Sexualidade e Pessoas com Deficiência Física: Breves

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Sexualidade e Pessoas com Deficiência Física: Breves
“Culturas, Religi•es e Sexualidades nos Tempos Modernos”
IV CONIEC 22-24 de setembro de 2009
Sexualidade e Pessoas com Defici€ncia F•sica: Breves
considera‚ƒes a partir das “Mem…rias P…stumas de Br†s Cubas”
sobre Eug€nia.
(Comunica‚ˆo Individual)
Francysco Pablo Feitosa Gon‚alves1
[email protected]
RESUMO
A forma como a sociedade trata as pessoas com deficiƒncia „ no m…nimo controversa;
oficialmente tais pessoas possuem os mesmos direitos dos n•o-deficientes, em alguns
casos chegando inclusive a receber proteۥo legal no aparente intuito de facilitar a sua
inser€•o †til e digna na sociedade. A pr‡xis social, entretanto, parece caminhar em
sentido contr‡rio, j‡ que tais pessoas aparentemente s•o postas em segundo plano,
n•o lhe sendo dispensado um tratamento sequer idƒntico ao que se d‡ aos n•odeficientes; este processo de apartheid da pessoa com deficiƒncia se evidencia quando
se pensa na quest•o da sexualidade da pessoa com deficiƒncia, notadamente na forma
como as pessoas n•o-deficientes lidam com as pessoas com deficiƒncia e como isso se
traduz, por exemplo, em manifesta€ˆes liter‡rias. Nesta perspectiva, o presente
trabalho tem como objetivo realizar breves considera€ˆes sobre a quest•o da
sexualidade da pessoa com deficiƒncia em di‡logo com a literatura, para tanto partiu-se
de “MemŠrias PŠstumas de Br‡s Cubas”, cujo autor, ali‡s, era deficiente. Dentro da
referida obra, procurou-se enfatizar a relaۥo entre a personagem principal e a
personagem Eugƒnia bem como, tentando identificar as formas como a deficiƒncia
desta †ltima repercutia na referida rela€•o. Considerando que a literatura „ meio h‡bil
para revelar modelos variados de como se pode compreender a subjetividade social, a
partir da an‡lise de excertos da referida obra se espera fornecer elementos para a
compreens•o da rela€•o entre sociedade e deficiƒncia, negando a sexualidade das
pessoas com deficiƒncia, e rotulando aqueles que se sentem atra…dos por tais pessoas
como devotees, caracter…stica que inclusive „ considerada parafilia. Partindo da
literatura, a pesquisa em quest•o visa estabelecer, numa perspectiva sistƒmica, um
di‡logo com outras ‡reas do conhecimento.
1
Mestrando em Direito pela Universidade CatŠlica do Pernambuco – UNICAP, onde desenvolve pesquisa
intitulada “Sociedade, Educa€•o e Pessoas com Deficiƒncia”, orientado pelo Prof. Dr. Jayme
Benvenuto – Bolsista CAPES/PROSUP.
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Palavras-chave: Sexualidade – Literatura – Pessoas com Defici€ncia
1 INTRODUŠ‹O
Como se sabe, em muitas das sociedades contemporŒneas existe um discurso
no sentido da integra€•o das pessoas com deficiƒncia, que por vezes gozam de um
status de igualdade pretensamente assegurado em argumentos oficiais, científicos (a
concep€•o de deficiƒncia enquanto modelo social) e jurídicos, pense-se, neste sentido,
na prote€•o constitucional das pessoas com deficiƒncia (Cf. ARA•JO, 2003; e, dentre
outros artigos da CONSTITUIŽ•O DA REP•BLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988:
art. 7•, XXXI; art. 23, II; art. 24, XIV; art. 37, VIII; art. 203, IV, etc.).
Nem sempre, contudo, tais argumentos oficiais traduzem a materialidade das
rela€ˆes sociais — pense-se, por exemplo, nas diversas formas de estigmatiza€•o e
exclus•o ilegais que ainda existem em rela€•o a negros, mulheres, homossexuais,
pessoas com deficiƒncia, etc.
Nesta perspectiva „ que se escolheu a tem‡tica da sexualidade das pessoas
com deficiƒncia, tomando sexualidade para al„m de uma concep€•o restrita,
necessariamente ligada a busca imediata de prazer, ou de sexo propriamente dito, mas
em uma acep€•o ampla, referindo-se as caracter…sticas mais …ntimas do ser humano,
vinculada ’s no€ˆes e sentimentos de atra€•o, desejo, afeto, etc., bem como ao direito
ou aptid•o de manifest‡-los.
