IPSI – Instituto de Psicologia Curso de Especialização em

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IPSI – Instituto de Psicologia Curso de Especialização em
IPSI – Instituto de Psicologia
Curso de Especialização em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica
DIFICULDADES E INTRUSÕES NA RELAÇÃO ENTRE UMA MÃE E
SUA FILHA COM SÍNDROME GENÉTICA - SOB O ENFOQUE
WINNICOTTIANO
Márcia Bohrer
Monografia
Novo Hamburgo
2011
DIFICULDADES E INTRUSÕES NA RELAÇÃO ENTRE UMA MÃE E
SUA FILHA COM SÍNDROME GENÉTICA - SOB O ENFOQUE
WINNICOTTIANO
MÁRCIA BOHRER
Monografia Trabalho final de conclusão do
Curso de Especialização em Psicoterapia de
Orientação Analítica do IPSI.
Orientadora: Profa. Soraya Maria Pandolfi Koch Hack
Novo Hamburgo, setembro de 2011.
Quando olho, sou visto; logo, existo.
Posso agora me permitir olhar e ver.
Olho agora criativamente e sofro a minha apercepção e também percebo.
Na verdade, protejo de não ver o que ali não está para ser visto (a menos que
esteja cansado).
(Winnicott, 1975, p.157)
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SUMÁRIO
Página
RESUMO ................................................................................................................... 04
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 05
Aspectos sobre a formação do indivíduo saudável ....................................................... 06
O papel da mãe e o holding ......................................................................................... 09
Sobre a questão da Hereditariedade ............................................................................ 12
Os cuidados maternos e as falhas ambientais ............................................................... 13
APRESENTAÇÃO DO CASO ................................................................................... 15
DISCUSSÃO DO CASO ............................................................................................ 28
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 38
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 40
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RESUMO
Este trabalho refere-se a um estudo de caso de uma menina, portadora de síndrome
genética, em atendimento psicoterápico. O enfoque teórico abordado é essencialmente
Winnicottiano, destacando-se a relação inicial mãe e filha, assim como a importância
dos aspectos ambientais no desenvolvimento do indivíduo saudável, influenciando
decisivamente a vida e a saúde mental das crianças. Questões como a formação das
bases para um indivíduo saudável, a importância da relação mãe e filho nos primeiros
meses de vida, a saúde mental da mãe para que a relação tenha sucesso, o papel do pai
na construção desta relação e a questão da hereditariedade são aspectos abordados e
discutidos no decorrer do trabalho. Enfatiza-se no caso apresentado, as intrusões
maternas e a ausência paterna como questões relevantes na estruturação da menina.
Busca-se refletir sobre as implicações, incluindo conquistas, desafios e limitações que
envolvem este atendimento.
Palavras-chave: vínculo parental, preocupação materna primária, mãe suficientemente
boa, ambiente facilitador, holding, objeto transicional, ilusão e desilusão.
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INTRODUÇÃO
A idéia da realização deste trabalho surgiu a partir de algumas reflexões que
foram sendo feitas no decorrer do atendimento psicoterápico de uma paciente com
síndrome genética rara e que, na verdade, fazem parte do caso ainda em atendimento.
Embasada na teoria do amadurecimento de Winnicott (1979/1983), que destaca a
importância do relacionamento paterno-infantil no desenvolvimento da criança,
incluindo a importância do holding, da continuidade dos cuidados, apresento o estudo
de caso desta menina, começando com os questionamentos e inquietações suscitadas ao
longo dos anos de psicoterapia com esta paciente.
Como fica a capacidade de devoção da mãe nos primeiros meses de vida, com a
notícia de um bebê especial? Como uma mãe instável, que ao mesmo tempo nega seu
bebê especial e o super protege, dificultando ainda mais sua autonomia, vai protegê-lo
das intrusões ambientais nos primeiros meses? Como fica o psiquismo de um bebê, com
um pai ausente e que delega todas as responsabilidades em relação à criança para a
companheira e nega as limitações e diferenças da filha?
A paciente em questão é portadora de uma síndrome genética, apresentando
deficiência de nível leve a moderado, atraso na aquisição da linguagem e nas
habilidades motoras e dificuldades no aprendizado. Os motivos que trazem mãe e filha
para atendimento psicológico são: a síndrome genética e a suspeita de abuso sexual, que
a menina teria sofrido no início daquele ano por uma pessoa da família. A paciente
inicia atendimento psicoterápico nos primeiros anos de vida, quando ainda freqüentava
a Educação Infantil, jardim em classe regular e em classe especial, além de exercer
atividades
com
outros
profissionais
como:
psicopedagoga,
fisioterapeuta
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e
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fonoaudióloga. Com este quadro geral, visualizava-se, desde o início do atendimento,
um longo e árduo caminho pela frente, cheio de desafios, dores, negações, pequenos
progressos e retrocessos a serem enfrentados e que nesse momento me proponho a
discorrer.
É preciso esclarecer que este estudo de caso enfatiza basicamente as relações
estabelecidas entre os pais e sua filha, principalmente a relação mãe-filha, destacando
basicamente a deficiência das relações interpessoais, e não propriamente a deficiência
de ordem genética. Nesse sentido, destaco a concepção de Amiralian (2003):
(...) uma condição orgânica prejudicada não constitui, de forma direta, uma
perturbação psíquica, mas é um dos elementos com que o indivíduo tem de se
haver em sua interação com o ambiente. Para se considerar que o indivíduo com
deficiência tenha uma perturbação psíquica deve-se levar em conta tanto as
condições intrínsecas a seu modo peculiar de ser e, portanto, de perceber e
elaborar a experiência, como as reações ambientais a sua condição. É de
fundamental importância a condição de deficiência nas relações interpessoais,
seja pelas implicações práticas que determina, seja pelo significado que imprime
em todos nós (p. 103).
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Aspectos sobre a formação do indivíduo saudável
A saúde mental do indivíduo está sendo construída desde o início pela mãe, que
oferece o que chamarei de ambiente facilitador, isto é, um ambiente em que os
processos evolutivos e as interações naturais do bebê com o meio podem
desenvolver-se de acordo com o padrão hereditário do indivíduo. A mãe está
assentando, sem que o saiba, as bases da saúde mental do indivíduo (Winnicott,
1988/2006, p.20).
Logo, para a formação de um indivíduo saudável, é preciso muito mais do que
pais que desejem ter um filho, mas também uma consciência desses pais de que eles
estarão contribuindo para a formação da personalidade de seu filho em desenvolvimento
e para isso cada um tem seu papel bastante claro e definido. Para se ter essa consciência,
não é necessário que sejam pais cultos e com conhecimentos formais, mas sim, pais
com a sensibilidade para perceber as necessidades do bebê, que consigam desenvolver
uma grande empatia com esse filho e que quando tomarem a decisão de tê-lo,consigam
se preparar e preparar o ambiente de modo adequado a receber esse bebê.
Para Winnicott (1979/1983), no decorrer da infância “coisas boas e más”
acontecem à criança que estão bem fora do âmbito da mesma. O auxílio ao ego do bebê,
através do cuidado materno possibilita ao lactante viver e se desenvolver, não se
envolvendo em controlar ou sentir-se responsável pelo que de bom e mau ocorre no
ambiente. A mãe, nesse período, deve conseguir perceber que mesmo que seu bebê seja
inteligente, é necessário considerar sua imaturidade emocional e, assim, não
sobrecarregá-lo com estímulos que ele não tenha condições de dar conta nesse período
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de sua vida. Deve tentar preservar ao máximo sua capacidade de compreender e tolerar
falhas, não exigindo mais do que é possível para o bebê.
