Clique aqui para ler a revista Chicos - Edição Julho 2009

Transcrição

Clique aqui para ler a revista Chicos - Edição Julho 2009
Vicente Costa
Chicos
21
Julho
2009
Ano do centenário de
Francisco Inácio Peixoto
Veja a nossa poesia em:
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Um dedim de prosa
Apesar do quase silêncio da cidade que,
graças a ele respirou ares de modernidade,
continuamos aqui a homenagear ao nosso modo
– com a poesia dele – o centenário de Chico
Peixoto. Perdemos mais um artista fundamental,
achamos até que já o esqueceram. Ficamos sem
Augusto Boal falou e fala-se muito pouco dele.
Neste mês de julho perdemos um amigo que nos
criticava, apoiava e estimulava muito aqui no
Chicos. Falamos de Alaôr Valério Junior, amigo
lá dos tempos do Colégio Cataguases (época do
Chico Filho) grande nadador do team do Moacir
Barbosa. Lôlô a estas horas já deve estar, junto
com Ronaldo de Melo, desenferrujando o francês
com Dona Ofélia. Dedicamos a ele este número.
E eles e elas giram,
giram as flores dos cabelos,
palavrões e giram os copos
e no Bar 49,
em torno de teu retrato
Gira, gira, gira tudo,
gira em torno do gigante,
que me acarinha e sorri.
Gira o bar e gira a Lapa,
gira orquestra, gira a vida,
giragirando por ti.
Em São Paulo, havia noites
e tu ficavas no bar.
Luís Saia e os rapazes
conversadinho contigo,
eu ficando a te escutar.
Dois bares giram enlaçados
Será triste o Franciscano,
será deserto sem ti.
Osvaldo, Iglesias, Fernando,
Nunca mais beber ali.
*Francisco Inácio Peixoto
As amarguras se encontravam,
somos três pensando em ti.
Eu desenho o teu retrato
no pano sujo e rasgado
que cobre a mesa do bar.
Oto, Carlos, Pelegrino,
Dantas Motta, Rubião
Figueiró, Paulo e Jair,
Clemente, Ernande, Bueno
Luiz Saia, irmãos pequenos,
Não mais beber ali não
(17.03.1945)
17.03.1945) publicado em “O Jornal – 08/04/1945
Os músicos derrotados
tocam coisas muito tristes.
Se a noite não fosse aqui,
talvez fizessem chorar.
A lembrança vai crescendo
com as rodelas do chope,
Se derrama pelas mesas,
Sobre as mulheres sem dentes,
Sobre os homens sem amor.
*Francisco Inácio Peixoto (05.04. 1909 – 08.01.1986) Autor de Meia Pataca, com
Guilhermino César - Dona Flor, Passaporte proibido, A janela, Erótica e Chamada
geral
O brilho lírico na poesia de Eduardo Dalter
*Wilson Pereira
O poeta argentino Eduardo Dalter pertence a essa família, cada vez mais reduzida, dos poetas
genuínos. Li apenas dois livros seus (Las Costas Del Golfo, 1995, e Mareas, 1997), mas o suficiente para
apreender a riqueza imagística e as sutilezas semânticas em seus poemas.
O poema, como objeto de arte, tem de causar no leitor a surpresa, o espanto, o encantamento, o impacto
estético. E isso se obtém com metáforas e ritmo. Quanto mais refinado, mais sutil e mais sugestivo o
tecido metafórico, mais rica e eficaz se mostra a carga poética que acende os textos. A poesia é como
aragem fresca e perfumosa que evapora dos poemas para banhar de beleza os olhos e a mente dos leitores.
É onde-quando a sensibilidade do leitor capta a sensibilidade do poeta e com ela comunga.
O poeta genuíno é dotado dessa sensibilidade criativa – poderia dizer inspiração, não fosse o preconceito
crítico que a expressão provoca – e de uma inteligência, ou sabedoria intuitiva, capaz de conceber e de
expressar de modo muito particular o mundo, a realidade. E capaz também de revestir de aura
transcendente as coisas, as situações, os sentimentos, as emoções, muitas vezes temporãs ou corriqueiras.
