Clique aqui para ler a revista Chicos - Edição Julho 2009
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Vicente Costa Chicos 21 Julho 2009 Ano do centenário de Francisco Inácio Peixoto Veja a nossa poesia em: http://chicoscataletras.blogspot.com/ Fale conosco: [email protected] Um dedim de prosa Apesar do quase silêncio da cidade que, graças a ele respirou ares de modernidade, continuamos aqui a homenagear ao nosso modo – com a poesia dele – o centenário de Chico Peixoto. Perdemos mais um artista fundamental, achamos até que já o esqueceram. Ficamos sem Augusto Boal falou e fala-se muito pouco dele. Neste mês de julho perdemos um amigo que nos criticava, apoiava e estimulava muito aqui no Chicos. Falamos de Alaôr Valério Junior, amigo lá dos tempos do Colégio Cataguases (época do Chico Filho) grande nadador do team do Moacir Barbosa. Lôlô a estas horas já deve estar, junto com Ronaldo de Melo, desenferrujando o francês com Dona Ofélia. Dedicamos a ele este número. E eles e elas giram, giram as flores dos cabelos, palavrões e giram os copos e no Bar 49, em torno de teu retrato Gira, gira, gira tudo, gira em torno do gigante, que me acarinha e sorri. Gira o bar e gira a Lapa, gira orquestra, gira a vida, giragirando por ti. Em São Paulo, havia noites e tu ficavas no bar. Luís Saia e os rapazes conversadinho contigo, eu ficando a te escutar. Dois bares giram enlaçados Será triste o Franciscano, será deserto sem ti. Osvaldo, Iglesias, Fernando, Nunca mais beber ali. *Francisco Inácio Peixoto As amarguras se encontravam, somos três pensando em ti. Eu desenho o teu retrato no pano sujo e rasgado que cobre a mesa do bar. Oto, Carlos, Pelegrino, Dantas Motta, Rubião Figueiró, Paulo e Jair, Clemente, Ernande, Bueno Luiz Saia, irmãos pequenos, Não mais beber ali não (17.03.1945) 17.03.1945) publicado em “O Jornal – 08/04/1945 Os músicos derrotados tocam coisas muito tristes. Se a noite não fosse aqui, talvez fizessem chorar. A lembrança vai crescendo com as rodelas do chope, Se derrama pelas mesas, Sobre as mulheres sem dentes, Sobre os homens sem amor. *Francisco Inácio Peixoto (05.04. 1909 – 08.01.1986) Autor de Meia Pataca, com Guilhermino César - Dona Flor, Passaporte proibido, A janela, Erótica e Chamada geral O brilho lírico na poesia de Eduardo Dalter *Wilson Pereira O poeta argentino Eduardo Dalter pertence a essa família, cada vez mais reduzida, dos poetas genuínos. Li apenas dois livros seus (Las Costas Del Golfo, 1995, e Mareas, 1997), mas o suficiente para apreender a riqueza imagística e as sutilezas semânticas em seus poemas. O poema, como objeto de arte, tem de causar no leitor a surpresa, o espanto, o encantamento, o impacto estético. E isso se obtém com metáforas e ritmo. Quanto mais refinado, mais sutil e mais sugestivo o tecido metafórico, mais rica e eficaz se mostra a carga poética que acende os textos. A poesia é como aragem fresca e perfumosa que evapora dos poemas para banhar de beleza os olhos e a mente dos leitores. É onde-quando a sensibilidade do leitor capta a sensibilidade do poeta e com ela comunga. O poeta genuíno é dotado dessa sensibilidade criativa – poderia dizer inspiração, não fosse o preconceito crítico que a expressão provoca – e de uma inteligência, ou sabedoria intuitiva, capaz de conceber e de expressar de modo muito particular o mundo, a realidade. E capaz também de revestir de aura transcendente as coisas, as situações, os sentimentos, as emoções, muitas vezes temporãs ou corriqueiras. E é dotado sobretudo de conhecimento literário e de poder criador para trabalhar a