Os Hupdah e o Letramento na Língua Materna - Marcelo

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Os Hupdah e o Letramento na Língua Materna - Marcelo
OS HUPDAH E O LETRAMENTO
NA LÍNGUA MATERNA
Marcelo Carvalho
Lingüista da Pró-Amazônia
Artigo
Revista Antropos – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007
ISSN 1982-1050
A escrita como elemento de valorização de um povo preterido1
Os Hupdah compõem um grupo étnico minoritário, que falam a língua Hup e se
autodenominam Húp D’äh “povo” (Húp - pessoa + D’äh - plural = povo). Habitam uma
área etnográfica de multilingüismo (SORENSEN 1967: 670-84) definida e conhecida
como “área cultural do noroeste da Amazônia” (GALVÃO 1979: 206, 210), e vivem no
Brasil e Colômbia, no interflúvio dos Rios Papuri (ao norte) e Tiquié (ao sul), tendo a
leste o Rio Uaupés. No Brasil, estão localizados na Terra Indígena do Alto Rio Negro,
homologada em 1996 pelo Governo Federal (RICARDO 2000: 243), numa área
conhecida popularmente como Cabeça do Cachorro.
O povo Hupdah pertence à família lingüística conhecida como Maku (MASON
1950: 257; RODRIGUES 2000:20; MARTINS & MARTINS 1999: 251; RODRIGUES
2002: 87; KOCH-GRÜNBERG 2005: 44; SILVA 1962: 470), Puinave (IBGE 1989,
mapa), Puinave-Maku (FABRE 2005), Makú-Puinave (CAYÓN 2002: 30) ou ainda
Maku Oriental (MARTINS 2005: 15). Atualmente há duas novas propostas de mudança
de nome por causa do conceito de exclusão e discriminação que o termo Maku incorpora
(MÜNZEL 1969-72: 138). Devido à localização interfluvial dos membros dessa família,
Ramirez (2001) denomina-a de Uaupés-Japurá. Considerando a similaridade entre as
línguas Nadëb, Dâw, Yuhup e Hup, Epps (2005: 8-11) reduz a família para esses grupos
étnicos apenas, e dá o nome de Nadahup. Por entender que “Nadahup” não soa bem em
Português, utilizarei daqui por diante Uaupés-Japurá para identificar tal família.
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Este artigo foi publicado na Revista Antropos e está disponível no seu site
(http://revista.antropos.com.br).
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A população Hupdah entre 1970 e 1991 se manteve estável em aproximadamente
1.200 indivíduos (REID 1979: 15; POZZOBON 1983: 39; SILVERWOOD-COPE 1990:
14; POZZOBON 1991:141). Em 1997, há um acréscimo significativo informado por
Pozzobon, chegando à marca de ± 1500 indivíduos (ISA 1999). E mais recentemente,
Denny Moore (2006: 125) estima que os Hupdah perfaçam um total de 1.800 habitantes
em território brasileiro. Talvez não chegando a 2000 com os da Colômbia.
Os principais escritos sobre os Hupdah estão restritos a duas teses de doutorado. A
de Ride, defendida em 1979, intitulada Some aspects of movement, growth and change
among the Hupdu Maku indians, e a de Athias, defendida em 1998, Hupdë-Maku et
Tukano: relations inégales entre deux sociétés du Uaupés, amazonien (Brésil). Além
desse material há uma dissertação de mestrado de menos destaque, sobre escolas
Hupdah, defendida por Juan Marquéz, A escola no tempo e no território Hupdäh:
mudanças no noroeste amazônico, defendida em 2003.
Hupdah, Yuhupdeh, Dâw e Nadëb: primeiros habitantes e últimos na hierarquia
Os Hupdah compõem o quadro de primeiros prováveis habitantes da região do noroeste
amazônico (NIMUENDAJU 1982: 169; GIACONE 1949: 88; SILVA 1962: 79). Uma
das primeiras referências bibliográficas que temos, provavelmente dos Hupdah, está
registrada por Wallace, em sua primeira viagem ao Rio Uaupés (por volta de 1850),
quando identifica os Uaupés-Japurá juntamente com outros povos dos seus diversos
tributários (WALLACE 2004: 362, 428). Koch-Grünberg faz uma descrição estética,
provavelmente, dos Hupdah do Tiquié:
Os Makú do Tiquié que eu cheguei a ver, eram na média gente
pequena, pouco mais que 1,50m de altura, a cor da sua pele era clara.
Eles tinham aspecto de mal nutridos, o que bem poderia ser atribuído à
sua vida selvagem na mata. Especialmente caía na vista a compleição
desproporcionada dos homens, seus braços longos, mãos e pés grandes,
e pernas curvas, em forma de sabre. Os rostos eram feios,
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frequentemente com expressão parva, com a testa baixa, fugidia, a raiz
do nariz profundamente encolhida, enormemente muito sublinhada pela
dobra profunda da pele entre as ventas do nariz e os ângulos da boca.
Entre as mulheres encontravam-se não raramente figuras bem
formadas, com traços faciais simpáticos. Em Parý-Cachoeira estava
uma mulher Makú de proporções extraordinariamente volumosas, que
com a sua altura ultrapassava não somente suas colegas das tribos, mas
também as mulheres Tukáno (KOCH-GRÜNBERG 2005: 287).
O alemão também cita uma distinção desses povos, feita pelos habitantes do Rio
Negro, os quais chamam de “Macú branco” e “Macú Preto” – numa provável referência
aos Hupdah e Dâw, respectivamente:
Os moradores do rio Negro distinguem entre os makú dois tipos que
divergem entre si completamente: ‘Macú brancos’ com cor de pele
muito clara com belos traços, às vezes parecendo europeus, não
raramente com olhos inclinados e ‘Macú pretos’ tendo cor da pele
muito escura, e o tipo semelhante ao negro, com nariz largo, achatado,
e o queixo muito protruso, frequentemente de uma conformação
animalesca. Os meus dois Makú eram desta última qualidade (KOCHGRÜNBERG 2005: 235).
Tais informações, de similaridade entre os grupos, bem como o uso comum do termo
Maku com suas variações, portanto, já estavam presentes no contexto do Alto Rio Negro
quando os pesquisadores aqui chegaram.
Koch-Grünberg registra em seus escritos uma referência a um outro povo UaupésJapurá, que pela localização geográfica pode-se deduzir serem os Nadëb, habitantes das
nascentes do “Yurubaxý” [sic] e do Marié:
…vagueiam numerosos Makú, instáveis nômades da selva. Eles estão
continuamente em amargas contendas com uma tribo do lado de
Yapurá, os assim chamados Guariba ou Guaríua-tapuyo (Indignas do
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Macaco urlador), sobre os quais, mais tarde, no Yapurá, escutei
histórias ruins (KOCH-GRÜNBERG 2005: 38).
Em uma provável referência aos Dâw diz:
Nas selvas, na proximidade da serra [do Curicuriari], vagueiam
numerosos Makús, selvagens, que em parte estariam vivendo ainda na
idade da pedra. Às vezes eles aparecem na beira do rio Negro para
obter miudezas européias em troca de caças (KOCH-GRÜNBERG
2005: 41).