E é dotado sobretudo de conhecimento literário e de poder criador para trabalhar a linguagem de modo a
arranjar, das combinações inusitadas entre as palavras, metáforas e outras figuras de linguagem que
produzem imagens mentais, conteúdos semânticos subjetivos, às vezes imprecisos, mas eivados de
significação, de poeticidade.
É assim que concebo e abstraio a poesia de Eduardo Dalter, que foi capaz de produzir, num poema
curtíssimo, a seguinte preciosidade:
“De tu saliva
la canción, la canción
por debajo de las sílabas.”
(“De tu saliva”, p. 8, Mareas)
Outra vez o poeta mostra sua afiada sagacidade ao sintetizar com rara beleza a poesia que se manifesta
num jogo de imagens e se extrai da mistura de elementos concretos e abstratos, em que os sonhos vão
pela rua até fundirem-se numa paisagem invisível, digamos, indizível, onde não mais se pode alcançá-los
ou delineá-los:
“Tus ensueños
van por la calle
cual una hoja
del aire
hasta donde
empieza la neblina.”
(Tus ensueños, p. 15, Mareas)
Em certos momentos, os poemas de Eduardo Dalter lembram a simplicidade escorregadia e
profunda de Garcia Lorca. Uma simplicidade portanto apenas aparente, pois os versos levam em seu bojo,
como diz mesmo o poeta, “por baixo das sílabas”, um rio de novos e encantados significados, que o leitor,
dotado também de sensibilidade e malícias poéticas, pode sorver dos textos. Que insinuação poética
percorre os versos a seguir, de enganosa simplicidade:
“Hay un loco viento helado.
Y un sudor corre, corre
por los puentes
y tanto que no se puede ver.
Y nadie logra hablar consigo.”
(“Hay um loco Viento”, p.10, Mareas)
Dalter, como Lorca, explora com freqüência elementos naturais como o sol, a noite, o mar, o vento, a
neve, a sombra... em seus poemas, elementos que servem como fonte de comparações subjetivas ou de
evocações para a construção de imagens visuais e sonoras com as que se seguem:
1
“Titila la noche en los frios, remotos astros;
y el mar suspira, como fuera del tiempo,
mientras los montes, apenas
contorneados, parecen en vigília
y el viento, este, apenas sopla.”
(do livro Las Costas Del Golfo, p. 10)
A julgar pela forma das publicações, livros pequenos e de pouca espessura, meros opúsculos, com poucos
poemas, a maior parte deles breves, poder-se-ia pensar numa poesia despretensiosa, despojada de
artifícios e arroubos. Mas o que nutre o veio poético de Eduardo Dalter é um lirismo de fina tessitura e
uma musicalidade afinada com a significação lírica de seus poemas. E lirismo não quer dizer apenas
expressão do eu, mas projeção do eu sobre a paisagem, sobre a realidade. Lirismo, portanto, no sentido de
uma visão filtrada pela sensibilidade criadora altamente subjetiva do autor. O brilho do momento que se
salva do âmago do tempo. Assim é que ele segue pintando o seu mundo com cores bem próprias:
“De un verde azulado son las hierbas
de este bosquecillo
y moradas las matas de hojas anchas
que atestan la subida
por donde, como ensimismada, baja el agua.
Los pájaros, no sé cuáles, en lo alto
de las copas, reproducen como por eco
chasquidos e chistidos, a la hora sola
en que el cielo está por llamar
a sus estrellas.”
(Las Costas Del Golfo, p. 27) prossegue o poeta captando as miudezas do belo,
dando significado mais íntimo e sutil às coisas e tecendo sua teia de poesia, talvez um pouco alheio aos
apelos da fama, como a aranha deste poema:
“Teje la araña su día
e engulle voraz,
pacientemente todo
lo que ya no podrá volar;
y de resultas simula,
teje e simula,
que ama las alturas.
Es casi una mariposa presa
de la tela
de su aracnidad triste. Y murmura
– nadie la escucha –
y reza en las noches
mientras teje.
