Lucas Zanella

Transcrição

Lucas Zanella
Perfídia
Lucas Zanella
Os Owens viriam para jantar em dois dias, Cássio havia dito.
Eram vizinhos de longa data, desde que haviam se mudado
para aquele bairro após o casamento. O marido havia lhe dito
que os convidara apenas porque fazia tempo demais que
ninguém se falava.
– Pelo menos eu e Ricardo, não nos falamos há meses –
dissera ele. – E você também não fala com eles. É preciso ter
uma boa relação com os vizinhos, sabe.
Sim, era bem preciso, claro que era. Tanto porque os
Owens eram a família mais rica do bairro. E também porque
Cássio queria seu cortador de grama de volta, embora
duvidasse que o receberia. Ricardo e Débora Owen eram sim
um tanto ricos, embora Adriana não soubesse o valor exato, ou
mesmo algum próximo, mas os dois não eram desses esnobes.
A casa em que moravam era simples o suficiente (embora ainda
fosse a mais bonita) e o casal era um tanto quanto modesto.
Adriana não sabia quem era a maçã podre naquele
pomar, mas havia uma coisa que não saía mais da sua cabeça: o
tempo que Cássio passava junto de Débora. Os dois estavam
bastante próximo ultimamente, volta e meia ouvia o marido
dizer que iria para a cafeteria junto da vizinha. Não era
necessário ser uma cientista para saber que ele estava a
fodendo. Agora, se Ricardo também desconfiava, ela não sabia.
Entretanto, isso não importava naquele momento. O que
tinha era apenas uma grande pulga atrás da orelha, nada mais.
Adriana não seria a primeira mulher a suspeitar que o marido a
estava traindo e tampouco seria a última. Queria ter certeza
antes de fazer qualquer coisa precipitada, como pedir um
divórcio após jogar alguns pratos em Cássio.
O marido chegou do trabalho tarde naquela quinta-feira
e pediu desculpas pelo atraso. Foi direto para o banho. Adriana
o esperou na cozinha, escorada na mesa e de braços cruzados.
– O que aconteceu? – ela perguntou, já temendo a
resposta.
Cássio foi até o fogão e tratou de cuidar da comida, ela
começou a guardar o que comprara no mercado na geladeira e
nas prateleiras. Percebeu que, tão distraída a respeito daquilo,
comprara uma maçã completamente podre. Jogou-a no lixo.
– Ah, nada de mais. Débora passou por lá depois que
saiu do trabalho e fomos comer algo.
– Comeram o que? – perguntou, embora já tivesse uma
boa resposta do que foi comido.
– Apenas um cachorro-quente, nada de mais. Passe-me
o sal.
Adriana o passou. O marido não era de comer comida
de rua ou de fast-foods, mas sabia que Débora era a única que o
conseguia convencer a comer. Até não duvidava daquilo, mas
também sabia que não muito longe do prédio onde Cássio
trabalhava como revisor havia um motel. Simples, barato, e
possivelmente com muito menos empregadas do que deveria.
Mas um motel mesmo assim. Se possui uma cama, quatro
paredes e uma mulher, o marido conseguia se virar. Os quatro
anos de casados mostravam isso.
Ela arrumou a mesa e ele pôs sobre ela as panelas que
trazia, segurando-as pelos cabos com um pano. Mais depois
sentaram-se e comeram, então foram para o quarto, onde
Cássio escrevia algo no computador e Adriana assistia a
televisão.
Não eram velhos, sabe. Cássio era o mais velho dos
dois e possuía 34, e os sinais da idade ainda demorariam muito
para chegar. Bons genes, é claro, nele e nela. E num filho
aconteceria o mesmo, mas não possuíam nenhum. Talvez mais
tarde, se continuassem juntos.
Mas Adriana sabia que só conseguiriam ter um filho se
transassem, explicaram isso a ela numa aula de biologia muitos
anos antes. E há algum tempo que não o faziam, mas ela não
conseguia se lembrar se isso começara quando Cássio passou a
sair mais com Débora. A pulga atrás da orelha agora também
falava, e dizia que sim. Já satisfeito com a mulher do vizinho,
não havia o porquê de transar com a própria mulher.
Débora nem mesmo era mais bonita que ela; ainda se
fosse uma garota de 18 anos que estagiava na editora, ela
entenderia. Pelo menos seria mais normal, como uma dessas
traições comuns que se acha em diversos filmes. Mas não,
Débora era uma mulher de estatura média, com 31 anos (a
mesma idade que ela) e de cabelos ruivos e sempre
despenteados. Não cuidava da aparência, sempre usando jeans
e um tênis quando possuía pernas tão bonitas. Adriana era, bem
literalmente, a mulher dos sonhos de muitos, loira e de olhos
azuis. Escuros, mas azuis mesmo assim.
Após uma hora, já estava cansada. Quando o marido
desligou o computador e o pôs para o lado, ela desligou a
televisão no mesmo instante e se arrumou nas cobertas. Virou
para o lado e sentiu o marido passando a mão sobre o seu
corpo, e então ele a abraçou. Pelo menos isso ele ainda fazia.
Agarrada na mão de Cássio, dormiu alguns minutos depois de
perceber que ele já despencara.
Enquanto ele tomava banho, ela se vestia para o trabalho. Ao
calçar seu salto alto preferido, viu Cássio sair do chuveiro com
uma toalha branca enrolada na cintura. Ele foi até o armário e
investigou suas roupas. Como era apenas o revisor, não possuía
exatamente um uniforme. Ela, no entanto, sendo a secretária do
presidente de uma grande empresa de informática da região,
precisava ir sempre com um estilo de roupa preestabelecido.
Era um daqueles estilos de roupa de secretária que,
geralmente, se vê apenas em filmes. Uma roupa curta o
bastante para chamar a atenção dos investidores, mas longa o
suficiente para não ser moralmente indecente ou digna de um
processo.
Chegou por trás de Cássio e o abraçou, as mãos
deslizaram até a frente da toalha, onde o agarrou. Deu alguns
beijos casuais no ombro de Cássio e o virou. Ainda tinham
tempo para fazerem algo, apenas dependia dele.
– Adriana, eu não posso agora – ele disse, tirando a mão
dela de seu membro. – Preciso ir para a editora logo, pediramme para chegar mais cedo hoje.
– Claro, sempre há uma desculpa – disse contrafeita. –
Geralmente numa relação é a mulher quem dá as desculpas,
não o homem.
A isso ele não respondeu, mas ela notou sua expressão
ascosa. Foi Cássio quem saiu primeiro, e ela se demorou um
pouco mais, uma meia hora. Grande parte desses trinta minutos
foram passados sentada na cama, observando a parede branca
do quarto, e em frente ao espelho, passando um batom rosa.
No trabalho, não era chamada pelo nome, exceto em
casos raros. Claro, tendo um sobrenome tão sonoro como
Garcia, não havia escolha. Uma vez fora Adriana Boaventura,
mas não mais. O trabalho começava às nove da manhã e ia até
as seis da tarde, que era também o horário em que o chefe saía.
Os outros ficavam até as nove.
Sua mesa ficava numa salinha pequena, com um
telefone e um computador, e naquela salinha havia uma porta
que levava para o escritório do mandachuva, Alfredo Azevedo.
Havia também dois sofás pequenos, mas era tão raro ver
alguém sentado neles que ela esquecia que estavam ali. Os que
faziam uma visitinha ao chefe eram, geralmente, apenas os
investidores e patrocinadores com os quais conversava, e eles
nunca esperam. Faz parte dos seus DNAs.
