Book 1.indb - FiCeM
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Cadernos de FILOSOFIA ALEMÃ FFLCH Programa de Pós-Graduação Área de Filosofia CNPq Cadernos de FILOSOFIA ALEMÃ XV Publicação semestral do Departamento de Filosofia – FFLCH-USP Indexado por The Philosopher’s Index e Clase Jan.-jun. 2010 São Paulo – SP ISSN 1413-7860 Cadernos de Filosofia Alemã é uma publicação semestral do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Editores Responsáveis Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola Ricardo Ribeiro Terra Comissão Editorial Bruno Nadai, Cauê Cardoso Polla, Fernando Costa Mattos, Flamarion Caldeira Ramos, Igor Silva Alves, Marisa Lopes, Maurício Cardoso Keinert, Monique Hulshof, Nathalie de Almeida Bressiani, Rúrion Soares Melo Conselho Editorial Alessandro Pinzani (UFSC), André de Macedo Duarte (UFPR), Daniel Tourinho Peres (UFBA), Denilson Luís Werle (UFSC/CEBRAP), Eduardo Brandão (USP), Ernani Pinheiro Chaves (UFPA), Gerson Luiz Louzado (UFRGS), Hans Christian Klotz (UFSM), Ivan Ramos Estêvão (Mackenzie), João Carlos Salles Pires da Silva (UFBA), John Abromeit (Universidade de Chicago), José Pertilli (UFRGS), José Rodrigo Rodriguez (FGV), Júlio César Ramos Esteves (UENF), Luciano Nervo Codato (UNIFESP), Luís Fernandes dos Santos Nascimento (UFSCAR), Luiz Repa (UFPR/CEBRAP), Márcio Suzuki (USP), Marco Aurélio Werle (USP), Marcos Nobre (Unicamp), Olivier Voirol (Universidade de Lausanne), Paulo Roberto Licht dos Santos (UFSCAR), Pedro Paulo Garrido Pimenta (USP), Rosa Gabriella de Castro Gonçalves (UFBA), Sérgio Costa (Frei Universität), Silvia Altmann (UFRGS), Soraya Nour (Centre March Bloch), Thelma Lessa Fonseca (UFSCAR), Vera Cristina de Andrade Bueno (PUC/RJ), Vinicius Berlendis de Figueiredo (UFPR),Virginia de Araújo Figueiredo (UFMG), Yara Frateschi (Unicamp) Universidade de São Paulo Reitora: Suely Vilela Vice-reitor: Franco Maria Lajolo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretora: Sandra Margarida Nitrini Vice-diretor: Modesto Florenzano Departamento de Filosofia Chefe: Moacyr Ayres Novaes Filho Vice-chefe: Caetano Ernesto Plastino Coordenador do Programa de Pós-graduação: Marco Antônio de Ávila Zingano Diagramação Microart – Editoração Eletrônica Ltda. Capa Hamilton Grimaldi e Microart – Editoração Eletrônica Ltda. Impressão Cromosete Gráfica e Editora Ltda. Tiragem: 800 Exemplares ©copyright Departamento de Filosofia – FFLCH/USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária CEP: 05508-900 – São Paulo, Brasil Tel: (011) 3091-3761 Fax: (011) 3031-2431 E-mail:[email protected] Nº 14 – jul.-dez. 2009 ISSN 1413-7860 Sumário Editorial 9 Artigos A “gramática saudável” de Kant 11 Pedro Pimenta O Nietzsche “francês” nas páginas da Zeitschrift für Sozialsforschung 27 Ernani Chaves Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant 41 Jean Leison Simão Transformação pragmática da filosofia kantiana: Habermas, leitor de Humboldt 59 Antonio Ianni Segatto Para a história conceitual da discriminação da mulher 81 Marisa Lopes Tradução Introdução ao Direito Natural Feyerabend, de Immanuel Kant 97 Apresentação e tradução de Fernando Costa Mattos Resenhas A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, de Luiz Repa 115 Fernando Costa Mattos Lançamentos 123 Índice em inglês 125 Instruções para os autores 127 6 Fruto de uma iniciativa conjunta dos Grupos de Filosofia Alemã do Departamento de Filosofia da USP, os Cadernos de Filosofia Alemã, publicados desde 1996, pretendem constituir um espaço para a publicação de textos, ligados à filosofia e ao idioma alemães, que colaborem para o desenvolvimento de um diálogo filosófico vivo, capaz de fazer jus ao mote, entre nós consagrado, da filosofia como “um convite à liberdade e à alegria da reflexão”. 7 Editorial Este novo número dos Cadernos de Filosofia Alemã começa com um artigo de Pedro Paulo Pimenta que propõe um instigante paralelo entre a relação lógica-gramática, analisada por Kant em seus cursos de lógica, e a compreensão da filosofia como sistema, sabidamente central para o empreendimento crítico kantiano. O segundo artigo, assinado por Ernani Chaves, refaz um inusitado percurso: aquele das leituras francesas de Nietzsche nos anos 1930 – tempo em que imperava na Alemanha a sua interpretação nazista – através da lente da Escola de Frankfurt, reconstituível a partir de diversos artigos escritos na Zeitschrift für Sozialforschung, periódico do Instituto à época. O artigo seguinte, de Jean Leison Simão, traz uma interessante análise da interpretação heideggeriana do conceito kantiano de personalidade, mostrando que o único conceito passível de uma leitura ontológica seria aquele de personalidade moral, já que, por oposição aos de personalidade transcendental e psicológica, permitiria definir onticamente a pessoa humana. Quem assina o quarto artigo é Antonio Ianni Segatto, e seu tema é o importante papel atribuído por Habermas a três autores pouco estudados do pós-kantismo: Herder, Hamman e, principalmente, Wilhelm von Humboldt. Neste último, com efeito, já seria perceptível, segundo Habermas, uma virada pragmática na filosofia de matriz kantiana. Fechando a seção de artigos, apresentamos um texto em que Marisa Lopes, partindo de uma questão candente da filosofia política contemporânea – a persistência do sexismo a despeito dos avanços feministas –, retorna a Aristóteles para mostrar como o preconceito contra a mulher já se manifestava em um dos principais fundadores da filosofia ocidental. Já a seção de traduções apresenta, vertido e apresentado por Fernando Costa Mattos, um póstumo kantiano a que hoje se vem dando considerável atenção entre os estudiosos de Kant: a introdução ao Naturrecht Feyerabend (Direito Natural Feyerabend), texto constituído pelas anotações do aluno Feyerabend a um curso ministrado por Kant em 1784 – época decisiva para a filosofia moral e política do filósofo, então às voltas com a Fundamentação da metafísica dos costumes e os textos O que é o esclarecimento? e Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Na seção de resenhas, por fim, o mesmo Fernando Costa Mattos comenta o livro A transformação da filosofia: os papéis de reconstrução, inter9 Cadernos de Filosofia Alemã – Editorial nº 15 – p. 9-10 – jan.-jun. 2010 pretação e crítica, de Luiz Repa, chamando a atenção para o papel central que a filosofia assume, na interpretação de Repa, no percurso e na obra do autor alemão. Esperamos, como sempre, que este novo número dos Cadernos de Filosofia Alemã – o décimo-quinto – consiga colaborar para o debate filosófico que se inspira nos autores e questões aqui tratados. 10 A “gramática saudável” de Kant Pedro Pimenta Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Resumo: Trata-se de ler uma passagem recorrente nos cursos de lógica de Kant para examinar as razões para que o filósofo tenha insistido na comparação entre lógica e gramática a propósito do tópico da espontaneidade da razão. Sugerimos que a discussão desse tópico está estreitamente vinculada à definição do que se entende na Crítica por “filosofia como sistema”. Palavras-chave: Lógica, Gramá tica, Transcendental, Razão, Espon taneidade Abstract: The paper discusses the famous comparison made by Kant in his courses on logic between logic and grammar so as to show that the recurrence of this topic is central to Kant’s discussion of the relationship between spontaneity of reason and philosophy as a system. Keywords: Logic, Grammar, Transcendental, Reason, Sponta neity. ...en voulant faire mieux que la nature vous faites plus mal ; vos oreilles et votre goût son gâtés par un art mal entendu. Rousseau, Ensaio sobre a origem das línguas.1 1. Rousseau, J. J. Essai sur l’origine des langues, “cap. IV”. Paris: Gallimard, 1990, p. 123. 11 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010 Para introduzir seus estudantes no “conceito da lógica”, o professor Kant não costumava seguir a mesma ordem expositiva da Lógica transcendental na Crítica da razão pura. Preferia introduzir o assunto recorrendo a uma comparação ou analogia entre poderes da natureza e poderes do homem. No mais antigo registro de seus cursos de lógica, feito por Herder em 1762, encontramos a primeira versão dessa comparação: Tudo acontece segundo regras. Uma pedra [cai], a água flui, como o homem em suas atividades mecânicas. – As atividades do entendimento são a consciência de fenômenos na natureza. – Os homens seguem essas regras inconscientemente, por mero hábito, sem consciência, e é apenas com o exercício do entendimento, também freqüentemente sem regras, que se tornam conscientes delas, mediante a experiência. Mas nem tudo pode ser conhecido mediante a experiência: um uso mais elevado é exigido para movimentos como os da dança, por exemplo, que requerem de antemão um conhecimento versado em regras. A lógica ou logos, como ratio instrumentum, é como que o modelo das regras lógicas.2 A primeira frase – de forte teor leibniziano – reaparecerá, com algumas variações, na abertura de todos os registros de exposições dos cursos de lógica ministrados por Kant, até a década de 1790, como uma espécie de bordão ou de fórmula encantatória para iniciar os estudantes no mundo da lógica. O intuito da comparação entre o movimento na natureza e o movimento no homem é mostrar que são regidos pelos mesmos princípios mecânicos, com a diferença de que no homem a inconsciência desses princípios é o estado de uma consciência latente deles, que pode se efetivar ou pelo exercício do entendimento ou pela instrução. E se compararmos uma das frases centrais da passagem anotada por Herder em 1762 – “As atividades do entendimento são a consciência de fenômenos na natureza”. – com esta anotação de 1789, feita por Pölitz – “entendimento significa a faculdade de trazer sob 2. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Herder”). In: _____. Kants Schriften, 24.1, 2 vols. Berlim: Walter de Gruyter, 1966, p. 03. Sobre a datação das lições de lógica, cf. o esclarecimento de Lehmann, 24.2, pp. 976ss. 12 Pedro Pimenta A “gramática saudável” de Kant regras as representações do sentido”3 – veremos que esta última é uma definição “filosófico-dogmática”, que explica o que é o entendimento a partir do princípio que rege a sua atividade, enquanto a frase de 1762 é puramente “histórico-descritiva”, mostra o que o entendimento faz sem explicar o por quê desse fazer.4 O teor quase casual de 1762 dá lugar em 1789 a uma formulação gramatical. Diante dessa transformação, que em certo sentido é um aprimoramento, não admira que a comparação realizada por Kant se desenvolva, em registros posteriores, apresentando um paralelo entre a lógica como ciência do pensamento e a gramática como ciência da linguagem. No manual de lógica, publicado em 1800, encontra-se a seguinte observação: Tudo na natureza, tanto no mundo animado quanto no mundo inanimado, acontece segundo regras, muito embora nem sempre conheçamos essas regras. A água cai segundo leis da gravidade e, entre os animais, a locomoção também ocorre segundo regras. O peixe na água, o pássaro no ar movem-se segundo regras. A natureza inteira em geral nada mais é, na verdade, do que uma conexão de fenômenos segundo regras; e em nenhuma parte há irregularidade alguma. Se pensamos encontrar tal coisa, só poderemos dizer neste caso o seguinte: que as regras nos são desconhecidas. O exercício de nossos poderes também acontece segundo certas regras que seguimos, a princípio, sem consciência delas, até chegarmos aos poucos ao conhecimento delas mediante diversas tentativas e um prolongado uso de nossos poderes, tornando-as por fim tão familiares que muito esforço nos custa pensá-las in abstracto. Assim, por exemplo, a gramática geral é a forma de uma língua em geral. Mas também falamos sem conhecer a gramática; e quem fala sem conhecê-la tem realmente uma gramática e fala segundo regras das quais, porém, não está consciente. 5 3. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Pölitz”). In: _____. Kants Schriften, 24.2, p. 502. 4. Kant, I. Lógica Jäsche. Introdução, seção III. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. A mesma distinção entre essas espécies de conhecimento ocorre em todos os cursos posteriores ao registrado por Herder em 1762. 5. Kant, I. Lógica Jäsche, A 01-2. 13 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010 Apesar do que os distingue, há algo comum entre os poderes da natureza e os do homem (definido aqui como ser de razão): trata-se da espontaneidade com que são exercidos e se efetivam a partir de princípios que não precisam ser conhecidos ou sistematizados para serem utilizados. O pressuposto dessa consideração será explicitado na conclusão da Lógica transcendental: a experiência é pensada pela razão, em prol do entendimento, como uma totalidade sistemática, regida de acordo com leis a priori universalmente válidas, cujo princípio se encontra no entendimento como faculdade-de-julgar. Mas, assim como não é preciso refletir e chegar a essa constatação para pensar a natureza como sistema, tampouco é preciso ter lido a Crítica da razão pura para entender o que vai ser exposto ao longo deste curso de lógica; basta acompanhar o que é dito por Kant em sala de aula para reconhecer que é isso mesmo o que acontece, na natureza como no homem. O exemplo final é instrutivo: assim como os peixes nos rios e os pássaros no ar se movem segundo as leis da gravidade sem jamais as terem estudado, também os homens pensam sem terem sido instruídos na arte de pensar, e falam a língua do país em que foram criados sem terem aprendido a gramática dessa língua, e conhecem a forma da língua no mesmo ato em que se apoderam do seu conteúdo. A atividade precede a normatividade, e esta não é mais que a posterior sistematização de um conhecimento adquirido naturalmente. Tendo acompanhado Kant nessa rápida introdução, sua platéia está pronta para ser iniciada no conceito da lógica geral, ciência que expõe “as regras universais e necessárias do pensamento” e que, assim como a gramática geral, que “contém a mera forma da língua, sem as palavras”, é “meramente uma ciência da forma de nosso conhecimento intelectual ou do pensamento” que abstrai de toda “matéria do mesmo”.6 Se examinarmos agora passagens correspondentes a essa em registros anteriores dos cursos de lógica ministrados por Kant, encontraremos algumas variações interessantes. 6. Kant, I. Lógica Jäsche, A 04. 14 Pedro Pimenta A “gramática saudável” de Kant Na lógica Blomberg (datada da década de 1770) se diz o seguinte: A natureza como um todo atua de acordo com regras; assim, a água flui de acordo com regras hidráulicas, a natureza opera de acordo com regras, e mesmo o clima inconstante tem certas regras, embora não as percebamos. Os animais atuam de acordo com regras das quais não têm no mais das vezes a menor consciência. O homem age de acordo com regras e em particular faz uso do entendimento de acordo com certas proposições e regras. E quantas vezes não agem os homens de acordo com regras, sem terem consciência delas? Por exemplo, falam sua língua nativa. O emprego de nossos poderes muitas vezes ocorre sem termos consciência deles, e isso porque 1. Encontram-se em nossa própria natureza, 2. Graças à imitação, quando imitamos um exemplo para gradualmente adquirirmos o uso do entendimento tal como o vemos utilizado por outros; 3. Graças ao uso próprio, quando adquirimos na prática destreza no uso do entendimento sem a consciência de suas regras... O saudável entendimento comum cresce sem a instrução... As línguas já existiam antes dos gramáticos, os oradores antes da retórica, os poetas antes da poesia.7 A lógica Dohna-Wundlacken (datada da década de 1780) afirma: Deve-se refletir sobre o próprio pensamento, i.e., de acordo com regras. Toda língua se restringe a certas regras particulares. É esse o caso, sobretudo, das línguas mortas, a respeito das quais pode-se de fato designar-lhes as regras. Pode-se também fazer uso de regras sem lhes dar nomes. Aprendem-se essas regras gradualmente, por tentativas. As primeiras falham; posteriormente, adquire-se destreza. Entre as regras do pensamento, algumas são universais, aplicam-se indistintamente a objetos particulares. Também assim 7. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Blomberg”). In: _____. Kants Schriften, 24.1, pp. 20-1. Consultamos, para a tradução das duas passagens seguintes, a tradução de J. M. Young: Lectures on Logic. Cambridge: University Press, 1992. A última frase de Kant é uma citação quase literal do verbete “Eloqüência”, redigido por Voltaire em 1755 para a Encyclopédie, e citado também, na mesma época, por Condillac (Lógica, livro II, capítulo 03, § 02). 15 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010 há regras universais de linguagem. Uma tal gramática não contém palavras, não contém copia vocabularum, apenas a forma da linguagem. A doutrina universal do pensamento se chama lógica, doutrina do entendimento. É uma preparação para o pensamento de objetos... Regras lógicas não são aquelas de acordo com as quais pensamos, mas sim as de acordo com as quais deveríamos pensar. {A lógica não contém absolutamente uma matéria, só a forma do pensamento} A lógica deve conter princípios a priori. {Portanto, a lógica é uma ciência e a gramática não, pois as regras desta são contingentes}... É a lógica também um organon? Não, ela serve apenas à crítica, a exemplo da gramática (com a qual tem muita similaridade), a partir da qual não se aprende de fato uma língua, para o quê se requer um repertório de palavras.8 Das duas exposições, a última é a que mais se aproxima da Crítica da razão pura: a lógica pode ser considerada numa dupla perspectiva: quer como lógica do uso geral, quer do uso particular do entendimento. A primeira contém as regras absolutamente necessárias do pensamento, sem as quais não pode haver nenhum uso do entendimento, e ocupa-se portanto deste, independentemente da diversidade dos objetos a que possa se dirigir. A lógica do uso particular do entendimento contém as regras para pensar corretamente sobre determinada espécie de objetos. À primeira pode-se chamar lógica elementar, à segunda órgão desta ou daquela ciência.9 Na Crítica da razão pura, a lógica geral é “a ciência das regras do entendimento” tomadas enquanto tais, desvinculadas de toda referência a objetos sensíveis e à experiência em geral. A lógica não é órgão do pensamento, é apenas seu cânon; e tal como a gramática não engendra línguas, a lógica não engendra o pensamento: a lógica, verdadeiramente, deveria ser apenas o cânon para ajuizar do uso empírico do entendimento, e é abuso dar-lhe o valor de organon para uso geral e ilimitado, e constitui atrevimento julgar, 8. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Dohna-Wundlacken”). In: _____. Kants Schriften, 24.2, pp. 694-5. 9. Kant, I. Crítica da Razão Pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1987, B 76. 16 Pedro Pimenta A “gramática saudável” de Kant afirmar e decidir sinteticamente sobre objetos em geral, utilizando somente o entendimento puro.10 O “atrevimento” do lógico seria comparável ao do gramático que quisesse, pelo estudo da linguagem como estrutura, legislar sobre uma língua em particular ou sobre todas em geral sem considerar suas “regras contingentes”. Nas três exposições citadas – a de 1800, a da década de 70 e a da década de 80 –, a lógica geral, como ciência da forma do pensamento, é comparável à gramática geral como ciência da forma da linguagem. Essa comparação não é fortuita, sugere que haveria alguma relação entre essas ciências; e é de supor que tal relação seria decorrente de uma relação entre as atividades do espírito humano que elas sistematizam, o pensamento e a fala – sendo que esta última, por se realizar no órgão da voz, está mais próxima de uma ação espontânea da natureza do que o pensamento, que é exclusivamente humano. Seria a fala para Kant apenas um meio de transmitir pensamentos? No opúsculo “Começo conjectural da história humana”, Kant comenta duas passagens do gênese – “o homem deu nomes a todos os animais...” e “Esta sim é osso de meus ossos e carne de minha carne...” (2, 20; 23) – para mostrar que “exprimir-se é falar encadeando conceitos, logo é pensar”.11 Essa tese é reiterada nas Lições de enciclopédia filosófica, onde se diz que “pensamos sempre em palavras” (wir doch in Worten denken).12 Essa afirmação da identidade entre pensamento e linguagem é o comentário de um tópico de Leibniz, que nos Novos ensaios corrigira a tese de Locke de que a finalidade principal da linguagem é comunicar pensa10. Kant, I. Crítica da Razão Pura, B 78. 11. Kant, I. “Começo conjectural da história humana”. In: _____. Kants Schriften, VIII, p. 110. Tradução francesa: _____. Opuscules sur l’histoire. Trad. de Stéphane Piobetta. Paris: Flammarion, 1990, p. 147. Pode-se ler no original: “...ja reden, d.i. nach zusammenhängenden Begriffen sprechen, mithin denken”. 12. Kant, I. “Lições sobre enciclopédia filosófica”. In: _____. Kants Schriften, XXIX, p. 31; Ed. francesa: _____. Abregée de philosophie ou Leçons sur l’Encyclopédie philosophique. Edição bilíngüe. Trad. Arnaud Pelletier. Paris: Vrin, 2009, pp. 106-7. 17 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010 mentos, acrescentando que “ela serve também para que cada um raciocine à parte consigo mesmo”.13 Kant explora essa tese para mostrar que desde o momento em que o homem se põe a pensar, o pensamento se dá em linguagem, tem em vista a comunicação.14 Mas é preciso compreender o alcance dessa conclusão. Longe de retroceder à tese lockiana, ela aprofunda a reflexão leibniziana ao sugerir que é nesta última etapa de sua formulação – a comunicação verbal – que o pensar se torna coerente. Para que Adão possa dar nomes aos animais, é preciso que tenha o sentimento da diferenciação entre as respectivas representações deles; e para que ele possa dar nome à mulher, é preciso que tenha o sentimento da diferenciação dela em relação a si mesmo. Esse sentimento só se torna pensamento quando as representações são encadeadas a partir de signos lingüísticos. A linguagem, como “aptidão técnica” que o homem “adquire por si mesmo”, serve para decompor e analisar o pensamento, ou para pensar; o fim último dessa exposição discursiva, que exprime e efetua para si mesmo, mas já com signos lingüísticos, é a apresentação sensível de conceitos com vistas à comunicação.15 Assim, o paralelismo entre forma do pensamento e forma da linguagem, mais que uma feliz coincidência, é a indicação inequívoca de que a coerência do pensar consigo mesmo poderá ser garantida e complementada pelo pensar para o outro e com o outro.16 Segundo a Antropologia de um ponto de vista pragmático, a consumação do pensamento na linguagem se dá pela utilização de caracteres verbais como “sinais meramente mediatos (indiretos) que em si nada significam, mas só por associação levam às intuições 13. Leibniz, W. G. Nouveax essays sur l’entendement humain, livro III, cap. 01, § 02. Ed. Brusnchwicg. Paris: Gallimard, 1994. 14. Cf. a respeito Capozzi, M. “Kant on logic and language”. In: Buzzetti, D.; Ferriani, M. (orgs.). Speculative grammar, universal grammar, and philosophical analysis of language. Amsterdam: John Benjamins, 1997. 15. Kant, I. “Começo conjectural da história humana”. In: _____. Kants Schriften, VIII, p. 110. Tradução francesa: _____. Opuscules sur l’histoire, p. 147. 16. Kant, I. Kritik der Urteilskraft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, § 40. 18 Pedro Pimenta A “gramática saudável” de Kant e, por meio destas, a conceitos”.17 Esse processo ocorre quando o homem se encontra “em estado de sociabilidade”: assim como “em completa solidão ninguém adornará ou limpará sua casa”, tampouco se sentirá incitado a dar uma “forma” a seus pensamentos para que se tornem compreensíveis, ou para que sejam dotados de “uma regra universal para o sentimento de prazer”.18 A passagem de um estado a outro, da concepção de uma idéia de ordem à sua realização, é por intermédio de sinais indicativos, que significam intuições e conceitos que, tomados em si mesmos, se predispõem a uma tal conformação: “pensar é falar consigo mesmo (os índios de Otaheite chamam o pensar de linguagem do ventre) e, por conseguinte, também se ouvir interiormente (por meio da imaginação reprodutiva)”.19 “Falar consigo mesmo” ainda não é como “falar suficientemente bem”,20 mas para chegar a este estágio quase artístico no uso da linguagem, é preciso encontrar em si mesmo uma aptidão natural. Quando as crianças “perturbam” os adultos com seus gritos e sua agitação, essa expressividade, que não chega a ser linguagem, já contém, no entanto, os elementos necessários à comunicação. Há uma continuidade, uma transição natural prevista na natureza humana, do pensar silencioso ao pensar com signos verbais.21 Ora, se o homem pensa e fala antes de ter sido instruído na lógica ou na gramática, é forçoso reconhecer que essa instrução não só não acrescenta nada, quanto aos princípios, ao que a inteligência humana já possui, como tampouco propicia a aquisição de capacidades naturais ou inatas. Tudo o que podem a lógica e a gramática é incrementar ou refinar o uso de um talento que se encontra dado. Essas considerações são retomadas pela Crítica da razão pura. “O Juízo”, diz Kant, 17. Kant, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006, § 38, p.89. 18. Kant, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, § 67. 19. Idem, § 39. 20. Idem, § 01. 21. Kant, I. “Começo conjectural da história humana”. In: _____. Kants Schriften, VIII, p. 110. Tradução francesa: _____. Opuscules sur l’histoire, p. 147. 19 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010 é um talento que não pode ser ensinado, mas somente exercitado. A capacidade de julgar, por conseguinte, é também o cunho específico do assim chamado bom senso, cuja falta nenhuma escola pode remediar. Com efeito, se bem que a escola possa fornecer abundantemente e como que inocular num entendimento limitado regras tomadas de empréstimo a outros, ainda assim a capacidade de servir-se corretamente delas deve pertencer ao próprio aprendiz, e nenhuma regra que lhe possa ser prescrita para esse propósito estará segura de abuso quando lhe faltar um tal dote natural.22 E, no entanto, do fato de que o juízo não possa ser ensinado não se segue que o seu princípio não possa ser examinado. Pelo contrário. É precisamente por ser fundada num talento natural que uma atividade deve ser estudada para ser compreendida do lado dos princípios que a tornam possível como efetividade. Daí a importância de uma lógica transcendental, ciência distinta da lógica geral que indica, além da regra, ou melhor, da condição geral das regras que são dadas nos conceitos, também, simultaneamente e a priori, o caso em que a regra deve ser aplicada. [E isso porque] trata de conceitos que devem se referir a priori aos seus objetos, e cuja validade objetiva, por conseqüência, não pode ser demonstrada a posteriori, mas tem de poder expor, simultaneamente, segundo suas características gerais, mas suficientes, as condições pelas quais podem ser dados objetos de acordo com esses conceitos.23 Haveria, de modo similar, uma gramática trasncendental com “as condições gerais pelas quais podem ser dados objetos” de uma língua “de acordo com conceitos” de uma linguagem? Parece ser o caso, apesar da advertência da lógica Dohna-Wundlacken: “a lógica deve conter princípios a priori... portanto, a lógica é uma ciência e a gramática não”, pois, como explica Márcio Suzuki24, a gramática “desempenha”, na formação do pensamento crítico kantiano, “uma função heurística”, e o próprio Kant menciona uma “gramática transcendental, que contém o fundamento da lin22. Kant, I. Crítica da razão pura, B 172. 23. Idem, B 175. 24. Suzuki, M. “A palavra como invenção. Heurística e linguagem em Kant”. In: Studia Kantiana, vol. 6/7 (2008), pp. 47-52. 20 Pedro Pimenta A “gramática saudável” de Kant guagem humana”, composta pelos princípios expostos na Estética e na Lógica transcendental – “a gramática é por certo uma doutrina do entendimento” (Grammatik ist freilich eines Verstandeslehre), e constitui, ao lado da lógica, o conjunto das regras que permitem trazer representações sob conceitos.25 Com esta diferença. Se a gramática não explica porque os fatos da língua são como tais e não de outro modo, e permanece “uma mera disciplina” (nur eine Disciplin), mesmo da linguagem filosófica, a lógica transcendental explica porque as regras do pensamento são necessariamente essas e não outras, e é por isso uma “ciência; doutrina” (Wissensachaft; Doktrin).26 Uma obra como a Crítica da razão pura não é nem poderia ser produto da atividade puramente espontânea dos poderes intelectuais do homem. A filosofia é um conhecimento cuja forma é racional; é mais que uma compilação de registros e mais que um discurso espontâneo, é um discurso “erudito” (gelehrte), que se articula por escrito.27 Dissociando-se da palavra, tal como formada e emitida pelos órgãos da fala, esse discurso simplesmente ignora a dimensão sonora da linguagem, a ponto de a eufonia ser considerada uma “quimera”; como adverte Kant, a “congruência” de um escrito deve ser julgada unicamente pela “adequação do estilo à coisa”,28 e nesse caso a linguagem é primordialmente um instrumento de construção de conceitos, a comunicação relegada a um papel secundário. Assim, embora as considerações sobre a espontaneidade do pensamento e da linguagem sugiram que uma boa parte do que se faz irrefletidamente, obedecendo-se de maneira cega aos poderes da natureza, é feito corretamente, a verdade é que nem tudo se alcança por essa via – a começar pela filosofia, 25. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Wiener”). In: _____. Kants Schriften, 24.2, p. 790; cf. ainda, no mesmo volume, pp. 502-3 (“Lógica Pölitz”). 26. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Busolt”). In: _____. Kants Schriften, 24.2, p. 609. 27. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Blomberg”). In: _____. Kants Schriften, 24.2, p. 296. 28. Idem, p. 294. 21 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010 que consiste precisamente na reflexão sobre a condição de possibilidade de tudo o que é feito de acordo com a natureza. Essa constatação, por óbvia que pareça aos leitores da Crítica da razão pura, coloca uma questão crucial, que pode ser formulada nos seguintes termos: faz melhor quem se atém ao fazer natural, ou quem procura aperfeiçoá-lo com a arte? A instrução deforma? Ou seria a arte capaz de melhorar a natureza? –, e vinha sendo discutida por filósofos, gramáticos e lógicos no Século das Luzes.29 A filosofia, a exemplo das outras ciências, embora realize uma disposição natural do homem,30 está longe de ser o produto de processos naturais deixados a si mesmos. A ciência, já dizia Kant em 1762, nasce na Grécia com “a liberdade, a emulação, o cuidado do corpo, a prosperidade”, formas de organização e práticas sociais e individuais pelas quais o homem se distingue, por suas aptidões técnicas e com sua razão, dos demais membros do mundo natural. É então que a linguagem pode se tornar objeto de gramática. Tal ciência, se, por um lado, enriquece a compreensão do objeto ao oferecer dele um saber sistemático, gera, por outro lado, o equívoco de julgar o saber da língua pelo usuário espontâneo (o “erudito amador” – Gelehrte ohne Profession) a partir dos critérios do estudioso da língua (o “erudito profissional” – Gelehrte von Profession), que nem sempre é dotado de uma sabedoria (Gelehrsamkeit) que o bom falante pode ter.31 A passagem das aulas de Kant em que se encontram essas considerações foi anotada por Herder, que parece ter feito um bom uso dela, anos mais tarde, no Ensaio sobre a origem da linguagem (1772). Explica-se ali que uma vez que a gramática duma língua mais não é que uma filosofia sobre essa língua e um método para sua utilização, acontece neces29. Cf. Locke, Ensaio sobre o entendimento humano, livro IV, cap. 17, § 04 (4ª edição, 1704); Harris, J. Hermes, or a philosophical inquiry concerning universal grammar, livro I, cap. 02 (1751); Ferguson, A. An essay on the history of civil society, parte III, seção 07 (1767). 30. Para o sentido preciso de “disposição natural” cf. Lebrun, G. “Une téléologie pour l’histoire ?”. In: _____. Kant sans kantisme, pp. 266-70. Paris : Fayard, 2009. 31. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Herder”). In: _____. Kants Schriften, 24.1, pp. 04-6. 22 Pedro Pimenta A “gramática saudável” de Kant sariamente que, quanto mais próxima da origem está uma língua, menos gramática tem; e a língua mais antiga era apenas o atrás mencionado vocabulário da natureza.32 A constituição da gramática como sistema de uma língua é histórica, dá-se num processo conseqüente ao desenvolvimento de disposições naturais: “lentamente, a gramática ia-se formando. Assim, esta arte da fala, esta filosofia sobre a língua, só muito devagar e gradualmente se foi edificando, ao longo de séculos, de eras”.33 Onde esse processo está mais adiantado, as línguas se tornam um meio para o progresso da razão que, por sua vez, ajuda no progresso do uso das línguas.34 Esse equilíbrio tem, no entanto, um custo. A arte da gramática substitui “a riqueza das determinações existentes no próprio léxico”, suficientes para que a “linguagem viva”, esse “simples confluir de imagens e impressões sem conexão nem determinação”, resolvesse todos os problemas de análise e comunicação do pensamento.35 “Mas como pode alguma vez”, pergunta-se Herder, “ter existido uma língua totalmente destituída de gramática? Um simples confluir de imagens e impressões sem conexão nem determinação? Tratava-se de linguagem viva, e isso resolvia ambos os problemas!”. Resposta vaga, entretanto, que merece um esclarecimento: “a enorme adequação do gesto fornecia de algum modo a esfera e a medida a que pertencia esse confluir de imagens; e toda a riqueza das determinações existentes no próprio léxico substituía a arte da gramática”. É o que prova, segundo Herder, a escrita dos povos do México. Essa gente representava simples imagens separadas. Quando não lhes ocorria uma imagem sensível, convencionavam certos riscos; a conexão entre eles tinha de ser dada pelo mundo a que pertencia cada um, adivinhada com base nele. E veja-se como hoje em dia os mudos e os surdos levam longe 32. Herder, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem, livro I, capítulo 03. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987, p. 106. 33. Idem, livro I, capítulo 03, p. 109. 34. Idem, livro I, capítulo 03, p. 111. 35. Idem, livro I, capítulo 03, p. 109. 23 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010 esta arte divinatória que consiste em descobrir uma conexão a partir de sinais isolados...36 Herder afirma ainda que as “formas de economia” estrutural que se encontram nas primeiras línguas “tornar-se-ão tanto menos necessárias quanto mais for sendo introduzida no arranjo da língua uma gramática saudável” (gesunde Gammatik), que constituiria “uma filosofia da língua”.37 Subjacente a essa concepção, encontrase, nas palavras de José M. Justo sobre esse texto, “a idéia de uma diversidade unificada pelos encadeamentos da discursividade”, de uma “natureza permanente dentro da cadeia de progressão do gênero humano”, e, portanto, de uma imbricação necessária entre as “forças” (Kräfte) naturais e sua expressão simbólica. Herder encontra na escrita a realização da mesma disposição que preside a expressão oral, sem ruptura entre natureza e arte.38 Se voltarmos agora a Kant, veremos que também para ele a diferença entre natureza e arte é mínima, quando se referem essas palavras ao homem. “A arte”, diz a Crítica do Juízo, “distingue-se da natureza como o fazer se distingue do agir ou do atuar em geral, e o produto ou conseqüência da arte se distingue, enquanto obra, do produto da natureza como efeito.”39 A dificuldade da arte é chegar a uma obra que, como produto do fazer técnico, tenha a mesma qualidade que o efeito da natureza como produto do agir espontâneo. Em todo caso, é preciso confiar que a disposição natural se basta, em certa medida, a si mesma, desde que não exceda um limite que, entretanto, é difícil de discernir. Cabe à arte encontrar esse ponto, em cada caso, aplicando uma técnica complementar à propensão natural.40 36. Idem, livro I, capítulo 03, pp. 109-10. 37. Idem, livro I, capítulo 03, p. 111. 38. Justo, J. M. “Posfácio”. In: Herder, J. G. Também uma filosofia da história. Lisboa: Antígona, 1995, pp. 176-85. 39. Kant, I. Kritik der Urteilskraft, § 43, B 174. Cf. a mesma distinção em Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Philippi”). In: _____. Kants Schriften, 24.1, pp. 311-2. 40. Mesmo no caso da doença que atinge o corpo e ameaça a sua integridade e existência, Kant hesita em afirmar que a arte poderia efetivamente corrigir a natureza desviando-a de sua tendência própria. Cf. a respeito Canguilhem, 24 Pedro Pimenta A “gramática saudável” de Kant Isso vale tanto para as artes mecânicas quanto para as liberais. Nas ciências em geral, e na filosofia em particular, a dificuldade é fazer com que as “ciências sistemáticas” ou filosóficas (lógica, gramática) se mostrem convenientes ao estudo das “aptidões técnicas” naturais (pensar, falar) que são o seu objeto, sem submetê-los a regras arbitrárias em nome de um sistema. A Crítica da razão pura é um bom exemplo de que isso é possível. Se Kant pode afirmar que as duas partes que a compõem – Estética e Analítica transcendentais – contêm os elementos de uma gramática transcendental, é porque se ensina ali como “expressar um pensamento com exatidão” fazendo-se exatamente isso: expressando-se com exatidão, sem nada “ambíguo, vago ou equívoco”,41 tornando-se disciplina do entendimento filosófico. Para chegar a esse grau de precisão, para escrever numa linguagem acertada, que embora seja fruto da mais alta reflexão parece perfeitamente conveniente ao assunto, Kant deve ter passado, na redação do texto, por um processo como o que Ricardo R. Terra chamou de “elaboração de esquemas sem coerção”.42 O esboço de pensamentos na linguagem realiza, por tentativa e erro, logo a posteriori, a esquematização, no texto de Kant, dos conceitos obtidos por reflexão, e permite assim ordená-los de acordo com as suas respectivas determinações lógicas. Ao expor o sistema completo dos princípios do conhecimento humano, a Crítica da razão pura delineia como que a “forma natural” do saber filosófico, ou a forma que ele deveria ter para fazer jus à tarefa que lhe cabe. Sem ensinar a pensar, ensina o leitor a ajustar seu pensamento à expressão mais rigorosa, e pode por isso, a justo título, ser considerada como uma possível “gramática saudável” da filosofia na época moderna. Bibliografia CANGUILHEM, G. “Thérapeutique, experimentation, responsabilité”. In: _____. Études d’histoire et de philosophie des sciences, 7ª edição. Paris: Vrin, 2002. G. “Thérapeutique, experimentation, responsabilité”. In: _____. Études d’histoire et de philosophie des sciences. 7ª edição. Paris: Vrin, 2002, pp. 386-9. 41. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Blomberg”). In: _____. Kants Schriften, 24.2, p. 295. 42. Terra, R. R. “Reflexão e sistema”. In: _____. Passagens. Estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003, pp. 28-9. 25 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010 CAPOZZI, M. “Kant on logic and language”. In: BUZZETTI, D.; FERRIANI, M. (orgs.). Speculative grammar, universal grammar, and philosophical analysis of language. Amsterdam: John Benjamins, 1997. HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987. KANT, I. “Mutmasslicher Anfag der Menschengeschichte”. In: _____. Kants Schriften, VIII. Berlim: Walter de Gruyter, 1966. _____. Vorlesungen über Logik. In: _____. Kants Schriften, 24.1; 24.2. Berlim: Walter de Gruyter, 1966. _____. Kritik der Urteilskraft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974. _____. Crítica da razão pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1987. _____. “Conjecturs sur les débuts de l’histoire humaine”. Trad. de Stéphane Piobetta. In: _____. Opuscules sur l’histoire. Paris: Flammarion, 1990. _____. Lectures on Logic. Trad. de J. M. Young. Cambridge: University Press, 1992. _____. Lógica. Trad. de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. _____. Werke, vol. I. Herausg. G. Green. Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker Verlag, 1993. _____. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. _____. Abregée de philosophie ou Leçons sur l’Encyclopédie philosophique. Edição bilíngüe. Trad. Arnaud Pelletier. Paris: Vrin, 2009. JUSTO, J. M. “Posfácio”. In: HERDER. J. G. Também uma filosofia da história. Lisboa: Antígona, 1995. LEBRUN, G. “Une téléologie pour l’histoire ?”. In : _____. Kant sans kantisme. Paris : Fayard, 2009. LEIBNIZ, G. W. Nouveax essays sur l’entendement humain. Ed. Brusnchwicg. Paris: Gallimard, 1994. ROUSSEAU, J. J. Essai sur l’origine des langues. Paris: Gallimard, 1990. SUZUKI, M. “A palavra como invenção. Heurística e linguagem em Kant”. In: Studia Kantiana, vol. 6/7 (2008). TERRA, R. R. “Reflexão e sistema”. In: _____. Passagens. Estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. 26 O Nietzsche “francês” nas páginas da Zeitschrift für Sozialsforschung* Ernani Chaves Universidade Federal do Pará. “Man kann von Nietzsche nicht sprechen, ohne ihn eindeutig zur Aktualität in Beziehung zu bringen.”1 Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar os principais pontos da discussão ocorrida nas páginas da Zeitschrift für Sozialforschung, a revista do Instituto de Pesquisa Social, a propósito da interpretação francesa de Nietzsche, nos anos imediatamente anteriores à eclosão da Segunda Guerra Mundial. Privilegia-se as resenhas publicadas na Zeitschrift, em especial as de Karl Löwith e Max Horkheimer, acerca do livro de Karl Jaspers sobre Nietzsche, publicado na Alemanha em 1936, e que recebera uma acolhida favorável nos círculos franceses ligados a Jean Wahl e à revista Recherches philosophiques. Trata-se de importante capítulo da história da recepção das ideias de Nietzsche, num momento em que sua filosofia estava sendo apropriada pelo nazismo. Palvaras-chave: atualidade, exis tencialismo, história, crítica. Abstract: This article presents the main points discussed in the pages of Zeitschrift für Sozialforschung, publication of the Institute of Social Research, concerning the French interpretation of Nietzsche in the years that preceded the Second World War. A privilege will be conceded to the reviews published in the Zeitschrift, particularly those written by Karl Löwith and Max Horkheimer concerning Karl Jaspers’ book about Nietzsche, published in Germany in 1936, which was well received by the french circles bonded to Jean Wahl and the publication Recherches philosophiques. That’s an important chapter in the history of the reception of Nietzsche’s ideas in a moment that his philosophy was being appropriated by Nazism. Keywords: present time, existentialism, history, critics. * Este artigo é a versão em português do artigo com o mesmo título, publicado em Stigenlin, M.; Pornschlegel, C. (orgs.) Nietzsche und Frankreich. Berlin: Walter de Gruyter, 2009. Agradeço ao CNPQ e ao DAAD, pelo apoio para a realização da pesquisa que originou este artigo. As fontes bibliográficas foram pesquisadas na Biblioteca Municipal de Berlim, na Biblioteca “Duquesa Anna Amália” em Weimar, e na Biblioteca do Centro “George Pompidour”, em Paris. 1. “Não se pode falar de Nietzsche sem relacioná-lo claramente com a atualidade” (Horkheimer, M. “Bermekungen zur Jaspers’ Nietzsche”. In: Zeitschrift für Sozialforschung, Jahrgang VI/137, p. 406). 27 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010 A partir de janeiro de 1931, Max Horkheimer assume oficialmente a direção do Institut für Sozialsforschung, ligado à Universidade de Frankfurt, onde o próprio Horkheimer se tornara professor de Filosofia Social. A assunção de Horkheimer significou uma mudança não apenas na direção burocrática do Instituto, mas, principalmente, na sua perspectiva teórico-prática, qual seja, a ideia de um programa interdisciplinar de pesquisa em que confluem filosofia, psicanálise, sociologia, economia e uma reflexão sobre as artes. A criação de uma revista, a Zeitschrift für Sozialsforschung, de periodicidade semestral, coroou, de algum modo, essa mudança. O primeiro número da Revista apareceu no verão de 1932, tornando-se assim a primeira publicação do Instituto na gestão de Horkheimer. Aliás, é importante ressaltar que tanto o programa interdisciplinar de pesquisa como a criação da revista foram ideias do próprio Horkheimer, que ia, assim, imprimindo sua própria marca no Instituto.2 Nos seus três primeiros anos, o redator-chefe foi Leo Lowenthal, que não tinha nenhum compromisso universitário e havia abandonado seu posto de professor no ginásio, para dedicar-se inteiramente às suas atividades no Instituto. A revista era, na ocasião, publicada pela editora Hirschfeld, de Leipzig, a mesma que publicara o Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeitbewegung, que antecedera a Zeitschrift durante o período em que o historiador Carl Grünberg dirigira o Instituto. Entretanto, embora as duas revistas tivessem em comum uma mesma apresentação visual, se diferenciavam bastante do ponto de vista da organização do conteúdo. A Zeitschrift compunha-se, fundamentalmente, de artigos e resenhas. A partir da imigração, os artigos eram escritos exclusivamente pelos membros do Instituto, enquanto as resenhas, também escritas por convidados ilustres como, por exemplo, Karl Löwith e Raymond Aron, eram distribuídas em secções, de acordo com os diferentes ramos do conhecimento: filosofia, sociologia geral, psicologia, história, política 2. Cf. Wiggershaus, R. Die Frankfurter Schule. Geschichte. Theoretische Entwicklung. Politische Bedeutung, 2. Auflage. München: DTV Verlag, 1989, p. 135. 28 Ernani Chaves O Nietzsche “francês” nas páginas... e movimentos sociais, sociologia específica, economia e literatura. Segundo Alfred Schimdt, a Zeitschrift “constitui um dos maiores documentos do espírito europeu deste século [isto é, do século XX]” e se diferencia de outras revistas semelhantes, na medida em que “perseguiu um programa unitário, sem que, por isso, as inclinações individuais e os interesses dos colaboradores, ou mesmo a reivindicação de cientificidade, tivessido sido diminuídas”.3 Atento às possíveis graves conseqüências da ascensão de Hitler ao poder, após sua confirmação como chanceler pelo presidente Hindenburg em 30 de janeiro de 1933, Horkheimer cuidou imediatamente da sobrevivência da instituição. Ainda em fevereiro de 1933, instalava em Genebra uma “Societé Internationale de Recherces Sociales” e, logo em seguida, duas representações do Instituto no exterior: uma em Paris, no Centre de Documentation da École Normale Supérieure, dirigida por Celestin Bouglé, discípulo de Durkheim, e outra em Londres, na Le Play House do Londoner Institute of Sociology. Os acontecimentos justificaram a lucidez de Horkheimer: em 13 de março de 1933, a sede do Instituto, em Frankfurt, foi ocupada pela polícia e fechada. Embora a sede da administração do Instituto fosse em Genebra, o escritório de Paris assumiu sem dúvida o papel mais relevante nos anos da imigração que antecederam o início da Segunda Guerra Mundial. De acordo com Rolf Wiggershaus, o escritório de Paris ganhou toda sua importância por três motivos: 1) por estar em Paris a nova editora do Instituto, a prestigiada Felix Alcan, que passou a publicar a Zeitschrift; 2) por se tornar o ponto de convergência dos projetos empíricos do Instituto financiados internacionalmente; e, enfim, 3) por ter se tornado uma es 3. Schmidt, A. “Die Zeitschrift für Sozialforschung und seine Gegenwärtigen Bedeutung”. In: Zeitschrift für Sozialforschung. Photomechanischer Nachdruck mit Genehmigung des Herausgebers. München: Kösel-Verlag, 1970, p. 5. Entretanto, não podemos deixar de mencionar que o debate em torno da publicação de alguns artigos de Benjamin escritos para a Zeitschrift mostra, ao contrário da observação de Schmidt, que o clima na Revista, em relação às “inclinações individuais” e aos “interesses dos colaboradores”, nem sempre era dos mais amistosos. 29 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010 pécie de posto avançado do Instituto na Europa.4 A Libraire Felix Alcan assume a impressão e a administração da Zeitschrift a partir do quarto número, isto é, do segundo número a ser publicado em 1933, depois de Hirschfeld, o editor alemão, ter comunicado a Horkheimer que não poderia mais correr riscos, tendo em vista a nova situação política. Conforme o contrato com a Felix Alcan, o Instituto garantia 300 assinaturas, enquanto a editora se responsabilizava pela tiragem de 800 exemplares e mais 50 exemplares para propaganda. Além disso, a editora tornava possível a continuidade do espírito da Revista como uma “publicação científica em língua alemã”,5 embora aceitasse artigos e resenhas em francês e inglês. O diretor do escritório de Paris até 1936 foi Paul Honigsheim, que tinha sido assistente do sociólogo Leopold von Wiese, um dos fundadores da “Sociedade Alemã de Sociologia” e que até a imigração exercera o cargo de diretor da Volkshochschule de Colônia.6 Honigsheim tinha também a vantagem de ser francoalemão e, com isso, de dominar as duas línguas. Ora, lidos atentamente, os números da Zeitschrift publicados pela Felix Alcan, no período que se estende de 1933 até 1940, possibilitam-nos acompanhar o intenso debate em torno da obra e do pensamento de Friedrich Nietzsche, que já ocupava o primeiro plano das controvérsias filosóficas da época devido à sua apropriação pelo nazismo. E é principalmente na secção de resenhas que o debate acontece. Dele participam todos os membros mais ilustres do Instituto, tais como Horkheimer, Adorno, Benjamin e Marcuse, e colaboradores importantes e influentes como Karl Löwith e o próprio Paul Honisgheim. No volume II, por exemplo, de 1934, Honigsheim publica uma resenha com o título de “Taine, Bergson et Nietzsche dans 4. Wiggershaus, R. Op. cit., p. 153. Cf. ainda, a respeito, carta de Horkheimer a Sébastien Charléty, historiador e, à época, reitor da Universidade de Paris, de 21 de junho de 1933. In: Horkheimer, M. Gesammelte Schriften, Band 15: Briefwechsel 1913-1936. Frankfurt: Fischer, 1995, p. 108. 5. Cf. a respeito o “Prefácio” de Horkheimer ao segundo número de 1933, ou seja, ao primeiro que foi publicado pela Felix Alcan. 6. Wiggershaus, R. Op. cit., p. 153. 30 Ernani Chaves O Nietzsche “francês” nas páginas... la nouvelle littérature française”, na qual já faz algumas observações a propósito da recepção francesa dos três autores citados. A presença de Nietzsche se justifica na medida em que suas ideias – precedidas pelas de Lutero e dos românticos – colocam em questão “o ideal racionalista” da civilização francesa. Concluindo sua resenha, Honisgheim faz uma breve e sintética apreciação de dois livros de Geneviève Bianquis7, da biografia de Nietzsche escrita por Félicien Challaye8, da conhecida obra de Thierry Maulnier9 e do livro de Louis Vialle10, e termina sua apreciação apontando o que haveria de comum entre essas diferentes obras: 1) existe algo “constant” na obra de Nietzsche, apesar de suas claras variações; 2) a posição de Nietzsche seria não apenas “destrutiva”, mas também “afirmativa”, de tal modo que tanto os “católicos” quanto os “glorificadores do nacionalismo” se encontram amparados por ela. Segundo Honigsheim, estas duas características tornariam compreensível a aceitação de Nietzsche “no clássico país dos direitos do homem”.11 Herbert Marcuse, por sua vez, faz a resenha de dois livros sobre Nietzsche no volume VIII da Zeitschrift, de 1938: os de Heinrich Härtie12 e Georg Siegmund.13 Marcuse considera o livro de Härtie como representante da “posição oficial”, que gostaria de confirmar a afinidade entre Nietzsche e o nazismo.14 Se, por um lado, o livro de Härtie diverge de outros da mesma temática, na medida em que não dissimula as posições contraditórias de 7. Bianquis, G. Nietzsche en France. Paris: Felix Alcan, 1929; e _____. Nietzsche. Paris: Les Éditions Rieder, s/d. 8. Challaye, F. Nietzsche. Paris: Libraire Melotté, s/d. 9. Maulnier, T. Nietzsche. Paris: Libraire de La Revue Française, 1933. 10. Vialle, L. Détresses de Nietzsche. Paris: Felix Alcan, 1933. 11. Paul Honisgheim, “Taine, Bergson et Nietzsche dans La nouvelle literature française”. In: Zeitschrift für Sozialforschung. Band II, 1934, p. 414. 12. Härtie, H. Nietzsche und der Nationalsozialismus. München: Frans Eher Nachfolger, 1937. 13. Siegmund, G. Nietzsche, der Atheist und Antichrist. Paderborn: BonifaciusDruckerei, 1937. 14. Marcuse, H. “Besprechung”. In: Zeitschrift für Sozialforschung, Band VII, 1938, p. 226. 31 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010 Nietzsche, por outro lado acaba por construir uma “interpretação equivocada”, pois retira os textos dos seus contextos. Assim, escreve Marcuse, “a luta de Nietzsche contra o anti-semitismo é concebida apenas como uma antiga forma de ódio aos judeus, suas críticas aos alemães apenas como algo na direção de uma forma vitoriosa de germanidade, etc.”. Em relação ao livro de Siegmund, Marcuse afirma que se trata de “um pequeno livro católico” que, entretanto, não almeja “nenhuma falsa salvação”: “Siegmund entende a forte influência de Nietzsche a partir da afinidade de seu anti-cristianismo e ateísmo, sobretudo em uma época cegamente individualista em que os laços foram rompidos”.15 Nessa perspectiva, e dentro dos limites deste artigo, nos restringiremos aqui aos dois aspectos da recepção francesa de Nietzsche à época que mais encontraram repercussão nas páginas da Zeitschrift: trata-se da crítica contundente ao livro de Jaspers sobre Nietzsche, publicado em 1936, quando todos os principais membros do Instituto já estavam no exílio. Essa crítica acaba por revelar o alvo francês da crítica dos frankfurtianos: o grupo em torno de Jean Wahl e da revista Recherches philosophiques. A repercussão na França da interpretação “existencial” de Nietzsche por Karl Jaspers Imediatamente após a publicação do livro de Karl Jaspers, Nietzsche, Einführung in das Verstädnis seines Philosophierens, em 1936, Jean Wahl publica uma resenha do livro na revista Recherches philosophiques, que ele ajudara a fundar e dirigir.16 A posição de Jean Wahl no interior da história da recepção francesa de Nietzsche é ressaltada por Jacques Le Rider da seguinte maneira: “ele foi um dos primeiros a tratar de Nietzsche com a mesma seriedade que Hegel ou Kierkegaard”.17 O significado dessa posição não pode nos escapar: trata-se de alguém que considerava Nietzsche um “fi15. Idem, ibidem. 16. Wahl, J. “Le Nietzsche de Jaspers”. In: Recherches philosophiques, vol VI, 1936-1937, p. 362. 17. Le Rider, J. Nietzsche en France. De la fin du XIXe. Siècle au temps présent. Paris: PUF, 1999, p. 183. 32 Ernani Chaves O Nietzsche “francês” nas páginas... lósofo” e não um “literato”, como era comum à época. Nessa resenha, Wahl não apenas elogia o livro de Jaspers, mas também insere sua leitura de Nietzsche no conjunto da obra de Jaspers até então publicada, associando o nome de Nietzsche ao de Kierkegaard e tornando ambos os fundadores da “filosofia existencial”. Quando apareceu a tradução francesa do livro de Jaspers, ocorrida apenas em 1950, Wahl foi convidado para escrever um “Prefácio”. Ele o faz na forma de uma “Lettre-Préface” dirigida a Henri Niel, o tradutor. Nessa “carta prefácio”, Wahl reitera os aspectos fundamentais de sua resenha dos anos 1930. Retomando uma frase do próprio Jaspers, em que ele afirma a crescente importância de Nietzsche e Kierkegaard para a compreensão da “situação filosófica presente” em detrimento do lugar ocupado antes por Hegel e seus seguidores (leiam-se aqui Marx e o marxismo), Wahl afirma: Trata-se, pois, antes de tudo, de tomar consciência desses dois eventos filosóficos que são Nietzsche e Kierkegaard, sem jamais separá-los um do outro, cada um deles ganhando toda a sua significação, como se poderá mostrar, apenas por meio de sua relação e de sua oposição um ao outro.18 Entretanto, nessa “carta prefácio” Wahl acrescentou explicitamente um outro elemento que, na resenha dos anos 1930, aparecia apenas de maneira implícita e bastante sutil: o nome de Heidegger. A esse respeito, após ter afirmado que Jaspers, ainda em 1917, no seu livro Verdade e Existência, havia nos alertado que tanto Nietzsche quanto Kierkegaard são produtos de uma época de mudança na história e que, ao mesmo tempo, tomaram consciência da “beleza da época por vir”, ele escreve: “De fato nós estamos, tanto para Jaspers quanto para Heidegger, diante do fim da filosofia ocidental e da racionalidade considerada como objetiva e absoluta”.19 18. Wahl, J. “Lettre-Préface”. In: Jaspers, K. Nietzsche. Introduction à sa philosophie. Paris: Gallimard, 1950, p. I. 19. Idem, p II. 33 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010 Assim, a interpretação de Jean Wahl reiterava não apenas a ligação íntima e absolutamente necessária entre Nietzsche e Kierkegaard, mas também aquela entre Jaspers e Heidegger. A resposta a Jean Wahl nas páginas da Zeitschrift vai ser dada em dois momentos por três autores diferentes, mas que se complementam por se dirigirem a um mesmo alvo: a crítica à recepção de Nietzsche por meio da “filosofia existencial” e a necessidade de relacionar Nietzsche e a “atualidade”. O primeiro momento se constitui no volume VI, de 1937, em que tanto Löwith como Horkheimer escrevem sobre o livro de Jaspers; o segundo momento no volume VIII, de 1939, ainda editado em Paris, mas quando a sede do Instituto já havia sido mudada para Nova York – nele aparece a resenha de Adorno sobre o livro de Wahl sobre Kierkegaard. Acompanhemos, rapidamente, o movimento desse três textos. Na sua resenha do livro de Jaspers, Löwith inicia com uma frase lapidar, que dá o tom do debate e da crítica: No novo livro de Jaspers, simplesmente nada se percebe da atua lidade de Nietzsche. Sua ampla introdução parece pairar além de todas as questões da época, no puro éter de um conhecimento universal.20 Ora, é bom lembrar que Jean Wahl havia escrito uma resenha do livro de Löwith sobre Nietzsche21, do mesmo modo como Löwith havia publicado dois artigos na Recherches philosophiques, em que apresentara o esboço de seus argumentos que, um pouco 20. Zeitschrift für Sozialforschung. Herausgegeben von Max Horkheimer. Paris: Librairie Felix Alcan, Jahrgang VI, 1937, p. 405. 21. Nouvelle Revue Française, mai 1937. O livro de Löwith é o famoso A doutrina do eterno retorno de Nietzsche, cuja primeira edição, de 1935, foi publicada pela editora Die Runde, em Berlim, quando seu autor já se encontrava no exílio. Sobre a recepção do livro de Löwith entre os membros do Instituto, já exilados, permito-me remeter a Chaves, E. “Nietzsche en exil: a propos de la lecture du livre de Karl Löwith sur Nietzsche (1935) par Walter Benjamin”. In: D’ Iorio, P.; Merlio, G. (ed.). Nietzsche et l’ Europe. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’ Homme, 2006. 