linguagem de modo a arranjar, das combinações inusitadas entre as palavras, metáforas e outras figuras de linguagem que produzem imagens mentais, conteúdos semânticos subjetivos, às vezes imprecisos, mas eivados de significação, de poeticidade. É assim que concebo e abstraio a poesia de Eduardo Dalter, que foi capaz de produzir, num poema curtíssimo, a seguinte preciosidade: “De tu saliva la canción, la canción por debajo de las sílabas.” (“De tu saliva”, p. 8, Mareas) Outra vez o poeta mostra sua afiada sagacidade ao sintetizar com rara beleza a poesia que se manifesta num jogo de imagens e se extrai da mistura de elementos concretos e abstratos, em que os sonhos vão pela rua até fundirem-se numa paisagem invisível, digamos, indizível, onde não mais se pode alcançá-los ou delineá-los: “Tus ensueños van por la calle cual una hoja del aire hasta donde empieza la neblina.” (Tus ensueños, p. 15, Mareas) Em certos momentos, os poemas de Eduardo Dalter lembram a simplicidade escorregadia e profunda de Garcia Lorca. Uma simplicidade portanto apenas aparente, pois os versos levam em seu bojo, como diz mesmo o poeta, “por baixo das sílabas”, um rio de novos e encantados significados, que o leitor, dotado também de sensibilidade e malícias poéticas, pode sorver dos textos. Que insinuação poética percorre os versos a seguir, de enganosa simplicidade: “Hay un loco viento helado. Y un sudor corre, corre por los puentes y tanto que no se puede ver. Y nadie logra hablar consigo.” (“Hay um loco Viento”, p.10, Mareas) Dalter, como Lorca, explora com freqüência elementos naturais como o sol, a noite, o mar, o vento, a neve, a sombra... em seus poemas, elementos que servem como fonte de comparações subjetivas ou de evocações para a construção de imagens visuais e sonoras com as que se seguem: 1 “Titila la noche en los frios, remotos astros; y el mar suspira, como fuera del tiempo, mientras los montes, apenas contorneados, parecen en vigília y el viento, este, apenas sopla.” (do livro Las Costas Del Golfo, p. 10) A julgar pela forma das publicações, livros pequenos e de pouca espessura, meros opúsculos, com poucos poemas, a maior parte deles breves, poder-se-ia pensar numa poesia despretensiosa, despojada de artifícios e arroubos. Mas o que nutre o veio poético de Eduardo Dalter é um lirismo de fina tessitura e uma musicalidade afinada com a significação lírica de seus poemas. E lirismo não quer dizer apenas expressão do eu, mas projeção do eu sobre a paisagem, sobre a realidade. Lirismo, portanto, no sentido de uma visão filtrada pela sensibilidade criadora altamente subjetiva do autor. O brilho do momento que se salva do âmago do tempo. Assim é que ele segue pintando o seu mundo com cores bem próprias: “De un verde azulado son las hierbas de este bosquecillo y moradas las matas de hojas anchas que atestan la subida por donde, como ensimismada, baja el agua. Los pájaros, no sé cuáles, en lo alto de las copas, reproducen como por eco chasquidos e chistidos, a la hora sola en que el cielo está por llamar a sus estrellas.” (Las Costas Del Golfo, p. 27) prossegue o poeta captando as miudezas do belo, dando significado mais íntimo e sutil às coisas e tecendo sua teia de poesia, talvez um pouco alheio aos apelos da fama, como a aranha deste poema: “Teje la araña su día e engulle voraz, pacientemente todo lo que ya no podrá volar; y de resultas simula, teje e simula, que ama las alturas. Es casi una mariposa presa de la tela de su aracnidad triste. Y murmura – nadie la escucha – y reza en las noches mientras teje. (“Teje a araña su dia”, p. 