De uma forma geral os grupos acima identificados sofriam pelos próprios indígenas
uma grande discriminação. Wallace, numa referência aos Uaupés-Japurá que habitavam a
região próxima ao Rio Marié, os quais chamava de “Macás”, os descreve como
“inferiores”, “incivilizados”, que “levam uma vida errante”, “descarnados e de membros
malconformados” (com poucas exceções), ladrões, inconstantes e escravos (WALLACE
2004: 612). Koch-Grünberg (2005: 44,45, 238) conta como eles eram vistos pelos
indígenas da região e como ele próprio também passou a considerá-los: com uma “língua
animalesca”, “animal fugitivo da selva”, inconstantes, “fugitivos”, desprezados, “falsos”,
“mentirosos”, “gente do mato”, “praga” e escravos.
A escravidão é ponto importante para se compreender o contexto da época e dos
dias atuais. De fato, eles eram escravizados e comercializados como escravos. O próprio
Koch-Grünberg (2005: 334) registra o fato: “No dia 9 de maio, alguns Tuyúka, com
mulheres e crianças e um escravo Makú, viajaram rio abaixo, para um igarapé, a procura
do breu que eles extraem da resina duma árvore”. Sobre a proibição de escravizá-los que
se tentava infligir por meio dos padres aos demais indígenas na região, ele comenta:
O chefe de Parý-Cachoeira mostrou-me um documento escrito, herdado
do seu pai, que foi dado e assinado por Pe. Venâncio. O documento
contem dez itens que o finado chefe devia jurar a cumprir. Um dos itens
proibia expressamente a vender os Makú escravos. Estes bons
ensinamentos foram esquecidos ou nunca cumpridos, porque até aos
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dias de hoje floresce a lucrativa venda das crianças Makú (KOCHGRÜNBERG 2005: 286-287)
Através dos escritos do padre Giacone também se pode comprovar a escravidão e
comercialização dos Uaupés-Japurá praticadas pelos Tuyuka e Tukano, assim como a
proibição que os padres tentavam fazer valer:
Alguns índios Tucanos dizem que os Macus foram levados como
escravos pelos seus antepassados. De fato, antigamente, os Tucanos
vendiam Macus aos brancos, como se vendem jacamins, e recebiam em
troca mercadorias. A prova é um documento escrito pelos missionários
Franciscanos, em 1882, no qual se proíbe terminantemente que os
Tucanos do alto rio Tiquié preassem os Macus e os vendessem aos
brancos […].
Os das outras tríbus dizem que os Macus não são gente, mas filhos da
onça; por isso, não só os exploram, mas até os maltratam, quando se
recusam a fazer algo. Assim procedem os Tucanos, Tarianos e
Dessanos, que convidam os Macus a trabalhar na roça e a preparar
material para as casas. Obrigam-nos a entregar os filhos, para servirem
como criados ou pagens dos pequenos tucanos, dessanos e tarianos. Os
tuchauas do Tiquié e Papuri têm seus Macus, que servem fielmente e
lhes procuram caça e pesca. Deu-se até o caso de um tuchaua que, ao
deixar o filho na escola da Missão, pediu ao padre que aceitasse
também o Macu, para servir o aluno em tudo, como fazia na maloca
(GIACONE 1949: 88).
Apesar de estarmos um século distante e não termos mais o comércio desses
indígenas, nem vê-los como escravos, ainda pode-se ver a subserviência desses em
relação aos indígenas do rio (Tukano, Dessano, Tuyuka, etc.). É natural encontrarmos
pelos rios Uaupés, Tiquié e na cidade de São Gabriel da Cachoeira, indígenas e nãoindígenas depreciando-os, chamando os Hupdah e os Yuhupdeh de Maku e os Dâw de
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Kamã. Assim, apesar de estarem se aproximando do contexto social geral da cidade, são
diariamente empurrados à marginalidade com o epíteto de Maku.
Relações simbióticas
A relação histórica dos Índios do Rio (Tukano, Tuyuka, Dessano, Wanano, Cubeo,
Siriano, Barasano, Makuna, etc) com os Uaupés-Japurá, considerando estes escravos,
refletiam e ainda refletem em alguma proporção nas relações entre esses dois grupos ao
longo dos séculos. Os Uaupés-Japurá, por serem especialistas em caça e em tudo que se
refere à floresta, sempre foram requisitados pelos Índios do Rio para suprirem as suas
necessidades caçando, fazendo roças, fabricando instrumentos musicais, dançando nas
festas, servindo como pajens de seus filhos e etc. Em troca, recebiam panelas de metal,
sabão, tabaco, anzol e coisas assim, provenientes do universo branco, além de alimentos
como mandioca e etc. (KOCH-GRÜNBERG 2005: 44, 286; GIACONE 1949: 88). Isso
ainda é comum nos dias atuais. Há um caso recente de uma família Hupdah do Tiquié
que passou, desde o final do ano de 2006 ao início de 2007 trabalhando na roça de
indígenas Miriti-Tapuya, no cultivo de roças assim como na derrubada, queimada e
plantio de maniva. Tudo isso a troco de roupas e outros produtos, como sabão, pilha, etc.
Essa “relação econômica recíproca” (MILTON 1984: 9) de patrão-servo
(SILVERWOOD-COPE 1990: 71, 197) nada mais é que uma relação ‘simbiótica’
(RAMOS et al 1990: 170-1). Quando Ramos et al (1980: 171) utilizam a idéia de
Goldman, que entre os Uaupés-Japurá e os Índios do Rio há uma relação simbiótica, eles
afirmam que “tal simbiose tem sido percebida como uma oscilação entre dois extremos”.
Se por um lado o Uaupés-Japurá é visto como escravo do Índio do Rio, por outro o
Uaupés-Japurá “surge como um parasita na economia doméstica do Índio do Rio”. O que
se quer dizer é que ambos, Uaupés-Japurá e Índio do Rio, sempre ocupam o lugar de
explorador e explorado simultaneamente. Pois, apesar do Índio do Rio infligir a
exploração ao Uaupés-Japurá, este por sua vez se prende àquele como um parasita. E
ambos dependem um do outro para a sua subsistência.
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Identidade
A identidade Hupdah é definida, na percepção externa, por seu território (por serem
habitantes do interior da floresta), pelo tipo de casamento endogâmico – diferente dos da
família Tukano Oriental que praticam a exogamia lingüística – e pela sua língua, sendo
este último a sua marca distintiva, não porque a falam diante dos Tukano, mas porque a
preservam a despeito da necessidade de ter de falar Tukano todo tempo.
Os Hupdah se identificam como tal (Húp D’äh) e aos indígenas da beira do rio
chamam de Wòh D’äh, incluindo assim os Tukano, Dessano, Tuyuka, Miriti-Tapuya,
Pira-Tapuya, etc. Cada um deles também pode ser identificado distintivamente, aos
Tukano, por exemplo, chamam de Sokw’ät D’äh.
A identidade Hupdah intra-étnica se dá por um conjunto de elementos que formam
uma rede intrincada. São eles: 1º) Ancestralidade comum ao clã; 2º) Partilhamento do
mesmo território original; 3º) Unidade no conhecimento mítico fundamental; 4º) O
instrumento Döhö; e 5º) O nome de benzimento. Sendo o Hitamá Íd a expressão de todos
esses elementos. O primeiro deles é a sua identificação com um ancestral em comum.
