Book 1.indb - FiCeM

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Book 1.indb - FiCeM
Cadernos de
FILOSOFIA ALEMÃ
FFLCH
Programa de Pós-Graduação
Área de Filosofia
CNPq
Cadernos de
FILOSOFIA ALEMÃ
XV
Publicação semestral do
Departamento de Filosofia – FFLCH-USP
Indexado por
The Philosopher’s Index e Clase
Jan.-jun. 2010
São Paulo – SP
ISSN 1413-7860
Cadernos de Filosofia Alemã é uma publicação semestral do Departamento
de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.
Editores Responsáveis
Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola
Ricardo Ribeiro Terra
Comissão Editorial
Bruno Nadai, Cauê Cardoso Polla, Fernando Costa Mattos, Flamarion
Caldeira Ramos, Igor Silva Alves, Marisa Lopes, Maurício Cardoso Keinert,
Monique Hulshof, Nathalie de Almeida Bressiani, Rúrion Soares Melo
Conselho Editorial
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(USP), Ernani Pinheiro Chaves (UFPA), Gerson Luiz Louzado (UFRGS), Hans
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(UFRGS), José Rodrigo Rodriguez (FGV), Júlio César Ramos Esteves (UENF),
Luciano Nervo Codato (UNIFESP), Luís Fernandes dos Santos Nascimento
(UFSCAR), Luiz Repa (UFPR/CEBRAP), Márcio Suzuki (USP), Marco Aurélio
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Vinicius Berlendis de Figueiredo (UFPR),Virginia de Araújo Figueiredo (UFMG),
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Departamento de Filosofia
Chefe: Moacyr Ayres Novaes Filho
Vice-chefe: Caetano Ernesto Plastino
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Pós-graduação: Marco Antônio de Ávila
Zingano
Diagramação
Microart – Editoração Eletrônica Ltda.
Capa
Hamilton Grimaldi e
Microart – Editoração Eletrônica Ltda.
Impressão
Cromosete Gráfica e Editora Ltda.
Tiragem: 800 Exemplares
©copyright Departamento de Filosofia
– FFLCH/USP
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Nº 14 – jul.-dez. 2009
ISSN 1413-7860
Sumário
Editorial
9
Artigos
A “gramática saudável” de Kant 11
Pedro Pimenta
O Nietzsche “francês” nas páginas da Zeitschrift für
Sozialsforschung 27
Ernani Chaves
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant 41
Jean Leison Simão
Transformação pragmática da filosofia kantiana:
Habermas, leitor de Humboldt 59
Antonio Ianni Segatto
Para a história conceitual da discriminação da mulher 81
Marisa Lopes
Tradução
Introdução ao Direito Natural Feyerabend, de Immanuel
Kant 97
Apresentação e tradução de Fernando Costa Mattos
Resenhas
A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de
reconstrução, interpretação e crítica, de Luiz Repa 115
Fernando Costa Mattos
Lançamentos 123
Índice em inglês 125
Instruções para os autores 127
6
Fruto de uma iniciativa conjunta dos Grupos de Filosofia
Alemã do Departamento de Filosofia da USP, os Cadernos de
Filosofia Alemã, publicados desde 1996, pretendem constituir
um espaço para a publicação de textos, ligados à filosofia e ao
idioma alemães, que colaborem para o desenvolvimento de
um diálogo filosófico vivo, capaz de fazer jus ao mote, entre
nós consagrado, da filosofia como “um convite à liberdade e
à alegria da reflexão”.
7
Editorial
Este novo número dos Cadernos de Filosofia Alemã começa com um
artigo de Pedro Paulo Pimenta que propõe um instigante paralelo entre
a relação lógica-gramática, analisada por Kant em seus cursos de lógica,
e a compreensão da filosofia como sistema, sabidamente central para o
empreendimento crítico kantiano.
O segundo artigo, assinado por Ernani Chaves, refaz um inusitado
percurso: aquele das leituras francesas de Nietzsche nos anos 1930 – tempo
em que imperava na Alemanha a sua interpretação nazista – através da lente
da Escola de Frankfurt, reconstituível a partir de diversos artigos escritos
na Zeitschrift für Sozialforschung, periódico do Instituto à época.
O artigo seguinte, de Jean Leison Simão, traz uma interessante análise da interpretação heideggeriana do conceito kantiano de personalidade,
mostrando que o único conceito passível de uma leitura ontológica seria
aquele de personalidade moral, já que, por oposição aos de personalidade
transcendental e psicológica, permitiria definir onticamente a pessoa
humana.
Quem assina o quarto artigo é Antonio Ianni Segatto, e seu tema é
o importante papel atribuído por Habermas a três autores pouco estudados do pós-kantismo: Herder, Hamman e, principalmente, Wilhelm von
Humboldt. Neste último, com efeito, já seria perceptível, segundo
Habermas, uma virada pragmática na filosofia de matriz kantiana.
Fechando a seção de artigos, apresentamos um texto em que Marisa
Lopes, partindo de uma questão candente da filosofia política contemporânea – a persistência do sexismo a despeito dos avanços feministas –,
retorna a Aristóteles para mostrar como o preconceito contra a mulher já se
manifestava em um dos principais fundadores da filosofia ocidental.
Já a seção de traduções apresenta, vertido e apresentado por Fernando
Costa Mattos, um póstumo kantiano a que hoje se vem dando considerável
atenção entre os estudiosos de Kant: a introdução ao Naturrecht Feyerabend
(Direito Natural Feyerabend), texto constituído pelas anotações do aluno
Feyerabend a um curso ministrado por Kant em 1784 – época decisiva para
a filosofia moral e política do filósofo, então às voltas com a Fundamentação
da metafísica dos costumes e os textos O que é o esclarecimento? e Ideia de uma
história universal de um ponto de vista cosmopolita.
Na seção de resenhas, por fim, o mesmo Fernando Costa Mattos
comenta o livro A transformação da filosofia: os papéis de reconstrução, inter9
Cadernos de Filosofia Alemã – Editorial
nº 15 – p. 9-10 – jan.-jun. 2010
pretação e crítica, de Luiz Repa, chamando a atenção para o papel central
que a filosofia assume, na interpretação de Repa, no percurso e na obra do
autor alemão.
Esperamos, como sempre, que este novo número dos Cadernos de
Filosofia Alemã – o décimo-quinto – consiga colaborar para o debate filosófico que se inspira nos autores e questões aqui tratados.
10
A “gramática saudável” de Kant
Pedro Pimenta
Professor do Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo (USP)
Resumo: Trata-se de ler uma passagem recorrente nos cursos de lógica de Kant para examinar as razões
para que o filósofo tenha insistido na
comparação entre lógica e gramática
a propósito do tópico da espontaneidade da razão. Sugerimos que a
discussão desse tópico está estreitamente vinculada à definição do que
se entende na Crítica por “filosofia
como sistema”.
Palavras-chave: Lógica, Gramá­
tica, Transcendental, Razão, Espon­
taneidade
Abstract: The paper discusses the
famous comparison made by Kant
in his courses on logic between logic
and grammar so as to show that the
recurrence of this topic is central to
Kant’s discussion of the relationship
between spontaneity of reason and
philosophy as a system.
Keywords:
Logic,
Grammar,
Transcendental, Reason, Sponta­
neity.
...en voulant faire mieux que la nature vous faites plus mal ;
vos oreilles et votre goût son gâtés par un art mal entendu.
Rousseau, Ensaio sobre a origem das línguas.1
1. Rousseau, J. J. Essai sur l’origine des langues, “cap. IV”. Paris: Gallimard, 1990,
p. 123.
11
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010
Para introduzir seus estudantes no “conceito da lógica”, o
professor Kant não costumava seguir a mesma ordem expositiva
da Lógica transcendental na Crítica da razão pura. Preferia introduzir o assunto recorrendo a uma comparação ou analogia entre
poderes da natureza e poderes do homem. No mais antigo registro
de seus cursos de lógica, feito por Herder em 1762, encontramos
a primeira versão dessa comparação:
Tudo acontece segundo regras. Uma pedra [cai], a água flui, como
o homem em suas atividades mecânicas. – As atividades do entendimento são a consciência de fenômenos na natureza. – Os
homens seguem essas regras inconscientemente, por mero hábito, sem consciência, e é apenas com o exercício do entendimento,
também freqüentemente sem regras, que se tornam conscientes
delas, mediante a experiência. Mas nem tudo pode ser conhecido
mediante a experiência: um uso mais elevado é exigido para movimentos como os da dança, por exemplo, que requerem de antemão
um conhecimento versado em regras. A lógica ou logos, como ratio
instrumentum, é como que o modelo das regras lógicas.2
A primeira frase – de forte teor leibniziano – reaparecerá,
com algumas variações, na abertura de todos os registros de exposições dos cursos de lógica ministrados por Kant, até a década
de 1790, como uma espécie de bordão ou de fórmula encantatória para iniciar os estudantes no mundo da lógica. O intuito da
comparação entre o movimento na natureza e o movimento no
homem é mostrar que são regidos pelos mesmos princípios mecânicos, com a diferença de que no homem a inconsciência desses
princípios é o estado de uma consciência latente deles, que pode
se efetivar ou pelo exercício do entendimento ou pela instrução. E
se compararmos uma das frases centrais da passagem anotada por
Herder em 1762 – “As atividades do entendimento são a consciência de fenômenos na natureza”. – com esta anotação de 1789,
feita por Pölitz – “entendimento significa a faculdade de trazer sob
2. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Herder”). In: _____. Kants Schriften,
24.1, 2 vols. Berlim: Walter de Gruyter, 1966, p. 03. Sobre a datação das
lições de lógica, cf. o esclarecimento de Lehmann, 24.2, pp. 976ss.
12
Pedro Pimenta
A “gramática saudável” de Kant
regras as representações do sentido”3 – veremos que esta última é uma
definição “filosófico-dogmática”, que explica o que é o entendimento a partir do princípio que rege a sua atividade, enquanto
a frase de 1762 é puramente “histórico-descritiva”, mostra o que
o entendimento faz sem explicar o por quê desse fazer.4 O teor
quase casual de 1762 dá lugar em 1789 a uma formulação gramatical. Diante dessa transformação, que em certo sentido é um
aprimoramento, não admira que a comparação realizada por Kant
se desenvolva, em registros posteriores, apresentando um paralelo
entre a lógica como ciência do pensamento e a gramática como
ciência da linguagem. No manual de lógica, publicado em 1800,
encontra-se a seguinte observação:
Tudo na natureza, tanto no mundo animado quanto no mundo
inanimado, acontece segundo regras, muito embora nem sempre
conheçamos essas regras. A água cai segundo leis da gravidade e,
entre os animais, a locomoção também ocorre segundo regras. O
peixe na água, o pássaro no ar movem-se segundo regras. A natureza inteira em geral nada mais é, na verdade, do que uma conexão de
fenômenos segundo regras; e em nenhuma parte há irregularidade
alguma. Se pensamos encontrar tal coisa, só poderemos dizer neste
caso o seguinte: que as regras nos são desconhecidas. O exercício
de nossos poderes também acontece segundo certas regras que seguimos, a princípio, sem consciência delas, até chegarmos aos poucos
ao conhecimento delas mediante diversas tentativas e um prolongado uso de nossos poderes, tornando-as por fim tão familiares que
muito esforço nos custa pensá-las in abstracto. Assim, por exemplo,
a gramática geral é a forma de uma língua em geral. Mas também
falamos sem conhecer a gramática; e quem fala sem conhecê-la
tem realmente uma gramática e fala segundo regras das quais, porém, não está consciente. 5
3. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Pölitz”). In: _____. Kants Schriften,
24.2, p. 502.
4. Kant, I. Lógica Jäsche. Introdução, seção III. Trad. Guido de Almeida. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. A mesma distinção entre essas espécies
de conhecimento ocorre em todos os cursos posteriores ao registrado por
Herder em 1762.
5. Kant, I. Lógica Jäsche, A 01-2.
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Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010
Apesar do que os distingue, há algo comum entre os poderes
da natureza e os do homem (definido aqui como ser de razão):
trata-se da espontaneidade com que são exercidos e se efetivam
a partir de princípios que não precisam ser conhecidos ou sistematizados para serem utilizados. O pressuposto dessa consideração será explicitado na conclusão da Lógica transcendental: a
experiência é pensada pela razão, em prol do entendimento, como
uma totalidade sistemática, regida de acordo com leis a priori universalmente válidas, cujo princípio se encontra no entendimento
como faculdade-de-julgar. Mas, assim como não é preciso refletir
e chegar a essa constatação para pensar a natureza como sistema,
tampouco é preciso ter lido a Crítica da razão pura para entender
o que vai ser exposto ao longo deste curso de lógica; basta acompanhar o que é dito por Kant em sala de aula para reconhecer
que é isso mesmo o que acontece, na natureza como no homem.
O exemplo final é instrutivo: assim como os peixes nos rios e os
pássaros no ar se movem segundo as leis da gravidade sem jamais
as terem estudado, também os homens pensam sem terem sido
instruídos na arte de pensar, e falam a língua do país em que foram
criados sem terem aprendido a gramática dessa língua, e conhecem a forma da língua no mesmo ato em que se apoderam do seu
conteúdo. A atividade precede a normatividade, e esta não é mais
que a posterior sistematização de um conhecimento adquirido naturalmente. Tendo acompanhado Kant nessa rápida introdução,
sua platéia está pronta para ser iniciada no conceito da lógica geral,
ciência que expõe “as regras universais e necessárias do pensamento” e que, assim como a gramática geral, que “contém a mera forma
da língua, sem as palavras”, é “meramente uma ciência da forma de
nosso conhecimento intelectual ou do pensamento” que abstrai de
toda “matéria do mesmo”.6
Se examinarmos agora passagens correspondentes a essa em
registros anteriores dos cursos de lógica ministrados por Kant, encontraremos algumas variações interessantes.
6. Kant, I. Lógica Jäsche, A 04.
14
Pedro Pimenta
A “gramática saudável” de Kant
Na lógica Blomberg (datada da década de 1770) se diz o
seguinte:
A natureza como um todo atua de acordo com regras; assim, a água
flui de acordo com regras hidráulicas, a natureza opera de acordo
com regras, e mesmo o clima inconstante tem certas regras, embora
não as percebamos. Os animais atuam de acordo com regras das
quais não têm no mais das vezes a menor consciência. O homem
age de acordo com regras e em particular faz uso do entendimento
de acordo com certas proposições e regras. E quantas vezes não
agem os homens de acordo com regras, sem terem consciência delas? Por exemplo, falam sua língua nativa. O emprego de nossos
poderes muitas vezes ocorre sem termos consciência deles, e isso
porque 1. Encontram-se em nossa própria natureza, 2. Graças à
imitação, quando imitamos um exemplo para gradualmente adquirirmos o uso do entendimento tal como o vemos utilizado por
outros; 3. Graças ao uso próprio, quando adquirimos na prática
destreza no uso do entendimento sem a consciência de suas regras... O saudável entendimento comum cresce sem a instrução...
As línguas já existiam antes dos gramáticos, os oradores antes da
retórica, os poetas antes da poesia.7
A lógica Dohna-Wundlacken (datada da década de 1780)
afirma:
Deve-se refletir sobre o próprio pensamento, i.e., de acordo com
regras. Toda língua se restringe a certas regras particulares. É esse
o caso, sobretudo, das línguas mortas, a respeito das quais pode-se
de fato designar-lhes as regras. Pode-se também fazer uso de regras sem lhes dar nomes. Aprendem-se essas regras gradualmente,
por tentativas. As primeiras falham; posteriormente, adquire-se
destreza. Entre as regras do pensamento, algumas são universais,
aplicam-se indistintamente a objetos particulares. Também assim
7. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Blomberg”). In: _____. Kants
Schriften, 24.1, pp. 20-1. Consultamos, para a tradução das duas passagens seguintes, a tradução de J. M. Young: Lectures on Logic. Cambridge:
University Press, 1992. A última frase de Kant é uma citação quase literal do
verbete “Eloqüência”, redigido por Voltaire em 1755 para a Encyclopédie, e
citado também, na mesma época, por Condillac (Lógica, livro II, capítulo 03,
§ 02).
15
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010
há regras universais de linguagem. Uma tal gramática não contém palavras, não contém copia vocabularum, apenas a forma da
linguagem. A doutrina universal do pensamento se chama lógica,
doutrina do entendimento. É uma preparação para o pensamento
de objetos... Regras lógicas não são aquelas de acordo com as quais
pensamos, mas sim as de acordo com as quais deveríamos pensar.
{A lógica não contém absolutamente uma matéria, só a forma do
pensamento} A lógica deve conter princípios a priori. {Portanto, a
lógica é uma ciência e a gramática não, pois as regras desta são contingentes}... É a lógica também um organon? Não, ela serve apenas
à crítica, a exemplo da gramática (com a qual tem muita similaridade), a partir da qual não se aprende de fato uma língua, para o quê
se requer um repertório de palavras.8
Das duas exposições, a última é a que mais se aproxima da
Crítica da razão pura:
a lógica pode ser considerada numa dupla perspectiva: quer como
lógica do uso geral, quer do uso particular do entendimento. A
primeira contém as regras absolutamente necessárias do pensamento, sem as quais não pode haver nenhum uso do entendimento, e ocupa-se portanto deste, independentemente da diversidade
dos objetos a que possa se dirigir. A lógica do uso particular do
entendimento contém as regras para pensar corretamente sobre
determinada espécie de objetos. À primeira pode-se chamar lógica
elementar, à segunda órgão desta ou daquela ciência.9
Na Crítica da razão pura, a lógica geral é “a ciência das regras
do entendimento” tomadas enquanto tais, desvinculadas de toda
referência a objetos sensíveis e à experiência em geral. A lógica não
é órgão do pensamento, é apenas seu cânon; e tal como a gramática
não engendra línguas, a lógica não engendra o pensamento:
a lógica, verdadeiramente, deveria ser apenas o cânon para ajuizar
do uso empírico do entendimento, e é abuso dar-lhe o valor de
organon para uso geral e ilimitado, e constitui atrevimento julgar,
8. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Dohna-Wundlacken”). In: _____.
Kants Schriften, 24.2, pp. 694-5.
9. Kant, I. Crítica da Razão Pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1987, B 76.
16
Pedro Pimenta
A “gramática saudável” de Kant
afirmar e decidir sinteticamente sobre objetos em geral, utilizando
somente o entendimento puro.10
O “atrevimento” do lógico seria comparável ao do gramático
que quisesse, pelo estudo da linguagem como estrutura, legislar
sobre uma língua em particular ou sobre todas em geral sem considerar suas “regras contingentes”.
Nas três exposições citadas – a de 1800, a da década de 70 e
a da década de 80 –, a lógica geral, como ciência da forma do pensamento, é comparável à gramática geral como ciência da forma
da linguagem. Essa comparação não é fortuita, sugere que haveria
alguma relação entre essas ciências; e é de supor que tal relação
seria decorrente de uma relação entre as atividades do espírito humano que elas sistematizam, o pensamento e a fala – sendo que
esta última, por se realizar no órgão da voz, está mais próxima de
uma ação espontânea da natureza do que o pensamento, que é
exclusivamente humano. Seria a fala para Kant apenas um meio de
transmitir pensamentos?
No opúsculo “Começo conjectural da história humana”,
Kant comenta duas passagens do gênese – “o homem deu nomes
a todos os animais...” e “Esta sim é osso de meus ossos e carne
de minha carne...” (2, 20; 23) – para mostrar que “exprimir-se é
falar encadeando conceitos, logo é pensar”.11 Essa tese é reiterada
nas Lições de enciclopédia filosófica, onde se diz que “pensamos sempre em palavras” (wir doch in Worten denken).12 Essa afirmação da
identidade entre pensamento e linguagem é o comentário de um
tópico de Leibniz, que nos Novos ensaios corrigira a tese de Locke
de que a finalidade principal da linguagem é comunicar pensa10. Kant, I. Crítica da Razão Pura, B 78.
11. Kant, I. “Começo conjectural da história humana”. In: _____. Kants
Schriften, VIII, p. 110. Tradução francesa: _____. Opuscules sur l’histoire.
Trad. de Stéphane Piobetta. Paris: Flammarion, 1990, p. 147. Pode-se ler
no original: “...ja reden, d.i. nach zusammenhängenden Begriffen sprechen,
mithin denken”.
12. Kant, I. “Lições sobre enciclopédia filosófica”. In: _____. Kants Schriften,
XXIX, p. 31; Ed. francesa: _____. Abregée de philosophie ou Leçons sur
l’Encyclopédie philosophique. Edição bilíngüe. Trad. Arnaud Pelletier. Paris:
Vrin, 2009, pp. 106-7.
17
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010
mentos, acrescentando que “ela serve também para que cada um
raciocine à parte consigo mesmo”.13 Kant explora essa tese para
mostrar que desde o momento em que o homem se põe a pensar,
o pensamento se dá em linguagem, tem em vista a comunicação.14
Mas é preciso compreender o alcance dessa conclusão. Longe de
retroceder à tese lockiana, ela aprofunda a reflexão leibniziana ao
sugerir que é nesta última etapa de sua formulação – a comunicação verbal – que o pensar se torna coerente. Para que Adão
possa dar nomes aos animais, é preciso que tenha o sentimento da
diferenciação entre as respectivas representações deles; e para que
ele possa dar nome à mulher, é preciso que tenha o sentimento
da diferenciação dela em relação a si mesmo. Esse sentimento só
se torna pensamento quando as representações são encadeadas a
partir de signos lingüísticos. A linguagem, como “aptidão técnica”
que o homem “adquire por si mesmo”, serve para decompor e analisar o pensamento, ou para pensar; o fim último dessa exposição
discursiva, que exprime e efetua para si mesmo, mas já com signos
lingüísticos, é a apresentação sensível de conceitos com vistas à
comunicação.15 Assim, o paralelismo entre forma do pensamento
e forma da linguagem, mais que uma feliz coincidência, é a indicação inequívoca de que a coerência do pensar consigo mesmo
poderá ser garantida e complementada pelo pensar para o outro e
com o outro.16
Segundo a Antropologia de um ponto de vista pragmático, a consumação do pensamento na linguagem se dá pela utilização de caracteres verbais como “sinais meramente mediatos (indiretos) que
em si nada significam, mas só por associação levam às intuições
13. Leibniz, W. G. Nouveax essays sur l’entendement humain, livro III, cap. 01, §
02. Ed. Brusnchwicg. Paris: Gallimard, 1994.
14. Cf. a respeito Capozzi, M. “Kant on logic and language”. In: Buzzetti, D.;
Ferriani, M. (orgs.). Speculative grammar, universal grammar, and philosophical analysis of language. Amsterdam: John Benjamins, 1997.
15. Kant, I. “Começo conjectural da história humana”. In: _____. Kants Schriften,
VIII, p. 110. Tradução francesa: _____. Opuscules sur l’histoire, p. 147.
16. Kant, I. Kritik der Urteilskraft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, § 40.
18
Pedro Pimenta
A “gramática saudável” de Kant
e, por meio destas, a conceitos”.17 Esse processo ocorre quando o
homem se encontra “em estado de sociabilidade”: assim como “em
completa solidão ninguém adornará ou limpará sua casa”, tampouco se sentirá incitado a dar uma “forma” a seus pensamentos
para que se tornem compreensíveis, ou para que sejam dotados de
“uma regra universal para o sentimento de prazer”.18 A passagem
de um estado a outro, da concepção de uma idéia de ordem à sua
realização, é por intermédio de sinais indicativos, que significam
intuições e conceitos que, tomados em si mesmos, se predispõem
a uma tal conformação: “pensar é falar consigo mesmo (os índios
de Otaheite chamam o pensar de linguagem do ventre) e, por conseguinte, também se ouvir interiormente (por meio da imaginação
reprodutiva)”.19 “Falar consigo mesmo” ainda não é como “falar
suficientemente bem”,20 mas para chegar a este estágio quase artístico no uso da linguagem, é preciso encontrar em si mesmo uma
aptidão natural. Quando as crianças “perturbam” os adultos com
seus gritos e sua agitação, essa expressividade, que não chega a ser
linguagem, já contém, no entanto, os elementos necessários à comunicação. Há uma continuidade, uma transição natural prevista
na natureza humana, do pensar silencioso ao pensar com signos
verbais.21
Ora, se o homem pensa e fala antes de ter sido instruído na
lógica ou na gramática, é forçoso reconhecer que essa instrução
não só não acrescenta nada, quanto aos princípios, ao que a inteligência humana já possui, como tampouco propicia a aquisição
de capacidades naturais ou inatas. Tudo o que podem a lógica e
a gramática é incrementar ou refinar o uso de um talento que se
encontra dado. Essas considerações são retomadas pela Crítica da
razão pura. “O Juízo”, diz Kant,
17. Kant, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. de Clélia
Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006, § 38, p.89.
18. Kant, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, § 67.
19. Idem, § 39.
20. Idem, § 01.
21. Kant, I. “Começo conjectural da história humana”. In: _____. Kants Schriften,
VIII, p. 110. Tradução francesa: _____. Opuscules sur l’histoire, p. 147.
19
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010
é um talento que não pode ser ensinado, mas somente exercitado.
A capacidade de julgar, por conseguinte, é também o cunho específico do assim chamado bom senso, cuja falta nenhuma escola pode remediar. Com efeito, se bem que a escola possa fornecer
abundantemente e como que inocular num entendimento limitado
regras tomadas de empréstimo a outros, ainda assim a capacidade
de servir-se corretamente delas deve pertencer ao próprio aprendiz,
e nenhuma regra que lhe possa ser prescrita para esse propósito
estará segura de abuso quando lhe faltar um tal dote natural.22
E, no entanto, do fato de que o juízo não possa ser ensinado
não se segue que o seu princípio não possa ser examinado. Pelo
contrário. É precisamente por ser fundada num talento natural que
uma atividade deve ser estudada para ser compreendida do lado dos
princípios que a tornam possível como efetividade. Daí a importância de uma lógica transcendental, ciência distinta da lógica geral que
indica, além da regra, ou melhor, da condição geral das regras que
são dadas nos conceitos, também, simultaneamente e a priori, o
caso em que a regra deve ser aplicada. [E isso porque] trata de conceitos que devem se referir a priori aos seus objetos, e cuja validade
objetiva, por conseqüência, não pode ser demonstrada a posteriori,
mas tem de poder expor, simultaneamente, segundo suas características gerais, mas suficientes, as condições pelas quais podem ser
dados objetos de acordo com esses conceitos.23
Haveria, de modo similar, uma gramática trasncendental com
“as condições gerais pelas quais podem ser dados objetos” de uma
língua “de acordo com conceitos” de uma linguagem? Parece ser
o caso, apesar da advertência da lógica Dohna-Wundlacken: “a
lógica deve conter princípios a priori... portanto, a lógica é uma
ciência e a gramática não”, pois, como explica Márcio Suzuki24,
a gramática “desempenha”, na formação do pensamento crítico
kantiano, “uma função heurística”, e o próprio Kant menciona
uma “gramática transcendental, que contém o fundamento da lin22. Kant, I. Crítica da razão pura, B 172.
23. Idem, B 175.
24. Suzuki, M. “A palavra como invenção. Heurística e linguagem em Kant”. In:
Studia Kantiana, vol. 6/7 (2008), pp. 47-52.
20
Pedro Pimenta
A “gramática saudável” de Kant
guagem humana”, composta pelos princípios expostos na Estética
e na Lógica transcendental – “a gramática é por certo uma doutrina
do entendimento” (Grammatik ist freilich eines Verstandeslehre), e
constitui, ao lado da lógica, o conjunto das regras que permitem
trazer representações sob conceitos.25 Com esta diferença. Se a
gramática não explica porque os fatos da língua são como tais e
não de outro modo, e permanece “uma mera disciplina” (nur eine
Disciplin), mesmo da linguagem filosófica, a lógica transcendental
explica porque as regras do pensamento são necessariamente essas
e não outras, e é por isso uma “ciência; doutrina” (Wissensachaft;
Doktrin).26
Uma obra como a Crítica da razão pura não é nem poderia
ser produto da atividade puramente espontânea dos poderes intelectuais do homem. A filosofia é um conhecimento cuja forma
é racional; é mais que uma compilação de registros e mais que
um discurso espontâneo, é um discurso “erudito” (gelehrte), que
se articula por escrito.27 Dissociando-se da palavra, tal como formada e emitida pelos órgãos da fala, esse discurso simplesmente
ignora a dimensão sonora da linguagem, a ponto de a eufonia ser
considerada uma “quimera”; como adverte Kant, a “congruência”
de um escrito deve ser julgada unicamente pela “adequação do
estilo à coisa”,28 e nesse caso a linguagem é primordialmente um
instrumento de construção de conceitos, a comunicação relegada
a um papel secundário. Assim, embora as considerações sobre a
espontaneidade do pensamento e da linguagem sugiram que uma
boa parte do que se faz irrefletidamente, obedecendo-se de maneira cega aos poderes da natureza, é feito corretamente, a verdade
é que nem tudo se alcança por essa via – a começar pela filosofia,
25. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Wiener”). In: _____. Kants Schriften,
24.2, p. 790; cf. ainda, no mesmo volume, pp. 502-3 (“Lógica Pölitz”).
26. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Busolt”). In: _____. Kants Schriften,
24.2, p. 609.
27. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Blomberg”). In: _____. Kants
Schriften, 24.2, p. 296.
28. Idem, p. 294.
21
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010
que consiste precisamente na reflexão sobre a condição de possibilidade de tudo o que é feito de acordo com a natureza.
Essa constatação, por óbvia que pareça aos leitores da Crítica
da razão pura, coloca uma questão crucial, que pode ser formulada
nos seguintes termos: faz melhor quem se atém ao fazer natural, ou
quem procura aperfeiçoá-lo com a arte? A instrução deforma? Ou seria
a arte capaz de melhorar a natureza? –, e vinha sendo discutida por
filósofos, gramáticos e lógicos no Século das Luzes.29 A filosofia, a
exemplo das outras ciências, embora realize uma disposição natural do homem,30 está longe de ser o produto de processos naturais
deixados a si mesmos. A ciência, já dizia Kant em 1762, nasce na
Grécia com “a liberdade, a emulação, o cuidado do corpo, a prosperidade”, formas de organização e práticas sociais e individuais pelas
quais o homem se distingue, por suas aptidões técnicas e com sua
razão, dos demais membros do mundo natural. É então que a linguagem pode se tornar objeto de gramática. Tal ciência, se, por um
lado, enriquece a compreensão do objeto ao oferecer dele um saber
sistemático, gera, por outro lado, o equívoco de julgar o saber da língua pelo usuário espontâneo (o “erudito amador” – Gelehrte ohne
Profession) a partir dos critérios do estudioso da língua (o “erudito
profissional” – Gelehrte von Profession), que nem sempre é dotado de
uma sabedoria (Gelehrsamkeit) que o bom falante pode ter.31
A passagem das aulas de Kant em que se encontram essas
considerações foi anotada por Herder, que parece ter feito um
bom uso dela, anos mais tarde, no Ensaio sobre a origem da linguagem (1772). Explica-se ali que
uma vez que a gramática duma língua mais não é que uma filosofia
sobre essa língua e um método para sua utilização, acontece neces29. Cf. Locke, Ensaio sobre o entendimento humano, livro IV, cap. 17, § 04 (4ª
edição, 1704); Harris, J. Hermes, or a philosophical inquiry concerning universal
grammar, livro I, cap. 02 (1751); Ferguson, A. An essay on the history of civil
society, parte III, seção 07 (1767).
30. Para o sentido preciso de “disposição natural” cf. Lebrun, G. “Une téléologie
pour l’histoire ?”. In: _____. Kant sans kantisme, pp. 266-70. Paris : Fayard,
2009.
31. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Herder”). In: _____. Kants Schriften,
24.1, pp. 04-6.
22
Pedro Pimenta
A “gramática saudável” de Kant
sariamente que, quanto mais próxima da origem está uma língua,
menos gramática tem; e a língua mais antiga era apenas o atrás
mencionado vocabulário da natureza.32
A constituição da gramática como sistema de uma língua é
histórica, dá-se num processo conseqüente ao desenvolvimento
de disposições naturais: “lentamente, a gramática ia-se formando.
Assim, esta arte da fala, esta filosofia sobre a língua, só muito devagar e gradualmente se foi edificando, ao longo de séculos, de eras”.33
Onde esse processo está mais adiantado, as línguas se tornam um
meio para o progresso da razão que, por sua vez, ajuda no progresso do uso das línguas.34 Esse equilíbrio tem, no entanto, um custo.
A arte da gramática substitui “a riqueza das determinações existentes no próprio léxico”, suficientes para que a “linguagem viva”,
esse “simples confluir de imagens e impressões sem conexão nem
determinação”, resolvesse todos os problemas de análise e comunicação do pensamento.35 “Mas como pode alguma vez”, pergunta-se
Herder, “ter existido uma língua totalmente destituída de gramática? Um simples confluir de imagens e impressões sem conexão nem
determinação? Tratava-se de linguagem viva, e isso resolvia ambos
os problemas!”. Resposta vaga, entretanto, que merece um esclarecimento: “a enorme adequação do gesto fornecia de algum modo a
esfera e a medida a que pertencia esse confluir de imagens; e toda a
riqueza das determinações existentes no próprio léxico substituía a
arte da gramática”. É o que prova, segundo Herder,
a escrita dos povos do México. Essa gente representava simples
imagens separadas. Quando não lhes ocorria uma imagem sensível,
convencionavam certos riscos; a conexão entre eles tinha de ser
dada pelo mundo a que pertencia cada um, adivinhada com base
nele. E veja-se como hoje em dia os mudos e os surdos levam longe
32. Herder, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem, livro I, capítulo 03. Trad. de
José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987, p. 106.
33. Idem, livro I, capítulo 03, p. 109.
34. Idem, livro I, capítulo 03, p. 111.
35. Idem, livro I, capítulo 03, p. 109.
23
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010
esta arte divinatória que consiste em descobrir uma conexão a partir de sinais isolados...36
Herder afirma ainda que as “formas de economia” estrutural
que se encontram nas primeiras línguas “tornar-se-ão tanto menos
necessárias quanto mais for sendo introduzida no arranjo da língua uma gramática saudável” (gesunde Gammatik), que constituiria
“uma filosofia da língua”.37 Subjacente a essa concepção, encontrase, nas palavras de José M. Justo sobre esse texto, “a idéia de uma
diversidade unificada pelos encadeamentos da discursividade”, de
uma “natureza permanente dentro da cadeia de progressão do gênero humano”, e, portanto, de uma imbricação necessária entre as
“forças” (Kräfte) naturais e sua expressão simbólica. Herder encontra na escrita a realização da mesma disposição que preside a
expressão oral, sem ruptura entre natureza e arte.38
Se voltarmos agora a Kant, veremos que também para ele a
diferença entre natureza e arte é mínima, quando se referem essas
palavras ao homem. “A arte”, diz a Crítica do Juízo, “distingue-se da
natureza como o fazer se distingue do agir ou do atuar em geral, e
o produto ou conseqüência da arte se distingue, enquanto obra, do
produto da natureza como efeito.”39 A dificuldade da arte é chegar
a uma obra que, como produto do fazer técnico, tenha a mesma
qualidade que o efeito da natureza como produto do agir espontâneo. Em todo caso, é preciso confiar que a disposição natural
se basta, em certa medida, a si mesma, desde que não exceda um
limite que, entretanto, é difícil de discernir. Cabe à arte encontrar
esse ponto, em cada caso, aplicando uma técnica complementar à
propensão natural.40
36. Idem, livro I, capítulo 03, pp. 109-10.
37. Idem, livro I, capítulo 03, p. 111.
38. Justo, J. M. “Posfácio”. In: Herder, J. G. Também uma filosofia da história.
Lisboa: Antígona, 1995, pp. 176-85.
39. Kant, I. Kritik der Urteilskraft, § 43, B 174. Cf. a mesma distinção em Kant,
I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Philippi”). In: _____. Kants Schriften,
24.1, pp. 311-2.
40. Mesmo no caso da doença que atinge o corpo e ameaça a sua integridade e
existência, Kant hesita em afirmar que a arte poderia efetivamente corrigir a
natureza desviando-a de sua tendência própria. Cf. a respeito Canguilhem,
24
Pedro Pimenta
A “gramática saudável” de Kant
Isso vale tanto para as artes mecânicas quanto para as liberais.
Nas ciências em geral, e na filosofia em particular, a dificuldade é
fazer com que as “ciências sistemáticas” ou filosóficas (lógica, gramática) se mostrem convenientes ao estudo das “aptidões técnicas”
naturais (pensar, falar) que são o seu objeto, sem submetê-los a regras arbitrárias em nome de um sistema. A Crítica da razão pura
é um bom exemplo de que isso é possível. Se Kant pode afirmar
que as duas partes que a compõem – Estética e Analítica transcendentais – contêm os elementos de uma gramática transcendental,
é porque se ensina ali como “expressar um pensamento com exatidão” fazendo-se exatamente isso: expressando-se com exatidão, sem
nada “ambíguo, vago ou equívoco”,41 tornando-se disciplina do entendimento filosófico. Para chegar a esse grau de precisão, para escrever numa linguagem acertada, que embora seja fruto da mais alta
reflexão parece perfeitamente conveniente ao assunto, Kant deve ter
passado, na redação do texto, por um processo como o que Ricardo
R. Terra chamou de “elaboração de esquemas sem coerção”.42 O
esboço de pensamentos na linguagem realiza, por tentativa e erro,
logo a posteriori, a esquematização, no texto de Kant, dos conceitos
obtidos por reflexão, e permite assim ordená-los de acordo com as
suas respectivas determinações lógicas. Ao expor o sistema completo dos princípios do conhecimento humano, a Crítica da razão pura
delineia como que a “forma natural” do saber filosófico, ou a forma
que ele deveria ter para fazer jus à tarefa que lhe cabe. Sem ensinar
a pensar, ensina o leitor a ajustar seu pensamento à expressão mais
rigorosa, e pode por isso, a justo título, ser considerada como uma
possível “gramática saudável” da filosofia na época moderna.
Bibliografia
CANGUILHEM, G. “Thérapeutique, experimentation, responsabilité”. In: _____. Études d’histoire et de philosophie des sciences, 7ª edição.
Paris: Vrin, 2002.
G. “Thérapeutique, experimentation, responsabilité”. In: _____. Études
d’histoire et de philosophie des sciences. 7ª edição. Paris: Vrin, 2002, pp. 386-9.
41. Kant, I. Vorlesungen über Logik (“Lógica Blomberg”). In: _____. Kants
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42. Terra, R. R. “Reflexão e sistema”. In: _____. Passagens. Estudos sobre a filosofia
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25
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 11-26 – jan.-jun. 2010
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Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
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Edição bilíngüe. Trad. Arnaud Pelletier. Paris: Vrin, 2009.
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TERRA, R. R. “Reflexão e sistema”. In: _____. Passagens. Estudos sobre a
filosofia de Kant. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.
26
O Nietzsche “francês” nas páginas da Zeitschrift
für Sozialsforschung*
Ernani Chaves
Universidade Federal do Pará.
“Man kann von Nietzsche nicht sprechen, ohne ihn
eindeutig zur Aktualität in Beziehung zu bringen.”1
Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar os principais pontos
da discussão ocorrida nas páginas da
Zeitschrift für Sozialforschung, a revista do Instituto de Pesquisa Social, a
propósito da interpretação francesa
de Nietzsche, nos anos imediatamente anteriores à eclosão da Segunda
Guerra Mundial. Privilegia-se as resenhas publicadas na Zeitschrift, em
especial as de Karl Löwith e Max
Horkheimer, acerca do livro de Karl
Jaspers sobre Nietzsche, publicado na
Alemanha em 1936, e que recebera
uma acolhida favorável nos círculos
franceses ligados a Jean Wahl e à revista Recherches philosophiques. Trata-se
de importante capítulo da história da
recepção das ideias de Nietzsche, num
momento em que sua filosofia estava
sendo apropriada pelo nazismo.
Palvaras-chave: atualidade, exis­
ten­cialismo, história, crítica.
Abstract: This article presents the
main points discussed in the pages
of Zeitschrift für Sozialforschung, publication of the Institute of Social
Research, concerning the French interpretation of Nietzsche in the years
that preceded the Second World War.
A privilege will be conceded to the
reviews published in the Zeitschrift,
particularly those written by Karl
Löwith and Max Horkheimer concerning Karl Jaspers’ book about
Nietzsche, published in Germany in
1936, which was well received by the
french circles bonded to Jean Wahl
and the publication Recherches philosophiques. That’s an important chapter in the history of the reception of
Nietzsche’s ideas in a moment that
his philosophy was being appropriated by Nazism.
Keywords: present time, existentialism, history, critics.
* Este artigo é a versão em português do artigo com o mesmo título, publicado em Stigenlin, M.; Pornschlegel, C. (orgs.) Nietzsche und Frankreich.
Berlin: Walter de Gruyter, 2009. Agradeço ao CNPQ e ao DAAD, pelo
apoio para a realização da pesquisa que originou este artigo. As fontes bibliográficas foram pesquisadas na Biblioteca Municipal de Berlim, na
Biblioteca “Duquesa Anna Amália” em Weimar, e na Biblioteca do Centro
“George Pompidour”, em Paris.
1. “Não se pode falar de Nietzsche sem relacioná-lo claramente com a atualidade” (Horkheimer, M. “Bermekungen zur Jaspers’ Nietzsche”. In: Zeitschrift
für Sozialforschung, Jahrgang VI/137, p. 406).
27
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010
A partir de janeiro de 1931, Max Horkheimer assume oficialmente a direção do Institut für Sozialsforschung, ligado à
Universidade de Frankfurt, onde o próprio Horkheimer se tornara professor de Filosofia Social. A assunção de Horkheimer
significou uma mudança não apenas na direção burocrática do
Instituto, mas, principalmente, na sua perspectiva teórico-prática,
qual seja, a ideia de um programa interdisciplinar de pesquisa em
que confluem filosofia, psicanálise, sociologia, economia e uma
reflexão sobre as artes. A criação de uma revista, a Zeitschrift für
Sozialsforschung, de periodicidade semestral, coroou, de algum
modo, essa mudança.
O primeiro número da Revista apareceu no verão de 1932,
tornando-se assim a primeira publicação do Instituto na gestão de
Horkheimer. Aliás, é importante ressaltar que tanto o programa
interdisciplinar de pesquisa como a criação da revista foram ideias
do próprio Horkheimer, que ia, assim, imprimindo sua própria
marca no Instituto.2 Nos seus três primeiros anos, o redator-chefe
foi Leo Lowenthal, que não tinha nenhum compromisso universitário e havia abandonado seu posto de professor no ginásio, para
dedicar-se inteiramente às suas atividades no Instituto. A revista
era, na ocasião, publicada pela editora Hirschfeld, de Leipzig, a
mesma que publicara o Archiv für die Geschichte des Sozialismus
und der Arbeitbewegung, que antecedera a Zeitschrift durante o período em que o historiador Carl Grünberg dirigira o Instituto.
Entretanto, embora as duas revistas tivessem em comum uma
mesma apresentação visual, se diferenciavam bastante do ponto
de vista da organização do conteúdo. A Zeitschrift compunha-se,
fundamentalmente, de artigos e resenhas. A partir da imigração, os artigos eram escritos exclusivamente pelos membros do
Instituto, enquanto as resenhas, também escritas por convidados
ilustres como, por exemplo, Karl Löwith e Raymond Aron, eram
distribuídas em secções, de acordo com os diferentes ramos do conhecimento: filosofia, sociologia geral, psicologia, história, política
2. Cf. Wiggershaus, R. Die Frankfurter Schule. Geschichte. Theoretische
Entwicklung. Politische Bedeutung, 2. Auflage. München: DTV Verlag, 1989,
p. 135.
28
Ernani Chaves
O Nietzsche “francês” nas páginas...
e movimentos sociais, sociologia específica, economia e literatura.
Segundo Alfred Schimdt, a Zeitschrift “constitui um dos maiores
documentos do espírito europeu deste século [isto é, do século
XX]” e se diferencia de outras revistas semelhantes, na medida em
que “perseguiu um programa unitário, sem que, por isso, as inclinações individuais e os interesses dos colaboradores, ou mesmo a
reivindicação de cientificidade, tivessido sido diminuídas”.3
Atento às possíveis graves conseqüências da ascensão de
Hitler ao poder, após sua confirmação como chanceler pelo presidente Hindenburg em 30 de janeiro de 1933, Horkheimer cuidou
imediatamente da sobrevivência da instituição. Ainda em fevereiro de 1933, instalava em Genebra uma “Societé Internationale
de Recherces Sociales” e, logo em seguida, duas representações do
Instituto no exterior: uma em Paris, no Centre de Documentation
da École Normale Supérieure, dirigida por Celestin Bouglé, discípulo de Durkheim, e outra em Londres, na Le Play House do
Londoner Institute of Sociology. Os acontecimentos justificaram
a lucidez de Horkheimer: em 13 de março de 1933, a sede do
Instituto, em Frankfurt, foi ocupada pela polícia e fechada.
Embora a sede da administração do Instituto fosse em
Genebra, o escritório de Paris assumiu sem dúvida o papel mais
relevante nos anos da imigração que antecederam o início da
Segunda Guerra Mundial. De acordo com Rolf Wiggershaus, o
escritório de Paris ganhou toda sua importância por três motivos:
1) por estar em Paris a nova editora do Instituto, a prestigiada
Felix Alcan, que passou a publicar a Zeitschrift; 2) por se tornar o
ponto de convergência dos projetos empíricos do Instituto financiados internacionalmente; e, enfim, 3) por ter se tornado uma es 3. Schmidt, A. “Die Zeitschrift für Sozialforschung und seine Gegenwärtigen
Bedeutung”. In: Zeitschrift für Sozialforschung. Photomechanischer Nachdruck
mit Genehmigung des Herausgebers. München: Kösel-Verlag, 1970, p. 5.
Entretanto, não podemos deixar de mencionar que o debate em torno da
publicação de alguns artigos de Benjamin escritos para a Zeitschrift mostra,
ao contrário da observação de Schmidt, que o clima na Revista, em relação
às “inclinações individuais” e aos “interesses dos colaboradores”, nem sempre
era dos mais amistosos.
29
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010
pécie de posto avançado do Instituto na Europa.4 A Libraire Felix
Alcan assume a impressão e a administração da Zeitschrift a partir
do quarto número, isto é, do segundo número a ser publicado em
1933, depois de Hirschfeld, o editor alemão, ter comunicado a
Horkheimer que não poderia mais correr riscos, tendo em vista a
nova situação política. Conforme o contrato com a Felix Alcan, o
Instituto garantia 300 assinaturas, enquanto a editora se responsabilizava pela tiragem de 800 exemplares e mais 50 exemplares para
propaganda. Além disso, a editora tornava possível a continuidade
do espírito da Revista como uma “publicação científica em língua
alemã”,5 embora aceitasse artigos e resenhas em francês e inglês.
O diretor do escritório de Paris até 1936 foi Paul Honigsheim,
que tinha sido assistente do sociólogo Leopold von Wiese, um
dos fundadores da “Sociedade Alemã de Sociologia” e que até
a imigração exercera o cargo de diretor da Volkshochschule de
Colônia.6 Honigsheim tinha também a vantagem de ser francoalemão e, com isso, de dominar as duas línguas.
Ora, lidos atentamente, os números da Zeitschrift publicados
pela Felix Alcan, no período que se estende de 1933 até 1940,
possibilitam-nos acompanhar o intenso debate em torno da obra e
do pensamento de Friedrich Nietzsche, que já ocupava o primeiro
plano das controvérsias filosóficas da época devido à sua apropriação pelo nazismo. E é principalmente na secção de resenhas
que o debate acontece. Dele participam todos os membros mais
ilustres do Instituto, tais como Horkheimer, Adorno, Benjamin
e Marcuse, e colaboradores importantes e influentes como Karl
Löwith e o próprio Paul Honisgheim.
No volume II, por exemplo, de 1934, Honigsheim publica
uma resenha com o título de “Taine, Bergson et Nietzsche dans
4. Wiggershaus, R. Op. cit., p. 153. Cf. ainda, a respeito, carta de Horkheimer
a Sébastien Charléty, historiador e, à época, reitor da Universidade de Paris,
de 21 de junho de 1933. In: Horkheimer, M. Gesammelte Schriften, Band 15:
Briefwechsel 1913-1936. Frankfurt: Fischer, 1995, p. 108.
5. Cf. a respeito o “Prefácio” de Horkheimer ao segundo número de 1933, ou
seja, ao primeiro que foi publicado pela Felix Alcan.
6. Wiggershaus, R. Op. cit., p. 153.
30
Ernani Chaves
O Nietzsche “francês” nas páginas...
la nouvelle littérature française”, na qual já faz algumas observações a propósito da recepção francesa dos três autores citados. A
presença de Nietzsche se justifica na medida em que suas ideias –
precedidas pelas de Lutero e dos românticos – colocam em questão “o ideal racionalista” da civilização francesa. Concluindo sua
resenha, Honisgheim faz uma breve e sintética apreciação de dois
livros de Geneviève Bianquis7, da biografia de Nietzsche escrita
por Félicien Challaye8, da conhecida obra de Thierry Maulnier9 e
do livro de Louis Vialle10, e termina sua apreciação apontando o
que haveria de comum entre essas diferentes obras: 1) existe algo
“constant” na obra de Nietzsche, apesar de suas claras variações;
2) a posição de Nietzsche seria não apenas “destrutiva”, mas também “afirmativa”, de tal modo que tanto os “católicos” quanto os
“glorificadores do nacionalismo” se encontram amparados por ela.
Segundo Honigsheim, estas duas características tornariam compreensível a aceitação de Nietzsche “no clássico país dos direitos
do homem”.11
Herbert Marcuse, por sua vez, faz a resenha de dois livros
sobre Nietzsche no volume VIII da Zeitschrift, de 1938: os de
Heinrich Härtie12 e Georg Siegmund.13 Marcuse considera o livro
de Härtie como representante da “posição oficial”, que gostaria
de confirmar a afinidade entre Nietzsche e o nazismo.14 Se, por
um lado, o livro de Härtie diverge de outros da mesma temática,
na medida em que não dissimula as posições contraditórias de
7. Bianquis, G. Nietzsche en France. Paris: Felix Alcan, 1929; e _____. Nietzsche.
Paris: Les Éditions Rieder, s/d.
8. Challaye, F. Nietzsche. Paris: Libraire Melotté, s/d.
9. Maulnier, T. Nietzsche. Paris: Libraire de La Revue Française, 1933.
10. Vialle, L. Détresses de Nietzsche. Paris: Felix Alcan, 1933.
11. Paul Honisgheim, “Taine, Bergson et Nietzsche dans La nouvelle literature
française”. In: Zeitschrift für Sozialforschung. Band II, 1934, p. 414.
12. Härtie, H. Nietzsche und der Nationalsozialismus. München: Frans Eher
Nachfolger, 1937.
13. Siegmund, G. Nietzsche, der Atheist und Antichrist. Paderborn: BonifaciusDruckerei, 1937.
14. Marcuse, H. “Besprechung”. In: Zeitschrift für Sozialforschung, Band VII,
1938, p. 226.
31
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010
Nietzsche, por outro lado acaba por construir uma “interpretação equivocada”, pois retira os textos dos seus contextos. Assim,
escreve Marcuse, “a luta de Nietzsche contra o anti-semitismo é
concebida apenas como uma antiga forma de ódio aos judeus, suas
críticas aos alemães apenas como algo na direção de uma forma
vitoriosa de germanidade, etc.”. Em relação ao livro de Siegmund,
Marcuse afirma que se trata de “um pequeno livro católico” que,
entretanto, não almeja “nenhuma falsa salvação”: “Siegmund entende a forte influência de Nietzsche a partir da afinidade de seu
anti-cristianismo e ateísmo, sobretudo em uma época cegamente
individualista em que os laços foram rompidos”.15
Nessa perspectiva, e dentro dos limites deste artigo, nos
restringiremos aqui aos dois aspectos da recepção francesa de
Nietzsche à época que mais encontraram repercussão nas páginas
da Zeitschrift: trata-se da crítica contundente ao livro de Jaspers
sobre Nietzsche, publicado em 1936, quando todos os principais
membros do Instituto já estavam no exílio. Essa crítica acaba por
revelar o alvo francês da crítica dos frankfurtianos: o grupo em
torno de Jean Wahl e da revista Recherches philosophiques.
A repercussão na França da interpretação “existencial” de
Nietzsche por Karl Jaspers
Imediatamente após a publicação do livro de Karl Jaspers,
Nietzsche, Einführung in das Verstädnis seines Philosophierens, em
1936, Jean Wahl publica uma resenha do livro na revista Recherches
philosophiques, que ele ajudara a fundar e dirigir.16 A posição de Jean
Wahl no interior da história da recepção francesa de Nietzsche é
ressaltada por Jacques Le Rider da seguinte maneira: “ele foi um
dos primeiros a tratar de Nietzsche com a mesma seriedade que
Hegel ou Kierkegaard”.17 O significado dessa posição não pode
nos escapar: trata-se de alguém que considerava Nietzsche um “fi15. Idem, ibidem.
16. Wahl, J. “Le Nietzsche de Jaspers”. In: Recherches philosophiques, vol VI,
1936-1937, p. 362.
17. Le Rider, J. Nietzsche en France. De la fin du XIXe. Siècle au temps présent.
Paris: PUF, 1999, p. 183.
32
Ernani Chaves
O Nietzsche “francês” nas páginas...
lósofo” e não um “literato”, como era comum à época. Nessa resenha, Wahl não apenas elogia o livro de Jaspers, mas também insere
sua leitura de Nietzsche no conjunto da obra de Jaspers até então
publicada, associando o nome de Nietzsche ao de Kierkegaard e
tornando ambos os fundadores da “filosofia existencial”.
Quando apareceu a tradução francesa do livro de Jaspers,
ocorrida apenas em 1950, Wahl foi convidado para escrever um
“Prefácio”. Ele o faz na forma de uma “Lettre-Préface” dirigida
a Henri Niel, o tradutor. Nessa “carta prefácio”, Wahl reitera os
aspectos fundamentais de sua resenha dos anos 1930. Retomando
uma frase do próprio Jaspers, em que ele afirma a crescente importância de Nietzsche e Kierkegaard para a compreensão da “situação filosófica presente” em detrimento do lugar ocupado antes
por Hegel e seus seguidores (leiam-se aqui Marx e o marxismo),
Wahl afirma:
Trata-se, pois, antes de tudo, de tomar consciência desses dois
eventos filosóficos que são Nietzsche e Kierkegaard, sem jamais
separá-los um do outro, cada um deles ganhando toda a sua significação, como se poderá mostrar, apenas por meio de sua relação e
de sua oposição um ao outro.18
Entretanto, nessa “carta prefácio” Wahl acrescentou explicitamente um outro elemento que, na resenha dos anos 1930,
aparecia apenas de maneira implícita e bastante sutil: o nome de
Heidegger. A esse respeito, após ter afirmado que Jaspers, ainda
em 1917, no seu livro Verdade e Existência, havia nos alertado que
tanto Nietzsche quanto Kierkegaard são produtos de uma época
de mudança na história e que, ao mesmo tempo, tomaram consciência da “beleza da época por vir”, ele escreve: “De fato nós estamos,
tanto para Jaspers quanto para Heidegger, diante do fim da filosofia ocidental e da racionalidade considerada como objetiva e absoluta”.19
18. Wahl, J. “Lettre-Préface”. In: Jaspers, K. Nietzsche. Introduction à sa philosophie. Paris: Gallimard, 1950, p. I.
19. Idem, p II.
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Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010
Assim, a interpretação de Jean Wahl reiterava não apenas
a ligação íntima e absolutamente necessária entre Nietzsche e
Kierkegaard, mas também aquela entre Jaspers e Heidegger.
A resposta a Jean Wahl nas páginas da Zeitschrift vai ser dada
em dois momentos por três autores diferentes, mas que se complementam por se dirigirem a um mesmo alvo: a crítica à recepção
de Nietzsche por meio da “filosofia existencial” e a necessidade
de relacionar Nietzsche e a “atualidade”. O primeiro momento
se constitui no volume VI, de 1937, em que tanto Löwith como
Horkheimer escrevem sobre o livro de Jaspers; o segundo momento no volume VIII, de 1939, ainda editado em Paris, mas
quando a sede do Instituto já havia sido mudada para Nova York
– nele aparece a resenha de Adorno sobre o livro de Wahl sobre
Kierkegaard. Acompanhemos, rapidamente, o movimento desse
três textos.
Na sua resenha do livro de Jaspers, Löwith inicia com uma
frase lapidar, que dá o tom do debate e da crítica:
No novo livro de Jaspers, simplesmente nada se percebe da atua­
lidade de Nietzsche. Sua ampla introdução parece pairar além de
todas as questões da época, no puro éter de um conhecimento
universal.20
Ora, é bom lembrar que Jean Wahl havia escrito uma resenha do livro de Löwith sobre Nietzsche21, do mesmo modo como
Löwith havia publicado dois artigos na Recherches philosophiques,
em que apresentara o esboço de seus argumentos que, um pouco
20. Zeitschrift für Sozialforschung. Herausgegeben von Max Horkheimer. Paris:
Librairie Felix Alcan, Jahrgang VI, 1937, p. 405.
21. Nouvelle Revue Française, mai 1937. O livro de Löwith é o famoso A doutrina do eterno retorno de Nietzsche, cuja primeira edição, de 1935, foi publicada
pela editora Die Runde, em Berlim, quando seu autor já se encontrava no
exílio. Sobre a recepção do livro de Löwith entre os membros do Instituto, já
exilados, permito-me remeter a Chaves, E. “Nietzsche en exil: a propos de la
lecture du livre de Karl Löwith sur Nietzsche (1935) par Walter Benjamin”.
In: D’ Iorio, P.; Merlio, G. (ed.). Nietzsche et l’ Europe. Paris: Éditions de la
Maison des Sciences de l’ Homme, 2006.