Ele abriu a porta da sua sala, estava sozinho e falava
algo ao telefone. Quando ele estalava o dedo três vezes para
chamá-la isso significava que teria de levar algo a algum lugar,
mesmo não sendo esse o seu trabalho. Ela foi até a sala dele, o
homem já estava sentado em sua cadeira, atrás de sua mesa e
terminando a conversa ao telefone.
– Não se preocupe, Linda, eu vou mandar alguém levar
os relatórios aí agora mesmo. Sim, eu os tenho aqui comigo –
ele disse e desligou. – Garcia, leve isso aqui para Linda, no
setor financeiro. Isso é muito importante, não se distraia! – sua
voz era a de repreensão, como quando um adulto fala com uma
criança para não pôr o dedo na tomada.
– Eu não vou, senhor Azevedo – pegou o envelope
cheio de papéis e fechou a porta ao sair.
Linda era a mandachuva daquele setor, e embora fosse
um tanto quanto menos importante do que o CEO, o homem a
ouvia como se fosse sua mãe. Ela precisou descer pelo
elevador até o andar inferior; o chefe trabalhava no último
andar e, em consequência, ela também. Linda estava, naquele
dia, toda radiante e alegre.
A mulher era sempre rabugenta com tudo e todos.
Virara comum piada entre os funcionários que trabalhavam
com ela dizerem que precisava de um homem na sua vida para
ficar melhor. Ironicamente, os papéis inverteram. Adriana se
perguntou quanto tempo demoraria até ficar tão azeda quanto
Linda era, afinal, agora era ela quem não parecia ter um
homem em sua vida. Até então estava bem, era apenas um mês
sem ter um contato íntimo com Cássio e passara todo esse
tempo se perguntando se ele a traía, mas e quando virasse seis
meses de abstinência, ciúme e suspeitas? Deus, poderia até
mesmo ficar pior que Linda. A própria maga das finanças era
uma mulher jovem e respeitosamente bonita e elegante,
também era educada, quando estava recebendo uma boa dose
de sexo diário.
Naquele dia todos também haviam percebido a
diferença. Durante o horário de almoço, enquanto estava
sentada junto de algumas outras pessoas que conhecia e de
quem era amiga na empresa, ouviu Carla, secretária de Linda,
dizer que a chefe recebera um buquê de rosas mais cedo
naquele dia. Então a teoria de que a ranzinza havia achado
alguém para tomar conta das necessidades dela foi fortemente
confirmada.
À noite, em casa, aconteceu a mesma coisa de sempre.
– Eles vão chegar às oito horas – Cássio disse no fim da
manhã, após acordarem de um longo sono.
– Pode deixar que eu preparo tudo – Adriana disse.
Conseguira ter ainda menos interesse na janta com os Owens, e
preparar a casa e a comida pelo menos a daria algo para fazer e
nada em que pensar. Até a noite, todas as preocupações seriam
o quanto de sal já pusera no molho. Mas quando já estivesse na
mesa, junto dos dois, ainda não tinha certeza de que não iria
pegar seu garfo e cravar no rosto de Débora, perfurando
aqueles malditos olhos verdes, da cor de brócolis.
Às três da tarde descobriu que não havia mais tomates,
tampouco havia arroz. Precisaria ir ao supermercado. O marido
estava novamente digitando algo no computador, mesmo sendo
sábado ele trabalhava. Não sabia se era amor pelo trabalho ou
simplesmente falta de ter algo melhor para fazer.
Se era amor, amava-o mais que ela. E se era falta do
que fazer, havia ela para ser feita; há um bom tempo. Na
verdade, ao pegar o celular para checar a temperatura e a lista
rápida que fizera do que comprar, seu Google Now sugeriu
uma matéria sobre falta de sexo no casamento. Irônico.
Bom, não era irônico e ela sabia disso. Pesquisara, e o
Google sabia que ela pesquisara, ele sabe tudo. Então a
sugerira outra matéria, mas ela não a leu. Apenas a descartou e
se preocupou com as coisas importantes. No momento, seu
único objetivo era comprar a merda de um tomate... Dentre as
outras coisas na lista.
Tentava não pensar em Cássio ou Débora ou algo, mas
é uma brincadeira do cérebro. Quando Arthur disse para Saito
não pensar em elefantes, foi nisso em que ele pensou.
Estacionou o carro em frente ao supermercado,
demorou até achar uma vaga. Era sábado, a cidade toda estava
lá. Passou pelos caixas e viu a grande fila que teria de enfrentar
em breve.
Pegou o arroz logo na frente, numa das grandes
prateleiras. Passou um minuto procurando aquela uma marca
que sempre comprava, apenas por costume. Os tomates
encontraria no fundo do mercado, mas antes pegara o resto do
que colocara na lista e pusera tudo no seu cesto.
– Oi, Adriana! – ouviu alguém dizer numa vozinha fina
e insuportável. Não havia como não reconhecer, mesmo se
tivesse apenas sussurrado.
– Isa – disse mordendo os lábios com tanta força que
por pouco não sagraram. – O que faz aqui?
Isadora Ferreira era uma antiga amiga, trabalhava como
modelo, embora não fosse exatamente assim tão famosa, rica
ou bonita. Mas é surpreendente o que se pode fazer com fotos
hoje em dia. Elas foram amigas na época de faculdade, e até
mesmo comparecera à festa de casamento. E então o contato
cessou, os ouvidos de Adriana agradeceram.
Aquela era uma mulher que gostava de falar, mas a
coisa mais sábia a se fazer seria ficar calada.
– Ora essa, eu vim comprar algumas coisas. Bananas,
para ser mais precisa – isso ela já tinha aos montes, era só
estalar os dedos e alguma apareceria. – E também cenoura, já
não tenho mais, comi tudo – a metáfora permanece a mesma.
Cenouras ajudam a emagrecer, lera sobre isso numa
revista qualquer anos atrás, mas a informação ficou com ela.
Entretanto, pela aparência de Isa, ela não precisava emagrecer.
Se algo, necessitava engordar, muito.
Modelos, tão diferentes umas das outras, mas no final
são tão iguais. Estivesse a antiga amiga de biquíni, tinha
certeza de que conseguiria ver a grande marca deixada pelas
costelas naquela pele fraca. Mas isso já vinha desde os tempos
de faculdade, foi quando começara a se interessar pelo mundo
da moda. Ou, mais precisamente, pelo dinheiro que o mundo
da moda poderia gerar.
– Eu lamento muito – ela disse, os ouvidos de Adriana
sangravam.
– Pelo que? – conseguiu perguntar.
– Pela separação de vocês dois, você sabe... É uma
pena, você e Cássio faziam um belo casal.
– Mas nós ainda estamos juntos! – exclamou.
– Ah – ela disse de modo estúpido. – Desculpe, então.
Tchau!
Isadora saiu de perto, não sem antes agarrar uma alface.
Adriana a seguiu e a puxou. Não foi difícil, Isadora era
incrivelmente frágil e ela, bom, muito mais corpulenta. Mas era
isso o que mais despertava desejo nos outros. Embora não no
marido.
Droga, já estava pensando nele e na vadia de novo.
– Por que achou que houvéssemos nos separado?
