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Design e Inovação
A pedra de Lioz
e o meu desiderato: ensinar a “vê-la”
Autoria do Trabalho:
Jorge F. Lourenço, Professor de Materiais de Construção do ISEC
Há 35 anos passava de carro pela ponte de Santa Clara,
com o Engenheiro Menezes Torres (1), quando ele me
disse que eu devia olhar bem para os ladrilhos dos passeios desta ponte. E continuou a explicar-me que a pedra
aplicada era o lioz e eu teria de observar os típicos “desenhos das pêras” desta rocha ornamental, quando amaciada ou polida. Era jovem e gostei do que ouvi, mas fui
descuidando a oportunidade de ver muito bem aquelas
pedras, tal como tinha sido aconselhado.
Nessa altura, eu sabia alguma coisa dessa ponte: era um
projeto do Professor Edgar Cardoso e havia sido construída em 1954. Tive oportunidade de observar o projeto
estrutural e já a havia admirado como obra de arte que
marcou a imagem de Coimbra do século XX (Fig. 1).
Fig. 2 - Nestes passeios da ponte de Santa Clara seria um bom exercício contar os fósseis visíveis nos ladrilhos de lioz. Serão certamente uns
milhares; por enquanto, ainda são muitos mais do que as pastilhas elásticas esmagadas no pavimento.
CARACTERÍSTICAS DA PEDRA DE LIOZ: Os geólogos que a classificam dizem que ela é um calcário microcristalino calciclástico e
bioclástico (2). Esta pedra extrai-se na freguesia de Pêro Pinheiro, do Concelho de Sintra. Pode ser facilmente polida e por
isso os industriais lhe chamam mármores, sendo sedimentar.
Tem boas resistências mecânicas (tensão de rotura à compressão na ordem dos 105 MPa), assim como boas resistências ao
desgaste e ao choque, e possui uma elevada massa volúmica
aparente (2,70 t/m3), uma baixa porosidade aberta (0,43%) e,
consequentemente, baixa absorção de água.
Fig. 1 - A linda ponte de Santa Clara e a memória do seu projetista.
Só muito mais tarde observei, com um olhar educado, estas
pedras dos passeios e verifiquei que em cada ladrilho de 40x40
cm2, havia um grande número destes “desenhos de pêras” e
com variados feitios. Nessa fase da minha vida, eu já sabia bem
o que eram o lioz e aquelas “pêras”, e tinha ganho um forte interesse por esta pedra. E quando um professor adquire esta compreensão, o que mais intimamente deseja, é partilhá-la com os
seus formandos, de uma forma global, integrando esse conhecimento no “Universo dos saberes”.
Vejamos como vamos pensar nesta pedra de lioz, de modo a
poder aconselhar as pessoas, a não atravessarem estes passeios da ponte de Santa Clara, sem antes olharem para o chão,
por causa das conchas de uns lamelibrânquios que viveram há
120 milhões de anos - chamavam-se rudistas - e os seus
esqueletos não merecem ser pisados com indiferença! Olhem
bem para eles, que eu desejo ensinar-vos a gostarem também
da pedra mais portuguesa (Fig. 2).
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Estas propriedades fazem dela uma pedra com boas aplicações tanto em ambientes interiores, como em exteriores. Mas,
caracterizar a pedra não basta; é preciso entender melhor a sua
natureza e o trabalho dos homens na sua transformação e aplicação. É com essa metódica compreensão global que se vai
construindo o entendimento da nossa função no Mundo, durante o nosso Tempo.
Como professor, é este o meu desiderato: a partir da aquisição
de um conjunto de conhecimentos específicos, formar pessoas
conscientes do seu lugar no Universo (- Onde estamos? - Há
quanto tempo? - Quem nos acompanha?) e do seu exercício (Porque nos preparamos? - O que deveremos fazer?), para
depois nos aperfeiçoarmos sempre. E isto também eu aprendi
de Bento de Jesus Caraça (3) e depois com Carl Sagan (4).