Não me refiro ao Hib’áh Hup Ĩh (Homem da Transformação/Dispersão) que é
identificado como o primeiro componente do grupo em tempos recuados. Este foi o
responsável pelo surgimento dos Hib’ah Tẽh D’äh (Descendentes da Transformação) que
são os cabeças dos clãs e que dão origem a estes, aos quais me refiro. Cada cabeça é
identificado como Hib’áb Nuh (Cabeça da Transformação) e assim o clã Sokw’ät-NohK’öd-Tẽh D’äh (Descendentes do Bico do Tukano), por exemplo, reconhece em M’eh
Síh o seu cabeça; os Dög-M’èh-Tẽh D’äh (Descendentes da Cobra de Iwi-Pixuna)
também identificam o seu cabeça de nome B’uy Súk. E quando contam sobre o mito da
sua origem, se referem aos cabeças como habitando em pedras, morros ou serras. M’eh
Síh, por exemplo, está na Yák Paç (Morro da Arara). B’uy Súk está na Dia Bí Paç (certo
morro). Assim, a pedra onde o cabeça se encontra, e de onde advém a história, pode ser
apontada pelos Hupdah com facilidade. Como a história possui a ligação
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personagem/território como crivo de veracidade, entende-se que sem a pedra ou morro,
não haja concepção de fato social. Isto porque, sem pedra (ou morro) e sem história não
há como comprovar a origem do ancestral.
A origem do clã também tem a sua identidade definida pela territorialidade. Os
Hupdah identificam que no início o seu cabeça deixou um território específico delimitado
por igarapés, geralmente em sua cabeceira ou proximidades. No caso dos Sokw’ät-NohK’öd-Tẽh D’äh, o território é identificado entre o Mét Dëh (Igarapé Cotia) e o Hàt Dëh
(Igarapé Jacaré). Apesar de saberem o território de origem, os clãs, de uma forma geral,
habitam ou podem viver em outro território. Entretanto, se referindo àquele com
expressões de posse de direito, mesmo que também o façam, por vezes, no presente
território que habitam. Assim, em dias de festa , quando se embriagam com caxiri,
costumam dizer para os que não são daquelas paragens: “você não é bem-vindo aqui. Sua
terra é outra”.
Além desses dois elementos, há também o conjunto de mitos que formam o escopo
de conhecimento de cada clã, que também foi deixado pelo cabeça. Observamos um
exemplo clássico quando se trata de um demiurgo organizador do universo, conhecido
por alguns clãs pelo nome de Wahnáw K’eg Tẽh (Deus Abiú) e por outros como Mòh
Hup Ĩh (Inambu Rei), mas com histórias praticamente idênticas. Sempre que contam as
suas histórias identificam o seu clã com um dos títulos do personagem mítico e indicam
outros clãs como admitindo outro nome para o mesmo indivíduo. Há também casos de
mitos conhecidos por um clã e desconhecido por outros. Como o caso da história da
constelação Wero M’éh Töd’ que é restrita a certos clãs. Portanto, o conhecimento do
conjunto de mitos é fator de pertencimento e unidade clâmica entre os Hupdah.
A identidade também está ligada intimamente com o Döhö e o bi’ìd hat. Döhö é o
espírito dono do instrumento musical, ou o instrumento em si, que pode ser identificado
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com o Jurupari2, de onde provém o rito de iniciação dos garotos, praticado ainda hoje.
Cada clã tem o seu próprio Jurupari. No caso dos Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh D’äh, o seu
Jurupari chama-se Sohó (tipo de caranguejo pequeno). No caso dos Dög-M’èh-Tẽh D’äh
o seu Döhö chama-se B’ib’ìb’ (esquilo cinzento). No caso do clã Ĩh-Noh-Tẽh D’äh
chama-se Yëw (tatu). Geralmente, cada patriarca de uma família estendida ou nuclear
possui um par (um macho e outro fêmea) desses instrumentos guardados nas águas de
igarapés próximos às comunidades. E cada par de flautas de cada família do mesmo clã é
associado ao nome de um animal. Assim, é possível ocorrer do Jurupari de certo clã ser
chamado Sohó (Caranguejo) e o da família tal ser identificado como Mohòy (Veado).
Com este Jurupari celebram o que chamam de Dabucuri de Jurupari (festa de
oferecimento de alimentos entre os próprios Hupdah) de tempos em tempos, quando
tocam o instrumento Döhö, geralmente na ausência dos brancos. O Döhö também é
responsável por dar o conjunto de bi’ìd hat (nomes de benzimento) dos homens de cada
clã. Pode-se, portanto, identificar o clã de qualquer homem ao saber o seu bi’ìd hat.
Há uma antiga prática, e que se está presente ainda hoje, mesmo sendo raro de se
ver, chamada Hitamá Íd que reúne todos os elementos supracitados. Hitamá Íd pode ser
traduzido literalmente como ‘Respeito Fala’, que penso ser melhor interpretado como
Desafio de Honra. Esse desafio acontece em dia de festa entre dois homens de clãs
distintos, geralmente velhos (pessoa honrada, cheia de conhecimento), quando um relata
para o outro sobre quem é, sua origem e seus conhecimentos de maneira intercalada,
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Na região do Alto Rio Negro e em outras partes do Brasil é possível ouvir os indígenas contarem o mito
do Jurupari, quando os homens adquirem o direito de uma posição hierárquica superior ao das mulheres.
Jurupari é o dono (o personagem) e é o próprio instrumento musical feito de paxiúba enrolado com cascas
de árvore em forma de espiral, com varinhas de madeira e anéis de cipó que dão o formato de um grande
funil. Entre os povos que ainda preservam o ritual de Jurupari, de tempos em tempos os homens se
preparam com um jejum, separam-se das mulheres, tocam os instrumentos e mostram àqueles que serão
iniciados, os quais também recebem chicotadas. Ao final do ritual, todos precisam comer (ou mastigar)
uma quantidade de pimentas. O Jurupari também estabelece uma série de restrições às mulheres de não
poder vê-lo. Caso alguma mulher quebre essa regra, morrerá. As nuances deste ritual mudam de região
para região e de povo para povo.
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lembrando um pouco os repentistas do nordeste do Brasil. E é nessa hora que a distinção
e identidade são firmadas de um para outro.
Organização Social
Os Hupdah, à semelhança dos demais membros da sua família etnolingüística UaupésJapurá se organizam espacialmente em três níveis distintos. O primeiro é o grupo
doméstico. O conjunto de grupos domésticos forma um grupo local e um conjunto de
grupos locais que se relacionam compõe o grupo regional.
Um grupo doméstico é formado por apenas uma família (Ayùp Kurú) ou seja, por
um grupo de fogo, ou mais. E podem viver numa mesma casa ou em casas distintas, mas
próximas o suficiente expressando a sua afinidade. Um grupo doméstico possui roças
compartilhadas assim como locais de caça e de pesca, para coletas de frutos, cata de
insetos e retirada de cipó. “Um grupo doméstico é [portanto,] uma unidade social e
também de produção e consumo” (RAMOS et al 1980: 149), em outras palavras uma
unidade social auto-sustentável. Tal grupo tem como pressuposto a presença de um casal
com ou sem filhos. Podendo ser uma família nuclear ou estendida (com filhos casados,
pai ou mãe viúvos). Caso haja mais de um casal no grupo, os fogos indicarão a
quantidade deles. Um grupo doméstico é, portanto, uma família nuclear ou estendida ou
um grupo de famílias afim que dormem, produzem e consomem juntos. Tomando como
exemplo a comunidade de Taracuá-Igarapé, ali se encontra um grupo local composto
basicamente por 3 clãs, aproximadamente 200 pessoas, 38 famílias e 12 grupos
domésticos, os quais têm como referência um velho de mais de 70 anos. O que define
essa organização são as relações afins, comprovada pela presença de clãs endogâmicos,
que se casam entre si e que formam grupos domésticos mistos, sem maiores problemas. É
nessa esfera que fica evidente a autonomia, um valor inalienável para os Hupdah. Numa
referência a um outro grupo Uaupés-Japurá, Ramos et al (1980: 150) expressa o que se
pode constatar entre os Hupdah: “O grupo doméstico mantém um alto grau de autonomia
dentro do grupo local. Como uma unidade discreta, independente dos demais, ele
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empreende viagens à floresta para caçar, ou às aldeias de Índios do Rio para trabalhar”.