– Não é nada não, mesmo! – Adriana não conseguia
saber qual era sua expressão, mas pelo rosto de Isadora, não era
nada boa. – Tudo bem. Eu vi ele com uma ruiva numa
lanchonete um dia desses, uma ruiva bem bonita – sentiu a
necessidade de falar.
– Mas isso não é nada, por que achou que havíamos nos
separado apenas por conta disso?
– Não sei direito, foi algo no olhar dos dois. Eles
estavam rindo, pareciam se divertir.
– Ruiva bonita? Quão bonita?
– Muito. Eu acho que talvez seja uma modelo.
Não podia ser Débora, não mesmo. A mulher não
parecia saber ser bonita; com um pouco de trabalho, poderia
ser, entretanto. Um pouco não, um trabalho mínimo. Ela
poderia ser linda, mas preferia não ser.
Talvez se arrumasse para se encontrar com Cássio. Era
bem provável. Se estava o fodendo, iria querer ficar o mais
bonita possível para que ele não terminasse o relacionamento
dos dois. Mas é estranho que alguém fosse preferir Cássio,
Adriana percebia isso.
O marido não era um homem feio, na verdade, é um dos
mais bonitos que já conhecera na vida toda, e isso incluía
atores em filmes melosos. Cássio tinha um cabelo preto e curto
que gostava de esparramar na cabeça para aplicar um certo
estilo, e ele sabia se vestir, conseguiria ficar elegante mesmo
com roupas achadas no lixo.
Mas, por outro lado, Débora era esposa de Ricardo. O
homem era rico, mas isso não era o mais importante. Ele era o
cara. Descobrira no verão passado que possuía um abdômen
muito bem definido para os seus quase quarenta anos, e estava
em melhor forma que Cássio.
Tudo bem que o marido era galanteador, tinha um bom
senso de humor e sabia fazer certas coisas na cama que o
deixavam um homem melhor do que Ricardo, mas, ainda
assim, era esquisito. Claro que Adriana não entendia a razão
para a traição, nunca traíra. Nunca nem mesmo pensara nisso.
Então ser completamente ignorante à razão pela qual
Débora e Cássio poderiam estar juntos era uma boa coisa. Mas
se não sabia, não poderia consertar. O que? É porque ela era
ruiva? Ela poderia pintar o cabelo, se preciso. Mas não tinha a
mínima pista, e o único detetive que conhecia estava trancado
numa caixa e numa prateleira de DVDs.
Deixou Isadora parada na fileira do supermercado, foi
emburrada até a fila, que não demorou a passar. Ou talvez fosse
apenas o tempo que passasse mais rápido por conta da raiva.
Não voltou direto para casa, aproveitou que estava no
carro e andou por toda a cidade até que boa parte da raiva
houvesse passado. Geralmente isso ajudava, andar de carro a
distraía, fazia parte da lista de coisas essenciais à vida. A água
remove toxinas; o sexo dá prazer; e andar de carro traz paz
interior, contanto que não haja trânsito.
Mas havia. Ela gritou, buzinou e xingou mais, até
mesmo gritou ofensas que inventou na hora. Quando voltou
para casa, ela e Ave Maria eram a mesma pessoa, tão puras no
interior quanto no exterior. Só restava continuar assim pelo
resto da noite.
Eram cinco da tarde, ela limpava a casa. Havia três
horas de sobra. Passou o aspirador de pó no tapete da sala de
estar, depois usou o espanador para tirar qualquer poeira que
poderia estar nos sofás. Percebeu que deveria ter feito isso
antes de passar o aspirador no tapete e passou-o de novo.
Às seis colocou as panelas nas bocas do fogão e
arrumou a mesa na sala de jantar. Raramente a usavam,
geralmente Cássio e ela comiam na sala de estar, no quarto (nos
tempos em que o usavam para algo além de dormir) ou numa
mesinha que havia na cozinha.
Mas agora teriam visitas, estava na hora de tirar o pó da
mesa envernizada e parada havia mais de mês. Pôs sobre ela
uma toalha que tirou de uma das gavetas da cozinha (dessas
que apenas Cássio sabe que existem) com a ajuda do marido e
então trouxe os pratos. E então os talheres. E também
guardanapos. Taças. O vinho levou num recipiente de vidro
cheio de gelo e sal grosso. No fim das contas, a mesa estava tão
linda quanto poderia estar.
Voltou para a cozinha e tirou Cássio da frente do fogão.
Ela prepararia aquilo, precisava se manter ocupada. Embora
estivesse com medo de que talvez fosse simplesmente explodir
ou entrar em combustão espontânea no meio do jantar.
Quando a luz do dia já fora embora e os sons da noite
começaram a invadir a casa e a cidade, os Owens chegaram.
Cássio foi quem os atendeu na porta, pois já estava na sala de
estar. Depois que Adriana foi vê-los, notou que ambos estavam
muito diferentes da última vez que os vira.
A princípio, Débora era a mais mudada. Embora ainda
estivesse em suas roupas casuais e simples, estava muito mais
bonita do que a imagem da mulher que Adri tinha em mente. O
cabelo ainda um pouco mal arrumado, mas dava-lhe um certo
charme. A porra de um charme que contagiara até mesmo
Adriana. Então como não conquistaria Cássio, sendo que tinha
absolutamente tudo?
Mas de uma coisa Adri estava certa: Débora podia estar
bonita, mas nem de longe tanto quanto ela. Mesmo sem ter se
arrumado em excesso, ainda radiava diante da mulher. Em
todos os casos, havia outras coisas que conquistavam um
homem além da beleza. E tendo Débora peitos e bunda
pequenos, só restava a personalidade.
Só agora percebia que nunca falara direito com ela. Não
sabia se era engraçada, não sabia se tinha uma voz irritante
como a de Isadora, e também não sabia se ela era burra ou
inteligente. Descobriria naquela noite, ao que tudo indicava.
O marido Ricardo também não se arrumara em excesso,
mas ele tampouco precisaria. Cássio apertou sua mão, e, um
em frente ao outro, podia-se ver que o vizinho era uns bons
centímetros mais alto que ele. Se bem lembrava, Ricardo era
algum tipo de empresário, e os pelos brancos do estresse já
estavam chegando ao seu cabelo bem arrumado. Perto de
Débora, os dois não pareciam combinar em nada.
– Não sabia exatamente o que trazer – disse Ricardo –,
então trouxe isto aqui – ele entregou para Cássio uma garrafa
de vinho. Era fácil notar o quão caro deveria ser, estava
estampado na etiqueta, com design luxuoso.
– Excelente – disse Cássio sem dar muita importância à
bebida. – Vou colocá-lo agora mesmo junto do outro.
– Talvez possamos abrir agora mesmo e já começar a
festa – riu, tinha uma voz forte, como de locutor de rádio, e a
risada também tinha sua gravidade. – Eu lhe ajudo!
Ricardo foi para a sala de jantar junto de Cássio.
Débora se aproximou.
– Homens, humpf – disse com uma voz ridiculamente
bonita e riu. Adri a acompanhou na risada, mas sabia que em
seus olhos havia apenas nojo. – Você quer uma ajuda com a
comida? Posso não ter muitos dotes culinários, mas sei fazer o
que os outros me pedem.
Fator esse que deveria ter influenciado muito na traição
de Cássio.
– Não, tudo bem, querida, eu sei me virar sozinha –
falou da melhor maneira que pôde.
Débora levantou as mãos como se se rendesse e foi para
a sala de jantar, acompanhar os homens, humpf. Adri ficou
parada na sala por algum tempo, observando a rua pela janela.