34 Ernani Chaves O Nietzsche “francês” nas páginas... depois, seriam desenvolvidos em seu livro Von Hegel zu Nietzsche.22 Além disso, no mesmo volume em que Löwith publica “La conciliation hégélienne”, Paul-Laurent Landsberg publica também uma resenha bastante elogiosa do livro de Löwith sobre Nietzsche que havia sido recentemente publicado na Alemanha.23 Walter Benjamin, por sua vez, durante as negociações para encontrar uma editora francesa que publicasse uma coletânea de artigos de Horkheimer, irá sugerir, junto a Bernard Groethuysen (de quem partira a ideia) e Raymond Aron, a mesma editora da Recherches philosophiques, a Boivin.24 Tudo isso implica dizer que as relações entre o grupo de Jean Wahl e os imigrantes alemães eram bastante cordiais, independente das diferenças, por exemplo, no que concerne à interpretação de Nietzsche. Por outro lado, no volume VI da Zeitschrift, de 1937 – o mesmo em que aparecem as resenhas de Löwith e Horhkeimer sobre o livro de Jaspers –, também foram publicadas duas resenhas sobre números específicos da Recherches philosophiques: uma foi escrita por Walter Benjamin,25 e outra por ninguém mais, ninguém menos que Raymond Aron.26 É interessante ressaltar que nessas duas resenhas seus autores assinalam a forte ligação da revista com a “pesquisa alemã”, como diz Benjamin, ou com as “doutrinas alemãs”, como diz Aron, mas ao mesmo tempo não deixam de criticá-la. Benjamin, não por acaso, em virtude da presença de uma “antropologia ontológica 22. “L’ achèvement de la philosophie classique par Hegel et sa dissolution chez Marx et Kierkegaard”, publicado no volume IV, 1934-1935, e “La conciliation hégélienne”, publicado no volume V, 1935-1936. 23. Landsberg, P-L. “Compte-Rendus”. In: Recherches philosophiques, vol. 5, 1935-1936, pp. 535-7. 24. Horkheimer, M. Gesammelte Schriften. Band 16: Briefwechsel 1937-1940. Frankfurt: Fischer, 1995, p. 314. Tentando convencer Horkheimer da “seriedade” de Groethuysen, Benjamin afirma, entre outras coisas, que “para ele [Groethuysen] Heidegger nada mais é do que uma moda literária”. Benjamin repete a sugestão em outra carta, escrita em 7.02.1938 (Idem, p. 379). 25. Zeitschrift für Sozialforschung. Herausgegeben von Max Horkheimer. Jahrgang VI, 1937, pp. 173-4. A resenha de Benjamin refere-se ao volume IV, de 1934-1935.. 26. Idem, p. 417-9. A resenha de Aron refere-se ao volume V, de 1935-1936. 35 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010 e metafísica” na maioria dos artigos, a qual remonta a Scheler e a Heidegger.27 Aron, por sua vez, assinala a “confusão ideológica, cujo testemunho é tanto a justaposição de artigos de orientação diferente quanto a qualidade, nem sempre boa, dos mesmos”, do mesmo modo como critica os artigos que seguem a “filosofia existencial”, mal representada nos de Lévinas, Benjamin Fondane e Jeanne Hersch, esta última chamada de “discípula fervorosa de Jaspers”. Como se vê, havia tanto do lado alemão, aqui representado por Benjamin, como do lado francês, representado por Aron, uma desconfiança em relação à recepção francesa da filosofia alemã, que dizia respeito a Jaspers e Heidegger. Após criticar Jaspers por não se posicionar diante da possível responsabilidade do próprio Nietzsche por sua apropriação pelo nazismo,28 Löwith vai resumir sua crítica no seguinte aspecto: Jaspers aplica suas próprias concepções filosóficas à filosofia de Nietzsche e, com isso, acaba por produzir uma série de equívocos. O conceito de vida, por exemplo, transforma-se, nas mãos de Jaspers, num “conceito existencial” e que supõe uma referência à transcendência divina, apesar de todas as críticas de Nietzsche a essa possibilidade. Grosso modo, Jaspers transforma questões candentes colocadas por Nietzsche em uma “exigência existencial”. A crítica de Löwith tem como fundamento sua própria interpretação de Nietzsche, que já estava presente no seu livro de 1935, A doutrina nietzschiana do eterno retorno do mesmo. Assim, contra a posição de Jaspers de que a filosofia de Nietzsche seria comandada por um “movimento vertiginoso” ou que seria uma simples “conjuração do infinito”, Löwith reafirma a ideia de que a filosofia de Nietzsche seria um “sistema em aforismos” que é atravessado por uma questão central – o conflito entre querer de volta o antigo mundo “finito” e, ao mesmo tempo, ansiar por um novo “para onde”, por uma nova meta – e cuja forma não seria uma vaga 27. Benjamin, justamente, separa o artigo de Löwith publicado nesse número por sua “atitude crítica” em relação a essa antropologia de cunho “existencial”. 28. Löwith também expressou a mesma crítica em carta dirigida a JenWahl, que foi anexada por este na sua resenha do livro de Jaspers, já mencionada. 36 Ernani Chaves O Nietzsche “francês” nas páginas... dialética, “mas caracterizada pelas três transformações, descritas no primeiro discurso de Zaratustra”. Em uma carta a Löwith, escrita de Nova York em 27 de julho de 1937, Horkheimer comunica que escreveu uma “longa consideração” sobre o livro de Jaspers, a qual deveria ser publicada no mesmo número, no “outono” daquele ano, e justifica seu texto por uma preocupação com a repercussão do livro de Jaspers na França e em outros lugares. Trata-se, portanto, de tomar uma clara posição em defesa de Nietzsche contra as conseqüências dos equívocos de Jaspers, em especial quando lidos fora da Alemanha. A esse respeito, escreve Horkheimer: Justamente porque na França, e em outros lugares, este livro tem grande repercussão, eu ainda gostaria de confrontar alguns problemas da exposição de Jaspers com os textos de Nietzsche, para mostrar como Jaspers se saiu em questões relativas aos judeus, aos franceses, aos alemães e à ideia de nação. Nós conhecemos tudo isso muito bem, mas em outros países essas coisas são desconhecidas.29 A crítica de Horkheimer, por sua vez, pressupõe todos os elementos da chamada “teoria crítica” em sua primeira fase. Assim, ela começa caracterizando o lugar da fala de Jaspers, que é o do “pequeno burguês” e que, por isso, fará um supremo esforço para tornar também o próprio Nietzsche um “pequeno burguês”, visando tornar sua filosofia aceitável e palatável. Nessa perspectiva, a interpretação de Jaspers acaba não escondendo sua vinculação a uma ideologia “liberal”, cuja conseqüência é “evitar os antagonismos” da filosofia de Nietzsche. Além disso, Horkheimer destaca a radicalidade do pensamento de Nietzsche, colocando-o em relação com Marx e Freud. Diz ele que “Nietzsche analisou o espírito objetivo de sua época, a constituição psíquica da burguesia”, numa espécie de antecipação, diríamos nós, das análises freudianas em seus textos sobre a cultura, algo que não escapou a Horkheimer. Por outro lado, não se poderia deixar de reconhecer os elementos utópicos – e por isso mesmo emancipatórios – contidos na con29. Horkheimer, M. Gesammelte Schriften. Band 16: Briefwechsel 1937-1940. Frankfurt: Fischer, 1995, pp. 202-3. 37 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010 cepção do Além-do-homem. O problema, segundo Horkheimer, está no fato de que Nietzsche não conheceu Marx, mas apenas os social-democratas. A conseqüência disso é dupla: a primeira é que Nietzsche não pode conceber a meta do além-do-homem como sendo a “sociedade sem classes”, um conceito que aos poucos se perde na social-democracia; a segunda – Horkheimer tem em mente, muito provavelmente, a Crítica ao programa de Gotha – é que Nietzsche acabou por avaliar equivocadamente o caráter histórico do trabalho, ao pensar que ele não poderia perder seu efeito escravizador. Apesar disso, não se poderia deixar de reconhecer “seu ódio por um mundo dominado pela economia”. Bibliografia ADORNO, T. 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Herausgegeben von Max Horkheimer, Paris: Libraire Felix Alcan, 1936-1940. 39 Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant Jean Leison Simão Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Resumo: Trata-se do desenvolvimento do conceito de personalidade em Kant, segundo Heidegger, sob três determinações: personalidade transcendental, personalidade psicológica e personalidade moral.Especificamente, o objetivo é definir o conceito estrito e autêntico de personalidade – expresso na personalidade moral – em relação aos conceitos mais gerais, tanto da personalidade transcendental quanto da psicológica. Nos conceitos mais gerais uma ontologia não é possível. Na determinação da personalidade transcendental não se manifesta o ente do sujeito, portanto, não podemos revelar o ser deste ente; já na determinação da personalidade psicológica o ente do sujeito é manifestado, entretanto o que inviabiliza a ontologia é o fato de este ente (a alma) não poder ser tomado em si mesmo, isto é, não poder ser independente do corpo. O conceito mais estrito e autêntico em Kant, segundo Heidegger, é o que torna possível uma ontologia, na medida em que é o único que, a partir da peculiaridade da autoconsciência moral em relação à autoconsciência empírica e a transcendental, manifesta onticamente e de imediato a pessoa naquilo que é: em sua dignidade. Palavras-chave: personalidade transcendental, personalidade psicológica, personalidade moral, Kant, Heidegger. Abstract: It is about the development of the concept of personality in Kant according to Heidegger and under three determinations: transcendental personality, psychological personality and moral personality. Specifically, the objective is to define the strict and authentic concept of personality – expressed in the moral personality – related to the most general concepts, not only of the transcendental personality but also of the psychological one. In the most general concepts the ontology is not possible. In determining the transcendental personality the subject entity is not manifested. However, what makes the ontology not feasible is the fact that this entity (the soul) is not taken in itself, that is, it is not independent from the body. The most strict and authentic concept in Kant according to Heidegger is what makes possible one ontology once it is the only one to, from the peculiarity of the moral auto-consciousness compared to the empirical auto-consciousness, manifest ontologically and promptly the person in what he is: his dignity. Keywords: transcendental personality, psychological personality, moral personality, Kant, Heidegger. 41 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 I. Introdução No terceiro capítulo da obra Os problemas fundamentais da fenomenologia, Heidegger trata, em três seções (13, 14 e 15), da tese ontológica moderna sobre os modos básicos do ser da natureza (res extensa) e do espírito (res cogitans). Para sermos mais precisos: na seção 13, Heidegger se propõe a caracterizar tal distinção a partir da concepção kantiana do problema, com o objetivo de mostrar que os filósofos da modernidade – os quais pretendiam se orientar fundamentalmente para o sujeito – não cumprem com sua promessa, pois os problemas de princípio subjacentes na orientação ontológica moderna permanecem dependentes da ontologia tradicional (antiga e medieval). Esses problemas de princípio serão propriamente tema da seção 14, que se constitui de uma análise crítica da concepção de personalidade em Kant – cuja interpretação do ser se desenvolve vinculada ao conceito de subsistência –, o que conduz à necessidade de colocação de uma questão mais fundamental que interroga pelo ser. Por conseguinte, é na seção 15 que Heidegger conclui abordando a problemática fundamental da determinação do ser do “sujeito” (Dasein), não sob uma orientação unilateralmente subjetivista, como fizeram os modernos, senão como ponto de partida da problemática filosófica. No presente artigo não nos ocuparemos da reconstrução argumentativa heideggeriana das duas últimas seções. Limitaremonos apenas à primeira, mas não com o objetivo meramente de reconstruir a tematização da distinção ontológica dos modos do ser segundo a concepção de Kant. Nosso propósito é, sobretudo, o de investigar a caracterização heideggeriana da personalidade em Kant sob três determinações fundamentais: personalidade transcendental, personalidade psicológica e personalidade moral. De certa forma, a proposta da seção 13 (a caracterização da distinção entre res cogitans e res extensa e a exposição dos princípios de tal distinção) pode ser identificada em nosso trabalho. Assim, encontramos nessa tematização da doutrina da personalidade em Kant um eu em geral, que é somente sujeito (o eu transcendental), e o eu que é sujeito num sentido estrito (o eu moral), portanto, a existência de ambos é dependente de nossa vontade, são fins, são 42 Jean Leison Simão Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant res cogitans. Por outro lado, o eu psicológico é o eu em geral que é somente objeto, unido ao corpo (matéria), portanto, sua existência não é dependente de nossa vontade, é um meio, é uma res extensa.1 Não obstante, a definição de personalidade em sentido amplo, tanto da personalidade transcendental quanto da personalidade psicológica, não toca o sentido mais central e autêntico de pessoa, que se exprime na personalidade moral. O caráter mais central e autêntico dessa personalidade, em relação aos outros conceitos mais gerais, é o que, especificamente, pretendemos desenvolver. II.Os conceitos mais gerais de personalidade: personalidade transcendental e personalidade psicológica No final da seção 14 Heidegger afirma: a subjetividade do sujeito é sinônimo de autoconsciência. Esta última constitui a efetividade, o ser deste ente. Daqui decorre que, numa compreensão radical do pensamento de Kant ou Descartes, o idealismo alemão (Fichte, Schelling, Hegel) visse a autêntica efetividade do sujeito na autoconsciência.2 Em Kant, de acordo com Heidegger, não podemos conhecer o ser do sujeito, no sentido de coisa em si mesma, isto é, como uma substância finita produzida por um ente originário, o ens infinitum (Deus), o único que, por ser aquele que produz, tem acesso ao ser do ente assim produzido. Nós, enquanto pessoas, enquanto entes finitos, somente podemos conhecer os efeitos das substâncias finitas, sejam elas pessoas (res cogitans) ou coisas (res extensa). Por conseguinte, não podemos conhecer o ser do sujeito, ele mesmo, na autoconsciência, senão apenas os efeitos, as suas determinações. 1. De acordo com a interpretação de Heidegger “segundo Kant, ambas, tanto a pessoa como a coisa [Sache], são res, coisas [Dinge] no mais amplo sentido, coisas que têm existência, que existem”. Heidegger, M. Los problemas fundamentales de la fenomenología. Trad. de Juan José Garcia Norro. Madri: Editorial Trotta, 2000, p. 197. 2. Idem, p. 216. (A numeração das páginas é referente ao original em alemão. Na tradução espanhola essa numeração aparece ao lado do corpo do texto). 43 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 Isso vale sobretudo para a autoconsciência pura da personalidade transcendental e para a autoconsciência empírica da personalidade psicológica. Entretanto, no caso da autoconsciência moral da personalidade moral ocorre algo distinto, conforme a análise de Heidegger, como veremos. Não obstante, poderíamos perguntar como estão unificadas essas três determinações de personalidade em Kant. Pergunta legítima que mereceria uma resposta adequada se, segundo Heidegger, Kant se ocupasse da investigação dessa unificação, o que, na realidade, não ocorreu. Deixando a problemática da unificação de lado, é certo que o sujeito existente (no sentido de subsistência3) tem três modos de determinação: ele existe como sujeito determinante (personalidade transcendental), como sujeito determinável (personalidade psicológica) e como sujeito que determina a si mesmo a partir de sua ação moral (personalidade moral). Para Heidegger, encontramos o conceito formal de personalidade, no sentido de autoconsciência, no conceito de personalidade transcendental. Isso acontece porque o termo transcendental, em Kant, não deve ser compreendido (como propõem os neokantianos) sob o ponto de vista epistemológico. Transcendental na doutrina de Kant significa ontológico. Segundo Heidegger, “o conhecimento transcendental [em Kant] não se refere a objetos, isto é, ao ente, senão aos conceitos que determinam o ser do ente”.4 O sistema desses conceitos faz parte de uma filosofia transcendental que é sinônimo de ontologia e não de epistemologia. Doravante, de que maneira podemos conhecer a determinação da personalidade transcendental? Segundo Heidegger, a determinação do eu transcendental em Kant é fundamentalmente cartesiana. O eu, nesse sentido, é uma res cogitans, uma res que tem representações, isto é, que tem comportamentos específicos, as cogitationes (julgar, odiar, negar, perceber etc.). Cada uma das 3. Heidegger afirma que “Kant fala acerca do existir [Existieren] do homem e acerca da existência [Dasein] das coisas como fins; mas os termos Existieren e Dasein, para ele significam somente subsistência”. Idem, pp. 199-200. 4. Idem, p. 180. 44 Jean Leison Simão Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant cogitationes é sempre acompanhada de um “eu penso” co-representado, mesmo que não seja propriamente pensado, pois, “segundo Descartes, cogitare é sempre cogito me cogitare”.5 Entretanto, para Heidegger, Kant aceita a determinação cartesiana do ego, mas a concebe de uma maneira mais fundamental no tocante à ontologia. O sentido das determinações do eu, isto é, de suas representações, é o de representatio. O próprio termo “determinação” em Kant, segundo Heidegger, conserva o sentido de determinatio ou realitas, o que, na ontologia tradicional, remete aos predicados das coisas. Além disso, Heidegger afirma que se deve entender o conceito de “res” de modo ontologicamente mais rigoroso, a saber, como algo. Por conseguinte, o eu kantiano é um algo que tem predicados (as cogitaciones), um eu no sentido lógicogramatical. O eu é, mais precisamente, um subjectum – no sentido de categoria apofântica formal –, pois, como afirma Heidegger, “‘apofântica’ é aquela categoria que pertence à estrutura do que é a estrutura formal do conteúdo enunciativo de uma proposição enunciativa em geral”.6 Há, portanto, uma dependência íntima, sob o ponto de vista ontológico, entre o conceito de sujeito e o conceito de subjectum, que para os gregos é o ύποκείμενον, a verdadeira substância.7 Não obstante, ter predicados significa dizer que o eu transcendental, na acepção kantiana, seguindo a argumentação de Heidegger, tem consciência deles de forma peculiar. O sujeito é distinto de seus objetos (dos predicados) e, ao mesmo tempo, os tem, os conhece, ou seja, é um sujeito de predicados (objetos) e para objetos. A autoconsciência, em conseqüência, também é peculiar. Heidegger afirma que “em razão dessa peculiar forma de ter predicados, o sujeito é um sujeito peculiar, isto é, o eu é o sujeito Κατέξοχήν”.8 5. 6. 7. 8. Idem, p. 177. Idem, p.178. Idem, ibidem. Idem, ibidem. 45 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 Este sujeito kantiano, ele mesmo, afirma Heidegger, não é um sujeito determinado, ou seja, não pode ser representado. Sobre esse sujeito não podemos dizer nada mais senão que ele é algo, mas não algo universal, anônimo, um eu lógico resultado de uma abstração lógica – como interpretam os neokantianos –, senão que é algo indeterminado, no sentido de que o seu ser é problemático. O eu lógico não é, segundo Heidegger, e como pretende Rickert, um eu pensado logicamente, senão que o eu “precisamente por sua essência é, em cada caso, meu”.9 O eu lógico, em Kant, deve ser interpretado, segundo Heidegger, como o sujeito do logos, no sentido de um sujeito que subjaz em todo pensar. Ora, se, como expusemos mais acima, a efetividade do sujeito se dá em sua autoconsciência, então como poderíamos sustentar uma autoconsciência de um sujeito que em si mesmo é indeterminado (isto é, não efetivo)? Não estaríamos diante de um evidente contra-senso? Essas questões nos levam a investigar com mais detalhe em que consiste a autoconsciência do eu transcendental. De acordo com Heidegger, a autoconsciência é pura e se dá na forma de uma apercepção transcendental. Vejamos o que ele diz sobre isso: Kant interpreta o eu como “unidade sintética original da apercepção [Apperzeption]”. O que significa isso? O eu é o fundamento originário da unidade da multiplicidade de suas determinações no sentido de que, enquanto eu, eu as tenho todas juntas em relação comigo mesmo, as mantenho juntas, as uno, sintetizo. O fundamento originário da unidade é o que é, é este fundamento como unificante, como sintético. A união da multiplicidade das representações e daquilo que é representado nelas tem sempre de ser pensado junto a elas. A união é de tal sorte que, ao pensar, eu também me penso a mim mesmo, ou seja, não apreendo simplesmente o pensado e o representado, não só o percebido, senão que em todo pensamento me penso a mim mesmo com ele. Não percebo o eu, senão que o apercebo. A unidade sintética original da apercepção é a característica ontológica do sujeito assinalado.10 9. Idem, p. 194 (grifo nosso). 10. Idem, pp. 179-180. 46 Jean Leison Simão Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant Portanto, somente podemos conhecer a determinação deste eu como um algo que unifica. Essa é, como Heidegger põe em relevo, a característica ontológica do sujeito transcendental. O eu é “a condição ontológica fundamental de todo ser”11 e não pertence às condições particulares de possibilidade que são os conceitos radicas do entendimento – as categorias –, mas é o que (enquanto fundamento) torna essas categorias possíveis. Mas o que é em si mesmo esse eu? Posto que seja a condição ontológica de todo pensar, não podemos dizer nada mais do que ser ele problemático, indeterminado. O eu puro nunca se me dá como determinável para a determinação, isto é, para aplicar-lhe as categorias. É por esta razão que é impossível um conhecimento ôntico do eu e, por conseguinte, uma determinação ontológica dele. A única coisa que se pode dizer é que o eu é um “eu atuo”.12 Para sustentar essa sua afirmação Heidegger cita Kant: O “eu penso” expressa o ato de determinar minha existência [isto é, minha subsistência]. Por conseguinte, a existência está já dada mediante ele. Mas o modo segundo o qual devo determiná-la, isto é, pôr em mim a variedade que a ela lhe pertence, não se encontra, todavia, determinado através deste ato. Para isso [o dar-me a mim mesmo] se requer uma intuição, a qual se baseia numa forma dada a priori, a saber, o tempo, que é sensível e pertence à receptividade do determinável. Como não possuo outra intuição de mim mesmo que me subministra o determinante, do qual só tenho consciência de sua espontaneidade, antes do ato de determinar, à maneira como o tempo subministra o determinável, não posso determinar minha existência de um ser ativo por si mesmo, senão me represento somente a espontaneidade de meu pensar, isto é, do determinar. Minha existência segue sendo sempre determinável só de modo sensível, isto é, determinável enquanto existência de um fenômeno. 11. Idem, p. 181. 12. Idem, p. 205. 47 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 Não obstante, é essa espontaneidade a que faz que me denomine inteligência.13 Portanto, não se pode afirmar que o “eu penso” pode ter consciência de si no momento em que manifesta a sua ação, pois o próprio atuar – uma vez que é mediado pela intuição – é um ato que, quando se apresenta, já está determinado. O “eu penso” tem consciência de si apenas enquanto determinante e não pode ser determinável pela receptividade, isto é, a partir das condições a priori da intuição. Ele somente pode se representar como pura espontaneidade do determinar, antes mesmo de efetuar uma determinação. Por conseguinte, somente temos consciência do eu transcendental, isto é, de sua efetividade, como determinante, entretanto, não podemos saber o que é esse eu, uma vez que não podemos ter conhecimento ôntico do eu e determiná-lo em seu ser. Com isso, a personalidade transcendental, enquanto revela um eu como fundamento ontológico de todo pensar, é a estrutura formal da personalidade. Isto é, na multiplicidade dos atos de pensamento temos consciência do eu, enquanto o mesmo que une esta e aquela representação. O eu é, portanto, a unidade que torna possível a multiplicidade. Esta é a estrutura formal da personalidade. Na personalidade psicológica o eu não tem caráter ontológico, isto é, como um mesmo que torna possível a multiplicidade, mas antes se manifesta como um mesmo na multiplicidade. Assim sendo, não é o sujeito determinante (da espontaneidade), mas o sujeito determinável (da receptividade). A eu-idade na personalidade psicológica revela um eu que não é sujeito do pensamento apercebido, senão um eu que está no tempo e no espaço, um eu experimentado, um eu empírico, que, segundo Heidegger, coincide com o conceito de alma pensada como ideia. Portanto, o fundamento desse eu não é um fundamento ontológico, apesar de ser o eu puro a condição fundamental para a autoconsciência do eu empírico. O fundamento da alma é “como diz Kant, do ser animado, da vida em geral”.14 A consciência de si do eu fático revela um eu subsistente 13. Idem, pp. 205-6. 14. Idem, p. 183. 48 Jean Leison Simão Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant na experiência, enquanto um eu que é consciente de seus estados empíricos. Essa autoconsciência empírica é uma apreensão, que, segundo Heidegger, significa “percepção, experiência do subsistente, experiência dos processos psíquicos subsistentes mediante o denominado sentido interno”.15 Mais adiante Heidegger cita Kant acrescentando que o homem tem autoconsciência não somente como alma, mas como alma unida a um corpo que é objeto dos sentidos externos. Para a inteligência humana, a psicologia não é nada mais, nem pode tampouco ser nada mais, que a antropologia, isto é, conhecimento do homem, mas limitado à condição de que seja conhecido como objeto de sentido interno. Mas tem assim mesmo consciência de si como objeto dos sentidos externos, ou seja, tem um corpo, unido ao objeto de sentido interno que se chama alma do homem.16 Disso podemos concluir que na multiplicidade do aparecer, seja da alma, seja da alma unida ao corpo, o eu tem consciência de si como o mesmo em meio a seus estados empíricos que modificam continuamente. O eu apreendido é um eu que é somente objeto, é uma coisa [sache], e por isso se distingue do eu transcendental, o eu que subjaz no logos, que é somente sujeito. Não obstante, segundo Heidegger, a eu-idade do eu lógico “é a mesma em todos os sujeitos fáticos”17, ou seja, o eu determinante da apercepção é idêntico ao eu determinável; entretanto o eu determinável depende necessariamente do eu determinante. A consciência de si pode manifestar o eu como determinante (o que pensa e intui) ou determinável (objeto da intuição), mas não há uma dupla personalidade: o eu puro é propriamente uma pessoa, mas o eu empírico é, da mesma forma que qualquer objeto da intuição, uma coisa. Disso depreende-se que o eu tem a si mesmo como uma pessoa e como uma coisa, mas é impossível explicar como pode o eu ser, ao mesmo tempo, pessoa e objeto. Em outras palavras, não se pode 15. Idem, p. 182. 16. Idem, p. 183 (grifos nossos). 17. Idem, p. 184. 49 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 explicar como o eu é ao mesmo tempo inteligência, isto é, espontaneidade, e objeto da intuição, isto é, objeto da receptividade. Entretanto, se o eu empírico é uma coisa (um objeto da intuição), então poderíamos utilizar os conceitos do entendimento (as categorias) e determiná-lo ontologicamente? De acordo com que afirmamos mais acima, o eu empírico não é fundamento ontológico, senão que seu fundamento é um ente: a alma. Podemos determinar o ser deste ente? A aplicação das categorias a este ente constitui-se, segundo o que nos diz Heidegger sobre Kant, num paralogismo da razão pura. Sob um ponto de vista histórico, a doutrina de Kant dos paralogismos da razão pura é uma crítica da psychologia rationalis, a metafísica tradicional da alma como metafísica dogmática, que, de fato, ele substitui pela metafísica dos costumes. É característico da psychologia rationalis o que, com a ajuda de conceitos puramente ontológicos que aplica ao eu, enquanto “eu penso”, trate de obter algum conhecimento sobre este eu como ente, como alma. Nos “Paralogismos da razão pura”, Kant mostra que esses argumentos da psicologia metafísica extraídos a partir de conceitos ontológicos e de sua aplicação ao “eu penso” são falácias.18 Por que são falácias? Kant, segundo Heidegger, “denomina aos conceitos ontológicos fundamentais categorias. Divide-as em quatro classes: as categorias da quantidade, da qualidade, da relação e da modalidade”.19 Ao aplicar essas categorias à alma, temos o seguinte: 1) segundo a quantidade: a alma é uma, isto é, sempre a mesma independente das suas mudanças de estado, portanto, permanece de modo absoluto, é, neste sentido, pessoa; 2) com respeito à qualidade: a alma é simples, é incorruptível e não pode ser decomposta em partes; 3) de acordo com a relação: a alma é substância imaterial subsistente no sentido interno, em oposição ao sentido externo que é o corpo.20 18. Idem, p. 202. 19. Idem, ibidem. 20. Idem, p. 203. 