edificao do ensino pelo instrumento corpo
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edificao do ensino pelo instrumento corpo
TÍTULO: EDIFICAÇÃO DO ENSINO PELO INSTRUMENTO CORPO Autor1 Jenice Tasqueto de Mello Palavras-chave: Professora – Corpo – Escolarização. Eixo temático: Corpo e escolarização. Subtítulos: Considerações iniciais. Texto de referência: CONTRATO DE PROFESSORA – 1923 (APPLE, 1991, p.63). Das práticas sociais às práticas discursivas. A prática textual. Ainda a considerar. Resumo: O presente artigo propõe uma reflexão sobre o discurso que foi se constituindo ao longo dos tempos acerca do corpo da professora. Utiliza conceitos da Análise Crítica de Discurso de Fairclough e tem como corpus um “Contrato de Professora de 1929 – EUA”. A análise revela que, pelo disciplinamento e controle dos corpos, objetivava-se disciplinar as mentes e o espírito das mulheres que exerciam o magistério. Palavras –chave: Professora – Corpo – Escolarização 1 UCPel - [email protected] FURG, 06 a 08 de maio de 2009. Considerações iniciais Este artigo integra as atividades desenvolvidas na disciplina “Discurso e Relações Sociais”2. Analisa o discurso de um “Contrato de Professora” utilizado nos Estados Unidos em 1929, com base no modelo de Análise Crítica de Discurso de Norman Fairclough (2001), cuja proposta é a de descrever, interpretar e explicar eventos discursivos em três dimensões complementares: texto, prática discursiva e prática social. Como os pontos de entrada podem ser diferentes, isto é, não há uma regra para a abordagem tridimensional, pretendo partir das práticas sociais para as práticas discursivas e enveredar por questões de cunho textual, com certeza, por vezes, interconectando-as. Como minha formação é numa disciplina dita “exata” (biologia) e meu interesse pelo discurso é bastante recente, sinto-me ainda pouco a vontade neste tipo de análise, cujos parâmetros não apresentam um caminho previamente definido. Entretanto, pelo fato de se tratar de um assunto diretamente relacionado com minha vida profissional, espero fazer deste trabalho algo vivo, que venha a interessar outros leitores. Texto de referência: CONTRATO DE PROFESSORA – 1923 (APPLE, 1991, p.63). Este é um acordo entre a Senhorita...... professora, e o Conselho de Educação da escola...., pelo qual a Senhorita.......concorda em ensinar por um período de oito meses, começando em 1º de setembro de 1923. O Conselho de Educação concorda em pagar à Senhorita....... a soma de 75 dólares por mês. A Senhorita............ concorda com as seguintes cláusulas: 1. Não casar-se. Este contrato torna-se nulo imediatamente se a professora se casar. 2. Não andar em companhia de homens. 3. Estar em casa entre 8 horas da noite e às 6 horas da manhã, a menos que esteja assistindo a alguma função da escola. 4. Não ficar vagando pelo centro em sorveterias. 5. Não deixar a cidade em tempo algum sem a permissão do presidente do Conselho de Curadores. 6. Não fumar cigarros. Este contrato torna-se nulo imediatamente se a professora for encontrada fumando. 7. Não beber cerveja, vinho ou uísque. Este contrato torna-se nulo imediatamente se a professora for encontrada bebendo cerveja, vinho ou uísque. 8. Não andar de carruagem ou automóvel com qualquer homem exceto seu irmão ou pai. 2 UCPel - Curso de Pós-Graduação em Letras – doutorado em Linguística Aplicada, disciplina ministrada pela professora Drª Susana Bornéo Funck, 2º semestre de 2008. FURG, 06 a 08 de maio de 2009. 9. Não vestir roupas demasiadamente coloridas. 10. Não tingir o cabelo. 11. Vestir ao menos duas combinações. 12. Não usar vestidos mais de duas polegadas acima dos tornozelos. 13. Conservar a sala de aula limpa. (a) varrer o chão da sala de aula ao menos uma vez por dia. (b) esfregar o chão da sala de aula ao menos uma vez por semana com água quente e sabão. (c) limpar o quadro negro ao menos uma vez por dia. (d) acender a lareira às 7 horas da manhã de forma que a sala esteja quente às 8 horas quando as crianças chegarem. 