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GESTÃO DE FRAUDE
CRÓNICA VISÃO ELECTRÓNICA
Nº 329 / 2015-05-07
http://www.gestaodefraude.eu
Manuel Castelo Branco
> > Desigualdade e corrupção legal
Nos últimos anos, o tema da desigualdade na distribuição da riqueza e dos rendimentos tornou-se bastante popular. A aceitação de livros recentes sobre ele,
de autores tão reputados como Branko Milanovic, Joseph Stiglitz ou Thomas
Piketty, prova à saciedade a preocupação generalizada e a atenção que tem
atraído. Por exemplo, relativamente ao livro de Thomas Piketty, “O Capital no
Século XXI”, sabe-se que a tradução inglesa se tornou o livro mais vendido na
Amazon. De facto, esta tradução do livro de Piketty foi publicada em Março de
2014 e chegou logo, em Abril e Maio do mesmo ano, a número um na lista de
livros mais vendidos (incluindo ficção) da Amazon. De notar que este especialista em desigualdade foi convidado para efetuar uma conferência no Grande
Auditório da Gulbenkian sobre o seu livro, no dia 27 de abril, o que é revelador
do interesse sobre o tema que também em Portugal se faz sentir.
Apesar de não ser totalmente consensual, a ideia de que os níveis
atuais de desigualdade são preocupantes é amplamente partilhada, o que não é de estranhar tendo em conta os dados que se
conhecem sobre o assunto. Basta analisar um recente relatório
sobre a riqueza mundial da insuspeita empresa Credit Suisse, o
Credit Suisse Global Wealth Report 2014, no qual se dá conta de
que a metade menos rica da população global possui menos do
que 1% da riqueza total, sendo que, em contraste, 87% de tal riqueza é possuída por quem compõe os 10% mais ricos.
Não é possível abordar o problema da desigualdade sem mencionar o fenómeno do aumento brutal do nível das remunerações
dos administradores das grandes empresas que ocorreu ao longo
das últimas décadas, o qual fomentou um debate intenso sobre
a comparação entre as remunerações dos executivos e as remunerações dos restantes trabalhadores. Este tema tornou-se extremamente popular.
Estimativas recentes sobre a disparidade entre as remunerações
dos CEO e as remunerações dos restantes trabalhadores no caso
das grandes empresas permitem comparar a realidade de diferentes países [1]: nos EUA, os CEO ganham 354 vezes mais; no
Canadá, 206; na Alemanha, 147; na França, 104; na Suécia, 89; no
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Japão, 67; em Portugal, 53; na Dinamarca, 48; na Áustria, 36; na
Polónia, 28.
Muitos são aqueles que se encontram perturbados pelo que consideram ser níveis excessivos de remuneração dos executivos.
Alguns deles sugerem que estes níveis elevados de remuneração
surgem em prejuízo dos acionistas, que consideram como proprietários da empresa, e podem até criar incentivos para que os
executivos tomem riscos excessivos. Outros discutem se os pacotes de compensação dos executivos nas empresas do setor financeiro poderão ter contribuído para a mais recente crise financeira. Outros ainda analisam a remuneração dos executivos contra
o pano de fundo do excessivo nível de desigualdade existente.
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Muitas organizações pelo mundo fora criticam abertamente as
práticas de remuneração dos executivos e envolvem-se no combate a tais práticas. Por exemplo, nos EUA várias organizações
têm sido muito veementes nas suas críticas às práticas de compensação dos executivos. Na primeira linha desta crítica estão
organizações laborais, como a American Federation of LaborCongress of Industrial Organizations (AFL-CIO), e organizações
relacionadas com a ética empresarial e a responsabilidade social
das empresas, como o Interfaith Center on Corporate Responsibility (ICCR). Estas organizações conceberam mecanismos para
ajudar na restrição dos excessivos pacotes de compensação dos
executivos: a AFL-CIO criou a PayWatch Webpage (www.PayWatch.org); o ICCR é conhecido por ter interposto resoluções de
acionistas contestando os pacotes de compensação dos executivos em empresas com ações admitidas a cotação em bolsas de
valores.