37, Mareas) Um poeta genuíno é aquele que tem luz própria. Ou melhor: cuja poesia brilha com luz própria, para encerrar essas considerações com um verso do próprio poeta: “Um poema en la noche/ brilha/ com luz propia.” (“Un poema es una piedra”, p.35, Mareas). * Wilson Pereira (Brasília – DF) Publicou Escavações no Tempo, Menino sem Fim, Pedras de Minas, a Antologia Pedras de Minas – Poemas Gerais (incluindo o livro inédito, Decantação). Amor de Menino (contos) e os livros infantis Pé de Poesia, Vento Moleque, Riozinhos de Brinquedo, e A Rãzinha que queria ser Rãinha. 1 O confuso mais claro em Rosário Fusco *Emerson Teixeira “São os problemas da vida e da morte e do amor que aqui se misturam para compor a história desses tipos desajustados, que jamais se explicam e nunca se entendem, mas que caminham juntos premidos pelos mesmos” irremediáveis “que o destino nos propõe a cada momento”. Falo do “livro de João” de Rosário Fusco que a epígrafe acima tenta explicar na orelha do próprio, publicado originariamente pela Editora Epasa no glorioso ano de 1944. Parte de uma série que publicou com o que chamou: Edição Montanhesa. O nome não poderia ser melhor já que tratando-se da magnitude e do vulto de seu autor. Mas no rol dos nomes que figuram nesta encontram-se ainda os de João Dornelas Filho, Clemente Luz, Emílio Moura, enfim, um time que hoje qualificaríamos merecidamente de galácticos. A princípio pareceu-me tratar-se de uma trilogia: Carta à Noiva que veio imediatamente depois deste seguido de O Dia do Juízo, o último publicado já em 1961 completaria a série. Não fosse a delicadeza e o desprendimento de um amigo (Carlos Moura) que me presenteou com este livro, obra rara, – atenção editoras, já passou da hora de uma reedição – eu certamente não teria tomado conhecimento de trabalho literário tão singular. Depois de sucessivas leituras – quatro vezes mergulhei neste magnífico universo ficcional – resolvi arriscarme a um comentário a respeito deste romance monumental. A trama se revela a partir do personagem João, 30 anos, natural de Minas, órfão de pai e mãe que veio ao Rio de Janeiro e ali vive a onze anos, trabalhando como revisor de jornal e professor; além de responsabilizar-se nominalmente por uma farmácia do subúrbio. Pouco a pouco o leitor tomará conhecimento com o personagem, este dotado de um comportamento irrequieto e excessivamente tímido. João é o protótipo do interiorano desconfiado, mas ao mesmo tempo carente de abrigos sentimentais, apesar do perfil de tímido, um medo de confiar. João não difere do crônico sentimental, apesar de suas atuais convicções calcadas em procedimentos frios e bem definidos, baseados em um aprendizado que despreza as fórmulas convencionais no que concerne a princípios morais e éticos. Suas idéias de Deus não incluem dogmas e encontram sentido entre aqueles que não admitem para o ser humano um só caminho para a salvação. No entanto, sofre. Um homem dividido, desde cedo, entre o que é certo e o que é errado. O que é bom, e o que é ruim? Pergunta. “Poderia julgar-se e aos outros? Quem não sabe ser capaz de tudo, ou do que é capaz? Não Há nada de bom ou de mal, sem conseqüência. Se não a percebemos, não quer dizer que não existam.” Ficam bem claras nestas intervenções do autor as intenções do artista de interpretação do mundo: “Que compensações recebem a virtude, o comportamento exemplar? – pergunta-se João.” Uma frase que se ouça e uma ocorrência que se invente e todo um destino se molda àquilo.” Julga-se, enfim, um cínico, um amoral, que secretamente agarra-se obstinadamente a