Para o presente estudo parte-se basicamente de dois pressupostos; o primeiro
„ que a forma como a sociedade constrŠi modelos referentes a sexualidade (o que „
normal e anormal, desej‡vel e indesej‡vel, aceit‡vel e inaceit‡vel, etc.) „ capaz de
revelar rela€ˆes subjetivas de apartheid e subalternização; o segundo „ que a literatura
„ meio h‡bil para revelar modelos variados de como se pode compreender as rela€ˆes
sociais. Com base em tais pressupostos e a partir da an‡lise de excertos de MemŠrias
PŠstumas de Br‡s Cubas, espera-se fornecer elementos para a compreens•o da forma
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com a sociedade encara a quest•o da sexualidade da pessoa com deficiƒncia e
daqueles que se sentem atra…dos por tais pessoas. Para a consecu€•o dos objetivos
tra€ados, a obra em quest•o ser‡ analisada com base no cânone da autonomia do
objeto, vale dizer, intenciona-se a propositura de uma reflex•o que n•o estar ‡
necessariamente presa ’ eventual preocupa€•o do autor em foment‡-la. Parte-se do
pressuposto que toda interpreta€•o capaz de identificar o que est‡ nas linhas ou
entrelinhas „ um esfor€o v‡lido.
2 MACHADO DE ASSIS E O MOTE DO PRESENTE TRABALHO
Dentre as v‡rias razˆes que justificariam a escolha do autor e da obra em
quest•o como ponto de partida, est‡ o fato de que Machado de Assis, certamente um
dos mais expressivos autores da literatura universal, tinha uma deficiƒncia f…sica que
certamente influiu na constituiۥo de sua personalidade e que talvez tenha se refletido
em seus escritos. Segundo revelam seus biŠgrafos, ele era epil„tico, condi€•o que
remontava a sua infŒncia e de que muito se envergonhava, a qual ele se referia apenas
como “umas coisas esquisitas”, (MACHADO, 1996, p. 13) e que escondeu at„ mesmo
de sua esposa: “Logo nos primeiros tempos de casado, sofreria Machado um ataque do
mal que seria a maior tortura de sua vida: a epilepsia — doen€a que jamais confessara
’ mulher sofrer.” (IBIDEM, p. 28)
Ademais, a obra MemŠrias PŠstumas de Br‡s Cubas, especificamente, conv„m
lembrar que se trata um marco do notŠrio pessimismo machadiano, seu tom cr…tico —
‡cido — se presta a justamente tra€ar um panorama dos v…cios da sociedade da „poca,
um panorama, que como se ver‡, em alguns pontos se mostra bem atual. N•o por
acaso Jos„ Guilherme Merquior encerra seu estudo ’ guisa de pref‡cio, afirmando
categoricamente que “Br‡s Cubas é um livro no qual o aspecto fortemente retórico do
estilo reforça a energia mimética da linguagem, o seu poder de imitar e fingir (ficção) a
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variedade concreta da vida.”(1994, p. 7) E „ justamente nesta perspectiva que se
propˆe uma leitura da obra em quest•o, notadamente no que diz respeito ’
personagem Eugƒnia, em breve paralelo com trabalhos espec…ficos sobre a sexualidade
da pessoa com deficiƒncia, a fim de identificar algumas nuances da forma como a
sociedade trata a sexualidade das pessoas com deficiƒncia.
3 BRÁS CUBAS: UM DEVOTEE EM SUA FUGAZ RELAÇÃO EUGÊNIA?
A personagem principal e que d‡ t…tulo a obra que „ o mote do presente
trabalho pode ser definido como algu„m extremamente comodista e de escr†pulos
question‡veis, ou, melhor dizendo e nas suas próprias palavras:
N•o se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a
quebrar a cabe€a dos outros nem a esconder-lhes os chap„us; mas opini‡tico,
ego…sta e algo contemptor dos homens, isso fui; se n•o passei o tempo a
esconder-lhes os chap„us, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras.
(MACHADO DE ASSIS,1994, p. 33)
Dentre as passagens em que ego…smo de Br‡s fica especialmente evidente,
uma merece destaque, trata-se da vingan€a praticada contra o “Dr. Vila€a, glosador
insigne,” que apŠs um jantar desatou a pedir motes, davam-lho, e ele os glosava,
provocando grande admira€•o entre os presentes. Enquanto isso Br‡s, ainda crian€a,
“solit‡rio e deslembrado, a namorar certa compota” de sua paix•o. Como as glosas n•o
acabavam e a sobremesa n•o era servida, Br‡s viria a pedi-la, inicialmente em voz
baixa, depois aos gritos e batendo os p„s, no que, ao contr‡rio de suas prŠprias
expectativas, n•o foi atendido:
Meu pai, que seria capaz de me dar o sol, se eu lho exigisse, chamou
um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arrancarame da cadeira e entregara-me a uma escrava, n•o obstante os meus gritos e
repelˆes. (MACHADO DE ASSIS,1994, p. 37)
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O atraso na sobremesa e a repreens•o seriam suficientes para que Br‡s
arquitetasse uma vingan€a, a pior que p“de conceber, contra o glosador:
N•o foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa ’
minha exclus•o. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingan€a, qualquer
que fosse, mas grande e exemplar, coisa que de alguma maneira o tornasse
rid…culo. Que ele era um homem grave o Dr. Vila€a, medido e lento, quarenta e
sete anos, casado e pai. N•o me contentava o rabo de papel nem o rabicho da
cabeleira; havia de ser coisa pior. Entrei a espreit‡-lo, durante o resto da tarde,
a segui-lo, na ch‡cara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D.