A partir da adaptação materna para com o seu bebê, será possível que ele crie
uma área de ilusão. Para Winnicott, “a onipotência é quase um fato da experiência”. “A
tarefa final da mãe consiste em desiludir gradativamente o bebê, mas sem esperança de
sucesso, a menos que, a princípio, tenha podido propiciar oportunidades suficientes para
a ilusão” (Winnicott, 1975, p.26). Quando a mãe consegue ser suficientemente boa, o
bebê tem a ilusão de que existe uma realidade externa correspondente a sua própria
capacidade de criar. Ocorre uma sobreposição entre o que a mãe supre e o que a criança
poderia conceber.
Para Winnicott (1975), desde o nascimento, o indivíduo está envolvido com o
problema da relação entre aquilo que é objetivamente percebido e aquilo que é
subjetivamente concebido e para solucioná-lo, é necessário ter tido um ambiente
facilitador, ou seja, uma mãe suficientemente boa. A tarefa da mãe, após propiciar
oportunidade para a ilusão, é propiciar a gradativa desilusão. O que garantirá
posteriormente capacidade para lidar com as frustrações. No ser humano, a tarefa de
aceitação da realidade nunca é completa e ninguém está livre da tensão de relacionar a
realidade interna e externa. O alívio desta tensão se dá através da área intermediária de
experiência, relacionada diretamente com a área do brincar. Esta área é necessária para
o início do relacionamento entre a criança e o mundo.
Segundo Winnicott, “essencial a tudo isso é a continuidade (no tempo) do
ambiente emocional externo e de elementos específicos no ambiente físico, tais como o
objeto ou objetos transicionais” (Winnicott, 1975, p.29). Winnicott (1975) refere que os
objetos transicionais pertencem à área da ilusão, base do início da experiência. É a mãe,
quem vai efetuar adaptações às necessidades de seu bebê, permitindo-lhe ter a ilusão de
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que aquilo que ele cria, existe realmente. O objeto transicional para a criança, significa a
primeira possessão não-eu, o primeiro uso de um símbolo e a primeira experiência da
brincadeira. Um símbolo da união do bebê e sua mãe (ou parte desta), um início de um
estado de separação.
O uso do objeto transicional, para Winnicott (1975), também se refere, ao início
da formação da imagem do objeto, primeiramente representando objetos parciais (seio)
e posteriormente totais (mãe, pai). É a partir da criação de imagens do objeto que será
possível gradativamente a separação das figuras que estes objetos representam e a
entrada da criança no processo de simbolização.
Quando o simbolismo é empregado, o bebê já está claramente distinguindo entre
fantasia e fato, entre objetos internos e objetos externos, entre criatividade
primária e percepção. Mas o termo objeto transicional, segundo minha sugestão,
abre campo ao processo de tornar-se capaz de aceitar diferença e similaridade.
Creio que há uso para um termo que designe a raiz do simbolismo no tempo, um
termo que descreva a jornada do bebê desde o puramente subjetivo até a
objetividade, e parece-me que o objeto transicional (ponta do cobertor, etc.) é o
que percebemos dessa jornada de progresso no sentido da experimentação
(Winnicott, 1975, p.19).
Por isso, o objeto transicional do bebê, deve ser gradativamente descatexizado,
na medida em que se desenvolvem os interesses culturais. A área de ilusão da
experiência, se mantém conservada no decorrer da vida por intermédio das artes,
religiões, o viver imaginativo e trabalho científico criador.
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O papel da mãe e o holding
Metade da teoria do relacionamento paterno-infantil se refere ao lactente, e à
teoria da jornada do lactente da dependência absoluta, passando pela
dependência relativa, à independência, e paralelamente, a jornada do lactente do
princípio do prazer ao princípio da realidade, e do auto-erotismo às relações
objetais. A outra metade da teoria do relacionamento paterno-infantil se refere
ao cuidado materno, isto é, às qualidades e mudanças nas mães que satisfazem
as necessidades específicas e de desenvolvimento do lactente para as quais ela
se orienta (Winnicott, 1979/1983, p.43).
O desamparo primordial do bebê exige uma atenção e sensibilidade materna
muito importante para a base da saúde mental desta criança. Mas também é preciso
lembrar que a mãe igualmente vive uma experiência de desamparo diante de seu filho.
Para Winnicott, “as pessoas que cuidam de um bebê são tão desamparadas em relação
ao desamparo do bebê quanto o bebê o é.” (Oliveira-Menegotto & Lopes, 2009, p. 91).
Algumas mães podem superar tal sentimento de desamparo, em função de sua
estrutura psíquica e em decorrência do suporte de seu entorno. Outras podem mergulhar
num profundo desamparo, tendo dificuldades de se ocupar da função materna. O
desamparo, portanto, faz parte da experiência de maternidade, mas a forma como cada
mãe lida com ele é singular (Oliveira-Menegotto & Lopes, 2009).
Para se ter êxito, é necessário que essa mãe seja assistida em suas necessidades
emocionais, nesse momento tão especial de sua vida, por seu companheiro e/ou sua
família, para que se sentindo segura e amada consiga dedicar-se a seu bebê. Sobre o
papel do pai nesses primeiros momentos de vida do bebê Winnicott coloca: “Eles não
apenas compartilhavam os sentimentos de suas mulheres e passavam por uma parte de
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sua agonia, como também participavam, ajudando a evitar eventuais distúrbios externos
e propiciando a mãe à oportunidade de ficar preocupada, de só se preocupar com os
cuidados para com o bebê que se encontra em seu corpo ou em seus braços”.
(Winnicott, 1988/2006, p.63).
É sabido que para Winnicott (1988/2006), nesse período inicial a empatia e
dedicação da mãe com seu bebê são os fatores mais importantes e valorizados. O
desenvolvimento saudável dele dependerá do sucesso dessa relação, em que a mãe deve
formar uma unidade com seu filho para que possa auxiliar na formação de um ego fort e
e capaz de posteriormente adquirir autonomia e saúde mental. Para que tudo ocorra
bem, é necessário que a mãe consiga ter o que Winnicott (1988/2006) chamou de
Preocupação Materna Primária, com seu bebê. Isso implica em desprender-se
temporariamente de questões individuais e olhar esse filho verdadeiramente, a ponto de
conseguir perceber suas reais necessidades biológicas e principalmente afetivas.
Preocupação Materna Primária é um estado onde às mães se tornam capazes de
colocar-se no lugar do bebê, por assim dizer. Isso significa que elas
desenvolvem uma capacidade surpreendente de identificação com o bebê, o que
lhes possibilita ir ao encontro das necessidades básicas do recém nascido, de
uma forma que nenhuma máquina pode imitar, e que não pode ser ensinada
(Winnicott,1988/2006, p.30).
Winnicott (1979/1983) utilizou a expressão holding para falar sobre a forma de
desempenhar todo esse cuidado materno.
O Holding inclui especialmente o holding físico do lactente, que é uma forma de
amar. É possivelmente a única forma em que uma mãe pode demonstrar ao
lactente o seu amor. Há aquelas que podem suster um lactente e as que não
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podem; as últimas produzem rapidamente no lactente uma sensação de
insegurança e um chorar nervoso ( Winnicott, 1979/1983, p.48).
Segundo Winnicott (1989/1999), a capacidade da mãe de conseguir fazer um
bom holding, não está relacionada às questões de conhecimento intelectual, mas sim,
com a capacidade de se identificar com seu bebê e de perceber como ele está se
sentindo. Na fase do holding, o resultado do progresso normal no desenvolvimento do
lactente é que ele chegue ao que se poderia chamar estado unitário.
“No desenvolvimento emocional individual, o precursor do espelho é o rosto da
mãe” (Winnicott, 1975, p.153). A partir dessa afirmativa, Winnicott (1975), sugere que
o bebê quando olha o rosto da mãe vê a si mesmo. Ou seja, a mãe está olhando para o
bebê e aquilo com que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali. Muitos
bebês, contudo, tem uma longa experiência de não receber de volta o que estão dando.