Vão e voltam sem necessitarem dar satisfação aos membros do grupo local. Por conta
dessa grande mobilidade dos grupos domésticos, um grupo local pode sofrer alteração
numérica a qualquer momento.
Há diversas causas de dispersão: caça, pesca, passeios, trabalho nas roças dos
Índios do Rio, etc. No entanto, uma das maiores causas são os conflitos, sobre tudo os
que resultam em mortes. Dependendo do grau de brutalidade da morte, uma família pode
mudar a sua residência para fora da área da comunidade ficando afastado desta, e até
mesmo se mudar para um outro grupo local. Quando a morte de um Hupdah é esperada,
como no caso dos velhos e velhas, aquele grupo doméstico sai da casa e constrói uma
nova ao lado, deixando todos seus pertences para trás. Mas, quando um jovem morre
assassinado por uma flecha envenenada, por exemplo, a indignação é tanta que o grupo
doméstico sai da casa, podendo queimá-la e se muda para um lugar distante, mostrando o
seu desagravo e profunda indignação pelo que aconteceu. Quanto maior a indignação,
maior será a distância, em relação à antiga moradia, que ele irá se estabelecer, chegando
ao ponto de morar fora da área do grupo local, da comunidade. Quando isso acontece, os
Hupdah falam que tal família está morando hayám hupah sö’ (de costas para a
comunidade).
Um conjunto de dois ou mais grupos locais formam os grupos regionais. A marca
tradicional entre os grupos regionais Hupdah é a troca de esposas e de todo tipo de
objetos, animais domésticos (como galinhas), sementes e manivas para o cultivo. A
endogamia do grupo regional é traço distintivo dos Hupdah e os demais membros da sua
família etnolingüística. Um número significativo de casais da comunidade de TaracuáIgarapé é composto por indivíduos de dois grupos regionais de dois clãs apenas, sendo as
mulheres advindas do Cabari do Santa Cruz, no rio Japu, afluente do Rio Uaupés. Essa
relação é marcada pela cosmogonia e cosmologia dos clãs, pois desde ‘o começo’ tal clã
seria sempre cunhado daquele.
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Gráfico 1. Esquema com representação dos grupos domésticos, local e regional
Os Hupdah são etnicamente endogâmicos e clamicamente exogâmicos. Eles se
organizam em clãs, que são grupos de pessoas que se reconhecem como pertencendo a
uma mesma linhagem, sendo descendentes de um mesmo ancestral comum. Todos os
clãs Hupdah reconhecem em Hib’áh Hup Ĩh o primeiro Hupdah que estava na Hib’áh
Hoh-Tëg (Canoa da Transformação) – o mito da origem do homem. Desse primeiro
indivíduo é que vieram os Hib’ah Tẽh D’äh, ou seja, os cabeças dos clãs, chamados de
Hib’áh Núh D’äh. Os membros de cada clã reconhecem o seu cabeça, porém não
conseguem se reportar aos ancestrais além de duas gerações anteriores à sua.
Há naturalmente uma hierarquia entre os clãs. Um clã principal ou primeiro entre
os Hupdah é o Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh D’äh (Descendentes do Bico do Tukano) e um
dos que compõem o grupo menor, considerado como servos, são os Hũt-Sop-Tẽh D’äh
(Descendentes do Rolo de Tabaco). Conforme informação de um velho, o último
representante desse clã faleceu em 2006. Outros clãs inferiores compartilham do mesmo
status que esse, como o caso do Yè’ Tẽh D’äh (Descendentes do Excremento). A última
senhora representante desse sib faleceu também em 2006 na comunidade de Santo
Atanásio ou Serra dos Porcos (Tõh Paç).
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Cada clã possui uma estrutura hierárquica divida em sibs. De acordo com
Goldman, os sibs são “grupos de descendência unilinear, cujos membros se consideram
descendentes de ancestrais comuns, mas não podem estabelecer uma relação genealógica
real” (Apud RAMOS et al 1980; 159). Dentro de cada clã há sibs que em geral não se
casam entre si. Conheço apenas uma exceção entre o clã dos Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh
D’äh (Descendentes do Bico do Tukano) em que o sib superior, com o mesmo nome,
pode se casar com um outro sib do mesmo clã denominado Mohoy-Kä’-Tẽh D’äh
(Descendentes do Esteio da Casa), pois são considerados como meio irmão apenas. Mas
essa opção só pode ser utilizada quando não houver mais nenhuma outra. No mesmo clã
dos Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh D’äh o sib mais inferior chama-se Yahám-D’ap-Tẽh D’äh
(Descendentes da Polpa do Abacate).
Os Hupdah são patrilineares e têm uma tendência a serem patrilocais. Ou seja, é o
pai que define a qual clã a criança nascida pertence. Quando se casam, a mulher
geralmente deixa o seu grupo doméstico e até o local (raramente o regional) para morar
com o seu marido na casa do seu sogro. O sistema de parentesco é dravidiano, onde cada
Hupdah procura casar-se apenas com primo cruzado bilateral, real ou classificatório (ver
SILVERWOOD-COPE 1990: 77).
O que se observa entre os Hupdah é uma preferência ou tendência dos homens
buscarem esposas do clã da mãe, o que forma fortes laços que se estendem nas gerações
seguintes. Somado a isso, há também certa exigência de casamento por troca, em um
arranjo em que os homens de uma dada família entregam suas irmãs para os irmãos de
uma outra e vice-versa. Entregar sua irmã em casamento e não receber uma das irmãs
daquele em troca, pode gerar fortes desentendimentos.
Os cunhados (preferenciais) são estabelecidos nos mitos cosmogônicos. Para os
Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh D’äh, os seus cunhados, mitologicamente falando, são os DögM’èh-Tẽh D’äh . Homens de cada clã sempre buscarão idealisticamente casar-se com
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mulheres de clãs opostos e que sejam parentes próximos das suas mães. Pode ser
observado que estes dois clãs estão entrelaçados e se relacionam intimamente.
Devido a proibição de incesto, de que pessoas do mesmo clã se casem, raramente
será encontrado um homem Hupdah que tenha se casado fora do padrão cultural
estabelecido. Há casos de mulheres Hupdah que se casam com membros de outras etnias,
como no caso citado por Ramos et al (1990: 151-2): “…entre os Bara Maku, localizados
no Igarapé Castanho, na Colômbia, existem dois casais, componentes de um mesmo
grupo local, em que as mulheres são Hupdu e os homens são Bara Maku. Isto, porém, é
raro”. Há casos, hoje em dia, de duas mulheres Hupdah casadas com homens Tukano, e
de aproximadamente oito casadas com homens Yuhupdeh. E apenas um caso de uma
mulher Tukano casada com um homem Hupdah, no entanto, esta fora criada sozinha por
sua mãe, que é Hupdah.