Eus„bia, irm• do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona, que se n•o
era bonita, tamb„m n•o era feia.
(...) puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram
os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos
beijos.
— O Dr. Vila€a deu um beijo em D. Eus„bia! bradei eu correndo pela
ch‡cara.
Foi um estouro esta minha palavra; a estupefaۥo imobilizou a todos;
os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, ’
socapa, as m•es arrastavam as filhas, pretextando o sereno. (IBIDEM,1994, p.
37-38)
A passagem „ especialmente reveladora do car‡ter de Br‡s por pelo menos
duas razˆes; a primeira „ que este ato de vingança, descabido e desproporcional, foi
praticado quando o mesmo contava apenas nove anos; a segunda „ que anos mais
tarde, como se ver‡, Br‡s intencionaria aplicar a filha de D . Eus„bia o mesmo mote
que lhe aplicara o Dr. Vila€a.
Tendo se vingado, Br‡s cresceu e mais tarde foi conduzido a Portugal a fim de
bacharelar-se e de onde voltaria, relutante, apenas em virtude da doen€a da m•e, que
viria a falecer na manh• seguinte a sua chegada. Br‡s, que se assumia como “um fiel
compƒndio de trivialidade e presun€•o”, ficaria prostrado em virtude da perda da m•e
(MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 46-56). Em meio ao seu desŒnimo, Br ‡s faria duas
descobertas interessantes sobre D. Eus„bia; a primeira era que ela havia tido uma filha
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com Dr. Vila€a, e que este lhe “deixara um bom legado”; a segunda que D. Eus„bia
havia vestido a sua m•e defunta, e em agradecimento a este ato, mesmo recordando
sua vingan€a de anos atr‡s, Br‡s achou por bem fazer-lhe uma visita. (IBIDEM) ”
quando conhece Eugƒnia, a quem ele intimamente denomina de flor da moita:
Eugƒnia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortesia que lhe
fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da
m•e. A m•e arranjou-lhe uma das tran€as do cabelo, cuja ponta se
desmanchara. — Ah! travessa! dizia. N•o imagina, doutor, o que isto „... E
beijou-a com t•o expansiva ternura que me comoveu um pouco; lembrou-me
minha m•e, e, — direi tudo, — tive umas cŠcegas de ser pai.
— Travessa? disse eu. Pois j‡ n•o est‡ em idade prŠpria, ao que
parece.
— Quantos lhe d‡?
— Dezessete.
— Menos um.
— Dezesseis. Pois ent•o! „ uma mo€a.
N•o p“de Eugƒnia encobrir a satisfa€•o que sentia com esta minha
palavra, mas emendou-se logo, e ficou como dantes, ereta, fria e muda. Em
verdade, parecia ainda mais mulher do que era; seria crian€a nos seus folgares
de mo€a; mas assim quieta, impass…vel, tinha a compostura da mulher casada.
(IBIDEM, p. 65)
Tendo conservado esta boa primeira impress•o de Eugƒnia, Br‡s a reencontra,
„ quando denuncia sua atra€•o; Seja de forma sutil, ao reparar na falta de atavios,
registrando, por„m, a beleza de suas orelhas: “duas orelhas finamente recortadas numa
cabe€a de ninfa” (MACHADO DE ASSIS,1994, p. 64); Seja de forma mais evidente e
quase lasciva:
Era isso no corpo; n•o era outra coisa no esp…rito. Id„ias claras,
maneiras ch•s, certa gra€a natural, um ar de senhora, e n•o sei se alguma
outra coisa; sim, a boca, exatamente a boca da m•e, a qual me lembrava o
episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de glosar o mesmo mote à
filha... (MACHADO DE ASSIS, p. 64, grifos nossos)
Colocado nessas palavras, quando se pensa na forma como anteriormente
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Br‡s havia se referido ao episŠdio e ao relacionamento dos pais de Eugƒnia — “Na
verdade, fora imposs…vel evitar as rela€ˆes …ntimas do Vila€a com a irm• do sargentomor” (IBIDEM, 1994, p. 57) — conquanto n•o se possa afirmar que Br‡s estivesse
apaixonado, fica claro que se sente fisicamente atra…do por Eugƒnia. Logo em seguida,
vem o momento em que Br‡s descobre a deficiƒncia de Eugƒnia:
Sa…mos ’ varanda, dali ’ ch‡cara, e foi ent•o que notei uma
circunstŒncia. Eugƒnia coxeava um pouco, t•o pouco, que eu cheguei a
perguntar-lhe se machucara o p„. A m•e calou-se; a filha respondeu sem
titubear:
— N•o, senhor, sou coxa de nascen€a.
Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseir•o.
Com efeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe n•o
perguntar nada. Ent•o lembrou-me que da primeira vez que a vi — na v„spera
— a mo€a chegara-se lentamente ’ cadeira da m•e, e que naquele dia j‡ a
achei ’ mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito; mas por que raz•o
o confessava agora? Olhei para ela e reparei que ia triste. (MACHADO DE
ASSIS,1994, p. 64-65)
Interessante „ que esta descoberta, por si sŠ, n•o „ capaz de acabar com o
desejo de Br‡s, que continua enamorado por Eugƒnia, mesmo revelando, num primeiro
momento, alguma incapacidade de conciliar os conceitos de atraۥo e beleza ao de
deficiƒncia:
O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão
fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria
suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita,
se coxa? por que coxa, se bonita? (IBIDEM, p. 65, grifos nossos)
Para Patr…cia Aparecida de Azevedo, a constru€•o da personagem Eugƒnia se
d‡ a partir do casamento entre o belo e o grotesco: “Nela, a id„ia do grotesco est‡
novamente associada ’ dualidade, composta a partir de opostos: Eugƒnia, apesar de
bonita, „ coxa.” (2006, p. 34) Adiante, a mesma autora atenta para a forma como a
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escolha do nome da personagem n•o deixa de carregar uma certa ironia:
Sabemos que, em muitos per…odos da histŠria da humanidade, as
pessoas que apresentavam defeitos f…sicos como o de Eugƒnia, ou qualquer
outra anomalia, deviam ser eliminadas. Al„m da forma grotesca como ela „
descrita, Machado utiliza um outro recurso para refor€ar a imagem da
personagem: a ironia. Seu nome pode ser associado ’ eugenia, termo criado e
definido por Francis Galton como “o estudo dos agentes sob controle social que
podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gera€ˆes seja
f…sica ou mentalmente”.
Segundo Schwarcz (2005), o termo eugenia come€ou a ser utilizado
no Brasil por ocasi•o da implanta€•o das faculdades de medicinas. Para os
m„dicos do s„culo XIX, “o cruzamento racial” era o grande mal da sociedade
brasileira, e por isso deveria ser sanado com a escolha dos pares “perfeitos”
para a melhoria da ra€a. Diante destes dados, podemos compreender melhor a
condi€•o social em que Eugƒnia „ apresentada.
(...)
Por ser fruto desse relacionamento condenado aos “olhos” da
sociedade, Eugƒnia, como ressaltou Schwarz, era vista com desprezo. E este
desprezo „ ainda mais refor€ado pelo narrador por ela apresentar um defeito
f…sico.
De acordo com o pensamento vigente no s„culo XIX, ela deveria ser
exclu…da da sociedade, pois sua “deformidade” poderia causar danos
irrevers…veis ’ ra€a humana, visto que, se ela chegasse a casar com Br‡s
Cubas, e o casal tivesse filhos, a humanidade estaria sujeita a conviver com
pessoas deformadas.
Tal fato nos permite compreender que a sociedade n•o via com bons
“olhos” pessoas como Eugƒnia por impedir a constru€•o de uma ra€a apenas
com pessoas “saud‡veis”, livres das imperfei€ˆes. N•o „ ’ toa que, ao relatar
seu encontro com Eugƒnia e sua m•e pela primeira vez, Br‡s Cubas as visita
no s…tio vizinho ao seu, localizado no bairro da Tijuca, que era um pouco
afastado da Corte. (AZEVEDO, 2006, p. 40-41)
Sobre a ambiguidade do nome, pode-se acrescentar que o nome da
personagem Eugƒnia foi constru…do de forma duplamente irônica, posto que Eugênia
pode sugerir tamb„m de bom nascimento, de nobre estirpe (Cf. BOAS, 2007, p. 127),
enquanto que a personagem em quest•o „ fruto da união ilegítima entre Dr. Vila€a e D.
Eus„bia.
Ainda em rela€•o ao que diz Patr…cia Azevedo, „ interessante analisar ponderar
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que o conceito de deficiƒncia vigente ’ „poca era diretamente decorrente das doutrinas
da eugenia, e como a Eugƒnia reside com a m•e num s…tio, como que em apartado da
sociedade; isto era o que era permitido pelas prŠprias constru€ˆes cient…ficas do s„culo
XIX, acentuadamente racistas, “sustentavam a superioridade natural da ra€a branca
sobre negros, …ndios e mesti€os” (FARACO, 1996. p. 4). Se „ poss…vel que isto tenha
influ…do na constru€•o da personalidade do mulato Machado de Assis (Cf.