(“Teje a araña su dia”, p. 37, Mareas)
Um poeta genuíno é aquele que tem luz própria. Ou melhor: cuja poesia brilha com luz própria, para
encerrar essas considerações com um verso do próprio poeta: “Um poema en la noche/ brilha/ com luz
propia.” (“Un poema es una piedra”, p.35, Mareas).
* Wilson Pereira (Brasília – DF) Publicou Escavações no Tempo, Menino sem Fim,
Pedras de Minas, a Antologia Pedras de Minas – Poemas Gerais (incluindo o livro inédito,
Decantação). Amor de Menino (contos) e os livros infantis Pé de Poesia, Vento Moleque,
Riozinhos de Brinquedo, e A Rãzinha que queria ser Rãinha.
1
O confuso mais claro em Rosário Fusco
*Emerson Teixeira
“São os problemas da vida e da morte e do amor que aqui se misturam para compor a história desses tipos
desajustados, que jamais se explicam e nunca se entendem, mas que caminham juntos premidos pelos mesmos”
irremediáveis “que o destino nos propõe a cada momento”.
Falo do “livro de João” de Rosário Fusco que a epígrafe acima tenta explicar na orelha do próprio, publicado
originariamente pela Editora Epasa no glorioso ano de 1944. Parte de uma série que publicou com o que chamou: Edição
Montanhesa. O nome não poderia ser melhor já que tratando-se da magnitude e do vulto de seu autor. Mas no rol dos
nomes que figuram nesta encontram-se ainda os de João Dornelas Filho, Clemente Luz, Emílio Moura, enfim, um time que
hoje qualificaríamos merecidamente de galácticos.
A princípio pareceu-me tratar-se de uma trilogia: Carta à Noiva que veio imediatamente depois deste seguido de O Dia
do Juízo, o último publicado já em 1961 completaria a série.
Não fosse a delicadeza e o desprendimento de um amigo (Carlos Moura) que me presenteou com este livro, obra rara, –
atenção editoras, já passou da hora de uma reedição – eu certamente não teria tomado conhecimento de trabalho literário
tão singular. Depois de sucessivas leituras – quatro vezes mergulhei neste magnífico universo ficcional – resolvi arriscarme a um comentário a respeito deste romance monumental.
A trama se revela a partir do personagem João, 30 anos, natural de Minas, órfão de pai e mãe que veio ao Rio de Janeiro
e ali vive a onze anos, trabalhando como revisor de jornal e professor; além de responsabilizar-se nominalmente por uma
farmácia do subúrbio.
Pouco a pouco o leitor tomará conhecimento com o personagem, este dotado de um
comportamento irrequieto e excessivamente tímido. João é o protótipo do interiorano desconfiado, mas ao mesmo tempo
carente de abrigos sentimentais, apesar do perfil de tímido, um medo de confiar.
João não difere do crônico sentimental, apesar de suas atuais convicções calcadas em procedimentos frios e bem
definidos, baseados em um aprendizado que despreza as fórmulas convencionais no que concerne a princípios morais e
éticos. Suas idéias de Deus não incluem dogmas e encontram sentido entre aqueles que não admitem para o ser humano
um só caminho para a salvação.
No entanto, sofre. Um homem dividido, desde cedo, entre o que é certo e o que é errado. O que é bom, e o que é
ruim? Pergunta. “Poderia julgar-se e aos outros? Quem não sabe ser capaz de tudo, ou do que é capaz? Não Há nada de
bom ou de mal, sem conseqüência. Se não a percebemos, não quer dizer que não existam.”
Ficam bem claras nestas intervenções do autor as intenções do artista de interpretação do mundo: “Que compensações
recebem a virtude, o comportamento exemplar? – pergunta-se João.” Uma frase que se ouça e uma ocorrência que se
invente e todo um destino se molda àquilo.”
