universidade federal do rio de janeiro jaqueline vitoriano da silva

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universidade federal do rio de janeiro jaqueline vitoriano da silva
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
JAQUELINE VITORIANO DA SILVA
REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO
NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA
RIO DE JANEIRO
2012
ii
JAQUELINE VITORIANO DA SILVA
REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO
NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Saúde Coletiva do Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial para obtenção do diploma de mestre em
Saúde Coletiva. Linha de pesquisa: História,
Representações e Fundamentos Conceituais em
Saúde.
Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira
RIO DE JANEIRO
2012
S586
Silva, Jaqueline Vitoriano da.
Redução de danos: novas formas de governo de si e do outro
na política de saúde brasileira/ Jaqueline Vitoriano da Silva. –
Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva,
2012.
124 f.; 30cm.
Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira.
Dissertação (Mestrado) - UFRJ/Instituto de Estudos em
Saúde Coletiva, 2012.
Referências: f. 119-124.
1. Usuários de drogas. 2. Transtornos relacionados ao uso
de substâncias. 3. Saúde mental. 4. Controle comportamental.
5. Políticas públicas de saúde . 6. Atenção à saúde. I.
Ferreira, Arthur Arruda Leal. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III. Título.
CDD 363.45
iii
JAQUELINE VITORIANO DA SILVA
REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO
NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Saúde Coletiva do Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial para obtenção do diploma de mestre em
Saúde Coletiva. Linha de pesquisa: História,
Representações e Fundamentos Conceituais em
Saúde.
Composição da Banca Examinadora:
Dr. Arthur Arruda Leal Ferreira (UFRJ - Orientador) _____________________
Dr. André Martins Vilar de Carvalho (UFRJ) ___________________________
Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (UFRJ) ___________________________
iv
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro que viabilizou a realização deste
trabalho.
Agradeço imensamente à minha mãe, principalmente pelo carinho e paciência que
me dedicou durante todo o momento de realização deste trabalho. Obrigada por aguentar a
saudade e pela torcida!
Agradeço à Mercedes Carvalho (In Memoriam), pela força e incentivo que me deu
no momento de partida para as terras cariocas. Personagem importantíssima para a história
da Psicologia na Bahia. Estamos todos saudosos.
À Tereza Calomeni, pela aconchegante receptividade na minha chegada no Rio e
pelas excelentes aulas de Filosofia Contemporânea que me proporcionou na UFF.
Ao Arthur, pela orientação tão companheira e acolhedora.
Agradeço ao André pelo carinho e pela oportunidade de docência proporcionada.
Agradeço ao meu tio Miguel e sua família por terem me recebido em seu lar nos
meus primeiros meses fora de casa.
Aos bons baianos que encontrei aqui. Valeu pelas noites regadas de boa música e
pelo carinho de todos.
Minha gratidão especial a Carlos. Obrigada por aparecer em minha vida.
v
RESUMO
Nessa dissertação faremos uma reflexão acerca de como as transformações das
diretrizes políticas de saúde voltadas para os usuários de drogas no Brasil podem ser
lidas a partir da introdução de novas formas de governo de si e do outro. Desde o início
do século XXI, o paradigma da redução de danos vem sendo adotado como política
oficial do Ministério da Saúde para lidar com a questão das drogas, operando uma série
de modificações em termos de intervenção, objetivos e formas de atenção neste campo,
modificações estas, que serão o cerne da análise pretendida. Se, por um lado, sua
adoção representa a superação das antigas formas de controle maciço sobre os corpos
dos indivíduos, por outro, ela pode ter dado lugar a uma nova forma de gerenciamento
da vida, mais próxima ao modelo liberal de gestão, que lança mão de uma forma de
poder bastante sofisticada e, ao invés de encerrar o sujeito em espaços fechados e
submetê-lo a processos ostensivos de vigilância e correção, faz-se valer de sua própria
liberdade, investindo no incremento da sua auto-regulação e efetivando-se graças a sua
articulação com a maneira como os indivíduos governam a si mesmos. Nosso objetivo,
portanto, é levantar possíveis pontos de coadunação entre as estratégias de redução de
danos, presentes na atual política de saúde brasileira, e o modelo de gestão liberal.
Nosso estudo foi construído a partir de uma análise documental de portarias, leis,
cartilhas, manuais e demais publicações produzidas pelo governo brasileiro que fazem
menção à estratégia de redução de danos e que visam regulamentar as práticas
profissionais dirigidas aos usuários de drogas. Utilizamos como referencial teórico o
pensamento do filósofo francês Michel Foucault. Trabalhamos, primeiramente, com
suas formulações a respeito da governamentalidade, ou seja, da forma de poder que se
expressa pela correta condução da conduta alheia, apresentando seu processo de
surgimento e desenvolvimento até chegar ao seu atual formato liberal. Em seguida,
vi
apresentamos as características das tecnologias de si sob as quais as atuais formas de
gestão da vida estão assentadas. Segundo o filósofo, as tecnologias de si, hoje,
instrumentalizam o exercício do poder através da busca, da produção e da revelação a
um Outro de uma verdade sobre si, sujeitando a relação consigo mesmo ao olhar e a
direção de um elemento externo. Por fim, expomos os principais pressupostos e práticas
da redução de danos, acompanhamos seu processo de inserção nas políticas públicas
brasileiras – pontuando sua relação com o setor da saúde mental – e apresentamos os
possíveis pontos de convergência entre tal política e as estratégias liberais de governo,
como a atuação em território, a pulverização de intervenções e o incremento da
autonomia dos indivíduos, e sua relação com a forma como os indivíduos se relacionam
consigo mesmos, como o aumento da auto-vigilância e da discursividade sobre si.
Palavras-chave: redução de danos, governamentalidade, liberalismo, tecnologias de si.
vii
ABSTRACT
This work presents a reflection about the transformations in the ways of oneself and
others selves‟ govern provoked by shifts in Brazilian health politic destined to drugs
users. Since the beginning of the 21th century, the harm reduction paradigm has been
adopted as official politic of the Health Ministry for deal the drugs questions, changing
the manners of interventions, the objectives and the ways of attention in this field,
transformations that will be the core of the our analysis. If, on the one hand, its adoption
represents an overcoming over the old massif ways of individual‟s bodies control, on
the other hand, it could had given ground to a new form of control of ife, near to the
liberal forms of management, that utilize a very sophisticated shape of power and,
instead of shut in the individuals in a closed place and submit them to a intensive
process of surveillance and correction, take advantage of their liberty, investing in the
promotion of their self-regulation and functioning in articulation with the manner that
the persons govern themselves. So, our aim is to bring some possible points of
convergence between the harm reduction strategies, present in the current Brazilian
health politic, and the liberal forms of management. This study was building through a
documental analysis of governmental orders, laws, manuals and others publications
draw up by the Brazilian govern that made mention of the harm reduction strategies and
that aim regulate the professional practices destined to drugs users. We utilized the
theoretical approach of the French philosopher Michel Foucault. We worked first, with
his formulations about the governamentality, that is, about the kind of power
characterized by the correct management of the other conduct, exposing its process of
emergence and development until arrive in its current liberal shape. Next, we exhibit the
oneself technologies‟ features over which the current forms of life‟s govern is based.
According to the philosopher, the oneself technologies, nowadays, assist the power‟s
viii
practice through the search, the production, and the revelation of a truth about oneself,
subjecting the relation with oneself to the examination and the administration of an
external element. At last, we expose the most important practices of harm reduction, its
insertion in the Brazilian public politics – point to the relationship with the mental
health sector – and present the possible points of convergence between this politic and
the liberal strategies of govern, like the territorial work, the pulverization of intervention
and the promotion of the individual‟s autonomy, and its relationship with the manner
that the persons relating with oneself, like the increase of self-surveillance and of the
speech about oneself.
Key-words: harm reduction, governamentality, liberalism, technologies of oneself.
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 10
I– 1
- A governamentalidade .......................................................................
18
18
1.1 - Uma breve introdução .............................................................................
1.2 - As raízes da governamentalidade ............................................................
22
1.2.1 - O poder pastoral ....................................................................................
22
1.2.2 - A razão de Estado do século XVI .........................................................
25
1.2.3 - A arte de governar .................................................................................. 27
1.2.4 - A Polícia .................................................................................................. 29
1.3 - O século XVIII e seus importantes acontecimentos ...................................... 31
1.3.1 - O surgimento da população e o desbloqueio das artes de governar ....... 31
1.3.2 - O liberalismo ............................................................................................ 34
1.3.2.1 - O Dispositivo de segurança ............................................................
38
1.4 - O liberalismo do século XX ........................................................................ 42
1.5 - A governamentalidade na atualidade: O governo da vida
pela liberdade .................................................................................................
46
II – 2 - As tecnologias de si ..............................................................................
49
2.1 - Localizando a problematização ..............................................................
49
2.2 - Subjetividade e Verdade ........................................................................
52
2.3 - Um olhar para si ......................................................................................
56
2.4 - As práticas .................................................................................................... 60
2.5 - Relação com o mestre .................................................................................... 65
2.6 - Sujeito do cuidado de si x Sujeito da obediência ......................................... 67
2.7 - O espaço da liberdade ............................................................................... 71
III – 3. - A redução de danos ................................................................................
74
3.1 - O Surgimento e as primeiras ações .............................................................
3.2 - Pressupostos e práticas ............................................................................
3.3 - A redução de danos no Brasil ....................................................................
3.3.1 - A Chegada ..............................................................................................
3.3.2 - A institucionalização e o aparato legal .................................................
3.4 - A psiquiatria e os seus movimentos de contestação ................................
3.4.1 - O terceiro movimento e a reformulação do serviço de saúde
mental brasileiro .................................................................................................
3.5 - Novas formas de governo de si e do outro ............................................
3.5.1 - Práticas psi e a Hermenêutica dos usuários .........................................
74
78
80
80
83
90
93
99
107
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 114
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 119
10
INTRODUÇÃO
Nessa dissertação faremos uma reflexão acerca de como as transformações das
diretrizes políticas de saúde voltadas para os usuários de drogas no Brasil podem ser
lidas a partir da introdução de novas formas de governo de si e do outro. Desde o início
do século XXI, o paradigma da redução de danos vem sendo adotado como política
oficial do Ministério da Saúde para lidar com a questão das drogas, operando uma série
de modificações em termos intervenção, objetivos e formas de atenção neste campo,
modificações estas, que serão o cerne da análise pretendida.
A pesar de haver, no âmbito legislativo, o propósito de algumas ações
preventivas, até meados da década de noventa as ações do governo estavam centradas
prioritariamente na questão da repressão ao tráfico. Foram criados, entre o período de
1980 e 1993, diversos órgãos de atuação no campo das drogas, como a Secretaria
Nacional de Entorpecentes, o Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão
de Entorpecentes e o Conselho Federal de Entorpecentes, todos vinculados ao
Ministério da Justiça (Conselho Federal de Psicologia, 2009). No domínio do Ministério
da Saúde as ações eram norteadas por um modelo hospitalocêntrico, no qual, a atenção
ao usuário era pautada na prática do internamento em hospitais psiquiátricos. Nesse
modelo interventivo o usuário gozava de pouca autonomia em seu tratamento, sendo
objetivado quase que passivamente no conjunto de técnicas e ideais médicos
configurados no espaço do confinamento asilar, tendo a abstinência como uma meta
exclusiva a ser alcançada.
Na segunda metade da década de noventa, diante do problema da disseminação
do vírus HIV por usuários de drogas injetáveis, novas formas de atenção aos usuários de
drogas começam a ser consideradas pelo governo. Estratégias que visassem à
transformação dos hábitos dos indivíduos na relação com a droga, e não apenas a
suspensão do uso, precisaram ser elaboradas e postas em prática. Tais intervenções
deveriam ser arquitetadas de maneira que pudessem atingir um espectro muito mais
amplo de indivíduos, não se restringindo àqueles que se encontravam encerrados em
ambientes asilares e não se limitando às ações voltadas para a meta exclusiva da
abstinência. Essas ações deveriam ter a capacidade de inserir novos comportamentos
nos indivíduos, comportamentos esses que precisariam ser conservados de maneira ativa
e autônoma pelos sujeitos no seu cotidiano. É ai que a redução de danos – estratégia até
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então utilizada em outros países e aplicada de forma pontual por gestores locais e
organizações não-governamentais – passa a ser oficialmente adotada em âmbito federal
pelo governo brasileiro, através de ações executadas pela Coordenação Nacional de
DST/AIDS.
O Ministério da Saúde define redução de danos como um conjunto de estratégias
para lidar com a questão das drogas que não adota a abstinência como meta obrigatória
e imediata, mas que elabora ações para a diminuição dos danos ao usuário e aos
indivíduos a ele vinculados (Brasil, 2010a). Dessa maneira, tais práticas pretendem
alcançar indivíduos que não querem, não podem ou não conseguem interromper o uso
das drogas. Dentre os seus princípios teoricamente defendidos estão: a tolerância, por
conta do respeito às escolhas individuais; a diversidade, por abarcar em suas
intervenções uma multiplicidade de tipos de usuários; e o pragmatismo, pelo fato de
serem articuladas ações dentro do campo da possibilidade, ainda que determinado
objetivo, identificado como ideal, não possa ser atingido. Como exemplos de medidas
de redução de danos encontramos: a distribuição de seringa para usuários de drogas
injetáveis, a substituição de uma droga por outra que ofereça menos riscos, a
distribuição de preservativos, a indicação da ingestão de líquidos e alimentos para que
sejam amenizados os danos ao corpo, a redução do consumo, a suspensão da utilização
da droga em determinadas ocasiões e a interrupção total do uso. Nessa abordagem, o
usuário, caso não interrompa o uso, deve construir ativamente modos mais saudáveis de
uso da droga, diminuindo os riscos trazidos para a coletividade e para a saúde do
próprio indivíduo. Uma das atividades fundamentais da redução de danos é o trabalho
no território, onde o usuário é encontrado em sua própria realidade, possibilitando uma
capilarização da intervenção e uma incorporação de novos elementos aos saberes
anteriormente construídos. Nessa forma de cuidado não só os usuários são acionados,
mas toda sua rede social, como familiares e comunidade do bairro.
Atualmente, as práticas de redução de danos no Brasil não se restringem à esfera
da saúde strictu senso. Desde 2003 após a aprovação da Política do Ministério da Saúde
para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, a redução de danos sai do
âmbito exclusivo da Coordenação de DST/AIDS e se torna a estratégia norteadora de
todos os serviços de saúde. A partir de então, as intervenções dirigidas aos usuários de
drogas devem ser executadas em articulação com diversos outros setores das ações
governamentais, sobretudo os ligados a educação e a promoção de emprego e renda.
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Nessa nova política o indivíduo não é incitado a exercer uma autogestão apenas no trato
com a sua saúde, ele é levado a engajar-se numa forma de vida mais responsável e
autônoma em todos os aspectos da sua vida, sobretudo, através de sua inserção no
mercado de trabalho que poderá prover a sua auto-manutenção na sociedade. As
práticas de redução de danos devem encontrar seu lugar de maior aplicabilidade no
campo da saúde mental, setor que vem substituindo os tradicionais dispositivos asilares
– oferecidos aos usuários de drogas e demais indivíduos considerados portadores de
algum transtorno mental – por serviços de portas abertas, assentados em estratégias de
atuação no território, na busca ativa, na clínica ampliada e principalmente no
incremento da autonomia e da responsabilidade dos usuários.
Diante de tais transformações operadas nesse campo, esse trabalho traz como
desafio a ampliação da discussão a respeito dos dispositivos de governo de si e do outro
gerados a partir da incorporação dos princípios da redução de danos na política de saúde
brasileira. Se, por um lado, sua adoção representa a superação das antigas formas de
controle maciço sobre os corpos dos indivíduos, que eram então submetidos ao
disciplinamento inflexível em ambiente asilar; por outro, ela pode ter dado lugar a uma
nova forma de gerenciamento da vida, mais próxima ao modelo liberal de gestão que,
como definido por Foucault, lança mão de uma forma de poder bastante sofisticada e, ao
invés de encerrar o sujeito em espaços fechados e submetê-lo a processos ostensivos de
vigilância e correção, faz-se valer de sua própria liberdade, investindo no incremento da
sua auto-regulação e efetivando-se graças a sua articulação com a maneira como os
indivíduos governam a si mesmos. Convidamos o leitor, portanto, a lançar um novo
olhar sobre o processo de inserção dessa abordagem nas estratégias de saúde. Se
normalmente olhamos para tal incorporação a partir da perspectiva do afastamento das
antigas formas de poder, desejamos aqui, pensar nas possíveis novas formas de governo
da vida que puderam ser implantadas.
Sendo assim, o nosso objetivo é levantar possíveis pontos coadunação entre as
estratégias de redução de danos, presentes na atual política saúde brasileira, e o modelo
de gestão liberal. Para tanto, foi realizada uma análise documental das portarias, leis,
cartilhas, manuais e demais publicações produzidas pelo governo brasileiro que fazem
menção à estratégia de redução de danos e que visam regulamentar as práticas
profissionais dirigidas aos usuários de drogas. Investigamos neste material como as
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formas de governo do outro tem sido programadas, de que estratégias elas dispõem, e
qual a sua relação com a forma como os indivíduos se relacionam consigo mesmos.
A dimensão da questão da droga no Brasil hoje é indiscutível. A visibilidade dada
ao problema do tráfico, a discussão acerca da presença da droga nos diferentes setores
da população, as reflexões sobre as formas de uso dada a configuração da sociedade
contemporânea, refletem a necessidade de discussão também a respeito das formas
atuais de tratamento. Desde o início do século XXI a redução de danos é adotada como
a estratégia oficial do governo e vem tentando ser implementada em todos os setores da
saúde pública que lida com essa questão. Ao se discutir as novas formas de gestão de si
e do outro colocadas em jogo com essa nova política, pretende-se ampliar a
compreensão do fenômeno atualmente. O que se almeja aqui, não é estabelecer
nenhuma crítica feroz a esse novo modelo de atenção e nem propor uma nova forma
atuação. Tampouco, se pretende encorajar algum retorno aos nefastos dispositivos
asilares, ainda remanescentes em nossa sociedade. Esperamos que esse estudo possa nos
auxiliar na compreensão das implicações éticas e políticas trazidas por tais estratégias,
através da apreensão dos novos perigos e desafios implicados.
Teremos como auxílio nessa empreitada o pensamento e as obras produzidas pelo
filósofo francês Michel Foucault. Para a compreensão do modo de gestão liberal,
teremos como referencial teórico as publicações dos cursos do final da década de 1970,
Segurança, Território e População e O Nascimento da Biopolítica. Nesses cursos o que
se pretendia de início, em continuidade às obras anteriores, era elucidar as condições de
aparecimento da forma de poder que tem como objeto a população. Nas obras
anteriores, o autor havia trabalhado a ideia de como o controle da população passava
necessariamente pelo gerenciamento dos processos biológicos da vida, como
adoecimento, morte e sexualidade. Nesse contexto o autor trabalhara, sobretudo, o papel
da polícia médica no século XVIII, o surgimento da medicina social e da higiene
pública. No entanto, o que se sucedeu nas formulações seguintes foi um deslocamento
significativo de suas análises. Foucault, nas duas obras acima referidas, passou a se
dedicar à análise da racionalidade governamental que, como indicam Martins e Peixoto
Júnior (2009), pode ser entendida como a “reflexão sobre a natureza e a atividade do
governo”. Nesse momento o filósofo analisa a maneira como o Estado pensa a si, como
organiza suas ações e como elabora um conhecimento preciso acerca de seus objetos,
saber indispensável para a realização das metas pretendidas. Esse estudo não passa,
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contudo, pelas teorias jurídicas ou filosóficas da soberania, nem pela história das
instituições ou do poder público, o elemento perquirido pelo autor é a racionalidade
concernente às tecnologias de gestão dos indivíduos colocadas em jogo para dar conta
do gerenciamento da população que entraram em circulação a partir do século XVIII
(Martins & Peixoto Júnior, 2009). Essas duas obras, anteriormente citadas, poderiam ser
intituladas, afirma Foucault, como a “história da governamentalidade”. Sendo a
governamentalidade entendida como o “conjunto constituído pelas instituições,
procedimentos, análises, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante
específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de
saber a economia política e por instrumentos técnicos o dispositivo de segurança”
(Foucault, 2001a, p. 291-292).
A pesar de se dedicar ao estudo das reflexões teóricas operadas pelo Estado
acerca de suas ações e objetivos perseguidos, o que o autor pretende ao examinar essa
literatura é evidenciar o quanto a racionalidade adotada pelo Estado se reflete nos
modos de agir dos indivíduos em sua cotidianidade, o quanto ela é traduzida na própria
racionalidade adotada pelos indivíduos e, dessa forma, ele entende a racionalidade como
aquilo que “orienta o conjunto da conduta humana” (Foucault, 2006c). Partindo dessa
perspectiva, para o autor, são as próprias relações de poder imersas na trivialidade da
vida que tornam possível ao Estado existir (Foucault, 2006b). O Estado propriamente
dito, em seu funcionamento real, não se caracteriza por nenhuma instância
transcendental ou metafísica, ele só ganha materialidade e realidade a partir dos
comportamentos cotidianos dos indivíduos. É por isso que, para ele, se desejamos
estabelecer alguma crítica e modificar o que chamamos de poder do Estado, são as
diversas relações de poder presentes na sociedade que devem ser transformadas. Ou
seja, são as diversas maneiras de se relacionar consigo e com o outro que devem ser
alteradas.
Nesse momento da obra, a concepção de poder do autor passa a ser caracterizada
pela arte da condução da conduta alheia, como um conjunto de ações sobre ações
possíveis, podendo ser analisadas em termos dos objetivos perseguidos, das
modalidades instrumentais empregadas, das formas de institucionalização e dos graus
de racionalização (Foucault, 1995). Não é um poder da ordem da lei, que constrange,
que coage ou que bloqueia, é uma concepção de poder positiva, que, em sua atividade,
conduz os indivíduos aos comportamentos desejados através de processos de
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normalização. O poder aqui também não é da ordem da posse, onde alguns teriam o
privilégio de adquiri-lo e outros seriam completamente destituídos desse direito.
Concebido como a arte de conduzir condutas, como governo, o poder é tomado como
intrínseco a uma multiplicidade de relações humanas, onde os indivíduos tentam
conduzir a conduta dos outros. Melhor seria, sugere o autor, pensar em relações de
poder, que abrigam sempre, dentro da sua própria dinâmica, a possibilidade das
resistências, das liberdades, uma vez que operam no campo das possibilidades e são
caracterizadas necessariamente por sua flexibilidade e por sua capacidade de
modificação dos pólos de exercício do poder.
E é por conta da perspectiva de poder elaborada nesse momento de sua obra que
tal período fora sucedido pelas formulações de Foucault acerca das formas de
relacionamento consigo mesmo estabelecidas pelos sujeitos – aspecto por nós também
trabalhado. Se há, de um lado, um poder que age sobre os indivíduos, tentando interferir
na sua conduta, há, por outro, um sujeito que se conduz, que é levado a se objetivar de
determinada maneira dentro dessa relação de poder. Não há apenas um poder que age,
há também um indivíduo que atua ativamente sobre si, estabelecendo algum tipo de
relacionamento consigo mesmo. Esse governo de si mesmo é objeto de estudo das
últimas análises empreendidas pelo autor e constituem o que se costuma denominar de
período ético de sua obra, onde é elaborado o que ele chamou de histórico do cuidado
de si ou das tecnologias de si. Para Foucault, as formas de governo do outro hoje estão
assentadas em tecnologias de si associadas a práticas cristãs de decifração de si e
confissão permanente a um Outro. A relação consigo está, dessa forma, sujeitada ao
olhar de um elemento externo que é a peça chave para a decifração do sujeito e,
consequentemente, o principal condutor do seu processo de transformação. Vemos ai,
como o governo de si se integra com a prática de governo do Outro. Essa revelação
permanente para o Outro tem como conseqüência a produção infindável de uma verdade
sobre o sujeito, que é reiteradamente utilizada como ensejo para sua infinita necessidade
de investigação e correção. Estabelece-se, então, um vínculo permanente entre
governante e governado, desencadeando neste último, processos de subjetivação, ou
seja, de constituição de si, a partir de injunções colocadas pelo primeiro. Para o filósofo,
o sujeito ético típico da contemporaneidade é, portanto, caracterizado como o sujeito
ético da obediência (Foucault, 2010).
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As obras que compõem essa fase são compreendidas pelos dois últimos volumes
da História da Sexualidade e pelos cursos proferidos no início dos anos oitenta no
Collège de France, como A Hermenêutica do Sujeito. Tal momento em seu pensamento,
a pesar de ser considerado como uma nova etapa, devido a certo deslocamento em sua
perspectiva, deve ser percebido como parte integrante do seu projeto total que é, como
declara o próprio autor, compreender como os indivíduos entram nos jogos de verdade.
Sendo a verdade considerada como o “conjunto das regras segundo as quais se distingue
o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (Foucault,
2001b, p. 13). Nesse momento o autor concentrou seu interesse nos processos de
constituição do indivíduo a partir da perspectiva do próprio sujeito, defendendo que as
tecnologias de si hoje tendem a instrumentalizar o exercício do poder através da busca,
da produção e da revelação a um Outro de uma verdade sobre si.
Parece que a pretensão de Foucault, ao examinar as relações de poder presentes
em nossa sociedade, não é reduzir a realidade a tal unidade de análise, há além do poder
uma série de variáveis passíveis de apreensão em cada fenômeno apreciado, fatores
econômicos, aspectos simbólicos, crenças, relações de comunicação, etc. O que ele
procurou fazer, ao evidenciar as relações de poder presentes em nossa sociedade, foi
trazer à luz aquilo que toca os indivíduos, aquilo que eles fazem, e por isso mesmo,
aquilo que é possível de se transformar. Como o próprio autor afirmou, o que se
pretendeu fazer foi “decifrar uma camada da realidade de maneira tal que dela surjam as
linhas de força e de fragilidade, os pontos de resistência e os pontos de ataque possíveis,
as vias traçadas e os atalhos” (Foucault, 2006e, p.278). Para o autor, o poder não é algo
onipotente e onisciente que nos transforma em infelizes coagidos, pelo contrário,
afirma, se tantas formas de poder foram necessárias, se tantas transformações e
reacomodações foram precisas, é justamente porque esse poder não é onipotente. Esse
trabalho se vale, portanto, da adoção de uma perspectiva filosófica que, como sinaliza
Ferreira (2005), sem dúvida alguma, tem um objetivo político ao instrumentalizar as
lutas, graças à sua historicização crítica, à sua problematização da luta e de seus alvos,
contextualizando-os espacial e temporalmente, e graças à sua “participação nas próprias
lutas através da passagem pela alteridade e pela diferença” (Ferreira, 2005, pg. 30).
Para atingirmos os objetivos pretendidos organizamos essa dissertação dividindoa em três capítulos. No primeiro, fizemos um histórico da evolução da
governamentalidade buscando entender as raízes e as transformações ocorridas com
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essa tecnologia de poder que surgiu no século XVIII e hoje se caracteriza por
apresentar, entre as suas modalidades, um modelo de gestão liberal. No segundo
capítulo trabalhamos as produções teóricas foucaultianas concentradas no que se
denomina período ético, a fim de compreender como se constituem as tecnologias de si
sob as quais tal modelo de gestão está assentado. No terceiro, fizemos uma exposição
dos principais pressupostos e práticas da redução de danos, acompanhamos seu
processo de inserção nas políticas públicas brasileiras – pontuando sua relação com o
setor da saúde mental – e por fim apresentamos os possíveis pontos de convergência
entre tal política e as estratégias liberais de governo.
18
CAPÍTULO I
1. A governamentalidade
1.1 Uma breve introdução
Para Foucault, desde o século XVIII vivemos no que ele denominou de “era da
governamentalidade”. O que pretendia dizer o filósofo ao cunhar esse estranho
neologismo, que revelaria uma interessante perspectiva a respeito da trama das relações
de poder em que estaríamos envolvidos há quase duzentos anos? Para fazer uma costura
de suas idéias e tornar mais inteligível esse conceito complexo, mas sem dúvida alguma
bastante proveitoso, recorreremos às suas produções localizadas no final dos anos de
1970, buscando captar os pontos mais esclarecedores da sua obra, bem como as
transformações analíticas mais importantes no decorrer desses estudos, condições
necessárias para a problematização pretendidas no desenvolvimento desta dissertação.
A construção do conceito de governamentalidade não se dá de maneira isolada
nas formulações do autor, ela se caracteriza como mais um dentre os diversos
deslocamentos operados pelo autor ao analisar a questão do Biopoder, ou seja, do poder
que tem como alvo a vida e os corpos dos indivíduos (Foucault, 2006a). O Biopoder
apresentou-se, primeiramente, sob o formato disciplinar, ainda no século XVII. A
tecnologia da disciplina teria como alvo corpos individuais, circunscritos em espaços
fechados, corpos meticulosamente esquadrinhados e vigiados, geridos através de
processos maciços de normalização, que através de uma vigilância e controle
permanentes visavam o ajustamento minucioso do indivíduo à norma desejada. Ela é
centrada no corpo máquina e procura extrair deste a maior quantidade de energia
possível1. A partir do século XVIII, contudo, o surgimento de um novo objeto de ação
do poder, a população, coloca em jogo uma inusitada política de gestão dos indivíduos,
a Biopolítica, que lança mão de estratégias peculiares de atuação e de novas formas de
inteligibilidade em relação ao seu objeto, a saber, a vida. Essa nova tecnologia posta em
jogo, nomeada por Foucault de Biopolítica, é centrada no corpo enquanto espécie e
exerce o controle através da gestão dos processos biológicos como reprodução,
morbidade, mortalidade e expectativa de vida. Ela tem como objeto os processos
biológicos da espécie humana e considera os fenômenos de massa e de longa duração,
1
Para melhor apreciação da tecnologia de poder disciplinar ver: Foucault, M. Vigiar e Punir: o
nascimento da prisão. Petrópolis, Editora Vozes, 1977.
19
utiliza-se de mecanismos como a estimativa estatística e tem como objetivo produzir a
regulação e a homeostase da população, apresentando uma forma de poder sobre os
indivíduos bastante diferente da tecnologia disciplinar.
O surgimento da Biopolítica, vale lembrar, não significa o desaparecimento da
tecnologia disciplinar, elas atuam, hoje, de maneira acoplada e complexificada. A
Biopolítica é, contudo, a última ruptura significativa, para o autor, no tocante às
relações de poder, apresentando desde seu surgimento algumas reacomodações e
renovações.
Ao atribuirmos à Disciplina adjetivos como antigo ou anterior,
pretendemos somente marcar suas diferenças e sua anterioridade quanto ao surgimento,
não o seu desaparecimento absoluto. O estudo da governamentalidade faz parte deste
projeto de compreensão das formas de composição de um poder que tem como alvo
uma população, e não somente os corpos individuais da disciplina. Esta população não é
determinada por seu pertencimento a determinado espaço fechado, mas é constituída por
todos os indivíduos inseridos na trivialidade da vida em sociedade. O que temos hoje,
portanto, para Foucault, é uma tecnologia de poder que permite o governo de todos e de
cada um simultaneamente.
Ao tentar elucidar como se constitui esta tecnologia de gestão dos indivíduos
surgida no século XVIII, a Biopolítica, Foucault vai produzindo sucessivas
reacomodações do olhar para a melhor apreciação do seu objeto e traça um percurso que
pode ser dividido, como sugere Farhi Neto (2010), em cinco momentos principais: vai
(1) da análise da disseminação da medicina e das questões da saúde pelo tecido social,
(2) passando pela articulação do conceito de raça à prática da guerra, (3) pela utilização
do recurso de dispositivo de sexualidade, (4) pela relação do Estado com a garantia de
segurança e prevenção dos riscos da população até (5) as reflexões liberais e neoliberais
de governo que possibilitam a gestão dos indivíduos através do modelo da racionalidade
econômica. A cada nova ponderação novos elementos são incorporados, compondo
todos juntos um complexo mosaico que caracteriza as formas atuais de gestão da vida.
A noção de governamentalidade é introduzida nestes dois últimos momentos,
quando Foucault identifica como uma prática racionalizada de governo por parte do
Estado – que começou a aparecer no século XVI a partir da formação dos Estados
nacionais – pode encontrar somente no século XVIII seu ponto de apoio e solidificação,
no momento em que a população se tornou permeável às técnicas de intervenção graças
à sua transformação num dado discriminável, capaz de ser compreendido em suas
20
regularidades e em seus fenômenos específicos, quando ela passa a ser traduzível
estatisticamente e compreendida enquanto um objeto específico nunca anteriormente
apreciado. “A problematização da governamentalidade permitiu a Foucault estabelecer
um diagnóstico significativo da época contemporânea, a partir da racionalização do
poder político” (Candiotto, 2010, p. 40). Ao tornar-se uma perspectiva de análise, a
população surge como o objetivo final do governo, que vai legitimar suas práticas em
nome do aprimoramento e aperfeiçoamento das condições de vida desta. O governo
passa a se ocupar da melhoria de sua riqueza, de sua sorte, de sua saúde, de sua
expectativa de vida, e, agindo em nome desta população vai colocá-la numa situação de
duplo posicionamento: ela é tanto um objeto da intervenção estatal quanto um sujeito,
um sujeito de necessidades e aspirações, que apresenta seus pontos de carência a partir
da revelação de suas variáveis.
O surgimento dessa política das populações colocou em jogo uma nova tecnologia
de poder, denominada por Foucault de dispositivo de segurança, que funcionaria de
uma maneira bastante diferente – apesar de atuar de forma conjunta – do mecanismo de
poder disciplinar. A começar por sua relação com os eventos indesejáveis, o dispositivo
de segurança não busca a todo custo eliminar determinados acontecimentos, uma vez
que, uma análise afinada de sua conjuntura revela, por vezes, suas condições de
inevitabilidade. Trata-se aqui de produzir um dispositivo que possa intervir nos diversos
elementos da história do evento em questão, e não somente no seu ponto final,
procurando reduzir os efeitos negativos e potencializar os positivos. A forma de
normalização também se mostra diferente do modelo disciplinar. A norma é extraída a
partir da observação e do exame da própria realidade, de onde se calcula uma média,
uma normal. O estabelecimento da norma requer, portanto, um escrutínio, um estudo,
uma avaliação da realidade, contrapondo-se à rígida imposição de um ideal como no
modelo disciplinar. A operação aqui consiste em, através do estabelecimento de uma
curva normal, tentar aproximar as normas mais desviantes da ideal, e não em uma
implantação estática de um modelo de perfeição, cego às características “naturais” do
objeto em questão. A assunção da população à categoria de análise tornou possível a
constituição de um campo de saber específico do governo, a economia política, que vai
concentrar sua análise na relação das variáveis populacionais com as demais variáveis
anteriormente consideradas pelo governo, como riqueza e território. (Foucault, 1978).