Com o “vício” que os engenheiros têm por gráficos, há logo a
vontade de materializar distâncias e tempos em eixos, mas
para se tornear esta incomensurabilidade, sugerimos escalas
logarítmicas (Fig. 3). Aí se observa, de forma integrada, a
dimensão e o tempo em que viveram estes rudistas, tudo em
relação ao homem atual e também a outras referências.
Fig. 3 - Tal como os Rudistas nós somos filhos deste Universo (5) e (10).
Há cerca de 120 milhões de anos, a região de Lisboa era coberta por um mar de águas quentes. Povoavam os seus fundos,
umas colónias destes bivalves, os rudistas. Precipita-se o carbonato de cálcio, sob a forma de microcristais de calcite. Estes
seres, à medida que morrem, deixam as suas conchas que,
depois de desabitadas, são preenchidas e integradas por este
cimento cálcico.
Um corte em plano transversal mostra nos seus traços, as paredes das conchas com as suas espessuras, vendo-se frequentemente uns canais paleais (6). São estes os desenhos observáveis nos ladrilhos da Fig. 2.
(a)
(b)
Esta deposição de carbonato de cálcio dá-se em águas aquecidas e pobres em CO2, deixando os bicarbonatos hidrogenados
de serem solúveis nessas condições, como se mostra nesta
equação química reversível:
- Mas quem eram estes rudistas? - Eram um vasto grupo de
moluscos bivalves de concha espessa e tosca. A sua concha
inferior tinha geralmente uma forma cónica, no interior da qual
residia a parte mole do organismo. Esta valva inferior fixava-se
na vasa do fundo do mar.
A valva superior assumia o aspeto de uma tampa mais ou
menos plana nos rudistas radiolitídeos (Fig. 4(a)). Os rudistas
caprinídeos possuíam uma valva superior enrolada, em forma
de “corno de cabra” (Fig. 4(b)).
Fig. 4 - Rudistas radiolítídeos (a) e caprinídeos (b). Nuns e noutros observa-se a valva inferior, que se fixava e a valva superior livre. Imagens retiradas de “Geology Today”, vol. 27, Blackwell Publishing, Ltd, 2011.
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Design e Inovação
No entanto, para entender o trabalho da Pedra de Lioz, é
necessário conhecer e estudar as pedreiras e as empresas de
transformação. Mas é também muito importante compreender o
antigo esforço humano (7) e o virtuosismo dos canteiros (8).
Ao olharmos para as pedreiras de Pêro Pinheiro, necessitamos
de pensar como se faz a extração e como antigamente se fazia
e há quanto tempo. E depois, como aparelhar a pedra, de modo
a ser aplicada, cumprindo a sua função e encantando as pessoas sensíveis a estes trabalhos (9).
Percebam agora o que vos quis dizer através do “António
Gedeão”(8), da “Desiderata escrita por Max Ehrmann” (10) e da
“professora Zenaide Carvalho da Silva” (11):
Entender a formação da Pedra de Lioz, com os seus rudistas, o
trabalho humano no processo produtivo da extração, transporte e transformação, dá-nos a compreensão global, que faz de
nós, seres interventivos e sonhadores, a caminho do nunca… e
não somente cadáveres adiados que procriam… (12).
NOTAS
EXPLICATIVAS NECESSÁRIAS A UM ENTENDIMENTO MAIS
COMPLETO:
(1) O Eng.º Menezes Torres (1928 - 2011) foi o meu verdadeiro
patrono de profissão. E como seu formando, sempre o admirei
nos aspetos que distinguem um verdadeiro engenheiro: conhecimento, senso e engenho. Ele foi gerente e diretor técnico da
empresa Simões Pereira e Companhia, Lda e esteve nas obras
da agência principal de Coimbra, da Caixa Geral de Depósitos
(Fig. 5), cujos elementos da envolvente são em lioz.