Eles olham e não se vêem a si mesmos. Como possíveis conseqüências, a capacidade
criativa desse bebê pode ficar comprometida ou ele pode procurar outros meios de obter
algo de si mesmo de volta a partir do ambiente. Assim, o rosto da mãe passa a não ser
um espelho. Alguns bebês, não abandonam inteiramente a esperança e estudam o objeto
e fazem tudo o que é possível para ver nele algum significado que ali deveria estar, se
apenas pudesse ser sentido, estudam as variáveis feições maternas, numa tentativa de
predizer o humor da mãe.
Sobre a questão da Hereditariedade
Num ambiente que propicia um ‘segurar’ satisfatório, o bebê é capaz de realizar
o desenvolvimento pessoal de acordo com suas tendências herdadas. O resultado
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é uma continuidade da existência, que se transforma num senso de existir, num
senso de self, e finalmente resulta em autonomia (Winnicott, 1989/1999, p.11).
Segundo Dias (2003), Winnicott dava dois sentidos para a hereditariedade. O
primeiro seria a tendência inata para o amadurecimento e o segundo referente à
hereditariedade biológica. A participação da genética no processo de amadurecimento é
considerada um fator externo ao bebê, assim como é, a capacidade da mãe de ser
suficientemente boa. “Eles só farão parte da personalidade do bebê se este se apropriar
deles por meio da experiência” (Dias, 2003, p.117).
Complicações psicológicas, segundo Dias (2003), estão ligadas aos transtornos
relativos ao processo de amadurecimento, podendo ocorrer, devido a uma dificuldade
adicional dos pais em exercerem sua função com uma criança com um desenvolvimento
custoso e obstaculizado por problemas orgânico-cerebrais.
Ainda conforme Dias (2003), quando a capacidade intelectual é restrita, além da
dificuldade dos pais de entrar em sintonia com esse bebê, é preciso considerar que há
uma diminuição da capacidade, em geral, que o bebê tem de converter uma adaptação
ambiental insatisfatória em uma adaptação ambiental suficientemente boa. O que vai
pesar, nesses casos, são os cuidados que esse bebê irá receber, dentro de um ambiente
facilitador. Logo, a hereditariedade orgânica, não deve ter um sentido etiológico
exclusivo.
A psique, sim, pode adoecer, a despeito de não haver nenhum problema
cerebral, e ela adoece se a insegurança ambiental não lhe permite estar entregue
à sua tarefa de elaboração imaginativa, devendo, ao contrário disto, usar
prematuramente os recursos mentais para ficar à espreita do imprevisto (Dias,
2003, p.120).
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Os cuidados maternos e as falhas ambientais
Se o cuidado materno não é suficientemente bom então o lactente realmente não
vem a existir, uma vez que não há a continuidade do ser; ao invés a
personalidade começa a se construir baseada em reações a irritações do meio
(Winnicott, 1979/1983, p.53).
Para Winnicott (1989/1999), há dois tipos de distúrbios maternos que interferem
nos cuidados ambientais: por um lado, encontramos mães cujos interesses próprios
sejam mais fortes e que não se permitem abandoná-los mesmo que temporariamente
para se adaptarem as necessidades do bebê; por outro, há mães que desenvolvem uma
preocupação patológica, abdicando de seu próprio self e acabam não retomando mais
suas atividades. O que se espera é que a mãe vá gradualmente deixando de se preocupar
com seu bebê, em sintonia com as necessidades e aquisições dele, ocorrendo uma
espécie de desmame. A mãe que não consegue abandonar seus interesses
temporariamente, em alguns casos, posteriormente, não consegue desmamar seu filho
porque de fato o mesmo nunca a teve.
É normal que a mãe vá recuperando seus interesses próprios à medida que a
criança lhe permite fazê-lo. A mãe patologicamente preocupada não só
permanece identificada à seu bebê por um tempo longo demais, como também
abandona de súbito a preocupação com a criança, substituindo-a pela
preocupação que tinha antes do nascimento desta (Winnicott, 1988/2006, p.22).
Para Winnicott (1988/2006), quando o bebê experimenta falhas ambientais já no
início de sua vida, ou seja, quando a dependência é um fato, neste caso, em graus
variados, há um prejuízo concreto, que pode ser muito difícil de reparar. Na melhor das
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hipóteses, o bebê que está se tornando uma criança ou um adulto, leva consigo a
memória latente de um desastre ocorrido com o seu eu, e muito tempo e energia são
gastos em organizar a vida de tal forma que esta dor não volte a ser experimentada.
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APRESENTAÇÃO DO CASO
Para relatar a trajetória de vida do caso a ser apresentado, chamarei a paciente
pelo nome de Cassiane1, em psicoterapia comigo há 6 anos. Quando iniciou
atendimento psicoterápico, tinha 5 anos de idade.
História de vida da paciente
A gestação acontece no início do relacionamento do casal. Socorro (a mãe) com
31 anos e Paulo (o pai) com 21 anos e exercendo uma profissão que o obrigava a ficar
longos períodos fora de casa. Estavam namorando apenas há alguns meses, quando
Socorro engravidou e passaram a morar juntos, nos fundos da casa dos pais dele.
A gestação não foi planejada e ocorreu em meio a muitos conflitos da mãe com
os sogros. Socorro queixava-se da falta de privacidade do casal e que os sogros
entravam e saíam de sua casa quando bem entendiam, inclusive quando ela e o
companheiro não estavam em casa.
A mãe tomou durante a gravidez medicação para os “nervos”, segunda ela, com
orientação médica. Também tomou medicação para os rins e antibióticos. Era fumante.
Teve risco de perder o bebê aos 06 meses de gestação, caia tombos, com freqüência.
Trabalhou como funcionária de uma fábrica até o sétimo mês de gestação e parou em
razão dos riscos de perder a criança.
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Para realização deste estudo de caso, obteve-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, porém
vale ressaltar que os nomes são fictícios.
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O desenvolvimento de Cassiane e seus primeiros anos de vida
O parto de Cassiane foi natural, aos 8 meses e meio de gestação. A mãe não
sentia dores, nem contrações, tomou medicação para induzir o parto. A mãe lembra que
a filha “nasceu pretinha como um carvão” (sic) e comentou o fato aos médicos. Estes
alegaram que era do frio. Ela diz que nem estava tão frio assim naquele dia e acha que
“ali já havia alguma coisa errada” (sic).
Após o nascimento, a paciente ficou hospitalizada por 6 dias, por estar com
“amarelão’ e, também, foi detectado problema cardíaco (estenose). Em razão deste
problema, foi encaminhada para outro município, para tratamento, onde foi descoberto
que era portadora de uma síndrome genética.
A partir da descoberta da síndrome, a criança iniciou acompanhamento genético
sistemático, não havendo uma explicação que justificasse a síndrome de Cassiane.
Socorro, na época, estava com 31 anos e não havia histórico de pessoas com síndrome,
que eles soubessem, em ambas as famílias. Esse acompanhamento estendeu-se até
aproximadamente os 6 anos de idade de Cassiane, quando recebeu alta. Durante esse
tempo, o pai era chamado constantemente pelas médicas para realização de exames e
nunca comparecia. Alegava compromissos de trabalho, até que a médica deu um
“ultimato”, mandando dizer que sua filha deveria ser de seu interesse e ele acabou
comparecendo essa única vez ao acompanhamento genético.
A paciente foi amamentada somente por um mês, a mãe relata ter tido bastante
leite, mas acha que devido aos “nervos” não conseguiu amamentar e “os peitos
secaram”.
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No primeiro ano de vida da criança, os pais se separaram e a mãe foi morar nos
fundos da casa de sua própria mãe em município próximo. O pai durante a separação,
provia financeiramente a criança e a mãe e as visitava. Ficaram, aproximadamente, um
ano separados, em razão de conflitos de Socorro com os sogros e o companheiro volta a
morar com mãe e filha, nos fundos da casa da sogra.
Nos primeiros anos de vida da paciente, a mãe parou de trabalhar, para dedicarse integralmente a criança. Socorro colocava todo o seu dia a disposição de Cassiane,
envolvendo-se em levar e trazer a filha em seus acompanhamentos e deixava de lado
qualquer atividade que fosse exclusivamente sua.