Então foi direito para a cozinha, onde só precisava jogar
algumas coisas nas panelas. Deveria ter comprado veneno de
rato, para dar um sabor a mais.
Subiu para o quarto e se arrumou um pouco, penteou os
cabelos o melhor que pôde, até que estivessem tão lisos quanto
os de Rapunzel. Que melhor maneira de mostrar ao marido o
erro que estava cometendo se não ficar tão mais bela do que a
mulher que estava fodendo? Não era a mais inteligente,
tampouco a que possuía um trabalho descente (Débora
trabalhava com algo relacionado a editoras também, o que
apenas piorava as coisas), mas, ah, era tão bonita. Tantos anos
cuidando da aparência não foram gastos à toa.
Foi Cássio quem uma vez a chamou de narcisista,
apenas brincando, mas havia uma ponta de verdade naquela
piada. E foda-se. Ela era. Tão narcisista quanto poderia ser.
Não fora criada numa escola como a de Cássio ou tivera pais
como os de Cássio ou tivera amigos como os de Cássio.
A escola, os pais, a vida que tiveram fora bem diferente.
Não era um homem para se dar bem na vida, e todos fizeram
questão de lembrar-lhe disso sempre que podiam. Então como
uma mulher consegue algo? Apenas pela beleza, por enquanto.
Agora não eram mais os anos 80. Era pleno século XXI
e ela ainda pensava dessa maneira. Verdade seja dita, era pleno
século XXI e o mundo ainda era dessa maneira.
– É o pau branco que controla o mundo – dissera Carla
uma vez, num desses almoços rápidos em frente à empresa.
Século XXI e ela não era a única que pensava dessa
maneira, pois era a verdade absoluta. Mas foda-se. Agora não
tinha tempo para feminismo, precisava dar uma lição na puta
que estava transando com seu marido. Será que ainda precisava
de provas? Seu consciente achava que sim, mas sabia que, dada
a oportunidade, arrancaria aquele cabelo vermelho num piscar
de olhos.
Quando desceu de volta, notou que Cássio já estava
levando arrumando a comida na mesa de jantar. Débora o
ajudava com um olhar de culpada.
– Espero que não se importe, mas eu simplesmente não
consigo ficar parada sem ajudar. E a ideia foi dele! – apontou
para Cássio, que a olhou com a boca aberta numa surpresa
fingida.
– Sua dedo-duro – empurrou o ombro de Débora, ela
riu. – Desculpa, mas estamos todos com fome e você estava se
arrumando, então...
– Não há problema – ela disse sorridente numa voz
amistosa. Passar maquiagem sempre a dava uma máscara para
mentir melhor. – Devemos comer, então?
– E por que não? – perguntou Ricardo. Todos sentaram
à mesa.
Cássio foi o primeiro a se servir, então Adri, então
Débora, então Ricardo. Ficaram em silêncio por um total de um
minuto.
– Como anda aquele livro? – Débora perguntou para
Cássio, estava sentada de frente pra ele.
– Livro? – perguntou Adri.
O marido encolheu na cadeira.
– É, eu estou escrevendo alguma coisinha – admitiu. –
Ele está andando, como sempre. Mas ainda não cheguei na
metade, tenho muito trabalho.
– Por que não me disse? – perguntou.
– Bom, eu não sabia se ficaria bom ou mesmo se eu
terminaria de escrevê-lo. Sou um revisor, não um escritor!
– Bobagem – Débora deu ênfase à palavra. – Aquela
partezinha que você me mostrou estava ótima, estou
ansiosíssima para ler o resto.
Na mão de Adri, o aço do garfo começava a fazer a pele
arder.
– Mesmo que eu o termine, ainda há a questão da
editora. Não é apenas porque trabalho lá que irão me aceitar.
– Se não te aceitarem, pode me mandar o PDF que eu
imprimo o jogo o manuscrito por todo canto da cidade.
Ela não trabalhava numa editora, Débora era uma
agente. Claro, era isso. Foi apenas por isso que ele a mostrou, é
por isso que estavam conversando tanto nos últimos tempos.
Adri esboçou um sorriso genuíno.
– Eu agradeço sua generosidade – Cássio disse e tomou
um gole do vinho. – Mas eu duvido muito que as editoras
confiariam nas palavras de uma designer.
Merda.
– De todos os modos, eu posso tentar – ela disse e olhou
para o marido de Adri com um brilho nos olhos e um sorriso
safado na boca.
De relance, percebeu que Ricardo também encarava
Débora e Cássio da mesma forma que ela. Então ele também
desconfiava. Claro, quando seu marido começa a sair muito
com uma mulher, depois de uma semana você começa a
desconfiar que há algo a mais aí. Quando sua mulher começa a
sair muito com um homem, depois de uma hora você já está a
esperando com aquele olhar maligno. Se Ricardo era um
homem que batia em mulheres, Adri não sabia, mas se
estivesse em sua posição e fosse, sua esposa não estaria tão
sorridente quanto Débora estava. Mesmo assim, todos os
homens são susceptíveis a isso, apenas basta apertar o botão
correto.
No caso de Cássio, era quando ele a encarava com seus
olhos escuros e a boca bem apertada. Mas Cássio tinha um
cérebro, e um dos bons. Em todos os casos, ela nunca se
esquecera daquela uma vez em que viu a vontade em seus
olhos. E ele chegou a levantar a mão, bem pouquinho, mas
levantou. Adri já não se lembrava o que o deixara tão nervoso,
deletara isso da mente, mas aqueles olhos... Aquela cara
vermelha e aquela boca tremendo para não chamá-la de algum
nome que depois se arrependeria.
E ele se arrependeria. Ela sabia. Podia ter um limite,
mas não era um homem desses. Tinha um cérebro, como já
disse. Se a batesse, passaria o resto do ano compensando por
aquilo, não por ela, mas por ele mesmo. Não conseguiria viver
direito se não a compensasse por tudo o que fizera.
Ultimamente, ela queria que ele a batesse. Batesse tanto
que nunca mais passaria um dia sem pensar em como a deixar
feliz e compensar pelos machucados. E era apenas Cássio,
magrinho e sem músculos, quanto estrago poderia fazer?
Deixa de ser idiota, Adriana.
Ricardo não falou nada durante o jantar. E Adriana
também falou muito pouco. Débora e Cássio conversavam
tanto que a algum momento a saliva acabaria e um deles cairia
de cara no prato. Mas tinha vinho, eles bebiam de vez em
quando, e os companheiros bebiam sem parar. Como bêbados
sozinhos num bar. E um bêbado não consegue se controlar
perto de álcool.
Quando o vinho bom de Ricardo acabou, eles passaram
a beber o outro. A mudança de gosto e patamar foi sentida no
primeiro gole. Contudo, aquela garrafa acabou também. E
quando o último gole foi bebido, decidiram que era hora de
acabar o jantar. Pelo menos aquela parte dele.
– Eles estão fodendo, não é? – ouviu as palavras sujas
vindo da voz de locutor. – É óbvio. Não parecem nem mesmo
quererem esconder, dispõem os sinais como se fossem
medalhas de honra. Até mesmo o Inspetor Bugiganga os
perceberia.
Estavam na cozinha, só os dois. Cássio e Débora
estavam na sala de estar, era afastada o suficiente para que
conversassem despreocupadamente.
– Eu acho que estão – Adri disse.