21
O que Foucault nos mostra, ao realizar seu estudo sobre a era da
governamentalidade, é que desde que o poder se ocupou de gerir a vida da população,
esta tem se constituído, em seus mais distintos âmbitos, enquanto um lugar de produção
ilimitada de saber, implicando numa forma de controle que foi se tornando cada vez
mais sutil e capilar, na medida em que regula os indivíduos através das verdades
produzidas
acerca
destes.
Essas
verdades
são
reiteradamente
pronunciadas,
naturalizadas e consequentemente invisibilizadas. Vivemos, desde o século XVIII,
circunscritos numa trama de poder que está assentada na produção constante de
conhecimento acerca de seus objetos. A constituição dessa nova ciência, a economia
política, saber próprio ao governo, tornou-o permeável a um regime de verdades,
estabelecendo, desde então, uma demarcação entre o falso e o verdadeiro, instituindo-se
os mecanismos válidos para estabelecer tal divisão, adotando-se determinados discursos
e fazendo-os existir enquanto verdade e elegendo-se as instâncias aptas a enunciar os
discursos legítimos (Castro, 2009). Há desde esse período até nosso tempo uma
reivindicação permanente de cientificidade para pautar as ações do Estado.
Desde o seu surgimento, a governamentalidade foi sofrendo constantes
transformações e reacomodações, até assumir seu atual formato liberal, onde podemos
identificar o que se chama de governo pela verdade. Partindo do ostensivo estado de
polícia do início do século XVIII, passando pelo liberalismo do laissez-faire e chegando
ao modelo liberal contemporâneo, a governamentalidade apresenta hoje uma forma de
gestão bastante econômica, que dispensa os processos maciços de vigilância e correção
ostensiva, e propõe aos sujeitos que se auto-gerenciem baseados nas verdades
produzidas. Esta forma de poder predominante na contemporaneidade pressupõe uma
posição ativa dos sujeitos, estabelecendo um intenso contato entre as tecnologias de si e
do outro. Experimentamos hoje uma forma de poder bastante diluída que, como
apontam Ferreira, Kaufman e Zapata (2009) se invisibiliza ao liberar os indivíduos das
enclausurantes estruturas disciplinares e submetendo-os aos quase imperceptíveis
grilhões da verdade. É uma forma de governo que ao se utilizar da auto-gestão dos
indivíduos para exercer seu controle, torna bastante problematizável qualquer reflexão a
respeito do exercício da liberdade no tempo atuais.
Essa forma de governo que surgiu no século XVIII e se estendeu até o nosso
tempo presente pôde se estabelecer, segundo Foucault, graças a dois eventos que lhes
foram anteriores. Um deles é advento da tecnologia do poder pastoral, capaz de se
22
ocupar, simultaneamente, da coletividade e da individualidade de um bando. O outro foi
a consolidação do Estado moderno no século XVI, quando houve um processo de
racionalização dos atributos, objetivos e objetos desse Estado, momento em que este
passou a se ocupar não mais prioritariamente da proteção territorial, mas da majoração e
do ordenamento das forças produtivas dos entes governados. Passemos agora para o
estudo mais detalhado das condições de surgimento e das trajetórias percorridas por essa
forma de governo, para ao final podermos operar com mais clareza uma
problematização acerca dessa forma de poder que hoje toma a liberdade como um
instrumento do seu próprio exercício.
1.2 As raízes da governamentalidade
1.2.1 O poder pastoral
Como dito anteriormente, Foucault identifica as raízes desse processo de
governamentalização ocorrido no século XVIII em dois eventos que lhes foram
anteriores. Um deles é o surgimento da tecnologia do poder pastoral, um procedimento
de gestão dos indivíduos com efeitos individualizantes e totalizantes, que se originou lá
na Antiguidade e que se faz presente até nossos dias atuais.
Segundo o autor, a concepção de que a autoridade, seja ela de origem política ou
divina, seria um pastor com função de guiar seu rebanho era totalmente estranha ao
pensamento político grego. Para estes, a vinculação direta dos deuses era com a terra,
estes a possuíam, e a forma como se dava essa posse era o que estabelecia a relação
entre esses deuses e os homens. Na pastoral, por sua vez, a relação da divindade, ou do
pastor que o representa, se dá diretamente com o próprio rebanho. A terra, nesse caso, é
oferecida ou não, em detrimento dessa relação do indivíduo com Deus. Seus
comportamentos, suas atitudes e seus pensamentos lhes tornarão merecedores ou não de
uma terra fecunda e exuberante. Outra função inédita em relação ao pensamento político
grego foi o papel agregador do pastor. Este guia, conduz e orienta um conjunto de
indivíduos que em sua ausência se encontrariam necessariamente dispersos. Os sujeitos
só se constituem enquanto grupo, enquanto rebanho, graças à presença e atuação do
pastor, elemento agregador e fundador da instância da coletividade. Mais um contraste
apresentado pela tecnologia pastoral é a propriedade salvadora do pastor, que vela
atenciosamente para que cada um do rebanho esteja a salvo, bem alimentado e bem
23
cuidado. Os deuses gregos, é claro, também tinham o poder de salvar o povo, mas eles
lhes davam uma terra fecunda, e assim garantiam o bem estar de todos de uma só vez.
Não se tratava de uma salvação individualizada como na pastoral, onde há uma
preocupação em vigiar cuidadosamente para que cada ovelha, uma a uma, esteja a salvo.
É o pastor que serve de mediador entre as ovelhas e o bom pasto. A benevolência é uma
característica essencial da atividade do pastor, ele atua devotamente pelo bem do seu
rebanho, e exercer tal poder sobre os indivíduos é um dever, uma obrigação associada à
devoção que lhes deve ser prestada (Foucault, 2006d).
Essas são, contudo, características da tecnologia pastoral correspondentes ao
período pré-cristão, pertencentes ainda à civilização hebraica. Com o nascimento da
religião cristã esse mecanismo de gestão dos indivíduos foi aprofundado, desenvolvido
e fortalecido, e alguns dos temas hebraicos foram transformados e incrementados. A
partir do exame de textos da literatura cristã dos primeiros séculos, Foucault percebe
que o cristianismo ampliou a responsabilização do pastor para com o seu rebanho.
Agora, além de ter a tarefa de estar atento a cada membro do rebanho, ele deve dedicar
sua atenção a uma gama infinita das ações praticadas por eles, ocupando-se de tudo o
que lhes diz respeito. O pastor zela, e é responsável, por todos os aspectos da vida dos
indivíduos, ilimitadamente, indiscriminadamente, complexificando-se os laços morais
entre ele e o seu rebanho. A religião cristã introduziu também o valor moral da
obediência. Para os gregos a obediência era um meio através do qual se atingia
determinados objetivos. Na busca para se alcançar determinados fins, era preciso, vez
ou outra, exercer sobre suas paixões, certo controle, operado graças ao exercício da
razão. Se ocorria de um grego obedecer a vontade de alguém, ele o fazia após ser
racionalmente convencido. No cristianismo, contudo, a obediência torna-se uma virtude
em si, para garantir a salvação, a ovelha deve obedecer prontamente e permanentemente
seu superior. Mais uma transformação realizada foi a união de dois importantes
instrumentos do mundo helênico: o exame de consciência e a direção de consciência. O
exame de consciência visava proporcionar ao indivíduo a realização de uma
contabilidade diária dos atos realizados, a fim de fazer uma auto-avaliação de sua
progressão em direção à perfeição. A direção de consciência, por sua vez, consistia na
transmissão de conselhos por parte de uma autoridade, solicitada pelos indivíduos em
situações específicas, especialmente nas de dificuldade. O cristianismo uniu essas duas
práticas. O exame de consciência deixa de ter a função de conscientização de si e passa
a ser um meio para abertura para um outro, para um orientador de conduta, e a direção
24
de consciência torna-se contínua, e não mais utilizada apenas em situações especiais.
Revelação permanente de suas verdades e orientação contínua de sua conduta por
outrem são duas práticas introduzidas pela pastoral cristã na busca do aperfeiçoamento
de sua arte da condução das almas.
A pesar de marcar seu surgimento lá na Antiguidade, a tecnologia do poder
pastoral passou durante toda a Idade Média por um período de latência e de difícil
disseminação, encontrando somente nos séculos XV e XVI um contexto favorável a sua
efetivação e difusão, inclusive por terrenos para além das fronteiras da instituição
religiosa. Tal período de latência deve-se ao fato de que para que haja a implementação
dessa forma de gestão da vida se faz necessário, segundo Foucault, a experiência de um
ambiente essencialmente urbano, um ambiente bem diferente da pobreza e do ruralismo
que encontramos durante boa parte do período medieval. Outro fator desfavorável foi a
condição cultural da sociedade na época. O pastorado das almas é uma técnica
complexa que exige, tanto por parte do pastor quanto por parte do rebanho, certos
hábitos reflexivos sobre as atitudes humanas e suas implicações quase que totalmente
ausentes na sociedade da época.
Os séculos XV e XVI reuniram, contudo, duas situações cruciais para o
fortalecimento, manifestação e disseminação das práticas pastorais. A primeira delas se
situou no próprio cenário religioso, a partir do movimento da Reforma. Esse movimento
de contestação à forma religiosa hegemônica, a saber, a doutrina católica, encorajou e
provocou a elaboração de uma série modos alternativos de se pensar e de se efetuar a
condução das almas. Foi uma época em que se procurava avidamente por outras
maneiras de se conduzir e ser conduzido, procuravam-se novas estratégias, novos guias,
novos objetivos, novos métodos. Essa conjuntura, denominada de crise do pastorado,
longe de esmaecê-la e fazê-la desaparecer, multiplicou, dispersou e valorizou as formas
de manifestação dessa tecnologia de poder. Nesse contexto, portanto, a associação entre
o conduzir-se e a condução por parte de outrem foi amplamente fortalecida e
consolidada.
A outra situação que favoreceu a disseminação das práticas pastorais foi a
formação do Estado moderno e sua transformação quanto ao exercício do poder
político. Nesse momento, como veremos mais detalhadamente a seguir, houve uma
grande modificação em relação aos objetos do exercício político, saindo de um governo
assentado prioritariamente na gestão do território e passando para um governo
25
preocupado com o gerenciamento dos indivíduos. Essa atenção à conduta dos homens
favoreceu a valorização da racionalidade pastoral e contribuiu para sua disseminação
por todo corpo social. O Estado, agora ocupado com a administração da vida cotidiana,
pega emprestado do pastorado grande parte de suas técnicas e estratégias de governo. E
dessa forma “a tecnologia do poder pastoral encontrou apoio numa multiplicidade de
instituições: ora no aparelho do Estado, ora na polícia, em empreendimentos privados e
sociedades para o bem estar, ou na medicina e na família.” (Caliman, 2002, p. 73).
Com a formação do Estado moderno, portanto, não assistimos a uma ruptura total
entre as formas de governo políticas e as anteriormente executadas pela Igreja. Há, pelo
contrário, uma forte vinculação entre religião e política, que não se dá exatamente por
uma relação oficial entre as instituições do Estado e da Igreja, mas pela presença da
tecnologia pastoral. Graças a sua preservação o governo político pôde lançar mão, até os
dias atuais, de um método de gestão da vida que, perspicazmente, governa a todos e a
cada um simultaneamente, e que gere a coletividade ao mesmo tempo em que é capaz
de examinar as singularidades de cada membro do rebanho. Façamos agora, um estudo
da racionalização das propriedades e atribuições conferidas ao Estado moderno em seu
momento de consolidação, das características da arte de governar que lhe foram
correspondentes e da consequente formação da doutrina da polícia já no século XVIII
para que possamos então, compreender o solo sobre o qual se assenta a eclosão da
governamentalidade atual.
1.2.2 A razão de Estado do século XVI
Foi no século XVI que, como sabemos, o continente europeu sofreu um decisivo
processo de estabilização das fronteiras, ocasionando a formação, quase definitiva, dos
estados nacionais como os conhecemos hoje. Nesse contexto, novas configurações do
poder político e inéditas atribuições estatais começam a se configurar. O governo que
anteriormente se dedicava à ampliação do território e à defesa de suas fronteiras
começa, então, a se ocupar da majoração e organização de suas forças internas. Em
busca de tentar definir o que viria a ser esse então incipiente Estado e de estabelecer a
singularidade dessa forma de governo em relação às outras, uma série de autores
elaboram uma inédita racionalização acerca das atribuições do poder político,
construindo o que eles definiram como razão de Estado. Essa razão de Estado buscava,
26
por um lado, teorizar sobre os vínculos e instituições que de certa forma já se faziam
presentes, e ao mesmo tempo, tinha por meta construir, edificar e solidificar o recente
Estado que iniciava a sua existência; devia, portanto, fazê-lo existir e tomar corpo. Ela
versava sobre o que ele era e sobre o que devia ser. Essa nova razão de Estado não devia
se basear em nenhuma lei divina ou da Natureza, ela devia criar um sistema de leis
próprias baseadas na observação e racionalização da natureza do seu próprio objeto, a
saber, o próprio Estado.
Algumas definições a respeito da razão de Estado elaboradas na época foram
examinadas por Foucault e podem ser trazidas aqui. Para o italiano Palazzo tratava-se de
“uma regra ou uma arte que nos dá a conhecer os meios para obter a integridade, a
tranquilidade ou a paz da república”. Para Chemnitz é “certo cuidado político que se
deve ter em todos os negócios públicos, em todos os conselhos e em todos os desígnios,
e que deve tender unicamente à conservação, à ampliação e à felicidade do Estado”.
Segundo Foucault, a pesar das diversas elaborações produzidas, podemos encontrar
quatro pontos comuns a todas as definições construídas. Primeiramente podemos
destacar a já mencionada ausência de qualquer referência a leis de ordem natural ou
divina. A razão de Estado só deve referir-se a seu próprio conjunto de inteligibilidade.
Em segundo lugar, destaca-se o fato de estas teorizações se constituírem tanto enquanto
uma descrição da essência de um Estado já dado, quanto como um conjunto de saberes
ao qual se deve recorrer para que se preserve a obediência aos seus preceitos. Outro
ponto vem a ser o fato de todas essas reflexões visarem o aperfeiçoamento e a
ampliação de características já presentes no Estado e não a transformação deste. Por
fim, pode-se perceber, aponta Foucault, a unicidade do propósito da razão de Estado,
que vem a ser o próprio Estado. Se existem referências a algo como a perfeição ou a
felicidade, elas sempre dizem respeito ao Estado. A única finalidade da razão de Estado
é o próprio Estado (Foucault, 2008a).
Alguns temas da pastoral são reelaborados nessa razão de Estado e
merecem a nossa atenção. A questão da salvação toma outro objeto. A pastoral buscava
salvar cada um dos indivíduos, mesmo que pra isso, de certa forma, se colocasse em
risco todo o rebanho. O pastor, em busca de livrar da fome uma única ovelha perdida,
seria capaz de comprometer a segurança de todo o rebanho indo à sua busca. Já na razão
de Estado, o que deve ser salvo é o Estado em sua totalidade. Pode-se até mesmo, em
nome desta salvação, em defesa desta sociedade, lesar o indivíduo que venha perturbar a
27
sua tranquilidade. Além de outro objeto, a salvação toma também outro destino. O
pastor buscava garantir a salvação de suas ovelhas numa existência que viria após a vida
terrena, em outro mundo, em outro tempo. Já na razão de Estado do século XVI, o que
se pretende é livrar os indivíduos dos males que são experimentados na terra. Doença,
pobreza, desemprego, acidente, todas essas moléstias são ocasionadas e sofridas nesta
vida. O tema da obediência é também visto por outro ângulo. Para os teóricos da razão
de Estado as sedições e as revoltas são vistas como normais, como esperadas, como
intrínsecas à vida pública. Elas são vistas como mais um elemento a se governar, e não
como algo totalmente intolerável e inadmissível, devendo-se, portanto estudá-las,
gerenciá-las e amenizá-las. A produção da verdade encontra-se, por sua vez, igualmente
transformada nessa razão de Estado. No pastorado, cada ovelha revelava suas verdades
para o pastor, que as avaliava de acordo com leis divinas, doutrinariamente
estabelecidas e historicamente solidificadas. Já na razão de Estado ao governante não
interessa tanto conhecer as leis universais quanto os elementos relacionados ao
fortalecimento desse Estado. Interessa ao governo saber sobre as características do
próprio Estado, sobre sua realidade. Importava saber a respeito das mortes, dos
nascimentos, das riquezas possuídas, como minas e florestas. “Não mais, portanto,
corpus de leis ou habilidade em aplicá-las quando necessário, mas conjunto de
conhecimentos técnicos que caracterizam a realidade do próprio Estado” (Foucault,
2008a, p. 365).
1.2.3 A arte de governar
Um dos pontos que mais interessam a respeito dessa razão de Estado é a análise
da nova arte de governar que ela dá ensejo. Segundo Foucault (2001a) entre os séculos
XVI e XVII ocorre a explosão de uma série de manuais de governo que propunham aos
governantes novas formas de se gerir os indivíduos, através de novos meios, com novos
objetivos e com outras justificativas. Todas essas literaturas encontravam um ponto de
repulsa em comum, a obra O Príncipe, de Maquiavel, contemporânea a esses manuais.
Nesta obra o príncipe é definido a partir de uma relação de exterioridade com o seu
reinado, ele não faz parte do mesmo, ele apenas o possui. Tendo recebido suas terras por
herança ou aquisição em guerras, sua relação com o seu principado é constantemente
ameaçada, seja pelos inimigos externos, que procuram apropriar-se do seu patrimônio,
seja pelos súditos internos que, não enxergando nenhuma vinculação natural entre eles e
28
o governante, não vem motivo algum para obedecerem espontaneamente ao seu
governo. Trata-se, portanto, de uma relação bastante frágil, onde o objetivo do poder é
exatamente fortalecer esse ameaçado laço entre o príncipe e seu principado, que é
formado por dois elementos vistos separadamente, o território os indivíduos.
É questionando essa centralidade da conservação do principado tido como posse
que a nova arte de governar assenta suas reflexões. Examinando um dos principais
textos dessa literatura, a obra de Guillaume de La Perrière intitulada Miroir politique
contenant diverses manières de gouverner, Foucault extrai alguns dos elementos
centrais da nova arte de governar. Um dos pontos mais significativos é a nova
concepção do que vem a ser o governante, aqui não só o príncipe, o monarca ou o juiz
são admitidos como diretores de conduta, fala-se igualmente em governo da casa, da
família, do convento, etc. O governante maquiavélico, o príncipe, era único e exterior ao
seu principado. Já os governantes da arte de governar revelam-se múltiplos, variados,
espalhados nas diversas relações presentes no corpo social, eles são diversos e
encontram-se em relação de imanência com o Estado. São igualmente governantes, o
pai, o padre, o mestre de ofício, o professor. Foucault encontra no autor La Mothe Le
Vayer, uma interessante tipologia das formas de governo presentes na sociedade. Para
ele haveria o governo de si mesmo, definido pela moral, o governo da família,
denominado como economia e o governo do Estado, que viria a ser a política. Ainda
que se apresentem assim separadas, para Le Vayer existiria uma ligação essencial entre
essas formas de governo. Haveria, para ele, uma continuidade ascendente,
proporcionada pela pedagogia, que dizia que um bom governante de Estado deveria
saber governar com qualidade a si mesmo e a sua família.
E a continuidade
descendente, garantida pela polícia, segundo a qual o bom governo do Estado refletiria a
correta gestão dos pais em relação a sua família e dos indivíduos em relação a si
mesmos. O saber da economia, ou seja, da adequada maneira de governar os indivíduos
no interior da família, ocuparia uma posição estratégica nessa arte de governar, devendo
ser transposta para a gestão de todo o Estado. Devia-se, portanto, para os autores da
época, governar o Estado da mesma maneira como se governa a família.
Outra singularidade em relação à produção maquiavélica diz respeito ao objeto da
ação do governo. Para os autores dessa arte de governar não se trata de gerir o território
e os indivíduos separadamente, e sim de gerir corretamente os homens em relação com
as coisas, entendendo-se por coisas, os meios de subsistência, as riquezas, o território,
29
os modos de pensar, de agir, de trabalhar. E essa gestão adequada de cada coisa deve
visar um fim especifico. Não se trata mais da obediência a uma única lei soberana
visando um bem comum, transcendental, cada objeto a ser governado possui uma
finalidade específica para as quais se devem elaborar estratégias também específicas. A
paciência, a sabedoria e a diligência são também qualidades inéditas atribuídas ao bom
governante. Em oposição ao príncipe maquiavélico que impõe sofregamente o seu
poder, o novo governante deve ser tranqüilo, paciente, ele deve, bem como o zangão,
“reinar sobre a colméia sem a necessidade do ferrão”, palavras do próprio La Perrière
exemplificadas por Foucault (2008a). Essa paciência é assegurada por dois elementos, a
sabedoria e a diligência. A primeira garante a paciência do governante devido ao
conhecimento adquirido a respeito dos governados e das corretas estratégias formuladas
para orientá-los, já a segunda, permite a paciência do governante graças à natural
aceitação da ação do governo por parte dos súditos, uma vez que este mostra, em sua
atuação, estar sempre a serviço dos governados. Através dessa nova arte de governar
assistimos, portanto, a quatro movimentos importantes: a distribuição da função de
governo para todo o corpo social e a preocupação com sua correta realização; a
capilarização do poder estatal para diversas áreas da vida dos indivíduos; a atribuição de
finalidades específicas para cada objeto gerido; e uma certa sutilização do poder estatal
garantida pela sabedoria e diligência do governante em oposição a impositiva soberania
maquiavélica. Todas essas transformações ocorridas no poder governamental foram, de
certa maneira, perpetuadas até o tempo presente, sendo fortalecidas e incrementadas de
diferentes formas.
1.2.4 A Polícia
Em articulação com as reflexões a respeito das razões de Estado e na esteira das
formulações acerca das pertinências das suas ações é elaborada, em torno dos séculos
XVII e XVIII, a primeira técnica de governo que expunha com precisão as metas, os
objetos e os caminhos a serem percorridos pelo poder estatal, trata-se da polícia. A
grande meta da polícia podia ser resumida, para Foucault (2008a), como a ampliação
das forças do Estado, preservando, contudo, a sua ordem e o seu controle. Para exercer
tal crescimento das forças fazia-se necessário, de antemão, conhecer quais as
potencialidades desse Estado, quais suas possibilidades de expansão, quais caminhos os
levavam ao enriquecimento, a opulência, para que em seguida se desenvolvesse tais
30
capacidades. Para Justi, um dos formuladores da idéia da polícia, tratava-se de “leis e
regulamentos que dizem respeito ao interior do Estado e procuram consolidar e
aumentar o poderio desse Estado, que procuram fazer um bom uso das forças”. Para
Turquet, que em suas teorizações colocou a polícia ao lado dos três grandes ofícios do
bom governo que já se encontravam em funcionamento – justiça, exército e finanças –
caberia a esta inculcar nos indivíduos funções morais como a modéstia, a lealdade, a
caridade bem como dirigir suas atitudes em relação as suas riquezas, ao seu trabalho e
ao seu consumo. Buscava-se, desse modo, aprimorar determinadas áreas da vida dos
indivíduos de modo que esse desenvolvimento se coadunasse com o fortalecimento do
Estado.
Ela deve se ocupar, segundo a apreciação de Foucault, de cinco grandes áreas.
Primeiro do número de homens, ela deve procurar contabilizar o número de habitantes
e, considerando-os a força matriz do Estado, deve multiplicar o seu contingente,
multiplicando consequentemente a força da nação. À polícia, cabe ocupar-se também
das necessidades da vida, como a moradia, alimentação, vestimentas, assegurando-se de
que aos indivíduos sejam oferecidos esses elementos sem escassez e com qualidade. Ela
deve zelar também pela saúde dos sujeitos, garantindo-os enquanto força produtiva apta
ao trabalho, não somente em situações especiais com as epidemias, mas em seus
diversos hábitos diários. É nesse momento que nasce a atenção aos elementos do meio
capazes de alterar os estados de saúde dos indivíduos como o ar ou a água, constrói-se, a
partir de então, toda uma política do espaço urbano preocupada com as questões da
saúde. A polícia deve cuidar também da ocupação dos homens, deve por para trabalhar
os sujeitos capazes, fazendo-os realizar as atividades importantes para o Estado. E deve,
por último, atentar para os problemas concernentes à circulação, seja de homens, ao
conter a vagabundagem e ao impedir que os bons operários se dirijam para outros
reinos, seja de mercadorias, ao cuidar das vias, dos rios e das praças.
Qual é, portanto, o objeto da polícia? Para Foucault o grande objeto dessa polícia
é homem, o homem em ação, em todas as suas possíveis relações. É o homem que
nasce, que morre, que adoece, que se cura, que se alimenta, que trabalha, que
vagabundeia, esse é o ponto de atuação do governo. Essa forma de controle da vida é
caracterizada pelo estado de polícia, que a tudo governa. Para De Lamare, outro
formulador da idéia de polícia do século XVIII, o Estado deve velar pelo vivo, cabe a
este cuidar para que os homens sobrevivam, e por isso deve se ocupar do indispensável,
31
para que vivam, e por isso deve estar atento ao que é útil, e mais do que isso deve
permitir que façam sempre algo a mais do que viver e sobreviver, devem gerar força
para o Estado, delegando a este, portanto, o cuidado também ao que é supérfluo. Ao
regular a vida dos homens em relação a tudo o que os circunda a polícia torna o
indivíduo o ponto nevrálgico da ação do governo, que direciona o simples viver para os
interesses do Estado. E dessa maneira, “governando os corpos o Estado governa a
tudo.” (Veiga-Neto, e Lopes, 2007, p. 954)
Temos, então, o solo preparado para a eclosão da governamentalidade em meados
do século XVIII. Temos em circulação a tecnologia do poder pastoral, uma forma de
poder individualizante, que se ocupa da condução da conduta alheia, que é capaz de
gerir uma coletividade ao mesmo tempo em que é atenta a singularidade e cada um, e
que se faz possível graças à atenção e à impressão da marca pessoal de cada indivíduo.
Há, por outro lado, o poder totalizante do Estado, que através da polícia e da arte de
governar, distribui a função de governo por todo o tecido social, capilariza seu poder de
ação para diversas áreas da vida e comportamentos dos sujeitos e atrela as atividades
humanas ao aumento da sua potência. O processo de governamentalização analisado por
Foucault tem como ponto de partida, portanto, a ocupação racionalizada por parte do
Estado da vida dos indivíduos em relação aos diversos elementos que os circundam, e a
adoção da tarefa de condução de suas condutas. A gestão governamental, contudo, só se
faz presente na segunda metade do século XVIII, quando a população aparece enquanto
categoria de análise e alvo do poder, quando a economia política se torna a principal
forma de saber do Estado e quando o dispositivo de segurança surge como nova
tecnologia de poder.
1.3 O século XVIII e seus importantes acontecimentos
1.3.1 O surgimento da população e o desbloqueio das artes de governar
Até meados do século XVIII toda essa arte de governar elaborada pelos autores
dos séculos XVI e XVII encontrava-se bloqueada. Essa arte de conduzir condutas, capaz
de produzir o necessário conhecimento acerca dos seus objetos e competente em
encontrar as finalidades específicas para cada alvo do poder, essa arte que se mostra
diligente e hábil na correta orientação dos comportamentos dos indivíduos, não havia
encontrado até então um contexto favorável a sua disseminação. É somente a partir do
32
século XVIII, com o aparecimento da população enquanto unidade de análise e alvo do
poder, que essa forma de governo idealizada anteriormente pode se solidificar, se
desenvolver e perdurar até os dias atuais. É bem verdade que durante as elaborações
realizadas acerca da razão de Estado e do aparelho da polícia, podia-se perceber uma
referência implícita à população, mas os autores ainda não se referiam diretamente a
esta categoria, ainda não haviam elaborado esse conceito de maneira explícita. A quem,
naqueles textos, era necessário salvar? À população. A desobediência de quem devia ser
gerida? A da população. Sobre a opinião e atitudes de quem é preciso agir? Da
população. Todavia, o ambiente de instabilidade e crises vivenciado até então –
provocado, por exemplo, pela guerra dos 30 anos, pelas crises dos meios de subsistência
e pelas sublevações ocorridas do ambiente urbano e rural – atrelado a um
funcionamento institucional ainda marcado pelo modo soberano de poder impediram o
desenvolvimento da arte de governar (Foucault, 2001a). Por um lado muitas
necessidades militares e econômicas. Por outro, um modelo político e econômico, a
exemplo do mercantilismo, que funcionava ainda no registro da soberania, sendo
baseado, portanto, em regulamentos, leis e ordens muito mais voltadas para o fazer
morrer e deixar viver do que para administração e majoração da vida, caracterizada,
então, pelo fazer viver e deixar morrer (Foucault, 2002).
Mas é no século XVIII que as artes de governar encontram um contexto favorável
ao seu desbloqueio. A abundância monetária vivenciada por diversos países e o
crescimento da produtividade agrícola garantiram a atmosfera de expansão e
crescimento necessária. A explosão demográfica e o surgimento de questões ao nível
populacional garantiram, por sua vez, a necessidade da saída do esquema de
pensamento e de gestão baseados nos moldes da soberania. A observação dos
fenômenos específicos da população, bastante tributária da forma de atenção e
intervenção experimentadas no estado de polícia, provocou a elaboração desta categoria
de análise de maneira destacada. A estatística torna-se o instrumento fundamental para
o desbloqueio das artes de governar ao revelar de maneira inédita as regularidades e
especificidades dos fenômenos populacionais. Doenças mortes, nascimentos, acidentes,
uma nova perspectiva de olhar se origina abrindo consequentemente um novo campo de
ação. A ascensão da população à campo de atuação e de análise desloca a centralidade
do modelo familiar enquanto forma de governo. Níveis de mortalidade, epidemias,
flutuações no mercado de trabalho, endemias, revelam que a população apresenta
fenômenos específicos, não equivalentes aos acontecimentos familiares. A família deixa
33
de exercer o papel de modelo para gestão, e passa a ocupar um papel também
importante, o de instrumento do governo. A partir desse momento grande parte das
solicitações de comportamentos dirigidas à população se utiliza da família enquanto
elemento estratégico de penetração e ressonância na vida cotidiana, “quando se quiser
obter alguma coisa da população – quanto aos comportamentos sexuais, à demografia,
ao consumo, etc. – é pela família que se deverá passar.” (Foucault, 2001a, p.289).
Outro fator importante para o desbloqueio das artes de governar foi o fato de os
fenômenos populacionais se constituírem enquanto um campo legítimo de atuação do
governo, garantindo, portanto, a diligência e a presteza necessárias ao exercício do
poder típicas da racionalidade razão de Estado. É em nome da melhoria das variáveis
populacionais, da melhoria de sua saúde, de sua riqueza, de sua longevidade, que o
governo atua, seja diretamente através de campanhas, seja indiretamente, ao intervir em
variáveis relacionadas aos comportamentos dos indivíduos, provocando assim,
alterações de comportamentos, tanto conscientes quanto inconscientes por parte destes.
O saber produzido a partir das observações dos movimentos populacionais garante
ainda a paciência necessária ao governante ao assegurar uma intervenção cautelosa,
pautada num planejamento e num conhecimento seguro a respeito dos entes
governados. A compreensão desses fenômenos permite a importante construção de um
saber próprio ao governo, uma nova ciência, a economia política, que vai estar atenta a
todas as relações entre as variáveis populacionais e as demais variáveis consideradas
pelo Estado, como riqueza, capacidade produtiva, recursos naturais, etc. Mais do que
isso, a economia política irá transformar-se verdadeiramente num tipo de intervenção
típica dessa nova forma de governo que começa a se manifestar, marcando
definitivamente a passagem da arte de governar fundamentada no quadro da soberania
para uma nova arte, pautada essencialmente na gestão via técnicas de governo
(Foucault, 2001a). Inicia-se, então, a era da governamentalidade, que foi definida como
“o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos
e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que
tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por
instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança” (Foucault, 2001a, p.291292).
34
1.3.2 O liberalismo
Após perceber a importância da eclosão da unidade de análise populacional,
Foucault continua seus estudos a respeito da forma de racionalização operada pelo
Estado dada a presença dessa nova categoria e identifica uma importante transformação,
ocorrida na segunda metade do século XVIII, que modifica a maneira como o Estado
pensa a si e as suas estratégias utilizadas para alcançar seus objetivos. Trata-se da
influência do pensamento fisiocrata, doutrina da economia política de cunho liberal, que
a partir da análise do problema da escassez do cereal vivenciada na Europa, constrói
uma crítica ao Estado de polícia até então vigente e funda uma nova razão de Estado
(Foucault, 2008a). Essa nova razão de Estado é marcada pela presença do liberalismo,
modelo político-econômico que, desde o século XVIII até os dias atuais, vem ganhando
força e se desenvolvendo, caracterizando-se como o modus operandi típico das
sociedades ocidentais e se constituindo como uma verdadeira técnica de governo.
Até então, o pensamento mercantilista, fundamentado no estado de polícia,
defendia o baixo preço dos cereais e dos salários dos cultivadores visando o maior
escoamento possível das exportações e, consequentemente, um maior acúmulo de ouro.