Seu desenvolvimento psicomotor, tanto amplo quanto fino, foi lento e com
dificuldades. Essas dificuldades foram sendo minimizadas gradualmente e hoje pouco
aparecem. O controle dos esfíncteres, também se deu de forma lenta. Cassiane, aos 5
anos, ainda deixava, “escapar alguns xixis” diurnos em casa e na escola e até hoje toma
medicação que ajuda a controlar os esfíncteres à noite.
A paciente, ainda hoje, não dorme em seu quarto. Socorro chama a criança para
sua cama, pois não gosta da idéia de ficar sozinha. O pai em razão do emprego,
geralmente, está viajando e não consegue dormir em casa, durante várias noites na
semana. Com isso, Cassiane que tem seu próprio quarto e consegue dormir nele, acaba
dormindo com a mãe, quando o pai está fora.
Cassiane, aos 4 anos de idade, passou a sofrer abuso sexual, dentro de sua
própria casa, por familiar do sexo feminino, menor de idade. A abusadora freqüentava
quase diariamente a casa da família e costumava “brincar” com Cassiane em seu quarto
de portas fechadas. Socorro descobre o abuso através do relato da filha, sobre o que
faziam no quarto. Na época, fica muito surpresa e assustada, pois, apesar de perceber
alguns comportamentos “estranhos” da abusadora, nunca pensou que aquilo pudesse
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acontecer. Assim que a filha relata o abuso, Socorro vai aos órgãos competentes em
busca de ajuda jurídica e também procura atendimento psicológico para a filha. Como
moram todos na mesma rua, Socorro passa a ser ridicularizada pela família da
abusadora, que alegava fantasia de Cassiane.
Motivo da busca pelo Tratamento Psicológico
Socorro busca atendimento psicológico no IPSI e conforme a ficha de triagem
preenchida pela mãe, a primeira razão citada seria que sua filha de 5 anos de idade tem
uma síndrome genética e a segunda que sofreu abuso sexual.
Um dos sintomas apresentados pela criança em casa, no ano da busca por
tratamento psicológico, era de esfregar ursos de pelúcia nos genitais, chegando a ficar
suada. O comportamento da mãe diante da cena, era de irritação e xingamentos à
criança. Cassiane, assim que percebia a presença da mãe, parava subitamente,
parecendo querer esconder algo proibido e grave. A paciente, também, no ano do abuso,
regrediu seu controle esfincteriano e passou a ter escapes de urina e a defecar nas calças.
Depois de ter passado pelo processo de triagem, a menina foi remetida aos meus
cuidados e assim inicia-se a longa trajetória de sua psicoterapia.
Dados sobre o início e decorrer do Tratamento Psicológico
A paciente chega ao consultório com uma postura visivelmente marcada por sua
síndrome, dificuldades em caminhar e falar, movimentos bruscos, motricidade fina
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bastante prejudicada e dispersão. Entra na sala sem estranhar o ambiente ou a mim,
sorridente e simpática, parecendo não temer a nova situação.
Sua linguagem no início do atendimento psicoterápico, era bastante
comprometida dificultando o entendimento do interlocutor. Houveram melhoras muito
significativas nessa aquisição, no decorrer do tratamento.
Apresentava-se muito dispersa, pegava tudo o que estava ao seu alcance, mas
não conseguia escolher nenhum objeto, jogo ou brinquedo que lhe prendesse a atenção.
Havia dificuldades na motricidade fina, dando a impressão que tudo o que pegava podia
ser quebrado, parecia “desastrada”. Não conseguia estruturar o brinquedo, apenas
manuseando os objetos que encontrava, olhava, mas não tentava estabelecer uma
relação entre eles e consigo mesma e a elaboração de uma fantasia não se realizava,
havia apenas a curiosidade.
No decorrer das sessões iniciais, apesar da dificuldade de simbolização, da mera
manipulação de objetos da sala e de pequenos diálogos com os ursos, a criança acabava
mencionando o pai, o fazendo posteriormente com bastante freqüência. Incluía o pai nas
brincadeiras, criava diálogos para ele. Ao longo do tratamento, ele passava a ser
presença constante numa brincadeira específica, e que se repetiu por meses de
tratamento, apesar do fato de que na realidade ele não comparece ao consultório e não
participa da rotina diária da menina.
Aproximadamente no início do terceiro ano de atendimento, passa a repetir a
seguinte brincadeira: Trata-se de um passeio, onde participa toda a família. O pai fica o
tempo todo dirigindo o carro, raramente é solicitado a parar e comparecer ao banco de
trás, “onde as coisas acontecem”. Ele é representado pelo pai de pano da família
terapêutica. Mãe e filha, somos eu e a paciente respectivamente, não sendo usados
bonecos para esta representação. A temática do passeio é quase sempre a mesma, a filha
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contando para a mãe sobre namorados, trabalho e filhos, muitas vezes estando grávida e
precisando ser levada ao hospital.
O tema do abuso aparecia nos primeiros meses de atendimento, no meu
entendimento, quando Cassiane fazia algum diálogo com os ursos de pelúcia, se
colocava como figura parental deles e passa a fazer cócegas em suas barrigas. Parecia se
divertir fazendo isso e demonstrava em seu diálogo com eles que os mesmos também
estariam gostando. No momento em que ocorria a cena, era perguntado sobre o que
aconteceu com os ursos, a criança mencionava “ser” cócegas e em seguida era
questionado se o ursinho queria receber as cócegas e se gostava disso, ao que ela
respondia que sim e que gostava. Tal fato me fez pensar, por muito tempo que o abuso
ficou registrado como um excesso de excitação. No entanto, recentemente descubro que
fazer cócegas é um jeito da mãe “brincar” (tocar) com a filha e que a paciente, talvez,
estivesse me mostrando as duas coisas: o excesso de excitação do abuso e o “jeito” da
mãe de se relacionar com ela e de demonstrar afeto.
No consultório, nunca foi observado o descontrole dos esfíncteres mencionado
pela mãe. Porém, a paciente, nos primeiros anos de tratamento, sempre pedia para ir ao
banheiro e na maioria das vezes, defecava. Nesse momento, acredito que o ritual de
defecar no banheiro do consultório estava a serviço de mostrar uma das grandes
dificuldades e foco de trabalho na psicoterapia com a paciente, que é a separação e a
discriminação dela com sua mãe, Socorro sempre se mostrou bastante ambivalente em
relação a sua filha, ora super protegendo e dificultando a aquisição de autonomia, ora
exigindo um desempenho que a filha não tem condições de corresponder devido as suas
limitações. Nas idas ao banheiro, percebia na paciente, uma tentativa de ficar algum
tempo ali e no momento de lavar as mãos um grande prazer em mexer na água e uma
tentativa de prolongar o tempo fazendo isso. Ficar no banheiro implicaria em
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permanecer menos tempo na sessão, como uma tentativa de adiar o aparecimento das
questões dolorosas e difíceis de serem compartilhadas comigo, de se defrontar com a
desilusão. Assim como a comunicação de que o prazer de ficar brincando com a água,
poderia estar significando naquele momento uma tentativa de voltar às sensações
perdidas intrauterinas e que talvez, não puderam ser vividas intensamente porque
tenham sido acompanhadas de muitas outras sensações bem menos agradáveis,
considerando o momento que essa criança foi gerada e nas suas circunstâncias.
Outro fato que chama a atenção é que a criança traz para as sessões um objeto
seu, não necessariamente o mesmo, podendo ser um urso de pelúcia ou mais de um, ou
ainda uma porção de objetos como: dinheiros de papel, espelho, papeizinhos, canetas,
etc. Percebo a necessidade de trazer algum objeto seu e de sua casa para dentro da
sessão e ao mesmo tempo uma impossibilidade de desligamento dessa casa (mãe) .
