A maça - Edwiges Zaccur
Transcrição
A maça - Edwiges Zaccur
_____________________________________________________________________ A maçã Filme iraniano Direção: Samira Makhmalbaf Roteiro: Mohsen Makhmalbaf _____________________________________________________________________ Por Edwiges Zaccur e Carmen Lucia Vidal Perez No princípio, tudo o que havia era um acontecimento noticiado pela mídia local a partir da denúncia feita ao Departamento de Bem-Estar Social de que um pai prendia suas filhas gêmeas em casa sem lhes permitir, sequer, frequentar uma escola. A partir daí já se anuncia um conflito, envolvendo a família, a vizinhança e o poder público, remetendo a algumas questões bakhtinianas, sobretudo, a alteridade e a responsabilidade. Impactada pela notícia, a jovem diretora Samira Makhmalbaf viu-se chamada, responsavelmente, a fazer algo, fosse um documentário ou uma ficção. A partir de um roteiro escrito por seu pai, em diálogo com os fatos e, para além deles, Samira realizou um filme que problematiza os acontecimentos em que se implicam o eu e o outro, ratificando o quanto a interação é fundamental. Não por acaso, o filme se abre com mãos que assinam o abaixo-assinado endereçado ao poder público, sendo que a última assinatura, a da diretora, pode ser lida como um termo de responsabilidade. A narrativa cinematográfica segue nos convidando a acompanhar como arte e vida dialogam e se hibridizam intensamente, chegando a mesclar à ficção algumas cenas reais gravadas no Departamento do Bem Estar Social. Para veracidade ainda maior, acontecimentos passam o pai e as gêmeas que viveram os a representá-los na recriação cinematográfica. Segundo a diretora do filme, o pai aceitou representar a si mesmo como uma oportunidade para apresentar seu ponto de vista, defender sua posição e limpar seu nome, na sua opinião, caluniado e humilhado publicamente, quando a mídia publicou o caso. Desafio maior para a diretora foi conseguir que as meninas Massoumeh e Zahra "atuassem''. Para tanto precisou entrar no universo das crianças, recorrendo à imaginação e à brincadeira, em jogos de faz de conta e/ou de imitação. Samira percebeu que as gêmeas eram curiosas, bem humoradas e tinham grande facilidade de estabelecer relações com pessoas desconhecidas, embora apresentassem uma comunicação verbal limitada e alguns comprometimentos quanto à socialização e à motricidade. Ou seja, apesar de viverem onze anos fechadas no círculo familiar, as gêmeas interagiam, valendo-se de uma consciência humana pensante. Algo de fora sempre lhes chegava: ecos de vozes ou gritos do menino vendedor de sorvetes. Retalhos de imagens que figuravam como uma passagem entre o dentro e fora. Acresce que naquele espaço-tempo em que a tradição já está tensionada por novos valores, é possível escutar uma pergunta no avesso da notícia que deu origem ao filme: se o pai, em vez de filhas, tivesse filhos, iria prendê-los? Como salienta Samira, na cultura iraniana que o filme A maçã refrata, meninos têm direito de brincar nas ruas, mas as meninas não. A par da questão do feminino, como um outro no interior de uma cultura tradicionalmente machista, ocorre também um tenso conflito entre um velho e um novo Irã. Ressalte-se a presença emblemática de duas mulheres, a mãe cega e embuçada - guardiã do velho regime das mulheres sem rosto, e a assistente social – representante de uma nova ordem, pontuada pela emancipação feminina. No diálogo entre o velho e novo anuncia-se uma transformação que agencia contrários: a mão da menina enclausurada rega canhestramente um pequeno vaso de flor; a mão da cega tateia, mas enfim se apodera da maçã – uma e outra indiciando vida e emancipação possíveis. A tensão entre conservação e mudança no Irã nos remete ainda ao Irã como um outro da cultura ocidental. Filmes iranianos implicam uma sintaxe construída na contramão da hegemonia ocidental. A língua já produz o primeiro estranhamento – as palavras podem soar aos nossos ouvidos como mágicas ou bárbaras, como reza ou pragas, como cânticos ou imprecações, como música ou ruído. Aliás, qualquer comparação que nos ocorra já está de antemão impregnada pela nossa cultura cristã, acidental, capitalista. A exemplo de outros filmes iranianos, A maçã realiza o convite de Saramago em Ensaio sobre a cegueira: Se podes ver, repara. E acrescentamos: se você pode ouvir, experimenta a escuta sensível à polissemia de palavras e imagens. Pistas desse enredamento se refratam a partir da palavra título. Maçã, em iraniano, significa saúde e beleza – condensando metaforicamente tudo de que precisavam as gêmeas, mantidas afastadas do mundo. Maçã, na tradição judaico-cristã, evoca o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. Tudo de que também precisavam as gêmeas para travar contato com o entorno que desde logo as atrai, apesar dos cuidados dos pais para mantê-las isoladas de seus perigos. A maçã segue sendo ressignificada ao longo do filme. Ela é uma isca com que o menino convida as gêmeas a provar o gosto da vida. Com a maçã, as gêmeas vivem uma série de experiências sensíveis: as que se materializam em forma, cheiro, gosto, as que conotativamente remetem a desafio, encontro, mediação e troca. Cada palavra indicia uma dialogização interna. Quando os pais aceitam as condições impostas pelo Departamento de Bem-Estar Social para retomar a guarda das filhas, elas são acolhidas pelo abraço protetor da mãe, mas uma delas leva na mão a maçã. Indício de que algo está em mudança na arquitetura do eu que se constrói na alteridade... Destaco ainda a cena de um intenso diálogo entre a assistente social e o pai, ela do lado de fora; ele, trancado do lado de dentro da grade, vivendo uma experiência dupla: ser privado da liberdade, mas também ser desafiado a libertar-se. Em conversa com a assistente social, novamente ele rejeita acusação de que aprisionava suas filhas. Para comprovar seu extremo cuidado com elas, busca um livro antigo onde se destacava uma passagem: Meninas são como a flor. Os raios do sol podem queimá-las. Nesse ponto, confrontamse compreensões marcadas por suas exotopias. Num filme repleto de símbolos abertos à leitura polissêmica, além da maçã, destacam-se ainda: uma flor; um espelho, o livro que orienta a educação das meninas e a chave que Massoumeh e Zahra aprendem a usar para “libertar” o pai. “A maça” nos arranca das zonas de conforto e nos coloca diante da complexidade humana. Não há culpados; todos são situados em seus pontos de vista e instigam a compreensão ativa do espectador que, ao provar dessa Maçã, de algum modo pode ser provocado a desconstruir uma visão que dicotomiza o certo e o errado, o bom e o mau, o humano e o desumano. Cada espectador(a) pode dialogar com o filme de modo distinto, segundo diferentes disponibilidades e inventários, de modo a permitir, em diferentes graus, alfabetizar-se pelo que fala de um outro lugar, de uma outra cultura, de um espaço tempo pouco conhecido por nós.