34
Ernani Chaves
O Nietzsche “francês” nas páginas...
depois, seriam desenvolvidos em seu livro Von Hegel zu Nietzsche.22
Além disso, no mesmo volume em que Löwith publica “La conciliation hégélienne”, Paul-Laurent Landsberg publica também
uma resenha bastante elogiosa do livro de Löwith sobre Nietzsche
que havia sido recentemente publicado na Alemanha.23 Walter
Benjamin, por sua vez, durante as negociações para encontrar
uma editora francesa que publicasse uma coletânea de artigos de
Horkheimer, irá sugerir, junto a Bernard Groethuysen (de quem
partira a ideia) e Raymond Aron, a mesma editora da Recherches
philosophiques, a Boivin.24 Tudo isso implica dizer que as relações
entre o grupo de Jean Wahl e os imigrantes alemães eram bastante cordiais, independente das diferenças, por exemplo, no que
concerne à interpretação de Nietzsche. Por outro lado, no volume
VI da Zeitschrift, de 1937 – o mesmo em que aparecem as resenhas de Löwith e Horhkeimer sobre o livro de Jaspers –, também foram publicadas duas resenhas sobre números específicos da
Recherches philosophiques: uma foi escrita por Walter Benjamin,25 e
outra por ninguém mais, ninguém menos que Raymond Aron.26
É interessante ressaltar que nessas duas resenhas seus autores assinalam a forte ligação da revista com a “pesquisa alemã”, como
diz Benjamin, ou com as “doutrinas alemãs”, como diz Aron, mas
ao mesmo tempo não deixam de criticá-la. Benjamin, não por
acaso, em virtude da presença de uma “antropologia ontológica
22. “L’ achèvement de la philosophie classique par Hegel et sa dissolution chez
Marx et Kierkegaard”, publicado no volume IV, 1934-1935, e “La conciliation hégélienne”, publicado no volume V, 1935-1936.
23. Landsberg, P-L. “Compte-Rendus”. In: Recherches philosophiques, vol. 5,
1935-1936, pp. 535-7.
24. Horkheimer, M. Gesammelte Schriften. Band 16: Briefwechsel 1937-1940.
Frankfurt: Fischer, 1995, p. 314. Tentando convencer Horkheimer da “seriedade” de Groethuysen, Benjamin afirma, entre outras coisas, que “para
ele [Groethuysen] Heidegger nada mais é do que uma moda literária”.
Benjamin repete a sugestão em outra carta, escrita em 7.02.1938 (Idem, p.
379).
25. Zeitschrift für Sozialforschung. Herausgegeben von Max Horkheimer.
Jahrgang VI, 1937, pp. 173-4. A resenha de Benjamin refere-se ao volume
IV, de 1934-1935..
26. Idem, p. 417-9. A resenha de Aron refere-se ao volume V, de 1935-1936.
35
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010
e metafísica” na maioria dos artigos, a qual remonta a Scheler e
a Heidegger.27 Aron, por sua vez, assinala a “confusão ideológica,
cujo testemunho é tanto a justaposição de artigos de orientação
diferente quanto a qualidade, nem sempre boa, dos mesmos”, do
mesmo modo como critica os artigos que seguem a “filosofia existencial”, mal representada nos de Lévinas, Benjamin Fondane e
Jeanne Hersch, esta última chamada de “discípula fervorosa de
Jaspers”. Como se vê, havia tanto do lado alemão, aqui representado por Benjamin, como do lado francês, representado por Aron,
uma desconfiança em relação à recepção francesa da filosofia alemã, que dizia respeito a Jaspers e Heidegger.
Após criticar Jaspers por não se posicionar diante da possível responsabilidade do próprio Nietzsche por sua apropriação
pelo nazismo,28 Löwith vai resumir sua crítica no seguinte aspecto:
Jaspers aplica suas próprias concepções filosóficas à filosofia de
Nietzsche e, com isso, acaba por produzir uma série de equívocos. O conceito de vida, por exemplo, transforma-se, nas mãos de
Jaspers, num “conceito existencial” e que supõe uma referência à
transcendência divina, apesar de todas as críticas de Nietzsche a
essa possibilidade. Grosso modo, Jaspers transforma questões candentes colocadas por Nietzsche em uma “exigência existencial”. A
crítica de Löwith tem como fundamento sua própria interpretação de Nietzsche, que já estava presente no seu livro de 1935, A
doutrina nietzschiana do eterno retorno do mesmo. Assim, contra a
posição de Jaspers de que a filosofia de Nietzsche seria comandada por um “movimento vertiginoso” ou que seria uma simples
“conjuração do infinito”, Löwith reafirma a ideia de que a filosofia
de Nietzsche seria um “sistema em aforismos” que é atravessado
por uma questão central – o conflito entre querer de volta o antigo mundo “finito” e, ao mesmo tempo, ansiar por um novo “para
onde”, por uma nova meta – e cuja forma não seria uma vaga
27. Benjamin, justamente, separa o artigo de Löwith publicado nesse número por
sua “atitude crítica” em relação a essa antropologia de cunho “existencial”.
28. Löwith também expressou a mesma crítica em carta dirigida a JenWahl, que
foi anexada por este na sua resenha do livro de Jaspers, já mencionada.
36
Ernani Chaves
O Nietzsche “francês” nas páginas...
dialética, “mas caracterizada pelas três transformações, descritas
no primeiro discurso de Zaratustra”.
Em uma carta a Löwith, escrita de Nova York em 27 de julho
de 1937, Horkheimer comunica que escreveu uma “longa consideração” sobre o livro de Jaspers, a qual deveria ser publicada no
mesmo número, no “outono” daquele ano, e justifica seu texto por
uma preocupação com a repercussão do livro de Jaspers na França
e em outros lugares. Trata-se, portanto, de tomar uma clara posição em defesa de Nietzsche contra as conseqüências dos equívocos de Jaspers, em especial quando lidos fora da Alemanha. A esse
respeito, escreve Horkheimer:
Justamente porque na França, e em outros lugares, este livro tem
grande repercussão, eu ainda gostaria de confrontar alguns problemas da exposição de Jaspers com os textos de Nietzsche, para
mostrar como Jaspers se saiu em questões relativas aos judeus, aos
franceses, aos alemães e à ideia de nação. Nós conhecemos tudo isso
muito bem, mas em outros países essas coisas são desconhecidas.29
A crítica de Horkheimer, por sua vez, pressupõe todos os elementos da chamada “teoria crítica” em sua primeira fase. Assim,
ela começa caracterizando o lugar da fala de Jaspers, que é o do
“pequeno burguês” e que, por isso, fará um supremo esforço para
tornar também o próprio Nietzsche um “pequeno burguês”, visando tornar sua filosofia aceitável e palatável. Nessa perspectiva,
a interpretação de Jaspers acaba não escondendo sua vinculação a
uma ideologia “liberal”, cuja conseqüência é “evitar os antagonismos” da filosofia de Nietzsche. Além disso, Horkheimer destaca a
radicalidade do pensamento de Nietzsche, colocando-o em relação com Marx e Freud. Diz ele que “Nietzsche analisou o espírito
objetivo de sua época, a constituição psíquica da burguesia”, numa
espécie de antecipação, diríamos nós, das análises freudianas em
seus textos sobre a cultura, algo que não escapou a Horkheimer.
Por outro lado, não se poderia deixar de reconhecer os elementos
utópicos – e por isso mesmo emancipatórios – contidos na con29. Horkheimer, M. Gesammelte Schriften. Band 16: Briefwechsel 1937-1940.
Frankfurt: Fischer, 1995, pp. 202-3.
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Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 27-39 – jan.-jun. 2010
cepção do Além-do-homem. O problema, segundo Horkheimer,
está no fato de que Nietzsche não conheceu Marx, mas apenas os
social-democratas. A conseqüência disso é dupla: a primeira é que
Nietzsche não pode conceber a meta do além-do-homem como
sendo a “sociedade sem classes”, um conceito que aos poucos se
perde na social-democracia; a segunda – Horkheimer tem em
mente, muito provavelmente, a Crítica ao programa de Gotha – é
que Nietzsche acabou por avaliar equivocadamente o caráter histórico do trabalho, ao pensar que ele não poderia perder seu efeito
escravizador. Apesar disso, não se poderia deixar de reconhecer
“seu ódio por um mundo dominado pela economia”.
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39
Heidegger e a Doutrina da Personalidade
em Kant
Jean Leison Simão
Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM)
Resumo: Trata-se do desenvolvimento do conceito de personalidade em
Kant, segundo Heidegger, sob três
determinações: personalidade transcendental, personalidade psicológica e
personalidade moral.Especificamente,
o objetivo é definir o conceito estrito e
autêntico de personalidade – expresso
na personalidade moral – em relação
aos conceitos mais gerais, tanto da
personalidade transcendental quanto
da psicológica. Nos conceitos mais
gerais uma ontologia não é possível.
Na determinação da personalidade
transcendental não se manifesta o
ente do sujeito, portanto, não podemos revelar o ser deste ente; já na
determinação da personalidade psicológica o ente do sujeito é manifestado,
entretanto o que inviabiliza a ontologia é o fato de este ente (a alma) não
poder ser tomado em si mesmo, isto é,
não poder ser independente do corpo.
O conceito mais estrito e autêntico
em Kant, segundo Heidegger, é o que
torna possível uma ontologia, na medida em que é o único que, a partir
da peculiaridade da autoconsciência
moral em relação à autoconsciência
empírica e a transcendental, manifesta onticamente e de imediato a pessoa
naquilo que é: em sua dignidade.
Palavras-chave: personalidade trans­cendental, personalidade psicológica, personalidade moral, Kant,
Heidegger.
Abstract: It is about the development of the concept of personality
in Kant according to Heidegger and
under three determinations: transcendental personality, psychological
personality and moral personality.
Specifically, the objective is to define
the strict and authentic concept of
personality – expressed in the moral
personality – related to the most general concepts, not only of the transcendental personality but also of the
psychological one. In the most general concepts the ontology is not
possible. In determining the transcendental personality the subject
entity is not manifested. However,
what makes the ontology not feasible is the fact that this entity (the
soul) is not taken in itself, that is, it
is not independent from the body.
The most strict and authentic concept in Kant according to Heidegger
is what makes possible one ontology
once it is the only one to, from the
peculiarity of the moral auto-consciousness compared to the empirical
auto-consciousness, manifest ontologically and promptly the person in
what he is: his dignity.
Keywords: transcendental personality, psychological personality, moral
personality, Kant, Heidegger.
41
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
I. Introdução
No terceiro capítulo da obra Os problemas fundamentais da fenomenologia, Heidegger trata, em três seções (13, 14 e 15), da tese
ontológica moderna sobre os modos básicos do ser da natureza (res
extensa) e do espírito (res cogitans). Para sermos mais precisos: na
seção 13, Heidegger se propõe a caracterizar tal distinção a partir
da concepção kantiana do problema, com o objetivo de mostrar
que os filósofos da modernidade – os quais pretendiam se orientar
fundamentalmente para o sujeito – não cumprem com sua promessa, pois os problemas de princípio subjacentes na orientação
ontológica moderna permanecem dependentes da ontologia tradicional (antiga e medieval). Esses problemas de princípio serão
propriamente tema da seção 14, que se constitui de uma análise
crítica da concepção de personalidade em Kant – cuja interpretação do ser se desenvolve vinculada ao conceito de subsistência –,
o que conduz à necessidade de colocação de uma questão mais
fundamental que interroga pelo ser. Por conseguinte, é na seção 15
que Heidegger conclui abordando a problemática fundamental da
determinação do ser do “sujeito” (Dasein), não sob uma orientação
unilateralmente subjetivista, como fizeram os modernos, senão
como ponto de partida da problemática filosófica.
No presente artigo não nos ocuparemos da reconstrução argumentativa heideggeriana das duas últimas seções. Limitaremonos apenas à primeira, mas não com o objetivo meramente de
reconstruir a tematização da distinção ontológica dos modos do
ser segundo a concepção de Kant. Nosso propósito é, sobretudo, o
de investigar a caracterização heideggeriana da personalidade em
Kant sob três determinações fundamentais: personalidade transcendental, personalidade psicológica e personalidade moral.
De certa forma, a proposta da seção 13 (a caracterização da
distinção entre res cogitans e res extensa e a exposição dos princípios
de tal distinção) pode ser identificada em nosso trabalho. Assim,
encontramos nessa tematização da doutrina da personalidade em
Kant um eu em geral, que é somente sujeito (o eu transcendental),
e o eu que é sujeito num sentido estrito (o eu moral), portanto, a
existência de ambos é dependente de nossa vontade, são fins, são
42
Jean Leison Simão
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant
res cogitans. Por outro lado, o eu psicológico é o eu em geral que é
somente objeto, unido ao corpo (matéria), portanto, sua existência
não é dependente de nossa vontade, é um meio, é uma res extensa.1
Não obstante, a definição de personalidade em sentido amplo,
tanto da personalidade transcendental quanto da personalidade
psicológica, não toca o sentido mais central e autêntico de pessoa,
que se exprime na personalidade moral. O caráter mais central
e autêntico dessa personalidade, em relação aos outros conceitos
mais gerais, é o que, especificamente, pretendemos desenvolver.
II.Os conceitos mais gerais de personalidade: personalidade
transcendental e personalidade psicológica
No final da seção 14 Heidegger afirma:
a subjetividade do sujeito é sinônimo de autoconsciência. Esta última constitui a efetividade, o ser deste ente. Daqui decorre que,
numa compreensão radical do pensamento de Kant ou Descartes,
o idealismo alemão (Fichte, Schelling, Hegel) visse a autêntica efetividade do sujeito na autoconsciência.2
Em Kant, de acordo com Heidegger, não podemos conhecer o ser do sujeito, no sentido de coisa em si mesma, isto é,
como uma substância finita produzida por um ente originário,
o ens infinitum (Deus), o único que, por ser aquele que produz,
tem acesso ao ser do ente assim produzido. Nós, enquanto pessoas, enquanto entes finitos, somente podemos conhecer os efeitos
das substâncias finitas, sejam elas pessoas (res cogitans) ou coisas
(res extensa). Por conseguinte, não podemos conhecer o ser do
sujeito, ele mesmo, na autoconsciência, senão apenas os efeitos,
as suas determinações.
1. De acordo com a interpretação de Heidegger “segundo Kant, ambas, tanto
a pessoa como a coisa [Sache], são res, coisas [Dinge] no mais amplo sentido, coisas que têm existência, que existem”. Heidegger, M. Los problemas
fundamentales de la fenomenología. Trad. de Juan José Garcia Norro. Madri:
Editorial Trotta, 2000, p. 197.
2. Idem, p. 216. (A numeração das páginas é referente ao original em alemão.
Na tradução espanhola essa numeração aparece ao lado do corpo do texto).
43
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
Isso vale sobretudo para a autoconsciência pura da personalidade transcendental e para a autoconsciência empírica da personalidade psicológica. Entretanto, no caso da autoconsciência moral
da personalidade moral ocorre algo distinto, conforme a análise de
Heidegger, como veremos. Não obstante, poderíamos perguntar
como estão unificadas essas três determinações de personalidade
em Kant. Pergunta legítima que mereceria uma resposta adequada
se, segundo Heidegger, Kant se ocupasse da investigação dessa
unificação, o que, na realidade, não ocorreu.
Deixando a problemática da unificação de lado, é certo que
o sujeito existente (no sentido de subsistência3) tem três modos
de determinação: ele existe como sujeito determinante (personalidade transcendental), como sujeito determinável (personalidade
psicológica) e como sujeito que determina a si mesmo a partir de
sua ação moral (personalidade moral).
Para Heidegger, encontramos o conceito formal de personalidade, no sentido de autoconsciência, no conceito de personalidade transcendental. Isso acontece porque o termo transcendental, em Kant, não deve ser compreendido (como propõem os
neokantianos) sob o ponto de vista epistemológico. Transcendental
na doutrina de Kant significa ontológico. Segundo Heidegger, “o
conhecimento transcendental [em Kant] não se refere a objetos,
isto é, ao ente, senão aos conceitos que determinam o ser do ente”.4
O sistema desses conceitos faz parte de uma filosofia transcendental que é sinônimo de ontologia e não de epistemologia.
Doravante, de que maneira podemos conhecer a determinação da personalidade transcendental? Segundo Heidegger, a determinação do eu transcendental em Kant é fundamentalmente
cartesiana. O eu, nesse sentido, é uma res cogitans, uma res que
tem representações, isto é, que tem comportamentos específicos,
as cogitationes (julgar, odiar, negar, perceber etc.). Cada uma das
3. Heidegger afirma que “Kant fala acerca do existir [Existieren] do homem e
acerca da existência [Dasein] das coisas como fins; mas os termos Existieren
e Dasein, para ele significam somente subsistência”. Idem, pp. 199-200.
4. Idem, p. 180.
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Jean Leison Simão
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant
cogitationes é sempre acompanhada de um “eu penso” co-representado, mesmo que não seja propriamente pensado, pois, “segundo
Descartes, cogitare é sempre cogito me cogitare”.5
Entretanto, para Heidegger, Kant aceita a determinação cartesiana do ego, mas a concebe de uma maneira mais fundamental
no tocante à ontologia. O sentido das determinações do eu, isto
é, de suas representações, é o de representatio. O próprio termo
“determinação” em Kant, segundo Heidegger, conserva o sentido
de determinatio ou realitas, o que, na ontologia tradicional, remete
aos predicados das coisas. Além disso, Heidegger afirma que se
deve entender o conceito de “res” de modo ontologicamente mais
rigoroso, a saber, como algo. Por conseguinte, o eu kantiano é um
algo que tem predicados (as cogitaciones), um eu no sentido lógicogramatical. O eu é, mais precisamente, um subjectum – no sentido
de categoria apofântica formal –, pois, como afirma Heidegger,
“‘apofântica’ é aquela categoria que pertence à estrutura do que é
a estrutura formal do conteúdo enunciativo de uma proposição
enunciativa em geral”.6 Há, portanto, uma dependência íntima,
sob o ponto de vista ontológico, entre o conceito de sujeito e o
conceito de subjectum, que para os gregos é o ύποκείμενον, a verdadeira substância.7
Não obstante, ter predicados significa dizer que o eu transcendental, na acepção kantiana, seguindo a argumentação de
Heidegger, tem consciência deles de forma peculiar. O sujeito é
distinto de seus objetos (dos predicados) e, ao mesmo tempo, os
tem, os conhece, ou seja, é um sujeito de predicados (objetos) e
para objetos. A autoconsciência, em conseqüência, também é peculiar. Heidegger afirma que “em razão dessa peculiar forma de ter
predicados, o sujeito é um sujeito peculiar, isto é, o eu é o sujeito
Κατέξοχήν”.8
5.
6.
7.
8.
Idem, p. 177.
Idem, p.178.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
45
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
Este sujeito kantiano, ele mesmo, afirma Heidegger, não é
um sujeito determinado, ou seja, não pode ser representado. Sobre
esse sujeito não podemos dizer nada mais senão que ele é algo,
mas não algo universal, anônimo, um eu lógico resultado de uma
abstração lógica – como interpretam os neokantianos –, senão que
é algo indeterminado, no sentido de que o seu ser é problemático.
O eu lógico não é, segundo Heidegger, e como pretende Rickert,
um eu pensado logicamente, senão que o eu “precisamente por
sua essência é, em cada caso, meu”.9 O eu lógico, em Kant, deve
ser interpretado, segundo Heidegger, como o sujeito do logos, no
sentido de um sujeito que subjaz em todo pensar.
Ora, se, como expusemos mais acima, a efetividade do sujeito
se dá em sua autoconsciência, então como poderíamos sustentar
uma autoconsciência de um sujeito que em si mesmo é indeterminado (isto é, não efetivo)? Não estaríamos diante de um evidente
contra-senso?
Essas questões nos levam a investigar com mais detalhe em
que consiste a autoconsciência do eu transcendental. De acordo
com Heidegger, a autoconsciência é pura e se dá na forma de uma
apercepção transcendental. Vejamos o que ele diz sobre isso:
Kant interpreta o eu como “unidade sintética original da apercepção [Apperzeption]”. O que significa isso? O eu é o fundamento
originário da unidade da multiplicidade de suas determinações no
sentido de que, enquanto eu, eu as tenho todas juntas em relação
comigo mesmo, as mantenho juntas, as uno, sintetizo. O fundamento originário da unidade é o que é, é este fundamento como
unificante, como sintético. A união da multiplicidade das representações e daquilo que é representado nelas tem sempre de ser
pensado junto a elas. A união é de tal sorte que, ao pensar, eu também me penso a mim mesmo, ou seja, não apreendo simplesmente o
pensado e o representado, não só o percebido, senão que em todo
pensamento me penso a mim mesmo com ele. Não percebo o eu,
senão que o apercebo. A unidade sintética original da apercepção é a
característica ontológica do sujeito assinalado.10
9. Idem, p. 194 (grifo nosso).
10. Idem, pp. 179-180.
46
Jean Leison Simão
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant
Portanto, somente podemos conhecer a determinação deste
eu como um algo que unifica. Essa é, como Heidegger põe em
relevo, a característica ontológica do sujeito transcendental. O eu
é “a condição ontológica fundamental de todo ser”11 e não pertence às condições particulares de possibilidade que são os conceitos
radicas do entendimento – as categorias –, mas é o que (enquanto fundamento) torna essas categorias possíveis. Mas o que é em
si mesmo esse eu? Posto que seja a condição ontológica de todo
pensar, não podemos dizer nada mais do que ser ele problemático,
indeterminado.
O eu puro nunca se me dá como determinável para a determinação, isto é, para aplicar-lhe as categorias. É por esta razão que é
impossível um conhecimento ôntico do eu e, por conseguinte, uma
determinação ontológica dele. A única coisa que se pode dizer é
que o eu é um “eu atuo”.12
Para sustentar essa sua afirmação Heidegger cita Kant:
O “eu penso” expressa o ato de determinar minha existência [isto
é, minha subsistência]. Por conseguinte, a existência está já dada
mediante ele. Mas o modo segundo o qual devo determiná-la, isto
é, pôr em mim a variedade que a ela lhe pertence, não se encontra,
todavia, determinado através deste ato. Para isso [o dar-me a mim
mesmo] se requer uma intuição, a qual se baseia numa forma dada
a priori, a saber, o tempo, que é sensível e pertence à receptividade
do determinável. Como não possuo outra intuição de mim mesmo
que me subministra o determinante, do qual só tenho consciência
de sua espontaneidade, antes do ato de determinar, à maneira como
o tempo subministra o determinável, não posso determinar minha existência de um ser ativo por si mesmo, senão me represento
somente a espontaneidade de meu pensar, isto é, do determinar.
Minha existência segue sendo sempre determinável só de modo
sensível, isto é, determinável enquanto existência de um fenômeno.
11. Idem, p. 181.
12. Idem, p. 205.
47
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
Não obstante, é essa espontaneidade a que faz que me denomine
inteligência.13
Portanto, não se pode afirmar que o “eu penso” pode ter consciência de si no momento em que manifesta a sua ação, pois o
próprio atuar – uma vez que é mediado pela intuição – é um ato
que, quando se apresenta, já está determinado. O “eu penso” tem
consciência de si apenas enquanto determinante e não pode ser
determinável pela receptividade, isto é, a partir das condições a
priori da intuição. Ele somente pode se representar como pura
espontaneidade do determinar, antes mesmo de efetuar uma determinação. Por conseguinte, somente temos consciência do eu
transcendental, isto é, de sua efetividade, como determinante, entretanto, não podemos saber o que é esse eu, uma vez que não podemos ter conhecimento ôntico do eu e determiná-lo em seu ser.
Com isso, a personalidade transcendental, enquanto revela um
eu como fundamento ontológico de todo pensar, é a estrutura formal da personalidade. Isto é, na multiplicidade dos atos de pensamento temos consciência do eu, enquanto o mesmo que une esta e
aquela representação. O eu é, portanto, a unidade que torna possível a multiplicidade. Esta é a estrutura formal da personalidade.
Na personalidade psicológica o eu não tem caráter ontológico,
isto é, como um mesmo que torna possível a multiplicidade, mas
antes se manifesta como um mesmo na multiplicidade. Assim sendo, não é o sujeito determinante (da espontaneidade), mas o sujeito determinável (da receptividade). A eu-idade na personalidade
psicológica revela um eu que não é sujeito do pensamento apercebido, senão um eu que está no tempo e no espaço, um eu experimentado, um eu empírico, que, segundo Heidegger, coincide com
o conceito de alma pensada como ideia. Portanto, o fundamento
desse eu não é um fundamento ontológico, apesar de ser o eu puro
a condição fundamental para a autoconsciência do eu empírico. O
fundamento da alma é “como diz Kant, do ser animado, da vida em
geral”.14 A consciência de si do eu fático revela um eu subsistente
13. Idem, pp. 205-6.
14. Idem, p. 183.
48
Jean Leison Simão
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant
na experiência, enquanto um eu que é consciente de seus estados
empíricos. Essa autoconsciência empírica é uma apreensão, que,
segundo Heidegger, significa “percepção, experiência do subsistente, experiência dos processos psíquicos subsistentes mediante o
denominado sentido interno”.15 Mais adiante Heidegger cita Kant
acrescentando que o homem tem autoconsciência não somente
como alma, mas como alma unida a um corpo que é objeto dos
sentidos externos.
Para a inteligência humana, a psicologia não é nada mais, nem pode
tampouco ser nada mais, que a antropologia, isto é, conhecimento
do homem, mas limitado à condição de que seja conhecido como
objeto de sentido interno. Mas tem assim mesmo consciência de si
como objeto dos sentidos externos, ou seja, tem um corpo, unido ao
objeto de sentido interno que se chama alma do homem.16
Disso podemos concluir que na multiplicidade do aparecer,
seja da alma, seja da alma unida ao corpo, o eu tem consciência
de si como o mesmo em meio a seus estados empíricos que modificam continuamente. O eu apreendido é um eu que é somente
objeto, é uma coisa [sache], e por isso se distingue do eu transcendental, o eu que subjaz no logos, que é somente sujeito. Não obstante, segundo Heidegger, a eu-idade do eu lógico “é a mesma em
todos os sujeitos fáticos”17, ou seja, o eu determinante da apercepção é idêntico ao eu determinável; entretanto o eu determinável
depende necessariamente do eu determinante. A consciência de si
pode manifestar o eu como determinante (o que pensa e intui) ou
determinável (objeto da intuição), mas não há uma dupla personalidade: o eu puro é propriamente uma pessoa, mas o eu empírico
é, da mesma forma que qualquer objeto da intuição, uma coisa.
Disso depreende-se que o eu tem a si mesmo como uma pessoa e
como uma coisa, mas é impossível explicar como pode o eu ser, ao
mesmo tempo, pessoa e objeto. Em outras palavras, não se pode
15. Idem, p. 182.
16. Idem, p. 183 (grifos nossos).
17. Idem, p. 184.
49
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
explicar como o eu é ao mesmo tempo inteligência, isto é, espontaneidade, e objeto da intuição, isto é, objeto da receptividade.
Entretanto, se o eu empírico é uma coisa (um objeto da intuição), então poderíamos utilizar os conceitos do entendimento
(as categorias) e determiná-lo ontologicamente? De acordo com
que afirmamos mais acima, o eu empírico não é fundamento ontológico, senão que seu fundamento é um ente: a alma. Podemos
determinar o ser deste ente? A aplicação das categorias a este ente
constitui-se, segundo o que nos diz Heidegger sobre Kant, num
paralogismo da razão pura.
Sob um ponto de vista histórico, a doutrina de Kant dos paralogismos da razão pura é uma crítica da psychologia rationalis, a
metafísica tradicional da alma como metafísica dogmática, que, de
fato, ele substitui pela metafísica dos costumes. É característico da
psychologia rationalis o que, com a ajuda de conceitos puramente
ontológicos que aplica ao eu, enquanto “eu penso”, trate de obter
algum conhecimento sobre este eu como ente, como alma. Nos
“Paralogismos da razão pura”, Kant mostra que esses argumentos
da psicologia metafísica extraídos a partir de conceitos ontológicos
e de sua aplicação ao “eu penso” são falácias.18
Por que são falácias? Kant, segundo Heidegger, “denomina
aos conceitos ontológicos fundamentais categorias. Divide-as em
quatro classes: as categorias da quantidade, da qualidade, da relação e da modalidade”.19 Ao aplicar essas categorias à alma, temos
o seguinte: 1) segundo a quantidade: a alma é uma, isto é, sempre
a mesma independente das suas mudanças de estado, portanto,
permanece de modo absoluto, é, neste sentido, pessoa; 2) com respeito à qualidade: a alma é simples, é incorruptível e não pode
ser decomposta em partes; 3) de acordo com a relação: a alma é
substância imaterial subsistente no sentido interno, em oposição
ao sentido externo que é o corpo.20
18. Idem, p. 202.
19. Idem, ibidem.
20. Idem, p. 203.
50
Jean Leison Simão
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant
Agora, se adicionarmos a categoria da modalidade a essas três
primeiras determinações da alma – personalidade, incorruptibilidade e imaterialidade –, que são determinações da espiritualidade,
isto é, determinações do “eu penso” (no sentido da psicologia metafísica), perceberemos que, em verdade, não podemos predicá-la
espiritualidade. Isso porque a categoria de modalidade é a categoria que determina a alma de uma maneira estrita: como existindo
em relação recíproca com um corpo. A alma, nesse sentido, é o
fundamento da vida na matéria; ela anima um corpo. Portanto, se
a alma existe também em relação recíproca com um corpo, então
não podemos dizer que ela é simples, incorruptível e subsistente
por si, isto é, que é imortal, mas que sua existência se faz também
na relação com o corpo, ou seja, que deixa de ser determinada
quando essa relação desaparece. Logo, não podemos obter conhecimento ontológico a partir da aplicação das categorias a este ente
(a alma), pois a condição de existência dada pela categoria de modalidade está em contradição em relação às outras.