sentimentos de ordem religiosa e moral. Desencontrados assuntos nos levam a desencontradas noções. E tudo é assim difuso em Rosário fusco: à hora do sim, o começo do não – a benção Vinicius – outro cético e não menos lírico que Fusco. Tudo assim tão confuso e claro encontramos nesta ficção de Fusco que na figura de João (às vezes dá a impressão de ser alter-ego do autor) faz uso do processo do monólogo interior, como numa passagem em que aparece Carmélia, mulher do fotógrafo amigo de João, por quem nutria uma paixão secreta e avassaladora. – Bateram na porta. Era Carmélia que chegava. Cumprimentou-me, mas antes de fazê-lo tomou a temperatura do outro, aplicou-lhe o emplastro quente no peito grisalho. Depois ofereceu-me chá. (“Outra vez: obrigado não estou fazendo super-alimentação.” Fusco pede que nós reconheçamos em seu livro. (Seu ou não?) e conclui: “Somos todos obrigados a nos conhecer.” São tantos os claros escuros de Fusco, que até nos fazem pensar numa estética barroca tardia a permear as questões apresentadas no seu livro. Um barroco até moderno, um neobarroco, se quiserem; com todas as suas duvidas e vertigens. *Emerson Teixeira Cardoso (Cataguases – MG) Conversa nada franciscana *José Antonio Pereira Francisco, aposentado da antiga Leopoldina, há alguns anos adquiriu um sítio ali na região da Serra da Onça; fizera a compra num destes leilões que banco faz, após depenar sitiante pobre. A pequena gleba, ficava na estradinha que corta a serra ligando Cataguarino a Guido Marlieré, lá existiu, perto de uma tosca ponte de madeira, uma pequena venda que prosperou no início do século. Vinte anos antes da copa em que o Brasil foi campeão pela primeira vez, já estava inoperante, totalmente quebrada. O antigo dono não só faliu, como perdeu o que tinha na tentativa de salvar a vendinha e manter a vergonha na cara. Como banco não tem cara para ter vergonha, manteve o seu lucro salvando o seu. Quem nos explica isto bem é o Seu Francisco: – É a reforma agrária que mais deu resultado no Brasil. Bancos e atravessadores levaram os pequenos à bancarrota. É um tanto de sem-terra, sem-teto, sem-nada vagando por aí que já foram meeiros, vaqueiros, tropeiros até donos de terras. E olha que tem doido que afirma que isto é a saudável concorrência do capitalismo, livre mercado e outras sandices. Arre! Como são cacetes e mentirosos. Nosso ferroviário restaurou a vendinha, mantendo aquele clima mineiro-caipira do meio do século passado, fica fechada a semana inteira, abrindo só uma vez ou outra para receber os amigos em visita. Em um destes domingos apareceram alguns amigos todos sedentos por uma boa prosa regada por uma cerveja, uma boa pinga, tudo isto saboreando um franguinho com quiabo ou com molho pardo, uma costelinha com ora pró nobis, enfim a boa, farta e velha cozinha das montanhas, os visitantes eram velhos conhecidos do proprietário. Lá estavam: Chiquinho, velho sindicalista, ex membro do Pcbão; Chicão, malandro velho, festeiro, tocador de bailes nas fazendas, sambista no carnaval da cidade, animador de quermesse, enfim tinha festa lá estava o espertalhão. Ali na vendinha, os três Chicos, entre uma birita e outra, conversavam. Enquanto Seu Francisco preparava uns tira-gostos, a conversa fluía. Entremeando a conversa Chicão cantava uma modinha caipira, um samba do Ari Barroso ou Ataulfo Alves, já que Chiquinho, numa xenofobia radical, não permitia de jeito nenhum músicas que não fossem brasileiras ou de autores do trecho. Ele implicava até com a bossa nova, tolerava apenas por causa do Lúcio Alves. Seu Francisco vindo