MACHADO,1996, p. 4 e 10), tamb„m parece razo‡vel pressupor que isto se refletiria
em sua obra.
Ademais, se os ideais eugƒnicos e a cren€a da superioridade de determinadas
ra€as, se era capaz de por em condi€•o de subalternidade negros, …ndios e mesti€os,
que dir‡ deficientes. Assim „ que para a „poca o que seria de se esperar era que Br‡s
n•o mais se sentisse atra…do por Eugƒnia, curiosamente, n•o „ isto o que ocorre, ele
permanece interessado em Eugƒnia, e nada obstante a sua dificuldade inicial em
conciliar beleza e deficiƒncia, num momento posterior, Br‡s parece se sentir atra…do
pela deficiƒncia de Eugƒnia:
Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a manh•
era l…mpida e azul, e apesar disso deixei-me ficar, n•o menos que no terceiro
dia, e no quarto, at„ o fim da semana. Manh•s bonitas, frescas, convidativas; l‡
embaixo a fam…lia a chamar-me, e a noiva, e o Parlamento, e eu sem acudir a
coisa nenhuma, enlevado ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado „ uma
maneira de real€ar o estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa
satisfação física e moral. Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão
singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentiame bem, e ela creio que ainda se sentia melhor ao p„ de mim. (MACHADO DE
ASSIS,1994, p. 65, grifos nossos)
Esta atra€•o vem a ficar ainda mais evidente quando Br‡s tem um r‡pido affair
com Eugƒnia, o que par a „poca poderia ser considerado um verdadeiro risco eugênico:
Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugƒnia, — o
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primeiro que nenhum outro var•o jamais lhe tomara, e n•o furtado ou
arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma
d…vida. Pobre Eugƒnia! Se tu soubesses que id„ias me vagavam pela mente
fora naquela ocasi•o! Tu, trƒmula de como€•o, com os bra€os nos meus
ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos de
1814, na moita, no Vila€a, e a suspeitar que n•o podias mentir ao teu sangue, ’
tua origem... (IBIDEM, p. 65-66)
A referƒncia a quando o Dr. Vila€a e D. Eus„bia “tinham penetrado numa
pequena moita” e aquele “levava nos olhos umas chispas de vinho e de vol†pia”
(IBIDEM, p. 37), al„m de revelar a atra€•o de Br‡s por Eugƒnia, o faz com uma lasc…via
— para os padrˆes da obra — que poucas vezes seria equiparada nas descri€ˆes dos
encontros amorosos que Br‡s teria com Virg…lia, sua verdadeira amante. Em sentido
an‡logo parece ser o entendimento de Lincoln Braga Villas Boas (2007, p. 129), ao
classificar o relacionamento de Br‡s e Eugƒnia como uma “pe€a de dosada
libertinagem” a qual vem emoldurada, com o que ele denomina “‘requinte perverso’ em
sua vers•o s‡dica, pois o sadismo „ bem um dos feitios expressivos da pervers•o.”
Nada obstante a atra€•o e o affair, logo se torna claro que Br‡s descarta
qualquer possibilidade de uma vida comum com Eugƒnia — aparentemente menos em
virtude de sua origem que de sua deficiƒncia — chegando a justificar perante o leitor, de
forma ir“nica, o acabar (do relacionamento) com Eugƒnia (Cf. MACHADO DE ASSIS,
1994, p. 66). Interessante registrar que a obra parece autorizar uma interpretaۥo no
sentido de que mais do que o fato de Eugƒnia ser “filha esp†ria” (MACHADO DE
ASSIS,1994, p. 65), o que realmente aniquilou a atra€•o de Br‡s foi o fato dela ter uma
deficiƒncia, o que a tornava apenas digna de “piedade”, nunca de amor.
Se a atitude de Br‡s acaba sendo compreens…vel quando se considera a obra
um retrato da „poca em que foi escrita, o mesmo se d‡ com a rea€•o de Eugƒnia, que
alia o sofrimento ’ resigna€•o e demonstra que ela prŠpria parece se considerar
indigna de ser amada em virtude de sua deficiƒncia. (Cf. MACHADO DE ASSIS, 1994,
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p. 67)
Em resumo, „ poss…vel afirmar que para a personagem Br‡s, para a sociedade
da „poca — e qui€‡ para a sociedade de hoje — o estigma da deficiƒncia „ tido como
se fosse culpa da pessoa com deficiƒncia, como se a deficiƒncia fosse responsabilidade
dela — e n•o da sociedade — seria culpa dela, Eugƒnia, ent•o, o fato de que
“manquejaria pela estrada da vida e do amor” (IBIDEM, p. 68).