Julga-se, enfim, um cínico, um amoral, que secretamente agarra-se obstinadamente a sentimentos de ordem religiosa e
moral. Desencontrados assuntos nos levam a desencontradas noções. E tudo é assim difuso em Rosário fusco: à hora do
sim, o começo do não – a benção Vinicius – outro cético e não menos lírico que Fusco. Tudo assim tão confuso e claro
encontramos nesta ficção de Fusco que na figura de João (às vezes dá a impressão de ser alter-ego do autor) faz uso do
processo do monólogo interior, como numa passagem em que aparece Carmélia, mulher do fotógrafo amigo de João, por
quem nutria uma paixão secreta e avassaladora.
– Bateram na porta.
Era Carmélia que chegava. Cumprimentou-me, mas antes de fazê-lo tomou a temperatura do outro, aplicou-lhe o
emplastro quente no peito grisalho. Depois ofereceu-me chá.
(“Outra vez: obrigado não estou fazendo super-alimentação.” Fusco pede que nós reconheçamos em seu livro. (Seu ou não?)
e conclui: “Somos todos obrigados a nos conhecer.”
São tantos os claros escuros de Fusco, que até nos fazem pensar numa estética barroca tardia a permear as questões
apresentadas no seu livro.
Um barroco até moderno, um neobarroco, se quiserem; com todas as suas duvidas e vertigens.
*Emerson Teixeira Cardoso (Cataguases – MG)
Conversa nada franciscana
*José Antonio Pereira
Francisco, aposentado da antiga Leopoldina, há alguns anos adquiriu um sítio ali na região da Serra da Onça;
fizera a compra num destes leilões que banco faz, após depenar sitiante pobre. A pequena gleba, ficava na estradinha que
corta a serra ligando Cataguarino a Guido Marlieré, lá existiu, perto de uma tosca ponte de madeira, uma pequena venda
que prosperou no início do século. Vinte anos antes da copa em que o Brasil foi campeão pela primeira vez, já estava
inoperante, totalmente quebrada. O antigo dono não só faliu, como perdeu o que tinha na tentativa de salvar a vendinha e
manter a vergonha na cara. Como banco não tem cara para ter vergonha, manteve o seu lucro salvando o seu. Quem nos
explica isto bem é o Seu Francisco: – É a reforma agrária que mais deu resultado no Brasil. Bancos e atravessadores levaram
os pequenos à bancarrota. É um tanto de sem-terra, sem-teto, sem-nada vagando por aí que já foram meeiros, vaqueiros,
tropeiros até donos de terras. E olha que tem doido que afirma que isto é a saudável concorrência do capitalismo, livre
mercado e outras sandices. Arre! Como são cacetes e mentirosos.
Nosso ferroviário restaurou a vendinha, mantendo aquele clima mineiro-caipira do meio do século passado, fica fechada a
semana inteira, abrindo só uma vez ou outra para receber os amigos em visita. Em um destes domingos apareceram alguns
amigos todos sedentos por uma boa prosa regada por uma cerveja, uma boa pinga, tudo isto saboreando um franguinho
com quiabo ou com molho pardo, uma costelinha com ora pró nobis, enfim a boa, farta e velha cozinha das montanhas, os
visitantes eram velhos conhecidos do proprietário. Lá estavam: Chiquinho, velho sindicalista, ex membro do Pcbão;
Chicão, malandro velho, festeiro, tocador de bailes nas fazendas, sambista no carnaval da cidade, animador de quermesse,
enfim tinha festa lá estava o espertalhão. Ali na vendinha, os três Chicos, entre uma birita e outra, conversavam. Enquanto
Seu Francisco preparava uns tira-gostos, a conversa fluía. Entremeando a conversa Chicão cantava uma modinha caipira,
um samba do Ari Barroso ou Ataulfo Alves, já que Chiquinho, numa xenofobia radical, não permitia de jeito nenhum
músicas que não fossem brasileiras ou de autores do trecho. Ele implicava até com a bossa nova, tolerava apenas por causa
do Lúcio Alves. Seu Francisco vindo lá dos fundos, tem nas mãos uma gamela cheia de torresmos pururucados no velho
fogão a lenha, senta-se no avarandado da venda e puxa de novo a prosa: – Chiquinho! Ainda não entendi aquela tua
conversa sobre o sertão nordestino. Que diabo é isto? O São Francisco de Assis virou latifundiário lá no Piauí. Chiquinho
num ar de cínica sabedoria: – É verdade. Faz já um bom tempo li num jornalão paulista, o tempo passou e não se falou mais
no assunto. Aconteceu em um lugar chamado Morro do Chapéu, lá no Pi-au-í, como diz um senadorzão deles. O jornal dizia
que os devotos do São Francisco no começo do século passado doaram um esparramo de terras para o santo. Chicão meio
espantado: – Como é que é? O São Francisco? Aquele que renegou a riqueza da família para viver sem absolutamente nada.