– Acha?
Ela não respondeu.
– Tudo bem – ele cedeu. – Acha. Mas eu tenho certeza,
lamento dizer.
– Lamenta por mim? É a sua mulher!
– E o seu marido!
– Você ao menos a ama? – perguntou sem ligar se
estava sendo intrometida demais. Seus cônjuges estavam
transando, então não lhes dava uma certa intimidade?
– Não exatamente. Você?
– Acho que sim, pelo menos algum dia. No começo.
– No começo tudo é belo, tudo é harmonioso. Você
acha muito as coisas.
– É uma mania – sorriu. Havia decidido antes que
lavaria a louça para voltar a ocupar a mente, agora não sabia o
quão desarrumada estava em comparação a antes, à mesa.
Levou a mão ao cabelo.
– Você está maravilhosa – Ricardo disse, a voz um tom
mais baixo. – Não comentei nada antes porque achei que seria
indecente. Se eu ao menos soubesse o que aqueles dois fariam
na nossa frente...
– Não é como se eles tivessem feito algo, apenas
conversam.
– A conversa é o que faz um entrar em contato com a
alma de outro... Ou alguma merda do tipo, não me lembro
direito.
– Se vai ficar aqui, pode me ajudar – disse com
autoridade e jogou-lhe um pano para secar os pratos.
Ricardo agarrou o pano e se aproximou com passos
firmes. Pegou um dos pratos e passou a secá-lo sem muita
habilidade, mas Adri não disse nada.
– É engraçado que não tenhamos nos falado muito,
especialmente considerando que... – apontou com a cabeça
para a sala de estar.
– E nós somos vizinhos. Nada mais normal vizinhos
conversarem. Pelo menos até certo ponto.
– São as coisas da vida. Nós andamos sempre muito
ocupados, são os dois ali que sempre acham um tempo para
conversarem.
– Ainda assim, temos os finais de semana.
– Amém – brincou Adri. – Não sei o que seria da minha
vida se tivesse de trabalhar de segunda a segunda.
– Bom, eu sei que viraria um zumbi. Mesmo sem ter
muito trabalho para eu fazer, não aguentarias as reuniões.
Todos com aquelas vozes, e ainda tem aqueles que são tão
jovens que nem deveriam estar lá. Não sei se sou eu quem
envelhece rápido demais ou eles que são estilo Benjamin
Button. Meu acionista mais novo ainda não chegou aos 20.
O barulho de risadas se aproximava. “Eu sei, adoro os
filmes dele.”
– Ei – alertou Cássio. – Alguém afim de ir ao cinema
amanhã?
– Amanhã é domingo.
– Eu sei, Adri, mas o cinema fica aberto nos finais de
semana. Se fosse comigo, saberia.
– O que irão ver? – perguntou, não comentou o fato de
que ele nunca a convidara.
– É uma ficção científica daquele cara que te falei...
– Nem adianta terminar a frase – interrompeu. – Você
sabe que eu odeio ficção científica.
– Ela não gosta de Star Wars – ouviu Cássio sussurrar
no ouvido de Débora, que fingiu uma surpresa.
– E você, amor?
– Não sou exatamente um fã de filmes, você sabe disso.
Débora pareceu estar legitimamente deprimida com a
resposta.
– Então acho que é só a gente – ela concluiu para
Cássio.
– É... – ele disse com uma pontada de decepção na voz.
– Você tem uma camiseta da franquia? Não podemos ir sem
uma!
– Toma-me pelo, que, moleque? É claro que eu tenho.
Cinco, na verdade – falou com humor, a alegria dos dois
voltara rapidinho.
O rosto de Cássio se iluminou.
– Você precisa ver uma que eu tenho! – ele a puxou
pelo pulso ela soltou um gritinho. Então desapareceram.
– Parecem adolescentes – disse Ricardo, com uma
expressão de nojo que Adri conhecia muito bem.
– Tenho a leve impressão de que eles já sabiam que não
iríamos.
– Leve? É claro que sabiam. Débora sempre soube que
odeio cinema, e tenho certeza de que Cássio sempre soube que
odeia ficção científica.
Adri concordou. Perceber que os dois pareciam ótimos
atores dava-a não apenas repulsa, mas um ódio indiscutível.
– Filhos da puta.
– Nem me diga – disse Ricardo, e pegou outro prato
para secar.
Na tarde de domingo, Cássio já estava se arrumando. Ele vestiu
aquela camiseta tão importante. E às três horas saiu de casa e
passou na dos Owens para pegar Débora, o cinema ficava um
pouco longe do subúrbio onde moravam e precisariam ir de
carro. Tivessem outro, Adri até mesmo poderia considerar
segui-los, de longe, apenas para ver onde iriam. Mas acreditava
que era provável que fossem para o cinema. Saber se iriam ver
o filme, no entanto, era impossível.
Em todos os casos, essa possibilidade estava fora da
mesa. Então ela ligou a televisão e planejou ficar enterrada nas
cobertas o resto do dia, até que Cássio voltasse. Percebeu que
precisava gritar com alguém, e quem melhor que ele?
Arranjaria uma desculpa ou então o confrontaria sobre os
tantos encontros com Débora, mas pensava que, se não gritasse
com alguém, era capaz de explodir de tanto ódio.
E gritar ajudava. Ajudara sua mãe sempre que estava
nervosa, e tal mãe tal filha, é como dizem.
No fim das contas o plano de se enterrar nas cobertas
não deu muito certo. Veja, era um dia de calor e, após alguns
poucos minutos, já havia chutado tudo o que estivera usando
para se cobrir até a ponta da cama. Enquanto um Hugh Laurie
muito louco diagnosticava pacientes na televisão, ela tirou
todas as suas roupas e vestiu uma camisola (apenas por conta
daquela maldita janela com as persianas emperradas na
cozinha).
E a janela ainda estava lá, com o vidro fechado, mas
sem nada para impedir os vizinhos bisbilhoteiros de darem uma
olhada para dentro da casa. E embora Adri não estivesse
propriamente vestida, também não estava nua; aquilo já
bastava. Os vizinhos daquele lado eram os Mercedez, e eles
não eram muito incomodativos, com exceção do pastor alemão
que, nas madrugadas que passava latindo, Adri queria esmagar
como se fosse a Alemanha de antes de 45.
Um saco de pipoca até então evitado foi para o microondas. Enquanto esperava escorada na mesa da cozinha, ouviu
um barulho que se perdeu pela casa logo depois. Ouviu as
batidas na porta na segunda vez, e embora tenha pensado em
subir rápido e pegar um casaco para se cobrir, acreditou que
estava decente o suficiente para responder a um vendedor ou
Testemunhas de Jeová.
Se bem que, por conta das curvas e das partes íntimas
mostradas sutilmente na camisola opaca, as Testemunhas
provavelmente sairiam correndo.
Quem estava do outro lado da porta, com uma
expressão de culpa e esperando com paciência, era o vizinho.
– Ricardo! – ela disse. – O que faz aqui?
– Vim à procura de ajuda – ele levantou uma xícara
preta. – Açúcar!
Ela abriu a porta e ele deslizou para dentro.
– É incrível a quantidade de ingredientes que podem
sumir quando se está com vontade de tomar um açucarado suco
de laranja – ele comentou, seguindo Adri para a cozinha.
– Essas coisas sempre somem quando se precisa. Vocês
não têm adoçante?
Ele pensou por um segundo.