Para evitar que os camponeses estocassem os cereais em momentos de raridade – ou
seja, em momentos em que os cereais já estavam com os preços elevados e estes
buscavam elevar ainda mais esse valor – provocando a escassez, os mercantilistas
lançavam mão de uma série de procedimentos de controle das atividades dos
camponeses. Limitações de preços, proibição de estocagem, restrições no cultivo, eram
essas as políticas adotadas pelo governo para evitar a escassez de cereais. Segundo a
análise fisiocrata, esse modo de operar estava fadada ao fracasso. O baixo preço do
cereal, e portanto, o baixo lucro dos camponeses, provocava a diminuição do cultivo e
consequentemente a vulnerabilidade da colheita à qualquer oscilação climática, o que
tornava a situação da escassez um problema recorrente. Ou seja, o que os fisiocratas
perceberam foi que a própria política mercantilista voltada para evitar o problema da
escassez acabava fatalmente por provocá-la. Partindo dessa tese, a sugestão fisiocrata
diante do problema dos cereais veio a ser a seguinte: deixando que os preços subam e
desçam livremente haverá um momento em que ele se estabilizará naturalmente num
preço ideal, num preço justo. O próprio mercado, prescindindo da intervenção estatal, se
torna o lugar de revelação da verdade, uma vez que ele tem a capacidade de se autoregular naturalmente. Nesse processo de auto-regulação, de natural condução ao estado
35
de equilíbrio, pode haver, e muito provavelmente haverá, momentos de raridade de
cereais, momentos de escassez, ela não será completamente combatida, será considerada
como um período natural ao movimento de estabilização de preços. Nesse processo são
até mesmo previstas algumas mortes por conta da fome até que o sistema se restabeleça
e volte e fornecer a quantidade de alimento necessária para a população. Para os
fisiocratas é mais conveniente deixar que os camponeses estoquem ou exportem
livremente, uma vez que o aumento dos preços provocará o aumento do cultivo e sua
estabilização num momento de abundância. A unidade de análise não será somente o
mercado em si, ou seja, a escassez ou a abundância, mas toda a história do cereal, devese compreender o comportamento dos camponeses, entender em função de que seus
comportamentos se alteram e não impor regras rígidas. Para eles as coisas não são,
como eram para os mercantilistas, indefinidamente flexíveis totalmente manobráveis de
acordo com a vontade do soberano, há uma regulação espontânea das coisas que precisa
ser apreciada e respeitada (Foucault, 2008a)
Toda essa reflexão patrocinada pelos economistas inaugura, para Foucault, uma
nova razão de Estado. Há, pela primeira vez, uma crítica à intervenção estatal interna à
própria razão governamental. Os políticos do século XVI, descrentes em relação a
qualquer determinação divina ou da natureza, haviam construído uma razão de Estado
totalmente confiante em seus poderes de conduzir os eventos até o ponto desejado. Ela
elevava suas intervenções ao grau máximo e só encontrava limitação vinda de um
campo que lhe era exterior. A limitação ao poder do Estado neste período partia
somente do campo jurídico, o direito era área habilitada para averiguar a legitimidade
ou a ilegitimidade das ações estatais. A partir desse momento, as limitações às
operações estatais partem das reflexões realizadas dentro do próprio Estado,
fundamentadas no raciocínio economicista. Todo bom governo deve, a partir de agora,
conhecer acerca de seus objetos, compreender as suas regularidades, seus movimentos
naturais, entender a maneira como eles respondem às suas intervenções, como
respondem às ingerências do meio, ao invés de governar cegamente. Não que se trate
necessariamente de abrir mão da gestão de determinadas áreas da vida dos seus sujeitos,
trata-se, na verdade, de pensar que intervenções devem e quais não devem ser
realizadas. Se, por um lado, como aponta Farhi Neto (2010), o pensamento fisiocrata
livra a economia das interferências estatais, por outro, abre todo um caminho de busca
de compreensão a respeito dos seus diversos objetos e das intervenções mais adequadas.
“Respondendo a esse tipo de questão a economia política revelou a existência de
36
fenômenos, de processos e de regularidades que se produzem necessariamente em
função de mecanismos inteligíveis” (Foucault, 2008b, p.21). A economia política
descobre uma naturalidade própria aos objetos da ação governamental, essa naturalidade
é tomada como “algo que ocorre sob, através, no próprio exercício da
governamentalidade. Ela é, por assim dizer, sua hipoderme indispensável” (Foucault,
2008b, p.22). A inobservância a essa regularidade natural dos objetos traria, segundo os
fisiocratas, conseqüências negativas para a própria prática governamental.
É esse estudo das reações às ações governamentais, essa atenção aos processos
naturais, esse cálculo de previsibilidade das operações que devem ou não devem ser
operadas, essa busca por intervenções sempre mais econômicas, que para Foucault
(2008b) inaugura uma nova racionalidade da arte de governar adjetivada pelo signo de
„liberal‟. Essa nova razão de Estado, ao lançar seu olhar para a naturalidade dos
fenômenos, vai procurar agir junto a ela, não para de barrá-la, mas pelo contrário,
buscando manipulá-la, conduzi-la, geri-la. E para isso, se faz necessário munir-se de um
conhecimento preciso a respeito dos entes governados. Há, desde então, uma
reivindicação permanente de cientificidade para fundamentar e validar as ações do
governo. A partir deste momento a arte de governar se abre e se torna permeável a
saberes produzidos em um campo exterior às próprias reflexões dos que governam.
Desde a aliança feita com economia política, ciência que estuda as reações das variáveis
populacionais em relação às demais variáveis do país, o Estado tem convocado diversos
saberes para lhes servir como fonte de conhecimento. Medicina, Psicologia, Sociologia,
todas essas áreas participam hoje, desta relação bem peculiar entre saber e poder que se
faz presente em nossa sociedade. Partindo de conhecimentos como esses, o que vamos
ter não é mais a regulamentação de súditos, defende Foucault, mas uma regulação da
sociedade, que deve respeitar, ou ainda melhor, reger o seu funcionamento natural.
Trata-se de um governo que pensa em se favorecer do funcionamento natural ao invés
de se limitar por ele. Como crítica ao Estado de polícia, que a tudo desejava controlar,
propõe-se um governo econômico, que toma para si a tarefa tanto de pensar quais
intervenções devem ser suspensas por serem prejudiciais, uma vez que desobedecem
aos processos naturais, quanto de avaliar qual a forma que as intervenções postas em
jogo devem tomar, de maneira que obedeçam a essa mesma naturalidade.
Deixar que os processos naturais se desenrolem de maneira mais fluida significa
dotar os indivíduos de mais liberdade. É necessário deixar que os processos se
37
desenrolem livremente, que deslizem naturalmente diante das condições apresentadas
pelo meio. A liberdade deixa de significar uma barreira, um direito oposto ao poder, e
passa a ser um instrumento imprescindível ao exercício do governo (Foucault, 2008a).
Essa forma de governamentalidade, afirma Foucault, é consumidora de liberdade e por
isso precisa fabricá-la constantemente. Ela precisa arranjar um espaço em que os
indivíduos se comportem de maneira livre, que desenvolvam de maneira espontânea as
ações necessárias. Incentivar, incitar e se fazer valer da liberdade não quer dizer,
contudo, permitir qualquer tipo de comportamento. Essas liberdades são vigiadas, são
observadas, elas não podem fugir da margem de segurança que é calculada e que lhe é
necessariamente
correlata.
Deve-se
conseguir
proteger
a
coletividade
dos
comportamentos e dos interesses individuais e, astuciosamente, conseguir, ao mesmo
tempo, assegurar a fluidez dos comportamentos naturais, protegendo os indivíduos dos
interesses coletivos (Foucault, 2008b). Tudo é possível desde que esteja dentro do
permitido. Um dos recursos utilizados para garantir que os indivíduos se comportem
livremente, porém dentro dos limites dessa margem de segurança, é fazer com que eles
considerem a travessia de suas fronteiras uma atividade perigosa. Para assegurar que as
liberdades individuais não comprometam os resultados desejados ao nível populacional
é preciso fazer com que os próprios indivíduos não desejem sair das margens do
aceitável, que considerem um risco para si próprio ultrapassar esses limites.
Como coloca o autor:
“o liberalismo se insere num mecanismo em que terá, a cada instante, de
arbitrar a liberdade e a segurança dos indivíduos em torno da noção de
perigo. [...] Os indivíduos são postos perpetuamente em situação de perigo,
ou antes, são condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu
presente, seu futuro, como portador de perigo. [...] invasão dos perigos
cotidianos, perigos cotidianos perpetuamente animados, atualizados, [...]
vocês vêem esse incentivo ao medo do perigo que é de certo modo, a
condição, o correlato psicológico e cultural interno do liberalismo” (Foucault,
2008b, p. 90-91)
38
Para exprimir com mais clareza a sua reflexão sobre a forma de atuação da
tecnologia de poder que nasce e se desenvolve a partir século XVIII, a partir da
influência do pensamento liberal fisiocrata, Foucault cunha uma nova terminologia para
caracterizar o mecanismo de funcionamento a ela associado, trata-se do dispositivo de
segurança. O dispositivo de segurança, ao ter como alvo a população e ao arbitrar
permanentemente entre a liberdade e a segurança, atua de maneira bastante diferente do
anterior dispositivo disciplinar como veremos a seguir.
1.3.2.1O Dispositivo de segurança
Para melhor compreensão do modo de funcionamento do dispositivo de
segurança, iremos nos remeter brevemente, no intuito de estabelecer uma comparação, à
tecnologia de poder disciplinar, predominante no século anterior. Devemos lembrar, no
entanto, que o aparecimento em momentos distintos dessas duas tecnologias de poder,
não significa uma substituição total de um mecanismo por outro. O surgimento do
dispositivo de segurança, mais próximo de nossa contemporaneidade, não implica no
desaparecimento completo do dispositivo disciplinar. Embora possamos considerar que
o dispositivo de segurança caracterize de maneira mais preponderante a nossa
sociedade, essas duas modulações se acoplam, se complexificam e atuam mutuamente
no nosso tempo. Hoje, presenciamos tanto formas disciplinares de exercício do poder,
quanto formas típicas do dispositivos de segurança, ou mesmo, as antigas formas de
poder soberano, que marca sua atuação pelo direito de causar a morte.
A disciplina, nascida no século XVII, tem como objetivo produzir corpos
economicamente úteis e politicamente dóceis. Sua meta é conduzir os indivíduos até o
comportamento desejado, até uma norma previamente estabelecida, através de
minuciosos dispositivos, típicos de um contexto mercantilista onde o Estado procura
intervir maciçamente nos processos econômicos. Ela é centrada no corpo individual, no
corpo máquina, de onde se procura extrair o máximo de energia possível. É uma forma
de poder densa, rígida, que se exerce através de quatro mecanismos principais: uma
vigilância contínua em determinado ambiente fechado, uma planejada distribuição
espacial dos indivíduos, um sistema de registro contínuo e uma atenção meticulosa ao
desenvolvimento da ação visando o gesto mais bem ajustado. A disciplina se apresenta,
portanto, de maneira intensa na transformação do indivíduo, de modo que ele chegue à
39
norma considerada ideal de antemão. Esse modelo de gestão é, neste momento,
especialmente encontrado nas escolas, fábricas, exército, hospitais e prisões.
O dispositivo de segurança, ao ter que dar conta de gerir um conjunto de viventes
em toda sua multiplicidade, apresenta um modo de gestão da vida bem diferente do
disciplinar. Em primeiro lugar podemos trazer a maneira de lidar com o evento
indesejável. No dispositivo de segurança o acontecimento indesejado não é tão
intensamente combatido como fora no modo disciplinar, que atuava em correção e
complementaridade à realidade. Agora, algumas adversidades – como a escassez
alimentar ligada ao cereal trazida por Foucault – são encaradas como naturais, como
intrínsecas à própria dinâmica circunstancial à qual estão atreladas, são inevitáveis.
Sempre buscando formas mais enxutas de intervenção, são realizados, como sinaliza
Farhi Neto (2010) quatro operações essenciais: faz-se primeiramente uma estimativa
probabilística da possibilidade de ocorrência de determinado evento, em seguida
realiza-se um cálculo de custo da intervenção realizada, depois é feita uma avaliação da
efetividade da operação realizada, e por fim, faz-se um balanço da relação entre o custo
da intervenção e o resultado obtido. O objetivo é compreender as respostas reais dos
objetos às ingerências praticadas e planejar, em cima dessas respostas, as operações
necessárias, sempre almejando o menor custo possível. Neste caso, não se empenha a
todo custo a esquivar-se de determinado problema, e não é só ele, o problema, que é
visado na intervenção, mas toda a história do elemento em questão – a história do
cereal, por exemplo. Procura-se, então, produzir um dispositivo que se atrele à própria
realidade dos fenômenos, aos elementos de seu meio, regulando-os com mais
flexibilidade, dada a naturalidade de seu acontecimento. Busca-se uma maximização
dos elementos positivos e a uma minimização dos elementos negativos. O
reconhecimento da multiplicidade de fatores que interferem nos fenômenos humanos –
clima, hábitos, ambiente natural, ambiente artificial – acarreta na consideração da
própria população como fenômeno natural, não sendo totalmente controlável, mas
sendo, contudo, suscetível a determinados procedimentos de intervenção (Martins e
Peixoto Júnior, 2009).
Outro ponto importante a ser apontado é a sua forma de normalização. No
dispositivo disciplinar, primeiro se estabelece a norma ideal, o modelo, e em seguida, se
empregam mecanismos para levar o fenômeno em questão ao ponto desejado. Já na
normalização típica do dispositivo de segurança é calculada, a partir da própria
40
realidade, uma média, uma normal, de mortalidade ou morbidade por exemplo. Em
seguida, faz-se uma distribuição normal, uma curva das diferentes normalidades. Ao
manejar fenômenos de massa e de longa duração por meio de mecanismos como
estimativas estatísticas e previsões globais, a finalidade será atingir o equilíbrio e a
homeostase da população A técnica consiste aqui, em trazer as normalidades mais
desviantes à curva normal. Neste caso, é a partir das normalidades pesquisadas que se
fixa a norma, contrariamente ao mecanismo disciplinar, no qual o modelo antecede a
consideração da realidade (Foucault, 2008a). A pesar de não se tratar mais de uma
implantação estática de um modelo de perfeição temos ainda ai uma relação com a
norma, que é, todavia, de natureza bem diferente. Para o Foucault, no antigo modelo
disciplinar, o que vemos é o que ele chama de mecanismo de normação, no qual há a
tentativa de conformar os sujeitos a uma norma pré-estabelecida, uma norma que é
prescritiva, e onde a separação entre o normal e o anormal se dá pela adequação ou não
dos sujeitos a este ideal. Já no dispositivo de segurança temos um processo de
normalização, onde ao invés de se estabelecer uma única relação, normal versus
anormal, faz-se uma demarcação das diferentes curvas de normalidade. O objetivo é
trazer as normalidades desviantes a um ponto, dentro da curva normal, o mais próximo
possível do ideal. Essa forma de procedimento, ao remeter todas as singularidades à
curva normal, torna todos os indivíduos, todas as formas de comportamentos passíveis
de intervenção. Não há mais uma divisão binária entre o normal, o normatizável, o
permeável às ações do poder, e o anormal, o excluído. Há sempre alguma operação
possível a se estabelecer para conduzir os indivíduos a uma performance mais
aprimorada. As singularidades são abarcadas, aceitas, mas são, contudo, sempre
submetidas a um processo de normalização, “é somente pela possibilidade de seu
enfeixamento num conjunto normalizado probabilisticamente que as singularidades são
apreendidas” (Farhi Neto, 2010, p.142). A própria norma, como aponta Aquino e
Ribeiro (2009) fica sujeita a processos de modulação constante, multiplicando os efeitos
da normalização por toda parte. O que podemos também perceber diante desta forma de
normalização é que ao se extrair a norma da própria realidade, invisibiliza-se o caráter
de atribuição da mesma, no momento em que esta é considerada como natural. Como
bem assinala Veiga-Neto e Lopes (2007, p. 956) “é em decorrência disso que se fica
com a impressão de que ela é natural, pois, na medida em que, nesse processo de
normalização, aquele que já estava (naturalmente) aí é assumido com um caso normal,
tudo o mais que ele se deriva parece ser também natural...”.
41
Mais um aspecto importante a ser apontado é a maneira como a população é vista.
O simples aumento do seu contingente não significa mais, necessariamente, o aumento
da potência do Estado. Para que ela se converta em riqueza ela deve apresentar os
comportamentos favoráveis. A partir dessa perspectiva ela aparece tanto como objeto
quanto como sujeito, e é gerida tanto diretamente quanto indiretamente. Ela é regulada
indiretamente, através da manipulação das variáveis do meio que são associadas aos
seus comportamentos. A compreensão dos processos pelos quais passa uma população,
considerada em sua realidade, em interação com os elementos do seu contexto, permite
o exercício de um poder mais refinado, mais sutil, que interfere nos elementos do meio
relacionados a determinado fenômeno. Age-se diretamente sobre ela através de
intervenções como campanhas realizadas pelo governo. À população é pedido que se
tenha determinados hábitos de higiene, determinados hábitos alimentares, determinados
comportamentos quanto à sua sexualidade. Através das verdades postas em circulação,
dos saberes legitimados e materializados pelas instituições, espera-se que os indivíduos
ajam da maneira esperada, provável, estimada. Estabelece-se a média e os limites do
aceitável, por meio do processo de normalização anteriormente abordado, e espera-se
que ela se comporte livremente dentro desse espectro.
Desta maneira podemos perceber diferenças marcantes entre o mecanismo
disciplinar e o dispositivo de segurança. A disciplina, assinala Foucault, é centrípeta,
ela determina de antemão o segmento sobre o qual exercerá uma ação intensa. O
dispositivo de segurança é centrífugo, ele agrega permanentemente novos elementos, ele
incorpora constantemente novos comportamentos, novos indivíduos ao seu feixe de
atuação. A disciplina não deixa que nada escape ao seu controle, tudo deve ser
monitorado e gerenciado de perto. Já o dispositivo de segurança funciona de maneira a
permitir certa liberdade, ele funciona de maneira a favorecer o restabelecimento natural
das coisas através de intervenções mais sutis. A disciplina obriga, corrige, age em
complementaridade à realidade. O dispositivo de segurança prescreve, deixa as coisas
correrem com certa liberdade, preferencialmente em seu ambiente natural, mergulhadas
em seu contexto real os fenômenos irão naturalmente se alterar graças às manipulações
ambientais realizadas (Foucault,2008a). Governar menos, buscar a máxima eficácia e
procurar se favorecer do funcionamento natural dos fenômenos, essas são as
características principais dessa tecnologia de poder que aparece nos século XVIII e se
faz presente até os tempos atuais.
42
1.4 O liberalismo do século XX
Depois de discutir as primeiras características da governamentabilidade liberal,
manifestadas em meados do século XVIII, Foucault faz um deslocamento de dois
séculos e analisa as particularidades do modo de funcionamento governamental liberal
do século XX. Para dar conta dessa empreitada investigativa voltada para um período
bastante contíguo a nossa época atual, o autor decide abordar duas formas principais de
programação liberal surgidas nesse período, a saber, a alemã e a norte-americana.
Na Bizona2 dos anos 1948 um dos principais idealizadores da programação
liberal, Ludwig Erhard, então responsável pela administração econômica da região,
construiu suas formulações estabelecendo uma crítica ferrenha às políticas
extremamente intervencionistas e dirigistas que operavam na época. Tais políticas, ao
tentar livrar a região das sequelas deixadas pela segunda guerra mundial, buscavam a
planificação e a estabilização econômica, bem como a melhoria dos aspectos sociais
vigentes. Contrário a toda essa tendência dirigista, o administrador alemão Ludwig
Erhard, executara uma política extremamente liberal, totalmente isenta de controle de
produção ou de fixação de preços. Diferentemente da situação dos fisiocratas do século
XVIII, que pretendiam limitar as ações de um Estado em funcionamento, os liberais
alemães tinham como tarefa construir um Estado não existente anteriormente, partindo
do pressuposto da presença de um espaço livre das injunções estatais que viria a ser a
economia. O liberalismo fora, portanto, o princípio fundador do Estado alemão. A
grande novidade trazida por esses economistas fora, no entanto, a seguinte: admitindose que o Estado carregava defeitos próprios, totalmente alheios à economia de mercado,
a meta deveria ser construir um Estado que operasse, em sua totalidade, de acordo com
a lógica da economia de mercado. Nesse contexto, a economia de mercado deixaria de
ser o princípio de limitação do Estado para ser o seu princípio interno de regulação,
trata-se nesse caso de “adotar a liberdade como princípio organizador e regulador do
Estado, desde o início de sua existência até a última forma das suas intervenções”
(Foucault, 2008b, p. 158-159).
2
No período do pós-guerra o Estado alemão encontrava-se dividido entre quatro zonas, cada uma,
ocupada por um dos países aliados: França, Reino Unido, União Soviética e Estados Unidos. A Bizona
era formada pela união do território britânico com o americano.
43
A pesar de propor a transposição da lógica de mercado para todo o funcionamento
estatal, o que os liberais alemães fizeram foi por em operação uma política
extremamente ativa e vigilante. Para eles, a alma do mercado não se constituiria pela
troca, como para os fisiocratas, e sim pela concorrência, um fenômeno que se
caracteriza, postulam os economistas, não exatamente por sua essencial naturalidade,
mas por sua necessidade de incitação e estimulação. Essa concorrência só ocorrerá se
for disposta uma série de condições que precisarão ser minuciosamente elaboradas e
permanentemente manipuladas.
É um Estado que aposta na auto-gestão e auto-
regulação dos indivíduos, mas diante, contudo, de condições tais que precisam ser
devidamente arranjadas. A função do Estado aqui é fazer com que o jogo não cesse
jamais, é manter suficientemente ativos todos os participantes, fazendo com que
nenhum deles pare de jogar. Dessa maneira, o Estado deve garantir a sobrevivência do
jogo e as condições para se estabelecer a concorrência. Não se trata, portanto, do
laissez-faire do século XVIII, mas de uma necessidade de controle, vigilância e
intervenção permanentes. A antiga pergunta formulada pelos fisiocratas que se
interrogavam a respeito de “quais ações deveriam ser executadas e quais não deveriam
ser executadas”, é substituída pela pergunta: como se pode mexer corretamente para que
se possa obter os resultados desejados?
No campo das políticas sociais, propõem os liberais alemães, não é papel do
Estado, necessariamente, oferecer uma cobertura completa aos possíveis riscos à vida da
população, a sua tarefa deve ser tentar fazer com que cada indivíduo, por sua conta
própria, possa se garantir frente aos perigos apresentados. Trata-se de “conceder a cada
um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar os
riscos” (Foucault, 2008b, p. 198).
Já no estudo do liberalismo norte-americano do século XX, Foucault revela uma
radicalidade ainda maior do modelo estadunidense quanto à adoção da lógica de
mercado. Nesse país, e progressivamente em todos os países que vivem sob a sua
influência, a utilização da racionalidade econômica não ficou restrita somente à análise
dos processos monetários e para as ações do Estado, ela se tornou um modo de
decifração e de atuação sobre todas as ações humanas. Dizer que esse modo de operar
se espalhou por todo tecido social é dizer que todas as análises e programações
realizadas no campo da educação, da saúde ou do trabalho, seguirão a lógica
economicista de cálculo de investimento e estimativa de retorno, todas as ações serão
44
estudadas quanto à resposta às ingerências ambientais e se guiarão pela lógica do custo
benefício. Mas não se trata mais da análise do custo benefício apenas de recursos
financeiros, trata-se do cálculo de investimento psíquico, temporal, educacional e seus
respectivos retornos.
É a teoria do capital humano que, para Foucault, se torna o modo de entender e de
fazer funcionar uma pluralidade de ações humanas. É o trabalhador que passa a ser
analisado e a se analisar enquanto um capital passível de intervenções, intervenções que
terão um custo e por isso devem ser analisadas quanto a sua capacidade de gerar as
repostas desejadas. O homo oeconomicus deixa de se constituir enquanto parceiro da
troca e passa a se definir enquanto o indivíduo empresário de si mesmo. É o homem
transformado em capital humano, capaz de se auto-aprimorar segundo próprio cálculo
dos investimentos possíveis. “É toda uma maneira de ser e de pensar. É um tipo de
relação entre governantes e governados, mais do que uma técnica dos governantes em
relação aos governados.” (Foucault, 2008b, p.301). Mais do que uma técnica porque os
governados ocupam aí uma posição ativa, operam segundo a mesma lógica dos
governantes. É uma tecnologia de poder que insere inevitavelmente os indivíduos em
sua racionalidade. E ai reside toda radicalidade do modelo liberal norte-americano, a
lógica da racionalidade econômica toma conta de todo o corpo social, passa por todas as
relações, por todas as subjetividades. Os indivíduos são levados permanentemente a
exercer sobre si operações de investimento e a produzir uma renda em cima desse
capital que agora é também humano.
Como exemplo podemos trazer a nova política de droga é introduzida nos Estados
Unidos a partir da assunção dessa nova racionalidade. Até a década de 1970, revela o
autor, a política de combate à droga se pautava exclusivamente na redução da oferta. O
objetivo era diminuir a quantidade de droga posta no mercado através de operações
como a eliminação das redes de refino e de distribuição. Esse tipo de procedimento
nunca atingia seu objetivo final, que seria desmantelar toda a rede, e ainda trazia
conseqüências extremamente indesejáveis, dentre as quais: o aumento do preço unitário
da droga em função da diminuição da quantidade em circulação, o estabelecimento do
monopólio por parte dos vendedores que sobrevivem às operações, o aumento mais uma
vez do preço da droga por conta da fácil formação de monopólio, altas taxas de
criminalidade como consequência do aumento de delitos em busca de drogas cada vez
mais caras. Por fim, tal política revelou-se absolutamente desastrosa. Perante esse
45
problema
os
liberais
norte-americanos
apresentaram
uma
saída
inusitada.
Primeiramente, indicaram que em sua análise os políticos deveriam, estrategicamente,
dividir a população de usuários em duas partes: uma seria caracterizada por expressar
uma demanda elástica, uma vez que recua o seu consumo diante dos altos preços e a
outra se caracterizaria por apresentar uma demanda inelástica, seja lá qual for o preço da
droga, ela irá arranjar meios para garantir o seu consumo. Para os políticos liberais a
intervenção deveria se buscar produzir um efeito exatamente contrário ao que
produziam os traficantes. Estes últimos, ao oferecer drogas sempre a preços baixos para
os usuários iniciantes, os transformavam facilmente em usuários habituais, alterando
sua demanda de elástica para inelástica e garantindo a venda do produto mesmo a
preços mais altos. O que os liberais americanos sugeriram foi que, por um lado, se
fizesse com que o preço da droga oferecida a esse público de demanda ainda elástica
fosse sempre elevado, afastando-os do consumo habitual e, por outro, que se reduzissem
os preços para os usuários de demanda inelástica, a fim de diminuir a criminalidade
associada à busca de obtenção da droga. A partir daí a política vai se orientando
fundamentalmente na questão da prevenção, na eliminação dos usuários potenciais e no
afastamento dos usuários iniciantes.
E assim, se compõe a população na ótica dos liberais do século XX. Ela é
decomposta em diversas faixas de diferença e, ao invés de ser submetida a mecanismos
disciplinares rígidos, manifesta seus naturais processos oscilatórios que se tornam alvo
de um poder mais flexível e por isso mesmo mais indelével, mais capilar e mais
invisível. Os indivíduos que compõem essa população são analisados em suas
peculiaridades, são manipuláveis de acordo com suas respostas particulares às variáveis
ambientais e, ainda que tomados em sua singularidade, são sempre submetidos a um
processo de normalização associada ao plano da coletividade. E mais do que isso, são
sujeitos ativos, empresa de si mesmo, que se auto-regulam seguindo a mesma
racionalidade adotada por aqueles que o governam. “É isso, parece-me, que caracteriza
a racionalidade liberal: como regular o governo, a arte de governar, como fundar o
princípio de racionalização da arte de governar no comportamento racional dos que são
governados” (Foucault, 2008b, p.423)
46
1.5 A governamentalidade na atualidade: O governo da vida pela liberdade
O que podemos perceber diante dessas reflexões é que, desde que o poder estatal
tomou para si a tarefa de gerir a vida e os corpos dos indivíduos, lá entre os séculos XVI
e XVII, ele passou por uma série de transformações e metamorfoses, e ao invés de
abandonar completamente as modulações sofridas, foi agregando esse histórico de
modificações, compondo na atualidade uma forma de poder extremamente complexa.
Ao se utilizar da tecnologia pastoral, ele pode dispor de uma forma de poder que se
ocupa da condução das almas, através do exame atento às individualidades de cada
componente do rebanho. Com as formulações acerca da Razão de Estado do século
XVI, o governo passou a refletir a respeito de suas atividades e a atrelar a gestão da via
dos indivíduos ao crescimento e fortalecimento do Estado. A formação do estado de
polícia no inicio do século XVIII estendeu as ações do governo para uma gama infinita
de ações dos indivíduos, gerindo todos os processos estatais via controle dos
comportamentos dos homens. Com o advento da ciência da economia política na
segunda metade do século XVIII, os fenômenos populacionais passam a ser analisados e
compreendidos em sua variabilidade em função das injunções ambientais. Com o
liberalismo nascido no mesmo período, os processos naturais da população começam a
ser considerados e inspiram as ações governamentais no respeito a essa natureza. Os
comportamentos dos indivíduos devem, então, correr naturalmente, desde que dentro da
margem de segurança estabelecida. O liberalismo do século XX vai, por sua vez, muito
além do respeito a essa naturalidade dos fenômenos, levando-os em conta, mas lançando
mão, contudo, de uma forma de gestão mais intervencionista. Todavia, trata-se de um
intervencionismo que, como vimos, paradoxalmente, intervém para delegar aos
indivíduos que se gerenciem. Ele incita os indivíduos a se auto-governarem e introduz a
racionalidade econômica na própria subjetividades destes.
Como se pode perceber, a crítica ao estado de polícia típico dos séculos XVII e
XVIII e sua progressiva transformação em estado de governamentalidade liberal não
reflete a despreocupação do Estado em gerir determinadas áreas da vida dos indivíduos,
o que ocorreu foi uma alteração de estratégias. O objetivo passou a ser atingir o máximo
de eficácia possível, através de formas cada vez mais reduzidas de poder, onde os
sujeitos se auto-regulem, baseados nas verdades produzidas a seu respeito.
A profusão de saberes sobre os sujeitos aumenta a superfície de contato entre
estes e as tecnologias de poder. Os sujeitos são convidados, e em alguns casos talvez
47
pudéssemos utilizar a palavra “coagidos”, a se governarem baseados nas verdades
produzidas sobre si. Em nome da prevenção e do gerenciamento de uma gama de riscos
que lhes são estrategicamente apresentados, os indivíduos são colocados numa rede de
vigilância e controle exercidos por eles mesmos. Ao ter os riscos de determinado setor
da sua vida, como é o caso da saúde, calculados e anunciados por especialistas, os
indivíduos são levados a gerir determinados aspectos de suas vidas e mais do que isso,
responsabilizados pelas conseqüências dessa gestão. Como bem sinaliza Ferreira, “na
história das relações de poder nos regimes liberal e democrático, o governo dos outros
sempre esteve ligado a certo modo no qual indivíduos “livres” são levados a governar a
si mesmos como sujeitos simultaneamente de liberdade e responsabilidade.” (Ferreira,
2009 p. 68).
É como se abrissem mais canais de um rizoma, mais variáveis de controle. Quanto
mais liberdade se dá, mais formas de controle são postas em cena para dar conta de
gerenciá-las. “Trata-se de saberes e de subjetividade que se produzem mutuamente,
naturalizando-se nas relações de poder e, sobretudo, tornando invisível a invenção de
uma liberdade subjetivada como recurso capital de governamentalização” (Aquino e
Ribeiro, 2009, p. 64). É uma forma de governo que, ao mesmo tempo em que procura se
auto-limitar, mais multiplica as formas de controle da vida. São dispostas formas de
controle cada vez menos coercitivas aos indivíduos, mas que os colocam numa situação
de auto-disciplinamento permanente. Quanto mais liberdade se cede, mais se imputa ao
indivíduo que se governe, que seja por si só, disciplinado, que se auto-regule e que seja
responsável pelos seus atos.
É uma forma de poder que é consumidora de liberdade e por isso precisa produzila constantemente. A produz, a consome e a administra, engloba-a numa nova forma de
poder que não exclui as singularidades nem as anormalidades, mas as considera sempre
sujeitas a alguma forma de governo. Os indivíduos são sempre passiveis de intervenção
uma vez que a pretensão não é mais colocá-los dentro de uma norma ideal, mas
conduzi-los a uma normalidade possível dentro das suas possibilidades, da sua
singularidade. É uma liberdade calculada, vigiada, dirigida. “É preciso deixar fluir as
possibilidades de liberdade, calcular sua probabilidade de emergência e cartografar seus
movimentos fáticos tornam-se, na perspectiva da governamentalização das sociedades
liberais contemporâneas, a via arterial que nutre as estratégias de controle” (Aquino e
Ribeiro, 2009 p. 62). A liberdade deixa de ser um direito oposto ao poder e se
48
transforma num elemento indispensável à própria ação governamental. “Não respeitar a
liberdade é não apenas exercer abusos de direito em relação à lei, mas é principalmente
não saber governar como se deve. A integração das liberdades e dos limites próprios a
essa liberdade no interior do campo da prática governamental tornou-se agora um
imperativo” (Foucault 2008a, p. 475).
Façamos, a seguir, uma apreciação das formas como os indivíduos são levados a
se relacionarem consigo atualmente, para que possamos compreender como se
constituem as tecnologias de si sob as quais tal modelo de gestão liberal está assentado.
Como assinala Foucault, a questão da governamentalidade não pode deixar de passar
pela perspectiva do sujeito, que se define pela relação de si para consigo. A análise do
poder, tomado como um conjunto de ações sobre ações possíveis, deve fazer referência
a uma ética do sujeito que estabelece determinada relação consigo mesmo. Para ele as
tecnologias de si hoje instrumentalizam o exercício do poder através da busca, da
produção e da revelação a um Outro de uma verdade sobre si. Dessa maneira, “relações
de poder/governamentalidade/governo de si e dos outros/relação de si para consigo
compõem uma cadeia, uma trama, e é em torno dessas relações de poder que se pode
articular a questão da política e da ética” (Foucault, 2010, p. 225)
49
CAPÍTULO II
2. As tecnologias de si
2.1 Localizando a problematização
O momento do estudo das técnicas de si no pensamento de Michel Foucault
apesar de ser considerado como uma nova etapa do seu trabalho, devido a um certo
deslocamento em sua perspectiva, deve ser percebido como parte integrante do seu
projeto total que é, como declara o próprio autor, compreender como os indivíduos
entram nos jogos de verdade.