Chamou-lhe Biblioteca Cosmos (é interessante esta ideia de
Cosmos - a mesma que ele transmitiu na “Cultura integral do
indivíduo”, texto onde fui aprender isto que vos digo).
(4) O “COSMOS” de Carl Sagan deverá ser estudado por todos
nós que precisamos de compreender a nossa origem estelar e
que sentimos a consequente obrigação de contribuir para a
sobrevivência neste planeta. A minha opinião é que o estudo
mais eficaz desta obra deverá ser feito com a utilização simultânea dos dois meios agora disponíveis:
- Livro nº 5 da Coleção “Ciência Aberta”, editado pela Gradiva Publicações, Lda, em Lisboa;
- Conjunto de 5 “DVD” editados por TRACMEDI/LLAMENTOL,
distribuído em Portugal por Estevez Seven - Distribuição de
Vídeos Lda, em Vila Nova de Cerveira. A gratidão a Carl Sagan
fica implícita, a quem tiver estudado o “COSMOS”.
(5) Há um documento extraordinário editado pela Porto Editora,
da autoria de Eames e Morrisson, de título “Potências de Dez O mundo às várias escalas”. É o mundo longínquo que se
observa pelos telescópios, até ao que se reconhece pelo olhar
humano e, depois um outro cosmos só descoberto pelos
microscópios. Há ainda um sugestivo diagrama destas escalas
na Fig. 1.1 do livro de Linus Pauling, “Química Geral”, edição de
Ao Livro Técnico SA, Rio de Janeiro, 1967.
(6) Carlos Marques da Silva e Mário Cachão são dois paleontólogos e professores da Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa que desenvolveram muitas ações de
divulgação sobre o lioz e os rudistas, e que colocaram estes
seus conhecimentos em “sites” acessíveis.
Eu aprendi muito nessa pesquisa e sugiro a procura destes elementos através do “motor de busca Google” com as palavraschave “lioz” e “rudistas”, porque assim terão todo o acesso aos
documentos disponibilizados por estes dois grandes formadores.
Fig. 5 - O edifício da CGD de Coimbra é uma obra de referência das décadas de 1950 e 1960. Foi construída pela empresa Simões Pereira e Cª Lda,
que possuía pedreiras e oficinas de serração de pedra em Pêro Pinheiro.
Na fotografia à direita há o pormenor de um degrau amaciado, onde no
cobertor se encontram desenhos de rudistas e no espelho, plano perpendicular àquele, uma marca de leitos irregulares.
(2) Isto significa que se sedimentam clastos (fragmentos de vários
tamanhos de origem orgânica e cálcica), ligados por um cimento
carbonatado.
(3) Bento de Jesus Caraça, foi um brilhante Professor Catedrático
de Matemática do ISCEF e um grande divulgador da ciência e da
cultura. Publicou variadíssimos livros de matemática, mas um dos
domínios mais visíveis da sua ação, foi a criação de uma coleção
de divulgação científica e cultural, que só hoje com a Gradiva, há
a retoma de obra semelhante no país.
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(7) Recordamos a belíssima descrição do transporte de uma
grande pedra entre Pêro Pinheiro e Mafra feita por José
Saramago no “Memorial do Convento”, registando aqui o seu
sentido de humor: “Deve-se a construção do convento de Mafra
ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho,
vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à
rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com o perdão
da anacrónica voz”.
(8) No mosteiro dos Jerónimos, os túmulos são em pedra de
lioz. A propósito, associamos estes túmulos ao Poema da Pedra
de Lioz, de António Gedeão:
Álvaro Góis.
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Cantanhede,
pedreiros de profissão,
de sombrias cataduras,
como bisontes lendários,
modelam ternas figuras
na brutidão dos calcários.