Em agosto de 2007, a paciente foi encaminhada para realização de avaliação
psicológica no IPSI, por apresentar dificuldades de aprendizagem importantes. Nesse
ano, encontrava-se na 1ª série. Apresentou, no momento desta avaliação um rendimento
intelectual global baixo para sua faixa etária, caracterizando um quadro de retardo
mental leve. Na área verbal, demonstrou dificuldade de atenção e concentração nas
tarefas, assim como na análise, síntese e simbolização, denotando nível concreto de
pensamento. No entanto, possui boa verbalização, facilitando sua interação social. Na
área percepto-motora, demonstrou dificuldades maiores na organização e percepção
visual, coordenação visomotora, seqüência e seriação, alguns dos pré-requisitos para a
aquisição da escrita, leitura e cálculos, aptidões que ainda precisam ser desenvolvidas
para que a paciente se alfabetize. Também estavam presentes indicadores emocionais
que sugeriram ansiedade, instabilidade, dependência e sentimentos de inferioridade.
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A presença da mãe
Socorro conhece seu companheiro, anos mais jovem do que ela e com
escolaridade bastante inferior a sua. Inicia um relacionamento com ele e nos primeiros
meses juntos, fica grávida. Desta gravidez nasce, como já foi citado, uma criança com
uma síndrome genética, mudando radicalmente a vida do casal, especialmente da mãe.
Socorro, abre mão de seu emprego para se dedicar a filha e sua vida passa a ser a vida
de Cassiane. Seus dias resumem-se a acompanhar a filha na escola, nas atividades extra
classe e nas consultas médicas.
A família mora, atualmente, no mesmo pátio da casa da mãe de Socorro, que já
estava em idade avançada e tinha uma postura de muita dependência em relação à filha.
Socorro ia ao mercado para a mãe, pagava suas contas no centro. A idosa praticamente
não saia de casa e tinha uma postura bastante queixosa em relação à vida, a sua saúde e
a sua história. Desta forma, Socorro, era cuidadora de sua filha, que possui uma
síndrome, e de sua mãe, idosa, com sintomas depressivos e extremamente dependente
emocionalmente. No decorrer do tratamento, a mãe de Socorro acaba falecendo.
Desde o início do atendimento, a mãe refere o desejo de ter outro bebê, quer ter
a chance de ter um filho normal e assim se sentir uma mãe como as outras. Junto com o
desejo, possui também o medo de que, na tentativa de ter outro filho, acabe gerando
outra criança com síndrome. Ainda não encontrou respostas para muitos
questionamentos que a acompanham e já se sentiu bastante culpada pelo que aconteceu,
achando que talvez tenha prejudicado seu bebê com alguma medicação, com o excesso
de trabalho e com o fato de ser fumante, que justificasse o ocorrido.
É na Escola Regular que aparecem as maiores dificuldades da criança e da mãe.
As dificuldades de Cassiane no aprendizado formal fazem a mãe realizar constantes
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questionamentos aos professores, acreditando que não estão se esforçando o bastante e
que favorecem a filha, minimizando as cobranças para ela e tratando-a de forma
diferente. A mãe acredita que os professores facilitam as coisas para a filha e a impedem
de aprender.
A questão do abuso sexual causa ainda muito sofrimento para a mãe e
sentimentos de raiva, culpa e o desejo de fazer justiça, como uma tentativa de reparar o
dano que foi causado. Na época sentiu-se cobrada pelo companheiro de que existiam
sinais de comportamentos estranhos pela familiar que praticou o abuso. Paulo já havia
conversado sobre isso com Socorro e ela não ouviu a percepção dele.
No quarto ano de atendimento, desejou olhar o processo judicial relacionado ao
abuso e que não vinha acompanhando. Descobriu que o processo estava paralizado, que
não tinha sido encaminhado da delegacia para o Fórum e saiu peregrinando com a filha
pela mão, entre delegacia e Fórum, inconformada com o não andamento do processo e
relembrando a revivendo tudo o que aconteceu.
A ausência do pai
O pai estava saindo da adolescência quando soube que sua companheira estava
grávida. Possui um nível de escolaridade inferior ao de Socorro e seu trabalho lhe
obriga a passar longos períodos longe da família. No momento em que se tornou pai
ainda estava com questões de dependência suas por resolver. Apesar de já estar no
mercado de trabalho, morava com os pais, estava começando a conhecer melhor sua
companheira e não pensava em filhos e assumir uma família naquela fase de sua vida.
Mostra-se totalmente ausente em relação às questões que envolvem a paciente,
passa a semana viajando, não participa da agenda cheia de atividades e compromissos
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que a mãe assume para proporcionar a filha estimulação e acompanhamentos
profissionais.
Até o momento, no decorrer do processo psicoterápico, compareceu uma única
vez na entrevista dos pais, no terceiro ano de tratamento, apesar de ter sido convidado
várias vezes. Está sempre envolvido no trabalho, não abre espaço para pensar sobre sua
filha, conhecer o que se passa com ela, entender as suas necessidades e principalmente
dar holding para a companheira conseguir cuidar da criança.
Suas atitudes se apóiam racionalmente na idéia de que o pai é o provedor da
família e sustentar essa família financeiramente é fazer o papel que lhe cabe. É com essa
concepção e discurso aprendido socialmente, que justifica sua exclusão. Essa, talvez,
tenha sido a forma que o pai encontrou de negar a síndrome de sua filha e assim, não
entrar em contato com o sofrimento e frustração de ter uma criança com limitações.
Também, pode ser uma forma de omitir seu despreparo psíquico para apoiar sua esposa
e dividir com ela a possibilidade de desconstrução da imagem da filha ideal e a
construção do cuidado e investimento na filha real.
Momento atual do tratamento
Atualmente, Cassiane, com 11 anos e ingressando na 4º série, participa do
programa de inclusão na classe regular, tem se interessado mais por assuntos que
remetem à escola, demonstrando isso durante as sessões. O interesse manifestou-se
através do desejo de fazer desenhos e pintá-los, esse recurso raramente escolhido até
então. A paciente quer, além de desenhar, escrever cartas, fazer textos, atividades que
exigem maior simbolização.
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Também tem pedido que a terapeuta leia historinhas, algumas vezes inicia
querendo ler e acaba por criar histórias vendo as figuras e em seguida pede que leia a
história para ela e consegue escutar até o final, demonstrando maior concentração e
interesse. O desejo de aprender a escrita, revela o desejo da criança de crescer, de
expressar-se com recursos mais elaborados e de autonomia.
Sempre introduz na sessão o nome de algum menino e diz ser sua namorada.
Brinca com os bonecos que tem marido e filhos. Quando brinca de escrever, redige
cartas para o marido, fazendo constantemente alusão às questões da sexualidade. A
sexualidade precoce, sempre esteve presente nas sessões de Cassiane, provavelmente,
em razão do excesso de excitação que sofreu aos 4 anos, quando abusada pela familiar.
A paciente não traz mais de forma sistemática os bichinhos de pelúcia para a
sessão. Hoje, quando menciona os bichinhos, é através de ligações telefônicas que faz
para eles, que ficam em casa. Comenta nos telefonemas assuntos que estão sendo
tratados na sessão, algumas vezes passa o telefone para mim. Isso mostra o quanto
Cassiane já não precisa mais da presença concreta de seus objetos transicionais,
conseguindo manter um distanciamento e simbolizar na brincadeira. Também consegue,
por alguns minutos, interromper a brincadeira e me contar fatos que acontecerem
durante a semana com ela e seus familiares.