Resumindo: de um lado, temos a autoconsciência pura, a
apercepção transcendental, que revela um sujeito determinante; de
outro, temos a autoconsciência empírica, a apreensão, que manifesta um sujeito determinável, um sujeito que não é propriamente
sujeito, senão uma coisa que subsiste em meio aos estados empíricos da experiência interna, mas que também se vincula com um
objeto do sentido externo: o corpo.
Um conhecimento ontológico sobre cada um dos dois não é
possível por motivos distintos: enquanto o sujeito determinante é
também pura espontaneidade, isto é, não pode ser determinado na
intuição, o sujeito determinável – enquanto objeto da intuição, ou
seja, dado na receptividade – é um ente, é somente objeto, que está
em relação de reciprocidade com um corpo. Isso tem implicação
no conceito de alma que não pode ser imortal (de acordo com
as categorias de quantidade, qualidade e relação), pois também
tem seu fundamento na matéria (conforme a categoria de modalidade). Não podemos, portanto, aplicar conceitos ontológicos à
alma e obter conhecimento ontológico dela como “eu penso”, na
medida em que o “eu penso” não é o sujeito dado na experiência
(determinável), senão que é aquele que, por sua índole, deve tor51
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
nar possível a experiência (determinante). Ambos os conceitos de
personalidade – a personalidade transcendental e a personalidade
psicológica – são conceitos gerais de pessoa. Entretanto, o primeiro é personalidade no sentido formal, pois possui um caráter
ontológico, ou seja, o eu, por ser a condição ontológica fundamental, é a unidade que antecede e torna possível a multiplicidade;
já o segundo conceito é dependente daquele, na medida em que
se manifesta na multiplicidade como um mesmo que subsiste em
meio aos estados que modificam continuamente.
Enquanto a autoconsciência por apercepção transcendental
é um puro dar-se conta do eu, a apreensão é um ato dirigido ao
eu empírico e mediado pela intuição sensível. Agora, há uma autoconsciência que revela o eu num sentido mais central e autêntico. Essa consciência de si não é um dar-se conta de um sujeito
determinante (o eu puro), tampouco é um conhecimento teórico
do sujeito determinável (o eu empírico). Essa peculiar autoconsciência manifesta a pessoa num sentido mais autêntico e preciso,
não como um sujeito determinante ou determinável, senão como
um sujeito que determina a si mesmo por meio de uma ação específica: a ação moral. A autoconsciência revela o eu puro prático.
III. Personalidade moral: o mais estrito e autêntico conceito de
pessoa
Segundo Heidegger:
A personalidade tomada propriamente é a personalidade moral. Se
a estrutura formal da personalitas consiste na consciência de si mesmo, então a personalitas moralis deve expressar uma modificação da
consciência de si mesmo e, portanto, representar uma classe peculiar
de autoconsciência. A consciência moral de si mesmo caracteriza
apropriadamente a pessoa naquilo que é.21
Que modificação da autoconsciência é esta, e o que significa
dizer que ela é peculiar? Mais ainda, o que significa dizer que
caracteriza a pessoa naquilo que é? Se a autoconsciência moral
21. Idem, p. 186.
52
Jean Leison Simão
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant
preserva a estrutura da personalidade, isto é, se constitui a partir
da efetividade e revela o eu como sendo um mesmo, e, ao mesmo
tempo, revela peculiarmente a pessoa naquilo que é, então esta
autoconsciência, por sua peculiaridade, deve necessariamente distinguir-se da autoconsciência pura e da autoconsciência empírica.
Se a consciência de si revela “a autêntica espiritualidade
[Geinstigkeit] do homem”22, então ela não revela um mesmo eu pela
mediação do sentido interno e do sentido externo da intuição sensível, tampouco deve ser um ato reflexivo dirigido às cogitationes,
a partir do que aquele que pensa se dá conta de que é um mesmo que está pensando. Segundo Heidegger, “a consciência moral
de si mesmo tem de ser um sentimento e deve se distinguir do
conhecimento teórico, no sentido teórico do ‘eu penso em mim
mesmo’”.23
De acordo com a visão de Heidegger sobre Kant, na sensibilidade temos o sentimento (num sentido amplo) que se distingue
da intuição sensível, a qual é a faculdade de ter sensação. Um sentimento ou é de prazer [Lust] ou é de desprazer [Unlust], e não só
é um sentimento por algo, mas também é um sentimento em algo.
Em outras palavras, quando temos um sentimento por algo, não
somente experimentamos este algo no sentimento, senão que experimentamos a nós mesmos como tendo este sentimento. Dessa
forma, o eu se revela como um mesmo de maneira específica ao
ter-se a si mesmo diretamente e, portanto, não é mediado pela intuição. Essa é, sob o ponto de vista fenomenológico heideggeriano, a definição universal e formal de sentimento.
Como podemos identificar essa estrutura essencial do sentimento no sentimento moral? O sentimento moral em Kant é o
respeito. Há uma diferença fundamental quanto à causalidade do
sentimento sensível e o sentimento moral: enquanto o primeiro é
causado naturalmente por um sentimento patologicamente produzido, ou seja, é condicionado aos estados corporais, o segundo
tem o seu fundamento intelectual, isto é, é causado pela razão. A
22. Idem, p. 187.
23. Idem, p. 188.
53
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
causa do sentimento moral – ou se quisermos, o fundamento de
determinação da vontade racional – é a lei moral.
Enquanto produz o sentimento moral, a lei moral tem um
duplo efeito: um efeito negativo, a determinação de um sentimento de repúdio a todas as inclinações e, um efeito positivo, a revelação daquilo que efetua e funda a priori esse sentimento.
De acordo com Heidegger, as inclinações, em Kant, ou decorrem do amor próprio ou da presunção. Sobre isso Kant afirma:
A razão prática pura apenas causa dano ao amor-próprio na medida em que ela o limita – enquanto natural e ativo em nós antes
da lei moral – apenas à condição da concordância com essa lei, em
cujo caso ele denomina-se amor de si racional. Mas ela com certeza
abate a presunção, na medida em que todas as exigências de autoestima que precedem a concordância com a lei moral são nulas e
totalmente ilegítimas, na medida precisamente em que a certeza de
uma disposição que concorda com essa lei é a primeira condição de
todo o valor da pessoa [...], e toda a impertinência ante a mesma lei
é falsa e contrária à lei.24
Não obstante, Heidegger limita-se à investigação do efeito
negativo da lei moral com relação à presunção em Kant. O motivo
disso vemos em sua argumentação, que nos conduz de imediato à
definição de efeito positivo da lei moral. Assim, ao opor-se à resistência subjetiva, debilitando a presunção, a lei moral é objeto de
respeito, mas, ao abater a presunção, a lei moral é objeto de sumo
respeito, sendo, por conseguinte, um sentimento positivo, o único
de que podemos ter conhecimento a priori.
Portanto, respeito, enquanto sentimento, é respeito-por algo
(a lei moral a priori) e, ao mesmo tempo, revela um eu que se tem
a si mesmo como um agente. Entretanto, segundo Heidegger, a
lei moral em Kant não serve para julgar, pois não se manifesta
depois de um acontecimento. Ter respeito pela lei não é o motor
da lei, senão que faz dessa lei uma máxima subjetiva, ou seja, revela
a lei de uma maneira específica. A causalidade intelectual é uma
24. KANT, I. Crítica da razão prática. Ed. bilíngüe. Trad. de Valério Rohden.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 254-5.
54
Jean Leison Simão
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant
causalidade por liberdade, isto é, ao mesmo tempo em que revela
a lei, também manifesta o eu puro e livre que, diante da lei, atua
ante si mesmo.
Pelo menos uma diferença fundamental pode ser identificada entre esse “eu atuo” da razão pura prática e o “eu atuo” da razão
pura: enquanto este último é um puro determinar, o primeiro é um
puro determinar-se a si mesmo pela obediência a uma lei a priori
prática. Nesse sentido, há uma estrutura intencional no fenômeno
do respeito, a saber, o eu submete a si mesmo a uma lei e, simultaneamente, se enaltece. Seguindo a análise heideggeriana de
Kant, o enaltecer-se e o submeter-se são análogos aos sentimentos
determinados pela sensibilidade: respectivamente, de inclinação
e temor, isto é, a tendência para e a tendência a se afastar. Segundo
Kant, “não se pode ver-se saciado da majestade dessa lei, e a alma
crê elevar-se na mesma medida em que vê a lei santa elevada sobre
si e sua frágil natureza”.25 Essa afirmação pode ser comparada com
a seguinte interpretação heideggeriana: “ao submeter-me a mim
mesmo à lei, submeto-me a mim mesmo como razão pura; mas
isto quer dizer que neste submeter-se a mim mesmo me enalteço a mim mesmo como livre, como um ser que se determina
a si mesmo”.26 Donde podemos concluir que o eu livremente se
submete a si mesmo ao ver a sua frágil natureza perante a lei e, ao
submeter-se, enaltece a si mesmo, revelando a lei santa para si, ao
mesmo tempo em que se manifesta como um sujeito que se determina a si mesmo, fazendo-se patente a si mesmo de maneira mais
autêntica, a saber, em sua dignidade.
A autoconsciência moral revela a pessoa em seu sentido
mais próprio, apesar de Kant não aprofundar nessa direção, segundo Heidegger. O sentimento moral é, conforme o que nos diz
Heidegger, o sentimento de minha existência, e revela o eu como
um mesmo de maneira específica, pois é a partir de uma revelação
específica da lei moral que o eu manifesta a si mesmo de maneira
mais autêntica, isto é, não por meio de um conhecimento teórico,
25. Idem, p. 271.
26. Heidegger, M. Los problemas fundamentales de la fenomenología, p. 192.
55
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
mas como um sentimento de minha existência que manifesta a
minha dignidade.
Diz Heidegger: “o respeito é um acesso ôntico a um mesmo
do eu, no sentido próprio, que existe facticamente”.27 Não obstante, se o respeito é o sentimento de minha existência – e se através
deste sentimento o eu se revela em sua dignidade, ou seja, enquanto livre, enquanto determinando a si mesmo, e, mais ainda, se é
capaz de ter conhecimento a priori da lei moral –, então aqui uma
ontologia da existência humana é possível.
Donde podermos distinguir a autoconsciência moral da autoconsciência pura e da autoconsciência empírica, que não permitem um acesso ontológico ao eu por motivos distintos: o eu
puro tem caráter ontológico e não pode se manifestar onticamente, assim não é permitido um acesso ao seu ser; por outro lado, o
eu empírico tem manifestação ôntica, mas não pode ser revelado
ontologicamente, pois a categoria ontológica de modalidade aplicada ao ente não permite que a alma subsista por si mesma, sem
um corpo. Todavia, Heidegger afirma o seguinte sobre a autoconsciência moral: “nesta revelação de si mesmo como um ente fático,
deve dar-se a possibilidade de determinar a constituição do ente
assim manifesto”.28
Qual seria, então, a constituição ontológica da pessoa que
se pode revelar? Heidegger afirma que, em Kant, uma pessoa não
deve ser entendida apenas pela concepção ontológica de fim em
si mesmo, senão como uma pessoa que existe objetivamente como
fim em si mesmo. E, por isso, distingue-se de uma coisa existente
dada na sensibilidade, que é um meio.
O homem existe como um fim em si mesmo; não é nunca um meio,
nem sequer um meio para Deus, senão que também ante Deus, ele
é seu próprio fim. A partir daqui, isto é, a partir da caracterização
ontológica do ente que não é só concebido por outros como um fim
e tomado como tal, senão que existe objetivamente – efetivamente
– como um fim, põe-se em claro o autêntico sentido ontológico
27. Idem, p. 177.
28. Idem, p. 194.
56
Jean Leison Simão
Heidegger e a Doutrina da Personalidade em Kant
da pessoa moral. A pessoa moral existe como seu próprio fim; ela
mesma é um fim.29
A humanidade (no sentido de quidditas, de índole essencial e
não o de gênero humano) do homem, isto é, o seu autêntico dever
ser, somente é revelado com a autoconsciência moral. Conforme
a interpretação de Heidegger, uma pessoa, enquanto existe efetivamente como um fim, encontra-se no reino dos fins, que não é
nenhum sistema de valores hierarquizados, senão o reino de convivência das pessoas existentes.
Em suma, a autoconsciência moral nos manifesta a pessoa no
sentido mais estrito porque não é, como na apercepção transcendental, em que o sujeito se revela como um mesmo que subjaz em
cada uma de suas cogitaciones. Tampouco é um sujeito apreendido
como um mesmo que subsiste em meio aos seus estados empíricos
internos que se modificam continuamente. A pessoa, no sentido
mais estrito, se revela a partir de uma única lei moral a priori, que
é revelada no sentimento moral (respeito) e que é objeto deste. No
sentimento moral a pessoa também tem-se a si mesma, não como
um objeto, tampouco como um sujeito simplesmente puro, mas
como possuindo uma dignidade. Esse “ter-se a si mesmo” enquanto dignidade, é o que nos dá o sentido mais autêntico de pessoa.
Portanto, com a definição mais estrita e autêntica de pessoa,
não somente nos conduzimos a seu sentido mais próprio, senão
também à possibilidade de uma ontologia. A partir do sentimento
moral, o eu tem acesso ôntico a si mesmo, o que viabiliza uma
constituição ontológica de sua existência.
Embora Kant se mova dentro dos limites pré-traçados pela
ontologia tradicional do subsistente, a análise do respeito e da
pessoa moral, segundo Heidegger, “não passa de ser um intento,
mesmo que imensamente importante, de sacudir-se inconscientemente o peso da ontologia tradicional”.30 A interpretação de
Heidegger sobre a definição ontológica da pessoa como um fim –
embora Kant não tenha levado a cabo a investigação da índole es29. Idem, p. 195.
30. Idem, p. 209.
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Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 41-58 – jan.-jun. 2010
sencial de um fim, bem como a sua possibilidade ontológica – tem
ressonância na definição de Dasein. Assim, o ser do ente na pessoa
moral em Kant, da mesma forma que no Dasein, não se limita
tão-somente em ser, mas sim, leva em sua própria existência o seu
poder ser. Não obstante, a relação, sob o ponto de vista estrutural
ontológico, entre a pessoa moral em Kant, segundo Heidegger, e a
definição de Dasein pode ser tema de um outro trabalho.
Bibliografia
HEIDEGGER, M. Los problemas fundamentales de la fenomenología.
Trad. de Juan José Garcia Norro. Madri: Editorial Trotta, 2000.
KANT, I. Crítica da razão prática. Ed. bilíngüe. Trad. de Valério Rohden.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
58
Transformação pragmática da filosofia kantiana:
Habermas, leitor de Humboldt
Antonio Ianni Segatto
Doutorando em Filosofia na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo e bolsista da FAPESP.
Resumo: O artigo examina a maneira como Habermas interpreta a filosofia da linguagem de Humboldt e a
maneira como recupera e radicaliza
a ideia de uma “transformação pragmática da filosofia kantiana” presente na obra deste autor.
Abstract: The article examines Habermas’ interpretation of
Humboldt’s philosophy of language
and the way he recovers and radicalizes the idea of a “pragmatic transformation of Kantian philosophy” in
the work of Humboldt.
Palavras-chave:Habermas, Humboldt,
virada lingüística, pragmática.
Keywords: Habermas, Humboldt,
linguistic turn, pragmatics.
Em uma das inúmeras réplicas que dirige a seus críticos,
Habermas propõe uma reformulação, que inicialmente parece não
passar do nível da mera analogia, para a pergunta kantiana a respeito das condições de possibilidade do conhecimento. No mesmo
trecho, ele encaminha uma resposta surpreendente, ao menos à primeira vista, pois aponta para o sentido oposto da analogia inicial:
Se, mantendo uma certa analogia com a crítica kantiana da razão, procuramos responder à pergunta sobre como é possível o uso
da linguagem orientado para o entendimento, deparamo-nos com
o saber intuitivo dos sujeitos capazes de falar e agir, que a criança deve aprender para poder, quando adulta, empregá-la na ação
comunicativa.1
1. Habermas, J. “Replik auf Einwände”. In: _____. Vorstudien und Ergänzungen
zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1984, p. 497-8.
59
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010
A reformulação, como dissemos, parece não passar da mera
analogia: nos Prolegômenos, por exemplo, Kant perguntava-se pelas condições do conhecimento teórico (“como é possível o conhecimento pela razão pura?”); Habermas, por seu turno, pergunta-se
pelas “condições normativas do entendimento possível” (“como é
possível o uso da linguagem orientado para o entendimento?” ou,
conforme a formulação da Thomas McCarthy, “como é possível
em geral o entendimento entre sujeitos capazes de falar e agir?”).
No entanto, pouco a pouco, a simples troca de etiquetas vai se revelando uma transformação decisiva da filosofia kantiana. Embora
se trate em ambos os casos do questionamento em relação a condições supostamente universais, estas são, no primeiro, as condições subjetivas da experiência objetiva e, no segundo, as condições
intersubjetivas do entendimento por meio da linguagem. E essa
transformação é ainda mais patente no que concerne ao tipo de
investigação que a questão sobre as “condições normativas do entendimento possível” impõe. É certo que, como Kant, Habermas
adota uma perspectiva universalista de investigação. No entanto,
recusando qualquer tipo de dedução a priori, ele assinala que o saber pré-teórico dos sujeitos capazes de falar só pode ser abordado
a partir de reconstruções racionais a posteriori. Thomas McCarthy,
um de seus colaboradores mais próximos, resume esse ponto com
as seguintes palavras:
Tais reconstruções podem ser comparadas em seu alcance e estatuto com teorias gerais (por exemplo, da linguagem e da cognição).
De um outro ponto de vista, elas podem ser comparadas com a
lógica transcendental de Kant. Mas as diferenças aqui são críticas.
As reconstruções racionais das competências universais não podem
reivindicar as pretensões fortes e a priori do projeto kantiano. Elas
são desenvolvidas segundo uma atitude hipotética e precisam ser
checadas e revisadas à luz dos dados, que são recolhidos a posteriori
nas performances reais e avaliados pelos sujeitos competentes.2
2. McCarthy, T. Ideals and illusions: on reconstruction and deconstruction in contemporary Critical Theory. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993, p. 131.
60
Antonio Ianni Segatto
Transformação pragmática da filosofia kantiana...
O elemento mais fundamental do saber pré-teórico a ser reconstruído é a intuição segundo a qual o entendimento é o telos
da comunicação lingüística. Apontando novamente para uma
analogia com a filosofia kantiana, Habermas compara-a ao “fato
da razão”. Se para Kant essa noção, em um dos seus sentidos, designava uma verdade imediatamente conhecida pela razão3, para
Habermas ela designa uma verdade imediatamente certa e imediatamente conhecida pelos sujeitos no momento em que se põem
em situação de diálogo. É apenas a partir da suposição de que
a comunicação lingüística está orientada por um entendimento
possível que um falante e seus interlocutores podem começar a
dialogar. A intuição segundo a qual o entendimento é o telos da
comunicação lingüística, tomada enquanto uma verdade imediatamente certa, figura como o grau zero da enunciação.
Essas transformações são motivadas pela recepção de uma
certa linhagem filosófica: a virada lingüística. Não por acaso,
Habermas atribui a formulação da intuição mencionada à leitura
das duas versões complementares da virada lingüística: a linhagem analítica e a linhagem hermenêutica. Em uma entrevista, ele
declara:
Devo a uma recepção tanto da versão hermenêutica quanto da versão analítica da teoria da linguagem – poder-se-ia dizer, a uma
leitura de Humboldt iluminada pela filosofia analítica – aquela intuição que explicitei em minha Teoria da ação comunicativa. Esta
é a intuição segundo a qual o telos do entendimento mútuo está
instalado na comunicação lingüística.4
3. Cumpre notar que o “fato da razão” na filosofia kantiana pode ser entendido no sentido de um fato (Tatsache), isto é, de uma verdade imediatamente
conhecida pela razão, ou no sentido de um feito, isto é, de um ato ou decisão
da razão. Habermas estabelece a analogia apenas em relação ao primeiro
sentido. Sobre os vários sentidos desse conceito em Kant, cf. Almeida, G.
A. de. “Kant e o facto da razão”. In: MacDowell, J. A. (org.). Saber filosófico,
história e transcendência. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.
4. Habermas, J. “Dialektik der Rationalisierung”. In: _____. Die Neue
Unübersichtlichkeit. Kleine Politische Schriften V. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1985, p. 173.
61
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010
A fim de compreender as razões e algumas outras implicações dessas transformações, é preciso retomar, ainda que a traços largos, a leitura que Habermas faz de Hamann e, sobretudo,
Humboldt. Situando-os numa linhagem que se inicia no final do
século XVIII, eles teriam sido responsáveis por iniciar a dissolução
da concepção tradicional de linguagem, que perpassa a filosofia da
consciência, como mero “instrumento” para a designação de entidades extra-lingüísticas e para a exteriorização de pensamentos.
Como escreve Cristina Lafont, cuja leitura Habermas subscreve
quase integralmente:
Retrospectivamente, pode-se considerar dessa perspectiva a crítica
de Hamann a Kant como o núcleo de uma tal mudança de paradigma. Foi Hamann quem localizou na linguagem a raiz comum
da sensibilidade e do entendimento buscada por Kant, elevando-a,
com isso, a um estatuto não apenas empírico, mas ao mesmo tempo
transcendental. É precisamente esse passo que converte a linguagem em uma instância que concorre com o ‘eu transcendental’ (ou
a ‘consciência em geral’), na medida em que pode reivindicar para
si a autoria dos rendimentos constitutivos da experiência (ou do
‘mundo’) falsamente atribuídos àquele.5
De modo geral, podemos dizer que são dois os traços fundamentais dessa virada lingüística: em primeiro lugar, como conseqüência da superação da concepção tradicional da linguagem
como “instrumento”, ela é considerada como elemento constitutivo do pensamento e do conhecimento e, nessa medida, é considerada como condição de possibilidade tanto da objetividade da
experiência quanto da intersubjetividade da comunicação; em segundo lugar, a superação das premissas da filosofia da consciência,
conduz a uma necessária destranscendentalização da razão: a linguagem manifesta-se sempre em línguas particulares e históricas e
não permite, por isso, uma separação estrita entre o transcendental
e o empírico, entre o a priori e o a posteriori.
5. Lafont, C. “‘Apertura del mundo’ y referencia”. In: Vieja, M. T. L. de la (ed.).
Figuras del logos: entre la filosofía y la literatura. México D. F.: Fondo de
Cultura Económica, 1994, p. 272.
62
Antonio Ianni Segatto
Transformação pragmática da filosofia kantiana...
Ambos os traços podem ser encontrados no leitmotiv de
Hamann segundo o qual a “razão é linguagem, logos” (ou, ainda,
“sem a palavra, não há razão – nem mundo”) e em sua fórmula
segundo a qual a linguagem é “a priori arbitrária e contingente,
mas a posteriori necessária e indispensável”.6 Com o primeiro, ele
expressa sua metacrítica ao purismo da razão kantiana:
essa metareflexão é levada a cabo por Hamann por meio de uma
questão que Kant não respondeu, na medida em que ele se ‘esqueceu’ de colocar: ‘como é possível a faculdade de pensar?’. Apenas
pela recordação de tal questão Kant poderia ter descoberto que ‘a
faculdade de pensar está na linguagem’”.7
Com a segunda, ele ressalta, por um lado, que a linguagem,
por ser “a priori arbitrária e contingente”, não pode ser deduzida
de nada anterior e depende, para se manifestar, de suas realizações
concretas na história (as línguas particulares); e, por outro lado,
que ela é “a posteriori necessária e indispensável”, na medida em
que possui um caráter constitutivo para aqueles que a utilizam.
Esse passo é decisivo para Habermas na formulação de algumas noções de sua teoria, como podemos notar na seguinte
passagem:
Já Hamann levantara contra Kant a censura do ‘purismo da razão’.
Não há uma razão que só posteriormente vestiria roupagens lingüísticas. A razão é originalmente uma razão encarnada tanto nos
contextos de ações comunicativas como nas estruturas do mundo
da vida.8
Em outras palavras, a metacrítica de Hamann a Kant abre a
possibilidade de pensar uma razão que não esteja circunscrita aos
6. Hamann, J. G. “Metacrítica sobre o purismo da razão”. In: Gil, F. (org.).
Recepção da Crítica da razão pura: antologia de escritos sobre Kant (17861844). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, p. 146.
7. Lafont, C. The linguistic turn in hermeneutic philosophy. Cambridge, Mass.:
MIT Press, 1999, p. 8.
8. Habermas, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1985, p. 374 (trad.: Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 447).
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Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010
limites da consciência e do sujeito singular; uma razão que esteja,
antes, situada nas próprias práticas comunicativas cotidianas.
Ocorre que ao situar a razão na linguagem, a concepção de
Hamann conduz a um certo relativismo lingüístico tanto no que
diz respeito à objetividade da experiência quanto no que diz respeito à intersubjetividade da comunicação. Mais uma vez recorrendo à formulação de Cristina Lafont:
essa peculiar mudança de paradigma leva, no que se refere à objetividade da experiência (isto é, no eixo linguagem-mundo), à dissolução da unidade transcendental da apercepção em uma diversidade
de perspectivas ou aberturas do mundo inerentes às línguas históricas e, por isso, tão contingentes e historicamente cambiantes
como estas (...) Em segundo lugar, esse tipo de virada lingüística
traz consigo, no que se refere à intersubjetividade da comunicação
(isto é, no eixo linguagem-linguagem) e devido igualmente à incomensurabilidade das perspectivas de mundo inerentes às diferentes
línguas, a dúvida em relação à possibilidade de alcançar um entendimento sobre o mesmo a partir de diferentes línguas.9
Humboldt, por seu turno, parece dar continuidade a essa
espécie de relativismo lingüístico. Cumpre lembrar que uma das
teses centrais de suas reflexões é a de que “em cada língua encontra-se uma perspectiva de mundo (Weltansicht) particular”.10 No
entanto, cumpre lembrar também que essa tese deve-se menos a
uma adesão explícita de Humboldt ao relativismo e mais aos pressupostos centrais de sua concepção de linguagem. Ao considerar
as línguas em sua função de abertura do mundo, Humboldt converte-as em uma instância constitutiva de nossa perspectiva sobre
ele; mas, sendo tais línguas plurais e historicamente modificáveis,
as perspectivas do mundo subjacentes a elas também o serão.
Atento a isso, Habermas recorda que Humboldt examina
a linguagem sob dois pontos de vista distintos, correspondentes
9. Lafont, C.; Peña, L. “La tradición humboldtiana y el relativismo lingüístico”.
In: Dascal, M. (Ed.). Filosofia del languaje II. Pragmática. Madrid: Editorial
Trotta, 1999, p. 193.
10. Humboldt, W. von. Schriften zur Sprachphilosophie (Werke III). Darmstadt:
Wissenchaftliche Buchgesellchaft, 2002, p. 224.
64
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Transformação pragmática da filosofia kantiana...
às combinações de suas três funções principais, a saber: a função
cognitiva, que permite formar pensamentos e representar fatos;
a função expressiva, que permite exprimir sentimentos e suscitar sensações; e a função comunicativa, que permite comunicar
algo, replicar e produzir acordos. De um ponto de vista semântico,
assume proeminência o papel de organização de conteúdos lingüísticos compartilhados por uma determinada comunidade; de
um ponto de vista pragmático, assume proeminência o papel de
médium do entendimento mútuo entre interlocutores. Segundo
Habermas:
enquanto a análise semântica se concentra na visão de mundo lingüística, para a análise pragmática a conversação está em primeiro plano. Enquanto lá Humboldt trata a função cognitiva da linguagem
em conexão com os traços expressivos da mentalidade e da forma
de vida de um povo, ele aqui tematiza a mesma função na conexão
com discursos em que os participantes podem oferecer respostas e
contradizer.11
A conjunção de ambos os pontos de vista sobre a linguagem
instaura no empreendimento de Humboldt uma tensão entre o
particularismo da abertura lingüística do mundo (ligado ao ponto
de vista semântico) e o universalismo de uma prática voltada para
o entendimento mútuo (ligado ao ponto de vista pragmático).
Segundo Habermas, filósofos como Heidegger, Gadamer e Taylor
tendem a dissolver essa tensão, ocupando-se apenas com um de
seus pólos. Coloca-se, pois, o desafio de mostrar como tal tensão
pode se estabilizar em uma concepção de linguagem como órgão
formador do pensamento e, ao mesmo tempo, como médium do
entendimento mútuo.
