do
que esta maneira de ver pressupõe. A rápida celebridade de
alguns artistas tem sido maliciosamente comparada com a
súbita ascensão e queda de alguns nomes do espetáculo – por
exemplo, os cançonetistas que gravam discos de 45 rotações
ou as mais inexpressivas das starlets. (LIPPARD, 1976, p. 28;
30).
Alloway toca em dois pontos fundamentais para compreendermos
a Arte Pop e que servem, também, para a literatura pop: o primeiro é
a questão da apropriação do deslocamento da imagem ou referência
para um contexto diferente do habitual e o segundo que a produção
dos mass media não é linear e redutoramente simples como
usualmente se imagina.
Surge, então, um impasse: o que fazer com um “novo” que difere
em sua constituição, do novo definido pela tradição moderna? No caso
da Arte e da literatura pop deve ser acrescentada que esse “novo” é,
nos anos 60-70, estranho ao universo artístico, pois diz respeito àquilo
que nunca antes estivera ali. Música popular, artistas de cinema,
televisão e rádio, histórias em quadrinhos, fotonovelas, romances
“cor-de-rosa” convivem, lado a lado, com referências canônicas da
alta cultura. As referências da cultura de massa invadem a arte e esta
passa a conviver com dados e procedimentos impensados até então.
Esse novo contexto é assumido pela literatura pop de Roberto
Drummond e acrescido de elementos específicos da cultura brasileira:
o futebol, a religiosidade, a História e a política. Estes temas não
são inéditos na literatura, mas a forma como o escritor os abordou
é. Colagem, procedimento serigráfico, apropriação e mistura de
referências díspares são procedimentos que alicerçam a abordagem
temática dos textos, dando-lhes uma certa complexidade que a
distancia do que se considera como lixo cultural, revelando que há,
nestes textos, uma função crítica vinculada ao estranhamento que
eles produzem.
Clichês, marcas e produtos delineiam as personagens que
não têm profundidade psicológica e, portanto, têm como traço
característico a valorização do externo, da pura aparência que se
mostra como metáfora delas mesmas. Não só o exterior, mas também
os valores são construídos a partir dos estereótipos da cultura de
massa, condizentes com o imaginário das personagens, cujas vidas
são vazadas por clichês publicitários, que lhes direcionam a vida.
Ao privilegiar a matéria do cotidiano ordinário, o escritor corre
o risco de reduzir a sua literatura num “flagrante da vida real” –
emprestamos, aqui, a expressão de Luís Costa Lima (1981) em sua
análise dos textos de Rubem Fonseca. Entretanto, não é isso o que
percebemos nos textos de Roberto Drummond. Ao contrário, é a sua
habilidade em lidar com essa matéria tão diversa e não familiar ao
contexto literário que surpreende.
3. O factual transformado em literário
O conto “Por falar na caça às mulheres” faz parte do livro
Quando fui morto em Cuba, publicado em 1982, – obra que encerra o
chamado Ciclo da Coca-Cola da literatura pop de Roberto Drummond.
O texto divide-se em oito partes: 1ª. - narra-se, em textos que
simulam paredes pichadas, como Sérgio convenceu Juliana a namorálo. 2ª. – Em 1973, numa coluna social, um colunista conta como foi o
casamento de Ju e Serjão, jovens de famílias tradicionais da cidade.
3ª. – Novamente, a narrativa é feita com frases pichadas em muros.
São frases que retomam traços do cotidiano, misturadas a outras
que se abrem em protesto ao regime militar e à ditadura. 4ª. – Numa
página policial, narra-se que Serjão havia assassinado Ju com três
tiros à queima-roupa. 5ª. – O texto simula uma página de jornal em
que se conta que a empregada dizia que ultimamente o casal brigava
muito. 6ª. – Ainda nas páginas de jornal, é relatado pela doméstica
que o empresário costumava torturar a filha para que esta contasse
se a mãe estivera com algum homem. 7ª. - Os jornais contam como
foi que Sérgio se entregou. 8ª. – o narrador conta, nesta parte, como
se sentia Juliana enquanto morria.