Não acredito! O que ele vai fazer com tanta terra? Chiquinho! Tem certeza que o Francisco é o de Assis mesmo. Não seria
nenhum daqueles beatos doidos que andam sem rumo pela caatinga. Chiquinho interrompe o croquear do torresmo, toma
uma boa talagada de pinga, passa as costas da mão pela boca e responde: – É ele mesmo. O velho e bom São Chico lá de
Assis. Aquele que deixou a opulência e viveu na mais absoluta pobreza, tornando-se aos olhos de alguns beatiniks, o
primeiro hippie, o primeiro ambientalista segundo os ecologistas. Para mim um dos maiores ativistas do socialismo prémarxista. Chicão interrompendo: – Ih! Seu Francisco! Já vi tudo. Daqui a pouco o nosso São Francisco de Assis, vai estar
filiado no Partidão com ficha abonada por Prestes. O mal do Chiquinho é achar que a história que ele delira já é real. Não
dá para agüentar. Chiquinho já meio avermelhado pela cachaça, com o péssimo hábito que tem de politizar qualquer
assunto, ainda mais quando se discorda dele dispara seu discurso: – É por cabeças como a tua Chicão. Que a gente não
consegue levar a revolução proletária ao fim. Você tem que se conscientizar que vivemos uma luta de classes. Não percebe a
importância de ser radicalmente contra esta estrutura de exploração que aí está. Seu Francisco interferindo: – Calmo
Chiquinho! Vamos tomar uma cerveja. Já, já, o frango ao molho pardo estará pronto. Não se irrite com o Chicão. Já te falei
várias vezes. Quando você se mete a falar de comunismo e capitalismo, fica igual a pregador de rua. Insuportável!
A cerveja gelada e o cheiro que vem lá do fogão acalma o espírito libertário do Chiquinho e ele volta à história do
santo: – Pois é Seu Francisco. A diocese lá da região, de uma cidade chamada Esperantina, mais que depressa, na certeza
que o santo era católico, registrou as terras mantendo o nome de São Francisco. Espertamente acrescentaram nos
documentos que ele era paroquiano de Nossa Senhora da Boa Esperança. Seu Francisco: – Paroquiano? O São Francisco de
Assis? Que loucura! Chicão boquiaberto, sabe se lá pela pinga ou pela notícia, espanta-se: – Chiquinho que maluquice é
esta? O santo reencarnou lá no Pi-au-í do Mão Santa. Freqüentou a igreja de Esperantina? Aliás, não é nessa cidade que os
vereadores criaram um feriado dedicado ao sexo. Quando penso que já se esgotou o besteirol, aparece outra doideira ainda
pior. Seu Francisco tomando sua cerveja escutava tudo com aquele enganador alheamento de caipira, o velho maquinista
de trens apesar de ter rodado por uma infinidade de lugares, tinha alguma coisa que só se vê no espírito de velhos
moradores lá dos cafundós do mato. Talvez fosse a solidão das cabines de locomotivas. Chicão continua com a voz já meio
arrastada pela pinga: – Chiquinho! Padre treteiro sempre teve. Chiquinho: – É verdade. Deram o golpe na igreja? Ou será
que foi no Santo? Depois querem que eu acredite em religião. Pastor, padre e este monte de profissionais da fé é tudo uma
velhacaria só. Dizem que já tem igreja funcionando por franquia. Mas lá na Boa Esperança o caso é interessante. Dizem que
o São Chico compareceu ao cartório, estabeleceu uma procuração para o bispo. A diocese só obteve sucesso quando colocou
o nome do santo como legítimo dono das terras. Com o cnpj da paróquia, declarando que ele pertencia àquela unidade
religiosa, conseguiram um endereço fixo e um cadastro fiscal para o santo, as tais exigências documentais dos cartórios.
