O memorial da Páscoa do Senhor
Transcrição
O memorial da Páscoa do Senhor
pp. 55-82 Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus! (até que venhais) Todas as vezes que comemos deste pão, e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor, a vossa morte, enquanto esperamos vossa vinda Salvador do mundo, salvai-nos, vós que nos libertastes pela vossa cruz e ressurreição Essa é a exclamação que desencadeia, como resposta da comunidade, a aclamação anamnética. De onde provém? O que significa? De onde provém? No cânon romano do Missal anterior à reforma litúrgica do Vaticano II, estas palavras estavam inseridas no meio das palavras de Jesus sobre o cálice na instituição da eucaristia. Encontra-se este inciso desde aproximadamente o séc. VII. Eis o texto (traduzido ao português): Este é o cálice do meu sangue, da nova e eterna aliança, - MISTÉRIO DA FÉ que será derramado por vós e pela multidão para a remissão dos pecados O grande liturgista J. A. Jungmann explica o sentido da expressão: “Mistério” não tem o sentido de algo difícil de compreender, como seria a presença de Cristo sob as espécies do vinho. “Mistério” tem aqui o sentido de “sacramento”: algo que condensa toda a ordem salvífica realizada em Cristo O mistério de Cristo é resumido na confissão de fé que Paulo faz na Epístola aos Romanos: MORreu POR NOSSOS PECADOS, RESSUSCITOu PARA NOSSA JUSTIFICAÇÃO Rm 4,25 Matthias Grünewald (1480-1528) A transposição das palavras MISTÉRIO DA FÉ para depois das palavras de instituição da eucaristia, com a finalidade de desencadear a ACLAMAÇÃO ANAMNÉTICA como reação da assembleia, esclarece o sentido que a liturgia quer dar à expressão: Fazemos agora – como o Senhor nos ordenou – memória de sua MORTE E RESSURREIÇÃO, iterando os gestos que fez na última ceia sobre o pão e o vinho. A tradução do Missal brasileiro leva a um mal-entendido. Em latim a exclamação soa: MYSTERIUM FIDEI Em português: EIS O MISTÉRIO DA FÉ Aquele “eis” sugere que o “mistério” é a transubstanciação do pão e do vinho. “Eis”: olhem aqui sobre o altar uma coisa misteriosa que só podemos apreender com Na oração eucarística V (do Congresso de Manaus), a exclamação soa: TUDO ISTO É MISTÉRIO DA FÉ “Tudo isto” que? O Corpo entregue O Sangue derramado O sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, entregue/derramado por O que significa? Primeiro nível de significação: O mistério pascal de Cristo, sua passagem deste mundo ao Pai, na entrega da cruz aceita pela ressurreição O que significa? Segundo nível de significação: Nossa participação no mistério pascal de Cristo. Em primeiro plano, participação sacramental. “o que se podia ver de nosso redentor, passou aos sacramentos” (São Leão Magno) O que significa? Terceiro nível de significação: A participação do cosmos no mistério pascal de Cristo no final dos tempos “...até que ele venha” (Vinde, Senhor Jesus!) “...para que deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28) A riqueza de um conceito bíblico biblicamente O hebraico zakar (qal) e o grego mimnh/skomai não significam mera ação de uma subjetividade. Não é retrospecção histórica ou psicológica. “Lembrar” é um verbo performativo, realiza algo. É uma ação com O verbo “lembrar” no contexto profano: Gn 40 13Dentro de três dias o faraó levantará tua cabeça: ele te reconduzirá a teu cargo, e porás a taça do faraó em suas mãos, como antes o fazias, quando eras copeiro. 14Mas, quando as coisas te correrem bem, lembra-te de mim e faze-me o favor de me recomendar ao faraó para que me tire desta p 23Mas o chefe dos copeiros não pensou mais em José; esqueceu-o. 41 9Então o copeiro-mor falou ao faraó e disse: “Hoje devo recordar minha falta. [...] 