Um dos problemas que surgem quando o escritor trabalha com
fatos datados é a vulnerabilidade dos mesmos. Até em que momento
da história, um fato qualquer, ainda que com grande repercussão
popular, se mantém vivo na memória das pessoas? E outro problema:
como um leitor de uma geração posterior conseguirá identificar
traços no texto literário que o levem ao caso matriz se não há, via de
regra, nenhuma pista clara que permita a ligação entre a literatura e
o jornalismo?
Diante disso, o trabalho do estudioso se mostra fundamental,
pois o mesmo fará a mediação entre o fato cotidiano e o texto literário.
Sem este trabalho, cremos, haverá um apagamento das referências
factuais e o texto literário adquirirá independência. Surge então,
outro questionamento: até que ponto essa independência enriquece
o texto? É certo que o texto artístico sobrevive independentemente
de qualquer ligação referencial com a história, entretanto se o mesmo
nasceu a partir de referências datadas, sua leitura será enriquecida
ainda mais se o leitor dispuser do fato matriz. Sendo assim, retomemos
o crime e o julgamento que originaram o conto “Por falar na caça às
mulheres”.
3.1. O fato
Em 30/12/1976, a sociedade brasileira testemunhava um
assassinato que entraria para a história das lutas feministas. Raul
Fernando do Amaral Street – conhecido como Doca Street – mata
com quatro tiros à queima-roupa, Ângela Diniz, com quem mantinha
um relacionamento amoroso. Em primeiro julgamento, amplamente
divulgado pela mídia, o acusado foi inocentado sob o argumento de
“defesa da honra”, pois teria sido traído. Entretanto, devido à reação
popular, o julgamento foi cancelado. Numa segunda ocasião, em um
novo julgamento, Doca Street foi condenado por homicídio.
Os autos do Crime da Praia dos Ossos descrevem Ângela Diniz
da seguinte forma: ‘‘Uma vênus lasciva, dada a amores anormais.
Escarlate de que fala o Apocalipse. Prostituta de alto luxo da Babilônia
que pisava corações e com suas garras de pantera arranhou os
homens que passaram por sua vida.’’ Além desta descrição, Ângela
é apontada como lésbica, consumidora de cocaína, fumante de
maconha e cúmplice de um assassinato. Diante disso, a ‘‘ficha’’ da
socialite apresenta motivos — segundo o Tribunal do Júri de Cabo
Frio, no Rio de Janeiro —, mais do que suficientes para ela ser morta
por seu namorado.
Durante o primeiro julgamento, que durou 21 horas, em outubro
de 1979, Doca Street permaneceu de cabeça baixa. Apontado pelo
advogado Evaristo de Moraes Filho como um ‘‘mancebo bonito
e trabalhador’’, saiu vitorioso da acusação de assassinato e teve o
apoio de muitas mulheres que permaneceram em frente ao fórum de
Cabo Frio segurando cartazes onde se lia: “Doca, estamos com você”.
Pelo que se lê nos autos do crime, não se julgou o assassinato, mas
a conduta de vida de Ângela, demasiadamente liberal para a época.
A reputação da vítima foi a carta de absolvição do criminoso que
matou em ‘‘legítima defesa da honra depois de ter sofrido violenta
agressão moral’’, na tese cunhada pelo outro advogado, Evandro
Lins e Silva. A decisão, de 5 votos a 2, revelava que, na visão dos
jurados, ele havia apenas se excedido ao reagir à agressão moral que
recebera e deveria, por isso, ficar em liberdade, apenas com um pena
simbólica. Transformado em programa de auditório, com direito a
vaias, gritos e aplausos de uma plateia de mais de 300 pessoas, o
julgamento se tornou um debate sobre o estilo de vida de Ângela
Diniz.