Além disso, Habermas procura ressaltar, em sua leitura de
Humboldt, um outro aspecto também decisivo na concepção do
11. Habermas, J. “Hermeneutische und analytische Philosophie. Zwei komplämentare Speilarten der linguistischen Wende”. In: _____. Wahrheit und
Rechtfertigung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 67 (trad.: Habermas,
J. “Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: duas versões complementares
da virada lingüística”. In: _____. Verdade e Justificação. São Paulo: Edições
Loyola, 2004, p. 65).
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Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010
autor. Trata-se da compreensão da linguagem não como um sistema acabado, mas como atividade. Nas palavras de Humboldt:
“é preciso considerar a linguagem não como um produto morto
(todtes Erzeugtes), mas, sobretudo, como uma produção (Erzeugung)
(...) Em si mesma, a linguagem não é um produto (Ergon), mas
uma atividade (Energeia)”.12 Esses dois aspectos da linguagem,
lembra Habermas, foram retomados tanto pelos teóricos quanto
pelos filósofos da linguagem. No entanto, isso não se deu sem algum prejuízo. Por um lado, Saussure e Chomsky retomam o par
ergon/energeia com as distinções língua/fala e competência lingüística/performance lingüística. Apesar disso, ambos desconsideram a função da linguagem como mediação do entendimento:
“nem Saussure nem Chomsky compreendem como Humboldt a
conversação como centro da linguagem”.13 Por outro lado, filóso12. Humboldt, W. von. Schriften zur Sprachphilosophie (Werke III), p. 416 e
418.
13. Habermas, J. “Entgegnung”. In: Honneth, A.; Joas, H. (Hgg.).
Kommunikatives Handeln. Beiträge zu Jürgen Habermas’ “Theorie des kommunikativen Handelns”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, p. 328. Embora
Chomsky procure elaborar uma gramática gerativa, ele pode reconstruir
apenas as regras fixas que permitem a geração de enunciados, mas não as
regras que operam na produção real da fala e na situação de diálogo, as quais
permanecem totalmente indeterminadas. Isso fica patente na leitura que faz
de Humboldt: “O relevo dado por Descartes ao aspecto criador do uso da
linguagem, como característica essencial e definidora da linguagem humana, encontra sua mais eficaz expressão na tentativa, feita por Humboldt, de
criar uma ampla teoria da lingüística geral. A caracterização da linguagem,
dada por Humboldt, como energeia (Thätigkeit [atividade]) mais do que
como ergon (Werk [ato]), como ‘eine Erzeugung’ (uma produção) mais do
que ‘ein todtes Erzeugtes’ (um produto morto) estende e remodela – muitas
vezes quase com as mesmas palavras – as formulações típicas da lingüística
cartesiana e da filosofia romântica da linguagem e da teoria estética. Para
Humboldt, a única definição verdadeira da linguagem é ‘eine genetische’
(uma definição genética): ‘Sie ist nämlich die sich ewig wiederholende
Arbeit des Geistes, den articulierten Laut zum Ausdruck des Gedanken fähig
zu machen’ (‘Ela é, pois, o trabalho do espírito, que se repete constantemente
para tornar possível que o som articulado expresse o pensamento’). Há um
fator constante e uniforme subjacente a este ‘Arbeit des Geistes’ (trabalho do
espírito): é isto que Humboldt chama a ‘forma’ da linguagem. Na linguagem
somente são fixas as leis subjacentes de geração. A extensão e a maneira em
66
Antonio Ianni Segatto
Transformação pragmática da filosofia kantiana...
fos como Charles Taylor – seguindo a trilha aberta por Heidegger
– retomam a compreensão da linguagem como atividade apenas
no que se refere a sua função de abertura do mundo: “Taylor tende
a uma totalização dessa função da linguagem de abertura do mundo. Com isso, ele cai em um perspectivismo epistemológico, que o
próprio Humboldt evita”.14
Podemos notar, nessa compreensão da linguagem como atividade, que o aspecto criador da linguagem comparece tanto no
ponto de vista semântico quanto no ponto de vista pragmático
adotados por Humboldt. E é justamente esse fato que faz de suas
reflexões um marco importante não apenas para a lingüística, mas
também para a filosofia contemporânea:
Humboldt leva a cabo uma mudança de paradigma que afeta não
apenas a lingüística, cujo desenvolvimento no século XX revela as
conseqüências dessa mudança de maneira bastante clara, mas também a filosofia, para a qual a linguagem (vista como sistema de signos objetificados) nunca teve uma dimensão filosófica. Além disso,
a mudança de paradigma levada a cabo por Humboldt ocorre em
que o processo gerativo opera na produção real da fala (ou na percepção da
fala, que Humboldt considera como um desempenho parcialmente análogo) são totalmente indeterminadas” (Chomsky, N. Lingüística cartesiana: um
capítulo da história do pensamento racionalista. Petrópolis; São Paulo: Vozes;
Editora da Universidade de São Paulo, 1972, p. 30).
14. Idem, p. 336. Não por acaso, Taylor enfatiza, em sua leitura dessa tradição,
exclusivamente a dimensão semântica da linguagem: “Herder desenvolve uma noção bem distinta de expressão [em relação à tradição HobbesLocke-Condillac]. Isso está na lógica de uma teoria constitutiva, tal como
acabo de descrevê-la. Essa noção nos diz que a linguagem constitui a dimensão semântica, ou seja, a posse da linguagem nos capacita a nos relacionar com as coisas de novas maneiras, digamos como loci de características,
bem como ter novas emoções, metas ou relacionamentos e, mais do que isso,
ser responsivos a questões que envolvam valores fortes. Poderíamos dizer: a
linguagem transforma nosso mundo, usando esta última palavra num sentido claramente derivado de Heidegger. Falamos não sobre o cosmos lá fora,
que nos precedeu e nos é indiferente, mas sobre o mundo dos nossos envolvimentos, incluindo todas as coisas que incorporam em seu significado para
nós” (Taylor, C. “Heidegger, linguagem e ecologia”. In: _____. Argumentos
filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 122).
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Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010
duas dimensões diferentes. Em sua dimensão cognitivo-semântica,
essa mudança consiste em encarar a linguagem não como um mero
sistema de signos, não como algo objetificável (intramundanamente), mas como algo constitutivo da atividade de pensar, como a própria condição de possibilidade dessa atividade. A linguagem é, então, elevada a um estatuto quase-transcendental, que reivindica contra a subjetividade a autoria das operações constitutivas da visão de
mundo do sujeito (...) Em sua dimensão comunicativo-pragmática,
a mudança consiste em ver esse caráter constitutivo da linguagem
como o resultado de um processo ou atividade: especificamente, a
atividade de falar. Nesse sentido, a linguagem se torna a garantia da
intersubjetividade da comunicação, a condição de possibilidade do
entendimento entre falantes.15
No que se refere à primeira dimensão, a compreensão da linguagem como atividade revela-se no fato de que por meio dela
“criam-se” novos “conceitos”, novos “conteúdos” por meio dos
quais o mundo se faz acessível. Humboldt, opondo-se a Kant,
refere-se a essa atividade como uma síntese: “desde o primeiro
elemento, a geração da linguagem é um processo sintético – e isso
no sentido estrito da palavra – que cria algo que não existia em
nenhuma de suas partes”.16 No que se refere à segunda dimensão,
a compreensão da linguagem como atividade revela-se na ideia da
unificação através do diálogo. Segundo Habermas, “no processo
de comunicação lingüística está em ação uma força capaz de estabelecer a unidade na multiplicidade de uma outra maneira, diferente da via da subsunção da variedade sob uma regra geral”.17 No
lugar do “eu penso” kantiano – associado à unidade transcendental
da apercepção –, Humboldt coloca a intersubjetividade, representada pelas diferentes perspectivas dos participantes da comunica15. Lafont, C. The linguistic turn in hermeneutic philosophy, p. 17-8.
16. Humboldt, W. von. Schriften zur Sprachphilosophie (Werke III), p. 473.
17. Habermas, J. “Individuierung durch Vergesellschaftung: Zu Georg
Herbert Mead Theorie der Subjektivität”. In: _____. Nachmetaphysisches
Denken. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p. 201 (trad.: Habermas, J.
“Individuação pela socialização: sobre a teoria da subjetividade de Georg
Herbert Mead”. In: _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1990, p. 196).
68
Antonio Ianni Segatto
Transformação pragmática da filosofia kantiana...
ção, que buscam alcançar um entendimento entre si sobre algo no
mundo. Nas palavras do próprio Humboldt:
a individualidade se destroça, mas de uma maneira tão maravilhosa
que ela desperta, precisamente através da separação, o sentimento
da unidade, aparecendo inclusive como um meio para produzi-la
ao menos na ideia (...) Aqui, a linguagem vem a seu socorro de
modo realmente maravilhoso, pois une no próprio momento em
que individualiza e inclui na cápsula da expressão mais individual a
possibilidade do entendimento universal.18
É certo que Humboldt em algumas passagens parece conceder uma primazia à primeira dimensão. Podemos lembrar, a título
de exemplo, pelo menos dois momentos em que ele ressalta o nexo
entre a “forma interna” da língua e uma determinada imagem de
mundo que ela impõe aos povos e nações: na famosa introdução à
obra sobre o Kawi, ele escreve: “a língua é, por assim dizer, a manifestação externa do espírito dos povos; sua língua é seu espírito
e seu espírito é sua língua”19; no opúsculo sobre as diferenças na
estrutura da linguagem humana, ele escreve: “cada língua traça ao
redor da nação a que pertence um círculo do qual só é possível sair
na medida em que ao mesmo tempo se passa para outro círculo de
uma outra língua”.20 Mas é certo também que em outros momentos ele assinala o primado da dimensão comunicativo-pragmática
da linguagem, como podemos atestar na seguinte passagem:
o diálogo que verdadeiramente engrena uns aos outros, que troca
ideias e sensações é, por assim dizer, o centro da linguagem, cuja
essência não pode ser pensada senão como grito e eco, fala e resposta, que em suas origens, assim como em suas modificações não
pertence a um único, mas a todos, que se situa nas profundezas
solitárias do espírito de cada um, mas que apenas se evidencia na
vida social”.21
18.
19.
20.
21.
Humboldt, W. von. Schriften zur Sprachphilosophie (Werke III), p. 160-1.
Idem, p. 414 -5.
Idem, p. 224 –5.
Idem, p. 81.
69
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Não se pode, pois, sobrepor uma dimensão à outra. Ao contrário, é preciso examinar como ambas se combinam no mesmo
quadro. Assim, é preciso compreender a divisão de trabalho entre
a “semântica das imagens lingüísticas do mundo” e a “pragmática
formal da conversação”. É preciso compreender que, paralelamente a um certo “particularismo semântico”, coloca-se um universalismo da conversação. Isso porque “os participantes querem se
compreender mutuamente e ao mesmo tempo se entender a respeito
de alguma coisa, ou seja, alcançar se possível um acordo. E isso
também se aplica ao entendimento buscado para além dos limites de diferentes comunidades lingüísticas”.22 A conclusão que
Habermas extrai disso é a seguinte: não há como não reconhecer
que Humboldt foi responsável por desenhar os contornos de uma
“arquitetônica da linguagem que até hoje permaneceu decisiva
para uma transformação pragmática da filosofia kantiana”.23
Com essa incursão pela leitura que Habermas faz de
Humboldt, talvez possamos compreender um pouco melhor aquelas transformações que Habermas promove na filosofia kantiana.
A reformulação da pergunta kantiana a respeito das condições de
possibilidade do conhecimento em uma pergunta pelas “condições
normativas do entendimento possível” deve-se à substituição do
paradigma do sujeito pelo paradigma da linguagem, entendendo
esta não apenas em sua dimensão cognitivo-semântica, mas também e, sobretudo, em sua dimensão comunicativo-pragmática. A
reformulação do “fato da razão” em um “fato da linguagem” devese a uma recepção da versão hermenêutica da teoria da linguagem
– mais especificamente, a uma leitura de Humboldt –, pois explicita que o entendimento diz respeito às três funções principais da
linguagem (a função cognitiva, que permite formar pensamentos
e representar fatos; a função expressiva, que permite exprimir sen22. Habermas, J. “Hermeneutische und analytische Philosophie. Zwei
komplämentare Speilarten der linguistischen Wende”. In: _____. Wahrheit
und Rechtfertigung, p. 72 (trad.: Habermas, J. “Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: duas versões complementares da virada lingüística”. In:
_____. Verdade e Justificação, p. 73).
23. Idem, p. 76.
70
Antonio Ianni Segatto
Transformação pragmática da filosofia kantiana...
timentos e suscitar sensações; e a função comunicativa, que permite comunicar algo, replicar e produzir acordos) e, nessa medida,
diz respeito simultaneamente às condições de verdade, de justeza normativa e de veracidade subjetiva, correspondentes às três
principais pretensões de validade associadas aos enunciados que
proferimos cotidianamente.
Nesse ponto já se pode começar a notar uma outra conseqüência dessa transformação pragmática da filosofia kantiana.
Refirimo-nos à maneira de conceituar as questões da diferenciação e da unidade da razão. É certo que elas ocupam boa parte das
linhas de Habermas sobre o discurso filosófico da modernidade.
Mas é certo também que elas se fazem presentes em suas reflexões sobre a linguagem. Basta, para atestá-lo, a leitura da seguinte
declaração:
Eu pretendo elaborar o conteúdo normativo da ideia de entendimento implícito na linguagem e nas comunicações. Isso leva a
um conceito complexo, que implica não apenas que entendemos o
significado de atos de fala, mas também que o entendimento entre
participantes da comunicação é produzido no que diz respeito a
fatos, normas e também experiências (...) Com isso, mencionamos
as três dimensões que o conceito de racionalidade comunicativa
contém: a relação do sujeito de conhecimento com um mundo de
acontecimentos e fatos; a relação do sujeito prático, na interação
com outros sujeitos envolvidos e atuantes, com um mundo de sociabilidade; e, finalmente, a relação do sujeito sofredor e apaixonado, no sentido de Feuerbach, com sua própria natureza interna,
com a sua subjetividade e com a subjetividade de outros. Essas são
as três dimensões que saltam à vista quando se analisa os processos
de comunicações da perspectiva dos participantes.24
A partir dessas palavras, gostaríamos de chamar a atenção
para uma ou duas coisas. Como Kant, Habermas toma para si
a tarefa de conceituar as diferenciações dos complexos de racionalidade, característica da modernidade cultural. No entanto, diferentemente daquele ele não o faz com base em uma teoria das
24. Habermas, J. “Dialektik der Rationalisierung”. In: _____. Die Neue
Unübersichtlichkeit. Kleine Politische Schriften V, p. 185.
71
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faculdades subjetivas do conhecimento, mas com os meios da teoria da linguagem. Nessa medida, ele interpreta a diferenciação
dos âmbitos teórico, prático e estético não como a diferenciação
dos domínios sobre os quais legislam o entendimento (Verstand),
a razão (Vernunft) e a faculdade de julgar (Urteilskraft), mas como
a diferenciação de pretensões de validade (pretensão de verdade,
pretensão de justeza normativa e pretensão de veracidade) que os
falantes associam a seus enunciados. Além disso, tal diferenciação
não é compreendida a partir das possíveis relações de representação que se estabelecem entre sujeito e objeto, mas a partir das
relações entre sujeitos, que, por meio de seus enunciados, referemse a um mundo de fatos (sobre o qual eles podem fazer afirmações
verdadeiras ou falsas), a um mundo de normas compartilhadas
(em relação ao qual eles podem proferir enunciados adequados
ou justos) e a um mundo de experiências subjetivas (em relação
ao qual eles podem se expressar sinceramente ou não, de maneira
autêntica ou não).
Por outro lado, Habermas não descuida da questão da unidade da razão. Nas “Réplicas a objeções”, de 1980, ele escreve:
as pretensões de validade da verdade proposicional, da justeza normativa e da veracidade subjetiva ou autenticidade, vinculadas na
prática comunicativa cotidiana, são aspectos co-originários, que
apenas na modernidade foram isolados uns dos outros, a ponto de
as tradições culturais só poderem ser elaboradas sob cada um desses
aspectos e os problemas tradicionais só poderem ser classificados
como questões de verdade, de justiça e de gosto. A diferenciação da
razão nesses complexos de racionalidade, aos quais as três críticas
da razão de Kant se referem, só poderia ser anulada ao preço do
próprio racionalismo ocidental. Nada mais distante de mim do que
evocar a unidade substancial da razão, do que me tornar o advogado de uma tal regressão.25
Dado o fato da diferenciação da razão, Habermas procura
pensar sua unidade recorrendo não ao modelo metafísico da uni25. Habermas, J. “Replik auf Einwände”. In: _____. Vorstudien und Ergänzungen
zur Theorie des kommunikativen Handelns, p. 499.
72
Antonio Ianni Segatto
Transformação pragmática da filosofia kantiana...
dade substancial, mas à forma moderna de uma unidade procedimental. Expliquemos.
Em sua discussão sobre a “racionalidade procedimental”,
como um dos motivos do pensamento pós-metafísico, Habermas
recorda que na tradição metafísica a razão é concebida como uma
faculdade dependente dos conteúdos materiais do mundo, como
uma faculdade que organiza tais conteúdos e que pode ser reconhecida neles. Assim, “a razão é razão do todo e de suas partes”.26
Na modernidade, porém, em que se quebra essa unidade substancial, a razão se divide em racionalidades adequadas ao tratamento
das questões específicas a cada um de seus âmbitos. Nas ciências
experimentais, problemas empíricos passam a ser tratados no interior das comunidades de pesquisadores. Na moral e no direito,
problemas práticos passam a ser tratados no contexto da comunidade de cidadãos de um Estado democrático e no contexto do
sistema de direitos, independentemente, portanto, de qualquer
tábua de mandamentos instituídos pela religião ou pelos valores
tradicionais de uma dada comunidade. Na estética, a produção e
a avaliação das obras de arte passam a não mais dependerem de
regras rígidas e fixas instauradas desde a antigüidade, mas sim de
procedimentos que dizem respeito unicamente à experiência estética do artista e do público. Assim, “a racionalidade (Rationalität)
reduz-se a seu aspecto formal, na medida em que dissolve a racionalidade (Vernunftigkeit) dos conteúdos na validade dos resultados (...) a racionalidade procedimental não pode mais garantir
uma unidade antecipada na pluralidade dos fenômenos”.27 Diante
desse quadro, não apenas a questão da diferenciação da razão, mas
também a questão de sua unidade deve ser pensada em termos
procedimentais. É esse um dos aspectos que Habermas ressalta
em sua caracterização da filosofia kantiana, como podemos ler na
seguinte passagem:
26. Habermas, J. “Motive nachmetaphysischen Denkens”. In: _____.
Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p. 42
(trad.: Habermas, J. “Motivos do pensamento pós-metafísico”. In: _____.
Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 44).
27. Idem, p. 42-3 (trad.: Idem, p. 44).
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Kant coloca no lugar do conceito substancial de razão da metafísica o conceito de uma razão que se dividiu em seus elementos e cuja
unidade de agora em diante só tem caráter formal. Com efeito, ele
separa do conhecimento teórico a faculdade da razão e a faculdade
de julgar e assenta cada uma delas em fundamentos próprios.28
E é justamente esse aspecto que ele retoma em sua intervenção no debate contemporâneo a respeito da crítica da racionalidade: “pode ser fora de moda, mas acredito que, como Kant, também nos colocamos hoje diante do problema de esclarecer onde
o conhecimento objetivo, o discernimento moral e a faculdade de
julgar estética encontram sua unidade procedimental”.29 No entanto, não obstante a retomada da questão kantiana, Habermas
procura abordá-la com o aparato de sua teoria da linguagem. A
possibilidade para tal transformação é dada, mais uma vez, pela
recepção da virada lingüística. Disso resulta que Habermas coloque a questão não como a unidade procedimental das faculdades
do conhecimento, mas como a “unidade procedimental das fundamentações discursivas”.
O que subjaz a essa transformação e às outras mencionadas
acima é uma reformulação profunda na noção mesma de racionalidade. Para Habermas, a racionalidade designa não um conjunto de faculdades de subjetivas, mas “uma disposição dos sujeitos
capazes de falar e agir para adquirir e aplicar um saber falível”.30
Se no quadro da filosofia da consciência – no qual a filosofia kantiana se insere –, “a racionalidade é medida pela maneira como o
sujeito solitário se orienta pelos conteúdos de suas representações
e de seus enunciados”; na teoria habermasiana – herdeira da virada lingüística –, “a racionalidade encontra sua medida na capa28. Habermas, J. Moralbewußtsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am
Main, Suhrkamp, 1983, p. 10 (trad.: Habermas, J. Consciência moral e agir
comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 18). Sobre as questões da diferenciação e da unidade da razão em Kant, cf. Terra, R. Passagens.
Estudos sobre a filosofia da Kant. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
29. Habermas, J. “Untiefen der Rationalitätskritik”. In: _____. Die Neue
Unübersichtlichkeit. Kleine Politische Schriften V, p. 136.
30. Habermas, J. Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 366 (trad : Habermas,
J. O discurso filosófico da modernidade, p. 437).
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Transformação pragmática da filosofia kantiana...
cidade (Fähigkeit) de os participantes responsáveis da interação
orientarem-se pelas pretensões de validade que estão assentadas
no reconhecimento intersubjetivo”.31 Desenham-se com isso os
contornos de um conceito plural e procedimental de racionalidade. “Procedimental”, pois seus critérios são dados pelos procedimentos discursivos de desempenho das pretensões de validade
associadas aos enunciados. “Plural”, pois engloba as pretensões de
verdade proposicional, de justeza normativa, de veracidade subjetiva e adequação estética, correspondentes aos âmbitos teórico,
prático e estético. Cumpre notar que a caracterização da racionalidade como plural impõe a tarefa de revelar a maneira como
suas diferentes dimensões, expressas pelas diferentes pretensões de
validade e pelas respectivas formas argumentativas, se relacionam
entre si. Como chama atenção Martin Seel, Habermas tem diante
de si a tarefa de elaborar
uma teoria das diferentes formas de racionalidade, cuja diferenciação é constitutiva para a existência de uma razão ‘comunicativa’.
Esse fio condutor de crítica da racionalidade coloca para as análises de Habermas uma dupla tarefa. Elas têm de destacar o sentido
intrínseco das racionalidades teórico-instrumental, moral-prática
e estético-expressiva e têm também de elucidar seu nexo na ação
orientada para o entendimento.32
Seel tem dúvidas quanto à possibilidade de sucesso na realização dessa tarefa. Ele argumenta que a unidade da razão não
deve ser identificada à “unidade procedimental das fundamentações discursivas”, à unidade das formas de argumentação, como
faz Habermas. Trata-se, antes, de um entrosamento das formas de
argumentação e “esse entrosamento tem a forma de dependências
completamente materiais (ligadas à pressuposição recíproca do
conteúdo), sem que se possa evidentemente determinar e repre31. Idem, ibidem (trad.: Idem, ibidem).
32. Seel, M. “Die zwei Bedeutungen ‘kommunikativer’ Rationalität.
Bemerkungen zu Habermas’ Kritik der pluralen Vernunft”. In: Honneth,
A.; Joas, H. (Hg.). Kommunikatives Handeln. Beiträge zu Jürgen Habermas’
“Theorie des kommunikativen Handelns”. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1986, p. 53.
75
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sentar esse material por meio de uma teoria filosófica unificada”.33
Habermas aceita em parte as críticas de Seel. De um lado, promove a transformação do conceito kantiano de “faculdade de julgar”
em uma “faculdade de julgar assentada na própria ação comunicativa”, uma “faculdade de julgar associada à atitude performativa
dos que agem comunicativamente”.34 Além disso, ele diz que, embora a passagem (Übergang) de uma forma a outra seja regulada
pela lógica da argumentação, ela depende muitas vezes “dos desfiladeiros no curso da argumentação” ou de “problemas que vêm a
nosso encontro”. Mas, por outro lado, ele continua a manter a ideia
de que as pretensões de validade formam um sistema. Seja como
for, Habermas parece fazer jus à ideia, expressa de maneira lapidar
por Albrecht Wellmer, de que
os discursos estéticos, prático-morais e ‘factuais’ não estão separados uns dos outros por um abismo, mas estão relacionados de
múltiplas maneiras – mesmo que a validade estética, moral ou
veritativa representem diferentes categorias de validade, que não
podem ser reduzidas a uma categoria de validade. Trata-se aqui
(a única coisa de que se poderia tratar) não de uma ‘reconciliação
dos jogos de linguagem’, mas de uma “permeabilidade” recíproca
33. Idem, p. 64. Para uma discussão mais detalhada das críticas de Seel a
Habermas e da réplica deste, cf. Repa, L. A transformação da filosofia em
Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo:
Singular; Esfera Pública, 2008, p. 217-28.
34. Habermas, J. “Entgegnung”. In: Honneth, A.; Joas, H. (Hgg.).
Kommunikatives Handeln. Beiträge zu Jürgen Habermas’ “Theorie des kommunikativen Handelns”, 1986, p. 343. Habermas esclarece o conceito de “atitude performativa” nos seguintes termos: “a atitude performativa corresponde
à orientação do falante para o entendimento e exclui a orientação para o
sucesso. Na atitude performativa, o falante pode adotar uma postura objetivadora em relação ao mundo dos estados de coisas existentes, uma postura
conforme à norma ou desviante à norma em relação ao mundo social, ou
uma postura expressiva em relação a algo de seu próprio mundo subjetivo; a
atitude performativa assegura a meta superior de alcançar o entendimento
por regular a passagem de uma a outra e garantir a consistência de significado na inter-transferência das atitudes objetivadora, conforme à norma
e expressiva” (Habermas, J. “Reply to Skjei”. Inquiry, vol 28, nº 1, 1985, p.
108-9).
76
Antonio Ianni Segatto
Transformação pragmática da filosofia kantiana...
dos discursos: a superação da razão una em um jogo conjunto de
racionalidades plurais.35
A fim de compreender em toda sua amplitude o conceito de
racionalidade de Habermas, é preciso compreender não apenas a
maneira como ele radicaliza a perspectiva kantiana36, mas é preciso
compreender também a maneira como ele retoma e radicaliza a
ideia da “transformação pragmática da filosofia kantiana” introduzida por Humboldt.
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35. Wellmer, A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach
Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p. 108-9.
36. Sobre a radicalização da perspectiva kantiana levada a cabo por Habermas,
que, como procuramos mostrar, representa apenas metade do problema, cf.
Terra, R. Passagens. Estudos sobre a filosofia da Kant, p. 22.
77
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 59-79 – jan.-jun. 2010
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79
Para a história conceitual
da discriminação da mulher
Marisa Lopes
Professora do Departamento de Filosofia
da UFSCar
Resumo: A discriminação da mulher, longe de apresentar-se como
um tema exclusivamente sociológico,
encontra sua fundamentação conceitual na História da Filosofia, especialmente na filosofia de Aristóteles.
Pretende-se mostrar aqui como o
filósofo, a partir de seus pares conceituais metafísicos, potência/ato e
matéria/forma, deriva a incompletude, a impotência, a mutilição e, por
fim, a incapacidade ética e política
da mulher.
Abstract: Far from presenting
itself as an exclusively sociological
issue, women’s discrimination has
its conceptual ground in the history
of philosophy, specially in Aristotle’s
philosophy. It is our aim here to
show how the philosopher derives
incom­pleteness, impotency, muti­
lation, and, finally, women’s ethical
and political incapacity from his
metaphysical
conceptual
pairs
potency/act, and matter/form.
Palavras-chave:
Discriminação,
Mulher, Aristóteles.
Keywords: Discrimination, Woman,
Aristote.
“Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário,
trabalhador, sofrer pena enorme e ter a vida estragada por causa
de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem?
Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes,
vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar.
E o que em retribuição lhe fez Cortez? Uma cortesia...”. 1
1. Pimentel, S. “Quando gritar não é suficiente” (entrevista). In: O Estado de S.
Paulo. Caderno Aliás, 30/08/2009, p. J4.
81
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010
É difícil acreditar que a vítima tenha se sentido honrada com
semelhante cortesia. Nem ela nem as muitas mulheres que se tornam duplamente vítimas ao serem expostas a afrontosas decisões
judiciais sobre crimes de estupro.
Silvia Pimentel, em conjunto com Valéria Pandjiarjian e Ana
Lúcia Schritzmeyer, coletou e publicou, em 1997, um livro com
50 decisões de tribunais de Justiça de todo o Brasil com lamentável conteúdo. Apesar dos avanços obtidos com a Lei 12.015,
de 07/08/2009, que suprimiu o atentado violento ao pudor e o
incluiu no artigo que trata do estupro, qualificado, agora, como
crime contra a dignidade sexual, as autoras mantêm a convicção
de que “o crime de estupro era [por que não, é?] o único no mundo em que a vítima é acusada e considerada culpada da violência
praticada contra ela”.2
O recente caso Geyse, estudante da Uniban, confirma o diagnóstico: agindo por meio do terror, a turba pseudo-universitária
brada contra a estudante palavras que soariam bem aos ouvidos
dos velhos inquisidores.