Sua obra, que é geralmente dividida em três partes, pode ser concebida num
todo como a busca pelo entendimento de como as verdades produzidas acerca do
homem estão associadas às formas de objetivação e de subjetivação do mesmo, quando
este se torna objeto do conhecimento (Foucault, 2006f). Na análise das formas de
objetivação do sujeito, enfatizou algumas condições históricas que tornaram possível
tomar o homem como objeto de saber e de poder. É, por exemplo, o caso do estudo do
surgimento das ciências humanas em As Palavras e as Coisas e o caso do estudo da
disciplinarização dos corpos em Vigiar e Punir. Já no estudo das formas de subjetivação
do sujeito, ele investiga como alguém se torna sujeito a partir de práticas que opera
sobre si mesmo, analisando qual o seu estatuto, sua posição, sua função e os limites do
seu discurso, como vemos nos volumes II e III da História da Sexualidade e em alguns
cursos por ele proferidos, como A Hermenêutica do sujeito (Candiotto, 2006). Sendo
assim, Foucault buscou primeiramente, quando em seu empreendimento arqueológico,
interrogar-se acerca do saber, através do aparecimento de empiricidades que buscavam
atingir o estatuto de ciência, posteriormente procurou através da genealogia do poder
problematizar as formas de objetivação dos sujeitos a partir do que ele denominou
práticas divergentes – como no sistema penitenciário e na psiquiatria – e por último
concentrou seu interesse nos processos de subjetivação, nos procedimento de
constituição do sujeito a partir de um conjunto de exercícios de transformação sobre si
mesmo (Foucault, 1995).
Para o autor há quatro grandes tipos de técnicas utilizadas pelo homem.
Existem as técnicas de produção, através das quais se produz, se manipula e se
transforma os objetos. Existem as técnicas que possibilitam a utilização de signos, de
50
símbolos, de sentido, que seriam as técnicas de comunicação e de linguagem. Haveria,
ainda, dois outros tipos de técnicas que teriam por objeto o próprio homem e que foram
objeto deste filósofo. A primeira delas seriam as técnicas de poder, através das quais os
indivíduos tentam determinar, limitar, produzir os comportamentos dos outros. E
haveriam, por sua vez, as técnicas aplicadas sobre si mesmo, um conjunto de práticas
operadas sobre o próprio corpo, sobre o próprio pensamento, sobre a própria conduta,
sobre o próprio modo de ser, que teriam o objetivo de atender a um certo tipo de
finalidade, seja ela um estado de pureza, de imortalidade, de perfeição, de felicidade, de
sabedoria, etc. (Foucault, 1994a) . Essas últimas seriam o que o autor chamou de
técnicas de si. A pesar de se tratar de um conjunto de práticas que se operam sobre o
próprio corpo, elas não são, de maneira alguma, – e esse é um ponto crucial a se
apreender aqui – exercidas de forma isolada pelos indivíduos, as tecnologias de si se
inserem, necessariamente, num conjunto de relações de poder que são exercidas sobre o
indivíduo. Elas vinculam-se, frequentemente, a alguma forma de aprendizado com um
indivíduo que desempenha o papel de mestre nessa relação, seja ele um amigo, um
familiar ou um profissional especializado. O indivíduo que executa uma série de
operações sobre si é, portanto, concomitantemente, objeto da intervenção de um outro.
É através dessas técnicas de si que o poder pode penetrar sobre os corpos dos
indivíduos, se materializar e atingir seu objetivo que é produzir condutas, criar
subjetividades. O estudo das técnicas de si nos oferece, portanto, uma nova perspectiva
para que possamos ver o poder se corporificando, se efetivando, ganhando forma e
estatuto de realidade. E é ai, ao mesmo tempo, onde podemos perceber de que forma o
indivíduo tem a possibilidade de transformar esse poder que exercem sobre si, como ele
pode modificá-lo, desviá-lo, convertê-lo, tornando-se outra coisa, que não o exatamente
o que havia sido pretendido por esse poder. As práticas de si estão, portanto, vinculadas
às relações de poder sem que estejam, contudo, inexoravelmente e completamente
submetidas a estas. “Não podemos nos colocar fora da situação, em nenhum lugar
estamos livres de toda relação de poder” (Foucault, 1984, p. 5). Na perspectiva
foucaultiana é aí, no cruzamento entre as técnicas de poder e as técnicas de si, que
emerge o indivíduo.
Para o filósofo, as técnicas de si estão inseridas, em determinada sociedade,
num domínio mais amplo que é definido como o campo da moral. Para ele, toda
experiência humana, toda esfera da vida do homem que se torna um campo de
51
problematização e de tensão ao longo da história, se constitui como um solo de
produção de saberes, como um território de implantação de normatividades e como um
terreno de preocupação moral. Este último setor da experiência humana seria, segundo o
autor, composto por três elementos principais. Os códigos, que seriam o conjunto de
ações e regras propostas ou impostas aos indivíduos; a moralidade, que seria a
intensidade com que os indivíduos obedecem ou fogem às regras estabelecidas; e a
ética, dimensão por ele perquirida nesse momento, que corresponderia ao campo da
relação do indivíduo com ele mesmo, ao campo das técnicas de si, dos modos de
subjetivação. Ele propõe ainda que esse último aspecto da moral pode ser analisado
sobre quatro pontos: a substância ética, ou seja, a Ontologia, a parte que de si que é
tomada como objeto de atenção (no caso da sexualidade, os prazeres para os gregos e o
desejo para o cristianismo); o modo de sujeição, a Deontologia, que é a maneira como o
indivíduo se vê ligado a regra (se a obedece por uma norma social, por uma tradição
espiritual ou por uma recomendação cientifica, por exemplo); a elaboração do trabalho
ético, a Ascética, que são as práticas em si através das quais o indivíduo se elabora e se
conduz à transformação; e por último temos a Teleologia, o objetivo, o estado ao qual se
pretende chegar, a finalidade buscada por toda a problematização ética (Foucault,
2007a).
A pergunta a ser feita, revela o filósofo, é: “Como a experiência que se pode
fazer de si mesmo e o saber que se pode fazer de si mesmo, e o saber que dele
formamos, foram organizados através de alguns esquemas? Como esses esquemas
foram definidos, valorizados, impostos?” (Foucault, 1997a). Sendo assim, ele faz o seu
estudo da moral não através de uma apreciação dos códigos ou da moralidade, ele o faz
por via do exame das técnicas de si, dos procedimentos colocados em jogo em
ambientes institucionais diversos que tinham o objetivo de alterar a maneira dos
indivíduos se conduzirem. (Foucault, 2006f).
A pesar de só ter publicado dois livros nesse denominado período ético de seu
trabalho, que correspondem aos volumes II e III da História da Sexualidade, Foucault
deixou um material assaz produtivo para os estudos das praticas de si; falamos das
transcrições e dos manuscritos dos cursos ministrados no Collège de France no final dos
anos setenta e no início dos anos oitenta. Nesses cursos, dentre os quais se destacam A
Hermenêutica do Sujeito e Subjetividade e Verdade o autor passa a trabalhar a questão
52
das tecnologias de si fora da esfera da sexualidade, como fizera nas obras precedentes, e
parte para uma análise – para nós aqui muito mais fecunda – das diferentes
possibilidades de relação dessas práticas com a questão da verdade.
2.2 Subjetividade e verdade
Contrastando com o pensamento mais corrente em nosso tempo, fortemente
fundado sob os preceitos cartesianos, Foucault não concebe a verdade como uma fiel
representação cognitiva da realidade. Para o autor, que é declaradamente herdeiro do
pensamento nietzschiano, a relação com verdade na civilização ocidental é caracterizada
como uma espécie de acordo coletivo, profundamente associado ao contexto histórico,
político, econômico e social, em que determinada perspectiva acerca de um dado objeto
em questão é adotada, colocada em circulação e assumida como martelo inquisidor
capaz de determinar o que pode ou o que não pode ser aceito a respeito de determinado
fato. O que é importante assinalar é que para o autor, embora a verdade seja apenas uma
perspectiva assumida sobre determinado objeto em detrimento de tantas outras
possíveis, os homens, como bem ponderou Nietzsche, tendem a esquecer de que se trata
de um acordo – que despreza tantas outras possibilidades – e passam a aceitar tal
perspectiva como totalmente e exclusivamente capaz de esgotar e dar conta de um
objeto.
E é dessa maneira que, ressalta Foucault, alguns tipos de discursos são
acolhidos em detrimento de outros, algumas instâncias são aceitas como legítimas para
se separar o verdadeiro do falso e alguns mecanismos e técnicas para obtenção da
verdade são eleitos como capazes de produzir um discurso confiável (Foucault, 2001c).
No que diz respeito às verdades produzidas acerca do homem, que são as que
interessam ao autor e a nós neste trabalho, desde o surgimento das ciências humanas
uma quantidade ilimitada de discursos tem sido produzida para dar conta de “revelar a
verdadeira essência” de todos os fenômenos que envolvem o ser humano, com o intuito
de atingir o heróico objetivo de corrigir sua existência e conduzi-lo a uma forma de vida
totalmente iluminada pela suposta lucidez e sobriedade científica. Partindo da
incorporação dos modos cristãos de objetivação do ser humano – denominado de
hermenêutica do sujeito, ou seja, de decifração do sujeito – as ciências que se propõem
a produzir um saber sobre os indivíduos têm se caracterizado hegemonicamente pela
procura nestes de uma verdade capital que irá lhe revelar o que eles são e para onde eles
53
devem ir. Os cientistas de hoje, assim como os padres e pastores cristãos, se colocam na
posição de investigadores e legítimos afirmadores das mais genuínas verdades que se
escondem nos indivíduos.
Tal forma de produção da verdade sobre o homem instaura um tipo de relação
consigo na qual os indivíduos olham para si a partir do olhar e das injunções de um
Outro. Esse modelo cristão de relação consigo consagraria, para Foucault, um tipo de
subjetividade fundada na obediência, uma vez que ela está implacavelmente sujeita às
demandas, às interpretações e às deliberações de uma autoridade e está necessariamente
subordinada aos princípios presentes no Texto Sagrado. Essa busca de uma verdade
sobre si, que deve ser devidamente dirigida pelo pastor, dá-se, ainda, de uma maneira
infindável o que torna permanente esse vínculo de obediência entre o indivíduo e seu
diretor. Para o cristianismo os pensamentos e os atos que provêm do Maligno tendem a
ser escondidos e camuflados pelo indivíduo, o que revela sua inegável marca maligna.
Esses pensamentos e atos, sempre que ameaçados de serem confessados, perderiam sua
força e poder de agir sobre a alma. No entanto, sua inerente característica de buscar
sempre morada nos interstícios mais obscuros da subjetividade torna a tarefa
confessional um ato permanentemente necessário. O Inimigo, um anjo de luz condenado
à escuridão por conta de sua rebeldia, encontra-se refugiado nas trevas dos maus
pensamentos onde a luz ainda não adentrou. E é assim que a revelação para o Outro se
configura como uma forma de iluminar esses pensamentos e atos, expulsando, ainda
que de maneira temporária, esse Inimigo que até então ali permanecia abrigado. O
objetivo aqui é através da iluminação confessional dirigida a uma autoridade, expulsar
os pensamentos, desejos e comportamentos inadequados buscando a purificação do
indivíduo. O cristianismo institui, portanto, um sujeito ético que pode ser denominado
como o sujeito da obediência.
No entanto, uma outra relação entre subjetividade e verdade já se fez presente
no mundo ocidental antes das práticas de si iniciarem, com o cristianismo, seu processo
de institucionalização e aprisionamento. Entre os séculos I e II d.C da civilização
helenística, período em pôde ser detectada uma explosão e uma supervalorização da
relação do indivíduo consigo mesmo – e que fora por isso denominado por Foucault de
cultura de si – a relação entre subjetividade e verdade se deu de uma maneira
completamente diferente deste nosso modelo atual. Através da análise das prescrições
dos filósofos destinadas aos sujeitos que solicitavam um serviço de direção de
54
consciência e das correspondências trocadas entre eles, Foucault observou, em primeiro
lugar, que as verdades implicadas nas práticas de si helenísticas em nenhum momento
diziam respeito aos indivíduos e às suas singularidades. As verdades pronunciadas pelo
mestre concerniam ao mundo, à existência, à vida e tinham por objetivo equipar o
sujeito para lidar com as situações cotidianas. Elas jamais faziam parte de um contexto
de decifração do sujeito por ele mesmo a partir do olhar de um Outro; elas participavam
de uma dinâmica completamente diferente onde o sujeito ouvinte recolhia ativamente
do lógos pronunciado pelo mestre seus próprios princípios de ação. A verdade ali nunca
tomava a forma de uma lei, ela funcionava como uma presença útil na adversidade, uma
presença que fosse capaz de constituir um vigoroso sujeito de ação (Candiotto, 2008b).
Aqui, a relação entre o mestre e o dirigido era também totalmente diferente do modelo
tipicamente cristão. Em primeiro lugar podemos apontar o papel ativo que o dirigido
empenhava na escolha de seu mestre. A pesar de toda a valorização ao estabelecimento
dessa relação consigo mesmo os indivíduos deviam procurar seu mestre a partir da livre
vontade, escolhendo o momento de iniciar seu processo de subjetivação e analisando
ativamente quem seria ou não capaz de se constituir como um bom diretor de
consciência. Embora fosse estimulado a cuidar de si durante toda a vida e a se relacionar
com outros para tal feito, o sujeito aqui, devia buscar uma autonomia em relação a esses
vínculos, tornando-o possível somente quando conveniente e de modo sempre
provisório. O objetivo da direção dependia sempre do que pretendia o dirigido
(Candiotto, 2008a). Diferentemente do modelo cristão, vemos nesse período se
constituir não o sujeito da obediência, mas um sujeito ético do cuidado de si que
procura se equipar para a vida através da subjetivação dos discursos verdadeiros
É baseado na diferença da articulação entre subjetividade e verdade entre esses
dois modelos de subjetividade que Foucault organiza e profere seus cursos do final da
década de setenta e início da década de oitenta. A experiência cristã, predominante na
atualidade, ao fundamentar-se na hermenêutica do sujeito, ou seja, na sua decifração,
estabeleceria, para ele, uma dupla relação com a verdade. Há, por um lado a Verdade do
Texto, que deve ser admitida e reconhecida em forma de Lei, e há por outro lado, a
verdade que se encontra presente no indivíduo, a verdade que vai mostrar quem ele é e a
que parte de si a que ele deve renunciar. As práticas de si têm aí uma dupla função: a de
inserir a grande Verdade no indivíduo fazendo-o aceitá-la, e por outro lado, a função de
buscar as verdades sobre o próprio sujeito com o intuito de purificá-lo e livrá-lo dos
desejos, atos e pensamentos impróprios. Nas técnicas de si do período helenístico a
55
verdade jamais é buscada dentro do indivíduo ou imposta na forma de uma lei, o que se
procura é tornar o sujeito capaz de dotar-se ativamente de uma verdade que não lhe
pertencia anteriormente, a fim de que este possa lidar melhor com as circunstâncias da
vida. O cristão seria, portanto, o asceta de si, o heleno, por sua vez, um asceta do
acontecimento (Candiotto, 2008b). Diferentes formas de relação com o mestre,
diferentes tipos de práticas de si, deferentes teleologias implicadas nessas práticas, são
colocadas em jogo por conta dessas diferentes formas de vinculações entre a
subjetividade e a verdade.
Para pensarmos como se constitui essa tecnologia de si cristã presente em
nossa civilização e tão fortemente associada à forma de governo a que estamos
submetidos, nos utilizaremos, assim como o fez Foucault, também da análise das
técnicas de si que estavam em circulação às vésperas do próprio cristianismo, no
período denominado helenístico-romano, mais precisamente no intervalo entre os
séculos I e II. Acreditamos que essa estratégia nos auxiliará a capturar com maior
agudez as características da forma de constituição da nossa própria subjetividade.
Examinaremos algumas características das técnicas de si do período helenístico para
podermos problematizar, através dos instrumentos deixados pelo autor, a maneira como
somos hoje convidados a nos constituirmos. Acreditamos que a apresentação desse
modelo alternativo, estranho à nossa experiência atual, atuará como que uma substância
de contraste num exame laboratorial, fazendo com que o elemento que desejamos
analisar emirja por conta do efeito de contraposição. Trabalharemos, como será visto, de
maneira muito mais intensa esse modo de relação consigo do período helenístico a fim
de ir produzindo um necessário efeito de estranhamento e comparação com o nosso
próprio modelo. Acreditamos ser esse um procedimento importante, pois como assinala
Michel Foucault, “uma hermenêutica de si difundiu-se por toda a cultura ocidental,
infiltrando-se pelos numerosos canais e se integrando a diversos tipos de atitudes e de
experiências, de forma que é difícil isolá-la ou distingui-la de nossas experiências
espontâneas” (Foucault, 1994a, p.2). Julgamos igualmente importante mostrar o
contexto imediatamente anterior ao cristianismo para que possamos perceber o solo
sobre o qual ele se erigiu, de que elementos ele se apropriou, para que percebamos de
que forma ele pode, mesmo que conservando alguns elementos semelhantes – como a
necessidade da relação com o mestre, a direção de um olhar para si e a recomendação de
uma série de práticas – fundar um sujeito ético completamente diferente. A pesar de não
se buscar propor esse outro modelo como uma alternativa para o nosso tempo,
56
acreditamos que a apresentação de outra forma de experiência nos serve ainda para
mostrar que outras possibilidades são plausíveis, que outras formas de constituição do
sujeito podem ser criadas fora desse registro do sujeito da obediência. Não se trata aqui
de tentar reproduzir esse modelo, todavia, acreditamos que alguns elementos quiçá
poderão ser aproveitados, uma vez que, vislumbramos ali um momento em que as
práticas de si estavam livres das instituições que progressivamente foram as
incorporando como a igreja, a medicina, a psiquiatria e a psicologia. Naquele contexto
identificamos “a constituição de subjetividades singulares irredutíveis aos processos de
individualização e interiorização, inaugurados no século IV com o cristianismo”
(Candiotto, 2008a).
Consideramos importante salientar que toda essa dedicação aos modos de vida
operados lá na civilização grega e romana é totalmente apropriada para a análise das
nossas formas de constituição da subjetividade, uma vez que, esta civilização é a mais
importante influenciadora da cultura ocidental, fornecendo os pilares para a nossa
sociedade desde a sua organização política, suas leis, sua religião, sua literatura, e como
não poderia deixar de ser, para as formas de relacionamento com nós mesmos.
Façamos, a seguir, uma comparação de três aspectos concernentes à forma de
relacionamento consigo presentes no modelo helenístico e no modelo cristão de
subjetividade, a saber, a forma de converter o olhar para si, o tipo de vinculação
estabelecida com o mestre e as particularidades das práticas operadas sobre si. Através
do contraste, buscamos entender de que forma o modelo helenístico – graças a uma
outra forma de relação coma verdade – se diferencia do modelo de obediência e
decifração próprio ao atual modo cristão de subjetivação.
2.3 Um olhar para si
Como destacamos anteriormente, o cuidado de si, segundo Foucault, se
constituía tanto como um conjunto de práticas operadas sobre si, como uma maneira de
estar no mundo e de se relacionar com os outros, quanto como uma maneira de dirigir o
olhar para si mesmo. No que se refere a este último aspecto, dentro desse procedimento
que podemos chamar de conversão do olhar, era importante, para os gregos e romanos
do período helenístico-romano, que a iniciativa, a motivação, a necessidade de voltar os
olhos para si tivesse seu ponto de origem no próprio sujeito. Era preciso, diziam eles,
57
evitar o que chamavam de movimento do pião – presente nas práticas de si cristãs. O
pião, salientavam, realiza um movimento em torno de si a partir de um impulso vindo
do exterior, graças à solicitação de uma alguém que não é ele mesmo. Para os estóicos e
epicuristas, pelo contrário, era necessário que a força propulsora desse olhar partisse de
dentro de si, era fundamental que o próprio sujeito identificasse a necessidade de
dedicar sua atenção a determinada parte de si. A motivação para a problematização
ética, portanto, devia partir do indivíduo e não, como é no caso do cristianismo, de um
outro que lhe aponta a necessidade de ser transformado.
Lançar um olhar sobre si, em primeiro lugar, consistia em desviar o olhar do
que não está sobre a esfera do nosso alcance, significava tirar a atenção do que não
podemos controlar ou modificar, traduzia-se pela eliminação da dedicação vã às coisas
que não estão sob o nosso domínio. Essa conversão a si não corresponde a um
procedimento de introspecção como se vê no modelo cristão, no qual o sujeito encerra
sobre si um olhar investigativo para a produção de um conhecimento. Recusando a
dicotomia exterioridade/interioridade, ela está implicada num tipo de relação consigo na
qual o que separa o sujeito de sua meta, não é a elaboração de um saber sobre si que lhe
era ausente, e sim a efetivação de práticas e a aquisição de novas formas de conduta
(Candiotto, 2008b). Diferentemente do que ocorre no cristianismo, a verdade aqui não
aparece como produto final da conversão, mas o veículo através do qual se operam as
transformações desejadas pelo sujeito. Ela deve estar implicada no trabalho de
subjetivação do sujeito e não em um projeto de auto-conhecimento.
Para nós, ocidentais modernos, devidamente cristianizados subjetivamente, é
extremamente difícil pensar um cuidado de si que esteja fora dessa intenção de autoconhecimento e busca de uma verdadeira essência. Para Foucault, a sobreposição desses
dois procedimentos, cuidado de si e conhecimento de si, deu-se por conta de dois
motivos decisivamente importantes. O primeiro deles corresponde à desqualificação do
cuidado de si engendrada pelo cristianismo. Este último teria transformado a busca da
plenitude do prazer de estar consigo e a procura da satisfação advinda de uma relação de
não dependência com o mundo, numa atitude egoísta de um sujeito hostil às suas formas
de pertencimento à sociedade e incapaz de dar conta de uma moral coletiva . Embora o
cuidado de si não tenha em momento algum significado, para seus antecessores,
isolamento social e descaso para com a comunidade, o cristianismo validou-o somente
no registro da renúncia a si em nome de uma obediência a uma lei ou uma ordem
58
coletiva. O outro acontecimento que teria eclipsado o cuidado de si em prol do
conhecimento de si corresponderia ao denominado momento cartesiano. Para o autor,
desde que a Filosofia passou a discutir a questão do acesso do homem à verdade apenas
em termos de aquisição de conhecimento, as discussões em torno das condições de sua
ascensão a ela passaram a se dar somente de maneira intrínseca ao conhecimento –
discutem-se métodos e instrumentos – ou extrínseca ao indivíduo – é preciso estar
inserido num consenso científico, por exemplo.
O recrudescimento da verdade-
evidência – já esboçada por Aristóteles – teria, desse modo, desbancado a filosofia
antiga, que balizava suas reflexões a respeito da verdade em torno das transformações
operadas no sujeito para que este pudesse à ela aceder. A filosofia moderna, portanto,
ao tomar a verdade como uma representação cognitiva da realidade teria abandonado as
discussões acerca das modificações sofridas pelos indivíduos em seu percurso em
direção a mesma (Foucault, 2010).
Para os estóicos e epicuristas, no entanto, o conhecimento não desempenhava
um papel tão fundamental na conversão como no modelo platônico ou no modelo
moderno – formado pela conjunção da espiritualidade cristã e com a filosofia cartesiana.
A conversão se constituía muito mais como um exercício do que como uma forma de
produzir um conhecimento.
O olhar para si não tinha como objetivo primordial
produzir um saber, mas fazer com que o indivíduo se concentrasse em sua meta e se
cuidasse de maneira mais proveitosa. Os conhecimentos resultantes desse processo de
conversão não eram, como no cristianismo, produto de uma exegese, de uma decifração
dos estados mais recônditos da alma onde se ocultariam as ilusões e os desejos
encobertos do coração. Os saberes aqui envolvidos – chamados de saberes úteis em
oposição aos saberes inúteis – não eram encerrados exclusivamente nos sujeitos, eles
deviam ser de ordem relacional, deviam buscar, a partir de um olhar para o mundo, para
os homens ou para os deuses, encontrar uma relação com a própria vida dos indivíduos.
Se equipar com uma verdade não quer dizer apreender um discurso verdadeiro, nem
sobre si nem sobre o mundo, quer dizer assimilar discursos que o ajudem a enfrentar a
vida. “O logos deve atualizar a retidão da ação, mais do que a perfeição de
conhecimentos verdadeiros” (Gros,2010, p. 477). Os saberes úteis deviam traduzir-se
facilmente em princípios de ação, seriam, necessariamente, dotados de um caráter
etopoético que o tornasse capaz de gerar êthos e transformar o modo de ser do sujeito.
59
Esses conhecimentos capazes modificar a conduta dos indivíduos são, para
Sêneca, conseqüência de um olhar para si que coloca o indivíduo no ponto de luz onde
Deus se encontra, de onde se pode captar a existência humana a partir do ponto mais
elevado da existência. Não se trata aí de desviar o olhar do mundo para direcioná-lo
para um elemento divino transcendental, nem de investigar em si uma interioridade,
trata-se de enxergar-se na imanência do mundo, aprendendo-se na complexidade
sistêmica da vida. Como traz o autor:
“trata-se para o sujeito de ser capaz de ver a si mesmo, apreender-se em sua
realidade (...) é isso, creio, que constitui o que poderíamos chamar de saber
espiritual (...) ele veio a ser pouco a pouco, limitado, recoberto, e finalmente
apagado por um outro modo de saber a que podemos chamar de saber de
conhecimento, e não mais saber de espiritualidade. Sem dúvida, foi nos
séculos XVI –XVII que o saber de conhecimento finalmente recobriu por
inteiro o saber da espiritualidade, não sem ter dele retomado alguns
elementos.” ( Foucault, 2010, p. 276).
Esse olhar que capta a si mesmo na imanência da vida a partir de uma elevação
ao ponto mais alto de onde Deus estaria, produz, para os estóicos, um conhecimento de
si concomitante ao saber sobre a natureza. Esse saber sobre a natureza, reflete o autor, é
liberador não na medida que nos desvia de nós, mas, pelo contrário, na medida em que
nos mostra o quanto estamos ligados ao mundo, e a uma série de elementos nele
presentes. Não se perde de vista, portanto, quando se passa o olhar sobre o mundo.
“Inserir-se no mundo e não ser arrancado dele, explorar os segredos do mundo ao invés
de se voltar para os segredos interiores, é nisso que consiste a virtude da alma”
(Foucault, 2010, p. 251)
Esse olhar produziria um conhecimento capaz de dotar o indivíduo do que
Epicuro chamara de paraskheué, um equipamento, uma armadura, uma proteção criada
pelo sujeito para enfrentar os eventos apresentados pela vida. Essa armadura, ao mesmo
tempo em que procurava formar um indivíduo pronto para lidar com as contingências
futuras, buscava dotá-lo de capacidade de gerenciamento do inesperado, do imprevisto,
do insólito, trata-se de uma preparação ao mesmo tempo aberta e finalizada para os
acontecimentos da vida. Os saberes, dessa maneira, não se traduziam em um conjunto
pré-fixado de regras de conduta, eles se manifestavam como um abrigo permanente ao
qual os indivíduos poderiam recorrer sempre que se deparassem com uma situação
desafiadora ou perigosa. A paraskheué tornava o sujeito não apenas capaz de enfrentar
os desafios e riscos da vida, mas também corajoso a questionar o sistema de crenças e as
60
autoridades que tentavam impor-lhe alguma lei. O conhecimento envolvido na formação
da paraskheué é o conhecimento que torna possível atuar a nossa liberdade, capacitando
o sujeito a ter em si o seu “deleite inalterável e perfeitamente tranqüilo” (Foucault,
2010, p. 215).
2.4 As práticas
A recomendação de práticas mais definidas aparece, no período helenístico, de
maneira muito mais marcante que em períodos anteriores. A valorização do cuidado de
si trouxe, para a cultura greco-romana, a constituição e a preservação de um conjunto
mais preciso de exercícios que tornariam possível a ascensão do sujeito às verdades
aspiradas.
Embora tais práticas esbocem um grau de austeridade consideravelmente
elevado, elas não se manifestam, de maneira alguma, como a obediência a uma lei ou a
um sistema de códigos, como teremos no cristianismo, elas são sempre sugeridas aos
indivíduos no intuito de auxiliá-los no assenhoreamento de si durante o percurso que o
levará a subjetivação do discurso verdadeiro. O que se pretende não é fazê-lo chegar a
nenhum tipo de ponto ideal ou pré-determinado a partir de uma investigação feita por
outrem do seu estado atual, e sim torná-lo capaz de servir-se, da maneira com lhe
convier, de determinada verdade para lidar com as contingências da vida. A operação
realizada aqui não é, como no cristianismo, a da atribuição de determinada verdade ao
sujeito ou a sua sujeição ao que diz a Verdade do Texto Sagrado, trata-se de um proverse com determinada verdade através de uma apropriação que o torne mais capaz de
atuar de maneira mais criativa sobre o mundo.
Para Foucault (2010), as práticas de si próprias do modelo cristão de
subjetivação tem duas grandes metas principais. Uma delas é fazer com que o indivíduo
aceite determinada verdade como inerente ao seu próprio ser, incorpore determinada
sentença, como é o caso da ritualização do penitente, e opere sobre si uma série de
renúncias que marque publicamente sua devida punição por conta dos pecados
cometidos. O outro tipo de prática cristão é a permanente verbalização dos movimentos
da alma para outrem com o intuito de operar as necessárias renúncias em nome da
obediência à Verdade contida no Texto Sagrado. Tanto na assimilação da verdade
contida em si, quanto na aceitação da verdade advinda do Texto Sagrado, o fundamento
61
das práticas de si no cristianismo é sempre a renúncia a alguma parte de si através de
um sacrifício visando o aniquilamento total do sujeito, da carne e do desejo. Na cultura
helenístico-romana tratava-se, pelo contrário, de constituir um sujeito através das
práticas de si, de formar um indivíduo, não livre de desejos e prazeres, mas que os
domine. É como se a verdade, implicada nas práticas de si helenístico-romanas,
funcionasse como a luz de uma lanterna utilizada pelo sujeito a iluminar os caminhos
por ele mirados. Situando-se entre o eu atual e o eu pretendido por ele, a verdade, a luz,
é colocada ativamente pelo próprio indivíduo, nos pontos que, iluminados, se
transformarão nos caminhos que o conduzirão ao seu objetivo. Já nas práticas de si
cristãs, é como se tivéssemos lanternas invertidas. Elas, agora, estariam nas mãos de um
outro sujeito, a luz seria projetada sobre o indivíduo e revelaria as suas partes sombrias
e perniciosas às quais ele seria delegado a renunciar. No cristianismo, portanto, busca-se
a objetivação do sujeito no discurso verdadeiro. No helenismo busca-se a subjetivação
de discursos verdadeiros.
As práticas de si buscavam, portanto, constituir aquilo que eles chamavam de
paraskheué. E em que consiste essa armadura, esse equipamento? Consiste efetivamente
em um discurso, em um lógoi. São discursos que não tem a pretensão simplesmente de
um dizer verdadeiro, mas que devem efetivamente auxiliar o sujeito a constituir para si
princípios de ação. São verdades que possam emergir num momento de perigo para o
sujeito “como um piloto de navio que mantém a tripulação em seus postos, dizendo-lhe
o que deve fazer, sustentando a direção, comandando a manobra” (Foucault, 2010, p.
289). As práticas são exatamente aquilo que promoverá a consolidação dessa
paraskheué. É o que permite que o dizer verdadeiro se constitua como maneira de ser do
próprio sujeito. Elas irão, portanto, possibilitar fazer de si mesmo o sujeito do discurso
verdadeiro. Isso não significa, vale lembrar, tomar essa verdade como a essência do
sujeito, trata-se, de outra maneira, de procurar equipá-lo com ela.
Essas práticas são, metaforiza Demétrius, como a preparação de um atleta para
um embate. Ele não irá procurar apreender todo e qualquer movimento de luta existente,
ele irá procurar assimilar os golpes provavelmente mais necessários, os que
possivelmente serão exigidos na competição. Ele não irá, por outro lado, ater-se a um
conjunto fixo e limitado de comportamentos; ele buscará captar um princípio geral, irá
procurar formar uma habilidade ampla, capaz de adaptar-se às circunstâncias
futuramente apresentadas. Enquanto o atleta cristão busca, constrangido em si mesmo,
62
gerenciar um espaço constrito dentro de si onde o inimigo guarda morada, o atleta
helenístico busca gerenciar sua relação com o mundo a fim de aumentar suas
possibilidades de ação neste. O atleta cristão executa práticas infindáveis em sua saga
em rumo à eliminação – nunca garantida – de um inimigo interno, ele deve estar preso,
portanto, ao que passa dentro de si, ao invés de estar atento à sua relação com o mundo.
Uma das práticas cultivadas no processo de subjetivação das verdades era a
realização da boa escuta. Para Plutarco a audição é o sentido mais valioso no caminho
em direção à virtude, é através dela, necessariamente, que o sujeito pode acessar a
verdade e recolher o logos. Os demais sentidos, paladar, olfato, visão, são todos
sentidos envolvidos nos prazeres, nenhum deles é capaz de dar acesso à alma do homem
como o é a audição. Todavia, embora esse seja o sentido mais importante implicado no
aprendizado da virtude, ele é, por sua vez, o mais passivo dos sentidos e o que é capaz
de colocar o indivíduo numa situação de grande vulnerabilidade. Pode-se fechar os
olhos para não enxergar o que não se deseja, pode-se recusar-se a tocar algum objeto,
pode-se não degustar um alimento que apresenta um aspecto desagradável, mas não se
pode deixar de escutar algum som que lhe seja apresentado. Além dessa passividade a
audição é ainda, para aquele filósofo, o sentido mais perigoso, pois, é através dele que
se pode cair nos encantos da retórica ou da lisonja. Exposto a qualquer um desses dois
tipos de discurso o indivíduo torna-se vulnerável e pode acabar por conduzir-se a um
caminho da não virtude, um caminho não constituído por ele mesmo.