50 Jean Leison Simão Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant Agora, se adicionarmos a categoria da modalidade a essas três primeiras determinações da alma – personalidade, incorruptibilidade e imaterialidade –, que são determinações da espiritualidade, isto é, determinações do “eu penso” (no sentido da psicologia metafísica), perceberemos que, em verdade, não podemos predicá-la espiritualidade. Isso porque a categoria de modalidade é a categoria que determina a alma de uma maneira estrita: como existindo em relação recíproca com um corpo. A alma, nesse sentido, é o fundamento da vida na matéria; ela anima um corpo. Portanto, se a alma existe também em relação recíproca com um corpo, então não podemos dizer que ela é simples, incorruptível e subsistente por si, isto é, que é imortal, mas que sua existência se faz também na relação com o corpo, ou seja, que deixa de ser determinada quando essa relação desaparece. Logo, não podemos obter conhecimento ontológico a partir da aplicação das categorias a este ente (a alma), pois a condição de existência dada pela categoria de modalidade está em contradição em relação às outras. Resumindo: de um lado, temos a autoconsciência pura, a apercepção transcendental, que revela um sujeito determinante; de outro, temos a autoconsciência empírica, a apreensão, que manifesta um sujeito determinável, um sujeito que não é propriamente sujeito, senão uma coisa que subsiste em meio aos estados empíricos da experiência interna, mas que também se vincula com um objeto do sentido externo: o corpo. Um conhecimento ontológico sobre cada um dos dois não é possível por motivos distintos: enquanto o sujeito determinante é também pura espontaneidade, isto é, não pode ser determinado na intuição, o sujeito determinável – enquanto objeto da intuição, ou seja, dado na receptividade – é um ente, é somente objeto, que está em relação de reciprocidade com um corpo. Isso tem implicação no conceito de alma que não pode ser imortal (de acordo com as categorias de quantidade, qualidade e relação), pois também tem seu fundamento na matéria (conforme a categoria de modalidade). Não podemos, portanto, aplicar conceitos ontológicos à alma e obter conhecimento ontológico dela como “eu penso”, na medida em que o “eu penso” não é o sujeito dado na experiência (determinável), senão que é aquele que, por sua índole, deve tor51 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 nar possível a experiência (determinante). Ambos os conceitos de personalidade – a personalidade transcendental e a personalidade psicológica – são conceitos gerais de pessoa. Entretanto, o primeiro é personalidade no sentido formal, pois possui um caráter ontológico, ou seja, o eu, por ser a condição ontológica fundamental, é a unidade que antecede e torna possível a multiplicidade; já o segundo conceito é dependente daquele, na medida em que se manifesta na multiplicidade como um mesmo que subsiste em meio aos estados que modificam continuamente. Enquanto a autoconsciência por apercepção transcendental é um puro dar-se conta do eu, a apreensão é um ato dirigido ao eu empírico e mediado pela intuição sensível. Agora, há uma autoconsciência que revela o eu num sentido mais central e autêntico. Essa consciência de si não é um dar-se conta de um sujeito determinante (o eu puro), tampouco é um conhecimento teórico do sujeito determinável (o eu empírico). Essa peculiar autoconsciência manifesta a pessoa num sentido mais autêntico e preciso, não como um sujeito determinante ou determinável, senão como um sujeito que determina a si mesmo por meio de uma ação específica: a ação moral. A autoconsciência revela o eu puro prático. III. Personalidade moral: o mais estrito e autêntico conceito de pessoa Segundo Heidegger: A personalidade tomada propriamente é a personalidade moral. Se a estrutura formal da personalitas consiste na consciência de si mesmo, então a personalitas moralis deve expressar uma modificação da consciência de si mesmo e, portanto, representar uma classe peculiar de autoconsciência. A consciência moral de si mesmo caracteriza apropriadamente a pessoa naquilo que é.21 Que modificação da autoconsciência é esta, e o que significa dizer que ela é peculiar? Mais ainda, o que significa dizer que caracteriza a pessoa naquilo que é? Se a autoconsciência moral 21. Idem, p. 186. 52 Jean Leison Simão Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant preserva a estrutura da personalidade, isto é, se constitui a partir da efetividade e revela o eu como sendo um mesmo, e, ao mesmo tempo, revela peculiarmente a pessoa naquilo que é, então esta autoconsciência, por sua peculiaridade, deve necessariamente distinguir-se da autoconsciência pura e da autoconsciência empírica. Se a consciência de si revela “a autêntica espiritualidade [Geinstigkeit] do homem”22, então ela não revela um mesmo eu pela mediação do sentido interno e do sentido externo da intuição sensível, tampouco deve ser um ato reflexivo dirigido às cogitationes, a partir do que aquele que pensa se dá conta de que é um mesmo que está pensando. Segundo Heidegger, “a consciência moral de si mesmo tem de ser um sentimento e deve se distinguir do conhecimento teórico, no sentido teórico do ‘eu penso em mim mesmo’”.23 De acordo com a visão de Heidegger sobre Kant, na sensibilidade temos o sentimento (num sentido amplo) que se distingue da intuição sensível, a qual é a faculdade de ter sensação. Um sentimento ou é de prazer [Lust] ou é de desprazer [Unlust], e não só é um sentimento por algo, mas também é um sentimento em algo. Em outras palavras, quando temos um sentimento por algo, não somente experimentamos este algo no sentimento, senão que experimentamos a nós mesmos como tendo este sentimento. Dessa forma, o eu se revela como um mesmo de maneira específica ao ter-se a si mesmo diretamente e, portanto, não é mediado pela intuição. Essa é, sob o ponto de vista fenomenológico heideggeriano, a definição universal e formal de sentimento. Como podemos identificar essa estrutura essencial do sentimento no sentimento moral? O sentimento moral em Kant é o respeito. Há uma diferença fundamental quanto à causalidade do sentimento sensível e o sentimento moral: enquanto o primeiro é causado naturalmente por um sentimento patologicamente produzido, ou seja, é condicionado aos estados corporais, o segundo tem o seu fundamento intelectual, isto é, é causado pela razão. A 22. Idem, p. 187. 23. Idem, p. 188. 53 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 causa do sentimento moral – ou se quisermos, o fundamento de determinação da vontade racional – é a lei moral. Enquanto produz o sentimento moral, a lei moral tem um duplo efeito: um efeito negativo, a determinação de um sentimento de repúdio a todas as inclinações e, um efeito positivo, a revelação daquilo que efetua e funda a priori esse sentimento. De acordo com Heidegger, as inclinações, em Kant, ou decorrem do amor próprio ou da presunção. Sobre isso Kant afirma: A razão prática pura apenas causa dano ao amor-próprio na medida em que ela o limita – enquanto natural e ativo em nós antes da lei moral – apenas à condição da concordância com essa lei, em cujo caso ele denomina-se amor de si racional. Mas ela com certeza abate a presunção, na medida em que todas as exigências de autoestima que precedem a concordância com a lei moral são nulas e totalmente ilegítimas, na medida precisamente em que a certeza de uma disposição que concorda com essa lei é a primeira condição de todo o valor da pessoa [...], e toda a impertinência ante a mesma lei é falsa e contrária à lei.24 Não obstante, Heidegger limita-se à investigação do efeito negativo da lei moral com relação à presunção em Kant. O motivo disso vemos em sua argumentação, que nos conduz de imediato à definição de efeito positivo da lei moral. Assim, ao opor-se à resistência subjetiva, debilitando a presunção, a lei moral é objeto de respeito, mas, ao abater a presunção, a lei moral é objeto de sumo respeito, sendo, por conseguinte, um sentimento positivo, o único de que podemos ter conhecimento a priori. Portanto, respeito, enquanto sentimento, é respeito-por algo (a lei moral a priori) e, ao mesmo tempo, revela um eu que se tem a si mesmo como um agente. Entretanto, segundo Heidegger, a lei moral em Kant não serve para julgar, pois não se manifesta depois de um acontecimento. Ter respeito pela lei não é o motor da lei, senão que faz dessa lei uma máxima subjetiva, ou seja, revela a lei de uma maneira específica. A causalidade intelectual é uma 24. KANT, I. Crítica da razão prática. Ed. bilíngüe. Trad. de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 254-5. 54 Jean Leison Simão Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant causalidade por liberdade, isto é, ao mesmo tempo em que revela a lei, também manifesta o eu puro e livre que, diante da lei, atua ante si mesmo. Pelo menos uma diferença fundamental pode ser identificada entre esse “eu atuo” da razão pura prática e o “eu atuo” da razão pura: enquanto este último é um puro determinar, o primeiro é um puro determinar-se a si mesmo pela obediência a uma lei a priori prática. Nesse sentido, há uma estrutura intencional no fenômeno do respeito, a saber, o eu submete a si mesmo a uma lei e, simultaneamente, se enaltece. Seguindo a análise heideggeriana de Kant, o enaltecer-se e o submeter-se são análogos aos sentimentos determinados pela sensibilidade: respectivamente, de inclinação e temor, isto é, a tendência para e a tendência a se afastar. Segundo Kant, “não se pode ver-se saciado da majestade dessa lei, e a alma crê elevar-se na mesma medida em que vê a lei santa elevada sobre si e sua frágil natureza”.25 Essa afirmação pode ser comparada com a seguinte interpretação heideggeriana: “ao submeter-me a mim mesmo à lei, submeto-me a mim mesmo como razão pura; mas isto quer dizer que neste submeter-se a mim mesmo me enalteço a mim mesmo como livre, como um ser que se determina a si mesmo”.26 Donde podemos concluir que o eu livremente se submete a si mesmo ao ver a sua frágil natureza perante a lei e, ao submeter-se, enaltece a si mesmo, revelando a lei santa para si, ao mesmo tempo em que se manifesta como um sujeito que se determina a si mesmo, fazendo-se patente a si mesmo de maneira mais autêntica, a saber, em sua dignidade. A autoconsciência moral revela a pessoa em seu sentido mais próprio, apesar de Kant não aprofundar nessa direção, segundo Heidegger. O sentimento moral é, conforme o que nos diz Heidegger, o sentimento de minha existência, e revela o eu como um mesmo de maneira específica, pois é a partir de uma revelação específica da lei moral que o eu manifesta a si mesmo de maneira mais autêntica, isto é, não por meio de um conhecimento teórico, 25. Idem, p. 271. 26. Heidegger, M. Los problemas fundamentales de la fenomenología, p. 192. 55 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 mas como um sentimento de minha existência que manifesta a minha dignidade. Diz Heidegger: “o respeito é um acesso ôntico a um mesmo do eu, no sentido próprio, que existe facticamente”.27 Não obstante, se o respeito é o sentimento de minha existência – e se através deste sentimento o eu se revela em sua dignidade, ou seja, enquanto livre, enquanto determinando a si mesmo, e, mais ainda, se é capaz de ter conhecimento a priori da lei moral –, então aqui uma ontologia da existência humana é possível. Donde podermos distinguir a autoconsciência moral da autoconsciência pura e da autoconsciência empírica, que não permitem um acesso ontológico ao eu por motivos distintos: o eu puro tem caráter ontológico e não pode se manifestar onticamente, assim não é permitido um acesso ao seu ser; por outro lado, o eu empírico tem manifestação ôntica, mas não pode ser revelado ontologicamente, pois a categoria ontológica de modalidade aplicada ao ente não permite que a alma subsista por si mesma, sem um corpo. Todavia, Heidegger afirma o seguinte sobre a autoconsciência moral: “nesta revelação de si mesmo como um ente fático, deve dar-se a possibilidade de determinar a constituição do ente assim manifesto”.28 Qual seria, então, a constituição ontológica da pessoa que se pode revelar? Heidegger afirma que, em Kant, uma pessoa não deve ser entendida apenas pela concepção ontológica de fim em si mesmo, senão como uma pessoa que existe objetivamente como fim em si mesmo. E, por isso, distingue-se de uma coisa existente dada na sensibilidade, que é um meio. O homem existe como um fim em si mesmo; não é nunca um meio, nem sequer um meio para Deus, senão que também ante Deus, ele é seu próprio fim. A partir daqui, isto é, a partir da caracterização ontológica do ente que não é só concebido por outros como um fim e tomado como tal, senão que existe objetivamente – efetivamente – como um fim, põe-se em claro o autêntico sentido ontológico 27. Idem, p. 177. 28. Idem, p. 194. 56 Jean Leison Simão Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant da pessoa moral. A pessoa moral existe como seu próprio fim; ela mesma é um fim.29 A humanidade (no sentido de quidditas, de índole essencial e não o de gênero humano) do homem, isto é, o seu autêntico dever ser, somente é revelado com a autoconsciência moral. Conforme a interpretação de Heidegger, uma pessoa, enquanto existe efetivamente como um fim, encontra-se no reino dos fins, que não é nenhum sistema de valores hierarquizados, senão o reino de convivência das pessoas existentes. Em suma, a autoconsciência moral nos manifesta a pessoa no sentido mais estrito porque não é, como na apercepção transcendental, em que o sujeito se revela como um mesmo que subjaz em cada uma de suas cogitaciones. Tampouco é um sujeito apreendido como um mesmo que subsiste em meio aos seus estados empíricos internos que se modificam continuamente. A pessoa, no sentido mais estrito, se revela a partir de uma única lei moral a priori, que é revelada no sentimento moral (respeito) e que é objeto deste. No sentimento moral a pessoa também tem-se a si mesma, não como um objeto, tampouco como um sujeito simplesmente puro, mas como possuindo uma dignidade. Esse “ter-se a si mesmo” enquanto dignidade, é o que nos dá o sentido mais autêntico de pessoa. Portanto, com a definição mais estrita e autêntica de pessoa, não somente nos conduzimos a seu sentido mais próprio, senão também à possibilidade de uma ontologia. A partir do sentimento moral, o eu tem acesso ôntico a si mesmo, o que viabiliza uma constituição ontológica de sua existência. Embora Kant se mova dentro dos limites pré-traçados pela ontologia tradicional do subsistente, a análise do respeito e da pessoa moral, segundo Heidegger, “não passa de ser um intento, mesmo que imensamente importante, de sacudir-se inconscientemente o peso da ontologia tradicional”.30 A interpretação de Heidegger sobre a definição ontológica da pessoa como um fim – embora Kant não tenha levado a cabo a investigação da índole es29. Idem, p. 195. 30. Idem, p. 209. 57 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010 sencial de um fim, bem como a sua possibilidade ontológica – tem ressonância na definição de Dasein. Assim, o ser do ente na pessoa moral em Kant, da mesma forma que no Dasein, não se limita tão-somente em ser, mas sim, leva em sua própria existência o seu poder ser. Não obstante, a relação, sob o ponto de vista estrutural ontológico, entre a pessoa moral em Kant, segundo Heidegger, e a definição de Dasein pode ser tema de um outro trabalho. Bibliografia HEIDEGGER, M. Los problemas fundamentales de la fenomenología. Trad. de Juan José Garcia Norro. Madri: Editorial Trotta, 2000. KANT, I. Crítica da razão prática. Ed. bilíngüe. Trad. de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 58 Transformação pragmática da filosofia kantiana: Habermas, leitor de Humboldt Antonio Ianni Segatto Doutorando em Filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e bolsista da FAPESP. Resumo: O artigo examina a maneira como Habermas interpreta a filosofia da linguagem de Humboldt e a maneira como recupera e radicaliza a ideia de uma “transformação pragmática da filosofia kantiana” presente na obra deste autor. Abstract: The article examines Habermas’ interpretation of Humboldt’s philosophy of language and the way he recovers and radicalizes the idea of a “pragmatic transformation of Kantian philosophy” in the work of Humboldt. Palavras-chave:Habermas, Humboldt, virada lingüística, pragmática. Keywords: Habermas, Humboldt, linguistic turn, pragmatics. Em uma das inúmeras réplicas que dirige a seus críticos, Habermas propõe uma reformulação, que inicialmente parece não passar do nível da mera analogia, para a pergunta kantiana a respeito das condições de possibilidade do conhecimento. No mesmo trecho, ele encaminha uma resposta surpreendente, ao menos à primeira vista, pois aponta para o sentido oposto da analogia inicial: Se, mantendo uma certa analogia com a crítica kantiana da razão, procuramos responder à pergunta sobre como é possível o uso da linguagem orientado para o entendimento, deparamo-nos com o saber intuitivo dos sujeitos capazes de falar e agir, que a criança deve aprender para poder, quando adulta, empregá-la na ação comunicativa.1 1. Habermas, J. “Replik auf Einwände”. In: _____. Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984, p. 497-8. 59 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 A reformulação, como dissemos, parece não passar da mera analogia: nos Prolegômenos, por exemplo, Kant perguntava-se pelas condições do conhecimento teórico (“como é possível o conhecimento pela razão pura?”); Habermas, por seu turno, pergunta-se pelas “condições normativas do entendimento possível” (“como é possível o uso da linguagem orientado para o entendimento?” ou, conforme a formulação da Thomas McCarthy, “como é possível em geral o entendimento entre sujeitos capazes de falar e agir?”). No entanto, pouco a pouco, a simples troca de etiquetas vai se revelando uma transformação decisiva da filosofia kantiana. Embora se trate em ambos os casos do questionamento em relação a condições supostamente universais, estas são, no primeiro, as condições subjetivas da experiência objetiva e, no segundo, as condições intersubjetivas do entendimento por meio da linguagem. E essa transformação é ainda mais patente no que concerne ao tipo de investigação que a questão sobre as “condições normativas do entendimento possível” impõe. É certo que, como Kant, Habermas adota uma perspectiva universalista de investigação. No entanto, recusando qualquer tipo de dedução a priori, ele assinala que o saber pré-teórico dos sujeitos capazes de falar só pode ser abordado a partir de reconstruções racionais a posteriori. Thomas McCarthy, um de seus colaboradores mais próximos, resume esse ponto com as seguintes palavras: Tais reconstruções podem ser comparadas em seu alcance e estatuto com teorias gerais (por exemplo, da linguagem e da cognição). De um outro ponto de vista, elas podem ser comparadas com a lógica transcendental de Kant. Mas as diferenças aqui são críticas. As reconstruções racionais das competências universais não podem reivindicar as pretensões fortes e a priori do projeto kantiano. Elas são desenvolvidas segundo uma atitude hipotética e precisam ser checadas e revisadas à luz dos dados, que são recolhidos a posteriori nas performances reais e avaliados pelos sujeitos competentes.2 2. McCarthy, T. Ideals and illusions: on reconstruction and deconstruction in contemporary Critical Theory. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993, p. 131. 60 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... O elemento mais fundamental do saber pré-teórico a ser reconstruído é a intuição segundo a qual o entendimento é o telos da comunicação lingüística. Apontando novamente para uma analogia com a filosofia kantiana, Habermas compara-a ao “fato da razão”. Se para Kant essa noção, em um dos seus sentidos, designava uma verdade imediatamente conhecida pela razão3, para Habermas ela designa uma verdade imediatamente certa e imediatamente conhecida pelos sujeitos no momento em que se põem em situação de diálogo. É apenas a partir da suposição de que a comunicação lingüística está orientada por um entendimento possível que um falante e seus interlocutores podem começar a dialogar. A intuição segundo a qual o entendimento é o telos da comunicação lingüística, tomada enquanto uma verdade imediatamente certa, figura como o grau zero da enunciação. Essas transformações são motivadas pela recepção de uma certa linhagem filosófica: a virada lingüística. Não por acaso, Habermas atribui a formulação da intuição mencionada à leitura das duas versões complementares da virada lingüística: a linhagem analítica e a linhagem hermenêutica. Em uma entrevista, ele declara: Devo a uma recepção tanto da versão hermenêutica quanto da versão analítica da teoria da linguagem – poder-se-ia dizer, a uma leitura de Humboldt iluminada pela filosofia analítica – aquela intuição que explicitei em minha Teoria da ação comunicativa. Esta é a intuição segundo a qual o telos do entendimento mútuo está instalado na comunicação lingüística.4 3. Cumpre notar que o “fato da razão” na filosofia kantiana pode ser entendido no sentido de um fato (Tatsache), isto é, de uma verdade imediatamente conhecida pela razão, ou no sentido de um feito, isto é, de um ato ou decisão da razão. Habermas estabelece a analogia apenas em relação ao primeiro sentido. Sobre os vários sentidos desse conceito em Kant, cf. Almeida, G. A. de. “Kant e o facto da razão”. In: MacDowell, J. A. (org.). Saber filosófico, história e transcendência. São Paulo: Ed. Loyola, 2002. 4. Habermas, J. “Dialektik der Rationalisierung”. In: _____. Die Neue Unübersichtlichkeit. Kleine Politische Schriften V. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p. 173. 61 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 A fim de compreender as razões e algumas outras implicações dessas transformações, é preciso retomar, ainda que a traços largos, a leitura que Habermas faz de Hamann e, sobretudo, Humboldt. Situando-os numa linhagem que se inicia no final do século XVIII, eles teriam sido responsáveis por iniciar a dissolução da concepção tradicional de linguagem, que perpassa a filosofia da consciência, como mero “instrumento” para a designação de entidades extra-lingüísticas e para a exteriorização de pensamentos. Como escreve Cristina Lafont, cuja leitura Habermas subscreve quase integralmente: Retrospectivamente, pode-se considerar dessa perspectiva a crítica de Hamann a Kant como o núcleo de uma tal mudança de paradigma. Foi Hamann quem localizou na linguagem a raiz comum da sensibilidade e do entendimento buscada por Kant, elevando-a, com isso, a um estatuto não apenas empírico, mas ao mesmo tempo transcendental. É precisamente esse passo que converte a linguagem em uma instância que concorre com o ‘eu transcendental’ (ou a ‘consciência em geral’), na medida em que pode reivindicar para si a autoria dos rendimentos constitutivos da experiência (ou do ‘mundo’) falsamente atribuídos àquele.5 De modo geral, podemos dizer que são dois os traços fundamentais dessa virada lingüística: em primeiro lugar, como conseqüência da superação da concepção tradicional da linguagem como “instrumento”, ela é considerada como elemento constitutivo do pensamento e do conhecimento e, nessa medida, é considerada como condição de possibilidade tanto da objetividade da experiência quanto da intersubjetividade da comunicação; em segundo lugar, a superação das premissas da filosofia da consciência, conduz a uma necessária destranscendentalização da razão: a linguagem manifesta-se sempre em línguas particulares e históricas e não permite, por isso, uma separação estrita entre o transcendental e o empírico, entre o a priori e o a posteriori. 5. Lafont, C. “‘Apertura del mundo’ y referencia”. In: Vieja, M. T. L. de la (ed.). Figuras del logos: entre la filosofía y la literatura. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1994, p. 272. 62 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... Ambos os traços podem ser encontrados no leitmotiv de Hamann segundo o qual a “razão é linguagem, logos” (ou, ainda, “sem a palavra, não há razão – nem mundo”) e em sua fórmula segundo a qual a linguagem é “a priori arbitrária e contingente, mas a posteriori necessária e indispensável”.6 Com o primeiro, ele expressa sua metacrítica ao purismo da razão kantiana: essa metareflexão é levada a cabo por Hamann por meio de uma questão que Kant não respondeu, na medida em que ele se ‘esqueceu’ de colocar: ‘como é possível a faculdade de pensar?’. Apenas pela recordação de tal questão Kant poderia ter descoberto que ‘a faculdade de pensar está na linguagem’”.7 Com a segunda, ele ressalta, por um lado, que a linguagem, por ser “a priori arbitrária e contingente”, não pode ser deduzida de nada anterior e depende, para se manifestar, de suas realizações concretas na história (as línguas particulares); e, por outro lado, que ela é “a posteriori necessária e indispensável”, na medida em que possui um caráter constitutivo para aqueles que a utilizam. Esse passo é decisivo para Habermas na formulação de algumas noções de sua teoria, como podemos notar na seguinte passagem: Já Hamann levantara contra Kant a censura do ‘purismo da razão’. Não há uma razão que só posteriormente vestiria roupagens lingüísticas. A razão é originalmente uma razão encarnada tanto nos contextos de ações comunicativas como nas estruturas do mundo da vida.8 Em outras palavras, a metacrítica de Hamann a Kant abre a possibilidade de pensar uma razão que não esteja circunscrita aos 6. Hamann, J. G. “Metacrítica sobre o purismo da razão”. In: Gil, F. (org.). Recepção da Crítica da razão pura: antologia de escritos sobre Kant (17861844). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, p. 146. 7. Lafont, C. The linguistic turn in hermeneutic philosophy. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1999, p. 8. 8. Habermas, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p. 374 (trad.: Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 447). 63 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 limites da consciência e do sujeito singular; uma razão que esteja, antes, situada nas próprias práticas comunicativas cotidianas. Ocorre que ao situar a razão na linguagem, a concepção de Hamann conduz a um certo relativismo lingüístico tanto no que diz respeito à objetividade da experiência quanto no que diz respeito à intersubjetividade da comunicação. Mais uma vez recorrendo à formulação de Cristina Lafont: essa peculiar mudança de paradigma leva, no que se refere à objetividade da experiência (isto é, no eixo linguagem-mundo), à dissolução da unidade transcendental da apercepção em uma diversidade de perspectivas ou aberturas do mundo inerentes às línguas históricas e, por isso, tão contingentes e historicamente cambiantes como estas (...) Em segundo lugar, esse tipo de virada lingüística traz consigo, no que se refere à intersubjetividade da comunicação (isto é, no eixo linguagem-linguagem) e devido igualmente à incomensurabilidade das perspectivas de mundo inerentes às diferentes línguas, a dúvida em relação à possibilidade de alcançar um entendimento sobre o mesmo a partir de diferentes línguas.9 Humboldt, por seu turno, parece dar continuidade a essa espécie de relativismo lingüístico. Cumpre lembrar que uma das teses centrais de suas reflexões é a de que “em cada língua encontra-se uma perspectiva de mundo (Weltansicht) particular”.10 No entanto, cumpre lembrar também que essa tese deve-se menos a uma adesão explícita de Humboldt ao relativismo e mais aos pressupostos centrais de sua concepção de linguagem. Ao considerar as línguas em sua função de abertura do mundo, Humboldt converte-as em uma instância constitutiva de nossa perspectiva sobre ele; mas, sendo tais línguas plurais e historicamente modificáveis, as perspectivas do mundo subjacentes a elas também o serão. Atento a isso, Habermas recorda que Humboldt examina a linguagem sob dois pontos de vista distintos, correspondentes 9. Lafont, C.; Peña, L. “La tradición humboldtiana y el relativismo lingüístico”. In: Dascal, M. (Ed.). Filosofia del languaje II. Pragmática. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 193. 10. Humboldt, W. von. Schriften zur Sprachphilosophie (Werke III). Darmstadt: Wissenchaftliche Buchgesellchaft, 2002, p. 224. 64 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... às combinações de suas três funções principais, a saber: a função cognitiva, que permite formar pensamentos e representar fatos; a função expressiva, que permite exprimir sentimentos e suscitar sensações; e a função comunicativa, que permite comunicar algo, replicar e produzir acordos. De um ponto de vista semântico, assume proeminência o papel de organização de conteúdos lingüísticos compartilhados por uma determinada comunidade; de um ponto de vista pragmático, assume proeminência o papel de médium do entendimento mútuo entre interlocutores. Segundo Habermas: enquanto a análise semântica se concentra na visão de mundo lingüística, para a análise pragmática a conversação está em primeiro plano. Enquanto lá Humboldt trata a função cognitiva da linguagem em conexão com os traços expressivos da mentalidade e da forma de vida de um povo, ele aqui tematiza a mesma função na conexão com discursos em que os participantes podem oferecer respostas e contradizer.11 A conjunção de ambos os pontos de vista sobre a linguagem instaura no empreendimento de Humboldt uma tensão entre o particularismo da abertura lingüística do mundo (ligado ao ponto de vista semântico) e o universalismo de uma prática voltada para o entendimento mútuo (ligado ao ponto de vista pragmático). Segundo Habermas, filósofos como Heidegger, Gadamer e Taylor tendem a dissolver essa tensão, ocupando-se apenas com um de seus pólos. Coloca-se, pois, o desafio de mostrar como tal tensão pode se estabilizar em uma concepção de linguagem como órgão formador do pensamento e, ao mesmo tempo, como médium do entendimento mútuo. Além disso, Habermas procura ressaltar, em sua leitura de Humboldt, um outro aspecto também decisivo na concepção do 11. Habermas, J. “Hermeneutische und analytische Philosophie. Zwei komplämentare Speilarten der linguistischen Wende”. In: _____. Wahrheit und Rechtfertigung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 67 (trad.: Habermas, J. “Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: duas versões complementares da virada lingüística”. In: _____. Verdade e Justificação. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 65). 65 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 autor. Trata-se da compreensão da linguagem não como um sistema acabado, mas como atividade. Nas palavras de Humboldt: “é preciso considerar a linguagem não como um produto morto (todtes Erzeugtes), mas, sobretudo, como uma produção (Erzeugung) (...) Em si mesma, a linguagem não é um produto (Ergon), mas uma atividade (Energeia)”.12 Esses dois aspectos da linguagem, lembra Habermas, foram retomados tanto pelos teóricos quanto pelos filósofos da linguagem. No entanto, isso não se deu sem algum prejuízo. Por um lado, Saussure e Chomsky retomam o par ergon/energeia com as distinções língua/fala e competência lingüística/performance lingüística. Apesar disso, ambos desconsideram a função da linguagem como mediação do entendimento: “nem Saussure nem Chomsky compreendem como Humboldt a conversação como centro da linguagem”.13 Por outro lado, filóso12. Humboldt, W. von. Schriften zur Sprachphilosophie (Werke III), p. 416 e 418. 