O século XXI ainda não se desvencilhou de uma ratio masculinizante e estruturante de uma cosmologia e de uma antropologia
que assegura a forma feminina como imperfeição, seguindo-se
a consequência violenta de sua minoridade político-social e sua
constante qualidade de ente adoecido, histérico... Nada há, substancialmente, que separe a ‘recta ratio’ do fanatismo praticado por
machos, responsáveis pela purificação mental e corpórea do gênero
humano.3
Fanatismo capaz de produzir estultices como as que escreveu Moebius (1853-1907), médico e psiquiatra alemão. O livro
de Moebius, Inferioridade da mulher: a deficiência mental fisiológica
da mulher4, que passo a expor, parte da constatação de que as fa 2. Idem.
3. Romano, R. “A mulher e a desrazão ocidental”. In: Folha de São Paulo,
Folhetim, 03/04/1987, p. B-7.
4. Moebius, P. J. Inferioridad de la mujer (la deficiencia mental fisiológica de la
mujer). Versão de A. Conca. Buenos Aires: Editorial Tor, s/d.
82
Marisa Lopes
Para a história conceitual da discriminação da mulher
culdades intelectuais do homem e da mulher são muito diferentes.
Diferença que pode ser relativa e, neste caso, as mulheres teriam
maior capacidade para uma coisa e os homens para outra, ou absoluta, as mulheres são em si mesmas deficientes em relação aos
homens. A “sabedoria” proverbial – cabelos longos, cérebro curto
– fornece a “verdade” dos tempos imemoriais. Contudo, o mais
valioso para os médicos seria compreender claramente o estado
intelectual da mulher e o valor de sua deficiência intelectual para
que pusessem em ação todo o seu poder para combater, em favor
da humanidade, as tendências contranaturais5 dos/das feministas.
Trata-se então de apresentar as “provas científicas” que fundamentam suas, no plural, deficiências. Em primeiro lugar, existe
uma deficiência anatômica na mulher, um retardo, diz o autor, no
desenvolvimento da circunvolução do lóbulo frontal e temporal,
semelhante, aliás, à encontrada nos homens pouco desenvolvidos,
como os negros.
A necessidade de cuidar dos filhos é a causa da diferença entre os sexos. A eterna sabedoria não pôs ao lado do homem outro
homem provido de útero [tudo indica que o autor o lamente], mas
outorgou à mulher tudo de que necessita para o melhor desempenho de seus nobilíssimos deveres, embora não lhe tenha outorgado a energia mental do homem. Se se quer que ela cumpra bem
seus deveres maternais, é necessário que não possua um cérebro
masculino, caso contrário veríamos atrofiarem os órgãos maternos.
A mulher deve ser, antes de tudo, mãe amorosa e abnegada, como
exige a natureza. Quando ela não cumpre seu dever em relação à
espécie e quer viver sua vida intelectual 6 está como que ferida por
uma maldição, cujo castigo recairá também sobre os homens e
sua posteridade. A energia e as aspirações por novos horizontes, a
fantasia e a ânsia por conhecimentos novos serviriam apenas para
fazer a mulher inquieta e transtornar seus deveres maternais. A
mulher deve compreender que ela é assim por vontade da natureza
e abster-se de rivalizar com o homem. Sirvam de exemplo as exal 5. Meu destaque.
6. Destaque do autor.
83
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010
tadas modern-style, que parem mal e são péssimas mães. Ademais,
quanto mais se propaga a civilização, menos se procria.
Do ponto de vista do comportamento, seu instinto a torna
parecida com as bestas. Característico disso é a sua falta de opinião, a faculdade para saber diferenciar por si mesma o bem e o
mal, no que depende, para isso, de uma influência extrínseca. As
mulheres são rígidas conservadoras e odeiam a novidade, a não ser
nos casos em que o novo lhes traga vantagem pessoal ou quando
essa novidade agrada a um amante. A lei, portanto, deve considerar a deficiência mental fisiológica da mulher e não julgá-la como
a um homem. A sua incapacidade para dominar as tempestades
afetivas e a falta de sentido da equidade provam que é uma grande
injustiça julgar ambos os sexos igualmente.
Sua moral é a moral do sentimento, ou seja, uma inconsciente retidão. Sua coragem deve servir para defender sua prole, pois
exercer esse valor em outras ocasiões só a molesta. Justiça para elas
é um conceito vazio de sentido.
Sem escrúpulos, pode-se afirmar que a natureza deu preferência ao homem e tem demonstrado querer formar dele um tipo
mais perfeito pelo fato de fazê-lo se desenvolver mais tarde do que
a mulher, predileção que é evidente na medida em que permite ao
homem conservar as faculdades adquiridas até o fim de sua vida.
Com frequência, e com boas intenções, os homens que sugeriram às mulheres a mania da emancipação põem em prática o
ardil de fazê-las crer que unicamente lhes faltou o exercício mental
porque, como as negras da África, têm sido escravas do macho de
músculos robustos. Sua ampla escravidão seria a causa de sua mente
ter atrofiado. Aqueles que insistem, inclusive mais do que Moebius,
segundo ele mesmo, na debilidade intelectual e moral do sexo feminino porque crêem que essa debilidade está relacionada a hábitos,
portanto, modificáveis mediante a educação, igualmente crêem poder impor suas leis sobre a natureza – um erro, evidentemente.
Àqueles que o consideram um “obscurantista, cujo menor
pecado é o da ignorância”7, ele afirma que defende os interesses
7. Moebius, P. J. Inferioridad de la mujer (la deficiencia mental fisiológica de la
mujer), p. 90.
84
Marisa Lopes
Para a história conceitual da discriminação da mulher
femininos contra seus adversários e luta contra o falso intelectualismo e o falso liberalismo que prega a conquista de uma nivelação
estéril. Os verdadeiros adversários das mulheres são os feministas. A inferioridade do cérebro feminino é uma condição útil e
indispensável.
Por isso,
[...] devemos esperar toda a saúde unicamente da sabedoria do homem, pelo menos até o ponto que a intervenção humana pode alcançar; isto é, que o homem deverá dizer clara e terminantemente
à mulher que não quer saber nada de liberdade incondicional. E
se o homem o faz seriamente, terminará de uma vez por todas o
movimento feminista.8
Sabemos que, não tanto tempo depois, ideias como as de
Moebius se tornaram dominantes na Alemanha nazista, aquela
do triplo K: Kirche, Küche, Kinder.
Deficiente, inferior, incapaz, enferma: todos esses qualificativos associados à mulher não são o produto de um delírio individual, mas de uma ratio masculinizante9 estruturante de uma
antropologia e de uma cultura que concebe a mulher como um ser
inacabado e imperfeito, naturalmente inferior ao homem e incapaz para a vida social e política.
Ainda que tal concepção não tenha sido a única na história do
pensamento ocidental, e a despeito de feministas como Eurípedes,
Sócrates, Aristófanes, Platão e Xenofonte, serão as pseudo-teorias
de Aristóteles sobre a natureza da mulher e do escravo que prevalecerão e fornecerão o referencial teórico para essa tendência
misógina.10
Encontramos as explicações sobre a incapacidade da mulher da Metafísica à Política. No livro inaugural da Metafísica,
Aristóteles, ao revisar as teorias dos pensadores ou filósofos que o
8. Idem, p. 158.
9. Para usar os termos que Roberto Romano empresta de Brian Easlea.
10. Cf. Wright, F.A. Feminism in greek literature from Homer to Aristote. Lon­
dres: George Routledge & Sons, 1923.
85
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010
precederam sobre as primeiras causas e princípios de tudo o que
existe, isto é, as causas ou princípios pelos quais as coisas são e são
cognoscíveis, lembra que alguns pitagóricos concebiam os contrários como os princípios dos seres e derivavam todos os fenômenos
das seguintes oposições fundamentais:
limite-ilimitado
ímpar-par
um-múltiplo
direito-esquerdo
macho-fêmea
repouso-movimento
reto-curvo
luz-trevas
bom-mau
quadrado-retângulo
O limitado é preferível ao ilimitado, pois se tudo fosse ilimitado não haveria conhecimento possível. O um (unidade) é o
princípio de todas as coisas. O ser é luz, o não-ser, trevas. Os pares
de opostos indicam um melhor e um pior: a mulher pertence ao
que é enantíon, adjetivo que indica a ideia de hostilidade, adversidade, antagonismo e, por extensão, oposição, contrariedade.
Pitágoras, neste aspecto, não inova. O mito das raças, narrado por Hesíodo no poema Os trabalhos e os dias, conta a sucessão
de diversas raças de homens que viveram e morreram: a de ouro,
de prata, de bronze e de ferro. Hesíodo acrescenta uma quinta,
a dos heróis, que não tem correspondência metálica, intercalada
entre a generação do bronze e a do ferro. A última raça, à qual o
poeta pertence, e se lamenta por isso, representa um mundo ambíguo, definido pela coexistência de contrários. O bem tem como
contrapartida o mal, o homem implica a mulher, o nascimento, a
morte, a juventude, a velhice, a abundância, a escassez, a felicidade, a infelicidade. Segundo Vernant, a passagem de uma idade a
outra não indicaria exatamente uma decadência progressiva, pois
não há uma temporalidade linear e contínua, “mas fases que se
alternam segundo relações de oposição e complementariedade.
O tempo não se desenrola segundo uma sucessão cronológica,
mas a partir de relações dialéticas de um sistema de antinomias”.11
Contraposições e relações antinômicas que operam especialmente
11. Vernant, J. P. Mythe et pensée chez les Grecs. Etudes de psychologie historique. I.
Paris: François Maspero, 1971, p. 21.
86
Marisa Lopes
Para a história conceitual da discriminação da mulher
na idade de ferro, idade sem pouca afinidade com as narrativas
heróicas.
Prometeu é condenado a conviver com Pandora, responsável
por todas as misérias dos homens de ferro: “para a raça de ferro, a
terra e a mulher são ao mesmo tempo princípios de fecundidade e
potências de destruição”.12 Tal como as abelhas, que
amontoam no seu ventre o esforço alheio,
assim um mal igual fez aos homens mortais
Zeus tonítruo: as mulheres, parelhas de obras
ásperas, e em vez de um bem deu oposto mal.
Quem fugindo a núpcias e a obrigações com mulheres
não quer casar-se, atinge a velhice funesta
sem quem o segure: não de víveres carente
vive, mas ao morrer dividem-lhe as posses
parentes longes. A quem vem o destino de núpcias
e cabe cuidadosa esposa concorde consigo,
para este desde cedo ao bem contrapesa o mal
constante. E quem acolhe uma de raça perversa
vive com uma aflição sem fim nas entranhas,
no ânimo, no coração, e incurável é o mal.13
A figura feminima aparece como um castigo que, entre
outros, Zeus inflige a Prometeu pelo roubo do fogo dos deuses.
Desde então, o homem, condenado por sua hybris, sua desmesura,
deve viver num mundo no qual reina a ambiguidade, a desordem,
a injustiça, a miséria, o trabalho para viver. Com a passagem da
idade do ouro, em que reinava a diké, a justiça, à idade de ferro,
domínio da hybris sobre a diké, Hesíodo mostra, segundo Vernant,
a arquitetura que preside a organização da sociedade humana e do
mundo divino, segundo funções, valores e uma certa lógica que
orienta essa arquitetura e regra o jogo de oposições interno a cada
idade e entre elas: a tensão entre diké e hybris.14
12. Idem, p. 33.
13. Hesíodo. Teogonia. Estudo e trad. de JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras,
1995, 3ª ed., vv. 599-612. A ênfase é minha.
14. Vernant, op. cit., p. 34-8.
87
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010
Parece, portanto, que na própria formação do pensamento do
homem ocidental e na modelagem das peças que compõem a “arquitetura do espírito”15 – os modos de expressão simbólica, tempo,
espaço, causalidade, memória, imaginação, sensibilidade, organização da vontade, dos atos, da pessoa –, uma certa projeção no mundo
como um todo de valores culturais tão arraigados que parecem “naturais”, “objetivos”, dirige e orienta a identificação entre o negativo
e a fêmea, o positivo e o macho. Mesmo que, a crer em Aristóteles,
a diferença entre macho e fêmea não seja essencial, mas acidental,
assim como é acidental para a pessoa ser branca ou preta.
Ser fêmea ou ser macho é uma propriedade por si do gênero
animal, mas isso não os faz diferirem, nem fêmea nem macho, seja
pelo gênero seja pela espécie, que é ser animal racional. Cavalo e
homem são espécies distintas do gênero animal, mas não mulher e
homem; sua diferença antes concerne a uma modificação na matéria (elemento corpóreo), não na forma (essência).16
Contrariedades relativas à forma produzem espécies distintas, como os animais terrestres ou alados, ao passo que contrariedades relativas à matéria produzem diferença na coisa entendida como matéria, ou seja, no composto concreto.17 Sócrates,
por exemplo, é um ser concreto composto de forma (essência) e
matéria (carne, nervos, ossos, sangue). Ser branco para Sócrates é
uma modificação na matéria que não produz nenhuma diferença
em sua forma, sua essência. Do mesmo modo, “macho e fêmea são
afecções (pathé) próprias do animal, e não se referem à substância,
mas só à matéria e ao corpo. É por isso que do mesmo esperma,
de acordo com a modificação (pathós) que venha a sofrer, deriva o
macho ou a fêmea”.18
O termo matéria (hylé), sabemos, nomeia uma das causas originárias das coisas. Ela é o material primeiro de que consiste ou
15.
16.
17.
18.
88
Idem, p. 6.
Aristóteles. Metafísica, I, 9, 1058a 30-31. Doravante Met.
Met., X, 9, 1058b 1-10.
Met., X, 9, 1058b 21-23. Neste contexto, é lícito tomar o termo “substância”
(ousía) como sinônimo de essência.
Marisa Lopes
Para a história conceitual da discriminação da mulher
é feito qualquer coisa natural ou artificial: por exemplo, a estátua
provém do bronze, a taça, da prata, os corpos, do fogo, da terra, da
água, do ar.
Por matéria deve-se compreender, no entanto, o que, em si
mesmo, não é um ser particular, mas tem a potência para sê-lo ou,
em outras palavras, aquilo que, embora não seja em ato um ser
determinado, o é em potência: por exemplo, a madeira, que, não
sendo algo determinado, tem a potência ou capacidade para ser
uma mesa ou uma cadeira.19
Em função de sua natureza indeterminada, a matéria, segundo a Física, é não-ser: a madeira, embora ainda não o seja, pode ser
algo determinado, por exemplo, esta mesa. Na medida em que pode
vir-a-ser algo determinado, a matéria está perto do ser, tende para
o ser e o deseja. A matéria deseja ou tende para a forma (ser), como
uma fêmea tende para o macho e o feio para o bonito.20 A forma,
ao contrário, não deseja a si mesma porque nada lhe falta.21
A natureza deseja realizar plenamente e bem aquilo em que
ela inere como princípio de movimento e repouso (geração e perecimento). Realizar plenamente significa atualizar, tanto quanto possível, a essência de um ser, a sua forma. Assim, a matéria, um não-ser,
deseja ou tende para a forma porque, desse modo, tende para o seu
bem, que é ser. A matéria, em certo sentido incompleta, é atraída
pela forma, pela plenitude de ser; analogamente, a fêmea e o feio,
por suas incompletudes, são atraídos pelo macho e pelo belo.
A matéria, como causa, é como a mãe: causa coeficiente do
que é engendrado. É por isso que, afirma Aristóteles, quando se
fala do universo, atribui-se à terra uma natureza feminina e o nome
de mãe, e ao céu e ao sol, o nome de gerador e de pai.
É claro que a fonte de pesquisa de Aristóteles não é Hesíodo,
no entanto, não deixa de ser curioso resgatar a ancestralidade da
associação entre fêmea-generatriz e macho-gerador.
19. Met., VIII, 1, 1042a 26-28.
20. Enquanto atributos acidentais da matéria.
21. Aristóteles. Física, I, 9, 192a 19-25. Doravante Fis.
89
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010
Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra
desejando amor sobrepairou e estendeu-se
a tudo. Da tocaia o filho [Cronos] alcançou com a mão
esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice
longa e dentada. E do pai o pênis
ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo
para trás. Mas nada inerte escapou da mão:
quantos salpicos respingaram sanguíneos
a todos recebeu-os a Terra; com o girar do ano
gerou as Erínias duras, os grandes Gigantes
rútilos nas armas, com longas lanças nas mãos,
e Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita.22
A Terra e a fêmea recebem a semente, o sêmen, o princípio
causador23, a partir do qual algo é gerado. Embora a fêmea figure
como causa, ela é o elemento passivo, enquanto o macho é o elemento ativo, pois é dele que parte o princípio do movimento, o
princípio da mudança, da mesma maneira que do artesão parte
o princípio de movimento que produz uma mesa a partir da madeira. E assim como a madeira não engendra a mesa, a fêmea não
engendra nada a partir de si mesma: é necessário um princípio que
inicie o movimento e o determine. A natureza se serve do esperma
como o artesão se serve do instrumento, isto é, ela se serve de algo
que é causa da mudança ou da passagem de um estado a outro.
Desse modo, tudo o que é gerado é gerado pela ação de algo em
ato (forma) sobre algo que é potencialmente capaz de receber as
determinações do que atualmente é: a madeira recebe, por meio
do instrumento, a configuração da mesa que, por sua vez, já está
presente em ato na alma do artesão.
O macho fornece a forma e o princípio do movimento, a
fêmea, o corpo e a matéria. Em Metafísica, VIII, 4, 1044a 34 encontramos a mesma ideia: “Qual a causa material do homem? Não
é o mênstruo? E qual a causa motora? Não é o esperma? E qual
é a causa formal? A essência do homem. E qual a causa final? O
22. Hesíodo, Teogonia, vv. 176-187. Ênfase minha.
23. Não surpreende que o sinônimo de semente, além de “esperma”, seja
“causa”.
90
Marisa Lopes
Para a história conceitual da discriminação da mulher
fim (télos) do homem”. O macho, enquanto macho, é o motor e
o agente, causa do ser produzido; a fêmea, enquanto fêmea, paciente, portadora da matéria a partir da qual algo determinado
vem à existência pela ação de um princípio ativo que é causa do
ser produzido. Nesse sentido, o princípio masculino é portador da
essência (ser humano), do gênero (animal) e das características
individuais.24
A separação entre macho e fêmea representa a separação entre o melhor e o menos bom, e eles só se juntam para gerar, função
comum dos dois.25 Nenhum animal é fêmea ou macho por todo o
corpo, mas se distingue por sua função (uma potência e uma ação)
e por órgãos apropriados para realizá-la. Desse modo, fêmea é o
ser que engendra em si mesmo, macho é o ser que engendra em
outro. Para realizar sua função, a fêmea é dotada de útero, o macho, de testículos e pênis.26
Do ponto de vista de sua fisiologia, o líquido seminal é um
resíduo do alimento em seu último grau de elaboração, isto é, é
o produto que vem do sangue por cocção, que, por sua vez, é o
produto da cocção final do alimento.27 Por sua própria natureza, o
líquido seminal (produto final da cocção do sangue) estaria presente em todas as partes do corpo, no entanto, por ser um resíduo
como a urina ou as fezes, não permanece espalhado, mas “guardado” no útero, nas partes sexuais e na mama.28
A fêmea, no entanto, é impotente para operar a cocção do
sangue transformando-o em esperma em função da frieza de sua
natureza. Nela a cocção é menos intensa e disso resulta a produção
de uma grande quantidade de líquido sanguinolento (o mênstruo),
resíduo análogo ao líquido seminal. Aliás, é pela qualidade do sangue (sangue mais frio) que Aristóteles explica o fato de a fêmea
ser mais frágil. O fluxo menstrual explica o fato de as fêmeas não
24.
25.
26.
27.
28.
Aristóteles. Geração dos animais, IV, III, 767b 24 e ss. Doravante GA.
GA, II, I, 732a 4-7.
GA, IV, I, 766a 2-5.
GA, I, 18, 726a 25-27.
GA, I, 20, 728a 21 ss.
91
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010
terem frequentemente hemorróidas, não sangrar pelo nariz, terem
a pele mais fina e mais lisa, serem inferiores fisicamente em relação aos machos e mais pálidas.29
Aristóteles contesta a opinião segundo a qual o esperma seria
o produto da soma do resíduo do macho mais o da fêmea: o resíduo
da fêmea é um análogo do líquido espermático, mas não é esperma,
portanto não causa em sentido forte. Uma prova disso é que a fêmea
em geral concebe sem ter tido prazer durante o coito. O prazer que
acompanha a cópula é devido à emissão do esperma e à retenção da
respiração, pela qual se acumula força. A fêmea contribui na geração
fornecendo a matéria, o mênstruo, que serve de receptáculo ao esperma que, este sim, é princípio motor e que contém a forma.30
Para o filósofo a geração ocorre da seguinte maneira: o fluxo
menstrual é esperma que, não sendo em estado puro, precisa ser
elaborado. Há geração quando o mênstruo se mistura ao esperma.
O que é em potência é produzido por algo que seja em ato, por
isso é necessário que a forma seja em alguma coisa.31 O esperma
é resíduo animado de movimento idêntico ao existente no útero.
Quando penetra o mênstruo, imprime movimento, movimento
que a semente da fêmea já possui, porém em potência. A fêmea é
como um macho mutilado32, pois o que lhe falta é o princípio da
alma, que é trazido sempre pelo macho. As sementes são portadoras de alma, mas na fêmea esta alma está em potência (a alma
nutritiva, responsável pelo crescimento), e é ativada pelo princípio
motor externo: o esperma masculino ativa a alma. No esperma há
o que torna as sementes fecundas, o calor, que não é o fogo, mas o
pneuma (ar quente e água), cuja natureza é análoga ao elemento
astral (éter) armazenado no esperma. A matéria do líquido seminal é o veículo do princípio psíquico (alma), sendo que o intelecto
é a única porção que é independente da matéria.33
29.
30.
31.
32.
Idem, ibidem.
GA, IV, 1, 765b 11-15.
GA, II, 1, 733b 23-30.
GA, II, 3, 737a 27-28. Sem alma, e depois houve quem lembrasse de dizer
que “sem pênis”.
33. GA, II, 1, 735a 5 ss.
92
Marisa Lopes
Para a história conceitual da discriminação da mulher
O princípio material originário do qual é feito ou do qual deriva algo natural é privado de forma e incapaz de mudar em virtude
unicamente da potência que lhe é própria.34 Por isso, quando o princípio (macho) não domina, quando é incapaz de operar a cocção por
falta de calor e não impõe sua própria forma, é necessário que ele
se transforme em seu contrário, pois a destruição de uma coisa é a
transformação dela em seu contrário. Ora, o contrário do macho é a
fêmea, e isso explica porque uns sejam macho, outros, fêmea.35
O desenvolvimento da fêmea, após o nascimento, é mais rápido que o do macho: ela chega mais rápido à puberdade, à idade
madura, à velhice, mas isso se deve ao fato de as fêmeas serem por
natureza mais fracas e mais frias, razão pela qual é preciso considerar sua natureza como uma imperfeição (anapería) natural.36
Todo esse aparato metafísico, físico e biológico conduz à descrença na capacidade natural da mulher para a virtude e para o
comando.
Na Política, Aristóteles afirma que “a relação entre homem e
mulher consiste no fato de que, por natureza, um é superior, a outra, inferior, um governante, outra governada”, consequentemente
“a relação entre homem e mulher é de permanente desigualdade”.37
Dada a desigualdade, a mulher e o escravo possuem a virtude que
lhes convêm enquanto mulher e escravo, ou seja, a virtude que é
apropriada ao cumprimento de suas funções como mulher e como
escravo.
34. Ver também Fís., II, 1, 193a 9 ss.
35. GA, IV, 1, 766a 18-21. O que se aproximaria do tratado hipocrático Do
regime. Segundo Aristóteles, são duas razões para que nasçam fêmeas ao
invés de machos: 1) necessidade natural para salvaguardar o gênero animal
em que há distinção de sexos em vista da preservação da espécie; 2) quando o mênstruo não sofreu uma cocção suficiente a semente (o princípio
motor) não se impõe, fazendo nascer uma fêmea (cf. GA, IV, III, 767b
15-23). Que se faça justiça: Aristóteles também admite que o macho, por
sua própria incapacidade, consequência de sua juventude, velhice ou alguma outra causa aparentada, não se imponha à matéria no ato da geração
(Idem, 767b 10-13).
36. GA, IV, 6, 775a 11-16.
37. Aristóteles. Política, I, 5, 1254b 12-13. Doravante Pol.
93
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010
A assimetria social acompanha a assimetria entre corpo e
alma e à que concerne às faculdades da alma: a alma governa o
corpo, a faculdade racional governa a faculdade apetitiva. Quem
se deixa governar pelo corpo é degradado, pois obedece à parte irracional do composto corpo e alma. Quem não pode ou não usa a
faculdade racional para escolher e decidir a respeito de suas ações
e dirigir suas paixões está destinado a obedecer. Por isso o homem
livre mandar no escravo, da mesma forma que o marido na mulher
e o adulto na criança. Não se trata, como se vê, de negar racionalidade ao escravo, à mulher ou à criança, antes é a impossibilidade
de orientar suas ações por um princípio interno de reflexão, deliberação e decisão que os tornam governados.
Declarar que o escravo não tem faculdade deliberativa (tò
bouleutikón), que a mulher tem-na, mas carece da faculdade de
decisão (tò ákyron) e que a criança – se for menino – tem a capacidade de decisão, mas ainda não desenvolvida (atelés)38 não significa
senão entender suas ações como heterônomas.
No vocabulário aristotélico a expressão “o que está em nosso
poder” ou “o que depende de nós” (to eph’ hêmin) traduz a ação
plenamente livre, isto é, a ação cujo princípio está em poder do
agente iniciar ou não iniciar:
Com efeito, quando depende de nós (eph’ hêmin) o agir, também
depende de nós o não agir, quando depende de nós dizer não, também depende de nós dizer sim; por conseqüência, se depende de
nós agir quando a ação é boa, também dependerá de nós não agir
quando é ação é vil; e se não agir quando a abstenção é boa depende
de nós, agir quando a ação é vil dependerá também de nós. Mas se
depende de nós cumprir as ações boas e as ações vis, e paralelamente, de não as cumprir, e isso é ser, já dissemos, bons ou maus, resulta
que está igualmente em nosso poder ser virtuoso ou vicioso.39
A passagem fornece uma condição bastante relevante acerca
da responsabilidade moral do agente: as ações mediante as quais
realizamos fins desejados são voluntárias, ou seja, está em nosso
38. Pol., I, 13, 1260a 12-14.
39. Aristóteles. Ética Nicomaquéia, III, 7, 1113b 7-15.
94
Marisa Lopes
Para a história conceitual da discriminação da mulher
poder realizá-las ou não, quando o homem, que é princípio de
movimento, princípio de ação, detém o poder de agir ou de não
agir quanto ao que é nobre ou vil, por isso está igualmente em seu
poder tanto a virtude quanto o vício.
Ora, nem a mulher nem o escravo são entendidos como plenamente autores de suas ações, pois não podem deliberar ou decidir em toda e qualquer instância (pública e privada) acerca do que
é bom para eles, seja do ponto de vista dos fins, seja do ponto de
vista das próprias ações por intermédio das quais realizariam os
fins que desejassem realizar.
Novamente a chaga social contamina a reflexão e a verdade.
Aristóteles declara que seu apreço pela verdade é maior que sua
amizade por Platão, razão pela qual é preciso criticar a Teoria das
Ideias. No entanto, o que sobressai de opiniões, aliás, contrárias às
de Platão sobre a mulher, tais como “a liberdade excessiva das mulheres é prejudicial ao fim da constituição e à felicidade da cidade”,
ou “os defeitos na condição das mulheres parecem não só causar
uma certa falta de pudor na própria constituição [Esparta], como
ainda contribuir para o amor ao dinheiro”, ou ainda “[Esparta] foi
negligente no que diz respeito às mulheres dado que estas vivem
sem freio, entregues a toda a espécie de excessos e de indolência”,40
não parece ir muito além de convicções que refletem uma certa
visão cavernosa do mundo.
Mas em relação ao nosso tema, não foi Platão quem ganhou
o jogo. É a Aristóteles que devemos muito da linguagem e do
universo simbólico que codificaram a história da discriminação da
mulher. Que, como se vê, longe de restringir-se a um tema sociológico, sempre permeou a História da Filosofia.
Se, como afirma Feuerbach, “Deus – tal como é, necessária e essencialmente –, é um objeto do homem, então na essência
desse objeto exprime-se apenas a própria essência do homem”,41
de igual modo, a figura feminina, o avatar-diabo de saia, decaído,
40. Pol., II, 9, 1269b 12 a 1270a 11.
41. Feuerbach, L. Princípios da Filosofia do Futuro. Lisboa: Edições 70, 1988, 7,
p. 42.
95
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 81-96 – jan.-jun. 2010
imperfeito, mutilado, não é menos a construção de um duplo que,
por contraposição, ofereceu ao homem a possibilidade de elaborar
uma certa identidade: aquela da qual Moebius e o advogado de
Fernando Cortez, citado no início, tanto se orgulham.