lá dos fundos, tem nas mãos uma gamela cheia de torresmos pururucados no velho fogão a lenha, senta-se no avarandado da venda e puxa de novo a prosa: – Chiquinho! Ainda não entendi aquela tua conversa sobre o sertão nordestino. Que diabo é isto? O São Francisco de Assis virou latifundiário lá no Piauí. Chiquinho num ar de cínica sabedoria: – É verdade. Faz já um bom tempo li num jornalão paulista, o tempo passou e não se falou mais no assunto. Aconteceu em um lugar chamado Morro do Chapéu, lá no Pi-au-í, como diz um senadorzão deles. O jornal dizia que os devotos do São Francisco no começo do século passado doaram um esparramo de terras para o santo. Chicão meio espantado: – Como é que é? O São Francisco? Aquele que renegou a riqueza da família para viver sem absolutamente nada. Não acredito! O que ele vai fazer com tanta terra? Chiquinho! Tem certeza que o Francisco é o de Assis mesmo. Não seria nenhum daqueles beatos doidos que andam sem rumo pela caatinga. Chiquinho interrompe o croquear do torresmo, toma uma boa talagada de pinga, passa as costas da mão pela boca e responde: – É ele mesmo. O velho e bom São Chico lá de Assis. Aquele que deixou a opulência e viveu na mais absoluta pobreza, tornando-se aos olhos de alguns beatiniks, o primeiro hippie, o primeiro ambientalista segundo os ecologistas. Para mim um dos maiores ativistas do socialismo prémarxista. Chicão interrompendo: – Ih! Seu Francisco! Já vi tudo. Daqui a pouco o nosso São Francisco de Assis, vai estar filiado no Partidão com ficha abonada por Prestes. O mal do Chiquinho é achar que a história que ele delira já é real. Não dá para agüentar. Chiquinho já meio avermelhado pela cachaça, com o péssimo hábito que tem de politizar qualquer assunto, ainda mais quando se discorda dele dispara seu discurso: – É por cabeças como a tua Chicão. Que a gente não consegue levar a revolução proletária ao fim. Você tem que se conscientizar que vivemos uma luta de classes. Não percebe a importância de ser radicalmente contra esta estrutura de exploração que aí está. Seu Francisco interferindo: – Calmo Chiquinho! Vamos tomar uma cerveja. Já, já, o frango ao molho pardo estará pronto. Não se irrite com o Chicão. Já te falei várias vezes. Quando você se mete a falar de comunismo e capitalismo, fica igual a pregador de rua. Insuportável! A cerveja gelada e o cheiro que vem lá do fogão acalma o espírito libertário do Chiquinho e ele volta à história do santo: – Pois é Seu Francisco. A diocese lá da região, de uma cidade chamada Esperantina, mais que depressa, na certeza que o santo era católico, registrou as terras mantendo o nome de São Francisco. Espertamente acrescentaram nos documentos que ele era paroquiano de Nossa Senhora da Boa Esperança. Seu Francisco: – Paroquiano? O São Francisco de Assis? Que loucura! Chicão boquiaberto, sabe se lá pela pinga ou pela notícia, espanta-se: – Chiquinho que maluquice é esta? O santo reencarnou lá no Pi-au-í do Mão Santa. Freqüentou a igreja de Esperantina? Aliás, não é nessa cidade que os vereadores criaram um feriado dedicado ao sexo. Quando penso que já se esgotou o besteirol, aparece outra doideira ainda pior. Seu Francisco tomando sua cerveja escutava tudo com aquele enganador alheamento de caipira, o velho maquinista de trens apesar de ter rodado por uma infinidade de lugares, tinha alguma coisa que só se vê no espírito de velhos moradores lá dos cafundós do mato. Talvez fosse a solidão das cabines de locomotivas. Chicão continua com a voz já meio arrastada pela pinga: – Chiquinho! Padre treteiro sempre teve. Chiquinho: – É verdade. Deram o golpe na igreja? Ou será que foi no Santo? Depois querem que eu acredite em religião. Pastor, padre e este monte de profissionais da fé é tudo uma velhacaria só. Dizem que já tem igreja funcionando por franquia. Mas lá na Boa Esperança o caso é interessante. Dizem que o São Chico compareceu ao cartório, estabeleceu uma procuração para o bispo. A diocese só obteve sucesso quando colocou o nome do santo como legítimo dono das terras. Com o cnpj da paróquia, declarando que ele pertencia àquela unidade religiosa, conseguiram um endereço fixo e um cadastro fiscal para o santo, as tais exigências documentais dos cartórios. Tudo sacramentado lá foi o bispo para a região. Nomeou os padrecos como procuradores. Resolveu-se assim a ausência do São Chico para assinar o papelório. Chicão, com o olhar turvo e a boca mole: – Não se pode confiar em ninguém. Só dá esperto. Tem aqueles bispos que não podem ver um cinema que já vão babando para cima para transformar em igreja. Agora este outro a inventar uma nova versão de capitania, a latifundiária. Francamente é um absurdo! Isto está parecendo o samba do crioulo doido. Chiquinho: – Chicão! Esta deve ser a versão gospel do samba do crioulo doido. Mas o povo não é tão besta quanto muitos imaginam. Os padrecos lá do Pi-au-í de posse dos documentos que os autorizavam a fazer qualquer negócio, com as terras, em nome do São Chico, trataram logo de começar a cobrar dos moradores pela ocupação das glebas. Mas os sertanejos não aceitaram pagar pela terra onde vivem. Alegam que as casas foram construídas em terreno pertencente ao santo e a divisão feita pelos padrecos não vale nada. Em suma, o povo de lá sabiamente diz que só negocia com o São Chico, o italiano. Seu Francisco com uma grande panela de pedra onde fumega o frango ao molho pardo: – Isto é o Brasil! Quanto pilantra se escudando no pobre do São Francisco. Lembram-se daqueles políticos em Brasília que se diziam franciscanos nas suas negociatas... “É dando que se recebe...” O que vale mesmo é a Lei de Gerson, a esperteza, a má fé. É ser herói sem caráter. Chiquinho zombeteiramente: – Aqui nem Marx nem Jesus. É Macunaíma nas cabeças. Os cheiros da cozinha levam todos para um silêncio degustativo, lá fora se ouve a canção das águas correndo sob a pequena ponte, os ventos soprando os bambuzais. O prazer da boa comida joga toda aquela conversa no vazio. O tempo vai escorrendo lentamente pela tarde, o fim do dia já se impondo e o efeito de tanta pinga aflorando. Esparramam-se por redes no avarandado e o silêncio toma conta do ambiente. Ao longe o pio triste de uma siriema, ventos com os cheiros da mata tornavam tudo tão sonolento, nem a cigarra com aquele cantar heavy-metal, despertava a preguiça que ia chegando. Com a pachorra tomando conta, todos foram meditativamente se interiorizando e os olhos fechando. *José Antonio Pereira (Cataguases – MG) 2 Augusto Boal (1932-2009) Pastoreio Para Eduardo Dalter 03 de Maio de 2009 *Ronaldo Cagiano *Teresinka Pereira Hóspede do impossível desafio as cartilagens do tempo com as esporas do sonho. Naqueles anos de exílio não qualificado de "tortura" encenávamos o absurdo da vida em um festival de teatro na Califórnia. O absurdo nos fazia denunciar a ditadura militar sem aceitá-la. Hoje me entregas uma quota de absurdo que não me permite negá-lo: tua morte. Sentiremos tua falta, companheiro Boal, para sempre. Dos espasmos oníricos com seu arsenal de enigmas lavro uma geografia agreste para colher nas glebas da ansiedade as ervas do êxito com seus gumes de mel Pastor de ilusões a