13. Habermas, J. “Entgegnung”. In: Honneth, A.; Joas, H. (Hgg.). Kommunikatives Handeln. Beiträge zu Jürgen Habermas’ “Theorie des kommunikativen Handelns”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, p. 328. Embora Chomsky procure elaborar uma gramática gerativa, ele pode reconstruir apenas as regras fixas que permitem a geração de enunciados, mas não as regras que operam na produção real da fala e na situação de diálogo, as quais permanecem totalmente indeterminadas. Isso fica patente na leitura que faz de Humboldt: “O relevo dado por Descartes ao aspecto criador do uso da linguagem, como característica essencial e definidora da linguagem humana, encontra sua mais eficaz expressão na tentativa, feita por Humboldt, de criar uma ampla teoria da lingüística geral. A caracterização da linguagem, dada por Humboldt, como energeia (Thätigkeit [atividade]) mais do que como ergon (Werk [ato]), como ‘eine Erzeugung’ (uma produção) mais do que ‘ein todtes Erzeugtes’ (um produto morto) estende e remodela – muitas vezes quase com as mesmas palavras – as formulações típicas da lingüística cartesiana e da filosofia romântica da linguagem e da teoria estética. Para Humboldt, a única definição verdadeira da linguagem é ‘eine genetische’ (uma definição genética): ‘Sie ist nämlich die sich ewig wiederholende Arbeit des Geistes, den articulierten Laut zum Ausdruck des Gedanken fähig zu machen’ (‘Ela é, pois, o trabalho do espírito, que se repete constantemente para tornar possível que o som articulado expresse o pensamento’). Há um fator constante e uniforme subjacente a este ‘Arbeit des Geistes’ (trabalho do espírito): é isto que Humboldt chama a ‘forma’ da linguagem. Na linguagem somente são fixas as leis subjacentes de geração. A extensão e a maneira em 66 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... fos como Charles Taylor – seguindo a trilha aberta por Heidegger – retomam a compreensão da linguagem como atividade apenas no que se refere a sua função de abertura do mundo: “Taylor tende a uma totalização dessa função da linguagem de abertura do mundo. Com isso, ele cai em um perspectivismo epistemológico, que o próprio Humboldt evita”.14 Podemos notar, nessa compreensão da linguagem como atividade, que o aspecto criador da linguagem comparece tanto no ponto de vista semântico quanto no ponto de vista pragmático adotados por Humboldt. E é justamente esse fato que faz de suas reflexões um marco importante não apenas para a lingüística, mas também para a filosofia contemporânea: Humboldt leva a cabo uma mudança de paradigma que afeta não apenas a lingüística, cujo desenvolvimento no século XX revela as conseqüências dessa mudança de maneira bastante clara, mas também a filosofia, para a qual a linguagem (vista como sistema de signos objetificados) nunca teve uma dimensão filosófica. Além disso, a mudança de paradigma levada a cabo por Humboldt ocorre em que o processo gerativo opera na produção real da fala (ou na percepção da fala, que Humboldt considera como um desempenho parcialmente análogo) são totalmente indeterminadas” (Chomsky, N. Lingüística cartesiana: um capítulo da história do pensamento racionalista. Petrópolis; São Paulo: Vozes; Editora da Universidade de São Paulo, 1972, p. 30). 14. Idem, p. 336. Não por acaso, Taylor enfatiza, em sua leitura dessa tradição, exclusivamente a dimensão semântica da linguagem: “Herder desenvolve uma noção bem distinta de expressão [em relação à tradição HobbesLocke-Condillac]. Isso está na lógica de uma teoria constitutiva, tal como acabo de descrevê-la. Essa noção nos diz que a linguagem constitui a dimensão semântica, ou seja, a posse da linguagem nos capacita a nos relacionar com as coisas de novas maneiras, digamos como loci de características, bem como ter novas emoções, metas ou relacionamentos e, mais do que isso, ser responsivos a questões que envolvam valores fortes. Poderíamos dizer: a linguagem transforma nosso mundo, usando esta última palavra num sentido claramente derivado de Heidegger. Falamos não sobre o cosmos lá fora, que nos precedeu e nos é indiferente, mas sobre o mundo dos nossos envolvimentos, incluindo todas as coisas que incorporam em seu significado para nós” (Taylor, C. “Heidegger, linguagem e ecologia”. In: _____. Argumentos filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 122). 67 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 duas dimensões diferentes. Em sua dimensão cognitivo-semântica, essa mudança consiste em encarar a linguagem não como um mero sistema de signos, não como algo objetificável (intramundanamente), mas como algo constitutivo da atividade de pensar, como a própria condição de possibilidade dessa atividade. A linguagem é, então, elevada a um estatuto quase-transcendental, que reivindica contra a subjetividade a autoria das operações constitutivas da visão de mundo do sujeito (...) Em sua dimensão comunicativo-pragmática, a mudança consiste em ver esse caráter constitutivo da linguagem como o resultado de um processo ou atividade: especificamente, a atividade de falar. Nesse sentido, a linguagem se torna a garantia da intersubjetividade da comunicação, a condição de possibilidade do entendimento entre falantes.15 No que se refere à primeira dimensão, a compreensão da linguagem como atividade revela-se no fato de que por meio dela “criam-se” novos “conceitos”, novos “conteúdos” por meio dos quais o mundo se faz acessível. Humboldt, opondo-se a Kant, refere-se a essa atividade como uma síntese: “desde o primeiro elemento, a geração da linguagem é um processo sintético – e isso no sentido estrito da palavra – que cria algo que não existia em nenhuma de suas partes”.16 No que se refere à segunda dimensão, a compreensão da linguagem como atividade revela-se na ideia da unificação através do diálogo. Segundo Habermas, “no processo de comunicação lingüística está em ação uma força capaz de estabelecer a unidade na multiplicidade de uma outra maneira, diferente da via da subsunção da variedade sob uma regra geral”.17 No lugar do “eu penso” kantiano – associado à unidade transcendental da apercepção –, Humboldt coloca a intersubjetividade, representada pelas diferentes perspectivas dos participantes da comunica15. Lafont, C. The linguistic turn in hermeneutic philosophy, p. 17-8. 16. Humboldt, W. von. Schriften zur Sprachphilosophie (Werke III), p. 473. 17. Habermas, J. “Individuierung durch Vergesellschaftung: Zu Georg Herbert Mead Theorie der Subjektivität”. In: _____. Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p. 201 (trad.: Habermas, J. “Individuação pela socialização: sobre a teoria da subjetividade de Georg Herbert Mead”. In: _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 196). 68 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... ção, que buscam alcançar um entendimento entre si sobre algo no mundo. Nas palavras do próprio Humboldt: a individualidade se destroça, mas de uma maneira tão maravilhosa que ela desperta, precisamente através da separação, o sentimento da unidade, aparecendo inclusive como um meio para produzi-la ao menos na ideia (...) Aqui, a linguagem vem a seu socorro de modo realmente maravilhoso, pois une no próprio momento em que individualiza e inclui na cápsula da expressão mais individual a possibilidade do entendimento universal.18 É certo que Humboldt em algumas passagens parece conceder uma primazia à primeira dimensão. Podemos lembrar, a título de exemplo, pelo menos dois momentos em que ele ressalta o nexo entre a “forma interna” da língua e uma determinada imagem de mundo que ela impõe aos povos e nações: na famosa introdução à obra sobre o Kawi, ele escreve: “a língua é, por assim dizer, a manifestação externa do espírito dos povos; sua língua é seu espírito e seu espírito é sua língua”19; no opúsculo sobre as diferenças na estrutura da linguagem humana, ele escreve: “cada língua traça ao redor da nação a que pertence um círculo do qual só é possível sair na medida em que ao mesmo tempo se passa para outro círculo de uma outra língua”.20 Mas é certo também que em outros momentos ele assinala o primado da dimensão comunicativo-pragmática da linguagem, como podemos atestar na seguinte passagem: o diálogo que verdadeiramente engrena uns aos outros, que troca ideias e sensações é, por assim dizer, o centro da linguagem, cuja essência não pode ser pensada senão como grito e eco, fala e resposta, que em suas origens, assim como em suas modificações não pertence a um único, mas a todos, que se situa nas profundezas solitárias do espírito de cada um, mas que apenas se evidencia na vida social”.21 18. 19. 20. 21. Humboldt, W. von. Schriften zur Sprachphilosophie (Werke III), p. 160-1. Idem, p. 414 -5. Idem, p. 224 –5. Idem, p. 81. 69 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 Não se pode, pois, sobrepor uma dimensão à outra. Ao contrário, é preciso examinar como ambas se combinam no mesmo quadro. Assim, é preciso compreender a divisão de trabalho entre a “semântica das imagens lingüísticas do mundo” e a “pragmática formal da conversação”. É preciso compreender que, paralelamente a um certo “particularismo semântico”, coloca-se um universalismo da conversação. Isso porque “os participantes querem se compreender mutuamente e ao mesmo tempo se entender a respeito de alguma coisa, ou seja, alcançar se possível um acordo. E isso também se aplica ao entendimento buscado para além dos limites de diferentes comunidades lingüísticas”.22 A conclusão que Habermas extrai disso é a seguinte: não há como não reconhecer que Humboldt foi responsável por desenhar os contornos de uma “arquitetônica da linguagem que até hoje permaneceu decisiva para uma transformação pragmática da filosofia kantiana”.23 Com essa incursão pela leitura que Habermas faz de Humboldt, talvez possamos compreender um pouco melhor aquelas transformações que Habermas promove na filosofia kantiana. A reformulação da pergunta kantiana a respeito das condições de possibilidade do conhecimento em uma pergunta pelas “condições normativas do entendimento possível” deve-se à substituição do paradigma do sujeito pelo paradigma da linguagem, entendendo esta não apenas em sua dimensão cognitivo-semântica, mas também e, sobretudo, em sua dimensão comunicativo-pragmática. A reformulação do “fato da razão” em um “fato da linguagem” devese a uma recepção da versão hermenêutica da teoria da linguagem – mais especificamente, a uma leitura de Humboldt –, pois explicita que o entendimento diz respeito às três funções principais da linguagem (a função cognitiva, que permite formar pensamentos e representar fatos; a função expressiva, que permite exprimir sen22. Habermas, J. “Hermeneutische und analytische Philosophie. Zwei komplämentare Speilarten der linguistischen Wende”. In: _____. Wahrheit und Rechtfertigung, p. 72 (trad.: Habermas, J. “Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: duas versões complementares da virada lingüística”. In: _____. Verdade e Justificação, p. 73). 23. Idem, p. 76. 70 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... timentos e suscitar sensações; e a função comunicativa, que permite comunicar algo, replicar e produzir acordos) e, nessa medida, diz respeito simultaneamente às condições de verdade, de justeza normativa e de veracidade subjetiva, correspondentes às três principais pretensões de validade associadas aos enunciados que proferimos cotidianamente. Nesse ponto já se pode começar a notar uma outra conseqüência dessa transformação pragmática da filosofia kantiana. Refirimo-nos à maneira de conceituar as questões da diferenciação e da unidade da razão. É certo que elas ocupam boa parte das linhas de Habermas sobre o discurso filosófico da modernidade. Mas é certo também que elas se fazem presentes em suas reflexões sobre a linguagem. Basta, para atestá-lo, a leitura da seguinte declaração: Eu pretendo elaborar o conteúdo normativo da ideia de entendimento implícito na linguagem e nas comunicações. Isso leva a um conceito complexo, que implica não apenas que entendemos o significado de atos de fala, mas também que o entendimento entre participantes da comunicação é produzido no que diz respeito a fatos, normas e também experiências (...) Com isso, mencionamos as três dimensões que o conceito de racionalidade comunicativa contém: a relação do sujeito de conhecimento com um mundo de acontecimentos e fatos; a relação do sujeito prático, na interação com outros sujeitos envolvidos e atuantes, com um mundo de sociabilidade; e, finalmente, a relação do sujeito sofredor e apaixonado, no sentido de Feuerbach, com sua própria natureza interna, com a sua subjetividade e com a subjetividade de outros. Essas são as três dimensões que saltam à vista quando se analisa os processos de comunicações da perspectiva dos participantes.24 A partir dessas palavras, gostaríamos de chamar a atenção para uma ou duas coisas. Como Kant, Habermas toma para si a tarefa de conceituar as diferenciações dos complexos de racionalidade, característica da modernidade cultural. No entanto, diferentemente daquele ele não o faz com base em uma teoria das 24. Habermas, J. “Dialektik der Rationalisierung”. In: _____. Die Neue Unübersichtlichkeit. Kleine Politische Schriften V, p. 185. 71 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 faculdades subjetivas do conhecimento, mas com os meios da teoria da linguagem. Nessa medida, ele interpreta a diferenciação dos âmbitos teórico, prático e estético não como a diferenciação dos domínios sobre os quais legislam o entendimento (Verstand), a razão (Vernunft) e a faculdade de julgar (Urteilskraft), mas como a diferenciação de pretensões de validade (pretensão de verdade, pretensão de justeza normativa e pretensão de veracidade) que os falantes associam a seus enunciados. Além disso, tal diferenciação não é compreendida a partir das possíveis relações de representação que se estabelecem entre sujeito e objeto, mas a partir das relações entre sujeitos, que, por meio de seus enunciados, referemse a um mundo de fatos (sobre o qual eles podem fazer afirmações verdadeiras ou falsas), a um mundo de normas compartilhadas (em relação ao qual eles podem proferir enunciados adequados ou justos) e a um mundo de experiências subjetivas (em relação ao qual eles podem se expressar sinceramente ou não, de maneira autêntica ou não). Por outro lado, Habermas não descuida da questão da unidade da razão. Nas “Réplicas a objeções”, de 1980, ele escreve: as pretensões de validade da verdade proposicional, da justeza normativa e da veracidade subjetiva ou autenticidade, vinculadas na prática comunicativa cotidiana, são aspectos co-originários, que apenas na modernidade foram isolados uns dos outros, a ponto de as tradições culturais só poderem ser elaboradas sob cada um desses aspectos e os problemas tradicionais só poderem ser classificados como questões de verdade, de justiça e de gosto. A diferenciação da razão nesses complexos de racionalidade, aos quais as três críticas da razão de Kant se referem, só poderia ser anulada ao preço do próprio racionalismo ocidental. Nada mais distante de mim do que evocar a unidade substancial da razão, do que me tornar o advogado de uma tal regressão.25 Dado o fato da diferenciação da razão, Habermas procura pensar sua unidade recorrendo não ao modelo metafísico da uni25. Habermas, J. “Replik auf Einwände”. In: _____. Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns, p. 499. 72 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... dade substancial, mas à forma moderna de uma unidade procedimental. Expliquemos. Em sua discussão sobre a “racionalidade procedimental”, como um dos motivos do pensamento pós-metafísico, Habermas recorda que na tradição metafísica a razão é concebida como uma faculdade dependente dos conteúdos materiais do mundo, como uma faculdade que organiza tais conteúdos e que pode ser reconhecida neles. Assim, “a razão é razão do todo e de suas partes”.26 Na modernidade, porém, em que se quebra essa unidade substancial, a razão se divide em racionalidades adequadas ao tratamento das questões específicas a cada um de seus âmbitos. Nas ciências experimentais, problemas empíricos passam a ser tratados no interior das comunidades de pesquisadores. Na moral e no direito, problemas práticos passam a ser tratados no contexto da comunidade de cidadãos de um Estado democrático e no contexto do sistema de direitos, independentemente, portanto, de qualquer tábua de mandamentos instituídos pela religião ou pelos valores tradicionais de uma dada comunidade. Na estética, a produção e a avaliação das obras de arte passam a não mais dependerem de regras rígidas e fixas instauradas desde a antigüidade, mas sim de procedimentos que dizem respeito unicamente à experiência estética do artista e do público. Assim, “a racionalidade (Rationalität) reduz-se a seu aspecto formal, na medida em que dissolve a racionalidade (Vernunftigkeit) dos conteúdos na validade dos resultados (...) a racionalidade procedimental não pode mais garantir uma unidade antecipada na pluralidade dos fenômenos”.27 Diante desse quadro, não apenas a questão da diferenciação da razão, mas também a questão de sua unidade deve ser pensada em termos procedimentais. É esse um dos aspectos que Habermas ressalta em sua caracterização da filosofia kantiana, como podemos ler na seguinte passagem: 26. Habermas, J. “Motive nachmetaphysischen Denkens”. In: _____. Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p. 42 (trad.: Habermas, J. “Motivos do pensamento pós-metafísico”. In: _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 44). 27. Idem, p. 42-3 (trad.: Idem, p. 44). 73 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 Kant coloca no lugar do conceito substancial de razão da metafísica o conceito de uma razão que se dividiu em seus elementos e cuja unidade de agora em diante só tem caráter formal. Com efeito, ele separa do conhecimento teórico a faculdade da razão e a faculdade de julgar e assenta cada uma delas em fundamentos próprios.28 E é justamente esse aspecto que ele retoma em sua intervenção no debate contemporâneo a respeito da crítica da racionalidade: “pode ser fora de moda, mas acredito que, como Kant, também nos colocamos hoje diante do problema de esclarecer onde o conhecimento objetivo, o discernimento moral e a faculdade de julgar estética encontram sua unidade procedimental”.29 No entanto, não obstante a retomada da questão kantiana, Habermas procura abordá-la com o aparato de sua teoria da linguagem. A possibilidade para tal transformação é dada, mais uma vez, pela recepção da virada lingüística. Disso resulta que Habermas coloque a questão não como a unidade procedimental das faculdades do conhecimento, mas como a “unidade procedimental das fundamentações discursivas”. O que subjaz a essa transformação e às outras mencionadas acima é uma reformulação profunda na noção mesma de racionalidade. Para Habermas, a racionalidade designa não um conjunto de faculdades de subjetivas, mas “uma disposição dos sujeitos capazes de falar e agir para adquirir e aplicar um saber falível”.30 Se no quadro da filosofia da consciência – no qual a filosofia kantiana se insere –, “a racionalidade é medida pela maneira como o sujeito solitário se orienta pelos conteúdos de suas representações e de seus enunciados”; na teoria habermasiana – herdeira da virada lingüística –, “a racionalidade encontra sua medida na capa28. Habermas, J. Moralbewußtsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1983, p. 10 (trad.: Habermas, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 18). Sobre as questões da diferenciação e da unidade da razão em Kant, cf. Terra, R. Passagens. Estudos sobre a filosofia da Kant. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. 29. Habermas, J. “Untiefen der Rationalitätskritik”. In: _____. Die Neue Unübersichtlichkeit. Kleine Politische Schriften V, p. 136. 30. Habermas, J. Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 366 (trad : Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade, p. 437). 74 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... cidade (Fähigkeit) de os participantes responsáveis da interação orientarem-se pelas pretensões de validade que estão assentadas no reconhecimento intersubjetivo”.31 Desenham-se com isso os contornos de um conceito plural e procedimental de racionalidade. “Procedimental”, pois seus critérios são dados pelos procedimentos discursivos de desempenho das pretensões de validade associadas aos enunciados. “Plural”, pois engloba as pretensões de verdade proposicional, de justeza normativa, de veracidade subjetiva e adequação estética, correspondentes aos âmbitos teórico, prático e estético. Cumpre notar que a caracterização da racionalidade como plural impõe a tarefa de revelar a maneira como suas diferentes dimensões, expressas pelas diferentes pretensões de validade e pelas respectivas formas argumentativas, se relacionam entre si. Como chama atenção Martin Seel, Habermas tem diante de si a tarefa de elaborar uma teoria das diferentes formas de racionalidade, cuja diferenciação é constitutiva para a existência de uma razão ‘comunicativa’. Esse fio condutor de crítica da racionalidade coloca para as análises de Habermas uma dupla tarefa. Elas têm de destacar o sentido intrínseco das racionalidades teórico-instrumental, moral-prática e estético-expressiva e têm também de elucidar seu nexo na ação orientada para o entendimento.32 Seel tem dúvidas quanto à possibilidade de sucesso na realização dessa tarefa. Ele argumenta que a unidade da razão não deve ser identificada à “unidade procedimental das fundamentações discursivas”, à unidade das formas de argumentação, como faz Habermas. Trata-se, antes, de um entrosamento das formas de argumentação e “esse entrosamento tem a forma de dependências completamente materiais (ligadas à pressuposição recíproca do conteúdo), sem que se possa evidentemente determinar e repre31. Idem, ibidem (trad.: Idem, ibidem). 32. Seel, M. “Die zwei Bedeutungen ‘kommunikativer’ Rationalität. Bemerkungen zu Habermas’ Kritik der pluralen Vernunft”. In: Honneth, A.; Joas, H. (Hg.). Kommunikatives Handeln. Beiträge zu Jürgen Habermas’ “Theorie des kommunikativen Handelns”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, p. 53. 75 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 sentar esse material por meio de uma teoria filosófica unificada”.33 Habermas aceita em parte as críticas de Seel. De um lado, promove a transformação do conceito kantiano de “faculdade de julgar” em uma “faculdade de julgar assentada na própria ação comunicativa”, uma “faculdade de julgar associada à atitude performativa dos que agem comunicativamente”.34 Além disso, ele diz que, embora a passagem (Übergang) de uma forma a outra seja regulada pela lógica da argumentação, ela depende muitas vezes “dos desfiladeiros no curso da argumentação” ou de “problemas que vêm a nosso encontro”. Mas, por outro lado, ele continua a manter a ideia de que as pretensões de validade formam um sistema. Seja como for, Habermas parece fazer jus à ideia, expressa de maneira lapidar por Albrecht Wellmer, de que os discursos estéticos, prático-morais e ‘factuais’ não estão separados uns dos outros por um abismo, mas estão relacionados de múltiplas maneiras – mesmo que a validade estética, moral ou veritativa representem diferentes categorias de validade, que não podem ser reduzidas a uma categoria de validade. Trata-se aqui (a única coisa de que se poderia tratar) não de uma ‘reconciliação dos jogos de linguagem’, mas de uma “permeabilidade” recíproca 33. Idem, p. 64. Para uma discussão mais detalhada das críticas de Seel a Habermas e da réplica deste, cf. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular; Esfera Pública, 2008, p. 217-28. 34. Habermas, J. “Entgegnung”. In: Honneth, A.; Joas, H. (Hgg.). Kommunikatives Handeln. Beiträge zu Jürgen Habermas’ “Theorie des kommunikativen Handelns”, 1986, p. 343. Habermas esclarece o conceito de “atitude performativa” nos seguintes termos: “a atitude performativa corresponde à orientação do falante para o entendimento e exclui a orientação para o sucesso. Na atitude performativa, o falante pode adotar uma postura objetivadora em relação ao mundo dos estados de coisas existentes, uma postura conforme à norma ou desviante à norma em relação ao mundo social, ou uma postura expressiva em relação a algo de seu próprio mundo subjetivo; a atitude performativa assegura a meta superior de alcançar o entendimento por regular a passagem de uma a outra e garantir a consistência de significado na inter-transferência das atitudes objetivadora, conforme à norma e expressiva” (Habermas, J. “Reply to Skjei”. Inquiry, vol 28, nº 1, 1985, p. 108-9). 76 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... dos discursos: a superação da razão una em um jogo conjunto de racionalidades plurais.35 A fim de compreender em toda sua amplitude o conceito de racionalidade de Habermas, é preciso compreender não apenas a maneira como ele radicaliza a perspectiva kantiana36, mas é preciso compreender também a maneira como ele retoma e radicaliza a ideia da “transformação pragmática da filosofia kantiana” introduzida por Humboldt. Bibliografia ALMEIDA, G. A. de. “Kant e o facto da razão”. In: MacDOWELL, J. A. (org.). Saber filosófico, história e transcendência. São Paulo: Ed. Loyola, 2002. CHOMSKY, N. Lingüística cartesiana: um capítulo da história do pensamento racionalista. Petrópolis; São Paulo: Vozes; Editora da Universidade de São Paulo, 1972. HABERMAS, J. Moralbewußtsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983. _____. “Replik auf Einwände”. In: _____. Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984. _____. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. _____. “Dialektik der Rationalisierung”. In: _____. Die Neue Unübersichtlichkeit. Kleine Politische Schriften V. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. _____. “Reply to Skjei”. Inquiry, vol 28, nº 1, 1985. _____. “Untiefen der Rationalitätskritik”. In: _____. Die Neue Unübersichtlichkeit. Kleine Politische Schriften V. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. 35. Wellmer, A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p. 108-9. 36. Sobre a radicalização da perspectiva kantiana levada a cabo por Habermas, que, como procuramos mostrar, representa apenas metade do problema, cf. Terra, R. Passagens. Estudos sobre a filosofia da Kant, p. 22. 77 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010 _____. “Entgegnung”. In: HONNETH, A.; JOAS, H. 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McCARTHY, Thomas. Ideals and illusions: on reconstruction and deconstruction in contemporary Critical Theory. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993. 78 Antonio Ianni Segatto Transformação pragmática da filosofia kantiana... REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular; Esfera Pública, 2008. SEEL, M. “Die zwei Bedeutungen ‘kommunikativer’ Rationalität. Bemerkungen zu Habermas’ Kritik der pluralen Vernunft”. In: HONNETH, A.; JOAS, H. (Hg.). Kommunikatives Handeln. Beiträge zu Jürgen Habermas’ “Theorie des kommunikativen Handelns”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. TAYLOR, C. “Heidegger, linguagem e ecologia”. In: _____. Argumentos filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2000. TERRA, Ricardo. Passagens. Estudos sobre a filosofia da Kant. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. WELLMER, A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. 79 Para a história conceitual da discriminação da mulher Marisa Lopes Professora do Departamento de Filosofia da UFSCar Resumo: A discriminação da mulher, longe de apresentar-se como um tema exclusivamente sociológico, encontra sua fundamentação conceitual na História da Filosofia, especialmente na filosofia de Aristóteles. Pretende-se mostrar aqui como o filósofo, a partir de seus pares conceituais metafísicos, potência/ato e matéria/forma, deriva a incompletude, a impotência, a mutilição e, por fim, a incapacidade ética e política da mulher. Abstract: Far from presenting itself as an exclusively sociological issue, women’s discrimination has its conceptual ground in the history of philosophy, specially in Aristotle’s philosophy. It is our aim here to show how the philosopher derives incompleteness, impotency, muti lation, and, finally, women’s ethical and political incapacity from his metaphysical conceptual pairs potency/act, and matter/form. Palavras-chave: Discriminação, Mulher, Aristóteles. Keywords: Discrimination, Woman, Aristote. “Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar. E o que em retribuição lhe fez Cortez? Uma cortesia...”. 1 1. Pimentel, S. “Quando gritar não é suficiente” (entrevista). In: O Estado de S. Paulo. Caderno Aliás, 30/08/2009, p. J4. 81 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010 É difícil acreditar que a vítima tenha se sentido honrada com semelhante cortesia. Nem ela nem as muitas mulheres que se tornam duplamente vítimas ao serem expostas a afrontosas decisões judiciais sobre crimes de estupro. Silvia Pimentel, em conjunto com Valéria Pandjiarjian e Ana Lúcia Schritzmeyer, coletou e publicou, em 1997, um livro com 50 decisões de tribunais de Justiça de todo o Brasil com lamentável conteúdo. Apesar dos avanços obtidos com a Lei 12.015, de 07/08/2009, que suprimiu o atentado violento ao pudor e o incluiu no artigo que trata do estupro, qualificado, agora, como crime contra a dignidade sexual, as autoras mantêm a convicção de que “o crime de estupro era [por que não, é?] o único no mundo em que a vítima é acusada e considerada culpada da violência praticada contra ela”.2 O recente caso Geyse, estudante da Uniban, confirma o diagnóstico: agindo por meio do terror, a turba pseudo-universitária brada contra a estudante palavras que soariam bem aos ouvidos dos velhos inquisidores. O século XXI ainda não se desvencilhou de uma ratio masculinizante e estruturante de uma cosmologia e de uma antropologia que assegura a forma feminina como imperfeição, seguindo-se a consequência violenta de sua minoridade político-social e sua constante qualidade de ente adoecido, histérico... Nada há, substancialmente, que separe a ‘recta ratio’ do fanatismo praticado por machos, responsáveis pela purificação mental e corpórea do gênero humano.3 Fanatismo capaz de produzir estultices como as que escreveu Moebius (1853-1907), médico e psiquiatra alemão. O livro de Moebius, Inferioridade da mulher: a deficiência mental fisiológica da mulher4, que passo a expor, parte da constatação de que as fa 2. Idem. 3. Romano, R. “A mulher e a desrazão ocidental”. In: Folha de São Paulo, Folhetim, 03/04/1987, p. B-7. 