O nível de desconforto entre políticos não é menor. Um dos acontecimentos mais dignos de nota sobre o debate a propósito das
compensações dos executivos foi o referendo ocorrido em Março de 2013 na Suíça para controlar a remuneração dos acionistas.
Neste referendo, 68% dos votantes expressaram-se de forma favorável a uma lei impondo limites estritos à compensação dos executivos. Não obstante, numa votação subsequente, ocorrida em
novembro do mesmo ano, pouco mais do que 65% dos votantes
suíços rejeitaram uma proposta concreta de o salário mais elevado não ultrapassar em 12 vezes o valor do salário mais baixo. Mais
recentemente, em Junho de 2014, nos EUA, o senado estadual de
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Rhode Island aprovou legislação oferecendo uma preferência nas
compras do Estado a empresas cujos CEO não aufiram remunerações que excedam mais do que 32 vezes a remuneração do seu
empregado pior pago.
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Alguns dos mais reputados estudiosos da gestão ofereceram
perspetivas críticas interessantes sobre o assunto da remuneração dos executivos. Peter Drucker foi um dos que mais cedo, em
1977, e de forma mais veemente levantou preocupações sobre a
existência de elevadas disparidades entre as remunerações dos
executivos e as dos demais trabalhadores. Este autor considerou
que um rácio entre a remuneração do CEO e a remuneração dos
demais trabalhadores de 25:1 estaria dentro do âmbito do que a
maioria das pessoas nos EUA considerava apropriado e até desejável na altura. Mais ainda, Drucker considerou como uma “responsabilidade empresarial” o desenvolvimento de uma estrutura
de compensação dos executivos “sensata”. Sete anos mais tarde,
Drucker reiterou esta opinião, afirmando que a compensação de
um pequeno grupo no topo de um número minúsculo de empresas gigantes ofenderia o sentido de justiça de muitas, talvez até
a maioria, das próprias pessoas que se movem na área da gestão,
e sugerindo um rácio de 20:1.
Mais recentemente, em 2009, e de forma mais radical, Henry
Mintzberg afirmou que os bónus dos executivos “representam a
forma mais proeminente de corrupção legal que tem minado as
nossas grandes empresas e prejudicado a economia global” [2].
Para Mintzberg, muitos dos executivos têm-se comportado mais
como jogadores, participantes em jogos cujas regras se encontram viciadas a seu favor, do que como líderes, aquilo que eles
gostam de pensar que são.
Não obstante, parece que os próprios executivos começaram a
preocupar-se com o tema da desigualdade. Tem sido amplamente
divulgada a notícia de que Dan Price, fundador e CEO da empresa norte-americana de tecnologia de processamento de cartões
de crédito Gravity Payments, decidiu reduzir a sua remuneração
em 90% para que todos os trabalhadores da empresa que lidera
possam receber um salário anual de pelo menos 70 000 dólares.
Pouco tempo antes, tinha sido Mark Bertolini, presidente do
conselho de administração e CEO da seguradora Aetna, a decidir
aumentar os salários a milhares dos trabalhadores da empresa.
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Alegadamente, esta decisão terá sido consequência da leitura do
livro de Piketty referido atrás, tendo Bertolini chegado a aconselhar os executivos da Aetna a ler esse livro. Parece, todavia, tratarse de casos isolados, como se depreende da evolução dos dados
sobre as disparidades entre os salários dos CEO e os salários dos
restantes trabalhadores, que têm vindo a ser produzidos pela
AFL-CIO e divulgados na sua página web (www.aflcio.org).
NOTAS:
[1]
http://www.aflcio.org/Corporate-Watch/Paywatch-Archive/CEO-Pay-and-
You/CEO-to-Worker-Pay-Gap-in-the-United-States/Pay-Gaps-in-the-World
[2] Mintzberg, H. (2009), “No More Executive Bonuses!”, Wall Street Journal, November 30, http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052748703294004
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