– E desde quando adoçantes são tão bons quanto essas
migalhas doces?
Adri pegou a xícara e a enfiou num grande pote bonito
onde se dizia justamente o que lá estava: “Açúcar.”
– O que você está fazendo? Sabe... enquanto aqueles
dois estão...
– Assistindo a um seriado – respondeu, e percebeu na
hora o quão engraçado era aquilo. Seu marido a traindo com a
maldita vizinha e ela calma; e a mulher o traindo com o vizinho
e Ricardo queria beber um suco de laranja.
Acho que sim, pelo menos algum dia. No começo.
– Aqui está!
Ricardo pegou a xícara e a colocou sobre a mesa.
Encarou Adri bem naqueles grandes olhos azuis-escuros.
– Ele não a aprecia o suficiente – falou após um longo
tempo, Adri ficou sem fôlego.
– E qual homem aprecia a mulher que tem? – ela
brincou, o coração se debatendo.
Ele sorriu e mostrou aqueles dentes que o dinheiro
ajudou a manter brancos e ajudaria pelo resto dos tempos.
– Mas você não deveria ser tratada assim. Ser olhada
como se fosse ninguém quando, na verdade, é a mulher que
todos deveriam notar – ele continuava a encará-la; Adri queria
desviar o olhar, mas não conseguia.
Os olhos dele eram os mais simples de todos, castanhos,
mas ainda assim interessantes. Ela só notou que as mãos de
Ricardo estavam em sua cintura quando ele começou a puxá-la
para perto de si. Eram mãos grandes e pesadas, e a sensação era
boa. Claro que era, àquela altura do campeonato, após um mês
de abstinência, até as mãos do boneco do McDonald's a
excitariam.
– Nós não deveríamos – ela conseguiu dizer e engolir
uma saliva dolorida.
– Eu sei que não – ele confessou –, mas, não é o mais
justo a se fazer? Eles nos traem, nós retribuímos. E não é
questão de vingança ou ego, é apenas... uma vontade de se
sentir apreciado por outra pessoa. Você não sente isso também?
Ela sentia.
– Não.
Quando ela chegou perto o suficiente, ele desceu as
mãos da cintura para o seu traseiro. Ela soltou um gemido que
não conseguiu evitar e pôs as mãos no ombro de Ricardo para
afastá-lo, mas até elas a traíram. As mãos agarraram seus
ombros, sim, mas não o empurraram; puxaram-no.
– Tem certeza? – ele perguntou
– Não – repetiu.
Ele se aproximou de modo cada vez mais lento, e no
fim foi Adri quem o beijou, pois não conseguia mais esperar.
Ricardo a fizera querer aquilo que antes nunca pensara em
fazer. O homem era musculoso, e seus dedos sentiam os
músculos. Ele a levantou e ela prendeu seus pés em sua cintura.
Fosse Cássio, teriam os dois caído ali naquele instante.
Mas aquele não era Cássio, nem um pouquinho. Cássio nunca
faria aquilo, não daquela maneira. Mas parecia que cada
homem tinha seu jeito de conquistar uma mulher. Sem
fraquejar, Ricardo a levou escada acima e a jogou na cama, o
resto das cobertas caíram para o chão. Depois que ele havia
puxado sua camisola, esperou-o deitada.
Dizer que se arrependeu seria não apenas exagero, mas também
uma grande mentira. Agora estava só, Ricardo fora embora
alguns momentos antes. Ela continuava deitada na cama, nua e
observando o branco do teto. Um mês, e agora podia ver com
clareza.
Ficou deitada por meia hora, naquele estado. Então isso
dava três horas. Qual é, fora um mês.
Quando ouviu o barulho da porta novamente, levantouse, foi ao banheiro limpar o abdômen, e vestiu algumas roupas
claras e próprias para o verão. Cássio estava sozinho.
– Como foi o filme? – ela perguntou com um sorriso no
rosto.
– Excelente – ele disse com outro sorriso. – Uma pena
que você não foi.
– Você se divertiu, eu me diverti. Creio que tudo esteja
em equilíbrio agora.
– Divertiu-se? Com o que?
– Pus algumas séries em dia. Trabalho tanto que deixei
de acompanhá-las.
Ele foi até a cozinha.
– Bom saber que não ficou apenas sentada me
esperando – brincou. Ele pegou de sobre a mesa uma xícara
preta cheia de açúcar e a esvaziou no pote.
– Pensei em fazer um bolo, mas depois perdi a fome. Se
estiver afim...
– Não, já comi o suficiente por hoje – no outro
gramado, Adri acreditava que Ricardo diria o mesmo.
Na cama, a libido falou mais alto. Enquanto Cássio
escrevia seu livro no computador, Adri se aproximou, e a mão
foi descendo. Ele sorriu, agarrou-a, e a pôs de volta sobre a
coberta.
Adri se virou, desligou a luz e dormiu. Cássio
continuou escrevendo por algum tempo.
Na segunda, depois que Adri voltou para casa e Cássio ainda
estava no trabalho, Ricardo foi visitá-la. Não chegaram ao
quarto, fizeram no sofá.
– Vocês precisam jantar na nossa casa sexta! – disse Débora
pelo telefone.
– Não sei se vai dar muito certo, sabe como é, o
trabalho e tudo mais... – Adri respondeu.
– É claro que eu sei, eu também trabalho, Adri – ela riu,
uma risada e voz que se tornava cada vez mais irritante. – Mas
creio que agora seja a nossa hora de retribuir o favor.
– Vou fazer o possível para que possamos ir, mas não
prometo nada!
Ela não queria fazer o possível, mas teria de contar para
Cássio, e ele faria o possível para ir. Essa conversa se sucedeu
na terça-feira, duas horas depois de Ricardo ter voltado para
casa. Eles se encontravam todo santo dia. A rotina de Débora e
Cássio eram tão perfeitas que dava para os dois amantes tempo
de sobra para se fazerem companhia.
Adri contou a Cássio na quinta-feira de manhã, e o
marido aceitou no mesmo instante. Contrafeita, transmitiu a
mensagem para Débora algum tempo mais tarde. E na sextafeira eles foram para a casa dos Owens.
Simples. Aham, sei.
Modesta. Senta lá, Cláudia.
Podia não ser uma mansão, mas era absurdamente
bonita. As paredes eram muito brancas, com um papel de
parede quase imperceptível, e os móveis não eram apenas
bonitos ou combinavam com o lugar; eles eram de ricos.
Não, eles não eram sofás feitos de caviar, era apenas... a
aparência. Tinham aquela estrutura quadrada alguns e a
curvada outros (como os vasos inúteis, havia um púrpura sobre
uma mesa de vidro). Era essa estrutura que os dava a aparência
rica e fina que tinham.
Malditos. Mas, lembrou-se, fazia amor regularmente
com o dono daquele casarão. Sentiu-se um pouco melhor por
lembrar que Débora não era uma mulher feita na vida. Ela
podia possuir o homem, mas todos sabem que homem só pensa
com uma das cabeças. E ela possuía a outra.
Os dois estavam na cozinha, ainda mais branca que a
sala (ou o hall de entrada, como Débora diria) e com móveis
ainda mais luxuosos, embora aqueles Adri não soubesse
explicar. Mas sabia que eram caros, só podiam ser; qual é o
rico que compra coisa barata, afinal?
Adri fora com um vestido preto e curto, aquela noite
estava quente o suficiente para isso. Arrumara-se bem, não
seria errado mostrar a Ricardo a diferença entre ela e a esposa.