O funcionamento materno continua bastante oscilante. A mesma não aceitou a
última repetência da filha, brigou com a Diretora da escola, buscou novas escolas,
discutiu o caso da filha com instâncias maiores que a escola, e ao final, acabou fazendo
o que queria, independente da opinião dos profissionais que acompanham a criança e
que fizeram várias considerações a respeito desta mudança. Apesar disso, Socorro tem
conseguido realizar atividades que sejam voltadas a ela mesma. Iniciou um curso de
artesanato, gostou tanto que passou a confeccionar os objetos para vender e buscou
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outros cursos para se aperfeiçoar. Fala em continuar nessa atividade e futuramente
montar uma loja para ela e Cassiane trabalharem. Socorro iniciou as provas para fazer a
carteira de motorista, quer facilitar a vida dela e da filha nas idas aos profissionais,
economizando tempo e diminuindo o cansaço das duas, que até o momento dependem
de ônibus. Esse era um desejo antigo de Socorro e que ficou abandonado por muitos
anos. Aos poucos, Socorro consegue voltar a olhar-se e retomar seus próprios projetos,
sem se sentir abandonando a filha ou deixando de dedicar-se a ela.
A mãe também passa a investigar o porquê não engravidou novamente.
Descobre que tem questões anatômicas das trompas que dificultam a fecundação e
endometriose. Sua médica explica que são problemas antigos seus e que poderia não ter
engravidado de Cassiane. Penso que Cassiane é uma sobrevivente, não apenas de sua
síndrome, mas de todos os obstáculos que vêm enfrentando desde sua concepção.
Recentemente, a mãe de Cassiane descobre que alguns familiares paternos que
moram no interior do estado, possuem características bastante parecidas com as de sua
filha, em relação às dificuldades de aprendizagem. O próprio pai não conseguiu seguir
muitos anos na escola e acabou desistindo por apresentar dificuldades no aprendizado.
O pai não compareceu mais as entrevistas de acompanhamento, mesmo com a
minha insistência e também da própria criança, repetindo sua dificuldade em aprender e
se apropriar da realidade da filha. Porém, mudou de emprego e agora consegue ficar um
pouco mais de tempo com a esposa e a filha. Com sua maior presença em casa, ficou
evidente o quanto nega a síndrome da filha. Tem brigado com ela, quando a mesma não
consegue realizar as tarefas, tem prometido presentes de natal se ela passar de ano e
acusado a esposa de super proteger a criança.
Acredita que a proteção da mãe faz com que Cassiane não consiga fazer as
atividades. Demonstra assim, uma inabilidade em lidar com a síndrome da filha.
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Percebo grande sofrimento em Paulo e a indicação e importância deste pai em participar
do tratamento da filha para se apropriar do que acontece. Atualmente, tem conseguido,
quando está na cidade, trazer Cassiane sozinho para o atendimento e aguardar na sala de
espera. Mantém financeiramente o tratamento da filha, demonstrando que, apesar da
resistência e grande dificuldade de se aproximar de questões tão dolorosas, não priva a
menina e sua mãe de que possam entender o que acontece e o que sentem.
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DISCUSSÃO DO CASO
Seja qual for o potencial herdado, os cuidados ambientais que o lactente recebe
fazem parte do processo de sua constituição como pessoa. Se a adaptação às
necessidades for suficientemente boa, há chance de o indivíduo desenvolver,
próximo ao máximo, as suas potencialidades hereditárias; em alguns casos, será,
talvez, preciso que o ambiente compense e equilibre, tanto quanto possível, as
tendências do bebê à enfermidade ou, mesmo, seja capaz de lidar com
enfermidades já estabelecidas (Dias, 2003, p.121).
A discussão do caso apresentado será predominantemente focada nas
características do vínculo parental nos primeiros anos de vida da menina, refletindo-se
sobre as possíveis fragilidades que influenciaram o seu desenvolvimento.
Com essa paciente, o vínculo parental sofre as repercussões de um luto de um
bebê imaginário e a presença de um bebê real e portador de uma síndrome genética
pouco conhecida para a família. A precocidade da relação do casal e a pouca idade
paterna, podem ter contribuído para dificultar ainda mais o entendimento do casal entre
si e o estabelecimento de uma convivência tranqüila e segura para que pudessem
usufruir do momento gestacional de forma prazerosa, completa e intensa.
Houve muita dificuldade materna e paterna em aceitar que a filha é portadora de
uma síndrome. A mãe, por um lado, com uma grande expectativa que Cassiane fosse
alcançar certos desempenhos nas atividades escolares e, de outro, com uma super
proteção que acabou limitando ainda mais as questões de autonomia e independência da
criança. Nas duas situações, percebe-se que Socorro, através de suas diversas intrusões e
rupturas, afasta-se da verdadeira preocupação materno-primaria, como propõe
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Winnicott (1988/2006), ou seja, não consegue ir ao encontro das demandas do bebê,
pelo contrário, é Cassiane que precisa ir ao encontro das necessidades da mãe. Como
diria Winnicott, quando olhou para o rosto da mãe, não viu a si mesma e sim o que a
mãe gostaria que ela fosse ou a frustração da mãe, por ela não ser o que gostaria que a
filha fosse.
Nas primeiras fases do desenvolvimento emocional do bebê humano, um papel
vital é desempenhado pelo meio ambiente, que, de fato, o bebê ainda não
separou de si mesmo. Gradativamente, a separação entre o não-eu e o eu se
efetua, e o ritmo dela varia de acordo com o bebê e com o meio ambiente. As
modificações principais realizam-se quanto à separação da mãe como aspecto
ambiental objetivamente percebido. Se ninguém ali está para ser mãe, a tarefa
desenvolvimental do bebê torna-se infinitamente complicada (Winnicott, 1975,
p.153).
Não há um afastamento concreto, por parte da mãe de Cassiane, mas um há uma
falha no holding, como propõe Winnicott. A mãe apresenta constantemente intrusões
em relação a sua filha. O pai, por sua vez, mostra-se frágil e ausente, com um
distanciamento das questões que envolvem a filha, delegando todas as preocupações e
tarefas para que a mãe desempenhasse, recusando-se a pensar sobre essa realidade e
apropriar-se do seu papel.
Neste sentido, é possível corroborar as idéias de Amiralian (2003) que aponta as
dificuldades encontradas nas mães quando se defrontam com a descoberta da
deficiência do filho:
A descoberta de uma deficiência no filho, com todas as perdas que envolvem, é
uma situação propiciadora ao desenvolvimento de um estado depressivo na mãe,
que a levará ao afastamento de seu bebê, impedindo-a de alcançar o estado de
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preocupação materna primária, necessário a uma boa acolhida deste. E nesse
momento inicial, quando o bebê necessita que lhe seja fornecida uma total
adaptação a suas necessidades, ele, muitas vezes, é posto em um lugar de
estranheza e desconhecimento, com a mãe sofrendo suas próprias dores, que a
tornam incapacitada para assumir seu papel (p. 104).
No início do tratamento, mais exatamente na primeira sessão, é percebido que a
paciente chega de forma muito espontânea e ao mesmo tempo desprotegida, sorri para a
terapeuta, entra na sala sem nenhuma resistência e não apresentando desconforto por
entrar sozinha, como se fosse um grande pedido de ajuda. Penso que esse jeito de
entregar-se às situações novas e desconhecidas com tanta facilidade, poderia estar
servindo como defesa para esconder seus temores e ao mesmo tempo uma inadequação
e indiscriminação da criança frente ao desconhecido e ao estranho, uma dificuldade para
avaliar mais cautelosamente o novo.
A simbiose entre mãe e filha aparece de diversas formas na vida de ambas.
Dormem juntas praticamente todas as noites, vão a todos os lugares juntas, uma fazendo
companhia para outra e preenchendo um vazio que ora retrata a falta do pai, ora a
própria vida que a mãe abandonou para dedicar-se a filha. A mãe fala das questões da
filha, inclusive sobre o abuso sexual, na frente da menina, sem diferenciar contextos e
para quem está a falar. Conversa com a filha ou na frente dela sobre qualquer assunto
que a angustie (mãe).