12Havia lá conosco um jovem hebreu, escravo do chefe da guarda. José interpreta o sonho do copeiro (Abraham Rattner, 1895-1978) José interpreta o sonho do faraó (Gustave Doré, 1832-1883) O verbo “lembrar” em contexto sacral: Quando o sujeito é o ser humano, “lembrar-se” significa “ter presente os benefícios e as promessas de Deus” Quero lembrar os feitos do Senhor, sim, quero recordar teus milagres de outrora (Sl 77 [76], 14) Lembrai-vos dos milagres que fez, dos seus prodígios e dos julgamentos que proferiu raça de Abraão, seu servo, filhos de Jacó, seu escolhido (Sl 105 [104], 5s) O verbo “lembrar” em contexto sacral: Quando o sujeito do verbo é Deus, “lembrar-se” significa “atuar salvificamente” Lembra-te, Senhor, do teu amor, e da tua fidelidade desde sempre (Sl 25 [24], 6) Lembrou-se de sua palavra santa, dada a Abraão, seu servo (Sl 105 [104], 42) Lembrou-se da sua aliança, teve piedade deles na sua grande bondade, e fê-los achar misericórdia junto a todos que os mantinham cativos (Sl 106 [105], 45s) biblicamente O sujeito da ação tanto pode ser Deus como o ser humano O complemento é sempre a aliança: Ação salvífica de Deus (por parte do parceiro divino) Resposta humana positiva (lembra-se) ou negativa (não se lembra)(por parte do parceiro humano) biblicamente Ao conceito de zikkaron (memorial) acrescenta-se a ideia de sinal. Um sinal que é tanto para Deus como para o ser humano O sinal pede a intervenção salvífica de Deus e provoca o ser humano à resposta devida à ação de Deus que atuou no passado, atua no presente e continuará a atuar no futuro biblicamente O memorial é fruto da ação do Espírito Santo O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito (Jo 14,26) Por isso, o memorial não é mera comemoração (nuda Commemoratio), mas é capaz de tornar perene o sacrifício de Cristo e de nos fazer participar do seu biblicamente A temporalidade do memorial As promessas de Deus se cumpriram definitivamente em Jesus Cristo (cf. 2Cor 1,20), chegaram os tempos escatológicos (cf. Hb 1,1), o futuro se torna presente, porque na ressurreição de Jesus os discípulos apalparam com as mãos (cf. 1Jo 1,1) o futuro que nos cabe o memorial é “memória do futuro” O memorial é dom. Primeiramente ação de Deus que nos convoca (qa’al) para, na força do Espírito Santo, realizarmos o sinal (ôt) que é memorial (zikkaron) do mistério de Cristo O sinal é o gesto do tomar pão e vinho conforme a ordem de Jesus; o gesto se torna memorial, quando sobre eles pronunciamos a ação de graças pela obra salvífica consumada por Cristo Santificai, pois, estas oferendas, a fim de que se tornem para nós o Corpo e o Sangue de vosso Filho Jesus Cristo, Senhor nosso, que nos mandou celebrar estes mistérios 1 2 3 4 5 6 YHWH disse a Moisés e a Aarão no Egito: Ex 12 «Este mês será para vós o começo dos meses, será o primeiro mês do ano. Falai assim a toda a comunidade de Israel: No dia dez deste mês cada um tome um animal por família, um animal para cada casa. Se a gente da casa for pouca para comer um animal, convidará também o vizinho mais próximo, de acordo com o número de pessoas. Para cada animal deveis calcular o número de pessoas que vão comer. O animal será sem defeito, macho de um ano. Podereis escolher tanto um cordeiro como um cabrito. Devereis guardá-lo até o dia catorze deste mês, quando, ao cair da tarde, toda a comunidade de Israel reunida 7 8 9 10 11 12 Tomarão um pouco do sangue e untarão os umbrais e a arquitrave da casa onde comerem. Comerão a carne nesta mesma noite. Deverão comê-la assada ao fogo, com pães ázimos e ervas amargas. Não deveis comer dessa carne nada de cru, ou cozido em água, mas assado ao fogo, inteiro, com cabeça, pernas e vísceras. Não deixareis nada para o dia seguinte. O que sobrar devereis queimá-lo no fogo. Assim devereis comê-lo: com os cintos na cintura, os pés calçados, e o cajado na mão; e a comereis às pressas, pois é a páscoa de YHWH! Nessa noite eu passarei pela terra do Egito e matarei todos os primogênitos na terra do Egito, 13 O sangue servirá de sinal nas casas onde estiverdes. Ao ver o sangue passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora quando eu ferir a terra do Egito. ESTE DIA SERÁ PARA VÓS UM MEMORIAL EM HONRA DE YHWH, que haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua! 14 ..................................... 