E não faria mal mostrar a Cássio a mesma coisa novamente.
A mesa era de vidro, retangular e de pernas pretas e
curvadas. A geladeira era quadrada, o fogão também. Débora
estava em frente ao fogão, não tão arrumada quanto no dia em
que jantara na casa de Adri. E Ricardo estava como sempre
estava, sem tirar nem pôr. Cássio não estava muito diferente,
com um jeans e uma camiseta branca. Certamente, o conjunto
ficava melhor em Ricardo.
Débora levou a comida para a mesa e Cássio novamente
a ajudou, antes mesmo que Ricardo pudesse se oferecer.
Embora fosse difícil dizer se ele iria mesmo se oferecer.
Cada coisa tinha o seu lugar, e levou demasiado tempo
até que tudo estivesse posto corretamente. Quando começaram
a comer, o arroz já estava frio. A carne estava dura. E a alface
parecia folha de árvore.
Ou então talvez fosse apenas Adri quem pensava isso.
Comeram sem dizer uma só palavra, e desta vez foi
assim o resto do jantar. Tudo o que se ouvia era o mastigar
numa sincronia impecável.
– Você ainda quer o livro emprestado? – perguntou
Débora para Cássio após terem jantado.
– Livro? Ah... Sim! Se você já terminou de ler, sim.
Pretendo começar hoje mesmo, se possível.
– É interessante – ela disse. – A narração, os diálogos.
Talvez ele te ajude a escrever o livro, não está passando por
uma cena difícil?
– Todas as cenas são difíceis até que sejam escritas.
– Em todos os casos, eu já o terminei. Ontem mesmo.
Levei apenas dois dias, e olhe que possui mais de setecentas
páginas. É uma boa história e a autora é incrível, então a
combinação dessas duas coisas resultam numa leitura rápida.
Mas você já deve saber disso.
– Sei – ele concordou. – Mas não importa quantos
livros eu leia, eles sempre conseguem me surpreender
novamente.
– Venha, me ajude com isso aqui, e depois eu o entrego
para você, antes que nos esqueçamos.
Enquanto os dois conversavam, Adri e Ricardo
continuavam quietos e entediados. Débora e Cássio pegaram os
pratos e foram para a cozinha, imitando perfeitamente ao
contrário o que acontecera no outro jantar. Desta vez eram Adri
e Ricardo que estavam sozinhos na sala de estar.
Percebendo isso e notando a mão do vizinho sobre sua
coxa, Adri se perguntou o que teria ocorrido no outro dia. Será
que eles haviam transado na casa? Cássio não seria assim tão
desrespeitoso, seria? Então lembrou-se, é claro, se já estava a
traindo com a vizinha, quão mais errado seria trair a esposa na
própria casa em que ela morava?
E depois Adri fizera o mesmo, na própria cama do
casal. Deveriam estar quite, mas seu cérebro não pensava dessa
forma. Ela não queria estar quite, ela queria estar no topo. Em
todos os sentidos possíveis.
Adri tirou a mão de Ricardo de entre suas coxas e se
dirigiu até a cozinha, mas não entrou. Ficou na porta, sem ser
notada. Débora lavava e Cássio secava, eles não paravam de
conversar. Débora o passou um dos copos, o pano passou por
dentro e então por fora, no fim ele perguntou onde guardá-lo e
ela o apontou o armário onde ficavam os copos.
Tendo certeza de que estariam sozinhos por um longo
tempo, ela voltou para a sala de estar e sentou no colo de
Ricardo, de frente para ele. Beijou-o com cuidado. Embora a
respiração acelerasse e a necessidade de oxigênio crescesse, ela
controlava os sons que fazia.
Num certo ponto, Cássio dissera que adorava o som de
sua respiração apressada, e também dos muitos gritos que
soltava enquanto na cama. Depois desse dia ela exagerou,
fizera tudo do modo que ele dissera gostar, e ele adorara isso.
E Ricardo dissera a mesma coisa naquele dia em que
aparecera na porta da casa de Adri. Embora desse seus notórios
gemidos apenas para os seus homens, sabia que isso era algo
dela. Então ficar em silêncio enquanto na sala de estar da casa
de Ricardo fora difícil, mas não impossível; e também foi
difícil não fazer nenhum barulho enquanto puxava o zíper da
calça dele.
Ricardo agarrava a parte de trás do vestido de Adri, e
logo a mão não se contentou em ficar no exterior. Ela
desabotoou sua calça e pôs nela sua mão direita. Sentiu-o
levantar seu vestido até acima da sua cintura, o frenesi que
sentia aumentava com rapidez. Enquanto sua mão preenchia o
membro de Ricardo, ele movia seus dedos habilidosamente.
Em um minuto já estava cega para o resto do mundo.
Percebeu que não fazia aquilo apenas para se vingar de Cássio,
fazia aquilo porque a excitava, porque mexia com seu cérebro
de um modo diferente, mas conhecido. Era uma forma de
paixão primitiva e que poderia crescer, do modo que amara
Cássio no início. Era a mesma sensação que sentira naquele
dia, quando ele apareceu no apartamento que dividia com uma
colega com uma rosa na mão e muitas camisinhas no bolso de
trás.
Sua exaltação parou quando ouviu o barulho de
porcelana se estilhaçando. Num ato súbito, Ricardo a jogou
para longe de si e Adri pôs a calcinha e o vestido no local. O
homem pôs seu amigo para dentro e abotoou as calças, o
barulho do zíper quebrou o silêncio. Débora e Cássio estavam
lá, e embora ambos mostrassem suas caras perplexas, apenas
Débora chorava, com os cacos em seus pés.
Foi Cássio quem falou, com uma voz monótona e
comum, mas Adri fora casada com ele por tempo o suficiente
para ouvir o grito e o ódio interior.
– Nós não temos xícaras pretas.
– Cássio, eu... – começou Ricardo.
– Eu estou segurando uma faca, então se fosse você
calaria a merda da minha boca.
Adri não disse nada. Cássio passou as mãos nas costas
de Débora e, debulhando-se em lágrimas e gritos sonoros, ela o
abraçou com dificuldade.
– O que é que eu fiz para merecer isso? – ela perguntou
com a cara enterrada no ombro do amigo.
Cássio pusera a faca na mesa e encarava Ricardo.
– Eu o deixei entrar na minha casa – disse. – Jantamos
juntos, conversamos... E você estava transando com a minha
mulher por todo esse tempo – ele riu sem vontade, Débora se
desvincilhou. – Seu grande pedaço de merda.
– Não foi – Ricardo começou. – No dia da janta, nós
não estávamos...
Para um homem musculoso e grande, ele caiu muito
fácil. Derrubado no sofá, encarou Cássio com um lábio
sangrento.
– Seu desgraçado filho da puta, eu vou te matar! –
gritou, e se jogou sobre Ricardo, dando-lhe murros fortes
demais para um homem tão fraco.
Logo o sangue preencheu todo o seu punho, e Ricardo
não revidara nenhuma vez. Não conseguia, Cássio o
impossibilitara.
Adri demorou tempo demais para agir. Quando puxou
Cássio de cima de Ricardo, o vizinho já estava com o rosto
escorrendo vermelho. Ele cuspiu sangue no tapete branco.
Cássio saiu e bateu a porta com força.
Débora continuava parada, em choque.