Para se suprimir esses efeitos deletérios da escuta os filósofos estóicos e
epicuristas recomendavam primeiramente a prática do silêncio. Saber calar-se, para
Plutarco, significava saber recolher efetivamente o lógos, significava não convertê-lo de
imediato em discurso ou em atitude, mas sim deixar-se apropriar-se deles após a
necessária retenção e sedimentação. O tagarela, segundo ele, é incurável, pois, como um
pote vazio, derrama de imediato o que ouve no seu próprio discurso não deixando que o
lógos opere sob o seu ser. Trata-se, portanto de um silencio ativo e reflexivo. Calar-se
não significava ser passivo diante do que se escutava, pelo contrário, possibilitava que o
sujeito atuasse sobre o que ouvia constituindo o seu próprio modo de ser a partir dessa
escuta. A prática do silêncio permite que o indivíduo examine a si mesmo ao escutar,
permite que ele averigúe de que maneira o que foi ouvido o auxiliou em no seu processo
de aperfeiçoamento em direção à verdade, proporciona uma verificação da colaboração
da lição ou do diálogo estabelecido na constituição de sua paraskheué.
63
Outro tipo de prática disseminada por aqueles que exerciam o cuidado de si era
a gymnázein. O grande objetivo desses exercícios era testar, promover e consolidar a
independência do indivíduo em relação ao mundo exterior. Um exemplo desse tipo de
prática, identificada por Foucault em suas investigações, era o exercício de abstinência
recomendado por Plutarco. Este filósofo sugeria que o sujeito se submetesse a um dia
exaustivo de atividades esportivas e ao final da jornada, quando estivesse bastante
cansado e faminto, se pusesse à frente de uma mesa farta de alimentos saborosos. Nessa
condição, ao invés de regozijar-se ao saciar a sua fome no deleite de tão intenso prazer,
o indivíduo deveria ceder seu alimento aos escravos e se contentar com a comida que
seria destinada a eles. Outro exercício promovido em situação real era aquele
recomendado por Sêneca às vésperas das festas Saturnais. Esse filósofo, por sua vez,
indicava que o sujeito antes de participar dessas importantes comemorações,
caracterizadas por momentos de grande fartura e ostentação, se colocasse em situação
de profunda escassez, se alimentando somente de pão e dormindo em camas
extremamente rústicas. Apesar de se utilizar da abstinência, o que se almejava não era
produzir um caminho indefinido em direção à renúncia como no cristianismo, onde o
ponto de chegada fosse o sujeito abstêmio e purificado. Através desses exercícios
buscava-se, por exemplo, fazer com que o indivíduo constatasse que a pobreza era algo
absolutamente tolerável, pretendia-se torná-lo devidamente despendido das coisas do
mundo, não para desprezá-lo, mas para ter a necessária tranquilidade diante dos
infortúnios apresentados pela vida e a aspirada indiferença diante das riquezas
conquistadas (Foucault, 1997b). Não era, portanto, negado o prazer ou o regozijo ao
indivíduo, o que se desprezava era uma espécie de apego escravizante que o enfraquecia
e o tornava menos senhor de si.
Para compreendermos a peculiaridade desses exercícios em relação às práticas
cultivadas e sustentadas pelo cristianismo até nossos dias, podemos trazer ainda, além
da escuta e da gymnázein, os exercícios de provação. A prova consistia num exercício
onde o indivíduo experimentava, provava, sondava seus próprios pensamentos ou
sentimentos. Esse tipo de prática se aproximava intensamente das difundidas pelo
cristianismo, apresentando, contudo, diferenças substanciais em relação a estas. Um tipo
de exercício de provação era o controle das representações, onde era proposta uma
vigilância contínua e minuciosa dos pensamentos apresentados ao indivíduo. Nesse tipo
de inspeção o sujeito devia procurar provar, sentir, a forma como essas representações o
afetavam, devia verificar se era conveniente afetar-se por elas e se estava tendo a
64
virtude adequada diante das mesmas. Epíteto utilizava, para se remeter a essa prática, a
metáfora do cambista que verifica, pesa, olha o material e a efígie das moedas. O
objetivo não é, como no cristianismo, verificar a procedência da moeda, sua
legitimidade divina ou sua capciosidade demoníaca. Pretende-se, aqui, avaliar a maneira
como determinada representação se relaciona com os princípios adotados pelo
indivíduo; busca-se, igualmente, ponderar acerca da importância de se afetar de
determinada maneira por algumas delas e ademais refletir a respeito das virtudes
adequadas para lidar com cada um delas. Nos textos cristãos a metáfora do cambista
remetia ao sujeito da hermenêutica e da concupiscência, referia-se a necessidade de se
decifrar o grau de pureza dos pensamentos, tratava-se de conferir de que maneira eles
são compatíveis com o que revela o Texto ou de que forma elas podem estar afetados
pelas ilusões impingidas pelo Inimigo.
O último tipo de exercício analisado por Foucault que pode nos interessar aqui
é o que ele chamou de exame de consciência. Nesse tipo de prática os filósofos estóicos
e epicuristas sugeriam aos sujeitos que desejavam cuidar de si que realizasse em dois
momentos do dia um levantamento das atividades planejadas para aquela jornada. Pela
manhã, aconselhavam, devia-se fazer uma espécie de preparação para as tarefas a serem
realizadas de modo que estas pudessem efetivamente reativar os princípios por ele
adotados. Em seu exame matinal, era preciso, portanto, planejar-se para que o seu dia o
conduzisse ao progresso em direção à verdade almejada. Já à noite sugeria-se que o
sujeito fizesse um levantamento retrospectivo do seu dia, que ele examinasse se tinha
realmente cumprido com as tarefas que tinha se colocado a fazer, se tinha mantido a
devida retidão com os princípios pretendidos. Esse tipo de prática tinha como único
objetivo auxiliar o alinhamento do sujeito à verdade por ele adotada, não visava de
modo algum, como no cristianismo, a revelação para um outro para que este possa
julgar suas faltas morais ou seus pecados cometidos resultantes da não obediência ao
código estabelecido. Nesse exame dos comportamentos do sujeito não se buscava
verdade alguma sobre o seu ser, pretendia-se efetivamente reativar determinada verdade
para ele. A relação do sujeito consigo mesmo não se estabelece sob a forma de uma
relação judiciária onde o acusado se encontra em face do juiz; o exame toma o caráter
de inspeção, onde se busca apreciar um trabalho realizado (Foucault, 2007b). Devemos
lembrar que procurar adotar uma verdade não se traduzia na obediência a uma regra ou
a uma lei, significava equipar-se com uma série de princípios gerais que se efetivariam
de uma maneira livre pelo indivíduo.
65
2.5 Relação com o mestre
Para Foucault, vemos emergir nos séculos I e II da civilização greco-romana
um papel fundamental a ser desempenhado por um mestre na relação que alguém
estabelece consigo mesmo. Segundo o autor, é nesse momento que vemos a presença de
um outro se estabelecer como imprescindível para a transformação de um indivíduo,
desde então, dadas as devidas diferenças que vislumbraremos a seguir, é requerido do
sujeito que sempre se relacione com uma outro indivíduo quando desejar conduzir
alguma forma de cuidado consigo (Foucault, 2010).
Diferentemente do que ocorrera no período precedente, conhecido como
Antiguidade Clássica, o mestre aqui não tinha a função simplesmente de transmitir para
o dirigido um saber que ele ainda não obtinha. Naquele período, o cuidado de si era
direcionado unicamente àqueles que tinham o papel político de governar os outros. O
status, portanto, era recebido a priori pelo sujeito cabendo ao mestre somente conduzi-lo
em direção ao conhecimento faltante. Já na cultura helenística, contudo, o mestre irá
levar o indivíduo a uma inédita condição de plenitude consigo mesmo; ele
desempenhará um papel muito mais fundamental ao possibilitar ao sujeito aceder –
através da sua relação com a verdade por ele transmitida – a um status, a um estado, a
um lugar, jamais ocupado por ele. Para Foucault, é desde aqui, portanto, e até nossos
dias de hoje, que um mestre passará a estar necessariamente implicado não
simplesmente na transmissão de um saber para o dirigido, mas essencialmente na sua
transformação enquanto indivíduo. É importante percebermos que esse ponto será
estrategicamente incorporado pelo cristianismo que irá, com muita argúcia, preservar
esse caráter pagão da conversão do sujeito nas práticas de si e na sua relação como
outro.
Embora haja essa intensa valorização e incentivo ao relacionamento com o
mestre no cuidado de si, o indivíduo, contrariamente ao que se observará no
cristianismo, só deve submeter-se a essa relação por sua livre vontade. Ele procurava,
nesse contexto, por escolha própria o seu diretor de consciência, pelo período que
considerava necessário, pelos motivos que ele próprio considerava pertinentes. Na
direção de consciência cristã é o mestre que irá apontar as falhas e conduzir o indivíduo
ao estado de pureza desejado, desse modo ele irá submetê-lo a um processo de
66
obediência constante e absoluta. Já aqui o sujeito se coloca nessa relação somente na
medida em que esta lhe proporciona a obtenção dos estados por ele pretendidos. Assim
sendo, “As duas vontades permanecem presentes, a do discípulo e a do mestre, uma não
desaparece por conta da outra (...) O jogo entre liberdades é fundamental razão pela qual
jamais há codificação ou sanção jurídica” (Candiotto, 2008a, p. 109).
Nessa relação de direção de consciência havia, por parte do dirigido, certa
exposição ao mestre dos seus comportamentos e hábitos diários. Contudo, apesar de tal
exposição, não se tratava ali de um exercício de concupiscência, como realizado no
cristianismo, onde o indivíduo confessava ao mestre seus movimentos internos na busca
da decifração e expurgação das falhas cometidas. Esse exame era feito somente para que
o sujeito pudesse avaliar perante o mestre, seu desenvolvimento em direção ao estado
por ele desejado. Na cultura helenística, não era a fala do dirigido que era
problematizada, não se procurava corrigir suas ilusões ou erros em seu processo de
auto-conhecimento e decifração. Pelo contrário, a fala que era focada era a fala do
próprio mestre.
Encontramos nessa problematização da fala do mestre a noção de parrhesía.
Este termo referia-se a uma qualidade, ao mesmo tempo moral e técnica, imprescindível
àquele que pronuncia a verdade a alguém que o solicitava. Parrhesía traduzia-se pela
liberdade do franco falar, indicava a condição em que aquele que falava colocava seu
discurso em função estritamente da necessidade do dirigido, sem ater-se à arte da
retórica ou utilizar-se da mesurice da lisonja. O mestre devia, portanto, preocupar-se
exclusivamente com o momento adequado para pronunciar determinada verdade, com a
melhor forma de fazê-lo e com a capacidade do indivíduo para recebê-las. Ocorre que
neste período o mestre não era mais um sábio pensador que cedia gratuitamente seus
serviços de alma, ele era agora um homem remunerado, oriundo de diversos estratos
sociais, que podia tentar agradar o dirigido para garantir vantagens e privilégios, podia
tornar-se um lisonjeador. O discurso lisonjeador é um discurso mentiroso, ele não
estaria realmente ligado às necessidades daquele que o solicita e não o auxilia no seu
processo de subjetivação e autonomização. Ao dirigido não interessava, dessa maneira,
estar diante de um lisonjeador. O discurso do mestre não devia, igualmente, ser retórico,
ou seja, ele não devia procurar conduzir a conduta de quem o escuta. Trata-se, ao
contrário, “de fazer com que cheguem a constituir por si mesmos e consigo mesmos,
uma relação de soberania característica do sujeito sábio e virtuoso”. (Foucault, 2010, p.
67
345). Desta maneira, o sujeito escolhia com cuidado o seu mestre, devia testar sua
sinceridade, verificar a sua reputação, certificar-se de que não se tratava de um
lisonjeador ou de um retórico. Ele devia garantir, portanto, a possibilidade da parrhesía,
do discurso verdadeiramente útil e sincero que auxiliava o indivíduo na condução do
seu próprio processo de transformação.
2.6 Sujeito do cuidado de si x Sujeito da obediência
Ao cabo desse estudo sobre as características fundamentais das tecnologias de
si correntes na cultura helenística podemos, enfim, perceber as pretensões foucaultianas
ao exibir esse modelo de subjetividade. Contrapondo-o sistematicamente ao modelo
cristão, típico da nossa sociedade, o autor pretende nos fazer enxergar a maneira como
somos hoje convidados a nos relacionarmos com nós mesmos. Através da apresentação
da experiência grega e romana dos séculos I e II vemos como os indivíduos se
constituíam de uma maneira bastante diferente da do sujeito da obediência cristão.
Naquela ocasião, quando implicados no cuidado de si, os indivíduos eram
extremamente ativos e buscavam adquirir um status de plenitude caracterizado pelo
aumento da sua possibilidade de ação no mundo e por sua autonomia em relação a
qualquer objeto ou pessoa com que se relacionava. Através de sua relação com a
verdade pronunciada pelo mestre, ele procurava constituir sua própria conduta de
acordo com o objetivo por ele mesmo esboçado. Essa vinculação com o mestre, embora
extremamente necessária, era sempre estabelecida por uma iniciativa do próprio sujeito
e durava o tempo que ele julgasse apropriado. As verdades não se constituíam como
uma codificação dos comportamentos dos indivíduos e nem tinham por tarefa corrigir
sua existência, seus hábitos ou pensamentos. Não era o mestre quem se utilizava de uma
verdade para conduzir o dirigido a determinado estado, era, pelo contrário, este último
quem se servia do discurso pronunciado por ele para conduzir-se da maneira desejada.
Este é, portanto, assinala Foucault, o que se pode chamar de sujeito ético do cuidado de
si.
Todavia, apesar de apresentar um modelo bastante diferente do colocado pelo
cristianismo, vê-se, neste momento, ocorrer alguns movimentos importantes que
preparam o solo para a instauração do modelo cristão de subjetivação. A necessidade de
exercer uma atenção sobre si e de praticar certos tipos de exercícios para a sua
68
transformação se intensifica, espalhando essa cultura por boa parte do tecido social. O
serviço de alma que outrora fora exercido somente por alguns sábios se multiplica e
passa a regular uma série de relações sociais. Amigos, filhos, parentes distantes, vários
tipos de vínculos são atravessados por esse tipo de serviço que se torna extremamente
comum naquela sociedade. A austeridade para consigo, a intensificação do olhar para si
e a necessidade da presença do mestre foram todas características que, da mesma
maneira, migraram para o cristianismo, mas não sem sofrer uma série de transformações
cruciais.
A partir do cristianismo como vimos, instaurou-se o que Michel Foucault
chamou de sujeito ético da obediência. Aquele olhar para si originado no próprio
sujeito, torna-se uma injunção estabelecida por outra pessoa, ela encontra o seu ponto de
origem neste outro indivíduo que irá, então, ser o principal condutor deste processo de
subjetivação. A necessidade de cuidar de si, portanto, é colocada aqui por um outro
indivíduo, que, por um lado, considera-se detentor de uma verdade capaz de salvar o
indivíduo e, por outro, julga-se capaz de fazer o indivíduo encontrar em si as suas mais
profundas verdades às quais desconhecia. É esse novo condutor do cuidado de si que irá
colocar para o sujeito a necessidade de transformar-se e conduzir-se a determinado
ponto estabelecido. Esse olhar que o indivíduo lança sobre si é um olhar investigador,
que procura encontrar em seu ser ações, pensamentos ou desejos necessariamente
elimináveis. Aqui, aquele cambista que olhava para as moedas – pensamentos – a fim de
provar-se diante delas, verifica agora o grau de pureza dos seus movimentos internos
para que possa empreender as renúncias necessárias que o conduzirão ao seu estado de
purificação.
É sempre o sujeito da renúncia que no olhar para si procura o pecado a ser
expurgado e eliminado. Os exercícios de abstinência não são somente um caminho para
que o sujeito consiga exercer um domínio sobre si, eles são exatamente o estado ao qual
o indivíduo deve almejar atingir. Não é o indivíduo, portanto, quem cria seu próprio
estilo de vida, ele o recebe de maneira passiva restando-o trabalhar arduamente para que
possa alcançá-lo. Esse exame de si, acompanhado pela revelação a outrem, tem como
resultado a produção de um saber sobre o indivíduo que é reiteradamente utilizado
como ensejo para sua infinita necessidade de investigação e correção. A singularidade
do indivíduo, que outrora fora o estado final do seu trabalho criativo de subjetivação é
agora tomada como a prova manifesta da imprescindibilidade de uma subjetivação
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agora submetida à objetivação do olhar do outro. O cristianismo, como dissemos,
equiparou o cuidado de si ao conhecimento de si, transformando a procura da autonomia
em egoísmo, isolamento e descomprometimento para com o coletivo. Trata-se de uma
introspecção, que, nesta busca pelas faltas cometidas, prende a atenção do indivíduo
dentro de si mesmo, desprezando um olhar atento às formas como os elementos do
mundo agem sobre si. Despotencializa, dessa maneira, sua capacidade crítica de estar
atento às suas relações com mundo, diminuindo, consequentemente, sua possibilidade
de, por conta própria, transformá-las, desfazê-las ou criá-las.
Os exercícios apresentam, por sua vez, uma obrigatoriedade e uma relação com
a verdade completamente diferente. Há as práticas de aceitação da verdade, os atos de
fé, – não aprofundados por Foucault – que dizem respeito à obediência à palavra do
Texto em forma de uma Lei. Ou seja, aquelas verdades que anteriormente eram
escutadas ativamente e transformadas pelos indivíduos em força criativa para agir sobre
o mundo se cristalizam e se tornam um veículo de sua obediência em relação a esse
mesmo mundo. E há, por outro lado, as práticas de extração das verdades interiores.
Dentro desse segundo grupo de exercícios Foucault encontrou, na leitura de Instituições
cenobíticas e Conferências de Cassiano, a prática da exagoreusis, que pode ser definida
como a permanente discursividade sobre si mesmo para o outro (Foucault, 1997c). O
indivíduo deve tudo-dizer ao seu diretor por suspeitar da presença de um inimigo que só
aquele que é representante da Palavra é capaz de discernir, de identificar e de
diagnosticar. Ele deve revelar todos os movimentos internos por conta da inevitável
tendência em se esconder os atos que se originam no Maligno. Ao expor os seus atos
mais recônditos e obscuros, o indivíduo lança uma luz sobre eles e expulsa o Inimigo
que ali se encontrava condenado a viver eternamente no mundo da escuridão.
E é assim que, assinala Foucault,
a obediência incondicional, o exame ininterrupto e a confissão exaustiva
formam, portanto, um conjunto onde cada elemento implica os dois outros; a
manifestação verbal da verdade que se esconde no fundo de si mesmo
aparece como uma peça indispensável ao governo dos homens uns pelos
outros, tal como foi realizado nas instituições monásticas a partir do século
IV. (Foucault, 1997c, p. 105)
70
Há aqui uma circularidade fundamental entre o auto-conhecimento e o
conhecimento da Verdade. Quanto mais o indivíduo se revela para o outro mais ele se
purifica e se torna capaz a assimilar a verdade advinda do Texto. Por outro lado, quanto
mais ele conhece essa verdade mais ele se torna apto a conhecer-se da maneira correta.
Nesse tipo de prática, então, o exame de consciência assume um papel fundamental,
mas aparece com características muito diferentes das apresentadas no período anterior.
Ele não busca o planejamento matinal das práticas pretendidas, nem a simples
verificação administrativa do dia pelo próprio indivíduo. O exame toma um caráter de
avaliação moral das atitudes do sujeito na busca de suas falhas e desvios do caminho
tomado como divino.
A incorporação das práticas de si pelo cristianismo significa, para nós ocidentais,
a inauguração do seu nefasto processo de institucionalização e aprisionamento. Desde
então, o cuidado de si não cessou de ser submetido a processos maciços e ininterruptos
de integração aos diversos tipos de organizações com propósitos de direção da conduta
dos homens. Após a religião, a medicina, a psicologia, a psiquiatria, todas essas
instituições incorporaram esse modelo de subjetividade e se colocaram como o solo
legítimo sob o qual essas práticas devem se assentar, se constituir e encontrar sua razão
de ser. Não mais Deus, mas a Ciência tem se colocado hoje como o nosso grande
inquisidor, que não se contenta em simplesmente nos oferecer um saber útil a ser
utilizado, mas lança o seu olhar sobre nossos corpos, nossos comportamentos e nossa
subjetividade tentando,
incisivamente, nos
impor uma necessidade de nos
transformarmos e nos conduzirmos a algum ponto determinado. Para Foucault, a
economia da verdade hoje apresenta cinco características principais: centra-se na forma
de discurso científico, é submetida a constantes incitações econômicas e políticas, é
objeto de uma imensa difusão e consumo, é produzida sob controle dominante – não
exclusivo – de grandes aparelhos políticos e econômicos, como universidades, exército,
e meios de comunicação, e é objeto de debate e confronto social.
Apesar de termos deixado de viver numa sociedade de uma lei ou de uma
norma ideal única, como apreciamos no capítulo anterior, continuamos, ainda, sempre
remetidos a um sistema codificações do comportamento, onde o indivíduo é incitado a
se decifrar a partir do olhar de um outro e estimulado a se transformar por conta de uma
iniciativa externa. Não vivemos, igualmente, necessariamente sobre o registro da
renúncia. Muitas práticas de si atualmente fomentadas procuram constituir o indivíduo,
71
e não necessariamente aniquilar determinada parte de si. No entanto, tais práticas de si,
devido aos seus sucessivos processos de institucionalização, continuam sendo
submetidas às injunções e metas estabelecidas por um outro. O homem ocidental deixa,
portanto, de ser aquele indivíduo artesão de si mesmo, que trabalha autonomamente,
motivado por sua criatividade e originalidade, como o fora na era helenístico-romana e
passa a ser, poderíamos assim dizer, proletário de si mesmo, ao ser compelido a exercer
sob seu corpo e sua subjetividade uma tarefa delegada por outrem, não determinando e
nem mesmo possuindo o produto final ao qual se chegará.
2.7 O espaço da liberdade
Constrangido dentro de si, submetido a verdades anunciadas como máximas,
forçado a submeter-se ao olhar do outro e a se reconhecer num discurso que é
produzido, compelido a operar sobre si uma série de práticas antecipadamente
concebidas, restaria ainda, dentro dessa perspectiva, algum espaço reservado à liberdade
do indivíduo? Foucault, em sua obra, teria deixado para este sujeito alguma saída,
alguma chance de escape à esse fatídico destino anunciado? Poderíamos dizer, sem
restar nenhuma dúvida, que temos aqui uma resposta positiva. Esse autor, tomado por
muitos como o pensador das práticas coercitivas e alienantes, tem como pano de fundo e
como propósito de toda sua obra, por mais paradoxal que nos possa parecer, sempre a
busca da possibilidade de liberdade. E em que consistiria, então, essa liberdade
foucaultiana?
Em momento algum de sua obra, como bem nos sinaliza Larrosa (2000),
Foucault nos deixa uma definição fechada e precisa do que seria o seu conceito de
liberdade. A sua maneira de abordá-la, segundo ele, não é aprisionando-a ou
constrangido-a no plano da conceituação teoria ou do projeto pré-estabelecido. O tatear
a liberdade foucaultiano se alicerça não na sua programação determinada, e sim na
crítica e na desestabilização das certezas e das evidências mais assentadas em nosso
tempo. Em seu trabalho pela liberdade ele propõe o estranhamento do que é habitual e
do que é naturalmente aceito. Questionar o que nos é mais óbvio para Foucault não se
caracteriza por uma atitude de rebeldia sem sentido e sem propósito, expressa, pelo
contrário, a vontade e a coragem de abrir as possibilidades para a criação de novas
formas de existência. Essa aspiração por formas inéditas de vida passa
72
impreterivelmente, para ele, por essa “problematização das evidências e universalidades
que nos configuram em nossas formas de conhecimento, em nossas práticas punitivas,
em nossas formas de relação com os demais e conosco” (Larrosa, 2000, p.330).
Toda essa experiência de estranhamento das formas de pensamento e atitudes
vigentes irá desembocar exatamente no domínio da relação do sujeito com ele mesmo. É
justamente no momento em que o indivíduo se constitui enquanto sujeito que há a
possibilidade real de efetivar novas formas de vida que surpreendam o instituído e as
verdades nele sedimentadas. Essa é a novidade trazida por Foucault nos processos de
subjetivação, é aí que, para ele, reside a possibilidade não de sair, mas de provocar e
interferir na trama do saber e do poder na qual se está inserido. Sendo as relações de
poder, onde os indivíduos tentam conduzir a conduta do outro, intrínsecas a todas as
relações humanas, as práticas de si se apresentam como o campo de emergência das
possibilidades de resistência exatamente por oferecer ao individuo as condições de
condução da sua própria vida livrando-o da pura sujeição à interferência do outro. Na
medida em que as práticas de si se transformam numa possibilidade de intervir nos
efeitos do poder, numa maneira de tentar limitá-lo e restringi-lo, elas começam a se
aproximar do que poderíamos intuir serem as práticas de liberdade. Nesse processo de
subjetivação autocriativo a força não fica engessada na simples negação paralisante
daquilo que ela recusa, ela é exercida pelo próprio sujeito em si mesmo, escapando à
oposição polarizada de forças e caracterizando-se pela invenção de novas
subjetividades. Esse movimento de resistir e surpreender o que é planejado pelo poder
provoca inevitavelmente uma reacomodação e uma reestruturação de suas estratégias
visando a reincorporação do indivíduo à sua rede de controle.
E é assim que Foucault nos deixa entender a sua concepção de liberdade, como
uma relação agonística, uma luta permanente travada dentro das próprias relações de
poder. Essas práticas de liberdade são consideradas por ele inclusive como uma précondição para a existência das relações de poder, uma vez que, diferentemente das
relações de dominação – onde não se deixa nenhuma margem de possibilidade de ação
para o indivíduo – o que existe é uma tentativa de gerir a conduta do outro, havendo,
portanto, necessariamente e simultaneamente, sempre o espaço para a intransigência da
liberdade (Foucault, 2006h). A saída de um estado de dominação absoluta não garante,
no entanto, para Foucault, a efetivação radical dessas práticas de liberdade. É após essa
liberação que se abre, então, o espaço para a criação de novas formas de subjetividade.
73
Não há, portanto, “descanso no exercício de sermos livres, não podemos descansar
acreditando numa vitória final da liberdade. A liberdade resta ser inventada sempre, e
por cada um, por grupos, de muitas maneiras. Não há possibilidade de totalização da
liberdade” (Souza Filho, A. S. 2008, p. 23).
O indivíduo que resiste aos modos de subjetivação cristãos, podemos supor, é
aquele que se recusa a ser passivo diante desse olhar diagnosticador que vem do
exterior, que se nega a ser simplesmente objetivado pelo outro, é, portanto, aquele que
bloqueia essa invasão inquisitiva e administrativa do seu ser. Ele é um sujeito que pode
escolher a parte de si que será por ele objetivada e os parceiros, caso deseje que existam,
que o acompanharão nessa jornada. Esse indivíduo por outro lado, é aquele que não
consome apaticamente as verdades que lhe são oferecidas como a aceitação de uma lei.
É um sujeito capaz de produzir seu próprio saber sobre o que está à sua volta graças à
atenção aos efeitos que os elementos do mundo provocam em si. É um sujeito que não
problematiza a si somente visando a renúncia, mas é fundamentalmente aquele
estabelece consigo uma relação potencializadora de formas de vida.
São sempre ideias muito abertas e pouco delimitadas sobre a liberdade. É
justamente para preservar a liberdade da própria liberdade, nos assinala Larrosa, que
Foucault prefere falar, então, das próprias limitações à ela apresentadas. E esse trabalho,
ao sabor da própria teoria da qual se utiliza, não aprisiona a liberdade através de
definições e programas ideais para a sua realização, busca-se, simplesmente, servir
como instrumento de luta ao lançar um olhar crítico sobre as práticas e as verdades que
as subsidiam O espaço da liberdade está, portanto, sempre vazio, não por ele não existir,
mas por não podermos defini-lo precisamente, por não podermos dizer o que nele está
contido, nem do que ele se constitui. Ele está sempre vazio para caber dentro dele o que
desejarmos colocar.
74
CAPÍTULO III
3. A redução de danos
3.1 O surgimento e as primeiras ações
De acordo com Marlatt, o surgimento dessa abordagem que hoje conhecemos pelo
nome de “redução de danos” aponta para o início da década de oitenta, na Holanda, a
partir de um movimento dos próprios usuários de drogas que, perante o governo
holandês, solicitavam a atenção e o cumprimento de uma série de medidas que
atendessem aos interesses daquele grupo. Esse movimento brotara num solo
extremamente compatível e favorável às suas reivindicações, a Holanda, que, desde a
década de 1970, gozava de uma postura política não repressiva e bastante avançada no
trato com a questão das drogas. Já no ano de 1976, a legislação holandesa
descriminalizara o uso de drogas consideradas leves, como maconha e haxixe, a fim de
evitar que os usuários fossem mais prejudicados pelas conseqüências criminais do uso
do que pelo próprio uso da droga. (Marlatt, 1999).
É nessa atmosfera, portanto, que nasce tal movimento dos usuários de drogas,
conhecido como “junkiebond”, a “liga de usuários”, uma espécie de sindicato de
usuários de drogas injetáveis formado na cidade de Roterdam que, pautado
exclusivamente nos interesses daqueles indivíduos, realizava consultas com os
funcionários do governo reivindicando a este melhores posturas em ações como
distribuição de seringas – por conta do perigo de transmissão da Hepatite – distribuição
de metadona3, políticas dos legisladores e problemas com a polícia. Como resultado
deste trabalho realizado pelo grupo, implantou-se naquele país o primeiro programa de
troca de seringas do mundo.
Desde então o governo holandês começa a adotar e a repetir práticas de saúde que,
sem exigir a abstinência, possibilitavam a aproximação e o contato com os usuários de
drogas. Esse tipo de estratégia ia se caracterizando fundamentalmente como um trabalho
de campo, no qual, como um exemplo de prática, tínhamos a circulação das
“caminhonetas da metadona” pelas ruas das cidades. Nessas vans, dois enfermeiros
3
A metadona é administrada por pessoas que fazem uso de alguma substância opiácea com o intuito de
diminuir a fissura e os sintomas da abstinência.
75
distribuíam a substância somente para os usuários – agora pacientes – que estivessem
inscritos no cadastro central e freqüentassem regularmente o médico. Nessas ações –
observara já naquela época o professor de Psicologia norte-americano Allan Marlatt em
visita ao país – os profissionais podiam estabelecer um vínculo mais estreito com os
usuários, mantendo com estes, inclusive, conversas bastante informais e chamando-os
por seus nomes próprios. Dessa maneira ia se estabelecendo um tipo de estratégia
bastante poderosa que, ao mesmo tempo em que alcançava um maior número de
indivíduos, graças ao seu baixo nível de exigência e por suas idas às ruas, possibilitava
um tipo de contato mais estreito, mais impessoal, e por isso, mais forte com os sujeitos.
“Um dos resultados mais significativos da filosofia de fácil acesso e baixa exigência é
que os holandeses alegam estar em contato com a maioria da população de
dependentes” (Marlatt, 1999 p. 33)
A partir desse contato com a população de usuários os holandeses foram
realizando estudos e avaliando os efeitos de suas políticas vanguardistas no âmbito das
drogas. De acordo com um relatório do Ministério da Previdência Social, Saúde e
Assuntos Culturais no ano de 1976, 3% dos jovens com idades entre 15 e 16 anos e 10%
dos jovens de 17 e 18 anos usavam ocasionalmente maconha ou haxixe. No ano de
1985, após anos de descriminalização do uso, os números eram de 2% e 6%
respectivamente. Outra pesquisa mostrou que 12% dos alunos do ensino médio do país
haviam usado maconha pelo menos uma vez na vida, um número muito menor do que
os 59% encontrados no mesmo público nos Estados Unidos, país tradicionalmente
proibicionista. (Marlatt, 1999). Foi-se percebendo, então, que uma política mais
tolerante, dotada de estratégias efetivadas com mais proximidade do usuário, acarretava
curiosamente na diminuição do uso de drogas pela população e na possibilidade de uma
atuação mais abrangente sobre esses indivíduos. Sendo assim, revela um especialista em
drogas indiano, em conversa informal com Gordon Marlatt:
Na América, temos uma grande hierarquia governamental, com o czar das
drogas no alto da pirâmide dizendo aos usuários de drogas o que fazer e o
que não fazer, e se esses não conseguem obedecer, são encarcerados. Na
Holanda, em comparação, o enfoque é bastante diferente; alguém deste
centro senta-se ao lado do usuário em um banco de parque e pergunta: como
podemos ajudá-lo a voltar a ter uma vida produtiva na sociedade? (Marlatt,
1999 p. 33)
76
O outro país a que se atribui a elaboração da ideia de redução de danos é a
Inglaterra. O primeiro ato que se assemelha a aplicação de tal estratégia foi realizado
ainda na década de 1920, quando, na realização de um comitê, um grupo de médicos
elabora um relatório, conhecido como Relatório de Rolleston, no qual se determinava
que a prescrição da metadona – um opiáceo considerado mais leve que os demais – para
dependentes de opiáceos, como a heroína, que se encontravam em tratamento, poderia
ser a medida médica mais adequada para alguns casos, por sua capacidade de diminuir
os sintomas da abstinência e a intensidade da fissura. E assim, “Pacientes adictos a
determinadas drogas opiáceas poderiam receber drogas, sob prescrição do seu clinico
geral, de modo a permitir-lhes levar vida mais estável e mais útil a sociedade” (O‟Hare,
1994, p. 66).
No entanto, apesar da adoção pontual dessa medida, os anos que se seguiram no
país foram marcados pela manutenção de medidas governamentais fortemente
repressivas, com políticas de saúde orientadas exclusivamente pelo tradicional modelo
da abstinência. Até que, com a eclosão da epidemia da AIDS nos anos 80, as estratégias
de redução de danos ressurgiram para o governo como um recurso extremamente capaz
de barrar o alastramento da doença. Na Inglaterra, 30% dos casos de AIDS estavam
associados ao uso de drogas injetáveis, o que o constituía como um meio muito potente
de disseminação, portando ainda a possibilidade de se expandir através das diversas
redes sociais dos usuários. (Caroline Brasil, 2003). A comunidade médica estava
extremamente assustada com o surgimento dessa nova doença, que, apesar de ser então
associada a parcelas estigmatizadas e marginalizadas, podia muito facilmente espalharse e atingir os demais indivíduos da sociedade. O problema da AIDS trouxe para o
governo a necessidade do desenvolvimento de estratégias de controle bastante
específicas. Por conta do seu modo de disseminação, relacionado a hábitos e
comportamentos praticados rotineiramente pelos indivíduos, era preciso desenvolver
estratégias que se inserissem nas práticas diárias desses sujeitos. Era preciso que eles,
por conta própria, em seus comportamentos cotidianos, evitassem o alastramento
populacional da doença. E é assim que na Inglaterra, bem como em diversos outros
países do mundo, a redução de danos passa a ser inserida nas políticas de saúde pública.