28 Então, saindo dali, os filhos de Israel fizeram como YHWH tinha ordenado a Moisés e Aarão; assim o fizeram. Ex 12,14 Este dia SERÁ PARA VÓS um memorial Em honra de yhwh Que haveis de celebrar Por todas as gerações como instituição perpétua. Sieger Köder: Míriam De geração em geração, cada um é obrigado a ver-se a si próprio como tendo ele mesmo saído do egito, como foi dito: “e anunciarás a teu filho naquele dia, dizendo: É por causa disto que o Senhor fez por mim o que ele fez, quando saí do egito”. não somente a nossos pais remiu o Santo – bendito seja Ele! –, mas também a nós remiu com eles, conforme está dito: “e nos fez sair de lá, para fazer vir e dar-nos a terra que tinha jurado a nossos pais”. SINAL PROFÉTICO AT ÚLTIMA CEIA NO EGITO futuro imediato ECONOMIA SALVÍFICA AT EVENTO FUNDADOR AT PASSAGEM DO MAR futuro longínquo RITO AT CELEBRAÇÃO ANUAL DA CEIA PASCAL JUDAICA Celebrar o memorial é saber-se implicado no mistério celebrado ver-se a si próprio como tendo ele mesmo saído do Egito Marc Chagall (1887-1985) O gesto memorial é a razão da ação salvífica de Deus É por causa disto que o Senhor fez por mim o que ele fez, quando saí do Egito Disto que? O cordeiro, o ázimo, as ervas amargas 1Cor 11, 23-26 23 24 25 26 De fato, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: Na noite em que ia ser entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: «Isto é o meu corpo por vós. Fazei isto em meu memorial». Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice e disse: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em meu memorial». De fato, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, proclamareis a morte do Senhor, até que ele venha. 1Cor 11,24c Sieger Köder FAZEI ISTO (O SINAL DO PÃO E DO VINHO) EM MEU memorial Sieger Köder (EM MEMORIAL DE MIM MORTO E RESSUSCITADO) De geração em geração, cada um de nós é obrigado a ver-se a si próprio – com os olhos penetrantes da fé – como tendo ele mesmo estado lá no Calvário na primeira sextafeira santa e diante da tumba vazia na manhã da ressurreição. Pois não só nossas mães e pais na fé estavam lá, mas também nós todos, reunidos hoje aqui para celebrar a eucaristia, estávamos lá com eles, prestes a morrer na morte de Cristo e a ressurgir em sua ressurreição. SINAL PROFÉTICO NT ÚLTIMA CEIA NO CENÁCULO futuro imediato ECONOMIA SALVÍFICA NT EVENTO FUNDADOR NT CALVÁRIO E TUMBA DO RESSUSCITADO futuro longínquo RITO NT CELEBRAÇÃO DOMINICAL E QUOTIDIANA DA EUCARISTIA Celebrar o memorial da Páscoa do Senhor é participar em mistério (sacramentalmente) (realmente) de sua morte e ressurreição Fra Angélico (entre 1386 e1400-1455) Por este pão e por este vinho sobre o qual se pronunciou a ação de graças do memorial e para os quais se suplicou a vinda do Espírito Santo, somos realmente transportados – na fé – ao evento fundador e dele participamos Sieger Köder A mistagogia judaica da ceia pascal nos ajuda a captar melhor o realismo da eucaristia o memorial da entrega do Senhor, sob os sinais do pão e do vin nós nos apropriamos da redenção em Cristo e ele se torna presente como o verdadeiro Cordeiro que tira o pecado do mundo Também nós podemos dizer: Este pão que agora partimos é aquele que Jesus partiu significando profeticamente seu corpo entregue por nós; este vinho que está agora