14. Não usar pó no rosto, rímel ou pintar os lábios. Das práticas sociais às práticas discursivas O fato de o ensino universal e democrático ter sido edificado, a partir do século XIX, em torno do trabalho feminino favoreceu a que o currículo e a vida privada e pública do professorado fossem controlados em todos os seus aspectos. No contrato de trabalho para professoras dos Estados Unidos em 1923, fica evidente o “policiamento” da vida dessas mulheres. Apple (1991), reportando-se ao ensino como um processo de trabalho, salienta que a literatura contém muitos exemplos documentados sobre os efeitos dos sistemas rígidos de administração e controle resultando em perdas de autonomia, habilidades, dentre outros aspectos. A um primeiro olhar sobre o contrato de professora acima se constata em primeiro lugar a predominância das mulheres no magistério, marcando o gênero da docência como feminino e, por consequência, como baseado na coerção de quem administra o ensino sobre quem executa o ato de ensinar. Porém, segundo Louro (1997), o gênero da docência também pode ser visto como masculino se pensarmos que a escola lida fundamentalmente com o conhecimento e que este é historicamente produzido por homens. Na verdade, enfatiza Louro, “a escola é atravessada pelos gêneros” (p.89). Focalizando o contexto brasileiro no afã de visualizar esse atravessamento de gêneros, temos inicialmente os jesuítas como primeiros mestres. Eles se ocupavam da educação dos meninos e jovens e as religiosas passam a ocupar-se da educação das meninas cristãs. Com o tempo, o magistério foi se feminizando, tornando-se uma atividade indicada para mulheres, especialmente as “solteironas”, que não tinham filhos. Isto ocorre devido ao pressuposto de que, de uma certa forma, elas compensariam a FURG, 06 a 08 de maio de 2009. frustração por não serem mães orgânicas, educando os filhos dos outros e transferindo as tarefas domésticas do lar para a escola. Embora, hoje em dia, a vigilância não seja a mesma, isto é, não seja instituída através de um contrato, de um modo geral a professora mulher é alvo de preocupações, especialmente nas escolas particulares confessionais. Nestas, muito se reforça o vestir-se adequadamente, o comportar-se frente a alunos e alunas, sem deixar de referir-se ao controle, muitas vezes informal, sobre tipo de material que circula por seu intermédio nas salas de aula, especialmente quando se trata do tema sexualidade (textos, livros,...) etc. Refiro-me a esta realidade porque a vivi. Lembro-me bem que, por volta do ano de 1979, quando trabalhava em uma dessas escolas, ao tratar sobre o tema sexualidade com alunas e alunos da 7ª série, havia necessidade de separá-los em grupos distintos. Ambos ficavam curiosos em saber o que havia sido falado para o outro grupo, bem como em saber como era vivida a sexualidade da professora. Surgiam perguntas do tipo, “professora, a senhora usa pílula?”. Estas e outras questões tendiam na verdade a desestruturar a professora ou o professor que deveria ter maleabilidade para aceitar as questões e respondê-las naturalmente. Mais tarde, precisamente no ano de 1993, era literalmente “policiada” no material distribuído aos alunos, tanto que havia até interferência na escolha do livro didático, por parte da supervisão da escola, pelo fato de o mesmo ser muito “cru”, “ir direto ao assunto”, “não se referir a sentimentos”, “tratar de questões sobre a virgindade”, etc. Porém, nunca alguém foi assistir uma das aulas para verificar como estes temas eram abordados. Dessa forma vivi a construção dual de professora: a contradição entre a concepção de uma identidade construída ao longo dos tempos do que é ser professora perpassada pelo controle administrativo total do currículo, ao mesmo tempo, a instabilidade, a fluidez, da vivência do que é realmente ser professora, trabalhadora da educação, sindicalizada, mulher. Também, o fato de representar essa mesma identidade em ambientes não escolares (bares, shoppings, cinemas, etc.) fazia com que inconscientemente procurasse manter uma postura condizente com o cargo que exercia. Creio que