Tudo sacramentado lá foi o bispo para a região. Nomeou os padrecos como procuradores. Resolveu-se assim a ausência do
São Chico para assinar o papelório. Chicão, com o olhar turvo e a boca mole: – Não se pode confiar em ninguém. Só dá
esperto. Tem aqueles bispos que não podem ver um cinema que já vão babando para cima para transformar em igreja.
Agora este outro a inventar uma nova versão de capitania, a latifundiária. Francamente é um absurdo! Isto está parecendo o
samba do crioulo doido. Chiquinho: – Chicão! Esta deve ser a versão gospel do samba do crioulo doido. Mas o povo não é
tão besta quanto muitos imaginam. Os padrecos lá do Pi-au-í de posse dos documentos que os autorizavam a fazer
qualquer negócio, com as terras, em nome do São Chico, trataram logo de começar a cobrar dos moradores pela ocupação
das glebas. Mas os sertanejos não aceitaram pagar pela terra onde vivem. Alegam que as casas foram construídas em
terreno pertencente ao santo e a divisão feita pelos padrecos não vale nada. Em suma, o povo de lá sabiamente diz que só
negocia com o São Chico, o italiano. Seu Francisco com uma grande panela de pedra onde fumega o frango ao molho pardo:
– Isto é o Brasil! Quanto pilantra se escudando no pobre do São Francisco. Lembram-se daqueles políticos em Brasília que
se diziam franciscanos nas suas negociatas... “É dando que se recebe...” O que vale mesmo é a Lei de Gerson, a esperteza, a
má fé. É ser herói sem caráter. Chiquinho zombeteiramente: – Aqui nem Marx nem Jesus. É Macunaíma nas cabeças. Os
cheiros da cozinha levam todos para um silêncio degustativo, lá fora se ouve a canção das águas correndo sob a pequena
ponte, os ventos soprando os bambuzais. O prazer da boa comida joga toda aquela conversa no vazio. O tempo vai
escorrendo lentamente pela tarde, o fim do dia já se impondo e o efeito de tanta pinga aflorando. Esparramam-se por redes
no avarandado e o silêncio toma conta do ambiente. Ao longe o pio triste de uma siriema, ventos com os cheiros da mata
tornavam tudo tão sonolento, nem a cigarra com aquele cantar heavy-metal, despertava a preguiça que ia chegando. Com a
pachorra tomando conta, todos foram meditativamente se interiorizando e os olhos fechando.
*José Antonio Pereira (Cataguases – MG)
2
Augusto Boal
(1932-2009)
Pastoreio
Para Eduardo Dalter
03 de Maio de 2009
*Ronaldo Cagiano
*Teresinka Pereira
Hóspede do impossível
desafio as cartilagens do tempo
com as esporas do sonho.
Naqueles anos
de exílio
não qualificado
de "tortura"
encenávamos
o absurdo da vida
em um festival de teatro
na Califórnia.
O absurdo nos fazia
denunciar
a ditadura militar
sem aceitá-la.
Hoje me entregas
uma quota de absurdo
que não me permite
negá-lo: tua morte.
Sentiremos tua falta,
companheiro Boal,
para sempre.
Dos espasmos oníricos
com seu arsenal de enigmas
lavro uma geografia agreste
para colher
nas glebas da ansiedade
as ervas do êxito
com seus gumes de mel
Pastor de ilusões
a pregar no deserto de crepúsculos
converto-me em latifundiário de estrelas
e venço as varizes da noite
com meu repertório de delírios.