Povo caçador, pescador, coletor e “plantador de mandioca”
Historicamente os Hupdah são tipicamente caçadores e coletores. O que não condiz com
a realidade atual. Eles são caçadores, pescadores, coletores e plantadores de mandioca. É
fato, no entanto, que o cultivo de mandioca de uma família nuclear ou estendida Hupdah
é sempre menor que a de uma Tukano. Assim como com os Tukano e os Índios do Rio
em geral, os Hupdah tem como base da alimentação o beiju, a farinha, a pimenta, peixe e
eventualmente caça. Esses por ordem de importância. Uma família Hupdah lutará sempre
para ter os três primeiros alimentos. O quarto e o quinto são frutos da oportunidade.
Assim, o beiju feito da mandioca (brava) sempre estará presente na alimentação com a
pimenta. Há pelo menos seis tipos de beiju (b’à’) e nove tipos de pimenta (ków). O peixe
nem sempre se tem, mas comê-lo puro sem beiju é inviável. Depois que o homem volta
da pescaria e o peixe é preparado, assado ou feito uma kiãpira dele (kow b’òk), há de se
esperar pelo beiju para comê-lo. Pode-se comprovar a importância da mandioca na
produção do beiju e demais derivados pelo fato dos Hupdah identificarem mais de 67
tipos distintos de manivas.
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
Os homens participam na coleta de frutos, catam insetos, caçam, pescam, derrubam
e queimam as novas roças, plantam e poucas vezes participam da manutenção destas. As
mulheres também coletam frutos e catam insetos e plantam maniva como os homens.
Além disso, elas cuidam diariamente das roças, arrancam mandioca e com ela fabricam
diversos tipos de farinha e de beiju, separam a tapioca e a manicuera, carregam água e
lenha e são responsáveis por manterem os fogos das casas acesos, especialmente durante
a noite. As crianças acima de oito anos participam da produção de subsistência com
pequenas ajudas. As meninas buscam água, pegam lenha e já ajudam suas mães em todo
o processo de produção de beiju e farinha, mas sem o compromisso diário. Os meninos
pescam, mas de forma eventual, e como as meninas, não têm a responsabilidade diária de
ir à pescaria, com raras exceções. Podemos enquadrar os idosos na mesma categoria de
produtores juntamente com as crianças, podendo ir a roça, porém sem compromisso com
a mesma no abastecimento do grupo doméstico.
Os Hupdah não plantam apenas a maniva (ou mandioca brava), mas também a
macaxeira (mandioca ou aipim), kiwi (um tipo de planta que dá uma raiz comestível)
taioba, cará, banana (tendo 7 tipos desta), cubiu, abiu, cucura, cana-de-açucar, abacate,
ingá (com um grande número de espécies), cupuaçu, abacaxi, etc. Quanto à coleta,
costumam sair à floresta nos derredores da comunidade para colher frutos como bacaba,
açaí, japurá, buriti, patauá, uacu, sovão, etc. Conseguem identificar diversos terrenos
onde essas árvores e palmeiras se encontram: caatinga, chavascal, terra firme, igapó, etc.
No período de coletas da semente de uacu é comum ver os adultos chegarem a suas casas
com aturás repletos. Deixam-no na água e depois cozinham para tirar o amargor. Depois
de pronto, tomam o caldo verde e a espuma produzida é utilizada para matar os piolhos
das crianças. Na época do patauá se pode ver os Hupdah saindo da comunidade para
coletá-los levando o seu machado. A retirada do patauá é simples. Eles analisam o(s)
cacho(s) na árvore e em seguida derrubam-na retirando os frutos e seguem em busca de
outra árvore. Se após a derrubada verificam que o cacho ainda está verde, deixam-no ali
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
mesmo e buscam outro melhor, derrubando outra árvore. E vão assim, até encontrarem
frutos maduros, e em quantidade suficiente para atender a família.
Quanto às caças, os Hupdah reconhecem quatro tipos distintos: a) Wairö’ hũ d’äh:
essas são as caças que voam. São as aves em geral; b) Tuuy hũ d’äh: essas são as caças
que vivem em terra, seja em igapós, caatingas, chavascal ou terra firme. Geralmente são
os mamíferos, podendo ser também outros seres; c) Noh k’ã’ hũ d’äh: essas caças são os
que ficam dependurados em árvores. No caso, todos os macacos e outros mais que vivem
na árvore como o tamanduaí, etc.; d) Dëhàn d’uuy ĩh hũ d’äh: essas são as caças que
vivem no rio como o jacaré, a ariranha, etc.
Os Hupdah comem carnes de paca, anta, capivara, acutiuaia, ratos, veados,
ariranha, pássaros em geral (especialmente o mutum), teju, tamanduá, cuandu, jabuti, etc.
Também se alimentam de insetos em vários estágios de vida. Das vespas e dos besouros
comem as larvas. Comem também os cupins gigantes da Amazônia, conhecidos como
maniuara, assim como saúvas. Entre os peixes apreciam de forma especial o aracu, mas
na hora de consumi-los não faz qualquer questão de ser este ou outro. De forma enfática
e unânime, os Hupdah costumam dizer que só não comem uma cobra de duas cabeças
chamada b’ab’àu.
História do estudo da língua Hup
Em seu estudo sobre as civilizações do Rio Uaupés, o Padre Antonio Brüzzi da Silva traz
registros dessa região desde o século XVIII. Em seus escritos pode-se constatar uma
indicação dos Uaupés-Japurá como habitantes dos rios Uaupés, Papuri e Tiquié,
provavelmente uma referência aos Hupdah (SILVA 1962: 54). Ao tentar transcrever
algumas palavras desses indígenas percebe-se certa semelhança com a língua Hup. O
interessante é observar a forma como ele fez a transcrição e como se escreve hoje (entre
parênteses) depois da proposta ortográfica de Ramirez: a) Carapanã = Kyira (K’í D’äh);
b) Dessano = Mina-dé (Minà’ D’äh); e c) Arapaso = Hom’de (Höb D’äh) (SILVA 1962:
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26-7). A esses Uaupés-Japurá ele identifica como desconsiderados e dominados pelos
Tukano, os quais lhe chamam posâ (escravos), o que também pode identificar os UaupésJapurá como sendo Hupdah pela relação próxima entre esses povos (SILVA 1962: 66;
GIACONE 1949: 87; Cf. RAMIREZ 1997: 152).