Na segunda, e †ltima vez que Eugƒnia „ lembrada, um Br‡s j‡ velho se
encontra filiado a uma Ordem, e est‡ a distribuir esmolas e fazer caridade — o que n•o
quer dizer, de forma alguma, que seu car‡ter se tornou melhor com a idade — e, por
essa „poca, reencontra Eugƒnia “t•o coxa como a deixara, e ainda mais triste.”
(MACHADO DE ASSIS,1994, p. 68)
Neste relato de uma Eugƒnia que continuava coxa e triste, Br‡s acaba
confirmando sua prŠpria previs•o de que ela seguiu “pela estrada da vida,
manquejando da perna e do amor”(IBIDEM, p. 68), mais do que isso, vivia ainda • parte
da sociedade, antes em um s…tio agora em um corti€o. (Este sutil apartheid tamb„m „
percebido por AZEVEDO, 2006, p. 34)
Como se vƒ, a obra de Machado de Assis acaba denunciando o tratamento
dado pela sociedade a pessoa com deficiƒncia no que concerne ’ possibilidade de
construir relacionamentos baseados no afeto sincero e na atra€•o f…sica, que lhe
possibilitem sequer ter uma vida sexual.
4 SOCIEDADE, DEFICIÊNCIA E SEXUALIDADE
Como j‡ foi dito, a sociedade contemporŒnea „ marcada pela igualdade formal
de direitos e oportunidades entre todas as pessoas, independentemente de credo, cor,
orienta€•o sexual ou de possuir, ou n•o, alguma deficiƒncia. A pr‡tica, contudo, „
diversa e mesmo que o discurso oficial seja no sentido de n•o-discrimina€•o ’ pessoa
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com deficiƒncia, ainda existe uma memória coletiva — num sentido halbwachiano — a
qual encerra a constru€•o social do apartheid da pessoa com deficiƒncia.
Esta existƒncia em apartado da pessoa com deficiƒncia se revela,
subjetivamente quando se pensa na sexualidade de tais pessoas, ou, mais
especificamente, quando n•o se pensa nelas como pessoas capazes de sentir desejo.
A este propŠsito esclarecedoras s•o as li€ˆes de Ana Rita de Paula, Mina Regen e
Penha Lopes (2005, p.9):
Crescer, apaixonar-se, namorar, transar. ” o que se espera de todas
as pessoas. Ou quase todas. Quando nos deparamos com algu„m que se
locomove em uma cadeira de rodas ou carrega as sequelas de uma paralisia
cerebral, dificilmente imaginamos que este ser humano possa sentir desejo e se
relacionar sexualmente. Erotismo e deficiƒncia s•o termos que parecem n•o
combinar quando postos lado a lado.
Se, por acaso, ele disser que mant„m rela€ˆes sexuais, em geral
reagimos com desconfian€a ou pena. Primeiro, por duvidar que algu„m possa
sentir atra€•o por uma pessoa deficiente: „ mais prov‡vel que esteja se
aproveitando ou obtendo alguma vantagem. Segundo, por supor que o
interlocutor esteja fantasiando ou mentindo. Lamentamos, ent•o, a impotƒncia
humana diante das fatalidades que atravessam nossas vidas.
Conv„m perceber que esta dissocia€•o de deficiƒncia e sexualidade, sutilmente
presente na descri€•o da personagem Eugƒnia, digna de piedade e n•o de amor, „
lugar comum na sociedade contemporŒnea. Tal dissocia€•o,a exemplo da rela€•o entre
Br‡s e Eugƒnia, acaba por conter algum requinte perverso (para usar a express•o de
BOAS, 2007, p. 129), porquanto tais pessoas vivem em meio a uma construۥo social
onde h‡ a expectativa de envolvimentos f…sico-afetivos, sendo que para elas, o que a
sociedade reserva „ uma existência assexuada — pense-se na Eugƒnia j‡ velha,
aparentemente sozinha e infeliz num sub†rbio.