caberia nos FURG, 06 a 08 de maio de 2009. perguntar em que medida “as interações cotidianas nos espaços extras e intra-sala de aula não fortalecem algumas representações sobre os papéis de gênero e as opções sexuais dos indivíduos, enquanto inibe outras tantas representações” (FERREIRA, 2000, p.09). Estas reflexões são de certa forma uma consequência da representação do ator social (professora) que já se manifesta no contrato de 1923, que passa a ser olhado mais detalhadamente a seguir. A prática textual As expressões que seguem foram destacadas por enfatizarem o papel da mulher professora e reforçarem um modelo para a mesma, ou seja: a) assexuado: cláusula 01, “não casar-se”, cláusula 02, “não andar em companhia de homens”; b) tarefeiro, com a transmissão de tarefas domésticas para a escola: cláusula 13, “conservar a sala de aula limpa.(a) varrer o chão da sala de aula ao menos uma vez por dia.(b) esfregar o chão da sala de aula ao menos uma vez por semana com água quente e sabão.(c) limpar o quadro negro ao menos uma vez por dia.(d) acender a lareira às 7 horas da manhã de forma que a sala esteja quente às 8 horas quando as crianças chegarem”. c) incolor (sem vida), demonstrando um controle excessivo do corpo por conseguinte, da sexualidade: cláusula 09, “não vestir roupas demasiadamente coloridas”, cláusula 10, ”não tingir o cabelo” e cláusula 14, ”não usar pó no rosto, rímel ou pintar os lábios”. d) sem poder de decisão e escolha: cláusula 03, “estar em casa entre 8 horas da noite e às 6 horas da manhã, a menos que esteja assistindo a alguma função da escola”, cláusula 04, “não ficar vagando pelo centro em sorveterias”, cláusula 05, “não deixar a cidade em tempo algum sem a permissão do presidente do Conselho de Curadores”, cláusula 06, “não fumar cigarros. Este contrato torna-se nulo imediatamente se a professora for encontrada fumando”, cláusula 07,”não beber cerveja, vinho ou uísque. Este contrato torna-se nulo imediatamente se a professora for encontrada bebendo cerveja, vinho ou uísque”, cláusula 08, “não andar de carruagem ou automóvel com qualquer homem exceto seu irmão ou pai”, cláusula 11, “vestir ao menos duas combinações” e cláusula 12,”não usar vestidos mais de duas polegadas acima dos FURG, 06 a 08 de maio de 2009. tornozelos”. Estes itens demonstram que o controle excessivo da família sobre a mulher , considerada propriedade do pai, irmão e, posteriormente do marido, se estendia também, nesta época acentuadamente, a seus administradores, reforçando a falta de autonomia da mulher professora. Embora se trate de um contrato, tipo de texto necessariamente constituído de frases objetivas, o alto grau de modalidade negativa indicada pelo NÃO que acompanha os verbos casar-se, andar, ficar, deixar, fumar, beber, andar, vestir, tingir, usar torna o texto extremamente impositor, enfatizando que o papel social da mulher professora da época, com seus “respingos” em nossos dias, é regido mais pelo que ela não deve e não pode fazer do que por obrigações e tarefas. Três dessas frases negativas nos chamam a atenção pelo fato de serem acompanhadas por orações condicionais introduzidas por “se”. Em duas delas temos: “Esse contrato torna-se nulo imediatamente” SE... cláusula 6, “a professora for encontrada fumando”, cláusula 7, SE “a professora for encontrada bebendo cerveja, vinho ou uísque”. Nessas duas frases observa-se que ambas as cláusulas referem-se a possíveis vícios que, provavelmente, repercutiriam negativamente no ensino em sala de aula se a professoras os tivesse. “Afinal, educa-se pelo exemplo” (!) (?). A outra das frases referidas é a da cláusula 1, “Esse contrato torna-se nulo imediatamente se a professora se casar”. O fato de as professoras não serem casadas ajudava na representação de que elas eram desprovidas de sexualidade, ou que não deveriam dividir suas tarefas entre a escola e o lar. Entre o contratante e o contratado pode observar-se uma completa assimetria. O contratante (Conselho de Educação da escola), pelo fato de impor-se constantemente ao contratado (professora), afirma sua ascendência ideológica. O reforço da obrigatoriedade de realizar as tarefas dá-se pelo “ao menos”: cláusula 13 (a) “varrer (..) ao menos uma vez por dia”, (c) “ limpar (...) ao menos uma vez por dia. As tarefas impostas, na verdade, desvalorizavam a qualificação da professora, na medida em que a própria concepção do trabalho docente era separada de quem o colocava em prática. Apple (1991) enfatiza que quando alguém fora da situação imediata tem maior controle tanto sobre o planejamento quanto sobre o que deve realmente ser realizado, quem realiza o trabalho perde a visão do processo global e do comando sobre o mesmo. FURG, 06 a 08 de maio de 2009. A expressão “a menos que”, cláusula 3, funciona como condição: “Estar em casa entre [...] a menos que esteja assistindo alguma função da escola”, adverte para o quanto o trabalho das mulheres professoras deveria ser assujeitado a condições que as mantinham sob controle de seus administradores. Os verbos de ação (vestir, conservar, varrer, esfregar, limpar, acender) tendem a materializar a função específica esperada do ator social contratado (professora) pelo seu contratante (Conselho de Educação da escola). Seria um ator ativo, porém a atividade esperada do mesmo nada tinha a ver com o ensino e sim com tarefas domésticas, tradicionalmente femininas, mas que efetivamente, pelo já exposto, não era permitido conciliar com as tarefas de “dona de casa”, além de as desqualificarem intelectualmente. Ainda a considerar O disciplinamento imposto pelo “contrato de professora – 1923” é reforçado pelos verbos de ação que tendem a descrever comportamentos historicamente orientados relativos aos corpos e sexualidades. Esses comportamentos esperados me remetem a Foucault, cujas principais idéias estão muito bem apresentadas por Neto (2007). Quando Foucault refere-se ao poder, assinala que em nossos corpos atua um micropoder, poder molecular que vai se distribuindo capilarmente, supliciando, domesticando, marcando, decompondo, obrigando, separando, reunindo, objetivando a produção de um saber moral, produção de idéias, produção de almas. Esse disciplinamento dos corpos tende a mudar com o tempo porque os mecanismos de controle do poder mudam, bem como os desejos dos corpos, tal como Santos (1988, p.55) percebe. Entre dominação e oposições, subordinação e resistências o corpo vai trazendo em si as marcas [...] de uma cultura, as quais podem ser lidas e assim indicar onde este corpo se constitui. Estas marcas, visíveis ou invisíveis – que mesmo não se mostrando como cicatrizes visíveis na pele, podem constranger, maravilhar, capturar ou condoer ao/à que olha – se expressam como engendramento de uma cultura; modos de vida/práticas que se imprimem/dobram/vergam no corpo expressando o resultado de um disciplinamento, de uma dobra sobre si mesmo. FURG, 06 a 08 de maio de 2009. A descrição textual e discursiva destas mudanças tende a revelar muito de nossa cultura e de nossa sociedade. REFERÊNCIAS APPLE, Michael; TEITELBAUN, Kenneth. Está o professorado perdendo o controle de suas qualificações e do currículo? Teoria & Educação, Porto Alegre, n.4, p.62-73, 1991. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001. FERREIRA, Márcia Ondina Vieira. Docência e relações de gênero: participação de mulheres e homens no CEPERS/SINDICATO. Projeto de pesquisa. 2002. 19p. LOURO, Guacira Lopes.O gênero da docência. In: LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. p.88 – 109. MEURER, J. L. Gêneros textuais na análise crítica de Fairclough. In: MEURER, J. L.& BONINI, ADAIR & MOTTA-ROTH, DÉSIRÉE. (Org.) Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p.81-106. NETO, Alfredo Veiga. Foucault & a Educação. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos. Um olhar caleidoscópio sobre as representações culturais de corpo. 207 folhas. Dissertação (Mestrado). FACED/UFRGS, Porto Alegre, 1998. WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.).O Corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.35-82. FURG, 06 a 08 de maio de 2009.