3.2. Do factual ao literário
Primeiramente, há neste conto um entrecruzamento de gêneros
textuais que estruturam a narrativa: pichações em muro, textos
jornalísticos de coluna social e de página policial, depoimentos e o
delírio de Juliana na hora da morte.
A primeira fase do romance é toda anunciada por frases
apaixonadas pichadas nos muros próximos à mansão onde morava
Juliana quando solteira. Como numa colagem Pop, o texto é uma
composição repleta de frases-clichê que vão descrevendo: 1) o
desenrolar da conquista – “Juliana, Sérgio te ama” (13/12/70); 2) a
conquista – “Sérgio e Ju estão in love” (24/04/71) -; 3) a jura de amor
eterno – “Serjão fará Ju feliz por toda a vida!” (15/05/71).
O romance perfeito, alicerçado pelo ideal dos contos de fadas,
é selado com o casamento de ambos – Juliana Montenegro e Sérgio
Avelar. A cerimônia obedece rigidamente aos padrões chiques e
elegantes dos casamentos entre os entes das famílias tradicionais da
sociedade, no caso, mineira. Deste ponto em diante, podemos dizer
que a narrativa se revela decalcada de uma narrativa da vida real.
Roberto Drummond toma uma matriz – o caso Ângela Diniz e Doca
Street – e cria uma nova narrativa.
São muitos os pontos coincidentes entre o caso e o conto em
questão: 1) Doca Street e Ângela Diniz, ambos ricos e de famílias
tradicionais; Serjão e Juliana, no conto, também são assim descritos;
2) Juliana foi eleita “Glamour Girl” numa promoção de um colunista
social e, ainda, escolhida pelo colunista Ibrahim Sued como o rosto
mais belo de todo o Brasil; Ângela Diniz era conhecida como a “A
Pantera de Minas”, epíteto que ganhou do mesmo colunista social.
As personagens do conto, após o casamento, vivem uma história
de amor relativamente curta, assim como o romance entre Doca
e Ângela. Este momento não é descrito pelo narrador que, num
processo semelhante ao da colagem na Arte Pop, informa ao leitor
sobre o que acontecia no Brasil, de 1973 até quando Juliana fora
assassinada pelo marido, num dia qualquer da década de 80. Esta
parte foi construída com frases que revelam desde protestos políticos
acalorados – “Abaixo a ditadura!”, “Fora Médici!”, “O ABC é o Brasil!”
-; passam pela exaltação à contracultura – “Voltem os Beatles!”,
“Viva Chico Buarque”, “LSD” -; e chegam aos aspectos mais banais
e cotidianos da vida – “Liquidação é nas Casas Pernambucanas!”,
“Julieta está dando!”, “Maurinho é bicha”. Essa mistura de temas e
de referências remete o leitor a inúmeros aspectos e vertentes da
vida, numa tentativa de abarcar, por meio de fragmentos, a realidade;
é uma tentativa de ilustrar a simultaneidade da vida diária marcada
pelo excesso de fatos e informações.
O procedimento de construção textual baseado na colagem
Pop é bastante comum na literatura pop de Roberto Drummond. É
por meio dele que o autor, muitas vezes, transita do referencial ao
literário, transformando referências factuais em texto artístico.
Tal como na Arte Pop, na literatura pop o procedimento da
colagem se dá a partir da junção de referenciais retirados dos
mais diversos campos sociais. Colocadas lado a lado, essas
referências obrigam o leitor ao contato com elas, mesmo que
de maneira superficial, uma vez que nem todos os leitores
têm conhecimento daquilo que está sendo citado. (OLIVEIRA,
2008, p. 166-7)
Após valer-se da colagem, Roberto Drummond retorna à sua
matriz a fim de serigrafá-la. Nesse processo, os artistas copiam uma
imagem para depois fazerem alterações na mesma conforme seu
objetivo. À semelhança do conhecido artista Pop, Andy Warhol, em
cujas serigrafias, muitas vezes, enxergavam-se, na imagem-matriz,
os traços originais em preto e branco antes de serem modificados
e pintados, neste conto o leitor, se conhecedor da história do
assassinato cometido por Doca Street, é capaz de enxergar a fonte
de onde nasceu a história das personagens Juliana e Sérgio. No caso
desta “serigrafia”, o processo é um pouco diferente, uma vez que ela
não parte de um produto ou da imagem de alguém famoso, mas sim
de uma “história real”.