Esses dados apresentados por Silva, na verdade, não podem ser tomados como
referência de estudo da língua, pois essa não era a sua intenção, mas apenas como uma
curiosa tentativa de registro da língua Hup. O estudo, propriamente, da língua Hup pode
ser divido em 3 períodos distintos: a) período improdutivo – 1925 a 1960; b) período de
despertamento ou missionário – 1960 a 2000; e c) período de realização satisfatória –
2001 aos dias atuais. A primeira etapa remonta o ano de 1925, com a publicação de um
artigo na International Journal of American Linguistics, intitulado “Nouvelle
contribuition à l’étude de la langue Makú”, por River, Kok e Tastevin, com dados
lexicais e gramaticais de baixa qualidade. Fechando esse período, a Missão Indígena
Salesiana, publicou no ano de 1995 um material deficiente intitulado “Pequena
Gramática e Dicionário Português Ubde-Nehern ou Macú”, organizado pelo Padre
Antonio Giacone S. S. (Apud EPPS 2005: 12-14). A segunda etapa foi iniciada no fim da
década de 1960, início da década de 1970, ainda na Colômbia, com a SIL (atual
Sociedade Internacional de Lingüística). Como fruto desse período foi publicado em
1976, por Barbara Jean Moore Algunos aspectos del discurso Jupda Macú. No Brasil, o
estudo da língua tem como marco o preenchimento, em 1977, do Formulário dos
Vocabulários Padrões Para Estudos Comparativos Preliminares Nas Línguas Indígenas
Brasileiras do Museu Nacional (com mais de 300 dados), pela mesma Moore. No mesmo
ano de 1977 ela publicou em inglês o artigo que publicara em 1976, Some discourse
Features of Hupda Macú. Em 1979, Moore e sua colega de trabalho, Gail Louise
Franklin publicaram Breves Notícias da Língua Makú-Hupda com descrições e analises
preliminares. Em 1980, apresentaram o seu conhecimento da língua através de cinco
manuscritos não publicados, sendo dois deles de autoria das duas, outros dois de Moore e
um de Franklin: a) Verbal and Nominal Inflection in Hupda Makú; b) Dependent clause
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
markers in Hupda Macú; c) Positional, direcional and relational verbs in Hupda Makú;
d) The structure of the nuclear clause in Hupda; e) Hupda Makú Postpositions. No ano
de 1989 é organizado por SIL o Dicionário Provisional Português-Hupda, não
publicado. Esse período se encerra com a compilação e organização dos dados coletados
por Moore, Shirley Slack de Kooistra e por Timothy e Catherine Erickson, sendo
publicado o Vocabulário Jupda-Español-Português, pelos Erickson em 1993.
A terceira etapa é marcada pelo início do trabalho de dois lingüistas, Henri Ramirez
e Patience Louise Epps. O francês Ramirez trabalhou de 2001 a 2004 com a “Descrição
da Língua Hup”, com apoio do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do
Amazonas. A americana Epps veio ao Brasil pela Universidade da Virginia em parceria
com o Museu Emílio Goeldi, a fim de executar o projeto de “Análise e Descrição da
Língua Hupda (Macu)”, entre 2000 e 2002. Em 2005 defendeu a sua tese de PhD,
Grammar of hup, premiada em 2007 pela ALT (The Association for Linguistic
Typology), marcando, portanto, essa nova etapa do estudo da língua Hup. Epps também
tem escrito artigos para revistas especializadas como o Arial diffusion and the
development of evidentiality: evidence from Hup. E recentemente escreveu um capítulo
do livro organizado por Dixon (Grammar in contact), intitulado The Vaupe’s melting
pot: Tucanoan influence on Hup, publicado em 2006. Os benefícios para o povo, no
entanto, vêm através dos resultados do trabalho de Ramirez, com as “Oficinas na Língua
Hup” para proposta ortográfica e duas publicações: A língua dos Hupd’äh do Alto Rio
Negro: dicionário e guia de conversação e A língua dos Hupd’äh do Alto Rio Negro:
cartilha. Tais obras foram publicadas em 2006 pela Associação Saúde Sem Limites,
sendo a segunda organizada juntamente com Athias. Tanto o dicionário como a cartilha
estão disponíveis para a população Hupdah do Brasil, sendo a cartilha a mais utilizada
nas escolas.
A língua Hup
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
Os Hupdah são naturalmente bilíngües, tendo a língua materna como primeira língua e a
Tukano como a segunda. Falar Tukano, por ser a língua franca, é uma questão de
sobrevivência, tanto pela interdependência desses dois grupos como por questões de
caráter cosmológico. A totalidade dos Hupdah adultos entende a língua Tukano e 90%
conseguem articulá-la (EPPS 2005: 38; 2005b: 621; 2006:269). Um número pouco
expressivo dos Hupdah da região do Rio Tiquié também consegue entender, apesar de
não conseguir falar, um pouco da língua Yuhup dos Yuhupdeh, com quem mantêm
algum contato. Ser poliglota nessa região, considerada uma área cultural, é algo bem
comum (SORENSEN 1967: 670).
A língua Hup tem uma tendência monossilábica, com característica isolante e
presença de tons, glotal e laringalização. Os dois tons são o alto e o ascendente. Pode-se
enumerar um grande número de pares de raízes com tons contrastivos. As laringalizações
estão presentes tanto em consoantes como em vogais. Tais características tornam a língua
Hup fonologicamente bastante difícil, o que tem corroborado, ao longo da história, para
uma depreciação por parte dos demais habitantes da região considerando-a como uma
língua feia.
Os Hupdah falam três dialetos distintos (POZZOBON 1991: 141; EPPS 1995: 146), mas plenamente compreensíveis entre si, o que facilita a mobilidade em todo o
território Hupdah. O dialeto oriental é representado pela comunidade de Umari Norte no
Alto Rio Tiquié, o central pela comunidade de Barreira Alta no médio curso do mesmo
rio, e o oriental pela comunidade de Santo Atanásio. Entre esses dialetos, se destaca a de
Taracuá-Igarapé que fala um dialeto central-oriental (EPPS 1995: 16-8).
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
Mapa 1. Distribuição dos dialetos da língua Hup no interflúvio Papuri-Tiquié.
O inventário de vogais hup é composto por nove segmentos contrastivos (Epps 2005:
62):
vogal
anterior
Central
posterior
alta
i
ˆ
u
média
e
´
o
baixa
Q
a
ç
Em ambientes nasais o inventário da língua hup é reduzido a 6 vogais:
vogal
anterior
Central
posterior
alta
i)
ˆ)
u)
baixa
Q)
a)
ç)
A lingual Hup tem dezoito consoantes de segmentos contrastivos conforme se pode ver
abaixo:
ponto
modo
bilabial
alveolar
20
palatal
velar
glotal
ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
oclusiva
p
t
c&
k
b
d
jÛ
g
¯
N
/
surda
oclusiva
sonora
r
vibrante
nasal
m
n
C
fricativa
aproximante
w
h
y
A partir desse inventário, através de estudos fonológicos e gramatical foi proposta
por Ramirez a grafia com 26 letras, a qual está sendo atualmente utilizada nas escolas
Hupdah. As letras são a, ä, b, ç, d, e, ë, g, h, i, i, j, k, m, n, o, ö, p, r, s, t, u, w, y e ’
(oclusão glotal). Na escrita Hup todas vogais podem aparecer seguidas por glotais e são
por elas precedidas no início das palavras, o que lhes garante um som laringalizado, mas
não recebem marcação alguma, por ser êmico. Muitas consoantes podem ser glotalizadas
ou laringalizadas. São elas: b’, d’, r’, g’, j’, m’, n’, w’, y’, k’ e s’.
A legislação sobre educação na língua indígena no Brasil
A valorização dos povos minoritários tem feito parte da agenda do Brasil. A prova disso
são os programas que visam o apoio em diversas áreas aos povos indígenas e
comunidades quilombolas. Uma das áreas que os Governos Federal, Estadual, Municipal
e as ONG’s (Organizações Não-Governamentais) mais têm se preocupado e investido
recursos humanos e financeiros é a educação, fazendo valer a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (Artigo 26): “todo o homem tem direito à instrução”.