Bibliografia
ARISTOTELES. Metafisica. Edición trilingüe [texto grego de Ross e latino de Moerbeke]. Traducción de V. García Yebra. Madrid: Gredos,
1970. 2 vols.
ARISTOTE. Physique. Texte établi et traduit par H. Carteron. Paris: Les
Belles Lettres, 2 vols., 1926 e 1931.
_____. De la Génération des animaux. Texte établi et traduit par P. Louis.
Paris: Les Belles Lettres, 1961.
_____. The Nicomachean Ethic. With an English Translation by H.
Rackham. The Loeb Classical Library. London: Heinemann/
Cambridge: Harvard University Press, [1926] 1934.
ARISTÓTELES. Política. Trad. e notas de A. C. Amaral e C. C. Gomes.
Edição bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998.
FEUERBACH, L. Princípios da Filosofia do Futuro. Lisboa: Edições 70,
1988.
HESÍODO. Teogonia. Estudo e trad. de JAA Torrano. São Paulo:
Iluminuras, 3ª ed.,1995.
MOEBIUS, P. J. Inferioridad de la mujer (la deficiencia mental fisiológica de
la mujer). Versão de A. Conca. Buenos Aires: Editorial Tor, s/d.
PIMENTEL, S. “Quando gritar não é suficiente” (entrevista). In: O
Estado de São Paulo. Caderno Aliás, 30/08/2009.
ROMANO, R. “A mulher e a desrazão ocidental”. In: Folha de São Paulo,
Folhetim, 03/04/1987.
VERNANT, J. P. Mythe et pensée chez les Grecs. Etudes de psychologie historique. I. Paris: François Maspero, 1971.
WRIGHT, F. A. Feminism in greek literature from Homer to Aristote.
Londres: George Routledge & Sons, 1923.
96
Introdução ao Direito Natural Feyerabend,
de Immanuel Kant
Apresentação
Fernando Costa Mattos
Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente
pesquisa de pós-doutoramento, com bolsa da FAPESP,
junto ao núcleo Direito e Democracia do CEBRAP
O Direito Natural Feyerabend (Naturrecht Feyerabend) é um
texto constituído pelas anotações de Gottfried Feyerabend, aluno de Kant, durante um curso de direito natural ministrado pelo
filósofo em 1784, mas que só seria publicado, como apêndice ao
volume XXVII da edição da Academia, no século XX. Tal como
era regra nas universidades alemãs da época, o curso se baseava no
manual de Gottfried Achenwall, conhecido jurista alemão do século XVIII que, também conforme a praxe de então (a ser quebrada por Kant), escrevia seus textos em latim. Embora Achenwall
não seja mencionado pelo nome no texto do Naturrecht Feyerabend
– Kant refere-se a ele como “nosso autor”, ou simplesmente “o
autor” –, as divisões temáticas são feitas a partir das divisões do
seu livro, e as suas afirmações servem de ponto de partida para as
liçoes de Kant.
O que não quer dizer que Kant concorde com as posições de
Achenwall: embora a introdução não permita notar as diferenças,
ao longo do curso ele se oporá com frequência ao “nosso autor”,
boa parte das vezes com certa dose de ironia. Ironia que constitui,
ao lado do tom oral, um dos pontos interessantes do texto: em
frases curtas e diretas, cuja diferença em relação aos textos escritos
pelo próprio filósofo é patente, o Direito Natural nos mostra o
professor Kant pensando em voz alta e desenvolvendo, no diálogo
com Achenwall, as suas próprias noções morais e jurídicas. Como
o leitor poderá perceber, comparecem nesta introdução temas conhecidos da moral kantiana, tais como a necessidade de pensar o
97
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010
ser humano como um fim em si mesmo, a liberdade da vontade
humana por oposição ao mecanismo da natureza, a distinção entre
os diferentes tipos de imperativos, com o categórico vinculado à
moral, e a coerção como elemento constitutivo do direito.
Nesse sentido, também se podem, com relação à introdução
aqui publicada, estabelecer paralelos tanto com a Fundamentação
da metafísica dos costumes, publicada no mesmo ano de 1784, quanto com a “Introdução geral à Metafísica dos Costumes”, de 1797,
já que as considerações anotadas por Feyerabend nas primeiras
aulas do curso são de caráter mais geral e, começando pela moral, caminham no sentido de diferenciar o direito justamente pelo
elemento coercitivo que lhe é próprio. Talvez seja interessante realizar uma comparação mais detida entre tais textos, mas isto é
algo que deixamos a cargo do leitor, confiantes de que a presente
tradução seja um estímulo para isso.
Aliás, trata-se de uma tradução realizada no contexto do projeto de tradução dos póstumos kantianos que, iniciado com o pequeno conjunto de Reflexionen trazidas à luz no último número destes
Cadernos, intenta levar a cabo a tradução de uma quantidade mais
extensa de reflexões, lições e cursos sobre moral, política e direito
que nos pareçam interessantes no sentido de, ampliando o acesso
do leitor lusófono ao universo dos póstumos kantianos, enriquecer
a compreensão que temos hoje desses âmbitos da obra. Como dito
na apresentação àquele conjunto de Reflexionen, temos mantido um
proveitoso diálogo com Frederick Rauscher, que está desenvolvendo um projeto similar junto à editora Cambridge, e a sua tradução
provisória do Naturrecht Feyerabend constituiu um importante ponto de apoio para a presente tradução. Outra referência importante,
a que só tivemos acesso mais recentemente, foi a tradução desta
mesma introdução para o italiano por Gianluca Sadun Bordoni, publicada em 2007 na Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, n.
84, e muito rica em comentários e notas explicativas.
Como também dito em nossa apresentação anterior, a publicação de partes do nosso trabalho nos Cadernos de filosofia alemã
tem por objetivo fomentar a discussão de questões de tradução e, se
possível, suscitar comentários e críticas, da parte de nossos leitores,
que nos permitam aprimorar esse trabalho ao longo do tempo.
98
Immanuel Kant
Direito Natural Feyerabend
Direito Natural Feyerabend
(Curso de Direito Natural (1784),
segundo as anotações do aluno Gottfried
Feyerabend)
Immanuel Kant
Introdução1
/ xxvii,13192 /
A natureza inteira está submetida à vontade do ser humano
até onde o poder deste alcance, excetuados outros seres humanos e
racionais. Consideradas pela razão, as coisas na natureza só podem
ser vistas como meios para fins, mas apenas o ser humano pode ser
visto como um fim mesmo. Não posso pensar nenhum valor, relativamente a outras coisas, a não ser que as considere como meios
para outros fins. Por exemplo: a lua tem valor para nós na medida
em que ilumina a terra, engendra as marés etc. A existência das
coisas irracionais não tem nenhum valor se não há alguém que
possa delas servir-se, i.e. se nenhum ser racional as utiliza como
meios. Também os animais não têm em si qualquer valor, já que
não são conscientes de sua existência – o ser humano é, portanto,
o fim da criação; ele pode também, contudo, ser utilizado como
meio por um outro ser racional, mas não é nunca mero meio, e
sim ao mesmo tempo fim. Por exemplo: se o pedreiro me serve
como meio para a construção de uma casa, eu lhe sirvo ao mesmo
tempo como meio para conseguir dinheiro. Pope, em seu Ensaio
1. Como dito na apresentação, esta tradução foi feita no contexto do Grupo
de Traduções Kantianas, ligado ao Grupo de Filosofia Alemã, da USP.
Agradeço a todos pelas sugestões, e à Monique Hulshof pela minuciosa e enriquecedora revisão. Agradeço ainda a Frederick Rauscher, da Universidade
de Michigan, por nos ter passado a sua tradução provisória do Naturrecht
Feyerabend para o inglês, tradução esta que foi de grande utilidade e à qual
faço menção em outras notas. (N. do T.)
2. A numeração indicada entre barras corresponde à paginação da edição da
Academia: volume xxvii, pp. 1319-29. (N. do T.)
99
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010
sobre o homem, fala sobre o ganso: “o ser humano também me serve,
pois ele me dá a comida”. No mundo como sistema de fins tem
de haver afinal um fim, e este fim é o ser racional. Se não houvesse um fim, também os meios seriam vãos e não teriam qualquer
valor. – O ser humano é fim e, por isso, seria contraditório que
ele devesse ser um mero meio. – Se faço um contrato com um
empregado, então ele também tem de ser fim como eu, e não mero
meio. Ele também tem de querer. – A vontade humana é limitada,
portanto, à condição do consentimento geral da vontade de outrem. – Se deve haver um sistema de fins, então o fim e a vontade
de um ser racional têm de colocar-se de acordo com a do outro.
A vontade do ser humano não é limitada por nada na natureza a
não ser pelas vontades dos demais seres humanos.3 – Pois todo ser
humano é ele mesmo fim e, por isso, não pode ser mero meio. Eu
não posso tirar algo da terra de alguém para com isso adubar a
minha própria; pois neste caso o outro seria um mero meio. Essa
limitação se baseia nas condições do consentimento mais geral
possível da vontade de outrem. Não há nada, além do ser humano,
a que se possa atribuir tanto respeito quanto ao direito humano.
– O ser humano é, assim, um fim em si mesmo, e só pode ter,
portanto, um valor interno, i.e. uma dignidade, em cujo lugar não
pode ser posto nenhum equivalente. Outras coisas têm um valor
externo, i.e. um preço contra o qual alguma coisa que sirva para
o mesmo fim possa ser posta como equivalente. O valor interno
do ser humano baseia-se em sua liberdade, no fato de que ele tem
uma vontade própria. Já que ele deve ser o fim último; então sua
vontade não tem de depender de mais nada. – Os animais têm /
xxvii,1320 / uma vontade, mas não a sua própria vontade, e sim
a vontade da natureza. A liberdade do ser humano é a condição
sob a qual o ser humano pode ser ele mesmo um fim. As outras
coisas não têm qualquer vontade, mas devem, isto sim, guiar-se
3. Em alemão, essa frase tem uma oração que não parece fazer sentido: “Der
Wille des Menschen wird durch die ganze Natur nicht eingeschränkt,
obwohl das Vermögen, ausgenommen durch Willen andrer Menschen”.
Optamos por omiti-la do texto, tal como fez Rauscher em sua tradução
provisória. Como o texto é constituído por anotações manuscritas, é compreensível que haja passagens incompletas ou sem sentido.
100
Immanuel Kant
Direito Natural Feyerabend
pela vontade alheia, deixar-se utilizar como meios. Se o ser humano deve, portanto, ser um fim; então ele tem de ter uma vontade
própria, pois não pode deixar-se utilizar como meio. O direito é a
limitação da liberdade pela qual ela pode coexistir com toda outra
liberdade segundo uma regra universal. Suponhamos que alguém
gosta de um lugar no qual um outro se encontra, e quer expulsá-lo
daí. Eu posso sentar-me onde quiser, e ele onde quiser também. Se
ele, porém, está sentado; então eu não posso sentar-me ao mesmo
tempo: por isso tem de haver uma regra universal sob a qual a liberdade de ambos possa coexistir. Eu prometo algo a ele, portanto,
e ele é de fato meio, mas também fim. Não é necessária a limitação
da liberdade? E pode a liberdade limitar-se de outro modo que
não por si mesma segundo regras universais, de modo a poder
existir consigo mesma? Se os seres humanos não fossem livres, sua
vontade seria regulada por leis universais. Se cada um, porém, fosse livre sem leis, então nada mais terrível poderia ser pensado. Pois
cada um faria com o outro o que quisesse, e assim ninguém seria
livre. Os mais selvagens animais seriam menos temidos do que um
homem sem lei. Daí que Robinson Crusoé se tenha assustado tanto ao ver, depois de alguns anos, as pegadas de um homem em sua
ilha deserta, passando a viver sem sossego e a atravessar as noites
em claro. – Daí também que os marinheiros não hesitem em atirar
e matar imediatamente os selvagens de uma ilha desconhecida,
pois não sabem o que esperar deles. – Veja-se também a morte na
Nova Zelândia do cavaleiro Marion, que viveu um mês em plena
amizade com os selvagens, sem nada lhes fazer de mal, mas acabou
devorado por eles, juntamente com 22 marinheiros, apenas porque
desejavam comê-lo. –
Pois o animal se guia por seu instinto, que tem regras. Mas
de um tal ser humano eu não sei minimamente o que esperar.
Sparman, em sua Viagem ao Cabo da Boa Esperança, conta que
os leões não caçam a sua presa, mas a seguem sorrateiramente
e, quando acreditam estar perto o suficiente, dão um salto súbito
e, se mesmo assim sua vítima lhes escapa, voltam atrás, como se
quisessem ver onde erraram, e então se esgueiram. Os seres humanos o sabem, e podem orientar-se por isso. Assim, um hotentote
seguia certa vez para casa, e um leão o seguia sorrateiramente há
101
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010
algum tempo. Ele sabia, pois, que não poderia chegar em casa antes do anoitecer, e que o leão o devoraria num piscar de olhos. Ele
tirou então as suas roupas e colocou-as numa vara, de modo a parecer que estava ali parado. Ele próprio, porém, cavou um buraco
no morro e nele se escondeu. O leão se aproximou furtivamente,
deu um salto repentino e, como a vara cedesse rapidamente, precipitou-se com ela morro abaixo e se esgueirou. Quando está com
muita fome, porém, o leão também caça a presa.
/ xxvii,1321 /
A liberdade tem, portanto, de ser limitada, mas não pode ser
pelas leis da natureza; pois então o ser humano não seria livre;
logo, ele tem de limitar-se a si mesmo. O direito se baseia, portanto, na limitação da liberdade. Ele é mais fácil de explicar do que o
dever. – No direito a felicidade não é levada em conta; pois cada
um pode tentar alcançá-la como quiser.
Ainda não se conseguiu determinar, a partir de princípios,
o lugar do jure naturae [direito natural] na filosofia prática, nem
tampouco mostrar a fronteira entre ele e a moral. Por isso as diferentes proposições de ambas as ciências acabam por misturarse. – Para desfazer a confusão, portanto, deve-se tentar explicitar
os conceitos do direito. Queremos tentar fazer de maneira mais
metódica, agora, aquilo que na última aula fizemos de maneira
tumultuada.
Que tenha de haver alguma coisa como um fim em si mesmo, e que nem todas as coisas possam existir meramente como
meios, é tão necessário num sistema de fins quanto um Ens a se
[ser em si] na série de causas eficientes. Uma coisa que é em si
mesma um fim é um Bonum a se [bem em si]. O que pode ser
considerado meramente como meio tem valor como meio apenas
se é utilizado como tal. Para isso, então, tem de existir um ser que
seja fim em si mesmo. Uma coisa na natureza é um meio para outra; isso continua indefinidamente, e é necessário, ao final, pensar
uma coisa que seja ela própria um fim, pois do contrário a série
não teria um término.
102
Immanuel Kant
Direito Natural Feyerabend
Na série das causas eficientes há um ens ab alio [ser dependente de outro], mas ao fim tenho de chegar a um ens a se [ser em
si]. No querer, o fim é a razão pela qual existe o meio. Uma coisa
é um meio para a outra, e por isso deve haver uma coisa, ao final,
que não seja mais meio, mas um fim em si mesmo. Como pode,
porém, existir um ser que seja em si mesmo um fim, e nunca meio,
é tão incompreensível quanto o modo pelo qual de existir um ser
necessário na série das causas. Ainda assim, temos de admitir ambos devido à necessidade de nossa razão de ter tudo completo.
Reside na própria natureza da razão humana que ela nunca possa
discernir algo que não seja condicionado, nem algo sem fundamento, e no caso do ens [ser] e bonum a se [bem em si] não há
nenhum fundamento além dela. Eu digo que o homem existe para
ser feliz. Por que, no entanto, tem valor o ser feliz? Ele só tem um
valor condicionado, a saber, porque a existência do homem tem
um valor. Por que, então, tem valor a existência? Porque Deus a
quis. Pois em si mesma ela não tem qualquer valor. Mas eu posso
também perguntar: por que tem valor a existência de um Deus?
O ser humano é um fim em si mesmo, e nunca mero meio;
isso é contra a sua natureza. Se alguém confiou uma quantia a mim
e quer tê-la de volta, e eu não devolvo e digo que posso utilizá-la
melhor do que ele com vistas a melhorar o mundo, então estou
utilizando o seu dinheiro e a ele mesmo como meios. Se ele deve
ser um fim; então sua vontade tem, como eu, de ter um fim.
Se apenas seres racionais podem ser um fim em si mesmo,
eles não podem sê-lo porque têm razão, mas sim porque têm liberdade. A razão é tão somente um meio. – O ser humano poderia
produzir através da razão, sem / xxvii,1322 / liberdade e segundo
as leis universais da natureza, aquilo que o animal consegue por
meio do instinto. – Sem a razão um ser não pode ser fim em si
mesmo; pois ele não pode ser consciente de sua existência, não
pode refletir sobre isso. Mas a razão não constitui ainda uma causa: se o homem é um fim em si mesmo, ele tem uma dignidade que
não pode ser substituída por nenhum equivalente. Não é a razão,
porém, que nos dá dignidade. Pois nós vemos que a natureza realiza com os animais, por meio do instinto, aquilo que a razão só
escolhe depois de muitos rodeios. A natureza poderia, portanto,
103
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010
ter organizado nossa razão, segundo leis da natureza, de tal modo
que o ser humano pudesse aprender a ler por si mesmo, inventar diversas artes, e tudo isso segundo determinadas regras. Neste
caso, porém, nós não seríamos melhores do que os animais. Mas
a liberdade, a liberdade apenas, faz com que sejamos um fim em
si mesmo. Aqui temos a faculdade de agir segundo nossa própria
vontade. Se a nossa razão fosse regulada por leis universais, minha
vontade não seria minha própria, mas a vontade da natureza. – Se
as ações do ser humano repousassem no mecanismo da natureza,
o fundamento delas não estaria nele mesmo, mas fora dele. – Eu
tenho de pressupor a liberdade do ser se ele deve ser um fim perante si mesmo. Um tal ser tem de ter liberdade da vontade. Como
posso compreendê-la não sei; trata-se de uma hipótese necessária,
contudo, se devo pensar os seres racionais como fins em si mesmos. Se ele não for livre, então ele está nas mãos de um outro, é
sempre o fim de um outro, portanto mero meio. A liberdade não
é apenas, portanto, a mais elevada condição, mas também a condição suficiente. Um ser que age livremente tem de ter razão; pois
do contrário eu seria apenas afetado pelos sentidos, seria por eles
regido. Sob qual condição pode um ser livre ser fim em si mesmo?
Quando a liberdade for ela mesma uma lei. Ele tem de ser considerado sempre como fim, jamais como meio. As leis são ou leis
da natureza, ou leis da liberdade. Se deve encontrar-se sob leis, a
liberdade tem de dar leis a si mesma.
Se ela extraísse as leis da natureza, ela não seria livre. – Como
pode a liberdade ser ela mesma uma lei? Sem leis não pode ser pensada nenhuma causa e, portanto, nenhuma vontade, pois só existe
causa quando algo dela se segue segundo uma regra constante. Se
a liberdade estiver submetida a uma lei da natureza, então ela não
é liberdade. Ela tem, portanto, de ser ela mesma lei. Parece difícil
compreender isso, e todos os professores de direito natural erraram quanto a este ponto, o qual nunca sequer descobriram. Todas
as leis da vontade são práticas e expressam uma necessidade que é
ou objetiva, ou subjetiva. São, portanto, leis objetivas e subjetivas
da vontade. As primeiras são regras de uma vontade em si boa, de
como esta deveria proceder, e as outras são regras segundo as quais
uma dada vontade efetivamente procede. – As regras subjetivas da
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Immanuel Kant
Direito Natural Feyerabend
vontade são muito diferentes das objetivas. O ser humano sabe
que não deve comer aquilo que lhe é nocivo. Isto é uma regra objetiva. Se ele, no entanto, deixa-se levar pela sensibilidade e come,
ele está agindo segundo regras subjetivas da vontade.
/ xxvii,1323 / Se a vontade de um ser é boa em si mesma; então
as leis objetivas de sua vontade não se diferenciam das subjetivas.
– A vontade do ser humano não é do tipo em que os fundamentos
subjetivos do querer concordam com os objetivos. Por isso a regra
objetiva do querer, aplicada a uma vontade cujas regras subjetivas
não concordam com as objetivas, é denominada imperativo. Para
seres cuja vontade já é em si boa não vale nenhuma regra como
imperativo. Uma lei é um imperativo quando, por meio da ideia
de uma vontade em si boa, necessita uma vontade que não é em
si boa pressupondo uma vontade que não o seria de bom grado e
que, portanto, teria de ser necessitada, tornada necessária. Tratase aqui da necessitação em que o contingente tem de ser tornado
necessário. O ser humano pode escolher o bem e o mal e, portanto,
a vontade boa, no seu caso, é uma vontade contingente. No caso
de Deus, a sua vontade não é contingente; por isso também não
há, para ele, uma lei imperativa voltada a necessitar a sua vontade.
Pois isto seria supérfluo. A necessitação de uma ação em si contingente por meio de fundamentos objetivos é uma necessitação
(Necessitatio) prática que se diferencia da necessidade (Necessität)
prática. Também há leis em Deus, mas elas têm necessidade
(Notwendigkeit) prática. – Uma necessitação prática é imperativa,
é um comando (Gebot). Se a vontade é em si mesma boa, não se
pode comandar-lhe de modo algum. Por isso não há qualquer comando em Deus. Em Deus, a necessidade prática objetiva é também necessidade prática subjetiva. Coerção é a necessitação para
ações indesejadas. Para isso tem de haver um móbil como contraposição. As leis práticas, portanto, também podem ser coerção,
mesmo que o ser humano faça algo a contragosto; ele tem mesmo
de fazê-lo. “Eu devo fazer isso” significa que uma ação necessária
seria boa se praticada por mim. Disso não se segue ainda que eu
o farei: pois eu tenho também razões subjetivas contrárias. Mas
eu me represento aquilo como necessário. Os comandos servem,
portanto, para uma vontade imperfeita. As leis práticas, enquan105
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010
to fundamentos que tornam necessária a ação, são denominadas
imperativos. Não se encontra nenhuma virtude no ser humano
para a qual não se possa encontrar um grau de tentação capaz de
comprometê-la. Daí que o pedido “não nos deixe cair em tentação”
seja um pensamento glorioso. Nós temos 3 imperativos: os técnicos, os pragmáticos e os morais; regras da habilidade, da prudência
e da sabedoria. Imperativos que comandam algo sob a condição de
um querer possível, como simples meio para um fim meramente
possível e agradável, são imperativos da habilidade. São saberes
práticos. Por exemplo: você deve fazer um corte transversal sobre
uma linha. Isso não é um imperativo para todos, mas apenas sob a
condição de que se queira atingir um mero fim possível (a divisão
de uma linha em duas partes iguais). Ele é bom, portanto, enquanto meio para um mero fim possível. São imperativos da técnica, da
habilidade. Nós aprendemos primeiro a habilidade e os meios para
fins, sem saber ou supor que precisaremos dos fins. Por isso os pais
não perguntam muito se o seu filho está moralmente educado, mas
se aprendeu muito. A natureza forneceu o impulso para conservar
os homens. Pois não sei se / xxvii,1324 / não chegarei ao momento
em que precisarei fazer uso disso. Os imperativos da habilidade
são meramente condicionados e comandam sob a condição de um
fim apenas contingente e possível. 2) Os imperativos da prudência
são aqueles que prescrevem os meios para o fim universal a que
se remetem, no ser humano, todos os fundamentos subjetivos do
querer, i.e. a felicidade de que carecem todas as criaturas. Aqui
os imperativos comandam sob a condição de um fim efetivo. 3)
O imperativo da sabedoria comanda a ação como o fim mesmo.
A regra “não mentir” pode ser a habilidade e o meio para enganar a outrem. Ela pode ser prudência, pois posso atingir todos os
meus propósitos por meio dela. Eu serei tido por honesto, confiável, bem reputado etc. Mas também posso compreender essa regra
como sabedoria. Neste caso, não a considero como meio para meu
fim. – Pode acontecer comigo o que for, bom ou ruim, isso não me
importa. Ela segue sendo uma lei. Mesmo que eu não consiga executá-la, ela permanece venerável para mim. – Consideramos esse
bem incondicionado muito mais elevado para nós do que tudo o
que pudéssemos atingir por meio da ação ao utilizá-la como mero
106
Immanuel Kant
Direito Natural Feyerabend
meio. – A boa ação tem muito mais valor em si do que o bem
alcançado pelo seu praticante; por exemplo, que o amassem por
isso etc. – Não são as boas consequências que determinam o valor.
A virtude tem em si uma dignidade que independe até mesmo
de ela poder ser praticada; as boas consequências têm valores que
podem ser substituídos por um equivalente. Todos os imperativos
são condicionados ou incondicionados, e os condicionados são ou
problemáticos, imperativos da habilidade, ou assertóricos, imperativos da prudência. O imperativo incondicionado da sabedoria é
apodítico, todos os imperativos são, portanto, hipotéticos ou categóricos. Deve-se falar a verdade: isto é inteiramente incondicionado. Como é possível um tal imperativo categórico? Imperativos
categóricos comandam sem condições empíricas. Eles podem perfeitamente ter condições, mas condições a priori, e então a própria
condição é categórica. Todos os fins que se queiram remetem, em
última instância, à felicidade. Esta é a soma do alcance de todos os
fins. A felicidade é, no entanto, uma condição empírica: pois não
posso saber se algo contribuirá para minha felicidade, nem como
serei feliz; mas tenho antes, isto sim, de fazer a experiência. – Os
imperativos da prudência são pragmáticos. As leis são denominadas sanções pragmáticas que visam o maior bem comum. A história pragmática é a história que nos torna prudentes. É pragmático
tudo aquilo que serve à promoção da felicidade. Os imperativos
categóricos se diferenciam dos morais. Os imperativos pragmáticos estão no fundamento dos imperativos da habilidade, pois eu
só aprendo algo com estes por acreditar que esse algo poderá contribuir para a minha felicidade se eu puder depois pensar o que
ele seja. A felicidade não é, portanto, um princípio moral. Eu não
posso fornecer a priori regras da felicidade? Não. Eu posso certamente conceber a felicidade que está ligada a uma coisa, mas não
conceber a priori em que consiste tal felicidade. Pois o agradável
não é um conceito, mas sim / xxvii,1325 / a sensação de como sou
afetado pela coisa. Por isso não posso ter qualquer regra a priori da
felicidade, já que não conheço nenhum caso in concreto [concretamente]. O imperativo pragmático repousa, portanto, em condições meramente empíricas. Shaftesbury diz que a felicidade não
daria à moral qualquer valor. Para, pois, dar valor à moralidade,
107
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010
teríamos de pressupor que o ser humano tem na ação uma satisfação e uma insatisfação imediatas. A isso ele chamava sentimento
moral. As ações não teriam nenhum valor se apenas sinto prazer
nas suas consequências, pois neste caso elas teriam valor apenas
como meio; como também Hutcheson diz. Desse modo, porém, o
imperativo moral não é categórico, pois se pressupõe que só tem
valor, nas suas ações morais, o ser com quem esse sentimento é
partilhado. Pois um tal sentimento não pode ser exibido a priori,
mas apenas a partir da experiência. O que a experiência nos ensina
é contingente: nós não poderíamos discernir a priori a necessidade
desse sentimento. O valor das ações morais estaria apenas naquele
que tem um sentimento moral, e dependeria do ser supremo nos
dar um tal sentimento, de modo que as ações morais não seriam
em si mesmas boas ou más.
Existe sem dúvida um tal sentimento moral nos seres humanos, mas ele não precede o conhecimento das regras morais
nem as torna possíveis, mas antes se segue delas. Se o sentimento
moral dos seres humanos fosse a razão pela qual as ações podem
ser reconhecidas ou como boas ou como más, então esses sentimentos poderiam apresentar-se em diferentes graus. E como o
sentimento moral não é mais forte do que os demais sentimentos, nem isso poderia ser provado, acontece o mesmo que com
os sentimentos físicos, podendo o ser humano escolher, dentre os
sentimentos, aquele que lhe parece mais satisfatório. E isso independe da origem do sentimento. Tudo nos estimula. Os sentimentos são distintos apenas segundo a intensidade, e iguais segundo
a espécie. As leis morais comandam, porém, de tal maneira que
nenhum instinto ou sentimento prevaleça. Então o sentimento
moral teria de ser o mais intenso, mas este não é o caso. Seria um
tolo o ser humano que preferisse seguir um sentimento menor em
detrimento de um maior. Se o sentimento moral fosse o maior,
todos seriam virtuosos. Se a virtude me agradasse acima de tudo
quando a represento a priori, eu desejaria ter um sentimento que
me conduzisse a ela com a maior força; o agradável repousa sobre
a aprovação da doutrina pela qual, se a virtude estivesse para mim
acima de todos os prazeres, eu gostaria de ser sempre virtuoso.
As leis morais são sempre categóricas e têm obrigatoriedade, i.e.