Esta perspectiva de uma existƒncia assexuada atinge a pessoa com deficiƒncia,
que passa a acreditar n•o ser mais merecedora de uma vida sexual ativa, o n•o-sexo
aparece como um estigma decorrente da deficiƒncia, conforme revela —ngela Maria
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Teixeira, falando n•o apenas com a autoridade de quem dedicou uma disserta€•o de
mestrado ao acontecer humano diante da deficiência adquirida na fase adulta, mas de
quem „, ela mesma, deficiente:
A meu ver, a primeira nega€•o da sexualidade nos deficientes f…sicos
come€a pelo prŠprio deficiente. Nega-se o ato sexual, nega-se a car…cia pelo
imagin‡rio da impotƒncia sexual ou da perda da beleza corporal. N•o se
pratica, ou melhor, n•o se permite praticar. Num contexto em que os cuidados
corporais prim‡rios dominam a cena, parece imposs…vel a continuidade de ser
uma pessoa capaz de dar e receber prazer sexual. (TEIXEIRA, 2006, p. 48-49)
O apartheid entre as pessoas com deficiƒncia e as sem deficiƒncia, em rela€•o
’ sexualidade, se torna ainda mais evidente quando se desloca a an‡lise dos primeiros
para os segundos, quando se pensa na possibilidade de um ser n•o-deficiente se sentir
atra…do por um deficiente — pense-se novamente em Br‡s atra…do por Eugƒnia — por
vezes, al„m do pensamento comum, de que o n•o-deficiente “esteja se aproveitando ou
obtendo alguma vantagem” (PAULA; REGEN; LOPES, 2005, p.9) do deficiente,
considera-se a possibilidade de que tal atraۥo seja, em si mesma, uma anormalidade.
De fato, algumas concep€ˆes decorrentes da sociedade eugênica em que
Machado de Assis viveu parecem chegar aos dias de hoje, notadamente quando se
observa que a atra€•o do n•o-deficiente pelo deficiente „ tratada como uma parafilia.
Parafilia proviene del griego para:junto a y filein: amar. A lo largo de la
histŠria de la sexolog…a han intentado definir las parafilias como un trastorno
bas‡ndose, generalmente, en los conceptos de normalidad e anormalidad de
las conductas. De este modo, han existido sinŠnimos y conceptos afines a lo
que hoy denominamos parafilias, como perversiones sexuales, anomal…as o
alteraciones sexuales, conductas excepcionales, preferencias sexuales y
variantes sexuales. (RODR˜GUEZ; S™NCHEZ; P”REZ, 2005, P. 57)
A defini€•o citada „ dada em trabalho intitulado Las raras parafilias femininas,
no qual os autores apontam, dentre tais parafilias a “Amelotasis: atracciŠn sexual por la
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ausencia de un miembro”; (2005, p. 64) e a “Dismorfofilia: atracciŠn a personas
deformadas.”(2005, p.66)
Conv„m perceber como a classifica€•o da atra€•o por deficiƒncias espec…ficas
no rol das parafilias acaba revelando sendo sintom‡tico da forma como se trata a
sexualidade das pessoas com deficiƒncia. Ainda mais sintom‡tico quando se pensa que
a mesma lista cont„m condutas tidas como extremamente reprov‡veis em
determinadas culturas, como „ o caso da “Pederastia (del griego paiderast…a)” —
descrita pelos autores como sendo: — “excitaciŠn sexual com nišos”, ou, mais
especificamente a “Pedofilia: sexo con menores”, (IBIDEM, p.71) que em muitas
culturas „ considerada crime. Ou, ainda, parafilias que podem ser tidas como
prejudiciais ’ sa†de, como „ o caso da “Apotemnofilia: excitaciŠn por la idea de ser
amputado”, da “Coprofilia (coprolagnia): el uso de excremento en la pr‡tica sexual
(Ibidem, p.66)” ou mesmo a “Zoofilia (bestialismo): uso de animales en la pr‡tica
sexual.” (IBIDEM, p.73)
Sem embargo do que se possa dizer a favor ou contra quaisquer destas ditas
parafilias — ou qualquer outra — que parecer arbitr‡rio classificar a atra€•o por
pessoas com deficiƒncia como parafilia, termo largamente associado a comportamentos
de desvio. De fato, parece haver uma grande diferen€a entre sentir atra€•o por algu„m
com deficiƒncia e se sentir excitado com a ideia de ser amputado.
Esta associa€•o se torna ainda mais arbitr‡ria quando se considera que a
Medicina fala no tratamento das parafilias, tratando-as, portanto, como doen€as e
prescrevendo
em
certos
casos
“intervenciones
psicoterap„uticas
basadas
principalmente en t„cnicas conductuales/cognitivas o reg…menes m„dicos basados en el
uso de hormonas o de medicamentos psicotrŠpicos. ” — As palavras s•o de M. Muse e
G. Frigola, que, a propŠsito, tamb„m incluem em sua lista de parafilias a Apotemnofilia.
(La Evaluación y Tratamiento de Trastornos Parafílicos. In Cuadernos de Medicina
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Psicosomatica
y
Psiquiatria
de
Dispon…vel
Enlace.
on
line
em:
<http://www.editorialmedica.com/archivos/cuadernos/Cuad%20N%C2%BA%2065Trabajo5.pdf>)
Se o discurso m„dico ainda encontra espa€o para tratar a atra€•o por
determinadas deficiƒncias desta forma, o mesmo se d‡ fora do meio acadƒmico, nos
di‡logos coloquiais da vida social propriamente dita, onde se fala basicamente em trƒs
categorias: devotees, pretenders e wannabes.