O grande marco que preparou o ambiente de uma legislação favorável que ampara
e garante uma educação diferenciada aos indígenas foi a Constituição Federal de 1988
(no seu Artigo 210), respeitando e valorizando as culturas e artes nacionais e regionais,
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
através do ensino fundamental, assegurando-lhes a utilização de suas línguas e nos
processos de aprendizagem. No ano de 1991 é criada a Coordenação Nacional de
Educação Indígena (CNEI), a qual vem garantir o ensino e a produção de material
bilíngüe nas escolas indígenas. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 traz garantias
de desenvolvimento de programas que ofereçam educação escolar bilíngüe e intercultural
para os povos indígenas, a fim de resgatar a memória histórica e reafirmar a identidade e
valorização da língua e conhecimento. Comprometendo-se ainda a dar amparo técnico e
financeiro para esse ‘novo’ sistema de ensino. Em 1999, a Câmara de Educação Básica
do Conselho Nacional de Educação resolve reconhecer as escolas indígenas como tendo
diretrizes curriculares diferenciadas, reitera a idéia de ensino intercultural e bilíngüe com
vistas à valorização das culturas e da diversidade étnica, e apresenta o ensino na língua
materna como elemento básico na preservação da realidade sociolingüística.
Considerando toda essa legislação favorecendo a educação na língua indígena para
a valorização da cultura, há de se ter cuidado para não se equivocar e utilizá-la apenas
como suporte e amparo legal para integrar o indígena à cultura ocidental, como afirma
Honório (2007, internet):
Apesar de a Constituição (1988), a nova LDB (1996) e os
RCN/Indígenas - Referenciais Curriculares Indígenas – (1999)
legislarem sobre o direito aos povos indígenas do ensino das línguas
indígenas nas suas escolas e de uma auto-gestão indígena, não são raros,
no entanto, os casos de escolas indígenas que vêm seguindo o currículo
das escolas municipais e estaduais da região, por imposição, muitas
vezes, da própria Secretaria da Educação. Nestes casos, todas as
disciplinas são ensinadas em língua portuguesa, e a língua indígena
passa a ser apenas uma disciplina que estaria representando a
especificidade da escola indígena. Nota-se, nestes contextos, que o
chamado “ensino bilingüe” continua funcionando como ponte para a
integração do índio à cultura ocidental.
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
O Magistério Indígena Paah Sák-Tëg
Para fugir de críticas como essa, a Secretaria Municipal de Educação e Desporto de São
Gabriel da Cachoeira, fazendo valer a legislação nacional, deu início a um novo modelo
de Magistério Indígena para a formação de professores indígenas, atendendo cinco áreas
distintas, considerando a diversidade étnica e lingüística. Os cursos foram distribuídos
nas seguintes localizações: 1) Comunidade Indígena de Maturacá para os Yanomami; 2)
Distrito de Cucuí (no Rio Negro), para os de fala Nheengatu; 3) Comunidade Indígena de
Tunuí (no Rio Içana), para os Baniwa e Kuripako; 4) Distrito de Taracuá (no Rio
Uaupés) para os Tukano e demais povos falantes da língua; e 5) Comunidade Indígena de
Barreira Alta (no Rio Tiquié) para os falantes das línguas Hup, Yuhup e Dâw. O primeiro
encontro ocorreu entre 22 de janeiro a 18 fevereiro de 2006, com um total de quarenta
participantes, sendo cinco Dâw, cinco Yuhupdeh e trinta Hupdah. Ali, os alunos deram o
nome de Magistério Indígena Paah Sák-Tëg, uma expressão composta pelas línguas Dâw
e Hup: sendo Paah Sák (saber crescer) da língua Dâw e o Tëg (marcador de futuro) da
língua Hup, podendo ser traduzido como “Crescendo no Conhecimento”. O Magistério
Indígena Paah Sák-Tëg tem os seguintes objetivos:
Promover a formação de professores culturalmente adequados para o processo
de educação escolar diferenciada indígena, assim como o acesso e apropriação
dos conhecimentos culturais específicos e universais;
Produção de materiais de apoio às escolas, estimulando e valorizando suas
capacidades;
Inserção desses professores na rede pública de ensino como forma de incluílos política e socialmente (MONTEIRO 2006: 4).
Atualmente há vinte Hupdah no quadro de professores da SEMED (Secretaria
Municipal de Educação e Desporto) de São Gabriel da Cachoeira, em nove escolas nos
rios Papuri, Japu e Tiquié. Isso é o reflexo do que se pode chamar de ‘destukanização da
educação no Alto Rio Negro’. Ou seja, a retirada dos professores indígenas de língua
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
Tukano de comunidades em que todos ou sua maioria são falantes de outra língua. A
destukanização vem acontecendo há alguns anos no município, tendo começado pelas
escolas Baniwa e Nheengatu e mais recentemente com os Hupdah e demais UaupésJapurá. Como resultado desse processo, associado ao fato da língua Hup ter sido grafada,
a realização do Magistério Indígena em uma nova configuração e a orientação da
SEMED para que os Hupdah sejam alfabetizados na língua materna têm promovido um
despertamento para a valorização da língua pelo próprio povo. No entanto, a ausência de
material didático na língua Hup suficiente para ser utilizado durante todo o ano letivo e a
falta de curso ou capacitação de letramento na língua materna para os professores têm
dificultado o processo de ensino-aprendizagem nas escolas, num descompasso que pode
ser revertido sem maiores dificuldades.
O caderno de transição e sua colaboração no letramento do povo Hupdah
A Associação Pró-Amazônia, uma instituição sem fins lucrativos que tem por finalidade
básica a fomentação do desenvolvimento humano entre as comunidades indígenas, e atua
na área de educação na língua materna indígena com ênfase na interculturalidade, está
presente no Rio Tiquié desde 2003, através de dois projetos. Um de segurança alimentar
e outro de apoio à educação na língua indígena. Este que foi iniciado em 2006, já tem o
seu primeiro material produzido por Cácio e Elisângela Silva. Trata-se de um caderno de
alfabetização e proposta ortográfica da língua Yuhup, intitulado Yuhupdeh Diíd: a língua
dos Yuhupdeh. Esse projeto foi realizado em atendimento às solicitações dos próprios
Yuhupdeh, e publicado pela Pró-Amazônia em parceria com a Associação dos
Professores Indígenas no Alto Rio Negro (APIARN). Também recebeu o apoio da
FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), SEMED de São Gabriel
da Cachoeira-AM (Secretaria Municipal de Educação e Desporto), Administração
Executiva Regional da FUNAI, Coordenação das Organizações Indígenas do Tiquié,
Uaupés e Afluentes (COITUA) e da Associação das Comunidades Indígenas de Taracuá,
Rios Uaupés e Tiquié (ACITRUT). Atualmente os autores estão executando o projeto de
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
letramento dos professores e adultos na própria língua materna. Hoje já se pode encontrar
os alunos Yuhupdeh do primeiro curso lendo e escrevendo, inclusive cartas, na sua
própria língua.