108
Immanuel Kant
Direito Natural Feyerabend
necessitação moral a uma ação. A ação a que sou necessitado pelas
leis morais é o dever. Uma lei moral vem antes. Se a vontade é
boa em si mesma, a lei moral não precisa de obrigatoriedade. Se
ela não o é, tem de ser necessitada. A moral não pode originar-se
da inclinação, isto é sabido pelo entendimento comum. Todos os
seres humanos têm inclinação à vida. Se alguém fica doente, busca
todas as ajudas possíveis: ele o faz por inclinação. Se alguém, no
entanto, é infeliz em sua vida e fica doente, mas / xxvii,1326 /
ainda assim cuida de sua saúde, então ele certamente não o faz
por inclinação, mas por dever. Neste último caso há um conteúdo
moral. Se um homem se casa com uma bela mulher, ele a amará
por inclinação. Se ele ainda a ama, porém, depois que o tempo a
deixou enrugada, isto é algo que ele faz por dever. Uma ação moral
não tem valor quando se origina da inclinação, mas apenas quando
se origina do dever. Uma ação pode ser conforme ao dever, mas
não ter acontecido pelo dever. Nós temos de praticar as ações morais sem um mínimo de móbil, apenas por dever e respeito pela lei
moral. A lei tem de determinar por si mesma a vontade. Se acontecem por dever, as ações têm então, e somente então, um valor
moral. Apenas a conformidade universal a leis pode obrigar-me.
Se cada qual não mantivesse suas promessas, e isto fosse uma regra
universal, esta não poderia valer como lei universal, pois ninguém
prometeria nada sabendo que não iria cumprir e que os outros
também o saberiam.
Obrigatoriedade é a necessitação moral da ação, i.e. a dependência de uma vontade em si boa relativamente ao princípio da
autonomia, ou as leis práticas objetivamente necessárias. Dever é a
necessidade objetiva da ação a partir da obrigatoriedade. Respeito
é a estima por um valor que limite todas as inclinações. Nós respeitamos alguém quando o estimamos tanto que limitamos nosso
amor próprio etc. Nós o estimamos mais do que a nós mesmos. As
ações não devem ocorrer com base na necessidade das inclinações.
Se uma ação ocorre por medo, ela também não é dever. O valor
tem de repousar, portanto, no próprio dever. Todas as leis podem
necessitar a vontade ou por meio de sua conformidade a leis, ou por
meio dos móbiles a ela vinculados, ou ainda por meio da coerção
e do medo. Quando necessita por meio da inclinação e do medo,
109
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010
a lei não o faz por si mesma, mas de maneira condicionada: a lei
que necessita em si mesma tem de necessitar através do respeito.
No respeito eu deixo de lado a minha inclinação e dou um valor
absoluto à ação. Nosso autor e outros falam de obligatio per poenas
[obrigação através de penas], como também Baumgarten. Mas
obrigar alguém através de poenas [penas] e praemia [incentivos]
é uma contradictio in adjecto [contradição em termos]; pois então
eu o levo a ações que ele pratica não por obrigatoriedade, mas por
medo e inclinação. Eu também posso, desse modo, forçá-lo a coisas que não são sequer obrigatórias para ele. Mas como pode uma
lei ser respeitada por si mesma e também por isso necessitar? Deus
não tem respeito pela lei porque não tem nenhuma inclinação que
pudesse limitar o respeito. O respeito é algo que necessita, mas
em Deus não pode haver nada que obrigue. Um ser racional como
fim em si mesmo tem de ter sua própria vontade e, portanto, tal
vontade tem de ser livre. A vontade humana, enquanto livre, não
pode ser determinada por móbiles, pois então não seria livre, mas
igual aos animais. Seria determinada pela natureza. Uma vez que
nenhum móbile a determine, e dado que ela não pode existir sem
leis, então a lei, enquanto lei apenas, tem de determiná-la. Assim, a
forma da lei tem de determinar a vontade, e esta, portanto, precisa
ter respeito pela lei. Quando me pergunto se devo / xxvii,1327 /
devolver a alguém o depósito que este alguém confiou apenas a
mim: se apenas a minha inclinação me determinasse, eu o conservaria comigo. No entanto, a vontade é livre e, portanto, precisa ter
uma lei. A lei está dada: “você deve devolver o depósito”. Tirarei
algum proveito disso? Não. Devo temer que isso seja descoberto?
Suponhamos que o outro esteja morto e eu possa negar tudo. Se eu
transformasse numa regra universal que cada qual pode conservar
o depósito se lhe aprouver, isto não poderia jamais tornar-se numa
lei universal, pois então ninguém confiaria nada em depósito a
ninguém. Se minha vontade não deve ser desenfreada, mas ter leis,
então elas têm de ser assim. O respeito pela lei se baseia em que
essa é a única possibilidade pela qual a ação pode estar submetida
a leis universais. – Pagar a dívida é um dever. A obrigatoriedade
é a relação com a lei, neste caso com o contrato. A legalidade é
a concordância da ação com o dever, sem levar em conta se este
110
Immanuel Kant
Direito Natural Feyerabend
é ou não o seu fundamento de determinação. A moralidade é a
concordância da ação com o dever na medida em que este seja
o seu fundamento de determinação. Em todas as ações jurídicas,
a legalidade é conformidade ao dever, mas não moralidade, pois
elas não ocorrem por dever. Na legalidade só importa se eu ajo
de acordo com o dever, sendo indiferente se o faço por respeito
ou inclinação e medo. Se, contudo, não observo a lei por respeito
à lei, minhas ações não são morais. A maior parte das ações humanas conformes ao dever é legal, em especial aquelas que podem
ser coagidas sem o uso da violência. É legal quando sano minha
dívida no tempo pertinente. Se sei que o credor é um homem
pontual, faço-o por medo. Se ele fosse condescendente, eu talvez
seguisse hesitando em pagar. A ética é a ciência do julgamento e
determinação das ações segundo sua moralidade. O jus [direito] é
a ciência do julgamento das ações segundo sua legalidade. A ética
também é denominada doutrina da virtude. O jus pode tratar de
ações que sejam coagidas a isso. Pois lhe é indiferente se as ações
acontecem por respeito, medo, coerção ou inclinação. A ética não
trata de ações que podem ser coagidas; a ética é a filosofia prática
da ação tendo em vista a disposição. O jus é a filosofia prática das
ações que não leva em conta a disposição. Tudo que tem obrigatoriedade, portanto todos os deveres, pertencem à ética. O jus trata
de deveres e ações que são conformes à lei e podem ser coagidos.
A ação é dita justa quando concorda com a lei, virtuosa quando
se origina do respeito pela lei. Um ação pode, portanto, ser justa
sem ser virtuosa. A disposição de agir por dever, por respeito à lei,
constitui a virtude. A ética contém a doutrina da virtude, o jus a
doutrina do direito. Mesmo que a ação seja também conforme à
coerção, ela pode ser conforme à lei. Diz-se que o direito é uma
doutrina dos deveres que podem e devem ser cumpridos por meio
da força: mas isto se baseia no seguinte. Dever é necessitação, portanto deve ser necessário independentemente do respeito pela lei
e tem de acontecer, pois, por meio da coerção. Fora a coerção e
o respeito, nada necessita a uma ação. A coerção / xxvii,1328 / é
limitação da liberdade. Uma ação é correta (recht) quando concorda com a lei, justa (gerecht) quando concorda com as leis da
coerção, i.e.: com as doutrinas do direito. Chama-se correto, em
111
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010
geral, àquilo que concorda com uma regra. Por isso se chama linea
recta [linha reta] à linha que corre paralela à régua, a qual é chamada de regra. O correto é, portanto, ou virtuoso ou justo. Quando
é uma ação conforme à coerção? Uma ação que se pauta pela regra universal da liberdade é correta; se ela contradiz a liberdade segundo uma regra universal, então ela é injusta. A intenção
pode ser aqui a que for. Minha ação deveria apenas ser concebida
de modo a conformar-se à liberdade universal. Não posso roubar
nada de alguém, mas também não tenho de dar-lhe nada. Não ajo
injustamente, portanto, se vejo alguém morrer e não lhe ajudo.
Esta é uma actio justa [ação justa]. A ação é externamente correta,
embora internamente não. Eu apenas não quero roubar a felicidade de alguém, além disso nada me importa: ele pode tentar ser
feliz como quiser. É correta uma ação que se opõe à ação que, por
seu turno, vai contra a liberdade universal. O opor-se a uma ação
incorreta é um obstáculo à ação que se opõe à liberdade universal,
portanto é uma promoção da liberdade e da concordância da liberdade privada com a liberdade universal. A oposição à ação da
liberdade de um outro é denominada coerção. A concordância da
liberdade privada com a liberdade universal é o princípio supremo
do direito, o qual é uma lei de coerção.
Nosso autor, juntamente com outros, define o direito sem
uma ciência das leis a cujo cumprimento se pode ser coagido e
cuja coerção não contradiz o dever. A coerção é conforme ao direito quando promove a liberdade universal. Uma lei das ações a
que se pode coagir alguém é uma lei de coerção, e o direito a coagir
é um direito de coerção. Um direito que não seja de coerção é a
equidade. Esta é um jus late dictum [em sentido amplo], aquele é
um jus stricte dictum [em sentido estrito]. A equidade é o direito
sem coerção. A obrigação de observar uma lei a que não se pode
ser coagido é uma obrigação livre de coerção. Eu posso ser coagido
a tudo aquilo que é necessário para a conservação da liberdade
universal. A equidade é um direito ético. Se posso exigir algo de
alguém pelo direito em sentido estrito, então eu posso coagi-lo
caso ele se recuse a isso; se posso exigir apenas por equidade, então
é uma obrigação que ele tem comigo à qual, no entanto, não posso
112
Immanuel Kant
Direito Natural Feyerabend
coagi-lo. A ação que concorda com a lei universal na disposição
manifesta, mas não na interna, não é equitativa. Trata-se de um
direito imperfeito, e não de um direito perfeito ou em sentido estrito, no qual eu posso ser coagido. É imperfeito, mas ainda assim
um direito. Minha liberdade concorda com a do outro quando
concorda desse modo. Supondo que eu tenha acertado com meu
empregado de pagar-lhe 20 Rthl. (Reichsthalers)4 por ano, e as coisas tenham encarecido a ponto de ele não poder sobreviver com
esse dinheiro, não pratico uma injustiça contra ele / xxvii,1329 /
se, mesmo frente a seus apelos por mais, pagar apenas as 20 Rthl.,
pois estou agindo de acordo com as disposições por ele manifestas.
Mas eu não agi de maneira equitativa, pois ele acreditava que os
20 Rthl. seriam suficientes para ele passar o ano, na medida em
que os preços continuassem modestos. Eu podia pressupor a sua
intenção. Ele tinha, portanto, um direito efetivo, mas não coercitivo, pois as disposições, posto serem internas, não poderiam ser
submetidas à coerção. O equitativo pode ser denominado eticamente justo.
Aqui não trataremos da equidade, mas apenas do direito estrito. Os juristas se equivocam com frequência, ao coagir à equidade. A ética contém deveres do direito em sentido forte e da equidade. O direito diz respeito à liberdade, a equidade à intenção. Se
não promovo a felicidade de alguém, não causo com isso nenhum
prejuízo à sua liberdade, mas o deixo fazer o que queira. A liberdade tem de concordar com a universalidade. Se isso não ocorre,
pode-se coagir aquele que obstrui a liberdade. A causa do direito,
aqui, não é nem a felicidade nem o comando dos deveres, mas a
liberdade. O autor estabeleceu em seus Prolegomena que haveria
uma lei divina e que nós seríamos felizes por meio dela; isso não
será aqui necessário. Seus Prolegomena parecem ter feito parte de
uma preparação para um Collegii [curso] específico.
Tradução de Fernando Costa Mattos
4. Moeda corrente na Prússia da época.
113
RESENHA. A transformação da filosofia
em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução,
interpretação e crítica, de Luiz Repa.
(São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008)
Fernando Costa Mattos
Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente
pesquisa de pós-doutorado, com bolsa da FAPESP,
junto ao Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP
A transformação da filosofia em Jürgen Habermas, de Luiz Repa,
é um livro que anuncia no título o seu escopo mais geral: analisar
as transformações por que passa, ao longo da obra de Habermas, a
compreensão que este tem da filosofia. E o subtítulo, por seu turno
– os papéis de reconstrução, interpretação e crítica –, indica desde logo
as principais balizas desse caminho de transformação: essas três
noções-chave, que se vão incorporando gradativamente ao conceito habermasiano, permitirão compreender o lugar da filosofia
em seu pensamento, até pelo menos o final da década de 1990.
Com isso, Repa poderá chamar a atenção do leitor – e este é talvez
um dos grandes méritos de seu livro – para a centralidade que a
filosofia assume na obra do filósofo Habermas, tornando a princípio insustentáveis as acusações segundo as quais o “sociólogo”
Habermas reduziria a filosofia a um mero apêndice das ciências
sociais.1
Não há de ser fortuito, por sinal, que Luiz Repa inicie seu
livro com uma citação d’O discurso filosófico da modernidade em que
Habermas se reporta à oposição kantiana entre os conceitos acadêmico e mundano de filosofia2: é um ótimo ponto de partida
1. Entre tais acusações, valeria destacar aquela que é feita por Dieter Henrich
no artigo “O que é metafísica? O que é modernidade? Doze teses contra
Jürgen Habermas” (in: Cadernos de filosofia alemã, n. 14, pp. 83-117, jul.-dez.
2009).
2. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, p. 13.
115
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 115-121 – jan.-jun. 2010
para quem quer explicar a posição filosófica habermasiana em termos propriamente filosóficos, extraídos daquele que seria, embora
sem ter a consciência disso (segundo Habermas), o inaugurador
do discurso filosófico da modernidade. A noção de “diagnóstico
de época”, por exemplo, desde o princípio tão cara à teoria crítica,
se deixaria explicar em associação com tal conceito mundano de
filosofia, estando já em Kant, pois, a percepção da necessidade,
colocada para todo filósofo autenticamente moderno (ou contemporâneo), de “filosofar” com os olhos voltados ao “mundo”, i.e. à
sociedade humana em sua inscrição espácio-temporal. De outro
lado, o conceito acadêmico de filosofia seguiria denotando a filosofia enquanto especialidade universitária, a qual pendeu cada vez
mais, com o passar do tempo, a um estudo da história da filosofia
que, embora rigoroso, tenderia a mostrar-se descompassado em
relação ao momento presente.3
Essa menção inicial a Kant não tem por objetivo, evidentemente, o perfilamento de Habermas no pelotão dos filósofos
modernos e contemporâneos, como se ele fosse apenas mais um
sistema de pensamento. O que o impede de cair nessa armadilha
é a outra filiação decisiva, mencionada por Luiz Repa na sequência: a tradição hegelo-marxista de crítica da ideologia, segundo
a qual o papel da filosofia é essencialmente crítico, negativo, e
não positivo.4 É certo que ela se pauta por um “interesse emancipatório” que já nos anos 1960 Habermas opunha aos interesses
técnico (próprio das ciências da natureza) e prático (próprio das
assim chamadas ciências do espírito),5 mas esse, digamos, princípio regulativo só se deixa realizar na medida em que a filosofia se
constitua por oposição aos discursos positivos que bloqueiam a
possibilidade da emancipação.
Ao fazê-lo, porém – e aqui se mostra aquele que é, talvez,
o grande paradoxo de toda filosofia após Hegel –, a filosofia não
pode (como pareceu querer Adorno) ficar na mera negatividade:
3. Idem, ibidem.
4. Idem, p. 15.
5. Idem, p. 14.
116
Fernando Costa Mattos
RESENHA. A transformação da filosofia...
ela tem de construir, ou na verdade reconstruir, os padrões normativos racionais que, na realidade efetiva das transformações sociais,
apresentaram-se associados à luta pela emancipação. Não é ao filósofo, nesse sentido, que cabe ditar, positiva e soberanamente (tal
como faziam os filósofos clássicos), qual o caminho a seguir; é a
própria sociedade quem deve indicá-lo, a partir de conflitos concretos em que os aspectos comunicativos da racionalidade buscam
afirmar-se contra os meramente instrumentais.
Assim, a nova função do filósofo está ligada à capacidade de
identificar, nessa reconstrução que faz da sociedade moderna, tanto os potenciais emancipatórios como os obstáculos que se apresentem à sua realização. Para identificá-los, contudo, ele necessita
do instrumental teórico oferecido pelas ciências que, por meio de
pesquisas empíricas, permitem tornar muito mais preciso aquele
“olhar para o mundo” de que já o velho Kant nos falava e que, na
tradução contemporânea, passou a denominar-se com frequência
um “diagnóstico de época”. É por este viés, com efeito, que Luiz
Repa nos permite compreender, com razoável clareza, a nada simples relação entre filosofia e ciência no pensamento habermasiano:
o tal trabalho reconstrutivo que é agora exigido do filósofo passa
tanto (1) pela identificação dos pressupostos normativos que, sob
a forma de pretensões universalistas, constituem a base das lutas
concretas pela emancipação (“reconstrução horizontal”) como (2)
pela demonstração de como esses mesmos pressupostos puderam
constituir-se sob condições empíricas (“reconstrução vertical”).
Nas palavras do próprio autor,
com a idéia de uma divisão de trabalho ‘não exclusivista’ entre filosofia e ciência, as reconstruções vertical e horizontal se implicam,
de modo que, para a filosofia, resulta a possibilidade de se apoiar
em estudos empíricos para o estabelecimento de suas pretensões
de validade. Ou seja, articula-se uma concepção falibilista para as
reconstruções filosóficas, a qual é contraposta a toda ideia de fundamentação última.6
6. Idem, p. 17.
117
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 115-121 – jan.-jun. 2010
De certo modo, estão dados aí os dois aspectos mais gerais
do desafio teórico colocado para Habermas e, por extensão, para
Luiz Repa na reconstrução do percurso trilhado pelo filósofo: a
possibilidade de um apoio na empiria e o distanciamento das fundamentações últimas. São essas duas exigências, com efeito, que
pautam tanto o diálogo de Habermas com seus críticos como as
transformações conceituais com que ele responde a essas críticas:
deixando de lado uma compreensão da filosofia como crítica da
ideologia e da ciência – vista então como ideológica, na esteira
da tradição marxista frankfurtiana7 –, Habermas se verá forçado
a ampliar a sua concepção de racionalidade, nos anos 1970, para
dar conta dos potenciais emancipatórios que, segundo permitiam
notar as ciências sociais de base empírica, estariam contidos no
interior da própria evolução do sistema capitalista, da ciência e da
técnica8 – uma carência de seu pensamento para que críticos como
Bubner haviam apontado.9 Em seguida, a presença de elementos
ainda muito fortes, do ponto de vista da fundamentação filosófica, no interior da compreensão nascente de uma racionalidade
– elementos como a “comunidade ideal de fala”, duramente criticada por Wellmer –, acabaria por conduzir Habermas a mitigar
ao máximo os “elementos horizontais” de sua filosofia, falando de
um “transcendental fraco” para contrapor-se a Karl-Otto Apel.10
E a sensível dificuldade de efetivar tal mitigação, por seu turno,
acabaria por levá-lo a sofisticar ao máximo aquela relação entre as
reconstruções horizontal e vertical dos pressupostos normativos
da linguagem – linguagem cujo protagonismo, em função da influência da filosofia analítica, iria acentuar-se cada vez mais.
É na reconstituição desses deslocamentos habermasianos,
assim, que Luiz Repa constrói o seu próprio percurso, alinhando os capítulos do livro aos sucessivos períodos e temas por que
passou a compreensão habermasiana da filosofia e de sua relação
7.
8.
9.
10.
118
Idem, pp. 76 e ss.
Idem, pp. 85 e ss.
Idem, p. 71 (nota 151).
Idem, p. 166 e ss.
Fernando Costa Mattos
RESENHA. A transformação da filosofia...
com a ciência.11 Da “filosofia como crítica da ciência” (capítulo 1)
à “filosofia como interpretação mediadora” (capítulo 4), passando
por “um conceito complexo de racionalidade” (capítulo 2) e pela
“filosofia como ciência reconstrutiva” (capítulo 3), somos levados a
acompanhar e, em razoável medida, a compreender tanto as referidas transformações como a permanência de certos ideais metodológicos e o gradativo estabelecimento – basicamente, dos anos
1960 aos 80 – de uma posição a eles mais conforme: deixando para
trás toda pretensão veritativa de um discurso filosófico positivo,
quiçá capaz de fundamentar os pressupostos teóricos extraídos da
linguagem por meio da reconstrução vertical, Habermas passaria a
enfatizar o caráter falibilista de seu próprio discurso reconstrutivo,
o qual buscaria equilibrar-se sempre entre os pontos de vista descritivo e normativo com vistas à elaboração de uma compreensão
efetivamente crítica das sociedades modernas, pluralistas e pósindustriais.12
De certo modo, é essa a resposta tardia de Habermas à grande dificuldade da filosofia desde meados do século XIX (“somos
contemporâneos dos jovens hegelianos”, diz ele na resposta a
Henrich13): entre o dogmatismo subjetivista com que ainda Kant,
segundo ele, pretenderia acessar se não o mundo, pelo menos as
estruturas últimas do sujeito transcendental, e o relativismo antirracionalista que sobretudo a partir de Nietzsche identificaria
toda racionalidade à dominação, o transcendentalismo falibilista
de sua filosofia reconstrutiva, maximamente ancorado nos movimentos sociais, de um lado (as tendências emancipatórias inscritas
na própria efetividade), e nas pesquisas empíricas, de outro (as
contribuições decisivas das ciências sociais ao novo discurso filosófico), permitiria resolver em nova chave o velho desafio kantiano
de sair do dogmatismo sem cair no ceticismo (absoluto). Afinal,
seria possível falar em pressupostos normativos sem conservar os
fardos metafísicos da filosofia da subjetividade, e sem ceder intei11. Cf. idem, p. 229.
12. Idem, p. 175.
13. Habermas, J. “Retorno à metafísica – uma recensão”. In: _____. Pensamento
pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002 (2ª.ed.), p. 269.
119
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 115-121 – jan.-jun. 2010
ramente o terreno aos positivistas dogmáticos que, desconfiados
de todo e qualquer pressuposto não verificável, enterrariam de vez
as esperanças da filosofia.14
A saída é engenhosa, e o livro de Luiz Repa, bastante persuasivo. Não obstante, há questões que parecem teimar em persistir.
Que o seu falibilismo, por exemplo, guarde estreito parentesco com
a solução dada por Kant às idéias da razão e ao juízo reflexionante,
é algo que o próprio Habermas não hesitaria em admitir. Ora! A
depender da leitura que fizermos de Kant, contudo – enfatizando
os elementos regulativos em detrimento dos constitutivos –, pode
ser que a diferença se torne tão pequena que sejamos levados a
questionar o alcance dessa aparente revolução copernicana a que
Habermas, inspirado no modelo kuhniano de história da ciência,
dá o pomposo nome de uma “mudança de paradigma”.15
É também discutível, nesse mesmo sentido, se a nova metafísica pretendida por Kant – e que, como se sabe, está longe de
resumir-se à analítica transcendental – encaixa-se no conceito de
metafísica que Habermas acredita ter sido ultrapassado no “pensamento pós-metafísico”.16 Se tivermos em vista as reflexões de
Kant nos Prolegômenos, por exemplo, em que ele se põe a considerar o que será da metafísica no futuro, salta aos olhos o caráter
meramente problemático e hipotético – leia-se falibilista – de uma
série das ideias que serão centrais a esse novo saber. Note-se que
também aqui não se trata de questionar a engenhosidade da solução habermasiana, mas apenas o seu grau de novidade e transformação paradigmática: a depender de como interpretemos o
conceito de metafísica no cenário pós-kantiano, o que Habermas
14. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, pp. 217 e ss.
15. É o que faz Dieter Henrich em “O que é metafísica? O que é modernidade?”. Henrich, D. “O que é metafísica? O que é modernidade?”. In: Cadernos
de filosofia alemã, n. 14, pp. 101-3.
16. Cf. Habermas, J. Pensamento pós-metafísico, pp. 14-5.
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Fernando Costa Mattos
RESENHA. A transformação da filosofia...
faz é radicalizar a problematicidade que desde o princípio marca
esse conceito.17
Isso, de qualquer modo, se estiver correto o peso dado por
Luiz Repa à filosofia, por meio dos conceitos de reconstrução,
interpretação e crítica, no interior do pensamento de Habermas.
Pois caso se reduzisse esse peso, como querem alguns, haveria o
risco nada pequeno, apontado também por Dieter Henrich, de a
filosofia ver-se engolida pelas ciências sociais empíricas e contaminada pelo positivismo destas últimas. Mas neste ponto parece
acertada a insistência de Repa em assinalar a “dependência recíproca” em que Habermas enxerga as relações entre a filosofia e as
ciências:
Quanto mais houver uma cooperação feliz entre ciência e filosofia,
tanto mais poderemos, na esfera do discurso teórico, ter razões para
aceitar – ainda que por enquanto – propostas teóricas fortemente
universalistas. O que surge não é, entretanto, uma dependência da
filosofia em relação à ciência, mas uma “dependência recíproca”,
uma vez que as ciências reconstrutivas de tipo experimental (...)
precisam, por sua vez, das abordagens reconstrutivas filosóficas
como uma espécie de medida de processos evolutivos.18
Resta saber, naturalmente, se de fato funcionam assim, em
regime de “cooperação feliz”, as relações entre as ciências e a sua
“ex-mãe”. Antes disso, porém, é preciso entender melhor o modo
como o próprio Habermas as enxerga. E o livro de Luiz Repa,
quanto a isso, nos indica certamente um bom caminho.
17. Cf. Thies, C. Der Sinn der Sinnfrage. Metaphysische Reflexionen auf kantianischer Grundlage. Munique: Alber, 2008, pp. 58-65.
18. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 177.
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Lançamentos
A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno, de Márcio
Seligmann-Silva. São Paulo, Civilização Brasileira, 2010.
A condição humana. Uma reflexão sobre a ontologia fenomenológica sartriana,
de Marilda Martins Fayad. Campinas, Alínea, 2010.
Do empirismo à fenomenologia, de José Henrique Santos. São Paulo,
Loyola, 2010.
O eclipse da moral. Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo, de
Sílvio Rosa Filho. São Paulo, Barcarolla, 2010.
Ética, Direito e Democracia, de Manfredo de Araújo de Oliveira. São
Paulo, Paulus, 2010.
Kant e a teologia, editado por Georg Essen e Magnus Striet. São Paulo,
Loyola, 2010.
Nietzsche, seus leitores e suas leituras, de Scarlett Marton. São Paulo,
Editora Barcarolla, 2010.
O projeto de uma psicologia científica em Wilhelm Wundt. Uma nova interpretação, de Saulo de Freitas Araujo. Juiz de Fora, Editora UFJF, 2010.
Traduções
Contextos da justiça. Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo, de Rainer Forst. Tradução de Denilson Luis Werle. São Paulo,
Boitempo Editorial, 2010.
Fundamentação da metafísica dos costumes, de Immanuel Kant. Tradução,
introdução e notas de Guido Antônio de Almeida. São Paulo, Editora
Barcarolla e Discurso Editorial, 2010.
Kant. Uma leitura das três críticas, de Luc Ferry. Tradução de Karina
Jannini. 2a. ed., Rio de Janeiro, Difel, 2010.
Romantismo. Uma questão alemã, de Rüdiger Safranski. Tradução de Rita
Rios. São Paulo, Estação Liberdade, 2010.
Rousseau e a ciência política de seu tempo, de Robert Derathé. Tradução de
Natalia Maruyama. São Paulo, Editora Barcarolla e Discurso Editorial,
2010.
Summary
Editorial
9
Articles
Kant’s “healthy grammar” 11
Pedro Pimenta
The “french” Nietzsche in the pages of the Zeitschrift für Sozialforschung 27
Ernani Chaves
Heidegger and the Doctrine of Personality in Kant 41
Jean Leison Simão
Pragmatic transformation of Kant’s philosophy:
Habermas as Humboldt reader 59
Antonio Ianni Segatto
For a conceptual history of women discrimination 81
Marisa Lopes
Translation
The Introduction to the Natural Right Feyerabend,
Immanuel Kant 97
Presented and translated into Portuguese by Fernando
Costa Mattos
Review
Luiz Repa’s A transformação da filosofia em Jürgen
Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica
(The transformation of philosophy in Jürgen Habermas:
the roles of reconstruction, interpretation, and critique) 115
Fernando Costa Mattos
Releases 123
Summary 125
Instructions 127
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
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
Coletânea: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título do ensaio. In:
SOBRENOME, Nome (abreviado) do(s) organizador(es). Título da coletânea em itálico: subtítulo. Número da edição, caso não seja a primeira. Local da publicação: nome da editora, ano.
Cadernos de Filosofia Alemã nº 15 – p. 127-128– jan.-jun. 2009

Artigo em periódico: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título do artigo. Nome do periódico em itálico, local da publicação, volume e número do periódico, ano. intervalo de páginas do artigo, período da publicação.

Dissertações e teses: SOBRENOME, Nome (abreviado). Título em itálico. Local. número total de páginas. Grau acadêmico e área de estudos
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