Como pontua Caroline Brasil:
Acreditamos estes terem sido os motes para a aceitação da estratégia de
redução de danos, as quais, a partir das experiências de Mersey, na Inglaterra,
vão progressivamente, tão progressivamente quanto o alastramento da AIDS,
ser implantada na maior parte dos países do mundo. (...) O fato foi que, a
77
partir de um grupo “fora da lei” que passou a entrar em contato com uma
doença que hoje mata os “de bem” e os que ainda são tomados como “de
mal”, é que se iniciou um movimento em prol da cidadania. (Brasil, 2003, p.
48)
A partir desse contexto a Inglaterra passa a adotar práticas de saúde semelhantes
àquelas
que
estavam
sendo
aplicadas
nos
Países
Baixos.
Realizavam-se
primordialmente práticas de distribuição de seringas, serviços de aconselhamento e
campanhas de educação na comunidade. A polícia exercia um papel fundamental na
abordagem de redução de danos neste país. A força policial era a grande responsável
por encaminhar os infratores para os serviços de saúde britânicos. Em uma primeira
abordagem os agentes advertiam os usuários de drogas injetáveis que, caso não se
vinculassem a um serviço de saúde do governo, seriam processados em uma possível
segunda captura policial. (Marlatt, 1999, p. 38)
Os objetivos que foram se desenhando para essa nova estratégia dos serviços de
saúde ingleses são: o estabelecimento de contato com os usuários; a busca da
preservação e do fortalecimento desse contato; a posterior promoção da mudança de
comportamento e a construção de metas mais atraentes para os indivíduos. “Constatouse que um serviço muito rígido e moralista podia afastar a clientela” (O„Hare, 1994, p.
71). Os lugares mais estratégicos para que os serviços atingissem um bom número de
pessoas eram os espaços centrais da cidade ou de grande densidade populacional, com a
disponibilização de horários flexíveis e busca dos usuários nos locais onde eles se
encontravam, antes mesmo que estes procurassem espontaneamente os serviços. As
ações para recrutamento de usuários eram tão bem sucedidas que os postos de saúde,
por vezes tinham que migrar para instalações com espaços mais generosos.
E nasce assim, na década de oitenta, fruto da experiência vivenciada nesses dois
países, a noção da ação de redução de danos. A partir de um movimento articulado
pelos próprios usuários de drogas na Holanda, os governos desses países – e de tantos
outros desde então – foram dando corpo a esse novo tipo de estratégia que se mostrava
muito mais eficaz em sua aproximação com os usuários e muito mais exitosa em sua
capacidade de transformar os comportamentos dos mesmos.
78
3.2 Pressupostos e práticas
A abordagem da redução de danos, hoje conhecida e aplicada em muitos países
da Europa e da América, constitui-se como uma abordagem para o uso de drogas que,
abdicando da meta imediata e obrigatória de suspensão do uso – seja no plano
individual seja no coletivo – articula práticas voltadas para as conseqüências do uso das
drogas tanto para os usuários quanto para o grupo social a ele vinculado. Partindo da
necessidade da elaboração de estratégias capazes de barrar a disseminação de doenças
infecto-contagiosas, as práticas de redução de danos foram sendo ampliadas pelas ações
governamentais sendo utilizadas, atualmente, para gerir diversas outras dimensões
relacionadas ao uso das drogas, como a intensidade do uso e o possível julgamento de
uma relação de dependência com a substância e como as variáveis populacionais
envolvidas, engendrando-se intervenções voltadas para a identificação dos perfis e para
a prevenção em nível comunitário.
Para a maioria dos estudiosos da área os princípios que se podem associar a tal
abordagem são: o da tolerância, já que consegue estabelecer uma intervenção permeável
às liberdades individuais; o pragmatismo, uma vez que planeja suas ações pensando na
possibilidade de sua efetivação – em contraposição às intervenções orientadas
exclusivamente por metas ideais – e a diversidade, na medida em que englobam em suas
ações uma multiplicidade de tipos de pessoas, de drogas, de comportamentos e de
formas de uso. De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas do
Brasil, a grande vantagem desse tipo de abordagem é que ela não exclui nenhum tipo de
usuário e tem a capacidade de diminuir substancialmente as barreiras de adesão dos
pacientes, sendo ainda, totalmente compatível com práticas psicoterapêuticas e
psicológicas (Brasil, 2010).
As intervenções são realizadas especialmente no território, ou seja, no próprio
ambiente “natural” do indivíduo, onde é possível entrar em contato com os diversos
componentes que constituem a complexidade de suas vidas. Para o Sistema Único de
Saúde brasileiro “a noção de território compreende não apenas uma área geográfica
delimitada, mas as pessoas, instituições, redes e cenários em que se dá a vida
comunitária” (Palombini, 2010). A partir da apreensão dos diversos elementos dessa
realidade, as intervenções podem se dar nos diversos aspectos que compõem a vida dos
indivíduos. Partindo da ideia de busca ativa, as práticas de redução de danos procuram
inserir-se nas comunidades e, ao invés de esperar uma procura espontânea da parte
79
destes, se deslocam até os lugares onde os usuários estão. Neste campo são realizadas
sessões sobre temas de saúde com as comunidades, encaminhamentos para serviços de
saúde, oficinas, trocas de seringas e distribuição de preservativos. Além das ações
comunitárias são realizados atendimentos individuais, onde as singularidades dos
sujeitos podem ser abarcadas, através da criação de espaços de fala e de discursividade
sobre si. Visitas domiciliares devem ser igualmente executadas a fim de que se possa
captar as características de cada contexto familiar – dispositivo de extrema importância
para a permeabilidade dessa estratégia – e se possa recrutar, dentre estes, novos
parceiros, catalisadores de mudanças comportamentais nos usuários.
Nessas ações o papel do redutor de danos, nova categoria profissional que vai se
delineando, é essencial. Os redutores de danos são pessoas, preferencialmente
pertencentes à própria comunidade – geralmente lideranças locais, usuários ou exusuários – que são capacitadas pelo sistema de saúde para executarem intervenções
sobre a população local de usuárias de drogas. Na condição de agentes de saúde, esses
indivíduos ocupam um lugar estratégico nessas práticas, pois, ao pertencerem ao próprio
ambiente onde deve se dar a intervenção, gozam de um poder muito grande de atuação,
graças ao seu vasto conhecimento acerca do ambiente e ao seu forte grau de influência
sobre a população. Impressões colhidas a respeito das características do território e dos
efeitos das intervenções são geralmente registradas em um diário de campo buscando o
aprimoramento das estratégias de atuação.
Na abordagem da redução de danos temos, ainda, a presença da denominada
clínica ampliada, onde as ações intersetoriais se fazem presentes, a partir da inserção
dos indivíduos não apenas em intervenções no campo da saúde, mas também em esferas
como a educação, trabalho e cidadania. O grande objetivo dessa clínica é constituir um
sujeito autônomo e ativo, capaz de gerir-se por conta própria, tanto no que tange o seu
cuidado com a sua saúde, quanto no que diz respeito ao seu papel de cidadão, sobretudo
através da sua inserção no mercado de trabalho. Deseja-se que, através de sua liberdade,
o indivíduo possa construir um estilo de vida mais responsável e produtivo na
sociedade.
80
3.3 A redução de danos no Brasil
3.3.1 A chegada
Assim como em diversos países, as estratégias de redução de danos foram
introduzidas no Brasil no cenário de enfrentamento ao problema da disseminação do
vírus HIV. No início da década de oitenta, gestores municipais e organizações nãogovernamentais se mobilizavam e empreendiam serviços e estratégias que fossem
capazes de barrar a propagação da doença provocada pelo vírus. Dentre as organizações
mais conhecidas estavam a ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), o
GAPA (Grupo de Apoio a Prevenção à AIDS) e o IEPAS (Instituto de Estudos e
Pesquisa em AIDS de Santos). Em suas discussões tais organizações traziam a redução
de danos como uma importante prática de saúde pública as ser aplicada aos usuários de
drogas injetáveis. Pesquisas realizadas neste período apontavam o uso de drogas
injetáveis como um meio bastante significativo para a disseminação do vírus HIV. Na
cidade de Santos, 42,5% dos casos de AIDS eram representados por essas pessoas,
segundo os estudiosos, somando-se os casos de contaminação indireta, podia-se
concluir que metade dos casos de AIDS na cidade estava associada a tal prática. (Dias,
2008).
Até então, a única forma de atenção em saúde voltada para os usuários de drogas
restringia-se à internação em hospitais psiquiátricos, onde as ações norteavam-se
exclusivamente para a busca da abstinência total do uso de substâncias psicoativas.
Diante do cenário de propagação do vírus HIV outras formas de intervenção se fazem
necessárias no trato com esta população. No ano de 1989 é realizada pela prefeitura da
cidade de Santos a primeira tentativa de distribuição de seringas para usuário de drogas
injetáveis. A iniciativa, no entanto, fora barrada pelo Ministério Público que, baseado na
lei vigente, interpretou a ação como um incentivo ao uso de substâncias ilícitas. Na
ocasião, o prefeito e o secretário da Secretaria de Higiene e Saúde foram processados.
Por conta desse ocorrido várias organizações não-governamentais mobilizaram-se junto
à IEPAS e conseguiram alterar o projeto de lei do deputado federal Elias Murab, que ao
substituir a lei de drogas vigente de número 6.368/76, mantinha a proibição do tipo de
prática que ocorrera em Santos.
No início da década de noventa, a ideia de redução de danos começa a entrar no
campo do debate teórico do país. Em 1992 o termo é pronunciado pela primeira vez em
81
fóruns, na ocasião da realização do Seminário Brasil-Alemanha. Nesse mesmo ano a
revista SaúdeLoucura publica textos que, embora não empregassem o termo “redução
de danos”, propunham, para o campo da saúde, modelos de atuação para enfrentamento
da epidemia da AIDS idênticos a esse tipo de estratégia. No mesmo ano, a revista
Vivendo em Tempos de AIDS dedica um de seus textos à eficácia da abordagem no
bloqueio à disseminação do vírus em usuários de drogas injetáveis. Para Mesquita
(1994), o marco teórico mais importante nesse período sucedeu-se na Conferência sobre
AIDS dos Ministérios da Saúde dos países Ibero-americanos ocorrida em maio de 1993
em Brasília. Nessa ocasião fora aprovado um texto que anunciava que estratégias
estrangeiras que tivessem apresentado grande êxito no enfrentamento da AIDS, como a
distribuição de seringas e hipoclorito, deviam ser aplicadas e avaliadas em tais países. A
estratégias de redução de danos ganharam, então, o seu primeiro documento oficial de
apoio em grande parte desses países. (Mesquita, 1994)
Enquanto as abordagens na linha da redução de danos ainda não eram aplicadas
no âmbito do governo federal, organizações não-governamentais e gestores municipais
e estaduais forçam a entrada dessas ações no país. Em 1991 a prefeitura de Santos
realiza a campanha “Pintou Limpeza”, e dessa vez, tem presente em seu lançamento o
próprio Ministério Público que barrara a ação dois anos atrás. Movimentos da sociedade
civil, orientados pela defesa dessa estratégia, ganham força e visibilidade no campo da
saúde. Esses grupos, em parceria com os demais movimentos do campo da saúde
pública, protestavam pela extensão das ações de saúde para diversos estratos da
população, que neste caso deveriam ser dirigidas à comunidade de usuários de drogas.
Desde então, diversos Programas de Redução de Danos foram surgindo no Brasil,
sempre ligados a entidades internacionais de redução de danos. O sucesso das ações
empreendidas por esses gestores e grupos desperta o interesse do governo federal que
começa a ver ai uma estratégia muito eficaz em sua capacidade de alcançar aos
indivíduos e na sua habilidade em aderir-se às práticas cotidianas dos mesmos.
E é assim que em meados da década de noventa a Coordenação Nacional de
DST/AIDS passa a se utilizar desse tipo de abordagem, financiando projetos sempre em
parceria com o Banco Mundial. Em agosto de 1994 o Conselho Federal de
Entorpecentes do Ministério da Justiça (COFEN) promove ainda mais a abertura do país
às práticas de redução de danos ao prestar seu apoio formal à ação do governo brasileiro
que apresentava uma nova proposta para o controle da epidemia da AIDS entre usuários
82
de drogas injetáveis. A partir da intensa articulação entre as práticas de redução de
danos e a Coordenação Nacional de DST/AIDS produzida no período entre 1989 e
1995, a estratégia vai se consolidando e fincando raízes definitivas no Brasil. Desse
movimento de consolidação, nasce o primeiro programa de redução de danos a realizar
troca de seringas no país; ele foi promovido pelo Centro de Estudos e Terapia do Abuso
de Drogas (CETAD), vinculado à Universidade Federal da Bahia. Outro fato
considerado herdeiro desse processo de legitimação da redução de danos no Brasil é a
aprovação da primeira lei estadual a legalizar a troca de seringas, sancionada em São
Paulo com a autoria do deputado estadual Paulo Teixeira (Brasil, 2003).
No entanto, a pesar de representarem a grande força motriz para a entrada da
redução de danos no país, a base social e civil do movimento foi se diluindo diante do
processo de institucionalização da prática. Desde o começo dos anos 2000 diversas
associações de redução de danos tiveram suas portas fechadas por conta da falta de
incentivo financeiro proveniente do Estado. Na medida em que o governo vai
absorvendo as práticas de redução de danos, inserindo-as em seus programas e projetos,
ele vai interrompendo gradualmente o apoio financeiro prestado a tais organizações,
corroendo as bases do movimento no país. De acordo com Passos e Souza:
A partir de 2004, muitas associações tiveram suas ações paralisadas e
algumas acabaram pela falta de financiamento. O movimento da redução de
danos mostrou uma certa fragilidade e dificuldade de se manter ativo frente
às descontinuidades e instabilidades das políticas de financiamento do PN –
DST/AIDS (Ministério da Saúde, 2003b). Apesar de as associações terem
ativado importantes ações na consolidação desse movimento, a estreita
relação com as políticas estatais eram marcadas por processos de
terceirização e precarização do trabalho em saúde. (Passos & Souza, 2011, p.
161)
Concomitantemente a esse processo de fragilização do movimento a redução de
danos vai sendo institucionalizada e considerada a diretriz fundamental para as práticas
de atenção aos usuários de drogas no país. Em 2003 é lançada a Política do Ministério
da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Nesse
momento a redução de danos extrapola o campo exclusivo das políticas de DST/AIDS e
se insere em outras áreas, aparecendo com especial destaque nas políticas de Saúde
Mental, ao constituir-se como o mote regulador dos serviços prestados nos CAPS
(Centros de Atenção Psicossocial), dentre os quais se encontram os CAPSad (Centro de
Atenção Psicossocial para Usuários de Álcool e Outras Drogas). Nesse processo as
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práticas de redução de danos – graças à suas características de ação no território, busca
ativa e clínica ampliada – possibilitam a abertura de caminhos para ações intersetorias
na saúde incluindo os indivíduos numa rede de intervenções mais amplas, que adentram
o âmbito do trabalho, da educação e da cidadania.
Acompanhemos, agora, como se deu esse processo de inserção da redução de
danos nas ações governamentais, para que possamos, em seguida, pensar as possíveis
conseqüências dessa institucionalização para as formas de governo de si e do outro nas
práticas de atenção aos usuários de drogas.
3.3.2 A institucionalização e o aparato legal
Desde o ano de 1994 a Coordenação de DST/AIDS do Ministério da Saúde
reconhecia a redução de danos como uma abordagem de sucesso no combate à
disseminação da AIDS e da Hepatite entre usuários de drogas injetáveis. Em parceria
com agências financiadoras internacionais, como o Banco Mundial e o Programa das
Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas e Crime (UNODC), o
Ministério financiava projetos de redução de danos em diversas regiões do país que
apresentavam um índice elevado de contaminação do vírus HIV por conta do
compartilhamento de seringas. A adoção desse tipo de estratégia foi animada em grande
parte por aspectos econômicos. Após anos de experiências oriundas das iniciativas
empreendidas por organizações não-governamentais e por gestores locais, o governo
federal percebeu que o controle do problema da AIDS, via ações de redução de danos,
poderia representar uma diminuição de custos bastante significativa. Para o governo
brasileiro:
Pode-se medir a efetividade das ações der redução de danos por meio do seu
impacto econômico. A prevenção dirigida a UDI por meio de um projeto de
redução de danos custa em torno de U$ 29,00/ano, ao passo que o tratamento
de uma pessoa com AIDS pelo SUS custa em torno de U$ 4.000,00/ano.
(Brasil, 2004a, p. 31)
No entanto, o mesmo governo que alegava respeitar as singularidades e liberdades
dos indivíduos em suas intervenções no campo da saúde aumentava, simultaneamente, a
frente de combate ao uso de drogas no país através do setor da segurança pública. Em
84
1998 é criada a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) responsável pela
coordenação de ações de redução da demanda por drogas pela população. Subordinado
ao Gabinete Militar da Presidência – hoje Segurança Institucional da Presidência da
República, o que não lhe retira o caráter militarista – e estruturado conforme o modelo
norte-americano antidrogas, o órgão sustenta e fortalece a política proibicionista em
suas ações de prevenção e atenção aos usuários, orientadas pelo modelo da abstinência,
em suas proposições normativas e no gerenciamento do Observatório Brasileiro de
Informações sobre Drogas (OBID). Todos os órgãos e entidades da administração
pública federal devem prestar informações de que necessita o OBID, obrigando-se a
atender as solicitações da SENAD.
No mesmo ano a Organização das Nações Unidas (ONU) colocava as drogas
como o inimigo público número um a ser combatido no século XXI. Em uma Sessão
Especial da Assembléia Geral (UNGASS), a ONU estabelecia para todos os seus
estados-membros, dentre eles o Brasil, a meta intitulada Um Mundo Livre de Drogas:
Nós Podemos Fazê-lo, e estipulava o prazo de dez anos para que o objetivo fosse
alcançado. A própria Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), lançada neste ano no
Brasil, fora criada por ocasião desta sessão especial da ONU. Em 2003, tanto a meta
quanto o prazo foram reafirmados pela organização, e, portanto, por todos os países a
ela associados. (Vânia Alves, 2009)
Enquanto isso, ações de redução de danos vão sendo executadas pela
Coordenação de DST/AIDS e seus efeitos e vantagens vão sendo gradualmente
analisados. A partir das ações realizadas no campo podia-se apreender um grande
espectro de fatores envolvidos no universo dos usuários de drogas. O projeto AjUDEBrasil – Situação de Base dos Usuários de Drogas Injetáveis dos Projetos de Redução
de Danos – extraiu no ano de 1998 informações provenientes de programas de redução
de danos espalhados pelo sul e sudeste brasileiro. Graças ao trabalho no território
realizado pelos agentes redutores desses programas, pôde-se traçar um perfil bastante
acurado desses sujeitos. O projeto verificou ainda a efetividade das práticas de redução
de danos ao identificar sua capacidade de modificar os hábitos diários dos usuários.
(Dias, 2008).
Em 2002 a redução de danos aparece pela primeira vez na legislação brasileira
sobre drogas, na lei 10.409/02 que dispunha sobre a prevenção, o tratamento, a
fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos,
85
substâncias, ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica. Presente
apenas numa breve passagem do texto, a abordagem se faz presente em meio a uma
política extremamente combativa ao uso de drogas, que traz entre seus objetivos a tarefa
de “Conscientizar a sociedade brasileira da ameaça representada pelo uso indevido de
drogas e suas conseqüências” (Brasil, 2002).
Percebemos mais uma vez a posição repressiva expressa pela lei na seguinte
passagem: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão estímulos
fiscais e outros, destinados a pessoas físicas e jurídicas que colaborarem na prevenção
da produção, do tráfico e do uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem
dependência física ou psíquica” (Brasil, 2002).
Ainda em 2002 é instituída a Política Nacional Antidrogas que, embora dedique
um trecho um pouco maior ao incentivo às estratégias de redução de danos, é
caracterizada muito mais como um marco da reafirmação da busca do estado em
eliminar o uso de drogas no país. O empenho em reduzir o uso de drogas pode ser
percebido na medida em que a expressão “redução do uso” ou “redução da demanda”
aparece o dobro de vezes no texto da lei em relação à expressão “redução de danos”.
Devendo essa última ser aplicada, inclusive, sem oferecer prejuízo a outras modalidades
e estratégias de redução da demanda.
No ano de 2003, em meio a essa crescente investida proibicionista, a redução de
danos ganha, efetivamente, um espaço robusto nas políticas públicas brasileiras. Neste
ano é aprovada a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de
Álcool e Outras Drogas, que retira a abordagem do campo exclusivo dos programas de
DST/AIDS e a coloca como estratégia norteadora de todas as ações de saúde do
governo, encontrando seu lugar de maior aplicabilidade nos serviços de Saúde Mental.
Dois anos antes fora aprovada a lei 10.216/01 que regulamentava o projeto da Reforma
Psiquiátrica no país, primando pelo desmanche do aparato asilar e pondo em
funcionamento uma série de serviços substitutivos abertos dirigidos aos usuários do
sistema de saúde mental, dentre os quais se encontram os usuários de drogas. Esses
serviços devem dispor de estratégias como a atuação em território, a intersetorialidade, a
clínica ampliada, a busca ativa e o incremento da autonomia e da responsabilização dos
usuários no tratamento, sendo todos essas, diretrizes igualmente presentes na
abordagem da redução de danos. Por essa conjugação de princípios e práticas, acreditase, a redução de danos pôde encontrar maior possibilidade de efetivação somente após a
86
aprovação da reforma psiquiátrica brasileira, vindo a efetuar-se nos novos espaços por
ela inaugurados.
A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e
Ouras Drogas amplia e redefine a atenção ao usuário de drogas colocando a redução de
danos em todos os dispositivos de saúde, seja na atenção primária, como nos Programas
de Saúde da Família e nos Programas de Agentes Comunitários, seja nos dispositivos
de atenção secundária, como os Centros de Atenção Psicossocial para Usuários de
Álcool e Outras Drogas (CAPSad), inseridos no conjunto de serviços oferecidos pelo
campo da saúde mental. O texto do programa justifica a sua implantação apontando
para as dificuldades do governo em lidar com a questão das drogas, seja pelos altos
custos empreendidos, seja pela ineficácia de outras pastas governamentais em lidar com
o problema, sugerindo o campo da saúde como o mais propício para atuar neste
domínio.
O documento justifica a existência da nova política também por conta da
necessidade de superação do histórico de “elaboração pregressa de políticas
fragmentadas, sem capilaridade local e de pouca abrangência, além do desenvolvimento
de ações de redução de danos adstritas ao controle da epidemia de AIDS, não
explorando as suas possibilidades para a prevenção e a assistência” (Brasil, 2004a, p.7).
A política aponta para a necessidade do estabelecimento de novas estratégias de
aproximação e de vinculação com os usuários e seus familiares para que se possa,
conhecendo-os melhor, planejar e implantar múltiplos programas adaptados às suas
diversas características. Dessa maneira ela declara almejar o resgate do sentido de saúde
coletiva que "implica levar em conta a diversidade e especificidade dos grupos
populacionais e das individualidades” (Paim 1980, apud Brasil, 2004a, p. 10). A
redução de danos, com suas estratégias de aproximação e vinculação aos indivíduos
aparece como um dispositivo fundamental para os novos objetivos traçados pelo
governo. Para os autores da política, a redução de danos se oferece como um método –
methodos, no sentido de caminho – como uma direção do tratamento, que deve agora
implicar no desenvolvimento da co-responsabilidade e da liberdade dos indivíduos. O
tratamento aqui traduz-se, também, pela necessidade do estabelecimento de um laço
vigoroso entre os usuários e os profissionais, estando esses últimos totalmente
implicados na construção dos caminhos a serem seguidos pelos primeiros e pelos
demais indivíduos a eles associados.
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Com a aprovação dessa política a redução de danos ganha um espaço expressivo
nas ações de saúde, não se restringindo, como dissemos, aos programas de DST/AIDS.
Esse fortalecimento implica na ampliação do seu escopo de atuação - sobretudo via
setor de saúde mental – que insere o usuário não apenas numa rede de cuidados em
saúde, mas num tipo de intervenção voltada também para a sua reabilitação e reinserção
social.
No ano seguinte a redução de danos aparece em mais uma publicação emitida pelo
Ministério de Saúde, trata-se do livro Redução de danos: uma abordagem inovadora
para países em transição, uma tradução da obra produzida pela Coalizão Internacional
sobre Álcool e Redução de Danos (ICAHRE). No livro é ressaltada a importância de
sua aplicação em países menos desenvolvidos e em transição, dada a grande dificuldade
dos seus governos em controlar a demanda e a oferta pela droga. Em um capítulo
especial sobre a redução de danos no trabalho a obra destaca a relevância da utilização
da abordagem neste ambiente diante da baixa eficácia de outras abordagens adotadas
(Brasil, 2004c).
Após anos de observações e estudos acerca dos diferentes efeitos surtidos pelas
diversas políticas adotadas – que incluem décadas de investidas repressivas de redução
da demanda e da oferta e as recentes estratégias de redução de danos – o governo
brasileiro se vê diante da necessidade de reorientação da sua política sobre drogas. Em
2005, a Política Nacional Antidrogas sofre uma transformação discursiva e estratégica
fundamental no trato com as drogas; ela inclui em seu título o termo “sobre drogas” no
lugar do prefixo “anti”, e passa a se chamar, desde então, Política Nacional sobre
Drogas. Essa alteração de nomenclatura reflete uma reformulação substancial de metas
a serem almejadas pelo governo. No lugar da busca de “uma sociedade livre das
drogas”, como se via no texto da antiga política, surge o objetivo de construir uma
“sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas”,
sendo toda a sociedade convocada a empreender esforços para tal investida (Brasil,
2011a). Com essa nova legislação, diante do reposicionamento de estratégias e
objetivos, a redução de danos passa a ocupar um espaço muito mais importante na
política de drogas, ao se coadunar perfeitamente com os novos propósitos que se
apresentam. Dessa maneira,
Tal política se orienta para a redução da oferta (ações de prevenção e
repressão ao tráfico de drogas ilícitas), a redução da demanda de drogas
(prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social) e a redução de
88
danos. O enfoque da redução de danos aparece com força ainda maior nessa
nova versão do texto da política, o que se faz notável naquela que talvez
represente a mudança mais expressiva na trajetória discursiva das políticas
públicas sobre drogas no Brasil: o discurso quanto ao ideal de uma
“sociedade livre de drogas” dá lugar ao ideal de uma “sociedade protegida
do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas” (Alves, 2009, p.
2316)
Entre os pressupostos, além do esforço em construir uma sociedade protegida do
uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas, tem-se o esforço em
reconhecer as diferenças entre usuário, pessoa em uso indevido, dependente e traficante,
com a necessidade de tratá-los de maneira diferenciada e a busca em aproximar-se de
todos os tipos de usuários, sejam eles de drogas lícitas ou ilícitas. Há também o
incentivo a pesquisas que apreendam os diversos aspectos envolvidos no universo das
drogas, bem como àquelas que analisem a relação custo/benefício das ações públicas
vigentes.
Outro marco legal que indica a presença da redução de danos nas políticas
públicas brasileiras é a lei 11.343/06, que a insere com mais veemência nas operações
de prevenção e na construção de projetos terapêuticos individualizados nas intervenções
realizadas no setor da saúde. Nas ações de prevenção estabelece a importância do
“fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso
indevido de drogas” (Brasil, 2006). Essa lei estabelece também a distinção definitiva
entre o tratamento destinado aos usuários e aos traficantes, retirando dos primeiros a
pena de privação de liberdade em sistema carcerário e impondo-lhes penas alternativas.
Aquele que portar drogas para uso próprio, a partir de então, será submetido às penas de
advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e de
medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Entre os seus
princípios encontram-se: o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana,
especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade; o respeito à diversidade e às
especificidades populacionais existentes; a adoção de abordagem multidisciplinar que
reconheça a interdependência e a natureza complementar das atividades de prevenção
do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas,
repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas; e a promoção da
responsabilidade compartilhada entre Estado e Sociedade, reconhecendo a importância
da participação social nas atividades do Sistema Nacional Antidrogas (SISNAD). Essa
mesma lei que reafirma e estende a presença da redução de danos na política do governo
89
representa, ao mesmo tempo, mais um movimento de fortalecimento do sistema
proibicionista ao apresentar um aumento das penas para o tráfico de drogas.
Em 2007 a redução de danos aparece mais uma vez na legislação brasileira, dessa
vez, na Política Nacional Sobre Álcool. Aqui ela aparece como um referencial para as
ações terapêuticas, preventivas e educativas em todos os níveis de governo, com
destaque para as atividades comunitárias orientadas pela lógica de território. No ano
seguinte, as demais estruturas político-organizacionais da Política Nacional sobre
Drogas sofrem o mesmo realinhamento discursivo sofrido por ela em anos atrás. O
Sistema Nacional Antidrogas passou a ser denominado Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas; o Conselho Nacional Antidrogas, Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas; e a Secretaria Nacional Antidrogas, Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas. Tais mudanças refletem, igualmente, uma transformação na
compreensão do fenômeno das drogas e, por conseguinte, nas respostas e estratégias do
Estado para lidar com a questão.
E dessa maneira a abordagem da redução de danos foi entrando progressivamente
nas práticas de saúde executadas pelo governo brasileiro. Partindo de ações restritas ao
campo das políticas de DST/AIDS, ela orienta hoje as práticas de diversos setores de
atenção aos usuários de drogas, encontrando seu lugar de maior efetivação na área de
saúde mental. É essa área que é, historicamente, a maior responsável pela oferta dos
serviços de atenção aos usuários de drogas, desde os tradicionais asilos psiquiátricos até
os atuais Centros de Atenção Psicossocial para Usuários de Álcool e Outras Drogas
(CAPSad). Esses centros são, hoje, os principais articuladores de toda a rede de atenção
aos usuários, integrando os Programas de Saúde da Família, os ambulatórios, as
emergências, os postos de saúde, os hospitais psiquiátricos e os hospitais gerais. Como
dissemos, entendemos que própria aceitação da redução de danos enquanto política
oficial, e sua consequente disseminação pelas diversas áreas de atuação governamental,
é bastante tributária da sua combinação com as estratégias e preceitos presentes na
reforma do serviço de saúde mental, conhecida como reforma psiquiátrica. Em ambas
encontramos o trabalho no território, a busca ativa, as ações intersetoriais, a clínica
ampliada e o incremento da autonomia e responsabilização do usuário pela sua conduta.
A própria Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e
Ouras Drogas lançada em 2003, que opera essa difusão da redução de danos pelos
setores de saúde, é produzida pela Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da
90
Saúde. Façamos, desse modo, uma análise desse processo de reformulação dos serviços
e práticas psiquiátricas e uma apreciação dos novos dispositivos oferecidos pelo sistema
de saúde mental brasileiro aos usuários de drogas e demais pacientes considerados
portadores de algum transtorno mental.
3.4 A psiquiatria e seus movimentos de contestação
O próprio gesto tido como ato mítico fundador da psiquiatria no século XIX, pode
ser considerado como uma atitude com pretensões essencialmente reformadoras. Pinel
ao liberar os loucos das correntes e deixá-los circular livremente no novo ambiente
asilar que lhes era reservado, objetivava, com seu ato, direcionar a estes um tratamento
mais especializado, e por isso mesmo, mais eficaz. Até o século XVIII, os loucos
tinham como companheiros de confinamento os demais indivíduos tidos como inaptos
ao convívio social. Prostitutas, sodomitas, libertinos, feiticeiros, dividiam com os
portadores de transtorno mental o espaço hospitalar que era, até então, totalmente
destituído de aspirações terapêuticas, servindo, apenas, como depositário do excedente
econômico e moral da sociedade (Ferreira, 2001). Com a absorção dos demais
enclausurados pela economia de mercado moderna, o espaço asilar passou a se
constituir como a primeira tecnologia de gerenciamento da loucura, através de métodos
disciplinares de observações e intervenções ostensivas. E assim, “ordenando o espaço e
valendo-se das diversas espécies de alienados existentes, Pinel postula o isolamento
como fundamental a fim de executar regulamentos de policia interna e observar a
sucessão de sintomas para descrevê-los.” (Amarante, 1998, p.25).
Agora, desatados das correntes os então denominados doentes mentais passam a
receber todo o tratamento tido como necessário neste novo ambiente que pode se tornar,
a partir de então, medicalizado. “O gesto pineliano de desacorrentar os loucos para
implementar meios completamente diferentes, mito de origem da psiquiatria, é o signo
de que, desde a sua fundação, a ciência psiquiátrica nasceu como reforma” (Tenório,
2002).
Neste momento à loucura era atribuído o pressuposto do erro da Razão. O
louco não era visto como capaz de gozar de uma Razão plena e, por conseguinte, da
possibilidade de exercer a liberdade de escolha, pré-requisito para o exercício da
cidadania. Sendo assim, ao asilo era confiada a tarefa de, através de um tratamento
91
moral, restituir ao louco a Razão que lhe era precária, devolvendo-o, consequentemente,
a possibilidade de desfrutar da Liberdade necessária à prática da cidadania. (Amarante,
1995). Em meio aos ares da Revolução Francesa, com seu lema “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade”, o asilo psiquiátrico se oferecia como uma solução para aqueles que não
podiam gozar dos direitos de cidadania, mas que, ao mesmo tempo, não podiam
contradizer os lemas que eram sustentados. “O asilo tornou-se então o espaço da cura da
Razão e da Liberdade, da condição precípua do alienado tornar-se sujeito de direito”
(Amarante, 1995).