Entre os Hupdah, vendo a necessidade de produção de um material que atendesse
as necessidades imediatas dos professores e alunos do Magistério Indígena, produzimos o
Hup íd b’öy k’et: caderno de transição Português-Hup. Livro também publicado pela
Pró-Amazônia em parceria com APIARN e apoio da FOIRN, SEMED e Administração
Executiva Regional da FUNAI. Esse material tem o intuito de preencher o vácuo
educacional no letramento dos adultos e professores Hupdah na sua própria língua, e
minimizar o descompasso já citado. Apesar do material produzido pela SSL (cartilha) ser
utilizado efetivamente, os professores Hupdah tiveram dificuldade de trabalhar com a
mesma por falta de conhecimento da própria língua escrita, tendo sido a cartilha escrita
totalmente em Hup. O Hup íd b’öy k’et (Livro de estudo da língua Hup) chega para fazer
a ponte entre o universo já conhecido do português e a escrita da língua Hup. Como já
tem ocorrido com o povo Tukano, em especial com os alunos da escola indígena da
comunidade do Balaio, na BR 307, Km 100, no Parque Nacional do Pico da Neblina, que
foram alfabetizados pelo professor Paulo César Nascimento através do Dase yeé bu'erí
turi (Livro de estudo da língua Tukano), por ele mesmo organizado, e hoje lêem e
escrevem na língua Tukano, segundo a grafia proposta por Ramirez.
O Hup íd b’öy k’et foi produzido com base no aprendizado da língua iniciado em
2004 e com o apoio do dicionário organizado por Ramirez. Após a sua produção, foi
testado primeiramente com informantes lingüísticos e em um segundo momento em sala
de aula, com alunos de 5ª série de uma escola Hupdah, além de alunos do Magistério
Indígena. Considerando que os Hupdah vêem sendo alfabetizados em Português há mais
de 30 anos, esse caderno propõe um estudo introdutório da língua Hup partindo do
conhecido (alfabetização em Português) para o desconhecido (escrita da língua Hup), de
forma progressiva e cumulativa, mostrando primeiramente as letras e sons que as duas
línguas partilham para em seguida tratar das novas letras e os sons a elas associados. São
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22 aulas numa proposta autodidática. Na primeira delas é apresentada uma conexão entre
o universo da tradição oral e da escrita. Mostrando que histórias que eram solicitadas
para serem contatadas oralmente, agora já podem partir da língua escrita, através das
palavras-chave em Hup. Em cada aula há frases para leituras, geralmente ligadas ao
tema. Aquelas aulas que os Hupdah mostraram mais dificuldade na compreensão, pela
sua complexidade, foram feitas adaptações, mudanças e muitas delas foram divididas em
duas ou três lições. Por isso, temos mais aulas sobre tons e oclusões glotais, por exemplo.
Ao final há 3 anexos, o primeiro é uma comparação entre os alfabetos em Português e em
Hup; os demais são tabelas de palavras semelhantes com tons contrastivos e marcadas ou
não com a oclusão glotal (ou laringalizações).3
Já foi dado início à produção de um novo livro, organizado por lingüistas da PróAmazônia com 3 professores Hupdah como autores. A razão da produção desse novo
material é a constante queixa dos professores de terem, por orientação de seus superiores,
de ensinar as crianças primeiramente a ler na sua própria língua, mas sem terem material
disponível para dar continuidade ao processo de letramento, sendo a Cartilha de
alfabetização da SSL único material disponível. Desta feita a proposta é de produzir
material na língua materna que auxilie no exercício da leitura e escrita da língua para os
alunos das Escolas Hupdah que já começaram o processo de letramento. Esse novo livro,
Húp d’äh hup íd b’öy tëg k’et (Livro para os Hupdah estudarem a sua língua), teve seu
título dado pelos próprios professores. A sua parte principal já está pronta, precisando ser
apenas testada para posterior publicação.
A proposta da Pró-Amazônia, portanto, é contribuir juntamente com o povo
Hupdah no seu desenvolvimento educacional, na valorização da língua e no resgate da
dignidade. De tal forma que os Hupdah ocupem o seu lugar dentro do universo
multilingüístico de São Gabriel da Cachoeira, sendo reconhecido como um povo
específico, que tem cultura e língua próprias, como disseram os alunos na primeira etapa
3
O citado Hup íd b’öy k’et: caderno de transição Português-Hup está disponível e pode ser solicitado no
seguinte endereço postal: Associação Pró-Amazônia, Caixa Postal 4237, Manaus-AM, CEP 69053-971.
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ANTROPOS – Revista de Antropologia – Volume 1, Ano 1, Novembro de 2007 – ISSN 1982-1050
do Magistério Indígena Paah Sák-Tëg: “Educação… [é] saber escrever a língua
Hupd’äh…”.
Considerações Finais
Esse novo momento que vive o povo Hupdah apresenta-se como um turning point
histórico da sua relação com os demais indígenas e com a sociedade não-indígena. De
subjugados e desprezados para a autonomia, valorização e resgate da dignidade. Que tem
na língua escrita uma nova forma de expressão cultural. Porta que se abre para novos
horizontes, inclusive de produção de material didático na sua própria língua.
Depois do registro ortográfico da língua Hup é comum encontrar indígenas de
outras comunidades, em uma referência aos Hupdah, dizerem: “é... esse povo já está se
civilizando”. Apesar de parecer algo que afronte a academia e com utilização de termo
inapropriado, significa muito no contexto social indígena desta região. O reflexo do
momento está no reconhecimento dos demais indígenas que os Hupdah estão numa nova
fase, indicando uma integração no contexto indígena e político.
O Magistério Indígena Paah Sák-Tëg também tem o seu papel nesse momento na
formação dos ‘novos’ professores Hupdah. Pois é o reconhecimento pelo órgão
municipal de educação de que os Hupdah, juntamente com os Yuhupdeh e Dâw são
povos distintos e que merecem tratamento diferenciado, o que tem corroborado para a
valorização étnica desse povo.
Se por um lado o momento é oportuno, por outro é um tempo de tensão que requer
bastante atenção e discernimento, pois, dependendo do rumo que tome a educação entre
os Hupdah, podemos ver ou não a continuidade do caminho que o povo começou a
trilhar. Para tanto, é necessário que sejam criados mecanismos aferidores da qualidade
dos professores que estão sendo formados, assim como da qualidade dos seus alunos.
Que os professores sejam acompanhados por pedagogos que os orientem diante dos
desafios no processo de ensino-aprendizagem vivenciado a cada dia nas escolas. De tal
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forma que os frutos desse grande empreendimento educacional que tem como foco a
valorização cultural e resgate da dignidade através da língua, possam amadurecer e gerar
mais frutos ainda.
Observo que seja de fundamental importância que os órgãos competentes
incentivem e capacitem os professores à produção e publicação de material didático para
as escolas, assim como livros de contos e histórias na língua Hup. A Pró-Amazônia vem
corroborar, com a produção do Hup íd b’öy k’et: caderno de transição Português-Hup e
do Húp d’äh hup íd b’öy tëg k’et (Livro para os Hupdah estudarem a sua língua), como
ferramentas para que os Hupdah dêem mais um passo por esse caminho que certamente
não terá retorno. Ler e escrever na sua própria língua se tornou a chave que abriu a porta
para novos horizontes e novas oportunidades para esse povo. Se Educação é sinônimo de
liberdade, por que não parafrasear o que disseram os alunos do Magistério Indígena:
“Liberdade…[é] saber escrever a língua…”.
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