4. Moebius, P. J. Inferioridad de la mujer (la deficiencia mental fisiológica de la mujer). Versão de A. Conca. Buenos Aires: Editorial Tor, s/d. 82 Marisa Lopes Para a história conceitual da discriminação da mulher culdades intelectuais do homem e da mulher são muito diferentes. Diferença que pode ser relativa e, neste caso, as mulheres teriam maior capacidade para uma coisa e os homens para outra, ou absoluta, as mulheres são em si mesmas deficientes em relação aos homens. A “sabedoria” proverbial – cabelos longos, cérebro curto – fornece a “verdade” dos tempos imemoriais. Contudo, o mais valioso para os médicos seria compreender claramente o estado intelectual da mulher e o valor de sua deficiência intelectual para que pusessem em ação todo o seu poder para combater, em favor da humanidade, as tendências contranaturais5 dos/das feministas. Trata-se então de apresentar as “provas científicas” que fundamentam suas, no plural, deficiências. Em primeiro lugar, existe uma deficiência anatômica na mulher, um retardo, diz o autor, no desenvolvimento da circunvolução do lóbulo frontal e temporal, semelhante, aliás, à encontrada nos homens pouco desenvolvidos, como os negros. A necessidade de cuidar dos filhos é a causa da diferença entre os sexos. A eterna sabedoria não pôs ao lado do homem outro homem provido de útero [tudo indica que o autor o lamente], mas outorgou à mulher tudo de que necessita para o melhor desempenho de seus nobilíssimos deveres, embora não lhe tenha outorgado a energia mental do homem. Se se quer que ela cumpra bem seus deveres maternais, é necessário que não possua um cérebro masculino, caso contrário veríamos atrofiarem os órgãos maternos. A mulher deve ser, antes de tudo, mãe amorosa e abnegada, como exige a natureza. Quando ela não cumpre seu dever em relação à espécie e quer viver sua vida intelectual 6 está como que ferida por uma maldição, cujo castigo recairá também sobre os homens e sua posteridade. A energia e as aspirações por novos horizontes, a fantasia e a ânsia por conhecimentos novos serviriam apenas para fazer a mulher inquieta e transtornar seus deveres maternais. A mulher deve compreender que ela é assim por vontade da natureza e abster-se de rivalizar com o homem. Sirvam de exemplo as exal 5. Meu destaque. 6. Destaque do autor. 83 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010 tadas modern-style, que parem mal e são péssimas mães. Ademais, quanto mais se propaga a civilização, menos se procria. Do ponto de vista do comportamento, seu instinto a torna parecida com as bestas. Característico disso é a sua falta de opinião, a faculdade para saber diferenciar por si mesma o bem e o mal, no que depende, para isso, de uma influência extrínseca. As mulheres são rígidas conservadoras e odeiam a novidade, a não ser nos casos em que o novo lhes traga vantagem pessoal ou quando essa novidade agrada a um amante. A lei, portanto, deve considerar a deficiência mental fisiológica da mulher e não julgá-la como a um homem. A sua incapacidade para dominar as tempestades afetivas e a falta de sentido da equidade provam que é uma grande injustiça julgar ambos os sexos igualmente. Sua moral é a moral do sentimento, ou seja, uma inconsciente retidão. Sua coragem deve servir para defender sua prole, pois exercer esse valor em outras ocasiões só a molesta. Justiça para elas é um conceito vazio de sentido. Sem escrúpulos, pode-se afirmar que a natureza deu preferência ao homem e tem demonstrado querer formar dele um tipo mais perfeito pelo fato de fazê-lo se desenvolver mais tarde do que a mulher, predileção que é evidente na medida em que permite ao homem conservar as faculdades adquiridas até o fim de sua vida. Com frequência, e com boas intenções, os homens que sugeriram às mulheres a mania da emancipação põem em prática o ardil de fazê-las crer que unicamente lhes faltou o exercício mental porque, como as negras da África, têm sido escravas do macho de músculos robustos. Sua ampla escravidão seria a causa de sua mente ter atrofiado. Aqueles que insistem, inclusive mais do que Moebius, segundo ele mesmo, na debilidade intelectual e moral do sexo feminino porque crêem que essa debilidade está relacionada a hábitos, portanto, modificáveis mediante a educação, igualmente crêem poder impor suas leis sobre a natureza – um erro, evidentemente. Àqueles que o consideram um “obscurantista, cujo menor pecado é o da ignorância”7, ele afirma que defende os interesses 7. Moebius, P. J. Inferioridad de la mujer (la deficiencia mental fisiológica de la mujer), p. 90. 84 Marisa Lopes Para a história conceitual da discriminação da mulher femininos contra seus adversários e luta contra o falso intelectualismo e o falso liberalismo que prega a conquista de uma nivelação estéril. Os verdadeiros adversários das mulheres são os feministas. A inferioridade do cérebro feminino é uma condição útil e indispensável. Por isso, [...] devemos esperar toda a saúde unicamente da sabedoria do homem, pelo menos até o ponto que a intervenção humana pode alcançar; isto é, que o homem deverá dizer clara e terminantemente à mulher que não quer saber nada de liberdade incondicional. E se o homem o faz seriamente, terminará de uma vez por todas o movimento feminista.8 Sabemos que, não tanto tempo depois, ideias como as de Moebius se tornaram dominantes na Alemanha nazista, aquela do triplo K: Kirche, Küche, Kinder. Deficiente, inferior, incapaz, enferma: todos esses qualificativos associados à mulher não são o produto de um delírio individual, mas de uma ratio masculinizante9 estruturante de uma antropologia e de uma cultura que concebe a mulher como um ser inacabado e imperfeito, naturalmente inferior ao homem e incapaz para a vida social e política. Ainda que tal concepção não tenha sido a única na história do pensamento ocidental, e a despeito de feministas como Eurípedes, Sócrates, Aristófanes, Platão e Xenofonte, serão as pseudo-teorias de Aristóteles sobre a natureza da mulher e do escravo que prevalecerão e fornecerão o referencial teórico para essa tendência misógina.10 Encontramos as explicações sobre a incapacidade da mulher da Metafísica à Política. No livro inaugural da Metafísica, Aristóteles, ao revisar as teorias dos pensadores ou filósofos que o 8. Idem, p. 158. 9. Para usar os termos que Roberto Romano empresta de Brian Easlea. 10. Cf. Wright, F.A. Feminism in greek literature from Homer to Aristote. Lon dres: George Routledge & Sons, 1923. 85 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010 precederam sobre as primeiras causas e princípios de tudo o que existe, isto é, as causas ou princípios pelos quais as coisas são e são cognoscíveis, lembra que alguns pitagóricos concebiam os contrários como os princípios dos seres e derivavam todos os fenômenos das seguintes oposições fundamentais: limite-ilimitado ímpar-par um-múltiplo direito-esquerdo macho-fêmea repouso-movimento reto-curvo luz-trevas bom-mau quadrado-retângulo O limitado é preferível ao ilimitado, pois se tudo fosse ilimitado não haveria conhecimento possível. O um (unidade) é o princípio de todas as coisas. O ser é luz, o não-ser, trevas. Os pares de opostos indicam um melhor e um pior: a mulher pertence ao que é enantíon, adjetivo que indica a ideia de hostilidade, adversidade, antagonismo e, por extensão, oposição, contrariedade. Pitágoras, neste aspecto, não inova. O mito das raças, narrado por Hesíodo no poema Os trabalhos e os dias, conta a sucessão de diversas raças de homens que viveram e morreram: a de ouro, de prata, de bronze e de ferro. Hesíodo acrescenta uma quinta, a dos heróis, que não tem correspondência metálica, intercalada entre a generação do bronze e a do ferro. A última raça, à qual o poeta pertence, e se lamenta por isso, representa um mundo ambíguo, definido pela coexistência de contrários. O bem tem como contrapartida o mal, o homem implica a mulher, o nascimento, a morte, a juventude, a velhice, a abundância, a escassez, a felicidade, a infelicidade. Segundo Vernant, a passagem de uma idade a outra não indicaria exatamente uma decadência progressiva, pois não há uma temporalidade linear e contínua, “mas fases que se alternam segundo relações de oposição e complementariedade. O tempo não se desenrola segundo uma sucessão cronológica, mas a partir de relações dialéticas de um sistema de antinomias”.11 Contraposições e relações antinômicas que operam especialmente 11. Vernant, J. P. Mythe et pensée chez les Grecs. Etudes de psychologie historique. I. Paris: François Maspero, 1971, p. 21. 86 Marisa Lopes Para a história conceitual da discriminação da mulher na idade de ferro, idade sem pouca afinidade com as narrativas heróicas. Prometeu é condenado a conviver com Pandora, responsável por todas as misérias dos homens de ferro: “para a raça de ferro, a terra e a mulher são ao mesmo tempo princípios de fecundidade e potências de destruição”.12 Tal como as abelhas, que amontoam no seu ventre o esforço alheio, assim um mal igual fez aos homens mortais Zeus tonítruo: as mulheres, parelhas de obras ásperas, e em vez de um bem deu oposto mal. Quem fugindo a núpcias e a obrigações com mulheres não quer casar-se, atinge a velhice funesta sem quem o segure: não de víveres carente vive, mas ao morrer dividem-lhe as posses parentes longes. A quem vem o destino de núpcias e cabe cuidadosa esposa concorde consigo, para este desde cedo ao bem contrapesa o mal constante. E quem acolhe uma de raça perversa vive com uma aflição sem fim nas entranhas, no ânimo, no coração, e incurável é o mal.13 A figura feminima aparece como um castigo que, entre outros, Zeus inflige a Prometeu pelo roubo do fogo dos deuses. Desde então, o homem, condenado por sua hybris, sua desmesura, deve viver num mundo no qual reina a ambiguidade, a desordem, a injustiça, a miséria, o trabalho para viver. Com a passagem da idade do ouro, em que reinava a diké, a justiça, à idade de ferro, domínio da hybris sobre a diké, Hesíodo mostra, segundo Vernant, a arquitetura que preside a organização da sociedade humana e do mundo divino, segundo funções, valores e uma certa lógica que orienta essa arquitetura e regra o jogo de oposições interno a cada idade e entre elas: a tensão entre diké e hybris.14 12. Idem, p. 33. 13. Hesíodo. Teogonia. Estudo e trad. de JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995, 3ª ed., vv. 599-612. A ênfase é minha. 14. Vernant, op. cit., p. 34-8. 87 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010 Parece, portanto, que na própria formação do pensamento do homem ocidental e na modelagem das peças que compõem a “arquitetura do espírito”15 – os modos de expressão simbólica, tempo, espaço, causalidade, memória, imaginação, sensibilidade, organização da vontade, dos atos, da pessoa –, uma certa projeção no mundo como um todo de valores culturais tão arraigados que parecem “naturais”, “objetivos”, dirige e orienta a identificação entre o negativo e a fêmea, o positivo e o macho. Mesmo que, a crer em Aristóteles, a diferença entre macho e fêmea não seja essencial, mas acidental, assim como é acidental para a pessoa ser branca ou preta. Ser fêmea ou ser macho é uma propriedade por si do gênero animal, mas isso não os faz diferirem, nem fêmea nem macho, seja pelo gênero seja pela espécie, que é ser animal racional. Cavalo e homem são espécies distintas do gênero animal, mas não mulher e homem; sua diferença antes concerne a uma modificação na matéria (elemento corpóreo), não na forma (essência).16 Contrariedades relativas à forma produzem espécies distintas, como os animais terrestres ou alados, ao passo que contrariedades relativas à matéria produzem diferença na coisa entendida como matéria, ou seja, no composto concreto.17 Sócrates, por exemplo, é um ser concreto composto de forma (essência) e matéria (carne, nervos, ossos, sangue). Ser branco para Sócrates é uma modificação na matéria que não produz nenhuma diferença em sua forma, sua essência. Do mesmo modo, “macho e fêmea são afecções (pathé) próprias do animal, e não se referem à substância, mas só à matéria e ao corpo. É por isso que do mesmo esperma, de acordo com a modificação (pathós) que venha a sofrer, deriva o macho ou a fêmea”.18 O termo matéria (hylé), sabemos, nomeia uma das causas originárias das coisas. Ela é o material primeiro de que consiste ou 15. 16. 17. 18. 88 Idem, p. 6. Aristóteles. Metafísica, I, 9, 1058a 30-31. Doravante Met. Met., X, 9, 1058b 1-10. Met., X, 9, 1058b 21-23. Neste contexto, é lícito tomar o termo “substância” (ousía) como sinônimo de essência. Marisa Lopes Para a história conceitual da discriminação da mulher é feito qualquer coisa natural ou artificial: por exemplo, a estátua provém do bronze, a taça, da prata, os corpos, do fogo, da terra, da água, do ar. Por matéria deve-se compreender, no entanto, o que, em si mesmo, não é um ser particular, mas tem a potência para sê-lo ou, em outras palavras, aquilo que, embora não seja em ato um ser determinado, o é em potência: por exemplo, a madeira, que, não sendo algo determinado, tem a potência ou capacidade para ser uma mesa ou uma cadeira.19 Em função de sua natureza indeterminada, a matéria, segundo a Física, é não-ser: a madeira, embora ainda não o seja, pode ser algo determinado, por exemplo, esta mesa. Na medida em que pode vir-a-ser algo determinado, a matéria está perto do ser, tende para o ser e o deseja. A matéria deseja ou tende para a forma (ser), como uma fêmea tende para o macho e o feio para o bonito.20 A forma, ao contrário, não deseja a si mesma porque nada lhe falta.21 A natureza deseja realizar plenamente e bem aquilo em que ela inere como princípio de movimento e repouso (geração e perecimento). Realizar plenamente significa atualizar, tanto quanto possível, a essência de um ser, a sua forma. Assim, a matéria, um não-ser, deseja ou tende para a forma porque, desse modo, tende para o seu bem, que é ser. A matéria, em certo sentido incompleta, é atraída pela forma, pela plenitude de ser; analogamente, a fêmea e o feio, por suas incompletudes, são atraídos pelo macho e pelo belo. A matéria, como causa, é como a mãe: causa coeficiente do que é engendrado. É por isso que, afirma Aristóteles, quando se fala do universo, atribui-se à terra uma natureza feminina e o nome de mãe, e ao céu e ao sol, o nome de gerador e de pai. É claro que a fonte de pesquisa de Aristóteles não é Hesíodo, no entanto, não deixa de ser curioso resgatar a ancestralidade da associação entre fêmea-generatriz e macho-gerador. 19. Met., VIII, 1, 1042a 26-28. 20. Enquanto atributos acidentais da matéria. 21. Aristóteles. Física, I, 9, 192a 19-25. Doravante Fis. 89 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010 Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra desejando amor sobrepairou e estendeu-se a tudo. Da tocaia o filho [Cronos] alcançou com a mão esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice longa e dentada. E do pai o pênis ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo para trás. Mas nada inerte escapou da mão: quantos salpicos respingaram sanguíneos a todos recebeu-os a Terra; com o girar do ano gerou as Erínias duras, os grandes Gigantes rútilos nas armas, com longas lanças nas mãos, e Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita.22 A Terra e a fêmea recebem a semente, o sêmen, o princípio causador23, a partir do qual algo é gerado. Embora a fêmea figure como causa, ela é o elemento passivo, enquanto o macho é o elemento ativo, pois é dele que parte o princípio do movimento, o princípio da mudança, da mesma maneira que do artesão parte o princípio de movimento que produz uma mesa a partir da madeira. E assim como a madeira não engendra a mesa, a fêmea não engendra nada a partir de si mesma: é necessário um princípio que inicie o movimento e o determine. A natureza se serve do esperma como o artesão se serve do instrumento, isto é, ela se serve de algo que é causa da mudança ou da passagem de um estado a outro. Desse modo, tudo o que é gerado é gerado pela ação de algo em ato (forma) sobre algo que é potencialmente capaz de receber as determinações do que atualmente é: a madeira recebe, por meio do instrumento, a configuração da mesa que, por sua vez, já está presente em ato na alma do artesão. O macho fornece a forma e o princípio do movimento, a fêmea, o corpo e a matéria. Em Metafísica, VIII, 4, 1044a 34 encontramos a mesma ideia: “Qual a causa material do homem? Não é o mênstruo? E qual a causa motora? Não é o esperma? E qual é a causa formal? A essência do homem. E qual a causa final? O 22. Hesíodo, Teogonia, vv. 176-187. Ênfase minha. 23. Não surpreende que o sinônimo de semente, além de “esperma”, seja “causa”. 90 Marisa Lopes Para a história conceitual da discriminação da mulher fim (télos) do homem”. O macho, enquanto macho, é o motor e o agente, causa do ser produzido; a fêmea, enquanto fêmea, paciente, portadora da matéria a partir da qual algo determinado vem à existência pela ação de um princípio ativo que é causa do ser produzido. Nesse sentido, o princípio masculino é portador da essência (ser humano), do gênero (animal) e das características individuais.24 A separação entre macho e fêmea representa a separação entre o melhor e o menos bom, e eles só se juntam para gerar, função comum dos dois.25 Nenhum animal é fêmea ou macho por todo o corpo, mas se distingue por sua função (uma potência e uma ação) e por órgãos apropriados para realizá-la. Desse modo, fêmea é o ser que engendra em si mesmo, macho é o ser que engendra em outro. Para realizar sua função, a fêmea é dotada de útero, o macho, de testículos e pênis.26 Do ponto de vista de sua fisiologia, o líquido seminal é um resíduo do alimento em seu último grau de elaboração, isto é, é o produto que vem do sangue por cocção, que, por sua vez, é o produto da cocção final do alimento.27 Por sua própria natureza, o líquido seminal (produto final da cocção do sangue) estaria presente em todas as partes do corpo, no entanto, por ser um resíduo como a urina ou as fezes, não permanece espalhado, mas “guardado” no útero, nas partes sexuais e na mama.28 A fêmea, no entanto, é impotente para operar a cocção do sangue transformando-o em esperma em função da frieza de sua natureza. Nela a cocção é menos intensa e disso resulta a produção de uma grande quantidade de líquido sanguinolento (o mênstruo), resíduo análogo ao líquido seminal. Aliás, é pela qualidade do sangue (sangue mais frio) que Aristóteles explica o fato de a fêmea ser mais frágil. O fluxo menstrual explica o fato de as fêmeas não 24. 25. 26. 27. 28. Aristóteles. Geração dos animais, IV, III, 767b 24 e ss. Doravante GA. GA, II, I, 732a 4-7. GA, IV, I, 766a 2-5. GA, I, 18, 726a 25-27. GA, I, 20, 728a 21 ss. 91 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010 terem frequentemente hemorróidas, não sangrar pelo nariz, terem a pele mais fina e mais lisa, serem inferiores fisicamente em relação aos machos e mais pálidas.29 Aristóteles contesta a opinião segundo a qual o esperma seria o produto da soma do resíduo do macho mais o da fêmea: o resíduo da fêmea é um análogo do líquido espermático, mas não é esperma, portanto não causa em sentido forte. Uma prova disso é que a fêmea em geral concebe sem ter tido prazer durante o coito. O prazer que acompanha a cópula é devido à emissão do esperma e à retenção da respiração, pela qual se acumula força. A fêmea contribui na geração fornecendo a matéria, o mênstruo, que serve de receptáculo ao esperma que, este sim, é princípio motor e que contém a forma.30 Para o filósofo a geração ocorre da seguinte maneira: o fluxo menstrual é esperma que, não sendo em estado puro, precisa ser elaborado. Há geração quando o mênstruo se mistura ao esperma. O que é em potência é produzido por algo que seja em ato, por isso é necessário que a forma seja em alguma coisa.31 O esperma é resíduo animado de movimento idêntico ao existente no útero. Quando penetra o mênstruo, imprime movimento, movimento que a semente da fêmea já possui, porém em potência. A fêmea é como um macho mutilado32, pois o que lhe falta é o princípio da alma, que é trazido sempre pelo macho. As sementes são portadoras de alma, mas na fêmea esta alma está em potência (a alma nutritiva, responsável pelo crescimento), e é ativada pelo princípio motor externo: o esperma masculino ativa a alma. No esperma há o que torna as sementes fecundas, o calor, que não é o fogo, mas o pneuma (ar quente e água), cuja natureza é análoga ao elemento astral (éter) armazenado no esperma. A matéria do líquido seminal é o veículo do princípio psíquico (alma), sendo que o intelecto é a única porção que é independente da matéria.33 29. 30. 31. 32. Idem, ibidem. GA, IV, 1, 765b 11-15. GA, II, 1, 733b 23-30. GA, II, 3, 737a 27-28. Sem alma, e depois houve quem lembrasse de dizer que “sem pênis”. 33. GA, II, 1, 735a 5 ss. 92 Marisa Lopes Para a história conceitual da discriminação da mulher O princípio material originário do qual é feito ou do qual deriva algo natural é privado de forma e incapaz de mudar em virtude unicamente da potência que lhe é própria.34 Por isso, quando o princípio (macho) não domina, quando é incapaz de operar a cocção por falta de calor e não impõe sua própria forma, é necessário que ele se transforme em seu contrário, pois a destruição de uma coisa é a transformação dela em seu contrário. Ora, o contrário do macho é a fêmea, e isso explica porque uns sejam macho, outros, fêmea.35 O desenvolvimento da fêmea, após o nascimento, é mais rápido que o do macho: ela chega mais rápido à puberdade, à idade madura, à velhice, mas isso se deve ao fato de as fêmeas serem por natureza mais fracas e mais frias, razão pela qual é preciso considerar sua natureza como uma imperfeição (anapería) natural.36 Todo esse aparato metafísico, físico e biológico conduz à descrença na capacidade natural da mulher para a virtude e para o comando. Na Política, Aristóteles afirma que “a relação entre homem e mulher consiste no fato de que, por natureza, um é superior, a outra, inferior, um governante, outra governada”, consequentemente “a relação entre homem e mulher é de permanente desigualdade”.37 Dada a desigualdade, a mulher e o escravo possuem a virtude que lhes convêm enquanto mulher e escravo, ou seja, a virtude que é apropriada ao cumprimento de suas funções como mulher e como escravo. 34. Ver também Fís., II, 1, 193a 9 ss. 35. GA, IV, 1, 766a 18-21. O que se aproximaria do tratado hipocrático Do regime. Segundo Aristóteles, são duas razões para que nasçam fêmeas ao invés de machos: 1) necessidade natural para salvaguardar o gênero animal em que há distinção de sexos em vista da preservação da espécie; 2) quando o mênstruo não sofreu uma cocção suficiente a semente (o princípio motor) não se impõe, fazendo nascer uma fêmea (cf. GA, IV, III, 767b 15-23). Que se faça justiça: Aristóteles também admite que o macho, por sua própria incapacidade, consequência de sua juventude, velhice ou alguma outra causa aparentada, não se imponha à matéria no ato da geração (Idem, 767b 10-13). 36. GA, IV, 6, 775a 11-16. 37. Aristóteles. Política, I, 5, 1254b 12-13. Doravante Pol. 93 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010 A assimetria social acompanha a assimetria entre corpo e alma e à que concerne às faculdades da alma: a alma governa o corpo, a faculdade racional governa a faculdade apetitiva. Quem se deixa governar pelo corpo é degradado, pois obedece à parte irracional do composto corpo e alma. Quem não pode ou não usa a faculdade racional para escolher e decidir a respeito de suas ações e dirigir suas paixões está destinado a obedecer. Por isso o homem livre mandar no escravo, da mesma forma que o marido na mulher e o adulto na criança. Não se trata, como se vê, de negar racionalidade ao escravo, à mulher ou à criança, antes é a impossibilidade de orientar suas ações por um princípio interno de reflexão, deliberação e decisão que os tornam governados. Declarar que o escravo não tem faculdade deliberativa (tò bouleutikón), que a mulher tem-na, mas carece da faculdade de decisão (tò ákyron) e que a criança – se for menino – tem a capacidade de decisão, mas ainda não desenvolvida (atelés)38 não significa senão entender suas ações como heterônomas. No vocabulário aristotélico a expressão “o que está em nosso poder” ou “o que depende de nós” (to eph’ hêmin) traduz a ação plenamente livre, isto é, a ação cujo princípio está em poder do agente iniciar ou não iniciar: Com efeito, quando depende de nós (eph’ hêmin) o agir, também depende de nós o não agir, quando depende de nós dizer não, também depende de nós dizer sim; por conseqüência, se depende de nós agir quando a ação é boa, também dependerá de nós não agir quando é ação é vil; e se não agir quando a abstenção é boa depende de nós, agir quando a ação é vil dependerá também de nós. Mas se depende de nós cumprir as ações boas e as ações vis, e paralelamente, de não as cumprir, e isso é ser, já dissemos, bons ou maus, resulta que está igualmente em nosso poder ser virtuoso ou vicioso.39 A passagem fornece uma condição bastante relevante acerca da responsabilidade moral do agente: as ações mediante as quais realizamos fins desejados são voluntárias, ou seja, está em nosso 38. Pol., I, 13, 1260a 12-14. 39. Aristóteles. Ética Nicomaquéia, III, 7, 1113b 7-15. 94 Marisa Lopes Para a história conceitual da discriminação da mulher poder realizá-las ou não, quando o homem, que é princípio de movimento, princípio de ação, detém o poder de agir ou de não agir quanto ao que é nobre ou vil, por isso está igualmente em seu poder tanto a virtude quanto o vício. Ora, nem a mulher nem o escravo são entendidos como plenamente autores de suas ações, pois não podem deliberar ou decidir em toda e qualquer instância (pública e privada) acerca do que é bom para eles, seja do ponto de vista dos fins, seja do ponto de vista das próprias ações por intermédio das quais realizariam os fins que desejassem realizar. Novamente a chaga social contamina a reflexão e a verdade. Aristóteles declara que seu apreço pela verdade é maior que sua amizade por Platão, razão pela qual é preciso criticar a Teoria das Ideias. No entanto, o que sobressai de opiniões, aliás, contrárias às de Platão sobre a mulher, tais como “a liberdade excessiva das mulheres é prejudicial ao fim da constituição e à felicidade da cidade”, ou “os defeitos na condição das mulheres parecem não só causar uma certa falta de pudor na própria constituição [Esparta], como ainda contribuir para o amor ao dinheiro”, ou ainda “[Esparta] foi negligente no que diz respeito às mulheres dado que estas vivem sem freio, entregues a toda a espécie de excessos e de indolência”,40 não parece ir muito além de convicções que refletem uma certa visão cavernosa do mundo. Mas em relação ao nosso tema, não foi Platão quem ganhou o jogo. É a Aristóteles que devemos muito da linguagem e do universo simbólico que codificaram a história da discriminação da mulher. Que, como se vê, longe de restringir-se a um tema sociológico, sempre permeou a História da Filosofia. Se, como afirma Feuerbach, “Deus – tal como é, necessária e essencialmente –, é um objeto do homem, então na essência desse objeto exprime-se apenas a própria essência do homem”,41 de igual modo, a figura feminina, o avatar-diabo de saia, decaído, 40. Pol., II, 9, 1269b 12 a 1270a 11. 41. Feuerbach, L. Princípios da Filosofia do Futuro. Lisboa: Edições 70, 1988, 7, p. 42. 95 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010 imperfeito, mutilado, não é menos a construção de um duplo que, por contraposição, ofereceu ao homem a possibilidade de elaborar uma certa identidade: aquela da qual Moebius e o advogado de Fernando Cortez, citado no início, tanto se orgulham. Bibliografia ARISTOTELES. Metafisica. Edición trilingüe [texto grego de Ross e latino de Moerbeke]. Traducción de V. García Yebra. Madrid: Gredos, 1970. 2 vols. ARISTOTE. Physique. Texte établi et traduit par H. Carteron. Paris: Les Belles Lettres, 2 vols., 1926 e 1931. _____. De la Génération des animaux. Texte établi et traduit par P. Louis. Paris: Les Belles Lettres, 1961. _____. The Nicomachean Ethic. With an English Translation by H. Rackham. The Loeb Classical Library. London: Heinemann/ Cambridge: Harvard University Press, [1926] 1934. ARISTÓTELES. Política. Trad. e notas de A. C. Amaral e C. C. Gomes. Edição bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998. FEUERBACH, L. Princípios da Filosofia do Futuro. Lisboa: Edições 70, 1988. HESÍODO. Teogonia. Estudo e trad. de JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras, 3ª ed.,1995. MOEBIUS, P. J. Inferioridad de la mujer (la deficiencia mental fisiológica de la mujer). Versão de A. Conca. Buenos Aires: Editorial Tor, s/d. PIMENTEL, S. “Quando gritar não é suficiente” (entrevista). In: O Estado de São Paulo. Caderno Aliás, 30/08/2009. ROMANO, R. “A mulher e a desrazão ocidental”. In: Folha de São Paulo, Folhetim, 03/04/1987. VERNANT, J. P. Mythe et pensée chez les Grecs. Etudes de psychologie historique. I. Paris: François Maspero, 1971. WRIGHT, F. A. Feminism in greek literature from Homer to Aristote. Londres: George Routledge & Sons, 1923. 