Quase dois séculos mais tarde, se inicia o primeiro movimento com pretensões
de reformulação desse espaço asilar. Nos anos 1940 e 1950 a estrutura asilar aos quais
estavam submetidos os loucos lembrava à Europa do pós-guerra os terríveis campos de
concentração que ela não mais suportava testemunhar. Propõe-se, para tanto, uma
reformulação desses espaços, buscando sua humanização através do estabelecimento de
relações mais equânimes e liberais. Nasce daí a experiência das Comunidades
Terapêuticas na Inglaterra e da Psicoterapia Institucional na França, ambas empenhadas
em modificar o ambiente interno dos asilos, transformado-os em microssociedades
supostamente ideais para os internos. É assim que Maxwell Jones organiza grupos de
atividades e discussões com seus pacientes na Inglaterra, visando engajá-los em sua
própria terapia e na dos demais, fazendo da função terapêutica, uma atribuição não
apenas dos técnicos, mas dos próprios internos e de seus familiares. Além da
terapêutica, a própria administração do hospital era uma atividade compartilhada com os
internos, que deviam, agora, envolver-se no novo projeto de gerenciamento do hospital,
pautado em medidas democráticas e participativas. Outro tipo de intervenção colocado
em circulação neste momento foi a praxiterapia proposta por Hermann Simon ainda na
década de 1920. Simon colocava o trabalho como recurso essencialmente útil para
devolver aos pacientes a responsabilidade e a atividade necessária para o seu processo
de cura. Partindo desse pressuposto os reformistas da década de quarenta e cinquenta
alocavam os pacientes para atividades em postos de trabalho dentro do próprio ambiente
asilar como forma de tratamento para suas enfermidades.
Dessa maneira, “a loucura continuava sendo representada como uma ausência
de obra, pois, apenas na sua conversão ortopédica nas práticas do bem dizer e do bem
fazer os loucos poderiam ser reconhecidos como sujeitos da razão e da verdade.”
(Birman apud em Amarante, 1998, p. 31).
92
No entanto, as décadas de 1960 e 1970 trouxeram fortes críticas a esse primeiro
projeto de reestruturação asilar. Sua incapacidade de inserir efetivamente o louco no
espaço externo ao hospital – que certamente se apresentaria para eles de maneira
completamente diferente daquela apresentada pela microssociedade criada – provocou
um segundo movimento de reforma da psiquiatria, que veio propor a abertura do asilo e
sua conexão com o espaço externo. Surge assim, a Psiquiatria de Setor francesa e a
Psiquiatria Preventiva norte-americana. Seus defensores pretendiam efetivar a função
terapêutica da psiquiatria que, segundo eles, não poderia se desempenhar através de uma
estrutura exclusivamente hospitalar. Era necessário levar a psiquiatria para a população
e evitar o isolamento e a segregação do paciente, estendendo-se, a psiquiatria para o
espaço público, que passa a ser organizado para prevenir doenças e transtornos e, mais
do que isso, para, efetivamente, promover saúde. (Amarante, 1998). Efetua-se, mais
uma vez, o movimento de dispor o paciente de um tratamento mais livre, gerindo-o,
agora, no seu próprio ambiente de origem.
Na Psiquiatria de Setor francesa institui-se o que se pode denominar de uma
terapia in situ, onde o tratamento é desenvolvido dentro do próprio ambiente social do
paciente e o hospital se constitui como o espaço de uma breve passagem. Nessa
proposta operava-se um esquadrinhamento do espaço hospitalar, correspondente à
divisão real do espaço urbano da cidade, e se dispunha os pacientes nas áreas
correspondentes às suas residências. O objetivo era promover a integração dos
habitantes da mesma região e, ao mesmo tempo, garantir a continuidade da equipe de
tratamento que irá acompanhar aquele grupo na fase do trabalho em território.
Já na Psiquiatria Preventiva norte-americana o plano era inda mais audacioso.
Propunha-se à psiquiatria um projeto de intervenção ainda mais robusto sobre a
comunidade, visando não à simples detecção precoce dos eventuais problemas ou o
tratamento in situ, mas, muito além disso, pretendia-se uma verdadeira manipulação do
espaço social objetivando a prevenção do adoecimento mental. Temos, nas palavras do
maior expoente do programa da Psiquiatria Preventiva, Gerald Caplan, a expressão
fidedigna das pretensões desse projeto de intervenção. Ele relata que com a
identificação das causas da doença de alguns e as razões da saúde de outros, pode-se
esperar poder manipular algumas das circunstâncias da população, e assim diminuir o
surgimento de novos casos (Caplan, 1980 apud Tenório, 2002, p. 31). Podemos ver que
começa a surgir aí a ideia de território, que não se constitui apenas pelo espaço físico e
93
geográfico de um lugar, mas sim da trama de seu tecido social, econômico, cultural e
subjetivo que desenham a cena cotidiana de uma comunidade, recortando o presente e
esboçando suas potencialidades. Surgem nesse momento novos elementos na
psiquiatria, alguns deles, vindo a perdurar até os dias atuais. Nasce para ela um novo
objeto, a saúde mental; um novo objetivo, a prevenção; um novo sujeito do tratamento,
a coletividade; um novo agente profissional, a equipe comunitária; um novo espaço de
tratamento, a comunidade; e surge uma nova concepção de personalidade, a unidade
biopsicossocial. (Amarante, 1998). A noção de saúde mental nasce, portanto, totalmente
revestida de um caráter normalizador e adaptacionista ao supor uma etiologia da ordem
do desajustamento para as perturbações mentais e propor uma intervenção voltada para
a adaptação do indivíduo e para o reajustamento das variáveis populacionais, trazendo
consigo, consequentemente, todo um perigo de psiquiatrização do social.
3.4.1 O terceiro movimento e a reformulação do serviço de saúde mental
brasileiro
E são exatamente esses efeitos de normatização provocados pela psiquiatria
que são condenados pelo terceiro movimento da reforma psiquiátrica – movimento ao
qual está intimamente associado o programa de reformulação do serviço de saúde
mental brasileiro iniciado no início do século XXI. Em meio à atmosfera de
contracultura vivenciada na década de sessenta, um grupo de psiquiatras britânicos,
dentre os quais se destacaram Ronald Laing, David Cooper e Aaron Esterson, propõem
um tipo de tratamento que dispensa as intervenções físicas e químicas e defende a
análise do discurso dos sujeitos, através da escuta da sua viagem e do seu delírio que
não devem ser de maneira alguma cerceados no desenvolvimento do tratamento. Esse
novo movimento de contestação à psiquiátrica não se restringe a uma simples proposta
de redimensionamento dos seus campos teóricos e assistenciais como o foram os
anteriores, opera-se aqui toda uma crítica ao aparato psiquiátrico, composto pelo
conjunto de instituições, mas também de práticas e saberes. Para os defensores dessa
nova corrente, que ficou conhecida como antipsiquiatria, os tradicionais saberes e
práticas deste campo funcionavam como verdadeiros redutores da complexidade do
fenômeno da loucura. Era preciso, portanto, dar voz – no sentido literal e conotativo – a
esses indivíduos, possibilitando a manifestação de sua singularidade e complexidade.
Essa manifestação os tornaria legítimos cidadãos, graças a possibilidade de criação de
94
uma existência mais ativa sobre o mundo, voltada para a invenção de novas formas de
sociabilidade. “Torna-se preciso desmontar as relações de racionalidade/irracionalidade
que restringe o louco a um lugar de desvalorização e desautorização a falar sobre si”
(Amarante, 1998, p.48)
Apesar de ter se iniciado na Inglaterra o país que mais se destacou na defesa e
no desenvolvimento da antipsiquiatria foi a Itália, que teve como grande expoente o
psiquiatra e militante Franco Basaglia. Partindo de uma perspectiva histórica da
condição de exclusão social e econômica da loucura, esse movimento caracterizou-se
pela vinculação da crítica à psiquiatria ao incremento da inserção social desses
indivíduos, buscando, para tanto, o estabelecimento de novas relações com a sociedade
onde vive, com os seus familiares e com a sua vizinhança. Neste novo modelo o que se
almeja é a extinção definitiva de todos os hospitais psiquiátricos com a posterior
implantação de serviços instalados na própria comunidade, no sistema “portas-abertas”.
O grande pressuposto de Basaglia é que todo o tratamento deveria ter como intenção a
restituição da liberdade do paciente. A liberdade do indivíduo, considerada aqui como
terapêutica, é o ponto de partida, a condição e o estado final ao qual o tratamento deve
chegar. O sujeito implicado nessa nova proposta deve poder expressar a sua
singularidade na possibilidade de criação de novas formas de sociabilidade e na sua
capacidade de mobilização e gerenciamento no espaço social. E dessa maneira, “A
participação destes nas decisões dentro do hospital num primeiro momento, e nos outros
serviços e espaços sociais num segundo momento, torna-se crucial para um personagem
que a partir de então pode falar sobre si mesmo” (Ferreira, Padilha & Starosky, 2010, p.
129-130)
É pautando-se nesses mesmos pressupostos de superação da instituição asilar e
de incrementação da cidadania e da liberdade do paciente que a reforma psiquiátrica
brasileira se justifica e se estrutura. Dialogando com os fundamentos do movimento da
antipsiquiatria a proposta brasileira alia-se à experiência italiana colocando como frente
de trabalho a radicalidade da liberdade do louco. Não se trata mais de humanizar o
espaço interno dos asilos ou de abri-los ao meio exterior, é preciso inserir o indivíduo
na sociedade e garantir-lhe a possibilidade de circulação e manutenção neste novo
ambiente ao qual deve agora pertencer. No Brasil da reestruturação democrática, o
movimento em defesa da reforma psiquiátrica se articula com os demais movimentos
que lutam contra as remanescentes estruturas coercitivas de poder. Reforma
95
psiquiátrica, redução de danos, reforma sanitária, todos esses movimentos se opõem às
antigas formas de gerenciamento da vida dos indivíduos, defendendo a potencialização
da autonomia dos mesmos, através da ampliação dos seus direitos sociais e políticos.
No final da década de oitenta o movimento da reforma sanitária animava o
cenário da saúde pública no Brasil. Grupos de trabalhadores e de cidadãos reclamavam
contra a baixa cobertura oferecida pelo modelo assistencial vigente, condição que se
intensificara no período da ditadura militar. Após a vitória deste movimento, e com a
consequente implantação do SUS, a saúde aparece não apenas como direito da
população, mas como um dever do Estado, efetivando-se através de alguns princípios
como o da universalização – que estende o direito de atendimento a todos os brasileiros
– o da regionalização – que baseia o atendimento na lógica do território, o da
preservação da autonomia das pessoas e o da participação da comunidade (Brasil,
1990). Nesse contexto o sentido de saúde é ampliando e assemelhado a ideia de
qualidade de vida, incorporando esferas como a cidadania, o trabalho e a educação.
É nessa atmosfera que no II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde
Mental, ocorrido na cidade de Santos em 1987, é levantado o lema “Por uma sociedade
sem manicômios”, onde os componentes do movimento da reforma psiquiátrica
brasileira defendem a extinção do aparato manicomial e a edificação de um estatuto
positivo de cidadania para a loucura (Dias, 2008). Após doze anos de tramitação no
Congresso é aprovada a lei 10.216/01, baseada no projeto de lei do deputado Paulo
Delgado do PT de Minas Gerais, que versa sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira.
Nesse momento os serviços substitutivos, que eram até então implementados de forma
pontual e restrita por alguns gestores locais, ganham amparo legal expandido a rede
extra-hospitalar por todo o território nacional.
Desde então, os antigos atendimentos realizados em hospitais psiquiátricos
passam a migrar gradualmente para os Centros de Atenção Psicossocial, os CAPS, que
se caracterizam por serem serviços de saúde abertos e comunitários, se constituindo
como o lugar de referência e tratamento para indivíduos que experienciam alguma
forma de transtorno mental. Quadros de psicose, de neuroses graves, de uso de drogas e
demais casos são gerenciados, através de um dispositivo de atenção intensivo,
comunitário e personalizado. O CAPS tem como objetivo proporcionar um atendimento
à população pertencente a sua área de abrangência, efetuando tanto o atendimento
clínico quando o trabalho de reinserção social do paciente, através do acesso ao
96
trabalho, do exercício dos direitos civis, do fortalecimento comunitários e familiares
(Brasil, 2004b). Em sintonia com as diretrizes e princípios do SUS, o CAPS trabalha
com a noção de rede, integrando todos os estabelecimentos de saúde mental como os
ambulatórios, as residências terapêuticas, a atenção básica e os leitos de atenção
integral.
Os CAPS devem prestar atendimentos individuais, onde se prioriza a atenção
personalizada e individualizada de cada caso, atendimentos coletivos, como os grupos
operativos e as oficinas terapêuticas, nas quais se incentiva a expressão e o
compartilhamento de sentimentos, além daquelas que servem como instrumento de
geração de renda, atendimentos aos familiares, visitas domiciliares, bem como
intervenções comunitárias visando à inserção, a integração e a manutenção do paciente
neste meio social. Há, ademais, a realização de assembléias e reuniões de organização
de serviço, onde os técnicos, usuários e familiares discutem a organização do CAPS e
propõem direcionamentos para o serviço. Partindo da ideia de que as tradicionais
instituições não estão aparelhadas para entrar em contato com a singularidade dos
pacientes, o CAPS expande a noção de atenção em saúde mental e passa inserir-se nos
interstícios da vida cotidiana dos mesmos, ampliando-se, por conseguinte, tanto a
intensidade da atenção – que se torna diária e em vários turnos – quanto o seu espectro
de abrangência – que passa a incluir diversos tipos de atividades e de pessoas (Tenório,
2002). Conservando, portanto, a sua perspectiva clínica, a psiquiatria passa a aglutinar,
em sua atuação, novas tecnologias, novos campos e novos saberes, constituindo-se o
que se costumou chamar de clínica ampliada, com a incorporação de procedimentos
anteriormente considerados como extra-clínicos.
Por conta dessas características recém adquiridas pelo campo da psiquiatria, a
redução de danos se torna um dispositivo muito importante para a implementação dos
novos métodos de cuidado, fazendo chegar até os usuários de drogas as novas diretrizes
da reforma psiquiátrica. Como dito, por se coadunar com os novos pressupostos e
práticas dos serviços de atenção em saúde mental, como o trabalho no território, a busca
ativa, a clínica ampliada e o incremento da autonomia e da responsabilização do
paciente no seu trato com a sua saúde e com os demais aspectos da sua vida, a redução
de danos se constituiu como a abordagem ideal para orientar as práticas nos CAPS
voltados especialmente para a atenção ao usuário de drogas, os Centros de Atenção
Psicossocial para Usuários de Álcool e Outras Drogas, o CAPSad.
97
Assim como os demais CAPS, os CAPSad, objetivam oferecer atividades
terapêuticas à população, considerando sempre uma área de abrangência definida, que
deve ser tomada não apenas em seus aspectos geográficos, mas em suas características
sociais, econômicas, culturais e em seus padrões comportamentais e subjetivos. Além
do trabalho terapêutico contínuo realizado com os usuários já vinculados ao serviço, os
CAPSad devem realizar atividades de prevenção, nas quais se desenvolve um trabalho
de educação com a comunidade, visando a antecipação à ocorrência do problema. Para
o Ministério da Saúde a prevenção tem como objetivo “impedir o uso de substâncias
psicoativas pela primeira vez, impedir uma escalada do uso e minimizar as
consequências de tal uso” (Brasil, 2004b p. 24), para a sua melhor efetivação essas
atividades devem sempre seguir a lógica da redução de danos. O trabalho de prevenção
deve combinar o fornecimento de informações sobre os danos causados pelas drogas,
com o oferecimento de atividades livres do uso de drogas, além da identificação dos
fatores que levam ao uso e fortalecimento dos caminhos que levam ao não uso.
Esses serviços devem dispor, ainda, de alguns leitos de repouso, com a
finalidade exclusiva de tratamento de desintoxicação. De acordo com a Política do
Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Ouras Drogas, tais
dispositivos devem buscar prioritariamente: prestar atendimento diário aos usuários do
serviço, dentro da lógica de redução de danos; gerenciar os casos oferecendo cuidados
personalizados;
oferecer
atenção
aos
familiares,
tentando
cooptá-los
ao
compartilhamento do trato com os usuários e promover a reinserção social destes,
através de ações intersetoriais, sobretudo com os campos do trabalho e da educação.
(Brasil, 2004a). Por se utilizar da lógica da redução de danos, os CAPSad podem
oferecer programas terapêuticos de menor nível de exigência, abrangendo assim um
número maior de pessoas da comunidade. Os CAPSad devem realizar uma atenção
regular aos usuários tanto nos episódios de crise quanto nos momentos fora da crise.
Nas situações de abandono do tratamento, deve-se realizar uma busca ativa dos
usuários, em articulação com a rede de atenção básica, buscando maior capilaridade do
serviço.
Vemos, portanto, o quanto esse terceiro movimento de reformulação da
psiquiatria, movimento ao qual a reforma psiquiátrica brasileira encontra-se articulada,
oferece possibilidades de tratamento mais potentes para os usuários. Diferentemente das
outras correntes, que ora priorizaram a reforma interna dos asilos, submetendo os
98
indivíduos ao inevitável enclausuramento, ora se propuseram a estender as tecnologias
psiquiátricas à população, operando uma verdadeira psiquiatrização da sociedade, o
movimento da antipsiquiatria almeja viabilizar as possibilidades de ação dos pacientes
sobre o mundo, sobretudo através do diálogo com outros setores distintos dos da saúde,
visando à inclusão destes indivíduos na comunidade.
No entanto, podemos considerar que as antigas formas de controle ostensivo e
disciplinares podem ter dado lugar a formas de gestão mais flexíveis e econômicas,
apoiadas na auto-gestão e na mobilização responsável dos pacientes pelo tecido social.
A interseção com outros setores, como o do trabalho e da educação, podem estar
servindo como um instrumento de capacitação do auto-gerenciamento dos indivíduos,
que devem agora não apenas conduzir o seu próprio tratamento, mas inserir-se no
circuito produtivo e consumidor, garantindo a sua auto-manutenção na sociedade.
(Ferreira, Padilha & Starosky 2010). Como vimos no primeiro capítulo, temos na
governamentalidade liberal uma severa crítica às intervenções governamentais em
setores que podem se regularem por conta própria, sobretudo aqueles que são marcados
pela participação ativa da sociedade civil. Sendo assim, podemos conjecturar que, à
medida que o movimento articulado em defesa da reforma visa livrar os indivíduos da
condição de enclausuramento obrigatório, o governo pode estar vislumbrado a
possibilidade de constituição de sujeitos que se autogestionem e se responsabilizem por
sua conduta. “Eles agora que gerenciem os riscos que portam” (Ferreira, 2001, p.77).
Percebemos que a questão do agenciamento social da loucura, sempre esteve
nos fundamentos da Psiquiatria. Desde Pinel, quando se tentava restituir ao louco a
razão necessária para que este voltasse a fazer parte da sociedade, a psiquiatria teve, em
muitos momentos, como tarefa produzir a liberdade do louco, liberdade essa,
indispensável ao exercício da sua cidadania. Ainda lá no século XIX, em seu ato
fundador da Psiquiatria e da criação do ambiente asilar medicalizado, quando
questionado sobre sua atitude de soltar os loucos das correntes permitindo-lhes circular
pelo ambiente asilar, Pinel teria justificado sua ação com a seguinte resposta: “Tenho a
convicção de que estes alienados só são tão intratáveis porque os privamos de ar e
liberdade, e eu ouso esperar muito de meios completamente diferentes” (Tenório, 2001,
p.26). Assim sendo, a Psiquiatria pode estar apresentando sua nova solução para essa
questão colocando em circulação modos de gerenciamento da vida típicos dos modos
liberais de gestão. Assim a reforma psiquiátrica pode ser vista como uma “tentativa de
99
dar ao problema da loucura uma outra resposta social, não asilar: evitar a internação
como destino e reduzi-la a um recurso eventualmente necessário, agenciar o problema
social da loucura de modo a permitir ao louco manter-se, como se diz, na sociedade”
(Tenório, 2001, p. 55).
Esses dispositivos de gestão liberal, possivelmente acionados pela Psiquiatria
nos dias de hoje, podem ser identificados nas fundamentações teóricas e políticas que
orientam especificamente as práticas de redução de danos utilizadas pelo governo atual.
Façamos, então, uma análise mais refinada dos pontos de conjugação das tecnologias de
gestão liberais com alguns dos pressupostos teóricos e legais das ações de redução de
danos no Brasil.
3.5 Novas formas de governo de si e do outro
Os anos de experiência no trato com a questão das drogas trouxeram para o
governo brasileiro a compreensão e a imperiosa aceitação da inevitabilidade do uso das
drogas pela população. Após anos de intervenções ostensivas de pura repressão e ações
preventivas visando à eliminação total e absoluta do uso, percebeu-se a necessidade de
se dispor de outros meios para lidar com o fenômeno das drogas. A ineficiência das
tecnologias anteriores colocou a necessidade de elaboração de outro dispositivo para
lidar com o assunto. Bem como os fisiocratas, que no século XVIII perceberam que as
intensas intervenções mercantilistas que buscavam evitar a escassez dos cereais por
vezes acabavam por provocar o próprio fato indesejado, o governo brasileiro notou o
insucesso de suas tentativas anteriores e os seus possíveis efeitos reversos aos resultados
planejados. Tal fato pode ser evidenciado na seguinte passagem do texto da Política do
Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas
onde é afirmado haver no passado uma “multiplicidade de propostas e abordagens
preventivas/terapêuticas consideravelmente ineficazes, por vezes reforçadoras da
própria situação de uso abusivo e/ou dependência” (Brasil, 2004a p. 7).
Vislumbramos, a partir daí, uma mudança muito clara de objetivos a serem
traçados pelo governo em consequência da compreensão de tal inevitabilidade do fato
em questão. Com a aprovação da Política Nacional Sobre Drogas, que é assentada na
lógica da redução de danos, vemos a missão da construção de um país livre das drogas
dar lugar à busca da constituição de uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e
100
do uso indevido de drogas lícitas (Brasil, 2011a, p.). Como todo fenômeno regulado por
dispositivos tipicamente liberais presenciamos o abandono da imposição de uma norma
estática ideal e a consequente elaboração de um plano de normalização pautado na
observação de sua ocorrência na própria realidade. Sendo assim, o trabalho em torno da
meta única da abstinência, com seus procedimentos de confrontação dos sujeitos a uma
norma pré-estabelecida, cede espaço para técnicas que almejam certo equilíbrio e
homeostase da população. Agora, a população em jogo não é mais vista como um
objeto totalmente controlável, mas ainda assim se apresenta como sendo suscetível a
determinados procedimentos de intervenção. Os indivíduos, agora, podem continuar
usando drogas, com tanto que mantenham a sociedade protegida de tal uso, como o
próprio texto da lei nos evidencia. A abordagem da redução de danos pode parecer,
portanto, muito mais adequada para lidar com a questão. O setor da saúde se apresenta,
inclusive, com muito mais diligência que setores como segurança ou educação,
permitindo maior permeabilidade das ações governamentais.
Assim como os fenômenos regulados pelo dispositivo de segurança, tal
mudança de abordagem apóia-se, igualmente, em análises científicas das relações dos
custos envolvidos nos diferentes tipos de ação, pressupondo . Buscando intervenções
cada vez mais enxutas e econômicas, as ações governamentais são certamente
embasadas em estudos que contemplam a estimativa probabilística da ocorrência do
evento, seguidos de análises dos gastos com as intervenções, com a posterior avaliação
da efetividade da intervenção e de sua vantagem na relação custo/benefício. Percebemos
tal característica desse novo modo de gestão na seguinte passagem:
Pode-se medir a efetividade das ações de redução de danos por meio do seu
impacto econômico. A prevenção dirigida a usuário de drogas injetáveis por
meio de um projeto de redução de danos custa em torno de U$ 29,00/ano, ao
passo que o tratamento de uma pessoa com AIDS pelo SUS custa em torno
de U$ 4.000,00/ano. (Brasil, 2004a, p. 31).
Sendo assim, defendem alguns autores, desloca-se “o centro da discussão do
meramente ideológico para o debate científico, que embora obviamente não seja neutro,
serve para subsidiar a tomada de decisões a partir de critérios universalmente
consagrados, como eficiência, eficácia e relação custo-benefício” (Queiroz, 2001, p.
10).
101
Na nova política toda a população é explicitamente convocada a se engajar na
causa defendida pelo governo, essa nova estratégia conta não apenas com a parceria dos
próprios sujeitos envolvidos, mas com a de todos os demais indivíduos da comunidade.
Logo na primeira página do texto da Política Nacional Sobe Drogas, o tema das drogas
é tratado como um assunto que, “direta ou indiretamente”, afeta tanto ao governo
quanto à sociedade. Desta forma considera-se a possibilidade de apreciação do fato a
partir das diferentes perspectivas dos elementos envolvidos e incentiva-se o
engajamento de cada um deles. Segundo os redatores da política, pode-se apreciar o
fenômeno enquanto cidadão, enquanto membro de uma família, enquanto participante
de determinada comunidade, ou mesmo enquanto indivíduo. E para cada perspectiva
“justifica-se um engajamento pleno e indispensável” (Brasil, 2011a, p. 8).
O Estado se dá a incumbência de promover ações para que a sociedade
(usuários, familiares e populações específicas) se torne parceira e assuma a
responsabilidade do tratamento, da recuperação, da redução dos danos e da reinserção
dos usuários, inclusive através da concessão de estímulos fiscais, para pessoas físicas ou
jurídicas que se engajarem nestas ações e em ações de repressão da produção e do
tráfico de substâncias não autorizadas.
Ainda neste mesmo documento encontramos o incentivo aos diversos atores
sociais para cooperarem conjuntamente com o governo. Pais e/ou responsáveis,
educadores, religiosos, líderes estudantis e comunitários, representantes de entidades
governamentais e não governamentais, e ainda a iniciativa privada, são todos
incentivados a se capacitarem a atuar nas questões concernentes ao âmbito das drogas,
partindo sempre da filosofia da responsabilidade compartilhada. Em uma das diretrizes
dessa política encontramos a importância do estímulo à formação de multiplicadores em
atividades baseadas nas ações de redução de danos, no intuito de aumentar a
familiaridade e o envolvimento da comunidade com tal estratégia (Brasil, 2011a). Sendo
assim, por sua grande capacidade de sobreposição entre as tecnologias de si e do outro,
provocada pelo baixo nível de exigência e pelo consequente poder de adesão ao
tratamento, a redução de danos se insere muito facilmente nas diversas relações
presentes na sociedade. Dessa forma, ela pode funcionar como um eficaz difusor de
técnicas de gerenciamento da vida. Dessa maneira, a função de direção da alma
prolifera-se por diversas relações sociais. Pais, professores, presenças importantes da
102
comunidade, todos esses indivíduos, dentre tantos outros, devem ser responsáveis por
incitar os indivíduos a exercerem práticas de transformação sobre si.
A população é decomposta em diferentes faixas de diferença e, ao invés de ser
submetida a um único processo de disciplinarização uniforme, é gerenciada por uma
forma de poder mais capilar, atento às especificidades de cada estrato. Considera-se,
agora, a importância da diferenciação entre usuário, dependente, pessoa em uso
indevido e traficante. Para este último, as penas são intensificadas. Os usuários, ainda
tratados como infratores pela lei 11.343/06, que forem pegos com porte de drogas para
uso próprio, não serão mais submetidos a penas privativas de liberdade, em oneroso
sistema carcerário. A estes serão aplicadas penas de caráter educativo, mais projetadas
para atingir a transformação de suas condutas. Serão impingidas aos usuários as
seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas, II – prestação de serviços à
comunidade e III – medida educativa de comparecimento a programas ou cursos
educativos, que se ocupem, preferencialmente, da recuperação ou da prevenção do
consumo de drogas. Ao poder público, cabe colocar à disposição do infrator
estabelecimentos de saúde gratuitos para tratamento especializado. Os indivíduos que se
recusarem a cumprir as sanções estabelecidas serão submetidos às penas de
admoestação verbal e multa. O uso de drogas, portanto, continua se constituindo
enquanto crime, contudo os tipos de condenações são alterados, visando meios mais
eficazes de modificação da conduta, sempre aliados à ações do setor da saúde. Aos
considerados dependentes é colocado o fim do tratamento obrigatório em regime de
reclusão, devendo ser disponibilizadas diferentes modalidades de tratamento, baseadas
nas características específicas dos diferentes grupos. Essas medidas devem, agora,
procurar promover a reinserção social do indivíduo e garantir sua capacidade de manterse na sociedade.
Não apenas a população é esquadrinhada, mas as próprias ações e metas são
multiplicadas, em decorrência, inclusive, desse processo de análise e decomposição dos
grupos. Diversas ações são estabelecidas a partir das metas que são consideradas
possíveis de serem atingidas para cada estrato ou para cada indivíduo. A incorporação
da abordagem da redução de danos permite que não apenas a abstinência seja
considerada,
mas
uma
quantidade
infinita
de
objetivos,
pulverizando-se,
consequentemente, os tipos de intervenções aplicadas. Sendo assim, continua o texto da
lei 11.343/06, é prudente haver o “reconhecimento do „não-uso‟, do „retardamento do
103
uso‟ e da redução de riscos como resultados desejáveis das atividades de natureza
preventiva, quando da definição dos diferentes objetivos a serem alcançados” (Brasil,
2006). Para o Ministério da Saúde, a prevenção planejada e sustentada pela lógica da
redução de danos tem como objetivo inicial impedir o uso de substâncias psicoativas
pela primeira vez, em segunda instância, caso o uso já tenha se instalado, busca-se
inviabilizar a escalada do uso, e no decorrer desse uso almeja-se a minimização das
conseqüências de tal uso (Brasil, 2004b). No documento Álcool e Redução de Danos:
Uma Abordagem Inovadora para Países em Transição, publicado em 2004, vemos a
defesa da necessidade da compreensão de que abstinência se constitui como um ideal
dentre uma série de alternativas possíveis, sendo tal compreensão “o primeiro passo de
uma abordagem pragmática” (Brasil, 2004c, p. 78). A pretensão da eliminação do uso
pode, portanto, não desaparecer mesmo diante da pluralidade de possibilidades de ação.
Para um dos autores mais destacados na defesa da estratégia “a redução de danos
incentiva qualquer movimento rumo à sua diminuição como um passo na direção certa”
(Marlatt, 1999, p. 47). Desta maneira, afirma a Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas, “não há contradição entre Redução de Danos e abstinência como meta, mas sim
entre Redução de Danos e abstinência como uma exigência para que os pacientes
recebam serviços” (Brasil, 2010a, p. 141).
A redução de danos pode funcionar, portanto, como um instrumento muito
mais potente de aproximação entre os governantes e os governados, promovendo, com
muito mais facilidade, processos de conversão e de transformação de si. O vínculo e a
proximidade construídos entre os profissionais e os usuários de drogas possibilitam a
instigação à auto-vigilância e à auto-transformação. Como coloca um dos autores, “do
ponto de vista da confiança mútua é possível começar a envolver o cliente em uma
avaliação racional e reflexiva de seu estilo de vida e de seu comportamento.” (Marlatt,
1999, p. 35). O seu baixo nível de exigência e a multiplicidade de formas de
engajamento no tratamento promovem maior aderência e permanência dos indivíduos
nessa nova relação de poder que se estabelece, possibilitando uma maior incidência de
intervenções sobre os governados. Tal abordagem “permite manter os toxicômanos na
rede de assistência social e sanitarista, oferecendo aos profissionais oportunidades de
estabelecer vínculos afetivos e, em seguida, de motivá-los a engajar-se em formas de
assistência mais exigentes” (Queiroz, 2001). E assim, concluíram os especialistas,
somente após a aproximação e o estabelecimento do forte vínculo “seria possível alterar
104
os comportamentos de modo significativo” (O‟Hare, 1994 p. 72). A redução de danos é,
inclusive, comparada por um autor a uma estratégia de marketing, utilizada para atrair
consumidores. Como coloca Marlatt, tal autor
compara esse procedimento a estratégia de marketing de oferecer chamarizes
para fregueses potenciais oferecendo itens de baixo custo ou ate mesmo
gratuitamente para atrair o interesse de um numero maior de consumidores.
(...) assim uma medida de seu valor seria o grau em que eles encorajam o
recrutamento e o subseqüente fluxo para o nível seguinte no processo de
tratamento. (Strang, 1990 apud Marlatt, 1999, p. 36)
A redução de danos, com suas práticas de campo, nas comunidades, possibilita
a construção de um dispositivo que se atrela a própria realidade do fenômeno em
questão, introduzindo-se no meio do usuário, apreendendo o seu modus vivendi, e se
conectando com uma grande quantidade de elementos envolvidos. A noção de território,
ao englobar dimensões culturais, sociais e simbólicas, permite maior captação da
complexidade da vida dos indivíduos e proporciona a atuação sobre diversos outros
domínios. Agindo-se sobre campos que extrapolam o âmbito exclusivo do uso das
drogas, pode-se atuar com mais flexibilidade e capilaridade, fazendo com que as
intervenções operadas nas outras esferas ressoem sobre o campo desejado. Assim a sua
atuação pode abranger “o espaço simbólico de bens materiais, individuais, coletivos,
com suas relações interpessoais, políticas e culturais” (Brasil, 2010b p. 14). Dessa
maneira é possível acompanhar os percursos de cada indivíduo e as amarras que vão se
produzindo entre ele e as pessoas, os lugares, os objetos, indo ao seu encontro onde ele
estiver (Palomini, 2010). Desse modo, na nova política de drogas
o locus de ação pode ser tanto os diferentes locais por onde circulam os
usuários de álcool e outras drogas, como equipamentos de saúde flexíveis,
abertos, articulados com outros pontos da rede de saúde, mas também das de
educação, de trabalho, de promoção social etc., é a rede – de profissionais, de
familiares, de organizações governamentais e não-governamentais em
interação constante, cada um com seu núcleo específico de ação, mas
apoiando-se mutuamente, alimentando-se enquanto rede – que cria acessos
variados (...) (Brasil, 2004a, p. 11)
A observação dos indivíduos no seu território e a constituição de um vínculo
mais estreito com eles permite a construção de um saber econômico acerca dos mesmos,
ou seja, possibilita a compreensão da relação que os seus comportamentos estabelecem
com as diversas variáveis do meio. Assim a unidade de análise não é somente o uso ou
o não uso da droga, mas todas as variáveis as quais esse comportamento está associado.
105
Compreendendo-se como esses comportamentos se alteram pode-se dispor de
intervenções mais eficazes, ao invés de impor ideias rígidos e cegos a realidade do
fenômeno.