E o nosso contributo é chamar-vos a atenção para a compreensão,
neste poema, mais profunda das coisas, quando nelas nos detemos:
Fixando a pedra, mirando-a,
quanto mais o olhar se educa,
mais se entende o truca…truca…
que enche a nave, transbordando-a,
truca, truca, truca, truca,
truca, truca, truca, truca.
(9) As pessoas tecnicamente interessadas na indústria das rochas
ornamentais, poderão pesquisar os trabalhos de um vasto grupo de
especialistas que, em 2007 e 2008, foram publicados nas revistas
“Arquitectura e Vida” e “Engenharia e Vida”, sob a égide da
Associação dos Industriais de Mármores e Granitos (ASSIMAGRA).
(10) Esta ideia de Max Ehrmann, em “A Desiderata”, de pertencermos ao Universo, jogando aí, conscientemente a nossa vida:
Tu és um filho do Universo
E tal como as árvores e as estrelas
Tens o direito de o habitar
E quer isto seja ou não claro para ti
Sem dúvida que o Universo
É-te disto revelador.
… …
Apraz-te com as tuas realizações
[tanto como os teus planos.
Põe todo o interesse na tua carreira,
[ainda que ela seja humilde.
É um bem real nos destinos mutáveis do tempo.
… …
Não sejas subserviente, mas mantém-te
[em boas relações com os outros.
… …
LUTA PARA SERES FELIZ.
(11) Zenaide Carvalho da Silva é uma geóloga, natural da cidade de São Salvador da Bahia, Professora da Universidade
Nova de Lisboa, que recentemente publicou uma interessantíssima obra: “O Lioz Português - De lastro de navio a arte na
Bahia”, Edições Afrontamento, 2007 (Fig. 6). Este livro, de título elucidativo, mostra-nos as belas cantarias de lioz, descrevendo magistralmente esta saga produtiva que começa nas
pedreiras da região de Sintra, pedra transportada nos porões
das naus e termina como marco arquitetónico da Baía.
É assim que Zenaide, de “mão quente” termina a sua obra:
“A pedra de lioz, deixando o seu berço, fez a travessia do mar
partilhando o espaço das embarcações com bacalhaus, azeites
e vinhos para os colonos, e desembarcou na Bahia. Enquanto
elemento-chave das construções nas igrejas, sustentou coro e
altar, foi parede e frontispício, pia de água benta e lápide de
túmulos, observando os passos e vivendo episódios da história
do Brasil, ouvindo atento os sermões do Padre António Vieira,
acompanhando os jesuítas na sua saga. Hoje espreita a lavagem do Bonfim, as festas da Conceição da Praia e, dos umbrais
das casas do Pelourinho, acompanha outros ritmos de culturas
cruzadas. Intacto, vai transmitindo a cada geração o legado
artístico e cultural deixado pelos portugueses na Bahia.
O lioz português traçou assim o seu ciclo de vida, carregando
um enorme peso cultural da Europa para o Brasil. Iniciado nos
mares do Cretácico português há cerca de 120 milhões de
anos, partiu nos séculos XVII e XVIII das pedreiras de Pêro
Pinheiro, Lameiras, Morelena, Terrugem e Negrais, atravessou
o Atlântico como lastro de navio e aportou em Salvador, onde
se transformou em arte nos conventos e igrejas da Bahia.”
(12) Jaime Gralheiro, “escritor macróbio” de S. Pedro do Sul,
que é autor de “A caminho do nunca?”, não desiste porque percebe a razão da sua vida. Neste seu último livro, depois de descrever as lutas académicas nas décadas de 50 e 60 do século
XX, aparentemente desolado com o rumo diferente do que fora
o sonho desses jovens, deixa-nos no entanto, com o sentido da
“Mensagem” de Fernando Pessoa, descrito no poema “D.
Sebastião”.
Fig. 6 - Capa do Livro “O Lioz Português - De lastro de navio
a arte na Bahia” Edições Afrontamento, 2007.
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