Essa necessidade de Socorro contar e recontar a história da filha para muitas
pessoas, de forma indiscriminada e evacuativa é compreendida de acordo com a
concepção de Oliveira-Menegotto & Lopes, quando fala sobre mães com bebês com
síndrome de Down, ou seja, parece que estas mães precisam falar e serem escutadas, da
mesma forma como quando uma pessoa sofre um trauma, tendo a necessidade de contar
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e recontar o fato ocorrido, numa tentativa de refazer o caminho percorrido e de trazer
alívio para a dor, ou até mesmo de dar um sentido àquela vivência tão assustadora. A
fala parece “atender à necessidade de escoar o montante de energia psíquica que invadiu
o aparelho psíquico, dando um destino ao que foi vivido como um excesso”(2009).
Socorro não consegue recusar o que a criança solicita, não há uma reflexão sobre
as reais necessidades da criança, as ações ficam automatizadas e assim há um
impedimento da capacidade de pensar da criança e uma indiscriminação em relação as
suas necessidades. A criança acaba ficando confusa, participando de conversas adultas,
ouvindo questões de um mundo que não o infantil e com uma idéia de poder onipotente
em relação às coisas, já que não há discriminação entre ela e a mãe.
É na escola, que aparecem as maiores dificuldades da criança. Sendo assim, é lá
também que essa mãe demonstra toda a frustração e tristeza porque, apesar de investir
constantemente, não ter, a filha de seus sonhos. Questiona os professores e seus
métodos, deseja contratar um professor particular para a menina, mesmo que os
professores e a psicopedagoga recomendem não ser necessário.
Como refere Amiralian (2003), a partir da proposta teórica de Winnicott, o
desenvolvimento saudável é aquele que possibilita ao indivíduo crescer e amadurecer de
acordo com suas condições herdadas e congênitas. A função do ambiente é oferecer as
condições necessárias de interação que permitirão que "surja um emergente, indivíduo
que procura fazer valer seus direitos, tornando-se capaz de existir..." (Winnicott, 1990,
p. 26 conforme Amiralian, 2003). Considera sadios aqueles "que estão (por definição)
mais próximos de ser aquilo que permitiria o equipamento com que vieram ao mundo"
(p. 37). Tomando as palavras de Amiralian (2003), podemos pensar que Cassiane fica
impedida de valer seus direitos, “ser capaz de existir” por ela mesma. Seu “equipamento
mental” sofre constantemente intrusões maternas.
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A mãe está sempre em busca de algo que possa ajudar concretamente a menina,
em relação à aprendizagem. Assim, não vê sua filha real e acaba não encontrando
formas de ajudá-la mais adequadas e mais ligadas ao afeto. A criança acaba ficando
sozinha para realizar o processo de desilusão, presa aos objetos transicionais e na ilusão
materna, impedida de poder se independizar, há uma falha no processo de simbolização
e representação, dificultando o processo de aprendizagem. Fica evidente, a dificuldade
de aquisição da simbolização no brinquedo, decorrente em parte de questões da
síndrome,
mas
corroborada
por
questões
ambientais
e
familiares
vividas
cotidianamente, que oscilam entre a negação das limitações da criança pelos pais,
ausência paterna e a intrusão materna, que acaba por reforçar no psiquismo da criança
sua incapacidade para pensar e resolver seus próprios problemas.
No desenvolvimento de uma criança, conforme propõe Winnicott (1979/1983), é
necessário que o bebê desde o início encontre um ambiente sustentador, e assim o
potencial herdado pode se tornar uma “continuidade do ser”. O cuidado materno tem
por isso a principal função de reduzir ao mínimo as irritações a que o bebê deva reagir, a
fim de não interromper o ser para reagir. Reagir, nesse contexto, significa aniquilamento
do ser pessoal, descontinuidade, sofrimentos de qualidade e intensidade psicótica,
situação esta identificada em Cassiane. É na falha do cuidado materno, que o bebê se
torna perceptivo, não de uma falha, mas dos resultados, quais quer que sejam dessa
falha. Ele se torna consciente de reagir à irritação (Winnicott, 1979/1983, p. 47).
A figura paterna é ausente não só no processo psicoterápico, mas também nas
demais atividades da vida da criança. Cassiane, numa tentativa saudável de sair da
simbiose existente com sua mãe, introduz nas brincadeiras da sessão a figura paterna.
Como não poderia deixar de ser, este aparece como um pai frágil, “de pano”, bem
menor que os demais personagens, mas presente em sua psique, como uma tentativa de
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não se entregar ao destino que lhe foi traçado: a não separação da mãe e a trajetória de
uma vida não legitimamente sua, mas contaminada por um desejo narcisista de suas
figuras parentais.
Entendo que o pai se sinta identificado com sua filha, já que teve dificuldades de
aprendizagem em sua própria infância e não conseguiu evoluir na escola. Além disso,
seus familiares também possuem dificuldades semelhantes às de sua filha. Apropriar-se
da filha real, olhar para suas dificuldades, buscar entendê-las, seria uma forma de ajudála e principalmente de não deixa-la sozinha, desamparada e com apenas o referencial
materno.
É frequente observar nas interações com pessoas tendo deficiências a crença em
que a maneira certa de se compreender e fazer alguma coisa é aquela aprendida
pela maioria das pessoas que não têm qualquer deficiência, seja orgânica ou
funcional. Desta forma persiste a crença em que, para aqueles que têm uma
forma diferente de compreender a realidade externa, o melhor é tentar adquirir,
mesmo que seja de uma forma não criativa e não elaborada a partir de sua
própria experiência, os conceitos impostos por aqueles considerados normais.
Nas intervenções dirigidas às pessoas com deficiência pode-se observar a
imposição de valores e padrões considerados "normais", que devem ser
apreendidos por elas, que se constituíram a partir de uma condição orgânica
diferente (Amiralian, 2003, p. 106).
Podemos refletir neste ponto que estas são também situações intrusivas e até
abusivas e que se repetem na vida de Cassiane.
A paciente vive os dois extremos, de um lado uma mãe que passa o dia tentando
estimulá-la para que consiga apresentar desempenhos dos quais talvez não esteja pronta
ou que alguns não dará conta em momento algum, de outro, um pai que nega as
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limitações da filha e prefere não falar sobre isso com ninguém de dentro ou fora da
família, possivelmente nem com ele mesmo. Ambos alimentam a ilusão de que a
paciente é igual as demais crianças e de que só depende do esforço dela para alcançar o
sucesso esperado pelos pais. Tal procedimento é extremamente difícil para a menina,
que acaba confundindo e distorcendo a percepção de si mesma e sobre o que vê e sente.
Segundo Dias (2003), nenhuma criança, pode vir a tornar-se uma pessoa real, a
não ser através de cuidados e de um ambiente que facilite os processos de
amadurecimento. Para a autora:
(...) o que está, portanto, em pauta no amadurecimento pessoal, não são funções
isoladas, sejam elas biológicas, mentais ou sexuais, mas o próprio viver humano,
naquilo que este tem de estritamente pessoal: o sentimento de ser, de ser real, de
existir num mundo real como um si-mesmo (Dias, 2003, p.97).
As questões levantadas nesse ponto, e pertinentes ao caso de Cassiane, não
referem-se propriamente ao biológico ou à estruturas cerebrais intactas, mas sim, a
possibilidade de experimentar o sentimento de “estar vivo”, de sentir-se real e de sentir
as experiências como reais.
Em relação ao uso dos objetos transicionais e o prolongamento desse uso por um
tempo maior que o esperado para a faixa etária. Chama a atenção o fato de Cassiane
trazer sempre um objeto seu para a sessão, que no início eram objetos soltos como
papéis, canetas, presilhas de cabelo, bloquinhos de anotações e posteriormente se
estabeleceu sendo os bichinhos de pelúcia. Fica a pergunta, quem esse objeto
transicional está representando? A simbiose com a mãe, que precisa entrar junto com a
criança na sessão, impedindo a sua autonomia e da capacidade de pensar? A figura
paterna, tão ausente exteriormente, mas sempre presente nas brincadeiras da criança,
como uma tentativa saudável de introduzir um terceiro na relação mãe-filha? Ou seria o
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intruso que invadiu sua psique por volta dos quatro anos de idade, que introduziu
elementos que a criança não tinha como dar conta, que não eram do seu universo
infantil e que ainda a acompanha em seus pensamentos e sentimentos?