*Ronaldo Cagiano (São Paulo SP)
*Teresinka Pereira (Blufton –Ohio EUA)
Dois Chicos e meia
*Emerson Teixeira
Meu caro amigo Chico
Criador da Meia Pataca
Que como Chico Peixoto
Eu admiro pacas
Permita que eu lhe pergunte
É o senso humano que indaga
Desculpe a brincadeira
Que o próprio ego te afaga.
Dois Franciscos que se prezam
Um dia correram esse risco
Levar no mínimo ao máximo
Essa paixão pelos livros
Um fez o Meia Pataca livro
O outro a passou em revista
Mas, se eram dois e ambos Chicos.
Ambos com Meias Patacas
Por que não fizeram juntos,
Uma Pataca inteira?
Polifonías: voces poéticas contra a
violencia de xénero
Non é amor
*Marta Dacosta
Pobre Ofelia
cristalizada estás no sangue
da loucura
e gardas baixo as unllas a
carne do covarde,
como un berro atroz que nos
convoca.
Os teus ósos,
espadas de cristal
contra a fame caníval
de posuírnos,
de beber a nosa alma,
zugarnos a vontade,
dobregarnos ao río do delirio.
Ofelia,
pequena Ofelia
non se sacia a sede do
covarde.
Por que não fizeram à meia?
*Emerson Teixeira Cardoso (Cataguases – MG)
*Marta Dacosta Alonso (San Miguel – Vigo Espanha)
Sitios del Alma
Esses moços... pobres moços...
*Claudio Sesin
*José Antonio Pereira
Fogonazos de luz, golpes de sombra.
La hora se há lanzado hacia el suicídio
y un pájaro de noche, chillando su desgracia,
nos va haciendo partícipe de pena afiliadas.
Mi pueblo es del olvido,
Vasija que aún no canta.
Qué color se hizo copla y há venido
A dejar su consuelo de la tarde.
*Claudio Sesin (San Fernando de Catamarca – Arg)
Zune
*Zeca Junqueira
O poeta é faca e
a poesia pedra de amolar.
Enquanto não vem a carne podre a ser cortada
a lâmina zune afiando na pedra que gira
e zune
e zune
e zune.
*Zeca Junqueira (Cataguases – MG)
Resistência a Cataguases
*Leonardo de Paula
Ponte velha,
Fábrica velha,
Pracinha da Fábrica velha
Que velhice é essa?
A resistir aos anos
para nascer todos os dias para a vida.
A moça aí de cima é a cantora espanhola
Alaska que numa campanha contra as
tradições de seu país posou nua, com três
“banderillas” cravadas nas costas, contra a
tauromaquia, sobre o lema: “A verdade
desnudada: A Tauromaquia é cruel”.
A
campanha é uma iniciativa das associações
AnimaNaturalis espanhola e PETA britânica.
Enquanto isto, na Câmara Municipal de
Cataguases, alguns moços, votaram contra
uma lei que proibia na cidade o uso de animais
em espetáculos que os tivesse como atrativo.
Como o disse, na apresentação da campanha, a
cantora Alaska: “Deveria se por umas
“banderillas” nas costas dos que dizem que o
touro não sofre”. Nós gostaríamos de sugerir
aos nossos moços que adoraríamos vê-los
corcoveando em algum rodeio com suas
genitálias presas por um torniquete de cintas
ou saltando sob chicotadas por um arco de
fogo em algum cirquinho mequetrefe
* José Antonio Pereira (Cataguases – MG)
Leiam os livros da Cataletras:
*Leonardo de Paula Campos (Cataguases – MG)
Meditação
*Ronaldo de Melo
A vela me lembra o livro da Paz.
O livro, me lembra a página marcada.
A página, me lembra o ano velho que se vai, e
então, a vela me lembra o livro,
e, o evangelho os velhos.
*Ronaldo de Melo (Cataguases – MG)
“A Casa da rua Alferes e outras crônicas”
dos autores: Emerson Teixeira Cardoso,
José Antonio Pereira, José Vecchi de
Carvalho e Vanderlei Pequeno.
“A Ilha do Horizonte” de Vanderlei
Pequeno – Reunião de crônicas publicadas
em vários jornais desde de 2002.
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