96 Introdução ao Direito Natural Feyerabend, de Immanuel Kant Apresentação Fernando Costa Mattos Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente pesquisa de pós-doutoramento, com bolsa da FAPESP, junto ao núcleo Direito e Democracia do CEBRAP O Direito Natural Feyerabend (Naturrecht Feyerabend) é um texto constituído pelas anotações de Gottfried Feyerabend, aluno de Kant, durante um curso de direito natural ministrado pelo filósofo em 1784, mas que só seria publicado, como apêndice ao volume XXVII da edição da Academia, no século XX. Tal como era regra nas universidades alemãs da época, o curso se baseava no manual de Gottfried Achenwall, conhecido jurista alemão do século XVIII que, também conforme a praxe de então (a ser quebrada por Kant), escrevia seus textos em latim. Embora Achenwall não seja mencionado pelo nome no texto do Naturrecht Feyerabend – Kant refere-se a ele como “nosso autor”, ou simplesmente “o autor” –, as divisões temáticas são feitas a partir das divisões do seu livro, e as suas afirmações servem de ponto de partida para as liçoes de Kant. O que não quer dizer que Kant concorde com as posições de Achenwall: embora a introdução não permita notar as diferenças, ao longo do curso ele se oporá com frequência ao “nosso autor”, boa parte das vezes com certa dose de ironia. Ironia que constitui, ao lado do tom oral, um dos pontos interessantes do texto: em frases curtas e diretas, cuja diferença em relação aos textos escritos pelo próprio filósofo é patente, o Direito Natural nos mostra o professor Kant pensando em voz alta e desenvolvendo, no diálogo com Achenwall, as suas próprias noções morais e jurídicas. Como o leitor poderá perceber, comparecem nesta introdução temas conhecidos da moral kantiana, tais como a necessidade de pensar o 97 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010 ser humano como um fim em si mesmo, a liberdade da vontade humana por oposição ao mecanismo da natureza, a distinção entre os diferentes tipos de imperativos, com o categórico vinculado à moral, e a coerção como elemento constitutivo do direito. Nesse sentido, também se podem, com relação à introdução aqui publicada, estabelecer paralelos tanto com a Fundamentação da metafísica dos costumes, publicada no mesmo ano de 1784, quanto com a “Introdução geral à Metafísica dos Costumes”, de 1797, já que as considerações anotadas por Feyerabend nas primeiras aulas do curso são de caráter mais geral e, começando pela moral, caminham no sentido de diferenciar o direito justamente pelo elemento coercitivo que lhe é próprio. Talvez seja interessante realizar uma comparação mais detida entre tais textos, mas isto é algo que deixamos a cargo do leitor, confiantes de que a presente tradução seja um estímulo para isso. Aliás, trata-se de uma tradução realizada no contexto do projeto de tradução dos póstumos kantianos que, iniciado com o pequeno conjunto de Reflexionen trazidas à luz no último número destes Cadernos, intenta levar a cabo a tradução de uma quantidade mais extensa de reflexões, lições e cursos sobre moral, política e direito que nos pareçam interessantes no sentido de, ampliando o acesso do leitor lusófono ao universo dos póstumos kantianos, enriquecer a compreensão que temos hoje desses âmbitos da obra. Como dito na apresentação àquele conjunto de Reflexionen, temos mantido um proveitoso diálogo com Frederick Rauscher, que está desenvolvendo um projeto similar junto à editora Cambridge, e a sua tradução provisória do Naturrecht Feyerabend constituiu um importante ponto de apoio para a presente tradução. Outra referência importante, a que só tivemos acesso mais recentemente, foi a tradução desta mesma introdução para o italiano por Gianluca Sadun Bordoni, publicada em 2007 na Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, n. 84, e muito rica em comentários e notas explicativas. Como também dito em nossa apresentação anterior, a publicação de partes do nosso trabalho nos Cadernos de filosofia alemã tem por objetivo fomentar a discussão de questões de tradução e, se possível, suscitar comentários e críticas, da parte de nossos leitores, que nos permitam aprimorar esse trabalho ao longo do tempo. 98 Immanuel Kant Direito Natural Feyerabend Direito Natural Feyerabend (Curso de Direito Natural (1784), segundo as anotações do aluno Gottfried Feyerabend) Immanuel Kant Introdução1 / xxvii,13192 / A natureza inteira está submetida à vontade do ser humano até onde o poder deste alcance, excetuados outros seres humanos e racionais. Consideradas pela razão, as coisas na natureza só podem ser vistas como meios para fins, mas apenas o ser humano pode ser visto como um fim mesmo. Não posso pensar nenhum valor, relativamente a outras coisas, a não ser que as considere como meios para outros fins. Por exemplo: a lua tem valor para nós na medida em que ilumina a terra, engendra as marés etc. A existência das coisas irracionais não tem nenhum valor se não há alguém que possa delas servir-se, i.e. se nenhum ser racional as utiliza como meios. Também os animais não têm em si qualquer valor, já que não são conscientes de sua existência – o ser humano é, portanto, o fim da criação; ele pode também, contudo, ser utilizado como meio por um outro ser racional, mas não é nunca mero meio, e sim ao mesmo tempo fim. Por exemplo: se o pedreiro me serve como meio para a construção de uma casa, eu lhe sirvo ao mesmo tempo como meio para conseguir dinheiro. Pope, em seu Ensaio 1. Como dito na apresentação, esta tradução foi feita no contexto do Grupo de Traduções Kantianas, ligado ao Grupo de Filosofia Alemã, da USP. Agradeço a todos pelas sugestões, e à Monique Hulshof pela minuciosa e enriquecedora revisão. Agradeço ainda a Frederick Rauscher, da Universidade de Michigan, por nos ter passado a sua tradução provisória do Naturrecht Feyerabend para o inglês, tradução esta que foi de grande utilidade e à qual faço menção em outras notas. (N. do T.) 2. A numeração indicada entre barras corresponde à paginação da edição da Academia: volume xxvii, pp. 1319-29. (N. do T.) 99 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010 sobre o homem, fala sobre o ganso: “o ser humano também me serve, pois ele me dá a comida”. No mundo como sistema de fins tem de haver afinal um fim, e este fim é o ser racional. Se não houvesse um fim, também os meios seriam vãos e não teriam qualquer valor. – O ser humano é fim e, por isso, seria contraditório que ele devesse ser um mero meio. – Se faço um contrato com um empregado, então ele também tem de ser fim como eu, e não mero meio. Ele também tem de querer. – A vontade humana é limitada, portanto, à condição do consentimento geral da vontade de outrem. – Se deve haver um sistema de fins, então o fim e a vontade de um ser racional têm de colocar-se de acordo com a do outro. A vontade do ser humano não é limitada por nada na natureza a não ser pelas vontades dos demais seres humanos.3 – Pois todo ser humano é ele mesmo fim e, por isso, não pode ser mero meio. Eu não posso tirar algo da terra de alguém para com isso adubar a minha própria; pois neste caso o outro seria um mero meio. Essa limitação se baseia nas condições do consentimento mais geral possível da vontade de outrem. Não há nada, além do ser humano, a que se possa atribuir tanto respeito quanto ao direito humano. – O ser humano é, assim, um fim em si mesmo, e só pode ter, portanto, um valor interno, i.e. uma dignidade, em cujo lugar não pode ser posto nenhum equivalente. Outras coisas têm um valor externo, i.e. um preço contra o qual alguma coisa que sirva para o mesmo fim possa ser posta como equivalente. O valor interno do ser humano baseia-se em sua liberdade, no fato de que ele tem uma vontade própria. Já que ele deve ser o fim último; então sua vontade não tem de depender de mais nada. – Os animais têm / xxvii,1320 / uma vontade, mas não a sua própria vontade, e sim a vontade da natureza. A liberdade do ser humano é a condição sob a qual o ser humano pode ser ele mesmo um fim. As outras coisas não têm qualquer vontade, mas devem, isto sim, guiar-se 3. Em alemão, essa frase tem uma oração que não parece fazer sentido: “Der Wille des Menschen wird durch die ganze Natur nicht eingeschränkt, obwohl das Vermögen, ausgenommen durch Willen andrer Menschen”. Optamos por omiti-la do texto, tal como fez Rauscher em sua tradução provisória. Como o texto é constituído por anotações manuscritas, é compreensível que haja passagens incompletas ou sem sentido. 100 Immanuel Kant Direito Natural Feyerabend pela vontade alheia, deixar-se utilizar como meios. Se o ser humano deve, portanto, ser um fim; então ele tem de ter uma vontade própria, pois não pode deixar-se utilizar como meio. O direito é a limitação da liberdade pela qual ela pode coexistir com toda outra liberdade segundo uma regra universal. Suponhamos que alguém gosta de um lugar no qual um outro se encontra, e quer expulsá-lo daí. Eu posso sentar-me onde quiser, e ele onde quiser também. Se ele, porém, está sentado; então eu não posso sentar-me ao mesmo tempo: por isso tem de haver uma regra universal sob a qual a liberdade de ambos possa coexistir. Eu prometo algo a ele, portanto, e ele é de fato meio, mas também fim. Não é necessária a limitação da liberdade? E pode a liberdade limitar-se de outro modo que não por si mesma segundo regras universais, de modo a poder existir consigo mesma? Se os seres humanos não fossem livres, sua vontade seria regulada por leis universais. Se cada um, porém, fosse livre sem leis, então nada mais terrível poderia ser pensado. Pois cada um faria com o outro o que quisesse, e assim ninguém seria livre. Os mais selvagens animais seriam menos temidos do que um homem sem lei. Daí que Robinson Crusoé se tenha assustado tanto ao ver, depois de alguns anos, as pegadas de um homem em sua ilha deserta, passando a viver sem sossego e a atravessar as noites em claro. – Daí também que os marinheiros não hesitem em atirar e matar imediatamente os selvagens de uma ilha desconhecida, pois não sabem o que esperar deles. – Veja-se também a morte na Nova Zelândia do cavaleiro Marion, que viveu um mês em plena amizade com os selvagens, sem nada lhes fazer de mal, mas acabou devorado por eles, juntamente com 22 marinheiros, apenas porque desejavam comê-lo. – Pois o animal se guia por seu instinto, que tem regras. Mas de um tal ser humano eu não sei minimamente o que esperar. Sparman, em sua Viagem ao Cabo da Boa Esperança, conta que os leões não caçam a sua presa, mas a seguem sorrateiramente e, quando acreditam estar perto o suficiente, dão um salto súbito e, se mesmo assim sua vítima lhes escapa, voltam atrás, como se quisessem ver onde erraram, e então se esgueiram. Os seres humanos o sabem, e podem orientar-se por isso. Assim, um hotentote seguia certa vez para casa, e um leão o seguia sorrateiramente há 101 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010 algum tempo. Ele sabia, pois, que não poderia chegar em casa antes do anoitecer, e que o leão o devoraria num piscar de olhos. Ele tirou então as suas roupas e colocou-as numa vara, de modo a parecer que estava ali parado. Ele próprio, porém, cavou um buraco no morro e nele se escondeu. O leão se aproximou furtivamente, deu um salto repentino e, como a vara cedesse rapidamente, precipitou-se com ela morro abaixo e se esgueirou. Quando está com muita fome, porém, o leão também caça a presa. / xxvii,1321 / A liberdade tem, portanto, de ser limitada, mas não pode ser pelas leis da natureza; pois então o ser humano não seria livre; logo, ele tem de limitar-se a si mesmo. O direito se baseia, portanto, na limitação da liberdade. Ele é mais fácil de explicar do que o dever. – No direito a felicidade não é levada em conta; pois cada um pode tentar alcançá-la como quiser. Ainda não se conseguiu determinar, a partir de princípios, o lugar do jure naturae [direito natural] na filosofia prática, nem tampouco mostrar a fronteira entre ele e a moral. Por isso as diferentes proposições de ambas as ciências acabam por misturarse. – Para desfazer a confusão, portanto, deve-se tentar explicitar os conceitos do direito. Queremos tentar fazer de maneira mais metódica, agora, aquilo que na última aula fizemos de maneira tumultuada. Que tenha de haver alguma coisa como um fim em si mesmo, e que nem todas as coisas possam existir meramente como meios, é tão necessário num sistema de fins quanto um Ens a se [ser em si] na série de causas eficientes. Uma coisa que é em si mesma um fim é um Bonum a se [bem em si]. O que pode ser considerado meramente como meio tem valor como meio apenas se é utilizado como tal. Para isso, então, tem de existir um ser que seja fim em si mesmo. Uma coisa na natureza é um meio para outra; isso continua indefinidamente, e é necessário, ao final, pensar uma coisa que seja ela própria um fim, pois do contrário a série não teria um término. 102 Immanuel Kant Direito Natural Feyerabend Na série das causas eficientes há um ens ab alio [ser dependente de outro], mas ao fim tenho de chegar a um ens a se [ser em si]. No querer, o fim é a razão pela qual existe o meio. Uma coisa é um meio para a outra, e por isso deve haver uma coisa, ao final, que não seja mais meio, mas um fim em si mesmo. Como pode, porém, existir um ser que seja em si mesmo um fim, e nunca meio, é tão incompreensível quanto o modo pelo qual de existir um ser necessário na série das causas. Ainda assim, temos de admitir ambos devido à necessidade de nossa razão de ter tudo completo. Reside na própria natureza da razão humana que ela nunca possa discernir algo que não seja condicionado, nem algo sem fundamento, e no caso do ens [ser] e bonum a se [bem em si] não há nenhum fundamento além dela. Eu digo que o homem existe para ser feliz. Por que, no entanto, tem valor o ser feliz? Ele só tem um valor condicionado, a saber, porque a existência do homem tem um valor. Por que, então, tem valor a existência? Porque Deus a quis. Pois em si mesma ela não tem qualquer valor. Mas eu posso também perguntar: por que tem valor a existência de um Deus? O ser humano é um fim em si mesmo, e nunca mero meio; isso é contra a sua natureza. Se alguém confiou uma quantia a mim e quer tê-la de volta, e eu não devolvo e digo que posso utilizá-la melhor do que ele com vistas a melhorar o mundo, então estou utilizando o seu dinheiro e a ele mesmo como meios. Se ele deve ser um fim; então sua vontade tem, como eu, de ter um fim. Se apenas seres racionais podem ser um fim em si mesmo, eles não podem sê-lo porque têm razão, mas sim porque têm liberdade. A razão é tão somente um meio. – O ser humano poderia produzir através da razão, sem / xxvii,1322 / liberdade e segundo as leis universais da natureza, aquilo que o animal consegue por meio do instinto. – Sem a razão um ser não pode ser fim em si mesmo; pois ele não pode ser consciente de sua existência, não pode refletir sobre isso. Mas a razão não constitui ainda uma causa: se o homem é um fim em si mesmo, ele tem uma dignidade que não pode ser substituída por nenhum equivalente. Não é a razão, porém, que nos dá dignidade. Pois nós vemos que a natureza realiza com os animais, por meio do instinto, aquilo que a razão só escolhe depois de muitos rodeios. A natureza poderia, portanto, 103 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010 ter organizado nossa razão, segundo leis da natureza, de tal modo que o ser humano pudesse aprender a ler por si mesmo, inventar diversas artes, e tudo isso segundo determinadas regras. Neste caso, porém, nós não seríamos melhores do que os animais. Mas a liberdade, a liberdade apenas, faz com que sejamos um fim em si mesmo. Aqui temos a faculdade de agir segundo nossa própria vontade. Se a nossa razão fosse regulada por leis universais, minha vontade não seria minha própria, mas a vontade da natureza. – Se as ações do ser humano repousassem no mecanismo da natureza, o fundamento delas não estaria nele mesmo, mas fora dele. – Eu tenho de pressupor a liberdade do ser se ele deve ser um fim perante si mesmo. Um tal ser tem de ter liberdade da vontade. Como posso compreendê-la não sei; trata-se de uma hipótese necessária, contudo, se devo pensar os seres racionais como fins em si mesmos. Se ele não for livre, então ele está nas mãos de um outro, é sempre o fim de um outro, portanto mero meio. A liberdade não é apenas, portanto, a mais elevada condição, mas também a condição suficiente. Um ser que age livremente tem de ter razão; pois do contrário eu seria apenas afetado pelos sentidos, seria por eles regido. Sob qual condição pode um ser livre ser fim em si mesmo? Quando a liberdade for ela mesma uma lei. Ele tem de ser considerado sempre como fim, jamais como meio. As leis são ou leis da natureza, ou leis da liberdade. Se deve encontrar-se sob leis, a liberdade tem de dar leis a si mesma. Se ela extraísse as leis da natureza, ela não seria livre. – Como pode a liberdade ser ela mesma uma lei? Sem leis não pode ser pensada nenhuma causa e, portanto, nenhuma vontade, pois só existe causa quando algo dela se segue segundo uma regra constante. Se a liberdade estiver submetida a uma lei da natureza, então ela não é liberdade. Ela tem, portanto, de ser ela mesma lei. Parece difícil compreender isso, e todos os professores de direito natural erraram quanto a este ponto, o qual nunca sequer descobriram. Todas as leis da vontade são práticas e expressam uma necessidade que é ou objetiva, ou subjetiva. São, portanto, leis objetivas e subjetivas da vontade. As primeiras são regras de uma vontade em si boa, de como esta deveria proceder, e as outras são regras segundo as quais uma dada vontade efetivamente procede. – As regras subjetivas da 104 Immanuel Kant Direito Natural Feyerabend vontade são muito diferentes das objetivas. O ser humano sabe que não deve comer aquilo que lhe é nocivo. Isto é uma regra objetiva. Se ele, no entanto, deixa-se levar pela sensibilidade e come, ele está agindo segundo regras subjetivas da vontade. / xxvii,1323 / Se a vontade de um ser é boa em si mesma; então as leis objetivas de sua vontade não se diferenciam das subjetivas. – A vontade do ser humano não é do tipo em que os fundamentos subjetivos do querer concordam com os objetivos. Por isso a regra objetiva do querer, aplicada a uma vontade cujas regras subjetivas não concordam com as objetivas, é denominada imperativo. Para seres cuja vontade já é em si boa não vale nenhuma regra como imperativo. Uma lei é um imperativo quando, por meio da ideia de uma vontade em si boa, necessita uma vontade que não é em si boa pressupondo uma vontade que não o seria de bom grado e que, portanto, teria de ser necessitada, tornada necessária. Tratase aqui da necessitação em que o contingente tem de ser tornado necessário. O ser humano pode escolher o bem e o mal e, portanto, a vontade boa, no seu caso, é uma vontade contingente. No caso de Deus, a sua vontade não é contingente; por isso também não há, para ele, uma lei imperativa voltada a necessitar a sua vontade. Pois isto seria supérfluo. A necessitação de uma ação em si contingente por meio de fundamentos objetivos é uma necessitação (Necessitatio) prática que se diferencia da necessidade (Necessität) prática. Também há leis em Deus, mas elas têm necessidade (Notwendigkeit) prática. – Uma necessitação prática é imperativa, é um comando (Gebot). Se a vontade é em si mesma boa, não se pode comandar-lhe de modo algum. Por isso não há qualquer comando em Deus. Em Deus, a necessidade prática objetiva é também necessidade prática subjetiva. Coerção é a necessitação para ações indesejadas. Para isso tem de haver um móbil como contraposição. As leis práticas, portanto, também podem ser coerção, mesmo que o ser humano faça algo a contragosto; ele tem mesmo de fazê-lo. “Eu devo fazer isso” significa que uma ação necessária seria boa se praticada por mim. Disso não se segue ainda que eu o farei: pois eu tenho também razões subjetivas contrárias. Mas eu me represento aquilo como necessário. Os comandos servem, portanto, para uma vontade imperfeita. As leis práticas, enquan105 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010 to fundamentos que tornam necessária a ação, são denominadas imperativos. Não se encontra nenhuma virtude no ser humano para a qual não se possa encontrar um grau de tentação capaz de comprometê-la. Daí que o pedido “não nos deixe cair em tentação” seja um pensamento glorioso. Nós temos 3 imperativos: os técnicos, os pragmáticos e os morais; regras da habilidade, da prudência e da sabedoria. Imperativos que comandam algo sob a condição de um querer possível, como simples meio para um fim meramente possível e agradável, são imperativos da habilidade. São saberes práticos. Por exemplo: você deve fazer um corte transversal sobre uma linha. Isso não é um imperativo para todos, mas apenas sob a condição de que se queira atingir um mero fim possível (a divisão de uma linha em duas partes iguais). Ele é bom, portanto, enquanto meio para um mero fim possível. São imperativos da técnica, da habilidade. Nós aprendemos primeiro a habilidade e os meios para fins, sem saber ou supor que precisaremos dos fins. Por isso os pais não perguntam muito se o seu filho está moralmente educado, mas se aprendeu muito. A natureza forneceu o impulso para conservar os homens. Pois não sei se / xxvii,1324 / não chegarei ao momento em que precisarei fazer uso disso. Os imperativos da habilidade são meramente condicionados e comandam sob a condição de um fim apenas contingente e possível. 2) Os imperativos da prudência são aqueles que prescrevem os meios para o fim universal a que se remetem, no ser humano, todos os fundamentos subjetivos do querer, i.e. a felicidade de que carecem todas as criaturas. Aqui os imperativos comandam sob a condição de um fim efetivo. 3) O imperativo da sabedoria comanda a ação como o fim mesmo. A regra “não mentir” pode ser a habilidade e o meio para enganar a outrem. Ela pode ser prudência, pois posso atingir todos os meus propósitos por meio dela. Eu serei tido por honesto, confiável, bem reputado etc. Mas também posso compreender essa regra como sabedoria. Neste caso, não a considero como meio para meu fim. – Pode acontecer comigo o que for, bom ou ruim, isso não me importa. Ela segue sendo uma lei. Mesmo que eu não consiga executá-la, ela permanece venerável para mim. – Consideramos esse bem incondicionado muito mais elevado para nós do que tudo o que pudéssemos atingir por meio da ação ao utilizá-la como mero 106 Immanuel Kant Direito Natural Feyerabend meio. – A boa ação tem muito mais valor em si do que o bem alcançado pelo seu praticante; por exemplo, que o amassem por isso etc. – Não são as boas consequências que determinam o valor. A virtude tem em si uma dignidade que independe até mesmo de ela poder ser praticada; as boas consequências têm valores que podem ser substituídos por um equivalente. Todos os imperativos são condicionados ou incondicionados, e os condicionados são ou problemáticos, imperativos da habilidade, ou assertóricos, imperativos da prudência. O imperativo incondicionado da sabedoria é apodítico, todos os imperativos são, portanto, hipotéticos ou categóricos. Deve-se falar a verdade: isto é inteiramente incondicionado. Como é possível um tal imperativo categórico? Imperativos categóricos comandam sem condições empíricas. Eles podem perfeitamente ter condições, mas condições a priori, e então a própria condição é categórica. Todos os fins que se queiram remetem, em última instância, à felicidade. Esta é a soma do alcance de todos os fins. A felicidade é, no entanto, uma condição empírica: pois não posso saber se algo contribuirá para minha felicidade, nem como serei feliz; mas tenho antes, isto sim, de fazer a experiência. – Os imperativos da prudência são pragmáticos. As leis são denominadas sanções pragmáticas que visam o maior bem comum. A história pragmática é a história que nos torna prudentes. É pragmático tudo aquilo que serve à promoção da felicidade. Os imperativos categóricos se diferenciam dos morais. Os imperativos pragmáticos estão no fundamento dos imperativos da habilidade, pois eu só aprendo algo com estes por acreditar que esse algo poderá contribuir para a minha felicidade se eu puder depois pensar o que ele seja. A felicidade não é, portanto, um princípio moral. Eu não posso fornecer a priori regras da felicidade? Não. Eu posso certamente conceber a felicidade que está ligada a uma coisa, mas não conceber a priori em que consiste tal felicidade. Pois o agradável não é um conceito, mas sim / xxvii,1325 / a sensação de como sou afetado pela coisa. Por isso não posso ter qualquer regra a priori da felicidade, já que não conheço nenhum caso in concreto [concretamente]. O imperativo pragmático repousa, portanto, em condições meramente empíricas. Shaftesbury diz que a felicidade não daria à moral qualquer valor. Para, pois, dar valor à moralidade, 107 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010 teríamos de pressupor que o ser humano tem na ação uma satisfação e uma insatisfação imediatas. A isso ele chamava sentimento moral. As ações não teriam nenhum valor se apenas sinto prazer nas suas consequências, pois neste caso elas teriam valor apenas como meio; como também Hutcheson diz. Desse modo, porém, o imperativo moral não é categórico, pois se pressupõe que só tem valor, nas suas ações morais, o ser com quem esse sentimento é partilhado. Pois um tal sentimento não pode ser exibido a priori, mas apenas a partir da experiência. O que a experiência nos ensina é contingente: nós não poderíamos discernir a priori a necessidade desse sentimento. O valor das ações morais estaria apenas naquele que tem um sentimento moral, e dependeria do ser supremo nos dar um tal sentimento, de modo que as ações morais não seriam em si mesmas boas ou más. Existe sem dúvida um tal sentimento moral nos seres humanos, mas ele não precede o conhecimento das regras morais nem as torna possíveis, mas antes se segue delas. Se o sentimento moral dos seres humanos fosse a razão pela qual as ações podem ser reconhecidas ou como boas ou como más, então esses sentimentos poderiam apresentar-se em diferentes graus. E como o sentimento moral não é mais forte do que os demais sentimentos, nem isso poderia ser provado, acontece o mesmo que com os sentimentos físicos, podendo o ser humano escolher, dentre os sentimentos, aquele que lhe parece mais satisfatório. E isso independe da origem do sentimento. Tudo nos estimula. Os sentimentos são distintos apenas segundo a intensidade, e iguais segundo a espécie. As leis morais comandam, porém, de tal maneira que nenhum instinto ou sentimento prevaleça. Então o sentimento moral teria de ser o mais intenso, mas este não é o caso. Seria um tolo o ser humano que preferisse seguir um sentimento menor em detrimento de um maior. Se o sentimento moral fosse o maior, todos seriam virtuosos. Se a virtude me agradasse acima de tudo quando a represento a priori, eu desejaria ter um sentimento que me conduzisse a ela com a maior força; o agradável repousa sobre a aprovação da doutrina pela qual, se a virtude estivesse para mim acima de todos os prazeres, eu gostaria de ser sempre virtuoso. As leis morais são sempre categóricas e têm obrigatoriedade, i.e. 108 Immanuel Kant Direito Natural Feyerabend necessitação moral a uma ação. A ação a que sou necessitado pelas leis morais é o dever. Uma lei moral vem antes. Se a vontade é boa em si mesma, a lei moral não precisa de obrigatoriedade. Se ela não o é, tem de ser necessitada. A moral não pode originar-se da inclinação, isto é sabido pelo entendimento comum. Todos os seres humanos têm inclinação à vida. Se alguém fica doente, busca todas as ajudas possíveis: ele o faz por inclinação. Se alguém, no entanto, é infeliz em sua vida e fica doente, mas / xxvii,1326 / ainda assim cuida de sua saúde, então ele certamente não o faz por inclinação, mas por dever. Neste último caso há um conteúdo moral. Se um homem se casa com uma bela mulher, ele a amará por inclinação. Se ele ainda a ama, porém, depois que o tempo a deixou enrugada, isto é algo que ele faz por dever. Uma ação moral não tem valor quando se origina da inclinação, mas apenas quando se origina do dever. Uma ação pode ser conforme ao dever, mas não ter acontecido pelo dever. Nós temos de praticar as ações morais sem um mínimo de móbil, apenas por dever e respeito pela lei moral. A lei tem de determinar por si mesma a vontade. Se acontecem por dever, as ações têm então, e somente então, um valor moral. Apenas a conformidade universal a leis pode obrigar-me. Se cada qual não mantivesse suas promessas, e isto fosse uma regra universal, esta não poderia valer como lei universal, pois ninguém prometeria nada sabendo que não iria cumprir e que os outros também o saberiam. Obrigatoriedade é a necessitação moral da ação, i.e. a dependência de uma vontade em si boa relativamente ao princípio da autonomia, ou as leis práticas objetivamente necessárias. Dever é a necessidade objetiva da ação a partir da obrigatoriedade. Respeito é a estima por um valor que limite todas as inclinações. Nós respeitamos alguém quando o estimamos tanto que limitamos nosso amor próprio etc. Nós o estimamos mais do que a nós mesmos. As ações não devem ocorrer com base na necessidade das inclinações. Se uma ação ocorre por medo, ela também não é dever. O valor tem de repousar, portanto, no próprio dever. Todas as leis podem necessitar a vontade ou por meio de sua conformidade a leis, ou por meio dos móbiles a ela vinculados, ou ainda por meio da coerção e do medo. Quando necessita por meio da inclinação e do medo, 109 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010 a lei não o faz por si mesma, mas de maneira condicionada: a lei que necessita em si mesma tem de necessitar através do respeito. No respeito eu deixo de lado a minha inclinação e dou um valor absoluto