No conto “Por falar na caça às mulheres”, Roberto Drummond
colhe na mídia as informações sobre o caso e as documenta sob
a forma de um arranjo estético que ilustra a condição desigual da
mulher, numa sociedade conservadora e machista.
Klaus Honnef (2005, p. 46) explica que, “na era dos mass media,
toda a percepção da realidade é produto de uma comunicação.”
Podemos dizer que para Roberto Drummond também. A percepção
da realidade nos é mostrada pela escolha que o escritor faz dos fatos
noticiados no dia-a-dia. Eis, aqui, um ponto singular na obra do escritor.
Muitos de seus textos dialogam, num processo intertextual, com textos
cotidianos, mas que por algum motivo foram amplamente divulgados
pela imprensa. Entretanto, estes textos têm registros factuais, muitas
vezes, passageiros, que exigem do leitor um conhecimento que, não
raro, desfez-se com o fato cotidiano. Neste sentido, por exemplo,
questionamo-nos como um leitor nascido na década de 80 poderia
supor que o conto “Por falar na caça às mulheres” dialoga com um fato
que, um pouco antes de sua publicação, havia sido sistematicamente
noticiado pela imprensa, uma vez que não há nenhuma referência
no conto que diz isso? Para um escritor que criou o que ele chamou
de literatura pop, esse talvez se mostrasse um problema, pois se a
intenção é pontuar aspectos e fatos da sociedade, de alguma forma,
eles precisam estar acessíveis ao público de algum modo. Registrar e/
ou resgatar esses fatos, cremos, seria uma das funções do estudioso
da literatura pop de Roberto Drummond.
Juliana, a protagonista do conto, é assassinada porque o marido
tem uma forte crise de ciúme desencadeada pelo amor que a mesma
nutria pelos personagens representados pelo ator Reginaldo Faria nas
novelas Água Viva (1980) e Baila Comigo (1981) da Rede Globo. Na
época em que as novelas estavam no ar, segundo o depoimento de
Sérgio Avelar, Juliana chegava mais cedo em casa, tomava banho de
piscina e posicionava-se em frente à tevê em atitudes provocantes.
Alertada pelo marido, ela não se importa e mantém o mesmo
comportamento. Sérgio sente-se traído e atira na tevê quando aparece
o ator Reginaldo Faria. Em nome da honra, o marido dispara contra
ela três tiros e a mata. Com certo humor, revela-se, aí, o poder da
televisão sobre as pessoas. Juliana e Sérgio figurativizam plenamente
este estado de alienação. Vivem um problema transposto ou causado
por uma ilusão, mas cujo desfecho é trágico e real.
Na “história real”, na história-matriz, Doca Street não matou
Ângela por um amor virtual, mas a causa foi a mesma: ciúme. Em
ambos, texto-matriz e conto, o desenrolar dos fatos é semelhante,
como num processo fotográfico ou serigráfico. Num primeiro
julgamento, Doca Street é inocentado sob o argumento de “legítima
defesa da honra” defendido pelo advogado Evandro Lins e Silva, e sai
do tribunal sob aplausos de mulheres que seguravam cartazes onde
se lia: “Doca, estamos com você”. No conto em questão, Sérgio, após
cometer o crime, desaparece por um tempo. Quando retorna e se
apresenta na delegacia, ao lado de seu advogado – Lins Bernardes
(parte do sobrenome de ambos os advogados é o mesmo),
Ele foi recebido na porta da delegacia aos gritos de
“lindo!lindo” por moças que portavam cartazes com os
dizeres “Viva Serjão!”, enquanto as feministas carregavam
cartazes onde estava escrito “Quem ama não mata! E ficavam
em silêncio. (DRUMMOND, 1982, p. 78)
Roberto Drummond engloba neste trecho as duas posições
tomadas pelas mulheres na época do crime: as primeiras, apoiaramno; não o enxergavam como assassino, mas sim como um galã traído.