Esse trabalho in loco possibilita ainda uma multiplicação de agenciamentos
entre os indivíduos e os agentes, desencadeando diversos processos de subjetivação nos
sujeitos. O redutor de danos desempenha aí um papel fundamental. Membro da própria
comunidade onde as intervenções são executadas, ele serve de elemento estratégico para
o conhecimento do território, para a abertura do campo e para a articulação das
parcerias desejadas, graças a sua capacidade de penetração e influência sobre a
população. Líderes comunitários, usuários, ex-usuários, ou qualquer elemento influente
na comunidade, são encorajados a se incorporarem ao sistema de saúde, servindo de
potente articulador e fortalecedor do vínculo entre os serviços e a comunidade. Apesar
de exercerem algumas atividades diretamente com o público, a grande função desses
redutores enquanto agentes comunitários de saúde é promover a aceitação da população
às ações do Estado, garantindo o estreitamento da distância eles e a posterior execução
das intervenções desejadas. Podemos perceber tal função na seguinte passagem presente
na Cartilha de redução de danos para agentes: “Os Agentes Comunitários de Saúde
podem mostrar às pessoas que usam drogas que os profissionais da Saúde da Família
são agentes de saúde e não agentes da justiça ou da repressão” (Brasil, 2011b, p. 13).
Operando-se nos interstícios das relações do indivíduo com o mundo, espaços
onde as tecnologias de si são agenciadas, a atividade no território articula com mais
facilidade as transformações de condutas desejadas: “Com efeito, a subjetividade se faz
na relação ao outro, articulando singular e coletivo, indivíduo e sociedade, dentro e fora.
É nesse entremeio que a clínica opera, como abertura à produção de novos sentidos e
modos de conexão com o mundo, implicando transformações subjetivas” (Palomini,
2010, p. 1).
Essas ampliações sucessivas do fazer clínico promovem uma multiplicação de
relações entre governantes e governados. Com a implantação do Sistema Único de
Saúde na década de oitenta, a clínica sai do âmbito exclusivo dos consultórios privados
e se instaura nos ambulatórios públicos, difundindo-se por diversas regiões das cidades
brasileiras. No final da década de noventa e início dos anos dois mil, os serviços passam
por uma diversificação de modalidades, apresentando formatos de atenção em saúde
106
orientados pela prática local. Instalada no próprio território dos indivíduos e exercendo
uma busca ativa dos mesmos, a clínica médica se capilariza e se estende até onde os
sujeitos se encontram. Já atualmente, com o incentivo das ações em rede – onde se
procura aderir os indivíduos a toda trama dos serviços de saúde – e com o fomento das
práticas intersetoriais – nas quais diversas outras áreas são acionadas para aturarem em
parceria com a saúde – podemos perceber uma extensão da superfície de contato entre
os indivíduos e as tecnologias de poder. Uma multiplicidade de agentes é acionada para
exercer algum tipo de gerenciamento sobre a vida dos indivíduos. Não apenas médicos,
mas assistentes sociais, psicólogos, agentes comunitários, novos atores entram em cena
nessa atuação clínica que se amplia e se potencializa.
A família, como abordado quando tratamos do surgimento das artes de
governar do século XVIII, aparece como um importante instrumento de penetração das
práticas de governo, oferecendo a possibilidade de multiplicação de diretores de
consciência entre os seus membros. Aos trabalhadores de saúde é recomendado
identificar possíveis parceiros no núcleo familiar, capacitados a gerenciarem
conjuntamente os casos. O projeto terapêutico de cada paciente no serviço de saúde
deve, inclusive, ser elaborado conjuntamente com os familiares. O próprio grau de
afastamento e a ausência de troca de informações sobre as rotinas diárias com a família
são considerados fatores propiciadores de um uso problemático de drogas para o sujeito.
(Brasil, 2004a)
Nessa clínica ampliada, até mesmo o conceito de saúde se vê estendido. Na lei
8080/90, que regulamenta, autoriza e organiza o funcionamento do SUS, a noção de
saúde abrange, dentre outros, fatores como trabalho, renda, educação, lazer, articulando
uma série de práticas para dar conta desse alargamento. Além da dimensão biológica, as
esferas sociais, culturais e sociais se tornam alvo de intervenções contínuas, fazendo
emergir um novo sujeito a ser objetivado pelos outros e por si mesmo. Novos discursos,
novos saberes, novas tecnologias de gestão são elaboradas e colocadas em circulação.
Com a inclusão de novas áreas de conhecimento ao campo da saúde, as relações de
poder se capilarizam e se multiplicam. A partir daí, novas substâncias éticas, ou seja,
novas partes de si a serem objetivadas pelos sujeitos, são inventadas, criando-se a
necessidade de administração e gerenciamento por parte destes.
107
3.5.1 Práticas psi e a hermenêutica dos usuários
Essa ampliação do campo da saúde é bastante tributária da incorporação de
saberes e práticas da área da Psicologia, que se alia a essa nova forma de gestão
oferecendo seu olhar atento às singularidades dos sujeitos, instrumentalizada pela fala
do sujeito sobre si mesmo e pelo olhar para si que ela incita. A utilização de tecnologias
psi possibilita o gerenciamento de novas dimensões da vida dos indivíduos graças ao
olhar investigativo que a eles é delegado e a posterior discursividade sobre si que é
estimulada. Em um estudo sobre os novos sujeitos e as novas práticas que emergem da
ideia da clínica ampliada, Dhein localizou, em documentos emitidos pelo governo, uma
série de termos que indicavam a ampliação do campo da saúde pela incorporação de
saberes e práticas da área da Psicologia. “Capacidade de escuta”, “sentimentos
inconscientes”, “negação da doença”, “procurar conhecer quais os projetos e desejos do
usuário” “singularidades do sujeito”, “vínculos e afetos”, “outras possibilidades de
diálogo”, “capacidade de ajudar cada pessoa a transformar-se”, são algumas
terminologias que sinalizam a presença de tecnologias psi no incremento dessa nova
forma de gestão que se faz presente (Dhein, 2010).
A abordagem da redução de danos, ao utilizar estratégias de estreitamento dos
laços entre os agentes da saúde e os usuários de drogas, proporciona a produção de uma
discursividade sobre si, criando um espaço de revelação de si para um outro, como
podemos perceber no seguinte trecho da Cartilha de redução de danos para agentes
comunitários de saúde :
(...) em geral, as pessoas sentem dificuldade de falar sobre si com outra
pessoa, se não houver um vínculo e uma relação de confiança estabelecidos.
Nesse sentido, a Saúde da Família torna-se um campo potente de
intervenções, pois possibilita que essas pessoas conheçam a sua equipe de
saúde, o seu agente comunitário de saúde, e criem laços de confiança,
identificando profissionais com os quais se sintam mais à vontade para
conversar. (Brasil, 2011b, p. 15).
A proposta acolhedora, tolerante, reconhecedora da diversidade, cria uma
atmosfera de maior abertura dos indivíduos para com os profissionais de saúde, como
verificamos na experiência relatada por Marlatt, importante defensor e difusor da
abordagem. Em uma visita a uma escola particular do ensino médio, situada na cidade
de Seattle, Estados Unidos, uma equipe do Centro de Pesquisa em Comportamentos
Adictos da Universidade de Washington inicia uma conversa sobre uso de drogas com
108
alunos de uma turma. Já no inicio da conversa uma das alunas teria expressado
incomodo com a presença dos profissionais ali, se mostrado fechada ao diálogo e
dizendo: “Outra palestra do tipo „simplesmente diga não‟. Bom, enquanto vocês fazem
isso, vou ficar imaginando a grande festa que vai ocorrer sexta à noite”. No entanto,
segundo o autor, após iniciarem uma conversa descontraída, nos moldes da abordagem
da redução de danos, discutindo abertamente os prazeres, benefícios e riscos do uso das
drogas, o silencio inicial deu lugar a uma conversa calorosa, onde os alunos falavam
livremente sobre suas experiências. (Marlatt, 1999, p. 53).
Entre as dicas para uma boa abordagem, presentes na Cartilha de Redução de
Danos para Agentes Comunitários de Saúde, encontramos: a construção de um clima
acolhedor com o posterior convite a fala sobre si; o esforço em sinalizar, tanto de
maneira verbal como não verbal, que se está interessado no que a pessoa diz, visando a
estimulação da sua fala, e a criação de atmosfera tolerante, propícia a revelação de todo
tipo de experiência. Essa abertura proporcionada pelo falar sobre si, supomos, permite
que os profissionais atuem com mais facilidade como condutores da conduta alheia,
como verificamos na fala de uma usuária durante um grupo focal com redutores de
danos: “Fico aqui conversando com eles, desabafando né, sempre eles vão me
explicando, me orientando, que eu tenho que fazer o que não tenho” (Paes & Oliveira
2006).
Quando os sujeitos não falam espontaneamente sobre si, os trabalhadores de
saúde são incentivados a investigarem sobre suas vidas, sempre estabelecendo
estratégias para conseguir promover a abertura desejada, como podemos vislumbrar no
seguinte fragmento da Cartilha:
Por mais que o ACS [Agente Comunitário de Saúde] tenha, por exemplo,
uma boa dimensão da vida no território, ele não sabe “tudo” o que se passa
ali. Porém, muitas vezes, a pessoa usuária de drogas, ao ser questionada, nega
o fato. Não se preocupe. Apenas procure manter a proximidade e o vínculo.
Quando a relação de confiança estiver estabelecida, o uso de drogas vai
acabar aparecendo na conversa. Não se deixe mover pela curiosidade
excessiva. Não tenha pressa. (...) É preciso “comer pelas beiradas”. Que tal
chamá-lo para uma partida de futebol? Ou para uma conversa sem
compromisso? (Brasil, 2011b p. 33/34)
O conhecimento a cerca dos indivíduos e o forte vínculo estabelecido com
estes, frutos do estreitamento dos laços usuários/profissionais, possibilitam o exercício
de um poder mais paciente, mais tranqüilo, que, assim como o zangão trazido por
Guillaume de La Perrière, um dos mais importantes autores da arte de governar dos
109
séculos XVI e XVII, pode “reinar sobre a colméia sem a necessidade do ferrão”
(Foucault 2008a). Essa busca de um governo mais paciente pode ser verificada na
seguinte passagem:
Exigir que a pessoa dependente largue imediatamente a droga pode ser, de
início, “pedir demais”. A partir de uma escuta acolhedora e sem julgamentos
morais, é possível compreender o que o usuário traz como problema em sua
vida e, também, identificar as suas potencialidades e as da comunidade. Tudo
no seu tempo, tudo na sua hora. (Brasil, 2011b).
A acumulação de um saber sobre os usuários permite um gerenciamento
calcado no conhecimento de sua naturalidade, possibilita uma administração atenta às
suas características, uma administração não arbitrária. Enseja um tipo de poder que tem
como sua hipoderme, a própria naturalidade do fenômeno em questão.
As singularidades e especificidades do público alvo, captadas nessas falas
sobre si e nas observações realizadas nos territórios, podem ser utilizadas para o
aperfeiçoamento desse novo modelo de gestão que se delineia. Como declara a Política
do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, a
redução de danos é considerada uma estratégia promissora exatamente “porque
reconhece cada usuário em sua singularidade” (Brasil, 2004a, p. 10). No artigo 22 da lei
11.343/06 vemos menção à necessidade de construção de “um projeto terapêutico
individualizado, orientado para a inclusão social e para a redução dos riscos e danos
sociais e à saúde” (Brasil, 2006). Na Cartilha de Redução de Danos para Agentes
Comunitários temos a definição das práticas de redução de danos enquanto intervenções
singulares, que devem atentar para a história e para as características da população em
questão (Brasil, 2011b).
Essas singularidades são, contudo, sempre gerenciadas dentro de um plano
global de análise; é necessário considerar as individualidades nas intervenções, mas é
preciso, ao mesmo tempo, remeter-se a uma dimensão coletiva de padrões de
comportamento e de metas a serem alcançadas. Para o governo brasileiro, a elaboração
de políticas públicas que promovam transformações estáveis nos diferentes níveis
envolvidos requer “Mudanças individuais de comportamento que estão diretamente
vinculadas a estratégias globais de diminuição de riscos individuais e nos grupos de
pares” (Brasil, 2004a, p. 25).
110
Bem aos moldes biopolíticos de gerenciamento, a nova política de saúde para
usuários de drogas parece buscar engendrar uma forma de gestão que dê conta da
singularidade e da coletividade, como apreciamos a seguir:
Sempre foi um desafio para as práticas de saúde aliar o âmbito clínico de
intervenção com o da saúde coletiva. O primeiro tem como seu foco as
manifestações individuais das alterações da saúde, enquanto que o segundo
efetua um outro tipo de corte, tomando a incidência e a prevalência das
alterações em plano coletivo. Quando seguimos esta lógica, a das
binarizações, todos perdemos. Perdemos as contribuições da experiência
clínica que está voltada para as características singulares que se expressam
em cada corpo, em cada sujeito, em cada história de vida. Perdemos as
contribuições das análises propiciadas pelo recorte da saúde coletiva que
capta as expressões de uma comunidade, de uma localidade, de um tipo de
afecção, de uma categoria social ou de gênero, de histórias que se cruzam
configurando a história em um certo momento. Busca-se aqui o diálogo
dessas duas perspectivas: transversalização.(Brasil, 2004a, p. 9)
Ao mesmo tempo em que uma política pautada nos pressupostos da redução de
danos permite o aprofundamento do saber sobre os usuários e uma atuação mais
abrangente em sua vida, o sujeito implicado nessa abordagem é convidado a participar
de maneira autônoma e responsável, implicando-se ativamente nesse processo. Entre os
princípios e diretrizes da lei 11.343/06 encontramos o “fortalecimento da autonomia e
da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas” (Brasil, 2006).
Na Cartilha de Redução de Danos encontramos a definição da abordagem como sendo
“um modo de trabalho, pautado por uma ética da relação baseada na autonomia, no
diálogo e na co-responsabilização profissional-usuário” (Brasil, 2011b, p. 31). O
governo se empenha, então, em elaborar campanhas para que os indivíduos, munidos de
certos saberes e regras, possam se engajar ativamente e exercer a sua auto-gestão. Na
Política Nacional sobre Drogas, entre as orientações gerais para a prevenção,
importância do incentivo à “socialização do conhecimento sobre drogas com
embasamento científico, o fomento do protagonismo juvenil, participação da família, da
escola e da sociedade na multiplicação dessas ações” (Brasil, 2011, p. 16).
Portanto, para se efetuar, essa nova forma de gestão necessita do exercício de
certos comportamentos de maneira mais livre, praticados concomitantemente ao
gerenciamento por parte dos profissionais. Dessa maneira, ela permite a dilatação da
superfície de contato entre as tecnologias de si e as do outro; o trato dos usuários com o
seu corpo, com a sua saúde, com a sua vida, vai sendo cada vez mais acompanhado pela
111
gestão por parte de outro. Sendo assim vemos que na Política do Ministério da Saúde
para Atenção Integral tratar significa
aumentar o grau de liberdade, de co-responsabilidade daquele que está se
tratando. Implica, por outro lado, o estabelecimento de vínculo com os
profissionais, que também passam a ser co-responsáveis pelos caminhos a
serem construídos pela vida daquele usuário, pelas muitas vidas que a ele se
ligam e pelas que nele se expressam (Brasil, 2004a, p.10).
Tal ampliação do grau de liberdade e atividade do sujeito traz, como outro lado
da moeda, o aumento do nível de responsabilização por seu tratamento e por suas ações
em geral. Uma abordagem pautada no incremento da autonomia e do auto-cuidado
exige, simultaneamente, do indivíduo mais responsabilidade pelas conseqüências dessa
auto-gestão. Para os autores da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral
para Usuários de Álcool e Outras Drogas, o planejamento e a execução das práticas de
saúde “não deve abrir mão da participação dos indivíduos diretamente envolvidos com o
uso de álcool e outras drogas, na medida em que devem ser implicados como
responsáveis por suas próprias escolhas” (Brasil, 2004a p. 27). Munidos de
conhecimentos sobre os efeitos, conseqüências e danos provocados pelo uso de drogas e
advertidos das possibilidades de transformação de sua conduta, os indivíduos devem,
portanto, poder gerenciar, por conta própria, seus comportamentos de maneira mais
responsável. Encontramos, dentre os pressupostos éticos desta política e ideia de que os
consumidores de drogas devem ter “direito a informações sobre os efeitos do uso
prejudicial de álcool, sobre a possibilidade de modificação dos padrões de consumo, e a
orientações voltadas para o uso responsável, no sentido da responsabilização e
autonomia da pessoa” (Brasil, 2004a, p. 38).
Esse indivíduo não é incitado a exercer uma autogestão apenas no trato com a
sua saúde, ele é levado a engajar-se numa forma de vida mais responsável e autônoma
em todos os aspectos da sua vida, sobretudo, através de sua inserção no mercado de
trabalho que proverá a sua auto-manutenção na sociedade graças a sua participação na
rede de produção e consumo. Orientações voltadas para a implementação de ações
intersetoriais de emprego e renda visando a inserção do usuário de drogas no mercado
de trabalho se fazem presentes tanto na Política do Ministério da Saúde para Atenção
Integral a Usuário de Álcool e Outras Drogas. Intervenções na área de trabalho e
educação devem ser executadas visando à capacitação dos sujeitos para uma atuação
auto-gestionada e responsável na sociedade. O indivíduo usuário de drogas que cai na
112
rede de atenção em saúde não recebe apenas cuidados relativos ao seu consumo da
substância, ele é levado a exercer sobre si uma série de operações de auto-investimento
e produção em cima do seu capital humano. Desta maneira “Este novo sujeito-cidadão
de responsabilidade deverá ser então um sujeito de auto-investimento, incrementando o
seu self-empowerment, podendo ser um empreendedor de si” (Ferreira, Padilha &
Starosky 2010). Tal característica desse modelo de gestão pode ser identificada na
seguinte fala de uma usuária durante um encontro do grupo focal de redutores
(...) ô minha amiga, não dá para você fumar um baseado agora, você tem que
trabalhar, você tem que fazer isso, você tem que fazer aquilo. Você tem até o
direito de... Até o direito de fumar uma baseado e até de tomar uma cerveja,
mas primeiro você tem que cumprir as suas obrigações. E isso, graças a Deus,
eu aprendi com a redução de danos e tenho conseguido transmitir (Paes e
Oliveira, 2006, p. 10).
A própria intervenção do indivíduo em seu ambiente natural, em seu território,
uma intervenção fortalecedora de seus vínculos sociais e comunitários, viabiliza a
inserção e o melhor desempenho deste nesse meio ao qual deverá pertencer e no qual
deverá manter-se com responsabilidade e autonomia, como vemos na seguinte
passagem da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral para Usuários de
Álcool e Outras Drogas:
A redução de danos deve se dar como ação no território, intervindo na
construção de redes de suporte social, com clara pretensão de criar outros
movimentos possíveis na cidade, visando a avançar em graus de autonomia
dos usuários e seus familiares (Brasil, 2004a, p. 11).
A entrada da abordagem da redução de danos na política oficial do governo
traduz-se, portanto, na inauguração de novas formas de governo do outro e de si mesmo.
A sua absorção enquanto estratégia reflete, como vimos, a aceitação do insucesso de
intervenções visando a pura repressão e a completa eliminação do uso e a modificação
das metas a serem alcançadas. Ao invés de almejar construir um país livre do uso das
drogas, busca-se, agora, construir uma nação protegida do uso de drogas ilícitas e do
uso indevido de drogas lícitas, e para tal propósito, toda a coletividade é convocada a se
empenhar. A população alvo não mais se submete a um processo de disciplinarização
ostensivo e uniforme, ela é decomposta e regulada em função de suas especificidades e
de acordo com os objetivos passíveis de serem alcançados. O trabalho no território e as
ações intersetoriais possibilitam uma gestão mais ampla e capilarizada sobre a vida dos
indivíduos. Permitem, ainda, a multiplicação de agenciamentos entre os agentes de
113
saúde e os usuários, desencadeando mais facilmente processos de conversão e de
transformação destes.
O fortalecimento do vínculo e a proximidade estabelecida entre os profissionais
e os usuários, favorecem, substancialmente, o desencadeamento de processos de
subjetivação por parte dos dirigidos. Os indivíduos cooptados em seus territórios são
levados a converterem o olhar para si e a se problematizarem. As práticas no campo
compelem com muito mais facilidade, os indivíduos a estabelecerem uma relação com
um mestre, com um diretor de consciência, numa versão mais fast-food. Encontrando o
seu ponto de origem em um agente externo, a problematização ética do sujeito corre o
risco de ter como principal condutor do processo de subjetivação tal agente, que lhe
aponta, então, a necessidade de ser transformado. Agora este indivíduo encerra sobre si
um olhar muito mais investigativo, favorecendo o aumento da produção de um
conhecimento sobre si. As práticas de si intensificam seu tom de auto-vigilância e autocontrole, criando um espaço interno numa possível busca de um verdade sobre si. Uma
verdade depositada, encontrada e expressa em sua singularidade. É o mestre, o diretor
de consciência que deve aqui aprimorar sua escuta, apresentar uma atenção ativa sobre o
indivíduo, possibilitando o aperfeiçoamento do conhecimento sobre este. Esse exame de
si, acompanhado pela permanente verbalização a outrem, tem como resultado a
produção de um saber sobre o indivíduo que pode ser, então, reiteradamente utilizado
como motivo para sua contínua necessidade de investigação e correção.
No entanto, apesar de se tratar de uma forma de poder mais pulverizado e
capilarizado, vemos entrar em circulação formas de governo mais econômicas e
flexíveis que para se efetivarem implicam maior atividade do sujeito sobre o seu corpo e
sobre sua vida. O usuário de drogas é levado a exercer um maior gerenciamento sobre
sua saúde, sendo responsabilizado, consequentemente, pelos resultados dessa gestão.
Mais do que isso, ele é incitado a se implicar numa forma de vida mais autônoma,
tornando-se um cidadão produtivo capaz de se auto-manter e de circular com mais
responsabilidade sobre o tecido social.
114
CONCLUSÃO
Diante de tal reflexão podemos conjecturar que temos em circulação hoje, no
âmbito das drogas, formas inéditas de governo da vida. Os grupos em defesa da redução
de danos, juntamente aos coletivos em prol da reforma psiquiátrica – ambos
movimentos de resistência a poderes disciplinares – garantiram, indubitavelmente,
formas de contraconduta aos antigos modelos de atenção aos usuários de drogas,
modelos tradicionalmente calcados na obrigatoriedade da abstinência, alicerçados no
recursos do enclausuramento e do controle ostensivo sobre os corpos dos indivíduos. No
entanto, acreditamos que novas formas de gerenciamento dos corpos podem fazer-se
presentes no tratamento desses indivíduos, formas de governo que incorporam o que
Foucault denominou de modelo liberal de gestão. Após sucessivas tentativas de barrar o
movimento de introdução das práticas de redução de danos no país, o governo brasileiro
foi encontrando algumas vantagens na adoção dessa abordagem, absorvendo alguns dos
seus preceitos e ampliando a aplicação de tais estratégias por diversos setores de
atuação, sobretudo através do campo da saúde mental.
É claro que acreditamos na maior consideração aos direitos dos usuários e na
efetiva conquista que a atual política representa. Não se pretende aqui demonizar o
Estado, a nova política, nem os profissionais que nessa área atuam. Não se deseja,
tampouco, defender a eliminação da atenção governamental aos indivíduos que fazem
uso de algum tipo de substância psicoativa. Acreditamos apenas na tarefa de, enquanto
pensadores, lançarmos um olhar crítico sobre o nosso tempo apontando para os novos
desafios apresentados na atualidade. A adoção da redução de danos é, sem dúvida, uma
conquista se pensarmos nas antigas formas de dominação a que estavam submetidos os
usuários, mas acreditar que, por conta disso, nenhuma análise precisa ser mais
empreendida e que estamos livres de qualquer risco seria uma grande armadilha.
De acordo com a perspectiva aqui adotada, fundamentada nas ferramentas
foucaultianas de análise, a conquista da autonomia e da liberdade dos indivíduos não
pode ser garantida de maneira definitiva e nem pode ser afiançada por meio de vitórias
de movimentos sociais. Como aponta Castelo Branco (2001) alguns cuidados devem ser
tomados quando se empreende lutas de resistência através mobilização de grupos
sociais. Esse cuidado se deve ao fato de que muitas lutas que se pretendem
contestadoras, acabam tendo como objetivo a inclusão e a legitimação de determinados
sujeitos na ordem estabelecida, como em alguns movimentos em busca dos direitos à
115
saúde e à higiene. E em segundo lugar, poderíamos trazer o fato de que alguns
movimentos sociais em defesa dos direitos e das liberdades de determinados estratos da
sociedade podem ser usados como um instrumento de manipulação dos indivíduos.
Como vimos o sistema mais habilidoso na condução das condutas e em seu processo de
normalização da sociedade, o sistema liberal, foi, paradoxalmente, exatamente aquele
que mais incentivou a liberdade e a iniciativa própria de ação do indivíduo.
A partir da inserção das práticas de redução de danos nas políticas
governamentais vemos entrar em circulação formas de governo mais econômicas, mais
flexíveis, mais rebuscadas, que para se efetivarem implicam mais atividade do sujeito. É
uma forma de gestão que incita mais exercícios sobre si, exercícios que são
acompanhados, todavia, da possibilidade de mais governo sobre esses corpos. Em nome
da prevenção e do gerenciamento de uma gama de riscos que lhes são apresentados, os
indivíduos podem ser inseridos numa rede de vigilância e controle exercidos por eles
mesmos. Há, portanto, um maior contato entre as tecnologias de governo do outro e as
tecnologias de governo de si. A pesar de lhes serem dadas maiores possibilidades de
liberdade, tem-se como consequência a multiplicação de formas de controle capazes de
gerenciá-las. Na medida em que se retiraram formas de controle coercitivas, as novas
formas de gerenciamento lhes colocaram numa situação de auto-disciplinamento
constante. Os indivíduos são sempre passíveis de intervenção uma vez que a pretensão
não é mais colocá-los dentro da norma ideal da abstinência, mas conduzi-lo a uma
normalidade possível dentro das suas possibilidades. Há maior possibilidade de incitar
os indivíduos iniciarem uma relação consigo já que os condutores da conduta vão a sua
procura nos seus territórios. Nessa nova relação que é agora estabelecida entre o
governante e o governado, os indivíduos falam mais de si, se abrem mais para o outro,
possibilitando maior elaboração de um saber sobre eles. Lançam um olhar investigativo
sobre o seu ser que não seria iniciado se não fosse a presença e a incitação daqueles
agentes.
Com este trabalho não almejamos construir uma crítica a abordagem da
redução de danos, pelo contrário, defendemos que as práticas não se reduzam apenas a
medidas de saúde que visem à redução gradual do uso e a inserção do usuário no
circuito produtivo e consumidor. Existem, por exemplo, trabalhos de redução de danos
voltados para a discussão de possíveis transformações legais no âmbito das drogas.
Orientados pelos males ocasionados pelas políticas de repressão ao uso e à
116
comercialização de substâncias psicoativas, tais entidades se voltam para a defesa da
construção de uma legislação que retire das drogas os danos provocados por sua
ilegalidade ou por sua criminalização. Existem também os trabalhos de capacitação em
redução de danos visando preparar pessoas para atuarem em festas e eventos
acompanhando os usuários em experiências difíceis – desencadeadas, sobretudo, pelo
uso de substâncias alucinógenas – auxiliando-os a amenizarem os episódios de grande
ansiedade e angústia. O próprio movimento nasceu lá na Holanda reivindicando
melhores posturas do governo no âmbito da saúde, mas também nas esferas policiais e
legais. No entanto, a grande maioria das publicações a respeito da redução de danos
localiza-se na área de saúde, especialmente no campo da Psiquiatria. Santos, Soares &
Campos (2010) em uma pesquisa realizada na base de dados LILACS, identificou que
entre as produções que vem se ocupando do tema da redução de danos, publicadas entre
os anos de 1994 e 2006, 79% pertencia ao campo da saúde, sendo que, 30% se
concentrava na área psiquiátrica. Segundo os autores, a maior parte dos trabalhos
oriundos desta área, embora se utilizem dos pressupostos da redução de danos, trazem
como objetivo expresso das intervenções a abstinência de qualquer consumo. O
consumo de drogas aqui seria tomado sempre como problemático, devendo-se sempre
buscar evitar que o primeiro uso ocorra. A redução de danos seria tomada como uma
estratégia utilizada para se aproximar dos indivíduos que não aceitam o tratamento
voltado para a abstinência, sendo estes considerados “passivos diante do uso, frágeis,
incapazes de se adaptar socialmente às normas e regras sociais (...)” (Santos, Soares e
Campos, 2010, p.1000).
Desta maneira, pensamos aqui na possível inserção de profissionais em práticas
de redução de danos – práticas potentes, que ampliam o contato com os usuários, que
incluem em seu campo de ação um gama maior de indivíduos, práticas que adentram as
suas casas e as suas ruas – que trazem em suas intervenções a manutenção de metas por
eles estabelecidas, como o possível desejo da abstinência total. Numa pesquisa realizada
num centro de referência em redução de danos na cidade de Porto Alegre constatou-se
um certo grau de frustração por parte dos profissionais por não poderem aplicar em suas
intervenções o seu ideal de saúde, na medida em que suas ações limitam-se às
possibilidades colocadas pelos usuários. De acordo com o estudo, a redução de danos,
ao colocar a possibilidade de construção de metas conjuntas, “acentua o sentimento de
frustração desses profissionais frente ao fato de não necessariamente curar, mas sim de
117
fazer o que é possível no momento, pondo em cheque tradicionais valores
profissionais.” (Almeida, 2003).
A pesar de acreditarmos que estamos diante de um poder mais sutil, flexível e
capilarizado, vislumbramos na atual política de drogas brasileira a abertura de um maior
espaço para que práticas de liberdade sejam exercidas. A vitória diante das antigas
formas de controle maciço sobre os corpos, exercido, sobretudo, através do recurso do
asilamento, garantiu a saída do estado de dominação ao qual os usuários de drogas
estavam submetidos. Nos antigos estados de dominação certos grupos chegaram a
enrijecer de tal forma o campo das relações de poder, tornando-as imóveis e fixas, que
não havia quase nenhuma possibilidade de resistência. Nessa situação podemos dizer
que o espaço para o exercício das práticas de liberdade é praticamente inexistente.
Dessa maneira a saída de tal estado é a condição para que as práticas de liberdade se
efetuem, práticas onde os indivíduos recusam a pura sujeição ao poder externo e
exercem sobre si uma força auto-criativa, inventora de formas próprias de existência.
(Foucault, 2006h). As práticas de liberdade, no entanto, só podem ser executadas pelo
próprio indivíduo, por mais que se planejem políticas mais abertas, menos coercitivas, a
sua efetivação, irá implicar novamente numa relação entre indivíduos, ou seja, numa
nova relação de poder. A libertação das antigas formas de tratamento, assentadas no
enclausuramento psiquiátrico, representa, portanto, apenas o primeiro passo para que
práticas de liberdade sejam exercidas.
Não se trata aqui de tentar transformar a atual política em um plano pérfido
ardilosamente tramado para controlar os indivíduos. O que se deseja é lançar um olhar
que nos deixe atento aos possíveis perigos que nos são agora apresentados. Assim como
vemos novas formas de gestão da vida entrarem em jogo, acreditamos na maior
possibilidade de constituição de práticas de si efetivamente mais autônomas.
Acreditamos, igualmente, haver maior possibilidade para os usuários atuarem sobre a
conduta dos profissionais, alterando-se, consequentemente, os pólos de emanação do
poder. O jogo está muito mais aberto e por isso mesmo muito mais interessante. Os
indivíduos estão suscetíveis a uma forma de controle decididamente mais perspicaz e ao
mesmo tempo estão diante de um sistema que lhes oferece efetivamente mais
possibilidades de criação de sua própria maneira de viver. O plano da prática, lugar
onde esta experiência está sendo efetivada, abriga muito mais possibilidades do que as
que estão sendo aqui apresentadas. É somente lá, na vivacidade do fluxo da vida real e
118
cotidiana, que pode estar sendo efetivamente exercida aquilo que tanto desejamos, que
tão pouco entendemos e que com tanta força nos movimenta: a liberdade.
A intenção desse trabalho é fazer pensar, é um convite à reflexão, não se tem
aqui a intenção de construir provas e evidências conclusivas a respeito dessa nova
política, apostamos apenas na função problematizadora da filosofia. Lembramos que o
poder não é visto como algo maligno a ser eliminado, ele está sempre presente em
qualquer agrupamento de seres humanos. O trabalho do pensamento, como coloca
Foucault, não é revelar o mal que habita em segredo tudo o que existe, e sim, “pressentir
o perigo que ameaça tudo aquilo que é habitual, e tornar problemático tudo aquilo que é
sólido” (Foucault, 1994b, p. 612).
Sendo assim, concordamos com Foucault quando ele diz que o papel dos
pensadores não é moldar a vontade política das pessoas, mas é, através das análises que
faz, reinterrogar as evidências, dissolver as familiaridades, sacudir os hábitos e as maneiras
de pensar e de se comportar. E dessa maneira, pode-se mostrar às pessoas que na verdade
elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por evidentes certas verdades e
certos de sistemas de funcionamento que são construídos em determinado momento
histórico e que podem ser criticados e transformados. Desse modo a história será efetiva na
medida em que não deixar
debaixo de si nada que tenderia a estabilidade tranqüilizante da vida ou da
natureza (...). E tudo isso para abrir o devir, o por-vir, a possibilidade de um
futuro que não é um futuro-projeto, nem um futuro-guia, nem um futuropromessa, nem um futuro-consumação, nem um futuro realização, mas um
futuro por-vir, um devir-futuro (Larossa, 2000, p. 331 ).
Engajamo-nos assim, na tarefa de encorajamento do trabalho constante que é o
exercício da liberdade. Como trouxemos no capítulo referente às tecnologias de si, a
concepção de liberdade é trazida como uma relação agonística, travada permanentemente
dentro das relações de poder. Desse modo, acreditamos não haver vitória definitiva da
liberdade, não existindo, portanto, descanso no exercício de sermos livres, “a liberdade
resta ser inventada sempre, e por cada um, por grupos, de muitas maneiras. Não há
possibilidade de totalização da liberdade” (Souza Filho, 2008, p. 23). A entrada da redução
de danos na política de saúde brasileira garantiu, de certa forma, uma liberdade formal para
os indivíduos, restando a cada um, agora, exercer ativamente a sua liberdade.
119
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