Devotees
„
como
se
denominam
e
s•o
denominadas
pessoas,
independentemente da orienta€•o sexual, que se sentem sexualmente atra…das por
pessoas com deficiƒncia, aproximam-se, portanto, do conceito de amelotasis.
Pretenders s•o pessoas que sentem atra€•o sexual pela ideia de serem, elas
mesmas, ser deficientes, podendo inclusive simular a deficiƒncia publicamente;
Wannabes, por sua vez, s•o pessoas que desejam se tornar deficientes. Pretenders e
wannabes, por sua vez aproximam-se do conceito Apotemnofilia.
H‡ quem compreenda que os devotees s•o uma categoria maior que
compreende tamb„m os pretenders e wannabes, „ o caso de Lia Crespo, que ali‡s faz
um interessante relato dos preconceitos e mitos da atra€•o por pessoas com deficiƒncia
(Cf. Devotees, Pretenders e Wannabes: atração por pessoas com deficiência preconceitos
e
mitos.
Dispon…vel
on
line
em
<http://www.bengalalegal.com/devotee.php>)
Diante do que se viu at„ agora sobre as defini€ˆes a respeito de quem se
interessa sexualmente por pessoas com deficiƒncia, e voltando ao paralelo com
MemŠrias PŠstumas de Br‡s Cubas, „ perfeitamente poss…vel afirmar que Br‡s teve
seus momentos de devotee, ou, melhor dizendo, que esteve acometido de uma
parafilia; o que era especialmente grave quando se considera os valores eugƒnicos
vigentes ’ „poca, e que seria, ainda hoje, uma conduta pass…vel de reprova€•o.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se vƒ, sem embargo de n•o se ter realizado no presente trabalho uma
abordagem completa de MemŠrias PŠstumas de Br‡s Cubas ou da rela€•o entre
sociedade e deficiƒncia, „ poss…vel afirmar que Machado de Assis — talvez pelo fato de
ele prŠprio ter sido, em seu tempo, uma pessoa com deficiƒncia — realizou uma
descriۥo sutil e sobretudo fiel da forma como a sociedade lida com a sexualidade das
pessoas com deficiƒncia, ou, melhor dizendo, com a constru€•o social de uma ausƒncia
de sexualidade (no sentido amplo anteriormente descritos) inerente a tais pessoas.
Tal constru€•o se traduzia e era justificada atrav„s do revestimento de
cientificidade dos valores eugƒnicos que vigoravam a „poca, valores que talvez se
traduzam ainda hoje, tanto no Œmbito pretensamente cient…fico da defini€•o de parafilia
quanto na concepۥo popular de devotee, pois como se viu, existe uma proximidade
entre os conceitos em quest•o.
A forma como as parafilias s•o concebidas e a diversidade de com portamentos
nela englobados, ali‡s, parece apontar no sentido de uma discrimina€•o, ao mesmo
tempo arbitr‡ria e cientificamente aceita, porquanto enquadra numa mesma categoria
t•o prŠxima a da id„ia de doen€a — ou pelo menos de patologia social —
comportamentos aparentemente t•o d…spares, como a atra€•o por pessoas com alguma
deficiƒncia f…sica (devotee, apotemnofilia) e condutas que em muitos lugares s•o
tipificadas como criminosas (pedofilia) ou tidas como pass…veis de causar preju…zo a
sa†de (coprofilia). Conquanto n•o seja objetivo da presente pesquisa subalternizar
qualquer conduta ou preferƒncia sexual existente, quer parecer que existe uma
diferen€a muito grande de grau entre as parafilias descritas.
Tudo o que foi visto nas linhas anteriores parece sugerir, por fim, que sem
embargo da existƒncia de um discurso em diversos planos — popular, científico,
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jurídico, etc. — no sentido da igualdade, isonomia e integra€•o das pessoas com
deficiƒncia, tal discurso sucumbe ante a an‡lise da forma como a sociedade — da
„poca de Machado de Assis e dos dias atuais — trata a sexualidade da pessoa com
deficiƒncia. Tais pessoas ainda parecem estar colocadas em apartheid, da mesma
forma como as Memórias de Br‡s n•o concebem a atra€•o normal pela deficiente
Eugƒnia, a sociedade parece, ainda hoje, n•o compreender que uma pessoa com
deficiƒncia se enquadre nas concep€ˆes referentes a sexualidade dos n•o-deficientes,
vale dizer, quem tem uma deficiƒncia fica relegado a uma condi€•o de subalternidade e
parece n•o ter o direito de crescer, apaixonar-se, namorar, transar. Por fim, supondo
que esta hipŠtese seja verdadeira, o defeito ou deficiƒncia parece estar muito mais na
sociedade que constrŠi os modelos de deficiƒncia, exclus•o e parafilia do que nas
caracter…sticas de determinadas pessoas.
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