aqui no cálice é aquele vinho que Jesus bebeu na última ceia, anunciando profeticamente seu sangue derramado Enquanto permanecemos apegados a categorias físicas é impossível admitir! Aqui devemos permitir que intervenha, a respeito da CATEGORIA TEMPO, uma consideração análoga àquela que, com referência à CATEGORIA ESPAÇO, o concílio de Trento usa para explicar os dois modos da presença de Cristo, sempre sentado à direita do Pai e contudo realmente presente em nossos altares [DH 1636] Em primeiro lugar, o santo Sínodo ensina e professa aberta e simplesmente que, no sublime sacramento da santa eucaristia, depois da consagração do pão e do vinho, Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e <verdadeiro> homem, está contido verdadeira, real e substancialmente sob a aparência das coisas sensíveis. Pois não há contradição em que o mesmo nosso Salvador esteja sempre sentado à direita do Pai nos céus, segundo o <seu> modo natural de existir, e que, não obstante, esteja para nós sacramentalmente presente em sua substância, em muitos outros lugares, segundo um modo de existência que, embora mal o possamos exprimir em palavras, podemos reconhecer pelo pensamento iluminado pela fé como possível para Ao físico, que em nome de sua lógica seria tentado a rebelar-se à ideia de duas presenças reais distintas de um mesmo corpo, a fé tridentina responde dizendo que a categoria de espaço físico é inadequada para explicar o mistério, já que, neste caso, não se trata de duas presenças físicas, mas de dois modos diversos da única presença. ou tudo cá ! ou tudo lá ! Analogamente, deve ser possível afirmar que não há contradição entre o tempo físico em que se realizou o sacrifício do Calvário e sua perpetuação em cada «hoje» das celebrações eucarísticas. O conceito de «TEMPO SACRAMENTAL» é muito feliz por evocar que é EM SACRAMENTO, EM MISTÉRIO que, pelas palavras de Cristo e pela invocação do Espírito Santo, nos tornamos aqui e agora CONTEMPORÂNEOS do evento do Calvário e da experiência feita pelas mulheres na O tempo sacramental é uma irrupção de Deus no tempo cronológico; é tempo redimido. É o instante de Deus, não mensurável pelo cronômetro! Na liturgia vivemos imersos na antecipação sacramental do tempo redimido que é o «tempo» que experienciaremos na comunhão definitiva e escatológica com Deus. O tempo litúrgico é, pois, tempo redimido que não vive a fragmentação do aqui-e-não-lá, do agora-e-não-depois. A liturgia não é repetição do passado; mas, transportando-nos pela fé e pelos sinais sacramentais ao evento fundador, é, cada vez que se celebra, um passo ulterior à definitividade da união plena com o Senhor no corpo eclesial escatológico. Não É volta atrás, Mas ida para frente Estando aqui e agora Na eucaristia, graças ao encontro entre o tempo e a eternidade – possível somente na fé – somos contemporâneos da morte e ressurreição de Cristo como também da PLENIFICAÇÃO ESCATOLÓGICA pois no pão e no vinho eucaristizados já começou a transfiguração do cosmos. Pão e vinho eucaristizados são o sacramento permanente do Senhor glorificado, em quem a humanidade e o cosmos chegaram a seu termo. Ap 4 Então, vi um Cordeiro. Estava no centro do trono e dos quatro Seres vivos no meio dos Anciãos. Estava de pé, como que imolado. 6 Mosaico (Santa Prassede – Roma) Hb 7 Jesus, porém, uma vez que permanece para sempre, possui um sacerdócio que não passa. 24 Por isso, ele tem poder ilimitado para salvar aqueles que, por seu intermédio, se aproximam de Deus, já que está sempre vivo para interceder por eles. 24 NESTA FÉ, NESTA ESPERANÇA A CELEBRAMOS DIA A DIA. CONSTITUINDO-NOS CORPO DE CRISTO, ATÉ Que ELE VENHA Hb 13,8 *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa) *** *** LEX ORANDI statuit LEGEM CREDENDI (e não vice-versa)