à ação. Nosso autor e outros falam de obligatio per poenas [obrigação através de penas], como também Baumgarten. Mas obrigar alguém através de poenas [penas] e praemia [incentivos] é uma contradictio in adjecto [contradição em termos]; pois então eu o levo a ações que ele pratica não por obrigatoriedade, mas por medo e inclinação. Eu também posso, desse modo, forçá-lo a coisas que não são sequer obrigatórias para ele. Mas como pode uma lei ser respeitada por si mesma e também por isso necessitar? Deus não tem respeito pela lei porque não tem nenhuma inclinação que pudesse limitar o respeito. O respeito é algo que necessita, mas em Deus não pode haver nada que obrigue. Um ser racional como fim em si mesmo tem de ter sua própria vontade e, portanto, tal vontade tem de ser livre. A vontade humana, enquanto livre, não pode ser determinada por móbiles, pois então não seria livre, mas igual aos animais. Seria determinada pela natureza. Uma vez que nenhum móbile a determine, e dado que ela não pode existir sem leis, então a lei, enquanto lei apenas, tem de determiná-la. Assim, a forma da lei tem de determinar a vontade, e esta, portanto, precisa ter respeito pela lei. Quando me pergunto se devo / xxvii,1327 / devolver a alguém o depósito que este alguém confiou apenas a mim: se apenas a minha inclinação me determinasse, eu o conservaria comigo. No entanto, a vontade é livre e, portanto, precisa ter uma lei. A lei está dada: “você deve devolver o depósito”. Tirarei algum proveito disso? Não. Devo temer que isso seja descoberto? Suponhamos que o outro esteja morto e eu possa negar tudo. Se eu transformasse numa regra universal que cada qual pode conservar o depósito se lhe aprouver, isto não poderia jamais tornar-se numa lei universal, pois então ninguém confiaria nada em depósito a ninguém. Se minha vontade não deve ser desenfreada, mas ter leis, então elas têm de ser assim. O respeito pela lei se baseia em que essa é a única possibilidade pela qual a ação pode estar submetida a leis universais. – Pagar a dívida é um dever. A obrigatoriedade é a relação com a lei, neste caso com o contrato. A legalidade é a concordância da ação com o dever, sem levar em conta se este 110 Immanuel Kant Direito Natural Feyerabend é ou não o seu fundamento de determinação. A moralidade é a concordância da ação com o dever na medida em que este seja o seu fundamento de determinação. Em todas as ações jurídicas, a legalidade é conformidade ao dever, mas não moralidade, pois elas não ocorrem por dever. Na legalidade só importa se eu ajo de acordo com o dever, sendo indiferente se o faço por respeito ou inclinação e medo. Se, contudo, não observo a lei por respeito à lei, minhas ações não são morais. A maior parte das ações humanas conformes ao dever é legal, em especial aquelas que podem ser coagidas sem o uso da violência. É legal quando sano minha dívida no tempo pertinente. Se sei que o credor é um homem pontual, faço-o por medo. Se ele fosse condescendente, eu talvez seguisse hesitando em pagar. A ética é a ciência do julgamento e determinação das ações segundo sua moralidade. O jus [direito] é a ciência do julgamento das ações segundo sua legalidade. A ética também é denominada doutrina da virtude. O jus pode tratar de ações que sejam coagidas a isso. Pois lhe é indiferente se as ações acontecem por respeito, medo, coerção ou inclinação. A ética não trata de ações que podem ser coagidas; a ética é a filosofia prática da ação tendo em vista a disposição. O jus é a filosofia prática das ações que não leva em conta a disposição. Tudo que tem obrigatoriedade, portanto todos os deveres, pertencem à ética. O jus trata de deveres e ações que são conformes à lei e podem ser coagidos. A ação é dita justa quando concorda com a lei, virtuosa quando se origina do respeito pela lei. Um ação pode, portanto, ser justa sem ser virtuosa. A disposição de agir por dever, por respeito à lei, constitui a virtude. A ética contém a doutrina da virtude, o jus a doutrina do direito. Mesmo que a ação seja também conforme à coerção, ela pode ser conforme à lei. Diz-se que o direito é uma doutrina dos deveres que podem e devem ser cumpridos por meio da força: mas isto se baseia no seguinte. Dever é necessitação, portanto deve ser necessário independentemente do respeito pela lei e tem de acontecer, pois, por meio da coerção. Fora a coerção e o respeito, nada necessita a uma ação. A coerção / xxvii,1328 / é limitação da liberdade. Uma ação é correta (recht) quando concorda com a lei, justa (gerecht) quando concorda com as leis da coerção, i.e.: com as doutrinas do direito. Chama-se correto, em 111 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010 geral, àquilo que concorda com uma regra. Por isso se chama linea recta [linha reta] à linha que corre paralela à régua, a qual é chamada de regra. O correto é, portanto, ou virtuoso ou justo. Quando é uma ação conforme à coerção? Uma ação que se pauta pela regra universal da liberdade é correta; se ela contradiz a liberdade segundo uma regra universal, então ela é injusta. A intenção pode ser aqui a que for. Minha ação deveria apenas ser concebida de modo a conformar-se à liberdade universal. Não posso roubar nada de alguém, mas também não tenho de dar-lhe nada. Não ajo injustamente, portanto, se vejo alguém morrer e não lhe ajudo. Esta é uma actio justa [ação justa]. A ação é externamente correta, embora internamente não. Eu apenas não quero roubar a felicidade de alguém, além disso nada me importa: ele pode tentar ser feliz como quiser. É correta uma ação que se opõe à ação que, por seu turno, vai contra a liberdade universal. O opor-se a uma ação incorreta é um obstáculo à ação que se opõe à liberdade universal, portanto é uma promoção da liberdade e da concordância da liberdade privada com a liberdade universal. A oposição à ação da liberdade de um outro é denominada coerção. A concordância da liberdade privada com a liberdade universal é o princípio supremo do direito, o qual é uma lei de coerção. Nosso autor, juntamente com outros, define o direito sem uma ciência das leis a cujo cumprimento se pode ser coagido e cuja coerção não contradiz o dever. A coerção é conforme ao direito quando promove a liberdade universal. Uma lei das ações a que se pode coagir alguém é uma lei de coerção, e o direito a coagir é um direito de coerção. Um direito que não seja de coerção é a equidade. Esta é um jus late dictum [em sentido amplo], aquele é um jus stricte dictum [em sentido estrito]. A equidade é o direito sem coerção. A obrigação de observar uma lei a que não se pode ser coagido é uma obrigação livre de coerção. Eu posso ser coagido a tudo aquilo que é necessário para a conservação da liberdade universal. A equidade é um direito ético. Se posso exigir algo de alguém pelo direito em sentido estrito, então eu posso coagi-lo caso ele se recuse a isso; se posso exigir apenas por equidade, então é uma obrigação que ele tem comigo à qual, no entanto, não posso 112 Immanuel Kant Direito Natural Feyerabend coagi-lo. A ação que concorda com a lei universal na disposição manifesta, mas não na interna, não é equitativa. Trata-se de um direito imperfeito, e não de um direito perfeito ou em sentido estrito, no qual eu posso ser coagido. É imperfeito, mas ainda assim um direito. Minha liberdade concorda com a do outro quando concorda desse modo. Supondo que eu tenha acertado com meu empregado de pagar-lhe 20 Rthl. (Reichsthalers)4 por ano, e as coisas tenham encarecido a ponto de ele não poder sobreviver com esse dinheiro, não pratico uma injustiça contra ele / xxvii,1329 / se, mesmo frente a seus apelos por mais, pagar apenas as 20 Rthl., pois estou agindo de acordo com as disposições por ele manifestas. Mas eu não agi de maneira equitativa, pois ele acreditava que os 20 Rthl. seriam suficientes para ele passar o ano, na medida em que os preços continuassem modestos. Eu podia pressupor a sua intenção. Ele tinha, portanto, um direito efetivo, mas não coercitivo, pois as disposições, posto serem internas, não poderiam ser submetidas à coerção. O equitativo pode ser denominado eticamente justo. Aqui não trataremos da equidade, mas apenas do direito estrito. Os juristas se equivocam com frequência, ao coagir à equidade. A ética contém deveres do direito em sentido forte e da equidade. O direito diz respeito à liberdade, a equidade à intenção. Se não promovo a felicidade de alguém, não causo com isso nenhum prejuízo à sua liberdade, mas o deixo fazer o que queira. A liberdade tem de concordar com a universalidade. Se isso não ocorre, pode-se coagir aquele que obstrui a liberdade. A causa do direito, aqui, não é nem a felicidade nem o comando dos deveres, mas a liberdade. O autor estabeleceu em seus Prolegomena que haveria uma lei divina e que nós seríamos felizes por meio dela; isso não será aqui necessário. Seus Prolegomena parecem ter feito parte de uma preparação para um Collegii [curso] específico. Tradução de Fernando Costa Mattos 4. Moeda corrente na Prússia da época. 113 RESENHA. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, de Luiz Repa. (São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008) Fernando Costa Mattos Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente pesquisa de pós-doutorado, com bolsa da FAPESP, junto ao Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP A transformação da filosofia em Jürgen Habermas, de Luiz Repa, é um livro que anuncia no título o seu escopo mais geral: analisar as transformações por que passa, ao longo da obra de Habermas, a compreensão que este tem da filosofia. E o subtítulo, por seu turno – os papéis de reconstrução, interpretação e crítica –, indica desde logo as principais balizas desse caminho de transformação: essas três noções-chave, que se vão incorporando gradativamente ao conceito habermasiano, permitirão compreender o lugar da filosofia em seu pensamento, até pelo menos o final da década de 1990. Com isso, Repa poderá chamar a atenção do leitor – e este é talvez um dos grandes méritos de seu livro – para a centralidade que a filosofia assume na obra do filósofo Habermas, tornando a princípio insustentáveis as acusações segundo as quais o “sociólogo” Habermas reduziria a filosofia a um mero apêndice das ciências sociais.1 Não há de ser fortuito, por sinal, que Luiz Repa inicie seu livro com uma citação d’O discurso filosófico da modernidade em que Habermas se reporta à oposição kantiana entre os conceitos acadêmico e mundano de filosofia2: é um ótimo ponto de partida 1. Entre tais acusações, valeria destacar aquela que é feita por Dieter Henrich no artigo “O que é metafísica? O que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas” (in: Cadernos de filosofia alemã, n. 14, pp. 83-117, jul.-dez. 2009). 2. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, p. 13. 115 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 115-121 – jan.-jun. 2010 para quem quer explicar a posição filosófica habermasiana em termos propriamente filosóficos, extraídos daquele que seria, embora sem ter a consciência disso (segundo Habermas), o inaugurador do discurso filosófico da modernidade. A noção de “diagnóstico de época”, por exemplo, desde o princípio tão cara à teoria crítica, se deixaria explicar em associação com tal conceito mundano de filosofia, estando já em Kant, pois, a percepção da necessidade, colocada para todo filósofo autenticamente moderno (ou contemporâneo), de “filosofar” com os olhos voltados ao “mundo”, i.e. à sociedade humana em sua inscrição espácio-temporal. De outro lado, o conceito acadêmico de filosofia seguiria denotando a filosofia enquanto especialidade universitária, a qual pendeu cada vez mais, com o passar do tempo, a um estudo da história da filosofia que, embora rigoroso, tenderia a mostrar-se descompassado em relação ao momento presente.3 Essa menção inicial a Kant não tem por objetivo, evidentemente, o perfilamento de Habermas no pelotão dos filósofos modernos e contemporâneos, como se ele fosse apenas mais um sistema de pensamento. O que o impede de cair nessa armadilha é a outra filiação decisiva, mencionada por Luiz Repa na sequência: a tradição hegelo-marxista de crítica da ideologia, segundo a qual o papel da filosofia é essencialmente crítico, negativo, e não positivo.4 É certo que ela se pauta por um “interesse emancipatório” que já nos anos 1960 Habermas opunha aos interesses técnico (próprio das ciências da natureza) e prático (próprio das assim chamadas ciências do espírito),5 mas esse, digamos, princípio regulativo só se deixa realizar na medida em que a filosofia se constitua por oposição aos discursos positivos que bloqueiam a possibilidade da emancipação. Ao fazê-lo, porém – e aqui se mostra aquele que é, talvez, o grande paradoxo de toda filosofia após Hegel –, a filosofia não pode (como pareceu querer Adorno) ficar na mera negatividade: 3. Idem, ibidem. 4. Idem, p. 15. 5. Idem, p. 14. 116 Fernando Costa Mattos RESENHA. A transformação da filosofia... ela tem de construir, ou na verdade reconstruir, os padrões normativos racionais que, na realidade efetiva das transformações sociais, apresentaram-se associados à luta pela emancipação. Não é ao filósofo, nesse sentido, que cabe ditar, positiva e soberanamente (tal como faziam os filósofos clássicos), qual o caminho a seguir; é a própria sociedade quem deve indicá-lo, a partir de conflitos concretos em que os aspectos comunicativos da racionalidade buscam afirmar-se contra os meramente instrumentais. Assim, a nova função do filósofo está ligada à capacidade de identificar, nessa reconstrução que faz da sociedade moderna, tanto os potenciais emancipatórios como os obstáculos que se apresentem à sua realização. Para identificá-los, contudo, ele necessita do instrumental teórico oferecido pelas ciências que, por meio de pesquisas empíricas, permitem tornar muito mais preciso aquele “olhar para o mundo” de que já o velho Kant nos falava e que, na tradução contemporânea, passou a denominar-se com frequência um “diagnóstico de época”. É por este viés, com efeito, que Luiz Repa nos permite compreender, com razoável clareza, a nada simples relação entre filosofia e ciência no pensamento habermasiano: o tal trabalho reconstrutivo que é agora exigido do filósofo passa tanto (1) pela identificação dos pressupostos normativos que, sob a forma de pretensões universalistas, constituem a base das lutas concretas pela emancipação (“reconstrução horizontal”) como (2) pela demonstração de como esses mesmos pressupostos puderam constituir-se sob condições empíricas (“reconstrução vertical”). Nas palavras do próprio autor, com a idéia de uma divisão de trabalho ‘não exclusivista’ entre filosofia e ciência, as reconstruções vertical e horizontal se implicam, de modo que, para a filosofia, resulta a possibilidade de se apoiar em estudos empíricos para o estabelecimento de suas pretensões de validade. Ou seja, articula-se uma concepção falibilista para as reconstruções filosóficas, a qual é contraposta a toda ideia de fundamentação última.6 6. Idem, p. 17. 117 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 115-121 – jan.-jun. 2010 De certo modo, estão dados aí os dois aspectos mais gerais do desafio teórico colocado para Habermas e, por extensão, para Luiz Repa na reconstrução do percurso trilhado pelo filósofo: a possibilidade de um apoio na empiria e o distanciamento das fundamentações últimas. São essas duas exigências, com efeito, que pautam tanto o diálogo de Habermas com seus críticos como as transformações conceituais com que ele responde a essas críticas: deixando de lado uma compreensão da filosofia como crítica da ideologia e da ciência – vista então como ideológica, na esteira da tradição marxista frankfurtiana7 –, Habermas se verá forçado a ampliar a sua concepção de racionalidade, nos anos 1970, para dar conta dos potenciais emancipatórios que, segundo permitiam notar as ciências sociais de base empírica, estariam contidos no interior da própria evolução do sistema capitalista, da ciência e da técnica8 – uma carência de seu pensamento para que críticos como Bubner haviam apontado.9 Em seguida, a presença de elementos ainda muito fortes, do ponto de vista da fundamentação filosófica, no interior da compreensão nascente de uma racionalidade – elementos como a “comunidade ideal de fala”, duramente criticada por Wellmer –, acabaria por conduzir Habermas a mitigar ao máximo os “elementos horizontais” de sua filosofia, falando de um “transcendental fraco” para contrapor-se a Karl-Otto Apel.10 E a sensível dificuldade de efetivar tal mitigação, por seu turno, acabaria por levá-lo a sofisticar ao máximo aquela relação entre as reconstruções horizontal e vertical dos pressupostos normativos da linguagem – linguagem cujo protagonismo, em função da influência da filosofia analítica, iria acentuar-se cada vez mais. É na reconstituição desses deslocamentos habermasianos, assim, que Luiz Repa constrói o seu próprio percurso, alinhando os capítulos do livro aos sucessivos períodos e temas por que passou a compreensão habermasiana da filosofia e de sua relação 7. 8. 9. 10. 118 Idem, pp. 76 e ss. Idem, pp. 85 e ss. Idem, p. 71 (nota 151). Idem, p. 166 e ss. Fernando Costa Mattos RESENHA. A transformação da filosofia... com a ciência.11 Da “filosofia como crítica da ciência” (capítulo 1) à “filosofia como interpretação mediadora” (capítulo 4), passando por “um conceito complexo de racionalidade” (capítulo 2) e pela “filosofia como ciência reconstrutiva” (capítulo 3), somos levados a acompanhar e, em razoável medida, a compreender tanto as referidas transformações como a permanência de certos ideais metodológicos e o gradativo estabelecimento – basicamente, dos anos 1960 aos 80 – de uma posição a eles mais conforme: deixando para trás toda pretensão veritativa de um discurso filosófico positivo, quiçá capaz de fundamentar os pressupostos teóricos extraídos da linguagem por meio da reconstrução vertical, Habermas passaria a enfatizar o caráter falibilista de seu próprio discurso reconstrutivo, o qual buscaria equilibrar-se sempre entre os pontos de vista descritivo e normativo com vistas à elaboração de uma compreensão efetivamente crítica das sociedades modernas, pluralistas e pósindustriais.12 De certo modo, é essa a resposta tardia de Habermas à grande dificuldade da filosofia desde meados do século XIX (“somos contemporâneos dos jovens hegelianos”, diz ele na resposta a Henrich13): entre o dogmatismo subjetivista com que ainda Kant, segundo ele, pretenderia acessar se não o mundo, pelo menos as estruturas últimas do sujeito transcendental, e o relativismo antirracionalista que sobretudo a partir de Nietzsche identificaria toda racionalidade à dominação, o transcendentalismo falibilista de sua filosofia reconstrutiva, maximamente ancorado nos movimentos sociais, de um lado (as tendências emancipatórias inscritas na própria efetividade), e nas pesquisas empíricas, de outro (as contribuições decisivas das ciências sociais ao novo discurso filosófico), permitiria resolver em nova chave o velho desafio kantiano de sair do dogmatismo sem cair no ceticismo (absoluto). Afinal, seria possível falar em pressupostos normativos sem conservar os fardos metafísicos da filosofia da subjetividade, e sem ceder intei11. Cf. idem, p. 229. 12. Idem, p. 175. 13. Habermas, J. “Retorno à metafísica – uma recensão”. In: _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002 (2ª.ed.), p. 269. 119 Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 115-121 – jan.-jun. 2010 ramente o terreno aos positivistas dogmáticos que, desconfiados de todo e qualquer pressuposto não verificável, enterrariam de vez as esperanças da filosofia.14 A saída é engenhosa, e o livro de Luiz Repa, bastante persuasivo. Não obstante, há questões que parecem teimar em persistir. Que o seu falibilismo, por exemplo, guarde estreito parentesco com a solução dada por Kant às idéias da razão e ao juízo reflexionante, é algo que o próprio Habermas não hesitaria em admitir. Ora! A depender da leitura que fizermos de Kant, contudo – enfatizando os elementos regulativos em detrimento dos constitutivos –, pode ser que a diferença se torne tão pequena que sejamos levados a questionar o alcance dessa aparente revolução copernicana a que Habermas, inspirado no modelo kuhniano de história da ciência, dá o pomposo nome de uma “mudança de paradigma”.15 É também discutível, nesse mesmo sentido, se a nova metafísica pretendida por Kant – e que, como se sabe, está longe de resumir-se à analítica transcendental – encaixa-se no conceito de metafísica que Habermas acredita ter sido ultrapassado no “pensamento pós-metafísico”.16 Se tivermos em vista as reflexões de Kant nos Prolegômenos, por exemplo, em que ele se põe a considerar o que será da metafísica no futuro, salta aos olhos o caráter meramente problemático e hipotético – leia-se falibilista – de uma série das ideias que serão centrais a esse novo saber. Note-se que também aqui não se trata de questionar a engenhosidade da solução habermasiana, mas apenas o seu grau de novidade e transformação paradigmática: a depender de como interpretemos o conceito de metafísica no cenário pós-kantiano, o que Habermas 14. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, pp. 217 e ss. 15. É o que faz Dieter Henrich em “O que é metafísica? O que é modernidade?”. Henrich, D. “O que é metafísica? O que é modernidade?”. In: Cadernos de filosofia alemã, n. 14, pp. 101-3. 16. Cf. Habermas, J. Pensamento pós-metafísico, pp. 14-5. 120 Fernando Costa Mattos RESENHA. A transformação da filosofia... faz é radicalizar a problematicidade que desde o princípio marca esse conceito.17 Isso, de qualquer modo, se estiver correto o peso dado por Luiz Repa à filosofia, por meio dos conceitos de reconstrução, interpretação e crítica, no interior do pensamento de Habermas. Pois caso se reduzisse esse peso, como querem alguns, haveria o risco nada pequeno, apontado também por Dieter Henrich, de a filosofia ver-se engolida pelas ciências sociais empíricas e contaminada pelo positivismo destas últimas. Mas neste ponto parece acertada a insistência de Repa em assinalar a “dependência recíproca” em que Habermas enxerga as relações entre a filosofia e as ciências: Quanto mais houver uma cooperação feliz entre ciência e filosofia, tanto mais poderemos, na esfera do discurso teórico, ter razões para aceitar – ainda que por enquanto – propostas teóricas fortemente universalistas. O que surge não é, entretanto, uma dependência da filosofia em relação à ciência, mas uma “dependência recíproca”, uma vez que as ciências reconstrutivas de tipo experimental (...) precisam, por sua vez, das abordagens reconstrutivas filosóficas como uma espécie de medida de processos evolutivos.18 Resta saber, naturalmente, se de fato funcionam assim, em regime de “cooperação feliz”, as relações entre as ciências e a sua “ex-mãe”. Antes disso, porém, é preciso entender melhor o modo como o próprio Habermas as enxerga. E o livro de Luiz Repa, quanto a isso, nos indica certamente um bom caminho. 17. Cf. Thies, C. Der Sinn der Sinnfrage. Metaphysische Reflexionen auf kantianischer Grundlage. Munique: Alber, 2008, pp. 58-65. 18. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 177. 121 Lançamentos A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno, de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo, Civilização Brasileira, 2010. A condição humana. Uma reflexão sobre a ontologia fenomenológica sartriana, de Marilda Martins Fayad. Campinas, Alínea, 2010. Do empirismo à fenomenologia, de José Henrique Santos. São Paulo, Loyola, 2010. O eclipse da moral. Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo, de Sílvio Rosa Filho. São Paulo, Barcarolla, 2010. Ética, Direito e Democracia, de Manfredo de Araújo de Oliveira. São Paulo, Paulus, 2010. Kant e a teologia, editado por Georg Essen e Magnus Striet. São Paulo, Loyola, 2010. Nietzsche, seus leitores e suas leituras, de Scarlett Marton. São Paulo, Editora Barcarolla, 2010. O projeto de uma psicologia científica em Wilhelm Wundt. Uma nova interpretação, de Saulo de Freitas Araujo. Juiz de Fora, Editora UFJF, 2010. Traduções Contextos da justiça. Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo, de Rainer Forst. Tradução de Denilson Luis Werle. São Paulo, Boitempo Editorial, 2010. Fundamentação da metafísica dos costumes, de Immanuel Kant. Tradução, introdução e notas de Guido Antônio de Almeida. São Paulo, Editora Barcarolla e Discurso Editorial, 2010. Kant. Uma leitura das três críticas, de Luc Ferry. Tradução de Karina Jannini. 2a. ed., Rio de Janeiro, Difel, 2010. Romantismo. Uma questão alemã, de Rüdiger Safranski. Tradução de Rita Rios. São Paulo, Estação Liberdade, 2010. Rousseau e a ciência política de seu tempo, de Robert Derathé. Tradução de Natalia Maruyama. São Paulo, Editora Barcarolla e Discurso Editorial, 2010. Summary Editorial 9 Articles Kant’s “healthy grammar” 11 Pedro Pimenta The “french” Nietzsche in the pages of the Zeitschrift für Sozialforschung 27 Ernani Chaves Heidegger and the Doctrine of Personality in Kant 41 Jean Leison Simão Pragmatic transformation of Kant’s philosophy: Habermas as Humboldt reader 59 Antonio Ianni Segatto For a conceptual history of women discrimination 81 Marisa Lopes Translation The Introduction to the Natural Right Feyerabend, Immanuel Kant 97 Presented and translated into Portuguese by Fernando Costa Mattos Review Luiz Repa’s A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica (The transformation of philosophy in Jürgen Habermas: the roles of reconstruction, interpretation, and critique) 115 Fernando Costa Mattos Releases 123 Summary 125 Instructions 127 INSTRUÇÕES AOS AUTORES • Cadernos de Filosofia Alemã aceita artigos originais, resenhas bibliográficas e recensões e notas bibliográficas em português. • Os artigos enviados para publicação devem ser inéditos e conter no máximo 40.000 caracteres (com espaços), incluindo referências bibliográficas e notas. Eles devem ser acompanhados de resumo de até 100 palavras, em português e em inglês, e até cinco palavras-chaves em português e inglês. • As resenhas críticas de um livro, ou de vários livros que tratem do mesmo tema, devem conter no máximo 20.000 caracteres (com espaços), incluindo referências bibliográficas e notas. As resenhas críticas devem apresentar no início do texto a referência completa das obras analisadas. • As recensões e notas bibliográficas devem ter no máximo 8.000 caracteres (com espaços). Elas não devem receber título nem conter notas ou referências bibliográficas fora do texto e devem apresentar no início do texto a referência completa das obras analisadas. • Os autores devem enviar também seus dados profissionais (instituição, cargo e titulação), bem como endereço para correspondência. • Os autores serão notificados da recepção das colaborações. • Os artigos serão submetidos a dois pareceristas indicados pela Comissão Editorial e depois submetidos a esta, que se reserva o direito de aceitar, recusar ou reapresentar, com sugestões de mudanças, o original do autor. Os Editores se reservam o direito de sugerir ao autor modificações de forma a fim de adequar as colaborações ao padrão editorial e gráfico da revista. • As referências bibliográficas no correr do texto devem vir em nota de rodapé, no formato [SOBRENOME DO AUTOR, nome abreviado. Título em itálico: subtítulo em itálico. Número da edição, caso não seja a primeira. Local de publicação: nome da editora, ano. números das páginas] sempre que da primeira referência a um texto. As demais referências a um texto já citado devem vir no formato [SOBRENOME DO AUTOR, nome abreviado. Título em itálico: subtítulo em itálico, números das páginas.]. • As notas substantivas devem vir em notas de rodapé. • A bibliografia deve ser apresentada no formato seguinte: Livro: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título em itálico: subtítulo. Número da edição, caso não seja a primeira. Local da publicação: nome da editora, ano. Coletânea: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título do ensaio. In: SOBRENOME, Nome (abreviado) do(s) organizador(es). Título da coletânea em itálico: subtítulo. Número da edição, caso não seja a primeira. Local da publicação: nome da editora, ano. Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 127-128– jan.-jun. 2009 Artigo em periódico: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título do artigo. Nome do periódico em itálico, local da publicação, volume e número do periódico, ano. intervalo de páginas do artigo, período da publicação. Dissertações e teses: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título em itálico. Local. número total de páginas. Grau acadêmico e área de estudos [Dissertação (mestrado) ou Tese (doutorado)]. Instituição em que foi apresentada. ano. • Internet (documentos eletrônicos): SOBRENOME, Nome (abreviado). Título em itálico, [Online]. produtor. ano. Disponibilidade: acesso. [data de acesso] • O(s) autor(es) de trabalhos publicados nos Cadernos de Filosofia Alemã receberá(ão) gratuitamente cinco exemplares da revista. • Os originais devem ser enviados com texto digitado em programas compatíveis com o ambiente Windows, em formato RTF. Os textos devem ser enviados para o endereço eletrônico [email protected]. Maiores informações podem ser obtidas pelo mesmo endereço. • As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade de seus autores. A apresentação das colaborações ao corpo editorial implica a cessão da prioridade de publicação aos Cadernos de Filosofia Alemã bem como a cessão dos direitos autorais dos textos publicados, que só poderão ser reproduzidos sob autorização expressa dos editores. Os colaboradores manterão o direito de reutilizar o material publicado em futuras coletâneas de sua obra, sem o pagamento de taxas aos Cadernos de Filosofia Alemã. A permissão para reedição ou tradução por terceiros do material publicado não será feita sem o consentimento do autor. 128