Ela encarou Adri com olhos inchados, não parara de
chorar. Vê-la chorando já era difícil, e o som da dor que sentia
ao engolir a saliva e do grito que precisava sair de dentro de si
deixava tudo pior. Em pé, encarando-a de volta, Adri se sentiu
como uma puta, como a destruidora de casamentos.
Aquelas lágrimas eram dolorosas demais de se ver, e
saber que vinha de uma pessoa... inocente... deixavam-nas
ainda mais agressivas aos olhos. Desviou o olhar, encarou o
sangue no tapete macio. E percebeu a ironia da vida; nada era o
que parecia ser. Ricardo não fora forte o suficiente para encarar
Cássio, e Débora não estava fazendo amor com o marido de
Adri. Entendia isso agora.
Quem trai não se surpreende quando está sendo traído,
assim como Adri levara apenas uma agulhada no ego. Mas
nunca antes traíra Cássio, tampouco pensara nisso. E então os
papéis do universo mudaram.
O rosto ardeu com o tapa que a sombra rápida lhe deu.
Débora a encarou naqueles perfidiosos olhos azuis-escuros
com vontade; seu queixo tremia. E então ela saiu pela porta
também. Deu para ouvir o barulho do seu correr nas pedras.
Ricardo cuspiu novamente no chão, e encarou Adri uma
última vez antes de ir para o banheiro se limpar. Aquele olhar
não era amigável ou choroso, ele apontava culpa. Olhou-a
como se a culpa de tudo fosse dela; como se ele não a desejara
também. Era um olhar furioso, mas a boca não estava
contraída.
Ele parou no meio do caminho e voltou. Com o forte
tapa que ele a deu, descobriu como era o seu olhar. Só que ele
não segurou sua mão, não tinha vontade de não machucá-la. Na
verdade, esse era o seu desejo, o desejo naqueles olhos
castanhos. Ele queria bater mais, ela entendeu, e saiu da casa
antes que ele votasse do banheiro, com o rosto limpo e cheio de
feridas.
Ela se demorou do lado de fora da casa, andando pela rua. Não
tinha o que fazer, ou o que pensar, tinha um descontrolável
desejo de sumir, ou então de não sentir mais emoções. Teria
removido seu coração se conseguisse, mas isso não adiantaria
muita coisa.
O problema era cerebral, não cardiovascular. Devia
haver algum hormônio sendo liberado que a deixava daquela
maneira, completamente podre.
A calada da noite foi invadida pelo latido de um pastor
alemão. Parada em frente à casa dos Mercedez, e encarando o
cachorro, o ouvido estourava a cada ladro. Calmamente, e sem
desviar daqueles olhos negros e da boca aberta e cheia de
dentes afiados, ela se agachou. Pegou da rua de chão uma
pedra que preenchia toda a sua mão. Jogou-a no cachorro com
toda a força que tinha, e ele gemeu de dor, encolheu-se em seu
canto e se protegeu, deprimido. Adri não parou. Apenas deixou
de jogá-lo pedras quando viu a luz se ligar num dos quartos da
casa; enfim os lamentos do cachorro acordaram alguém.
Com os olhos ardendo, ela voltou para a casa que talvez
não devesse mais considerar sua. Cássio não estava em parte
alguma. No quarto, o armário estava aberto, assim como a
estante de livros mais vazia e a de DVDs completamente vaga.
No banheiro, o armário atrás do espelho estava sem uma das
escovas de dentes. Na cozinha, uma xícara preta estava
estilhaçada no chão.
Adri tirou o salto alto, deixou-o na sala de estar. O
branco da cozinha parecia mais cinza aquele dia, podia ser
porque apenas a luz da sala estava ligada, e a luz da lua, vindo
da maldita janela, iluminava aquele pedaço do chão de granito.
Ela pisou com força no caco da xícara, sem sentir nenhuma
dor, e só parou quando viu o sangue. Punir-se não adiantaria
nada, mas a ajudaria, e pelo menos seu cérebro agradeceria.
Percebeu que sentira a dor, e a absorvera com vontade.
Mas depois, enquanto andava pela casa, ela voltou. Para trás, o
sangue deixava um trilho que levava ao quarto do antigo casal.
Manchou o lençol branco por um longo tempo, e depois que se
levantou rasgou o vestido que usava, e a calcinha também. A
maldita roupa a lembraria dele pelo resto da vida, mas podia
conviver sem ela por o quanto de tempo isso poderia ser.
Talvez mais sessenta anos, ou minutos.
Eram três da manhã de uma quarta-feira qualquer. O convite
branco estava sobre a mesa da cozinha, aberto. Ele dizia que
Débora Owen viraria Débora Garcia, assim como Adriana
Boaventura deixara de ser Adriana Garcia. A mudança
acontecera dois anos atrás.
Ricardo já não morava na casa ao lado, e ela
permanecia vaga. O homem fora para o centro da cidade, onde
ficaria perto da sua empresa; e prosperava. Isso era o pior, ele
não ficara uma merda depois de tudo o que aconteceu, e
Adriana sim. Tivera uma conversa com o homem uma semana
depois do ocorrido.
– Você? – ele perguntou com um humor furioso. – Eu
não ligo para você, Adriana. Eu a comi porque pensei que seu
marido estivesse fodendo minha mulher, era apenas uma
vingança para mim mesmo, e comer uma gostosa era apenas
um bônus. Agora eu estou solteiro e com uma mulher que quer
metade das minhas coisas, você percebe que transformou
minha vida numa merda? Saia da minha casa antes que eu lhe
bata ainda mais, faça isso para o seu próprio bem, sua
vagabunda.
– Pelo que me lembro, o seu pau também teve uma
importância em deixá-lo divorciado – atreveu-se a dizer, a fúria
que sentia era mais forte que a razão.
Ele não respondeu àquilo, apenas falou algo que
permaneceu com Adriana pelo resto da vida.
– Apenas precisei falar algumas frases bonitas e suas
pernas abriram. Você não resistiu nem um pouco, Adriana,
então não me culpe pela sua vida inútil. Pelo menos eu tenho
ainda um propósito para viver, minha empresa; e você, tem
algo? Por que ainda está viva, Adriana?
Agora ela não parecia viva, com olhos caídos e a pele
em torno deles escura, o cabelo antes vivo agora era da cor e
textura de palha.
Ela pegou uma cadeira e sentou na varanda, de
madrugada. A mão doía por conta de alguns cortes, e levantar o
assento foi doloroso, mas por fim pousou-a nas tábuas em
frente à casa, e olhou para a escuridão da noite. O coração
parecia não bater como deveria. No convite havia uma coisa,
algumas palavras simples: “Apesar de tudo, não desejo
inimizade”, o famoso escritor escrevera ele mesmo, com sua
característica letra feia.
Chegara naquele mesmo dia, pela manhã, mas Adriana
não teve coragem de abri-lo até a madrugada, pois sabia o que
ele teria. As fotos de pessoas sorridentes dentro impressa no
papel pareciam ter sido postas lá justamente para fazerem ela
se sentir mal. Seu estômago embrulhou.
Começou a chorar novamente, com o ar frio batendo em
seu rosto e congelando suas lágrimas. O coração estava
contraído e os pulmões não funcionavam corretamente. Teve
vontade de vomitar, mas nada veio à boca além de uma saliva
pegajosa e excessiva.
No pátio dos Mercedez, o dobermann começou a latir,
como fazia todas as noites religiosamente.