A presença precoce da sexualidade nesta menina e que se revela nas sessões
através de suas fantasias, parece estar relacionada com a questão do abuso sexual
sofrido nos primeiros anos de sua vida e que deixou seu registro na psique da criança,
mas também aparece, talvez como única saída para desgrudar da mãe, já que as
brincadeiras referem-se a paciente já adulta, tendo namorados, filhos, morando numa
casa independente dos pais. Também é possível pensar numa tentativa desta menina de
livrar-se do abuso psíquico, constantemente sofrido e que a impede de encontrar seu
verdadeiro caminho e suas habilidades e potencialidades, em detrimento do desejo dos
pais.
A vinda de outro filho, desejo da mãe, poderia dar vários rumos na trajetória da
paciente. Talvez essa mãe conseguisse liberar um pouco mais a paciente de sua super
proteção e assim ela poderia ter a chance de adquirir mais autonomia. Não precisaria ser
lembrada o tempo todo de sua síndrome e viveria de forma mais integrada na sociedade.
Mas também, parece haver o risco da dedicação se voltar totalmente para o novo
integrante da família, tão desejado e esperado por todos e a paciente ficar em situação
de abandono e rejeição, como sendo a tentativa que não deu certo, sendo que neste caso
o resultado seria catastrófico para ela.
A mãe possui dificuldades psíquicas importantes, que aparecem não só na sua
dificuldade de separação com sua filha, nas suas mudanças bruscas de atitude em
relação ao rumo que dará a história da menina, na exposição da filha em situações
inadequadas e principalmente em sua dificuldade de aceitar a filha real, desidealizada.
Por tudo isso, seria fundamental, para um melhor prognóstico da menina, que a mãe
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aceitasse realizar um tratamento psicoterápico. Porém, a idéia da mãe de realizar uma
psicoterapia é distante, ficando em Cassiane essa necessidade de tratamento. A mãe usa
de motivos racionalizados para o não tratamento como, falta de tempo, não ter com
quem deixar Cassiane, falta de condições financeiras. Seria fundamental também, que o
pai, figura ausente, frágil e assustada com tudo que precisaria dar conta, conseguisse
assumir de fato sua família, colocando-se de forma mais presente, impondo limites
primeiro à mãe e depois à menina e mostrando um outro modelo parental diferente e
valorizado para que a menina pudesse olhar e desgrudar da figura materna. Enfim,
oferecendo um holding a esta família.
Para Dias (2003), a ideia de Winnicott sobre o processo de amadurecimento
pessoal depende de dois fatores: a tendência inata ao amadurecimento (tendência à
integração num todo unitário) e a existência contínua de um ambiente facilitador. A
tendência inata ao amadurecimento é como o próprio nome diz apenas uma tendência e
dependerá totalmente do ambiente facilitador, que forneça cuidados suficientemente
bons para que ela possa se desenvolver. No estudo de caso apresentado, o processo de
amadurecimento pessoal da menina vai acontecendo repleto de falhas. Falhas estas, que
conforme Dias, não são integradas por meio da experiência e ficam como perturbações.
O tratamento psicoterápico para esta paciente aparece como uma possibilidade e
oportunidade para a criança, dentro de um espaço seguro e confiável, experimentar
vínculos que envolvam constância e acolhimento, lugar onde ela possa mostrar seu
verdadeiro self e reconstruir em sua psique novos modelos parentais.
No decorrer do tratamento tem se priorizado as questões relacionadas à dupla
mãe e filha para que a paciente, no seu tempo, possa adquirir condições de
independência, limites e a descoberta de suas potencialidades. A estruturação do
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brinquedo, a possibilidade de maior concentração nas tarefas e a continuidade das
mesmas, são pontos que já apresentam alguns progressos.
Percebo que minha função terapêutica transita, transferencialmente, entre
exercer uma função materna de holding, dando espaço às reais possibilidades de
Cassiane, ou seja, contribuindo na sua expressão de seu self verdadeiro, e uma função
paterna, representada como um terceiro que tenta dissolver de forma lenta e gradual a
simbiose estabelecida entre mãe e filha, autorizando a paciente a crescer e descobrir
seus próprios desejos, lidando com questões de realidade, ou seja com as desilusões
necessárias.
É fundamental, para um melhor prognóstico desta menina, que o ambiente
familiar e extrafamiliar, proporcionem à criança estímulos e oportunidades para que ela
possa gradativamente independizar-se, sempre respeitando o seu tempo e sua
individualidade, não exigindo além de suas capacidades.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância dos vínculos parentais, maternos e paternos nos primeiros anos de
vida da criança e as repercussões que envolvem a qualidade desses vínculos é o cerne
desse trabalho. No caso apresentado e discutido, mais do que a bagagem genética menos
favorecida, a forma como as relações se estabelecem e o quanto primeiramente a mãe e
posteriormente o pai conseguem perceber as reais e verdadeiras necessidades de seu
filho, é que podem influenciar sucessos na estruturação psíquica do indivíduo e sua
integração.
Questões como a estrutura psíquica da mãe, a forma como a mesma tolera as
frustrações, a presença de questões narcisistas marcantes e a dificuldade de se
desprender-se da filha ideal para que possa empaticamente enxergar sua filha, marcam a
história desta paciente e talvez outras tantas que chegam aos nossos consultórios
desprovidas de espontaneidade e com impossibilidades de exercer seu self verdadeiro.
No caso de Cassiane, a paternidade tomada de surpresa, o despreparo e impossibilidade
de ocupar e exercer o papel de pai na família, resultam numa indiscriminação de papéis
familiares, dependência entre os membros e falta de espaço para pensar sobre suas
histórias.
A continuidade do tratamento psicoterápico da filha, a sensibilização da mãe
para que busque ajuda para si e a insistência na presença do pai, apontam como sendo
os pontos principais a serem perseguidos e perssistidos daqui para frente.
As limitações de um atendimento infantil esbarram principalmente no número de
pessoas envolvidas, cada uma com sua estrutura, suas vivências e suas limitações. O
destino da criança acaba dependendo tanto do seu próprio processo psicoterápico, como
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também do que se consegue com os pais e do quando estão dispostos a se reverem para
ajudar seu filho no seu desenvolvimento.
Apesar das inúmeras dificuldades encontradas, a mãe da paciente consegue “ser
constante”, mantendo uma continuidade com alguns profissionais que ajudam a cuidar
da menina, e assim dando a chance da menina pensar com outras pessoas sobre sua
história e quem sabe reconstruí-la. O pai, por sua vez, não se faz presente nas entrevistas
que a princípio seriam para ambos os pais, mas mantém financeiramente o tratamento, o
que me faz acreditar que há um investimento nessa filha, mesmo que ele se coloque
totalmente de fora. Sei que é apenas um “fio” de esperança, mas penso que, mesmo que
eles não consigam ver de outras formas, não estão impedindo totalmente que Cassiane
possa viver novas experiências com outras pessoas externas à família.
O estudo desse caso mostra que as limitações de ordem genética ficaram como
um pano de fundo para essa história. A marca mais significativa parece ser aquela
deixada pelas relações estabelecidas com as figuras parentais e a qualidade das mesmas.
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REFERÊNCIAS
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da psicanálise Winnicottiana. Estilos Clin, 8 (15), 94-111.
Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D.W. Winnicott. Rio de Janeiro:
Imago.
Oliveira-Menegotto, L. M., & Lopes, R. de C. S. (2009). “Tornar-se Poliana”: o
desamparo materno diante de um bebê com síndrome de Down. Psico, 40, 449457.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação - Estudos sobre a
teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed. (Original publicado
em 1979)
Winnicott, D. W. (1999). Tudo começa em casa (3ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.
(Original publicado em 1989)
Winnicott, D. W. (2006). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes. (Original
publicado em 1988)
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