Doca criou essa imagem; Sérgio a retomou pelas mãos do escritor.
No entanto, houve também quem protestasse. Nesse grupo estão
as feministas que encabeçavam o movimento “Quem ama não
mata”. Neste ponto, texto-matriz e conto coincidem: a frase e a
campanha são as mesmas. Também coincide a justificativa do crime –
“legítima defesa da honra”. Desse modo, podemos dizer que Roberto
Drummond, à semelhança da construção artística de Wharol, serigrafa
um fato divulgado pela mídia e por ela levado à plena discussão pela
sociedade e o transpõe para o universo literário. Ao emprestar um
procedimento de criação específico da Arte Pop – a serigrafia –, o
escritor refaz a matriz – o crime - e o transforma em literatura. Se
neste ponto a transformação é clara, não podemos dizer o mesmo em
relação ao desfecho da história dos assassinos: em novo julgamento,
Doca Street, é condenado a 15 anos de prisão; quanto a Sérgio, o
texto nada explica.
Ângela é morta com quatro tiros; Juliana, com três. A partir daí, o
narrador vai relatar o delírio de Juliana enquanto recebia cada um dos
tiros – denúncias explícitas da condição de opressão vivenciada pelas
mulheres em diferentes situações da vida cotidiana. Na narração
dos três tiros, há uma espécie de colagem irônica de um rock que
mistura em sua letra, denúncias escritas em português com frases de
agradecimento escritas em inglês. Em todas, o foco é a exploração
da mulher. Há, também, a narração do delírio de Juliana no quarto
tiro, que não houve. Este tiro faz parte da história de Ângela Diniz,
mas é recuperado, no conto, para ressaltar a condição de submissão
imposta às mulheres. Neste tiro, que não houve, Juliana
ouvia a voz de Amélia, a do samba, falando:
- Pior, Ju, não é a morte no gatilho, pior é quando nos matam e
nos deixam com a sensação de que estamos vivas e que somos
vacas parideiras, pior, Ju, é essa morte com tiros silenciosos e
que transforma nosso coração num pássaro empalhado que já
não canta... (DRUMMOND, 1982, p. 83)
Como Ângela Diniz, Juliana é bela e independente. Entretanto, o
relacionamento com Sérgio fora tornando-a um “pássaro empalhado
que já não cantava...”, como disse Amélia no final do conto. Quando
Ju resolve viver, é morta definitivamente, ou melhor, realmente.
Finalmente, devemos ressaltar que toda a narrativa é permeada por
elementos da cultura de massa e por referências à realidade política
das décadas de 70/80 – dois pontos estruturantes da literatura pop
de Roberto Drummond.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DRUMMOND, R. Quando fui morto em Cuba. São Paulo:
Atual, 1982.
GUELFI, M. L. F. Narciso na sala de espelhos: Roberto
Drummond e as perspectivas pós-modernas da ficção.
394 f. 1994. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994.
HONNEF, K. Warhol. Singapura: Paisagem, 2005.
LIMA, L. C. “O cão pop e a alegoria cobradora” In: ___.
Dispersa demanda – Ensaios sobre literatura e teoria. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 144-158.
LIPPARD, L. R. (Org.) et al. A arte pop. São Paulo: Verbo/
Edusp, 1976.
MEDINA, Cremilda. Escritor brasileiro hoje – 26 – Roberto
Drummond: de radical “pop” à serenidade realista. Minas
Gerais. Belo Horizonte. 20 abr. 1985. Suplemento literário.
p. 8.
OLIVEIRA, S. C. R. D. A literatura pop de Roberto
Drummnond: arte pop, referencialidade e ficção. 496 f.
2008. Tese (Doutorado) – Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, São José
do Rio Preto, 2008.

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