pregar no deserto de crepúsculos converto-me em latifundiário de estrelas e venço as varizes da noite com meu repertório de delírios. *Ronaldo Cagiano (São Paulo SP) *Teresinka Pereira (Blufton –Ohio EUA) Dois Chicos e meia *Emerson Teixeira Meu caro amigo Chico Criador da Meia Pataca Que como Chico Peixoto Eu admiro pacas Permita que eu lhe pergunte É o senso humano que indaga Desculpe a brincadeira Que o próprio ego te afaga. Dois Franciscos que se prezam Um dia correram esse risco Levar no mínimo ao máximo Essa paixão pelos livros Um fez o Meia Pataca livro O outro a passou em revista Mas, se eram dois e ambos Chicos. Ambos com Meias Patacas Por que não fizeram juntos, Uma Pataca inteira? Polifonías: voces poéticas contra a violencia de xénero Non é amor *Marta Dacosta Pobre Ofelia cristalizada estás no sangue da loucura e gardas baixo as unllas a carne do covarde, como un berro atroz que nos convoca. Os teus ósos, espadas de cristal contra a fame caníval de posuírnos, de beber a nosa alma, zugarnos a vontade, dobregarnos ao río do delirio. Ofelia, pequena Ofelia non se sacia a sede do covarde. Por que não fizeram à meia? *Emerson Teixeira Cardoso (Cataguases – MG) *Marta Dacosta Alonso (San Miguel – Vigo Espanha) Sitios del Alma Esses moços... pobres moços... *Claudio Sesin *José Antonio Pereira Fogonazos de luz, golpes de sombra. La hora se há lanzado hacia el suicídio y un pájaro de noche, chillando su desgracia, nos va haciendo partícipe de pena afiliadas. Mi pueblo es del olvido, Vasija que aún no canta. Qué color se hizo copla y há venido A dejar su consuelo de la tarde. *Claudio Sesin (San Fernando de Catamarca – Arg) Zune *Zeca Junqueira O poeta é faca e a poesia pedra de amolar. Enquanto não vem a carne podre a ser cortada a lâmina zune afiando na pedra que gira e zune e zune e zune. *Zeca Junqueira (Cataguases – MG) Resistência a Cataguases *Leonardo de Paula Ponte velha, Fábrica velha, Pracinha da Fábrica velha Que velhice é essa? A resistir aos anos para nascer todos os dias para a vida. A moça aí de cima é a cantora espanhola Alaska que numa campanha contra as tradições de seu país posou nua, com três “banderillas” cravadas nas costas, contra a tauromaquia, sobre o lema: “A verdade desnudada: A Tauromaquia é cruel”. A campanha é uma iniciativa das associações AnimaNaturalis espanhola e PETA britânica. Enquanto isto, na Câmara Municipal de Cataguases, alguns moços, votaram contra uma lei que proibia na cidade o uso de animais em espetáculos que os tivesse como atrativo. Como o disse, na apresentação da campanha, a cantora Alaska: “Deveria se por umas “banderillas” nas costas dos que dizem que o touro não sofre”. Nós gostaríamos de sugerir aos nossos moços que adoraríamos vê-los corcoveando em algum rodeio com suas genitálias presas por um torniquete de cintas ou saltando sob chicotadas por um arco de fogo em algum cirquinho mequetrefe * José Antonio Pereira (Cataguases – MG) Leiam os livros da Cataletras: *Leonardo de Paula Campos (Cataguases – MG) Meditação *Ronaldo de Melo A vela me lembra o livro da Paz. O livro, me lembra a página marcada. A página, me lembra o ano velho que se vai, e então, a vela me lembra o livro, e, o evangelho os velhos. *Ronaldo de Melo (Cataguases – MG) “A Casa da rua Alferes e outras crônicas” dos autores: Emerson Teixeira Cardoso, José Antonio Pereira, José Vecchi de Carvalho e Vanderlei Pequeno. “A Ilha do Horizonte” de Vanderlei Pequeno – Reunião de crônicas publicadas em vários jornais desde de 2002. Se você quer adquirir entre em contato conosco: [email protected]